Heinz Höhne - SS A Ordem Negra-BIBLIEX (1970)

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HEINZ HOHNE

SS
A ORDEM NEGRA

Biblioteca do Exército - Editora


em co-edição com Editora Laudes S.A.
Título do original Alemão:
DER ORDEN UNTER DEM TOTENKOPF

Traduzido da edição francesa (SS — L’ORDRE NOIR) por


ALVARO VALLE

Capa de
Murillo Machado

Diagramação: Orlando Fernandes


Copyright by: Bertelsmann Sachbuchverlag Reinhard Mohn, Gütersloh
Os direitos de tradução e reprodução estão reservados pela Editora para todo
o pais
Apresentação

A imagem do Terceiro Reich na concepção e na imaginação populares,


mesmo agora, já passado tanto tempo desde a 2 Guerra Mundial, é a de um
Estado totalitário compacto, organizado nos seus mais ínfimos detalhes,
regido pela vontade de um só homem, com uma única concepção política, a
do Partido, e sustentados por monolíticas forças militares e policiais para
assegurar-lhe a existência contra as ameaças externas e internas.
A dolorosa realidade, entretanto, não era esta. A obra, cuja leitura será
iniciada, apresenta-nos quadro bem diverso. O aparelho estatal não fora
pensado e examinado até as últimas ramificações para formar um sistema
superracionalizado. Ao contrário, predominava nele um tabuleiro de
privilégios e as relações políticas constituíam um combate de todos contra
todos, na luta desenfreada pelo poder.
A ambição insana demonstrava-se desde o mero tráfico de influências até o
assassínio individual ou coletivo.
Nesse emaranhado de ambições, a personalidade de Hitler gerava temor e
fanatismo. A magia de sua oratória e de seus inesperados impulsos encontrava
fácil encanto num povo sofrido pelos acontecimentos de Versalhes e da crise
econômica que abalava o mundo nos anos vinte e trinta.
É paradoxal dizer-se que não foram a ordem e a autoridade que
caracterizaram o III Reich mas a ausência de estruturas e a inexistência de
uma verdadeira hierarquia. Porém, a arte de governar de Hitler deslocava
constantemente o centro do poder político pelos seus colaboradores. A
delegação de poderes, a numerosos responsáveis por um mesmo problema,
gerava a competição que enfraquecia a todos e impedia o surgimento de
rivais.
As grandes forças que atuavam no complexo político alemão escudavam-se
no Estado de forma tradicional e no Partido Nacional-Socialista. Mais tarde
surgiria a Ordem Negra que, não constituindo um Estado dentro do Estado,
não obstante interferia no seu Poder.
O objeto do presente livro é o estudo da interação dessas forças. O estilo é
histórico e interpretativo pois que o autor relata, no tempo, a evolução das
estruturas paralelas que surgiam e se chocavam, as intrigas entre os
respectivos líderes, as ideologias pelas quais se orientavam, as acomodações
de comportamento e as eliminações impiedosas quando os conflitos
tornavam-se insanáveis. A leitura prende e fascina, o leitor comum e o
erudito, apesar da densidade do texto. Numa época conturbada pela violência
política, como a atual, pode convidar à reflexão porque apresenta subsídios
relativos à impressionante distorção da psicologia humana normal quando
submetida a ideologias e a regimes de discricionarismo absoluto.
A grande contradição da Alemanha de então estava na organização do Partido
Nacional-Socialista sobreposta ao organismo estatal. Daí derivavam
rivalidades entre os ministérios, do segundo, e os órgãos semelhantes, do
primeiro, na segurança, na economia, nas relações exteriores, etc.
Paulatinamente o Estado cedia lugar ao Partido e este à todo-poderosa
Schutzstaffel (SS) que, graças ao gênio organizador do seu chefe, Heinrich
Himmler, de simples esquadrão de proteção pessoal de Hitler, evoluiu de tal
modo a interpenetrar na estrutura do Estado, fazendo sentir, daí, o seu halo
invisível por toda a Alemanha.
Assim, por exemplo, a Polícia dos Ministérios do Interior e da Justiça,
acabam submetidas à Direção-Geral da Segurança do Reich, o Ministério da
Economia à Direção Econômica SS, e o Ministério das Relações Exteriores
vê-se diminuído pela ação da Seção Estrangeira do Partido, e pelo
Comissariado do Reich para a Consolidação da Nação Alemã. Até mesmo a
Wehrmacht, o exército tradicional, aceita lado a lado a Waffen SS, o exército
do partido.
As estruturas se chocam ao sabor das combinações de poder. Do mesmo
modo as ideologias particulares. Hitler e Himmler propugnam a redistribuição
das populações européias, particularmente as eslavas e as judias, marcadas
para a Sibéria e a Palestina. Goebbels prefere o extermínio dos judeus e os
acontecimentos precipitam-se nesta última direção. Hitler assim decide, e
Himmler transforma-se no mais feroz caçador de judeus.
O livro SS, A ORDEM NEGRA, é convincente na descrição e na
interpretação dos episódios políticos que ocorreram no III Reich, da tomada
do poder pelos nazistas à queda do império hitleriano em 1945. Nele ficam
ressaltadas as intrigas que sempre lavraram entre os homens e os grupos,
naquela conjuntura. No rastro dessas intrigas, as suas consequências: o não-
sistema político erigido como norma institucional, a violência como norma de
conduta.

BIBLIOTECA DO EXÉRCITO EDITORA


Introdução

ELES USAVAM uniforme negro. Eram o terror de uma nação. Exibiam no


quepe uma insígnia de morte e haviam prestado juramento de fidelidade ao
Führer. As duas letras, SS, eram o seu emblema e em seu nome assassinaram
milhões de homens. Nenhum recanto do país escapou ao seu império. Tinham
os cordéis da polícia e dos serviços secretos. Vigiavam a chancelaria do Reich
e os campos de concentração. Ocupavam postos-chave na administração:
agricultura, saúde pública, assuntos políticos, científicos, culturais, tudo
estava sob sua observação. Infiltraram-se nas fortalezas tradicionais da
diplomacia e ocuparam pouco a pouco os principais postos da burocracia
ministerial.
Chamavam-se a si próprios de Esquadrão de Proteção (Schutzstaffel) do
partido operário nacional-socialista alemão; em duas letras, SS. Como disse o
Haupsturmführer SS Dieter Wisliceny, tinham o sentimento de pertencer a
uma espécie de seita religiosa cuja existência repousava sobre bases e
costumes especiais.
A sociedade secreta dos SS permanecia hermeticamente fechada aos olhares
indiscretos, a tal ponto que sua organização interna, copiada inteiramente da
dos jesuítas, que eles combatiam, era perfeitamente desconhecida do cidadão
comum. Este mistério não deixava de suscitar na população um vago temor,
que os senhores da Ordem tinham interesse em manter. “A polícia política, a
criminal, os serviços de segurança estão cercados de um mesmo halo de
romance negro”, dizia o Obergruppenführer SS Reinhard Heydrich, chefe de
segurança.
Não foi sem satisfação que o grande mestre da Ordem, o Reichsführer SS
Heinrich Himmler, declarou um dia: “Sei que muita gente na Alemanha se
sente mal só em ver o nosso uniforme negro. Compreendemos isso e não
esperamos de modo algum ser amado”.
O povo sentia que a Ordem Negra havia lançado sobre todo o país uma rede
invisível. Uma polícia tentacular a mantinha: 45.000 funcionários e
empregados da Gestapo registravam os menores movimentos hostis ao
regime, nos 20 centros diretores, nos 39 centros do “império” e nos centros
chamados “antenas”, que por sua vez dispunham de 300 postos de comando e
850 comissariados de fronteira. Trinta oficiais superiores da SS comandavam
65.000 homens que constituíam a polícia de segurança, além de outros 2,8
milhões de homens que formavam a polícia comum. 40.000 guardas
aterrorizavam várias centenas de milhares de inimigos do regime, presumíveis
ou reais, nos 20 campos de concentração e 170 campos de trabalho forçado.
950.000 soldados SS, dos quais 200.000 eram estrangeiros, faziam parte das
forças armadas da Wehrmacht, sem que sofressem qualquer limitação. O
exército fantasma formado por espiões do serviço de segurança (SD) exercia
um controle permanente sobre as ações e pensamentos dos cidadãos. Nas
universidades e nas indústrias, nas fazendas e na administração, em toda a
parte, os menores fatos julgados de interesse eram enviados à grande central
berlinense, onde essa massa de informações era reunida e utilizada.
Mas não escapava nenhuma palavra capaz de revelar os métodos de trabalho
da SS. Não se conheciam as palavras de ordem que animavam o império
secreto de Heinrich Himmler. Himmler cuidava para que nenhum membro da
Ordem tivesse contatos muito estreitos com a população. Proibia aos chefes
SS participar de processos com pessoas comuns, a fim de afastar a Ordem
Negra da curiosidade dos tribunais. Ao Ministério da Economia, recusava
todas as informações sobre as indústrias clandestinas da SS. Nem mesmo os
chefes mais eminentes do Terceiro Reich sabiam o que se passava no interior
da Ordem Negra. “Eu não tinha nenhum direito de examinar a organização de
Himmler”, declarou Hermann Goering, em 1945.
Foi somente na hora do crepúsculo dos deuses pardos que se rasgou o véu que
cobria a Ordem: no banco dos réus do tribunal militar de Nuremberg estavam,
enfim, com rosto descoberto, os homens que tinham presidido durante anos os
destinos da Schutzstaffel; eram acusados de ter provocado a guerra e
cometido os mais monstruosos crimes.
O processo organizado pelos tribunais militares aliados revelou tudo o que a
maquinaria da SS havia cuidadosamente dissimulado. As declarações das
testemunhas e as provas reunidas pela acusação permitiram que se desenhasse
o quadro apocalíptico que é a história da SS.
Balanço dessa história: 4 a 5 milhões de judeus, 2,5 milhões de poloneses e
520.000 ciganos liquidados; 473.000 prisioneiros de guerra executados;
100.000 doentes incuráveis levados às câmaras de gás, em obediência a um
gigantesco programa de eutanásia.
Em 30 de setembro de 1946, os juízes aliados condenaram a organização da
SS de Himmler e a declararam criminosa. Razões: a SS serviu a fins
criminosos, pois era um instrumento de perseguição e de extermínio dos
judeus, de brutalidades e homicídios nos campos de concentração, de peculato
na administração, de torturas e assassinatos de prisioneiros de guerra.
Consequência: toda pessoa oficialmente reconhecida como tendo sido
membro da SS, ou tendo tido conhecimento das atividades da organização,
deveria ser considerada criminosa.
Desde então, a suástica e todos que haviam usado o uniforme da Ordem
Negra estavam banidos pela sentença de Nuremberg. A Ordem SS, que reunia
uma pretensa elite, tornou-se, segundo os próprios termos do General SS
Felix Steiner, “o exército dos proscritos”. É verdade que o julgamento dos
aliados pecou por omissão: não se explicou como, em uma noite, quase um
milhão de indivíduos haviam-se tornado assassinos; nem de onde os SS
haviam tirado seu poder de transformar a alucinação racial do regime
nacional-socialista em uma sinistra realidade.
Os antigos membros da SS não queriam e não podiam resolver o enigma.
Defenderam-se atrás de subterfúgios, fingiram tudo ignorar e rejeitaram a
responsabilidade dos crimes de que eram acusados.
A SS tornou-se, então, para os observadores, os historiadores ou jornalistas,
assunto de crônicas, análises e dissertações, que procuravam resolver o
enigma e definir o fenômeno.
Entre eles, Eugen Kogon, antigo deportado de Büchenwald, hoje professor na
Escola de Ciências Políticas de Darmstadt e autor do best-seller L’Etat SS,
apresenta os SS como uma corja uniforme que dominava o partido e reinava
sobre a Alemanha e a Europa; o historiador inglês Gerald Reitlinger considera
o império de Himmler como um Estado dentro do Estado; só a NKWD russa,
segundo Reitlinger, pode ser-lhe comparada. Comer Clarke, biógrafo de
Eichmann, vê na SS a agente propagadora do terror nazista sobre o
continente. E Joseph Kessel declara: “Do Oceano Ártico ao Mediterrâneo, do
Atlântico ao Volga, todos estiveram sob a bota de Himmler”.
Á medida que crescia seu poder, que crescia sobretudo o poder que lhes era
atribuído por cronistas alemães e não-alemães, a imagem dos senhores negros
tomava aspectos de lenda, seus rostos começavam a parecer máscaras: “Todos
os SS têm isto de comum: olhos frios como os de peixe e que traduzem uma
ausência total de vida interior, uma ausência total de sentimentos”. E Rudolf
Pechel, fundador da Deutsche Rundschau, antigo prisioneiro de
Sachsenhausen, a quem se deve essa definição, acrescenta que é capaz de
reconhecer um espião do SD pela simples expressão de seu olhar. Kogon
(L’Etat SS) diz que os SS formam um conjunto composto de insatisfeitos, de
fracassados e de rejeitados de todas as espécies. Quanto ao exército dos SD, aí
não se encontram, segundo ele, senão os que a nobreza, a burguesia, os
empregados e operários não quiseram manter em sua companhia.
Aqueles a quem os qualificativos pejorativos não satisfazem, tentam explicar
a natureza do movimento SS pela psicanálise. Abraham Cohen, que esteve em
Auschwitz, pensa que os SS são homens como os outros, levados a ser
criminosos como os outros, pelos sonhos de uma super-humanidade.
O psicólogo Leo Alexander considera-os como um bando absolutamente
comum de gangsters, que se entregou coletivamente a atividades típicas de
gangsters. “Quando a conduta de um SS provocava dúvidas sobre a sua
fidelidade à organização, ou o liquidavam pura e simplesmente ou o forçavam
a cometer um ato criminoso que o fazia mais submisso à sociedade. Estes são
os processos comuns entre os gangsters”, acrescenta Alexander.
Mas as teses da escola de Kogon não ficariam sem opositores. Já em 1954 o
sociólogo americano Karl O. Paetel perguntava se era possível, sem falsear a
verdade, desvalorizar assim a SS em seu conjunto. ‘‘A organização SS”, dizia
Paetel, “não foi formada por um tipo humano único: há lá bandidos e
idealistas, cretinos e pessoas perfeitamente inteligentes. Em uma obra
publicada em 1950, Ermenhild Neusüss-Hunkel afirma que a multiplicidade
extrema, a extrema diversidade no aparelho himmleriano, não permite fazer-
se um julgamento coletivo único e definitivo da Ordem e dos homens que
tomaram parte nela”. No máximo, 15% dos SS pertenceram ao aparelho de
dominação do regime.
Os arquivos da SS, exumados pelos aliados depois da guerra, deviam
contribuir muito para o conhecimento da Ordem e trazer sérias correções às
teses anteriormente formuladas. As idéias de Kogon foram as que sofreram o
golpe mais sério. Datas, cifras e nomes citados pelo professor não eram
exatos, salvo os que se ligavam à sua própria experiência no KZ de
Büchenwald. Várias vezes Kogon fez correções em seu livro. O chefe da
polícia criminal (Kripo) Arthur Nebe, descrito na primeira edição como um
funcionário SS tão sanguinário quanto anônimo, transforma-se na segunda
edição em uma espécie de resistente que sofre, desde os começos do Reich,
verdadeiras crises de consciência. As edições posteriores do livro de Kogon
suscitam dúvidas quanto à historicidade de muitas de suas afirmações. Kogon
descreve, citando o nome, um serviço especial de segurança que nenhum
agente do SD conheceu; segundo ele, 155 chefes SS foram assassinados pelos
“vingadores de Röhm”, fato do qual não se encontra nenhum vestígio em
nenhuma parte; ele afirma ainda que a Seção I da Polícia Secreta do Estado
(Geheime Staatpolizei - Gestapo) não tinha chefe, mas este chefe é
perfeitamente conhecido na pessoa do Dr. Werner Best; Kogon atribui às
unidades SS, em 1936, 190.000 homens a mais do que elas dispunham na
verdade. Diz que o Gruppenführer Pohl foi o chefe da administração central
da SS e atribui um caráter de órgão político ao estado-maior da Waffen-SS.
Coisa estranha, os alemães apegaram-se à imagem tradicional da SS. O
trabalho dos historiadores ameaçava destruir este álibi da nação, o dogma da
todo-poderosa SS. Era então preferível ignorá-los.
Os alemães ficaram espantados e ao mesmo tempo aturdidos quando chegou
ao seu conhecimento e ao conhecimento de todo o mundo a massa de crimes
cometidos pelos SS: espantados porque seu país fora manchado aos olhos do
mundo por dezenas de anos; aturdidos porque sua responsabilidade não
existia neste assunto. A SS tivera todo o país sob sua bota tirânica — assim
raciocinavam — e teria sido loucura e suicídio coletivo criticar a política do
regime, quanto mais opor-se de maneira ativa aos seus métodos.
Assim, os alemães da era hitlerista viam com olhos favoráveis a publicidade
que se deu às atrocidades cometidas pela Ordem Negra: nessas atrocidades
residia o álibi de todo um povo; eles não poderiam ser considerados
responsáveis por elas. Os assassinos dirigidos por Himmler eram a explicação
e a justificativa para a passividade de numerosos alemães sob o Terceiro
Reich.
Mesmo para a massa de historiadores alemães, o tema SS continua a ser tabu.
Não há obras sobre a política oriental de Himmler, nenhum estudo detalhado
sobre o aparelho policial nacional-socialista onde se possa encontrar uma
opinião clara e precisa dos descendentes de Ranke ou de Treitschke sobre a
Ordem Negra. Este trabalho foi deixado a historiadores estrangeiros, que
tentaram com maior ou menor sucesso modelar uma imagem da organização
SS pela descrição e pelo estudo do regime nazista. Entre tais obras, algumas
como A Destruição dos Judeus Europeus, do americano Raul Hilberg, e O
Império Alemão na Rússia, de seu compatriota Alexander Dallin, tornaram-se
best-sellers; mas no seu conjunto a produção histórica estrangeira, traduzida
ou editada na Alemanha, não dá nenhuma imagem precisa da Ordem Negra.
Tanto mais que os autores dessas obras não dispunham senão de fontes
incompletas de informação.
O escritor francês Jacques Delarue escreve uma História da Gestapo sem ter
sequer lido os arquivos do estado-maior do Reichsführer SS. Um outro
cronista, o inglês Edward Crankshaw, não chega a fazer diferença entre as
atribuições da Polícia Secreta do Estado (Gestapo) e as do Einsatzgruppen. O
francês Benoit-Mechin, autor de uma História do Exército Alemão, em dez
volumes, demonstra que pode escrever uma história do assunto Röhm
apoiando-se apenas em alguns discursos de Hitler e em algumas manchetes de
jornais. Evidentemente o resultado é magro. O autor apenas confirma o que os
nazistas sempre pretenderam que se dissesse.
Quem escreve a história de maneira tão frívola deve aceitar também que se
provem seus erros: o inglês Reitlinger (Os SS, a Solução Final) constrói uma
teoria segundo a qual Heydrich, descendente de judeus, teria agido contra os
judeus por ódio à sua própria raça; o autor ignora o decreto racial nacional-
socialista de 22 de junho de 1932, que confirma ser Heydrich de origem
ariana. Reitlinger dá numerosos detalhes sobre a biografia de Heydrich —
oficial de informações no Báltico, colaborador do “comandante” Canaris,
chefe dos serviços de informações da frota do Mar do Norte, protetor do
gauleiter Koch e amante da sua mulher: todos esses detalhes são falsos.
Mas o que a imaginação pura chega a realizar no plano histórico, três autores
o demonstram ao relatar a viagem de Adolf Eichmann a Haifa em 1937. O
americano Quentin Reynolds (Ministro da Morte) diz que Eichmann visitou
um kibutz nos subúrbios de Haifa; mostra-o encontrando um espião alemão
na Palestina e entrevistando-se com o Grande Mufti de Jerusalém, inimigo
declarado dos judeus. O biógrafo de Eichmann, Comer Clarke, é ainda mais
generoso: empresta ao seu herói 50 milhões de dólares “de ouro nazista”,
coloca-o no Hotel Majestic em Haifa, onde ele espera o telefonema “de um
homem misterioso chamado Ghadar”. Eichmann é encarregado de remeter
esse ouro aos nacionalistas árabes; pouco depois da transação, quatro
soldados britânicos o apreendem e o conduzem à fronteira. O austríaco Simon
Wiesenthal (O Grande Mufti, Agente do Eixo) afirma que o antigo estudante
de teologia Adolf Eichmann fora enviado à Palestina pelos serviços alemães
de contraespionagem, criara uma rede de espionagem nos subúrbios da cidade
de Sarona e tivera conversações com o Grande Mufti, de acordo com o agente
alemão para o Oriente Próximo, Ilse Koch. Tantas palavras, tantos erros. Só
uma coisa é verdadeira: Eichmann visitou Haifa como turista, durante poucas
horas.
Tais especulações teriam, sem dúvida, continuado durante muito tempo se o
processo aberto em 1961, em Jerusalém, contra Eichmann, não tivesse
suscitado grande interesse pela SS entre historiadores alemães.
A socióloga Hannah Arendt, emigrada na América, está entre os que
resolveram dedicar-se ao tema. Em 1963, aparece o seu livro Eichmann em
Jerusalém. Pela primeira vez é-nos apresentado um quadro realista,
verdadeiro e objetivo de um chefe SS. No mesmo ano, o historiador Enno
Georg demonstra, apoiando-se no exemplo das realizações econômicas da SS,
a multiplicidade de elementos que constituem a estrutura desse edifício.
Pouco depois os historiadores do Instituto de História Contemporânea de
Munique (Hans Buchheim: SS e Polícia no Estado Nacional-Socialista,
Anatomia do Estado SS) fazem uma descrição exata dos fatos e uma crítica
vigorosa dos trabalhos até então publicados. Ao mesmo tempo George H.
Stein, professor de História na Universidade Colúmbia, em Nova York,
vienense de origem, publica o primeiro livro científico sobre a Waffen-SS.
Em seu livro, o professor Stein chega às seguintes conclusões: “Nem a
doutrina de um complot de criminosos, nem a do crime coletivo, todas duas
formuladas em Nuremberg, podem satisfazer os espíritos sérios. Sem querer
de nenhuma forma minimizar os crimes cometidos pelos homens de Himmler,
a verdade é que — e apoiamos nossas afirmações no estudo dos fatos — a SS
foi uma organização bem mais complexa, bem mais diferenciada do que se
pode presumir das atas do tribunal militar internacional”.
Mas os historiadores ficaram presos aos primeiros indícios, ainda não
abandonaram a idéia de um Estado nacional-socialista SS e muitos continuam
a acreditar que o regime nazista, pelo menos em sua fase final, repousava
inteiramente sobre os ombros de Himmler e de Hitler. Apresentaram, durante
anos, a SS como o pilar de sustentação único e central do regime nazista: é-
lhes difícil reconhecer o próprio erro.
Mostram o Terceiro Reich como um Estado totalitário, “organizado até em
seus mais ínfimos detalhes” (Kogon), controlando cada cidadão até em sua
vida privada, todos submetidos ao poder central único. Os nacional-socialistas
parecem realizar o velho sonho alemão: o de um Estado forte, regido pela
vontade de um só homem, o Führer; o de um Estado onde não prevalece
senão uma concepção política, a do NSDAP; o de um Estado que repousa
sobre uma força única, a SS.
Este sonho de um Estado forte passa a ser apenas idéia fixa. Pois o III Reich
não foi um Estado totalitário e sim a caricatura de um Estado totalitário; a
caricatura de todos os sonhos, de todas as esperanças, de todas as idéias que
os chefes nazis haviam integrado na própria estrutura por eles criada. O
Estado totalitário do Führer não foi, como diz o historiador Buchheim, “um
aparelho pensado e estudado até em suas menores ramificações”, não foi um
sistema super-racionalizado, mas um tabuleiro de privilégios e de relações
políticas, de lutas pelo poder e de tráficos de influências, um combate de
todos contra todos, que a expressão “tournoi”, usada na época, traduz
perfeitamente. Trevor-Roper, colega britânico de Buchheim, afirma: “Quantos
homens a propaganda nazista levou a acreditar que Alemanha era um Estado
totalitário, um bloco homogêneo inteiramente mobilizado, inteiramente
centralizado? Na realidade, o totalitarismo alemão foi uma coisa inteiramente
diferente”.
Total na Alemanha nazista era apenas a vontade de Hitler, que reinava por
editos e decretos sobre 80 milhões de homens. A SS, instrumento capital da
ditadura hitlerista, possuía um poder absoluto, na medida em que as intenções
do Führer eram formuladas com suficiente clareza. Mas o Führer lunático
tinha um defeito: nem sempre levava ao conhecimento dos súditos, por
intermédio de ordens claras, sua vontade em tal ou qual setor dos assuntos do
Estado. Como não mais se reunia o Gabinete do Reich, e Hitler trancado em
seu quartel-general se afastava cada vez mais dos ministros, os efeitos de seus
decretos não eram orientados senão pelo acaso.
O Führer -— aí estava sua arte de governar — deslocava constantemente o
centro do poder político de um para outro de seus colaboradores mais
próximos, a fim de tornar difícil o nascimento de rivais. Uma lei da ditadura
hitlerista determinava que nenhuma estrutura estatal ou legal capaz de
restringir a liberdade de ação do Führer teria direito de existir. Não é uma
unidade monolítica o que caracteriza o regime nazista, mas “a anarquia dos
plenos poderes”, como tão bem disse Hans Franck. Hitler não queria estar
ligado a nenhuma hierarquia e por isso delegava seus poderes a um grande
número de subordinados. Este processo de multiplicação de poderes, mais
instintivo do que voluntário, impedia que os subordinados se unissem
eficazmente contra ele.
Nasceu desse procedimento um curioso sistema de “auto-freio” (Hannah
Arendt): delegando seus poderes a numerosos responsáveis, todos dedicados à
solução de um mesmo problema, o ditador assegurava-se de uma perfeita
independência de seus subordinados; mas ao mesmo tempo o Estado tornava-
se teatro de uma guerra de competências que paralisava mais a eficácia da
máquina estatal do que a luta dos partidos, tão criticada pelos nazistas, seria
capaz de fazer nos Estados democráticos. O Estado era rebaixado ao nível de
um aparelho administrativo apolítico, sendo uma fachada atrás da qual os
dirigentes do regime se entregavam a suas querelas internas.
O que levantou alguns chefes SS, como Otto Ohlendorf, contra Hitler, foi
“esse poder absoluto do Führer, perfeitamente teórico, pois se transformou
durante a guerra em uma anarquia pluralista”. Ohlendorf declarou em
Nuremberg, em 1946: “O Führer não somente negou o Estado como um fim
em si, mas negou-o também como instrumento. O arbítrio dos chefes passou à
frente da vontade do Estado”. Nesta confusão de impérios privados, de
exércitos privados, de serviços de espionagem privados, não havia lugar para
um monopólio da SS. Onde faltavam os decretos de Hitler, a SS entrava em
ação paralelamente a outras organizações, tão ávidas quanto ela de ter a maior
influência possível no campo que o Führer, por inadvertência ou por cálculo,
lhes havia deixado para agir.
Quando a SS não executava ordens diretas de Hitler, quando lhe faltava esta
chave suprema, Himmler tinha de negociar com os outros “grandes” do
império. O campo de ação da SS começava onde a ordem clara e bem
definida do Führer não fora dada. Mas este campo de ação não era seu
privilégio exclusivo. Além disso, não era necessariamente o nazista mais
convicto que venceria neste no man’s land, mas aquele que tivesse
momentaneamente a maior influência. Isto também fazia parte dos propósitos
de Hitler: as querelas dos outros garantiam sua situação privilegiada no
Partido e no Estado.
Como os príncipes feudais, os sátrapas de Hitler associavam-se e depois
separavam-se, batiam-se e depois reconciliavam-se; em 1936, a Polícia de
Segurança negociou com a Defesa Nacional um tratado de dez pontos, “os
dez mandamentos”, como se dizia então. Pelos termos deste tratado, von
Ribbentrop garantiu uma trégua entre a SS e o Ministério dos Negócios
Estrangeiros, oferecendo alguns postos em seu Ministério a certos chefes da
Ordem Negra; Rosenberg, ministro da Zona Leste, assinou um pacto com o
Gruppenführer SS Berger, para prevenir-se contra as intrigas do comissário do
Reich na Ucrânia, Koch, que no entanto lhe era subordinado.
Afogada neste tráfico de influências, a SS não tinha nem o poder nem o
tempo necessários para assegurar-se uma posição soberana na Alemanha
nazista. É verdade que a sua posição se reforçou no correr dos anos, mas ela
sempre tinha à frente dois poderes paralelos que nunca foram vencidos: a
Wehrmacht e o Partido. Assim, não pôde jamais impedir a caça aos espiões do
SD, conduzida pela SA e pelo Partido. Também não pôde opor-se à
eliminação do homem mais poderoso da Polônia ocupada, o SS
Obergruppenführer Krüger, conseguida pelo Governador-Geral Franck, com o
apoio da Wehrmacht e da SA.
Sem dúvida, o número de uniformes negros que gravitavam em torno de
Hitler cresceu com o correr dos anos. Mas a desconfiança do Führer não lhes
permitiu subir ao poder, e o líder não escondia que os considerava apenas seu
instrumento de manobra. Ele gostava de zombar dos SS, dizendo que a polícia
da nova Alemanha era tão ineficaz quanto a da antiga. E quando a SS se
imiscuiu, contra a sua vontade, na política alemã na Romênia, Hitler
enfureceu-se e ameaçou exterminar de uma vez por todas a “peste negra”.
Quanto ao Reichsführer SS, uma onda de pânico lhe sobrevinha sempre que
era convocado pelo Führer, que aliás o tratava como a uma criança aplicada
mas de inteligência medíocre.
Ele nunca viu em Himmler um possível sucessor. Em março de 1945, deu os
motivos disso: Himmler era um homem “leviano”. Além do mais, o Partido
não gostava dele.
É claro que, pelas regras do jogo, não se ergueriam contra a SS senão os que
estivessem seguros de ter a seu lado os trunfos mais fortes. Na Alemanha
nazista só um grupo humano nunca teve o menor aliado: os judeus. Tornaram-
se a presa dos SS e conheceram os fornos crematórios e os campos de
concentração. Nenhuma pessoa importante do império de Adolf Hitler
interveio em seu favor. Foi aí, e apenas aí, que se formou um império SS, o
único império SS que jamais existiu: o mundo fechado dos KZ (campos de
concentração). No entanto, houve pessoas isoladas que tentaram impedir o
funcionamento da máquina de morte hitlerista: camisas pardas, nazistas dos
primeiros tempos, chefes SS e aliados do Terceiro Reich.
Por exemplo, o ex-gauleiter Kube, comissário-geral da Rutênia, queixou-se
contra vários oficiais de polícia que seviciavam judeus; Kube colocou sob sua
proteção um trem de judeus que ia para Minsk e conduziu sozinho a
campanha contra a SS e o SD, até ser assassinado por uma bomba dos
guerrilheiros soviéticos. Houve também o SS Obergruppenführer Werner
Best, que sabotou o programa judeu de seu Reichsführer, facilitando a
passagem para a Suécia de milhares de judeus dinamarqueses. Houve Felix
Kersten, médico pessoal de Himmler, a quem este último gostava de chamar
“meu único amigo, meu buda”. No coração da Central SS, Kersten durante as
massagens que aliviavam Himmler de seus males de estômago, salvou
milhares de vidas judias; sobretudo, conseguiu que os judeus holandeses
fossem deixados em paz, e mais tarde arrancou de Himmler a autorização
para que milhares de outros judeus emigrassem para a Suécia. Há, enfim, toda
uma massa de generais italianos, de políticos dos Bálcãs, de colaboradores
franceses que despistavam os agentes de Eichmann, permitindo a fuga de
muitas pessoas ameaçadas.
A conduta de Werner Best merece atenção especial, pois demonstra a
inexatidão da tese do Estado SS. A SS, como dissemos, não é um edifício
monolítico. Podemos afirmar, embora isso pareça paradoxal, que não houve
organização nazista mais heterogênea e mais cheia de contradições internas
do que a SS. Não houve dignitário da Ordem que não fizesse guerra aberta a
algum outro dignitário da mesma Ordem. Não houve problema político que
não suscitasse discussões e dissensões entre os chefes SS de alta categoria.
Mesmo em Nuremberg, o Oberführer Reinecke lamentava-se de que a SS
estava minada por uma mistura de organizações e por pessoas estranhas à
Ordem. Ao serem examinados pelos historiadores, os arquivos da SS
evidenciam as lutas internas: Himmler acusava o Gruppenführer Reeder de
sabotar a política da SS na Bélgica; o Standartenführer Waffen-SS de
Nuremberg recusava-se a colaborar com a SS ordinária e com o SD; um
Untersturmführer SS reunia informações suscetíveis de prejudicar ao
Gruppenführer Berger, que por seu lado acusava outros Gruppenführer de se
imiscuírem em assuntos da Igreja Católica. Ohlendorf reclamava abertamente
do romantismo himmleriano do Blut und Boden; os serviços de segurança SS
do Reich estavam em conflito aberto com os serviços econômicos da Ordem;
aqueles afirmavam que era preciso “liquidar” os judeus; estes achavam que
era preciso explorá-los nos campos de trabalhos forçados. Quanto à Gestapo,
executava os trânsfugas soviéticos que o SD procurava reunir para constituir
uma força capaz de ser lançada contra o exército russo.
A presença de profanos na Ordem contribuía para as lutas internas: assim, o
Dr. Richard Korherr, estatístico de Himmler; o especialista em livros Hans
Hohlberg, eminência parda de várias empresas SS; o Engenheiro Kammler,
do Ministério de Aviação, que obteve em poucos anos o grau de general SS e
se tornou tristemente célebre pela perfeição dos campos de concentração
imaginados e organizados por ele.
Bizarro, absurdo, ilógico, tal é o mundo SS. Bizarras também, embora
pareçam lógicas, são as interpretações dadas até agora ao fenômeno SS. A
verdadeira história da Ordem Negra é a de uma organização conduzida não
por planos demoníacos, mas pela reunião casual de várias circunstâncias. É a
história de uma organização onde se encontram idealistas e criminosos,
vaidosos e românticos, é a história pouco comum de uma Ordem pouco
comum.
A Criação da SS

A HISTÓRIA da SS começa na primavera de 1919, na agitação tumultuosa do


pós-guerra, e é paralela ao início do movimento nacional-socialista.
O parteiro involuntário do nacional-socialismo, depois do expurgo dos
conselheiros vermelhos bávaros pelos corpos de livres-combatentes, é o
historiador Karl Alexander von Müller, de Munique. Müller estava em
estreito contato com jovens oficiais nacionalistas que na época dominavam o
panorama de Munique. No curso de uma reunião de militares da qual
participava, o Professor von Müller ficou assombrado com os talentos
oratórios de um desconhecido. “Vi”, conta Müller, “um rosto pálido e
esmaecido, uma mecha negra muito pouco militar sobre a testa, um bigode
cortado rente, olhos extraordinariamente grandes, azuis, frios”. Müller bateu
com o cotovelo em seu vizinho e amigo Mayr: “Eu te garanto que aí está um
homem que sabe falar!” Mayr, capitão do Estado-Maior, identificou o
homem: “Chama-se Hitler, pertence ao Regimento List”. Depois, em um tom
brusco: “Você lá, Hitler, venha aqui!” E Müller conta que Hitler veio em
direção a eles com um jeito embaraçado, traduzindo timidez mesclada de
desafio. Esta cena revela o sentimento de inferioridade de Hitler diante dos
oficiais da Reichswehr da Bavária, complexo que o futuro Führer do Reich
levaria anos para vencer.
Mayr não custou a perceber o verdadeiro valor do talento de propagandista do
soldado Hitler. Em julho de 1919, Hitler figura na lista secreta de homens de
confiança estabelecida pelo Ministério da Guerra da Baviera. E logo Hitler é
enviado pelo Capitão Mayr aonde quer que seja necessária uma decisão
importante na batalha ideológica que se iniciava.
A arrogância do capitão diminui; nas cartas que envia a Hitler há uma polidez
extrema. Hitler é o homem útil por excelência. Acaba por ter entrada livre no
Ministério da Guerra. Obtém o título de colaborador político do Capitão
Mayr, chefe dos serviços de propaganda. Quando os soldados do campo de
desmobilização de Lechfeld ameaçam escapar ao controle de seus oficiais,
Hitler é encarregado de retomar a situação. A calma é rapidamente
restabelecida. Um relatório dirigido ao Ministério declara que “o senhor
Hitler distinguiu-se particularmente por sua capacidade de discursar, seu
fanatismo, seu talento em prender os ouvintes, qualidades que fazem dele um
orador nato”.
Mayr decidiu confiar a Hitler tarefas mais importantes.
Encarregado de exercer o controle dos partidos políticos da Baviera, envia
Hitler para lá em setembro de 1919, a fim de assistir às reuniões da Deutsche-
Arbeiterpartei (DAP), encontro de nacionalistas sectários animados por um
socialismo sentimental e que se distinguiam pelo ódio incondicional à
República e aos judeus. O mensageiro dos militares não demora a impor-se
como a vedeta oratória das assembleias da DAP. Em 1920, com apenas 64
homens, o Partido elege Hitler chefe de propaganda, aceita um programa
apresentado por ele e pouco depois toma o nome de Nationalsozialistische
Deutsche Arbeiterpartei (NSDAP).
Aposentado, Mayr é substituído nesta época por um homem pequenino, de
nariz cortado e cabelo raspado: trata-se do Capitão Ernst Röhm, o qual, mais
que qualquer outro, vai permitir a Hitler desempenhar um papel importante na
vida política alemã. Röhm estava animado por um extremo gosto da
conspiração; paradoxalmente, suas tendências homossexuais não o impediam
de ser tido pelos camaradas como glutão, rude, hostil a toda moleza e
possuidor de verdadeiras virtudes cívicas.
A personalidade de Röhm é uma rede de contradições; monarquista bávaro
convencido, antigo comandante de companhia do 10.° Regimento de
Infantaria König (em honra de Luís III), Röhm procura respeitar até a morte o
juramento prestado ao monarca destronado em 1918; no entanto, a Baviera
não é a seus olhos senão uma “célula que deve ser reforçada pelo espírito
nacional-socialista, a fim de permitir o assalto de Berlim, Babel da
revolução”. O condottiere de Munique, Röhm era um produto típico de uma
geração de oficiais decepcionados e amargos, que a derrota e a queda da
monarquia precipitaram subitamente na banalidade cotidiana.
Sem prestígio, imaginando-se desonrados pela derrota, à procura de uma nova
forma de companheirismo forjada no front, os oficiais culparam esta
instituição vacilante e desprezada por todos, pois supostamente responsável
por todos os males e todos os fracassos: a democracia, a “República de
Novembro”. Os oficiais alemães queriam reconquistar pouco a pouco a sua
antiga posição, dar à pátria o exército que o vencedor de 1918 lhe havia
tomado.
As circunstâncias históricas prestavam-se admiravelmente a tal ambição: na
Baviera, aproveitando a batalha entre comunistas e spartakistas, os oficiais
haviam podido retomar por um instante o poder; depois da queda da
Ratenrepublik, o uniforme readquirira a sua majestade.
Vagamente combatidos pelos socialdemocratas e vagamente apoiados pelo
Volkspartei, partido católico de direita, os oficiais conduziam a política bávara
para assegurarem-se uma ordem constitucional. O Capitão Mayr controla os
partidos, o camarada Dr. Roth a vida jurídica, o Oberleutnant Ernest Pölmer a
polícia. Quanto ao Capitão Röhm, que na época tinha trinta e dois anos, foi
preliminarmente chefe do estado-maior do comandante da praça de Munique,
e assim encarregado de constituir o exército do povo na Baviera.
O Tratado de Paz de Versalhes fixara limites estreitos à reconstrução do
exército do Reich; as sete divisões de infantaria e três divisões de cavalaria
alemãs não tinham praticamente reservistas que pudessem ser incorporados
em caso de necessidade. Segundo os oficiais, só havia uma solução possível
para resolver o problema: era necessário que se organizasse um exército
paralelo, um exército negro, se assim se pode chamar. Röhm vê este exército
sob a forma de uma milícia nacional, “um exército de cidadãos com o fuzil
oculto, mas sempre disponível”, segundo a expressão do cronista Konrad
Heiden. Para a execução de sua tarefa, o capitão encontra um auxiliar cheio
de idéias na pessoa de Escherich, engenheiro de águas e florestas e membro
do Volkspartei bávaro. Juntos organizam a milícia mais poderosa da história
alemã: o exército dos cidadãos bávaros.
Sem se importar com a desconfiança dos aliados, Röhm trabalha ativamente
na obtenção de armas e munições. Só na cidade de Munique, reúne 169
metralhadoras ligeiras e 11 pesadas, 760 fuzis-metralhadoras, 21.351 fuzis,
carabinas e pistolas, 300.000 granadas de mão, 8 milhões de cartuchos. Ainda
em 1935, um terço das armas de que dispõe a Wehrmacht vem dos arsenais
clandestinos de Röhm.
Mas o exército dos cidadãos bávaros tem em 1925 um fim súbito. O governo
berlinense do Reich resolve respeitar os acordos de Versalhes no que concerne
à interdição de armas e retira de Röhm seus melhores colaboradores. Ficam
para o capitão apenas algumas organizações de extrema direita, vestígios das
organizações militares livres, que, na sombra, continuam a brincar de
soldados e a cometer, aqui e ali, alguns assassinatos políticos. Os inimigos da
democracia percebem subitamente que nada é possível sem a participação da
massa e que, sem ela, os chefes não valem coisa alguma.
Röhm está em contato com um homem especialista em seduzir as massas:
Adolf Hitler, sargento recrutador do NSDAP, que lhe foi apresentado no
Círculo de Nacionalistas de Munique Eiserne Faust (punho de ferro). Em
Hitler, Röhm encontra o homem de quem precisa para atrair a massa
destinada a constituir o exército clandestino que deseja organizar. Logo que
Hitler aceita, em julho de 1921, as funções de presidente do NSDAP, Röhm
toma sua decisão: subir ao poder com a ajuda de Hitler.
E enquanto o agitador austríaco percorre o país excitando a massa de
humildes cidadãos, vítimas da inflação, contra “os criminosos de novembro”,
Röhm organiza os primeiros comandos volantes encarregados de proteger este
precioso aliado. Sob as ordens do Capitão Scheck, os soldados da 19ª
Companhia de Sapadores reservam uma dura sorte a quem tente prejudicar as
reuniões do NSDAP. Esta Companhia recebe o nome de “serviço de ordem” e
depois “seção de assalto” (Sturmabteilung), mais conhecida sob as iniciais de
SA.
Röhm tinha escolhido os homens que constituiriam as primeiras tropas SA.
Faltava escolher os chefes. Ele os encontra no que sobrara da 2ª Brigada de
Marinha, comandada pelo capitão de extrema-direita Hermann Ehrhardt. Esta
brigada fora desmantelada em consequência do papel que desempenhara na
tentativa de golpe de estado em março de 1920. Depois do fracasso, os
homens de Ehrhardt agruparam-se e reorganizaram-se em Munique, sob o
nome de Organização Cônsul (OC). A princípio, Ehrhardt não quer ouvir falar
de Hitler (“Meu Deus, o que eu tenho de ver com esse idiota?”). Mas Röhm o
persuade a fornecer os quadros para seu serviço recém-nascido. Os melhores
oficiais OC passam às tropas de Röhm. A “brigada Ehrhardt” toma o nome de
“seção de assalto Hitler” e jura obediência ao Führer e fidelidade ao NSDAP,
do qual se torna “ferro de lança”. Logo, porém, Hitler percebe que é um
estranho à SA, que não recebe ordens senão de Röhm e de Ehrhardt.
Na SA, Hitler vê antes de tudo um instrumento de propaganda política, uma
tropa de choque capaz de restabelecer a ordem nas salas onde ele se
apresenta, de cobrir, em uma noite, uma cidade inteira de cartazes, de
impressionar o povo pelo ritmo imponente de seus desfiles. Por outro lado, os
chefes SA consideram-se militares no sentido tradicional da expressão. Com
efeito, a SA figura ao lado e no mesmo plano de outras tropas, nos planos de
mobilização da Defesa Nacional. Além disso, é submetida ao mesmo
treinamento que estas últimas.
Hermann Göring, capitão “pelo mérito”, colocado por Hitler à frente da seção
de assalto, obtém em 1923 o comando em chefe da SA, formando assim um
contrapeso à influência dos oficiais de Ehrhardt. O estado-maior deste
comandante-em-chefe compreende um comandante de Infantaria e um de
Cavalaria. Hitler percebe o nascimento, no seio do Partido, de um poder que
escapa ao seu controle. O Oberstleutnant A. D. Kriegel, chefe do
“Agrupamento das Associações de Combate pela Pátria”, grupo ao qual o
NSDAP se reuniu, assim como a outras organizações de direita, declara de
maneira firme: “Os políticos não têm senão uma coisa a fazer: calar a boca!”
Já se anuncia o conflito que oporá, até o desaparecimento de Röhm, a SA
propriamente dita e a direção política. Hitler pressente esse conflito. Por isso,
trata de se cercar de uma guarda Pretoriana que lhe dá mais independência em
relação aos oficiais SA.
Em março de 1923 aparece o germe da Schutzstaffel ou SS (esquadrão de
proteção): alguns combatentes da primeira hora prestam juramento a Hitler e
se designam Stabswache (corpo de guarda).
O corpo de guarda se distingue por atributos que anunciam a SS: casquetes
negros, braçadeiras com bordas negras trazendo a cruz gamada, emblema com
uma caveira em prata.
Este corpo de guarda terá a vida curta. Dois meses mais tarde, Ehrhardt rompe
a aliança com Hitler e chama de volta os seus oficiais. O Führer organiza
então um novo corpo de guardas de proteção, batizado “tropa de choque
Adolf Hitler”. Colocados sob as ordens do papeleiro Josef Berchtold, segundo
tesoureiro do NSDAP, e do Capitão Julius Schreck, os homens desta tropa
reúnem-se na Cervejaria Torbräu, em Munique. Eles vêm de uma camada
social muito diferente da que representa Ehrhardt ou Röhm. Trata-se, em sua
maioria, de pequenos burgueses, de operários, de artesãos de Munique: Ulrich
Graf, primeiro guarda do corpo de Hitler, antigo açougueiro e lutador de feira;
Emile Maurice, íntimo de Hitler, relojoeiro por profissão, condenado em
outros tempos por escroqueria; Christian Weber, alcoviteiro, antigo vidente
em uma boate de Munique. Um só dever os reúne: proteger a qualquer preço a
vida de Hitler e de alguns outros dirigentes nacional-socialistas.
Onde Hitler determinava, intervinham com grande estoque de “borrachas” e
de “isqueiros”, como eles gostavam de chamar aos seus cassetetes de
borracha e às suas pistolas. Mesmo em 1924, Hitler evocaria “esses homens
prontos a tudo e conscientes de que chegaria um dia em que se lhes exigiria o
máximo”.
Esse dia chega em novembro de 1923. A política bávara toma direções que
Hitler quer aproveitar: o General Gustav Ritter von Kahr, comissário do
Estado monarquista e autonomista, chefe do governo bávaro, e seu adjunto, o
General Otto Hermann Lossow, comandante das forças armadas bávaras,
atritaram-se de tal forma com Berlim que se poderia esperar a qualquer
momento uma declaração de independência da Baviera. O governo militar
bávaro, a “célula de ordem”, que reunia desde alguns anos todos os que
fossem hostis à democracia e ao progresso, prepara-se para desfechar, com a
independência da Baviera, um golpe decisivo sobre Berlim.
Ritter von Kahr convoca os seus subordinados para uma reunião geral a ter
lugar em 8 de novembro, à noite, em uma taberna de Munique chamada
Bürgerbräukeller. Hitler decide intervir. Ele pressente que von Kahr tem a
intenção de declarar a independência da Baviera e procura conduzir os
autonomistas bávaros a uma tática de ataque: em outros termos, a marchar
sobre Berlim e a derrubar a República de Novembro. Hitler apresenta o
projeto aos seus aliados e convence-os. Entre eles, estava o velho General
Erich Ludendorff. Hitler reúne os cinquenta homens de sua guarda de choque,
veste-se com uma roupa negra, usa sua cruz de ferro de primeira classe e
apresenta-se ao local de luta. Cerca de oito horas da noite, está diante da
Bürgerbräukeller e espera a chegada de seus homens.
Três quartos de hora mais tarde, Berchtold chega à testa de sua tropa e coloca
um fuzil-metralhadora na entrada do local. Cercado de sua guarda pessoal,
Hitler penetra na Bürgerbräukeller, repleta de gente, tira um revólver e atira
para o ar. Sobe em seguida sobre uma mesa e exclama: “Começou a
revolução nacional! Esta sala está cercada por seiscentos homens armados!
Que ninguém procure sair! O governo bávaro e o do Reich estão derrubados.
Vamos constituir um governo provisório”. Os militares e os políticos bávaros
deixam Hitler falar e declaram-se prontos a aliar-se a ele.
Puro estratagema: no dia seguinte, von Kahr e Lossow mobilizam suas tropas
contra o chefe nazista. O estrategista do putsch, deflagrado na
Bürgerbräukeller, espera impaciente e em vão pelas boas notícias do exterior.
Mas as boas notícias não chegavam. O único fato positivo: Röhm investiu
com uma tropa armada contra o Ministério da Guerra e continuava mantendo
esta posição contra as unidades da polícia e a tropa que o cercavam. Este fato
obriga a Hitler a sair de seu buraco.
Na tarde de 9 de novembro ele desfila com sua tropa, engrossada por
simpatizantes, em fileiras de oito pelas ruas de Munique, dirigindo-se para o
Ministério com a firme intenção de libertar Röhm. Na praça Odeon, os
nazistas chocam-se com uma forte barragem de uma centena de policiais. Os
revoltosos tentam forçar a passagem. Uma segunda unidade de polícia
intervém. Hitler e Ludendorff veem que seu movimento teria vida curta. Graf,
seu guarda-costas, precipita-se diante dos fuzis apontados pelas forças da
ordem: “Não atirem! Suas Excelências Adolf Hitler e Ludendorff estão
chegando!”. Imediatamente os policiais abrem fogo. Dezesseis nacional-
socialistas — dos quais cinco pertencentes à tropa de choque de Hitler — e
três policiais são mortos. Quase todos os chefes nazistas são presos. Berchtold
e o comandante SA Göring, gravemente feridos, podem apenas escapar às
buscas e refugiar-se na Áustria.
A ação louca de Adolf Hitler tem como consequência a completa
desorganização do NSDAP. O partido, a SA e a tropa de choque são
proibidos. Só o infatigável Ernst Röhm, liberado depois de uma rápida
detenção preventiva, acredita na possibilidade de prosseguir a campanha,
apenas interrompida. Quando ainda estava trancado em uma cela do Castelo
de Landsberg, Hitler o nomeia comandante-em-chefe da SA, agora ilegal.
Mas Röhm percebe logo que o governo bávaro não levantará a proibição
decretada contra a SA. Por essa época, von Kahr reuniu todos os grupos
armados — e mais ou menos paralelos — em uma única “tropa de
emergência” (Notbann), colocada sob controle do Governo do Länd
(Província). Por seu lado, Röhm cria uma nova tropa, com elementos da
antiga SA, colocando-a sob a tutela oficial do General Ludendorff. Seu nome:
“tropa de frente” (Frontbann).
Com a Frontbann, Röhm consegue estender a influência nazista para além de
Munique e da Baviera. Até o putsch de novembro, o movimento hitlerista não
ultrapassava as fronteiras da cidade de Munique. Agora os sobreviventes dos
antigos livres-combatentes e outros nacional-socialistas no Norte da
Alemanha vinham engrossar as fileiras da Frontbann.
Os mais exaltados adeptos do nacionalismo extremista, especialmente os
oficiais dos livres-combatentes, reúnem-se sob a bandeira de Röhm.
A SA de Hitler nunca contou com mais de 2.000 homens. A Frontbann chega
rapidamente a 30.000. Este crescimento vertiginoso do exército de Röhm
preocupa um pouco a Hitler. De fato, o capitão não cessa de afirmar que as
organizações armadas devem ser e continuar independentes das organizações
políticas.
Quando em 1924 Hitler é enfim libertado, encarrega Röhm de reorganizar a
SA, e os dois companheiros chocam- se abertamente. Hitler não quer uma SA
autônoma: Röhm, ao contrário, não quer uma SA governada pelos políticos:
Hitler deve limitar-se ao seu papel de grande propagandista. “Nada de política
dentro da SA”, declara ele em uma carta dirigida a Hitler, “eu proibi a SA de
imiscuir-se em assuntos do Partido: da mesma forma não quero que os
dirigentes do Partido deem conselhos — ou seja, ordens — aos chefes da
SA”.
Röhm ainda não sabe que a decisão de Hitler já fora tomada há muito tempo:
ele não tolerará o renascimento de uma SA com poder autônomo de decisão,
de uma SA que tivesse o poder de ditar-lhe até o seu próprio comportamento.
Hitler rompe com Röhm. Não querendo afastar-se deste precioso comparsa, o
fundador da SA, escreve em 30 de abril de 1925: “Não te esqueças das horas
duras que selaram uma amizade pela qual eu te agradeço e que te peço
conservar”. Um mês mais tarde Hitler responde por intermédio do seu
secretário: “O Senhor Hitler não pretende contribuir para a criação de uma
tropa armada. Outrora, ele atendeu ao pedido de senhores que não tiveram
nenhum escrúpulo em deixá-lo cair. Hoje, como antes de 1923, não necessita
senão de uma sala para cumprir suas tarefas”.
A data do nascimento da Schutzstaffel, ou SS, aproxima-se. O que a SA de
Röhm e de Ehrhardt não estava pronta para fazer, a SS faria: assegurar e
reforçar a autoridade do Führer no seio do Partido: executar cegamente as
ordens do Führer, quaisquer que elas fossem. “Naquela época eu me dizia”,
explicou Hitler, “que necessitava de uma tropa de guarda-costas: poderia ser
pouco numerosa, mas era necessário que me fosse inteiramente devotada.
Seria preferível não ter em uma cidade mais de vinte homens de inteira
confiança, do que confiar na massa versátil”.
Esta é a verdadeira gênese da SS. Mas a explicação oficial da SS, para uso
dos fiéis do Partido, é completamente diferente: como a SA estava proibida, o
partido recém-nascido em 1925 deveria organizar a sua autodefesa de maneira
a prevenir-se contra a multiplicação das ações de terrorismo dos seus
adversários políticos. Essa interpretação oficial, que figura em todos os
breviários nacional-socialistas, desconhece inteiramente as tergiversações do
Führer no tocante ao renascimento da SA. E também cala quanto ao fato de
que a proibição decretada contra a SA estava longe de ser geral: no Norte e no
Oeste da Alemanha, a SA continuava a crescer, embora sem ligar-se
oficialmente à controvertida bandeira do Führer de Munique.
Querendo, pois, organizar uma guarda pessoal com a qual pudesse contar,
Hitler encarrega Julius Schreck, antigo membro de sua tropa de choque e
agora seu motorista, de organizar uma nova tropa, que será batizada de
Schutzstaffel ou SS. Schreck recruta os primeiros membros da SS onde, em
outros tempos, reunira os homens de Hitler: nas tabernas de Munique,
especialmente no Torbräu. No princípio, são oito, todos ex-integrantes da
Guarda Adolf Hitler. Usam o mesmo uniforme de antes, com a diferença de
que a blusa cinza passa a ser marrom, agora a cor oficial do Partido. Mantém
uma braçadeira negra.
Schreck passa então a criar os esquadrões em outras cidades da Alemanha.
Em 21 de setembro de 1925, por carta-circular, cada seção do NSDAP da
Alemanha recebe ordem de organizar um esquadrão de proteção. O esquadrão
deve ser um grupo de choque tão eficaz quanto possível, não contando com
mais de dez homens dirigidos por um chefe. Só a cidade de Berlim tem o
direito a vinte homens e a dois chefes. Schreck cuida para que não sejam
incluídas nesses grupos senão pessoas com características de virilidade
defendidas pelo nazismo. Devem ter pelo menos vinte e três anos e não mais
de trinta e cinco; devem apresentar dois fiadores de sua conduta e ter “uma
boa e forte constituição física”. “Os bêbados, desocupados e outras pessoas
desse tipo não têm o que fazer entre nós”, tal é a palavra de ordem da SS.
Quando em novembro de 1925 Schreck tem conhecimento de que Daub,
membro do Partido, constitui em Munique-Neuhausen um esquadrão com
quinze antigos membros da SA, o fundador da SS não poupa protestos. Em 27
de novembro escreve à direção do Partido: “Não sendo esta formação senão
uma ressurreição da SA, solicito à direção do Partido que a proíba de usar o
nome de SS. Se queremos criar uma organização séria, construí-la sobre bases
sólidas e sadias, não nos podemos permitir este gênero de macaquices”.
Schreck se dedica a recrutar os membros mais seguros do partido “para o bem
do movimento nacional-socialista”. Em um aviso, assinala quais são os
deveres fundamentais da SS: proteção dos comícios NS, recrutamento de
assinantes para o jornal Völkischer Beobachter (O Observador do Povo),
recrutamento de novos membros do Partido”. Alois Rosenwinck, chefe de
seção e organizador do comando em chefe SS, declara nesta época, no mais
puro estilo nazista: “Que a caveira por nós arvorada sirva de aviso a nossos
inimigos e que seja o símbolo da doação de nossa vida ao Führer e ao seu
ideal”.
A SS obtém os seus primeiros êxitos: em Dresden, cinquenta comunistas
tentam perturbar um comício nazista e fracassam, graças à SS; em Saxe — é
Rosenwinck quem fala — “nenhum marxista arrisca-se a conturbar nossas
reuniões, desde que em Chemnitz os esquadrões de proteção de Dresden,
Plauen, Zwickau e Chemnitz, reunidos, infligiram-lhes um severo corretivo”.
No Natal de 1925 o comando central SS anuncia que cerca de mil homens
estão agora nos registros da Schutzstaffel.
Em abril de 1926, o antigo chefe da tropa de choque de Hitler, Berchtold,
volta do exílio e substitui Schreck no comando da SS.
Os golpistas de novembro estão quase todos de volta, e Hitler eleva
oficialmente a SS à categoria de tropa de elite. Vêm então as jornadas do
Partido, e, exatamente em 4 de julho de 1926, Hitler entrega à SS “a bandeira
de sangue”, emblema dos insurretos que haviam desfilado em 1923 pelas ruas
de Munique. A SS está em plena expansão e Hitler pode agora reexaminar o
problema SA. Ninguém mais do que ele percebe a necessidade de dispor de
um numeroso exército de fieis, condição indispensável para a tomada de
poder nesta Alemanha de clãs políticos e militares em perpétua luta.
Mas, fora da Baviera os chefes SA continuam a não dar importância ao
pequeno austríaco. Hitler precisa de um homem capaz de ser o traço de união
entre ele e os grupos SA. Afinal o encontra: é Franz Pfeffer von Salomon,
alemão do Norte, antigo chefe dos livres-combatentes. Em 27 de julho de
1926, Josef Goebbels assinala em seu diário: ‘‘Meio-dia. Em Casa do Chefe.
Sessão particularmente importante. Pfeffer assumirá o comando da SA”. De
fato, esta nomeação é das mais importantes para Hitler. Caberá a Pfeffer
conquistar para a pessoa do Führer a estima e a confiança dos dirigentes
nazistas do Norte.
Poderes muito amplos são concedidos por Hitler a Pfeffer, que se torna
comandante-em-chefe da SA (Oberster SA Führer, OSAF). É claro que, em
princípio, Pfeffer recebe ordens de Hitler. Mas a organização interna da SA é
de sua exclusiva responsabilidade. A aliança com os dirigentes nazistas do
Norte é de tal importância para Hitler que ele chega a consentir em colocar
sua bem-amada SS sob as ordens do OSAF. Berchtold obtém a compensação,
embora pequena, de usar o título de Reichsführer SS.
Amolado de ver sua ‘‘tropa de elite” tombar diante da SA e enfrentando, além
disso, problemas com a direção do Partido, que está sempre a imiscuir-se nos
assuntos da SS (foi a direção, aliás, que demitiu Schreck de suas funções, em
consequência “de seu talento insuficiente de organizador e de chefe”),
Berchtold acaba por pedir demissão. Em março de 1927, Ehrhard Heiden
toma o seu lugar. Não será mais feliz do que Berchtold diante da SA, pois o
OSAF Pfeffer proíbe à SS criar esquadrões nas cidades onde a representação
SA ainda não for suficientemente forte.
As forças SS não devem ultrapassar 10% das forças SA, de maneira que em
1928 elas se veem reduzidas a 280 homens. Os super-homens SS são, por
outro lado, obrigados a tarefas subalternas pelos oficiais SA. São
frequentemente encarregados de distribuir material de propaganda e de vender
o Völkischer Beobachter. Mas, apesar disso, um certo sentimento de
superioridade continua a reinar entre os membros da SS. Prova disso é a
divisa SS da época: “A nobreza cala-se”. “Um SS nunca deve tomar parte nas
discussões que se realizam nas reuniões do Partido. Um SS nunca deixará a
sala para a qual tenha sido convidado por ocasião de uma conversa política
antes que ela termine. Durante essa noite, ninguém o verá fumar. E esta
atitude servirá para a educação política dos cidadãos”, é o que diz a Ordem n.
° 1 do Reichsführer Ehrhard, datada de 13 de setembro de 1927. “Um SS,
soldado ou oficial, cala-se e não se envolve naquilo que não lhe diz respeito,
sejam assuntos da SA ou da direção política local”.
Por outro lado, as ordens são as seguintes: cada unidade, no momento em que
lhe for determinada a intervenção, deverá chegar em fileiras de dois e por
ordem de tamanho: o homem de tropa SS deverá sempre trazer consigo o
cartão de identidade SS, o livro dos objetivos do NSDAP e a coletânea de
hinos SS; particularmente importante, a Ordem n.° 8 estipula que um SS, em
nenhum caso, usará armas; Hitler decidira dar à sua marcha para o poder a
aparência de legitimidade: era preciso a qualquer preço que o Partido se
distinguisse de todas as organizações armadas e de outras associações de
caráter militar. Os chefes SS devem sempre estar seguros, antes de a tropa
entrar em serviço, de que nenhum homem esconde qualquer espécie de arma.
Nessas condições, não é de espantar que, mesmo entre os adversários
políticos da SS, todos ficassem impressionados com a disciplina de ferro que
ali reinava. A chefia da polícia de Munique expressa em um relatório de maio
de 1929 suas impressões sobre a severidade da disciplina SS: “Ao menor erro,
impõe-se ao homem uma punição, retira-se sua braçadeira e ele é proibido,
por algum tempo, de qualquer atividade. Quanto à conduta individual e à
preocupação com o fardamento, são objeto de atenção em todos os instantes”.
Tudo na aparência da tropa deve tender a demonstrar a superioridade SS. “A
SA é a tropa; a SS é a guarda. Sempre houve uma guarda. Os persas a
tiveram, e os gregos e César e Napoleão e o velho Fritz. A guarda da nova
Alemanha é a SS”.
No momento em que pronuncia esta frase, o seu autor resolve dedicar todo o
seu esforço para colocar a SS à frente do Reich. A história da SS será a partir
de agora a história do Reich. A história dos crimes SS, a história de seus
crimes. É em 6 de janeiro de 1929 que Hitler o coloca à frente da SS. Ele
passará a ser seu Reichsführer. Seu nome: Heinrich Himmler.

Heinrich Himmler

O TREM RODAVA em direção ao Norte. Albert Krebs, primeiro gauleiter


nazista de Hamburgo, estava cada vez mais amolado. E o aborrecimento
traduzia-se em seu rosto. Suportava, há horas, a conversa de um homem que
havia subido com ele em Elberfeld.
Era um tipo de estatura média, constituição bastante forte, rosto banal. O
queixo pequeno e anguloso demonstrava uma certa moleza, em contradição
com seus olhos cinzentos e vivos, que pareciam, atrás do pince-nez, à procura
de tudo, curiosos por tudo. Também eram contraditórias a rudeza de maneiras
do homem, a rudeza de sua maneira de exprimir-se com mãos finas, muito
cuidadas, quase femininas.
O gauleiter Krebs não notou tudo isso naquele dia de primavera de 1929.
Estava por demais irritado com a torrente de palavras que eram atiradas por
este companheiro, que não era outro senão o novo Reichsführer SS Heinrich
Himmler. Himmler fazia-lhe um quadro detalhado de suas concepções
políticas e não poupava conselhos sobre os diferentes aspectos da situação na
Alemanha. Em política, dizia Himmler, os detalhes mais ínfimos são os que
têm maior importância. É do mais alto interesse saber como o oficial SA
Conn chegou a usar este nome tão próximo do nome judeu Cohn; é
importante termos certeza de que o gauleiter Lohse, na sua qualidade de
antigo empregado de banco, não se tornou um instrumento do capital judeu.
Trinta anos mais tarde, Krebs ainda se lembraria dessas confissões de
Himmler. Pareciam-lhe “uma incrível mistura de grandiloquência marcial, de
bate-boca pequeno-burguês, de profecia sectária”.
Outros testemunhos sobre o príncipe dos SS, recém-promovido e então
apenas com vinte e nove anos, concordam com o de Krebs: um indivíduo
falante, pouco seguro de si, com aspecto e modos provincianos. As
testemunhas acrescentam ao retrato de Himmler traços ambíguos e muitas
vezes satânicos. De fato, quanto mais o Reichsführer SS dispõe de poderes
em suas belas mãos de mulher, mais os alemães parecem considerá-lo como
uma espécie de espectro desumano. Acabou por tornar-se uma espécie de
encarnação sem vida do estado policial nazista e soube atrair o ódio
irredutível das pessoas que não pensavam como ele. Para muitos, não tinha de
homem senão a aparência, mas ainda hoje não se descobriu em sua vida
privada qualquer detalhe suscetível de mostrar que espécie de pessoa se
escondia por detrás do Reichsführer SS.
Quem o conhecia tinha dificuldade em descrevê-lo logo depois de vê-lo. São
tantas as fotografias de Himmler quanto os testemunhos: Himmler, carrasco:
Himmler, um homem naturalmente bom e preparado para aprender tudo:
Himmler, o ideólogo do racismo: Himmler, o apóstolo da higiene: Himmler, o
instrumento de Hitler etc.
O General Friedrich Hossbach: “Este homem, mau gênio de Hitler, frio,
calculista, ávido de poder, é sem dúvida alguma o indivíduo mais desprovido
de escrúpulos em todo o III Reich”.
O Generaloberst Guderian: “Ele não vivia em nosso planeta”.
Karl J. Burckhardt, suíço, antigo alto-comissário do Völkerbund em Danzig:
“Subordinação concentrada, um comportamento aplicado de estudante
limitado, mas também alguma coisa de metódico como em um autômato”.
O ideólogo Alfred Rosenberg: “Nunca pude amarrar o seu olhar, sempre
fugitivo e escorregadio por detrás do pince-
O General Walther Dornberger: “Um bom mestre-escola, mas, certamente,
não um chefe”.
Bernadotte, com quem Himmler negociou em 1945: “Verdadeiramente, este
homem nada tinha de diabólico. Cortês, não desprovido de humor, gostava,
vez por outra, de usar palavras espirituosas para desanuviar a atmosfera”.
Numerosos foram os diplomatas que estimavam a segurança de seus
julgamentos. Numerosos os não-alemães ou os resistentes alemães que viam
nele o único homem capaz de disputar o lugar ao Führer. “O monstro
Himmler”, disse o historiador inglês Trevor-Roper, “tinha toda espécie de
qualidades reais e positivas que fizeram dele uma personalidade das mais
problemáticas”.
Procurando de qualquer forma colocar luz sobre este personagem ambíguo, os
biógrafos de Himmler chegaram finalmente à hipótese de que a chave do
enigma vivo deveria ser encontrada em sua infância e em sua juventude. Filho
de burgueses, criança crescida à sombra de um pai e de uma mãe que lhe
testemunhavam pouca afeição. Depois disso, ele errou na sociedade do pós-
guerra, até que o movimento nazista lhe oferecesse finalmente o refúgio que
procurara para substituir o lar. A hipótese tem todas as características e
recebeu as graças da moda psicanalítica. É sedutora, sem dúvida. Mas nem
por isso deixamos de reconhecer que está à margem da realidade. Os fatos são
os seguintes: Himmler provém de uma família burguesa das mais banais.
Sempre teve excelentes relações com seus pais e seus dois irmãos (Gebhard, o
mais velho, nascido em 1898; Ernst, o caçula, nascido em 1905). Mesmo as
discussões entre seus pais e sua esposa Margaret não eram de molde a
prejudicar as relações de Himmler com a família. Quando sua mãe morreu,
Himmler, que também estava doente, velou-a uma noite inteira. No enterro,
conduziu seus irmãos pela mão ao túmulo da mãe, dizendo-lhes com o tom
solene que lhe era costumeiro: “Ficaremos sempre unidos”.
Considerava-se o protetor da família. Em 1921, escreve à sua “querida
mamãezinha”: “Que o papai não trabalhe tanto, que ele passeie também
durante a semana”. Muitas vezes, os irmãos tinham que suportar seu
pedantismo de professor. Em 14 de novembro de 1920, escreve a “Ernsti”,
mais moço cinco anos do que ele: “Eu me alegro com tuas boas notas. Mas
aconselho-te a não descansar sobre os louros. Procura também melhorar em
História. Seja bonzinho e não irrite mamãe e papai”.
Quando o irmão mais velho fica noivo com Paula Stölzle, filha de um
banqueiro de Weilheim, Heinrich considera-se árbitro e juiz da moralidade
familiar. Este casamento desagrada-lhe. Escreve a Paula em 1923: “Se se quer
que este casamento seja feliz para vocês dois e para as pessoas que são fortes
apenas em consequência da virtude e da moral da família de onde viemos,
será necessário que te tenhamos sob vigilância… E como não és capaz de
tomar cuidado e o teu noivo também não o seria porque é muito bom para ti,
eu próprio estarei velando…” O detetive privado de Munique. Max Blüml, foi
encarregado por Henrich, que tinha tendência a confundir as mulheres do
século XX com as deusas das lendas germânicas e que condenava sem
desculpas todas as relações amorosas fora do casamento, de fazer uma
investigação no passado de Paula. Antes mesmo que Blüml lhe trouxesse o
relatório, em 14 de março de 1924, Himmler aciona uma outra fonte de
informações. Um funcionário de nome Rössner recebe de Himmler o seguinte
pedido: “Eu lhe agradeceria se me desse a conhecer o que sabe sobre Mlle.
Stölzle e especialmente sobre suas relações com seu colega Daffner”. O bravo
Gebhard entrega as armas e rompe o noivado. O fato tem o mérito de mostrar
até que ponto Himmler é o digno representante de uma moral burguesa
estreita e limitada.
Ao contrário de Hitler, o mendigo de Viena, ao contrário de Goebbels, filho
de artesãos, ou de Alfred Rosenberg, o amargo emigrante báltico, o segundo
filho do professor Gebhard Himmler era o herdeiro e o representante da classe
média.
Quando Heinrich nasceu em 7 de outubro de 1900, no segundo andar da
Hildegarstrasse número 2, em Munique, seu pai não tinha porque duvidar do
sucesso social do filho: Heinrich, príncipe de Wittelsbach, aceitou ser o
padrinho. A este fato ajunta-se a posição social do pai, e não havia razão de
dúvida quanto ao estilo de vida e às idéias futuras de Heinrich Himmler.
E, de fato, nunca veio à idéia do jovem ou do estudante Heinrich contestar a
autoridade dos pais, discutir a ordem social em que vivia. Seu pai inculcara-
lhe o respeito incondicional aos antepassados e à tradição burguesa, bem
como os fundamentos da sua concepção romântica da História.
Estava na lógica das coisas que tal rapaz, afilhado de um príncipe, se
destinasse à carreira de oficial. Sem dúvida alguma, este foi um dos
elementos mais importantes na vida de Himmler: ele nunca pôde
verdadeiramente realizar seus sonhos de adolescente, conduzir suas tropas à
ponta de sabre, para uma vitória gloriosa. Míope, o jovem Heinrich não pôde,
como desejava, entrar na Marinha. Tentou a Infantaria. Insistiu tanto e tão
bem que seu pai solicitou uma dispensa de idade para obter o recrutamento
antecipado do jovem Heinrich no Exército. Ele o conseguiu, e em fins de
1917 Himmler era incorporado nas fileiras do 11.° Regimento de Infantaria
Bávaro von der Tann. Mas sua carreira militar terminaria ali. Pouco antes de
morrer, Himmler contará a Bernadotte que “levou seus homens ao front” e até
se referiu à sua participação em uma “batalha no Oeste”; tudo isso era falso.
O jovem Himmler nunca esteve na guerra, pelo simples motivo de que a
guerra não lhe deixou tempo para isso. Depois de seis meses de aulas em
Regensburg, o soldado de Infantaria Himmler seguiu um curso de
especialização em Freising, de 15 de junho a 15 de setembro de 1918; de 15
de setembro a l.° de outubro, um outro curso em Bayreuth. Dois meses mais
tarde foi desengajado e voltou à vida civil: a guerra terminara.
Senhor fracassado da guerra, Heinrich teria de procurar uma outra perspectiva
de futuro. O que lhe interessa, diz ele, é a agronomia. De fato, sempre teve
um temperamento de botânico. Ainda criança, fazia coleções de plantas. Mais
tarde, esta brincadeira custaria caro aos detidos dos KZ, que ele obrigaria à
colheita das mais diversas ervas, às quais emprestava virtudes maiores que as
dos produtos farmacêuticos tradicionais.
Também não irá muito longe em agronomia. Mal iniciou seus estudos em uma
escola especializada em Ingolstadt, surge uma epidemia de tifo que o prende
ao leito. Recomendação do médico: um ano de interrupção dos estudos. Em
18 de outubro de 1919, Himmler inscreve-se no Instituto de Agronomia da
Universidade de Munique. Estaria amargurado pelos reveses da sorte?
Tornou-se um lobo solitário à margem da sociedade, reclamando da
ingratidão do seu destino, como na lenda? Absolutamente. Munique, pelo
contrário, foi o ponto de partida para um período muito animado de sua vida,
ambíguo também sob vários ângulos.
Quem poderia prever um futuro tão sangrento para este estudante amigo,
devotado, embora às vezes um pouco aborrecido, que corria os bailes de
máscaras fantasiado de sultão, amando até a loucura uma mulher chamada
Maja Loritz e apreciador extremado dos prazeres culinários?
É verdade que algumas vezes resolve brincar de soldado e fazer política.
Inscreve-se como voluntário nos grupos de defesa civil de Munique (recebe
duas cartucheiras e um saco para pão “modelo antigo”). Em l.° de dezembro
de 1921 passa uma das grandes noites de sua vida: o Ministério da Guerra
envia-lhe um aviso segundo o qual, a partir de agora, poderá usar o título de
“porta-bandeira”. Com outros estudantes nacional-socialistas, leva a cabo um
projeto de golpe com o objetivo de liberar da prisão o Conde Arco-Valley,
assassino do primeiro-ministro bávaro. A pena de morte infligida ao detido
fora comutada em prisão perpétua, e os estudantes abandonaram o projeto.
Mas isso não chega a deprimir Heinrich, que anota em seu diário: “Ficará
para outra vez!”
Na realidade, estas não são as preocupações fundamentais de Himmler. Em
novembro de 1919, ingressa na Burschenschaft Apollo. A partir de agora,
trata-se de saber como será possível conciliar sua nova vida com a moral
católica e romana de um lado e a sensibilidade do seu estômago de outro: os
duelos são proibidos pela Igreja e a cerveja por seu médico.
Resolve rapidamente o problema da cerveja, obtendo da Burschenschaft a
dispensa oficial de tomá-la. É claro que seus alegres companheiros não levam
a sério este noviço abstinente e fazem-no compreender isto. Terá dificuldades
em encontrar alguém para duelar-se. Apenas no último semestre, em junho de
1922, Himmler consegue convencer um dos seus companheiros a infligir-lhe
a cicatriz tradicional, sem a qual, no pensamento do futuro Reichsführer SS,
não seria possível haver dignidade acadêmica.
O problema do duelo havia-se tornado mais difícil de resolver do que o da
cerveja. Heinrich enfrenta também suas próprias convicções religiosas.
Católico ardoroso, nunca falta à missa de domingo. Anota em seu diário todas
as cerimônias religiosas a que comparece. São frequentes citações deste tipo:
“Nesta igreja, sinto-me bem”. Sobre uma jovem por quem alimenta discreta
paixão, vem a saber que comunga cotidianamente; e anota em seu diário: “Foi
a maior alegria que tive nestes últimos dias”.
A entrada na Burschenschaft estudantil obscurece suas relações com a Igreja.
A ruptura não é imediata. Decidido inicialmente a não enfrentar suas
convicções religiosas, é afinal arrastado pelo desejo de sucesso social.
“Creio”, escreve Himmler em 15 de dezembro de 1919, “que entrei em
conflito com a minha religião”. E acrescenta — ele, o mesmo homem que
mais tarde levaria milhares de SS a romper com a Igreja e que falava de
entregar o Papa ao carrasco: “De qualquer maneira, aconteça o que acontecer,
sempre amarei a Deus e ficarei fiel à Igreja Católica, ainda que ela me exclua
de seu seio”.
A alteração de suas relações com a Igreja incomoda-o, mas não lhe provoca
um grande problema moral. Suas preocupações são de natureza muito mais
mundana: mais do que a religião e a política, o estudante interessa-se por
diversões da burguesia de Munique, pelos almoços de Mme. Loritz e pelos
problemas sexuais dos camaradas.
Anna Loritz, viúva de um cantor de ópera, parenta afastada dos Himmler,
tinha em Munique uma pensão familiar, Henrich apaixonou-se pela filha de
Anna Loritz, Maja, sem que a paixão fosse correspondida. Heinrich tinha na
pessoa de Hans Knipp, futuro mercador de couros e peles em Stuttgart, um
rival a quem Maja preferia. Esta aventura amorosa e a ida a reuniões
dançantes em casa de Mme. Loritz ou em outros lugares ocupavam a maior
parte de seu tempo. Com seu amigo Ludwig, apelidado “Lu”, Heinrich levava
vida alegre: e nada do que vivia ou enxergava parecia-lhe banal demais para
entrar em seu diário: “O quarto”, escreve ele, falando de uma reunião em casa
de Mme. Loritz, “fora decorado como um harém: lanternas, uma tenda para
“Lu” e para mim em um canto junto à lareira… Madame Loritz trazia prato
por prato… Entornei chocolate em minha calça…”
Gostava tanto dessas reuniões, que esqueceu o aniversário do Partido. É com
razão que os historiadores americanos Werner Angres e Bradley F. Smith
consideravam o Himmler desta época como “um jovem sem a menor
originalidade, um arquétipo da classe média bávara, da qual herdara os
gostos, o estilo de vida e as idéias”.
Suas atividades são múltiplas: na época de Natal, lia para um cego, fabricava
biscoitos com uma senhora solitária, participava de reuniões de caridade em
benefício de órfãos vienenses. No resto do ano, percorria reuniões, e tinha-as
quase todos os dias, pois era membro de cerca de uma dúzia de sociedades,
desde o Touring Clube alemão até a Associação de Antigos Oficiais do
Primeiro Regimento de Infantaria Bávaro, passando pela sociedade de tiro
Freiweg. Quando temos tantos títulos de sócios, é porque nos sentimos no
ambiente como peixe dentro d’água. Himmler estava como um peixe dentro
d’água. Suas idéias políticas são apenas um reflexo das idéias mais correntes
na época: cultiva um nacionalismo de caráter burguês, isto é, temperado, sem
fanatismo nenhum. Mesmo as suas opiniões sobre os judeus são as mais
moderadas.
Em um só ponto manifesta-se certa agressividade, onde se poderia, a rigor,
desvendar o futuro Himmler: nos assuntos militares. Himmler não pode e não
quer acreditar que a sua carreira militar tenha terminado. Desprezado por
Maja Loritz, só uma saída lhe parece possível: ser soldado. Escreve em 28 de
novembro de 1919: “Ah! Se eu pudesse novamente ver o perigo diante de
mim, combater, pôr em risco minha vida, isto seria uma verdadeira
libertação”. Em 22 de novembro de 1921, vemos um Himmler que parece ter
reunido algumas idéias: “Se uma nova guerra deve ser feita contra o Leste, eu
estarei sem dúvida nela. O Leste é a chave do nosso futuro. O Oeste está
morto. É no Leste que devemos combater: e é o Leste que devemos
colonizar”. Seu desejo de guerra, seu desejo de fazer a guerra não é
passageiro. Em 22 de fevereiro de 1922, escreve: “Ah! se pelo menos eu
pudesse voltar ao combate! o combate! a guerra! a marcha para frente!”. Em
11 de junho do mesmo ano: “De qualquer maneira serei soldado, pois no
fundo de mim mesmo eu sou um soldado. Mas antes é preciso que eu preste
meus exames”.
É nesta época que Röhm entra de maneira decisiva na vida de Himmler.
Röhm, uma esperança capaz de saciar esta sede de guerreiro.
É difícil dizer exatamente quando os dois homens se conheceram bem. Seus
caminhos haviam-se cruzado várias vezes: no fim de 1918, Röhm fazia parte
do estado-maior da 12ª Divisão de Infantaria Bávara. A seguir, foi oficial de
armamento da 22ª Brigada de Proteção de Munique, que deveria entregar, em
1920, as armas ao soldado Himmler. Por outro lado, Röhm era eminência
parda dessas organizações armadas nem legais nem ilegais que a Reichswehr
mantinha como uma espécie de milícia. Foi em maio de 1922, durante uma
assembléia plenária dessas organizações no Arzberger Keller de Munique,
que Himmler encontrou o capitão. Himmler escreve: “O Capitão Röhm e o
Major Angerer (ex-comandante de Himmler) estavam também presentes.
Muito amigáveis. Röhm se declarou pessimista quanto à ação bolchevista”.
Himmler ficou muito impressionado com Röhm. O porta-bandeira não
esquece a superioridade hierárquica de Röhm, diante de quem nunca se
apresentará sem a saudação regulamentar, batendo os calcanhares. Curiosa
dupla esta, de um velho guerreiro e de um guerreiro fracassado, de um
homossexual e de um filho de burgueses de moral estreita. Mas o velho
guerreiro sabe provocar o entusiasmo do estudante. Himmler faria qualquer
coisa por Röhm.
Himmler acabara de ser aprovado em seus exames, em 5 de abril de 1922, e
de aceitar uma posição de assistente de engenheiro-agrônomo, quando aderiu
a uma organização nacionalista indicada por Röhm: a Reichsflagge. Afinal,
Himmler poderia outra vez usar o uniforme. Pouco importava que este
uniforme não comportasse um casaco cinza claro e perneiras vistosas. Era um
uniforme. E justificava a utilização intensiva de armas e o exercício físico
(sobretudo o treinamento para o combate de rua, para a hipótese de uma
guerra civil), ao qual Himmler dedicava com seus companheiros todas as
tardes de sábado e dias feriados.
Além disso, bem cedo terá oportunidade de provar a Röhm a admiração que
lhe devota. No final de agosto de 1923 participa do golpe planejado por Adolf
Hitler. Em consequência de problemas internos, a Reichsflagge tinha perdido
o seu nome, passando a designar-se Reichskriegsflagge, e fora colocada sob
ordens diretas de Hitler e de Röhm. Himmler inscreve-se no Partido. Ainda
não poderíamos considerá-lo, na época, um nazista. Para ele, o homem do
futuro é Röhm e não Hitler. O futuro não é a cruz gamada; são as cores reais.
Em 8 de novembro de 1923, surge o boato de que Hitler penetrara no
Bürgerbräukeller e convidara, sob a ameaça de uma pistola, os dirigentes
políticos e militares bávaros a dar um golpe decisivo “sobre os criminosos de
novembro.” Himmler toma conhecimento disso em uma sessão da
Reichskriegsflagge. Röhm também estava presente. Ele descreve a cena:
‘Quando recebemos a notícia, os companheiros de Hitler pularam em suas
cadeiras, abraçaram-se, puseram-se a rir e a chorar de alegria e de emoção”.
Röhm confia então a bandeira da Reichskriegsflagge a seu êmulo Hitler,
convida seus homens a descer à rua e a marchar com ele sobre o
Bürgerbräukeller, onde Adolf Hitler está pregando “a revolução nacional” ao
Comissário-Geral Ritter von Kahr e ao General Lossow. Um emissário de
Hitler encontra-se com a tropa de Röhm e convida-o a ocupar o edifício do
Ministério da Guerra. Bom soldado, Röhm obedece. Uma hora mais tarde o
Ministério estava tomado. Mas Röhm sente que alguma coisa não deve ter
corrido bem. Começa a pressentir uma viva reação por parte dos políticos e
dos generais bávaros surpreendidos por Hitler.
Ao alvorecer do 9 de novembro, os tanques cercam o Ministério onde Röhm
estava entrincheirado. As unidades da Reichswehr e as forças da polícia
dominam o quarteirão e apontam suas metralhadoras para o edifício,
esperando que lhes seja dada a ordem de abrir fogo. Um silêncio de morte cai
sobre a cidade. Atrás dos fios de arame farpado que fecham a Ludwigstrasse,
Heinrich Himmler está com a bandeira que lhe foi confiada. Ei-los reunidos,
por uma aventura louca de Hitler, amigos e inimigos, assassinos e vítimas de
amanhã: o futuro chefe do estado-maior SA Röhm, que onze anos mais tarde
cairia sob as balas dos assassinos negros a soldo do seu atual porta-bandeira;
ao lado de Röhm, o futuro chefe do Serviço de Informação SA, Conde Du
Moulin Eckart, que os homens de Himmler arrastarão mais tarde de tribunal
em tribunal e de prisão em prisão. Diante deles, do outro lado dos arames
farpados, o Tenente Hermann Höfle, antigo ordenança de Röhm. Futuro
general Waffen-SS, ele trará muitas preocupações a Himmler e irá, por
devotamento a Röhm, seu antigo chefe, até o ponto de tentar proteger este
último dos golpes assassinos que se armam contra ele, e chega a adverti-lo
das intenções criminosas dos homens de Himmler.
Os adversários de hoje são os amigos de amanhã. Os amigos de hoje vão
digladiar-se amanhã: Ritter von Kahr será abatido em 30 de junho de 1934
pelos SS. Como Röhm, outrora seu inimigo. Só sobreviverão aos golpes dos
SS os negociadores de hoje, Ritter von Epp, antigo comandante de Röhm, e o
futuro chefe SA Hörauf.
Mas a negociação fracassa. Diante das forças reunidas da polícia e da
Landswehr, Röhm deve capitular. Suas tropas entregam as armas. A
associação Hitler-Röhm desaba. As portas da prisão de Stadelheim fecham-se
atrás de Röhm.
E ei-lo novamente sozinho, abandonado a si próprio, sem chefe a quem possa
idolatrar, sem uniforme e sem amanhã, o porta-bandeira Heinrich Himmler.
Apesar de sua profunda decepção, o agrônomo golpista decide ficar “na
política”. Isto, por duas razões essenciais: acaba de ser definitivamente
rejeitado por Maja; e tem dificuldade em encontrar um emprego.
O NSDAP acaba de ser proibido. Himmler adere ao Movimento Nacional-
Socialista pela Liberdade (Natlonalsozialistische Freiheitsbewegung),
colocado sob o patrocínio de Ludendorff. À cabeça deste movimento
encontra-se aliás um conhecido de Himmler, o farmacêutico Gregor Strasser,
nacional-socialista virulento. Strasser concede sua confiança a Himmler.
Maio de 1924: eleições do Reichstag. Strasser está decidido a fazer tudo para
que os nazistas consigam alguns lugares. Organiza às pressas uma propaganda
eleitoral das mais movimentadas. Himmler toma parte bastante ativa. Usando
uma poderosa motocicleta sueca, conduz na Baixa-Baviera, de cidade em
cidade, a mensagem de Strasser, não negligenciando nenhum dos múltiplos
slogans da demagogia nacional-socialista. Fala contra os judeus e contra os
maçons, excita os agricultores contra o capital, acusa o bolchevismo, difama a
democracia, abomina todas as formas da política racional e lança em toda
parte por onde passa a utopia de um mundo que repousará sobre os
camponeses alemães. Sem trégua nem descanso, percorre a região que lhe foi
designada. Resumo, a título de exemplo, de suas atividades: 23 de fevereiro
de 1924, discurso em Eggmühl, Lanwaid, Birnbach; 24 de fevereiro, discurso
em Kelheim e Saal, com mesas-redondas; 25 de fevereiro, discurso de uma
hora e meia em Rohr etc.
Seus esforços não serão em vão, nem os de seus companheiros: com 2
milhões de votos, o movimento de Strasser consegue 32 cadeiras no
Reichstag. Mas Himmler está na expectativa; teria realmente escolhido um
partido de futuro? Aderiu a um movimento populista. Ei-lo indeciso, no meio
de lutas que opõem esse movimento de obediência nacional-socialista ao
nacional-socialismo propriamente dito. Ei-lo hesitante, prestando atenção às
lutas entre partidários e adversários de Hitler, atualmente preso. Faltava-lhe
um ídolo para reverenciar. Sentia-se pronto a declarar-se servo, mas o senhor
estava ausente. Estava preparado para acreditar, mas em quê? Queria
desempenhar um papel na História, mas qual? Onde estava a bandeira sob a
qual lutar, ou o dever sagrado pelo qual morrer? Heinrich Himmler sabia que
não era o eleito do destino, o chefe com vontade de ferro que forja os destinos
de um país. Longe disso. Em muitos lugares, seu diário mostra a pobre
opinião que tem de si próprio.
Acha que lhe falta sobretudo segurança, que fala demais, que cede muito
facilmente à tentação de contar boas histórias. Que criatura infeliz, que
homem… eu sou um faroleiro, um falante sem energia… nada me sai bem…”
(29 de janeiro de 1922). E mais adiante: “Tratam-me como a uma criança que
se diverte e se envolve em assuntos que não lhe dizem respeito”.
Está tão pouco seguro de seus objetivos que em certo momento pensa em
deixar a pátria. Aprende o russo e projeta instalar-se no Leste, talvez na
Turquia ou no Peru. Quatorze vezes, entre 1919 e 1924, fala de emigrar em
seu diário.
Tais problemas só são afastados quando, afinal, encontra um objeto digno de
sua admiração, um ersatz de Deus. Em dezembro de 1924, Adolf Hitler deixa
o forte de Lansberg e imediatamente se lança à reorganização do NSDAP,
ainda proibido. Os problemas que tanto haviam amolado Himmler quando
trabalhara para Strasser são agora regulamentados por Hitler em pouco menos
de um ano: em 27 de fevereiro de 1925, o Führer reunirá seus partidários e
seus adversários nacional-socialistas bávaros no seio do novo NSDAP. Dois
meses mais tarde, fundaria a SS e a faria prevalecer sobre todas as
organizações rivais.
O serviçal Himmler encontrara o chefe pelo qual esperava. Em agosto de
1925, recebe o cartão de membro do novo Partido Nazista. Pouco depois, com
um salário de cento e vinte marcos por mês, torna-se secretário de Gregor
Strasser, em um cômodo pobremente mobiliado próximo à Igreja de São
Martim, em Landshut.
Assinalou-se, mais de uma vez, que Himmler se considerava um funcionário
do Partido, muito mais do que um subordinado de Strasser. Realmente,
quando seu chefe direto vai a Berlim exercer outras funções no NSDAP,
Himmler, ao invés de segui-lo, aproveita-se da oportunidade para aproximar-
se mais de Hitler. Há um ponto que nunca foi elucidado: quando Himmler
encontrou Hitler pela primeira vez? O certo é que Himmler nunca pôde
vencer um doentio sentimento de inferioridade nas suas relações com Hitler,
que qualificava “o maior cérebro de todos os tempos”.
Já em seu escritório de Landshut, sentia uma veneração profunda pelo Führer:
sua mesa de trabalho ostentava um retrato de Hitler, com o qual —
testemunha um de seus amigos — mantinha conversações a meia-voz.
Quando Hitler lhe telefonava, Himmler batia os calcanhares. Um dia, seu
massagista, Felix Kersten, respondeu ao telefone. Era Hitler. Himmler pegou
o aparelho e, ao fim de sua conversa com a Führer, dirige-se a Kersten:
“Senhor Kersten, o senhor sabe com quem falou? O senhor ouviu a voz do
Führer! Que felicidade! Escreva isso imediatamente à sua mulher! Como ela
ficará contente com a oportunidade que o senhor teve!’’
Os primeiros tempos de seu “combate” ao lado de Hitler vão-lhe parecer para
sempre fabulosos: “A mais bela época de minha vida”, dizia ele ainda em
1945. “Nós, membros do Partido, estávamos constantemente em perigo. Mas
não tínhamos medo de nada. Adolf Hitler era o nosso chefe”.
Essa admiração pelo Führer, esse devotamento à causa nacional-socialista
merecem recompensa. Himmler a terá muito cedo. Sobe na hierarquia do
Partido: 1925, gauleiter da Baixa-Baviera; 1926, gauleiter da Alta-Baviera e
da Suábia; ainda em 1926, diretor dos serviços de propaganda; 1927,
Reichsführer SS. Em alguns anos, o tímido estudante torna-se o émulo de
Hitler. Seu talento de organizador não deixa de chamar a atenção do Führer.
Mas não basta a Himmler ser um organizador, também deseja ser um
educador; quer levar o Partido e o povo às verdadeiras fontes da vida.
Himmler é um adepto da filosofia do Blut und Boden. O campesinato alemão,
fonte da Nação, é o pilar de sustentação de um conceito inteiramente
romântico da História. “Um camponês livre sobre uma terra livre”, dirá ele, “é
a espinha dorsal do poderio alemão”. Procura, a qualquer preço, provar a sua
própria origem camponesa. Para ele, um grande homem é necessariamente
filho ou descendente de agricultores; e qualifica o Rei de Saxe, Henrique I,
vencedor dos eslavos, “um nobre agricultor de sua pátria”. Faz do rei o seu
ídolo. No correr de seus estudos, ficará obcecado com a idéia de uma
sociedade fundada sobre os agricultores. Célula-mãe desta sociedade, cuja
palavra de ordem é “a volta à terra”, a fazenda escola, microcosmo à imagem
do Estado futuro, compreende “mestres”, “companheiros” e “aprendizes” dos
dois sexos. Os mestres devem possuir “os dons de chefe” e ser “impermeáveis
à mentira e ao engano correntes no mundo”. As mestras, por outro lado, são
“mulheres virtuosas, felizes de viver, mães acima de tudo, inteiramente
estranhas à decadência e à insanidade dos citadinos, fortes e no entanto doces,
prontas a deixar a última palavra aos homens”. Esta célula elementar da
sociedade himmleriana estava aberta aos poetas e artistas da pátria, que ali
poderiam refugiar-se, a fim de dar forma à sua obra, sem ter de sofrer o
apodrecimento do ambiente. Quem não reconheceria em tudo isso a marca
nacional-socialista e mais especialmente SS? “O que conta”, diz Himmler,
“não é o saber, mas a mentalidade das pessoas. Precisamos de homens
perfeitamente sadios, serenos, com vontade firme, capazes de tornar-se
verdadeiros dirigentes do povo em ligação permanente com esta escola”.
Estas concepções místicas, evidentemente, ignoram os verdadeiros problemas
do campo (o minifúndio, a racionalização da agricultura etc.). Para Himmler,
todos os problemas se resumiam a um só: “o judaísmo internacional”. Escreve
em 1924 que o pior inimigo dos camponeses é o capital judeu, que ergue
artificialmente as cidades contra o campo. Deixemos que o próprio Himmler
explique: “Com as especulações e flutuações que provoca na Bolsa, o
judaísmo mantém em baixo nível os preços da produção e faz crescer sempre
os preços do consumo. O agricultor deve ganhar pouco, o citadino deve gastar
muito. A diferença é absorvida pelos judeus e seus aliados”. Se até o golpe de
novembro Himmler concedia aos judeus características individuais, agora o
homem judeu estava sempre marcado por uma única máscara que
estigmatizava a raça maldita. O futuro Reichsführer encontrara o inimigo de
que precisava para realizar-se.
Há ainda um segundo inimigo, o eslavo. “Só o combate contra os eslavos é
capaz de dar um novo vigor ao camponês alemão. Pois o futuro da nação está
no Leste. Será preciso que colonizemos o Leste, que terras novas se abram à
atividade dos nossos camponeses. Que eles não emigrem mais para as
cidades, mas povoem estas terras. Tal como há seiscentos anos, o agricultor
foi chamado a preservar a terra sagrada contra a ameaça dos eslavos, a
conquistar, expulsando-os, terras novas”.
Assim, já em 1924, Himmler formulara duas leis fundamentais da política
nazista e da ideologia SS. É verdade que faltava a tal formulação o tom quase
religioso que logo caracterizaria suas obsessões raciais, mas o passo estava
dado.
Na época, o NSDAP era excessivamente insignificante para que Himmler
pudesse sonhar em realizar por este canal a sua pseudopolítica agrícola.
Himmler reúne-se então a um grupo que se entretém com este gênero de
problemas, os “Artamans”, nacionalistas idealistas que não pertenciam ao
NSDAP, embora seu chefe Georg Kenstler fizesse parte dele. Obcecados pela
teoria Blut und Boden, eles queriam afastar os eslavos, operários agrícolas,
das terras orientais da Alemanha.
É no seio deste grupo, do qual cedo se tornará gauführer para Baviera, que
Himmler conhece Rudolf Höss, Artaman de Brandenburg, futuro comandante
do campo de Auschwitz. É neste grupo também que encontra o homem
destinado a dar a este conjunto de preconceitos um fundamento teórico, a
reunir esta soma de sonhos, fazendo dela uma ideologia racial que defenderá a
supremacia dos homens do Norte. Trata-se de Richard Walther Darré, alemão
nascido na Argentina em 1895, antigo aluno do King’s College School, em
Wimbledon, antigo funcionário do Ministério Prussiano de Agricultura e
futuro especialista do NSDAP para questões agrárias.
Com Darré, cinco anos mais velho que ele, Himmler estava em boa escola.
Consegue a confirmação “científica” do que, até então, pregava com toda a
inocência, se é possível dizer-se assim: a agricultura não é um problema
econômico, mas “uma questão de sangue”; o campesinato é “o fundamento de
nosso povo e a única garantia de um sangue puro”. Cabe ao Estado fazer
crescer estas bases com projetos de colonização, de multiplicação de
nascimentos, de paralisação da migração para as cidades. O melhor sangue é
o da raça nórdica. “Quase todos os grandes impérios e as civilizações mais
brilhantes foram criados por homens da raça nórdica. Esses impérios só
tombaram porque os fundadores não souberam preservar a pureza de seu
sangue”.
O profeta do Blut und Boden abre afinal as perspectivas do futuro para
Himmler. Descortina-se para ele um panorama: já está à vista a elite do
futuro, os senhores da nova Alemanha, a Ordem SS.
Varridos os artamans pelos acontecimentos, Himmler vai se lembrar de seu
mestre intelectual, Walther Darré. Ele o designará, na SS, chefe da direção
dos problemas de raça c de povoamento (Rasse und Siedlungshauptamt). Mas
ainda não chegamos lá. Por enquanto, Himmler desenvolve as teses de Darré
na SS da Baixa-Baviera, criada por ele. Os dirigentes do Partido não deixam
de notar este teórico do campesinato em uniforme negro. Himmler tem aí a
sua oportunidade e oferecem-lhe o comando-geral da Ordem. Mas ele ainda
não está seguro de sua vocação. Será a terra ou a SS? Em 1926, a balança
parece pender para um futuro de gentleman-fazendeiro. Ele encontra a deusa
germânica de seus sonhos, Margarete Boden, loura, de olhos azuis, filha de
um proprietário de terras de Goncerzewo, na Prússia Oriental. Depois de
algumas hesitações — a Valquíria é protestante e ainda por cima divorciada
—, Himmler casa-se. Os cônjuges compram um terreno em Waldtrudering,
perto de Munique, e constroem ali sua casa, iniciando uma criação de
galinhas. As dificuldades são numerosas: de um lado, falta de dinheiro; de
outro, a carreira paralela de Himmler no Partido. Por outro lado, “as galinhas
põem apenas dois infelizes ovos por dia”, escreve “Marga” a Heinrich.
Mas Heinrich está cada vez mais absorvido pela política. Deixa cada vez mais
a esposa e as galinhas de lado. Sem que ele mesmo o percebesse, o Führer o
tomara inteiramente. Em 6 de janeiro de 1929, Himmler é nomeado chefe da
SS. O membro 168 da SS poderia agora pôr em prática as teorias de Walther
Darré. A SS estava lá. Aí estava também seu chefe. Bastaria fazer da Ordem
Negra, ainda embrionária, a verdadeira elite do nacional-socialismo.
O novo Reichsführer logo deveria perceber que o Führer não exigia tanto
idealismo purista. Hitler não precisava de uma ordem mitológica, mas de uma
guarda que respondesse cegamente às suas ordens, de um instrumento que lhe
permitisse galgar os degraus do poder pessoal. O NSDAP chegara ao
momento decisivo de sua história. A crise econômica atirava cada vez mais a
Alemanha no campo nacional-socialista, reforçava e enfraquecia, conforme as
ocasiões, a posição do Führer dentro do Partido. Constantemente discutida,
era preciso, agora, que tal posição se firmasse definitivamente. Abria-se o
capítulo sangrento da luta dos partidos alemães.

