Heinz Höhne - SS A Ordem Negra-BIBLIEX (1970)
Heinz Höhne - SS A Ordem Negra-BIBLIEX (1970)
Heinz Höhne - SS A Ordem Negra-BIBLIEX (1970)
SS
A ORDEM NEGRA
Capa de
Murillo Machado
Heinrich Himmler
A Tomada do Poder
“ADOLF NOS TRAI” esse era o slogan que corria de novo nas fileiras da SA,
como em 1931, por ocasião do problema Stennes. Os chefes da SA tinham o
sentimento de que o famoso “exército da revolução nacional-socialista” não
valia de nada no Estado nacional-socialista.
Durante anos havia-se insuflado nas fileiras da SA o ideal da revolução.
Havia-se preparado este exército prevendo-se a tomada do poder pelos
nacional-socialistas. Chegara o dia. A tomada do poder fora calma e até com
um aparente respeito a Constituição. E o Partido encontrava-se no poder com
um exército do qual não precisava. Era necessário que a SA se fundisse com a
Reichswehr e formasse com ela um grande exército nacional-socialista do
povo — tais eram agora as diretivas do Partido.
Mas Röhm considerava a SA a célula-mater de um exército de novo tipo.
Desprezando o exército tradicional de seus chefes, Röhm defende a idéia de
uma milícia nacional. E esta milícia nacional será a SA, ainda que não lhe
deem carta branca, a ele, Röhm, o futuro general-em-chefe da nova
Wehrmacht alemã.
Ele dispõe de poderosos quadros; virtualmente comanda um exército de
500.000 homens (SA considerada ativa), ou seja, cinco vezes mais do que a
Reichswehr existente. Este exército do Partido conta com 5 Obergruppen SA
(exércitos) e 18 Gruppen (corpos de exército). Dispõe de um estado-maior
cujos postos de responsabilidade são todos ocupados por antigos oficiais. Para
os oficiais superiores da Reichswehr, a SA, formidável reserva de homens,
servirá para a edificação de um exército novo, logo que o país esteja livre das
imposições do Tratado de Versalhes que fixam estreitos limites ao armamento
alemão. As ordens de Hitler são no sentido de uma fusão SA-Reichswehr, e
Röhm entra em conversações com o exército regular. Ele, que despreza
soberanamente os generais da “velha escola”, vai enfrentar um homem de
disposição particularmente férrea e que está precisamente entre as figuras de
proa da Reichswehr.
Walther von Reichenau, general de Artilharia, desportista, chefe de gabinete
do Ministério da Defesa Nacional, por usar monóculo não deixa de ser um
político astuto, que sabe, quando necessário, esquecer os sacrossantos
princípios da tradição militar prussiana. Para Reichenau, o assunto é simples:
o arsenal militar da SA será absorvido pela Reichswehr. Paralelamente e ao
mesmo tempo serão neutralizadas as perigosas ambições de Röhm. Para
vencer Röhm, é preciso primeiro insuflar suas ambições, o que permitirá
afastá-lo, mais tarde, com facilidade.
Em meados de maio de 1933, SA e Reichswehr concluem um tratado,
segundo o qual a SA, a SS e a associação de antigos combatentes Stahlhelm
são colocadas sob a autoridade central do Ministério da Defesa Nacional.
Estipula-se ainda que Röhm absorverá em sua SA as associações de
combatentes dos partidos de extrema-direita e especialmente a associação
Stahlhelm, a mais importante e a mais disciplinada entre elas.
O plano de Reichenau é tão simples quanto astucioso: se a Stahlhelm, que
representa um milhão de homens, incorpora-se subitamente à SA, se por outro
lado postos de responsabilidade do serviço de instrução agora criado e
encarregado de dar cada ano uma formação militar de base a 250.000 SA são
confiados a homens da Reichswehr, a posição de Röhm ficará
consideravelmente enfraquecida e poder-se-á eliminá-lo do circuito.
Parcialmente, a manobra tem êxito. Os postos-chave de instrução militar são
todos confiados a oficiais da ativa. A operação Stahlhelm, entretanto,
fracassa, porque Röhm cinde a SA em três grupos de diferente importância. A
SA chamada da ativa, ou seja, 500.000 homens, ele incorpora apenas 314.000
homens do Stahlhelm, conservando assim seu exército em maioria.
A frente, desde então, de 4,5 milhões de homens, Röhm passa à
contraofensiva. Nomeado, em l.° de dezembro, Ministro sem Pasta, entra em
entendimentos com o adido militar francês em Berlim, já que a França se
declarou preparada, por ocasião da conferência de Genebra sobre
desarmamento, a conceder à Alemanha o direito de uma polícia reforçada. Em
seguida, dirige ao Ministério da Defesa Nacional um me morando onde
comunica seus entendimentos: segundo este memorando, a Defesa Nacional
será dirigida pela SA. Quanto à Reichswehr, seu papel ficará limitado à
instrução militar.