Da Guarda Pessoal à Polícia do


Partido
HIMMLER PASSAVA por original. Dizia-se que pretendia aplicar
concepções de seleção tomadas diretamente de sua vida profissional às teorias
oficiais do Partido. Por outro lado, a importância que ele se atribuía tinha
pouca relação com o pequeno tamanho de suas tropas. A SS contava na época
com 280 homens. Estava submetida às ordens do comandante em chefe da
SA, Franz Pfeffer von Salomon, e era tida pelos dirigentes do NSDAP como
uma espécie de serviço de recrutamento de leitores para a imprensa do
Partido.
Tudo isso não parecia amolar a Himmler que imaginava um plano bastante
ambicioso de expansão SS, com o objetivo de aumentar o número de
esquadrões locais e de acentuar o caráter de tropa de elite da Schutzstaffel.
Em abril de 1929, submete a Hitler e a Franz Pfeffer von Salomon um projeto
que tem por objetivo criar verdadeiramente uma Ordem SS. Segundo os
termos desse projeto, a SS não receberia em seu seio senão indivíduos que
tivessem passado por testes de seleção particularmente severos. Critério
principal: a raça. Se Himmler tivesse realmente adotado, como pretendia fazê-
lo, os princípios de Darré, se não tivesse reunido senão indivíduos que
correspondessem ao super-homem germânico criado no laboratório de Darré,
a SS certamente ficaria reduzida a menos da metade do que chegou a ser. O
Reichsführer SS soube evitar esse tipo de fraqueza. Suas ordens diziam que os
princípios de seleção não deveriam ser aplicados aos combatentes da Primeira
Guerra Mundial. Pouco a pouco, a filtragem iria tornar- se mais severa. “Eu
pensei”, disse Himmler, “em exigir de agora em diante uma altura mínima de
l,70m”. E acrescenta com sua clarividência habitual: “… pois homens que
atingem na altura um certo número de centímetros, não podem deixar de ter a
pureza de sangue necessária.”
Seus sargentos recrutadores enviam-lhe fotos dos candidatos SS. Himmler
examina-as com lente, para estar seguro de que o indivíduo em questão possui
o que ele chama “um bom sangue”. Se tem as maçãs do rosto um pouco
salientes, não será recrutado. Este “ar eslavo”, este “ar vagamente mongol”, é
imperdoável.
Tais critérios só poderiam encontrar aprovação no meio social onde Himmler
e seus esbirros recrutavam as tropas. A idéia de uma elite de sangue fascinava
todos os velhos combatentes da Primeira Guerra, os universitários cujos
estudos haviam sido interrompidos pela inflação, os pequenos funcionários e
desempregados que encontravam uma nova forma de comunidade no seio de
organizações nacionalistas às quais haviam aderido. O conceito de elite racial
lançado por Himmler trazia, enfim, uma solução para seus problemas.
Até então pertenciam à elite apenas aqueles que possuíssem, seja um certo
grau de instrução, seja bens materiais, seja títulos de nobreza. Não havia
possibilidade nenhuma para as gerações que haviam conhecido a guerra.
Voltando da frente de batalha, esses homens não haviam podido reintegrar-se
na sociedade de seu tempo, viviam à margem, em uma espécie de no mans
land social. Himmler chegava no momento certo para propor-lhes uma
espécie de nobreza. O conceito de elite social cedia o passo à idéia de uma
elite de sangue, de uma soberania da raça. Todos esses homens viam-se
subitamente elevados por um prestigio que nunca ousaram esperar. Os
primeiros membros da SS foram originários da pequena burguesia: os
desenraizados da classe média e superior vieram depois, em massa, atender ao
apelo de Himmler.
Antigos combatentes das organizações militares livres eram homens de
guerra. O fato de terem estado no front era sua única boia de salvação. E eles
agarravam-se a ela. Seu desprezo pelo mundo burguês de antes da guerra era
igualado apenas pelo ódio à sociedade do pós-guerra e seus representantes.
Para eles, só a guerra seria capaz de limpar o mundo da hipocrisia burguesa.
Mesmo em tempo de paz, só a violência parecia-lhes um processo hábil para
precipitar o fim de uma sociedade que imaginavam apodrecida. E ainda por
cima surgem poetas para encher-lhes a cabeça com novas fórmulas coloridas,
que substituem a clareza do raciocínio. “A guerra”, diz Ernst Jünger, o mais
célebre porta-voz dessa geração perdida, “está em nós como uma montanha.
Nós nos dedicamos à tarefa de descer para o vale, à procura de terras novas.
Mas enquanto girar a roda da vida, a guerra continuará a ser o seu eixo. É
verdade que a guerra terminou e foram abandonados os campos de batalha.
Mas o espírito da guerra continua a exercer um império absoluto sobre seus
antigos servidores, e não os abandonará”.
Os problemas do pós-guerra na Alemanha fornecem a muitos desses homens
oportunidade para praticarem a sua arte predileta. O Estado tinha grande
necessidade de guerreiros para lançar na batalha contra os comunistas, de um
lado e contra os rebeldes poloneses, de outro. Os homens empregados nesse
mister chamavam-se a si mesmos de “livres-combatentes”, acentuando sua
condição de voluntários. Haviam-se colocado a serviço do Estado, sem que
este lhes houvesse pedido qualquer coisa. Tinham liberdade de deixá-lo
quando bem lhes conviesse. Sua dedicação não era para com o Governo, mas
exclusivamente para com a flâmula que conduziam, para com o Führer sob
cuja bandeira se haviam alistado.
Essas tropas espalharam a violência pelos quatro cantos da Alemanha, e suas
convicções resumiam-se na fé em sua própria força, desprovidos de qualquer
moral que não fosse ditada por circunstâncias momentâneas. Aboliram todas
as normas de disciplina militar tradicional e criaram um tribunal de exceção
que julgava e fuzilava quem melhor lhes parecesse. “Morrer e matar”, esta era
a palavra de ordem. Ernst von Salomon reconhece em 1930 qualidades nos
livres-combatentes que, dez anos mais tarde, identificarão também os
guerreiros negros de Himmler: “O gosto por qualquer combate contra as
massas e contra adversários armados ou não, um desprezo absoluto pela vida
alheia e pela própria, o hábito de não fazer prisioneiros”.
Dissolvidos os livres-combatentes, o câncer da violência continuou a
progredir. Os tribunais de exceção fazem sua aparição no mundo da política.
Inicia-se a caça aos republicanos e democratas, e o reino do terror transforma-
se em instituição. Os homens dos corpos de livres-combatentes perdem sua
pátria. Parte deles entra na SA, onde ocupam postos de comando. Logo
compreendem que a SA não pode substituir o que haviam perdido. Com
efeito, a grande maioria dos homens da SA fora recrutada entre
desempregados que percorriam as repartições alemãs. Que esperam esses
homens da SA? Que esperam de Adolf Hitler? Apenas pão para eles e suas
famílias. E quando estiverem satisfeitos, que farão? Apenas terão pressa de
voltar para suas mulheres e filhos. Os veteranos dos corpos de livres-
combatentes não tinham por eles senão desprezo. Desprezavam essa
mentalidade pequeno-burguesa.
E eis que Heinrich Himmler vem oferecer-lhes uma verdadeira pátria: a
Ordem de elite SS. A partir de 1929, os homens dos corpos de livres-
combatentes afluem à SS em duas ondas sucessivas. Primeira onda: os
veteranos. Entre eles, guerreiros ilustres, como Erich von dem Bach-
Zelewski, antigo oficial da Reichswehr, que fora forçado a abandonar seu
regimento de infantaria em consequência de suas opiniões nacional-
socialistas; Friedrich Karl Freiherr von Eberstein, tenente durante a Primeira
Guerra Mundial, futuro chefe SS no Saxe; Udo von Woyrsch, subtenente da
primeira guerra e que dirigirá a SS na Silésia.
Segunda vaga: as vítimas da crise econômica. Ao contrário dos primeiros,
estes haviam conseguido adaptar-se à sociedade do pós-guerra. Mas as
dificuldades econômicas os haviam forçado ou simplesmente os haviam
levado a abandonar sua profissão e vestir o uniforme negro: Friedrich
Wilhelm Krüger, antigo Oberleutnant do corpo de livres-combatentes de
Lützow, abandona sua condição de comerciante: Karl Wolff, filho de juiz e
antigo tenente da guarda do Grão-Duque de Hesse, deixa sua atividade de
publicitário; o Dr. Karl Albrecht Oberg, filho de médico, antigo tenente do
front do Oeste, abandona seu negócio de importação de bananas.
Em 29 de janeiro de 1930, Himmler anuncia: “A Schutzstaffel cresce; no fim
deste trimestre seremos 2.000”.
Apesar das ordens precisas de Pfeffer von Salomon — proibição aos
Unterführer SA de se transferirem para a SS — Himmler consegue a adesão
de alguns deles. No fim de 1930, Hitler contribui para o fortalecimento da
posição de Himmler, separando oficialmente a SA da SS. Esta continua, em
princípio, subordinada ao OSAF von Salomon. Com efeito, esta secessão
decidida por Hitler concede autonomia à SS. Hitler: “Nenhum oficial SA
poderá dar ordens à SS”. Até o uniforme SS, que passa a ser negro, vai
distinguir de agora em diante a ordem himmleriana da SA.
Outro êxito de Himmler: o Führer suprime o regulamento que obrigava o
esquadrão local a limitar-se a 10 homens e deixa a Himmler a tarefa de
reorganizar o conjunto da Ordem. A estrutura da SS logo se assemelhará à da
SA. A menor unidade é a Schar, ou seja, 8 homens comandados por um
Schanführer. Três unidades elementares desta natureza formam uma “tropa”,
colocada sob as ordens de um Truppführer. Três “tropas” — 70 a 120 homens
— formam uma Sturm, unidade SS de choque, colocada sob as ordens de um
Sturmführer. As Stürme estão agrupadas por três em Sturmbanne 250 a 600
homens —, comandadas por um Sturmbannführer. Esta última unidade
corresponde aproximadamente a um batalhão tradicional. Vem em seguida a
Standarte sob as ordens de um Standartenführer, que reúne 3 ou 4 Sturmbanne
e conta com efetivo de 1.000 a 4.000 homens, correspondendo a um
regimento. Vários Standarten formam um Untergruppe, ou brigada, dirigida
por um Oberführer. Mais tarde, com o crescimento da SS, esses Untergruppen
serão reunidos em Gruppe, colocado sob as ordens de um Gruppenführer,
unidade correspondente a uma divisão.
Agora seria necessário dar forma a essa nova estrutura. Deste exército de
papel, fazer um exército de homens. Hitler trouxe a solução aos problemas do
Reichsführer SS. Proibira a SS de recrutar homens nas fileiras da SA, mas deu
ordem à SA de ceder parte de suas forças à SS. Segundo tais ordens, a SA
deveria fornecer metade dos homens que constituiriam os grupos SS locais.
As novas disposições foram profundamente desagradáveis para os dirigentes
SA. Se se acrescentar que o Führer declarara explicitamente que a SA não
deveria ceder à SS senão “homens escolhidos rigorosamente” e que os
Sturmbannführer tinham poder de recusar os homens que a SA lhes enviasse,
caso não correspondessem a seus critérios de rigor, será fácil compreender a
contrariedade dos chefes SA.
Não lhes consolava a idéia de que a SS independente não se imiscuiria nos
assuntos SA. Preferiam ignorar os objetivos verdadeiros de Hitler: preferiam
não fazer indagações sobre a verdadeira significação do desenvolvimento SS;
preferiam não prestar atenção à explicação dada pelo próprio Hitler: “O dever
da SS será, de agora em diante, tornar-se a polícia interna do Partido”.
Hitler precisa muito dessa polícia, pois as controvérsias em torno de sua
pessoa estão crescendo no interior do Partido. A delação, o crime, a intriga
reinam no movimento nacional-socialista. No espírito de Hitler, a SS está
destinada a fazer reinar a qualquer preço a disciplina, a punir com mão de
ferro toda rebelião contra o Führer.
Sem dúvida, era disciplina o que mais faltava a um partido que reunia agora
aderentes e responsáveis oriundos das mais diversas camadas sociais,
trazendo as idéias mais contraditórias. Campo de batalha de adversários
políticos nacionalistas, porto para os proletários SA, mas também lugar de
encontro de numerosos grandes burgueses reacionários e outros senhores da
indústria, não se poderia imaginar movimento mais heterogêneo. O único
ponto comum a todos os seus aderentes era o ódio declarado à democracia e
ao progresso, a sede insaciável de tomar o poder. Mas como fazer? Nenhum
slogan que deixasse de encontrar adversários, nenhum funcionário importante
que não estivesse em guerra aberta com algum de seus colegas.
Hermann Esser, o paladino de Hitler, ataca o grupo nazista norte-alemão,
qualificando-o de “sociedade de iluminados pagãos”. O renano Joseph
Goebbels reclama a destituição do “pequeno-burguês Adolf Hitler”. “A
ditadura da idéia socialista, esse é o futuro”, declara ainda Goebbels, ouvindo
a réplica de que “tal fórmula tem lugar entre os vermelhos, mas
definitivamente não aqui”. Gregor Strasser reclama uma aliança com a União
Soviética, “amiga da Alemanha em seu combate contra o Tratado de Paz de
Versalhes”; atrita-se com Alfred Rosenberg, para quem os comunistas são os
inimigos mortais do Partido. Mesmo o problema dos judeus não reúne a
unanimidade, tantas são as diferentes formas de antissemitismo no seio do
Partido. Assim, Goebbels: “A questão judaica é muito mais complicada do
que se supõe. Como é diferente um judeu capitalista de um judeu
bolchevista!”
Hitler sabe explorar maravilhosamente, para seu benefício pessoal, todas
essas animosidades. Político de envergadura, alimenta onde pode o fogo das
rivalidades, mas mantém a unidade por intermédio da SS e impõe-se a todos
como único traço de união possível entre as diversas tendências. Tanto mais
se agravam as dissensões internas, tanto mais elas se multiplicam, mais Hitler
vai-se transformando no papa do Partido. Rosenberg em Nuremberg: “Hitler
deixava crescer os grupos antagonistas, com pleno conhecimento de causa.
Isso permitia-lhe ser o árbitro e fazer o papel do Führer”.
Em 1925, os verdadeiros poderes de Hitler não ultrapassam as fronteiras da
Baviera. O Führer encontra dificuldades particularmente graves no Norte e no
Oeste da Alemanha, onde Gregor Strasser, farmacêutico em Landshut, seu
irmão, o Dr. Otto Strasser e o Dr. Joseph Goebbels têm as rédeas do Partido.
Além disso, suas idéias têm uma característica socialista. Reclamam a
nacionalização da indústria, e propõem uma aliança entre a Alemanha
proletária e a União Soviética. Hitler consegue romper esse triunvirato. Em
fevereiro de 1926, organiza uma sessão do Partido em Bamberg. Tomando
cuidado em permitir apenas a presença de uma minoria de adversários, faz
uma votação e vence-a. Cai o grupo Strasser. Goebbels e Gregor Strasser
passam para as fileiras de Hitler.
Entretanto, além das rivalidades no seio do Partido e dos conflitos que aí se
desenvolvem, que o Führer sabe conduzir em seu benefício, o problema-
chave é a SA. A maré de desemprego provoca um crescimento desmesurado
das tropas de Pfeffer von Salomon. Consciente de seu poder, a SA é cada vez
mais esquiva às ordens da direção política do Partido. Junta-se a isto a
mentalidade problemática das tropas. Certas unidades SA em Berlim contam
com 67% de desempregados. Entre esses desclassificados sociais há
elementos vindos do mundo do crime particularmente perigosos. Não é sem
desconfiança que a PO (Organização Política) vê crescer esse mar. Um surdo
descontentamento havia nas fileiras SA. Surge um slogan: “Adolf nos trai, a
nós proletários!” Circulam panfletos: “Nós, proletários, estamos sempre
contentes! É com alegria que morremos de fome porque sabemos que isso
permite ao nosso bem-amado Führer comprar uma Mercedes por quarenta mil
marcos…” A situação se torna explosiva em Berlim e o Führer decide ir
pessoalmente à cidade. Encontra-se com Walther Stennes, Oberführer SA, faz
soar os tambores e exorta a todos a que se mantenham fiéis. Em l.° de
setembro de 1930, festeja-se a reconciliação. Hitler compromete-se a ouvir os
conselhos de Stennes no que se refere aos problemas da SA berlinense e
despedem-se “bons amigos”.
Consciente do perigo da SA, Hitler está agora decidido a limitar o seu papel
ao de polícia interna do Partido. Pfeffer von Salomon manifesta o desejo de
deixar seu posto; Hitler toma o lugar à frente da SA e lembra-se da frase de
Röhm, agora emigrado na Bolívia: “Basta que me faças saber qual o dia, qual
a hora, qual o lugar, e aí eu estarei!” Pede a Röhm para voltar e dá-lhe mão
forte.
Antes mesmo da chegada de Röhm, Hitler inicia uma ação que no futuro
tomará as características de idolatria ao Führer: em 3 de setembro de 1930, o
comissário-chefe do estado-maior SA, Wagener, informa a todos os
representantes do OSAF que devem “prestar juramento solene de lealdade a
Adolf Hitler, chefe supremo da SA do Partido”. Adolf Hitler acabara de dar o
primeiro passo no sentido do domínio total do NSDAP.
Mas esse culto ao Führer ainda não era geral e a SS logo entraria em ação
para varrer os últimos hesitantes.
A centralização da SA conduzida por Hitler e o novo chefe do estado-maior
SA, Röhm, já de regresso da Bolívia, enfrentam a severa oposição de Stennes
e seus aliados. Röhm é informado por Kurt Daluege, SS Führer em Berlim, do
boato que circula entre os amigos de Stennes: “Neste l.° de abril de 1931, às
4h30min da manhã, um dos meus espiões informou-me que o Gruppenführer
SA Ost Jahn anunciou, numa reunião secreta de partidários de Stennes, que
nosso Führer vai demitir Stennes de suas funções de Gruppenführer. Durante
a reunião todos os oficiais presentes se declararam ao lado de Stennes contra
Hitler!”
Em 2 de abril, os aliados de Stennes ocupam os escritórios da Gauleitung de
Berlim e as oficinas do jornal nazista Der Angriff. A SS tenta opor-se, mas é
derrotada por seus adversários mais numerosos. Esta revolução palaciana
estende-se rapidamente a todo o Norte e Leste alemães. Os chefes SA de
Brandenburgo, de Hesse, da Silésia, da Pomerânia, do Mecklemburgo
declaram-se solidários a Stennes. Mas o fogo apaga-se tão rápido quanto se
desenvolvera. As caixas SA esvaziam-se rapidamente. O movimento é
atacado por paralisia causada pela falta de dinheiro. Herman Goering é
encarregado por Hitler de depurar da SA os partidários de Stennes e o antigo
Oberleutnant Paul Schulz, companheiro de Gregor Strasser, é designado para
reorganizar a SA do Leste.
Hitler faz um elogio público da SA, cuja vigilância lhe permitiu a vitória
sobre Stennes, e envia a Kurt Daluege uma palavra que figurará mais tarde no
cinturão dos SS: “SS, tua honra é a tua fidelidade”. Onde quer que a
autoridade de Hitler fosse ameaçada, ela interviria imediatamente. Himmler
declara durante uma reunião geral dos chefes da Ordem: “Nem todos gostam
de nós. Feito o trabalho, pode ser que nos ponham de lado. Não devemos
esperar receber sinais de gratidão. Mas nosso Führer sabe o que nós somos e
valemos. É a nós que ele prefere entre todos, pois nunca o decepcionamos”.
Novas ordens de Himmler tendem a aumentar ainda mais a eficácia da
Schutzstaffel. As unidades SS dividem-se em seções de 3 a 5 homens,
responsáveis por uma rua ou um quarteirão. A disciplina torna-se ainda mais
dura. Três ausências não justificadas e o SS faltoso é expulso da Ordem. Os
chefes de unidade devem velar constantemente pela boa apresentação de seus
homens, submetidos a um treinamento contínuo.
Paralelamente à nova regulamentação, um véu impenetrável é lançado sobre a
organização interna e as diversas atividades da Ordem. Ninguém terá mais o
direito de examinar a SS, nem mesmo os membros do Partido ou a SA. A
ordem seguinte é dada por Daluege: “Proíbo toda discussão entre SS e SA ou
civis, membros do Partido ou não, sobre o papel, a finalidade etc… da SS. E
se forem lançados ataques contra nós durante reuniões, ordeno que os
membros da SS que os sofrerem não aceitem a luva, mas retirem-se
imediatamente, limitando-se a dizer que a SS executa as ordens de Adolf
Hitler”.
Nessa época, a SS começa a cumprir uma de suas maiores tarefas, a de
descobrir os adversários do Partido e, no interior dele, os elementos hostis a
Hitler.
Já em 1925 a SS colecionava informações confidenciais sobre a vida privada
de certos membros do Partido. Mas isso era uma atividade marginal e
episódica. Com o correr do tempo ela se tornaria uma das ocupações das
tarefas básicas da Ordem. Cada unidade SS deveria fornecer todas as
informações relativas a grupos hostis ao NSDAP, tais como o Partido
Comunista, maçons, judeus, e tudo sobre fatos da política local. Essas
informações eram recolhidas pela direção central SS. É evidente que a
maioria delas servia apenas para alimentar cestas de lixo. O sistema ainda não
era muito sério. Himmler vai aperfeiçoá-lo. Em junho de 1931, decreta que
“as atividades bolchevistas estão se tornando cada vez mais perigosas e a luta
contra nossos adversários judeus e maçons será agora uma de nossas funções
mais importantes”; cria em cada Untergruppe SS um serviço especial
encarregado de espionar os adversários do nazismo dentro e fora do Partido.
Desde 1931, com a ajuda do ex-oficial de Marinha Reinhard Heydrich,
recentemente chegado ao Partido e à SS, Himmler organiza um serviço de
informações que, desenvolvendo-se, se tornará mais tarde o embrião da maior
organização de espionagem e de delação da história nazista: o Serviço de
Segurança ou SD (Sicherheitsdient).
O Sturmführer Heydrich revela-se um colaborador valioso neste assunto.
Rapidamente, a SS torna-se o serviço secreto mais importante do Partido.
Hitler constata que a SS é o único organismo a garantir a sua segurança
pessoal. Em 25 de janeiro de 1932, nomeia Himmler chefe da segurança da
Casa Parda, central do Partido em Munique, e diz-lhe que está incumbido de
tomar imediatamente todas as providências necessárias a uma defesa enérgica
do Partido contra as hordas comunistas.
Logo que Himmler se instala, um complot criminoso abala as bases da Casa
Parda. Os responsáveis eram, aliás, os funcionários da Casa e não os
adversários do Partido. Isto evidencia até que ponto a soberania exclusiva de
Adolf Hitler ainda era contestada. Ante o brilho de Stennes cada um se
indagava até que ponto Hitler poderia ir contra as concepções dos chefes SA.
O novo escândalo levantava uma questão: tinha Adolf Hitler o direito de
desprezar, como o fazia, os critérios morais do Partido? Os termos do
problema eram os seguintes: Hitler reinava sobre a SA, apoiando-se em um
homossexual, cujas depravações colocavam o exército revolucionário
nacional-socialista no nível de uma casa de tolerância. Este homem era Ernst
Röhm, o novo chefe do estado-maior da SA.
Röhm nunca escondeu seus gostos: “Eu não me incluo entre as pessoas
honestas e não tenho a pretensão de ser uma delas”. Às tentativas
governamentais de “regulamentar ou transformar os instintos humanos por
decretos”, opunha as famosas palavras de Richard Wagner: “Ilusões, ilusões,
isso são apenas ilusões”. Desdenhava os ataques de que era objeto por parte
de certos nacional-socialistas eminentes. Conhece-se a sua confidência ao
médico berlinense Heimsoth: “Estou em guerra aberta contra o Senhor Alfred
Rosenberg, o atleta completo da moralidade pública. Os artigos de seus
regulamentos visam sobretudo a mim, pois eu não escondo meus gostos”.
É claro, Hitler tinha conhecimento de que Röhm era homossexual. Declarava,
a quem quisesse ouvir, que a sua vida privada era assunto pessoal e ninguém
tinha nada a ver com ela. Quando Röhm ocupou as funções de chefe do
estado-maior da SA, Hitler disse ao Partido inteiro, para prevenir rumores,
que “a SA não é uma instituição moralista para filhas de boa família, mas uma
organização de rudes guerreiros”.
As práticas de Röhm não se limitavam entretanto ao “domínio privado”. A SA
não servia apenas às suas ambições políticas, mas também às suas distrações
eróticas. Homens de confiança arrebanhavam na SA companheiros para o
chefe do estado-maior e quando um deles dava sinais de infidelidade ou
fraqueza, era punido pela guarda SA de Röhm. Grande organizador dos
prazeres do chefe, essa era a função de Peter Granninger, velho conhecido de
Röhm, que recebia 200 marcos por mês para descobrir-lhe amigos
condescendentes. Pouco a pouco, à medida que iam ficando vagos os postos
importantes no estado-maior da SA, em resultado de transferências ou
depurações, como a de Stennes, os lugares eram ocupados por antigos
companheiros de prazeres de Röhm.
É o caso de Edmund Heines, comandante SA em Berlim, que Hitler afastara
da organização, em 1926, por essas mesmas razões. Idem quanto a Karl Ernst,
chefe do estado-maior do Gausturm de Berlim. Hitler, recebendo cada vez
mais reclamações contra as práticas do seu amigo Röhm, defende-se: a
homossexualidade de seu chefe de estado-maior não foi demonstrada. No dia
em que houver provas tangíveis, estudará o assunto etc.
Röhm cerca-se de precauções, para que as acusações não possam realmente
ser tangíveis. Apesar disso, cartas assinadas por ele são publicadas, em março
de 1932, pelo órgão social-democrático Münchner Post. Há pânico entre os
amigos de Röhm; ele próprio inquieta-se. Teme sobretudo que essas cartas
acabem sendo publicadas pela imprensa não-nazista. Encarrega então um
velho amigo, o jornalista e aventureiro Georg Bell, de uma missão singular.
Bell, agente nazista de informação, que recebia também 300 marcos mensais
dos socialdemocratas, a quem tinha obrigação de fornecer informações sobre
o NSDAP, deve ir ao encontro do ex-Major Mayr — em companhia de quem
Röhm descobrira Hitler em 1919 —, agora transformado em um dos
dirigentes democratas mais influentes. Bell deveria obter do major a garantia
de que as cartas de Röhm nunca seriam publicadas pela imprensa
democrática. Bell contará mais tarde: “Mayr sabia tudo, absolutamente tudo”,
e Röhm responderá: “Esses canalhas querem realmente nossa pele”. Röhm
disse-o muito bem, pois seus inimigos pardos haviam agora decidido a sua
derrota. Hitler havia-se recusado mais uma vez a dispensar o amigo. Então os
SS entraram em ação. O juiz supremo do Partido, Buch, apóstolo da justiça
nacional-socialista, concebeu e executou um plano com o objetivo de
assassinar o chefe do estado-maior da SA e quatro de seus colaboradores.
O major Buch começa prudentemente a trabalhar. Confia em um de seus
amigos, o ex-Standartenführer Emil Traugott Danzeisen, com quem
organizara antes a seção do NSDAP em Baden.
Em primeiro lugar são visados os Standartenführer Uhl, o Conde Spreti, o
Conde Du Moulin Eckart e Bell, confidentes e colaboradores diretos de
Röhm. Danzeisen constitui um comando de assassinos e põe à sua frente um
indivíduo chamado Karl Horn. Em 16 de março de 1932, Horn recebe de
Danzeisen, que se acha afastado provisoriamente para cuidar de assuntos da
causa na Áustria, instruções precisas, que lhe são transmitidas sob o
pseudônimo de “Wieland II”, sobre a maneira de “liquidar” Uhl, Du Moulin
Eckart, Spreti e Bell. Quanto a Bell, oito homens são encarregados de
surpreendê-lo, matá-lo com um golpe de martelo e pendurá-lo, deixando-lhe o
sinal de uma cruz gamada. Depois deles, seria a vez de Röhm.
O Conde Du Moulin Eckart, chefe dos serviços de informações da SA, seria
liquidado por Horn em um acidente automobilístico simulado. Mas Horn,
enche-se de escrúpulos, vai a Du Moulin Eckart e conta-lhe tudo. Du Moulin
Eckart compromete-se a dar-lhe mão forte para desvendarem todo o complot.
Horn aceita.
Uma armadilha é preparada para o grande mestre de cerimônia Buch. Horn
entra em comunicação telefônica com ele em Munique:
Horn: — Aqui Horn, em Karlsruhe. Preciso falar-lhe o mais depressa
possível!
Buch: — Venha hoje, às 4hl5min, à estação de Holzkirch.
Horn: — Como o encontrarei?
Buch: — Usarei um short pardo, uma camisa parda, um casaco pardo, um
casacão cinza aberto e um chapéu cinza.
Mas no encontro, Buch mostra-se mais astucioso do que Horn. Adivinhando o
jogo, diz que todo o plano vai ser modificado. As informações reunidas sobre
o Conde Du Moulin Eckart estavam erradas. Vai-se voltar atrás. Que Horn
envie imediatamente um telegrama a Danzeisen redigido desta forma:
“Noivado com Helena rompido”. No dia seguinte, Horn é quase assassinado
por três tiros de revólver. Percebe que Buch o estava enganando. A SA toma a
Horn sob seu manto protetor.
É então que Himmler entra em cena. Ele pretende proteger Röhm das
tentativas criminosas de Buch e seus comparsas. Em 24 de março de 1932,
Horn toma conhecimento de que Himmler “pôs o major B no alvo e que todo
o assunto deve ser tido como encerrado”. Mas Röhm não tem confiança em
Himmler. Refugia-se com Bell em Berlim e vai pedir conselho a seus
adversários políticos. Pede a Mayr que lhe forneça informações capazes de
culpar a Paul Schulz, encarregado da reorganização da SA e que ele suspeita
fazer parte do complot.
Himmler entra pela segunda vez em cena. Desta vez em Berlim, na casa onde
Röhm se refugia. É difícil dizer exatamente o papel de Himmler nesta
ocasião. O fato é que conseguiu convencer Röhm a voltar a Munique. Mas era
tarde demais: nem Himmler poderia impedir que o escândalo estourasse
abertamente. Spreti e Du Moulin Eckart, tomados de pânico, apresentaram
queixa à polícia contra Buch e seus acólitos. Em outubro de 1932, Emil
Danzeisen é condenado a seis meses de prisão. Horn descansa.
O processo de Danzeisen suscita verdadeiro escândalo público. As práticas
homossexuais do grupo de Röhm na SA tornam-se assunto público. O que é
pior: tornam-se também públicas as negociações secretas entre Röhm e seus
amigos e o Major Mayr, representante dos adversários democráticos do
Partido, tudo para confundir o juiz nazista Buch. “Eis o que ultrapassa os
limites do entendimento”, proclama em altos gritos Martin Bormann, genro e
confidente de Buch. “Como! Um dos mais eminentes chefes do Partido alia-
se a um dos mais eminentes chefes dos inimigos do Partido! E tudo isso para
tramar a queda de alguns nacional-socialistas que os incomodava!” Do
lamaçal pardo vinha um odor de crime. Tanto mais ele se espalha, mais os
olhares se voltam para a Ordem de Heinrich Himmler: Bormann escreve ao
secretário de Hitler, Rudolf Hess, em 5 de outubro de 1932: “Veja a SS: você
conhece bem Himmler, não é? E você sabe bem quais são seus talentos?”.
Fora do Partido começa-se também a considerar a SS como um exército de
puritanos prontos a resolver a sorte deste grupo indigno de chefes da SA.
Himmler dissera em 13 de junho de 1931 a seus chefes SS: “Isto talvez vá
durar alguns meses, talvez apenas alguns dias. Mas virá uma decisão, disso
não tenham dúvida. E veremos então o que Führer espera de nós”.
A SS não precisará ficar impaciente muito tempo. O 30 de janeiro de 1933
não está longe. Já se está preparando a “Noite dos Grandes Facões”. Mas
ainda não se sabe a quem caberá a glória: à SS ou à SA?

A Tomada do Poder

Os PRIMÓRDIOS do III Reich reservam uma grande decepção a Heinrich


Himmler. Ninguém oferece ao Reichsführer SS a posição-chave que ele
ambiciona. A SA continua encarregada de assegurar a ordem na rua e
perseguir sem trégua os não-nazistas; os colaboradores diretos de Adolf Hitler
tomam em suas mãos os destinos do Estado; Himmler e a SS não estão
aparentemente entre os pilares de sustentação do novo regime.
Alguns chegam a pensar que Himmler foi abertamente afastado pelo Führer.
Ele, que contra ventos e marés havia garantido o lugar preponderante de
Hitler no seio do Partido, parecia agora o grande perdedor. Göring, Goebbels,
Frick e todos os outros obtinham importantes mandatos governamentais.
Himmler, o pálido e diligente factótum do Führer, estava inteiramente
ignorado.
Mesmo o golpe de estado de Munique, em 9 de março de 1933, não foi
confiado ao Reichsführer SS, mas ao antigo comandante do estado-maior de
Röhm, Franz Ritter von Epp. Também é ele, e não Himmler, que será
nomeado Reichsstatthalter na Baviera.
Ainda mais grave: enquanto Himmler morde o freio, seu mais perigoso rival
no seio da SS, o Gruppenführer prussiano Kurt Daluege, protegido por
Hermann Göring, que detesta cordialmente Himmler, sobe a funções da maior
importância. Göring consegue a nomeação de Daluege para comissário de
Estado do governo prussiano, com o grau de tenente-general da polícia.
Daluege, consciente de ser, depois de Napoleão, o mais jovem general da
História, não vê agora qualquer motivo para considerar-se subordinado a
Himmler. Declara-se a guerra entre os dois.
Para fazer voltar Daluege à razão, Himmler coloca ao seu lado o mais eficaz
de seus colaboradores, Reinhard Heydrich, que se tornara Standartenführer
SS. Heydrich tem por missão informar Himmler das manobras que
provocaram a rebelião de seu subordinado. Arruma a bagagem, vai a Berlim,
aluga uma casa e procura obter uma entrevista com o pseudo-Napoleão criado
por Göring.
Na primeira tentativa, fazem-lhe saber que o Senhor General não poderá
receber o Standartenführer, por estar com todo o seu tempo tomado. Outras
tentativas têm o mesmo insucesso. Como Heydrich não se dá por vencido, a
polícia secreta de Göring faz pressão sobre ele, ameaçando-o de maus
tratamentos. O mensageiro do Reichsführer compreende então que está
perdendo tempo e volta a Munique.
Himmler e Heydrich percebem que o seu poder não é incontestável. O III
Reich não parece nem um pouco com isso que os teóricos chamam de um
Estado totalitário. Desde 30 de janeiro de 1933, o aparelho do Estado é palco
de todas as rivalidades pessoais, de todas as competições possíveis e
imagináveis. Se se pretende ter alguma influência na Alemanha de Hitler, é
preciso encontrar já os fios dessa teia.
“O objetivo da revolução nacional”, dissera Goebbels, “deve ser o Estado
total, capaz de cobrir e penetrar em todos os domínios da vida pública”.
Hitler, por seu lado, proclamara “a edificação da totalidade do Estado” e Frick
transformara-se no profeta de um “governo forte, cuja ação não será
prejudicada por interesses de pessoas, grupos e classes, por privilégios de
partidos ou parlamentos”.
A realidade do 30 de janeiro de 1933 é completamente diferente. Os partidos
da democracia cedem lugar a uma extraordinária multiplicidade de clãs
nazistas adversos; o Reichstag e seus incertos problemas de maioria
desaparecem para dar lugar a outra forma de parlamentarismo: a luta de
competência entre diferentes grupos e interesses nacional-socialistas.
Visto do exterior — e de longe — o NSDAP apresenta-se como um
gigantesco monólito. Na realidade, é um conglomerado heterogêneo de
facções e de opiniões diferentes, espelho fiel de uma sociedade alemã
sacudida pela derrota, amolecida pela inflação, pelo desemprego, pela queda
da democracia.
O historiador americano Robert L. Koehl divide o partido de Hitler em quatro
grupos fundamentais: em torno do Führer, uma clique de veteranos, núcleo do
nazismo, verdadeiros fundadores do Partido; próximo a esse núcleo, um
grupo de individualistas radicais de direita, doutrinadores do racismo em
geral, que aderiram ao Partido entre 1925 e 1929, enquanto a burguesia ainda
olhava os nazistas com olhos de desconfiança. Terceiro grupo, uma
“combinação de nacionalistas camponeses e socialistas pequeno-burgueses”,
levados ao Partido pela depressão econômica entre 1930 e 1933; trata-se de
pequenos comerciantes, operários especializados, camponeses seduzidos pela
dinâmica da “Revolução Nacional”. Enfim, quarto grupo, a grande burguesia,
convertida em último lugar ao “partido da renovação alemã”; trata-se de
militares, funcionários, homens de negócios que pensam seriamente em
voltar, com Hitler, à Alemanha e ao mundo anterior a 1913.
Antes de 30 de janeiro de 1933, os conflitos são de ordem interna e traduzem-
se pelas dificuldades encontradas por Hitler em ser o único chefe do Partido.
Depois dessa data, o pluralismo interno tem um desaguadouro nos assuntos
do Estado. O tão apregoado Estado totalitário chega ao grotesco, tanto mais
que Hitler, em consequência das circunstâncias particulares que o levaram ao
poder, é forçado a formar um Governo onde figuram os políticos dos partidos
burgueses de direita e funcionários conservadores.
Os órgãos tradicionais do Estado estão agora bloqueados por órgãos paralelos
de obediência nazista. Os Negócios Estrangeiros são duplicados no bureau
nazista de política exterior, ao qual se acrescentará ainda o escritório de
Ribbentrop. O mesmo acontece nos setores da Justiça e da Economia. Essas
primeiras criações nazistas “paralelas” vão-se desdobrando pouco a pouco e
multiplicando-se em consequência dos poderes que se atribuem, e ao sabor de
circunstâncias e de influências momentâneas ou não, conforme fossem os
chefes de facções, de clãs, de movimentos nazistas. Estados nascem dentro do
Estado. O Reichsjugendführer (chefe dos movimentos de juventude) Baldur
von Schirach procura criar, por sua própria iniciativa, “um Estado de jovens
no interior do Estado”. Enquanto isso, o SA Gruppenführer de Turíngia,
Lasch, quer a edificação de um Estado SA, segundo ele encarnação perfeita
das concepções políticas nacional-socialistas.
Quanto a Himmler, nunca deixará de sonhar muito alto com um Estado SS.
Mas não valem os que sonham, os que projetam, os que planejam; valem os
que realizam. Certos dirigentes nazistas, particularmente ávidos de poder,
seguram tudo o que lhes cai às mãos. Já primeiro-ministro da Prússia e
Reichsminister da Aviação, Göring retira do Ministério da Agricultura até a
Repartição de Águas e Florestas, colocando-a sob sua dependência pessoal e
proclamando-se seu chefe com o título de Reichskulturkammer, para logo
depois entrar em conflito com outro serviço já existente e dirigido por
Berhard Rust.
Não há um só dos sátrapas de Hitler que não pretenda desfrutar de privilégios
já oficialmente conferidos e exercidos por algum outro: Robert Ley, diretor do
serviço político do NSDAP e chefe do Front Alemão do Trabalho (Deutsche
Arbeiterfront ou DAF), pede que os altos funcionários de seus serviços sejam
reunidos sob a bandeira de uma ordem nacional-socialista. Himmler opõe-se a
isso: trata-se de um privilégio da SS, que reúne a única elite verdadeira e
suscetível de estar no nível de uma Ordem Oficial do Partido. Alfred
Rosenberg discorda: não é evidente que a sua organização está preparada a
desempenhar esse papel? Certamente não, pois se se acreditar no chefe de
estado-maior Röhm, o NSDAP já dispõe virtualmente de uma Ordem em boa
e devida forma: a SA.
Além deste labirinto de pretensões individuais, de intrigas e cabalas, outra
fonte de conflitos brota do próprio coração do Estado nacional-socialista: a
controvérsia permanente entre o Estado e o Partido, problema que, afinal, é a
variante tipicamente nazista do conflito tradicional entre Reich e Ländern,
entre poder central e Estados federados. O Ministério do Interior, confiado ao
Dr. Wilhelm Frick, contava com certo número de funcionários nacional-
socialistas que defendiam com extremo vigor a noção do Estado total
anunciado por Hitler. Pretendiam edificar um Estado administrativo absoluto
de tradição prussiana e restringir o papel do Partido à propaganda. A
burocracia do Partido, como seria licito esperar, é completamente hostil a tais
projetos. E tem seus motivos: tal centralização administrativa lançaria luz
sobre os tenebrosos labirintos de privilégios e de competências utilizados
pelos gauleiter que reinavam como senhores feudais.
Esta é a verdadeira face do suposto Estado total de Adolf Hitler. Esta é a
verdadeira face desse Estado forte, cuja ação não deveria ser prejudicada nem
por grupos, nem por classes, nem por partidos. Mas nessa confusão “tão
problemática quanto um sultanato oriental” (Trevor-Roper), qual o lugar da
SS? O Reichsführer vai fazer a si mesmo esta pergunta, na primavera de
1933, depois do insucesso da missão de Heydrich em Berlim.
Heinrich Himmler não tem escolha. Esperar a sua hora, eis tudo o que pode
fazer. Por enquanto, continua a desempenhar da melhor forma possível o
papel que lhe foi confiado há muito tempo: proteger a vida de seu ídolo Adolf
Hitler, garantir a soberania do Führer. Este papel, ele o cumpre com a
aplicação costumeira. Como chefe de polícia de Munique, mais de uma vez
tem oportunidade de chamar a atenção de seu bem-amado chefe e de provar-
lhe o quanto havia errado em não lhe atribuir postos-chave do Estado.
Já em meados de março, o chefe de polícia Himmler detém preventivamente
um homem que o antigo estudante Himmler quisera libertar da prisão: o
Conde Arco-Valley, assassino de Eisner. Motivo da prisão: “Arco-Valley
projetava atentar contra a vida do Chanceler Adolf Hitler”. Duas semanas
mais tarde, outra façanha de Himmler: descobre “um projeto de atentado a
granada contra a pessoa do Führer”. Sabe-se que “três agentes soviéticos”
dissimularam granadas próximo do monumento a Richard Wagner, no próprio
lugar onde o automóvel de Hitler passa todos os dias. O onisciente chefe de
polícia chama a atenção do povo e de seu Führer: “Informações procedentes
da Suíça fazem-nos temer novas tentativas de atentados contra o Chanceler do
Reich e outras personalidades eminentes”.
Astuto, Himmler não poupa esforços para dar a esses pequenos atentados a
maior publicidade possível. Sabe que este é o ponto mais sensível do Führer,
que vive em perpétuo temor de ser vítima de um assassinato. Não suporta
qualquer rosto desconhecido perto de si. Desconfia de todos e de tudo, não
considera jamais suficientes os dispositivos de segurança que o cercam.
“Um dia”, diz ele, “um homem virá alugar um apartamento na
Wilhelmstrasse. Um apartamento de último andar. Um homem insignificante.
Vai passar por um mestre-escola aposentado. Um bom cidadão com óculos de
aro de chifre e barba pouco cuidada. Ninguém o visitará, porque ele não
convidará ninguém à sua mesa. Instalará em seu apartamento uma arma de
precisão. Depois, dia após dia, hora após hora, com uma paciência obstinada,
observará o balcão da chancelaria através da luneta de sua arma, o dedo sobre
o gatilho. E um dia a chance lhe sorrirá; então ele apertará o gatilho”.
Hitler não se sente seguro em parte alguma, e esta obsessão piora cada vez
mais. Quem poderia encontrar a solução para o espinhoso problema senão o
fiel Heinrich? Hitler ordena ao comandante SS que constitua uma guarda (a
terceira na história da SS) destinada à sua segurança pessoal. A direção dessa
guarda será confiada ao Gruppenführer SS Josef (Sepp) Dietrich.
Sepp Dietrich reúne cento e vinte homens, destinados a formar, em qualquer
ocasião, três cordões de segurança em volta de Hitler. Em setembro de 1933,
por ocasião do Reichsparteitag de Nürenberg, o Chanceler batiza sua guarda
de Leibstandarte SS Adolf Hitler. Sem o saber, Hitler acaba de assinar a
certidão de nascimento de uma segunda Wehrmacht: a futura Waffen-SS.
O exemplo da Leibstandarte Adolf Hitler leva Himmler a criar outras tropas
especiais, os comandos especiais SS (SS Sonderkommando), chamados mais
tarde de comandos políticos (Politische Bereitschaften). Numerosas
formações pseudo e parapoliciais já existiam em diferentes regiões da
Alemanha; as de Himmler vêm-se juntar a elas. É durante o verão de 1933
que as tropas de Himmler entram pela primeira vez em ação. Em Ellwangen e
Reutlingen, a SS constitui-se em comando político com a força de 800
homens e, por ordem da polícia política, executa uma caçada aos democratas.
Formações semelhantes são criadas pouco depois em Dresden, Munique,
Hamburgo e Arolsen, onde se repetem semelhantes caçadas humanas.
Desta forma, Himmler consegue de uma só vez estender seu poder policial
para lá das fronteiras da Baviera. Além do mais, como dispõe de tropas
melhor treinadas e mais disciplinadas, os responsáveis por policias locais
pedem-lhe frequentemente ajuda e conselho.
Entretanto, na Baviera, Himmler sabe ponderar sua situação. Consegue que a
polícia política bávara seja colocada sob suas ordens, recebe o título de
Politischer Polizei Kommandeur e a direção de um serviço especial do
ministério bávaro do Interior. Aí tem oportunidade de provar seus talentos e
de mostrar a todos como concebe a tarefa de uma polícia nazista digna deste
nome. Persegue os adversários políticos do Partido com uma obstinação
precisa e fria de burocrata, tempera os excessos de certos chefes da SA contra
adversários que os amolam e que estão sem defesa, arroga-se o privilégio
exclusivo de decisão em matéria de prisões de padres católicos.
Paralelamente, faz do terror político um sistema organizado. Manda edificar
próximo a Dachau um conjunto de barracas cercadas e aí reúne comunistas e
socialdemocratas presos por seus homens. Nasce um novo termo:
Konzentrationslager (KZ). Este termo vai-se tornar rapidamente o símbolo do
império policial de Heinrich Himmler.
A criação do KZ-modelo de Dachau chama a atenção de todas as polícias
alemãs para Himmler e para a perfeita organização de seus serviços.
Prevalece, desde então, o sentimento de que Himmler acabará por impor-se
como chefe da polícia do Reich. O Reichsführer já está elaborando o projeto
de uma polícia única com poderes sobre o conjunto do território alemão: “Eu
quero acabar com as dezesseis polícias locais, refundir tudo isso, criar uma
Reichspolizei. Tal polícia é a melhor garantia de um Estado”. Durante o verão
de 1933, Himmler trabalha nesse projeto com o chefe da seção SS de polícia
em Hesse, o Scharführer SS Werner Best. Best concorda em colaborar com
sua realização. Heydrich, por seu lado, procura ganhar pessoas influentes para
a idéia de uma polícia nacional. Muitos funcionários de polícia, mesmo
alguns formados pelos métodos da antiga escola, declaram-se prontos a apoiar
a ação do Reichsführer SS. O seu conceito vai aumentando.
As ambições de Himmler são prejudicadas por um muro que lhe corta a
metade da Alemanha. Este muro é Hermann Göring, primeiro-ministro da
Prússia, que nutre ambição igual à do Reichsführer SS. Os dois desejam
dirigir soberanamente o aparelho policial nazista. Mas o rei sem coroa da
Prússia possui sobre seu rival uma séria vantagem: já está reinando sobre a
polícia prussiana. E a polícia prussiana é o elemento-chave de toda a polícia
nacional.
Desde sua tomada do poder na Prússia, Göring havia colocado a mão sobre a
polícia. Criara imediatamente um corpo de “polícia especial”, que se ocupara
em depurar o aparelho policial prussiano de todos os elementos hostis ao
regime. 1.457 funcionários já haviam sido demitidos. Paralelamente, Göring
havia incorporado os serviços da seção IA da chefia da polícia de Berlim, de
onde deveria nascer mais tarde a temível polícia política da Prússia.
Göring encontrou em Rudolf Diels, conselheiro de Estado no Ministério
prussiano do Interior, um auxiliar de extrema sagacidade para a realização de
suas ambições policiais. Diels, não-nazista, aparentado com Göring, assumiu
a direção da famosa seção IA.
Diels contrata os serviços de numerosos criminalistas. A seção cresce
rapidamente: 60 homens no princípio; logo chegará a 250. Através de
decretos bem preparados, Göring assegura-lhe completa autonomia no seio da
administração prussiana. Cria um escritório político de informações, que se
tornará a polícia secreta do Estado. Imediatamente, decide-se que esse
escritório não ficará submetido ao parágrafo 14 da Constituição prussiana, o
qual estipula que “a ação da polícia deverá estar conforme as leis em vigor”.
Essa polícia política abandona as salas que ocupava na chefatura de polícia na
Alexanderplatz, em Berlim, e instala-se, metade na antiga Karl Liebknecht
Haus, metade em Prinz Albertstrasse n.° 8, não longe da residência de Göring.
No fim do mês de abril, os serviços de Diels são batizados com o nome de
Polícia Secreta do Estado, Geheime Staatspolizei ou Gestapo, e colocados sob
a autoridade exclusiva e absoluta de Hermann Göring.
A posição policial de Göring, embora esteja agora assegurada, não é
incontestável: o sátrapa da Prússia enfrentaria muito em breve a ameaça de
um poderoso rival, a SA.
Göring ordena que todos os meios sejam utilizados “para varrer as
organizações hostis ao Estado”. “Sobretudo”, diz ele, “que não se hesite em
usar armas, se necessário”. Dirigindo-se às tropas SA, ele exclama: “Aqui eu
não tenho de executar a justiça, mas de demolir e destruir, isso é tudo!” Tais
declarações são quotidianas. Com o passar do tempo, tornam-se cada vez
mais brutais e odientas. “A luta contra o comunismo não poderá ser conduzida
por processos comuns. É um combate extremo o que eu conduzo à frente dos
camisas pardas. Mostrarei ao povo que ele precisa defender-se”. Mas quando
o pessoal de camisa parda entrar realmente em ação contra os inimigos
imaginários do Estado, o próprio Göring ficará surpreso e aborrecido pela
extrema violência de suas tropas. Todos os baixos instintos e ressentimentos
acumulados nas fileiras da SA, estimulados durante tantos anos pelos
propagandistas oficiais, têm agora curso livre; a Prússia inteira torna-se presa
do furor da SA.
Os comandos SA varrem cidades e campos. Distinguem-se particularmente
em Berlim, onde mantêm mais de cinquenta microcampos de concentração
instalados em adegas, garagens, depósitos e galpões. Suas vítimas são
espancadas até a morte, torturadas, enforcadas. Mas Berlim não tem a
exclusividade de tais procedimentos. O interior é presa do mesmo terror: em
Sonnenburg, Bornim, Königswusterhausen, Kemma, os mesmos processos
estão em prática. Göring percebe então que a SA escapou ao seu controle. A
maioria dos prefeitos de polícia prussianos leva o uniforme da SA e os
conselheiros SA estão presentes em todas as administrações. Considerando
esse fato, Göring constata a fragilidade da soberania que exerce sobre o maior
Estado alemão.
Apesar dos reiterados conselhos de Diels, Göring hesita em iniciar a batalha
contra a SA. Mas Diels não tem as hesitações do chefe. Resolve limpar com a
sua Gestapo, um a um, os esconderijos da SA em Berlim, e liberta os
prisioneiros que aí estão encerrados, a maioria deles em estado lamentável. É
claro que isso não acontece sem problemas e sem provocar mais de um atrito
entre a Gestapo e a SA. Em fins de maio, não há mais campos da SA.
Mas não terminaram os problemas para o chefe da Gestapo. Enquanto se
agrava o conflito com a SA, os partidários de Himmler, aproveitando as
circunstâncias, infiltram-se discretamente nos assuntos propriamente
prussianos. Diels percebe que a SS ameaça ainda mais seriamente do que a
SA a soberania de Göring na Prússia. Surge uma pequena guerra
administrativa entre a Gestapo e a SS, onde alternadamente uma ou outra
obtém pequenas vitórias. Mas os homens de Himmler estão bem colocados. O
Reichsführer SS mantém-se informado dos menores movimentos de Göring.
E desde outubro Himmler acredita ter chegado a hora de tentar a jogada
decisiva contra Göring. Pede a Hitler autorização para transferir os serviços
centrais do SD e da SS de Munique para Berlim. Ao mesmo tempo, tenta em
Berlim uma ação contra o chefe da Gestapo, Diels, o mais duro adversário da
SS. A tentativa, levada a efeito por Herbert Packebusch, braço direito de
Daluege, fracassa. Surpreendido por Diels a mexer em seus papéis,
Packebusch é dominado por dois homens da Gestapo e colocado a ferros.
Diels saboreia o triunfo, sem saber que o seu amanhã é sombrio. Com efeito,
no dia seguinte, Kurt Daluege visita Göring e comunica-lhe o motivo que
levou seu camarada Packebusch a agir daquela maneira: Diels é suspeito de
querer apoderar-se da SS de Berlim. Göring não apoia seu auxiliar e manda
que libertem Packebusch. Diels compreende a lição: Göring não quer lutar de
frente contra a SS. Duas semanas mais tarde, saberá que a polícia da SS
investiga seus serviços por ordem de Göring. Tomado de pânico, reúne sua
bagagem e refugia-se em Karlsbad, esperando um momento em que possa
enxergar mais claro.
Mas Göring consegue vencer a tentativa da SS na Prússia: Hitler proíbe a
transferência dos serviços da SS de Munique para Berlim. Pequeno consolo
para o Reichsführer: obtém a autorização para instalar uma seção do SD na
Spree, cuja responsabilidade é confiada a um amigo de Reinhard Heydrich, o
Dr. Hermann Behrends, filho de um hoteleiro de Kiev. A outro homem de
confiança de Heydrich, o Hauptsturmführer SS Heinz Jost, é confiado o
trabalho de representar o Reichsführer SS junto aos serviços centrais da
Gestapo.
Aí terminam os poderes de Himmler no império de Göring. Göring
tranquiliza o chefe da Gestapo, de volta de seu exilio em Karlsbad: ‘‘Himmler
e Heydrich nunca se estabelecerão em Berlim”. Além disso, o Reichsführer
SS é forçado a fazer a paz com Göring e com Diels a quem é conferido o
direito, por decreto de 9 de novembro de 1933, de usar o uniforme de
Standartenführer SS.
A segunda tentativa de Himmler para quebrar o império policial de seu
camarada Göring termina com resultados bastante modestos. Mas eis que o
Reichsführer SS descobre um aliado inesperado para prosseguir sua luta
contra o sátrapa prussiano: este aliado é o Ministério do Interior do Reich
dirigido pelo Dr. Wilhelm Frick. Desde as eleições do Reichstag de 9 de
novembro de 1933, Frick estava decidido a obter a abolição da soberania dos
Länder nos setores onde as províncias ainda tivessem liberdade. Os Länder,
em consequência da reforma projetada, não devem ser mais do que
representações locais para a aplicação de decisões tomadas por uma
administração central instalada em Berlim. Problema particularmente
espinhoso: a polícia. Os dezesseis Länder alemães dispõem, na realidade,
cada um de uma polícia particular sobre a qual o poder central não tem o
direito sequer de olhar. Os centralistas de Frick pensam que o controle das
polícias da Alemanha lhes deve caber.
Advertido desses projetos, Göring adianta-se. Em 30 de novembro de 1933,
um decreto torna a Gestapo autônoma, separada do resto da administração
prussiana. Assim, Göring faz fracassar a tentativa do Ministério do Interior de
estender suas mãos sobre a polícia local.
Frick não tem como impor a Göring sua lei: sua influência no Partido é
limitada; por outro lado não está muito bem com Hitler. Não é de estranhar-
se, então, que os olhares dos centralistas se voltem para Himmler. Não jurou o
Reichsführer retirar os poderes policiais desses a quem ele chama
“Gaufürsten”?; e não dispõe ele do poder necessário para a realização desse
plano?
Os colaboradores de Frick têm, sem dúvida, a bênção de Hitler e, apoiados
pelo Reichsführer SS, começam o ataque ao separatismo prussiano.
Discretamente assistido pelo Ministério do Interior, Himmler começa a
assumir o comando de diversas polícias locais. Um Länd após outro cai em
suas mãos. Em novembro de 1933, é nomeado chefe da polícia de Hamburgo,
de Lübeck, de Mecklemburg-Schwerin. Em dezembro de 1933, assume a
chefia da polícia política de Anhalt, Baden, Bremen, do Hesse, da Turíngia e
de Wurtemberg. Em janeiro de 1934, de Brunswick, de Oldenburg e do Saxe.
Enquanto isso, neste mesmo mês de janeiro, Frick apresenta seu projeto de lei
sobre “a reorganização do Reich”, já estando Himmler com o controle de
todas as polícias da Alemanha, exceção das da Prússia e de Schaumburg-
Lippe. É claro que Göring não está decidido a ceder. Mas ele se entrega com
desespero às escaramuças. Pouco a pouco perceberá que a causa está perdida.
O terrorismo SA, cujos primeiros efeitos já se mostraram na primavera de
1933, espalhou-se agora por todo o território alemão. O passo cadenciado das
colunas pardas ressoa cada vez mais forte sobre as ruas alemãs, e cada vez
mais forte tocam os tambores que os precedem e as fanfarras guerreiras que
lhes acompanham. São agora quatro milhões de homens. Estão sedentos de
revolução e de poder.
Göring percebe cada vez mais que o perigo SA é mais nocivo para a sua
posição na Prússia do que os projetos de reforma administrativa de Frick.
Göring sente que chegou o momento de assinar a paz com seus rivais.
Modifica, então, toda a administração prussiana, que cai sob o poder do
Ministério do Interior. Só o Ministério das Finanças continua autônomo. O
prefeito de polícia Daluege passa para o Ministério Central do Interior, onde
assume a direção do conjunto da polícia do Reich. No campo da polícia
política, Göring aceita uma solução de meio-termo, apenas para não ceder
inteiramente aos desejos de Frick: ainda assim, perde a maior parte de seus
poderes. Himmler torna-se inspetor da Gestapo da qual Heydrich assume a
direção. Nebe (conselheiro criminal da Gestapo), por seu lado, toma a direção
dos serviços da política criminal prussiana.
Heinrich Himmler ultrapassa um ponto decisivo de sua carreira. Pela primeira
vez, a SS controla a totalidade das polícias alemãs. Mas ainda não é hora de
alegrar-se ou de esfregar as mãos. Mal Göring -— em 10 de abril de 1934 —
presta a esses senhores as honras do n.° 8 da Prinz Albertstrasse, e põe seu
leal confidente Diels à frente do governo de Colônia, notícias ameaçadoras
chegam de todas as partes aos escritórios da Gestapo. Dessas notícias, pode-se
tirar apenas uma conclusão: o Estado de Adolf Hitler escorrega para a crise
mais aguda da sua breve história.
A revolta alastra-se nas fileiras SA. O descontentamento dos chefes cresce dia
a dia. Decididamente, o caminho que “Adolf” resolveu trilhar desde janeiro
de 1933 não lhes convém e a hostilidade contra o Führer toma proporções
explosivas.
O Putsch Röhm

“ADOLF NOS TRAI” esse era o slogan que corria de novo nas fileiras da SA,
como em 1931, por ocasião do problema Stennes. Os chefes da SA tinham o
sentimento de que o famoso “exército da revolução nacional-socialista” não
valia de nada no Estado nacional-socialista.
Durante anos havia-se insuflado nas fileiras da SA o ideal da revolução.
Havia-se preparado este exército prevendo-se a tomada do poder pelos
nacional-socialistas. Chegara o dia. A tomada do poder fora calma e até com
um aparente respeito a Constituição. E o Partido encontrava-se no poder com
um exército do qual não precisava. Era necessário que a SA se fundisse com a
Reichswehr e formasse com ela um grande exército nacional-socialista do
povo — tais eram agora as diretivas do Partido.
Mas Röhm considerava a SA a célula-mater de um exército de novo tipo.
Desprezando o exército tradicional de seus chefes, Röhm defende a idéia de
uma milícia nacional. E esta milícia nacional será a SA, ainda que não lhe
deem carta branca, a ele, Röhm, o futuro general-em-chefe da nova
Wehrmacht alemã.
Ele dispõe de poderosos quadros; virtualmente comanda um exército de
500.000 homens (SA considerada ativa), ou seja, cinco vezes mais do que a
Reichswehr existente. Este exército do Partido conta com 5 Obergruppen SA
(exércitos) e 18 Gruppen (corpos de exército). Dispõe de um estado-maior
cujos postos de responsabilidade são todos ocupados por antigos oficiais. Para
os oficiais superiores da Reichswehr, a SA, formidável reserva de homens,
servirá para a edificação de um exército novo, logo que o país esteja livre das
imposições do Tratado de Versalhes que fixam estreitos limites ao armamento
alemão. As ordens de Hitler são no sentido de uma fusão SA-Reichswehr, e
Röhm entra em conversações com o exército regular. Ele, que despreza
soberanamente os generais da “velha escola”, vai enfrentar um homem de
disposição particularmente férrea e que está precisamente entre as figuras de
proa da Reichswehr.
Walther von Reichenau, general de Artilharia, desportista, chefe de gabinete
do Ministério da Defesa Nacional, por usar monóculo não deixa de ser um
político astuto, que sabe, quando necessário, esquecer os sacrossantos
princípios da tradição militar prussiana. Para Reichenau, o assunto é simples:
o arsenal militar da SA será absorvido pela Reichswehr. Paralelamente e ao
mesmo tempo serão neutralizadas as perigosas ambições de Röhm. Para
vencer Röhm, é preciso primeiro insuflar suas ambições, o que permitirá
afastá-lo, mais tarde, com facilidade.
Em meados de maio de 1933, SA e Reichswehr concluem um tratado,
segundo o qual a SA, a SS e a associação de antigos combatentes Stahlhelm
são colocadas sob a autoridade central do Ministério da Defesa Nacional.
Estipula-se ainda que Röhm absorverá em sua SA as associações de
combatentes dos partidos de extrema-direita e especialmente a associação
Stahlhelm, a mais importante e a mais disciplinada entre elas.
O plano de Reichenau é tão simples quanto astucioso: se a Stahlhelm, que
representa um milhão de homens, incorpora-se subitamente à SA, se por outro
lado postos de responsabilidade do serviço de instrução agora criado e
encarregado de dar cada ano uma formação militar de base a 250.000 SA são
confiados a homens da Reichswehr, a posição de Röhm ficará
consideravelmente enfraquecida e poder-se-á eliminá-lo do circuito.
Parcialmente, a manobra tem êxito. Os postos-chave de instrução militar são
todos confiados a oficiais da ativa. A operação Stahlhelm, entretanto,
fracassa, porque Röhm cinde a SA em três grupos de diferente importância. A
SA chamada da ativa, ou seja, 500.000 homens, ele incorpora apenas 314.000
homens do Stahlhelm, conservando assim seu exército em maioria.
A frente, desde então, de 4,5 milhões de homens, Röhm passa à
contraofensiva. Nomeado, em l.° de dezembro, Ministro sem Pasta, entra em
entendimentos com o adido militar francês em Berlim, já que a França se
declarou preparada, por ocasião da conferência de Genebra sobre
desarmamento, a conceder à Alemanha o direito de uma polícia reforçada. Em
seguida, dirige ao Ministério da Defesa Nacional um me morando onde
comunica seus entendimentos: segundo este memorando, a Defesa Nacional
será dirigida pela SA. Quanto à Reichswehr, seu papel ficará limitado à
instrução militar.
Von Blomberg, ministro da Defesa Nacional, apela então para Hitler. Não
desejando desprestigiar seu amigo Röhm com cujas opiniões ele concorda,
mas ao mesmo tempo desejoso de utilizar os militares, dos quais precisará
para realizar seu programa de expansão, o Führer procura um entendimento.
Blomberg e Röhm são solicitados a aceitar um pacto, segundo o qual a
Reichswehr será a única organização armada oficial do III Reich. A SA obtém
o monopólio da formação pré e pós-militar. Depois de um almoço com
champanha, no quartel-general de Röhm, para selar o acordo, os chefes da SA
e von Blomberg apertam-se as mãos com efusão.
Mas logo que se retiram os oficiais da Reichswehr, Röhm revela a sua cólera:
“O que diz o pretenso Führer não nos interessa”; “Hitler é um traidor, é
preciso que o façamos tomar férias”; ou ainda, “Se as coisas não se podem
fazer com Hitler, isso não importa, faremos sem ele”.
Colado em sua cadeira, o Obergruppenführer SA Viktor Lutze ouve
inquietamente as explosões de raiva de seu chefe. Tudo isto tem um cheiro de
alta traição que não lhe agrada. Ele vai comunicar-se com quem de direito.
No princípio de março de 1934, Lutze visita Rudolf Hess, o “representante do
Führer”, e descreve-lhe o comportamento de Röhm. Hess não sabe o que
dizer nem o que fazer. Lutze vai então a Berchtesgaden e fala diretamente
com Hitler. Comunica ao Führer o descontentamento que reina na SA contra a
direção do III Reich. Também Hitler não sabe o que fazer: “É preciso deixar
que isso amadureça”. Lutze volta vencido de Berchtesgaden. Vai queimar
seus últimos cartuchos junto ao General von Reichenau.
Von Reichenau ouve atentamente. Lutze ignora que seu confessor está em
entendimentos há vários dias com um general-de-brigada SS, que tem idéias
muito pessoais sobre como resolver a questão Röhm. Reinhard Heydrich,
chefe da Gestapo e do SD, está há muito tempo decidido a pura e
simplesmente liquidar Röhm e sua clique. Precisou de algum tempo para
convencer Himmler dessa idéia. O Reichsführer SS lembrava-se com emoção
do tempo em que se batera ao lado do Capitão Röhm pela causa nazista. E
depois ficaram bons amigos, são incontáveis os discursos tão pedantes quanto
bajuladores que se trocaram com elogios mútuos, o número de banquetes em
que levantaram brindes às respectivas glórias.
Entretanto, Heydrich consegue ganho de causa junto ao seu chefe. A amizade
de Himmler por Röhm encontra-se relegada a segundo plano, na primavera de
1934, por uma consideração inteiramente oportunista, ou seja, a aliança com
Göring, condição sine qua non para que a SS dominasse a Gestapo. Os termos
do problema são simples: sem Göring, a Gestapo escaparia ao controle da SS;
sem a eliminação de Röhm, não haveria colaboração possível com Göring,
pois a SA ameaçava cada vez mais a sua soberania na Prússia.
Himmler deixa-se, então, convencer pelas idéias de Heydrich, tanto mais que
todos ou quase todos tinham interesse na eliminação do clã de Röhm e no
desmantelamento da SA: a Reichswehr livrar-se-ia de um concorrente;
Göring, de um adversário; o Partido e os guardas da moral nazista, de um
debochado notório. Quanto à SS, poderá enfim romper os últimos grilhões
que ainda a prendem à SA.
No fim de abril de 1934, a sorte de Röhm está decidida. Enquanto Himmler
prepara a SS para dar um golpe decisivo na SA, Heydrich estende a armadilha
que deve provocar o desaparecimento do chefe do estado-maior da SA e de
seus amigos. Heydrich consagra o mês de maio a reunir provas suscetíveis de
convencer os responsáveis da Reichswehr e ao próprio Führer dos projetos de
rebelião de Röhm.
Tais informações lhe são fornecidas principalmente pelo Untersturmführer SS
Friedrich Wilhelm Krüger, que desempenha suas funções na SA, onde serve
de espião para Himmler.
Apesar dos esforços de Krüger, a colheita é pobre. Algumas informações
referentes a depósitos de armas da SA em Berlim, em Munique e na Silésia e
algumas propostas sediciosas mencionadas por chefes da SA depois de terem
bebido. É tudo o que se consegue. Isso seria pouco para acusar Röhm de alta
traição. Muitos indícios evidenciam claramente que a SA pensa em tudo
menos em um putsch. O que ela quer e o que quer Röhm é colocar Hitler em
posição que lhe obrigue a conceder à SA o lugar que ela reivindica no Estado
e sobretudo no setor da Defesa Nacional. Para fazer isso, Röhm adotou uma
tática perigosa: iniciou contra Hitler uma guerra de nervos. Viajando de grupo
SA em grupo SA, pronuncia discursos beligerantes, faz manobrar suas tropas,
pensando assim amolecer a resistência do Führer.
O que Röhm esqueceu, fazendo isso, foi a reação popular. O povo teme uma
tomada do poder pela SA na Alemanha. Para os militares, as pretensões da SA
de assumir a defesa nacional do país parecem risíveis mas também perigosas.
E se a maioria dos oficiais pensa que o estado-maior não pretende
verdadeiramente tentar um putsch, têm pressa, como diz um deles, de “limpar
os estábulos dos camisas pardas, que parecem aos de Augias”.
Assim pensa também von Reichenau, visto com mais frequência na Gestapo e
que põe à disposição do chefe do SD quartéis, armas e meios de transporte, a
fim de facilitar a operação contra a SA. Já em 1932 von Reichenau dissera ao
Capitão Felix Steiner, futuro general Waffen-SS, que a SA terminaria
“comendo pela mão dos militares”. Os comandos de assassinos a soldo de
Heydrich estavam agora realizando, à sua maneira, essa profecia.
No início de junho, o Oberführer SS Theodor Eicke, comandante de Dachau,
começa a ensaiar a esperada ação relâmpago que lançaria seus homens sobre
Munique, Lechfeld e Bad-Wiessee. Ao mesmo tempo, as seções SS de
Munique são colocadas em estado de alerta.
De Norte a Sul, de Leste a Oeste, Heydrich mobiliza as suas tropas. Pretende
quebrar a resistência da SA, sobretudo na Baviera, em Berlim, na Silésia e no
Saxe. Mas tudo está organizado para a hipótese de haver resistência, e
Heydrich nada teme. Fecha-se o círculo sobre uma SA que de nada suspeita.
O infatigável chefe do SD passa então à última fase dos preparativos. Contra
quem deve ser desferido o golpe mortal que desfechará sobre a SA? Heydrich
põe seus homens de confiança na pista dos íntimos de Röhm e encarrega-os
de estabelecer a lista dos candidatos à morte.
No fim de abril, Eicke apresenta-lhe uma primeira lista de indivíduos a serem
liquidados. Traz, praticamente, apenas os nomes dos chefes da SA. Eis,
porém, que germina uma idéia no espírito de Heydrich: já que há a decisão de
fazer-se uma limpeza, por que não aproveitar para, ao mesmo tempo,
eliminar-se os adversários mais perigosos do regime? As listas de Heydrich
aumentam dia a dia, semana a semana. Todos os escalões superiores do SD
fornecem sua própria lista. Quanto à SS e à Gestapo, para não ficarem atrás,
fornecem também as suas. Göring faz a sua lista, o gauleiter da Baviera
apresenta outra. Discute-se em seguida para saber se tal ou qual pessoa deve
ser perdoada, se este ou aquele também não deveria desaparecer. O
comandante SD bávaro Werner Best quer evitar a morte do “bravo e fiel”
Obergruppenführer SA Schneidhuber; Heydrich replica que o considera tão
perigoso quanto os outros. Göring retira o nome do antigo chefe de sua
Gestapo, Diels, que figura em uma das listas negras de Heydrich submetidas à
sua aprovação.
Em seguida há uma peripécia inesperada. A Gestapo avisa que Hitler e Röhm
entenderam-se para chegar à solução do problema SA-Reichswehr. Depois de
horas de discussões, foi resolvido em 4 de junho que a SA ficaria inativa
durante um mês, a contar de l.° de julho. Isto não iria ajudar os negócios de
Heydrich. Seria difícil acusar uma SA em licença de fomentar um golpe de
Estado. Já o comandante SA de Berlim, Ernst, toma providências para passar
agradáveis férias nas Canárias: o Gruppenführer Georg von Detten, chefe do
serviço político do estado-maior da SA, avisa seus auxiliares diretos da
próxima viagem que vai fazer a Bad-Wildungen, aproveitando as férias. No
meio desses projetos de turismo, o pseudoputsch inventado por Heydrich não
poderia convencer ninguém. Seria preciso agir depressa para que não fosse
prejudicado o plano elaborado com tantos esforços. Pois o plano está pronto:
os comandos de assassinos esperam apenas o momento de agir. Resta,
entretanto, um fator de incerteza: qual será a reação de Hitler?
É difícil de saber. Hitler sempre evitou entrar abertamente em conflito com a
SA. Durante algum tempo fez jogo duplo, ora dando seu apoio ao exército dos
camisas pardas, ora insinuando que poderia pura e simplesmente dissolvê-lo.
Incapaz de decidir-se por um lado ou pelo outro, o Führer não tem recursos
suficientes para mostrar a seu amigo Röhm que não se curvará às suas
exigências cada vez mais fortes.
A esperança de Hitler é a de que alguém venha trazer-lhe a solução que ele
próprio não consegue encontrar. E eis que três homens — Heydrich, Himmler
e Göring — submetem-lhe um plano preciso, com uma solução também
precisa e definitiva, para este espinhoso problema. Hitler hesita. Ainda não
havia comunicado sua decisão, quando surge um acontecimento grave.
Em 17 de junho, o vice-chanceler do Reich, Franz von Papen, em tonitruante
discurso pronunciado na Universidade de Marburg, refere-se a “tudo isso que
dissimula o egoísmo, a tudo o que se oculta sob o manto da revolução alemã”.
“Confusão entre brutalidade e virilidade… Métodos terroristas no domínio da
justiça… Materialismo sectário a que se emprestam aparências de
religiosidade…” Tais são os termos do orador, que recebe vivos aplausos.
O sucesso do discurso evidencia a sobrevivência tenaz de certa oposição ao
Reich nos meios da burguesia. Hitler está muito inquieto: que acontecerá se
os descontentes da SA se aliarem aos da burguesia? A questão está longe de
ser ociosa. A Gestapo já localizara fios tênues, porém reais, correndo de um
campo a outro. Todos levam a uma personalidade que representa tanto a SA
quanto os conservadores. Trata-se do Príncipe August Wilhelm, da Prússia,
Gruppenführer SA e filho do último Imperador Hohenzollern, que os
monarquistas reservam como sucessor do Marechal-de-Campo Paul von
Hindenburg, presidente do Reich, agora com oitenta e seis anos de idade.
Hitler já decidira a não contentar-se com as funções de chanceler do Reich,
quando morresse Hindenburg. Está resolvido a uma tomada total do poder.
Enquanto Hindenburg vivesse, não haveria possibilidade de impor-se esta
ditadura à Alemanha, pelo prestígio de que goza o Feldmarschall junto ao
povo e sobretudo junto aos generais do Império. Na verdade, é sobretudo a
Reichswehr que barra a passagem ao ambicionado poder ditatorial. Quando
Hindenburg desaparecer, o problema será diferente, o objetivo estará
próximo. Mas a Reichswehr continuará o árbitro da situação. Sem ele, sabe-o
Hitler, seu plano não se manterá de pé, suas ambições continuarão
irrealizáveis.
Quatro dias depois do abalo causado pelo discurso de von Papen, o ministro
da Defesa Nacional, Werner von Blomberg, enviado por Hindenburg,
conversa com o Führer sobre a necessidade de restabelecer-se imediatamente
a ordem no interior do país. Deixa-lhe entender que se ele quiser impor,
depois de Hindenburg, o seu próprio regime, será preciso que se decida a
eliminar a SA, concorrente da Reichswehr. Desde então está tomada a decisão
do Führer. Em 25 de junho von Blomberg é informado do desejo de Hitler de
libertar a Reichswehr do pesadelo dos camisas pardas. Os oficiais do estado-
maior da SA, precisa Hitler, serão convidados a uma sessão plenária em Bad-
Wiessee, lugar de cura de Röhm. Será procedida a sua prisão; Hitler reserva-
se o direito de acertar contas com cada um deles. Dois dias mais tarde, o chefe
da Leibstandarte de Adolf Hitler, Sepp Dietrich, vai ao Ministério da Defesa
Nacional e solicita a entrega de armas para “uma missão muito importante
confiada a seus cuidados pelo Führer”.
Sepp Dietrich recebeu ordem de reunir-se, no dia D previsto para o putsch
Röhm, a duas companhias da Leibstandarte, as unidades de Eicke em Dachau,
e marchar sobre Bad-Wiessee, prendendo de surpresa os chefes da SA.
De seu lado, von Reichenau, Heydrich e Himmler ultimam os detalhes do
putsch. Em 22 de junho, o Oberabschnittführer SS Freiherr von Eberstein
recebe ordem de pôr suas tropas em estado de alerta. Em 23 de junho, o
Generaloberst Fromm, chefe dos serviços gerais do Exército, informa a seus
oficiais de um projeto de golpe de estado fomentado por Röhm. Em 24 de
junho, o General Freiherr von Fritsch ordena a todos os oficiais superiores a
se prepararem para impedir uma tentativa próxima de putsch promovida pela
SA e a reunir discretamente suas tropas. Em 27 de junho, Himmler reúne os
Oberabschnittführer SD, cuja missão é vigiar os menores movimentos
suspeitos da SA.
É curioso: quanto mais avançam os preparativos e mais se fecha o círculo de
morte em torno do clã Röhm, mais o affaire toma um caráter irreal: contam-se
nos dedos os oficiais da Reichswehr que acreditam seriamente em uma
tentativa de putsch da SA.
Depois da queda do “império milenar” de Adolf Hitler, quando se procurarem
os responsáveis por estas bodas de sangue, os militares jurarão pelos seus
grandes deuses que o putsch da SA lhes parecia iminente. Na realidade, nada
existiu, e os testemunhos demonstram que antes da operação Röhm ninguém
— ou quase ninguém -— levava a sério a pretensa ameaça da SA. Assim,
Gotthard Heinrich, Oberst em exercício nos serviços gerais da Armada, diz
quando colocam um fuzil em seu escritório para que se defenda, se
necessário, contra os golpistas da SA: “Por favor, não sejam ridículos!”
Quanto ao General Ewald von Kleist, comandante das tropas da Silésia,
acredita tampouco no golpe, a ponto de começar por sua própria conta um
inquérito que quase faz fracassar o plano concebido por von Reichenau e
Heydrich. Inundado de informações, segundo as quais a SA ia tentar um
golpe, von Kleist, decidido a ter a consciência tranquila, convoca o
comandante da SA na Silésia, Heines, e pergunta-lhe cruamente o que se está
passando. Heines responde que não sabe de coisa alguma e jura que nunca
sonhou com qualquer ação contra a Reichswehr. Von Kleist vai a Berlim e
encontra-se com o General von Fritsch: no seu entender, tudo era uma
invenção da SS, com o objetivo de criar atritos entre a SA e a Reichswehr.
Von Fritsch convoca von Reichenau e pede-lhe sua opinião; Reichenau
considera os dois homens com seu olhar frio através do monóculo e responde
no mesmo tom: “É bem possível que os senhores tenham razão, mas de
qualquer forma agora é tarde demais”.
As pessoas do gênero de Heinrich e von Kleist mostram-se embaraçosas.
Heydrich trata de iniciar uma campanha de boatos, de falsas notícias
misturadas a verdadeiras, tudo com o objetivo de fazer calarem-se os
escrupulosos e de semear a dúvida nos espíritos mais convencidos da
impossibilidade de um putsch da SA. Com esse objetivo, Sepp Dietrich
transmite ao Ministério da Defesa Nacional um documento que teria vindo da
SA, prevendo pura e simplesmente a liquidação de todos os oficiais
superiores da Wehrmacht, começando pelos Generais Beck e von Fritsch.
Outros documentos falsificados circulam em toda a parte nos meios militares
alemães. Todos esses preparativos, levados a cabo com extremo cuidado, e
com a quase certeza do sucesso, não libertam da inquietação os adversários de
Röhm: a posição do Führer é sempre pouco clara. Sem dúvida Hitler deu seu
aval à ação que se desenvolve contra a SA, mas isso não lhe impede de
mostrar cada dia uma grande indecisão. Lealdade para com seu velho amigo
Röhm? Sentimento de perder com a SA um sustentáculo essencial a seus
projetos de ditadura, um contrapeso à influência da Reichswehr? Quem pode
saber?
Em 28 de junho, ainda não se sabe que partido tomou Hitler. Se os
adversários de Röhm tivessem tido conhecimento do encontro entre o Führer
e von Krausser, Obergruppenführer SA e representante pessoal de Röhm,
teriam ficado ainda mais inquietos.
Algumas horas antes de ser executado, von Krausser confiará ao
Gruppenführer SA Schreyer, que compartilha sua cela, o que se passara
naquele encontro: Hitler o recebera em 29 de junho. Mostrou-se bem
acomodado. Disse-lhe que tinha a intenção de aproveitar a sessão de Bad-
Wiessee para discutir a fundo os problemas da SA e trazer-lhes, enfim, uma
solução; que havia cometido erros em relação a vários chefes da SA e ia
repará-los; que de qualquer forma Röhm conservaria suas funções de chefe do
estado-maior da SA.
Um Führer tão hesitante não convém ao trio Himmler-Göring-Heydrich. Seria
melhor afastá-lo, em dias tão decisivos, do comando do poder. Mas como
fazê-lo?
Feliz coincidência, a 28 de junho Hitler resolve viajar em companhia de
Göring para a Westfalia, onde assistirá ao casamento do gauleiter Josef
Terboven. Esta viagem é comumente interpretada pelos historiadores como
tendo sido conscientemente planejada pelo Führer. Hitler teria partido para
permitir a Heydrich, Himmler e Göring agir com a maior discrição possível.
Tal interpretação parece errônea. Na realidade, ela está em contradição com a
tática geralmente adotada pelos adversários de Röhm. Esta tática consiste
essencialmente em uma campanha espetacular de propaganda anti-Röhm,
destinada a preparar o povo para o próximo banho de sangue. Assim, a 25 de
junho, Rudolf Hess declara em discurso pelo rádio: “Infelizes os que
acreditam servir a Revolução organizando uma revolta! Adolf Hitler é o
grande estrategista da Revolução! Ninguém está autorizado a romper os fios
pacientemente tecidos por este estrategista. Quem o fizer deve ser
considerado um inimigo da Revolução!” Ainda em 25 de junho, von
Reichenau exclui Röhm da associação dos oficiais alemães, de que participa.
Afinal, no mesmo dia, Göring declara em violento discurso: “Quem não tem
confiança em Hitler, comete um ato de alta traição. Quem destrói essa
confiança, destrói a Alemanha e deve temer por sua cabeça”.
Pode-se lançar desafio mais claro? E como conciliar tal desafio público com a
interpretação segundo a qual a viagem de Hitler é apenas uma manobra de
despistamento? Na realidade, os organizadores do golpe contra a SA ficaram
felizes em saber que o Führer estaria longe de Berlim. Lutze, o rival de Röhm,
também convidado para a mesa de Terboven, dirá: “Tive a impressão de que
algumas pessoas tinham interesse em aproveitar a ausência de Hitler para
acelerar o rumo dos acontecimentos e chegar a uma conclusão rápida”.
Mal Hitler se juntou aos convidados de Terboven, em Essen, é chamado por
um telefonema urgente de Berlim. Himmler transmite ao Führer as últimas e
ameaçadoras notícias sobre a maquinação da SA. O fiel Göring está ao lado
de Hitler, como por acaso, para proporcionar uma interpretação adequada.
Amolado, Hitler abandona as cerimônias e retira-se para o Hotel Kaiserhof,
onde se hospeda, e aconselha-se com seus colaboradores mais próximos, entre
os quais Göring e Lutze. O telefone funcionou sem descanso. Chovem
notícias. Parece que em todo o país a SA prepara-se ativamente para uma
revolta contra a Reichswehr.
Hitler explode: “Já estou cansado! Vou dar um exemplo!” A sentença final
acaba de ser proferida. Hitler ordena a Göring que volte imediatamente a
Berlim e espere sua chamada para começar a ação. Esta ação, precisa Hitler,
atinge tanto a SA quanto os outros adversários do regime. Göring não perde
tempo. Em 29 de junho, de volta a Berlim, põe em estado de alerta a
Leibstandarte Adolf Hitler e a Landespolizeigruppe General Göring.
No mesmo dia é enviada uma carta a Heydrich, levada pelo Untersturmführer
Ernst Müller, com ordem de fazê-la chegar sem demora ao
Oberabschnittführer SS responsável pelo Sudeste alemão. Seu conteúdo: o
chanceler do Reich teria delegado poderes a Göring. Com a força desses
poderes na Prússia, Göring dá ordem ao responsável SS do setor Sudeste, Udo
von Woyrsch, de prender todos os chefes SA da região, ocupar militarmente a
chefia de polícia de Breslau e reunir suas forças às do chefe de polícia da
Länd.
Durante esse tempo em Essen, Hitler pensa em como deverá agir para
surpreender o estado-maior da SA. Relembra o plano que anteriormente havia
apresentado ao Ministro von Blomberg: atrair os oficiais superiores da SA a
Bad-Wiessee e prendê-los. Em 28 de junho Hitler telefona a Röhm: homens
da SA teriam molestado um diplomata estrangeiro na região do Reno. Isto não
podia continuar. Era preciso uma explicação. Todos os Obergruppenführer,
Gruppenführer e inspetores da SA deveriam reunir-se na residência de Röhm
em Bad-Wiessee, a 30 de junho, às onze horas, para uma sessão plenária com
a presença do Führer.
Hitler espera uma reação. Mas ela não virá. A 29 de junho, Röhm faz em Bad-
Wiessee o passeio de costume. Ao seu ordenança, diz o quanto se sente alegre
por poder, afinal, explicar-se com Hitler; e recebe cordialmente os primeiros
chefes da SA, que chegam este dia à pensão Hanselbauer, acatando a ordem
dada pelo Führer.
Do outro lado, a agitação é extrema. A Reichswehr está em pé de guerra.
Todas as unidades da SS estão em seus quartéis, por ordem do Reichsführer
Heinrich Himmler. Hitler conferência no Hotel Dreesem, em Bad-Godesberg,
com os funcionários do Partido, e particularmente com Lutze e Goebbels.
Convoca a Sepp Dietrich, que chega pouco depois. A ordem do Führer é
curta: “Tomem o avião para Munique. Quando chegarem, chamem-me pelo
telefone”. O Gruppenführer SS Dietrich obedece. À meia-noite chama o
Führer de Munique e recebe uma segunda ordem: partir imediatamente para
Kaufering e assumir o comando de duas companhias da Leibstandarte,
dirigindo-se para Bad-Wiessee.
A máquina foi posta em marcha. Sepp Dietrich está a caminho de Kaufering,
quando Hitler recebe duas notícias que o levam a modificar seu plano.
A primeira vem de Berlim: Himmler comunica-lhe que a SA berlinense está
pronta para desferir o golpe, que a ordem de passar à ação é prevista para 30
de junho, às 17 horas, e que a SA começará por dominar os edifícios públicos.
Tudo isto é falso; Hitler não sabe que a maioria dos homens de tropa da SA
berlinense já havia partido em licença. Ainda em 13 de julho, declarará
publicamente que o comandante da SA berlinense, Ernst, em lugar de ir a
Bad-Wiessee, ficou em Berlim para chefiar o golpe de estado. Na realidade,
Ernst deixara Berlim a 29 de junho, para Tenerife, onde pretendia passar as
férias em companhia de sua esposa.
A segunda notícia é tão verdadeira quanto a primeira. Vem-lhe do gauleiter e
Ministro do Interior bávaro Adolf Wagner: em Munique, a SA teria ido para
as ruas com slogans hostis ao Führer e à Reichswehr. A informação é falsa e
verdadeira ao mesmo tempo. Houve efetivamente um desfile SA na noite de
29 de junho. Os manifestantes protestaram contra a atitude da Reichswehr.
Mas tudo havia entrado rapidamente em ordem, tendo os oficiais da SA feito
voltar à calma os seus homens. Um deles, na Königsplatz, disse-lhes o
seguinte: “Voltem tranquilamente para as suas casas e esperem a decisão de
Führer. Qualquer coisa que aconteça, seja qual for a decisão de Adolf Hitler,
quer ele nos autorize a usar este uniforme ou no-lo proíba, ficaremos com o
Führer, ao seu lado”.
Estas duas notícias, transmitidas entre meia-noite e uma hora da manhã,
deixam Hitler em violenta cólera. Agora ele sabia como agir. Os traidores
estavam desmascarados. Röhm mostrara seu verdadeiro rosto. Ia-se poder
esmagar este “verme”.
Sempre sob o impacto da emoção, Hitler toma uma decisão capaz de
surpreender os que estão ao seu lado: “Todos para Munique, imediatamente, e
em seguida para Bad-Wiessee” .
Às duas da manhã, o Führer, acompanhado de seus íntimos, toma seu trimotor
JU52. Seu rosto está descomposto, todo o seu corpo treme. O avião parte e
Hitler continua com os dentes apertados. Quando chega a Munique, pula
literalmente do aparelho. Passa ao lado de membros eminentes do Partido e da
SA, advertidos de sua chegada, sem conceder-lhes o menor olhar, para um
pouco mais longe ao lado de dois oficiais da Reichswehr que ele havia
convocado para sua chegada. Exclama com uma voz surda: “É o pior dia da
minha vida. Mas eu vou a Bad-Wiessee e saberei fazer justiça, tenho certeza.
Advirtam imediatamente ao General Adam de nossas intenções”. Em seguida
Hitler vai ao Ministério do Interior para dar suas instruções. Pouco depois das
quatro horas, toca o telefone em casa do Gruppenführer SA Schmid. Ordem
do Ministério do Interior: Hitler espera o Gruppenführer. Que venha
imediatamente. Schmid obedece. Não terá tempo sequer de abrir a boca. Mal
o chanceler o vê, precipita-se sobre ele, arranca-lhe os galões, qualifica-o de
traidor e grita: “O senhor está preso, o senhor será fuzilado”. Logo Schmid é
levado para a prisão de Munique-Stadelheim. Fora precedido pelo
Obergruppenführer SA Schneidhuber.
Enquanto o gauleiter Wagner solta os comandos da SS e da polícia política
bávara (Bay Po Po) com ordem de prender os chefes da SA e alguns
adversários do regime. Hitler dirige-se para Bad-Wiessee.
São seis e trinta da manhã quando o Führer e sua escolta chegam à pensão
Hanselbauer. Os oficiais da SA ali hospedados ainda dormiam. Os homens de
Hitler precipitam-se para as portas dos quartos, com o revólver na mão. Lutze
fica na recepção e percorre a lista dos hóspedes. Chegará no momento de
assistir à prisão de Röhm. O próprio Hitler está de pé a dois passos do quarto
do chefe do estado-maior da SA. Um policial bate na porta. Que Röhm faça o
favor de abrir, aconteceu uma coisa grave. Passa-se um momento e abre-se a
porta. O Führer precipitasse, revólver em punho. Acusa Röhm de traição;
Röhm replica aos gritos, Hitler não o escuta. Ordena-lhe que se vista e
comunica-lhe sua prisão. Vários policiais ficam ali para vigiar Röhm.
Hitler continua seu caminho. Bate em outra porta. Ela se abre. Aparece o
rosto de Edmund Heines e o de um companheiro que certamente passara a
noite com ele. Goebbels evocará mais tarde esta cena em um discurso bem
comovido: “… uma dessas cenas que provocam enjoo e vontade de vomitar”.
Lutze penetra no quarto. Hitler já está mais adiante, batendo raivosamente em
outras portas. Então diz Heines a Lutze: “Mas meu velho Lutze, eu não fiz
nada, e você sabe perfeitamente; ajude-me em nome de Deus!” Lutze desvia-
se com um ar incomodado: “Não posso dizer nada, não posso fazer nada,
nada”.
Logo, todo o “ninho de traidores” estava limpo. Os prisioneiros foram
encarcerados, um após o outro, na adega da pensão, sob vigilância da Bay Po
Po. Preparam-se para partir, quando surge um caminhão no pátio da
hospedaria. É a guarda do estado-maior de Röhm, armada até os dentes.
Situação perigosa: o chefe da guarda, Julius Uhl, prisioneiro na adega; seus
homens do lado de fora, bem armados, não sabendo o que pensar, mas nem
por isso deixando de fazê-lo.
Então Hitler avança. Pigarreia, depois ordena-lhes, com voz forte, que voltem
a Munique imediatamente. Eles obedecem, mas sem muita convicção.
Tomados de escrúpulos, pararão um pouco adiante, para “ver o que há”. Hitler
considera a situação ameaçadora. Decide deixar Bad-Wiessee e se dirigir para
o Sul. Tudo continua a correr tão bem quanto possível. Hitler e seus
prisioneiros estão na estrada que leva a Munique. Já o diretor da prisão de
Stadelheim, o Dr. Robert Koch, foi avisado da prisão iminente de oficiais
superiores da SA. Na estação de Munique, cheia de SS, os chefes da SA que
partiam para Bad-Wiessee são presos, um após outro, e transportados para
Stadelheim. Quase todos os nomes ilustres da SA estão aí reunidos: Manfred
von Killinger, Hans Peter von Hydebreck, Hans Hayn, Georg von Detten,
Hans Joachim von Falkenhausen.
Um pouco antes das 10 horas, Hitler deixa a estação em direção ao quartel-
general nazista na Briennerstrasse. Chega às 10 horas precisamente. A Casa
Parda está cercada pelas forças da Reichswehr. Hitler penetra no edifício. Faz
um sinal discreto a Goebbels.
O ministro da Propaganda precipita-se para o telefone, chama Göring e
pronuncia a palavra “colibri”. O tão esperado sinal fora dado. Heydrich e
Himmler começam imediatamente a trabalhar. Em todo o território alemão, os
comandantes regionais do SD abrem os envelopes lacrados onde se
encontram as ordens confidenciais. Os comandos da morte começam a
trabalhar por toda parte.
Na Baviera, a tarefa assassina já começara. Homens da SS prendem Ritter
von Kahr, que estivera na origem do fracasso do putsch de Hitler em 1923.
Mais tarde seu corpo será encontrado, mutilado a golpes de picareta, nos
pântanos de Dachau. O Padre Berhard Stempfle, que conhecia alguns
segredos da vida particular de Hitler, morrerá com três balas no coração e a
coluna vertebral quebrada.
Outros homens da SS procuram um médico de Munique, o Dr. Ludwig
Schmitt, colaborador de Otto Strasser, inimigo íntimo de Hitler. Ao
verdadeiro Schmitt não se consegue encontrar; não importa, encontram outra
pessoa que o substitui! E o comando SS prende o crítico musical Wilhelm
Eduard Schmid. O crítico morava em outra rua; seu nome era escrito com
“d”; era doutor em filosofia e não médico; mas todos esses detalhes
pareceram pouco importantes! Levam-no. Sua família não o verá senão em
seu sarcófago, no KZ de Dachau.
Uma vez iniciada a ação, Hitler revela-se particularmente impiedoso. Diz a
quem quer ouvir que não haverá interrupções. Tendo reunido seus
colaboradores próximos na Casa Parda, conduz as decisões: qual será a sorte
dos oficiais da SA presos? Para Buch, o juiz do Partido, chegou a hora da
vingança. Afinal, alcança o que vinha desejando desde 1932, ou seja, a
liquidação do clã Röhm. Rudolf Hess e o diretor das edições nazistas Max
Armann disputam o prazer de assassinar Röhm. Hess grita: “Meu Führer, sou
eu que tenho o dever de abatê-lo!”
Lutze assiste aos debates sem dizer uma palavra. Jamais poderia imaginar que
as coisas se passariam assim. Hitler pergunta-lhe de que pessoas gostaria de
livrar-se. Lutze responde que nada tem a dizer. Deixa a sala. Às 17 horas
chega Martin Bormann, genro de Buch, em companhia de Sepp Dietrich.
Hitler a Dietrich: “Vá imediatamente para o quartel. Peça que lhe deem seis
suboficiais e um oficial e execute esses chefes da SA por alta traição”.
Bormann entrega ao Gruppenführer Dietrich uma lista dos prisioneiros,
enviada de manhã pelo diretor da prisão, Koch.
Aí figuram os nomes dos oficiais da SA presos. Seis desses nomes foram
marcados com uma cruz por Hitler: Auguste Schneidhuber,
Obergruppenführer SA e chefe de polícia de Munique (cela 504); Wilhelm
Schmid, Gruppenführer SA em Munique (cela 497); Hans Peter von
Heydebreck, Gruppenführer SA em Stettin (cela 502); Hans Hayn,
Gruppenführer SA em Dresde (cela 503); o Conde Joachim von Spreti-
Weilbach, Standartenführer em Munique (cela 501) e Edmund Heines,
Obergruppenführer SA e chefe de polícia em Breslau (cela 483).
O nome de Röhm não foi marcado com uma cruz: “Eu agraciei Röhm, tendo
em vista os serviços prestados”, dirá pouco depois o Führer. Quando Sepp
Dietrich, chegado entrementes em Stadelheim, pede que lhe entreguem os
prisioneiros que figuram na lista, Koch, diretor da prisão, discute até perder o
fôlego, para ganhar tempo. Não pode entregar os prisioneiros pois a lista não
foi assinada. Dietrich é obrigado a voltar à Casa Parda. O ministro de Estado,
Wagner, põe sua assinatura sob a lista. Koch tem de obedecer. Vai procurar os
prisioneiros. Quando os oficiais da SA percebem Dietrich, um deles,
Schneidhuber, grita: “Camarada Sepp, o que quer dizer isto? Nós somos
inocentes!” Sepp Dietrich permanece frio como gelo. Nem um músculo de
seu rosto movimenta-se. Bate nos calcanhares e declara: “Vocês foram
condenados à morte pelo Führer, Heil Hitler”. Os oficiais são levados, um
após o outro, para o pátio da prisão. Aí está o pelotão de fuzilamento. Um
oficial SS recebe o grupo com estas palavras: “O Führer e Chanceler do Reich
condenou-vos à morte, execução imediata”. Logo em seguida começam os
tiros. Cai um prisioneiro. Chega outro.
O próprio Sepp Dietrich não aguenta a situação e deixa o lugar antes do fim
das execuções. “Quando chegou a vez de Schneidhuber, fui-me embora. Não
aguentava mais.” No dia seguinte, ao meio-dia, Dietrich voltará a Berlim,
onde campeava o terror desde que Goebbels pronunciara no telefone a palavra
“colibri”. A ação no império de Göring fora iniciada, apesar dos veementes
protestos do Vice-Chanceler Franz von Papen.
Uma lista de pessoas que deveriam ser liquidadas fora entregue a certos
funcionários da Gestapo. Um deles foi encarregado de proceder à prisão dos
supostos inimigos do Estado, apoiado pelos homens de Gildisch,
Hauptsturmführer SS. Gildisch foi pessoalmente encarregado por Göring de
“resolver o caso Klausener”: “Vocês devem ir imediatamente ao Ministério
dos Transportes. Procurem encontrar Klausener e matem-no!”. Gildisch
obedece. Vai ao Ministério, sem preocupar-se um só instante em saber por que
Klausener, chefe de gabinete do Ministério dos Transportes, presidente da
Ação Católica, ex-diretor dos serviços de polícia do Ministério Prussiano do
Interior, deve morrer dessa maneira.
Chega ao lugar às 13 horas. Klausener está lavando as mãos no toalete. O SS
diz que deseja falar-lhe. Klausener volta ao escritório, manda entrar Gildisch
e este lhe diz que está preso. Klausener espanta-se e sem dizer palavra vai a
um armário apanhar o paletó. Gildisch tira então seu revólver e faz fogo.
Klausener cai no mesmo instante, morto com uma bala na cabeça. Gildisch
chama imediatamente Heydrich. Vem a ordem de simular um suicídio. O
assassino SS coloca seu revólver perto da mão direita do morto e vai-se
embora, depois de ter colocado dois homens na porta do escritório. Para o III
Reich, o caso Klausener está encerrado.
Às 13,15, Gildisch está de volta. Recebe logo outras instruções. O oficial SA
berlinense Karl Ernst e o Dr. Erwin Villain, Standartenführer SA do serviço
de saúde, estarão também entre suas vítimas.
Gildisch e seus dezoito assassinos não são uma exceção; muito ao contrário.
Nesse 30 de junho de 1934, nuvens de comandos SS esquadrinham a Prússia
de Göring à procura das vítimas que lhes foram designadas. Esses homens
não pensam, obedecem. Não fazem perguntas, agem. Querem apenas saber o
nome das vítimas. Em seguida, matam-nas. Raros são os que escapam ao
assassínio, que rapidamente ultrapassa os quadros das listas negras, para
também resolver problemas pessoais. Assim, Erich von dem Bach-Zelewski,
Oberabschnittführer SS, livra-se de seu rival, o Reicherführer SS Anton
Freiherr von Hohberg und Buchwald, que dois SS assassinarão diante de seu
filho de 17 anos de idade.
Sobretudo na Silésia, as soluções de problemas pessoais são moeda corrente.
O Oberabschnittführer SS Udo von Woyrsch perde o controle e suas tropas
aproveitam a ocasião para livrar-se das mais diversas pessoas.
O rancor pessoal inspira as decisões de Himmler e também as de Göring.
Gregor Strasser, antigo número dois do Partido, depois de Hitler, é um
exemplo. É preso e depois assassinado em sua cela, com um tiro de revólver
nas costas. Interpretação oficial; suicídio. Motivo: Strasser havia transmitido
ao Führer, várias vezes, o mau juízo que tinha de Göring e de Himmler.
E o golpe da SA? E os golpistas responsáveis, segundo as palavras de Hitler,
da “pior traição da história da humanidade”, que fazem eles? Aproveitam o
fim de semana ensolarado, preparam-se para partir de férias. Na sua casa de
Neu-Babelsberg, Griebnitzstrasse, o General Kurt von Schleicher está sentado
em sua mesa de trabalho. A cozinheira, Marie Güntel, introduz dois senhores
no escritório do dono da casa. Um deles: “O senhor é o General von
Schleicher?” Von Schleicher volta-se para ver quem lhe pergunta e responde
afirmativamente. Ouvem-se os tiros. O general tomba sobre a mesa. Sua
esposa surge atraída pelo barulho. É também assassinada.
A Gestapo irá, evidentemente, remexer nos papéis de von Schleicher, mas não
encontrará nenhum indício de sua cumplicidade ou conluio com Röhm.
Nunca se saberá quem tomou a iniciativa desse assassínio. Mas pode-se
perceber a existência de divergências entre os organizadores dessa orgia de
sangue. Depois do assassinato, Himmler e Göring mostram alguma
inquietude. Von Schleicher era um dos generais mais influentes da
Reichswehr. O exército não iria tomar providências? Conheciam mal o
General von Reichenau, que não era de realizar uma ação depuradora de tal
envergadura, por um incidente do gênero. E além disso, uma morte a mais ou
a menos…
Na própria tarde do assassinato, divulgou-se um comunicado oficial de von
Reichenau, anunciando a morte de von Schleicher: “Suspeito de estar
envolvido no complot fomentado por Röhm, dois homens da SS foram
encarregados de prender o General von Schleicher. Tendo-lhes oposto uma
viva resistência, os policiais foram obrigados a fazer uso de suas armas.
Durante o tiroteio, o general e sua esposa, que surgiu imprevistamente, foram
mortalmente feridos”.
Himmler e Göring não têm motivos para preocupações. Mas eis que uma
surpresa desagradável os espera. Voltando a Berlim, Hitler diz-lhes que Röhm
deve ser perdoado. Isso está longe de satisfazê-los. Esse 30 de junho de 1934,
organizado com tanta paciência, não teria razão de ser se Röhm continuasse
vivo. Já em 29 de junho, Himmler declarara à Senhora von Ribbentrop que
“Röhm era um homem morto”. Era preciso que assim o fosse.
Mas, afinal, por que essa decisão de Hitler? É que Hitler ainda não era o
Führer no pleno sentido da palavra, tal como o será depois da morte de
Hindenburg. Por enquanto, a política de equilíbrio impõe-se. Conservar Röhm
será atenuar um pouco as pretensões dos senhores nazistas, especialmente as
de Himmler e Göring, e assegurar-se uma soberania que, por enquanto, ainda
está frágil para ser reconhecida.
Agora o chanceler inicia um jogo astuto: ele, que ontem, em Stadelheim,
fizera executar a sangue frio os principais chefes da SA e que falava em
“exterminar o verme”, conduz-se hoje como um Führer cheio de precaução,
cuidando de moderar os excessos de seus subordinados. Declara abertamente
que endossa a responsabilidade das execuções realizadas, embora nem todas
tenham sido decididas diretamente por ele. Ao oficial SA Jüttner afirma que
teria preferido um inquérito em boa e devida forma, mas foi ultrapassado
pelos acontecimentos.
Os sobreviventes da SA, inclusive o novo chefe do estado-maior Viktor
Lutze, acreditam na palavra do Führer. Hitler obtém o resultado desejado: à
medida que se tornar clara a hostilidade dos sobreviventes dos assassínios de
Himmler e de Göring, ele passará a ser o homem cuja equidade e moderação
não podem ser postas em dúvida. Lutze, especialmente, está persuadido de
que o Führer ordenou apenas a execução dos sete chefes da SA: “Inútil falar
nas execuções decididas pelo Führer. Elas não se prestam a qualquer
discussão”.
Quaisquer que sejam os pensamentos secretos de Hitler, uma coisa é certa: os
que obtiveram dele, num momento ou em outro, a segurança de ter a sua vida
salva, continuam, apesar disso, em perigo. O Führer tem apenas uma palavra,
mas ela dura pouco. E já na noite de 30 de junho para l.° de julho Himmler e
Göring esforçam-se por convencer Hitler: estão decididos a obter a cabeça de
Röhm. Na manhã de 1o de julho, Hitler mantém-se firme. Ao meio-dia,
Himmler e Göring vencem a parada: o chefe de brigada SS Theodor Eicke
recebe ordem de abater Röhm. Hitler pede a Eicke que tente convencer Röhm
a suicidar-se. Entrega a Eicke uma pistola carregada com uma bala e,
acompanhado do Sturmbannführer SS Michael Lippert e do Gruppenführer
SS Schmauser, porta-voz da SS junto à Reichswehr, Eicke vai a Stadelheim.
O diretor Koch cria dificuldades. Recusa-se a entregar Röhm sem uma ordem
escrita, e chama o Ministro da justiça Franck. Este dá razão a Koch. Eicke
arranca então o aparelho das mãos de Koch e diz ao ministro que isto não é
assunto para ele, que não se meta em seus negócios, a ordem vem do Führer
—- e desliga. Koch cede e designa um guarda para acompanhar os senhores
até a cela 474.
Sentado com o peito nu, Röhm vira um pouco a cabeça quando a porta se
abre, rangendo. Eicke penetra na cela, coloca sobre a mesa o revólver
carregado e a última edição do Völkischer Beobachter, que menciona a
destituição de Röhm, e diz: “Você estragou sua vida. O Führer dá-lhe ainda
uma oportunidade para que você tire as conclusões necessárias”. Depois,
antes de sair: “Você tem dez minutos”. Os três SS esperam diante da porta da
cela. Nada se mexe no interior. Eicke olha o seu relógio. Passa-se um quarto
de hora. Saca o seu revólver, Lippert faz o mesmo. Empurra a porta da cela e
exclama: “Röhm, prepare-se!” Na mão de Lippert, a pistola treme. Eicke diz
em um tom glacial: “Mire lenta e tranquilamente”. Ouvem-se dois tiros.
Röhm cai para trás e murmura em um suspiro: “Meu Führer, meu Führer”.
Eicke, em tom sarcástico: “Era preciso pensar nisso um pouco antes, agora é
um pouco tarde”. Röhm respira dificilmente. Um dos dois SS — nunca se
saberá qual — acaba de matá-lo com uma bala no peito. Ernst Röhm,
fundador da SA, rival da Reichswehr, o único amigo que Hitler jamais tivera,
estava morto. Estamos a 1o de julho de 1934. São 18 horas.
O fim de Röhm é seguido de uma nova série de execuções. No dia seguinte,
na casa da Colônia, em Berlim, segunda prisão da SS, o Gruppenführer SA
Karl Schreyer escuta com inquietude o ranger das portas das celas, as ordens
que se transmitem, os tiros que se disparam. Schreyer conta: o
Obergruppenführer SA Falkenhausen cai às duas horas: às 2h30min é a vez
do Gruppenführer von Detten; meia hora depois, Ritter von Krausser,
anteriormente agraciado por Hitler.
Às três horas, a porta da cela de Schreyer é brutalmente aberta. Pernas
afastadas, um Truppführer SS está à entrada. Atrás dele, dois SS com baioneta
calada. O Truppführer: “Schreyer, fora! Você será executado por ordem do
Führer”. Schreyer: “Eu peço um julgamento prévio”. O Truppführer: “Isto lhe
agradaria, hein? seu traidor! Mas não há possibilidade. Você será fuzilado.
Faça como os outros, ponha sua cabeça na torneira de água fria, assim você se
sentirá refrescado e dará boa impressão”. No fim de algum tempo, vêm buscar
Schreyer, mas depois o devolvem à sua cela. Decidiu-se que será fuzilado em
Lichterfeld, na escola de cadetes, mas o carro que deve conduzi-lo ainda não
chegou. Pouco depois chega o carro. Tiram novamente Schreyer da cela,
levam-no para a porta da prisão onde o automóvel estaciona. Ele se prepara
para subir quando chega, correndo com a capota aberta, uma enorme
Mercedes. O automóvel para. Um Standartenführer da Leibstandarte sai e
agita os braços gritando: “Pare! Pare!” Aproxima-se e explica: “Parem! O
Führer deu sua palavra a Hindenburg de que os fuzilamentos cessariam
imediata e definitivamente”.
O relógio marca quatro horas, em 2 de julho de 1934. O III Reich acaba de
escrever na História o seu primeiro massacre. Oitenta e três homens sofreram
morte brutal, sem que lhes dessem a menor oportunidade de defesa, sem
qualquer preocupação de legalidade.
Um hurra geral ressoa nos quartéis da Reichswehr. Nos cassinos de oficiais
toma-se champanha. O Major-General von Witzleben “lamenta não ter
participado”. O Ministro da Defesa von Blomberg louva a “firmeza dos
militares e a coragem excepcional demonstrada pelo Führer nesse episódio”.
Apenas Erwin Planck, antigo secretário de Estado da chancelaria do Reich,
tem escrúpulos. Diz ao General von Fritsch: “Quem aprova tais ações, como o
senhor próprio fez, sem intervir, sem tentar parar a carnificina, arrisca-se a
sofrer cedo ou tarde sorte semelhante”.
Planck não imaginava o quanto era certa a sua previsão: von Fritsch será
vítima de uma intriga análoga à sofrida por Röhm; von Witzleben terminará
seus dias pendurado em um gancho de açougueiro. Quanto aos outros, muito
breve vão lembrar-se com mal-estar do “caso Röhm”. Muito cedo se
perceberá que a Reichswehr não saiu vitoriosa da orgia sangrenta; vitoriosa
foi a SS de Heinrich Himmler. Liberada da tutela da SA, recebe de Hitler a
autorização necessária para constituir unidades armadas, para grande desgosto
da Reichswehr.
30 de junho de 1934 é uma data capital, sob vários aspectos, na história do III
Reich: Hitler vai poder assumir o poder total com que sonha; as lutas internas
serão doravante determinadas pela existência de um eixo Himmler-Göring;
uma falha existirá, a partir de agora, na base do edifício nazista: a irredutível
hostilidade entre a SA e a SS. A partir de hoje, os dois grupos vão entregar-se
a uma guerra subterrânea, que só terminará quando terminar o Reich milenar.

A Ordem Negra

Os OFICIAIS, industriais, professores, proprietários de terra são convidados


para uma conferência a ser proferida por Himmler em Munique. Vêm cheios
de desconfiança, pois já se habituaram, desde algum tempo, a ser tratados em
todas as ocasiões de decadentes, amigos de judeus etc. Mas hoje Heinrich
Himmler é todo mel. Em lugar dos ataques veementes, esses senhores são
convidados pelo Reichsführer a emprestar à SS sua colaboração, a fim de que
ela se torne o que deve ser: o lugar de encontro das camadas sociais mais
diversas, das mais diversas correntes da tradição.
“Cada Estado”, declara o Reichsführer, “necessita de uma elite. A elite do
Estado nacional-socialista é a SS. Ela ê o lugar onde se perpetuam, sobre a
base da seleção racial conjugada às exigências do tempo presente, a tradição
militar alemã, a dignidade da nobreza alemã e a eficácia do industrial
alemão.” Todo o auditório está surpreendido pelas palavras de Himmler. Com
efeito, o tom é completamente diferente daquele que estavam habituados a
ouvir na boca de nazistas Resultado: no final da conferência, quase todos os
ouvintes inscrevem-se na SS.
Este fato, tirado do ano I do calendário nacional-socialista, mostra com que
habilidade Himmler sabe apresentar ao público a SS. Ela goza de um prestígio
considerável. No espírito das pessoas, a SS nada tem a ver com a soldadesca
parda.
O tema da elite, caro ao coração dos alemães e cuidadosamente explorado por
Himmler, faz furor. A SS é a sua maior beneficiária. As mortes de 30 de junho
de 1934 não diminuíram o respeito dos burgueses pela Ordem himmleriana. O
temor da SA, que exercia sua soberania na rua, e o descanso por verem
afastado o perigo suplantam, neste caso, o sentimento tradicional de justiça.
Os assassínios dos adversários burgueses do regime, os gritos dos chefes SA
executados são esquecidos. A nação inteira está governada por uma só
preocupação: nunca mais ser amolada pelos espadachins de camisa parda. Os
alemães ainda não tomaram consciência da “mascarada do mal” (Dietrich
Bonhoeffer), ainda não sabem que na antecâmara da ditadura a preocupação
pela ordem e pelo respeito é apenas um biombo que dissimula ou justifica as
restrições a serem feitas à liberdade individual.
Para deixá-los ainda mais na ignorância, eis que lhes dão uniformes à
vontade. E que uniformes! Não um uniforme qualquer! É um uniforme negro.
A cabeça é coberta por um boné de couro negro, ornamentado por uma
caveira em prata. Roupa negra, camisa parda com botões e braçadeira negros.
Sobre a farda, atravessando o peito, uma banda de couro, também negra. Para
completar, calças e botas negras.
O inventor dessa maravilha não deixou nada ao acaso. Tudo foi calculado
para agradar o sentido profundo do respeito pela hierarquia, tão vigoroso nos
alemães. Há muitos sinais distintivos: um bordado de prata no braço direito
representa “um velho guerreiro”; um losango com as iniciais SD significa que
o homem faz parte do terrível e misterioso Sicherheitsdienst ou Serviço de
Segurança do Reich. Quanto aos graus, eles se espalham e se marcam em
nuanças infinitas: sobre os ombros, sob a forma de galões de prata, no
pescoço, sob a forma de uma ou várias folhas de carvalho unidas a uma
estrela no caso de um Obergruppenführer.
Apresentação impecável. Mantém-se toda a dignidade em todos os graus da
escala SS. Toda esta preocupação exterior é a expressão, segundo as palavras
de Himmler, de uma “obediência e de uma disciplina sem falha”. Todos estão
seduzidos. Verdadeiramente, nada têm a ver com a SA. E vêm de toda a parte.
Himmler abre largamente as portas, recebe os recém-chegados, entroniza-os.
Mas quem são esses recém-chegados? Até agora a imagem social da SS era
determinada por três grupos: os antigos livres-combatentes, os intelectuais
cujos estudos haviam sido interrompidos pela crise econômica, e, afinal, os
pequenos burgueses, veteranos do Partido. Os SS da primeira hora já não são
tão numerosos. Resta apenas um pequeno grupo de oficiais superiores, que
ocuparão, até a queda do III Reich, os postos-chave da Ordem.
O afluxo começa em março de 1933 com a nobreza. Já antes da tomada do
poder, alguns aristocratas notáveis haviam entrado na SS. Entre eles, o grão-
duque de Mecklemburgo, o príncipe de Waldeck e Pyrmont, os Príncipes
Wilhelm e Cristof de Hesse, os Condes Bassewitz-Behr e von Pfeil-Burghaus,
os Barões von Tüngen, von Geyr, von Reitzenstein e von Malsen-Ponickau.
O movimento ativa-se na primavera de 1933. O príncipe de Hohenzollern-
Ermden e o Conde von der Schulenburg entram na SS. A fina flor da
aristocracia prussiana segue suas pegadas e logo não haverá qualquer nome
ilustre que não faça parte da Ordem Negra. Em 1938, os aristocratas em
uniforme negro ocupam grande parte dos postos de comando superior, de
Obergruppenführer (18,7%) até Standartenführer (8,4%).
Esta onda aristocrática é seguida por outra, proveniente da média burguesia.
Ao contrário de seus predecessores da década dos vinte, trata-se na maioria de
intelectuais que fizeram estudos universitários completos (frequentemente
jurídicos), influenciados pelas idéias do movimento juvenil alemão. Em geral,
exercem seus talentos no SD, ao qual darão, como aliás ao conjunto da SS,
sua capacidade tecnocrática, o movimento implacável de uma máquina bem
lubrificada.
A esse grupo de intelectuais vêm reunir-se jovens cientistas, que constituirão
o estado-maior das indústrias SS. Não são diferentes dos técnicos que regem
hoje a economia da Alemanha Ocidental. O universo da SS interessa-lhes
apenas na medida em que lhes abre uma carreira segura.
Há ainda um número importante de trânsfugas da Reichswehr. Entram na
Verfügungstruppe ou VT, antecessora da Waffen-SS, no momento de sua
criação em 1934. São, frequentemente, oficiais monarquistas, muito
diferentes em seu espírito conservador dos SS da primeira hora, do gênero
Sepp Dietrich. Muitos entre eles são atraídos pelo caráter experimental
daquilo que se tornaria a Waffen-SS.
Há, enfim, jovens agricultores sem futuro. Aos mais dotados, Himmler
oferece o que a Reichswehr não lhes dá: uma escola especial que lhes permite
fazer carreira de oficial, apesar de seu nível de instrução inicial médio ou
elementar. Quanto aos outros, constituirão o grosso das “tropas cabeça de
morte” (Totenkopfverbände), destinadas a vigiar os campos de concentração.
A mistura social que caracteriza a SS torna-se ainda maior com a criação, por
Himmler, de um grupo SS muito particular: os oficiais ad honorem chamados
Ehrenführer. Esse título é reservado essencialmente a funcionários influentes,
a cientistas, a diplomatas, dos quais se necessitam as boas graças. Ele autoriza
os beneficiários a usar o uniforme negro correspondente ao grau que Himmler
lhes outorgou. Mas não têm nenhum poder efetivo no seio da SS.
A manobra é extremamente hábil. A imagem social da SS torna-se ainda mais
diversificada e até confusa, mas, com esse expediente, a Ordem de Himmler
finca, verdadeiramente, o pé no Estado.
Pouco importa a Himmler o que sentem realmente a seu respeito as
personalidades a que dá o título de Ehrenführer. O que conta é o brilho. É
assim que obtém o título de Brigadeführer SS o diplomata, secretário de
Estado para Assuntos Estrangeiros e homem de base da oposição, Ernst
Freuherr von Weizsäcker. Por outro lado, os graus de Ehrenführer tão
generosamente distribuídos por Himmler não impedem os beneficiários de
tentar prejudicar a SS: o Gruppenführer SS ad honorem Eggert Reeder,
administrador chefe do exército, proíbe Himmler de imiscuir-se em problemas
de seu cargo; Rudolf Diels, presidente do Governo de Colônia, Oberführer SS
ad honorem, bate-se como um demônio contra a interferência da Gestapo em
seus assuntos.
Himmler recruta sem descanso. Chega mesmo a integrar na SS organizações
inteiras, desde que veja nelas a mínima possibilidade de aumentar sua
influência. É assim que anexa à SS as sociedades hípicas, o que lhe abre
inteiramente as portas da boa sociedade rural.
Himmler pagou alto preço por essa anexação. Compromete-se a receber no
seio da SS todos os membros dessas sociedades, sem distinção de opiniões.
Se tira o proveito esperado — em 1937, os cavaleiros SS vencem todos os
concursos hípicos nacionais —, isso irá trazer-lhe também alguns
aborrecimentos. O fato de ser bom cavaleiro não significa ser, ao mesmo
tempo, um SS inteiramente ao gosto de Himmler. Em 1933, onze deles
recusam prestar o juramento SS e terminam no KZ.
Em julho de 1934, um comando SS abate o oficial de Cavalaria SS Anton
Freiherr von Hohberg und Buchwald, que entregou à Reichswehr informações
sobre os assuntos internos da Ordem Negra. Dez anos mais tarde, o
Sturmbannführer e cavaleiro SS Hans Viktor von Salviati é executado por
ordem de Himmler como inimigo de Hitler. E estes são apenas alguns
exemplos entre muitos outros.
Entretanto, Himmler não procura apenas recrutar. Procura também dinheiro
para sustentar as necessidades sempre maiores das associações SS.
Felizmente, os senhores da indústria alemã não se fazem muito de rogados.
Sob a égide de um clube que se intitula ‘‘Círculo de Amigos do Reichsführer
SS”, emprestam mão forte a Himmler no plano financeiro. Quais são as
razões que os levam a atender aos pedidos de Himmler? São várias. O
oportunismo inspira o Dr. Heinrich Bütefish, representante da firma IG
Farben; opiniões nazistas, o Dr. Werner Naumann; a hostilidade dissimulada,
o representante da firma Bosen, Hans Walz. Os motivos são diferentes, sem
dúvida, mas o resultado é um só: financistas e negociantes, nazistas ou não,
pagam tributo a Himmler. Todos, certamente, pensam em preservar-se da
cupidez do Partido. Logo a lista de aderentes do “Clube dos Amigos do
Reichsführer SS” é igual ao registro da Câmara de Comércio. Aí estão
representados, entre outros: o Deutsche Bank, o Banco de Dresde, o
Reichsbank, o Banco J. H. Stein; as sociedades de navegação do Lloyd Norte-
Alemão e a linha Hamburgo-América; as companhias petrolíferas, indústrias
alimentícias (Dr. August Oetker), siderúrgicas (Siemens-Schukertwerke,
Rheinmetall Borsig, Reichswerke Hermann Göring), indústrias farmacêuticas
etc.
O secretário-geral do clube, Kranefuss, convida os membros para sessões
plenárias de trabalho, às quais assistem os responsáveis importantes da SS. A
princípio, as sessões se realizavam duas vezes por ano, mas a seguir foram-se
tornando mais numerosas. A partir de 1936, Himmler passa regularmente na
caixa. Dirige-se primeiramente ao banqueiro von Schröder, membro eminente
do clube, a quem deixa entender que conviria pôr à disposição da SS algum
dinheiro para permitir-lhe realizar seus deveres em matéria social e cultural. O
banqueiro obedece e pouco depois as firmas representadas no clube declaram-
se prontas a atender ao pedido do Reichsführer. Os óbolos afluem à conta S,
aberta no banco J. H. Stein, presidido por Schröder. Depósitos anuais: um
milhão de marcos. O Banco de Dresde recebe os fundos da SS e os inscreve
numa conta especial R, onde o ordenança de Himmler, Karl Wolff, pode
assinar cheques. O Reichsführer SS está cheio de gratidão e os títulos SS
chovem sobre esses senhores: quinze entre eles são nomeados oficiais ad
honorem da SS, o que não lhes dá qualquer direito além de vestir, por
capricho, o uniforme negro correspondente a seu grau.
Aqueles a quem não agrada especialmente o uso deste uniforme ou que não
têm meios para assegurar-se de tal privilégio, Himmler propõe outra forma de
associação. Concede à SS o direito de se autofinanciar e de recrutar membros
“associados” (Förderndes Mitglied) ou FM. Esses membros associados não
são obrigados a prestar juramento a Hitler e continuam perfeitamente
independentes da SS. Depois de tomar o poder, a SS faz uma verdadeira
campanha de propaganda, destinada a garantir o concurso de membros
associados. O sucesso dessa campanha é facilmente explicável: aderindo à
organização de membros associados à SS, os alemães, nazistas tímidos ou
não-nazistas, evitam os “aborrecimentos” com o Partido, e isto por uma soma
que não poderia ser mais módica: a contribuição anual mínima fora fixada em
um marco.
Essas vantagens são apoiadas pelos instrumentos de sedução utilizados pelo
próprio Himmler: ele manda cunhar uma medalha com a cruz gamada e as
iniciais FM; cria um jornal da FM (tiragem: 365.000 exemplares no início da
guerra) e faz chegar a cada membro associado uma divisa que deve esclarecê-
lo sobre seus direitos e deveres:
É uma honra pertencer à SS.
É uma honra ser membro associado à SS.
Que cada um cumpra o seu dever.
Nós, os SS e vós, os membros associados,
Cada um em seu lugar e a Alemanha ascenderá a uma nova grandeza.
Graças a esta propaganda engenhosa, o exército fantasma dos FM cresce e
ultrapassa rapidamente em número as tropas ativas do Reichsführer. As caixas
da Schutzstaffel enchem-se a olhos vistos: em 1932, 13.217 membros
associados pagam-lhe 17.000 marcos; em 1933, 167.272 membros associados
entregam às caixas 357.000 marcos; em 1934, são 342.492 e fornecem à
tesouraria SS a soma considerável de 581.000 marcos.
Todos esses membros associados, aos quais se acrescentam os oficiais ad
honorem e um grande número de homens e de oficiais da ativa incorporados
em um momento ou outro por pressão das circunstâncias, terminam por fazer
da Ordem Negra um conjunto que não poderia ser mais heterogêneo. De fato,
há aí oficiais superiores que não sabem sequer a primeira letra do alfabeto
nazista.
O próprio Himmler tomará pouco a pouco consciência disso. Dirá em 1937
que ‘‘a ameaça da massa” pesou sobre a SS, que a SS “recebeu em seu seio
uma multidão de homens cujas intenções nem sempre eram puras e que
estavam longe de ser idealistas”. Acrescenta o Reichsführer que o problema
parece-lhe atualmente resolvido. Na realidade, o problema existirá enquanto
existir a SS.
De qualquer forma, a partir de 1933 Himmler suspende o recrutamento de
novos adeptos. De 1933 a 1935, tende a rejeitar “todos os que não valem
nada”. 60.000 SS são licenciados em dois anos.
Principais vítimas dessa depuração: os oportunistas excessivamente notórios,
os alcoólatras, os homossexuais, as pessoas cuja ascendência “ariana” é
problemática, enfim, um bom número de espadachins da primeira hora. Na
época, utilizavam-nos para ameaçar os adversários do Partido, mas eles já não
correspondem à idéia que Himmler faz de sua tropa de elite. Mesmo os
profissionais do desemprego são escrupulosamente afastados da SS. Himmler:
“Um homem que varia pela terceira vez de empregador, sem motivo
verdadeiramente válido, deve ser posto pela porta afora. Nada temos a fazer
com esse tipo de gente”.
A caça aos homossexuais é particularmente severa. Para Himmler, é um crime
que merece a morte, e mesmo companheiros da primeira hora, como o
Gruppenführer Kurt Wittje, são afastados da SS. Por mais vigilante e
cuidadoso que seja Himmler sobre esse problema, nada igualará à sua
obstinação quanto à “pureza de sangue” de seus homens. A partir de lº de
junho de 1935, cada oficial SS, do Sturmführer ao oficial superior, um pouco
mais tarde todos os oficiais subalternos e afinal todos os homens de tropa, são
obrigados a fornecer prova que nem eles nem suas mulheres têm qualquer
ascendência judaica.
Assiste-se então a uma verdadeira romaria aos registros das igrejas e outras
fontes de informação, pois é importante fornecer ao Reichsführer uma árvore
genealógica de ponta a ponta “ariana”. Esta árvore deve remontar a 1800 para
os homens de tropa, a 1750 para os oficiais. Numerosos são os homens e
oficiais, sobretudo subalternos (Himmler mostra-se um pouco menos exigente
quando se trata de personagens importantes), então excluídos da Ordem.
Mas a depuração não basta para fazer da SS um grupo verdadeiramente
homogêneo. Será preciso criar uma mentalidade, um espírito de corpo, um
código de honra. Em suma, é preciso passar da organização SS à Ordem SS.
Modelo de Himmler: a Companhia de Jesus. O Reichsführer SS, a quem
Hitler chamava frequentemente seu “Inácio de Loyola”, que outros
chamavam “o jesuíta negro”, encontra verdadeiramente na Sociedade de Jesus
os elementos que lhe parecem necessários para a criação de uma tal
mentalidade: doutrina de obediência cega, culto da organização.
A princípio, as analogias históricas entre as duas organizações parecem
numerosas. Como a Companhia de Jesus, a SS goza de um estatuto particular
que a torna independente de toda jurisdição; é protegida por critérios severos
de recrutamento; e sua unidade interna repousa apenas sobre o juramento
prestado ao Führer. Como os jesuítas do Paraguai, os SS sonham com um
Estado a ser criado além do Reich, o Reichsland Burgund, que possuirá um
governo, um exército, uma administração autônomos e uma delegação em
Berlim. Como acontecera aos jesuítas no interior da Igreja, nascem e
renascem os inimigos da SS no interior do Partido. Como entre os jesuítas,
onde se discutirá se a contrarreforma deve ser feita pela espada ou pela
palavra, a SS se perguntará se seu destino é o de ser o fermento espiritual do
nacional-socialismo ou a polícia do regime.
Quanto à estrutura interna da SS, é copiada ponto por ponto da Ordem
fundada por Inácio de Loyola. À frente, um general. Ao lado do chefe
supremo, não um conselho de jesuítas, mas serviços especializados dirigidos
por conselheiros do Reichsführer em tal ou qual domínio: direção central SS
ou “estado-maior do Reichsführer SS” sob as ordens de Karl Wolff; serviço
central de segurança, Sicherheitsdienst ou SD, dirigido pelo Gruppenführer
Reinhard Heydrich; serviço central da raça e do povoamento, dirigido pelo
Obergruppenführer Walther Darré, “superintendente-geral” da pureza
ideológica e racial dos adeptos da SS; serviço da justiça SS, sob as ordens do
Brigadeführer Paul Scharfe; centro técnico-administrativo para o conjunto das
unidades SS, exceto o SD, sob as ordens de August Heissmayer, depois do
afastamento de Wittje.
Outros serviços centrais paralelos nascerão no seio deste centro técnico-
administrativo, à medida que os problemas de administração e de gestão
financeira se multiplicam. O serviço inicial tomará então, sob a direção firme
do mesmo Heissmayer, a forma de um organismo supremo de controle dos
campos de concentração.
Emissários desses diferentes serviços centrais inspecionam sem trégua as
tropas SS e seus oficiais, punem a menor indisciplina, a menor falta às
exigências do serviço, seja no nível da tropa ou entre os chefes. Os oficiais,
mesmo superiores, não escapam a essas contínuas inspeções.
Posta em movimento a organização, Himmler pode orientar seus esforços
para outro ponto do programa, ou seja, a criação de um tipo propriamente SS,
sobre as bases dos critérios fornecidos pelo serviço da raça e do povoamento
— Rasse und Siedlungshauptamt, RUSHA. O Professor e Hauptsturmführer
SS Bruno K. Schulz é encarregado de elaborar um sistema de valores
mensuráveis, do qual se possa utilizar a comissão racial destinada ao exame
dos candidatos SS. Fascinado, de acordo com a tradição nazista, pela imagem
do homem ariano de cabelos louros e olhos azuis, o professor distingue cinco
grandes grupos humanos: os “puros nórdicos”, homens com preponderância
nórdica: homens onde “a mistura entre as características nórdicas e
meridionais efetuou-se harmoniosamente”; grupos provenientes de misturas
entre homens do Leste e meridionais ou alpinos: enfim, os não-europeus.
Só as pessoas pertencentes aos três primeiros grupos podem ser recrutadas
pela SS. Isso já é uma concessão do Reichsführer, concessão provisória por
sinal: em poucos anos, pensa Himmler, não incluirá na SS senão aqueles que
corresponderem às normas ideais; e dentro de 125 anos, no máximo, o povo
alemão terá voltado ao seu aspecto nórdico-germânico ideal.
Mas não basta a raça. É preciso, ainda, que o homem candidato à Ordem seja
“harmoniosamente construído”. Criador de galinhas, Himmler declara: “É
preciso que as proporções sejam respeitadas, que o cumprimento das pernas
seja proporcional ao do tronco, condição para um andar agradável e eficaz”.
O Professor Schulz estabelece um sistema de notação em nove pontos: só os
candidatos que obtêm uma das quatro primeiras notas — estatura ideal,
excelente, muito boa, boa — são admitidos na SS. “Pois”, diz ainda Himmler,
“o que conta, sobretudo, é que o candidato não tenha aparência de empregado,
que seu andar, suas mãos, tudo enfim corresponda ao ideal que nós queremos
realizar”.
O candidato que tenha passado com êxito pelos exames da comissão racial
precisará, antes de integrar realmente a SS, dar provas de seus méritos. Na
Companhia de Jesus, o noviço passa por dois anos de severas provas,
entregando-se a inúmeros exercícios de piedade antes de pronunciar o voto
solene de “pobreza, castidade e obediência”. Com Himmler acontecerá a
mesma coisa. As etapas do noviciado SS seguem o calendário nacional-
socialista. Em 9 de novembro, dia de aniversário do putsch da cervejaria de
Munique, o candidato SS, com dezoito anos, é nomeado Staffelbewerber ou
aspirante e usa o uniforme negro sem divisas. Em 30 de janeiro (tomada do
poder pelo nacional-socialismo), é-lhe entregue uma carteira de identidade SS
provisória. Em 20 de abril, aniversário do Führer, passa a usar uniforme
completo e obtém uma carteira de identidade definitiva, podendo prestar
juramento ao Führer: “A ti, Adolf Hitler, Führer e chanceler do Reich, presto
juramento de fidelidade e de coragem. Eu te juro, a ti e aos chefes por ti
designados, obediência até a morte. Que Deus seja testemunha”.
O cerimonial reveste-se de um aspecto mais solene ainda entre os
Verfügungstruppe ou VT, futura Waffen-SS, do que na SS comum
(Allgemeine SS). O juramento é prestado todos os dias 9 de novembro na
presença do Führer. É com emoção que Emil Helfferich, antigo membro do
Partido, evoca ainda hoje “o juramento de meia-noite em frente à
Feldernhalle, em Munique. Belos jovens, cheios de seriedade, de dignidade,
vestidos em seu uniforme impecável. Verdadeiramente, uma elite. As
lágrimas subiam aos olhos quando esses milhares de homens prestavam, à luz
das tochas, seu juramento solene. Uma verdadeira oração”.
Mas o juramento do aspirante à SS comum (20 de abril) não terminava o ciclo
do período probatório. Antes de realmente entrar em funções (1o de outubro),
deverá passar por provas esportivas e aprender o catecismo SS, cujo jogo de
perguntas e respostas introduz o aspirante no coração da liturgia hitlerista:
Pergunta: Por que acreditamos na Alemanha e no Führer?
Resposta: Acreditamos na Alemanha porque acreditamos em Deus, que criou
a Alemanha no mundo e que nos enviou um Führer para dirigi-la.
Pergunta: A quem devemos servir em primeiro lugar?
Resposta: Estamos a serviço do nosso povo e do nosso Führer Adolf Hitler.
Pergunta: Por que obedeces?
Resposta: Por convicção, porque minha fé pertence à Alemanha, ao Führer, ao
Partido, à SS; e por lealdade.
Ao fim desses exames esportivos e ideológicos, o aspirante, depois de um
estágio na Arbeitsdienst e na Wehrmacht, é definitivamente integrado na
Schutzstaffel. Mas só depois de ter jurado observar escrupulosamente o edito
sobre o casamento, pelo qual o Reichsführer SS impõe a seus homens o dever
de respeitar os critérios raciais SS e de não se casar senão com aprovação
oficial da RUSHA ou de Himmler.
O novo membro da Ordem recebe então o punhal SS. Faz parte, agora, dessa
seita bizarra, onde o fanatismo nazista se alia a costumes quase feudais, onde
o gosto pela mitologia germânica está ao lado do sentido dos negócios
econômico-políticos e da fria razão de Estado.
O espírito de corpo SS, o sentido que cada SS deve ter de sua posição
particular — e superior — no seio do Estado e da nação, é reforçado pela
instituição de uma jurisdição propriamente SS. O Juiz SS Scharfe proclama
que nenhuma outra jurisdição, exceto a da SS, poderá julgar um membro da
Ordem. Um tribunal excepcional nasce para cobrir o conjunto da Ordem. O
SD, as tropas VT, as associações de cabeça de morte, os centros de
treinamento SS ou Junkerschulen, todos os oficiais a partir do
Sturmbannführer escapam às jurisdições habituais e, simplesmente, à justiça.
O Reichsführer SS estipula que cada membro da Ordem tem o direito e o
dever de defender sua honra, se julgar que ela está em causa. Ainda mais, tem
o direito de defender essa honra pelas armas. Um vestígio de feudalismo
renasce: o duelo.
Todo SS é autorizado, com a aprovação prévia do Reichsführer SS, a bater-se
em duelo — as armas devem ser sempre escolhidas pelo adversário, contra
um membro da Ordem pelo qual se julgue insultado. Em certas circunstâncias
particulares é de bom-tom para um SS suicidar-se. Esses critérios de valor,
próprios aos homens da Ordem, esses usos pelos quais se distinguem do resto
da sociedade alemã, são marcados por sinais misteriosos. Tais sinais
contribuem para desenvolver o sentido de uma hierarquia particular, que deve
suscitar a emulação no interior da Ordem e exercer uma sedução misturada
com temor entre os profanos.
A maçonaria negra de Himmler conhece dois signos distintivos: o anel de
prata ornado com uma caveira e o punhal de gala. A princípio reservado aos
combatentes da primeira hora, o anel de prata acaba sendo usado por todos os
oficiais SS com três anos de serviço. O punhal não é outorgado senão aos
chefes a partir de Untersturmführer, e isto, não de acordo com um
regulamento oficial — como é o caso do anel —, mas apenas em virtude do
gosto pessoal do Reichsführer. Ele é, no entanto, automaticamente entregue
aos filhos queridos de Himmler, os candidatos SS aprovados no exame final
das escolas SS ou Junkerschulen. No fim da guerra, possuem esse punhal 362
Standartenführer sobre 621, 230 Oberführer sobre 262, 91 Obergruppenführer
sobre 92 e quatro Oberstgruppenführer sobre os quatro existentes.
Mas Himmler ainda não estava satisfeito. Na linha do romantismo histórico, o
Reichsführer SS toma o exemplo do rei dos Celtas, Artus (500 anos a.C.),
cuja estória havia lido numa coletânea de lendas que tanto o distraíam, e não
tolera em sua mesa senão os doze Obergruppenführer que considera mais
meritórios, usando o exemplo desse rei, que não aceitava em seu círculo
imediato senão os doze cavaleiros mais corajosos. Os eleitos reuniam-se para
sessões solenes de meditação em Wewelsburg, perto de Paderborn, na
Westphalia. Castelo que datava do tempo dos Hunos, transformado no século
XVII, o Wewelsburg, com o nome do cavaleiro assaltante Wewel von Büren,
reúne todas as características da construção medieval, cheia de significação
para um temperamento sonhador, mistura encantos ultrapassados e mistérios
amedrontadores. É neste Walhalla, neste Castelo do Graal, que o Reichsführer
SS recebe os seus cavaleiros. As reuniões efetuam- se numa sala de 35 metros
de cumprimento por 15 de largura. Os cavaleiros sentam-se com o
Reichsführer SS em poltronas de couro com espaldas altas, em volta de uma
mesa de carvalho. Sobre a mesa, pequenos marcos com o nome de cada herói.
Todos têm, no castelo, seus apartamentos pessoais. Cada um deles é
mobiliado em um estilo próprio e traz o nome de um personagem histórico
célebre.
Sob esta sala, num porão em ogivas, com paredes de 1,80 m de espessura,
repousa o santo dos santos da Ordem: é o local do culto negro, o reino dos
mortos.
No meio deste subterrâneo há uma abertura semelhante a um poço. Duas
escadas permitem a descida. O fundo do buraco tem a forma de uma grande
concha. É aí que devem ser incinerados os escudos dos cavaleiros da Ordem
já mortos.
O romantismo de Himmler encontra aqui elementos para desenvolver-se. O
Reichsführer considera a SS como a ressurreição da Ordem dos Cavaleiros
Teutônicos. Como eles, tem também a sua Marienburg. Como eles, os mortos
mais célebres serão enterrados sob o coro da capela do castelo. Nada é mais
caro ao seu coração do que esse santuário e nada poupará para mantê-lo.
Trabalhos de transformação, instalações de apartamentos, uma biblioteca de
12.000 volumes, uma sala de reuniões e uma outra sala destinada ao tribunal
superior SS. Este brinquedo lhe terá custado, pelo fim da guerra, cerca de 13
milhões de marcos.
Treze milhões gastos apenas nessa empresa. Pois Himmler, encantado pela
mitologia germânica, criará em 1936 uma sociedade para a restauração dos
monumentos históricos alemães. As empresas da sociedade se
circunscreverão, bem entendido, aos períodos do passado alemão que
correspondam à ideologia anticristã e antieslava do Reichsführer SS (castelos
dos cavaleiros teutônicos etc.).
Himmler: “Essas coisas nos interessam, pois elas são da mais alta importância
no combate ideológico e político que levamos a cabo”.
É desta ideologia também que participa o culto votado por Himmler ao Rei
Henrique I (876 a 936), vencedor dos eslavos. Em 2 de julho de 1936,
aniversário de sua morte, o Reichsführer jura solenemente no túmulo deste
rei, na igreja de Quedlinburg, perseguir e levar a cabo a missão oriental do rei
dos saxões. A partir de 1936, Himmler irá recolher-se cada ano, em 2 de
julho, no túmulo desse inimigo histórico dos eslavos. Todas as ocasiões serão
oportunas para fazer alusões ao seu ídolo. Fascinado pelo espiritismo, o
Reichsführer SS pretende ter o dom de invocar os espíritos dos mortos, desde
que eles tenham falecido há, pelo menos, cem anos. Confia a seu massagista,
Kersten, que o espírito de Henrique I lhe aparece frequentemente quando está
sonolento e transmite-lhe conselhos preciosos. Himmler habitua-se pouco a
pouco a começar suas frases com esta fórmula: “No caso, o Rei Henrique
teria feito isto ou aquilo”, e tudo leva a crer que ele se considera
definitivamente uma reencarnação desse personagem.
Evidentemente, esse delírio histórico com características ocultistas está
estreitamente ligado à ideologia nazista. De fato, haverá alguma coisa que
mais a SS possa amar do que esse culto aos heróis da Germânia? Há aí uma
mística para a Ordem Negra. Mística que, além disso, não é própria à SS, mas
corresponde à corrente ideológica do nazismo em geral.
Pois a SS não tem ideologia própria. A RUSHA lamentará sempre a falta de
interesse da Verfügungstruppe SS e da Allgemeine SS por todas as questões
ideológicas. As noites de estudo — ou Schulungsabende -— serão sempre as
reuniões SS menos frequentadas. O Gruppenführer Zech assinalará que os
oficiais SS parecem até consagrar suas noites com mais prazer à bebida do
que aos cursos noturnos. O Dr. Caesar, Standartenführer, responsável pelos
serviços de educação SS, lamentará que “os cursos de política racial não
encontram nenhum interesse entre os homens”.
Esta falta de interesse não agrada a Himmler, absolutamente desejoso de que
a SS se distinga, por uma formação e usos próprios, da massa nazista. É com
essa finalidade que, explorando o passado alemão, interpretado aliás de forma
inteiramente fantasiosa, o Reichsführer tenta provocar o renascimento de um
certo número de costumes ancestrais, instituir de alguma forma um
neopaganismo germânico. Esta tentativa leva Himmler a regulamentar até a
vida privada de seus homens: casamento dependente de sua prévia aprovação
(a “prometida” deve submeter-se a um exame médico, destinado a demonstrar
a origem “ariana” e fornecer uma árvore genealógica também “ariana”). Os
dois candidatos ao casamento devem enviar uma fotografia deles próprios em
roupa de banho, a fim de que os serviços da RUSHA possam julgar a
harmonia do casal. Com a bênção do Reichsführer SS, o casamento pode
então celebrar-se. Será feito fora da Igreja, pois o casamento religioso fora
substituído pelas “núpcias ancestrais”. Durante a cerimônia, presidida pelo
chefe de unidade SS, os esposos trocam os anéis e recebem da SS, como
presente, pão e sal. Tudo deve afastá-los da Igreja, levá-los para um novo
culto. A presença de sacerdote é proibida no casamento e também em outras
ocasiões, como batismos ou falecimentos.
Na época do nascimento do primeiro filho, o Reichsführer faz chegar ao casal
um copo e uma colher de prata, com um guardanapo de seda azul, tudo
proveniente das fábricas da SS em Allach. Quando nasce o quarto filho, chega
um candelabro com a seguinte divisa: “És apenas um elo na cadeia eterna da
tribo”.
Mas os desejos de Himmler ainda estão longe de ser completamente
realizados. Ele sabe que não se impõe os usos, mesmo “ancestrais” e
“germânicos”, de um dia para o outro. Suas tentativas de substituir o Natal,
particularmente caro ao coração dos alemães, pelo “Julfest” não têm êxito.
Esse fracasso não é o único, e ele precisará rever seus editos severos sobre o
casamento. No início de 1937, 307 SS são expulsos da Ordem por terem-no
desobedecido. Em 23 de junho do mesmo ano, um aviso oficial determina que
o desrespeito desse edito não motivará a expulsão do faltoso. Em 1o de
novembro de 1940, Himmler declara oficialmente que todos os homens
excluídos da SS por terem contrariado a ordem sobre o casamento poderão ser
reintegrados se, pelo menos, satisfizerem os critérios de raça em vigor.
Enfrenta idêntico insucesso no campo da procriação. Himmler quer instituir o
sistema da família SS de quatro filhos. Propaganda, sistemas de creches ou
Lebensborn quase gratuitas nada conseguem. A família SS não se distinguirá
em nada da família alemã média (1,1 filho por família contra 1,4 na SS). A
luta contra as igrejas não é coroada de sucesso. 54,2% dos membros da SS
pertencem à Igreja Protestante, 23,7% à Igreja Católica Romana.
As tentativas “neogermânicas” de Himmler terão o mesmo efeito prejudicial.
As prescrições contra a Igreja afastam muitos homens da tentação de entrar na
Ordem. Uma parte da nobreza deixa Himmler e encontra lugar no seio da
Reichswehr. Os donativos dos membros associados FM caem de 581.000
marcos (1934) a 400.000 marcos (1936).
Os sargentos recrutadores do Reichsführer SS teriam sérias dificuldades se a
SS não tivesse outros poderes de sedução além desta faca de dois gumes que é
o culto dos germânicos. Há um critério sobretudo, o critério SS por excelência
e sem dúvida o único, que faz o equilíbrio e atrairá à SS homens de todos os
horizontes: o estilo de vida que lhe é próprio, pelo qual realmente ela se
distingue, efetivamente, do Partido e dos homens do Partido.
Esse “estilo de vida”, esse “estilo”, em uma palavra só reencontra-se com a
tradição viva dos corpos de livres-combatentes. “Não importa saber por que
lutamos, mas como lutamos”, teria dito à época Ernst Jünger, seu mais célebre
propagandista. Discípulo de Jünger, o jurista da SS Werner Best caracteriza
perfeitamente o perfil do chefe SS pela noção do “realismo histórico”. Em
1930, Best declara: “O que é necessário, o que é eterno, é a luta. Os objetivos
da luta evoluem ao sabor das circunstâncias, no correr do tempo. Pouco
importa então o resultado, o sucesso ou o fracasso. A moral não se mede em
termos de fundo mas de forma. Ela não responde à questão: ‘‘Por quê?” mas à
questão: “Como?”
Na ausência de toda finalidade, a ética resume-se a uma questão de
“desempenho”, noção que, em definitivo, é a marca essencial da mentalidade
SS. Himmler traduz isso pelo propósito tornado clássico que consiste em
dizer: “A palavra impossível não deve existir entre nós”.
Essa “divinização do desempenho”, como a chama o historiador Hans
Buchheim, atrai mesmo os não-nazistas às fileiras da SS. Há aí um critério
que corresponde a uma tradição universal de virilidade, ao gosto profundo de
uma vida compreendida em termos de competição.
Em 1930, Best crê ainda em um “bom combate”, em uma “moral do
heroísmo”. O guerreiro que ele descreve possui uma personalidade autônoma;
é um individualista honesto, responsável por seus próprios atos. Mas o
guerreiro em questão recebe suas ordens do alto. E ei-lo prisioneiro desta
ética não finalista, que o leva definitivamente a executar ordens criminosas.
Buchheim: “Aquele que não se preocupa com o porquê do seu combate, mas
unicamente com o como, está inteiramente disposto, se as circunstâncias o
exigem, a levar até o fim, com todo o heroísmo desejado, um combate
perfeitamente injusto e criminoso… Quando este guerreiro heróico acredita
dispor de si próprio, está em realidade, sem que tome consciência ou
tomando-a tarde demais, colocado a serviço do Estado totalitário”.
Werner Best o assinalará mais tarde. A noção romântica do realismo heróico
começa a se esterilizar já na época em que Best domina, ao lado de Reinhard
Heydrich, o aparelho terrorista e policial do III Reich. Pois esse instrumento
capital da ditadura de Adolf Hitler já está sob controle exclusivo da SS.