Von Blomberg, ministro da Defesa Nacional, apela então para Hitler. Não
desejando desprestigiar seu amigo Röhm com cujas opiniões ele concorda,
mas ao mesmo tempo desejoso de utilizar os militares, dos quais precisará
para realizar seu programa de expansão, o Führer procura um entendimento.
Blomberg e Röhm são solicitados a aceitar um pacto, segundo o qual a
Reichswehr será a única organização armada oficial do III Reich. A SA obtém
o monopólio da formação pré e pós-militar. Depois de um almoço com
champanha, no quartel-general de Röhm, para selar o acordo, os chefes da SA
e von Blomberg apertam-se as mãos com efusão.
Mas logo que se retiram os oficiais da Reichswehr, Röhm revela a sua cólera:
“O que diz o pretenso Führer não nos interessa”; “Hitler é um traidor, é
preciso que o façamos tomar férias”; ou ainda, “Se as coisas não se podem
fazer com Hitler, isso não importa, faremos sem ele”.
Colado em sua cadeira, o Obergruppenführer SA Viktor Lutze ouve
inquietamente as explosões de raiva de seu chefe. Tudo isto tem um cheiro de
alta traição que não lhe agrada. Ele vai comunicar-se com quem de direito.
No princípio de março de 1934, Lutze visita Rudolf Hess, o “representante do
Führer”, e descreve-lhe o comportamento de Röhm. Hess não sabe o que
dizer nem o que fazer. Lutze vai então a Berchtesgaden e fala diretamente
com Hitler. Comunica ao Führer o descontentamento que reina na SA contra a
direção do III Reich. Também Hitler não sabe o que fazer: “É preciso deixar
que isso amadureça”. Lutze volta vencido de Berchtesgaden. Vai queimar
seus últimos cartuchos junto ao General von Reichenau.
Von Reichenau ouve atentamente. Lutze ignora que seu confessor está em
entendimentos há vários dias com um general-de-brigada SS, que tem idéias
muito pessoais sobre como resolver a questão Röhm. Reinhard Heydrich,
chefe da Gestapo e do SD, está há muito tempo decidido a pura e
simplesmente liquidar Röhm e sua clique. Precisou de algum tempo para
convencer Himmler dessa idéia. O Reichsführer SS lembrava-se com emoção
do tempo em que se batera ao lado do Capitão Röhm pela causa nazista. E
depois ficaram bons amigos, são incontáveis os discursos tão pedantes quanto
bajuladores que se trocaram com elogios mútuos, o número de banquetes em
que levantaram brindes às respectivas glórias.
Entretanto, Heydrich consegue ganho de causa junto ao seu chefe. A amizade
de Himmler por Röhm encontra-se relegada a segundo plano, na primavera de
1934, por uma consideração inteiramente oportunista, ou seja, a aliança com
Göring, condição sine qua non para que a SS dominasse a Gestapo. Os termos
do problema são simples: sem Göring, a Gestapo escaparia ao controle da SS;
sem a eliminação de Röhm, não haveria colaboração possível com Göring,
pois a SA ameaçava cada vez mais a sua soberania na Prússia.
Himmler deixa-se, então, convencer pelas idéias de Heydrich, tanto mais que
todos ou quase todos tinham interesse na eliminação do clã de Röhm e no
desmantelamento da SA: a Reichswehr livrar-se-ia de um concorrente;
Göring, de um adversário; o Partido e os guardas da moral nazista, de um
debochado notório. Quanto à SS, poderá enfim romper os últimos grilhões
que ainda a prendem à SA.
No fim de abril de 1934, a sorte de Röhm está decidida. Enquanto Himmler
prepara a SS para dar um golpe decisivo na SA, Heydrich estende a armadilha
que deve provocar o desaparecimento do chefe do estado-maior da SA e de
seus amigos. Heydrich consagra o mês de maio a reunir provas suscetíveis de
convencer os responsáveis da Reichswehr e ao próprio Führer dos projetos de
rebelião de Röhm.
Tais informações lhe são fornecidas principalmente pelo Untersturmführer SS
Friedrich Wilhelm Krüger, que desempenha suas funções na SA, onde serve
de espião para Himmler.