Heydrich e a Gestapo
PRETENSA origem judaica de Heydrich, desmentida pelo inquérito dirigido
no Partido por Gregor Strasser, vai prestar-se, no curso da carreira sangrenta
do temível chefe do SD e braço direito de Himmler, a muitos rumores e,
depois do fim do III Reich, a outros tantos comentários. Pois quanto maior a
importância de Heydrich, quanto mais se estende seu poder, mais a lenda de
sua ascendência judaica irá espalhar-se.
Os historiadores, sobretudo, concedem-lhe especial atenção. A origem de
Heydrich permite-lhes fazer um pouco de luz sobre esse personagem
monstruoso: um rompimento interior, um segredo terrível e pesado, o
sentimento de ser um renegado, explicariam a constância do personagem no
crime e o caráter impiedoso de seu fanatismo racial.
Reitlinger entrevê em Heydrich “uma aversão patológica ao seu próprio
sangue judeu”; H. G. Adler exprime a opinião de que “o III Reich deu a
Heydrich a possibilidade de destruir o germe judeu de que era portador,
fornecendo-lhe os meios de destruir fisicamente os judeus que o cercavam”.
Na realidade, todos os detalhes anedóticos acumulados sobre “a besta loura”,
como Heydrich foi muitas vezes chamado mesmo dentro da SS, todas as
interpretações dos atos significativos ou não de sua vida servem apenas para
dar ainda mais peso à idéia de que se pode passar a vida ao lado de um
homem, conhecer tudo a seu respeito e ao mesmo tempo não conhecer nada.
Pois Reinhard Heydrich não é, como se pretendeu, o Saint-Just da revolução
nazista, não é tampouco o fanático do racismo que se quis enxergar nele, nem,
seguindo a fórmula agradável do historiador Freund, “a encarnação satânica
do crime contra o espírito”.
Sem dúvida, é tentador comparar o duo Himmler-Heydrich à dupla Saint-Just-
Robespierre, mas a comparação é falha. No crime, os resultados de Heydrich
são muitas vezes superiores aos dos dois revolucionários franceses. Por outro
lado, e isso é mais importante, o idealismo de Saint-Just, doutrinário da
revolução burguesa, nada tem a ver com Heydrich.
O duo Himmler-Heydrich é completamente diferente. Trata-se do encontro de
dois arquétipos do século XX, ou seja, o ideólogo e o tecnocrata. Têm prazer
em referir-se à História, mas não farão outra coisa senão falsear a verdade
histórica em seu benefício exclusivo. Tanto um quanto outro tornaram-se
adversários da História, desenraizados que negam todas as normas morais e
humanas tradicionais.
Heydrich não tem senão um deus: o poder. O poder despido de sentido: o
poder pelo poder. Não detesta absolutamente os judeus. Eles serão apenas
formas sem almas, que lhe cabe suprimir em virtude de uma “preocupação de
higiene” que anima os escalões superiores do Partido, e suprimi-los segundo
um plano harmonioso, dentro de uma técnica tão eficaz quanto possível.
Heydrich tem apenas ressentimentos pessoais. Continuará com seu ódio,
apesar de todas as tentativas de reconciliação, contra o Almirante Erich
Raeder, que o excluiu da Marinha. A ideologia não é seu forte. As filosofias,
mesmo a filosofia parda, não lhe interessam. É sobretudo um desportista.
Esgrimista, excelente cavaleiro, aviador, bom esquiador, especialista em
pentatlo, conseguirá salvar alguns desportistas judeus de renome: é graças a
ele que o campeão alemão de esgrima Paul Sommer poderá emigrar para a
América; também fornecerá papéis e dinheiro ao campeão olímpico polonês
Kantor.
Quanto ao Führer, este elixir de vida de Himmler, Heydrich não lhe devota
uma fé incondicional. Não imagina uma Alemanha sem Heydrich; mas uma
Alemanha sem Hitler não lhe parece impossível. Técnico da força, apóstolo
da eficácia, o papaguear ideológico de Himmler sempre o aborrecera
profundamente. Sua irritação vai-se desabafar muitas vezes junto à esposa
Lina, que o escuta com prazer, porque detesta cordialmente “os Himmlers”,
especialmente a mulher do Reichsführer.
Entretanto, diante de Himmler, saberá sempre manter-se perfeitamente calmo,
evidenciando até um tom servil pouco usado na SS: “Sim, senhor
Reichsführer… se o senhor Reichsführer pensa que… o senhor Reichsführer
tem mil vezes razão… etc.”
Quanto ao senhor Reichsführer, este braço direito às vezes o incomoda. Um
verdadeiro mal-estar toma conta de Himmler cada vez que Heydrich vem
fazer-lhe seu relatório. “São”, confia ele a Kersten, “obras-primas de
concisão. Breve descrição da pessoa ou da situação, argumentos apresentados
por ordem crescente de importância, conclusão tirada como um traço por
baixo de uma soma. Depois disso, ele dá sua opinião sobre o problema e
sugere a posição que deve ser adotada.” Himmler fica encurralado diante de
tanta clareza. Não sabe como livrar-se dessas investidas. Em seguida, telefona
a Heydrich, declara que precisará antes de levar a cabo qualquer coisa
apresentar o problema ao Führer. Depois, uma solução diferente será
geralmente adotada por Himmler que, diante de Heydrich, alega supostas
ordens de Hitler. Uma vez o Reichsführer enfrentou Heydrich de frente. Com
as palavras mal arrumadas, a voz insegura, ele dirá: “Você, você… sua lógica,
sempre sua lógica. Tudo que você propõe vem apoiado na lógica. Já estou
cansado de você e de seu espírito crítico”. Heydrich retira-se, cede, e esquece.
Himmler sempre temerá possíveis rivais. Mas nunca considerará Heydrich
perigoso desse ponto de vista. Pois Heydrich não é estimado por ninguém e a
ninguém estima. À sua volta, há o deserto. Heydrich é o tipo de indivíduo que
sempre quer saber mais do que os outros, pretende sempre o primeiro lugar,
seja entre as mulheres de pequena virtude — que ele frequenta enormemente,
mas que não gostam do “homem com olhos de lobo” — ou nas salas de
armas, onde seus companheiros, apenas por temor, não se afastam do homem
logo que terminam as competições.
Se não tem inimigos declarados, também não tem amigos verdadeiros. Até
sua mulher, Lina, só se liga a Heydrich por laços sexuais.
Himmler, pelo menos, deixou atrás de si colaboradores que ainda hoje falam
com prazer da atenção afetuosa que o Reichsführer dedicava ao seu círculo
mais chegado. Heydrich, “o homem com coração de ferro”, como o próprio
Hitler o chamava, não deixará outra lembrança senão a da tranquilidade que
todos sentiam ao livrar-se dele. Comentário de Sepp Dietrich à morte de
Heydrich: ‘‘Deus seja louvado, afinal morreu esse porco”.
A agressividade de Heydrich, sua necessidade de afirmar-se, de ser
reconhecido como o mais forte, o mais inteligente, traduz evidentemente uma
certa fraqueza do homem e certamente o complexo de inferioridade do oficial
de Marinha fracassado, insucesso de que nunca se perdoará.
Com tais títulos, e considerando sua personalidade, Heydrich pode realmente
ser considerado o companheiro ideal de Himmler.
Além disso, os dois são conscientes do fato de que têm necessidade um do
outro. Sem Himmler, que tem seu lugar no seio da hierarquia nazista,
Heydrich não teria nenhuma possibilidade de ascender a uma função
importante, e muito menos de manter-se nela; sem a extrema lucidez e o
dinamismo de seu assistente, o pequeno-burguês Himmler sabe que teria
todas as possibilidades de perder-se no labirinto do Estado nacional-socialista
e de seus potentados.
O jovem a quem Himmler confia, em junho de 1931, a responsabilidade do
SD, é evidentemente um amargurado a quem se proibiu a única coisa
importante para ele: a carreira de oficial.
Nascido em 7 de março de 1904, em Halle, no Saale, a carreira de Reinhard
Tristan Eugen Heydrich foi igual à da maioria dos filhos da burguesia alemã
do pós-guerra republicano. Filho de um cantor de ópera e de uma comediante,
aluno do liceu de Halle, o jovem Heydrich deixa a casa paterna paralisada
pela crise econômica com a idade de dezesseis anos e entra nos corpos de
livres-combatentes do General Maerker. O seu sonho já é ser oficial. Saindo
dos corpos de livres-combatentes, vai para a Marinha que, como nos
lembramos, foi o primeiro amor de Himmler.
Em 1922, veste o uniforme dos cadetes da Marinha, em Kiel. Em seu
primeiro ano de formação, trava conhecimento com o Capitão-de-Corveta
Wilhelm Canaris, que desde o princípio se sente indisposto ao ver esse
adolescente magro “de olhos asiáticos”. Mas a esposa de Canaris, Erika,
entusiasma- se com os dons de violinista de Heydrich.
Em 1924, Canaris é nomeado para o Estado-Maior da Marinha em Berlim. O
marinheiro Heydrich sobe na escala da hierarquia: em 1926 é tenente. Depois
de ter servido em diversos navios, passa em 1928 a Oberleutnant. Faz exames
de língua russa e evidencia todos os talentos necessários a um oficial de
Marinha. Marca particular: não tem amigos e é cordialmente detestado por
seus homens.
O futuro parece-lhe assegurado, quando ei-lo envolvido em uma aventura
amorosa, que vai liquidar a sua carreira No verão de 1930, Heydrich conhece
uma jovem, Lina Mathilde von Osten. Em dezembro de 1930, contra a
vontade de seus pais, tornam-se noivos. No início, a ligação não é diferente
das outras de Heydrich, grande colecionador de sucessos femininos,
acostumado a numerosas e sucessivas amigas. Mas acontece o que teria de
acontecer, mais cedo ou mais tarde: uma jovem, antiga conquista de
Heydrich, vem perturbar a felicidade dos noivos. Heydrich diz-lhe que sua
aventura já é coisa do passado, mas a mulher, filha de um dos diretores do
consórcio IG Farben, não aceita. Usando a influência de sua família, submete
o assunto ao Almirante Erich Raeder, comandante-em-chefe da Reichsmarine.
Tendo Heydrich recusado a abandonar Lina e ceder, por pressão do almirante,
aos desejos da antiga amiga, a justiça militar passa a cuidar do assunto.
Durante o processo, Heydrich usa toda espécie de artimanhas para jogar
dúvidas sobre a honestidade da jovem. Seu comportamento é a tal ponto
desagradável que os jurados terminam por se perguntar se o código de honra
da Marinha pode admitir a presença de um oficial desse estilo; o Almirante
Raeder acha que não. No fim de abril de 1931 é pronunciado o veredicto. O
enunciado da sanção é breve: “Demissão imediata por motivo de
indignidade”. Heydrich teria declarado à sua ex-amiga (a quem engravidara)
que não poderia admitir a hipótese de casar-se com uma “maria-deita-te-ai”
De qualquer forma, eis Heydrich desempregado. E não faltam desempregados
na Alemanha. Que fazer? A única possibilidade seria entrar na Marinha SA.
Heydrich alista-se, sem qualquer pensamento político. Lina Heydrich: “Ele
era um oficial, eis tudo. Nada lhe interessava fora de sua carreira ou fora do
esporte. De política, não queria nem ouvir falar”.
Mas Lina, ao contrário, interessa-se por política. Entusiasmada pela ação de
Hitler, acredita que seu futuro marido deveria encontrar aí uma maneira de
assegurar o futuro. Graças à recomendação de Karl Freiherr von Eberstein,
amigo de infância da irmã de Heydrich, tão convencida quanto Lina do
interesse que haveria para “Reini” em uma aproximação com os nazistas, o
jovem oficial de Marinha desempregado obtém uma entrevista com Heinrich
Himmler. Em 14 de junho de 1931, Heydrich encontra-se com o Reichsführer
SS, que nesse preciso momento está procurando o homem capaz de criar na
SS um serviço de informações. Por que não ele? Em 5 de outubro, Reinhard
Heydrich integra o estado-maior da SS com o posto de Sturmführer,
encarregado de criar o serviço projetado.
Depois de uma breve estada na Casa Parda, onde se isola com alguns arquivos
pertencentes a Himmler, Heydrich, desejoso de evitar a curiosidade dos
funcionários do Partido, afasta-se e instala-se com três colaboradores em um
prédio de dois cômodos na Türkenstrasse 23, em Munique. Aparentemente,
encontrou seu caminho: a carreira policial convém-lhe ainda mais que a de
oficial de Marinha. Suas ordens não se fazem esperar: as unidades da SS
devem fornecer um relatório geral que contenha qualquer fato suscetível de
interessar ao serviço de informações. Os contatos com alguns espiões e outros
informantes espalhados pelo território devem ser intensificados. Heydrich
percorre a Alemanha a fim de criar uma rede de informações melhor
estruturada. Os homens que lhe servem são retirados de unidades da SS e
colocados sob controle direto do serviço de informações de Heydrich, que
toma o nome de Sicherheitsdienst ou SD.
O SD depende, evidentemente, da SS. Apesar disso, goza de tal autonomia
que toma, desde agora, características de uma SS dentro da SS. Pois Heydrich
cria uma organização SS paralela. Em todo território, os serviços SD —
Abschnitte, Oberabschnitte — são repetições da estrutura SS original. Os
homens que aí trabalham são encarregados por Heydrich de localizar os
inimigos do Partido no seu seio ou no exterior, e de controlar discretamente a
atividade dos partidos hostis ao NSDAP. Cada informação, o mais ínfimo
detalhe, tudo é classificado e fichado em Zuccalisstrasse 4, em Munique, nova
central SD e trincheira de Heydrich.
Himmler está encantado com a atividade do chefe de seu serviço secreto.
Tanto empenho no trabalho merece recompensa. As promoções chovem sobre
Heydrich. 10 de agosto de 1931, Sturmführer; em l.° de dezembro de 1931,
Hauptsturmführer; em 29 de julho de 1932, Standartenführer; em 21 de março
de 1933, Oberführer.
O Reichsführer SS sente que a sorte — como ele diz a Kersten — trouxe-lhe
às mãos “um agente nato de informações, um cérebro capaz de desvendar
todos os fios e atar nós onde é necessário”. É, verdadeiramente, Heydrich tem
todas as qualidades de um chefe de serviço secreto ideal: impiedoso,
aparentemente desprovido de sentimentos, possui, segundo a própria
expressão de Himmler, “uma vantagem extraordinária”: sabe
maravilhosamente adivinhar os pensamentos escondidos nas pessoas e prever
suas reações. Antes dele, a polícia especial contentava-se em prender o
adversário na ação, intervinha sob a ameaça do perigo. A polícia de Heydrich
é encarregada de despistar o adversário, antes mesmo que ele conceba a idéia
de levantar-se contra a autoridade do Estado.
O conceito policial de Heydrich não tem limites. Estende- se ao conjunto das
manifestações da vida dos cidadãos e da nação. No espírito de Heydrich, a
polícia não é um simples organismo defensivo, garantidor da segurança do
Estado. É. pelo contrário, um sistema ofensivo, encarregado, além disso, de
educar o povo e de livrar a nação de todas as idéias tidas como malsãs ou
perigosas.
É necessário que a polícia seja onipresente. Trata-se, segundo as próprias
palavras de Werner Best, “de garantir o Estado contra todas as formas de
atentado à ordem pública, não somente punindo-as mas prevenindo-as”.
Dentro desta visão, a polícia não poderia ficar sujeita às leis que regem a
comunidade. Sua ação teria de ser regulamentada por uma carta especial. Os
projetos de Heydrich são os seguintes: preliminarmente, o SD deve ocupar os
postos-chave da nova polícia política: em seguida, esta polícia deve ser
liberada da administração e formar um órgão de segurança, único e autônomo.
Enfim, terceira operação, será preciso criar uma administração SS própria,
reunindo a polícia e a SS em um bloco homogêneo.
Os projetos do chefe do SD enchem Himmler de contenta mento. Certos
chefes da SS o previnem contra uma fusão, que poderia tornar a SS impopular
ou arranhar as suas características de Ordem. Mas nada adianta: Himmler
quer a soberania absoluta sobre a polícia do III Reich.
As idéias de Heydrich vão ser executadas, em primeiro lugar, na Baviera do
Norte. Em 9 de março de 1933, o golpe de estado nacional-socialista
aproxima Himmler e a polícia do Länd. Ele se torna chefe de polícia de
Munique e Heydrich é colocado à frente da seção política da polícia. Uma
semana mais tarde, os dois comparsas dão um passo de gigante: o
Reichsführer é convidado a ocupar as funções de responsável político no
Ministério bávaro do Interior e de chefe da polícia política; Heydrich vai
representá-lo nas novas funções.
O que mais tarde será aplicado a todo o Reich é agora pôsto em prática na
Baviera. Himmler cria no Ministério do Interior um comando de polícia
política (Bay Po Po), que é assumido pelos homens do SD, e subtraído à
autoridade da chefia de polícia de Munique. Com um estatuto próprio, a Bay
Po Po pode requisitar os serviços da polícia bávara; além disso, reinará como
soberano nos campos de concentração. É verdade que o chefe de polícia
Himmler está sob ordens do Ministro do Interior bávaro Wagner. Mas, como
Reichsführer SS, Himmler é superior a Wagner. Inversamente, como chefe do
estado-maior da SA, Röhm pode dar ordens ao Reichsführer SS, mas não ao
chefe da polícia de Munique, comandante da polícia política bávara.
Himmler e Heydrich exploram sua independência enquanto podem. O número
de prisioneiros cresce em Dachau, enquanto no resto da Alemanha a onda de
terrorismo já era assunto do passado. Himmler: “Respondendo a solicitações
dos ministérios, muitos prisioneiros foram liberados na Prússia e no resto da
Alemanha. Só eu, na Baviera, consegui acelerar o plano de prisões
preventivas”.
Tal ódio não podia contentar-se com o pequeno panorama da Baviera. Os
dezesseis Länderpolizeien esperam ainda seu chefe. E o tempo exige ação
rápida. Na Prússia, Göring cria uma polícia política, independente do Estado e
do Partido: a Gestapo.
Himmler e Heydrich encontrarão em Frick, ministro do Interior do Reich, um
aliado para sua empresa de expansão. O reformador da administração alemã,
incapaz de lutar sozinho contra o separatismo prussiano de Göring, chama
Himmler e Heydrich em seu apoio. Com sua bênção, os dois comparsas se
apoderam das Länderpolizeien alemãs. Uma a uma vão caindo em suas mãos.
Quanto a Göring, amolado pela agitação da SA, desejoso de libertar-se de
Röhm, firma a paz com Himmler e lhe entrega a Gestapo. Em troca, vai obter
o apoio da SS para o ajuste de contas sangrento com Röhm.
Em fins de abril, Himmler e Heydrich tomam as rédeas da polícia prussiana:
Himmler é nomeado chefe e inspetor da polícia secreta do Estado (Gestapo)
— variante prussiana da Bay Po Po —, Heydrich assume, na qualidade de
representante de Himmler, a direção da Geheime Staatpolizeiamt,
administração da Gestapo ou Gestapa. Ao mesmo tempo o SD torna-se, por
decisão da direção do Partido, o serviço oficial único de informações do
NSDAP.
Heydrich triunfa. Mas percebe também a incapacidade do SD para assumir
semelhante papel. O SD ainda é apenas uma organização esquelética. Conta
somente com uma centena de homens que, além disso, mostram-se menos
qualificados do que os funcionários de polícia da antiga escola. Que fazer?
Atrair os antigos funcionários para a sua causa, é claro. Mas isso não é
simples. Anexados por Himmler e Heydrich, os antigos membros da Bay Po
Po e da Gestapo detestam cordialmente os recém-chegados do SD. A própria
noção do SD os indispõe. Outro problema não menos espinhoso: são
sobretudo funcionários de polícia, e diferentes idéias que os animam. Entre os
mais capazes, há antigos adversários do regime, como F. J. Huber e Reinhard
Flesch. Há também anticomunistas notórios, como Heydrich Müller, que mais
tarde será chefe supremo da Gestapo, mas o anticomunismo não chega para
fazer um nazista.
Em Berlim como em Munique, na Bay Po Po como na Gestapo, os melhores
elementos são integrados por Heydrich no SD. Isso se passa com Arthur
Nebe, que se tornará diretor da polícia criminal do Reich e participará da
conspiração de 20 de julho de 1944. A esses dois grupos de criminalistas
juntam-se especialistas, funcionários e juristas que Heydrich traz dos quatro
cantos da Alemanha. Entre eles, o que se tornará o seu mais próximo
colaborador e depois seu adversário mais perigoso: o juiz de Hesse, Werner
Best, discípulo de Ernst Jünger, nacionalista convicto, defensor intransigente
de uma razão de Estado exclusiva. Em 1930, Best publica um ensaio que pode
ser considerado como o programa mesmo do Estado nazista em vias de
instauração: “O fim de cada poder no interior do Estado é dominar os outros
poderes. Nesta luta, cada poder tenta identificar-se com o Estado, cuja
tendência profunda é o poder total: quanto mais se estende o poder do Estado,
mais o Estado está próximo da perfeição”.
Depois do acesso dos nacional-socialistas no poder, Best assume a direção da
polícia de Hesse. Imediatamente, entra em conflito com o gauleiter Sprenger,
a quem desagrada a atitude objetiva e crítica do jurista com relação nos
assuntos do Partido. Best é forçado a deixar suas funções. Seu nome figurará,
a partir de agora, nas listas pessoais de Heydrich e ele o utilizará quando
precisar reorganizar a Gestapo. Na época, Heydrich não percebe que com
Best pôs “grilhões nos pés” (sic). Pois Best é sobretudo um teórico e um
jurista. Heydrich não se acomodará muito tempo com este pensamento que —
mesmo Best completamente imbuído de idéias nazistas — continuará sendo
um freio. Pois tem o pensamento dirigido por um certo número de princípios
e a ação de Heydrich não se acomoda a princípios.
Mas na época o problema ainda não se coloca. É com toda tranquilidade de
espírito que Heydrich afia o principal instrumento de seu aparelho policial, o
instrumento cuja simples citação do nome fará tremer milhões de alemães: a
Gestapo.
As bases da Gestapo, a Geheime Staatspolizeiamt ou Gestapa, com suas
quatro seções (I. organização e administração; II. justiça; III. polícia política;
IV. polícia de segurança), tinham sido traçadas por Göring. Heydrich reduz a
três o número de seções. Best dirige as seções I (administração e justiça) e II
(polícia de segurança). A seção III, polícia política, coração mesmo da
Gestapa, é ocupada pela equipe bávara de Heydrich, ou seja, pelos antigos
membros da Bay Po Po.
Esta seção política é dividida em várias subseções: “marxismo” (vigilância e
eliminação dos elementos socialistas e comunistas); “reação, oposição de
direita, igrejas” (vigilância dos movimentos não-nazistas e das organizações
para-religiosas); “raça” (perseguição de homossexuais, casos de aborto,
relações sexuais entre judeus e não-judeus); “economia” (vigilância de grupos
financeiros e industriais, associações e sindicatos); “franco-maçonaria e seitas
religiosas” (pesquisas sobre correntes hostis ao nazismo nas comunidades
não-religiosas e luta contra as lojas da franco-maçonaria).
Os novos donos da Gestapo dedicam-se, paralelamente a esta reorganização, a
apertar as malhas da rede jogada por Göring sobre o país. Trata-se, agora, de
definir de maneira mais precisa a natureza de seu combate, de detalhar
perfeitamente a fisionomia do adversário. Pois o adversário, o inimigo
público, qual é? Para Göring é o comunista ou o marxista. Isso parece muito
vago à nova direção da Gestapo e deve ser definido com mais precisão. O
comissário criminal Wendzio escreverá uma nota, onde diz: “Por inimigos
públicos, compreendemos: os comunistas, marxistas, judeus, igrejas mais ou
menos politizadas, franco-maçons, descontentes políticos e apolíticos,
oponentes do regime, reacionários de direita, sabotadores da economia,
ladrões e criminosos impenitentes, homossexuais e abortadores, traidores.
Todos”, declara Wendzio, “têm isto em comum: sua influência se exerce
contra o vigor racial e espiritual do povo alemão”.
Todos esses inimigos públicos, assim definidos, são divididos em três grupos
no gigantesco fichário da Gestapo. Grupo Al (um cavaleiro vermelho na
margem esquerda de cada ficha): inimigos do regime, que devem ser
aprisionados em caso de mobilização provável; grupo A2 (cavaleiro azul):
inimigos do regime, que devem ser aprisionados em caso de mobilização
certa; grupo A3 (cavaleiro verde): cidadãos que não são nocivos propriamente
à segurança do Estado mas que, segundo as próprias palavras de Heydrich,
devem, em virtude da sua tepidez política, ser vigiados fortemente ou até
presos em tempo de guerra.
Um segundo cavaleiro à margem direita da ficha define a natureza do
adversário: o cavaleiro vermelho é um comunista; rosa é um marxista; pardo,
um sabotador; roxo, um espírito crítico. A cada l.º de abril e l.° de outubro, o
fichário é colocado em dia e as características das fichas individuais
controladas uma a uma.
A vigilância sobre um inimigo tão diverso — e cada vez mais diferenciado —
necessita pessoal sempre mais numeroso. A Gestapo contava com 35 homens
em seu início. Em 1935, seus funcionários e empregados chegam a 607. Em
1933, suas despesas estão na ordem de um milhão de marcos; em 1937,
quarenta milhões.
Os serviços regionais da Gestapo multiplicam-se. A polícia de segurança
penetra cada vez mais em domínios propriamente militares, sobretudo em
matéria de contraespionagem. As zonas fronteiras passam pouco a pouco ao
controle exclusivo da Gestapo. Os comissariados de fronteira, serviços
marginais do Landeskriminalpolizeiamt ou LKPA, caem em suas mãos. É
criada uma polícia fronteiriça da Gestapo, emanação da seção III da Gestapo
ou política de segurança.
Desde então, estende-se uma verdadeira rede de ferro pelas fronteiras da
Alemanha de Adolf Hitler. O olhar monstruoso da Gestapo vigia tudo, registra
tudo. Nada escapa á sua vigilância. A tarefa é-lhe facilitada pela extensão
desmesurada de seus poderes. Ela obtém primeiro o direito de encarcerar os
apátridas nos campos de concentração, até que se resolvam as formalidades
relativas à sua expulsão. Em seguida, poderá editar mandados de prisão e
prender a título preventivo, nos campos, pelo tempo que lhe interessar, todo
cidadão julgado perigoso. De 1935 a 1936, 7.000 “marxistas” são atirados nos
campos de concentração. Assim, são postas em prática as teorias do Dr. Best:
“Toda idéia política hostil ao regime deve ser considerada como uma forma
de doença que põe em perigo a saúde deste grande organismo que é o povo:
por isso, aquele que quer levar essa idéia à prática — e também o que se
contentar com formulá-la — deve ficar sem possibilidades de causar mal”.
É claro que a Gestapo terá muito o que fazer, à medida que estende seu campo
de ação, devido a alguns adversários decididos a impedir sua marcha para
adiante. Tentarão arrancar dela a arma mais perigosa de que dispõe, o KZ.
Corajosos juristas começam a ordenar inquéritos em certos campos de
concentração.
Desde 1933, o procurador-geral de Munique pede que se faça luz sobre casos
obscuros de mortes em Dachau. Inquéritos sucessivos, exumações de corpos,
trazem a prova de mortes violentas, resultados de torturas, fustigações,
estrangulamentos. Himmler é obrigado a demitir o Oberführer SS Hilmar
Wäckerle, comandante do campo, que será condenado, tal como o Dr.
Nuernbergk, médico do KZ, e o secretário-geral da chancelaria Nutzbauer, a
muitos anos de prisão.
Na Prússia, o antigo chefe da Gestapo, Diels, apoiado por dois funcionários
nazistas do Ministério da Justiça, o Procurador-Geral Werner von Haacke e o
Procurador Günther Joel, procura igualmente acabar com as atividades
praticadas em certos campos, especialmente nos da SA. Sua ação o levará a
atacar a SS e a Gestapo. Von Haacke consegue um êxito importante ao obter a
condenação, a 13 anos de prisão, do Sturmführer SS Joachim Hoffmann,
comandante do campo de Stettin Bredow, onde os prisioneiros eram
torturados com uma crueldade pouco comum. Walther Schäffer, procurador-
geral de Breslau, e o Dr. Walther, procurador em Saxe e membro da SA,
levam a cabo ação semelhante. O sucesso dessas tentativas é indiscutível, mas
passageiro. Himmler e Heydrich estão lá para restabelecer a situação e
explorá-la em seu proveito, confiando na arbitragem do Führer.
O caso Walther, cujo nome foi citado mais acima, é um exemplo típico.
Walther apresenta queixa contra os responsáveis pelo campo de Hohnstein em
Saxe, onde os prisioneiros são submetidos a tratamentos particularmente
ferozes. Outra ação da justiça é iniciada, paralelamente, contra um
funcionário eminente da Gestapo, o Oberregierungsrat Erich Vogel, que está
notoriamente participando nas atividades desse campo. Os “animadores” do
KZ foram condenados a vários anos de prisão, e então o gauleiter de Saxe
Mutschinann exerce severa pressão sobre o tribunal, exigindo a revisão do
processo e a absolvição dos acusados. O ministro da Justiça do Reich, Dr.
Franz Gürtner, faz um vigoroso protesto: “Mesmo a dureza do combate que
levamos a cabo não justifica a crueldade sádica desses indivíduos”. O
julgamento inicial é confirmado pele tribunal. A reação nazista não se faz
esperar. Walther é demitido de suas funções e deve abandonar a SA. Para
coroar tudo, o juiz supremo Hitler intervém: todos os condenados são
agraciados e anulado o julgamento contra Vogel.
Nacionalista liberal, o Ministro da Justiça Gürtner, revoltado com essa
decisão, tenta tudo de todas as formas: vai jogar o jogo dos nazistas, propor
uma nova legislação concebida no espírito da ditadura de Führer. Esta
legislação não será evidentemente ideal do ponto de vista do direito, mas ao
menos terá a vantagem de impor certos limites jurídicos à ação de Hitler e de
sua polícia.
Para consegui-lo, Gürtner alia-se ao Reichsjustizkommissar Hans Frank, o
mais duro dos juristas nazistas. Este último, por mais antiliberal que seja, é
também adversário de entregar-se todo o poder à polícia em matéria de
direito.
Frank e Gürtner entregam-se juntos à redação de um novo código penal.
Também juntos, solicitam a Hitler, no verão de 1934, que acabe com os
campos de concentração. “Eu falei com Hitler”, conta Frank em suas
Memórias, “sobre a necessidade de suprimir os campos em um futuro
próximo, de proibir imediatamente todas as prisões arbitrárias, de confiar ao
Ministério da Justiça o cuidado de julgar do bom fundamento das já efetuadas
e de queixas sobre maus tratamentos sofridos pelos prisioneiros. Gürtner
apoiava nossos argumentos, mas Hitler não queria ouvir coisa alguma. Era
muito cedo, dizia ele, para imaginar a supressão dos campos”.
Mas este não será o único fracasso. Pouco depois, Hitler joga no lixo o
projeto de código penal que lhe é submetido por Frank. Gürtner dirige então
uma série de inquéritos sobre as mortes nos campos e pede que as pessoas
presas preventivamente sejam assistidas por um advogado. Himmler a
Gürtner, em 6 de novembro de 1935: “Eu submeti seu pedido ao Führer. O
Führer proibiu a intervenção de advogados nos casos de prisão preventiva e
me encarregou de dar-lhe conhecimento de sua decisão”.
As tentativas de Gürtner e de seus aliados chocam-se contra a barreira
Himmler-Heydrich. Chocam-se também — e isto é sem dúvida o ponto mais
importante — contra a inércia retrógrada de um grande número de juristas
alemães, que se entregarão imediatamente, com um servilismo onde não está
ausente a euforia, ao culto nazista do Führer, para o que estão predispostos
por uma formação cheia de idéias positivistas.
Quanto ao tom guerreiro, é dado no domínio jurídico por professores do
gênero de Karl Schmitt, que pretende fazer do jurista “um colaborador eficaz
do Führer”. “Morte à fraseologia”, escreve em 1934 a Juristische
Wochenschrift, e de fato a justiça alemã dará cada vez menos atenção a
códigos e regulamentos que considera ultrapassados.
É assim que, a partir de 2 de maio de 1935, por decisão do tribunal
administrativo prussiano, as medidas tomadas pela Gestapo não poderão ser
julgadas pela justiça. Em 7 de outubro de 1935, o tribunal administrativo de
Hamburgo decide que “no Estado nacional-socialista, a constituição, a
administração e a justiça vão juntas… O Estado age em função de motivos de
ordem política; a justiça não poderia opor-se a essas razões sob pretexto de
defender um ponto de vista diferente”.
Werner Best, o jurista da Gestapo, está satisfeito. A justiça alemã aceita a sua
definição da polícia: “A ação da polícia é necessariamente de acordo com o
direito, pois é expressão da vontade do Führer”.
Himmler está próximo de conseguir a soberania absoluta sobre as forças de
polícia unificadas do Reich. Os tardios escrúpulos do Ministro do Interior
Frick não serão obstáculo. A polícia política do Reich inteiro já está sob as
ordens de Himmler. Resta definir que forma tomará a extensão de seus
poderes às forças de polícia não-política. Talvez aí o ministro do Interior
ainda possa conseguir alguma coisa. Frick e os funcionários do ministério
sonham em colocar o resto da polícia sob sua tutela e favorecer tanto quanto
possível as ambições de Daluege, Obergruppenführer SS, tenente-geral da
polícia, em detrimento do Reichsführer.
O plano de Frick e de Daluege é o seguinte: todas as policias do Reich serão
reunidas sob a autoridade do Ministério do Interior; ao inspetor da Gestapo
Himmler confiar-se-á a direção do departamento “polícia” no interior do
ministério. Assim, colocado sob as ordens do ministro do Interior, Himmler
será representado no exterior pelo general de polícia Daluege. Mas o objetivo
não confessado desse plano é confinar Himmler nas funções públicas quase
honoríficas, confiando a direção efetiva das polícias a Kurt Daluege.
A reação de Himmler não se faz esperar. Em 9 de junho de 1936, o chefe do
SD Heydrich pede, em nome do Reichsführer SS, que seja concedido a este
último o nível de ministro e título de “Reichsführer SS e chefe da polícia
alemã”, o que o colocaria no mesmo nível dos três comandantes-em-chefe da
Wehrmacht.
Frick revolta-se. Vai ao encontro de Hitler. Durante a entrevista percebe que
perdeu a luta. Himmler não conseguirá ser nomeado ministro, mas quanto ao
resto obterá o que quer. Em 17 de junho, Himmler é chamado a ocupar suas
funções de chefe da polícia alemão no Ministério do Interior. O ministro pode
lhe pedir que preste contas de sua atividade, mas exclusivamente ‘‘a título
pessoal e sem intermediários”, o que significa que a tutela administrativa do
ministério sobre o departamento “polícia” é puramente fictícia. Daluege é
nomeado representante permanente de Himmler “em caso de ausência do
Reichsführer SS”.
Mal Himmler instalou-se em suas funções começará a mostrar como
compreende suas novas responsabilidades. Não contente de dirigir o
departamento de polícia, anexa imediatamente serviços vizinhos: imprensa,
autorização de porte de armas, entrega de passaportes serão a partir de agora
submetidos à sua aprovação.
Chefe supremo da polícia alemã, Himmler cria dois serviços principais
reunidos sob suas ordens. O serviço Sicherheitspolizei reúne a Geheime
Staatspolizei (Gestapo) e a Kriminalpolizei (Kripo); a responsabilidade desses
serviços é confiada ao Gruppenführer SS Reinhard Heydrich. O serviço
Ordnungspolizei (Orpo) reúne a Schutzpolizei ou Schupo, a gendarmaria e a
polícia municipal: seus cuidados são entregues ao Obergruppenführer SS e
general de polícia Kurt Daluege.
Heinrich Himmler chegou ao clímax em sua ascensão. Todas as polícias da
Alemanha hitlerista estão em suas mãos. Poderá realizar agora, tendo
Reinhard Heydrich como braço direito, a segunda parte de seu plano: fundir a
SS e a polícia em um corpo homogêneo, que se dedicará à segurança do III
Reich.

O SD
A 27 DE JANEIRO DE 1937 o sinal de alarma soa no
Landeskriminalpolizeiamt prussiano, central da polícia criminal alemã. Os
telex do LKPA funcionam sem parar, distribuindo a ordem do dia a todos os
serviços regionais da Kripo.
Eles são avisados de que devem, no menor espaço de tempo, fornecer ao
LKPA uma lista dos indivíduos considerados perigosos em sua circunscrição.
Cada lista deverá ser numerada. No caso de alguma ação efetiva contra esses
“inimigos da nação”, os números correspondentes aos criminosos que devem
ser presos serão dados pelo rádio.
Em 23 de fevereiro, o chefe da polícia alemã ordena ao LKPA que passe à
ação. Os telex voltam a funcionar. Em 9 de março de 1937 inicia-se a
operação em todo o território alemão: 2.000 homens são presos e
encarcerados a “título preventivo” nos campos de concentração de
Sachsenburg, Lichtenburg e Dachau.
O objetivo dessa operação não era de natureza política. Tratava-se
exclusivamente de “prevenção do crime”, isto é, prisão “preventiva”
atingindo antigos “criminosos” capazes de reincidir ou criminosos em
potencial.
Fazendo isso, a polícia de segurança substituía os tribunais, a quem o artigo
42 do Código Penal do Reich concede o direito de proceder a prisões de tal
natureza. Motivo da substituição: a polícia tem mais capacidade para julgar da
necessidade de prender algumas pessoas e deixar outras livres.
É claro que esta ação não é legal. Caracteriza-se como um abuso de poder.
Mas como bem disse Werner Best: “Uma tal ação policial é de qualquer
forma fundada no direito, pois as autoridades, como os cidadãos, são órgãos
do povo. Estes órgãos devem colaborar harmoniosamente para a realização de
um objetivo único que é a nação. O caso atual é um exemplo perfeito desta
colaboração harmoniosa entre órgãos do povo: a polícia age, e o criminoso
colabora de maneira passiva, aceitando ser preso a título preventivo.”
Esta prática de luta preventiva contra o “crime”, ou melhor, contra o que é
considerado crime na ótica nazista, retira todo o poder da justiça ordinária.
Chega-se, como diz o historiador Martin Broszat, de Munique, a “proceder
com o povo como se age em uma horta, da qual se retiram regularmente as
ervas daninhas e as plantas que se consideram prejudiciais”. A Alemanha não
tem uma taxa de criminalidade particularmente elevada, mas a
Sicherheitspolizei (Sipo) executa de tempos em tempos, por ordem do chefe
de polícia, tal “limpeza”.
Sob a direção de Heydrich, a Sipo ultrapassa largamente os quadros do que
tradicionalmente se considera “atividade de segurança”. Antes de Hitler, o
termo Sicherheitspolizei designava o conjunto da Verwaltungspolizei (por
exemplo, a polícia rodoviária) e a Vollzugspolizei, que incluía a polícia
criminal, a política, a gendarmaria, as forças de ordem. Himmler reúne todos
os grupos de polícia criminal e política em uma Sicherheitspolizei (Sipo) de
novo tipo. O resto da Vollzugspolizei e o conjunto da Verwaltungspolizei são
fundidos em uma nova polícia da ordem ou Ordnungspolizei (Orpo), confiada
a Kurt Daluege.
Os dois novos grupos, Sipo (Heydrich) e Orpo (Daluege), caminham
paralelamente sob ordens diretas e exclusivas de Himmler.
A Sipo apoia-se sobre duas instâncias administrativas, a saber: 1) a Geheime
Staatspolizeiamt (direção da polícia secreta do Estado ou Gestapo), que dirige
o conjunto de policias políticas do Reich; 2) a Landeskriminalpolizeiamt
(direção da polícia criminal ou LKPA), que toma em julho de 1937 o nome de
Reichskriminalpolizeiamt ou RKPA, e administra a polícia criminal em todo o
território alemão.
É com este formidável instrumento que Heydrich assegurará um controle cada
vez maior e mais firme sobre os mais diferentes setores da vida nacional.
Subordinado, em princípio, ao ministro do Interior, Heydrich não concederá a
Frick o menor direito de imiscuir-se nas atividades da Sipo.
Juristas conquistados para a causa e empregados por Heydrich demonstrarão
desde logo, a quem quiser entender, que o arbítrio policial é uma forma
superior de direito. “Inútil”, dirá Brest, “ter leis preestabelecidas, pois cada
ordem do Führer é uma lei em si e reforma a lei até então em vigor”. Por seu
lado, o professor do SD, Höhn, proclama que “o Estado e o indivíduo não
podem ser considerados como sujeitos jurídicos; o Estado não é um fim em si,
mas um meio de realizar as aspirações do povo, que são conhecidas pelo
Führer”.
A realidade jurídica do Estado e do indivíduo são assim contestadas, e o
cidadão não terá qualquer recurso contra o arbítrio policial. Heydrich é o
único juiz da forma e da importância que convém dar ao domínio que exerce
sobre o povo. Senhor e dono da vida e da liberdade dos cidadãos, lavra
mandados de prisão e encarcera quem lhe desagrada, a título preventivo, nos
campos de concentração.
Quando um condenado é libertado depois de ter cumprido seu tempo, os
esbirros de Heydrich esperam-no à saída. O homem termina em um campo de
concentração. Isso acontece com os antigos funcionários comunistas,
membros de certas seitas religiosas (Testemunhas de Jeová), considerados
culpados por suas tendências pacifistas. E culpados, segundo Heydrich, de
alta traição.
As vítimas “políticas” já não chegam para o SD. Introduzem alguns critérios
mais propriamente criminais. E a noção de inimigo público vai estender-se a
todo indivíduo que quiser, de uma maneira ou de outra, libertar-se da vontade
totalitária do regime. A rede das prisões preventivas estende-se cada vez mais,
e o conceito de inimigo público vai-se tornando cada vez mais elástico.
Às novas e muito vagas noções de “criminalidade” correspondem três grupos
de indivíduos, considerados a grosso modo. Há os criminosos por profissão e
habituados ao crime; são os que já foram condenados pelo menos três vezes a
penas de prisão de pelo menos seis meses. Em seguida, há os “associais”:
mendigos, vagabundos, ciganos, prostitutas, homossexuais, espíritos críticos,
bêbados, pervertidos (por exemplo, relações sexuais com judeus); psicopatas,
doentes mentais e outros pertencem a esta categoria. Por fim, há os “inimigos
do trabalho”: a este último grupo pertencem todos os que se recusaram, duas
vezes, sem justa razão a aceitar empregos que lhes foram oferecidos. Sobre
bases tão elásticas, a Sipo tem toda a facilidade para decidir quem merece o
campo de concentração e quando convém aí prender os culpados.
O campo de concentração, KZ ou KL, cercado de fios eletrificados, está no
centro da concepção policial SS: é o espantalho destinado a paralisar entre os
cidadãos toda veleidade de oposição ao regime. Desde sua origem, os
senhores da SS desistem de fazer desses campos centros de reeducação, como
pretendiam alguns nacional-socialistas tão convictos quanto inocentes. São,
desde logo, concebidos como instrumento de terror e de manutenção do
regime. Durante a guerra, tomarão a forma de campos de trabalhos forçados.
Antes da guerra, o papel exclusivo dos KZ era inspirar terror e exercê-lo. Os
ossos moídos em Dachau, Buchenwald e Sachsenhausen aí estão para mostrar
a cada alemão o que lhe acontecerá se não quiser andar direito.
“Esqueçam suas mulheres, seus filhos, sua família: aqui vocês vão ser
enterrados como cachorros”, esse era o discurso com que o comandante do
KZ, Karl Fritzsch, costumava receber os recém-chegados. E
permanentemente circulam rumores do tratamento monstruoso infligido aos
prisioneiros, das execuções sumárias em Buchenwald, das “covas de
cachorro” em Dachau, dos “acidentes de trabalho” em Mauthausen. Circulam
os boatos e o terror reina como senhor.
Himmler recusa-se a ceder a Heydrich o controle dos campos. É um domínio
sobre o qual ele quer assegurar seu privilégio. Seu braço direito conseguirá
afinal demonstrar-lhe que há interesse em confiar a administração dos KZ à
Sipo para que a SS conserve o seu apanágio. Quando Heydrich se torna
excessivamente insistente, Himmler barra-lhe definitivamente o caminho,
entregando os campos a um homem que lhe é inteiramente dedicado. Este
homem é Theodor Eicke, assassino de Röhm. Desde junho de 1933, Eicke
vinha-se destacando, como comandante do campo de Dachau, por uma
crueldade bárbara, uma ausência total de sentimentos e uma extraordinária
aptidão para entusiasmar os homens de seu regimento no cumprimento das
tarefas sanguinárias.
Himmler está entusiasmado pelo sucesso de Eicke. Em 20 de junho de 1934,
ele o nomeia comandante-em-chefe das tropas de vigilância KZ, que passarão
a chamar-se, a partir de 1936, Totenkopfverbände ou TV. Além disso, Eicke
recebe o título de inspetor dos campos de concentração.
Por processos bem característicos da Sipo, Heydrich tentará comprometer
Eicke. Colocará em evidência alguns efeitos de administração e criticará os
métodos bárbaros de seu rival. Mas é em vão: nunca reinará sobre os KZ.
No setor propriamente policial, Heydrich também sofre alguns desgostos. A
luta de competências que caracteriza o III Reich está em seu auge. O general
de polícia Daluege opõe-se às pretensões de Heydrich de sempre obter
maiores poderes.
O chefe da direção Orpo não está, evidentemente, em condições de declarar
guerra aberta a seu concorrente da Sipo. Mas é suficientemente forte para
impedir o ambicionado acesso de Heydrich à hegemonia policial. Ele
comanda um dos mais famosos corpos de polícia, a Schutzpolizei (Schupo)
prussiana, que foi o orgulho da República de Weimar e que ainda goza de
certo prestigio nos primeiros anos do III Reich: além disso, está cercado de
alguns funcionários resolutamente hostis a Heydrich.
Um dos pontos mais calorosos dessa luta de competências refere-se à polícia
criminal. Aqui, como em outras partes, o regime nacional-socialista deixa
entrever uma de suas características: a de sempre criar novas estruturas, sem
suprimir inteiramente as antigas. No nível superior, polícia criminal e polícia
política (Kripo e Gestapo) estão fundidas em uma só polícia de segurança
dirigida por Heydrich. No nível médio e inferior, as velhas estruturas
administrativas foram entretanto conservadas. Os centros regionais Kripo
recebem ordens do Reichskriminalpolizeiamt — ou RKPA —, dirigido por
Nebe, por serem órgãos da polícia de segurança; entretanto, do ponto de vista
administrativo, dependem das chefaturas regionais de polícia. Consequência:
os chefes de polícia que pertencem à direção Orpo são os chefes efetivos dos
centros regionais Kripo, que são entretanto, de maneira indireta, órgãos da
direção Orpo de Daluege.
Para reduzir esse inconveniente, Heydrich, com o consentimento de Himmler,
nomeia inspetores de segurança (IdS) encarregados de superintender os chefes
de polícia regionais. Desde então, os centros regionais Kripo terão á sua
frente dois chefes, o chefe de polícia, por um lado, e o inspetor IdS por outro,
o que provocará problemas incessantes.
Esta fraqueza administrativa da Kripo, somada à hostilidade declarada entre a
Gestapa — dirigida pela brigada bávara de Heydrich — e a RKPA,
comandada por Arthur Nebe, levam o chefe da Sipo a acelerar a entrada em
função de uma outra organização ainda esquelética, presidida igualmente por
ele: o Sicherheitsdienst ou SD.
Até agora o SD não tivera ocasião de provar seu valor. A tomada do poder
fora obtida sem sua participação. Raramente os cem funcionários da
organização e os cem outros que aderiram com títulos honoríficos puderam
prestar serviços ao regime (outono de 1933). Mesmo a extensão dos poderes
do Reichsführer SS às polícias regionais foi conseguida sem a ajuda da SD.
Para que serve, então, o Sicherheitsdienst do Reichsführer SS, é o que se
perguntam alguns eminentes oficiais da SS.
O desconhecimento provoca desprezo. No outono de 1933, o gauleiter
Sprenger demite de suas funções de chefe de polícia de Hesse a Werner Best,
que é ao mesmo tempo o chefe do SD. Pior ainda, no verão de 1933, o
primeiro-ministro de Brunswick, Dietrich Klagges, apresenta uma queixa
diante do tribunal supremo do Partido contra o SD, que havia organizado um
complot contra ele e seus adjuntos, dois oficiais SS rivais de Himmler. O
Reichsführer SS levanta rapidamente a bandeira branca. O chefe do SD de
Brunswick é afastado da SS e atirado em um campo de concentração; seu
adjunto é demitido das funções e o responsável pelo caso no nível da central
SD é julgado por um tribunal do Partido. Para coroar tudo, Klagges, que nem
sequer era da Ordem, é nomeado por Himmler Gruppenführer SS.
No fim de 1933, o prestígio do SD está tão baixo que, por ordem do Führer,
Martin Bormann redige uma circular a todos os gauleiter a fim de pôr cobro
ao boato de que a organização fantasma seria proximamente dissolvida.
Este desconhecimento do SD, a pouca estima de que goza, contradiz
inteiramente a tese segundo a qual ele foi, desde os primórdios do Reich, um
serviço onipresente, um “espectro a inspirar pavor até no interior do Partido”
(Eugen Kogon). Na realidade, ele se assemelha, no início do regime, mais a
uma organização de escoteiros do que a um serviço secreto. Apesar disso o
SD existe, e já nesta época apresenta a particularidade capital de ser a única
organização centralizada de informações de que dispõe a direção do Partido.
Por pequeno que seja então este serviço “secreto”, a direção do Partido não
dispensará suas informações e não desconhecerá a sua importância. Pois
depois de 30 de janeiro de 1933 o Partido, aparentemente unido, está na
realidade fragmentando-se. A elite do NSDAP assume os postos de comando
do Estado em Berlim; os pequenos príncipes do NSDAP edificam nas
províncias seus microimpérios particulares. Nesta selva de clãs adversas, de
rivalidades abertas ou surdas, a direção do Partido não dispõe de fontes
seguras de informações, fora do SD, justamente um órgão que não participou
da corrida para o poder. A direção do Partido pode então confiar-lhe a tarefa
de seguir e de ver desenvolverem-se as intrigas dos pequenos potentados
nazistas. Em junho de 1934, Rudolf Hess proclama o SD como único
organismo oficial de informações do NSDAP.
O ar de romance que envolve a noção de serviço secreto, junto à hostilidade
aberta do SD contra os “pequenos Hitlers”, atraem para esta organização um
grupo importante de jovens intelectuais nacional-socialistas, cujo desejo
confessado é o de “melhorar o nacional-socialismo”, segundo a expressão de
Gunther d’Alquen, que foi um deles. Em muito pouco tempo, o SD torna-se o
lugar de encontro da jovem elite intelectual nazista.
Quem são eles? Descendentes de uma burguesia arruinada, porque perdeu os
seus valores. De formação geralmente jurídica, criados e instruídos no
desprezo da República de Weimar, defendem um regime especificamente
alemão. O Estado todo-poderoso é a primeira condição. É o Estado-deus, para
o qual todos os sacrifícios são válidos. Mas que espécie de Estado? Ditatorial,
sem dúvida, “a fim de que a responsabilidade anônima da sociedade seja
encarnada por um homem de carne e osso”. Mas que gênero de ditadura?
Nacional-socialista, evidentemente. A catástrofe social da burguesia, a crise
econômica da década dos trinta, aumentou entre eles o gosto pela ditadura,
que além do mais está de acordo com as idéias anticapitalistas herdadas de
seus pais.
Seu ressentimento contra os trustes e os bancos está na origem deste veneno:
o antissemitismo. O antissemitismo, para eles, é o soro da revolução
econômica. Só conhecem uma norma ética: o poder, sua manutenção, seu
fortalecimento, sua permanência.
O nacional-socialismo vulgar dos veteranos do Partido está inteiramente
ultrapassado. Para os jovens do SD, a ordem do III Reich deve ser “razoável”,
a revolução nacional-socialista deve ser ativada pela inteligência clara e sadia.
Mas há uma distância entre idéias que eles têm do nacional-socialismo e a
realidade que enfrentam. Há uma grande distância preenchida pela fatuidade
dos bonzos do Partido, pelas querelas e pelo oportunismo dos grandes e
pequenos nazistas. Não, não é assim que eles imaginavam o III Reich. E
chegam a perguntar-se como e onde poderão participar dele.
Eis então que lhes falam de uma organização que tem por finalidade descobrir
os erros do Estado e apontar os corretivos. Esta organização não é
negligenciável, pois é Heinrich Himmler quem preside seus destinos.
Heinrich Himmler, o homem do futuro. A esses jovens com problemas, o SD
oferece uma tábua de salvação. O caso do jovem Otto Ohlendorf é um
excelente exemplo. Nascido em 1907, membro do Partido desde 1925,
Ohlendorf bateu-se contra as correntes coletivistas de inspiração socialista
existentes no Partido, quando era professor no Instituto de Economia Mundial
de Kriel. Lutou com tanto ardor que terminou por ter problemas com a
Gestado, que lhe proibiu de pronunciar conferências públicas. A fé de
Ohlendorf foi abalada. Que pensar desse nacional-socialismo no qual tanto
havia acreditado? Seu amigo e velho professor Jens Peter Jessen aconselha-o
a ir procurar o Professor Reinhard Höhn, que dirige uma das seções da
direção do SD, no número 102 da Wilhelmstrasse, em Berlim. Ohlendorf vai
lá e fica surpreendido com o encontro: Höhn declara-lhe sem-cerimônia que é
precisamente de espíritos críticos como o dele de que precisa o SD. Ohlendorf
integra-se imediatamente.
Depois de Ohlendorf, uma onda de jovens intelectuais alemães entra no SD.
Entre eles, Gunther d’Alquen, antigo jornalista NS afastado pelo Partido: o
Dr. Hermann Behrends, doutor em Direito, amigo de Heydrich: Walther
Schellenberg, doutor em Direito e em Ciências Políticas, em quem Heydrich
logo encontra um colaborador de talento.
Este afluxo de intelectuais jovens e dinâmicos empresta grande apoio a
Heydrich. Seu sistema na realidade está ameaçado pelo funcionalismo.
Apesar de sua eficiência, a Gestapo apresenta os vestígios ainda vivos de uma
tradição administrativa de espírito prussiano.
Chega o momento em que o chefe da Sipo percebe que, apesar das aparências,
Werner Best é um defensor intransigente de métodos funcionais prussianos
tradicionais. Várias vezes Heydrich e Best entram em conflito, e,
singularmente, sempre que se devem fazer escolhas para postos-chave da
Gestapo. Para Best, deveriam ser escolhidos juristas conformados,
especialistas. Para Heydrich, precisavam ser encontra dos homens seguros,
capazes, mas, sobretudo, não-técnicos.
Em resumo, surge um clima que põe em perigo o dinamismo do qual, para
Heydrich, deveria ser impregnado o aparelho policial. Como afastar esse
perigo? No princípio de 1935. Heydrich encontra a solução. Divide o SD em
duas formações distintas, a saber: de um lado, o SD, como integrante do
Partido: todos os funcionários da Sipo farão parte deste: este SD será o
instrumento de integração do conjunto da Sipo na SS Por outro lado, o SD
como centro de informações: este será o instrumento móvel, o sexto sentido
do Partido, presente e agindo em todos os meios, em todos os domínios, entre
os simpatizantes e os adversários. Este será o barômetro da nação.
Desde logo, Best e seus amigos são eliminados. Farão parte apenas do SD-
formação nazista. Sua participação no Serviço de Inteligência do Reich é
apenas nominal. Isso explica a posterior hostilidade de Best a qualquer
intrusão do SD na Gestapo.
O atual quadro da organização está inflado. Novas seções e novas direções
são criadas no seio da Reichssicherheitshauptamt (direção-geral da Segurança
do Reich), criada pelo Standartenführer SS Siegfried Taubert.
As seções de direções mais importantes são confiadas a universitários com
formação completa. O Dr. Wilhelm Albert, engenheiro, dirige a seção
“organização”. A seção “serviço” é confiada ao Economista Herbert
Mehlhorn; o Professor Franz Six dirige o serviço de “luta contra as idéias
hostis ao regime”; o Dr. Reinhard Höhn, a seção “relatórios”; o Oberführer SS
Heinz Jost, o serviço de “contraespionagem”.
Este estado-maior centraliza as informações provenientes de sete
Oberabschnitte SD (OA), que por sua vez centralizam as informações
fornecidas pelos Unterabschnitte SD (UA). Esses últimos recolhem o fruto da
atividade dos postos chamados exteriores, células capitais desta rede de
informações, cada uma com responsabilidades em uma região, em um cantão,
em uma cidade.
“Cada chefe de posto”, assinala na primavera de 1937 o Oberabschnitte SD
Noroeste, “deve procurar obter o auxílio de um ou de vários homens de
confiança (Vertrauensmann ou V Mann) em cada local habitado, na região de
sua responsabilidade. Cada um desses agentes terá seus informantes.
Exemplo: o posto D cobre trinta e duas comunas. Em cada comuna, o chefe
de posto terá o auxílio de um V Mann, que representará os interesses do SD.
Cabe a este homem criar em sua comuna a sua própria rede de informações.
Mas atenção: os informantes do representante local do SD não devem de
nenhuma forma saber que trabalham para nós. Quem pode tornar-se um V
Mann? Qualquer homem que disponha de um mínimo de cultura, de bom-
senso, objetividade e lógica”. E o Oberabschnitte Noroeste acrescenta que
“esses postos ajustam-se especialmente a professores, chefes SS e SA,
proprietários de terras, chefes de grupos locais, veterinários e (eventualmente)
funcionários aposentados”.
Este é o grande exército fantasma do SD. Entre os homens de linha da
organização, poucos são os que pertencem à SS ou ao Partido. Entre eles há
até adversários do regime, que entregam, sem sabê-lo, preciosas informações
sobre a neutralidade dos grupos não-nazistas ou antinazistas.
Os tentáculos do SD penetram nos locais mais recônditos da sociedade alemã.
Pois as informações não são apenas dadas por gente do povo e outros espiões
com sorte. A Wilhelmstrasse utiliza também juízes, homens de empresa,
artistas, sábios. Enquanto o estado-maior do SD é ocupado por jovens
universitários experientes, os postos exteriores do SD são alimentados de
informações pelas elites intelectuais locais. Assim é que a seção SD de
Koblenz dispõe, em 1938, de 24 colaboradores benévolos, dos quais quatro
são universitários: entre os onze “homens de confiança”, há oito funcionários
(dos quais quatro da polícia), um médico, um professor e um veterinário.
A partir de 1934, a rede cresce de ano para ano, a velocidade vertiginosa. Seus
tentáculos multiplicam-se e se estendem aos quatro pontos cardiais da
Alemanha. Em 1937, o SD conta com 3.000 membros inscritos na central e
um exército de 50.000 informantes.
Mas qual é, então, o papel exato da organização? Nos primeiros tempos do
regime, seu papel era simples: tratava de descobrir e neutralizar o adversário
nas fileiras do Partido e lutar contra as ações e reações de partidos
adversários. Isso no tempo em que esses partidos estavam no poder e
controlavam o aparelho policiai do Estado. Depois de 30 de janeiro de 1933,
os nazistas passaram a controlar esse aparelho. A relação de forças já não era
a mesma. Para que serviria então o SD?
No princípio, a organização de Heydrich apresenta-se como uma espécie de
polícia de apoio. Em 4 de julho de 1934, Himmler a eleva a “organização
política de defesa da Gestapo”. Seis meses depois, o chefe SS define mais
precisamente o seu papel: “o SD desmascara os adversários das idéias
nacional-socialistas e orienta assim a ação da polícia. Pois”, acrescenta o
Reichsführer SS, “o papel executivo é reservado exclusivamente à polícia”.
Pouco dispostos a ver-se confinados em um papel de auxiliar da Gestapo, os
chefes da organização entregam-se a um objetivo mais elevado: o SD será
uma polícia do espírito, o instrumento da medida e do controle do
pensamento.
Ainda Himmler: “O SD é o serviço de informação ideológico do Partido e do
Estado…” É o guardião do ideal nazista e por isso luta no plano do
pensamento contra “comunistas, judeus, franco-maçons, reacionários, grupos
confessionais ou politizados”. Isto não é, afinal, senão uma maneira nova de
formular o mesmo papel inicial do SD, anteriormente definido sumariamente:
“luta contra o adversário”.
Infatigáveis, os agentes do SD cumprem o seu papel, descobrindo a menor
aspereza ideológica, registrando a menor falha orgânica durante o exame
clínico da nação. As informações chegam incessantemente ao quartel-general
da Wilhelmstrasse. São registradas, classificadas, examinadas e conduzem a
ordens que mantêm a polícia permanentemente atenta.
Oberabschnitt SD Rhin a Unterabschnitt SD Koblenz, em 25 de novembro de
1937: “Vários relatórios estão fazendo referência à impopularidade dos
tribunais especiais. Solicitamos enviar-nos com urgência um resumo da
situação. Digam- nos se e em que medida as prisões nessa jurisdição suscitam
críticas”.
Oberabschnitt SD Sudoeste ao quartel-general, em 27 de maio de 1936:
“Julgamentos incompreensíveis nos assuntos raciais. As penas são
extremamente leves. Até agora nenhuma pena de prisão foi decretada apesar
das determinações do código”.
Relatório do SD n.° 037: “A situação do nacional-socialismo nesta região
(Colônia) tornou-se problemática em consequência da influência
preponderante da Igreja Católica. É uma região-teste, que demonstrará se a
revolução nacional-socialista tem possibilidades de impor-se ou não.
A sombra do SD está em toda parte, vigiando tudo, espionando cada cidadão,
desde que ele se encontre em público.
Relatório do Obersturmführer SS Grillenberger, de 26 de janeiro de 1938:
“Volta da Itália do navio Der Deutsche. O passageiro Fritz Schwanebeck,
nascido em 30 de março de 1901, residente em Mückenberg, manifestou por
sua atitude e por sua postura negligente a mais perfeita indiferença quando foi
tocado o hino nacional”.
A época das pseudo-eleições em 1938, o SD mostra-se particularmente
interessado na identificação dos votos brancos e negativos. As cédulas
enviadas aos cidadãos são marcadas com números invisíveis batidos em
máquinas de escrever sem fita. Os mesmos números figuram nas listas
eleitorais. Por ocasião da apuração, as cédulas são envolvidas em um leite
com creme especial para que os números apareçam. Procura-se então o
número correspondente na lista eleitoral e identificam-se os eleitores.
Novos fichários aparecem no quartel-general do SD e todos os cidadãos
suspeitos são anotados…
São várias as tarefas do SD, que se esforça para descobrir ascendência judaica
em nazistas de primeira hora, dos quais se querem livrar, por um ou outro
motivo. Mas isso ainda não basta a Heydrich. A ação silenciosa de seu
exército fantasma, decide acrescentar — para assegurar o total controle de
pensamento que ele ambiciona — o barulho de uma propaganda
cuidadosamente orquestrada. O homem desta propaganda será Gunther
d’Alquen, antigo redator-chefe do jornal berlinense Der Angriff, demitido de
suas funções pelo Partido em virtude da originalidade de suas idéias
(d’Alquen sustenta que “uma oposição construtiva é necessária a todo Estado
que não quiser perecer por inatividade”).
O órgão dessa propaganda será o Schwarze Korps, “jornal dos Schutzstaffeln
do NSDAP, órgão da Reichsführung SS”. A tiragem fixada no início —
primeira aparição em 6 de março de 1935 — é de 40.000 exemplares. Mas
sobe rapidamente e no fim de 1935 atinge 189.317 exemplares; em 1937,
500.000, e durante a guerra, 750.000.
As razões do êxito: a extrema ambiguidade do jornal, que os alemães logo
classificam como “o único jornal de oposição”. Tem, é claro, o veneno
comum contra a burguesia, os judeus, a Igreja, mas também — fato único —
critica severamente a vaidade de certos dignitários do Partido, a corrupção
que os envolve e o carreirismo pardo.
O espírito crítico do órgão da SS seduz a multidão. E nas fontes de
informação não são apenas as melhores, mas também indiscutíveis. E teria de
ser assim: o SD aí está, seus arquivos, suas atas e fichários completamente
abertos para Gunther d’Alquen.
Mas essa estreita colaboração entre o Schwarze Korps e o SD não trará os
frutos desejados. Heydrich perceberá a importância da arma de que dispõe. E
insistirá em fazer do Schwarze Korps um órgão propriamente SD. Que o
conteúdo de seu jornal seja pensado do princípio ao fim em função da
estratégia do estado-maior de Heydrich. Isso não poderia agradar ao artista da
demagogia que é Gunther d’Alquen. Entretanto, o caráter violentamente
panfletário do Schwarze Korps atrapalhava a ação do SD, ou pelo menos
comprometia a reputação desta organização, que deveria cuidar-se em uma
época de muitas controvérsias.
Correm os meses e os anos. Multiplicam-se os atritos. A colaboração termina
por ficar comprometida. Heydrich chegará a ter de nomear um conciliador
permanente entre o SD e o órgão de imprensa do SD. Ohlendorf formulará de
maneira clara a natureza desse conflito: “Os artigos do Schwarze Korps estão
repletos de hipóteses falsas, de generalizações abusivas. O aspecto
excessivamente difamatório do jornal encontra bons ouvidos apenas entre
espíritos pouco exigentes e compromete afinal a influência que queremos
exercer… O tom geral e as fórmulas empregadas levaram certos nacional-
socialistas, que podemos considerar nossos partidários, a ficar do lado dos que
criticamos com razão”.
Ohlendorf conclui que “uma colaboração real não será possível enquanto o
jornal não decidir basear suas críticas apenas em fatos indiscutíveis e para tal,
antes de explorar abusivamente informações obtidas no SD, deve contar com
a audiência competente dos funcionários dessa organização”.
Tal colaboração nunca existirá. Heydrich logo percebera que o poder do SD
não atinge o Schwarze Korps. Perceberá que chegou o momento de definir
muito bem os objetivos precisos da organização e encontrar justificativas reais
para a sua existência.

O Reichssicherheitshauptamt

UMA GRAVE ameaça pesa sobre o aparelho policial de Heydrich: o SD e a


Gestapo, os dois pilares de sustentação de seu edifício, ameaçam paralisar um
ao outro. As duas organizações tendem a um controle tão forte quanto
possível da nação. E para cada uma, até a Alemanha de Adolf Hitler já parece
pequena.
As atribuições do SD duplicam em muitos domínios às da Gestapo. Assim,
por exemplo, a seção II da Gestapo (marxismo) tem as mesmas atribuições da
seção 11-121 (movimentos de esquerda) da direção do SD. E esse é apenas
um exemplo entre muitos outros. As reiteradas ordens de Heydrich sobre a
divisão de atribuições não chegam para resolver o problema tanto mais que a
divisão preconizada tende a restringir o papel do SD a domínios puramente
ideológicos. Solução: abrir ao SD novas perspectivas, dar-lhe um novo campo
de ação. Qual será? A espionagem. A espionagem dentro e fora das fronteiras
alemãs. O SD sempre fez espionagem, desde a sua organização; esta palavra
exerce uma atração especial sóbrios jovens recrutados para a organização.
Mas esse trabalho era acidental, e tinha um lado amador bem caracterizado.
Também em espionagem o SD não estaria sozinho. Os serviços de
informações da Defesa Nacional, dirigidos pelo Almirante Wilhelm Canaris,
estão aí; e quanto mais o SD envolver-se nesses assuntos, mais irá desagradar
os agentes do exército. Até agora o hábil Canaris conseguiu manter com seu
antigo cadete da Marinha, Heydrich, as melhores relações; o expansionismo
do SD vai rapidamente tornar as coisas piores.
As relações entre os dois homens eram harmoniosas do ponto de vista
profissional e humano (lembremo-nos da marcante admiração da esposa de
Canaris pelos talentos de violinista de Heydrich). A 21 de dezembro de 1936,
em consequência de alguns atritos que haviam surgido, Canaris e Best
assinam um tratado para definir as competências da Gestapo e dos serviços
militares de informações. Fica estipulado que serão entregues aos cuidados
exclusivos de Canaris a espionagem e a contraespionagem no estrangeiro. O
tratado dá vantagens aos serviços de Canaris, cujos interesses, diz-se, são
superiores aos da Gestapo.
É precisamente esta vantagem concedida aos serviços secretos da Defesa
Nacional que é discutida pelo expansionismo do SD. Pouco a pouco, o SD
penetra na rede de serviços de espionagem no estrangeiro, criando cada vez
mais problemas para a ação de Canaris. A ruptura entre Heydrich e Canaris
será precipitada por uma caso, que não deixará qualquer dúvida ao almirante
sobre as verdadeiras ambições do SD e a falta de escrúpulos do chefe da
organização.
No fim de 1936, Heydrich descobre, por seus próprios agentes, que a
oposição soviética se prepara para derrubar Stálin. À frente do projeto estaria
o Marechal Mikhail Nikolaievitch Toukhatchevski. Uma idéia genial nasce no
espírito do chefe do SD: se se informar a Stálin sobre o projeto, apoiando a
informação em alguns documentos falsos mas verossímeis, poder-se-á de um
só golpe decapitar todo o estado-maior das forças armadas soviéticas.
Decapitar o exército russo com a ajuda da polícia russa e do próprio Stálin.
Que belo lance!
Alfred Naujocks, Untersturmführer SS e factótum de Heydrich é encarregado
de falsificar certos documentos russos com data bem próxima ao início da
guerra, época em que a Reichswehr mantinha estreitos contatos com o
exército vermelho. O chefe do SD-Leste, Standartenführer SS Hermann
Behrends, toma conhecimento do plano, e passa-se à ação.
Passa-se à ação apesar das advertências repetidas do Hauptsturmführer Erich
Jahnke. Jahnke não acreditava nas informações relativas a Toukhatchevski.
Isso poderia ser uma armadilha dos serviços secretos soviéticos. Além disso,
de onde vinham essas informações? Do General Nicolai Skoblin, exilado em
Paris. E para quem trabalha o General Skoblin? Para o SD sim, mas também
para os serviços secretos soviéticos. Heydrich não quer ouvir argumentos
racionais. Jahnke é detido e os falsos documentos são enviados por Behrends
a Praga. Lá, intermediários tchecos entram em contato com o Presidente
Benès, explicando-lhe os motivos da presença de Behrends. Moscou é avisada
por Benès. A reação é imediata: um emissário de Stalin vai a Berlim falar com
Heydrich. Os falsos documentos são cedidos por Heydrich pela soma de 3
milhões de rublos, que depois se descobrem ser também falsos.
No dia 11 de junho de 1937, a agência soviética Tass anuncia a condenação à
morte do Marechal Toukhatchevski e de sete outros generais do exército
vermelho. Motivo: alta traição. Os acusados trabalhavam, declara a Tass, para
serviços secretos de uma potência inimiga. A execução do marechal inicia o
mais sangrento expurgo do regime stalinista. Em menos de um ano, o tzar
vermelho afasta do exército 35.000 oficiais. 90% dos generais soviéticos e
80% dos demais oficiais superiores são demitidos de suas funções. Muitos são
pura e simplesmente liquidados.
Reinhard Heydrich está exultante. Como escreverão mais tarde os
memorialistas da SS, de Walter Schellenberg a Wilhelm Höttl, como dirão
Churchill e Nikita Khruschev, o chefe do SD declara a quem quiser ouvir que
o Sicherheitsdienst do Reichsführer SS cortou a cabeça do dragão militar
vermelho.
Na realidade, o fim de Toukhatchevski fora decidido por Stalin muito antes
que Heydrich iniciasse seu jogo com documentos falsos. Desde o final de
1936, uma comissão especial encarregada de proceder a investigações
discretas sobre as atividades do marechal fora criada, por iniciativa do
ditador, pelo chefe da polícia do Estado soviético Jeschov. Em janeiro de
1937, Jeschov prendera o General Vitaly Putna, braço direito do marechal.
Em 3 de março, Stalin pronunciara um discurso incendiário, onde falara de
“um punhado de espiões agindo no seio do exército vermelho”. Em 11 de
maio, Toukhatchevski foi demitido de suas funções de comissário de guerra
plenipotenciário. Três semanas mais tarde foi preso.
A pequenez da contribuição do SD à eliminação do marechal salta aos olhos,
por pouco que comparemos o desenrolar dos acontecimentos com as
expressões dos memorialistas da SS. Höttl escreve que o “trabalho de
falsificação dos documentos” foi feito por ordem de Heydrich em abril de
1937 — numa época, portanto, em que Putna, o ajudante do marechal, já
estava preso e Stalin já pronunciara seu discurso sobre os espiões no exército.
De sua parte Schellenberg afirma que os documentos falsos foram entregues
aos russos em meados de maio de 1937. Ora, em 11 de maio o marechal já
estava fora de circulação.
O fato é que os serviços secretos soviéticos exploram as fontes que lhes
aparecem. Pode-se admitir que se interessem, a título de informação, por
documentos que lhe são oferecidos pela Alemanha, país onde o marechal fora
várias vezes como convidado da Reichswehr, depois do fim da 1 Guerra
Mundial.
Mas esse interesse não deverá ser admitido por Jeschov sem despertar
suspeitas, pois a Alemanha é um Estado nacional-socialista, que se recusa a
toda colaboração militar com “o inimigo bolchevista”. Como agir? Nada mais
simples: utilizando o agente duplo Skoblin. Skoblin fará o jogo. Heydrich se
prestará a ele, sem nunca perceber as consequências verdadeiras.
Também Canaris só saberá do jogo a que se prestou o SD quando tudo já
estiver terminado. Quando é informado — não se sabe exatamente a data —
pelo próprio Heydrich, seus olhos parecem saltar. O caso Toukhatchevski
marca a modificação das relações entre Canaris e Heydrich e o regime
nazista. Ele descobre, nesse momento, que a Alemanha está sendo dirigida
por aventureiros, que podem levar o país à beira do abismo. Só um ano o
separa da hora definitiva de sua escolha, a hora em que tentará ajustar contas
com o conjunto da direção do Sipo e do SD.
O caso do marechal soviético está na origem do conflito entre a SS-SD e a
Wehrmacht. O mais grave, porém, é que a ação do SD também despertou a
desconfiança do Partido. Foi entregue ao SD o monopólio da organização da
defesa do NSDAP, com a condição de que o SD se dedicasse exclusivamente
à eliminação de elementos hostis ao Partido: mas não deveria imiscuir-se nos
assuntos internos do NSDAP. Não seria possível que o SD começasse a
espionar, a criticar o Partido ou a ocupar-se de outras coisas que não suas
tarefas específicas.
Ora, desde a reorganização do SD por Heydrich, a Wilhelmstrasse passou a
contar com pelo menos dois elementos que se dedicavam precisamente a
prestar toda atenção ao Partido. Para o Professor Reinhard Höhn, chefe da
seção II-2 e para seu adjunto Otto Ohlendorf, o SD é e deve ser uma espécie
de corretivo da ditadura nacional-socialista, um órgão crítico, pronto a
emendar erros.
Höhn a Ohlendorf: “Não há mais crítica oficial. É, então, dever do SD
informar os dirigentes do Partido e do Estado dos erros que põem em perigo a
evolução harmoniosa do nacional-socialismo”.
Em Ohlendorf, Höhn encontra um adepto particularmente apressado em livrar
a Alemanha das ameaças que pesam sobre ela. Internamente, dois problemas
fundamentais comprometem a saúde do nacional-socialismo, segundo
Ohlendorf: as correntes coletivistas na política econômica e social, e as
tendências absolutistas na política constitucional. Aquelas são tachadas por
Ohlendorf de “bolchevismo” e estas de “fascismo”. O SD aí está para
remediar esses erros. Elevado por Höhn a chefe do estado-maior da seção II-
2, Ohlendorf, que até então restringira sua atividade ao domínio da economia,
estende suas preocupações à análise profunda de todos os setores da vida
pública alemã: cultura, ciências, instrução, costumes, direito, administração,
organização geral do Partido e do Estado; nada escapa ao exame da seção II-
2.
À medida que se alarga a atividade, aprofunda-se a crítica. Já não há como
disfarçá-la; os fatos são fatos. Os problemas são mencionados com seus
nomes próprios: império dos trustes, dilapidação do patrimônio nacional,
difamação da classe média, mania de grandeza entre os dirigentes do Partido.
A reação não se faz esperar. Durante o verão de 1936 Höhn é demitido de
suas funções. Depois, é a vez de Ohlendorf. Himmler convoca-o e diz-lhe que
sua atividade não está sendo apreciada pelo Partido, pois exorbita de suas
funções. Ohlendorf é demitido do estado-maior da seção II-2 e obrigado a
limitar seus estudos ao domínio propriamente econômico, que era
originalmente o seu setor. Quer apresentar sua demissão; Heydrich recusa e
Himmler tem a mesma atitude. É que um movimento de pânico começa a
aparecer entre os chefes SD. Muitos temem o seu futuro. É preciso acalmá-
los. A demissão de Ohlendorf deve então ser evitada. Se não for assim, tornar-
se-á necessário criar um estatuto para o SD, definir muito bem as suas
funções. Pois as posições de Reichsführer SS e de Heydrich estão longe de ser
sólidas, como o demonstra o escândalo que estoura no início de 1938,
provocado pela Gestapo, e que por pouco não provocou a queda de Heydrich
e o fim prematuro da aliança Himmler-Heydrich.
O caso começou em maio de 1936. O tribunal correcional de Berlim é
chamado a examinar o caso Otto Schmidt, um cantor profissional, de 29 anos,
várias vezes condenado por roubo, extorsão e chantagem. Otto Schmidt revela
certas chantagens que exerceu contra personagens importantes surpreendidas
por ele em flagrante de relações homossexuais. Entre outros, o Advogado
Rüdiger von der Goltz, filho do comandante do corpo de livres-combatentes
do Báltico, o chefe de polícia de Potsdam, Graf von Wedel, o ministro de
Economia, Funk, e o General von Fritsch. Considerando a importância das
declarações de Otto Schmidt, o assunto é confiado ao competente serviço da
Gestapo, dirigido por Josef Meisinger. Em julho de 1936, Schmidt faz
confissões completas, fornecendo todos os detalhes desejáveis. Meisinger
exulta: a sorte vem-lhe fornecer uma arma mortal contra Freiherr von Fritsch,
o inimigo número um da SS, general-em-chefe, comandante das forças
armadas do Reich.
Avisado por Meisinger, Himmler dá conhecimento ao Führer. Uma decepção
o espera. Hitler passa os olhos sobre os documentos reunidos por Meisinger e
ordena-lhe sem hesitação de “jogar fora toda essa sujeira”. Hitler precisa
muito do técnico de guerra von Fritsch, um dos pilares de sustentação de seus
planos de expansão militar, e não vai comprometer-se por um assunto banal
como este. Heydrich destruirá os documentos, mas antes tirará cópias, na
esperança de que um dia poderão ser úteis. Sábia preocupação, poder-se-ia
dizer, pois o dia está mais próximo do que imagina.
Em 5 de novembro de 1937, à tarde, Adolf Hitler toma conhecimento de que
von Fritsch e o ministro da Defesa, o Feldmarschall Werner von Blomberg,
que ele acreditava inteiramente de acordo com suas idéias, sancionavam, mas
com muita prudência e hesitação, uma política considerada por eles
excessivamente aventureira.
Segundo o plano de Hitler, por ele mesmo chamado de seu “testamento
político”, a Alemanha deveria anexar, antes de 1943, pela força militar, a
Tchecoslováquia e a Áustria. Apenas seis homens são postos a par do projeto
do Führer: Fritsch, von Blomberg, Göring, Hossbach, o Almirante Raeder e o
Ministro de Assuntos Estrangeiros Freiherr von Neurath. Von Fritsch e von
Blomberg não se mostram entusiasmados. Discutem com aspereza: as
fortalezas tchecas são extremamente difíceis de ser tomadas; em caso de
guerra, será preciso contar com forças francesas importantes na fronteira
ocidental da Alemanha. Não se poderiam abrir hostilidades sem se contar com
a segurança prévia da neutralidade da Inglaterra e da França.
Os olhos de Hitler observam com irritação; não é com militares desse tipo que
se poderá conduzir a política capaz de fazer a grandeza da Alemanha
nacional-socialista. A temperatura das relações entre o Führer e seus chefes
militares cai a zero. Os documentos de Meisinger sobre von Fritsch voltam a
ter atualidade. Aliás, não é Hitler quem pensa nessa exumação; a idéia é de
Göring, a quem von Fritsch várias vezes chamou de diletante — a Göring,
que tinha o título de Generaloberst e de cujas pretensões militares von Fritsch
sempre zombava. Göring terá a oportunidade de vingança. Meisinger é
encarregado de reconstituir todos os documentos e fazer novas investigações.
O cantor é interrogado outra vez. Tudo o que ele diz é verificado. Em 15 de
janeiro de 1938, o inspetor principal e o colaborador direto de Heisinger,
Fehling, descobrem que na Ferdinandstrasse n.° 2, onde Schmidt diz ter
extorquido pela primeira vez dinheiro de uma de suas vítimas, mora um
homem chamado von Frisch, ex-capitão de Cavalaria. Vai ao local, interroga a
pessoa e abandona a pista.
Mas eis que uma segunda revelação leva Göring a acelerar a investigação que
está sendo conduzida pela Gestapo. O assunto é de importância e talvez
permita a Göring satisfazer sua maior ambição: ser ministro da Guerra. Esta é
uma ocasião que não pode escapar. Mas de que se trata?
Em 12 de janeiro de 1938, o Generalfeldmarschall von Blomberg, ministro da
Guerra, viúvo desde 1932, casa-se com uma jovem chamada Erna Grühn.
Testemunhas do casamento: Adolf Hitler e Hermann Göring. Alguns dias
depois das núpcias, o conselheiro criminal Kurt Helmut Müller, chefe dos
serviços de identidade do Reichskriminalpolizeiamt, recebe uma série de
fotografias pornográficas de seu colega Gerhard Nauck, da seção “costume”.
Nauck pede a Müller que preste especial atenção a uma delas; as pessoas
serão identificadas. A pesquisa é rápida: trata-se da esposa do
Generalfeldmarschall von Blomberg! Interessante, muito interessante mesmo!
Mas é preciso ser prudente. As fotos são submetidas ao General Wilhelm
Keitel, chefe da direção da Wehrmacht, no Ministério da Guerra, e amigo
íntimo de von Blomberg. Pensavam que Keitel logo reconheceria a mulher de
von Blomberg. Mas, decepção: Keitel diz nunca ter visto a senhora
mencionada; que procurem Göring, ele poderá dizer se se trata da nova esposa
do ministro. Afinal, Göring foi testemunha no casamento.
Göring toma conhecimento, em 23 de janeiro de 1938. Reconhece a mulher
de von Blomberg. Se o escândalo explodir, Blomberg terá de deixar o cargo.
E quem o substituirá? Von Fritsch, evidentemente. Há que evitar isso. Mas
como? Acelerando a investigação sobre von Fritsch e submetendo os dois
assuntos, ao mesmo tempo, ao Führer. Isso será feito no dia 25 de janeiro.
Hitler estuda agora com muito cuidado os documentos. A princípio mostra-se
surpreso; depois demonstra um enorme abatimento; mas logo volta a si. Esta é
a sua melhor ocasião para livrar-se dos chefes da Wehrmacht que atrapalham
seus projetos. Agora ou nunca! É a grande oportunidade para assumir ele
mesmo a direção do Exército. E nenhum militar irá mais importuná-lo em
suas aventuras.
Von Fritsch é convocado pelo Führer. Nega tudo: trata-se de uma mentira
vergonhosa. “Por minha honra de soldado, tudo isso é falso!” Mas a palavra
de honra de Fritsch não basta ao Führer, disposto agora a jogar tudo. Ao seu
lado, Göring faz pressão; ele pretende assumir as funções de Blomberg. Hitler
diz-lhe que desista disso. Por quê? Breve Göring vai sabê-lo. Em 27 de
janeiro, o próprio von Blomberg, vingando-se da atitude excessivamente
reservada dos chefes militares em relação a ele desde que começaram a correr
rumores de que em breve seria afastado, sugere ao Führer que assuma
pessoalmente a chefia do Ministério da Guerra.
No dia seguinte, Hitler toma sua decisão. Assumirá a direção do Ministério da
Guerra, transformado em Oberkommando da Wehrmacht ou OKW. O General
Keitel é solicitado a permanecer como chefe do estado-maior OKW. Em 4 de
fevereiro de 1938, toda a nação toma conhecimento de que os tímidos que se
opunham à política preconizada pelo Führer para a grandeza da Alemanha
foram afastados do poder: von Blomberg e von Fritsch são demitidos de suas
respectivas funções; Freiherr von Neurath, ministro dos Assuntos
Estrangeiros, substituído por Joachim von Ribbentrop; 16 generais são
aposentados e 44 outros deslocados de seus postos. O Ministério da Guerra é
dissolvido e rebatizado como OKW. O Ministério da Propaganda faz a
celebração desta “concentração dos poderes”. O caminho da catástrofe está
aberto: Adolf Hitler acaba de conseguir a ditadura total sobre a Alemanha .
Falta resolver no plano jurídico o caso de von Fritsch. Hitler pretendia
esquecer o assunto no momento em que recebeu o pedido de demissão de von
Fritsch. Mas o Führer iria ficar decepcionado. O ex-general exige que lhe seja
feita justiça. O Führer decide então que o assunto será estudado por uma
jurisdição excepcional. Militares e juristas iniciam imediatamente a ação em
favor de von Fritsch. Heinrich Rosenberger, chefe da seção da Wehrmacht no
Ministério da Guerra, preconiza, nos termos da lei, a constituição de um
tribunal militar. O ministro da Justiça apoia a idéia. Para os dois, esta é a
oportunidade sonhada para colocar-se um limite preciso e definitivo ao poder
tentacular e crescente do aparelho policial de Himmler e Heydrich. O caso
von Fritsch permitirá evidenciar a que arbítrio jurídico o Reich estará exposto
se continuar a deixar solta a rédea da polícia. Hitler resolve confiar a Gürtner
o estudo do dossiê von Fritsch. Gürtner dedica-se ao estudo e depois escreve a
Hitler: “Não me é possível chegar a conclusão sobre a culpabilidade ou
inocência de von Fritsch. Mesmo não considerando o grau do acusado ou sua
notoriedade, isto é assunto para juízes”.
Hitler não pode mais fugir. Um tribunal militar tratará do caso. Composto por
generais comandantes-em-chefe da Infantaria, da Marinha e da Aviação:
Göring preside por ordem de Hitler. A Gestapo tem, por seu lado, a missão de
levar adiante uma investigação paralela. Começa a corrida entre a Wehrmacht
e a Gestapo.
No princípio, a Gestapo conduz o trem. Von Fritsch é examinado com lentes
pelo Dr. Best, para profundo espanto de seus amigos. Há anos dizia-se que a
Gestapo não poderia prender e nem mesmo submeter a interrogatório
qualquer militar que fosse. Mas von Fritsch não reclama. Ele faz o que lhe
mandam fazer. Submete-se à decisão do Führer.
Best não sabe o que pensar. Não acredita na culpabilidade de von Fritsch. As
declarações de Otto Schmidt a respeito de von der Goltz já haviam sido
estudadas e descobriu se que eram completamente falsas. Best tem
escrúpulos. Best tem dúvidas. Ele as confia a Himmler. O Reichsführer SS
encoraja-o a acreditar em Schmidt. A Gestapo também não consegue filtrar na
rede lançada pelo escroque. E se se tratasse de uma confusão de pessoas?
Em 30 de janeiro, o confidente de Nebe, Hans Bernd Gisevius, ouve do
próprio chefe da Kripo que o caso Fritsch estaria baseado em um erro de
pessoa. Heydrich e Himmler saberiam perfeitamente disso, mas todas as
providências tinham sido tomadas para que o caso fosse adiante de qualquer
forma.
A Gestapo suspende as investigações e aferra-se às declarações de Schmidt.
Tenta-se uma manobra de diversão para afastar os adversários da polícia da
verdade que Best evidenciou e que Himmler conhecia. Enxames de agentes
da Gestapo caem sobre os quartéis e interrogam todos os soldados que, em
um ou outro momento, tivessem estado a serviço de von Fritsch.
Ao mesmo tempo um certo nervosismo começa a tomar conta dos senhores da
polícia. Aparecem informações de que um grupo de oficiais não estava nada
satisfeito por ver a Gestapo imiscuir-se em assuntos militares, e estaria
disposto a quebrar pela força o poder da Sipo. Tais rumores chegam sem
cessar ao quartel-general da Prinz Albertstrasse. Heydrich inquieta-se. Passa a
acreditar firmemente, dando fé a uma dessas informações, que é iminente uma
ação da guarnição de Potsdam contra Prinz Albertstrasse.
Os rumores não são desprovidos de fundamentos. Mas a rebelião militar não
virá. Os generais se contentarão com gestos patéticos mas ineficazes. O novo
Generaloberst Walther von Brauchitsch protesta contra a ação da Gestapo nos
quartéis. Von Fritsch desafia Himmler para um duelo. O desafio é apresentado
em uma carta que o General von Rundstedt, encarregado de fazer chegar a seu
destinatário, guarda… como lembrança. Só Canaris e Hossbach lutam
abertamente contra os “negros”. Pouco a pouco surge a verdade, graças à
obstinação do Conde Rudiger von der Goltz e do Reichskriegsgerichtsrat
Sack, os dois defensores de Fritsch, que se aprofundam no segredo
cuidadosamente guardado pela Gestapo.
Von der Goltz, apoiado pelo conselheiro da Corte de Justiça Militar, Sack,
submete Schmidt a novos interrogatórios. Todos os detalhes provam que von
Fritsch não é a pessoa de quem fala Schmidt. Um desses detalhes é decisivo:
von Fritsch nunca morou na Ferdinandstrasse e nem nas vizinhanças dessa
rua.
Subitamente, von der Goltz tem uma idéia: vai ao catálogo de telefones e
examina todos os nomes Fritsch ou de pronúncia semelhante. Na lista
encontra um von Frisch, ex-capitão de Cavalaria. Onde mora o antigo
capitão? Em Ferdinandstrasse número 20! Sack vai à casa com seus homens.
Encontra-se a chave do enigma. O capitão reconhece ter tido um problema
com Schmidt. Tem até uma anotação da importância em dinheiro entregue ao
cantor, em cheque retirado de sua conta 10.220 do Banco de Dresde.
O processo Fritsch é aberto em 10 de março, na Preussenhaus, em Berlim.
Debates apaixonados. A Gestapo não intervém. Sua posição se torna ainda
mais frágil no momento em que o capitão de Cavalaria declara ter sido
visitado no dia 15 de janeiro de 1938 pelo inspetor da Gestapo Fehling, que
examinou minuciosamente sua conta bancária. No dia 18 de março, é
pronunciada a sentença: o Generaloberst Freiherr von Fritsch é declarado
inocente: todas as acusações lançadas contra ele são reconhecidas
completamente falsas.
Himmler e Heydrich esperam a resposta da Wehrmacht. Mas ela não virá. Só
Hossbach e Canaris abrem fogo mais uma vez, entregando um “projeto de
reivindicações” para ser submetido pelo Ministério da Guerra a Hitler. Neste
projeto, Canaris pede a reabilitação de Fritsch e alterações radicais na direção
da Gestapo: Himmler, Heydrich, Best, Meisinger e o inspetor Fehling são
especialmente visados. Os generais não dão curso ao processo de Canaris, que
será arquivado. Mas Hitler, desejoso de apaziguar as tensões, reabilita von
Fritsch, embora não o reintegre em suas antigas funções. Otto Schmidt é
fuzilado: Fehling, transferido. Quanto a Meisinger, será afastado da central
contra o homossexualismo, que neste momento estava dirigindo. Em 1939,
Himmler o transfere para a Polônia.
Himmler e Heydrich sentem-se mal. A Wehrmacht torna-se assunto tabu.
Toda alusão à Wehrmacht, toda crítica a militares serão proibidas pelo
Reichsführer SS, que diz abertamente nada ter tido com o caso Fritsch.
Himmler declara em discurso público: “Fui vítima da incompetência de certos
funcionários”.
Heydrich também não tem razões para estar orgulhoso. Tem consciência de
que o problema Fritsch-Blomberg não esta inteiramente encerrado, como
imaginava, e estão em jogo o seu aparelho e a sua posição pessoal. O caso
permitiu, sem dúvida, a Hitler assumir o poder total, mas as relações entre a
polícia e a Wehrmacht continuam como eram: os novos chefes militares são
tão hostis como os anteriores, senão mais, a potência negra.
Canaris e sobretudo Hans Oster, Obersleutnant, chefe da seção OKW de
espionagem no estrangeiro, estendem cada vez mais a ação dos serviços
secretos militares ao domínio da informação política, o que lhes é em
princípio proibido. Além disso, subtraem os adversários do regime à
vigilância da Gestapo e do SD. O próprio Keitel, chefe da OKW e partidário
de Hitler, terá como sua preocupação essencial proibir toda interferência da
SS no setor militar.
Desejoso de aprofundar suas bases em um império cujos limites agora
conhece e compensar a perda de prestígio sofrida em 1938, Heydrich começa
a meditar em um plano já antigo e que tende a fundir em um bloco único e
homogêneo os dois elementos principais de seu sistema de vigilância: trata-se
de reunir o SD e a Gestapo em um serviço de segurança nacional ou
Reichssicherheitsdienst.
No fim do ano de 1937, Schellenberg recebe ordens de preparar um projeto de
fusão SD-Sipo, cujos pontos essenciais são os seguintes: 1) estatização do SD,
cujos empregados, ao contrário dos da Sipo, não são funcionários: 2)
independência do SD em relação ao Partido, de cuja boa vontade está no
momento muito dependente, segundo Heydrich.
Schellenberg deve levar em consideração, no seu projeto, as concepções
gerais de Himmler, que tendem a uma fusão da SS com o conjunto das
polícias do Reich e das polícias particulares de Heydrich: chegar-se-ia, assim,
à total fusão da Sipo e do SD em um Reichssicherheitsdienst único. Em outras
palavras: o serviço central SD (SD Hauptamt), organismo do Partido, deve
fundir-se com o serviço central da Sicherheitspolizei (Sipo Hauptamt),
organismo do Estado. Principal perigo a evitar: a dissolução do SD no seio da
Sipo. O SD deve, de qualquer forma, guardar suas “características próprias”.
Tornando-se uma instituição do Estado, ele se livra da pesada tutela do
Partido, mas expõe-se ao perigo de ser contaminado pelo funcionalismo da
Gestapo. Ora, Schellenberg, como Heydrich, é adversário declarado das
normas administrativas tradicionais e dos funcionários-juristas que as
representam. Protótipo do novo funcionário preconizado pelo SD,
Schellenberg é partidário, de certa forma, da eficiência que consiste em
traduzir em fatos a vontade do ditador, sem o embaraço de leis, códigos,
pensamentos que só servem para frear a ação. Schellenberg: “O novo aparelho
administrativo deverá livrar-se de todos os freios de um pensamento
ultrapassado: deverá possuir, enfim, as qualidades de simplicidade, eficácia e
mobilidade requeridas por um Reich com a dimensão deste que o nosso
Führer está criando”.
Tais idéias não agradam ao Dr. Werner Best, nazista sem dúvida, mas
sobretudo jurista, cujo pensamento é o de que os assuntos do Estado não
deveriam ser confiados a pessoas que ignoram ou desprezam o Direito.
Estimulado por Heydrich, Schellenberg abre fogo contra Best. Guerra
desnecessária, porque fora de propósito: o ambicioso projeto de Schellenberg
não será executado. O Partido não permitirá que um de seus órgãos, o SD, se
funda com uma instituição do Estado, no caso a Gestapo. Isso seria a porta
aberta para que o Estado se imiscuísse nos assuntos do NSDAP.
O Reichssicherheitshauptant (RSHA) aparecerá, de qualquer forma, em
setembro de 1939. Mas é construído sobre as bases de cessões. Existe uma
autoridade RSHA, mas não será oficialmente reconhecida. É uma instituição
que continuará a existir dentro do império interno de Heydrich. Fora dele, o
RSHA não é reconhecido.
A reorganização se apresenta apenas como uma fusão de seções. O RSHA se
dividirá em seis seções paralelas da Gestapo e do SD; sua direção é confiada a
Werner Best. As seções I, IV (luta contra os adversários do Partido) e V (luta
contra a criminalidade) são colocadas sob a tutela do Estado. As outras (II —
problemas ideológicos, III —- assuntos interiores, VI -— espionagem no
estrangeiro) ficam sob a autoridade do Partido.
A ambiguidade desse estatuto não poderia resolver os problemas de Heydrich
nem os do SD, cuja posição não melhora. Pois os problemas não mudam: os
atritos com o Partido são cada vez mais frequentes, o papel exato do SD
continua vago. Sob o impulso de suas cabeças de proa, a organização não
terá, a partir de agora, senão duas funções efetivas, que mobilizarão todas as
energias disponíveis: de um lado a espionagem; do outro, a organização do
terror político e do genocídio
Chefe da Seção I do RSHA, Best logo percebe que não há lugar para um
jurista como ele na nova Alemanha. Em maio de 1940, apresenta sua
demissão a Heydrich e alista-se na Wehrmacht. Heydrich fica satisfeito por
livrar se deste empecilho. Heydrich a Best: “Cada vez que eu tinha uma boa
idéia, você sentia prazer em tentar me demonstrar que afinal a idéia não era
tão boa e que não se poderia proceder assim.”
Mas até conceitos jurídicos tão sumários como os de Best seriam melhores do
que nenhum conceito jurídico. Com a sua partida, o caminho ficará
completamente livre. Heydrich poderá caminhar como bem quiser. Ninguém
mais virá contestar a excelência de suas idéias, nem discutir as maneiras de
colocá-las em prática. É então que, com toda liberdade, o SD poderá entregar-
se à sua tarefa de terrorismo europeu. A isso se reduzirá seu papel, a partir de
agora.

SS e a Política Exterior

COM O BRAÇO direito estendido, Adolf Hitler saúda as personalidades


reunidas à sua volta no Berghof. Seus olhos passeiam sobre a assistência que
reúne o melhor da elite militar do III Reich. Em uma terça-feira, 22 de agosto
de 1939, Adolf Hitler torna pública sua terrível decisão: a Alemanha vai
entrar em guerra.
“Nunca”, declara Hitler, “nossa posição foi tão forte. A Inglaterra e a França
estão em má situação; a União Soviética está pronta a assinar um pacto de
não-agressão… Ninguém sabe quanto tempo me resta de vida. É melhor, pois,
que passemos logo à ação.”
No princípio da tarde, os senhores retiram-se para almoçar; logo depois
recomeça a reunião. O tom de Hitler vai subindo. Com seu olhar fixo, grita
fanaticamente: “Nada de piedade. Ação brutal. 80 milhões de homens
esperam que lhes façamos justiça”. Depois o Führer volta a dominar-se.
Súbitamente sua voz torna-se calma. Anuncia que no dia seguinte dará a
conhecer a data de início das hostilidades contra a Polônia. É inútil
tergiversar. A guerra com a Polônia é inevitável. Hitler: “Vou organizar uma
campanha de propaganda para motivar uma declaração de guerra. Não me
interessa se acreditarão nas razões que dermos. Depois da batalha, não se
pergunta ao vencedor se ele disse ou não a verdade. Não se trata de saber se
temos o direito de declarar guerra, de conduzi-la desta ou daquela maneira. O
importante é conseguir a vitória”.
Ao final dessa conferência, ninguém sabe que todas as providências para a
famosa campanha de propaganda anunciada por Hitler já haviam sido
tomadas. O plano, muito simples, é de Reinhard Heydrich: serão simulados
incidentes armados na fronteira polonesa; vai-se dizer ao mundo que a
Alemanha foi provocada pela Polônia e obrigada por ela a iniciar as
hostilidades.
Para isso, tropas de supostos franco-atiradores poloneses, dirigidas pelo SD,
atacarão soldados alemães. Os falsos poloneses tomarão a estação de rádio de
Gleiwitz e dirão em polonês algumas palavras contra a Alemanha. Um
combate violento será simulado perto do posto fronteiriço de Hochlinden
entre tropas dos dois países; finalmente, o posto alemão de Pitschen, ao norte
de Kreuzburg, será saqueado.
Mas é preciso que haja também mortes para que o mundo se convença e para
que se possam conseguir fotografias chocantes para a imprensa. Onde
conseguir os mortos? Heydrich também sabe como resolver isso. Os campos
de concentração fornecerão excelentes combatentes mortos. Vestem os
cadáveres com uniformes e deixam-nos preparados para desempenhar seu
papel como vítimas da agressão polonesa na Silésia. Na linguagem floreada
da Gestapo, chamam a isso “preparar conservas”.
Nos primeiros dias do mês de agosto, Himmler e Heydrich submetem seu
plano ao Führer, que o aprova, logo se passando à ação. Os papéis são
distribuídos: o Oberführer SS Herbert Mehlhorn dirigirá as operações
próximas a Hochlinden; o Sturmbannführer Alfred Naujocks vai ocupar-se da
estação transmissora de Gleiwitz. Instruções: os homens não deverão levar
consigo nenhum papel que possa trair sua qualidade de membros da polícia
alemã, da SS ou do SD. Heinz Jost, chefe da seção SD-estrangeiro, é
encarregado de fornecer os uniformes poloneses. O Oberführer SS Otto Rasch
terá sob sua responsabilidade a ação contra o posto florestal de Pitschen. O
Obersturmbannführer SS Ottfried Hellwig dirigirá as operações. Heinrich
Müller, Oberführer SS e chefe da Gestapo, levará as “conservas” fabricadas
nos campos de concentração aos diferentes pontos escolhidos por Heydrich.
Duzentos e cinquenta uniformes poloneses são postos a disposição da SS pela
Wehrmacht, tendo em vista “uma próxima ação confiada aos cuidados de
Heinrich Himmler”. Os serviços do Almirante Canaris fornecem as armas e
os documentos poloneses. Jost transfere o material para a escola SD de
Bernau, onde os homens escolhidos estão treinando ativamente.
Em 20 de agosto, tudo está pronto. Mehlhorn reúne os personagens na sala de
reuniões da escola SD e faz as últimas recomendações. Em seguida, os
homens embarcam em caminhões que os levarão aos locais escolhidos. Em 22
de agosto, Heydrich é avisado que os homens estão em seus lugares, prontos
para agir no momento em que receberem ordem. Em 23 de agosto, Hitler fixa
para o início das hostilidades contra a Polônia o dia 26 às 4,40 h.
Todos ignoram — sobretudo Heydrich — que adversários do regime,
próximos do Almirante Canaris, transmitiram à agência americana Associated
Press um resumo das declarações feitas por Hitler a seus generais. Este
resumo refere-se à preparação de pseudo-incidentes de fronteira, destinados a
justificar a próxima invasão da Polônia.
Em 25 de agosto, às 15 h, Heydrich ordena por telefone a seus homens que se
preparem para iniciar a “Operação Weiss”. A máquina já está em marcha;
Mehlhorn enviou à fronteira um grupo dirigido pelo Untersturmführer
Hellwig; Müller já determinou que saíssem seus caminhões carregados de
prisioneiros, quando surge um fato com o qual Heydrich não contava: Hitler
decide voltar atrás em sua decisão. Motivo: na tarde de 25 de agosto, o
embaixador da Itália informa à chancelaria do Reich que o Duce hesita em
participar da aventura hitleriana, e chegam notícias da Inglaterra de que
Londres acaba de assinar com Varsóvia um pacto de assistência militar. Keitel
é chamado com urgência à presença do Führer. Hitler a Keitel: “Suspendam
tudo imediatamente. Preciso de algum tempo para negociações”. São
18h30min. Keitel telefona a Heydrich: “Operação Weiss suspensa em
consequência de acontecimentos políticos imprevistos”.
Heydrich tem dificuldades em fazer parar a máquina. O grupo Hellwig,
enviado à fronteira por Mehlhorn — não se sabe se por má interpretação das
ordens ou por nervosismo —, atacou o posto fronteiriço de Hochlinden.
Müller consegue parar a operação. Irritado, Heydrich substitui Mehlhorn,
considerado responsável pelo erro, pelo Standartenführer Hans Trummler. O
chefe da Gestapo, Müller, assumirá a direção do conjunto das operações.
Finalmente, em 31 de agosto, Hitler fixa definitivamente a abertura das
hostilidades para l.° de setembro às 4h45min, e Heydrich toma as necessárias
providências. Naujocks toma o transmissor de Gleiwitz, depois de ter
trancado no porão o pessoal presente e disparado alguns tiros para dar a
impressão de luta. Cuidadosamente preparado, o discurso contra a Alemanha
é lido em perfeito polonês. Isso dura exatamente quatro minutos, e logo os
homens de Naujocks abandonam o local, não sem antes terem deixado ali um
cadáver entregue pontualmente por Müller.
Da mesma maneira que em Gleiwitz, a operação se desenrola com precisão
nos outros lugares previstos no plano de Heydrich. Em toda parte, Müller
deposita seus sinistros cadáveres, testemunhas das provocações polonesas. E
enquanto os carros de assalto e a Infantaria de Adolf Hitler cruzam as
fronteiras, a imprensa alemã mostra a sua indignação contra a agressão
polonesa. O Völkischer Beobachter diz em 1.º de setembro: “O golpe contra o
transmissor de Gleiwitz é sem dúvida o sinal da agressão da Polônia contra
nosso país”.
Às reações da imprensa junta-se uma série de declarações oficiais dos
potentados nazistas. Hitler denuncia a agressão polonesa: “Quatorze
incidentes foram provocados, três dos quais são particularmente graves”; e o
Ministro para Assuntos Estrangeiros von Ribbentrop comunica ao
embaixador da França que “os poloneses cruzaram a fronteira alemã em três
lugares diferentes”.
Uma comissão oficial vai examinar in loco os crimes cometidos pelos
poloneses e proceder a investigações. Seu chefe é nada menos que o chefe da
Gestapo, Müller, precisamente o funcionário encarregado de preparar as
“conservas”.
Seu colega, o chefe da Kripo, Arthur Nebe, instala no RKPA — para mostrar
aos visitantes de países neutros — um quadro elétrico demonstrativo das
várias fases da agressão polonesa. Quando se aperta um botão, luzes se
acendem e mostram a sucessão dos recentes incidentes fronteiriços. Heydrich
diante do quadro: “Vejam! Eis por que a guerra começou”.
O jogo do SD na fronteira germano-polonesa já permite perceber-se o papel
que a SS pretende desempenhar na política de expansão do Reich. Sem
dúvida, Gleiwitz é apenas a primeira etapa de um caminho que levará
Himmler e a SS à total participação na política externa alemã. Mas é
conveniente não se apressarem: o Reichsführer ainda terá de trabalhar
bastante para impor sua vontade na selva de grupos nazistas com os quais está
competindo. É verdade que ele controla o aparelho mais poderoso depois da
Wehrmacht: a polícia e conta agora com 258.456 homens, inclusive quatro
regimentos VT; além disso, dispõe do único serviço secreto do Reich. Mas
esses poderes não chegam para orientar a política exterior alemã, nascida do
livre jogo dos potentados nazistas que cercam o Führer. A SS estaria derrotada
por antecipação se tentasse conduzir-se por sua própria conta.
Nada evidencia melhor as dificuldades encontradas pela SS em sua tentativa
de atingir o poder do que a luta pelo controle da política externa alemã, luta
áspera que se iniciou nos primórdios do Reich e da qual todos participaram.
Na época, a anexação da Áustria era o que estava na ordem do dia. Cinco
diferentes grupos pretendiam, com igual vigor, controlar o curso da
Anschluss: o Ministério dos Assuntos Estrangeiros, dirigido por Constantin
Freiherr von Neurath; o serviço de política estrangeira do NSDAP, sob a
direção do Reichsleiter Alfred Rosenberg: o escritório de Ribbentrop, que
vivia também dos subsídios do Partido: o serviço “estrangeiro” do NSDAP,
comandado pelo gauleiter Wilhelm Bohle; e a direção austríaca do Partido, no
exílio em Munique, dirigida por Theo Habicht. A partir do outono de 1933,
também a SS entra na corrida, estimulada por um acontecimento
completamente imprevisível.
Em 1933, o chanceler austríaco Englebert Dollfuss, católico de direita, põe o
NSDAP fora de lei. Os nacional-socialistas austríacos, intimidados pela
polícia de Dollfuss, emigram aos milhares para a Baviera, onde Himmler, que
necessitava de recrutas, os acolhe de braços abertos. Os fugitivos são
reagrupados no seio da SS em uma “legião austríaca”. Importante é que os
ativistas nazistas que permanecem na Áustria, dirigidos por Fridolin Glass,
seguem o movimento e submetem se à autoridade do Reichsführer SS.
Integrados na SS por decisão de Himmler, a unidade Glass torna-se, na
primavera de 1934, a Standarte SS n° 89.
Não se sabe se a direção de Berlim tinha conhecimento dos projetos do
Sturmbannführer SS Glass, mas o fato é que sua idéia era derrubar o governo
de Viena. Ele comunica a Habicht o seu projeto e garante-lhe o apoio da
polida de Viena e de parte do Exército. O chefe austríaco do NSDAP dá-lhe
sua bênção e põe-no em contato com seus colaboradores mais seguros, o Dr.
Rudolf Weydenhammer e o Sturmbannführer SS vienense Otto Gustav
Wachter, que representa Habicht na Áustria. Os dois homens são favoráveis
ao projeto do putsch e declaram-se prontos a ajudar Glass em sua tarefa. Em
24 de junho de 1934, encontram Habicht em Zurique e acertam todos os
detalhes. Glass é encarregado de levar adiante a ação propriamente dita e
assegurar-se o apoio da polícia e do exército vienenses. À Weydenhammer é
confiada a tarefa de conseguir armas e convencer da idéia o encarregado de
negócios de Viena em Roma, Anton Rintelen, a quem é oferecida a
chancelaria, em substituição a Dollfuss.
No princípio, tudo vai bem, e Rintelen dá seu apoio, assim como o
Oberstleutnant Sinzinger, comandante das tropas de Viena. Os conspiradores
reúnem-se em 16 de julho na casa de Habicht, em Munique. Em 24 de julho
haveria na chancelaria de Viena a última reunião ministerial antes das férias
de verão. Essa seria a oportunidade para os putschistas entrarem em ação.
Aparentemente, ninguém se preocupava com a opinião de Adolf Hitler.
Habicht a havia solicitado e Hitler manifestara sua concordância, mas de
maneira tão vaga, que não sabiam muito bem o que pensar. Resolvem então
não se preocupar com o assunto. Graças à sua ambiguidade, Hitler negará
mais tarde qualquer participação no assunto e chegará a citar Wachter no
tribunal do Partido, acusando-o de ter “agido contra a vontade expressa do
Führer” (31 de maio de 1938).
Também ninguém se preocupa com a atitude de um dos conspiradores,
presente no momento em que se tomaram as últimas decisões. Tratava-se do
Obergruppenführer SA Hermann Reschny, chefe da SA ilegal na Áustria; é ele
quem fará fracassar o putsch. Desde a matança dos líderes da SA. feita pela
SS, Reschny, que por pouco escapou à morte, tem ressentimentos contra a
Ordem Negra. Além disso, o plano de agora reserva à SA apenas um papel
secundário: a SA de Viena só intervirá quando o golpe estiver vitorioso.
Mas como fazer fracassar o putsch? É a tática de Habicht que fornece a
Reschny a solução do problema. Foi decidido que as ações SS e SA no dia D
seriam simultâneas e independentes uma da outra. Reschny deduz que a SA
nada teria a perder com o fracasso da SS, e discretamente deixa filtrarem-se
informações que chegam até os serviços secretos austríacos.
Desde então, Wachter é constantemente seguido por dois policiais austríacos.
Mas o que não sabe o chefe de polícia é que os dois policiais são nazistas, e as
informações que lhe transmitem são preparadas de comum acordo com
Wachter. Assim, Wachter e Glass têm todos os elementos para continuar até o
final. O 24 de julho, data fatídica, aproxima-se. Tudo está pronto, quando se
anuncia que o Conselho de Ministros adiou sua reunião para o 25 de julho às
11 horas. Há desânimo e hesitações. Rintelen, que chegou ao Hotel Imperial
para assumir suas funções de chanceler, parece querer desistir. Convencem-no
a ficar, e a ação é adiada para o dia seguinte.
Em 25 de julho de 1934, pela manhã, trinta homens da SS, dirigidos por
Glass, reúnem-se na grande sala da associação de ginastas alemães. Vestem-se
com uniformes do Exército austríaco e preparam-se para subir no caminhão
que os levará às 12h30min à chancelaria, onde prenderão os ministros
austríacos reunidos por Dollfuss. Wachter e seus homens mantêm-se na
Schauflergasse e só intervirão depois do golpe. Wachter deverá conduzir as
negociações com os ministros e constituir o novo governo.
Glass e Wachter ainda ignoram que o putsch já tem seu insucesso selado; não
por causa da traição do chefe da SA, mas de um dos conspiradores de seu
próprio grupo: o inspetor de polícia Johann Dobler. No último momento,
Dobler entra em pânico e denuncia tudo ao Ministro do Interior Emil Fey.
Pouco antes do meio-dia, depois de ter tentado por seus próprios meios
localizar os conspiradores, Fey dirige-se apressadamente ao Conselho de
Ministros. O chanceler custa a acreditar no que lhe é dito, mas Fey pede aos
ministros que abandonem a chancelaria e dirijam-se imediatamente a seus
postos.
Os ministros têm dúvidas, mas afinal só o chanceler Fey e o Secretário de
Estado para a Segurança Karwinsky permanecem na chancelaria. Este último
determina reforços policiais para a Ballhausplatz. Pouco depois chega à
chancelaria um caminhão e todos pensam tratar-se dos reforços solicitados.
Mas eram os conspiradores. Dollfuss é informado da entrada no prédio de um
grupo armado de revoltosos; surpreende se quando lhe aparece o porteiro
Hedvicek, que o toma pela mão direita e diz-lhe: “Depressa, sr. chanceler,
depressa!” e leva o para uma sala vizinha à do gabinete de Dollfuss, onde há
uma porta secreta que dá para a rua.
Mas antes que pudessem sair abre-se a porta da sala e surge um oficial SS,
Otto Planetta, acompanhado de dez homens armados: “Mãos ao alto!”
Dollfuss pergunta: “Que querem os senhores comigo?” e faz um gesto
nervoso com as mãos. Planetta dá um passo atrás, puxa sua pistola e atira.
Dollfuss cai de costas, o sangue correndo sobre o peito. Com voz hesitante,
ainda demonstra seu espanto: “Que significa isso, meus filhos? Militares
atirando em mim?” E quando percebe que já está perdido: “Eu sempre fiz o
melhor que pude; queria que houvesse paz”. Um homem da SS diz-lhe que
não pareciam ser essas as suas preocupações no que se refere à Alemanha. E
Dollfuss, em um último suspiro: “Meus filhos, vocês não entendem essas
coisas. ..” Às 15h45min morria o chanceler da Áustria.
Os putschistas não se consideraram derrotados. Fracassou o golpe contra o
Conselho de Ministros, fase principal do putsch, mas agora chegava a hora de
a SA entrar em ação. Era o momento, pensa Wachter, de fazer com que
Reschny atirasse seus homens contra o governo. Mas a SA não descerá para
as ruas como foi planejado. Não se mexerá; ignorará tudo e retirará sua
solidariedade ao movimento. O Brigadeführer SA Türk, adjunto de Reschny,
anuncia que “o putsch de 25 de julho é uma iniciativa exclusiva da SS
Standarte n.° 89. A SA declina de toda responsabilidade neste assunto”. Sem
comentários, a SA deixará que a polícia austríaca decida a sorte dos
putschistas. Planetta, o assassino do chanceler, e seis de seus homens são
executados. Todos os outros conspiradores são condenados a penas de prisão
mais ou menos longas.
Hitler é inundado por uma onda de protestos. Acusado de ser o responsável
pela morte do chanceler, para defender-se, toma medidas severas: Theo
Habicht é demitido de suas funções, a legião austríaca SS é desarmada,
determinando-se uma investigação no Partido contra os conspiradores. A
derrota de Glass expõe o Führer. Atinge como um chicote o Reichsführer SS,
que sofre importante perda de prestígio. A SS precisará de algum tempo para
reaver a sua força anterior. Adolf Hitler não está nada satisfeito com sua ação.
O caso Dollfuss servirá de lição à Ordem Negra. Himmler aprende que a
rivalidade entre os clãs nazistas não conhece fronteiras nem limites. Mesmo
no interior do Partido, é preferível ceder terreno aos inimigos políticos do
Partido e do Estado do que renunciar, em benefício de um clã adverso, a um
privilégio, a um pedaço de poder.
Röhm preferiu, em 1932, entregar-se nos braços dos socialdemocratas a fazer
um acordo com seus inimigos no seio do Partido. Reschny prefere provocar o
fracasso de um putsch a ver a SS obter os louros da vitória. Depois da morte
de Röhm, o novo chefe do estado-maior da SA, Viktor Lutze, ao invés de
fazer a paz com Himmler, procurará destruir a SS, aliando-se à Wehrmacht.
A SS está imersa em tais rivalidades internas. É uma potência entre outras.
Levará a melhor em um ou outro setor quando estiver fazendo valer a vontade
do Führer claramente expressa, ou a de Rudolf Hess, ‘‘representante do
Führer” na direção do Partido. Afinal, será Hess quem abrirá para a SS o
caminho da política externa, confiando-lhe a responsabilidade de pôr em
prática a política da nação alemã (Deutsche Volkstumspolitik).
Muito cedo, os chefes do Partido consideram os grupos alemães residentes
nas regiões de fronteira ou em território estrangeiro como os pilares da
política de expansão alemã.
Em 1931, a direção NSDAP cria uma seção “estrangeira”, destinada a
reagrupar todos os alemães residentes fora das fronteiras. Esta seção, mais
tarde chamada Auslandorganisation (AO), dirigida pelo gauleiter Wilhelm
Bohle, tem 51.000 membros em 1937. Desempenha, agora, papel tão
importante na política externa alemã que von Neurath nomeia o gauleiter
Bohle secretário de Estado no Ministério de Assuntos Estrangeiros, para
conseguir maior controle sobre suas atividades. Mas a AO, dirigida por
Bohle, está longe de ser a única organização a imiscuir-se na diplomacia
alemã. Há também a Aussenpolitische Amt, de Alfred Rosenberg, que dirige
os estudantes alemães no estrangeiro; e o Vereinfür das Deutschtum im
Ausland, ou VDA, que mantém estreitos contatos com os alemães no mundo
inteiro.
A rivalidade entre esses grupos torna-se tão aguda que Hitler pede a Hess que
ele próprio passe a ocupar-se dos interesses de alemães residentes no
estrangeiro. Hess cria para isso uma direção especial, a Volksdeutsche
Mittelstelle (Vomi), cuja responsabilidade é confiada a Otto von Kursell; logo
percebe a incapacidade para impor suas determinações ás organizações rivais
que deveria coordenar. Este trabalho, diz Hesse, deveria caber a uma
formação poderosa, organizada, disciplinada.
A SS preenche esses requisitos. Hess pede a ajuda do Reichsführer SS, que
não se nega, evidentemente, a colaborar. Aí está a sua oportunidade, e a
direção criada por Hess é confiada por Himmler a um de seus chefes mais
brilhantes, Werner Lorenz, Obergruppenführer SS, antigo oficial da
Aeronáutica, chefe do Oberabschnitt SS Noroeste.
Lorenz, o novo chefe da Vomi, inicia suas atividades em janeiro de 1937.
Dispõe agora de 30 homens e de recursos bem modestos. Apesar disso,
impõe-se rapidamente. Em julho de 1938, o VDA cai sob seu golpe. Pouco
depois, a Vomi controla todos os alemães da Europa do Leste. O SD aproveita
a situação para instalar, à sombra dos emissários de Lorenz, uma discreta rede
de centros de informações. O Dr. Hermann Behrends, colaborador direto de
Heydrich, será o braço direito do chefe da Vomi.
Por esse expediente, a organização SS-SD estende-se à política externa. Os
homens da Ordem ocupam certas posições-chave. Assim, o Oberführer SS
Ewald von Massow é nomeado presidente da “Sociedade Germano-Búlgara”.
Paralelamente, Himmler e Lorenz cuidam de suas relações com o homem a
quem, em princípio, a Vomi está subordinada: o Gruppenführer SS Joachim
von Ribbentrop, “encarregado das questões de política exterior no estado-
maior do representante pessoal do Führer”. Ribbentrop e Himmler mantêm as
relações mais estreitas possíveis: “Você sabe, escreve Ribbentrop ao
Reichsführer em julho de 1940, quais são meus sentimentos em relação à SS,
o quanto eu admiro essa organização que é obra sua. Não deixarei de
considerar uma honra pertencer a este corpo de chefes que, estou certo,
desempenhará papel primordial no futuro do nosso Reich”.
As relações entre a SS e Ribbentrop são tão íntimas que o Reichsführer
considera um sucesso quase pessoal a nomeação de seu “camarada”, em
fevereiro de 1938, para a direção dos Negócios Estrangeiros.
Realmente, as relações não se vão alterar, pelo menos imediatamente.
Ribbentrop enche o Ministério de chefes SS; seu filho Rudolf serve na
Leibstandarte SS Adolf Hitler; os altos funcionários são surpreendidos com a
notícia de que deverão passar a usar o uniforme negro, em virtude de um
acordo entre o ministro e Himmler. O próprio Ribbentrop aparece em seu
gabinete com o uniforme de Gruppenführer SS. Em suas cartas a Himmler
queixa-se de não ter a seu lado mais colaboradores no nível dos que vieram da
SS.
Colaboração tão harmoniosa não poderia durar muito, e logo começam a
surgir os conflitos. O ministro de Assuntos Estrangeiros percebe que precisa
impedir o curso da SS, se pretende controlar por si só a política estrangeira
alemã. O conflito tem sua origem em uma decisão de Hitler que influenciará a
história da Europa e do mundo. Depois da ocupação da Áustria, o ditador,
continuando sua política de expansão, levanta o problema das minorias
alemãs na Tchecoslováquia e na Polônia. Neste assunto, a SS tem uma
posição de força por intermédio da Vomi. Os diplomatas do Ministério de
Ribbentrop percebem isso e veem-se suplantados pelos homens da SS.
Realmente, desde o início da crise dos sudetos, o Ministério desempenha
apenas um papel secundário. O encarregado de negócios alemão em Praga,
Ernst Eisenlohr, adversário da política hitlerista de expansão, não tem
conhecimento do que se passa. O chefe da Vomi, Lorenz, é encarregado pelo
Führer de levar adiante as negociações com o dirigente dos alemães dos
sudetos, Konrad Henlein.
É neste momento que, sem o conhecimento de Lorenz, e às vezes até contra a
sua vontade, intervém um segundo senhor da SS: Reinhard Heydrich que, por
intermédio da Seção Estrangeira do SD, tem como objetivo pessoal a queda
de Henlein.
Aos olhos do SD, Henlein é apenas um defensor morno dos interesses do
Partido e do Führer entre os sudetos. Henlein, como a maioria dos membros
do NSDAP dos sudetos, é um nacionalista moderado e católico. “Não
esconderei”, diz ele em 1934, “que nos afastamos, em um ponto, do nacional-
socialismo: jamais aceitaremos que nos mutilem a liberdade individual.” Há
entre os sudetos um grupo nacional-socialista extremista, mas é
numericamente pouco importante. Sobre ele, Heydrich vai apoiar-se para
tentar a queda de Henlein.
Henlein descobre as intenções de Heydrich e foge da armadilha que lhe
preparam. No fim de julho de 1938 assiste ao torneio de ginástica de Breslau.
Encontra-se com Hitler e conversam. Hitler dá ordens ao SD de parar as
intrigas contra Henlein. Dentro da lógica absurda de Himmler, Henlein é
nomeado Gruppenführer SS.
O caso dos sudetos revela aos diplomatas a que ponto dispensam seus
serviços, e que lugar já se prepara para a SS na política externa alemã.
Ribbentrop teve de agir muito rapidamente a fim de impedir a nomeação de
Lorenz para secretário de Estado para as questões referentes às minorias
alemãs. É sem nenhuma participação do Ministério de Ribbentrop que Hitler
vai levar a cabo sua política na Tchecoslováquia: desde março de 1939, o SD
é o responsável pelo assunto.
O plano de Hitler é simples e sofisticado ao mesmo tempo. Os dirigentes do
Partido Popular Eslovaco, conservador e clerical, serão convidados a unir-se
para livrar-se do jugo do governo de Praga; ao mesmo tempo, os tchecos
serão instados a reprimir a rebelião eslovaca. Na confusão provocada, Hitler
desempenhará o papel de árbitro e colocará as duas nações sob seu controle: a
Tchecoslováquia tornar-se-á um protetorado alemão e a Eslováquia, um
Estado formalmente independente, sob a “proteção” do Reich.
No princípio de 1939, o Gruppenführer SS Wilhelm Keppler e o
Standartenführer Edmund Veesenmayer estão em Presburg, em companhia de
um comando de agentes do SD, para tomar contato com os meios políticos
eslovacos. Instruções de Hitler: o Ministério dos Assuntos Exteriores não
deve, em nenhuma hipótese, ser informado dessa viagem. Desejando pôr fim
às contínuas fricções com o governo federal semiautônomo da Eslováquia,
Praga convida os dirigentes eslovacos para uma conferência de reconciliação.
O papel de Keppler é convencer o presidente do Conselho Josef Tiso a não
aceitar o convite e preparar-se para a independência eslovaca. Tiso aceita a
sugestão.
Mas um dos mais eminentes políticos eslovacos, o Dr. Karel Sidor, ministro
de Estado eslovaco no governo central de Praga e comandante-em-chefe da
guarda Hlinka, não aceita a idéia do separatismo eslovaco de inspiração
hitleriana. Os alemães tentam convencê-lo, mas, não obtendo êxito, recorrem
a seu método usual: o crime.
Alfred Naujocks é encarregado de simular agitações nacionalistas eslovacas.
Sob orientação alemã, explodem as primeiras bombas em uma fábrica de
chocolates de Presburg e em Praga; é solicitada a dissolução do governo de
Tiso e decretado o estado de emergência na Eslováquia. Nesse momento,
entra no jogo um inesperado aspirante a diplomata.
O gauleiter de Viena, Josef Bürckel, Gruppenführer SS, entra em contato com
Sidor, que fora nomeado presidente do Conselho da Eslováquia em
substituição a Tiso. Novamente é impossível convencer Sidor.
Hitler fica nervoso em Berlim. Passa o tempo e o presidente tcheco-eslovaco,
percebendo o jogo duplo do Führer, manifesta seu desejo de encontrá-lo em
14 de março. É importante, assim, que a declaração de independência
eslovaca surja no dia 13 de março, pois esse é o instrumento com o qual
Hitler pretende arrancar a capitulação dos tchecos. Afinal, na noite de 12 para
13 de março, Tiso cede a Keppler, e é convidado a ir imediatamente a Berlim.
Poucas horas antes da chegada de Hacha, Tiso deposita a Eslováquia nos pés
do senhor da Europa Central.
O caso tcheco é o primeiro inteiramente confiado aos cuidados do SD. Os
enviados, especialmente o gauleiter Bürckel, criticam severamente os
métodos de Keppler. Para o Führer, só interessam os resultados. O SD
conseguiu chegar aos resultados pretendidos e vai-lhe ser também entregue o
papel de acender o estopim maior para a Segunda Guerra Mundial. Iniciam-se
as operações do SD na Polônia. Doze comandos SD são encarregados de
penetrar na Polônia, e até o fim de agosto duzentos atentados e sabotagens
serão feitos no território polonês e atribuídos aos extremistas poloneses.
No quartel-general de Hitler, os relatórios SD substituem as exposições
diplomáticas do Ministério dos Assuntos Estrangeiros. Mais tarde, Ribbentrop
dirá que Hitler, muitas vezes, tomava decisões baseado em informações falsas
do SD.
Em 26 de outubro de 1939, o ministro finalmente aceita que o SD utilize as
embaixadas alemãs para dissimular suas atividades. Os chefes do SD no
exterior passarão a gozar de imunidades diplomáticas e serão considerados
adidos de polícia. Em troca, o SD promete não imiscuir-se em assuntos de
formulação de política externa. Mas logo que os adidos entram em função,
começam a criticar seus chefes e a espionar o pessoal diplomático. Em
consequência de relatórios do SD, o ministro de Assuntos Estrangeiros
recebe, sem qualquer explicação, ordem de chamar de volta imediatamente os
embaixadores na Espanha, Portugal e Suécia.
Isto é demais para Ribbentrop; e terminam as relações harmoniosas com a SS.
O ministro não poderá mais tolerar que ajam desta forma, sem ao menos dar
importância a sua opinião. Em pouco tempo, Ribbentrop vai-se tornar um dos
especialistas e um dos mais temíveis combatentes nesta pequena guerra que
caracteriza o Estado nazista.
Antes de tudo, é necessário acabar com o poder dos adidos de polícia e
restaurar a autoridade dos chefes de missão. Mas é preciso ser prudente. O SD
tem a confiança absoluta de Hitler e um passo em falso pode ser perigoso.
O atentado de 8 de novembro de 1939, perpetrado pelo relojoeiro Georg
Elser, de Königsbronn, contra Hitler, evidencia a fragilidade do poder de
Himmler; a polícia do Reichsführer SS não conseguiu descobrir outros
responsáveis além desse bravo homem, que resolveu, à sua maneira, livrar-se
de um Führer cuja política guerreira temia. Hitler não está satisfeito com tão
pequena presa, e acusa Himmler de ter falhado. Himmler tem pesadelos, mas
Ribbentrop tira as conclusões cabíveis: o descontentamento do Führer basta
para balançar o poder himmleriano. Prepara-se para mostrar a Hitler que o SD
não é, como ele imaginava, o instrumento perfeito para a imposição de sua
vontade soberana. Um ano depois do atentado, Hitler achará o SD tão pouco
obediente que ameaçará, vermelho de cólera, “exterminar a peste negra”, se
ela não se conformar às ordens de seu chefe.
Motivo da cólera do ditador: a política alemã na Romênia. Desde alguns anos,
o SD vem apoiando a “Guarda de Ferro”, partido nacionalista-revolucionário,
de obediência fascista, que Himmler e Heydrich consideram como parente do
NSDAP. A ascensão da Guarda ao poder, apoiada pelo SD, é impedida, desde
setembro de 1940, pelo General Antonescu, oficial no estilo tradicional dos
caudilhos balcânicos, ou seja, adversário do fascismo, tanto quanto da
democracia.
Antonescu tem boas razões, entretanto, para estar bem disposto com Hitler.
Preso em julho de 1940 pelo Rei Carol, foi libertado graças à intervenção de
diplomatas alemães. A Guarda de Ferro não tem personalidades marcantes: é
Antonescu que o Ministério dos Assuntos Estrangeiros pretende como futuro
ditador da Romênia. Hitler está de acordo com Ribbentrop e Antonescu dirige
o país, aliado à Guarda. Mas não poderia durar a aliança entre revolucionários
e reacionários. Instigado pelo SD, o comandante da Guarda, Horia Sima,
resolve rebelar-se contra Antonescu.
Em 21 de janeiro de 1941, a Guarda passa à ação em Bucareste e toma todos
os edifícios públicos. A situação de Antonescu é desesperadora e só Hitler
poderia vir em seu socorro. Em 22 de janeiro, ele pergunta a embaixada alemã
se ainda goza da confiança do Führer. Resposta clara de Ribbentrop: sim. Que
Antonescu aja como melhor lhe parecer; que trate seus legionários como
Hitler tratou os golpistas de Röhm.
Antonescu não se faz de rogado. Contra-ataca violentamente e a revolta é
sufocada. Mas eis que o SD intervém e toma sob seu manto protetor os chefes
da Guarda perseguidos por Antonescu. Horia Sima e quatorze comandantes
são trazidos em segurança para a Alemanha.
Informado das atividades do SD, Ribbentrop vai a Hitler: Horia Sima foi
levado à rebelião pelo chefe do SD na Romênia, e o chefe da Vomi, Lorenz,
encarregou-se de salvá-lo. Toda a SS, assinala Ribbentrop, está envolvida no
assunto pois a iniciativa da revolta foi da direção central da SS, especialmente
do Gruppenführer SS Gottlob Berger.
Hitler tem uma crise memorável de cólera. Ribbentrop envia novo chefe para
a missão em Bucareste e o adido de polícia é demitido de suas funções e preso
pela Gestapo. O prestígio do SD cai a tal ponto que Ribbentrop acredita ter
chegado o momento de estudar o problema dos adidos de polícia.
Em 9 de agosto de 1941, Ribbentrop e Himmler entram em acordo: toda
correspondência entre os adidos e o RSHA será submetida à assinatura do
chefe da missão. Além disso, fica claro que os adidos não se envolverão em
assuntos que de direito e de fato cabem ao Ministério dos Assuntos
Estrangeiros. Ribbentrop não deixará mais que desrespeitem as suas
prerrogativas e, nos menores casos, chamará Himmler à ordem.
Quando um dia o Reichsführer SS faz uma viagem a Roma, a convite do
ministro italiano de Assuntos Estrangeiros, Ribbentrop lembra-lhe de que “as
personalidades importantes do Estado e do Partido que pretenderem ir ao
exterior devem previamente submeter seu projeto por escrito à aprovação do
ministro para Assuntos Estrangeiros”.
De um modo geral, Ribbentrop consegue evitar a ação SS em seu Ministério,
aliando-se à potência que colaborou para o fracasso da SS na Áustria: à SA.
Sobretudo no Sudeste europeu, onde a SS tem fortes contatos, as embaixadas
serão principalmente dirigidas por chefes da SA, escolhidos entre os
sobreviventes do 30 de junho de 1934, e que por isso mesmo não têm
qualquer motivo para apreciar a SS.
Himmler não atravessará as fronteiras limitadas por Ribbentrop. O
Gruppenführer Werner Best, que desempenha suas funções no Ministério de
Assuntos Estrangeiros, é avisado que a partir de agora deve considerar-se
subordinado desse Ministério e não de Himmler. Mas as humilhações
impostas por Ribbentrop a seu ex-amigo não o afligem muito: a guerra
continua e, quanto mais violenta ela se torna, menor é a importância da
política externa. O campo de Ribbentrop diminui a medida que se reduz o
número de países neutros ou independentes. Á política externa é substituída
pela política de ocupação. No Oeste, e sobretudo nos grandes espaços do
Leste, esboça-se um enorme campo de ação. Um mundo novo está nascendo
aos olhos do sonhador Himmler: o mundo do super-homem germânico.

A Volkstumspolitik Oriental

TODAS AS medidas de segurança foram tomadas por Himmler para


preservar da curiosidade dos indiscretos — inclusive altos funcionários do
Partido — o documento secreto que resume seus sonhos mais delirantes. Esse
documento só é conhecido por ele, pelo Führer, pelos chefes das direções
centrais da SS e pelo governador-geral da Polônia. Tem por tema único “a
política alemã com relação aos grupos humanos não-alemães nas zonas de
ocupação oriental”.
Submetido a Hitler em maio de 1940, redigido em uma linguagem de
burocrata, este memorando estipula que as diversas populações da antiga
Polônia (poloneses, ucranianos, bielo-russos, judeus etc.) “devem ser
submetidas a uma cuidadosa triagem”. “Depois, pescaremos desta confusão
os grupos étnicos que valham alguma coisa, e deixaremos os outros
desagregarem-se”. Himmler: “O Governo-Geral disporá então apenas de uma
população de valor inferior, da qual a Alemanha poderá dispor para efetuar
certos trabalhos de maior fôlego”. As populações do Leste deverão pouco a
pouco desaparecer: os judeus serão deportados para a África ou qualquer
colônia; a noção de raça ucraniana se extinguirá no interior do território
alemão… O mesmo, em maior escala, quanto à raça polonesa”.
Mas como destruir esses povos? Eliminando “os que os dirigem e passando os
jovens por uma peneira”. Dois métodos possíveis: as crianças de “boa raça”
serão levadas para a Alemanha e “germanizadas”; os outros serão
sistematicamente embrutecidos. “A população não-alemã do Leste não terá
acesso às escolas secundárias; os estudos das crianças serão limitados aos
quatro anos das escolas primárias. Objetivo desse ensino: ensinar-lhes a
contar até 500 e a escrever o próprio nome. Além disso, se lhes ensinará,
como um mandamento de Deus, a obedecer aos alemães, a serem honestos,
conscienciosos e bem comportados. Não vejo utilidade em que aprendam a
ler.” (Himmler)
É difícil imaginar-se maneira mais simplista de exprimir a sede de conquista e
de domínio que caracterizou a Alemanha nazista. Mais do que isso, o
documento de Himmler traduz a ambição de uma soberania propriamente SS,
dominando a política e os territórios do Leste. Otto Hofmann, da direção da
SS para “raça e povoamento”: “o Leste pertence à Schutzstaffel”.
Heinrich Himmler sempre se considerou escolhido para essa missão sagrada:
conduzir os alemães para o Leste e assim fazer o renascimento de um povo
germânico de agricultores. “Você não pode imaginar como estou feliz”, diz
ele um dia a Kersten, quando voltava de um encontro com o Führer; “eu lhe
disse que no passado os alemães foram um povo de agricultores e que
deveriam voltar a sê-lo. Eu lhe disse que a SS procuraria criar um reservatório
de sangue novo. Que o Leste nos permitiria reencontrarmo-nos com a terra. O
Führer me escutou e deu-me a sua aprovação”.
A II Guerra Mundial abre ao Reichsführer SS as fronteiras do país onde ele
pensa poder realizar seu maior sonho. Mas precisa ter paciência: Hitler não
parece interessar-se pelo teórico da sociedade agrícola, a não ser na medida
em que ele também seja o político brutal.
O Führer decidiu resolver a questão polonesa e encontrar no Leste o espaço
vital que condiciona — segundo a doutrina do Mein Kampf — o futuro da
grande Alemanha. De acordo com as idéias já contidas na bíblia hitlerista
redigida em 1928, procuram em 1939 reduzir a Polônia ao nível de um povo
de escravos, suprimir seus dirigentes, retirar-lhe toda a personalidade
nacional. Em 22 de agosto de 1939, os generais alemães ouvem da boca de
Hitler que o fim da Polônia é assunto decidido. O Generalfeldmarschall Fedor
von Bock lembrar-se-á das palavras precisas: “Vão-se passar coisas que talvez
não tenham a aprovação dos generais. Por isso o Exército não será
encarregado de eliminar os indesejáveis. Esta tarefa será confiada à SS”.
Convocado para receber tais ordens, Himmler é encarregado de constituir
Einsatzgruppen, que serão encarregados de seguir o Exército alemão e ir
liquidando — à medida que penetram na Polônia — os dirigentes poloneses
locais.
Heydrich despacha cinco comandos, com 100 a 150 homens cada. Por ordem
de Hitler o verdadeiro papel desses comandos é cuidadosamente dissimulado
das autoridades militares. Com bases nas informações muito fragmentadas
que lhe são fornecidas por Heydrich, o estado-maior do VIII Exército define
assim o papel dos esbirros do SD: “luta contra nossos inimigos na retaguarda
do front, prisão de elementos politicamente pouco seguros, contraespionagem,
confisco de armas”.
Pouco a pouco, os militares perceberão o verdadeiro motivo da presença da
SS na Polônia. Himmler terá muita dificuldade em justificar suas ações.
Invocará, inutilmente, as ordens recebidas de Hitler; mas os generais não
acreditam. Heydrich: “Nada fazemos além de executar as ordens do Führer,
mas o Exército crê, com toda firmeza, que a SS e a polícia agem por sua
própria iniciativa”.
Com base em listas negras preparadas antes da campanha da Polônia, os
caçadores de homens SD prendem professores, médicos, funcionários,
religiosos, proprietários de terras, comerciantes. São reunidos em campos,
onde se procede à matança total.
Em poucas semanas, a elite polonesa está dizimada. Dos 690 religiosos da
diocese de Kulm-Pelpli, dois terços são presos e 214 entre eles executados.
Berlim é informada pelo Dr. Roeder, Sturmbannführer SS, comandante da
Einsatzgruppen “Blomberg”, que a maioria dos religiosos poloneses foi
“afastada” em virtude de sua atitude radicalmente polonesa. Em 27 de
setembro de 1939, Himmler resume assim a ação do SD na Polônia: “Nos
territórios ocupados por nós, a elite polonesa está reduzida a
aproximadamente 3%”.
A ação dos comandos do SD é fortemente apoiada por um bom número de
alemães instalados na Polônia. Irritados pela propaganda antipolonesa
orquestrada por Hitler, os poloneses procederam, no início da guerra, à prisão
de várias dezenas de milhares de alemães.
Cerca de 50.000 haviam sido deportados do Oeste polonês para o Leste, e
cerca de cinco mil haviam perecido de morte violenta ou tinham
simplesmente desaparecido durante essa operação.
Para a colônia alemã havia chegado a hora da vingança. Aproveitando o
ambiente de ódios, o gauleiter de Dantzig, Albert Forster, despacha um
batalhão constituído exclusivamente por elementos extremistas recrutados
nesta colônia.
A Prússia Oriental, campo de operações de Forster, torna-se rapidamente o
teatro dos piores excessos. O fogo do ódio anima os homens de Forster, que
canaliza essa energia dentro de um plano cuidadosamente elaborado. Pois
Forster tem apenas um objetivo: limpar seu território de todos os poloneses,
sob os olhos do Führer, e obter como recompensa o bastão de comando na
Polônia.
Muito preocupado, Himmler, que vê em Forster um de seus mais perigosos
rivais, encarrega o Brigadeführer Gottlob Berger de reunir na Polônia os
membros da colônia alemã ainda não aproveitados por Forster, e com eles
constituir uma SS para a Alemanha Oriental.
Com a ajuda de um grupo de chefes da SS, Berger organiza quatro milícias,
baseando-se nas organizações de autodefesa que haviam sido preparadas
pelos alemães da Polônia. Essas milícias, comandadas por chefes da Ordem
Negra, limitarão suas funções policiais ao socorro e patrulhamento. A única
exceção é a milícia comandada pelo tristemente célebre Oberführer SS Ludolf
von Alvensleben.
Nazista fanático, von Alvensleben exerce, sempre que lhe é possível, seu
direito de vida e de morte. Uma simples denúncia, uma cruz em uma lista, e
sua milícia, verdadeiro pelotão de execução improvisado, passa à ação.
A quantidade de assassinatos cometidos por von Alvensleben, Forster e os
comandos SD regulares é tal que mesmo certos nacional-socialistas acabam
por comover-se. Lily Jungblut, membro do Partido e esposa de um
proprietário de terras alemão da Polônia, escreve a Göring uma carta
indignada onde se refere a “milhares e milhares de assassinatos de gente
perfeitamente inocente”. O próprio Heydrich, menos motivado por
sentimentos humanitários, que lhe são estranhos, do que pelo amor à
disciplina, fala de “atos de vingança individual incontroláveis”.
Himmler só se interessa pela quantidade de pessoas liquidadas. Para ele, só o
resultado é importante. Convencido desse princípio, o Reichsführer SS envia
à Polônia, em meados de setembro, um comando SS suplementar, cuja
direção é confiada ao Obergruppenführer Udo von Woyrsch. Esse comando
tem por missão eliminar judeus e poloneses no setor de Katowice. O terror
exercido pela tropa de Woyrsch deve servir de introdução a uma nova fase da
política SS, no fim da qual Dantzig, a Prússia Ocidental, a Posnânia e a
Silésia superior ficarão “limpas” dos 500.000 judeus que aí se haviam
estabelecido — e isso será conseguido por um êxodo maciço. Segundo as
explicações de Heydrich ao chefe do estado-maior alemão na Polônia, esses
judeus seriam concentrados em guetos poloneses, a fim de serem
posteriormente deportados para Ultramar.
As informações que o chefe do SD teve de fornecer aos militares não
impediram que surgisse descontentamento na Wehrmacht, que se considerava
responsável pela ordem na Polônia. Entrementes, estabeleceu-se uma
administração militar na zona ocupada, sob a direção do Generaloberst Gerd
von Rundstedt, e os poloneses receberam a segurança de que “a Wehrmacht
não considera a população civil sua inimiga e estabeleceu-se aqui para
salvaguardar os bens da população e seu direito de dispor deles”.
O terror exercido pelos comandos SD, especialmente a selvajaria dos homens
de Udo von Woyrsch, tornaria ilusória as promessas do Exército. O
descontentamento militar cresce à medida que os crimes se multiplicam. Mas
o Exército terminará por não levar adiante as suas queixas. Hitler sabe como
calar seus generais.
Em 5 de outubro, o gauleiter Forster queixa-se a Hitler das constantes
recriminações dos militares contra a sua ação. Hitler apoia Forster e retira a
Prússia Oriental do poder militar, confiando-a a seu gauleiter. Essa operação é
o prelúdio da instauração do novo sistema de governo, que provocará as lutas
de competências e intrigas habituais entre os potentados nazistas, sempre
servindo o Führer de árbitro. Em meados de outubro, Hitler, com alguns
rabiscos de sua caneta, reúne Dantzig e a Prússia Oriental em Reichsgau
dirigido por Forster; o gauleiter de Dantzig e presidente do Senado, Arthur
Greiser, rival de Forster, recebe a direção do novo Reichsgau Wartheland
(Posnânia); os pequenos territórios poloneses, nos confins da Prússia Oriental,
são submetidos à autoridade do gauleiter de Konigsberg, Erich Koch, outro
rival de Forster; a Silésia Superior é reunida à Silésia dirigida pelo gauleiter
Josef Wagner (em 1941 ela se torna autônoma e é colocada sob a direção do
gauleiter Fritz Brachat); enfim, o resto da Polônia é confiada, sob a forma de
um governo-geral, aos bons cuidados do jurista nacional-socialista Dr. Hans
Franck, que pelo menos aparentemente é investido de plenos poderes.
Paralelamente a essas reformas, Hitler tem a preocupação de informar aos
generais de seu império da continuação e da intensificação da ação brutal dos
comandos negros: “Nosso combate não pode ser prejudicado por noções de
legalidade ou ilegalidade… Neste caso preciso, nossos métodos devem
chocar-se com nossos princípios… É preciso evitar que uma nova
intelligentsia polonesa suba ao poder, limpar o Reich da escória judia e
polonesa…”
Horrorizados, os militares voltavam suas costas. O Generaloberst von
Rundstedt afastou-se de sua administração militar antes mesmo que as novas
disposições entrassem em vigor. A Wehrmacht quer a todo preço evitar a
responsabilidade por esse banho de sangue.
Os novos potentados nazistas entram em suas funções, e logo Himmler
espalha pela Polônia o seu governo SS paralelo. Os comandos transformam-se
em postos da Gestapo e do SD fixos, apoiados pelas tropas da Orpo
(Ordnungspolizei), que participou desde o início, ao lado do Exército, da
campanha polonesa. Os altos funcionários da SS e chefes de polícia (HSSPF)
são designados pelo Reichsführer para exercer um controle geral dos postos
SS-SD-ORPO na zona de ocupação, enquanto as matanças prosseguem.
Já agora sem solicitar a opinião da Wehrmacht, os comandos SD, com a
justificativa de lutas contra partisans, dedicam-se a aniquilar o que restou das
tropas polonesas derrotadas. E continuam a liquidar os dirigentes do país. Por
exemplo, só em uma operação levada a cabo na primavera de 1940, foram
fuzilados 3.500 poloneses; chamaram-na “operação de pacificação
extraordinária”.
A extensão dos assassinatos é tal que o Exército recomeça a dar sinais de estar
incomodado. O Generaloberst Johannes Blaskowitz, comandante-em-chefe do
front do Leste, inicia a única campanha que os militares desencadearão contra
a SS.
Um relatório assinado por Blaskowitz é submetido a Hitler: trata dos crimes,
confiscos de bens, prisões ilegais cometidos pela SS. Convém, assinala-se,
corrigir imediatamente a situação atual, que compromete a ordem e a
disciplina. É preciso que as execuções sumárias sejam imediatamente
proibidas.
Hitler procura ignorar “escrúpulos tão infantis”, mas Blaskowitz, teimoso,
continua sua campanha. Reúne documentos, provas, testemunhos e submete o
material ao estado-maior do Exército. Mesmo Walther von Reichenau,
inteiramente devotado a seu Führer, toma posição contra a SS. Pede-se “a
dissolução imediata das formações negras e uma chamada à ordem dos chefes
da SS, para que termine uma situação que desonra todo o povo alemão”.
Nesta situação, o Governador-Geral Franck — mais tarde ele lamentará este
gesto — intercede junto a Hitler em favor do Reichsführer SS, cuja situação
era extremamente embaraçosa. Em 13 de fevereiro, pede ao Führer que
destitua o Generaloberst Blaskowitz. Três meses mais tarde, Himmler está
livre da presença incômoda dos militares. Blaskowitz é transferido e pouco
depois dele a maior parte dos oficiais da Wehrmacht. Aproxima-se o 10 de
maio de 1940, quando se iniciarão as hostilidades no front Oeste.
Durante este mesmo mês de maio, Himmler, que estava com as mãos livres,
redige sua “Memória sobre o problema das populações não-alemãs no Leste”.
Poderá, enfim, entregar-se à realização de seu maior sonho, a criação do
Estado SS, núcleo de uma futura raça germânica de agricultores e guerreiros.
Os propagandistas da Schutzstaffel sobem ao palco polonês e batem os
tambores, defendendo a “volta ao Reich” dos alemães do Báltico (120.000),
da Polônia Oriental ocupada pelos soviéticos (136.000), da Romênia
(220.000), da Iugoslávia e da Eslováquia. A “voz do sangue” os chama à sua
mãe-pátria, segundo a expressão dos propagandistas da SS. Na realidade, o
problema é inteiramente diferente: a “Grande Alemanha”, o “povo sem
espaço vital”, não tem ainda braços suficientes para dar pleno rendimento à
sua indústria e à sua agricultura.
Já em 1937, Göring, responsável pelo plano quadrienal, calculava que
faltavam ao Reich 150.000 operários. Himmler recebera ordens de tomar
todas as providências úteis para resolver esse problema. O Reichsführer criara
um serviço SS para esse assunto, dirigido por Olrich Greifelt, um dos
melhores tecnocratas da Ordem Negra.
Em janeiro de 1939 — as necessidades de mão-de-obra eram agora de
500.000 —, Greifelt pronuncia uma conferência na qual preconiza a volta à
Alemanha de 30 milhões de alemães residentes no estrangeiro (Reichs-uns
Volksdeutsche). Hitler e Göring, preocupados com a falta de mão-de-obra e
com as necessidades da Wehrmacht, decidem seguir seus conselhos. No fim
de setembro de 1939, a Alemanha assina acordos com a União Soviética e
com os Estados bálticos, dispondo sobre a volta dos alemães estabelecidos
naqueles países e sua instalação nas zonas de ocupação orientais.
A execução desses acordos é confiada ao Reichsführer SS, cuja nova tarefa é
definida assim: “Volta definitiva para o Reich dos alemães que vivem no
estrangeiro, eliminação da influência nociva das populações estrangeiras
sobre o território do Reich, organização de zonas de colonização”.
Himmler vê-se investido de poderes excepcionais, graças aos quais poderá
tentar ascender afinal a esta soberania quase absoluta que ambiciona exercer
sobre a Polônia.
O Reichsführer apodera-se do pomposo título de “Reichskommissar für die
Festigung deutschen Volkstums” (Comissário do Reich para a Consolidação
da Nação Alemã), ou RKF, e lança a sua grande ofensiva oriental. Os serviços
de Greifelt são batizados de Direção RKF e ficam encarregados de planificar
a instalação dos imigrantes alemães com uma distribuição racional dos bens
poloneses e judaicos confiscados. A Volksdeutsche Mittelstelle, ou Vomi,
dirigida por Lorenz, tem por tarefa recolher esses imigrantes e observar suas
tendências políticas. A Direção SS “Raça e Povoamento” submete cada um
deles a exames raciais rigorosos. O RSHA ocupar-se-á, afinal, de “rechaçar”
os poloneses para territórios do Governo-Geral e sequestrar os bens dos
“inimigos do Reich”.
Distribuídas as tarefas, passam à ação. Em 20 de outubro, os primeiros navios
carregados de imigrantes chegam do Báltico. Sua instalação está prevista para
a região de Dantzig, e já aí vai iniciar-se o conflito; o gauleiter de Dantzig,
Forster, recusa-se a aceitar qualquer interferência da SS em seu microimpério.
Embora usando o uniforme de Gruppenführer SS, Forster diz não ter de
receber ordens do comissário do Reich Heinrich Himmler. Sua oposição ao
movimento de imigração dirigido pela Vomi e pela Sipo é tal que Himmler se
vê forçado a abandonar a idéia de instalar os alemães do Báltico em Dantzig.
A pedido do Reichsführer, Forster concorda com sua instalação provisória em
Stettin.
A obstrução de Forster e a lentidão administrativa da Vomi deixam os
imigrantes em situação tão precária que o ideólogo nazista Alfred Rosenberg
inicia uma campanha contra os métodos de Himmler “próximos do
bolchevismo”. Aproveitando as críticas contra Himmler, o gauleiter da
Prússia Oriental, Koch, inimigo declarado da SS, anuncia que recusará toda
penetração em seu território de imigrantes alemães impostos pelo
Reichsführer.
Himmler cria um Escritório Central de Terras Confiscadas; Göring,
preocupado em não deixar continuar crescendo a influência do Reichsführer,
opõe-lhe uma Haupttreuhandstelle Ost ou HTO, que pretende controlar o
confisco e a distribuição de todos os bens inimigos na zona de ocupação
Leste.
Nessas condições, o Reichsführer SS tem dificuldades de impor suas opiniões
e de realizar seus planos. Só parcialmente obterá êxito, e isso apenas graças à
rede policial que teve a precaução de estender nos territórios do Leste.
A Sipo expulsa sem tréguas os poloneses, utilizando métodos brutais, como
de hábito. Até fevereiro de 1940, 300.000 poloneses foram expulsos em
direção aos territórios do Governo-Geral. Quando se iniciou a guerra contra a
Rússia, esta cifra havia ultrapassado 1.000.000. Paralelamente, os imigrantes
alemães eram acolhidos pelos serviços SS competentes, filtrados pelo RSHA,
e dirigidos para as terras polonesas abandonadas.
Em meados do ano de 1941, dois milhões de imigrantes são contemplados
com terras confiscadas. Os serviços de Greifelt presidem a distribuição. Das
928.000 propriedades agrícolas, que representavam 99,5 milhões de hectares,
47.000, ou seja, 9,22 milhões de hectares, são distribuídas aos imigrantes.
20% das empresas industriais ou artesanais têm o mesmo destino.
Não contente em trazer para o berço aqueles cuja nacionalidade alemã era
incontestável, Himmler, fiel à sua “Memória” de 1940, dedica-se a descobrir
onde seja possível a menor gota de sangue alemão. As comissões raciais
localizam alemães que não se sabiam germânicos. Prepara-se uma lista,
chamada Deutsche Volkliste, onde figuram os habitantes do Leste de
ascendência alemã, ou supostamente alemã, dividido em quatro grupos: I —
alemães de origem e que desejam retomar sua nacionalidade inicial; II —
alemães de origem, passivos (dos quais 50% falam perfeitamente a língua de
seus pais); III — pessoas de ascendência alemã provável; IV — alemães de
origem, adversários do regime nacional socialista e que tomaram parte na luta
ao lado dos poloneses contra seus compatriotas.
Mesmo os poloneses acabaram por cair nas mãos dos comissários raciais,
especialmente os que tivessem sinais evidentes de “raça nórdica”. Pois, como
diz Himmler em seu jargão, em qualquer população, os “representantes
nórdicos” podem ser “germanizados”.
As crianças despertam o especial interesse do comissário do Reich. A
princípio os expertos raciais examinam os órfãos, e os aptos a serem
“germanizados” vão para orfanatos alemães. Em seguida são as crianças de
famílias polonesas que têm direito à atenção do Reichsführer SS. Himmler ao
gauleiter Greiser em 13 de junho de 1941: “Os pequenos poloneses
germanizáveis devem ser transferidos para nossas instituições especializadas.
Bastará dizer aos pais que isso é para o bem de seus filhos”.
Seis meses mais tarde, a organização SS Lebensborn entra em cena. As
creches da SS são chamadas a receber os pequenos poloneses, que serão
depois confiados a casais SS sem filhos. Grupos de raptores da Sipo caem
como um enxame sobre o país. Milhares de crianças polonesas são roubadas
de seus pais e enviadas para a Alemanha.
Nesse tempo, o processo de “germanização” dos adultos acelera-se. 100 mil
puros poloneses são obrigados a tomar a nacionalidade alemã. Um milhão de
homens são declarados alemães de fato, pertencentes aos grupos I e II da
Lista; 2 milhões de outros estão nos grupos III e IV da mesma lista.
O sucesso obtido por Himmler nas operações de “germanização” e de
imigração irrita seus adversários. Forster não perde ocasião para atacar o
Reichsführer SS e seus esbirros. Mas o perigo mais grave vem do governador-
geral: Hans Franck dirige à chancelaria do Reich um relatório onde descreve a
situação miserável de um país que não consegue sequer alimentar seus
habitantes, em consequência da introdução maciça de poloneses expulsos de
outras regiões por Himmler.
Himmler percebe que só um milagre permitirá que se mantenha na linha
traçada. Há o milagre: em 22 de junho de 1941, Hitler declara guerra ao
“inimigo bolchevique”, abrindo para Himmler um enorme campo de ação. O
que Koch e Wagner, Forster e Göring procuravam impedir ou frear, os vastos
espaços russos permitirão realizar. Que grande país para ser colonizado! A
febre toma conta de Himmler e de seus colaboradores diante da extensão das
estepes e das florestas russas que se abrem para eles.
Em janeiro de 1941, Himmler já confiava ao Gruppenführer SS Erich von
dem Bach-Selewski, em uma reunião em Wewelsburg, que o plano da
expansão alemã no Leste exigiria a deportação de 30 milhões de eslavos. O
grupo III B do Reichssicherheitshauptamt esboça, então, os contornos do
Reich oriental alemão.
O “Plano Geral Leste” — assim se intitula o documento que resume as
fantasmagorias dos expertos do RSHA — prevê a colonização, pelos alemães,
da Europa oriental até uma linha: Leningrado-Waldaihöhen-Briansk-Dniepr.
31 milhões de estrangeiros deveriam ser afastados para além dessa linha. 14
milhões poderiam ficar, mas seriam germanizados dentro dos próximos 30
anos. As populações do Governo-Geral e dos Estados do Báltico deveriam ser
inteiramente substituídas. Dos 20 milhões de poloneses, 85% seriam enviados
para a Sibéria ocidental, tal como 65% dos ucranianos. O espaço assim
desocupado seria preenchido por imigrantes alemães, cujo número se elevaria,
segundo os especialistas do RSHA, depois de uma primeira onda de 840 mil
colonos, a 2,4 milhões, no correr de dez anos.
Como esse pequeno número de alemães iria poder afirmar-se frente à enorme
superioridade dos não-alemães? A esta pergunta responde o experto
colonialista e planificador de espaço vital, Konrad Meyer-Hetling, Oberführer
SS, diretor do Instituto de Estudos e de Política Agrária da Universidade de
Berlim. Em 28 de maio de 1942, ele submetia ao Reichsführer SS um
memorando onde esboçava em todos os detalhes o país maravilhoso do super-
homem alemão: na massa de terras conquistadas, serão escolhidas zonas de
colonização, colocadas sob a autoridade superior de Heinrich Himmler. Este
último, futuro suserano do Leste, cuidará para que essas terras sejam
exploradas à razão de 50% por alemães de origem. Para começar, estas zonas
de colonização, situadas fora da Polônia e dos Estados bálticos, reservadas
exclusivamente aos alemães, serão apenas três: os territórios a oeste de
Leningrado, que receberão o nome de Ingermanland; a região de Krim-
Kherson ou “Gotengau”; as terras de Memel e Narev. O império colonial
alemão do Leste terá uma faixa paralela a essas três zonas, com vinte e seis
pontos de apoio, sob a forma de cidades de cerca de 20 mil habitantes,
cercadas de vilas alemãs em um raio de cinco a dez quilômetros.
O Reichsführer SS está maravilhado. “Pense, Sr. Kersten, que idéia
magnífica! Será a maior empresa colonial da História! A proteção do mundo
ocidental contra a invasão asiática está afinal assegurada!”
Encontra-se o homem para realizar o sonho russo de Himmler: Brigadeführer
SS de Lublin, Odilo Globocnik. Ele tem todos os motivos para entregar-se às
fantasias de seu chefe: deve a Himmler a entrada na Ordem, apesar de
problemas que poderiam ter-lhe acarretado as mais graves sanções. Em 1933,
o vice-gauleiter Globocnik refugiou-se na Alemanha, depois de ter
assassinado um joalheiro vienense; em 1939, o gauleiter Globocnik foi
demitido de suas funções por tráfico de divisas. Globocnik precisará
contrabalançar sua má reputação, demonstrando um zelo incessante.
Globocnik descobriu no distrito de Lublin traços de antigas colônias alemãs.
Esta descoberta dá-lhe a idéia de fazer desta região um território reservado
aos colonos alemães. A população polonesa deveria ser evacuada. Começa-se
a realizar o projeto nas cidades de Zamosc, Tomaszow e Hrubieszow.
Globocnik sabe que o Governador-Geral Frank fará o possível para impedir
uma operação de colonização que só poderia comprometer ainda mais a
situação econômica da Polônia. Mas ele também sabe que seu projeto teria a
aprovação de Himmler, pois a zona de colonização escolhida, situada em um
quadrado limitado pelas cidades de Lublin, Jitomir, Winnitsa, Lemberg, é o
centro vital da SS no Leste.
No outono de 1941, Himmler dá sinal verde a Globocnik. O Reichsführer
julga que a oposição de Frank não conseguirá impedir o projeto. Mas desta
vez ele se engana fortemente. Este projeto, mais que qualquer outro,
evidencia que a Schutzstaffel não conseguia impor-se como senhora absoluta
da política do III Reich.
Mal Himmler declara o distrito de Zamosc a primeira zona de colonização
alemã, entra em cena o Dr. Frank, governador-geral da Polônia, ministro sem
pasta, Reichsführer e Reichsleiter do NSDAP.
Nada, até agora, nas atitudes do Dr. Frank poderia dar uma idéia do ódio que
o primeiro jurista alemão vai demonstrar contra a SS. Frank, um dos chefes
mais radicais do Partido, desliberalizou o Direito tanto quanto pôde. Fanático
cego, seguiu Hitler em todas as suas aventuras desde o início. Também na
Polônia esse “advogado do diabo” decidiu realizar, de ponta a ponta, custasse
o que custasse, o programa de Hitler. Seu diário testemunha, em todos os
momentos, a vontade de poder que o anima: “Não cederemos nunca a quem
quer que seja a direção do Governo-Geral… Isso custará a vida a alguns
milhares de dirigentes poloneses, mas tanto pior… Liquidaremos os
problemas que se colocarem neste país da maneira mais simples e eficaz… O
que é importante, acima de tudo, é a realização do programa nacional-
socialista nos países do Leste. Não se trata aqui de um problema de direito,
mas de fatos… Aqui, os suspeitos são imediatamente liquidados”.
Mas Frank é suficientemente inteligente para perceber que a brutalidade não
resolve todos os problemas. Em sua opinião, só se poderá ganhar a batalha
polonesa fazendo do Governo-Geral um Estado modelo no plano econômico,
e criando aí um grupo dirigente de imigrantes alemães, apoiado nos
ucranianos, que submeteria os poloneses. Ora, a Volkstumspolitik de Himmler
contraria os planos de Frank: um milhão de poloneses são obrigados pela Sipo
a refugiar-se no território do Governo-Geral, que não os pode alimentar. Ao
mesmo tempo, 30.000 alemães estabelecidos neste território são levados por
Himmler para o Warthegau. Essas partidas maciças impossibilitam o sonho de
Frank de desenvolver uma classe dirigente alemã, que pouco a pouco deveria
substituir os poloneses. Afinal, mais grave, as condenações e execuções
maciças e sumárias de resistentes ou supostos resistentes poloneses espalham
o terror entre agricultores poloneses, que abandonam os campos, refugiam-se
nas florestas e engrossam as fileiras dos guerrilheiros.
Pouco a pouco o governador-geral começa a pensar que o oficial superior SS
e de polícia (Höhere SS und Polizeiführer, ou HSSPF) Friedrich Wilhelm
Krüger foi enviado por Himmler para a Cracóvia apenas para “acabar com
Frank”. E realmente a administração SS-Sipo mostra-se cada vez mais
reticente em relação à administração oficial de Frank.
Subitamente o governador explode. A chancelaria do Reich é inundada de
violentas cartas de protesto. Krüger é afastado das seções do gabinete da
Cracóvia. Frank a Krüger: “A polícia nada tem que dizer aqui. Sou eu quem
dou as ordens, como representante direto e exclusivo do Führer”.
Himmler fica impassível. Espera o momento de dar sobre Frank um golpe
mortal. Desde alguns meses, a Sipo vem reunindo documentos, provas e
testemunhos de prevaricações, nas quais Frank está diretamente envolvido.
Em 5 de março de 1942, o governador-geral é convidado a comparecer a um
tribunal excepcional. Himmler e o chefe de chancelaria Bormann estão
presentes. O Reichsführer é encarregado da acusação e evidencia todo o seu
pedantismo e rancor no momento em que expõe os fatos: desvio maciço de
peles, de bens de consumo, de joias pertencentes a judeus, de objetos de arte e
ícones roubados de igrejas polonesas etc. Frank admite tudo. Preço de sua
confissão: deve aceitar o HSSPF Krüger como seu secretário de Estado e
demitir de suas funções o governador de Lublin, Zörner, adversário declarado
da SS. Frank dá a impressão de aceitar, e volta a seu reino.
Em 10 de março, em carta dirigida à chancelaria, o governador-geral,
demonstrando uma audácia pouco comum, retrata-se: é inocente de tudo, as
acusações feitas por Himmler são completamente sem fundamento.
De qualquer forma, Krüger é nomeado secretário de Estado, mas Zörner
continua em seu posto e Frank reinicia seus ataques à SS.
Pouco depois, sem que Frank tome conhecimento, Globocnik resolve
expropriar e expulsar os poloneses de Lublin e substituí-los por colonos
alemães. O furor de Frank não conhece limites: sai de sua cidade e começa a
percorrer cidades e universidades, em campanha aberta contra o totalitarismo
policial e arbitrário da SS.
Em 9 de junho de 1942, na Universidade de Berlim: “Um povo não pode ser
governado apenas pela violência. Nenhum império poderá sobreviver sem a
justiça ou contra a justiça”.
Em 1o de julho, em Viena: “Eu venho aqui dar o testemunho desta verdade: o
ideal policial, ao contrário do que nos querem fazer crer, nada tem de comum
com o ideal nacional-socialista”.
Em 20 de julho de 1942, na Universidade de Munique: “A força de um Estado
não tem sua origem na violência. Brutalidade e força são duas coisas
diferentes… Creio que só é forte aquele que não teme exercer a justiça”.
Em 21 de julho de 1942, em Heidelberg: “Recuso o Estado policial. E como
nacional-socialista e chefe dos juristas alemães, sou obrigado a erguer-me
contra o desprezo que certas pessoas têm atualmente pela justiça e por seus
representantes”.
O público de Frank e os dirigentes alemães mantêm presa a respiração,
calculando o tipo de golpe que será desferido contra o homem que usa
linguagem tão perigosa. Ele não se faz esperar: Frank é afastado do Partido e
deve renunciar a seu título de ministro. Em 24 de agosto de 1942 demite-se
das funções de governador-geral da Polônia.
Mas — fato bizarro — Frank mantém seu posto na Cracóvia! Permanece aí
em 1942 e 1943, deixando-a só em 1944, para tomar o caminho de
Nuremberg. Adolf Hitler quer evitar que a sua polícia se torne excessivamente
poderosa; Himmler nunca terá o domínio total da Polônia. E paradoxalmente
são os adversários SS de Frank que pouco a pouco deixarão seus postos na
Polônia. No outono de 1943, Odilo Globocnik afastado pelo Reichsführer.
Pouco depois, o HSSPF Krüger obrigado a renunciar às suas funções de
secretário de Estado do Governo-Geral.
Mas o Führer não dará tempo a Heinrich Himmler de pensar em seus
problemas. Pois o martírio dos poloneses é apenas o prelúdio das novas e
maiores atividades que o Reichsführer SS poderá exercer em seu papel de
carrasco: trata-se agora de exterminar os judeus europeus.

A Solução Final

DIÁRIO DE Felix Kersten, médico de Himmler, 11 de novembro de 1941:


“Himmler está ansioso. Ele volta da chancelaria, onde viu o Führer. Tenho
cuidados com êle. Tento saber o que o atormenta. Depois de muitas
hesitações, confessa que está meditando sobre o extermínio dos judeus”.
Kersten acrescenta que, “horrorizado por esta revelação”, abre-se com
Himmler. O Reichsführer SS, em geral muito loquaz, fica mudo.
Pouco depois, Kersten volta à carga. Em 16 de novembro: “Tentei esses
últimos dias voltar ao assunto da sorte dos judeus. Contra seu hábito,
Himmler escutou-me muito atentamente, mas não abriu a boca”. Só um ano
mais tarde o Reichsführer SS falará dos judeus a seu médico. Em 10 de
novembro de 1942: “Mas bom Deus, Kersten, jamais sonhei em exterminar os
judeus. Tive sobre isso idéias completamente diferentes. É Goebbels quem
está na origem de todo esse assunto”. E o Reichsführer SS diz a Kersten: “Já
faz anos que o Führer me ordenou afastar os judeus da Alemanha. Deviam
levar suas famílias e seus bens. Eu iniciei a ação. Mandei mesmo que
punissem alguns excessos cometidos por meus subordinados. Isto durou até
1940. Depois, Goebbels ganhou a parada”.
Kersten: “Por que Goebbels?”
Himmler: “Goebbels sempre achou que a única solução válida para o
problema judeu era o extermínio. Ele acha que um judeu vivo é e continua a
ser um inimigo da Alemanha nacional-socialista. É por isso, diz ele, que não
se pode ter sentimentalismo com esta gente”.
As anotações de Kersten contradizem completamente a idéia que em geral se
tem da posição de Himmler em relação ao que se chamaria mais tarde “a
solução final do problema judeu”. A SS foi a executante do maior crime
contra a humanidade, mas não a inspiradora desse crime.
Numerosos são os historiadores, numerosos também são os atores e
espectadores desse drama, que pensam que a idéia da solução final foi de
Himmler e de Heydrich. Esta afirmação não repousa em nenhuma base
concreta. É uma simples hipótese, motivada por uma reflexão não desprovida
de sentimentalismo: as pessoas que, de um dia para outro, precipitaram o
mundo no sangue e no horror, deveriam estar preparadas para isso. Era
preciso que tivessem admitido e estudado esta possibilidade antes mesmo que
a decisão tivesse sido tomada.
Muitos indícios concorrem para provar a gratuidade da hipótese de que
nasceu na SS, ou pelo menos no nível da Direção Central da SS, a idéia que
levaria à liquidação dos judeus e à decisão efetiva posterior de seu extermínio.
Até o verão de 1944, época em que Hitler se alia efetivamente à idéia,
nenhum documento fazia alusão à destruição física dos judeus europeus. Na
sua tristemente célebre memória sobre “O Problema dos Estrangeiros no
Leste”, escrita em maio de 1940, Himmler opõe-se ainda resolutamente à
“destruição física de um povo, método bolchevista, impraticável e
perfeitamente contrário ao gênio germânico”.
A isso, ajunta-se o fato de que a “solução final” está em perfeita contradição
com a atitude adotada desde a origem pela Schutzstaffel em relação aos
judeus. A SS defendeu sempre a idéia de uma expulsão maciça dos judeus
para fora das fronteiras alemãs. O antissemitismo vulgar do NSDAP ou do
gauleiter Julius Streicher não é o da SS. Sem dúvida a concepção nazista, que
consiste em tachar os judeus de anti-raça, em negar sua participação na
humanidade, não é totalmente estranha à Schutzstaffel. É certo, mesmo, que a
doutrina darwiniana da seleção natural e da luta pela vida, junta aos sonhos
agradáveis sobre a superioridade do louro germânico, têm mais sucesso na
SS, ordem de elite, do que em outras formações do Partido.
Mas os intelectuais do SD sobretudo, por mais que estejam empolgados por
essas idéias, têm horror às receitas preconizadas pelo Partido. “Esse
antissemitismo de baixo nível pode apenas prejudicar-nos e prejudicar a
reputação da Alemanha”, escreve em 5 de junho de 1935 o Schwartze Korps,
logo após alguns excessos cometidos contra os judeus.
Para os dirigentes do SD, trata-se de encontrar uma solução razoável para um
problema cujos dados estão escritos nos acontecimentos. Têm apenas
desprezo pelo furor racista do Partido, pelos exageros de linguagem, pela
“caça ao judeu” que — outra citação do Schwartze Korps — “não nos
aproxima um milímetro da solução do problema”.
A solução do problema será em primeiro lugar formulada pelo
Untersturmführer SS Leopold Edler von Mildenstein. No verão de 1935, por
ocasião de uma viagem que acaba de fazer ao Oriente-Médio, von
Mildenstein publica no Der Angriff uma memória de viagem, onde trata
longamente das possibilidades de uma Palestina judaica.
Intimamente ligado a chefes sionistas, von Mildenstein apoiou o ponto de
vista segundo o qual a solução do problema dos judeus residia na sua
emigração para a Palestina. O Untersturmführer está persuadido de que essa
emigração pode ser realizada, beneficiando-se do antissemitismo nazista e
com o apoio da SS, cuja atitude crítica contra a inconsequência do Partido ele
conhece, neste assunto e em outros.
Com efeito, o Partido jamais definiu de maneira precisa sua verdadeira
política antissemita. No Mein Kampf, Hitler não dá indicação concreta a
respeito de uma legislação antissemita.
Alfred Rosenberg diz que “os judeus devem ser considerados como uma
nação que vive na Alemanha; é preciso simplesmente proibir seu acesso aos
postos de comando, tanto na política quanto nos domínios cultural e
científico”. Quanto ao Standartenführer SS Conti, futuro diretor da Saúde
Pública, afirma que a nova Alemanha condena todo ódio racial: “Os judeus
não fazem parte de uma raça inferior, mas simplesmente de uma raça
diferente”.
A moderação de suas idéias levará mais tarde os historiadores a entenderem aí
apenas manobras de camuflagem destinadas a esconder o vasto plano de
extermínio dos judeus, elaboradas em seus menores detalhes e cuja realização
será feita por golpes sucessivos. Esta interpretação não leva em conta a
verdadeira natureza do regime nazista, regime tão pouco estruturado quanto
repleto de contradições. Os pontos de vista acima expressos refletem
realmente as atitudes de diferentes grupos antissemitas no interior do NSDAP.
Entre esses grupos distinguem-se três correntes: 1) um grupo nacionalista, que
concede aos judeus uma participação sem restrições na vida econômica
nacional, mas quer proibir-lhes toda ingerência em assuntos políticos e
culturais. Este grupo é essencialmente dirigido pelo Dr. Walther Gross, chefe
do Serviço de Política Racial do NSDAP, e pelo Dr. Berhard Lösener,
especialista em questões raciais no Ministério do Interior; 2) um grupo de
intelectuais nazistas teóricos do racismo, reunidos em torno de Alfred
Rosenberg; 3) um grupo de neuropatas criminais dirigidos por Julius
Streicher, ao qual se juntará mais tarde Josef Goebbels.
Será um ou outro desses grupos que dará alternativamente, segundo as
circunstâncias e sua influência momentânea, o tom da política nazista
antissemita.
Streicher está na origem das medidas tomadas contra os judeus nos primeiros
meses do regime, logo após da tomada do poder: a série de crimes de 1933,
boicote das empresas judaicas a partir do mês de abril, eliminação de
funcionários, médicos e juristas judeus, proibição dos judeus de penetrarem
em salas de concertos, exposições artísticas e banhos públicos.
Em 1934, a onda de terrorismo antissemita acalma-se. Hans Frank, porta-voz
de um grupo mais moderado, declara que “o regime quer acabar com os
exageros contra os judeus”. Estes retomam coragem. Em maio de 1935, o
Völkischer Beobachter assinala a volta à Alemanha de uma dezena de
milhares de judeus que tinham fugido do território nacional. Desde o mês de
junho de 1935, os antissemitas extremistas retomam sua influência. Em 29 de
junho, Goebbels pronuncia um discurso violento sobre os intelectuais
burgueses que “pretendem estupidamente que o judeu é também um homem”.
“Estamos cansados dos judeus”, grita Goebbels para terminar. E os exageros
voltam como no passado. Judeus são maltratados na Kürfurstendamm, em
Berlim, onde obrigam-nos a deixar a Wehrmacht; cartazes proclamam em
toda a parte: “Judeus para a forca!”. Esta onda antissemita termina pela
proclamação dos editos de Nuremberg, que proíbem todas as relações sexuais
entre judeus e não-judeus.
Um ano mais tarde, uma nova reviravolta. A campanha antissemita continua,
mas Hermann Göring, partidário do grupo nacionalista moderado, elabora um
plano quadrienal que deixa os judeus em seu lugar na economia alemã.
É a este jogo dos grupos antissemitas do NSDAP que o Untersturmführer SS
Leopold von Mildenstein quer pôr fim tentando impor a única solução válida,
segundo ele, ou seja, a emigração de todos os judeus. A idéia não era nova,
mas sua realização fora impedida até o momento pela recusa dos países não-
alemães de receber judeus em grande número. A solução palestina, defendida
por Leopold von Mildenstein, contorna esta dificuldade, mas tem contra si a
hostilidade dos judeus alemães, que não são atraídos pela Palestina. Em 1933,
19% dos emigrantes judeus vão para a Palestina. Em 1934, esta percentagem
atinge 38%, para cair a 34% e depois a 16% em 1937. A massa dos judeus
alemães recusa deixar o país que consideram sua pátria; só um grupo bastante
pequeno de porta-vozes sionistas considera a emigração para a Palestina
como a solução do futuro, prólogo de uma nova grandeza do povo judeu. Para
eles, o antissemitismo do regime nazista é o terreno que lhes permitirá
precisamente ganhar seus correligionários à causa palestina. A Jüdische
Rundschau, órgão dos sionistas alemães, escreve em 13 de junho de 1933: “O
sionismo, que tem consciência da realidade do problema judaico, propõe uma
solução de envergadura: a emigração dos judeus para a Palestina. Os sionistas
procuram ganhar para a sua causa todos os povos, amigos ou inimigos dos
judeus, pois trata-se de um problema que interessa a todos sem exceção”.
É aí que intervém as reflexões de von Mildenstein. É preciso, segundo ele,
que o SD, de acordo com os sionistas, provoque uma tomada de consciência
entre a massa judaica, que contribua a despertar no seio desta massa a
nostalgia da Palestina, o único país que na época autoriza ainda a imigração
judaica maciça. Himmler dá seu acordo ao plano Mildenstein, que cria, no
seio do SD, uma Direção II-112, de assuntos judaicos.
Von Mildenstein toma a seu serviço um Scharführer SS, que até então se
distinguiu exclusivamente por sua atitude exageradamente respeitosa com
relação aos superiores: trata se do chamado Adolf Eichmann. Nascido em
1906, em Solingen, na Áustria, vendedor de aparelhos elétricos, depois
representante comercial, foi por acaso para a Alemanha e incorporou- se no
SD depois de um breve serviço na Verfügungstruppe SS. Adolf Eichmann
tomou como regra considerar todo chefe SS como um ser superior. Quando
von Mildenstein lhe pede que trabalhe para a Direção II-112, Eichmann bate
os calcanhares. O assunto está resolvido. Eichmann não sabe por que lhe
pedem que se ocupe das questões judaicas. Nada lhe predispõe para essa
matéria. Ele se explicará mais tarde sobre esse ponto: “Na época, eu teria
aceito qualquer proposta; tinha pressa de livrar-me das miseráveis tarefas de
que estava encarregado”.
Eichmann não é antissemita. Mal sabe que há judeus e o que isso pode
significar, pois não tem nenhum preconceito na matéria: tem judeus na
família, frequenta assiduamente uma jovem judia e deve a amigos judeus sua
situação nos negócios. No entanto, sob a bandeira de Mildenstein, este
homem tão aplicado e respeitoso rapidamente adquirirá as qualidades do
perfeito experto antissemita do tipo nazista.
Dez meses depois de ter criado a Direção II-112, von Mildenstein, indisposto
pela excessiva proximidade dos esbirros de Himmler, deixa o SD. Entrará
mais tarde no Ministério de Assuntos Estrangeiros.
Adolf Eichmann fica encarregado da seção e é-lhe confiado o Serviço de
Organizações Sionistas. Com prazer, ele cita em público algumas palavras
hebraicas; defende ou ataca a justiça de alguma noção sionista e passa logo,
entre os seus colegas do SD, por antigo morador da Palestina, que conhece
admiravelmente seu assunto por ter durante muito tempo vivido naquele país
e convivido com seus habitantes. Na realidade, Adolf Eichmann está-se
esforçando: usa uma parte de suas noites para adquirir algumas noções de
hebraico e decifra penosamente O Estado Judeu, de Theodor Herzl. Mantém
contatos seguidos com toda espécie de grupos sionistas e redige uma
memória, A Organização Mundial Sionista, publicada em outubro de 1936,
sob os auspícios da SS. Durante esse trabalho, Eichmann e o Oberscharführer
SS Herbert Hagen, sucessor de von Mildenstein, percebem o problema que
está sendo trazido para a SS pela política pró-sionista que ela analisa: por um
lado, na realidade, empresta seu apoio à ida dos judeus para a Palestina; por
outro lado, teme que essa emigração se torne um pretexto para a criação de
um Estado judaico. Sem dúvida, há poucas possibilidades de que os
britânicos, protetores da Palestina, autorizem algum dia o nascimento de tal
Estado. O que não se sabe é se os judeus pensam nisso. Conviria conhecer um
pouco melhor sua atitude a esse respeito. Para fazê-lo, será preciso vigiar
ainda mais estreitamente suas atividades, penetrar mais profundamente ainda
na estrutura desses agrupamentos, e sobretudo na grande central que dirige
secretamente as organizações sionistas. Um amigo de Mildenstein vai
fornecer à SS os meios de realizar este objetivo. Trata-se de Otto von
Bodelschwingh, membro do Partido, informante do SD que, por ter tido,
durante longo tempo, negócios em Haifa, mantém contatos estreitos com um
grupo de alemães na Palestina, que aumentam seus lucros enviando
informações para o SD. Entre este grupo de homens, o chamado Reichert está
intimamente ligado aos dirigentes de uma organização sionista secreta, a
Haganah, a qual, mais do que qualquer outro serviço secreto — com exceção
do Intelligence Service —, excita a imaginação dos responsáveis pelo SD.
Eichmann considera a Haganah (“a secreta”) como o brain-trust do sionismo
mundial. Segundo ele, não se trata apenas de uma organização militar de
autodefesa, mas de uma verdadeira central de espionagem judaica.
O Serviço II-112, graças aos bons ofícios de Reichert, toma contato com um
dos dirigentes da Haganah, Feivel Polkes, judeu polonês, nascido em 11 de
setembro de 1900 e emigrado para a Palestina. Segundo Hagen, Polkes
assume a direção da defesa dos judeus palestinianos. O SD convida Polkes a
vir a Berlim. Em 26 de fevereiro de 1937, Adolf Eichmann cumprimenta este
hóspede de categoria na capital alemã. Polkes não fica atrás: o próprio
Eichmann é convidado a visitar a Palestina. O dirigente da Haganah quer
mostrar ao Obersharführer SS que ele não está tendo entendimentos com uma
pessoa qualquer. Explica-lhe que o seu interesse é aumentar o movimento de
imigração para a Palestina, a fim de que os judeus ultrapassem em número os
árabes; assinala que já está colaborando para essa finalidade com os serviços
secretos ingleses e franceses e faz parte de seus intentos cooperar na mesma
perspectiva com a Alemanha de Hitler.
Em 26 de setembro de 1937, às 18h50min, Eichmann e Hagen partem para a
Palestina, a fim de acertarem os detalhes dessa aliança com a Haganah.
Heydrich dá-lhes sua bênção. O Roumania, a bordo do qual viajam os dois
agentes SD, chegará a Haifa em 2 de outubro. Uma revolta nacionalista árabe
acaba de explodir na Palestina, impedindo o reencontro com Polkes no local.
O encontro terá lugar no Cairo: o dirigente da Haganah declara-se pronto a
fornecer informações ao SD contra uma soma mensal de quinze mil libras
esterlinas. Himmler e Heydrich estão satisfeitos com os resultados obtidos por
seu especialista em sionismo. A Eichmann é pouco depois confiado o posto de
adido responsável por questões judaicas junto ao inspetor da Sipo e do SD.
Instala-se em Viena. Sua tarefa: acelerar por todos os meios a emigração
judaica.
Até então, só emigravam os judeus que houvessem livremente decidido partir;
Eichmann inicia, com a ajuda da Sipo, a emigração forçada. Percebendo
subitamente que haviam feito dele um chefe, Eichmann é tomado de um
verdadeiro delírio. Ordena, decreta, organiza, critica o sistema em vigor. A
confusão suscitada pelas competências paralelas em matéria judaica dos
serviços do Partido, da política, do Estado deve terminar. Ele cria uma
“Direção Central para a Emigração Judaica”, e instala-se no n.° 41 da Rua
Prince Eugen, em Viena. À sua volta reúne os que pouco depois serão os
artífices do genocídio: os irmãos Hans e Rolf Günther, Franz Novak, Alois e
Anton Brunner, Erich Rajakovitch, Stuschka, Hrosineck.
Por enquanto, esses homens executam, sob as ordens de Eichmann, o êxodo
maciço dos judeus. A indigência dos …. 300.000 judeus austríacos é tal que
eles não poderiam pagar as despesas de viagem. Os judeus ricos serão
obrigados a subvencioná-las. Organizações de socorro judaicas são
igualmente solicitadas a colaborar. No verão de 1938, a American Joint
Distribution Committee coloca cem mil dólares à disposição dos judeus
austríacos.
No outono do mesmo ano, os serviços de Eichmann organizaram a partida de
45.000 judeus austríacos. Dezoito meses mais tarde, 150 mil judeus foram
obrigados a deixar sua pátria. Mas a política de emigração forçada só poderia
durar enquanto os tecnocratas da SS decidissem manter abertas as fronteiras
dos países de imigração e enquanto as caixas das organizações de socorro
judaicas auxiliassem. Os extremistas do Partido sabiam disso. Neste verão
organizam uma campanha de sabotagem contra a política de Eichmann.
Julius Streicher abre fogo. O Stürmer publica artigos incendiários sobre o
“inimigo número um” e pede aos países europeus que fechem suas fronteiras
à imigração judaica. Pouco depois, Goebbels entra em cena. O momento é
propício para a realização do sonho que ele cultiva há muito tempo: assumir a
direção-geral da política alemã para assuntos judaicos. Em 7 de novembro,
um jovem judeu chamado Grünspan mata em Paris o terceiro-secretário da
Embaixada da Alemanha, Ernst von Rath, para vingar seu pai que morrera em
uma deportação. Josef Goebbels sabe como explorar o incidente: em 8 de
novembro, o Völkischer Beobachter inicia a tempestade: “O povo alemão não
poderia deixar de tirar as conclusões que se impõem depois de tal ato”.
Em 9 de novembro, aniversário do Bierkeller-Putsch de 1923, os
companheiros de Hitler costumam reunir-se na prefeitura de Munique, em
volta de seu Führer. Durante a reunião, tem-se a notícia de que Ernst von Rath
acaba de falecer em consequência dos ferimentos. Isto serve maravilhosa
mente aos interesses de Goebbels. Ele fala discretamente com Hitler, que
parece muito tocado pela notícia, e não há dúvida de que agora é o momento
de adotar-se a ‘‘solução final”. Um venenoso discurso de Goebbels, demônio
do III Reich, diante da nata dos dignitários e velhos lutadores do Partido — e
as cartas estão jogadas. Na noite de 9 para 10 de novembro, centenas de lojas
judaicas são pilhadas. Isso é apenas o prelúdio do pogrom para o qual todo
um povo vai ser convidado a participar.
Os futuros executantes da solução final são originalmente os adversários de
Goebbels e da solução que ele preconizava. Pois a ação de 9 de novembro é
sobretudo um ato de rebelião do Partido contra o papel predominante da SS
na política judaica do Reich. Não é por acaso que não se solicita a opinião de
Himmler nem de Heydrich. Não é por acaso que lhes será apresentado apenas
um fato consumado.
O demônio do Reich disse muito pouco aos dignitários do Partido. Ele,
Goebbels, teria informado ao Führer da multiplicação das ações e
demonstrações iniciadas em toda parte contra os judeus. E Hitler teria
respondido que tais demonstrações não deveriam ser organizadas pelo
Partido, mas que o NSDAP não poderia opor-se a elas, na medida em que se
iniciassem espontaneamente. Interpretação dos chefes do Partido: o Partido
está encarregado de organizar a ação contra os judeus, mas o mais
discretamente possível e sem intervir oficialmente.
Sabem muito bem como interpretar o ministro da Propaganda do Reich.
Acabam de entregar-lhes novos poderes. Desde agora, são os donos da
questão judaica: cabe lhes resolver o problema. Num momento em que os
responsáveis oficiais pela política judaica nacional-socialista ainda não
conhecem as decisões tomadas, elas já estão sendo aplicadas. Neste mesmo 9
de novembro, às 23hl5min, Heydrich toma conhecimento, pelo SD de
Munique, de que a Direção de Propaganda do gau de Munique-Alta Baviera
ordenou pogroms; a Gestapo tem ordens de não intervir. Heydrich não sabe o
que fazer nem o que dizer. Previne Himmler e este solicita uma entrevista a
Hitler. Às 23h30min, Himmler está chegando aos aposentos privados do
Führer.
Hitler finge-se surpreso. Não sabe do que se trata, mas, de qualquer forma,
que a SS não intervenha e que a Gestapo contente-se em assegurar a
salvaguarda dos bens judeus. Himmler toma providências. Não é preciso
muito tempo para compreender que Goebbels acaba de sabotar a política SS
de emigração judaica e de comprometer a soberania da Ordem Negra neste
terreno. Forte derrota! Himmler está louco de cólera e o mesmo acontece com
seus chefes. Ohlendorf, chefe do SD-Inland, declara-se “horrorizado com
esses pogroms”. O Gruppenführer Wolff afirma que “a Alemanha acaba de
perder uma batalha moral”. O chefe de polícia von Eberstein acha “toda essa
ação perfeitamente nojenta”. Mas isso é tudo que fará a SS a título de
protesto! Nenhum dos chefes da Ordem pensa em recusar-se a colaborar com
a ação em curso. A SS inteira, inclusive o serviço de Eichmann, que foi
atingido em seu coração, obedece às ordens de não-intervenção.
Entretanto, por intervenção de Himmler, e sobretudo de Göring, o qual afirma
publicamente que Goebbels é responsável pelos malefícios causados à
reputação da Alemanha no estrangeiro por sua ação brutal, e ainda por
prejuízos à economia da nação, Hitler, depois de muitas hesitações, ordena ao
ministro da Propaganda que dê marcha à ré em sua ação, e confia
exclusivamente a Göring a responsabilidade da questão judaica (14 de
novembro de 1938). Heydrich faz um relatório da ação ordenada por
Goebbels: 815 lojas destruídas, 171 casas demolidas, 76 sinagogas saqueadas,
191 outras incendiadas, 36 judeus assassinados, 36 outros gravemente feridos,
174 ladrões presos. Hitler mantém sua confiança em Goebbels, apesar das
acusações levantadas contra ele.
Esta chama de violência é seguida de um período de calmaria, pois Göring
entra em cena. Em 24 de janeiro de 1939, Heydrich recebe ordem de reiniciar
o mais vigorosamente possível a política de emigração e de deportação dos
judeus, que o SD cauciona desde muito tempo. Heydrich estende a todo o
Reich a experiência austríaca de Eichmann. Uma “Direção Central para a
Emigração Judaica” é criada em Berlim e será dirigida pelo Standartenführer
SS Heinrich Müller, chefe da Seção 11 da Gestapo.
As pressões sobre os dirigentes sionistas alemães multiplicam-se, a fim de
acelerar a emigração.
A Direção Central exige que lhe seja todos os dias submetida uma lista de 70
famílias prontas para partir. Sob o impulso de Heydrich e de Müller, o êxodo
atinge cifras recordes. Em 1939, 78 mil judeus deixam a Alemanha (contra 40
mil em 1938). Sob o impulso de Eichmann, 30.000 outros deixavam a
Morávia e a Boêmia. Essa emigração é organizada pelo SD, de mãos dadas
com a Haganah, cujo chefe Eliahu Golomb criara desde 1937 um escritório de
imigração na Palestina: Mossad le Aliyah Bet.
Os emigrantes judeus são transportados clandestinamente por navio para a
Palestina, a despeito das medidas tomadas pela Inglaterra para frear o ritmo.
Assiste-se então à aliança bizarra do sionismo e do SD contra a Inglaterra e
contra os extremistas antissemitas do Partido. O Mossad, cujos destinos são
agora presididos pelos dirigentes sionistas Pino Ginzburg e Moshe Auerbach,
nada negligencia para enganar a vigilância cada vez mais severa da aviação e
marinha britânicas que tentavam impedir “a invasão judaica da Palestina” e
evitar os protestos árabes que certamente viriam.
A Direção Central do SD aumenta os esforços de ajuda ao Mossad, à medida
que os ingleses apertam seu controle. No verão de 1939, é concedido a
Ginzburg o direito de embarcar os judeus em Hamburgo e em Emden,
deixando-se de lado a extrema discrição anterior sobre o embarque dos
emigrantes. Ginzburg leva à frente um programa segundo o qual 10.000
judeus devem ser transportados para a Palestina em outubro. Mas a II Guerra
Mundial estoura antes disso, pondo fim à aliança entre o SD e o sionismo.
Inicia-se o domínio dos obuses e das bombas, e com ele desaparece a última
oportunidade de salvação dos judeus da Europa. A política judaica autônoma
praticada pelo SD pertence agora ao passado. Desde o início da guerra a
Gestapo substitui os intelectuais do SD em matéria judaica. Müller, chefe da
Direção Central de Assuntos Judaicos, abandona suas funções em outubro de
1939. Eichmann o substitui. Integrado na Direção IV (Gestapo) do RSHA, é-
lhe confiada a responsabilidade da Seção IV-D4 (emigração e deportação);
passa a ocupar os escritórios situados em Kurfürstenstrasse: Adolf Eichmann
acaba de assumir o controle dos cordéis que permitirão a destruição física dos
judeus.
Mas a hora fatídica ainda não chegou. Por enquanto Eichmann persiste em
acreditar em uma solução do problema pela emigração: “Deem aos judeus um
território onde se possam instalar e o problema estará resolvido”. Apoiado
pelo Brigadeführer SS Walther Stahlecker, que fora seu coordenador em
Viena e em Praga, Eichmann projeta organizar uma reserva judaica na
Polônia, ao Sudoeste de Lublin, próximo de uma pequena cidade chamada
Nisko. Heydrich apoia o plano, que é imediatamente posto em andamento. A
caça aos judeus logo começa e em poucos meses cerca de 300 mil judeus são
colocados em trens de carga, que se dirigem à utopia judaica de Eichmann.
Mas o plano vai durar pouco. O Governador-Geral Frank não vê de forma
alguma com bons olhos esta chegada maciça de judeus em seu império. Em
12 de fevereiro de 1940, vai a Berlim e queixa-se a Göring da desordem que
esses transportes do SD ocasionam para o Governo-Geral. Frank consegue
convencer Göring e este ordena a imediata cessação da deportação para
Nisko. Termina o sonho de Eichmann: em 13 de abril de 1940, a cidade
judaica de Nisko é dissolvida.
O sonho oriental cede agora seu lugar ao sonho malgaxe, ainda mais
fantástico. Que a França ceda Madagascar à Alemanha e ali será organizado
um gueto para quatro milhões de judeus. A idéia é lançada pelo conselheiro
de embaixada Franz Rademacher, chefe da Direção das questões judaicas no
Ministério alemão de Assuntos Estrangeiros, no fim da campanha da França.
Eichmann interessa-se febrilmente e submete o projeto a Himmler e a
Heydrich, que lhe dão carta branca. Ele se informa das condições climáticas
da ilha, e descobre, não sem surpresa, que a idéia não era nova. De Napoleão
ao Ministro de Assuntos Estrangeiros Bonnet, muitos políticos já haviam
pensado em deportar os judeus para Madagascar. Mais uma razão para, enfim,
realizar o plano. Eichmann já se vê investido nas funções de governador-geral
de um Estado judaico; sua imaginação delirante consegue a adesão de vários
dirigentes do Partido e da SS. Em 18 de junho de 1940, o próprio Hitler
declara a Mussolini que “poder-se-á edificar um Estado israelita em
Madagascar”.
Mas o segundo sonho de Eichmann também não se realizará. O ditador está,
na realidade, pronto para passar à fase ativa de uma profecia feita em 21 de-
janeiro de 1939 ao ministro tcheco de Assuntos Estrangeiros: “Se a guerra
estourar — disse Hitler -—, o resultado não será nem a bolchevização do
mundo nem o triunfo dos judeus, mas a exterminação da raça judaica na
Europa”.
É difícil dizer exatamente quando Hitler tomou sua decisão. Não há nenhum
documento oficial. Mas qualquer que seja a data, em 31 de julho de 1941,
Heydrich recebe de Göring ordem de “submeter o mais cedo possível um
projeto que ponha em prática a solução final”.
Trata-se, inicialmente, de liquidar as figuras de proa do bolchevismo,
identificadas, segundo a absurda lógica do nazismo, aos judeus. Aos
comissários políticos soviéticos, os primeiros atingidos pelas ordens do
Führer, sucedem-se a intelligentsia, os funcionários, os partisans e, por fim, os
judeus em seu conjunto.
A Wehrmacht ignora toda esta escalada do terror. A solução final repousa
inteiramente nas mãos do Reichsführer SS e dos comandos da morte. É claro
que os generais foram avisados de que os Einsatzgruppen do SD terão tarefas
especiais; mas para eles tratavam-se de tarefas tradicionais de cobertura na
retaguarda dos exércitos, de luta contra o inimigo atrás do front. Ainda que
desconfiem de alguma coisa, estarão muito longe da horrível verdade. De
qualquer forma, isso importa-lhes pouco: não é assunto de sua esfera de ação.
A atitude dos militares é ambígua, mas não o é menos a dos esbirros de
Heydrich. Em abril de 1941, o chefe do RSHA reúne seus homens para
comunicar-lhes muito prudentemente uma “missão muito penosa que será
confiada ao SD”. “Trata- se, diz-lhes ele, de operações de pacificação em
território russo. Preciso de homens seguros; espero que meus chefes de
serviço se coloquem à minha disposição sem hesitar”. O único voluntário será
Arthur Nebe, desejoso de conquistar a Cruz de Ferro de primeira classe e de
conseguir de qualquer forma a simpatia de Heydrich, cujas boas graças
pretende conquistar. Mesmo Nebe não está a par da envergadura da “missão
oriental” para a qual se apresentou. Quanto a seus colegas do SD, só
responderão presente a contragosto ou sob pressão das circunstâncias.
Sobretudo Otto Ohlendorf — que caíra em desgraça com Himmler, a quem
desagradam “os pensamentos desse guardião do Graal nacional-socialista” —
responderá sim a Heydrich apenas depois de ter-lhe dito não duas vezes e sido
suspeito de ser um covarde.
A ironia da sorte quer que sejam precisamente esses dois chefes da Direção do
RSHA, os menos convencionais, que praticarão com mais constância o
genocídio decidido por Hitler. Franz Six (comando de Moscou) e Heinz Jost
(Einsatzgruppe A) dissolvem suas unidades algumas semanas antes das
operações orientais, enquanto Heinrich Müller, Walther Schellenberg e outros
chefes mais em evidência saberão igualmente evitar com habilidade entregar-
se à noção muito estranha de heroísmo agora corrente na SS.
Heydrich não encontra boa vontade no nível dos Sturmbannführer e dos
Obersturmbannführer. É preciso procurar em todos os recantos de seu
aparelho policial para reunir os elementos necessários à realização do projeto
mais macabro da história do mundo. Afinal de contas, consegue reunir um
grupo bizarro de assassinos: em sua grande maioria são intelectuais, doutores
universitários, funcionários ministeriais, advogados. Entre eles há um pastor
protestante e um cantor de ópera. Em maio de 1941, Heydrich seleciona 3.000
homens, que se dividem em quatro comandos. A direção é assumida por
Stahlecker (comando A, cujo campo de ação se estende do Báltico a
Leningrado), Nebe (do Báltico à Ucrânia), Rasch (comando C) e Ohlendorf
(da Bessarábia à Criméia).
No fim de maio, tudo está pronto. Heydrich reúne os 120 oficiais e os 3.000
homens que constituem os quatro comandos, na escola de polícia de Pretzsch,
onde são submetidos a treinamento intensivo. Em 22 de junho de 1941, Hitler
acende a fogueira na Rússia: as rédeas de Heydrich estão soltas. 3.000
homens começam a caça aos cinco milhões de judeus russos.
Mal informados do que se passa na Alemanha, os judeus russos não poderiam
saber o que lhes esperava. Em algumas cidades da Ucrânia, a comunidade
judaica confunde os soldados de Hitler com os do Kaiser de 1918 e recebe-os
como libertadores. “Os judeus ignoram nossa posição a seu respeito”, diz em
um relatório de 12 de julho de 1941 o Sonderführer Schröter. Isso facilita o
trabalho dos assassinos de Heydrich.
Colados às botas da Wehrmacht, os Einsatzgruppen concentram seus esforços
nas cidades soviéticas, onde vivem cerca de 90% dos judeus russos. Kaunas,
Jelgava, Riga, Tallinn são atacadas ao mesmo tempo pelos comandos da
morte e pelo Exército. Três caminhões de assassinos do Einsatzgruppe C
seguem de perto os carros de combate que penetram em Jitomir; e Kiev é
ocupada pelo comando 4A, antes mesmo que a cidade se tenha rendido. E os
relatórios chovem sobre a mesa de Himmler.
Relatório n° 153 do Einsatzgruppe D: No território onde atualmente nos
encontramos, os judeus foram totalmente liquidados, sobretudo nas
localidades de menor importância. Desde nosso último relatório, foram
abatidos 3.176 judeus, 85 partisans, 12 Pilhadores, 122 funcionários
comunistas. Cifra total desde o início das operações: 79.276.
Relatório n° 17 do Einsatzgruppe C: Conforme as instruções do RSHA, a
liquidação dos funcionários do Partido e do Estado continua nas cidades da
Bielo-Rússia. No que se refere aos judeus, as ordens recebidas estão sendo
cumpridas ao pé da letra.
Einsatzgruppe C: A fim de evitar a epidemia que nos ameaça, o comando do
4A fuzilou 1.107 judeus adultos e 661 jovens, o que eleva a 11.328 o número
de judeus liquidados até o momento pelo Sonderkommando 4A.
Matar. Matar. Matar.
Einsatzkommando 6: Dos 30.000 sobreviventes, 10.000 foram fuzilados.
Einsatzgruppe D: 2.010 pessoas abatidas desde o último relatório.
Einsatzgruppe 8: 113 judeus liquidados ontem…
Vanguarda do comando 4A: 537 judeus (homens, mulheres e crianças) presos
e liquidados.
À medida que as tropas alemãs penetram no território russo, a liquidação dos
judeus torna-se mais difícil. As notícias dos massacres correm e os judeus
sabem agora o que têm pela frente. Outro relatório de um Einsatzkommando:
Os boatos que circulam sobre nossos fuzilamentos tornam nossa ação mais
difícil. Os fugitivos judeus e russos, o desnecessário falatório dos soldados da
Wehrmacht propagam por todo o país o medo e a desconfiança.
Os caçadores de homens recorrem agora às artimanhas mais vis. Declara
triunfante o autor de um relatório: “Os judeus da cidade foram avisados de
que deveriam reunir-se em um local indicado, a fim de serem recolhidos a um
campo. 34.000 homens, mulheres e crianças apresentaram-se. Todos foram
assassinados depois de os termos obrigado a tirar suas roupas e os objetos de
valor que traziam. Precisamos de vários dias para completar nossa missão”.
Relatório do Einsatzgruppen C: “Em Kiev, avisamos à população judaica, por
melo de cartazes, que deveriam reunir-se para uma futura deportação.
Esperávamos de cinco a seis mil judeus: vieram 30.000 pessoas. Todas foram
executadas”.
Sem freios e sem piedade, o fogo dos comandos SS destruía a comunidade
judaica russa. Nosso início do inverno de 1941 a 1942, os Einsatzgruppen
fazem o balanço de seus crimes: Einsatzgruppe A — 249.420 judeus
liquidados; B — 45.467 judeus liquidados; C — 95.000 liquidados; D —
92.000 judeus liquidados.
A primeira onda dos Einsatzgruppen de Heydrich é seguida de uma segunda,
de assassinos SS. Atrás do front, uma administração civil alemã foi instalada
e colocada sob autoridade do Reichsminister Alfred Rosenberg. No seio dessa
administração, Himmler ocupa uma posição-chave: o Führer confiou-lhe, em
17 de julho de 1941, a tarefa de manter com sua polícia a segurança dos
territórios russos ocupados. Himmler delega seus poderes na Rússia a quatro
HSSP (oficial superior SS e de polícia), seus representantes pessoais: Hans
Prützmann, HSSPF Norte (Riga); Erich von dem Bach-Zelewski, HSSPF
Centro (Minsk); Friedrich Jeckeln, HSSPF Sul (Kiev) e Gerret Korsemann,
HSSPF Cáucaso.
Esses oficiais superiores recebem ordens semelhantes às dos Einsatzgruppen.
Cada um, apoiado por um regimento da Ordnungspolizei e por unidades
auxiliares dos Estados do Báltico e da Ucrânia, terá como ponto de honra
liquidar os judeus que escaparem aos comandos e ultrapassar o furor de seus
predecessores. O HSSPF Jeckeln consegue resultados muito melhores do que
os seus colegas. Só no mês de agosto de 1941 anuncia a execução de 44.125
pessoas, “sobretudo judeus”.
Quantas pessoas foram massacradas por essas unidades, nos primeiros meses
da campanha da Rússia, é impossível dizer com certeza. Fato é que no fim de
1941, quando Einsatzgruppen e unidade HSSPF cessaram suas operações para
retomar fôlego até a primavera seguinte, 500.000 judeus, aproximadamente,
haviam sido assassinados, dos quais 300.000 pelas tropas Einsatzgruppen.
Apesar da amplitude dos seus sucessos, os assassinos SS estavam
demonstrando sinais de cansaço. O chefe de comando Schulz está calado
desde setembro. O Gruppenführer Rasch parte em licença, e não volta. Em
novembro, Nebe abandona suas funções e volta para a Alemanha; seu
motorista, Köhn, suicida-se.
Alguns anos mais tarde, um dos funcionários mais agressivos de Himmler
sucumbe ao pesadelo sangrento que pesa sobre o Leste: o HSSPF von dem
Bach-Zelewski, em meio a uma depressão nervosa, atacado por uma cólica
nefrética, possa suas noites a gritar em uma cama de hospital, assombrado
pelos fantasmas de suas vítimas.
Conscientes de seus deveres, Himmler não para de levantar o moral de suas
tropas, com discursos pseudopatrióticos sobre a salvação do povo alemão e da
raça nórdica.
Usa todos os recursos de sua imaginação para engrandecer a sinistra empresa
da qual é o grande organizador, procurando tirar dela seu caráter criminoso:
“Não devemos considerar as coisas de um ponto de vista estreito, mas ter
presente o espirito da Germânia eterna. É preciso que alguém se sacrifique em
benefício desta grande obra.”
Em Minsk, assiste à execução de 200 judeus. Sente-se mal durante o
espetáculo. Sustentado por Karl Wolff, chefe de seu estado-maior pessoal,
consegue reerguer-se e faz um discurso patético: “Os homens notaram, diz
ele, até que ponto essa tarefa sangrenta me repugna. Entretanto, cada um deve
cumprir o seu dever, por mais penoso que seja.” Depois da “representação”,
Himmler diz a Nebe, chefe do Einsatzgruppen, que deve ser encontrado outro
modo de execução: esse desejo precede de pouco a utilização das câmaras de
gás.
A fim de insuflar nos homens um vigor novo, de fazê-los esquecer tanto
quanto possível os encargos de carrasco que acabam trazendo malefícios às
pessoas, a caçada humana, seguida de execuções maciças, é disfarçada em
operação de tipo militar, e batizada com termos adequados. Os judeus são
identificados aos resistentes russos: as tropas de Himmler passam a chamar-se
“Associação de Luta Contra os Partisans” (Bandenkampfverbände).
Apoiados por cinco regimentos do Ordnungspolizei e pela milícia local, as
tropas da SS iniciam, a partir de fevereiro de 1942, uma nova ofensiva contra
partisans e judeus. Esta ação é batizada de Sumpffieber (febre dos pântanos) e
levada a cabo pelo HSSPF Jeckeln; será o prelúdio das matanças maciças
disfarçadas em operações militares e justificadas por supostas necessidades de
ordem estratégica ou por perigos de epidemia. Judeus são executados em
Hamburgo, Altona, Hornung, Nuremberg. Mas a operação mais importante
visa á Bielo-Rússia, onde vivem ainda 100.000 judeus, dos quais 68 mil nas
cidades.
Cidade após cidade, gueto após gueto, os batalhões de polícia criam o vazio
com uma brutalidade sem precedentes, Os chefes do SD e da Sipo já se estão
entregando a inteligentes cálculos sobre quantos meses serão necessários para
que se livrem do último judeu, quando a administração civil da Rutânia
branca, dirigida pelo gauleiter Wilhelm Kube, um dos funcionários mais
corrompidos do Partido, levanta-se contra a liquidação total dos judeus.
Longe de ter sentimentos humanitários, Kube preocupa- se, como outros
senhores nazistas do Leste, com a preservação de seu território da catástrofe
econômica provocada pela ação SS. Stahlecker já o havia dito: a mão-de-obra
judia, sobretudo nas cidades, representa uma força de trabalho que não
podemos dispensar de um dia para o outro.
Entretanto, o Dr. Strauch, Obersturmbannführer e comandante da Sipo, não
tem preocupações dessa natureza: é sem trégua e sem tranquilidade que
conduz suas tropas ao massacre, reduzindo de dia para dia, sob os olhos de
Kube, a comunidade judaica que fornece ao país a quase totalidade dos
artesãos e operários especializados. E o mesmo Kube, completamente
antissemita, que declarava em 1934 ser necessário “destruir esses pestilentos
até o último”, resolve agir. Coloca sob sua proteção pessoal milhares de
judeus alemães deportados para Minsk, dirige a Heydrich relatórios e mais
relatórios e não poupa argumentos em sua luta contra os assassinos da SS. Em
l.° de março de 1942, Strauch, decidido a acabar com o gueto de Minsk,
convida 5.000 judeus a se reunirem em determinado lugar sob o pretexto
falacioso de uma deportação para outra região onde os deixariam em paz.
Kube proclama a verdade e o projeto de Strauch fracassa. Louco de raiva,
Strauch queixa-se a Heydrich, este a Himmler; Himmler fala com Rosenberg,
que promete censurar Kube. Mas ele persiste em seu caminho. Rosenberg
recebe relatórios acerca da liquidação de supostos resistentes, que são, na
realidade, em sua maioria, inocentes agricultores russos.
Os senhores da Ordem Negra, zeladores do terror e do crime, não sabem
como livrar-se desse adversário que os incomoda. Ironia da sorte: são os
partisans russos que vão resolver o espinhoso problema. Na noite de 22 de
setembro de 1943, Kube é vítima de um atentado, perpetrado por sua
empregada, agente da resistência russa.
Himmler exulta: ‘‘A morte de Kube é uma bênção para a pátria”. Bênção
puramente formal, pois a tarefa dos assassinos SS na Rússia já está chegando
ao seu fim. Dos 2,5 milhões de judeus que não haviam tido tempo de fugir
antes da invasão alemã, 900.000 foram massacrados. Os exércitos soviéticos
começam a rechaçar os invasores alemães e a reconquistar o terreno perdido.
O Standartenführer Blobel mal tem tempo, à frente do comando 1005, de
apagar os vestígios dos assassinatos. Gigantescas fossas comuns, testemunhas
de crimes recentes, são abertas, os cadáveres são retirados, cobertos de
gasolina e queimados; os ossos, reduzidos a pó por moinhos especiais. Esse
quadro completamente louco encerra a grande obra de morte da SS na Rússia.
Mas nem tudo foi dito.Pouco antes desse último ato, Himmler iniciara em
território polonês uma nova fase do genocídio: aos pelotões de execução,
sucedem as fábricas móveis de morte. O chumbo dos fuzis-metralhadoras é
substituído pelas câmaras-de-gás. A iniciativa desse ato, o mais monstruoso
da história nazista, cabe ao Gruppenführer SS Arthur Greiser,
Reichsstatthalter no Wathegau. No outono de 1941, ele pede a Himmler e
Heydrich que livrem seu território de 20.000 judeus concentrados no gueto de
Litzmannstadt.
Heydrich e Himmler concordam. O Hauptsturmbannführer Lange põe em
movimento suas câmaras de gás rodantes que, a título de experiência, já
foram usadas algumas vezes na Rússia. No Castelo de Kulmhof, instala a
primeira fábrica de morte da história da humanidade. Em dezembro, a usina
entra em funcionamento. Todos os dias, centenas de judeus são conduzidas ao
castelo. Mandam-nos despirem-se e logo depois devem subir em caminhões
fechados, que estão parados diante do castelo; pensam que vão para um banho
público. As portas dos caminhões são fechadas e os motores postos em
funcionamento, mas tubos de borracha são adaptados aos canos de descarga e
os gases introduzidos no veículo. Em princípio, a manobra deve durar um
quarto de hora; na realidade, ela dura horas e quando se reabre o caminhão,
ainda se encontram algumas vítimas que não tiveram tempo de morrer.
Kulmhof serve de prelúdio a uma competição macabra entre técnicos de gás,
dispostos à exterminação total da comunidade judaica polonesa. Dos três
milhões de judeus poloneses, 2,3 milhões caíram sob o golpe dos nazistas.
Desde os primeiros meses da ocupação, são obrigados a se reunir em
diferentes guetos organizados por Heydrich, imaginando uma próxima
emigração. À medida que a idéia da deportação maciça cede à solução final,
esses guetos passam a ser salas de espera da morte. O governador-geral da
Polônia não cessa de cuspir seu veneno: “É preciso acabar com todos os
judeus, Mas como? Não se pode fuzilar a todos. Não se pode envenená-los. É
preciso encontrar uma maneira que garanta o sucesso em larga escala.”
Himmler já tem pronta a solução. Trata-se de estender a experiência de
Kulmhof, instalando uma série de usinas semelhantes em todo o território do
Governo-Geral e nas regiões ditas anexadas. O comissário criminal Christian
Wirth, cérebro do programa de eutanásia que liquidou 100.000 doentes
mentais “inaptos para a vida”, é encarregado dessa tarefa. Durante a
realização de seu programa anterior, Wirth adquiriu técnica suficiente em
gaseificação com monóxido de carbono e poderá corresponder aos sonhos de
Himmler.
Wirth considera seu camarada de Kulmhof, Lange, um curioso no assunto; ele
construirá câmaras de gás fixas, disfarçadas em chuveiros públicos, nas quais
bombas injetarão monóxido de carbono. Em pouco tempo, várias fábricas de
morte estarão prontas. Com exceção da de Lublin, todas são colocadas sob a
autoridade do Brigadeführer SS Globocnik. A primeira, em Belzec, ao lado da
estrada de ferro Lublin-Lemberg, começa a funcionar em 17 de março de
1942. Com seis câmaras de gás, ela pode dar a morte a até 15.000 homens por
dia. O campo de Sobibor, perto da fronteira ucraniana, inicia suas atividades
em abril do mesmo ano; capacidade: 20.000 homens por dia. Três meses mais
tarde é Treblinka, a 120 quilômetros a Nordeste de Varsóvia; com suas 13
câmaras de gás, pode-se matar em Treblinka até 25.000 homens por dia.
Wirth assume pessoalmente a direção de seu negócio e não poupa esforços
para aumentar a eficácia desta sinistra obra.
Os responsáveis por Auschwitz, o maior KZ da zona de ocupação Leste,
invejam a situação de liderança de Wirth. Ao gás utilizado por Wirth, opõem
as qualidades muito superiores do Zyclon B, gás para destruição de insetos
daninhos, produzidos pela firma Degesch. Basta quebrar no local ampolas
esféricas do Zyclon B e em três minutos o assunto estará resolvido. Um grupo
de chefes SS dedica-se a destronar Wirth. O Obersturmführer SS Kurt
Gerstein, fornecedor de Zyclon B, bom cristão e adversário do regime nazista,
e o representante de Eichmann Rolf Günther vão a Belzec para examinar os
métodos de Wirth.
Notas de Gerstein descrevem o espetáculo: “O trem para. Duzentos
ucranianos abrem as portas e retiram as pessoas dos vagões, a golpes de
chicote. Um alto-falante dá ordens: Tirar completamente todas as roupas,
dentes postiços, óculos etc. Depois cortam-se os cabelos das mulheres com
dois ou três golpes de tesoura. A fila de pessoas põe-se em movimento. A
frente, uma criança está muito contente. Eles se dirigem para as câmaras de
gás! Ninguém diz uma só palavra. Uma judia de cerca de quarenta anos
começa subitamente a chorar e a maldizer os assassinos; cinco ou seis golpes
de chicote e ela desaparece no meio das outras, na câmara de gás.
“As câmaras se enchem. As ordens de Wirth são de lota-las completamente. O
mecânico Heckenholt está pronto para fazer funcionar os motores diesel cujo
gás de escapamento deve matar os condenados”.
Justamente nesse dia, os motores recusam-se a funcionar, Gerstein observa
seu cronômetro para medir com exatidão a grandeza da derrota do adversário
do Zyclon B.
“Aparece Wirth”, declara Gerstein. “Passaram-se 50 minutos e 17 segundos, e
os motores ainda não funcionam! Todos esperam nas câmaras de gás! Ouve-
se os que choram e soluçam. Wirth esbofeteia doze ou treze vezes o ucraniano
que ajuda Heckenholt a fazer funcionar o motor. Depois de 2,49h, os diesel
funcionam. Vinte e cinco minutos precisamente, e agora pode-se ver por um
pequeno visor que muitos estão mortos. Só aos trinta e dois minutos todos
estão mortos. Abrem-se as portas. Os cadáveres mantêm-se de pé como
colunas de basalto, grudados uns contra os outros”.
Depois desse espetáculo, os emissários voltam. O especialista do crime,
Wirth, acaba de experimentar uma rude derrota: Auschwitz adota o Zyclon B,
para satisfação do comandante do campo, Rudolf Höss, que declara: “Devo
confessar que esse gás chegou na hora. Nunca me agradou fuzilar pessoas,
sobretudo mulheres e crianças. Felizmente vamos agora evitar esses banhos
de sangue, aos quais tenho horror”.
Tudo está pronto. A empresa de exterminação dos judeus poloneses pode
iniciar seu trabalho. Já os esbirros de Himmler caçam fora dos guetos e levam
para as usinas milhares e milhares de judeus. Mas eis que a Wehrmacht, pela
segunda vez, enfrenta Hitler e tenta pôr fim à sua ação. Motivo invocado: este
último ato da solução final priva a Wehrmacht de mão-de-obra sem a qual as
usinas de guerra instaladas no Leste não podem funcionar. De acordo com seu
hábito, o Marechal Keitel toma partido contra os militares e dá ordem, a 5 de
setembro de 1942, para substituírem imediatamente a mão de obra judaica por
polonesa. O General von Gienanth, comandante das forças armadas alemãs na
área do Governo-Geral, dirige a Keitel um memorando onde evidencia as
graves dificuldades que a supressão da mão-de-obra judaica trará à indústria
militar alemã. Pede, pelo menos, que se poupem os judeus até que sejam
satisfeitos os imperativos de produção mais urgentes. Keitel submete o
relatório a Himmler, que imediatamente reage contra os sabotadores militares
da solução final. “Contra todos esses — diz em 2 de outubro — que invocam
os interesses de nossa indústria de guerra, mas na realidade estão apenas
pensando em proteger os judeus, ordenei as sanções mais severas”. Keitel
nem espera nova reação de Himmler para eliminar os oponentes militares na
Polônia. O General von Gienanth é demitido de suas funções. Em 10 de
outubro, um telegrama do estado-maior geral anuncia que “o comando da
Wehrmacht, de acordo com o Reichsführer SS, pede que a mão-de-obra
judaica seja imediatamente substituída nas fábricas dos serviços auxiliares do
Exército por mão-de-obra ariana”.
A Wehrmacht capitula. Entre 13 e 15 de outubro de 1942, todos os postos de
comando recebem ordem de licenciar o pessoal judeu. A partir de agora, os
judeus poloneses estão todos nas mãos da SS. Os zeladores da solução final
podem, a partir de agora, levar a cabo sua ação como melhor lhes parecer. E
eles não perdem a oportunidade: as fábricas de morte funcionam a todo vapor,
aumentando prodigiosamente a lista já enorme de crimes cometidos. As cifras
são quase inconcebíveis hoje: 152 mil morrem em Kulmhof, 600.000 em
Belzec, 250.000 em Sobibor, 700.000 em Treblinka, 200.000 em Lublin-
Majdanek, mais de um milhão em Auschwitz.
Esta é a ocasião perfeita para alguns carrascos natos satisfazerem seus
instintos mais sangrentos e baixos. Hoje os jornais já falam suficientemente
do barbarismo bestial de pessoas como Oswald Kaduk (Auschwitz), Kurt
Franz (comandante do campo de Treblinka), Wilhelm Boger (chefe da seção
de detidos políticos em Auschwitz) e outros; procura-se dar uma interpretação
do genocídio que repouse inteiramente sobre o sadismo. Ainda hoje se
apresentam os autores desses crimes como uma horda de monstros
desumanos, que não pensavam senão em torturar e destruir com todos os
requintes possíveis e imagináveis. Essa apresentação é excessivamente
simplista. “Não conheço um só homem da SS”, testemunha o Dr. Ella
Lingens-Reiner, antigo detento de Auschwitz, “que não tenha uma ou outra
vez salvo algum judeu da morte. Na realidade, não havia tantos sádicos; a
maioria desses homens era perfeitamente normal. Sabiam a diferença entre o
bem e o mal”. As revelações do pós-guerra sobre as torturas infligidas por
certos carrascos às suas vítimas não devem ser consideradas senão como
exceções, pois, como diz Hannah Arendt, a organização do genocídio nazista
não se apoiava nem sobre fanáticos nem sobre loucos nem sobre sádicos, mas
essencialmente sobre homens normais, do tipo do senhor Heinrich Himmler”.
O sensacional reside justamente no fato de milhares de “bons pais de família”
tornarem-se servidores do crime oficial, com o sentimento de estarem
cumprindo o seu dever de cidadãos alemães. O sadismo é apenas um dos
aspectos do genocídio. Além disso, um aspecto que não é encorajado pelo
comando da SS. Pelo contrário, Himmler está obcecado por esta idéia fixa:
realizar o genocídio “limpamente”, objetivamente, racionalmente, pois os
homens da SS são e devem ser, mesmo quando matam, pessoas “corretas e
irrepreensíveis”.
As ordens de Himmler proíbem iniciativas pessoais contra os judeus, e os
desobedientes expõem-se às mais graves sanções. Himmler chegará a
condenar à morte um Untersturmführer SS culpado de ter maltratado
bestialmente numerosos judeus. O tribunal SS assim justifica a pena, em 9 de
junho de 1943: “O acusado entregou-se a ações indignas de um alemão e de
um chefe SS … Tais métodos, quase bolchevistas, não poderiam ser tolerados
entre nós, mesmo quando são aplicados aos nossos piores inimigos”.
Assim — este é sem dúvida um dos aspectos mais absurdos da tragédia —,
nos mesmos campos onde milhares de judeus são executados todos os dias,
alguns crimes “proibidos” são punidos pelo Reichsführer, apóstolo da
limpeza, da disciplina e da higiene alemãs.
“O genocídio”, diz o historiador Martin Broszat, “foi obra de filisteus
orgulhosos, conscienciosos, que educados no respeito incondicional da
hierarquia e do Estado, desprovidos de qualquer senso crítico ou de
imaginação, convenciam-se a si próprios e se deixavam convencer de que a
“liquidação” de centenas de milhares de homens era um benefício para a
pátria”.
Alguns diziam até sentir piedade. A morte dos outros, “seu futuro e seu fim”,
segundo a expressão hipócrita de Rudolf Höss, merece toda a sua simpatia.
Höss: “Nada é mais penoso do que ter de levar sempre a cabo esta tarefa sem
poder manifestar a compaixão que sentimos”.
Compaixão sobretudo para consigo próprio, sentimento de ser ele próprio
uma vítima. Höss: “Eu tinha que assegurar a boa marcha do processo de
exterminação, por mais que isso me custasse. E quando isso me doía mais
particularmente, não tinha sequer a tranquilidade junto à minha família. Não
tinha outro consolo além dos meus cavalos; e muitas vezes, à noite, eu ia
visitar as estrebarias”.
E depois, são ordens. Elas estão lá, sempre presentes, para evitar qualquer
dúvida; “Na época, eu não refletia. Havia recebido ordens e executava-as”. As
ordens recebidas são sagradas; são idolatradas. Elas os justificam. Quando o
psicólogo americano Gilbert pergunta a Höss se ele realmente acreditava, na
época, que os judeus mereciam essa sorte, o comandante responde que a
pergunta era inteiramente absurda: “Compreenda que ninguém nos pedia, aos
SS, que refletíssemos nestas coisas. Isso não nos viria ao espírito”.
E quando as ordens se contradizem, ou quando não são suficientemente
precisas, que acontece? Os próprios carrascos põem-se a duvidar da
excelência de sua tarefa. É o que acontece quando a liquidação dos judeus
poloneses entra em sua última fase. Já 2/3 deles haviam sucumbido ao terror
negro, quando mais uma potência SS entra em cena e freia o movimento
impiedoso das fábricas de morte: trata-se do Wirtschaftsverwaltungshauptamt,
ou WVHA. Direção Econômica da SS, que preconiza, ao contrário do RSHA
de Heydrich, a preservação dos judeus e sua utilização como escravos de
trabalho nas fábricas de guerra da grande Alemanha.
Primeiro sob as ordens do inspetor Theodor Eicke, os campos de
concentração são confiados, depois de sua partida para a Waffen-SS, a
Richard Glücks. Em 1942, depois de uma reorganização na administração dos
campos, Glücks fica subordinado ao WVHA, de Oswald Pohl.
Logo, faz-se sentir a influência dos economistas e zeladores da produção nos
KZ, que fornecerão a partir de agora um exército de trabalhadores às
indústrias SS. “A guerra”, escreve Pohl a Himmler, em 30 de abril de 1942,
“torna necessária a reorganização dos campos, que devem contribuir para a
solução dos problemas econômicos pela mobilização dos prisioneiros”. São
tomadas providências para frear as câmaras de gás e em pouco tempo
Himmler, que concordara com Pohl e Glücks, percebe que a solução final está
altamente comprometida. Os apóstolos do WVHA conseguem dominar os
campos, onde vegetam ainda 700.000 judeus poloneses que haviam sido
prometidos às câmaras de gás. Em março de 1943, o WVHA cria a
Ostindustrie GmbH (OSTI), controla as empresas ainda existentes nos guetos
e resolve fazê-las funcionar com essa mão-de-obra judaico-polonesa.
Os partidários da solução final, não sabendo a que diabo se entregar,
descontrolados, resolvem dar um golpe fatal na OSTI: mal ela começa a
tomar forma, os finalistas, de comum acordo, resolvem acelerar o movimento
de destruição física dos judeus. Em 3 de novembro de 1942, os sobreviventes
judeus empregados pelo WVHA vão para as câmaras de gás. Max Horn,
diretor-adjunto da OSTI, queixa-se amargamente: “A retirada da mão-de-obra
judaica prejudica completamente as realizações em curso”.
O assunto da OSTI inicia uma hostilidade total entre o RSHA e o WVHA, que
só terminará com o término do Reich. Quanto mais aguda for a luta, mais os
finalistas serão o centro das dúvidas. Paralelamente, os caçadores de judeus
de Eichmann encontram maior dificuldade para seu trabalho. Quanto maior
vai sendo a oposição dos Estados europeus às empresas do RSHA, maior vai
sendo também sua oposição em entregar os judeus aos esbirros de Eichmann.
Em janeiro de 1942, Eichmann torna público, em discurso pronunciado em
Wannsee, a decisão de intensificar o programa de destruição física dos judeus,
estendendo-o a toda a Europa. Desde então, Adolf Eichmann, o cão de fila de
Heydrich, não tem mais repouso. Suas ordens são permanentemente
transmitidas às missões diplomáticas alemãs na Europa e executadas pelos
agentes da Sipo em funções nesses postos. Na realidade, as deportações dos
judeus europeus haviam começado antes mesmo do discurso de Eichmann.
Em outubro de 1941, caem em suas mãos os judeus da Alemanha e da
Áustria. Sua sorte foi rapidamente decidida. A máquina de morte orientou-se
então para o Oeste, especialmente à Holanda.
Em maio de 1942, logo depois da tristemente célebre conferência de
Wannsee, os judeus holandeses passaram a ser obrigados a usar a estrela
amarela. Um mês mais tarde, comboios carregados de deportados começam a
correr para o Leste. A destruição dos judeus holandeses será feita com rara
precisão. Dos 110.000 deportados, apenas 6.000 sobreviverão,
Eichmann estende então seu império para o Sul. A princípio para a Bélgica e
depois para a França. Cedo começam as dificuldades: contrariamente aos
generais da Wehrmacht em exercício nos Bálcãs, cuja oposição à Sipo e à SS
sempre foi hesitante, os chefes militares alemães na Bélgica e na França
mostram-se resolutamente opostos à solução final. O comandante das forças
na Bélgica e no Norte da França, General Alexander von Falkenhausen,
interceptará os comboios de Eichmann, até ele próprio ser preso, mas só em
julho de 1944. Os caçadores só conseguirão prender 24 mil dos 52 mil judeus
que vivem na Bélgica. E terão de contentar-se com os que não possuem
nacionalidade belga.
Na França, o General Karl Heinrich von Stülpnagel não se mostra melhor
disposto em relação à solução final e recusa- se, várias vezes, a pôr suas
tropas à disposição do Standartenführer SS Helmut Knochen para a caça aos
judeus. Além disso, as autoridades francesas enfrentam resolutamente os
homens de Knochen. O Governo de Vichy recusa-se, na medida de suas
forças, a colaborar com o emissário de Himmler. O próprio Laval, embora
ainda não sabendo que a deportação dos judeus equivaleria à sua morte, barra
o caminho dos caçadores de homens. Na impossibilidade de fugir
completamente às pressões de Knochen, declara que aceitará — se o exigirem
— a entrega de judeus apátridas, mas em nenhum caso de judeus franceses.
Em 6 de julho de 1942, o Hauptsturmführer Theodor Dannecker,
representante de Eichmann em Paris, avisa Berlim de que a França aceita
entregar os apátridas judeus. Eichmann entusiasma-se por pouco tempo.
Dezoito mil judeus parisienses dirigem-se para o Leste, mas os trens vão
esvaziar-se nas províncias, onde a polícia encarregada de vigiar os judeus
revela uma rara inércia. Em meados de julho, a Sipo de Bordeaux decide levar
adiante uma vasta ação para a descoberta de judeus apátridas, mas a polícia,
no final, só lhe entrega 150 vítimas, muito pouco, se se considerar o apetite
dos esbirros nazistas. Louco de raiva, Eichmann declara que “nunca enfrentou
semelhante desventura”, que o assunto é “lamentável”, e que talvez seja
necessário desistir da deportação dos judeus residentes na França. Entretanto,
apenas seis meses mais tarde, uma nova oportunidade surge para que
Eichmann possa deitar sua mão sobre os judeus franceses. Em dezembro de
1942, os aliados desembarcam na África do Norte, as tropas alemãs ocupam o
Sul da França e o país não tem mais possibilidades de se opor às pressões da
Sipo.
Os homens de Eichmann seguem de perto as tropas da Wehrmacht. Mas os
representantes de uma potência militar da qual muitas vezes a Alemanha
nazista zomba vão dar aos autores do genocídio uma lição de honra militar e
de humanidade. Resolutamente, os oficiais do Exército italiano, que ocupa
desde novembro os departamentos do Sul da França, vão fazer fracassar a
máquina de morte nazista. Já na Grécia e na Croácia, os homens do Duce se
haviam recusado a tomar qualquer medida contra os judeus. O comandante do
estado-maior italiano havia declarado ao chefe da organização Todt que “os
excessos contra os judeus não estão de acordo com a honra do Exército
italiano”. Na Grécia, o General Geloso, comandante do II Exército italiano,
recusou-se a obrigar os judeus de seu território a usarem a cruz amarela e
tomou medidas severas para proteger os judeus contra os antissemitas gregos.
Em Salônica, ocupada pelos alemães, o consulado italiano salvou a vida de
centenas de judeus, concedendo-lhes nacionalidade italiana.
A atitude dos militares italianos na França apenas confirma uma posição
tradicional. Em fevereiro de 1943, o chefe de polícia de Lyon prende 300
judeus que serão deportados para Auschwitz. Um general italiano consegue a
sua imediata liberação. No início de março, a política francesa prende
numerosos judeus na zona de ocupação italiana; os militares italianos
impedem a sua deportação. Em Annecy, cercam os quartéis da polícia e
obtêm, à força, a liberação dos judeus que estavam presos.
Mas a capitulação do Duce, em 1943, vai privar os judeus franceses de seus
protetores. A oposição italiana à obra de Eichmann já havia entretanto
contribuído para a salvação da maioria deles: 80% dos judeus residentes na
França haviam escapado às macabras fábricas nazistas. Por outro lado, essa
oposição marca uma reviravolta na atividade dos finalistas; ela coincide com
dois acontecimentos que levam a uma redução no ritmo dessa caçada sórdida:
Adolf Hitler está perdendo sua velocidade e o Vaticano divulga certas
revelações sobre a natureza das atividades de Eichmann na Polônia.
Um após outro, os aliados oportunistas da Alemanha nazista renunciam ao
pogrom. O front dos finalistas está quebrado. No outono de 1942, a
Eslováquia proíbe a continuação das deportações; em dezembro daquele ano,
a Romênia faz o mesmo. Em abril de 1943, o tzar búlgaro Boris III também
os acompanha.
Agora, o programa da solução final não é realizado senão parcialmente.
Mesmo a vingança planejada por Eichmann contra os sabotadores italianos é
um fracasso: dos 8.000 judeus romanos visados pelas operações de 16 e 17 de
outubro de 1943, apenas 1.259 serão presos. A população italiana apoia
ativamente a minoria judaica.
Mesmo na Alemanha, a oposição torna-se mais forte. O médico de Himmler,
Felix Kersten, abre o caminho. Em 15 de julho de 1942, ele sabe que Hitler
acaba de exigir a deportação dos judeus finlandeses e que o próprio Himmler
será encarregado de negociar o assunto em Helsinki. Kelsen adverte
imediatamente o encarregado de negócios finlandês em Berlim. Mesmo em
Helsinki, Kersten, companheiro que Himmler não pode dispensar, toma
contato com o Ministro de Assuntos Estrangeiros Witting e aconselha-o a
sugerir a Himmler que encaminhe o problema ao Reichstag, mostrando-lhe
que se trata de assunto extremamente delicado e que, considerando as
implicações que podem advir, deve ser conduzido com prudência. Himmler
deixa-se convencer. O Reichstag não mais levantará o problema e quando
Himmler tornar a lembrar-se dele, será tarde demais: graças a Kersten, os
judeus finlandeses escaparão das prisões do Reichsführer SS.
Eggert Reeder, Brigadeführer SS, chefe da administração militar junto ao
comando das forças alemãs na Bélgica e Norte da França, tem também uma
atitude muito pessoal neste assunto. Em março de 1942, recusa-se a obrigar os
judeus belgas a usarem a cruz amarela; em setembro de 1943, liberta por sua
própria conta os judeus belgas retidos no quartel de Dossin, em Malines, e
que proximamente seriam deportados para a morte.
Embora partidário incondicional de Hitler, o Gruppenführer SS Wilhelm
Stuckart, secretário de Estado no Ministério do Interior, conseguirá salvar da
morte os 107.000 “mestiços” de ascendência judaica e os 28.000 judeus que
se haviam casado com alemãs.
A dúvida que aflora em alguns eminentes chefes do Partido ou da SS vai
externar-se com mais evidência no Gruppenführer SS e antigo jurista da
Gestapo, Werner Best. Best, encarregado de negócio em Copenhague, sabota
ativamente o plano de extermínio dos 6.500 judeus dinamarqueses.
No início de setembro de 1943, Best tem notícia de que Hitler decidira a
próxima deportação dos judeus. Apesar dos protestos e da certeza dos
problemas que isso poderia trazer, o Führer mantém sua decisão. Best age
resolutamente: informa à comunidade judaica dinamarquesa e em poucos dias
os judeus deixam suas casas e são transportados por navios para a Suécia. Por
seu lado, sem imaginar isso, Himmler lança a operação prevista em 1o e 2 de
outubro. O fracasso é total: a Sipo só conseguirá prender 477 judeus, todos
muito idosos, e que não tinham sido atingidos pelas informações de Best.
Levando até o fim as consequências de sua atitude, Best consegue que esses
judeus sejam internados em um asilo para velhos de Terezin, onde
sobreviverão quase todos ao Reich milenar.
Terminada a operação, Best, bom nazista e bom jurista, anuncia em Berlim o
sucesso completo da ação da Sipo: 1) A ação contra os judeus desenrolou-se
sem problemas entre 1o e 2 de outubro de 1943. 2) A Dinamarca pode ser
considerada livre de todos os judeus.
Em Berlim, os finalistas ficam furiosos ao ler a carta. Sem hesitações, Best
explica em 25 de outubro: “Eu sabia — e disse-o ao chefe da Sipo — que
apenas um número muito pequeno de judeus poderia ser preso. Mas
considerando que o objetivo da ação era essencialmente livrar este país de
judeus e não prender um grande número, considero que a operação foi um
sucesso”.
Adolf Eichmann não sabe mais o que pensar. “Eu me lembro”, dirá ele mais
tarde a seus juízes israelitas, “de ter considerado esse caso surpreendente.
Vejam só, eu disse para mim próprio. O Dr. Best, que foi o chefe da Direção
húngara do RSHA… E ei-lo sabotando os projetos da SS”.
Escrúpulos são coisas que estão muito além da imaginação do valet
Eichmann. Mas seu espanto não terá limites quando tiver de enfrentar, ao
procurar aplicar a solução final aos judeus húngaros, na última fase de sua
carreira de carrasco, a oposição de um protetor dos judeus com o nome de
Heinrich Himmler…

Potência e Impotência da SS

SE ALGUÉM ainda duvidasse, aí estava a destruição dos judeus para revelar


o enorme poder da SS na Alemanha nazista.
Organização tentacular, graças a seus diferentes serviços — Sicherheitsdienst
e Gestapo, Waffen-SS e campos de concentração, escritórios de inquéritos
raciais e indústrias negras —, a SS cobre quase toda a vida nacional.
A célula-mãe da Ordem Negra, Partei SS ou Allgemeine SS, vai-se reduzindo
para dar lugar a formações especiais da Schutzstaffel, mais discretas e mais
eficazes.
A história do Reichssicherheitshauptamt (RSHA) mostra o crescente papel de
Heydrich na Alemanha. Pouco antes da guerra, o RSHA atribui-se o direito de
corrigir julgamentos de tribunais; procedem-se execuções perfeitamente
arbitrárias. Quando o Ministério da Justiça protesta, o Reichsführer responde
que a SS deve garantir a segurança do Estado e que basta isso para justificar
as execuções.
Mas o Ministério da Justiça de Franz Gürtner ainda deu trabalho a Himmler,
procurando deter os passos de seus esbirros. Depois da morte de Gürtner, em
janeiro de 1941, o secretário de Estado Franz Schlegelberger será
excessivamente temeroso para enfrentar o RSHA, e Heydrich aproveita para
dar golpes sobre a justiça alemã, dos quais ela não se recuperará.
Mantendo todos os seus cargos, Heydrich é ainda nomeado, em 1941,
Reichsprotektor na Boêmia e Morávia. Hitler manda-o usar toda a severidade
contra as agitações tchecas. O chefe do RSHA resolve abrir um processo para
mostrar aos tchecos a inutilidade de qualquer luta contra os senhores alemães.
A vítima encontrada foi o General-de-Divisão Alois Elias, chefe do Governo
imposto pelo Reich a Praga.
O SD desconfia que Elias colabora com os resistentes e com o governo tcheco
exilado em Londres, e desde 1940 solicita a demissão de Elias, encontrando o
veto de von Neurath, antigo Reichsprotektor na Boêmia e Morávia, agora
ministro de Assuntos Estrangeiros. Mesmo o jurista nazista Ernst Lautz,
procurador-geral no Volksgerichtshof, considera muito fracas as provas
encontradas pelo RSHA contra Elias.
Heydrich dirige-se então ao presidente do Volksgerichtshof, Otto Thierack,
que ambiciona ser ministro da Justiça. Promete-lhe seu apoio para a disputa
do lugar, se puder contar com ele na ação contra Elias. Em 27 de setembro de
1941, Elias é preso, sem que Lautz tenha conhecimento. A acusação é
confiada à Sicherheitspolizei. O futuro ministro da Justiça realizava um sonho
do SD: entregava à polícia as funções da promotoria.
O caso desenvolve-se em Praga. Thierack deixa seu procurador-geral partir
em um fim de semana para descansar. Simultaneamente, Heydrich prende o
premier tcheco e a acusação é confiada ao Dr. Hans Geschke,
Obersturmbannführer SS, chefe da Gestapo de Praga. Antes que o ministro da
Justiça em Berlim possa agir, o processo chega ao seu final: em 28 de
setembro, prisão de Elias; em 29, acusação de Geschke; 1o de outubro,
veredicto: morte; motivo: alta traição.
Thierack trabalhou bem, e em 20 de agosto de 1942 é nomeado ministro da
Justiça por seu Führer. Como ministro, não deixará de colaborar com a SS. A
máquina do seu Ministério ainda evitará que ele se entregue inteiramente à
Ordem Negra, mas não se poderá opor aos privilégios atuais de Himmler em
assuntos judiciais: em 18 de setembro de 1942, Thierack reconhece o direito
do RSHA de corrigir julgamentos de tribunais; os prisioneiros condenados a
mais de 8 anos são entregues aos bons cuidados da polícia. No início de
novembro de 1942, Thierack dá à Sipo o direito exclusivo de julgar poloneses
e judeus.
Os poderes do RSHA continuam a crescer. Em agosto de 1943 desaparece a
esporádica oposição do Ministério do Interior ao RSHA: com a queda de Frik,
o próprio Himmler é nomeado ministro do Interior. Os poderes da Orpo em
matéria de administração da polícia passam ao RSHA. O correspondente
serviço Orpo é suprimido e uma nova seção é criada, sob as ordens do
Gruppenführer SS Augusto Frank. Na mesma época, o rival de Himmler e
chefe da Orpo, Kurt Daluege, cai gravemente enfermo, o que facilita ao
RSHA assumir os poderes mais importantes da Ordnungspolizei.
Para o poder da SS contribui amplamente uma outra criação do gênio
organizador de Himmler: o Wirtschaftsverwaltungshauptamt, Direção
Econômica SS ou WVHA.
No princípio, a SS dispunha de um serviço administrativo, VHA, dirigido por
Oswald Pohl. Pohl estende rapidamente suas funções à Direção dos
Totenkopfverbände e à da VT; torna-se tesoureiro-geral da SS e chega afinal
ao cume da Direção-Geral: à Seção de Administração no Ministério do
Interior.
Em 1939, o Gruppenführer Pohl recebe de Himmler uma Direção SS criada
para ele: Verwaltung und Wirtschaft, Administração e Economia. Três anos
mais tarde, Pohl reúne suas duas direções em um serviço único: WVHA,
tornando-se, ao lado de Heydrich, o homem mais importante da SS, depois de
Himmler.
Pohl controla a Administração e a Economia da Waffen- SS: administra os 20
campos de concentração e os 165 campos de trabalho SS, dirige todas as
construções da SS e da polícia e superintende o funcionamento das indústrias
negras. No início da guerra, a SS tem quatro grandes empresas econômicas:
os Deutsche-Erd-und Steinwerke GmbH, que em 1943 mostram cifra de
negócios no montante de 14.822.000 DM; os Deutschen Ausrüstungswerke
GmbH, empresa que reúne as mais diversas atividades dos campos de
concentração, desde fábricas de pão até forjarias, e no mesmo 1943 apresenta
uma cifra de 23.204.032 marcos; a Deutsche Versuchsanstalt für Ernährung
und Verpflegung, brinquedo do botânico Himmler; e, enfim, a Gesellschaft
für Textil-und Lederverwertung GmbH (têxteis e couro), sobretudo formada
pelo campo feminino de Ravensbrück, com nove milhões de marcos como
cifra de negócios em 1943.
Pohl reúne as quatro empresas em um truste único, Deutsche
Wirtschaftsbetriebe, ou DWB, organização que, dentro de uma técnica
tipicamente capitalista, invadirá setores marginais da economia, para colocá-
los sob seu controle. A princípio fará isso com as águas minerais dos sudetos
e depois se estenderá nesse campo por toda a Alemanha. Em 1944, Pohl
estará com o controle de 75% do mercado alemão de águas minerais. O
mesmo acontecerá com a maior fábrica de móveis tcheca, empresa judaica de
Emil Gerstel, que se tornará a casa-matriz de uma verdadeira indústria de
móveis da SS. Para amolecer o Ministério da Economia, que se opõe à
tomada da casa Gerstel pela SS, o WVHA põe-na para dirigir um testa-de-
ferro, o Dr. Kurt May, fabricante de móveis em Stuttgart, mas sem dizer que
ele é também Untersturmführer SS e chefe da Direção W4 do WVHA. Em
seguida, as casas de móveis judias vão caindo uma após a outra em mãos de
Himmler, que controlará totalmente a indústria alemã neste setor.
Terceiro domínio econômico propriamente SS: materiais de construção. O
WVHA assegura-se o controle de todas as fábricas desse material na zona
oriental de ocupação, e reagrupa-as em uma sociedade, ao mesmo tempo em
que, sobretudo na Polônia, encampa um bom número de indústrias têxteis e
gráficas. Assim, a SS torna-se presente em todos os setores da economia
alemã. Se se discutem novas técnicas de encadernação, de agronomia ou de
indústrias alimentícias, Pohl está presente.
Aos sucessos da Seção Econômica (W) do WVHA acrescentam-se os
resultados não menos brilhantes da Seção Técnica (C), célula-mãe de uma
indústria de armamentos propriamente SS. Dirigida pelo engenheiro
Kammler, a Seção C acabará por sair das mãos de Pohl, para ficar diretamente
subordinada a Himmler. A partir de 1943, Kammler é encarregado de
construir novas fábricas de armamentos subterrâneas. É ele quem constrói um
quartel-general em Thuringe, para uso do Führer. Também lhe cabe construir
fábricas subterrâneas de aviões. É o responsável pelos caças a reação Me 262
e sobretudo pela arma secreta número um da Alemanha nazista, os mísseis VI
e V2.
A responsabilidade pela construção e lançamento dos mísseis sobre Londres
foi confiada ao pessoal de Kammler. Pela importância dessa arma, Kammler
foi colocado, a partir de 1944, sob ordens diretas de Hitler. Para a SS, um
prestigio sem precedentes.
A carreira fulminante de Kammler, o poder policial e até econômico da SS, as
várias funções de Himmler, que em 1944 ainda será nomeado chefe do
exército de reserva em preparação, todos esses fatos levaram os historiadores
a considerar a Ordem Negra como uma superpotência, como se o próprio
Terceiro Reich fosse uma espécie de sucursal da SS. Tal idéia baseia-se em
um erro de julgamento, muito comum na interpretação do poder totalitário de
Adolf Hitler.
Não são a ordem e a autoridade que caracterizam o III Reich, como supõe a
maioria dos historiadores: são, isso sim, a absoluta ausência de estruturas e a
inexistência total de uma verdadeira hierarquia.
Propositadamente, mas também por instinto, Hitler impede a existência de
uma verdadeira hierarquia. O poder de Hitler exerce-se diretamente sobre o
povo. O regime nacional- socialista caracteriza-se… pela ausência de sistema.
“A vontade do Führer”, diz Hannah Arendt, “pode ser realizada, não importa
quando nem onde. O Führer não tem de respeitar qualquer hierarquia, nem
mesmo a criada por ele próprio”. Este não-sistema permite à SS ocupar
algumas posições-chave: mas outros grupos e clãs também existem para
vigiar seus passos e impedir seu acesso a uma verdadeira soberania. O
Partido, a SA, a Wehrmacht freiam e muitas vezes paralisam a SS.
Se na Polônia e na Noruega os espiões de Heydrich impõem sua lei à
Wehrmacht, o contrário acontecerá na Bélgica e na França. Por intervenção de
Göring, o SD, que antes fora proibido pela Wehrmacht de instalar-se na
França, consegue ter um comando de dez homens dirigido pelo
Obersturmbannführer SS Helmut Knochen. Mas o General Otto von
Stülpnagel e os 2.500 homens de sua polícia militar neutralizam
completamente a pequena tropa de Knochen.
Heydrich exige então o que ele pretendia para todas as zonas de ocupação:
que um oficial superior Sipo ou SS tivesse a direção de todas as polícias
locais, militares etc. A Wehrmacht recusa-se, e declara-se pronta a receber
“um encarregado de negócios da Sipo e do SD”. É então enviado o
Brigadeführer SS Max Thomas a Paris. Não permanecerá muito tempo.
Logo que chega à França, Thomas entra em contato com Eugène Deloncle,
líder do antissemitismo francês, que lhe submete um plano fantástico: aplicar
na França a “solução final” da questão judaica. De início, explodiriam as
sinagogas parisienses. Thomas aprova as idéias de Deloncle, e oferece-lhe a
ajuda de um de seus homens, o Obersturmführer SS Hans Sommer, que
fornecerá os explosivos. Em 3 de outubro de 1941, às 2,30h da manhã, uma
bomba explode na sinagoga da Rua das Tourelles. Seis outras sinagogas são
danificadas pelo mesmo processo nas horas seguintes.
Knochen aproveita para cumprir seu dever: informa a von Stülpnagel que,
segundo a polícia francesa, trata-se de ação de extremistas de direita. Mas
Knochen não contava com a leviandade de Sommer que, em meio a uma
bebedeira no cabaré Le Chantilly, revela o papel por ele desempenhado nos
atentados. E diz tudo, na presença de dois homens da intendência militar.
A Wehrmacht aproveita a situação e, em 22 de outubro, o
Generalfeldmarschall Keitel exige a retirada imediata de Knochen, Sommer e
Thomas. Motivo: “O comandante das forças alemãs na França não pode punir
os autores franceses dos recentes atentados, pois eles foram inspirados por
Knochen, ou seja, pelo SD.”
Heydrich tenta ganhar tempo. Mas a Wehrmacht mantém sua posição e ele
terá de ceder. Thomas e Sommer são chamados, e só Knochen continuará em
seu posto. Só em maio de 1942, Heydrich conseguirá impor aos militares
alemães de Paris um funcionário e chefe SS de alto nível, que conseguirá
afrouxar um pouco o controle ao qual Knochen estava submetido. O
emissário de Heydrich fará, no entanto, todos os esforços para manter com os
militares as melhores relações possíveis. Trata-se de Karl Albrecht Oberg,
amigo do novo comandante-em-chefe alemão na França, o General Karl
Heinrich von Stülpnagel, primo de Otto.
Na verdade, a SS tinha todo interesse em não enfrentar a suscetibilidade dos
militares. A Wehrmacht detém o controle de várias novas zonas de ocupação,
como a Grécia e a Iugoslávia. Nessas regiões, tal como na França e na
Bélgica, a SS tem a maior dificuldade em impor sua presença efetiva. Um dos
problemas que irritam Himmler é o respeito que vai crescendo entre os chefes
SS do estrangeiro em relação aos estados-maiores junto aos quais estão
acreditados. O exemplo de Oberg, na França, é típico: é grande a sua
admiração pelo General Karl Heinrich von Stülpnagel, antinazista declarado.
O Gruppenführer SS Oberg chega a tirar alguns conspiradores das mãos da
Gestapo. Stülpnagel: “Se Oberg pudesse pensar com sua própria cabeça,
tenho certeza de que estaria do nosso lado”.
Vários chefes SS reconhecem a preponderância dos militares e pedem seu
conselho antes de agir. Himmler pune seus subordinados, acreditando que a
Wehrmacht pretende estender seu campo de influência às custas da SS. A
desconfiança de Himmler é ainda maior diante da crescente hostilidade de um
adversário que sempre pretendeu dar na SS um golpe fatal: a SA.
Os sobreviventes da época de Röhm foram reduzidos a uma espécie de
associação de antigos combatentes; mas continua muito vivo o ódio contra os
assassinos de 30 de junho de 1934. O chefe do estado-maior da SA, Lutze,
não esqueceu o verão de 1934 quando, por lealdade para com o Führer,
denunciou seu rival Röhm. Não esqueceu a tarde de 30 de junho quando os
colaboradores do Führer o fizeram representar, até o fim, o seu papel,
mandando-o indicar os camaradas que seriam liquidados. Não, o chefe do
estado-maior não está à altura de enfrentar a SS. Mas há a possibilidade de
um aliado poderoso: a Wehrmacht.
Desde a queda de Blomberg e Fritsch, Lutze sonha em trazer a Wehrmacht
para a luta contra a SS. Em maio de 1938, mantém contatos com o general
antinazista Ulex: “Convém aproveitar o caso Fritsch para provocar a queda de
Himmler”. Ulex: “E se Hitler ficar ao lado de Himmler?” Lutze: “Nesse caso,
será preciso não nos preocuparmos muito com o Führer”.
No espirito de Ulex, a resposta de Lutze significa: “Se Hitler ficar ao lado de
Himmler, ele deve cair também”. O general submete o plano de Lutze ao
General von Fritsch e a seu sucessor von Brauchitsch, mas os dois militares
recusam-se a participar. Von Brauchitsch: “Se é isso o que pretendem os
cavalheiros, eles que o façam”.
Lutze sabe que a recusa de Brauchitsch está longe de ser definitiva. Dividido
entre seu horror ao regime e seu senso de lealdade, o chefe dos exércitos
alemães nunca deixará de prestar atenção às idéias do chefe do estado-maior
da SA. A possibilidade da união SA-Wehrmacht não escapa às observações do
Partido nem da SS. Em 12 de março de 1940, o Gruppenführer SS Berger
dirá: “O comportamento do chefe do estado-maior Lutze torna-se cada vez
mais perigoso para a SS e para o Partido. As noitadas que ele organiza com
seus amigos da Wehrmacht destinam-se apenas a criticar o Reichsführer. Na
minha opinião, é necessário vigiá-lo um pouco mais de perto.”
As recomendações de Berger são seguidas ao pé da letra. A vigilância cresce
quando Himmler sabe que Lutze está ligado a Hans Frank, governador-geral
da Polônia e inimigo temível da SS. Quando, em fevereiro de 1943, Himmler
toma conhecimento de que Lutze resolveu hospedar-se na casa do “Rei
Frank”, em Bad-Kryniza, sua reação é de pânico. Escreve a Bormann, em 26
de fevereiro de 1943: “Não acho de bom augúrio a estada de Lutze em Bad-
Kryniza, sob a desculpa de fazer estação de águas. Ele poderia ter escolhido
um lugar dentro das fronteiras alemães.”
Alguns meses mais tarde, Lutze morre em um acidente de automóvel. A SS
livrou-se de um inimigo perigoso. Mas a SA continua a ser um reservatório,
sempre procurado por todos que, em um ou outro momento, precisem de
aliados contra a SS. Entre eles, convém ressaltar o Reichsminister da zona
oriental de ocupação, Alfred Rosenberg, que nunca deixará de combater a
influência da SS, apoiando-se nos chefes da SA e em alguns dirigentes do
Partido. Berger teme uma colisão anti-SS, e escreve a Himmler: “Constato
com surpresa que vários gauleiter estão ao lado de Rosenberg e que a SA
também o considera ‘um defensor de direitos’. O Partido tem em suas fileiras
chefes invejosos da alta posição do Reichsführer e do poderio de sua
organização”.
Na Rússia, os neocolonialistas alemães estão unidos contra a SS. Entre os dez
comissários-gerais da zona oriental de ocupação, não há um só homem de
Himmler. As razões de sua hostilidade variam de um para outro. Na Ucrânia,
o gauleiter Koch, que considera os eslavos sub-homens e os trata como tais,
luta contra a SS, por desconfiar que a Ordem Negra não aceita as suas regras
morais. O gauleiter Heirinch Lohse não admira a SS, porque seus métodos,
segundo ele, são semelhantes aos da GPU soviética. Os agentes de Himmler
são constantemente paralisados pelos pequenos tzares nazistas, sobretudo por
Koch.
À medida que a guerra se desenvolve, os chefes SS têm a tendência de
realizar no Leste uma política de ocupação menos brutal. No verão de 1943, o
próprio Berger cede a esse pensamento e, nomeado chefe do Serviço Político
do Ministério das Zonas de Ocupação Leste, apoia fortemente Rosenberg
contra Koch. Quanto mais a SS tende a apaziguar, mais se agrava o conflito
entre ela e Koch, apoiado pelo chefe da chancelaria do Partido, Martin
Bormann. O SD entra em ação e faz relatórios sobre o terror de Koch na
Ucrânia. O Partido protesta junto a Himmler, que afinal terá de ceder e
determinar ao SD que abrande suas críticas. Himmler teme um choque com o
Partido e avisa mais uma vez ao SD para não se imiscuir em assuntos do
NSDAP, nem criticar seus funcionários. Ele cuida de suas relações com
Bormann, sombra de Hitler, e de cujas opiniões dependem em grande parte as
disposições do Führer em relação à SS.
A atitude de prudência de Himmler não é seguida por seus subordinados.
Entre os chefes SS hostis ao Partido, Ohlendorf ocupa sem dúvida o primeiro
lugar. Chefe do Serviço SD-Interior, Ohlendorf é uma das personalidades
mais ambíguas da SS. Aos olhos de Himmler, é um monstro de inteligência.
Para os historiadores, é um enigma: diretamente responsável pela morte de
70.000 judeus, Ohlendorf nunca deixará de manifestar seu desprezo pelos
métodos bestiais dos senhores do Partido. Seus amigos tentarão mais tarde
apresentá-lo como uma espécie de resistente integrado na Ordem Negra, um
porta-voz da oposição integrado nos meios nazistas. Realmente, Ohlendorf
fixou-se o dever de registrar todos os movimentos da vida alemã, e levá-los à
chancelaria do Reich em seu jornal Meldungen aus dem Reich, por ele mesmo
fundado. Ohlendorf é mais vítima do que senhor nesta tarefa. Ela pressupõe
uma espionagem meticulosa do Partido e esta espionagem é-lhe, em princípio,
estritamente proibida.
Proibido ou não, o SD-Inland não deixa de evidenciar, sempre que pode, a
fatuidade dos senhores do NSDAP, suas pequenas lutas, os fracassos da
propaganda oficial, a incapacidade dos gauleiter etc. “É preciso que se
compreenda que a crítica que fazemos”, escreve ele a Heydrich, defendendo-
se de ataques, “destina-se apenas a consolidar o império nacional-socialista”.
À medida que a guerra vai sendo desvantajosa para a Alemanha, os relatórios
do SD-Inland vão-se tornando mais pessimistas. Ohlendorf defende-se com a
tese da absoluta objetividade de seus serviços. Os altos funcionários da
Partido reclamam de Himmler o fato de tolerar que o SD ultrapasse
permanentemente as suas atribuições.
O Governador-Geral Frank atira-se contra o SD “cujos relatórios
supostamente confidenciais contêm apenas denúncias da mais baixa espécie”.
Vários gauleiter seguem Frank e assiste-se a um verdadeiro levante de
reclamações contra o SD. Diz o gauleiter Weinrich, em 22 de janeiro de 1943:
“Já estou cansado desse SD, que se envolve em nossos assuntos. Não
precisamos de uma GPU à moda russa.” Em toda parte os funcionários
boicotam o SD. Kampe, Kreisleiter de Dantzig, diz a um de seus
subordinados, homem de confiança do SD, que ele deve escolher entre ele e
“o senhor Himmler”, pois não é possível servir a dois senhores ao mesmo
tempo.” A Direção da SA acompanha o movimento e proíbe a seus homens
qualquer colaboração pessoal com funcionários do SD. Em matéria de
serviço, os contatos devem ser mantidos, após a aprovação do gauleiter, nos
escritórios do Comissariado-Geral e não nos do SD. Até Bormann entra na
luta: “É preciso”, escreve ele a Himmler, “que termine a vigilância exercida
pelo SD contra os homens do Partido”. Himmler cede, e Bormann é avisado
por ele de que o SD está proibido de envolver-se em assuntos do Partido e que
haverá vigilância para que a proibição seja respeitada. Bormann satisfaz-se
com a promessa de Himmler, pois sabe que Ohlendorf não é excessivamente
querido pelo Reichsführer, que o considera um espírito negativo: “Ele
pretende, em tudo, saber mais que os outros, e considera-se o guardião do
Graal nacional-socialista”. As “notícias do Reich” passam a ser submetidas a
Himmler e voltam frequentemente amassadas ou rasgadas. Himmler a
Kersten: “Elas são tão pessimistas que eu não as posso submeter ao Führer;
poderiam perturbar o seu trabalho.” Kersten: “E se forem verdadeiras?”
Himmler: “Não interessa! Temos que poupar o Führer de tais problemas”.
As circulares de Himmler continuam a chover sobre Ohlendorf, lembrando-o
de que não deve envolver-se em assuntos que não lhe diga respeito. Mas
Ohlendorf não se altera. O SD-Inland continua a trabalhar como antes. Os
dirigentes do Partido — Goebbels e Bormann à frente — resolvem então agir
contra ele. Goebbels pede a proibição das “notícias do Partido”. Motivo: as
informações dadas pelo SD referem-se à atividade do Partido, e isso é assunto
exclusivo da chancelaria. Himmler, depois de algumas hesitações, aceita as
razões de Goebbels, o qual anota, em 12 de maio de 1943, que o Reichsführer
reconhece que “as notícias”, a longo prazo, criarão uma mentalidade
derrotista. No verão de 1943, o SD recebe ordens de limitar suas atividades a
informações de ordem geral. Um ano depois as Meldungen aus dem Reich
desaparecem definitivamente. Essas medidas são acompanhadas de ordens
que tendem a boicotar o SD em seu conjunto. Bormann proíbe oficialmente
aos funcionários do NSDAP qualquer colaboração com os do SD.
Contra essas providências, que enfraquecem completamente o SD, Himmler
não levanta a voz. Inicia negociações com o Partido, procurando dar ao
Serviço de Segurança novas atribuições e confiando-lhe funções policiais que
justifiquem a sua existência, comprometida pelas restrições ao seu papel de
órgão informador.
Vê-se aí quão hipotético é o “poder total” da Ordem Negra no Estado nazista.
Himmler não é capaz de lutar de frente contra o Partido, mesmo quando este
ameaça a existência do SD. Essa extrema prudência revela definitivamente as
contradições no seio da própria SS, que nunca foi uma organização
monolítica, como muitos imaginam. O próprio Himmler sabe que a unidade
da SS é apenas uma idéia e um tema de propaganda. Já em 1940, o
Reichsführer declarava em um discurso feito para os membros da
Leibstandarte Adolf Hitler: “A Waffen-SS não pode viver senão da vida do
conjunto da SS. Uma ou outra parte deste corpo não poderia viver
isoladamente”. Em outubro de 1943, o problema torna-se mais definido:
“Infelizes de nós, se a SS e a polícia se tivessem de cindir; infelizes de nós se
cada Direção pretendesse ter uma direção autônoma; isso seria o fim de nosso
grande corpo.” As preocupações de Himmler não são sem fundamento. À
medida que se multiplicam os serviços SS especializados, as direções, as
organizações, ele sente maior dificuldade em exercer o seu controle soberano
sobre o monstro agigantado. O desenvolvimento da Ordem exige pessoal
numeroso e nem todos têm idéias que correspondam ao ideal nacional-
socialista. Mesmo entre os chefes SS aparecem os maiores disparates: “Eis a
que ponto chegamos”, exclama Andreas Schmidt, chefe da SS da Romênia e
genro de Gottlob Berger, “até os membros da SS não mais formam uma frente
unida em horas de crise. Pelo contrário: aproveitam-na para intrigar mais,
tornando mais difíceis as nossas tarefas.”
A diversidade de interesses representados pelas múltiplas organizações SS, a
crença quase mística em uma superioridade do senhor negro sobre os servos
que o cercam, crença alimentada por Himmler, termina por voltar-se muitas
vezes contra os interesses da Ordem. Certos chefes da SS, ávidos de poder e
de prestígio, lutam uns contra os outros, em detrimento da Ordem. Alguns
deles — e os exemplos não são raros — chegam a desobedecer, abertamente,
ordens de Himmler.
É significativo, a esse respeito, o exemplo dos chefes superiores SS e de
polícia, representantes pessoais do Reichsführer junto a unidades regionais da
SS. Himmler cria esta organização de chefes em 1937 para evitar que as
diferentes direções se tornem muito influentes, em prejuízo do seu poder
pessoal. Os grandes vizires da SS, à frente das direções centrais berlinenses,
aproveitam todas as oportunidades para anular ou quase anular o papel desses
vice-reis instituídos por Himmler. O esporte predileto dos chefes das unidades
regionais da SS era passar por cima do representante local do Reichsführer,
sempre que possível. Em toda parte, os HSSPF são boicotados, sobretudo nas
zonas de ocupação orientais. A direção central Orpo começa por recusar-se
categoricamente a. conceder aos HSSPF qualquer direito quanto ao exercício
da justiça, poderes que Himmler lhes quis conferir. Ao contrário do que
determinara Himmler, ela exige que os HSSPF fiquem submetidos, sobretudo
na Rússia, às ordens da Orpo. Os chefes das unidades SS não perdem
oportunidades para demonstrar aos HSSPF que os consideram desnecessários.
O comandante do KZ de Hamburgo recusa-se a informar ao HSSPF local o
número de prisioneiros existentes em seu campo. O Oberführer SS Leo von
Jena, comandante da 8ª Totenkopfstandarte, nega-se a informar ao HSSPF
local a composição e a utilização de suas tropas. O HSSPF Krüger pede a
Jena, em certa ocasião, que prepare suas tropas para uma ação iminente contra
partisans poloneses. Von Jena recusa-se: só o inspetor- geral dos
Totenkopfstandarten pode determinar tal movimento.
Irritado pelo boicote contra seus representantes, Himmler dá-lhes novos
poderes. Em 16 de março de 1942, escreve aos chefes das direções regionais:
“Eu peço a todos os chefes de direção que pensem no que se transformaria a
SS em dez anos se eu continuasse a tolerar sua atitude em relação aos
HSSPF”. Maiores poderes aos HSSPF, apelos reiterados aos chefes de
direções centrais, nada adianta; os representantes de Himmler conseguem
impor-se em questões menores, mas Himmler sabe que o resultado é pequeno
e que sua autoridade legal não está sendo exercida. Himmler em 1943: “É
preciso que esta Ordem, em todos os seus escalões, torne-se verdadeiramente
uma ordem, um bloco, um corpo, e que continue sob o comando do décimo
Reichsführer”. Isto é apenas um desejo; a ordem é realmente um torneio de
homens, de interesses, das idéias mais contraditórias. Não há mais um só
chefe SS de alto nível que não tente desacreditar o outro por todos os meios.
O Gruppenführer SS August Neyszner, HSSPF na Sérvia, apresenta queixa
contra seu camarada Harld Turner, Gruppenführer SS, a quem acusa de ter
revelado uma operação iminente contra partisans sérvios. O Brigadeführer SS
Otto G. Wachter, governador da Galícia, fica ao lado de Frank contra
Himmler e acusa o HSSPF Krüger de atiçar inutilmente a campanha da SS
contra o governador-geral, em detrimento da autoridade alemã. Ohlendorf,
chefe do SD- Inland, e Gunther d’Alquen, redator-chefe do Schwartze Korps,
estão sempre cruzando lanças e acusando-se mutuamente de ferir os interesses
do nacional-socialismo, em geral, e da SS, em particular. O Gruppenführer
Gottlob Berger, chefe da Direção-Geral da SS, queixa-se sempre de ser
prejudicado em seu trabalho por vários chefes SS e especialmente pelo
Príncipe Waldech-Pyrmont, Obergruppenführer em Weimar, que não aprecia
seus métodos de recrutamento forçado para a Waffen-SS. O Gruppenführer
SS Arthur Seyss-Inquart, comissário do Reich na Holanda, luta contra a
Nederlandse SS, apoiada pela Direção Central, aliando-se ao movimento
nacional-socialista Adrian Mussert, rejeitado por Berlim, e que Himmler
considera “corrompido”. Na Bélgica, a confusão é maior ainda: o
Gruppenführer SS Eggert Reeder, chefe da administração militar no estado-
maior do comandante das forças alemãs na Bélgica e no Norte da França, dá
seu apoio a um movimento nacionalista belga, que preconiza a fusão das
regiões flamengas da Bélgica à Holanda. Gottlob Berger, chefe da Direção
Central SS, apoia a Devlag, associação de colaboracionistas belgas, que
pretende a fusão das regiões flamengas da Bélgica à Alemanha. De seu lado,
complicando ainda mais a situação, a figura de proa dos fascistas belgas,
Léon Degrelle, entra com seus homens, contra a vontade de Berger, na
Waffen-SS, para preservarem, defendendo-a da Devlag e do grupo nacional-
socialista apoiado por Eggert, a integridade territorial da Bélgica.
Nesse labirinto de conflitos, é difícil afirmar-se a soberania de Himmler, e é
com dificuldade que ele terá de chamar alguns de seus homens à razão. Além
disso, Himmler não gosta de entender-se diretamente com seus subordinados;
prefere ficar de longe, do alto de sua torre, dirigindo a tal ou qual subordinado
o fogo de suas ordens escritas, seus avisos, apelos, suas advertências e suas
sanções. O Reichsführer SS manda-os beber menos, trabalhar mais, não
criticar seus superiores, e as vezes intervém em suas vidas privadas, tanto
quanto na profissional. “Caro Pancke”, escreve ele, em 16 de maio de 1944,
no HSSPF da Dinamarca, “você deveria pedir à sua esposa para não ficar em
toda parte dando opiniões sobre acontecimentos políticos nem sobre tal ou
qual gauleiter. Tenho a impressão de que você não se ocupa da educação de
sua jovem esposa com a firmeza que é de esperar de um chefe SS”.
Himmler vigia tudo, envolve-se em tudo. Esse controle é facilitado pelos
próprios chefes SS, que se queixam uns dos outros junto ao Reichsführer e se
acusam mutuamente de incapacidade, desobediência e até de traição. Assim, o
Obergruppenführer Wolff envia a Himmler um relatório onde acusa o
Gruppenführer Kaltenbrunner de utilizar seu automóvel de serviço para
passeios da família; o Brigadeführer Ohlendorf acusa Wolff de roubar aves e
transportá-las para sua casa em automóvel oficial. Himmler tem razão ao
desconfiar de seus indóceis cordeiros. Para vigiá-los, usa às vezes gente de
fora. Em 1940, contrata um vigilante-geral, que não é da SS: o Dr. Richard
Korherr, eminente estatístico e católico convicto, que rapidamente se tornará
o indivíduo mais detestado na SS. “Natureza porosa, misantropo,
hipersensível”, esta é a opinião do Kreisleitung NSDAP de Würzburg sobre o
Dr. Korherr. Ele não poderia enfrentar os chefes SS, mas pouco importa para
Himmler: sua tarefa será a de examinar os relatórios e cifras fornecidos pelas
diferentes seções. Há uma onda de protestos contra “o inspetor estatístico
junto ao Reichsführer e chefe da polícia”. Berger, sempre tão preocupado com
o prestígio de Himmler, tenta conseguir as boas graças de Korherr: “Meu
velho Korherr, venha para a minha área. Eu lhe nomearei imediatamente
Standartenführer”. Mas Korherr recusa categoricamente as ofertas.
Rapidamente, o consciencioso estatístico descobre pequenas e grandes
mentiras nos relatórios enviados a Himmler. “Ele me diz que eu posso retirar
das direções-gerais pessoal que daria para formar três divisões, sem que o
serviço sofresse qualquer prejuízo. Afirma que o relatório sobre natalidade e
mortalidade infantil que acabam de me submeter é completamente falso”, diz
Himmler.
O autor do relatório, Dr. Gregor Ebner, informado das conclusões de Korherr,
pede logo que “esse criador de casos” seja preso preventivamente. Começa a
luta; e os chefes SS não sossegarão enquanto Korherr não estiver fora da
arena. Greifelt, chefe do estado-maior da Direção Central, acusa Korherr de
ter “um comportamento completamente incorreto, usando a torto e a direito o
seu carro oficial”. Berger diz a Himmler que “o melhor seria suprimir este
criador de problemas”.
Richard Hildebrandt, Obergruppenführer SS, chefe da Direção de Raça e
Povoamento, dará o golpe. Chama Korherr ao seu gabinete, em 12 de agosto
de 1943, e reclama contra as censuras ao seu serviço. Segundo o relatório de
Korherr a Himmler: “Ia partir, quando o Obergruppenführer Hildebrandt
gritou: De qualquer forma, não tolerarei por muito tempo suas denúncias.
Respondi-lhe que delação e denúncias eram ofício dele; não meu. Hildebrandt
precipitou-se sobre mim, com punhos ameaçadores. Disse ainda, mas isso eu
não poderia jurar: “E agora, fora”. Saí sem dizer qualquer palavra. Korherr
ficará semanas esperando uma satisfação. Himmler será bem prudente na
defesa de seu estatístico. Com dificuldade, convencerá Hildebrandt a
desculpar-se, o que ele fará friamente, dirigindo-se a Himmler e não a
Korherr: “Eu lhe solicito transmitir meus sentimentos ao Dr. Korherr. Heil
Hitler! Seu Hildebrandt”.
Richard Korherr compreende a lição; percebe que o próprio Himmler não
poderá garantir a sua proteção. Transferido para a região de Regensburg,
abrigado dos tiros dos chefes SS, organiza um instituto de estatística, com o
apoio do Reichsführer, e não mais fará mal a ninguém.
O episódio Korherr demonstra o poder e a independência das direções-gerais
SS no interior da Ordem. Quando há o perigo, caminham todos de mãos
juntas, mesmo contra a vontade de Himmler, embora em tempos normais
sigam cada qual o seu caminho.
Pior é que muitas vezes preconizam políticas que não têm nada em comum. O
RSHA defende a liquidação de todos os judeus; o WVHA, a preservação dos
judeus aptos para trabalho. O mesmo RSHA mantém a tese da inferioridade
racial em assuntos relativos à ocupação na Rússia; a Direção Central da SS
preconiza a organização de um “contra-exército” russo, dirigido por oficiais
alemães. O AWHA procura afastar qualquer controle do Estado sobre suas
atividades, enquanto um grupo de chefes SS, reunidos por Ohlendorf, defende
um firme controle do Estado sobre as empresas da SS.
Há mil outros exemplos da vontade de independência — se não da
independência de fato — dos membros desse corpo gigantesco que é a Ordem
Negra. Mas o exemplo mais evidente, sem dúvida, é o da Waffen-SS: ela
conduz aos quatro cantos da Europa o prestígio da Ordem Negra, mas o seu
espírito, paradoxalmente, à medida que passam os anos, não terá qualquer
relação com a ideologia da SS propriamente dita.
A Waffen–SS