Apesar dos esforços de Krüger, a colheita é pobre. Algumas informações
referentes a depósitos de armas da SA em Berlim, em Munique e na Silésia e
algumas propostas sediciosas mencionadas por chefes da SA depois de terem
bebido. É tudo o que se consegue. Isso seria pouco para acusar Röhm de alta
traição. Muitos indícios evidenciam claramente que a SA pensa em tudo
menos em um putsch. O que ela quer e o que quer Röhm é colocar Hitler em
posição que lhe obrigue a conceder à SA o lugar que ela reivindica no Estado
e sobretudo no setor da Defesa Nacional. Para fazer isso, Röhm adotou uma
tática perigosa: iniciou contra Hitler uma guerra de nervos. Viajando de grupo
SA em grupo SA, pronuncia discursos beligerantes, faz manobrar suas tropas,
pensando assim amolecer a resistência do Führer.
O que Röhm esqueceu, fazendo isso, foi a reação popular. O povo teme uma
tomada do poder pela SA na Alemanha. Para os militares, as pretensões da SA
de assumir a defesa nacional do país parecem risíveis mas também perigosas.
E se a maioria dos oficiais pensa que o estado-maior não pretende
verdadeiramente tentar um putsch, têm pressa, como diz um deles, de “limpar
os estábulos dos camisas pardas, que parecem aos de Augias”.
Assim pensa também von Reichenau, visto com mais frequência na Gestapo e
que põe à disposição do chefe do SD quartéis, armas e meios de transporte, a
fim de facilitar a operação contra a SA. Já em 1932 von Reichenau dissera ao
Capitão Felix Steiner, futuro general Waffen-SS, que a SA terminaria
“comendo pela mão dos militares”. Os comandos de assassinos a soldo de
Heydrich estavam agora realizando, à sua maneira, essa profecia.
No início de junho, o Oberführer SS Theodor Eicke, comandante de Dachau,
começa a ensaiar a esperada ação relâmpago que lançaria seus homens sobre
Munique, Lechfeld e Bad-Wiessee. Ao mesmo tempo, as seções SS de
Munique são colocadas em estado de alerta.
De Norte a Sul, de Leste a Oeste, Heydrich mobiliza as suas tropas. Pretende
quebrar a resistência da SA, sobretudo na Baviera, em Berlim, na Silésia e no
Saxe. Mas tudo está organizado para a hipótese de haver resistência, e
Heydrich nada teme. Fecha-se o círculo sobre uma SA que de nada suspeita.
O infatigável chefe do SD passa então à última fase dos preparativos. Contra
quem deve ser desferido o golpe mortal que desfechará sobre a SA? Heydrich
põe seus homens de confiança na pista dos íntimos de Röhm e encarrega-os
de estabelecer a lista dos candidatos à morte.
No fim de abril, Eicke apresenta-lhe uma primeira lista de indivíduos a serem
liquidados. Traz, praticamente, apenas os nomes dos chefes da SA. Eis,
porém, que germina uma idéia no espírito de Heydrich: já que há a decisão de
fazer-se uma limpeza, por que não aproveitar para, ao mesmo tempo,
eliminar-se os adversários mais perigosos do regime? As listas de Heydrich
aumentam dia a dia, semana a semana. Todos os escalões superiores do SD
fornecem sua própria lista. Quanto à SS e à Gestapo, para não ficarem atrás,
fornecem também as suas. Göring faz a sua lista, o gauleiter da Baviera
apresenta outra. Discute-se em seguida para saber se tal ou qual pessoa deve
ser perdoada, se este ou aquele também não deveria desaparecer. O
comandante SD bávaro Werner Best quer evitar a morte do “bravo e fiel”
Obergruppenführer SA Schneidhuber; Heydrich replica que o considera tão
perigoso quanto os outros. Göring retira o nome do antigo chefe de sua
Gestapo, Diels, que figura em uma das listas negras de Heydrich submetidas à
sua aprovação.
Em seguida há uma peripécia inesperada. A Gestapo avisa que Hitler e Röhm
entenderam-se para chegar à solução do problema SA-Reichswehr. Depois de
horas de discussões, foi resolvido em 4 de junho que a SA ficaria inativa
durante um mês, a contar de l.° de julho. Isto não iria ajudar os negócios de
Heydrich. Seria difícil acusar uma SA em licença de fomentar um golpe de
Estado. Já o comandante SA de Berlim, Ernst, toma providências para passar
agradáveis férias nas Canárias: o Gruppenführer Georg von Detten, chefe do
serviço político do estado-maior da SA, avisa seus auxiliares diretos da
próxima viagem que vai fazer a Bad-Wildungen, aproveitando as férias. No
meio desses projetos de turismo, o pseudoputsch inventado por Heydrich não
poderia convencer ninguém. Seria preciso agir depressa para que não fosse
prejudicado o plano elaborado com tantos esforços. Pois o plano está pronto:
os comandos de assassinos esperam apenas o momento de agir. Resta,
entretanto, um fator de incerteza: qual será a reação de Hitler?