EM MARÇO de 1942, o RSHA faz um relatório sobre a reação da opinião


pública em relação à tropa considerada a mais temida da Alemanha, ou seja, a
Waffen-SS: “Convém acentuar que, em seu conjunto geral, a Waffen-SS goza
da melhor reputação. Fala-se sobretudo do valor de suas vitórias, do espírito
de camaradagem que reina entre seus homens, e, nesta mesma ordem de
idéias, das excelentes relações entre oficiais e soldados”.
“Há também”, continua o relatório, “algumas opiniões menos favoráveis. Há
os que dizem que os oficiais Waffen-SS não são suficientemente formados, e
que os soldados dessa tropa são muitas vezes sacrificados inutilmente. Outros
dizem que ela exerce uma espécie de vigilância sobre a Wehrmacht; que a
brutalidade é a principal qualidade exigida de um soldado da Waffen-SS.
Essas pessoas baseiam-se em uma idéia generalizada: a de que a Waffen-SS
não faz prisioneiros; aniquila qualquer adversário.”
Assim, o SD evidencia o temor mesclado de admiração que os alemães
sentem em relação a esta tropa, a maior responsável pelo prestígio da Ordem
Negra.
Concebida inicialmente por Himmler como uma tropa de elite, para a
segurança do regime nacional-socialista, levada depois para o campo de
batalha, a Waffen-SS vai ficar, à medida que se desenvolve a guerra, distante
do universo fechado da Ordem Negra e dos fantasmas da SS. A guerra
transforma os legionários de Himmler em soldados iguais aos da Wehrmacht.
Sem levar a realidade em consideração, o julgamento de Nuremberg
considerará a Waffen-SS como uma brigada de soldados politizados. Seus
soldados, independentemente de patente, são identificados aos assassinos do
RSHA ou aos carrascos dos KZ. Os oficiais da Wehrmacht poderiam ter
corrigido essa idéia em Nuremberg, mas nada fizeram. Em outros tempos,
durante a guerra, sentiam alívio quando sabiam haver uma tropa Waffen-SS a
seu lado, pronta para entrar na batalha. Agora, esqueciam-se disso.
A Waffen-SS nasceu na época em que o nacional-socialismo chegava ao
poder. A SS queria criar unidades armadas — cem homens por Abschnitt —,
capaz de inspirar temor à SA e aos democratas que, embora vencidos, ainda
não haviam abaixado a crista. Depois de um período de treinamento, as tropas
eram chamadas comandos especiais e desempenhavam funções de polícia. Os
comandos especiais mais numerosos eram chamados tropas políticas de
reserva, Politische Bereitschaften. Suas estruturas eram militares: Gruppen,
Zügen, Stürme (companhias) e Sturmbanne (batalhões).
Uma verdadeira rede de Politische Bereitschaften SS começou a cobrir o
território alemão. O treinamento era feito na base de terrorismo político, e em
30 de junho de 1934 elas terão oportunidade de pôr completamente à prova os
seus talentos.
Essa primeira grande exibição faz nascer em Himmler a idéia de formar um
verdadeiro exército SS. Hitler concorda e põe à sua disposição parte do
armamento confiscado à SA, enfrentando os militares, que desde então
manifestavam sua hostilidade à concorrência da Ordem Negra. Hitler permite
que Himmler organize três regimentos armados, mas, em respeito à
Wehrmacht, proíbe que eles se reúnam em uma divisão única e disponham de
serviços auxiliares e de artilharia. O pequeno exército SS toma o nome de
Verfügunsgstruppe ou VT, mantendo-se na estrutura da SS e do Partido, com
“tarefas particulares referentes à política interior”, de acordo com uma nota
do Ministério da Defesa, de 24 de setembro de 1934.
Basta agora reunir a Leibstandarte Adolf Hitler e os Politische Bereitschaften,
e aí estará o núcleo do futuro exército SS. Mas a constituição de um exército
não seria fácil, com o tipo de homens reunidos pela Allgemeine SS. Não se
faz um exército com chefes do tipo de Sepp Dietrich. Há que recorrer à
imagem de tropa de elite, usada por Himmler para esconder as verdadeiras
tarefas destinadas por Hitler à SS. Essa imagem atrai vários militares da
reserva, entre os quais o General Paul Hausser, recrutado por intermédio do
Juiz SS Paul Scharfe, seu amigo.
Hausser, arquétipo do oficial prussiano, elegante, culto — o oposto em tudo
de Sepp Dietrich —-, recebe de Himmler a incumbência de reorganizar suas
tropas e sobretudo de inculcar-lhes disciplina, obediência, disposição para o
combate, em suma, o know-how militar em toda a acepção do termo. No
início de 1935, o general abre uma escola militar no Castelo de Brunswick. É
a segunda escola SS; a primeira fora aberta em l.° de outubro de 1934, em
Bad-Tölz, por Paul Lettow, também antigo oficial da Reichswehr. Hausser
cumpre seu dever, rapidamente. A princípio tem algumas dificuldades com a
Leibstandarte Adolf Hitler e com seu chefe Dietrich, que acredita nada ter a
aprender em assuntos militares; mas, afinal, consegue dar à VT uma formação
militar nos moldes tradicionais da Reichswehr.
A personalidade de Hausser e a qualidade de seu ensino atraem a Brunswick
vários jovens oficiais da polícia, militares da reserva e jovens com vocação
para as armas. Eles alimentarão os batalhões SS espalhados por toda a
Alemanha. Em Munique nasce o Regimento SS 1 (Deutschland); em
Hamburgo, o Regimento SS 2 (Germânia). Cada um deles é o resultado da
fusão de três batalhões. Em Berlim, a Leibstandarte Adolf Hitler cresce e
torna-se um regimento de infantaria motorizado, enquanto aparece em Viena
o Regimento SS 3 (Der Führer). Depois de tantos êxitos, o Brigadeführer
Hausser é nomeado inspetor da Verfügunsgstruppe.
Mas Hausser não consegue a concordância geral para seus planos. Um grupo
chefiado por Felix Steiner defende a idéia de um exército composto por tropas
extremamente móveis. Para evitar os cercos que conheceu em 1914, crê
Steiner que os melhores homens devem ser separados e reunidos sob a forma
de tropas de choque. Tais comandos, núcleos da defesa ou pontas de lança
para o ataque, devem estar treinados para o combate corpo-a-corpo, uso de
armas individuais, lança-chamas, fuzil-metralhadoras, granadas. Steiner aos
generais da Reichswehr: “A guerra total exige exércitos de massa; contudo, a
decisão estará com tropas operacionais de elite de pouca importância
numérica, mas capazes de criar brechas terríveis no adversário, dividi-lo e
depois retirarem-se, cedendo lugar ao exército tradicional.”
Essas idéias não são levadas em consideração pelos generais; e conduzem
Steiner ao exército de Hausser, que lhe parece a tropa do futuro, com a qual
sonha. Steiner consegue de Himmler o comando do regimento VT
Deutschland e, rompendo com os métodos tradicionais de Hausser, põe em
prática sua doutrina de corpos de elite, restringindo-a, todavia, a um de seus
batalhões. A rotina clássica dos quartéis é suprimida. A formação dos
soldados é obtida através de competições esportivas, que farão deles
“caçadores, alpinistas, atletas”. Nessas competições, oficiais e soldados
disputam juntos, criando-se grande espírito de camaradagem. Além disso, os
oficiais não são recrutados — como no exército — de acordo com sua
situação social ou seu nível de cultura: os aspirantes a oficiais SS devem,
antes de entrar na Junkerschule (escola de oficiais SS), ter vivido pelo menos
dois anos como simples soldados. Privilégios de educação e de posição social
não existem nesse exército.
Steiner também rompe com a tradição em assuntos específicos de combate. A
unidade básica não é o grupo, como na Wehrmacht, mas a tropa de choque,
capaz de enfrentar o adversário no corpo-a-corpo. Em lugar de carabinas,
como na Wehrmacht, os homens de Steiner usam armas ligeiras e rápidas,
como a metralhadora, granadas, explosivos. O Feldgrau (cinzento) é
substituído pelo uniforme camuflado. Rapidamente, Steiner cria um grupo de
soldados-atletas, “um tipo muito superior à média, com aparência de
desportistas, grandes qualidades de marchadores e combatentes.” Mesmo a
Wehrmacht surpreende-se: uma tropa capaz de fazer três quilômetros em vinte
minutos — isso é inédito.
Entusiasmado pelo sucesso de Steiner, estrela da VT, Himmler, que aliás é
considerado por ele seu único chefe, não poupa demonstrações de afeto e de
estima. Mas, apesar disso, os problemas da VT são muitos. A euforia das
reformas não disfarça a realidade: o exército SS não dispõe de oficiais
experimentados, 49% dos oficiais da Wehrmacht são de famílias onde se é
militar por tradição de pais passada aos filhos. A VT só dispõe de 5% de
oficiais com essas características. Apenas 2% de oficiais da Wehrmacht
provêm de famílias do campo. Na VT, 90% dos oficiais têm essa origem. A
VT não conseguirá nunca entusiasmar os citadinos e os burgueses; será
sempre um exército de agricultores e operários. Em certas regiões da
Alemanha, um em cada três jovens agricultores alistar-se-á na VT e mais
tarde na Waffen-SS.
A ausência de uma tradição militar sólida leva ao culto hitleriano. Os homens
da VT creem ser o único exército nacional-socialista; para eles, a Wehrmacht
é reacionária. Enquanto isso, os oficiais da Wehrmacht recusam-se a
considerá-los um corpo militar e dificultam seu desenvolvimento, temendo a
concorrência.
Fritsch e os generais fazem pressão sobre Hitler que, não querendo desagradá-
los, nega à VT um status militar. Ela não dispõe de artilharia, não pode
recrutar por anúncios em jornais e suas unidades podem ser inspecionadas
pela Wehrmacht. É uma triste situação para a tropa que pretende ser o núcleo
e a elite da defesa do regime nacional-socialista.
Mas eis que surge uma crise na Wehrmacht, a qual libertará a VT de
condicionamentos tão estreitos. Em fevereiro de 1938, os mais temíveis
adversários da VT, von Fritsch e von Blomberg, abandonam a cena política.
Hitler assume pessoalmente o comando da Wehrmacht. Seis meses mais tarde,
a VT não precisará temer por seu futuro. Em 17 de agosto de 1938, um
decreto do Führer oficializa o nascimento da Waffen-SS, sob a direção de
Himmler e com funções de manutenção da ordem interna. Em tempo de
guerra, ela poderá ser utilizada no quadro geral das operações militares. O
Brigadeführer Leo Petri dirá triunfante: ‘‘A Wehrmacht compreendeu que não
adianta querer resistir às forças novas exigidas pelo III Reich.”
Curioso é que os chefes da VT, desde o início, evitam mencionar o decreto do
Führer, que magoa sua consciência militar: “A Verfügunsgstruppe SS não faz
parte nem do exército nem da polícia. É uma formação armada à minha
inteira disposição. Como organização do NSDAP, está submetida inteiramente
às diretivas dadas por mim ao Partido e à SS.”
Entretanto, os militares de carreira da VT querem ser apenas soldados, apesar
de discordâncias entre Steiner e Hausser e a Wehrmacht, no plano estratégico
e de técnica militar. Para eles, não faz sentido um homem como Petri, que fala
de “triunfo do exército do Partido”; nada lhes parece mais absurdo do que as
concepções filosóficas de Himmler, que considera a VT como um dos elos
desta cadeia de aço destinada à segurança do Estado.
Essa posição dos chefes militares VT já é percebida em um discurso de
Hausser, pronunciado em 23 de janeiro de 1939, onde, reconhecendo que a
VT pertence à SS, assinala a necessidade da subordinação ao alto-comando
militar alemão (OBH): “A VT é a única formação da SS que, além de ser
submetida ao Reichsführer SS, depende das decisões de uma autoridade
estranha à SS, ou seja, do OBH.”
Aí começa a ser cavado o abismo que no correr dos anos separará os oficiais
de proa da Waffen-SS da mística Ordem Negra de Himmler. É com
desconfiança que Himmler verá a Waffen-SS adotar o uniforme cinza do
exército. Quando seus oficiais quiserem, também, adotar as patentes usadas
na Wehrmacht, o Reichsführer oporá seu veto. O Gruppenführer SS
Heyssmeyer lembrará aos militares SS que “a VT não sabe o que são
batalhões ou companhias, mas unicamente Stürme e Sturmbanne. Os chefes
da VT não são chefes de batalhões ou de companhias, mas Sturmführer e
Sturmbannführer. ”
Himmler desconfia, com razão, que os chefes VT querem afastar-se dele.
Sabe como detestam o papel de pseudo ou parapoliciais que lhe foi reservado
pelo Führer. Não conseguirá impor que os soldados SS façam um estágio
prévio em outras formações SS, para ganhar consciência da Ordem. Nem
conseguirá impor à VT a presença de instrutores da escola SS (SS
Schulungsamt), tendo de confiar aos próprios oficiais superiores da VT a
tarefa de ensinar a seus homens a bíblia nazista.
Precisamente esse ensino evidenciará a distância entre os oficiais VT de
formação militar e os mais jovens, que cresceram na Alemanha parda. Os
oficiais mais jovens querem impregnar na VT a idéia de que são eles os
guardiães do regime, o exército do NSDAP. Seu ensino tende a fazer de cada
soldado um nacional-socialista fanático, incapaz de discutir uma ordem, ainda
que ela contrarie a moral tradicional. Esse ensino é acompanhado de uma
forte propaganda anticristã. Seguindo-os, a VT se transformaria breve em uma
fortaleza do ateísmo nazista. No fim de 1938, 53,6% dos homens da VT
abandonaram a Igreja. Só uma formação SS atinge percentagem mais alta: os
Totenkopfverbände (69%).
Assim doutrinada, a VT poderá provar sua eficiência e justificar sua
existência: em novembro de 1938, em Viena, a VT presta contra os judeus o
serviço mais sórdido que até então havia sido solicitado a uma tropa
uniformizada. Incendiará, a golpes de granada, uma sinagoga, demonstrando
estar perfeitamente à altura do que espera dela o Reichsführer —- servir de
instrumento ideal ao poder totalitário. Mas a guerra tirará da Waffen-SS esta
característica apenas policial, atirando-a no campo de batalha, ao lado da
Wehrmacht.
Em 19 de agosto de 1939, o OKW transmite à VT uma ordem de Hitler no
sentido de que ela se coloque às ordens do alto-comando dos exércitos. A VT
luta na Polônia ao lado da Wehrmacht. A tropa de elite de Steiner destaca-se
especialmente das operações de Mlawa e Modlin. Mas os oficiais VT ainda
não estão satisfeitos. Seus soldados revelam-se pouco aptos para o combate
em nível de divisão e seus chefes não têm formação suficiente para as
técnicas complexas de comando de um exército. É preciso que a VT seja
autorizada a formar uma divisão com apoio de armas pesadas. Mas é
precisamente isso que os atentos generais da Wehrmacht querem evitar.
Cabe ao Oberkommando da Wehrmacht (OKW) fixar os efetivos da VT e ele
os mantêm nos níveis mais baixos possíveis. Caberá ao Brigadeführer SS
Gottlob Berger quebrar essa resistência; por isso ele pode ser considerado o
verdadeiro fundador da Waffen-SS. Paradoxalmente, será tratado pelos
generais da Waffen-SS como um leproso: “Berger? Ele nunca teve nada a ver
com a Waffen-SS!”, dirá Felix Steiner antes de sua morte. E o
Obergruppenführer Bittrich: “Berger? Um delator!”
Essas opiniões devem ser interpretadas como a reação de militares puros
contra um homem que seguia diretivas oficiais e imaginava a Waffen-SS
como a guardiã do regime. Berger foi voluntário na I Guerra Mundial, chefe
de comando e depois tenente, oficial competente e de valor, mas os oficiais
VT nunca admitirão sua maneira indolente de falar e seu papel de bajulador
de Himmler.
Recrutador da SS, Berger tem o mesmo sonho de Himmler: fazer da VT um
verdadeiro exército. Como, depois da campanha da Polônia, a VT enfrenta a
hostilidade da Wehrmacht, Berger apresenta a Himmler um projeto que
poderá permitir à SS passar por cima do exército. Duas unidades SS são
perfeitamente independentes da Wehrmacht: as Totenkopfverbände e a
Ordnungspolizei. Por decreto de Hitler (17 de agosto de 1938), as primeiras
poderão reforçar a VT; por outro decreto (18 de maio de 1939), essas mesmas
unidades poderão recrutar 50.000 homens na Allgemeine SS. Berger diz então
a Himmler que poderá imediatamente duplicar o exército SS e constituir duas
divisões, se Hitler autorizar a transferncia de todas essas unidades (inclusive
as da Orpo) para a VT. Poder-se-ia chegar até a quatro divisões.
Himmler submete o projeto a Hitler, que o aprova. Berger e a VT começam
logo a dar forma a este novo exército que se chamará Waffen-SS.
Apesar da heterogeneidade dos elementos, as divisões Waffen-SS são
rapidamente constituídas. Em fins de setembro de 1939, o Brigadeführer SS e
Major-General da polícia Karl Pfeffer-Wildenbruch assume o comando de
uma divisão SS-polícia. Em 10 de outubro, Hausser começa a fundar uma
divisão batizada de Das Reich, reunindo os regimentos VT Deutschland,
Germânia e Der Führer. A partir de l.° de novembro, o Gruppenführer SS
Eicke forma uma divisão com elementos retirados das Totenkopfverbände.
A VT dispunha de 18.000 homens, à época da campanha da Polônia; Himmler
dispõe agora de 100.000 homens. Continuando sua obra de expansão, Berger
inicia conversações com o alto-comando, conseguindo autorização para
organizar unidades SS de reserva e completar os vazios criados nas tropas de
choque e unidades Orpo pela transferência de parte dessas forças para a
Waffen-SS. A Wehrmacht opõe-se resolutamente e circunscreve com precisão
os limites da Waffen-SS: a Leibstandarte Adolf Hitler, três divisões, as
Totenkopfstandarten, algumas unidades de reserva e as escolas militares. O
próprio Hitler apoia os generais. Para ele, a Waffen-SS continua a ser uma
tropa policial militarizada a serviço do regime.
Praticamente, o maior obstáculo para o expansionismo da SS está no fato de
que o recrutamento de homens tem de ser submetido ao serviço central de
recrutamento do OKW. Como contornar esse problema?, eis o que se pergunta
Berger, que não se deixa vencer pela decisão do Führer. A solução seria
recrutar seus homens em um terreno onde o exército não tivesse nenhum
controle. Esse terreno existe: ele está além das fronteiras alemãs, sobretudo
nos Bálcãs, onde vivem centenas de milhares de Volksdeutschen, cidadãos de
países estrangeiros, mas já seduzidos pelos tambores e pelas vitórias nazistas.
Eles formarão a reserva gigantesca de que necessita a SS, queiram ou não os
generais do OKW.
Na primavera de 1940, apoiado por um homem do seu tipo, Andreas Schmidt,
líder dos alemães da Romênia, Berger consegue, apesar do severo controle
das autoridades do país, passar 1.000 homens para a Alemanha. Encorajado
por isso, e contando com a aprovação de Himmler, Berger volta os olhos para
o Sudeste europeu, onde vivem 1,5 milhão de Volksdeutschen. Com ou sem a
autorização dos governos lotais, milhares de soldados são recrutados pelos
homens itinerantes de Berger.
Oficialmente, trata-se de voluntários. Na realidade, os esbirros de Berger
agem à sua maneira, quando necessário. Berger: “Basta que um grupo seja
razoavelmente bem dirigido, para que se apresente como voluntário. E se não
quiserem apresentar-se, quebra-se tudo em sua casa”. Com o correr do tempo
e o desenvolvimento da guerra, os voluntários serão sobretudo forçados. Em
1943, os Volksdeutschen constituem um quarto das tropas Waffen-SS. No fim
da guerra, 310.000 Volksdeutschen, oriundos dos quatro horizontes da
Europa, servem na Waffen-SS.
Os Volksdeutschen não constituem o único reservatório para a SS. Berger
também apelou para os países considerados “germânicos”. Fascinados pelas
vitórias de Hitler, convencidos do fim da democracia burguesa, milhares de
jovens consideraram as tropas que desfilavam em Oslo, Bruxelas ou Maia
como os emissários de um mundo novo.
Para muitos jovens noruegueses, belgas ou holandeses, tratava-se de não ficar
ultrapassado. Claro que nem todos são jovens idealistas de olhos azuis, como
se pretendia; muitos querem apenas fazer carreira, reinar um dia sobre
milhões de eslavos. Mas por uma ou outra razão, afluem aos milhares nos
centros de recrutamento de Berger, que se instalaram em meados de 1940 nos
países ocupados. Sem se preocupar com as consequências no plano ideológica
nem com o problema que pode surgir nas relações da SS com Hitler, Berger
pensa apenas em números. Nada o detém. Depois de certo momento, nem
mesmo a origem puramente eslava de alguns de seus soldados. Passando o
tempo, as zonas de ocupação do Leste fornecerão seus contingentes de russos,
ucranianos, letões e até árabes.
Ano após ano, aumentam as listas de recrutamento de Berger: julho de 1940,
100.000 homens; fim de 1941, 220.000 homens; fim de 1942, 330.000
homens; fim de 1943, 540.000 homens; fim de 1944, 910.000 homens.
Gottlob Berger oferece ao alto-comando Waffen-SS uma massa de tropas que
não justificariam apenas funções parapoliciais.
Realmente, a Waffen-SS começará a distinguir-se em operações militares ao
lado da Wehrmacht. No front Oeste, terá oportunidade de demonstrar sua
capacidade; animados por um furor que os distingue das tropas tradicionais,
os atletas da SS atravessam a Holanda, a Bélgica e a França, à frente da
Wehrmacht. Adolf Hitler não deixa de referir-se, em discurso pronunciado em
19 de julho de 1940, à “disposição magnífica das corajosas divisões e
Standarten da Waffen-SS”. Os louvores do ditador, as vitórias, a inveja e as
restrições dos generais, tudo isso contribuirá para fortalecer o espírito de
corpo, a arrogância e o desprezo dos homens de Himmler pelo soldado
comum da Wehrmacht. É uma mentalidade comparável à dos Leathernecks
americanos e dos “paras” franceses.
Na primavera de 1941, o alto-comando Waffen-SS dispõe de quatro divisões e
uma brigada. A guerra estende-se a Leste e as formações SS entram em ação
nos Bálcãs, sempre se distinguindo pela velocidade e poder de penetração. A
Leibstandarte opera na Sérvia do Sul, força seu caminho para a Albânia,
atravessa a Tessália e abre as portas do Peloponeso. A divisão SS Das Reich,
por seu lado, bate-se no centro da Sérvia e toma Belgrado em um golpe de
mão.
Quando as unidades SS pensam em descansar, Hitler decide invadir a União
Soviética. Os 160.000 homens de seu exército são distribuídos ao longo das
fronteiras dos territórios ocupados, prontos para se atirarem à aventura que
destruirá o III Reich. A Leibstandarte e a divisão Viking tomam lugar entre as
forças do exército Sul, a divisão Das Reich, no Centro, enquanto as forças de
polícia ficam ao Norte.
Himmler aproveita a oportunidade para impor uma concepção da Waffen-SS
que abre uma brecha nas diretivas do exército. À frente de quatro divisões, às
vésperas da campanha da Rússia, o Reichsführer sente-se forte, e incorpora
179 unidades da SS à Waffen-SS. Uma sombra em tudo isso: os campos de
concentração e o fato de suas tropas de vigilância fazerem parte das novas
unidades Waffen-SS. A reputação dos soldados “puros” do exército SS ficará
manchada com a presença de carrascos…
Mas nem os oficiais nem os soldados do Himmler têm tempo para pensar
nesse tipo de problema. As divisões SS já estão na Rússia e com poderosos
ataques abrem o caminho para as tropas alemãs. A Leibstandarte atravessa o
Dnieper, cruza as linhas de defesa soviéticas em Perekop e toma Taganrog e
Rostov. A divisão Viking empurra os soviéticos até n mar de Azov, enquanto
a divisão Das Reich rompe a defesa russa ao Sul de Borodino e toma posição
a poucos quilômetros de Moscou. Quando, no fim de 1941, os russos passam
ao contra-ataque, as divisões SS enfrentarão seus inimigos com vigor,
ganhando a reputação de ser a armadura da Wehrmacht.
O próprio Theodor Eicke, dominado pelos acontecimentos, verga-se à
disciplina militar. Ele, que não sabia ler um mapa de estado-maior, tranca-se e
estuda discretamente a arte e a maneira de dirigir seus homens. Quando, em 8
de fevereiro de 1942, as tropas soviéticas cercam seis divisões alemães a
Sudeste de Umensee, Eicke mostra-se um adversário duro e astucioso:
“Devemos em grande parte a Eicke termos podido resistir durante meses ao
assalto dos soviéticos”, reconhece o Generalfeldmarschall Busch. Em toda
parte onde luta, a SS vê o seu valor reconhecido por oficiais alemães e até por
alguns militares soviéticos. O Major-General Artemenko, comandante do 27.°
corpo do exército soviético, declarará, depois de ter sido feito prisioneiro no
outono de 1941, que “a divisão Viking não permitiu que as tropas russas
respirassem, e os generais russos sentiram-se aliviados quando ela foi
substituída por unidades da Wehrmacht.”
Mas em seu conjunto, observam-se também sinais de inveja na reação dos
generais ao verem a SS acumular vitórias sobre vitórias. Himmler e os oficiais
da Waffen-SS chegam a acreditar que os oficias da Wehrmacht decidiram
precipitar a sua perda, enviando as tropas SS sempre para os piores lugares do
front. “A SS”, diz Eicke, “vai sair desta guerra tão fraca que nunca mais
poderá manter-se sozinha de pé.” E Himmler diz ter percebido “a intenção
não confessada de enviarem nossas tropas para o matadouro, para assim
livrarem-se delas de uma vez por todas”.
Não é apenas o ciúme que explica a atitude do exército. Os militares têm
consciência de que ao seu lado estão homens possessos, cujo furor assassino
se abate sobre o inimigo, mas também sobre prisioneiros indefesos ou sobre a
inofensiva população civil. Contra todos, a Wehrmacht quer respeitar as
regras morais e tradicionais desprezadas pela SS; e por muito pouco, a
coragem das tropas SS transforma-se em carnificina de populações civis.
A Waffen-SS não tem a exclusividade nesse procedimento. As diretivas
oficiais soviéticas estipulam que o exército não deve fazer prisioneiros.
Numerosos documentos militares russos atestam a liquidação de soldados
alemães desarmados. Essas liquidações tomam tal amplitude que o chefe do
estado-maior do exército soviético de Sebastopol intervém, pela ordem n.º
0068, de 2 de dezembro de 1941, determinando que acabem com “essas
execuções sumárias que, pelo terror que inspiram, impossibilitam qualquer
deserção nas fileiras inimigas.”
As práticas soviéticas atingem tanto a Wehrmacht quanto a SS. Entretanto, as
reações são bem diferentes: as represálias brutais e irracionais são
exclusividade do exército de Himmler.
Para o barbarismo da SS contribui a presença, em suas tropas, de algumas
unidades fanatizadas por idéias políticas, inclusive os antigos guardas dos
campos de concentração. Frequentemente, crimes monstruosos mancham a
ação militar dessas tropas: duas semanas depois do início da campanha da
Rússia, os soldados da divisão Viking matam 600 judeus da Galícia, como
represália contra algumas ações soviéticas. No verão de 1943, soldados da
divisão Prinz-Eugen matam todos os habitantes de uma vila de Kosutica, na
Sérvia: motivo: guerrilheiros teriam atirado nas tropas da torre da igreja. Na
primavera de 1944, a divisão SS-Polícia aniquila o vilarejo grego de Klissura,
depois de uma fuzilaria dirigida contra uma unidade SS. Em junho de 1944,
Oradour-sur-Glane é destruída depois de ter havido um tiroteio. Dois meses
mais tarde, a Panzerdivision SS Hitlerjugend destaca-se na Normandia pela
execução de 64 prisioneiros ingleses e canadenses. Em certas regiões da
Ucrânia, eles se comportam de tal forma que alguns ucranianos com
tendência pró-alemães abandonam suas cidades ao se aproximarem as
unidades SS e alistam-se no exército soviético. A direção-geral da Wehrmacht
(Allgemeine Wehrmachtamt), dependente do OKW, assinala que “os roubos,
excessos corporais, violações de mulheres e jovens espalham o terror pela
população ucraniana.”
À medida que se desenvolve a guerra, aumentam os crimes dos soldados da
Waffen-SS, que recebe em seu seio, cada vez mais, homens de todos os
horizontes — mesmo os mais obscuros —, causando a degradação dessa
tropa, desde o início disposta a um combate impiedoso. Mas as vitórias da
Waffen-SS, mesmo quando a guerra já era desfavorável à Alemanha, fazem
com que Hitler jogue nesses homens as suas últimas cartas. Até o final, ele
acreditará na vitória, dando à Waffen-SS as armas de que ela necessita.
Na primavera de 1942, Hitler autoriza a formação de uma nova divisão SS,
que se chamará Prinz-Eugen. Pouco depois a brigada de cavalaria desenvolve-
se para tornar-se a divisão Florian Geyer. A partir do outono de 1942, Hitler
solta completamente os freios da Waffen-SS. Uma após outra, assiste-se ao
nascimento das divisões Hohenstaufen, Frundsberg, Nordland, Hitlerjugend.
Rompe-se o controle da Wehrmacht. Até agora o exército cuidara de receber
com prioridade as melhores armas. Mas Hitler inverte: de armas ligeiras a
carros de combate, a Waffen-SS passará a ser equipada antes da Wehrmacht.
As divisões LAH (Leibstandarte Adolf Hitler), Das Reich e Totenkopf
tornam-se unidades de cavalaria, sob o comando de Paul Hausser. Em março
de 1943, o Obergruppenführer Hausser, à frente de suas formações, enfrenta
vitoriosamente a ofensiva geral dos soviéticos em Kharkov, e toma a frente da
contraofensiva alemã no Sul da Rússia, no verão de 1943.
Um ano mais tarde, as divisões SS serão os sustentáculos do front alemão
oriental. Por duas vezes, as formações SS evitam um novo Stalingrado,
segundo a expressão do historiador americano Stein, quebrando as forças
soviéticas de Tcherkassy e Kamencz-Podolsk.
As vitórias da SS são obtidas à custa de enormes perdas humanas. Steiner,
comandante da divisão Viking: “Disponho apenas de resíduos de tropas”.
Entre 22 de junho e 19 de novembro de 1941, a Waffen-SS perde 1.239
oficiais e 35.377 soldados. A divisão Viking perde, em Tcherkassy, todos os
seus carros, material pesado e a metade de seus homens. Em 1943, a Waffen-
SS perdeu um terço dos efetivos na frente russa.
As perdas humanas são compensadas com a chegada de vagas de recrutas
recém-incorporados, cuja mentalidade não poderia ser igual à dos veteranos
da Waffen-SS. Muitas vezes apanhados à força, os novos soldados não têm a
fé simplista de seus antecessores e nem o seu ardor no combate. Diz a
Direção-Geral da SS, na primavera de 1943: “Mentalidade ruim. Há
influência da família, da Igreja etc. Não há voluntários”. Essa constatação é a
síntese dos relatórios enviados pelos centros de recrutamento a Gottlob
Berger. Todos referem-se à “inércia” ou à “resistência passiva” dos jovens
alemães. Centro de recrutamento SS Ostsee II: “Os pais proíbem que seus
filhos se alistem na Waffen-SS.” Hamburgo: “As famílias são hostis à
Waffen-SS”. Viena: “Um recruta declarou que não pode entrar na SS, porque
ela é uma organização sacrílega”. Hannover: “Disse-nos um jovem: “Nós não
queríamos a guerra. Sofríamos antes e continuamos a sofrer. Que outros
continuem a guerra”. Transmitindo tudo isso a Himmler, diz Berger: “E esses
casos não são excepcionais, Reichsführer!”
A esperteza, a ameaça, os golpes, todos os métodos são adotados pelos
recrutadores, a fim de forçar jovens alemães a “voluntariamente” alistarem-se
na SS; e assim vão-se conseguindo preencher claros. Mas os oficiais sempre
reclamam estar recebendo homens insuficientemente preparados; e os
relatórios chovem sobre a mesa de Hitler; há oficiais que reclamam estar
recebendo soldados que nem sequer falam o alemão.
Mas na realidade os oficiais têm de estar contentes com os 200.000 europeus
não-alemães que transformam a SS em um verdadeiro exército internacional,
trazendo-lhe nova vitalidade, da qual ela muito necessitava. A guerra e sua
dura realidade irão fazer com que esse entusiasmo também desapareça. Os
não-alemães lutam ao lado de homens formados no espírito hitlerista, que
jamais aprenderam o que significa a palavra tolerância; e não a têm com uma
mentalidade e convicções diferentes das suas. Surge alguma oposição contra
os métodos de instrução militar entre os regimentos flamengos, noruegueses e
holandeses. O próprio Hitler reclama a “falta de habilidade” de seus chefes
para com os “alemães estrangeiros”. Desde o início de 1943, numerosos
voluntários estrangeiros pedem sua desmobilização.
Começa a desabar o mundo pelo qual se batem os oficiais SS. Vai
desaparecendo aos poucos o laço ideológico que une o exército de Steiner,
Hausser, Bittrich e Dietrich à Schutzstaffel. Abalados em sua fé por Adolf
Hitler, duvidando da vitória, dispondo de tropas heterogêneas, esses chefes e
seus homens são queimados pela guerra e já não sabem mais se fazem parte
da SS. A Waffen-SS vai-se tornando um corpo de livres-combatentes; suas
formações batem-se com suas próprias bandeiras, sob o comando de seus
generais, cuja posição em relação ao Governo é cada vez mais problemática.
Ainda mantêm as fórmulas estereotipadas — Führer, Reich, vitória final —,
mas na realidade a Waffen-SS cada vez mais se torna uma entidade própria,
afastada tanto da SS quanto da Wehrmacht. A pátria desses homens começa a
ser a sua própria tropa, a recordação das vitórias, dos duros combates, dos
camaradas mortos; uma espécie de elo místico une os que passaram pelas
mesmas e terríveis provas. A atitude dos chefes SS a esse respeito é
reveladora; são orgulhosos e rebeldes às ordens como nenhum outro oficial
alemão. Em fevereiro de 1943, Hausser decide, por conta própria, retirar suas
tropas de Kharkov, apesar das ordens do próprio Hitler. Isso salvará a
Panzerdivision de um aniquilamento total e possibilitará uma contraofensiva
que fará a balança pender a favor dos alemães. Hitler cerra os dentes, mas não
haverá sanções contra o general SS.
São inúmeros os casos de desobediência dos generais SS à Wehrmacht, que
nunca conseguirá impor suas ordens. Mas Himmler é o mais atingido pelas
veleidades de independência de seus generais; cada vez mais aumenta a
distância entre eles e os chefes da Waffen-SS. Já em 5 de março de 1942,
escreve Himmler: “O maior perigo reside no fato de que, a exemplo da
Wehrmacht, que usava o pretexto dos imperativos da segurança territorial,
hoje a Waffen-SS tem uma existência autônoma, alegando o pretexto da
guerra”.
O espírito de independência da Waffen-SS aparece em detalhes que irritam
Himmler; várias vezes chamam sua atenção para a atitude mais do que
reservada de chefes da Waffen-SS em relação aos chefes SS de outras
formações; Himmler terá de lutar bastante para impedir que a Waffen-SS use
os graus e patentes à moda da Wehrmacht; muitas vezes, apesar das restrições
que fazem à Wehrmacht, seus generais põem tropas à disposição do OKW,
apesar de ordens formais de Himmler.
Inutilmente, ele apelará para o sentido de disciplina de seus chefes. Pedirá a
Steiner que pare de assinar suas ordens como “General Steiner”, mas acabará
tendo de aceitar que os mais altos chefes SS usem, paralelamente à sua
patente SS, graus e patentes correspondentes aos militares do exército.
O Reichsführer cederá nesses detalhes, mas não abrirá mão em questões
ideológicas. Ordens imperativas ao estado-maior Waffen-SS estipulam que
“cada chefe do exército negro deve estar permanentemente atento para que os
seus homens sejam realmente os guardiães fanáticos e convencidos da
ideologia nacional-socialista, tal como preconizado por nosso Führer Adolf
Hitler”.
Nada interessa menos aos militares de Himmler que esse gênero de
preocupações ideológicas e as ordens que elas motivam. Gottlob Berger
desanima: “Não há nada a fazer. Não se conseguem engolir as ordens e
conselhos de Himmler…” Em certas unidades, os cursos de ideologia
determinados por Himmler simplesmente não se realizam. Alguns chefes são
vaiados pela tropa quando tentam doutriná-la. Um instrutor da 13ª Divisão SS
queixa-se, em 1944, de ter sido “prejudicada a sua tarefa política em virtude
da oposição desses senhores do estado-maior”. Em linguagem mais violenta,
escreve um informante do Reichsfürung SS em 2 de outubro de 1943: “Dá
para vomitar. Vivem nos enchendo com a idéia do espírito SS. O espírito SS?
Nada! O que é ele?”
Quanto mais Himmler lê relatórios desse gênero, mais se queixa da
“ingratidão” de seus generais, que realmente parecem, um após o outro, ir
abandonando a Ordem Negra. Berger diz que o Obergruppenführer Waffen-
SS Phelps tornou-se “estranho” porque se recusa a permitir que nacional-
socialistas não-militares, como o Volksgruppenführer Andreas Schmidt,
assistam a reuniões do estado-maior. Himmler a Höfle: “Senhor Höfle! Que
esta carta lhe sirva de advertência! O senhor está-se mostrando um
subordinado desobediente e inapto para a execução das ordens que lhe são
dadas. Diga-me, pela volta do correio, sem desculpas nem perífrases, sim ou
não, se no futuro o senhor pretende conformar-se às minhas ordens ou se
prefere ouvir as sugestões de seu estado-maior ou dos postos de comando
locais da Wehrmacht.”
O senhor Höfle sobreviverá sem muita dificuldade à crise de cólera do
Himmler. O mesmo se passará com Bittrich, do 2.° corpo de cavalaria SS,
que, demitido por Himmler em consequência de observações críticas que fez,
pura e simplesmente recusa-se a deixar o posto, apoiado pelo General Model,
comandante das forças alemães no Oeste.
O que mais preocupa e irrita o Reichsführer são as críticas severas de seu ex-
favorito, Felix Steiner. Sabendo que havia sido chamado por Steiner de
“romântico ultrapassado”, Himmler explode: “O senhor é o mais
desobediente de meus generais”. Não satisfeito de criticar a estratégia de
Hitler na Rússia, o general prussiano Steiner, na frente de oficiais SS, tem o
hábito de zombar abertamente do “magricela Reichsheini”. Himmler procura
de todas as formas fazer com que seu general volte à razão: envia-lhe
emissários, incita-o à disciplina, lembra os seus deveres, pede o seu
reconhecimento, ameaça-o, elogia-o, mas nada adianta.
Berger resigna-se aos fatos: “Que quer o senhor? Este Steiner é impossível de
ser educado. Ele faz o que quer e não recebe conselhos de ninguém.” Sabendo
que Steiner saúda seus homens dizendo apenas “Heil”, ao invés de “Heil
Hitler!”, como exigem os regulamentos, e sabendo que rejeita abertamente a
idéia do “sub-homem eslavo”, base da política no Leste, Himmler envia
Berger, que deverá observar “se Steiner está sendo leal com seu
Reichsführer”. A preocupação de Himmler é justificada. Nem ele nem Steiner
sabem toda a verdade.
Em junho de 1943, Steiner encontra-se, em um café de Berlim, com um velho
amigo, antigo nacional-socialista, curado de seus primeiros amores: Fritz
Dietlof, conde de Schulenburg, ex-chefe de polícia na Capital. Von der
Schulenburg abre-se com seu amigo: “É preciso que Hitler caia, ou a
Alemanha será reduzida ao caos”. Pensativo, o Obergruppenführer SS deixa o
amigo.
Mais um ano e as cartas serão jogadas. Em 20 de julho de 1944 baterão os
sinos, anunciando a agonia da Waffen-SS e do Reich milenar.

SS e a Oposição Alemã ao Regime

NO PRINCÍPIO de 1943, a direção da Gestapo de Munique envia ao RSHA


um relatório sobre tráfico de divisas. O crime, aparentemente de pouca
importância, atingirá a própria estrutura do Reich.
Na época, os funcionários da alfândega alemã de Praga prendem um homem
chamado David, que leva consigo quatrocentos dólares. David declara que o
dinheiro lhe foi entregue por um oficial dos serviços da segurança militar do
Almirante Canaris: destina-se a facilitar transações em favor de judeus
instalados no território do protetorado alemão.
O inquérito levado a cabo pela Gestapo conduz à pista dos fornecedores de
dólares: trata-se de dois agentes da segurança militar (seção de Munique): o
Capitão Ickrat e o Dr. Wilhelm Schmidhuber. Os dois são presos; e a Gestapo
consegue saber que não são os únicos dedicados a esse tipo de contrabando.
Depois dos interrogatórios, ela vai interessar-se sobretudo pelas atividades do
Conselheiro-Jurídico Hans von Dohnänyi, Sonderführer em exercício na
direção central da segurança militar do Major-General Hans Oster. Em pouco
tempo, os agentes da Gestapo conseguem provar que von Dohnänyi facilita a
emigração dos judeus para a Suíça, dando-lhes dinheiro e documentos de
identidade.
Entrementes, Schmidhuber, submetido a um interrogatório rigoroso, declara
que as suas transações têm algo a ver com o chefe da segurança de Munique,
Josef Müller, que desde muito tempo se vem esforçando para obter uma
intervenção do Vaticano, com o objetivo de conduzir a negociações de paz
entre a Alemanha e os Aliados.
O chefe da Gestapo percebe imediatamente a importância dessas revelações:
pela primeira vez a Gestapo consegue penetrar nesta fortaleza secreta, a
segurança militar, que disputa com o aparelho policial de Heydrich a
soberania neste campo. Nomes como os de Hans Oster, Josef Müller e Hans
von Dohnänyi permitem à Gestapo convencer-se de que a direção OKW
(Ausland/Abwehr) é um ninho de inimigos políticos do regime, os quais, sob
a proteção da Wehrmacht — que está fora dos tentáculos de Heydrich —
tentam por todos os meios provocar a queda do sistema nacional-socialista.
Desde a sua criação, a Reichssicherheitshauptamt enfrenta a hostilidade
declarada e incondicional dos oficiais da segurança militar, que não
concordam com os métodos brutais da Gestapo e sempre se opuseram
resolutamente a uma fusão de seu organismo com o SD.
Decidido a realizar seus objetivos, Heydrich vem acumulando, há muito
tempo, informações sobre as atividades do OKW (Ausland/Abwehr) e sobre a
personalidade dos seus chefes. Em determinado momento, pensa ele, isso lhe
servirá para o golpe fatal contra os seus rivais.
O momento parece ter chegado com o caso de Munique. O chefe da Gestapo,
Müller, resolve enfrentar o problema com toda a prudência necessária: é
preciso dissimular o motivo político que orienta a sua ação, já que a
intervenção da Gestapo só se justificará oficialmente se o inquérito se limitar
a um banal assunto de tráfico de divisas. Müller solicita ao comandante-em-
chefe da Wehrmacht a prisão do Sonderführer von Dohnänyi e encontra um
aliado influente no juiz militar supremo Martin Röder, nazista sempre em
busca dos inimigos do regime.
Em 5 de abril de 1943, Röder, acompanhado do comissário da Gestapo
Sonderegger, apresenta-se a Canaris, exibe um mandado de prisão contra
Dohnänyi e declara ao almirante que dispõe de uma autorização do tribunal
militar do Reich (Reichskriegsgericht) para examinar o escritório de
Dohnänyi . O almirante atende aos desejos de Röder. O escritório é
examinado na presença de Dohnänyi e de Hans Oster. O juiz militar recolhe
uma quantidade de documentos comprometedores sobre as emigrações de
judeus facilitadas por Dohnänyi e várias notas referentes às conversações de
paz, em Roma e em Estocolmo, dos oficiais da segurança militar, em
colaboração com o Pastor Dietrich Bonhoeffer, que há muito tempo figura nas
listas negras da Gestapo.
Enquanto Röder examina esses documentos, Hans Oster aproxima-se
discretamente da mesa de trabalho de Dohnänyi e tenta apossar-se de um
papel. Mas o Comissário Sonderegger o surpreende e Röder toma o
documento. Trata-se de um relatório de Bonhoeffer, solicitando à segurança
que declare inaptos para o serviço militar sete pastores hostis ao regime. A
cena que se desenrola na sala de Dohnänyi é o prelúdio do desmantelamento
dos serviços de segurança militar como organismo independente. Oster, uma
das duas fontes essenciais da oposição — a outra, o Gruppenführer SS Arthur
Nebe —, é forçado a abandonar o OKW. Dohnänyi, Josef Müller e o Pastor
Bonhoeffer são presos.
Em janeiro de 1944, a Gestapo desferirá outro golpe, tão forte quanto o
primeiro, sobre a segurança militar. Importante grupo de oposição, reunido
em torno da viúva de um embaixador, Hanna Solf, é completamente
desmantelado. Vários agentes da segurança são novamente presos, entre os
quais o antigo encarregado de negócios Kiep, o conselheiro militar von
Moltke e o Capitão Gehre. Pouco depois desse novo assalto da Gestapo, a
segurança morre por exaustão. Em vários países, sobretudo na Suíça, na
Suécia, na Argentina e na Turquia, vários colaboradores do OKW
(Ausland/Abwehr) passam-se, segundo as suas opiniões, para o lado do SD ou
dos Aliados.
Informado dessas deserções, Hitler dirige severas críticas aos serviços do
Almirante Canaris que, segundo a sua própria expressão, “fracassaram em
toda a linha”. O Gruppenführer SS Fegelein, representante de Himmler junto
ao Führer, aproveita a oportunidade para sugerir-lhe que “a loja de Canaris”
seja enfim colocada sob as ordens do Reichsführer SS. No fim de fevereiro de
1944, esta decisão é tomada. Himmler recebe ordens de fundir SD e Abwehr
em um corpo único. A Wehrmacht perdeu uma importante batalha: a SS
triunfa e arranca do exército todos os poderes em matéria de
contraespionagem militar.
É curioso — embora seja tradicional, como já vimos em outros casos —- que
a Gestapo não consiga, como pretendia Müller, “destruir este ninho de
traidores”. Müller, que pensava obter a direção da Abwehr, ficará desolado.
Não somente não terá o posto, mas, cúmulo do infortúnio, é o Brigadeführer
SS Walther Schellenberg, chefe da Direção VI (Ausland-SD), seu pior
inimigo, que assume a direção da Abwehr, ao lado de Canaris.
Fato não menos curioso: Canaris e Schellenberg são, há muito tempo, amigos.
A lealdade do Brigadeführer SS para com o almirante nunca será desmentida,
mesmo nas horas mais graves. Ele conservará sua estima por Canaris, mesmo
depois do 23 de julho de 1944, quando é encarregado pelo chefe da Gestapo
de prender o almirante, acusado pela Gestapo de cumplicidade no atentado
perpetrado pelo Conde Stauffenberg contra Adolf Hitler.
O Brigadeführer SS considera a tomada da Abwehr pela SS como seu triunfo
pessoal, ou pelo menos como triunfo da sua seção SD/Ausland. Agora ele
poderá realizar seu antigo sonho: criar um superserviço secreto homogêneo,
do qual será o grande senhor. Personagem ambígua, Walther Schellenberg é
considerado a princípio, por seus colegas do RSHA, como uma espécie de
factótum de Reinhard Heydrich. Só depois de algum tempo perceberão que
este homem elegante, culto, de convívio agradável, possui vontade própria e
sabe afirmá-la quando é necessário, mesmo contra o temido chefe do RSHA.
Precisarão também de algum tempo para perceber a extrema habilidade deste
homem, que tem a preocupação de assegurar a retaguarda e consegue, pela
clareza de seus conselhos, a aberta simpatia do Reichsführer SS. Intimamente
ligado aos grandes da Ordem Negra, Walther Schellenberg, o jurista de
Sarrebruck, é suficientemente astuto para não pagar nunca ao Estado
totalitário o tributo que em princípio ele exige de seus servidores.
Em 1940, depois da partida do Dr. Werner Best, Schellenberg vai trabalhar
nos serviços de contraespionagem da Gestapo e entra imediatamente em
conflito com seu chefe Müller, cujos métodos e ausência de escrúpulos lhe
repugnam. Não é sem alívio que, em 1942 — quando o conflito com Müller
se fez particularmente agudo —, Schellenberg é chamado a suceder Heinz
Jost na direção da seção AD/Ausland.
Como chefe dessa seção, Himmler confia-lhe, no início de 1944, a
responsabilidade de efetivar a fusão SD-Abwehr, que o Führer acaba de
decidir. Schellenberg dedica-se a isso desde a primavera de 1944, procedendo
com prudência e habilidade extremas. Não exibe sua vitória perante a
Abwehr, e integra a quase totalidade da equipe de Canaris no RSHA. O
próprio Canaris, por intervenção pessoal de Schellenberg, assume a direção da
seção especial OKW “guerra econômica”. Na época, não há um só chefe SS
capaz de adivinhar as razões profundas que motivam o novo chefe da
Abwehr/SD a tornar tantos cuidados em relação à equipe da antiga Abwehr
militar. Pouco a pouco descobrirão a estranha verdade: a posição real de
Schellenberg é em todos os pontos análoga à dos descontentes da Abwehr.
Nem Schellenberg nem a Abwehr acreditavam em uma vitória final do Reich
sobre os Aliados. A Abwehr e Schellenberg estavam dispostos a afastar Hitler
do poder, a fim de evitar o pior.
As análises pessimistas da Abwehr/SD sobre a situação da Alemanha em
guerra repetem, em seu espirito e estilo, os relatórios da antiga Abwehr
militar. Como Canaris, Schellenberg queixa-se de não ser lido nem escutado.
Em meados de 1944, suas Meldungen aus dem Reich, redigidas para os
senhores do Reich, são pura e simplesmente proibidas.
A atitude muito equívoca do SD para com a política do Reich e seu Führer é
sintomática. Através dela, certas reticências são esclarecidas a respeito de um
Reich que não corresponde, afinal de contas, à imagem que se faz dele. Os
tecnocratas do SD queriam emprestar seu concurso “objetivo” ao Estado
totalitário, ao estabelecimento da ordem perfeita sob a direção de um ditador.
Ora, a luta dos partidos que caracterizava a democracia que eles detestam não
cedeu lugar à vontade única de Hitler, mas a uma guerra de competência entre
uma multidão de pequenos potentados nazistas.
Além disso, o próprio ditador não é o político realista, frio, analista, que os
intelectuais do SD haviam imaginado, mas, pelo contrário, revela-se um
conquistador brutal, ansioso por poder, inspirado por um nacionalismo de
ordem biológica que nada tem de científico, atacado por verdadeiro delírio
colonialista fundado sobre o mito do super-homem germânico.
As relações entre o SD e o Führer tornam-se imperceptivelmente mais difíceis
a partir do momento em que o ditador realiza na Tchecoslováquia a primeira
anexação de um povo estrangeiro à “Grande Alemanha”. O Standartenführer
SS Reinhard Höhn lembrar-se-á sempre da reação de Werner Best aos
acontecimentos: “Camarada Höhn”, disse-lhe Best em março de 1939,
durante um passeio a cavalo no Jardim das Plantas de Berlim, “isto equivale
ao nosso fim… Irrompendo em Praga, o nacional-socialismo degradou-se,
passando a ser imperialismo”.
É claro que observações desse gênero, por numerosas que fossem, deixam
apenas vestígios pouco visíveis. Certos “grandes” da Schutzstaffel condenam
o golpe, mas a Ordem inteira marcha com passo cadenciado atrás de Hitler.
Nem as conquistas sucessivas nem o genocídio alterarão seu comportamento.
Mas essas observações deixam entrever que a direção da SS — inclusive
Himmler — está longe de partilhar a crença cega do Führer na vitória final.
Os chefes da Ordem Negra, e sobretudo os intelectuais do SD, percebem que
a sede grosseira de poder de Adolf Hitler e os métodos brutais que ele procura
aplicar para estender as fronteiras de seu império não são viáveis. Não podem
deixar de constatar que a política simplista de “senhor e escravo”,
preconizada pelo apóstolo do “espaço vital”, é simplesmente um
contrassenso.
As palavras de ordem de Hitler referentes à política de ocupação na Rússia
valem agora para o conjunto da Europa. Essencialmente, segundo Hitler,
“trata-se de dividir em fatias este belo gigantesco, submetê-lo, administrá-lo
e, enfim, explorá-lo”. Na ótica de Hitler não há a possibilidade de meias
medidas. A Europa deve ser reduzida a pedaços sob a bota alemã e depois
reconstruída sob a autoridade exclusiva da Alemanha.
Se a ótica dos chefes da SS é semelhante à do Führer, do ponto de vista moral,
tem pelo menos a vantagem de ser mais realista e por isso mais inteligente. Os
chefes da Ordem Negra não acreditam na superioridade exclusiva da força;
preferem a ducha escocesa. Impõem sua lei com a brutalidade necessária e em
seguida fazem concessões que suscitarão uma certa colaboração entre
ocupantes e ocupados. Como observou Werner Best, “é preciso
reconhecermos a evidência de que não conseguiremos impor eternamente
uma lei a homens que não a querem”.
Heydrich será o primeiro a experimentar na prática a teoria da SS em matéria
de política de ocupação. Nomeado, em 1941, chefe do protetorado alemão na
Tchecoslováquia, o grande senhor do SD e do RSHA inaugura sua
administração com uma onda de terror, em consequência da qual passará a ser
conhecido como o “açougueiro de Praga”.
Organiza o primeiro processo público nacional-socialista e em poucas horas
obtém a condenação do premier tcheco Alois Elias, enquanto os comandos da
Gestapo aniquilam os focos da resistência tcheca e procedem a milhares de
prisões.
Em duas semanas, a sorte da resistência tcheca está decidida. Atingido o
objetivo, Heydrich dissolve os tribunais de exceção que havia criado pouco
antes. O carniceiro disfarça-se, então, em benfeitor: anuncia oficialmente o
fim do terror e passa a cortejar os operários e agricultores tchecos, contra a
inteligência burguesa, que considera um foco latente de resistência.
Tendo como principal missão fazer aumentar o rendimento econômico do
protetorado, Heydrich, ao invés de usar ameaças, aumenta as rações
alimentares de dois milhões de operários tchecos, coloca 200.000 pares de
calçado à disposição dos trabalhadores das indústrias de armamentos e
requisita para eles os melhores hotéis da Boêmia e da Morávia, assegurando-
lhes férias confortáveis. A previdência social tcheca é reorganizada, com
vantagens para operários e agricultores.
A relativa tranquilidade conseguida por Heydrich na Tchecoslováquia, a
aparente submissão do povo ao jugo alemão dificultam os assuntos do
Governo Benes no exílio em Londres. A passividade dos tchecos em relação
ao ocupante alemão compromete as negociações em curso com os Aliados e
põe em jogo a própria existência do Governo do exílio, que, para sobreviver,
precisa apoiar-se em uma resistência ativa,
Essa resistência não existirá enquanto os alemães continuarem a aplicar na
Tchecoslováquia a política de ocupação suave de Reinhard Heydrich.
Consequência lógica: é preciso suprimir Heydrich e suscitar assim uma onda
de represália tão brutal quanto possível, a fim de agitar novamente a
resistência tcheca.
Em 27 de maio de 1942, no subúrbio de Holesovice, em Praga, dois homens
escolhidos pelo Governo Benes para assassinar Heydrich, os suboficiais Jan
Kubis e Josef Gabcik atiram contra o automóvel do senhor do SD. Heydrich é
ferido e morre em 4 de junho de 1942.
Londres atingiu seus objetivos. Uma das mais severas ondas de terrorismo do
III Reich abate-se sobre a Boêmia e a Morávia. 10.000 tchecos são presos,
1.300 dos quais fuzilados sem qualquer forma de processo. Dessas represálias
nascerá um grande movimento de resistência tcheco, que não fará mais
qualquer concessão ao ocupante alemão.
Entretanto, a política de ocupação praticada pelo falecido Heydrich encontra
um adepto ainda mais refinado na pessoa do Gruppenführer SS e co-fundador
da Gestapo, Werner Best, diretor de Gabinete no Ministério de Assuntos
Estrangeiros, desde agosto de 1942.
No fim de 1942, surge uma grave crise entre a Dinamarca e o Reich. Ocupada
pela Alemanha, a Dinamarca conservou suas instituições próprias, mas Hitler,
querendo acabar com esse estado de coisas, rompe relações com a família real
dinamarquesa e chama seu encarregado de negócios em Copenhague, assim
como o comandante das tropas alemãs na Dinamarca. O plano de Hitler é
simples: enviar à Dinamarca um novo encarregado de negócios, um pouco
menos colaborador que o antigo chefe do posto. Forçará a retirada do
Governo dinamarquês e a formação de um novo Governo, do qual farão parte
os nacional-socialistas.
Nomeado por Joachim von Ribbentrop para executar o programa de Hitler,
Werner Best percebe, desde sua chegada a Copenhague, que a nova linha
política traçada pelo Führer prejudicará a Alemanha. Nunca o Reichstag
dinamarquês permitirá a nomeação de ministros nazistas. Que fazer? Werner
Best adota, então, uma atitude inédita na história do Reich: ignora pura e
simplesmente a missão de que está investido e entende-se com os políticos
dinamarqueses para eliminar do Gabinete certos ministros suspeitos aos olhos
de Hitler, mas permite o completo afastamento dos nazistas dinamarqueses,
decidido a preservar sobretudo a estabilidade da ocupação alemã e da ordem
pública. Para isso, contraria os Aliados, os resistentes dinamarqueses… e
Hitler.
Berlim não faz muito caso do desprestígio dos membros dinamarqueses do
Partido, mas a clemência de Best para com os resistentes irrita
prodigiosamente o Führer.
Como na Tchecoslováquia, os resistentes dinamarqueses exilados na
Inglaterra tentam acender a fogueira no protetorado de Best, para provocar
represálias alemãs e injetar sangue novo na resistência que se esgota. Mas
Best aproveitou a experiência de Heydrich. Militares e a Sipo dão apenas
golpes prudentes, a fim de evitar que se irrite a população e nasçam
hostilidades abertas e gerais contra os ocupantes.
Entretanto, advertido por relatórios pessimistas que vêm do alto-comando das
tropas alemãs na Dinamarca, Hitler exige de Best medidas severas contra os
resistentes dinamarqueses, e determina que seu encarregado de negócios exija
do Governo a decretação do estado de exceção. Best anuncia imediatamente
que o Governo dinamarquês rejeitará tal ultimatum. Suas previsões são
exatas: em 29 de agosto de 1943, o gabinete ministerial demite-se. O estado
de emergência é decretado pelo alto-comando militar alemão. Duras
represálias são preparadas. Best reduz, na medida do possível, a significação
dos acontecimentos, instituindo tribunais militares a fim de evitar as
execuções sumárias, mas seus esforços para sabotar o contraterrorismo
ordenado por Berlim são percebidos por Adolf Hitler.
Em 5 de julho, Best é convocado pelo Führer: “Esses senhores querem
sempre ser os mais astutos”, diz ele. Best não diz uma palavra. Hitler renova
suas ordens quanto ao contraterrorismo e diz a seu encarregado de negócios
que não lhe cabe praticar uma política pessoal, mas conformar-se com as
ordens que recebe. Best quer falar, mas Hitler não lhe dá tempo, e com a voz
cortante: “Não quero mais ouvir nada!”.
O episódio Best deixa entrever as divergências profundas que existem em
matéria de política de ocupação entre Hitler e a Ordem Negra. Essas
divergências tornam-se particularmente graves quando se trata de ocupação
de países ditos germânicos. Apesar da fraseologia germânica que cultiva com
tanto prazer, Adolf Hitler é o porta-voz de um nacionalismo alemão brutal,
que não quer reconhecer nenhuma espécie de autonomia ou de personalidade
própria aos povos a serem integrados ao grande Reich com o qual ele sonha.
Os chefes SS, ao contrário, acreditam em um Reich germânico baseado em
uma espécie de fraternidade supranacional, onde, evidentemente, a Alemanha
desempenhará o papel diretor.
Essas divergências de opinião entre Hitler e a SS tornam-se mais agudas à
medida que Himmler desenvolve seu programa germânico e assegura sua
posição em matéria de política de ocupação dos países chamados “germânicos
do Norte”.
O apelo lançado pela Ordem Negra a voluntários germânicos não-alemães
para integrar a Waffen-SS e as lutas de competência entre os potentados
nazistas responsáveis pelos setores de ocupação germânicos levam Hitler a
confiar a Himmler a responsabilidade exclusiva de todos os problemas
referentes aos grupos germânicos não-alemães em zonas de ocupação. Uma
Direção de Assuntos Germânicos (Germanische Leitstelle ou GL) é criada por
Himmler e confiada ao médico militar suíço Franz Riedweg, um dos genros
do Generalfeldmarschall Werner von Blomberg, destituído de suas funções
em 1938.
Nas zonas de ocupação, escritórios da GL, emanações da direção do mesmo
nome, recrutam homens para a Waffen-SS, organizam centros de formação,
publicam jornais, tecem uma rede de contatos com os grupos nacional-
socialistas não-alemães e sonham muito alto com o nascimento de um Reich
germânico. Gottlob Berger, chefe da Direção Central SS: “Os voluntários
germânicos da Waffen-SS lançarão um dia, ao lado dos homens da
Schutzstaffel, as bases de um império germânico”. A ata de uma sessão
plenária da SS, em 8 de outubro de 1942, formula mais claramente ainda o
programa da Ordem Negra: “Estamos encarregados de abrir para o Führer o
caminho que lhe permitirá reunir, mais tarde, todos esses povos em um grande
Reich germânico. Os países que formarem parte dele serão integrados a este
Reich, sem ter de renunciar a seus costumes nem às suas civilizações
específicas.
Entretanto, as ilusões imperialistas da SS vão de encontro aos instintos
nacionalistas muito primários do ditador.
Apesar das repetidas intervenções do Reichsführer SS, Hitler mantém-se
obstinadamente calado quando chega o momento de dizer qual o lugar que
caberá a esses povos no seio de seu “império germânico da nação alemã”, e
nada diz de preciso sobre o grau de soberania nacional que lhes será
concedido. Esta atitude do Führer freia consideravelmente a SS no plano
prático. O recrutamento de voluntários não-alemães na Waffen-SS é o que
mais sofre. Pretendendo não comprometer o futuro do “grande Reich
germânico”, certos chefes SS chegam a fazer, a título pessoal, promessas
políticas às populações estrangeiras por eles administradas. O
Obergruppenführer HSSPF Jeckeln declara, no verão de 1942, aos oficiais
letões, que “o povo letão terá seu lugar ao sol no seio de um grande Reich
germânico: desde agora”, diz ele, “os letões podem ser considerados
autônomos: terminada a guerra, poderão gozar essa autonomia e felicitar-se
por pertencer ao Reich, graças ao qual sua cultura e sua economia
renascerão”.
Reação indignada do Ministério encarregado dos Assuntos Orientais, em 14
de agosto de 1942: “Não está entre as atribuições dos oficiais superiores SS
de polícia, representando o Reichsführer SS, prever a evolução política dos
países ocupados em geral e da Letônia em particular”.
Jeckeln está longe de ser o único chefe SS a perceber como é necessário
precisar, de uma ou outra maneira, as ordens vagas e genéricas do Führer, se
não se quiser perder terreno nos países ocupados. O Gruppenführer SS Otto
Gustav Wachter, governador da Galícia, pretende tratar com cuidado os
poloneses, apesar das ordens para que sejam expropriados e expulsos, a fim
de ceder lugar aos colonos alemães. Seu camarada Kurt von Gottber,
comissário-geral da Rutênia branca, trabalha ativamente para dar forma a uma
administração russa, apesar dos sermões de Hitler, segundo o qual a mínima
parcela de autonomia concedida aos estrangeiros equivale a um retrocesso da
soberania alemã.
O Báltico, a Galícia, a Rutênia branca serão o teatro do último grande drama
do III Reich. Esse drama — a guerra contra a União Soviética — provocará o
rompimento de vários elos entre a SS e Adolf Hitler e suscitará verdadeiras
revoltas de atitude de vários chefes SS em relação ao Führer.
No princípio, as concepções russas de Hitler e as da SS são absolutamente
idênticas. Devem-se atirar sobre esse “bolo gigantesco”, dizimar as
populações do Leste e colonizar com alemães o terreno assim limpo. É a
época em que os propagandistas da SS não param de difamar os eslavos,
“sub-homens incultos ou insetos nocivos”. Uma brochura da Direção SS de
Berger, intitulada O Sub-homem, explica a todos por que o eslavo não é
sequer um homem. “O sub-homem, este ser aparentemente idêntico ao
homem, pois possui mãos, pés, uma espécie de cérebro, olhos, uma boca, é na
realidade completamente diferente: é um monstro imundo, um esboço de
homem, que apresenta os traços de um homem, mas, na realidade, é menos
evoluído no plano espiritual do que o animal. Este ser não é senão um caos de
paixões irrepresáveis e selvagens: vontade de destruir, desejos elementares e
primitivos, vulgaridade inominável”.
Tomada ao pé da letra, esta propaganda conduz no plano prático ao genocídio.
A SS entrega-se a ele sem freios: fuzilamentos de prisioneiros de guerra
russos, assassinatos de populações civis; os espiões e comando do RSHA
fazem fracassar todos os esforços da Wehrmacht, que aqui ou ali procura
instituir uma administração autóctone. Assim, os comandos negros derrubam
o Governo Nacional ucraniano que a Wehrmacht havia apoiado e prendem
todos os seus chefes. A Sipo destrói, na Rússia Branca, um grupo
nacionalista, através do qual o gauleiter Kube pretendia edificar uma
administração local. Enfim — e o fato não é negligenciável —, a Direção
Central da SS rejeita todos os oferecimentos dos generais russos que, feitos
prisioneiros, se propõem a lutar contra Stalin.
Mas essa doutrina do “sub-homem” russo, por mais trabalhada que tenha sido
na SS, não resiste à prova da verdade que é a guerra e uma confrontação
cotidiana com o país e seus habitantes. Já em agosto de 1942, o SD afirma nas
Meldungen aus dem Reich que “os alemães têm a impressão de ter sido
vítimas de uma ilusão. A qualidade técnica das armas e do material de guerra
russos, os formidáveis projetos e as realizações industriais soviéticas
contradizem imediatamente a imagem que se fazia desse país. Como — esse é
o problema que nos colocamos — o bolchevismo pôde realizar tudo isto?”
Os chefes da Waffen-SS são os primeiros a atirar-se abertamente contra a
ideologia e a política eslavas do Führer. Felix Steiner, comandante da divisão
Viking, Gunther d’Alquen e outros chefes Waffen-SS criticam o dogma do
sub- homem russo e preconizam uma aliança com povos como os ucranianos,
aos quais convém conceder governo próprio, sem o que a guerra estaria
perdida por antecipação. Himmler contém os seus chefes, temendo contrariar
o Führer bem-amado, mas na realidade, diante dos imperativos da política de
ocupação, terá de ceder prudentemente aos seus subordinados.
No princípio de 1943, o Reichsführer SS submete a Hitler um projeto de
autonomia dos países bálticos, que deve ser posto em prática e controlado
pela SS. Em 8 de fevereiro, Hitler, apoiado por Bormann, rejeita o projeto.
Entretanto, pressionados pelo antigo ministro da Guerra letão Rudolf
Bangerski, os voluntários desse país fornecem à Waffen-SS o essencial de
suas tropas. Himmler declara então, para conseguir a aprovação do projeto de
autonomia já rejeitado pelo Führer, que é graças às brigadas bálticas que ele
pode continuar a luta. Em novembro de 1943, Hitler rejeita pela segunda vez
as propostas do Reichsführer.
Para o historiador americano Alexander Dallin, este fato consagra, em matéria
de política de ocupação, a ruptura entre Adolf Hitler e a Ordem Negra. À
medida que o tempo passa, as necessidades de soldados Waffen-SS tornam-se
maiores. O ideólogo do “sub-homem eslavo”, Heinrich Himmler, vira a
casaca, pois os sub-homens provam ser homens e, sobretudo, soldados tão
bons quanto os outros. Os bálticos já foram agraciados pelo super-homem
Himmler. As mais diversas populações serão declaradas germanizáveis e até
germânicas, os ucranianos em primeiro lugar.
Desde a primavera de 1943, o Gruppenführer SS Gustav Wachter começa a
constituir uma divisão de infantaria “Galícia” com os voluntários ucranianos.
No verão do mesmo ano, 100.000 ucranianos apresentam-se como voluntários
à Waffen-SS, o que faz Wachter pedir a Himmler que a divisão passe a
chamar-se oficialmente “Ucrânia”. O Reichsführer tem um movimento de
recuo: isso não equivaleria a pôr água no moinho do nacionalismo ucraniano?
Não seria um rompimento com a política oficial de colonização dos países do
Leste? Ele se opõe ao desejo de Wachter, por medo ao Führer. Pede à própria
divisão que se intitule “Galícia” ao invés de “Ucrânia”. Mas o comando desse
exército será confiado ao general ucraniano Schandruk, o primeiro “sub-
homem eslavo” a vestir uniforme e gozar das prerrogativas de um
Gruppenführer SS.
Depois dos ucranianos, o recrutamento para a Waffen-SS não terá mais
limites. Surge uma brigada comandada pelo aventureiro russo Kaminski.
Depois será a vez de uma divisão SS de russos brancos; em seguida, o
Tenente-General von Pannwitz passa-se para a SS, comandando seus cossacos
enquanto aqui e ali aparecem na Waffen-SS grupos de muçulmanos
soviéticos.
Este formidável afluxo de supostos sub-homens desmoraliza o que restava da
ideologia oficial nazista referente aos eslavos, e incita um grupo de oficiais
SS a levantar novamente a idéia que coincide com as sugestões anteriormente
feitas pela Wehrmacht: a organização de um contra-exército de libertação
russo, cuja base seria fornecida pelo recrutamento nos campos de prisioneiros
russos. O chefe desse exército de liberação é encontrado: trata-se do Tenente-
General Andrei Andreievitch Vlassov, que foi defensor de Moscou no inverno
de 1941 e o comandante-em-chefe da frente de Volchov. Amigo dos mais
eminentes marechais soviéticos, Vlassov, feito prisioneiro pelos alemães na
primavera de 1942, declara-se pronto para assumir o comando de tal exército
contra Stalin. Apoiado por certos oficiais alemães, que agem por sua própria
iniciativa, visita campos de prisioneiros russos e pronuncia alguns discursos.
Vê-se logo que o projeto é perfeitamente realizável: numerosos prisioneiros
russos declaram-se prontos a lutar sob a bandeira de Vlassov.
Submetido a Hitler, o projeto provocará uma crise de cólera e uma torrente de
ironias de sua parte. Hitler, em 8 de junho de 1943: “Eu nunca toleraria que
contribuíssemos para a edificação de um exército russo… Daí a apoiarmos a
edificação de um Estado russo, há apenas um passo. .. Isso é puro delírio…”.
Diante do veto do Führer, os oficiais capitulam. Só um grupo de intelectuais
nazistas entusiastas, sobretudo, alguns responsáveis da Hitlerjugend e
principalmente Melitta Wiedemann, ex-secretária de redação do jornal de
Goebbels, Der Angriff, continuam a trabalhar pelo projeto Vlassov. Melitta
Wiedemann vê apenas uma solução para forçar ou contornar a oposição do
Führer: buscar apoio na SS. Ela dirige a Himmler carta após carta, argumenta,
demonstra-lhe ponto por ponto o absurdo da ideologia do “sub-homem
russo”, convida-o a apoiar uma nova política oriental, fundada na edificação
de governos nacionais nos países ocupados e na criação de um exército de
libertação nacional russo, pois “só um perigo ameaça a Alemanha: a recusa
obstinada de reconhecermos, enfim, as verdadeiras causas dos novos aspectos
desvantajosos que está tomando a guerra”.
Apesar das repetidas tentativas dessa Cassandra moderna e da excelência de
seus argumentos, Himmler recusa-se a colaborar para seus objetivos: teme
demais as cóleras de seu mestre e senhor Adolf Hitler.
O projeto Vlassov não teria futuro na SS, se o Standartenführer SS Gunther
d’Alquen não se preocupasse com ele. Em setembro de 1943, por ocasião de
uma viagem em companhia de d’Alquen, o Reichsführer SS mostra-lhe uma
brochura de propaganda oficial sobre “o sub-homem russo”. D’Alquen:
aproveita-se para atacar de frente o seu chefe. D’Alquen: “Esta brochura é
uma aberração… Creia-me, se nossos homens a lerem, farão com toda
simplicidade a seguinte pergunta: Como? Esses homens que nos tornam a
vida tão dura, essa gente que tem melhores tanques do que nós e que, afinal,
não ignoram nada da estratégia, esses são os sub-homens? Se eles são sub-
homens, nós somos pobres super-homens!”
Himmler: “Que tom é esse que estou ouvindo em você?” D’Alquen:
“Reichsführer, este é o tom que os nossos homens usam. Depois de dois anos
de guerra, não podemos continuar a bater-nos contra um adversário que
conhecemos, por tê-lo provado, com esse tipo de teorias”.
Amolado, o Reichsführer corta a conversa. Entretanto, as palavras do seu
subordinado preocupam-no. Alguns dias mais tarde ele o convoca e
encarrega-o de levar a cabo, apoiando-se nos homens do movimento Vlassov,
um assalto psicológico contra o exército vermelho. Mas, que tome cuidado
para não ultrapassar as ordens do Führer: será preciso limitar-se a prometer
aos desertores russos sua incorporação no exército de libertação nacional, que
não existe e não existirá em virtude das ordens do Führer.
D’Alquen põe imediatamente mãos à obra, reservando-se o direito de dar à
tarefa o sentido do desejado. Uma operação de propaganda junto aos
prisioneiros de guerra russos é levada a cabo por ele, com o apoio do
Obergruppenführer Felix Steiner. Essa operação recebe o nome de
Wintermärchen (contos de inverno) e será apenas a primeira de uma longa
série de manobras semelhantes, que permitirão atrair para o campo alemão
vários trânsfugas soviéticos.
A operação Wintermärchen cria uma brecha importante na ideologia do sub-
homem eslavo, que Himmler procura manter contra todos os ventos e marés.
D’Alquen chega a conseguir do Reichsführer que Vlassov seja integrado ao
exército de propaganda russa anti-stalinista. Em outubro de 1943, Himmler
dissera do general russo: “Este jovem carniceiro é um bolchevista dos mais
perigosos”. Um ano mais tarde, muda o tom: dá a Vlassov autorização para
constituir duas divisões SS russas e escreve ao ex-sub-homem: “Faço votos
pelo seu sucesso nesta empresa de interesse para a nossa causa comum”.
Mas a mudança de atitude de Himmler chega tarde. A “causa comum” já está
em seu crepúsculo entre os deuses pardos. O ex-gauleiter Alfred Frauenfeld,
comissário-geral da Criméia, critica duramente a política de ocupação na
Rússia e assim traduz uma opinião geral. Para Frauenfeld, esta política é “a
obra-prima do absurdo”. “Conseguimos, em um ano, transformar em
guerrilheiros decididos a lutar contra nós até as últimas consequências uma
população que, inicialmente, nos considerava libertadores e aclamava nossas
tropas quando passavam …” O gauleiter evidencia as causas da hostilidade
contra a Alemanha, motivo principal do aspecto desvantajoso que toma a
guerra; e não poupa palavras: “brutalidade sem freios, política irracional,
testemunho de uma falta total de bom-senso na maneira de comportar-se com
os povos estrangeiros, cúmulo de cegueira…, tudo provando que esses
homens que se apresentam com ares de senhores não são, no fundo, mais do
que brutos e incréus!”
O relatório Frauenfeld, redigido em março de 1944, é submetido pelo chefe
da chancelaria do Reich Martin Bormann a Heirinch Himmler. Comentário de
Himmler: “Frauenfeld não está sem razão”.
A atitude do Reichsführer é sintomática. Pouco a pouco, evidencia-se o
desânimo nos olhos dos nazistas SS mais convictos: assistem ao amargo
espetáculo de um Estado totalitário incapaz de ceder às leis psicológicas mais
elementares da guerra. O amargo espetáculo de um regime cujos senhores
lutam entre si pelo poder, em uma guerra sem tréguas, enquanto na fronteira
Leste, assim como na fronteira Oeste, a situação se deteriora cada vez mais
para a Alemanha de Adolf Hitler.
À medida que a catástrofe se aproxima, apresenta-se mais cruamente o
problema na Ordem Negra: a SS sobreviverá a Adolf Hitler? Pois a derrota já
está no horizonte. O povo alemão está cansado da guerra. As Meldungen aus
dem Reich são testemunho disso e traduzem o cansaço geral dos alemães,
militares e civis.
Nessas condições, não é surpreendente que os chefes SS sejam levados a
sonhar com a sobrevivência da Ordem Negra, mesmo depois do Führer do
“Grande Reich”, e até na existência de uma Alemanha sem Adolf Hitler.
Entretanto, a SS não assume uma atitude única; podem-se distinguir cinco
grupos diferentes de opiniões: um deles, à volta do Reichskriminaldirektor
Arthur Nebe, que trabalha há anos com a oposição alemã ao regime; os
generais da Waffen-SS que se recusam a suprimir o Führer mas querem tirar
dele todo poder de decisão em matéria de estratégia e pretendem um
armistício com os Aliados; um terceiro grupo de chefes SS em torno de
Walther Schellenberg que deseja, com a aprovação episódica de Himmler,
concluir uma paz antecipada com os Aliados e, se necessário, entregar-lhes
Hitler de mãos atadas; uma maioria de chefes SS, de Werner Best a Otto
Ohlendorf, que se opõe a toda mudança brutal do regime enquanto durar a
guerra, mas pretendem reformas profundas quando ela terminar; afinal, os
fanáticos, decididos a afundar com o navio, e que denunciam violentamente
toda crítica ao regime: as cabeças de proa deste grupo são Ernst
Kaltenbrunner, sucessor de Heydrich, e o chefe da Gestapo, Heinrich Müller.
O nascimento do grupo de oposição em volta de Nebe data de 1938, à época
da crise dos sudetos, que motiva certos generais antinazistas a projetar um
putsch militar destinado a afastar Hitler do poder. Na época, o Regierungrat
Hans Bernd Gisevius introduz seu amigo Nebe em um círculo de oposição, no
qual pertencem o Generaloberst Beck e o oficial dos servidos de
contraespionagem militar Hans Oster. É com hesitarão que o chefe da Kripo,
Nebe, futuro Gruppenführer SS e chefe de direção no seio do RSHA, se liga a
este grupo; criminalista experiente, desconfia das pessoas que considera
diletantes. Será sempre extremamente prudente, participando apenas
incógnito na maior parte das reuniões do grupo, de maneira que nem mesmo o
chefe da oposição ao regime, Karl Goerdeler, desconfiará jamais da
identidade do chefe SS, a quem deve todas as informações vindas do RSHA.
Zeloso com seu próprio futuro, ou por patriotismo, Nebe ficará sempre fiel a
esses conspiradores. Desde 1941, considera o assassinato de Hitler como o
único meio seguro de libertar a Alemanha do regime nazista; e não deixa,
desde então, de incitar os resistentes a atentar contra a vida do Führer.
Paralelamente, Nebe procura atrair outros chefes SS para a sua causa.
Conquistará, em primeiro lugar, seu amigo, o Sturmbannführer Hans Lobbes,
do Reichskriminalpolizeiamt, a quem logo se seguirá o futuro Brigadeführer
SS Paul Kanstein. Chefe dos serviços da Gestapo em Berlim desde 1937,
Kanstein colabora ativamente com os grupos de oposição local, ao lado de
outros altos funcionários do regime, como o prefeito de polícia de Berlim,
von Helldorf, e seu representante, o Conde Fritz Dietlof von der Schulenburg.
Numerosos chefes SS mantêm com o grupo de Berlim relações mais ou
menos estreitas. Entre ele, o Sturmbannführer Hartmut Plass, que mantém os
opositores informados das ações projetadas contra eles pela Gestapo; o
Sturmbannführer Hans Viktor von Salviati, adjunto do Generalfeldmarschall
von Rundstedt; o chefe SS Max Frauendorfer, administrador do Governo-
Geral da Polônia.
O laço que une essas personalidades, e os distingue de outros grupos de
chefes hostis a Hitler, é a revolta contra um regime desumano e assassino, o
protesto moral elevado contra um governo irresponsável. O cronista von
Hassell observa que Frauendorfer lhe confiou “seu infinito desespero diante
do espetáculo diário que lhe oferece a Polônia, espetáculo tão horrível que lhe
é impossível continuar a observar”.
A colaboração discreta com certos chefes da Ordem Negra incita os grupos de
oposição a atrair outros funcionários SS para o seu campo. Quando se decidir
o putsch, não se precisará temer o perigoso aparelho da SS. Canaris já havia
dito que seria importante explicar claramente todo o problema a Himmler e
convencê-lo da idéia de um atentado contra o Führer. Realmente, muitos
oponentes estão convencidos, como Canaris, de que tal atentado não poderia
ter êxito sem o apoio incondicional da Ordem Negra.
No verão de 1943, von der Schulenburg, um dos pilares da conspiração, vai à
Direção Central da SS para sondar o terreno. Dirige-se ao Hauptsturmführer
Riedweg e pergunta- lhe com quais oficiais superiores SS será possível falar
francamente sobre a situação política da Alemanha. Riedweg indica o HSSPF
Hildebrandt e dois generais da Waffen-SS, os Obergruppenführer Hausser e
Steiner.
Von der Schulenburg expõe a Steiner, seu antigo comandante de companhia, a
necessidade de suprimir o Führer, se se quiser evitar a ruína definitiva da
Alemanha. Steiner fica indeciso: o front do Leste quebra por todos os lados,
diz ele. No Oeste, a invasão aliada pode começar a qualquer momento. Nessas
condições, uma mudança de regime não é desejável nem possível, a não ser
que o conjunto da Wehrmacht apoie o putsch, o que é problemático.
É o fracasso das negociações de von der Schulenburg. Um ano mais tarde, os
chefes mais eminentes da Waffen-SS dão sua palavra a Rommel de que
deixarão cair o Führer se o Generalfeldmarschall lhes fizer um sinal. Em
1943, ainda não estavam maduros para o golpe.
As negociações levadas a efeito, neste mesmo ano de 1943, pelo professor de
Ciências Políticas Jens Peter Jessen com seu discípulo e amigo Otto
Ohlendorf, chefe da Direção III do RSHA, têm o mesmo insucesso.
Jessen: “Um regime que ordenou milhões de crimes e que agora sacrifica um
país inteiro à vontade absurda de um só homem tem o direito de continuar a
existir?”
Ohlendorf: “Sim!”
Otto Ohlendorf, defensor dos teósofos, amigo do banqueiro Wilhelm
Ahlmann, que se suicidará quando a Gestapo evidenciar suas estreitas
relações com Stauffenberg, depois do atentado levado a cabo por este último
contra Hitler, traça desde já os planos de uma Alemanha nacional-socialista
nova. Depois da guerra, o NSDAP será depurado de seus elementos suspeitos
e far-se-á dele “o templo da sabedoria”, o brain-trust político de um novo
regime nazista.
Essa é a atitude de Ohlendorf e, por paradoxal que pareça, a futura Alemanha
de Ohlendorf continua a ser a Alemanha do NSDAP e de Adolf Hitler. Quem
duvidar disso, torna-se culpado, aos olhos de Ohlendorf, de crime contra “a
pátria e a comunidade do povo”. Condenado à morte, em sua cela de
Nuremberg, em 1948, mais uma vez se levantará violentamente contra “esses
homens que negam o passado e o juramento prestado ao Führer”. O próprio
Jessen enfrentará sua cólera. Quando o professor cai em mãos da Gestapo,
Ohlendorf nada fará por ele. Não esquecerá a noite em que Jessen foi
executado e ficará fiel ao juramento — não desprovido de um pesado
sentimento de culpa —, mas passará a dividir o soldo entre a sua família e a
do professor.
Os Best, Höhn e consortes reagem como Ohlendorf: não conseguem livrar-se
da influência quase mágica de Hitler e não tomam as medidas capazes de
reduzir as consequências de uma catástrofe que pressentem muito próxima.
Só um chefe SS será suficientemente lúcido para negar os seus primeiros
amores e alterar seus planos, levando em conta, dia após dia, os dados que lhe
são fornecidos por seus amigos ligados a grupos alemães de oposição; e no
dia da catástrofe, estará ao lado certo do muro: é o Brigadeführer Walther
Schellenberg.
Desde 1941, quando assumiu a chefia do Serviço Estrangeiro do SD,
Schellenberg expressou suas dúvidas quanto à vitória final da Alemanha. As
Meldungen aus dem Reich informam dos esforços de guerra aliados.
Schellenberg acredita neles, porque não é homem de alimentar-se com
ilusões. Já no outono de 1941, estuda a possibilidade de assinar com os
Aliados uma paz antecipada, apoiando-se num grupo de antinazistas que
mantém, desde o início da guerra, relações estreitas com os aliados e os países
neutros.
No fim do verão de 1941, o banqueiro americano Stallforth vai secretamente a
Berlim, onde se encontra com seus interlocutores alemães, entre os quais
Ulrich von Hassell, e declara que o Presidente Roosevelt não estenderá a mão
aos alemães, a não ser quando Hitler seja afastado do poder. Os serviços
estrangeiros do SD e seu chefe Walther Schellenberg anotam placidamente as
declarações do emissário americano.
Na época, os exércitos alemães ainda conseguem vitória sobre vitória:
Schellenberg sabe que ainda não chegou o momento de dar a Himmler
conhecimento de seus planos. Em abril de 1942, durante uma viagem à
Espanha e Portugal, Schellenberg explica aos adidos de polícia Winzer
(Madrid) e Schroeder (Lisboa) que os dados serão jogados no próximo verão:
se as tropas alemãs forem vitoriosas na Rússia meridional e no Egito, a guerra
está ganha. Caso contrário, o Reich está definitivamente liquidado.
No verão, as duas operações terminam com uma derrota. Schellenberg entra
em ação junto a Himmler, em abril de 1942. Se acreditarmos em suas
memórias, o Reichsführer SS teria apoiado a idéia de se iniciarem
negociações secretas de paz com os Aliados. Tendo Schellenberg lhe
comunicado as condições prévias exigidas pelos americanos, entre as quais a
eliminação do Ministro de Assuntos Estrangeiros von Ribbentrop — tido por
eles e por Himmler como o principal causador da guerra —, o Reichsführer
teria assegurado que von Ribbentrop seria afastado de seu posto antes do
Natal de 1942.
Embora não tenhamos certeza da forma que tomaram as conversações entre
Schellenberg e Himmler, o certo é que elas existiram e que, a partir do outono
de 1942, o Reichsführer SS, assistido por seu médico Felix Kersten e pelo
Obergruppenführer Karl Wolff, começou a preocupar-se fortemente com a
idéia de concluir uma paz antecipada com as potências ocidentais, o que
implicava na eliminação de Adolf Hitler.
Desde muito, Himmler acariciava a idéia de que poderia ser chamado a trazer
a paz para a Alemanha e para o mundo, em lugar de Hitler, se a guerra
tomasse um aspecto desfavorável para o Reich. Este pensamento o ocupa.
Tenta afastá-lo. Mas periodicamente a idéia volta a dominá-lo. Em maio de
1941, o suíço Burckhardt declara à esposa de Ulrich von Hassell que um
emissário de Himmler veio perguntar-lhe se a Inglaterra aceitaria
eventualmente ignorar Hitler e concluir a paz com o Reichsführer SS. Em
abril de 1942, o Conde Ciano, ministro italiano dos Assuntos Estrangeiros,
anota: “Antes, Himmler era extremista: agora ele consulta o povo e deseja a
paz”.
Hoje parecerá absurdo que o chefe da SS, artesão dos piores crimes cometidos
no século XX, tenha podido um só instante pensar que o mundo aceitaria
tratar com ele. Na época, a perspectiva era diferente: Himmler aparecia aos
seus contemporâneos, na Alemanha e fora dela, como homem suficientemente
poderoso para afastar Hitler do poder: e consequentemente parecia um
negociador de paz perfeitamente possível.
Mas o Reichsführer SS nunca se entregará completamente a seus
pensamentos secretos. Sabe que Hitler sofre as consequências de uma sífilis
contraída há muito tempo e, sem dúvida, escuta complacentemente Kersten
dizer-lhe que o lugar de Hitler é em um hospital psiquiátrico e não à frente da
Alemanha. Mas a sua lealdade patriótico-sentimental prevalece. Himmler a
Kersten: “Como poderia, enquanto for Reichsführer da SS, enquanto for chefe
de uma Ordem cuja divisa é: “Minha honra é minha fidelidade”, atacar o
Führer?”
Schellenberg não compartilha os escrúpulos de seu chefe. Mal Himmler lhe
deu sinal verde, o chefe dos Serviços Estrangeiro do SD inicia uma dupla
operação, tendente a iniciar negociações com os americanos e eliminar
Ribbentrop. A operação Ribbentrop falha, por falta do secretário de Estado
dos Assuntos Estrangeiros, Martin Luther, um dos funcionários mais
corrompidos do regime. Convencido por Schellenberg da idéia de uma
eliminação do ministro de Assuntos Estrangeiros — ao qual ele é ligado por
amizade —, Luther reúne documentos, provando que Ribbentrop contraiu
uma doença mental que o torna inapto a continuar em suas funções. Na pressa
de dar o golpe fatal no ministro, que desconfia dele, com boas razões, por
crimes de prevaricação, Luther inicia muito cedo — e sem consultar a
Schellenberg — sua delação. Ribbentrop retruca, tornando públicas as
desonestas manobras financeiras do secretário de Estado, que é preso pela
Gestapo.
Schellenberg pede a Himmler que aproveite a situação para eliminar
Ribbentrop. Himmler hesita. O chefe do estado-maior pessoal do
Reichsführer, Wolff, impede a tentativa de Schellenberg: “Reichsführer, o
senhor não pode aceitar que o Obergruppenführer SS Joachim von Ribbentrop
seja posto na porta da rua por um tipo como Luther”.
Schellenberg, que já iniciara negociações com os agentes do Governo
americano, fica bastante amolado. A condição prévia imposta pelos Estados
Unidos — eliminação de Ribbentrop — não se realiza. Só há uma solução:
tentar multiplicar, apesar de tudo, os contatos com os americanos.
Homem de confiança de Schellenberg, o Príncipe Max Egon Hohenlohe, que
reside há anos na Espanha, casado com a Marquesa de Belvis de las Navas,
inicia, em princípio de 1943, negociações com um enviado especial de Allen
Dulles. (Hohenlohe, grande proprietário de terras nos Sudetos, havia optado
por Hitler em 1938 e colocado seus valiosos préstimos de diplomata a serviço
do SD. Para Hohenlohe, quanto mais cedo terminasse a guerra, maiores
seriam as possibilidades de conservar seus bens.) Desde o início das
conversações entre o Príncipe e Dulles, torna-se claro que o que interessa aos
americanos é a eliminação de Hitler. Segundo Hohenlohe, Dulles teria
sublinhado que a opinião pública anglo-saxã não compreenderia que se
tratasse com a Alemanha enquanto fosse dirigida pela vontade exclusiva de
Adolf Hitler. Por outro lado, afastado Hitler do poder, poder-se-iam
facilmente abrir as negociações. Não seria, então, um problema de vencedor
ou vencido. A Alemanha continuaria a ser o que é. Não se a dividiria nem lhe
seria retirada a Áustria. Conviria estender para o Leste as fronteiras
polonesas, trabalhar pela formação de uma Romênia e de uma Hungria fortes,
muralhas de proteção contra o expansionismo bolchevista e o pan-eslavismo.
Hohenlohe: “Dulles considerava como garantia da ordem e do progresso na
Europa oriental e central uma confederação dos países do Danúbio apoiada
em uma grande Alemanha federal”.
As negociações Dulles-SD enfrentam a hostilidade aberta da Grã-Bretanha.
Schellenberg pede então a Hohenlohe que consiga o apoio dos países neutros
para a idéia de uma paz concluída com o Reichsführer SS, depois da
eliminação de Hitler; assim poderiam vencer a resistência do Governo inglês.
Os emissários do SD percorrem a Europa e anunciam em toda a parte a queda
iminente de Hitler; em maio e junho de 1943, o banqueiro sueco Jakob
Wallenberg é procurado pelo SD e indagado sobre as possibilidades de
sucesso de negociações de paz inspiradas pela SS. No verão de 1943,
Langbehn, um dos chefes da oposição alemã ao regime nazista, é enviado por
Schellenberg a Estocolmo, onde se encontra com diplomatas soviéticos, não
sem antes haver discutido com um representante dos Estados Unidos e um
outro de Londres. No fim do verão, o mesmo Langbehn conferência em Berna
com Gero von Gaevernitz, colaborador de Dulles. Em outubro, Felix Kersten
encontra-se em Estocolmo com o enviado especial americano Hewitt. Um
esboço de tratado de paz em sete pontos é elaborado pelos dois homens.
Kersten pede a Himmler que se encontre pessoalmente com Hewitt; o
Reichsführer hesita. Quando se decide, em 9 de setembro de 1943, a um
encontro secreto com o negociador americano, Hewitt, impaciente, já havia
partido.
Mas os esforços de Schellenberg não modificam em nada a atitude da Grã-
Bretanha. Em 25 de dezembro de 1943, o embaixador inglês em Moscou
informa a seu colega americano Harriman que o Governo britânico foi
informado, por canais suecos, do desejo expresso por Himmler de enviar seus
emissários à Inglaterra e de ouvir o sentido exato dado pelo Governo da Sua
Majestade à expressão “capitulação sem condições da Alemanha”. Resposta
da Inglaterra: esta expressão só significa uma coisa e não se presta a outras
explicações.
Enquanto as tentativas secretas continuam, coloca-se o problema de saber-se
como a SS se vai livrar de Hitler, para abrir o caminho das negociações
oficiais. Schellenberg está pronto para tudo. Mas Himmler não consegue
decidir-se a favor de um atentado contra a vida do Führer bem-amado. Que
fazer? Wolffchen (apelido dado por Himmler a seu amigo e conselheiro Karl
Wolff) propõe uma solução: deixar os antinazistas libertarem a Alemanha de
Hitler, sem que a SS intervenha; depois, livrar-se-ão dos antinazistas.
Langbehn, membro do Partido, amigo da família Himmler e confidente dos
conspiradores, entra imediatamente em contato com os meios da oposição ao
regime, especialmente com o poderoso grupo de Berlim, que conta em suas
fileiras com homens como Jessen, Hassel, o Generaloberst Beck, o ministro
prussiano das Finanças, Johannes Popitz.
Na época em que Langbehn entra em contato com a oposição sobre a queda
de Hitler — durante o verão de 1943 —, os conspiradores já haviam
elaborado um plano idêntico ao de Wolff. Apenas os termos estão invertidos:
que a SS se livre de Hitler; feito isso, tentarão livrar-se da SS.
Em 26 de agosto de 1943, Johannes Popitz, acompanhado por Langbehn,
inicia negociações com Himmler. Qual é agora a atitude do Reichsführer SS?
Depois do fracasso do putsch contra o Führer, Himmler dirá a quem quiser
ouvi-lo que tivera conhecimento da conspiração e imediatamente relatara tudo
ao seu bem-amado senhor. Hitler lhe teria dado ordens de nada fazer
imediatamente contra os conspiradores, mas de mantê-los em observação.
O que há de verdade? Durante as suas conversações com Popitz, as reações de
Himmler são muito diferentes do que pretenderá transmitir a seus auxiliares
depois do putsch. Com efeito, em 26 de agosto, o Reichsführer SS convida
Popitz para uma segunda entrevista. De seu lado, Wolff conferência, em 27 de
agosto, com Langbehn, e os dois homens elaboram um calendário de
entendimentos com a oposição.
As negociações entre Himmler e os conspiradores são tão positivas que
Langbehn vai à Suíça dar conhecimento ao conselheiro de Dulles, Gero von
Gaevernitz, de que está em marcha uma ação projetada pelo Reichsführer SS,
de comum acordo com a oposição, com a finalidade de afastar Hitler do
poder.
Mas eis que, em setembro de 1943, a Gestapo intercepta uma emissão de
rádio relatando as conversações Langbehn-Gaevernitz na Suíça. Himmler,
tomado de pânico, bate em retirada, encerra todos os contatos com os
conspiradores e manda prender Langbehn.
O fracasso das negociações faz com que Schellenberg, decidido a atingir seus
fins, prepare uma operação para raptar o Führer e entregá-lo aos Aliados. Os
detalhes do plano de Schellenberg são discutidos em Madri. Considerado
irrealizável, o projeto é abandonado em maio de 1944.
Na mesma época, forma-se um terceiro front anti-hitleriano, ao lado do front
de Popitz e do da SS: desta vez são os militares que entram em cena,
impulsionados pelo Generalfeldmarschall Erwin von Rommel.
A batalha da Normandia, travada em 6 de junho de 1944, destrói as últimas
ilusões dos militares da Wehrmacht e da Waffen-SS sobre o resultado da
guerra. Desde princípios de junho, Rommel começa a falar com os generais
Waffen-SS, para convencê-los da idéia de assinar um armistício com os
Aliados, sem levar em consideração a opinião de Hitler. Todos, inclusive
Sepp Dietrich, estão de acordo. Mas a coalizão anti-hitlerista Wehrmacht-
Waffen-SS nunca se realizará: em 17 de julho, Rommel é gravemente ferido
na retaguarda do front alemão da Normandia, durante um ataque aéreo
britânico. A oposição militar perde a sua figura de proa. Três dias mais tarde,
o atentado contra o Führer, levado a cabo pelo chefe do estado-maior junto ao
alto-comando do exército da reserva, Claus Schenck von Stauffenberg, rompe
completamente o front anti-hitlerista Wehrmacht-Waffen-SS suscitado por
Rommel: fora estipulado que Hitler não seria assassinado, mas julgado por
um tribunal alemão.
O atentado no quartel-general do Führer surpreende os generais opositores da
Waffen-SS e a direção política da Ordem Negra. Himmler e Schellenberg
ficam paralisados durante horas antes de passar a uma contraofensiva brutal.
A surpresa provocada pela ação de Stauffenberg no alto-comando SS sempre
foi um enigma para os historiadores: como Himmler e Schellenberg, que há
tanto tempo mantinham contatos estreitos com os grupos antinazistas, não
foram prevenidos desse projeto de atentado? Os que dizem que essa surpresa
foi apenas exterior, que o estupor do Reichsführer e dos chefes dos Serviços
Estrangeiros do SD destinava-se a impressionar ao Führer e ao Partido, não
estão com a razão.
Por mais estranho que isso pareça — o fato surge claramente nos documentos
SS —, nem o Reichsführer nem o RSHA jamais tiveram conhecimento da
existência de um grupo de oposição reunido em torno de Stauffenberg. O
Reichsführer conhecia apenas dois grupos de oposição: o círculo de
funcionários conservadores e de militares aposentados (grupo Beck-
Goerdeler), de um lado, e o círculo de intelectuais cristãos e de políticos
socialistas (grupo de Kreisau), de outro. Ignorava completamente a formação
de um novo grupo de jovens oficiais.
O grupo Stauffenberg, nascido no outono de 1943, age sob a asa protetora da
Wehrmacht, fortaleza à qual a Gestapo não tem acesso. Himmler, que conhece
Stauffenberg desde junho de 1944, considera o Generaloberst um oficial
muito capaz, merecedor de uma promoção. Por recomendação do general de
cavalaria Guderian, o Reichsführer declara-se pronto a apoiar a candidatura
de Stauffenberg às funções de chefe do estado-maior-geral, em meados de
julho.
Não, Heinrich Himmler não tem a menor idéia dos planos secretos de
Stauffenberg. Quando, em 20 de julho, às 13 h, o Sturmbannführer Lukas
anuncia que acaba de ser cometido um atentado contra o Führer, Himmler
pergunta-se a quem poderia ter cabido essa iniciativa.
Vai ao quartel-general do Führer, felicita-o por ter escapado, e continua
perguntando-se a identidade dos responsáveis. Suas suspeitas dirigem-se para
um grupo de funcionários da organização Todt, que trabalharam recentemente
no quartel-general. Teriam esses operários colocado uma bomba-relógio no
local? Só depois de muito tempo o Reichsführer presta atenção às declarações
de um ajudante que viu Stauffenberg deixar precipitadamente o quartel-
general, pouco antes das 13 h. Apesar desta declaração, Himmler recusa-se a
mandar prender o presumível culpado.
O chefe do RSHA Kaltenbrunner recebe, por seu lado, um telefonema de um
homem do quartel-general do Führer: que o RSHA faça uma pequena
investigação junto ao Coronel von Stauffenberg, na Bendlerstrasse, sede do
OKW. Kaltenbrunner não pensa duas vezes e envia o Oberführer Piffrader: o
indiscreto investigador é despedido por von Stauffenberg.
Esse episódio, tal como os seguintes, mostra a que ponto a SS foi ultrapassada
pelos acontecimentos. Durante anos a Gestapo se estava preparando para
esmagar toda veleidade de golpe de estado. E eis que o alto-comando SS se
encontra paralisado durante toda a tarde de 20 de julho pelos conspiradores da
Bendlerstrasse, subestimados de maneira grotesca pelo RSHA.
Os homens de Nebe apoiam as unidades da Wehrmacht, às quais Stauffenberg
deu ordem de fechar o quartel administrativo e ministerial de Berlim.
Prudentemente, a Waffen-SS e a Orpo mantêm-se em seus quartéis e
observam de lá os batalhões da Wehrmacht conduzidos pelos conspiradores.
Internamente, a SS está ainda mais desarvorada. Às 18h20min, o chefe do
estado-maior da Zona Militar XVII (Viena), Heinrich Kodré, recebe ordem da
Bendlerstrasse de prender todos os responsáveis do Partido e da polícia na
Áustria: “Todos os gauleiter, Reichsstatthalter, ministros, chefes de polícia,
HSSPF, responsáveis da Gestapo e dos serviços SS devem ser imediatamente
demitidos de suas funções e presos”, dizem as ordens do OKW.
Kodré convida então os responsáveis locais da polícia e da SS para que se
apresentem às 20h no gabinete do general-comandante para uma importante
reunião. Quando chegam, ele lhes anuncia, com a necessária polidez militar,
que estão presos. Esses senhores, sem exceção, fazem questão de esconder
sua surpresa e entregam-se sem discutir as razões expostas por Kodré. O
HSSPF Querner e o chefe de polícia Gotzmann chegam até a amabilidade de
oferecer seus serviços ao novo regime. Quando Kodré diz a Querner que se
trata de ordens superiores, e pede-lhe que as leia, ele replica: “Inútil! O senhor
disse, isso basta!” Os senhores da polícia vão calmamente para os quartos que
lhes são designados e ficam tranquilos.
Às 21h30min, novo telefonema de Berlim: o putsch fracassou. Kodré deixa os
prisioneiros em liberdade. Discretamente repete-se a operação, ao contrário.
Assim como em Viena, o aparelho policial SS se deixará facilmente
desmantelar pelos conspiradores de Berlim. Entretanto, à 1h30min da manhã
do dia 21 de julho, Berlim anuncia o fracasso do golpe de estado: os oficiais
da polícia e chefes SS — 1.200 ao todo —, que haviam sido presos, são
postos em liberdade. Fato curioso, os oficiais SS, sobretudo o
Obergruppenführer SS Oberg, intervirão para frear ao máximo as represálias
do RSHA, iniciadas por ordem de Himmler contra os insurretos.
Os oficiais Waffen-SS não ficam atrás. Graças à intervenção de generais
Waffen-SS, três futuros inspetores-gerais da Bundeswehr são retirados das
garras de Himmler: Sepp Dietrich obtém a libertação, pelo RSHA, de Speidel;
o Gruppenführer SS Lombard pressiona a Gestapo e consegue a libertação do
chefe do estado-maior, General Graf Kielmannsegg; por fim, c General
Heusinger é libertado, também por intervenção da SS.
Quando o Obergruppenführer SS Bittrich sabe que o Generaloberst Erich
Hoepner, um dos chefes da conspiração, foi enforcado, salta de sua cadeira e
grita: “É o fim do exército alemão! Fuzila-se um general; não se enforca!”
Himmler é informado da reação de Bittrich. Dá-lhe imediatamente ordem de
apresentar sua demissão. Apoiado por seu superior, o General Eberbach,
comandante do 5.° Exército de carros de combate, Bittrich recusa-se
categoricamente. Himmler insiste: que Bittrich se apresente a ele
imediatamente. O Generalfeldmarschall Model, comandante-em-chefe do
front Oeste, intervém. O Reichsführer jamais conseguirá vencer esse
subordinado desobediente.
Mas seu insucesso na luta contra Bittrich é uma exceção. Em geral, consegue
bons resultados na aniquilação dos insurretos de 20 de julho e de seus
cúmplices.
Kersten, desesperado, percebe em 20 de julho que Himmler está novamente
dominado pelo Führer, quando poucos dias antes estava decidido a afastá-lo
do poder com o apoio dos grupos de oposição.
Himmler a Kersten: “Chegou a minha hora. Vou esmagar completamente
esses reacionários. Dei ordem de prender imediatamente todos os
responsáveis pelo complot!”
Kersten pergunta então a Himmler se pensa que a sobrevivência do Führer é
boa para a Alemanha. Himmler responde: “O que diz você, Kersten? Como
pode perguntar isso? O destino nos deu um sinal, poupando o Führer. O
Führer vive. O Führer é invencível. A sorte quer que ele nos seja conservado e
que marchemos atrás dele para a vitória!”
Em meio à louca exaltação, Himmler precipita-se para o quartel-general de
Hitler e lança contra os insurretos a máquina de morte da Gestapo.
Quando, na tarde de 20 de julho, Hitler tem notícias de que o movimento
estaria ganhando terreno, Himmler, que não deixa mais seu ídolo, entrega-lhe
um papel que o nomeia comandante-em-chefe do exército da reserva. Hitler o
assina. Seu nervosismo é tal, que ele assinaria qualquer coisa que lhe pudesse
garantir o esmagamento da insurreição.
Hitler: “Fuzile todo aquele que oponha qualquer resistência, seja qual for a
sua patente. Trata-se agora do futuro da nação. Não tenha fraquezas!”
Himmler bate os calcanhares: “Meu Führer, conte comigo”.
A máquina da morte já funciona. Em Berlim, as unidades da Leibstandarte
ainda disponíveis e a SS Standarte Saarow são postas em estado de alerta. É
criada uma comissão especial “20 de julho”. Os caçadores de homens da
Gestapo passam as cidades em pente fino. À menor suspeita, o homem mais
inocente é preso na Prinz Albertstrasse. Os chefes da insurreição serão quase
todos vítimas das represálias da Gestapo. Desde 20 de julho à noite, os
membros do grupo Stauffenberg são fuzilados por oficiais hitlerianos na
Bendlerstrasse. Os outros insurretos e antinazistas conhecem o martírio das
prisões da Gestapo, dos processos públicos, onde está o terrível tribuno
Freisler, e, finalmente, as forças da Alemanha de Adolf Hitler.
Os chefes SS ligados ao grupo Beck-Goerdeler não escapam ao abraço mortal
do RSHA. Em 24 de julho, o chefe da Kripo, Arthur Nebe, foge, acreditando
que a Gestapo está a par de suas atividades subversivas. Será perseguido
durante meses por seus próprios homens e preso em novembro de 1944,
denunciado por sua amante. São também presos muitos colaboradores de
Schellenberg, antigos agentes dos serviços secretos de Canaris, tais como o
Sturmbannführer Plaas, o Reiterführer Salviati e o Brigadeführer Karnstein.
Todos serão executados.
À medida que cresce a raiva assassina dos espadachins do RSHA, os
comentários do grande inquisidor Heinrich Himmler perdem sua virulência.
Sua confiança em Adolf Hitler está abalada. Uma idéia delirante germina em
sua mente: não haveria tempo, ainda, de conseguir a paz com o apoio dos
conspiradores de 20 de julho?
Himmler suspende as execuções projetadas e abre negociações um pouco
banais com as suas próprias vítimas. Goerdeler, Popitz e o Conde von der
Schulenberg obtêm autorização de explicar, por escrito, sua atitude anti-
hitlerista.
O Reichsführer SS pensa que a Ordem ainda vai poder cobrir-se com o manto
dos anti-hitleristas. Em outubro de 1944, Schellenberg é encarregado de
retomar contato com o banqueiro sueco Jakob Wallenberg, amigo íntimo de
Goerdeler. Talvez ainda se possa, por intermédio de Wallenberg e de
Goerdeler, tratar com os Aliados. Mas Himmler defende uma causa perdida.
Wallenberg recusa-se a receber Schellenberg. Himmler dirige-se, então,
diretamente a seu prisioneiro. Goerdeler declara-lhe que está pronto a apoiar
os seus projetos, com a condição de que o autorizem a ir pessoalmente à
Suécia. Isso é pedir demais ao prudente Himmler. Ele tenta fazer com que
Goerdeler modifique a sua decisão, mas nada consegue: o chefe da oposição
alemã mantém suas condições.
É interrompido o diálogo. Em 2 de fevereiro de 1945, Karl Goerdeler sobe ao
cadafalso. Heinrich Himmler acaba de unir definitivamente o destino da sua
SS ao do regime nacional-socialista, cujo fim é agora iminente.
O Fim

OUTONO DE 1944. Gebhard Himmler a seu irmão Heinrich, que, apesar de


uma séria gripe, vai a uma reunião de altos funcionários do Partido: “Deverias
cuidar da tua saúde. Adia esta reunião para outra data!” Heinrich: “Já se adiou
a Páscoa porque o Papa estava gripado?”
Essa resposta ilustra perfeitamente as loucas ilusões alimentadas pelo
Reichsführer SS sobre o papel que desempenha e que será chamado a
desempenhar no futuro, no Reich de Adolf Hitler.
O vencedor da conspiração de julho, o grande inquisidor e carrasco dos
conspiradores, ocupa agora, por graça de Hitler, uma posição de força sem
precedentes. Muitos o consideram o sucessor do Führer. Realmente, seus
poderes são inúmeros: é chefe da Schutzstaffel, a organização mais poderosa
do Reich, ao lado do Partido: controla o aparelho policial e os serviços
secretos: dirige o Ministério do Interior e preside, como comissário do Reich,
a política racial do regime: é o chefe de 38 divisões Waffen-SS; e exerce o
comando supremo do exército alemão de reserva. Um de seus
Obergruppenführer (Hans Jüttner) é o responsável por questões de armamento
das tropas alemãs: e um outro (Gottlob Berger) administra soberanamente os
campos de prisioneiros da Wehrmacht .
Para os alemães e para os observadores estrangeiros, a Alemanha, a dez
meses do fim do Reich milenar, está dirigida por dois ditadores: Himmler e
Hitler; a SS está presente em toda parte e tem sempre uma palavra decisiva a
dizer. Heinrich Himmler é o primeiro a acreditar na ilusão do poderio total da
SS. Ainda pensa que lhe cabe o nobre dever de libertar a Alemanha da dúvida
e daqueles que a semeiam, conseguindo assim a vitória final e total do Reich,
que essas forças obscuras impediram até aqui. Heinrich Himmler, em agosto
de 1944: “E agora, o que vamos fazer é a guerra do povo com o povo”.
Em 20 de julho, Hitler ordena ao Reichsführer SS preparar 25 novas divisões.
As fábricas e as salas de aula são visitadas pelos recrutadores do Reichsführer.
Himmler a um grupo de oficiais granadeiros: “Eu lhes recomendo que
apanhem todo indivíduo que vejam passear pela rua. E se ele resistir,
segurem-no e tragam-no à força”.
O exército himmleriano do povo é organizado, mas sob o signo do ódio da
Wehrmacht. É uma força armada paralela, que realiza enfim a união íntima
Partido-militares, à qual a Wehrmacht nunca se quis prestar. É “o exército da
revolução”, às ordens exclusivas do Reichsführer SS. Himmler: “O exército
que ganhará esta guerra será o exército popular nacional-socialista”.
Uma nuvem de espiões comandados pelo Reichsführer infiltra-se nesse
exército da reserva, observando o menor movimento de derrotismo. Heinrich
Himmler está decidido a liquidar todo indivíduo que manifestar a menor
dúvida quanto à vitória final do Reich. Em 3 de agosto de 1944, dirá: “Pode
haver 5%, 10%, talvez 15% de imprestáveis. São verdadeiros porcos. Mais
cedo ou mais tarde nos encontraremos e eles terão de explicar-se perante os
nossos tribunais”.
Considerado pelo ditador como a única tábua de salvação de seu Reich
milenar, e considerando-se a si próprio como tal, Himmler reúne, no período
de apenas dois meses, setembro e outubro, 500.000 homens, que são
imediatamente lançados no front, apesar de disporem de um equipamento
miserável e de uma formação insuficiente. Paralelamente, o Reichsführer
elabora os planos mais absurdos para a defesa da Alemanha: projeta a
organização de grupos de jovens nacional-socialistas fanáticos sob o nome de
Werwolff, e a transformação dos Alpes alemães em uma verdadeira fortaleza
da elite nacional-socialista. “Nenhum desertor”, diz ele a quem quiser ouvir,
“escapará a seu castigo. Sua família sofrerá as piores consequências por seu
gesto”. Em setembro, são constituídos os tribunais de exceção e as sangrentas
profecias do Reichsführer SS se realizam. Já não se podem contar na
Alemanha as vítimas desses tribunais, penduradas nas árvores com um cartaz:
“Eu sou um desertor”, ou então: “Estou aqui porque abandonei minha unidade
sem autorização”.
Sucessivamente, três ondas são lançadas por Himmler no fogo da batalha.
Elas serão sucessivamente aniquiladas pelos Aliados. O espaço vital do Reich
se restringe. A ofensiva do verão de 1944 traz os soviéticos até o Weichsel e
às fronteiras da Prússia Oriental. Em setembro, os exércitos britânicos e
americanos estão na fronteira Oeste da Alemanha.
Na Polônia, no início de agosto de 1944, o general insurreto Tadeusz Bor-
Komorowski lança seus 35.000 guerrilheiros contra os alemães nas ruas de
Varsóvia, enquanto o exército vermelho se aproxima da capital polonesa.
A revolta de Varsóvia ameaça desmantelar o front de defesa alemã no Leste.
Adolf Hitler confia então ao Obergruppenführer SS Erich von dem Bach-
Zelewski o esmagamento dos guerrilheiros. É mobilizada a tropa mais temida
da SS: os quatro batalhões de polícia do Gruppenführer SS Heinz Reinefarth,
apoiados por uma brigada de assassinos, antigos condenados de crimes
comuns agraciados, comandados pelo Oberführer Oskar Dirlewanger, e pelas
tropas de prisioneiros de guerra russos colocados sob as ordens do
Brigadeführer SS russo branco Bronislaw Kaminski.
A revolta é esmagada, com uma brutalidade sem concessões: os generais da
Wehrmacht ficam indignados: “O que eu vi ali”, escreverá mais tarde o
General Guderian, “era tão terrível que tomei a decisão de ir imediatamente a
Hitler e solicitar a retirada das duas brigadas SS”.
Hitler concorda, depois de muitos pedidos do General Guderian, e dá a von
dem Bach-Zelewski a ocasião de fuzilar Kaminski, “testemunha que poderia
ser bastante incômoda” (Guderian).
A revolta de Varsóvia ainda está quente quando Hitler atira a SS a um outro
ponto não menos perigoso, além do front alemão do Leste. Em 29 de agosto,
generais e políticos eslovacos iniciam a insurreição contra o ocupante alemão.
Uma parte do exército eslovaco segue o movimento. Enquanto o SD prende
alguns chefes conspiradores, o pessoal da escola SS da Boêmia e da Morávia
constitui-se no regimento de carros de combate e entra em ação.
Simultaneamente, a 18ª Divisão de carros Horst Wessel e a nova Divisão SS
Galícia movimentam-se para apoiar a escola SS. Em quatro semanas, Gottlob
Berger, a quem Himmler confiara a responsabilidade das operações, derrota
os insurretos.
Mas na Hungria também há perigo. E isso permitirá o último golpe de mão do
SD da história do Reich. A missão será confiada à personalidade mais célebre
da Schutzstaffel, Otto Skorzeny. Nascido em Viena em 1908, engenheiro,
Otto ingressa em 1939 na Leibstandarte Adolf Hitler e é transferido mais
tarde para o Serviço Estrangeiro do SD, onde, desde então, dirige todas as
operações de sabotagem.
A reputação de Skorzeny iniciou-se em 12 de setembro de 1943. Neste dia, à
frente de um grupo de paraquedistas, esse gigante louro aparece por encanto
em um hotel do Maciço de Gran Sasso, onde Benito Mussolini se acha
prisioneiro, sob a vigilância de carabinieri, por ordem do Governo Badoglio.
Os carabinieri são rapidamente eliminados e, para explicar-se, Skorzeny
declara apenas ao Duce: “O Führer enviou-me. Eis-me aqui”.
Um ano mais tarde, Hitler apela novamente para os talentos de Skorzeny.
“Nós sabemos”, diz-lhe Hitler, “que o Almirante Horthy, administrador do
Reich na Hungria, procura fazer contatos com os Aliados, para negociar com
ele um cessar-fogo. “Se percebermos que ele pretende realmente romper a
nossa aliança, você será encarregado de tomar a fortaleza onde está Horthy”.
Skorzeny batiza a operação de Panzerfaust e parte imediatamente com falsa
identidade. Na Hungria, o Dr. Otto Winkelmann, oficial superior SS e de
polícia (HSSPF), diz-lhe que a situação não poderia ser mais grave: em 30 de
agosto, Horthy substitui o Governo pró-alemão húngaro por um Gabinete
dirigido pelo Marechal Geza Lakatos. A ascensão desse gabinete é seguida de
uma viagem do Marechal Farago a Moscou; o comandante da gendarmaria
húngara é encarregado por Horthy de negociar um armistício com a URSS.
Ajudado por Winkelmann e pelo Oberführer SS Hans Geschke, chefe da Sipo
local, Skorzeny prepara um plano de batalha tendente a neutralizar Horthy.
Em 10 de outubro, o Marechal Bakay, comandante do Primeiro Corpo de
Exército húngaro e principal colaborador de Horthy, é raptado pelos homens
de Geschke. Aggteleki é nomeado por Horthy seu sucessor e desaparece,
poucos dias depois, da mesma maneira. Skorzeny decide então apoderar-se do
filho de Horthy, Nikolaus, conhecido como Nicky, suspeito há muito, pelo
SD, de querer negociar um cessar-fogo com o chefe dos guerrilheiros
iugoslavos, Tito. Raptado o filho, poder-se-á fazer pressão sobre o pai e exigir
que pare de trabalhar contra a Alemanha.
Dois homens do SD, em uniforme do exército de Tito, entram em contato
com Nikolaus von Horthy e combinam um encontro secreto em 13 de
outubro. Desconfiado, o jovem Horthy não comparece. Outro encontro é
decidido para 15 de outubro, às 10 horas, na sede da Sociedade Portuária do
Danúbio, Praça Eskü, em Budapeste, organização cujo diretor Felix
Bornemissza é amigo íntimo de Horthy. Nikolaus von Horthy cerca-se de
precauções. Cinco oficiais da Guarda Honved o acompanham; tomam posição
na entrada do imóvel e vigiam a rua. Por fora, várias companhias da mesma
Guarda estão prontas para intervir em caso de necessidade.
Mas do lado alemão também foram tomadas algumas providências. Na
véspera do dia D, um comando SD instala-se em uma pensão situada no andar
superior da Sociedade Portuária do Danúbio. Em uma rua adjacente,
Skorzeny dispôs dois caminhões fechados carregados de homens.
Precisamente às 10 horas, Horthy chega de automóvel e para diante do
imóvel, ao lado de um carro ocupado por Skorzeny, desce e entra com três
oficiais. Alguns minutos mais tarde, dois homens do SD, em uniforme do
exército húngaro, aproximam-se da casa e tentam entrar. Os três oficiais
Honved percebem o perigo e abrem fogo. Um dos agentes SD morre no
momento. No mesmo instante abrem-se várias janelas de casas vizinhas e
inicia-se uma fuzilaria. Enquanto isso, os homens do SD, instalados no andar
superior dos escritórios da Sociedade Portuária, aparecem no imóvel.
Transportam o jovem Horthy e seu amigo Bornemissza, enrolados em um
tapete. Os dois prisioneiros são atirados dentro de um caminhão. Alguns
minutos mais tarde, embarcam em um avião alemão e são destinados ao
campo de concentração de Mauthausen.
A condição essencial para o sucesso da operação Panzerfaust foi realizada.
Von Horthy concorda em retirar-se da cena política, a fim de não prejudicar
seu filho Nikolaus, refém dos alemães. É substituído pelo chefe dos nazistas
húngaros, Szalazi. A Hungria continuará a sangrar para o Reich alemão.
O sucesso da SS na Polônia, na Eslováquia e na Hungria contribui para o
prestígio do Reichsführer SS, que parece ter chegado ao apogeu de sua
carreira. Em 8 de novembro de 1944, por graça de Adolf Hitler, tem o
privilégio de pronunciar, em lugar do ditador, o discurso comemorativo do
Bierkellerputsch de Munique.
A fé de Heinrich em seu ídolo é agora ilimitada. Declara a Felix Kersten:
“Todos os cálculos de Hitler foram até agora exatos. O Führer, queiramos ou
não, é o maior gênio de todos os tempos: conhece até a data exata da nossa
vitória. Em 26 de janeiro próximo, estaremos de novo às margens do
Atlântico”. Quando o chefe do estado-maior-geral do exército, Guderian,
pergunta ao Reichsführer SS onde se encontrarão tropas para impedir a
próxima ofensiva soviética, Himmler apenas sorri e diz com ar enigmático:
“O senhor sabe, meu caro general, eu não creio em outra ofensiva russa. Tudo
isso é blefe”.
Naquela época, Himmler parece realmente reinar sobre a Alemanha, ao lado
de Hitler. Mas as aparências enganam. Para o historiador Trevor-Roper,
“Himmler está agora em declínio, apesar dos poderes que parece ter”. Aí está
um homem, o mais poderoso entre os rivais do Reichsführer SS: Martin
Bormann, chefe da chancelaria do Partido, eminência parda do Reich e
confidente do ditador. Bormann procura frear a ascensão do “tio Heinrich” e
impedir que a SS passe acima do Partido, que deve conservar a mão forte no
comando do Reich.
Quando um chefe SS tem problemas com um gauleiter, Bormann intervém
imediatamente junto ao Führer, que partilha com seu confidente a opinião de
que a direção política da guerra é privilégio exclusivo do Partido. São os
esbirros de Bormann que ocupam cada vez mais os postos-chave de comando
militar. Não é a SS que substitui a desarvorada Wehrmacht no quartel-general
do Führer: são os gauleiter.
Baseando-se no exemplo do gauleiter Koch, dono e senhor da Prússia
Oriental — onde reina com o apoio de um exército privado conhecido por
Volkssturm —, Hitler e Bormann resolvem estender esta criação ao conjunto
da Alemanha. Os gauleiter são avisados por Bormann desse projeto e
solicitados a tomar todas as providências para facilitar a sua realização. Um
decreto de Hitler, de 18 de outubro de 1944, consagra o nascimento desse
novo exército. Este ato de desespero do regime nacional-socialista restringe
particularmente os poderes de Heinrich Himmler. Pois se o Reichsführer,
comandante-em-chefe do exército de reserva, tem a responsabilidade do
Volkssturm em matéria de organização, formação dos homens e armamentos,
Martin Bormann terá a direção política e a tarefa de recrutamento.
Bormann conhece seu poder. Mas considera Himmler um rival perigoso,
sobretudo porque ele está sempre no quartel-general do Führer. Os ausentes
estão sempre errados. Como fazer para que Himmler se afaste? Só há uma
solução: dar-lhe, enfim, a possibilidade de comandar tropas em luta. Bormann
conhece as ambições de chefe de guerra do “tio Heinrich”, e lhe permitirá
realizá-las, precipitando assim seu declínio.
No fim de novembro, as tropas anglo-americanas penetram na Alsácia e
empurram o 19.° Exército alemão até a margem ocidental do Reno. O quartel-
general do Führer decide imediatamente organizar um novo exército, entre
Karlsruhe e a fronteira suíça. Este exército está destinado a “receber” os
restos do 19.° Exército da Alsácia e impedir a ofensiva do adversário. Por
proposta de Bormann, Himmler é nomeado comandante-em-chefe dessas
tropas.
O Reichsführer SS exulta. Ei-lo general de um exército, podendo afinal alterar
os ventos da guerra em favor do Reich. Mobiliza várias unidades de seu
exército de reserva, instala seu quartel-general na Floresta Negra e prepara-se
para enfrentar o inimigo, traçando astuciosos planos de batalha.
Mal o Reichsführer SS desaparece na Floresta Negra, vários dos mais
importantes chefes SS vão tentar conseguir as boas graças do poderoso
Bormann. Entre eles, o Gruppenführer SS Hermann Fegelein, representante
pessoal de Himmler no quartel-general do Führer, e o Dr. Ernst
Kaltenbrunner, chefe do RSHA.
Imediatamente, Kaltenbrunner recebe um privilégio de que não gozara nem
mesmo o seu predecessor Heydrich. O chefe do RSHA torna-se hóspede
permanente do QG do Führer: assim, recebe ordens diretas de Hitler, sem a
mediação de Himmler.
Os chefes fiéis a Himmler, como Gottlob Berger e o Standartenführer Gunther
d’Alquen, advertem o Reichsführer SS da situação. D’Alquen chega mesmo a
redigir um relatório, onde solicita o fim do “monopólio Bormann”.
Himmler permanece surdo às advertências de seus fiéis. Crê cegamente em
seu futuro de general e no seu direito de suceder a Hitler. Só muito
tardiamente — princípios de maio de 1945 —, Himmler reconhecerá o seu
erro e dirá a Best: “Bormann e o OKW me confiaram o comando militar a fim
de responsabilizar-me pela derrota”. No fim de 1944, o Reichsführer ainda crê
em seu papel militar. Nos primeiros dias de janeiro de 1945, chega a pensar
que é chegada a hora de provar seus talentos de estrategista.
Duas divisões alemãs acabam de quebrar a Linha Maginot, perto de
Haguenau, e de penetrar no Norte da Alsácia. Himmler aproveita a ocasião
para pedir ao quartel-general que lhe ceda o comando das duas divisões —
que ainda estavam adidas ao estado-maior-geral do Oeste -—, a fim de
reconquistar Strasburg. O QG do Führer aceita o plano de Himmler, contra a
opinião do general-comandante da frente ocidental.
Imediatamente, o Reichsführer dá ordem às suas duas divisões de Haguenau,
para que se desloquem, margeando o Reno. Os americanos ficam tão
surpreendidos com o movimento de Himmler que seu chefe, o General
Eisenhower, pensa na possibilidade de abandonar Strasburg e retirar o flanco
direito de seu exército para atrás dos Vosges. O prefeito de Strasburg, Frey,
protesta de maneira veemente e os Aliados decidem manter-se na cidade.
Inicia-se o ataque alemão. Pior: em 20 de janeiro, os Aliados contra-atacam e
empurram as tropas de Himmler para além do Reno, em menos de um mês.
Só está claro o fracasso do General Himmler quando Bormann propõe-lhe
outro comando, que o vai afundar ainda mais na derrota militar e fazê-lo
enfrentar as explosões de cólera do ditador. Himmler assume suas funções na
frente oriental, onde lhe confiam um outro exército fantasma no Weichsel.
Em 12 de janeiro de 1945, os soviéticos iniciam a maior ofensiva da história
militar internacional, aquela ofensiva da qual há pouco Himmler achava
graça: três milhões de homens do Exército Vermelho precipitam-se sobre
750.000 soldados mal equipados e em poucos dias quebram o conjunto da
frente de defesa alemã. Os corpos de exército dos marechais soviéticos
Tchernaiakovski e Rokossovski atiram-se sobre Konigsberg e Dantzig; no
centro da frente do ataque soviético, o Marechal Schukov ocupa o Werthegau,
enquanto seu camarada Konjev leva suas tropas até Sagan.
O chefe do estado-maior, Guderian, propõe a Hitler a formação de uma nova
frente defensiva, entre o Weichsel e Oder, frente que será constituída graças
ao reagrupamento das unidades dispersas na zona.
Contra a vontade de Guderian, o qual pede que esta operação seja confiada ao
Generalfeldmarschall Freiherr von Weichs, o ditador entrega a Himmler seu
segundo bastão de comando. É com a fúria do desespero que o Reichsführer
SS se entrega à obra. Sua fé na vitória final está muito abalada, depois do
fracasso na Alsácia. Sabe que não se pode permitir uma segunda derrota desse
gênero, sob pena de cair aos olhos do Führer e comprometer o edifício
penosamente construído ao longo de tantos anos. Pouco tempo a perder; é
preciso exibir vitórias, ou estará liquidado.
O Reichsführer SS reagrupa então as últimas forças de seu exército de
reserva, envia seus comandos à procura de soldados ainda em condições de
combater, constitui novos grupos Waffen-SS, cujas divisões têm, realmente,
apenas a força de brigadas, e cerca-se de generais Waffen-SS de talento, tais
como o Obergruppenführer Felix Steiner. Mas de nada adianta o barulho da
propaganda e dos discursos patrióticos. A causa está perdida. Himmler envia
o corpo do exército SS para o Oder, a fim de frear a ofensiva soviética.
Schukov abre a brecha da resistência alemã. Himmler projeta então uma
contraofensiva geral contra as tropas de Schukov. Fracassa. Perseguido pelo
que acredita ser a falta de sorte, cada vez menos certo de gozar dos favores do
Führer, o Reichsführer SS Himmler refugia-se na doença. Aparece cada dia
no hospital militar de Hohenlychen, dirigido por seu antigo colega de escola
Karl Gebhardt; só recebe seus oficiais com hora marcada, deita-se cedo e
levanta-se tarde, totalmente desencorajado.
Guderian aproveita a situação para solicitar ao Führer a retirada de Himmler.
Hitler resiste. Guderian insiste tanto e tão bem que consegue convencê-lo. Em
20 de março de 1945, Hitler confia o exército do Weichsel ao General
Gothard Heinrici comandante-em-chefe do l.° Exército de carros de combate.
Os castelos de cartas de Himmler desabam.
Ninguém, na época, imagina o que representa o 20 de março no espírito de
Heinrich Himmler: o Reichsführer SS acaba de despedir-se definitivamente
de seu ídolo. Acaba de negar esse deus, cujo altar não deixou de enfeitar com
os mais sangrentos sacrifícios da História. A partir de 20 de março, Himmler
procura salvar o que, segundo ele, ainda pode ser salvo: sua própria vida, a
Ordem Negra, as ilusões sobre as quais construiu sua carreira… Não seria
Heinrich Himmler se não se tivesse, então, cercado de novas ilusões, de novos
sonhos; ele, Heinrich Himmler, trará a paz para a Alemanha e para o mundo,
e sucederá a Hitler depois da guerra.
Em 22 de março de 1945, Heinrici anuncia-se no quartel-general do seu
predecessor Himmler. Pede-lhe sua opinião sobre a política do Reich.
Himmler, felicíssimo, toma o general pelo braço e o conduz a um sofá. Os
dois homens sentam-se. Himmler murmura: “Chegou o momento, meu caro
general, de iniciarmos negociações com nossos adversários ocidentais. Meus
negociadores já trabalham nesse sentido”.
Neste dia, pela primeira vez, Himmler faz confidências desta espécie a um
homem que nem sequer pertence à SS. O General Heinrici é também o
primeiro a descobrir, sem dúvida com alguma surpresa, uma SS de duas caras,
cujos traços chegam ao grotesco: esta Schutzstaffel que há meses e anos pune
brutalmente a menor dúvida quanto ao resultado vitorioso da guerra, esta SS
que estimula a combatividade dos alemães com apelos patéticos, tribunais de
exceção, enforcamentos de desertores, é a mesma que procura também, há
meses, negociar com o inimigo, porque ela própria não crê na vitória cuja
iminência proclama. A atitude da SS é grotesca, mas também macabra. Para
conseguir que os Aliados cedam, os negociadores de paz da Ordem servem-se
prioritariamente dos judeus ainda destinados à morte. A SS pensa que sua
salvação será assegurada por esse povo para o qual foi e continua a ser o
carrasco.
É essencialmente a Felix Kersten que certos chefes SS, inclusive Himmler,
devem ainda essas ilusões. Nascido em 1898, em Dorpat, o balta Felix
Kersten, bon vivant, filantropo e massagista de profissão, procura há anos
retirar a SS e seu chefe do império do Führer. A influência de Kersten sobre
Himmler é comparável à do astrólogo Giovanni Baptista Seni sobre
Wallenstein. Como Wallenstein, Himmler não dá um passo sem pedir
conselho a seu confidente. Seni pretendia libertar Wallenstein das maldições
de poderes ocultos. Kersten procura livrar o Reichsführer SS dos
insuportáveis males de estômago que o afligem. Munido de um diploma de
massagista finlandês, Kersten instala-se muito jovem em Berlim e, com seus
talentos incontestáveis e seu senso dos negócios, obtém honorários jamais
percebidos por um curandeiro berlinense. Sua reputação corre a Europa
inteira e, em 1928, torna-se médico da família real holandesa. Onze anos
depois, tem em mãos o mais perigoso paciente já tratado por qualquer
massagista: o Reichsführer SS Heinrich Himmler.
Kersten é apresentado a Himmler pelo industrial August Rosterg, membro do
“Círculo de Amigos do Reichsführer SS”. Em março de 1939, diagnostica em
Himmler problemas do sistema nervoso simpático; e como o Reichsführer
está precisamente em uma crise de dor, consegue acalmá-lo completamente
com uma massagem de poucos minutos. Himmler a Kersten: “Consultei
numerosos médicos alemães. Nenhum pôde fazer coisa alguma por mim.
Ajude-me, eu lhe peço, senhor professor”. Kersten diz então a seu paciente
que não é professor nem doutor, mas que de qualquer maneira cuidará dele.
É o início de uma das mais curiosas associações. Kersten percebe
rapidamente o poder extraordinário que exerce sobre Himmler com suas
“mãos mágicas” (Joseph Kessel). Cada sessão de massagens é ocasião para
que Kersten consiga do Reichsführer SS alguma medida de clemência pouco
comum: uma vez é a libertação de um prisioneiro que pensava acabar seus
dias no KZ; outra vez, a autorização para que um homem ameaçado possa
fugir da Alemanha; outras vezes, colônias inteiras de judeus são preservadas,
graças a ele, da máquina de morte SS. Kersten obtém clemência para Theodor
Steltzer, futuro primeiro-ministro de Schleswig-Holstein; é a ele que os
judeus finlandeses devem sua salvação; é ele, ainda, que acaba com a
pilhagem dos tesouros artísticos holandeses e que não cessa de facilitar a
passagem para a Suécia de escandinavos prisioneiros nos campos alemães.
No princípio de 1944, Kersten convence Himmler de que só a completa
cessação do programa de extermínio dos judeus pode atrair para o
Reichsführer SS a simpatia dos aliados ocidentais e abrir-lhe a porta das
negociações de paz.
Os argumentos de Kersten semeiam no espirito de Himmler uma certa dúvida
quanto à excelência do programa da solução final. Aos artistas do genocídio,
principalmente a Adolf Eichmann, o Reichsführer SS ordena tomarem contato
com a Waadah (Ezra Vö-Hazzalah Bö — Budapest), organização sionista que
se esforça, desde janeiro de 1943, para comprar a preço de ouro as vidas dos
judeus nas mãos da SS. Eichmann está muito contrariado. Apesar disso, entra
em contato com um dos chefes da organização judaica, Joel Brand, a quem
declara que os judeus húngaros poderão ser salvos se a Waadah obtiver da
comunidade judaica o pagamento de 10.000 caminhões, dois milhões de
caixas de sabão, 200 toneladas de chá e 200 toneladas de café. Que Brand vá
a Istambul e negocie o assunto com os representantes da organização judaica
internacional.
Logo que Brand deixa Budapeste com destino a Istambul (17 de maio),
Eichmann, na fúria da destruição, que parece ser sua razão de viver, começa a
executar seu programa de extermínio dos judeus húngaros. Brand diz-lhe que
voltaria quinze dias mais tarde. É preciso, declara Eichmann, que a maioria
dos judeus húngaros seja liquidada antes disso. Adolf Eichmann sente que os
dias da solução final estão contados. Seus chefes imediatos, Kaltenbrunner e
Müller, continuam firmes e partidários do genocídio, mas Himmler está cada
vez mais oposto a isso. Convém andar depressa. Eichmann nem sequer
dorme. Em 7 de junho: as Zonas I e II anunciam — 289.357 judeus mortos.
Em 17 de junho: Zona III — 50.805 judeus. Em 30 de junho: Zona IV —
41.499 judeus.
Brand nada consegue de seus interlocutores em Istambul e em seguida é preso
pelos ingleses na Síria. Torna-se maior a fúria assassina de Eichmann. A
imprensa britânica e americana divulga o fracasso das negociações de Joel
Brand em Istambul: nem a organização mundial judaica nem os Aliados se
emprestarão a esse comércio indigno. Eis um fato capaz de enfraquecer a
vontade de negociação de Himmler. Eichmann exulta. Talvez, mesmo contra
todos os ventos, possa continuar seu programa de assassinatos.
Entretanto, o Hauptsturmführer SS Otto Clages, chefe do SD na Hungria,
pressente a iminência do fim do Reich e procura febrilmente preservar-se da
catástrofe. Clages e seus comparsas tentam, há anos, frear o furor de
Eichmann, e agora obtêm da Waadah novas promessas financeiras. Um
relatório sobre as quantias que a Waadah está disposta a pagar por cada judeu
autorizado a deixar a Hungria é submetido a Himmler. Himmler ordena que se
interrompam as deportações para Auschwitz.
O Obersturmbannführer SS Kurt Becher, adversário, como Clages, de
Eichmann e da solução final, obtém de Himmler autorização para que 500
judeus húngaros abandonem o pais, e é encarregado pelo Reichsführer SS de
negociar o financiamento da imigração dos outros judeus húngaros com os
representantes de uma organização americano-judaica de socorro instalada na
Suíça, a American Joint Distribution Committee.
Himmler vê, enfim, chegar a ocasião para uma troca de opiniões com os
Aliados: no espírito do Reichsführer, para quem os Estados Unidos estão a
soldo dos judeus, a American Joint Distribution Committee, cuja porta lhe foi
aberta pela Waadah, o levará até a Casa Branca, para conversações de paz
entre a Alemanha e Washington.
A Waadah alimenta cuidadosamente as ilusões de Himmler e da SS.
Entretanto, o negociador SS Becher logo percebe que se trata de uma
propaganda perfeitamente oportunista. Em 21 de agosto de 1944, ele se reúne
em Santa Margarethe, na Suíça, com o banqueiro Saly Mayer: este lhe diz
claramente que a organização mundial judaica não se prestará à troca de
“judeus contra caminhões”, inicialmente sugerida por Eichmann. Que
Himmler acabe previamente com as execuções de judeus; só então se poderá
discutir com a SS.
Se Becher tivesse revelado ao Reichsführer SS a atitude do banqueiro, as
negociações com a Joint se teriam imediatamente interrompido. Mas Becher
não o faz e — seja porque reprova o genocídio, seja porque espera conseguir
negociar a paz — continua a jogar o jogo da Waadah.
Durante uma entrevista com Mayer, em l.° de setembro, Becher chega a
solicitar ao banqueiro que faça algumas concessões à SS, ainda que elas
possam ser desaprovadas em seguida pela Joint.
Mas nem o banqueiro Mayer nem a Joint parecem querer conceder qualquer
coisa a Himmler. As negociações de Becher parecem ter fracassado quando,
em fins de setembro, tem-se a notícia de que o Presidente Roosevelt acaba de
nomear o dirigente quacre Roswell D. McClellan seu representante pessoal
nas negociações em curso. Há meses, Himmler espera uma notícia dessa. Para
festejar o acontecimento, ordena, em 30 de setembro, a suspensão imediata
das “ações” em Auschwitz.
As negociações entre McClellan e Becher iniciam-se de modo favorável.
Eichmann é chamado por Himmler de volta à Alemanha, o que contribui para
criar um bom clima. Apesar disso, as conversações não chegam a qualquer
resultado. As organizações judaicas recusam-se a recompensar os “belos
gestos” do Reichsführer SS para com os judeus, fornecendo-lhe dinheiro ou
material.
Entretanto, baseando-se no exemplo das negociações da SS na Suíça, o
Brigadeführer Schellenberg, chefe do Serviço Estrangeiro do SD, que há anos
procura convencer Himmler a eliminar Hitler, está mantendo contatos com
alguns dirigentes judaicos não-alemães. Por intermédio dos irmãos Sternbuch,
de Montreux, Schellenberg entra em contato com o antigo presidente da
Confederação Helvética, Dr. Jean-Marie Musy, que se declara pronto, por
questão de humanidade, a jogar o jogo do SD.
Em outubro de 1944, Musy encontra Himmler em Viena. Depois de algumas
tergiversações, o Reichsführer SS aceita liberar pouco a pouco todos os
judeus detidos nos KZ e facilitar sua emigração para a Suíça. Se pudermos
dar crédito às memórias de Schellenberg e às declarações de Becher em
Nuremberg, o próprio Himmler redige uma nota para o chefe do RSHA,
Kaltenbrunner, ordenando que a vida dos judeus fosse poupada, a partir de
então, nos campos de concentração.
Schellenberg está satisfeito: Himmler acaba de contrariar as ordens de Hitler.
Este primeiro resultado recebe o imediato apoio de Felix Kersten, que insinua
a Himmler o rompimento dos últimos laços com o Führer.
Na época, o governo sueco, para livrar-se das pressões dos Aliados que
querem o país em uma coligação anti-hitlerista, decide lançar uma gigantesca
operação de salvamento: o país declara-se pronto a transportar, receber e
manter os prisioneiros que forem libertados dos campos de concentração.
Solicitado pelos suecos, Himmler rejeita o oferecimento. Kersten intervém
junto ao Reichsführer, e tanto insiste que termina por convencê-lo. Em 8 de
dezembro de 1944, Kersten e Himmler, no quartel-general do Reichsführer,
na Floresta Negra, chegam ao seguinte acordo: todos os prisioneiros
escandinavos serão agrupados no campo de Neuengamme, perto de
Hamburgo; serão libertados 1.000 mulheres holandesas, 800 francesas, 500
polonesas, 400 homens belgas, 50 dinamarqueses e 50 noruegueses, ficando
todos a cargo da Suécia.
Em l.° de janeiro de 1945, o Ministro de Assuntos Estrangeiros Günther
agradece as providências e promete a Himmler pôr continuamente à sua
disposição ônibus e pessoas encarregados do transporte dos prisioneiros para
a Suécia. Depois disso, há silêncio. Os suecos esperam o rápido fim da guerra,
que os libertará de seus compromissos. Em 5 de fevereiro, Günther se
manifestará novamente, anunciando que a operação prevista estará a cargo do
Conde Bernadotte, sobrinho do rei. Mas duas semanas se passam, enquanto
Kersten e Schellenberg esperam Bernadotte impacientemente, contando com
ele para afastar Himmler de Hitler.
Afinal, o conde chega em 16 de fevereiro, sendo esperado no aeroporto por
Schellenberg e Kaltenbrunner. Mas logo Schellenberg percebe que o plano
será de difícil execução. Himmler hesita em receber Bernadotte. É com muita
prudência que o conde apoia os planos de Schellenberg, e Kaltenbrunner
espiona todos os atos e gestos de Schellenberg.
Apesar disso, o chefe do Serviço Estrangeiro do SD consegue convencer o
emissário sueco e a Himmler do interesse de uma entrevista entre ambos.
Encontram-se no hospital de Hohenlychen, onde Himmler se está tratando. O
Reichsführer começa por evocar seu juramento a Hitler; não pode tomar
decisões contrárias à vontade do Führer. Mas depois de duas horas e meia de
conversa, Himmler muda de opinião e resolve manter as promessas feitas a
Kersten.
Mal Bernadotte volta para a Suécia, Schellenberg tenta convencer Himmler a
eliminar Hitler, terminar a guerra, servindo-se, para isso, do conde. Enviar-se-
ia uma proposta de capitulação ao quartel-general de Eisenhower… Himmler,
sucessor de Hitler, senhor da Alemanha depois da guerra … Apavorado,
Himmler bate em retirada. Mas os argumentos de Schellenberg o atingem e
ele deixa entender que não intervirá se Schellenberg conseguir convencer o
conde a servir de intermediário para uma entrevista com Eisenhower.
Em 2 de abril, Bernadotte está de volta. Schellenberg: “O senhor poderia
entender-se com Eisenhower?” Bernadotte recusa-se. A iniciativa deve partir
do próprio Himmler. Schellenberg insiste, mas nada consegue. Que Himmler
se declare oficialmente sucessor de Hitler, dissolva o NSDAP, libere os
prisioneiros escandinavos — e o assunto será estudado. Bernadotte: “Embora
eu não creia que o seu chefe jamais aceite essas condições”. Schellenberg:
“Eu farei o necessário para que ele aceite”.
Mais uma vez, Schellenberg tenta convencer Himmler. Faz-lhe ver que sua
estrela se vem apagando dia a dia no quartel-general do Führer e que só a
eliminação de Hitler asseguraria o seu futuro e o da SS.
Himmler: “Em suma, você me pede para afastar Hitler do poder?”
Schellenberg: “Sim”.
O professor Max de Crinis, diretor da clínica Caridade de Berlim, amigo de
Schellenberg, é chamado, e explica a Himmler que Hitler está gravemente
enfermo, quase paralisado, sofrendo da doença de Parkinson. Himmler o
escuta e depois diz a Schellenberg: “Creio que Hitler é um homem acabado”.
Mas o Reichsführer continua indeciso. Sonha em ser o salvador da Alemanha,
mas não pode libertar-se da idolatria parda. Sonha com a morte do ditador,
mas continua sob sua dependência. Sabe que a guerra está perdida, mas incita
os alemães a lutar. A l.° de abril, em um discurso pronunciado em Hamburgo,
declara aos conselheiros municipais nazistas dessa cidade que as divergências
entre os Aliados e o próximo aperfeiçoamento de aviões a reação alemães
permitirão ao Reich ganhar terreno. E quando, em 13 de abril, toma
conhecimento de que seu amigo e confidente Wolffchen conferenciou na
Suíça com Allen Dulles, enviado americano, fareja traição. Chama
imediatamente ao telefone o HSSPF Karl Wolff, pedindo explicações e
mandando-o voltar à Alemanha. Wolff concorda pelo telefone, mas depois
envia um telegrama dizendo que não pode ir. Em 14 de abril, Himmler chama
Wolff duas vezes e duas vezes sua ordem é ignorada. Inquieto, Wolff pede
conselho a Dulles, que lhe recomenda refugiar-se na Suíça para salvar-se, e à
sua família, das represálias de Himmler. Mas Wolff, decidido a ficar com a
consciência tranquila, vai à Alemanha.
Sua viagem a Berlim poderia significar a morte, pois Wolff fez o que nenhum
general de Adolf Hitler jamais ousara: propôs ao inimigo a capitulação de um
milhão de soldados alemães. Já no início de 1944, percebendo a iminente
derrota alemã, Wolff sonhou em negociar um cessar-fogo na Itália.
Comunicou isso ao Papa Pio XII, em uma entrevista no Vaticano. Em
fevereiro de 1945, entra em contato com Dulles, e para provar sua boa
vontade, liberta dois dos mais importantes chefes da resistência italiana.
Em março de 1945, as negociações chegam ao fim: Wolff aceita capitular.
Mas os generais alemães na Itália, em meio a uma crise de lealdade, adiam, de
semana a semana, a assinatura da ata de capitulação. Então Himmler é
informado das negociações que tiveram lugar entre seu subordinado e Dulles.
O Generalfeldmarschall Kesselring, comandante-em-chefe das forças alemãs
na Itália, e o Generaloberst von Vietinghof puseram-se contra Wolff.
Na viagem para Berlim, o ex-confidente de Himmler pergunta-se a que ponto
ele terá conhecimento exato da natureza de seus contatos com Dulles. Se as
informações de que ele dispõe forem realmente detalhadas, só resta a Wolff
fazer suas orações finais. Em 16 de agosto, o Obergruppenführer aterrissa não
longe de Berlim. O Marechal Schukov acaba de lançar a última ofensiva das
tropas soviéticas contra a capital alemã: o III Reich joga suas últimas cartas.
E eis Wolff em presença de Himmler. Sem dúvida, declara ele, teve várias
entrevistas com Dulles. Por que escondê-las? Negociou a troca de prisioneiros
de guerra. Himmler, feliz demais por saber que o seu Wolfchen não traiu o
Führer, aceita as explicações.
Mas surge o chefe do RSHA, Kaltenbrunner. Diz que um agente do SD acaba
de informar-lhe que Wolff discutiu com o Cardeal Schuster, em Milão, a
capitulação do exército alemão na Itália. Himmler precipita-se sobre Wolff e
pergunta-lhe o que significa isso. Acuado, Wolff decide jogar tudo, e diz que
isso é uma mentira vergonhosa. Que Himmler e Kaltenbrunner o
acompanhem até ao Führer. Ele, Wolff, quer fazer de Adolf Hitler o juiz desse
assunto. Himmler empalidece; não tem nenhuma vontade de assistir à cena.
Que Kaltenbrunner o acompanhe; isso bastará.
Em 18 de abril, às três horas da manhã, Wolff e Kaltenbrunner penetram no
bunker onde o Führer está acuado. Encontram-no a se arrastar penosamente
por um corredor: “Ah! É você Wolff? Perfeito! Esperem um momento.” Às
quatro horas os dois são convocados.
O ditador pergunta a Wolff por que foram mantidos esses contatos com
Dulles. Wolff lembra-lhe sua recomendação pessoal, em 6 de fevereiro, na
presença do ministro de Assuntos Estrangeiros: negociar com os Aliados, para
ganhar tempo, enquanto as armas secretas em fabricação não estivessem
prontas. Wolff: “Meu Führer, estou contente por poder dizer-vos que
consegui, por intermédio de Dulles, preparar eventuais contatos com
Churchill e Roosevelt. Peço-vos que me deis ordens para o futuro”. Hitler
recebe bem as explicações de Wolff e manda-o voltar depois do meio-dia.
Nessa segunda reunião, Hitler antecipa a Wolff projetos inteiramente loucos
para o futuro. Wolff convence-se de que Hitler está enlouquecendo. No fim da
entrevista, Hitler estende-lhe a mão trêmula e se despede nestes termos:
“Continue a negociar e procure obter as melhores condições. Cumprimente
meu amigo, o Duce. Meus votos o acompanham”.
Karl Wolff está salvo. Deixa imediatamente a Alemanha e chega a seu QG na
Itália. No dia seguinte, 29 de abril, a capitulação do exército alemão na Itália
é assinada.
Wolff não é o único chefe SS a renegar o Führer. Os Obergruppenführer Felix
Steiner, Kurt von Gottberg e Richard Hildebrant pensam, há algum tempo, na
hipótese de assassinar Hitler e pôr fim à guerra. O guardião do regime
Kaltenbrunner, inicia em fevereiro de 1945 negociações com os colaboradores
de Dulles, aos quais propõe a capitulação dos territórios austríacos. O
Obergruppenführer Sepp Dietrich, a quem Hitler acusa de ter despedaçado
seu 60.° Exército de carros, enfrentando na Hungria um exército cem vezes
superior em número, não consegue conter sua raiva contra um Führer tão
ingrato. Com ele, centenas de chefes SS abandonam Hitler e, um depois do
outro, retiram-se do combate.
Mas Himmler continua a oscilar entre os argumentos de Schellenberg e o
fantasma de seu Führer, que sobrevive no bunker. Infatigável, Schellenberg
insiste: Que Himmler se decida afinal! Já é tempo! O chefe do Serviço
Estrangeiro usa contra a inércia de Himmler os mais diferentes aliados: o
ministro das Finanças, von Krosigk, suplica ao Reichsführer, em 19 de abril,
que livre a Alemanha de Hitler e assine a paz. De Estocolmo, Kersten traz a
Himmler a pessoa mais singular que possamos imaginar, visitando o
Reichsführer SS: um delegado especial do Congresso Mundial Judaico,
Norbert Masur.
Kersten e Masur chegam na noite de 19 de abril ao aeroporto de Tempelhof.
Em 20 de abril, querem entrar em contato com Himmler, mas não conseguem
descobri-lo. É aniversário do Führer e ele fora desejar felicidades ao seu chefe
bem-amado. Voltando do bunker, encontra Kersten. Saúda-o, e logo toma ares
de salvador da Alemanha. Himmler a Kersten: “Você está em contato com
Eisenhower?” Kersten responde que não; e Himmler pergunta-lhe se poderia
tentar esse contato para negociar a capitulação. Kersten lembra-se da palavra
de ordem de Schellenberg e responde que isso é impossível: teriam de falar ao
Conde Bernadotte.
No dia seguinte, quando Bernadotte, advertido por Schellenberg, visita o
Reichsführer, este novamente havia mudado de opinião. “A situação militar é
muito grave”, é tudo quanto ele diz. O projeto Eisenhower não foi
mencionado e Bernadotte retira-se surpreso.
Todo o pessoal do quartel-general de Hitler acredita que Heinrich e seus
chefes estão prontos a deixar cair o Führer. Mas o próprio Hitler pensa
exatamente o contrário: é na Schutzstaffel e em seu chefe que ele baseia as
mais absurdas esperanças.
Debruçado sobre uma mesa de estado-maior, Hitler tem apenas um nome na
boca: “Steiner, Steiner, Steiner”. A lente movimenta-se, para, e o dedo do
Führer aponta um lugar na carta: o Nordeste de Berlim, onde se encontra o
Obergruppenführer SS e General da SS Felix Steiner, à frente de algumas
unidades desaparelhadas e sem fôlego. Steiner, pensa Hitler, esmagará o
exército soviético, que já aperta Berlim em um abraço de ferro.
Em 21 de abril, o Führer ordena que Steiner marche com suas unidades para o
Sul, a fim de romper o flanco do ataque soviético e restabelecer, a Sudeste de
Berlim, as posições de defesa alemãs destruídas. Hitler a Steiner: “Você verá,
os russos vão conhecer a maior e mais sangrenta derrota de sua história. E
isso, às portas de Berlim!”
Hitler espera a grande ofensiva de Steiner. Em 22 de abril, nada acontecera.
As horas passam, e ainda nada. Steiner recusa-se a lançar um exército de
10.000 homens contra forças dez vezes superiores; seria o suicídio puro e
simples. Em seu QG, Hitler impacienta-se. No decorrer da tarde, toma
conhecimento da verdade. Explode de cólera e acusa seus colaboradores de
traição e de covardia. Fora enganado. Primeiro, a Wehrmacht o abandonara;
agora, a SS. Acabou-se o ideal nacional-socialista; e nessas condições não
valeria a pena viver.
Qual é a atitude do círculo mais próximo do Führer? Alguém o convence a
render-se? Absolutamente. Essa idéia não surge em ninguém. Pelo contrário,
todos procuram confortar Hitler. Informado da explosão de cólera de seu
chefe, Himmler tenta convencê-lo a abandonar Berlim e prosseguir o combate
no Sul da Alemanha. Os oficiais insistem junto a Steiner para que cumpra as
ordens de Hitler. O Generalfeldmarschall Keitel, o Generaloberst Jodl, o
General Krebs visitam, cada um por sua vez, a Steiner, retirado em seu QG, e
pedem, imploram, ameaçam.
A Keitel, que o ameaça com seu bastão de marechal, responde Steiner:
“Façam de mim o que quiserem. Eu não atacarei. Isto é uma aberração. Um
crime”. Em 27 de abril, Hitler decide substituir Steiner pelo General Holste.
Mais uma vez Steiner sabota as ordens e convence seu sucessor a não
assumir.
Vinte e quatro horas depois, um funcionário do Ministério da Propaganda leva
ao QG de Hitler a notícia de que Himmler acabara de propor aos Aliados a
capitulação da Alemanha. In extremis, Schellenberg convencera seu chefe.
O bunker de Adolf Hitler fica paralisado com a notícia. Pouco depois a rádio
de Estocolmo anuncia — aliás, uma notícia falsa — que Himmler estaria
negociando um cessar-fogo com o alto-comando anglo-americano. Aumenta
ainda mais o estupor de Hitler. Com voz trêmula, o Führer lamenta-se.
Percebe agora a traição da SS. Compreende porque Steiner se recusou a
atacar, porque Himmler fracassou em Weichsel. Ele sempre fora vítima de
uma intriga armada por aquele a quem sempre chamara “o fiel Heinrich”. Mas
isso não ficará assim, ele não será sucedido por um traidor. Que o
Generaloberst Ritter von Greim abandone imediatamente Berlim e prenda
Himmler.
À partir de agora, a simples presença de um oficial SS tornar-se-á
insuportável para Hitler. Toma conhecimento de que seu cunhado Hermann
Fegelein, Gruppenführer SS, representante de Himmler em seu QG, deixou-o
sem autorização e foi encontrado em trajes civis. Fegelein é imediatamente
fuzilado por sua ordem. O testamento do Führer nada deixa a Himmler: “O
antigo Reichsführer SS e ministro do Interior, Heinrich Himmler, será banido
do Partido, não deverá ser investido em qualquer cargo oficial… Göring e
Himmler, além de sua deslealdade para comigo, causaram o maior mal ao país
e ao povo alemão, tentando obter o poder…”
Morto Adolf Hitler, seu servidor Himmler continua a acreditar em seu futuro
grande papel de orientador dos destinos da Alemanha. Seus oferecimentos de
capitulação são rejeitados pelos Aliados, mas isso não diminuirá suas ilusões.
Já esboça um novo partido nacional-socialista, que se intitulará Nationale
Sammlungspartei (Partido Nacional do Reagrupamento), e lança no ar as
bases de um governo onde Otto Ohlendorf, chefe dos Serviços Interiores do
SD, do qual discordou tanto tempo, terá uma pasta de ministro. Mas a Grande
Alemanha despedaça-se aos pés dos Aliados, que reduzem as pretensões de
Himmler. Primeiro, ele se considera o futuro Führer: em seguida, pensa em
ocupar as funções de segundo do Almirante Karl Dönitz, sucessor de Hitler;
afinal, diz que se contentará com o cargo de chefe de polícia.
Quando desaparece também o microimpério do Almirante Dönitz, Himmler
percebe finalmente que está perdido. O Conde Scwerin von Krosig adivinha
seus pensamentos secretos. Himmler tem dificuldade em manter as aparências
à sua volta, e sempre diz: “Comportem-se senhores! Comportem-se! “Von
Krosig a Himmler: “É preciso evitar de qualquer forma que o antigo
Reichsführer SS seja preso sob um nome falso, escondido atrás de uma barba
postiça. Não lhe resta outra solução: apresente-se ao Marechal Montgomery e
diga-lhe: Estou aqui, para assumir a responsabilidade por meus atos”.
Himmler não segue os conselhos do conde. Em 20 de maio de 1945, refugia-
se no anonimato. Usa um tapa-olho e papéis de identidade com o nome de
Heinrich Hitzinger, cidadão alemão que havia sido condenado à morte pelo
Volksgerichtshof (Tribunal do Povo) e executado. Himmler é acompanhado
por alguns amigos fiéis, entre os quais Ohlendorf. Atravessa Holstein, cruza o
Elba e tenta enganar a vigilância inglesa. Mas os ingleses estão preparados e
em 23 de maio o grupo é preso e transferido para o centro da polícia militar
inglesa n.31, perto de Lüneburg.
Quando o Capitão Tom Selvester, comandante do centro, inspeciona o grupo,
sente a atenção despertada por três homens: “Dois eram de estatura alta; o
terceiro, baixo, com ar doentio, trazendo roupas estragadas. Mandei que
viessem a meu gabinete. Depois de breve conversação, separei-os e comecei a
observar mais de perto ao terceiro. Quando os companheiros saíram, ele
retirou o tapa-olho, pôs os óculos e disse-me com voz tranquila: “Heinrich
Himmler”.
Selvester imediatamente avisou os serviços secretos. Dois oficiais do
Intelligence Corps chegaram, seguidos de Michael Murphy, oficial de
segurança do estado-maior de Montgomery. Murphy suspeita imediatamente
que Himmler traga consigo veneno. Revistado, é efetivamente encontrada
uma ampola: mas Murphy continua desconfiado e manda vir um médico. Na
boca do prisioneiro, o médico vê brilhar um objeto negro. Pede-lhe que volte
o rosto para junto da luz. Mas Himmler vira-se bruscamente e trinca os dentes
em um golpe seco. Quebra-se o vidro do veneno: ao Reichsführer SS restou
apenas poucas horas de vida.
Em 23 de maio de 1945, Heinrich Himmler está morto. A história está agora
terminada. A Ordem Negra dissolve-se no crepúsculo cheio de chamas dos
deuses pardos.
Alguns chefes SS seguem o exemplo do mestre da Ordem. Entre eles, o
assassino de judeus, Globocnik, o médico SS Grawitz, Conti, os HSSPF
Krüger e Prützmann. A maioria dos outros colaboradores enfrentará tribunais
militares aliados e cortes européias de justiça. Vários são condenados à morte
e executados. Assim terminam o comandante de Auschwitz, Hoss, os HSSPF
Jeckeln, Korsemann e Reuter, os chefes de direções centrais SS
Kaltenbrunner, Pohl e Daluege, os comandantes dos Einsatzgruppen
Ohlendorf e Naumann, os oficiais ad honorem Greiser, Forster e Seyss-
Inquart. A grande maioria dos chefes SS é condenada à prisão. Quase todos
serão libertados antes de concluir suas penas. Assim, sobreviverão ao Reich
16 oficiais superiores SS e de polícia (HSSPF) dos 30 existentes; oito chefes
de direções centrais, entre 12; tres chefes de direções do RSHA, entre seis;
três comandantes dos Einsatzgruppen na Rússia, entre oito. Algumas das
figuras mais sombrias do labirinto SS conseguirão fugir. O pior deles,
Eichmann, será preso por agentes israelitas e condenado à morte, em 1961.
Mas os principais auxiliares de Eichmann, Alois Brunner, Günther,
Dannecker, Röthke, assim como o chefe da Gestapo Müller e o inspetor KZ
Glücke, desapareceram de cena. Ninguém sabe onde se encontram hoje.
O desaparecimento do III Reich e desta Schutzstaffel que procurava a sua
grandeza inicia um debate até hoje não concluído: como milhares, dezenas de
milhares de homens, puderam ser levados a colocar-se, com tanto entusiasmo,
a serviço de um ideal tão perverso e tão contrário à justiça e à honra?
A crônica da Ordem Negra de Heinrich Himmler, como um filme que passa
diante de nossos olhos, conta a história sem responder à pergunta. Qual é essa
história? É a história de uma geração perdida, de uma geração educada no
desprezo da cultura e da moral burguesa tradicional, de uma geração de
homens seduzidos por uma Ordem que lhes prometia a aventura
extraordinária de uma comunidade de homens no sentido tribal da palavra, a
aventura de uma comunidade de homens a serviço de uma idéia encarnada
por um suposto gênio.
Esses homens tinham fé no que pregavam: comunidade do povo, comunhão
do povo, pátria, grandeza, ordem social nova. Tiveram fé e colocaram-se a
serviço da Ordem, que se propunha a realizar seus ideais. Não perceberam
que essa Ordem, a sua Ordem, instrumento colocado nas mãos de um ditador
sem fé e sem lei, havia-se transformado rapidamente em uma organização de
carrascos.
E mais ainda: consciente ou inconscientemente, haviam dado seu apoio à
vontade demente de um ditador.
“Nós dissemos não, quando, depois de Munique, nossas tropas ocuparam o
Protetorado?” — perguntaria mais tarde o Untersturmführer Erich Kernmayr,
em uma áspera discussão com companheiros em um campo aliado. “Teríamos
dito não em nosso foro íntimo? Absolutamente, aprovamos tudo. Estávamos
tomados pelo delírio do poder. Sim, o mundo inteiro nos pertencia. Sim, o
mundo inteiro estaria hoje a nossos pés.”
Algumas das siglas empregadas
neste livro

SS (Schutzstaffel): as formações de base da SS usam o nome de Allgemeine


SS ou SS ordinária. Pouco a pouco, cedem lugar a formações especiais
melhor adaptadas a diversidade das tarefas que cabem à Ordem Negra: TV
(Totenkopfverbände), unidades que asseguram a vigilância dos campos de
concentração; VT (Verfugunsgstruppen), unidades com missões especiais, de
onde nascerá o exército SS (Waffen-SS)

SA (Sturmabteilung): Seção de Assalto. Esta tropa foi fundada em 1921, por


Ernst Rohm. Desde o início, há um equívoco quanto a seu papel. Para Hitler,
é um instrumento de acesso ao poder e deve submeter-se ao NSDAP. Para
Rohm, deve continuar a ser instrumento autônomo (a serviço exclusivo de
suas próprias ambições) . Há um choque irredutível, obrigando Hitler a criar
uma guarda que lhe será inteiramente devotada: a SS.

SD (Sicherheitsdienst): Serviços de Segurança do Reichsführer SS.

RSHA (Reichssicherheitshauptamt): Administração Central da Segurança.


Abrange o SD e o conjunto das polícias do Reich.

Abwehr: Serviço da Espionagem Militar do alto-comando da Wehrmacht. Sua


absorção pelo RSHA priva, em 1940, o OKW de qualquer serviço de
espionagem independente.

OKW (Oberkommando der Wehrmacht); Alto-Comando Militar. Tenta frear a


expansão do exército negro (Waffen-SS), no qual vê um concorrente. Durante
a guerra, o OKW abrange o conjunto das forças armadas do Reich: a
Wehrmacht e a Waffen-SS.
SIPO (Sicherheitspolizei): Polícia de Segurança. Resulta da fusão (nominal),
operada por Himmler, da Gestapo (Geheime Staatspolizei) ou Polícia Secreta
do Estado e da Kripo (Kriminalpolizei) ou Polícia Criminal.

ORPO (Ordnungspolizei): Polícia da Ordem. Reúne o conjunto das forças de


polícia convencionais (rodoviária, alfandegária, gendarmaria) e forma uma
direção paralela à Sipo.

GESTAPA (Geheimes Staatspolizeiamt): Direção da Polícia Secreta do


Estado (polícia política ou Gestapo) e LKPA (Landeskriminalpolizeiamt):
Direção da Polícia Criminal. São as duas instâncias administrativas sôbre as
quais se apoia a Sipo. O LKPA toma, em 1937, o nome de RKPA
(Reichskriminalpolizeiamt).

WVHA (Wirtschaftsverwaltungshauptamt): Direção Econômica SS.


Administra as indústrias de Himmler e entra em conflito com o RSHA,
comprometendo o plano de extermínio dos judeus, com os quais a WVHA
queria fazer um exército de escravos para o trabalho no interior dos campos
de concentração.

RUSHA (Rasse-und Siedlungshauptamt): Direção SS da Raça e do


Povoamento. Encarregada de tôdas as questões referentes à “pureza do
sangue”, no interior da SS e fora dela. Dirige também (em princípio) os
problemas de colonização alemã nas zonas de ocupação orientais.

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