É difícil de saber. Hitler sempre evitou entrar abertamente em conflito com a
SA. Durante algum tempo fez jogo duplo, ora dando seu apoio ao exército dos
camisas pardas, ora insinuando que poderia pura e simplesmente dissolvê-lo.
Incapaz de decidir-se por um lado ou pelo outro, o Führer não tem recursos
suficientes para mostrar a seu amigo Röhm que não se curvará às suas
exigências cada vez mais fortes.
A esperança de Hitler é a de que alguém venha trazer-lhe a solução que ele
próprio não consegue encontrar. E eis que três homens — Heydrich, Himmler
e Göring — submetem-lhe um plano preciso, com uma solução também
precisa e definitiva, para este espinhoso problema. Hitler hesita. Ainda não
havia comunicado sua decisão, quando surge um acontecimento grave.
Em 17 de junho, o vice-chanceler do Reich, Franz von Papen, em tonitruante
discurso pronunciado na Universidade de Marburg, refere-se a “tudo isso que
dissimula o egoísmo, a tudo o que se oculta sob o manto da revolução alemã”.
“Confusão entre brutalidade e virilidade… Métodos terroristas no domínio da
justiça… Materialismo sectário a que se emprestam aparências de
religiosidade…” Tais são os termos do orador, que recebe vivos aplausos.
O sucesso do discurso evidencia a sobrevivência tenaz de certa oposição ao
Reich nos meios da burguesia. Hitler está muito inquieto: que acontecerá se
os descontentes da SA se aliarem aos da burguesia? A questão está longe de
ser ociosa. A Gestapo já localizara fios tênues, porém reais, correndo de um
campo a outro. Todos levam a uma personalidade que representa tanto a SA
quanto os conservadores. Trata-se do Príncipe August Wilhelm, da Prússia,
Gruppenführer SA e filho do último Imperador Hohenzollern, que os
monarquistas reservam como sucessor do Marechal-de-Campo Paul von
Hindenburg, presidente do Reich, agora com oitenta e seis anos de idade.
Hitler já decidira a não contentar-se com as funções de chanceler do Reich,
quando morresse Hindenburg. Está resolvido a uma tomada total do poder.
Enquanto Hindenburg vivesse, não haveria possibilidade de impor-se esta
ditadura à Alemanha, pelo prestígio de que goza o Feldmarschall junto ao
povo e sobretudo junto aos generais do Império. Na verdade, é sobretudo a
Reichswehr que barra a passagem ao ambicionado poder ditatorial. Quando
Hindenburg desaparecer, o problema será diferente, o objetivo estará
próximo. Mas a Reichswehr continuará o árbitro da situação. Sem ele, sabe-o
Hitler, seu plano não se manterá de pé, suas ambições continuarão
irrealizáveis.
Quatro dias depois do abalo causado pelo discurso de von Papen, o ministro
da Defesa Nacional, Werner von Blomberg, enviado por Hindenburg,
conversa com o Führer sobre a necessidade de restabelecer-se imediatamente
a ordem no interior do país. Deixa-lhe entender que se ele quiser impor,
depois de Hindenburg, o seu próprio regime, será preciso que se decida a
eliminar a SA, concorrente da Reichswehr. Desde então está tomada a decisão
do Führer. Em 25 de junho von Blomberg é informado do desejo de Hitler de
libertar a Reichswehr do pesadelo dos camisas pardas. Os oficiais do estado-
maior da SA, precisa Hitler, serão convidados a uma sessão plenária em Bad-
Wiessee, lugar de cura de Röhm. Será procedida a sua prisão; Hitler reserva-
se o direito de acertar contas com cada um deles. Dois dias mais tarde, o chefe
da Leibstandarte de Adolf Hitler, Sepp Dietrich, vai ao Ministério da Defesa
Nacional e solicita a entrega de armas para “uma missão muito importante
confiada a seus cuidados pelo Führer”.
Sepp Dietrich recebeu ordem de reunir-se, no dia D previsto para o putsch
Röhm, a duas companhias da Leibstandarte, as unidades de Eicke em Dachau,
e marchar sobre Bad-Wiessee, prendendo de surpresa os chefes da SA.
De seu lado, von Reichenau, Heydrich e Himmler ultimam os detalhes do
putsch. Em 22 de junho, o Oberabschnittführer SS Freiherr von Eberstein
recebe ordem de pôr suas tropas em estado de alerta. Em 23 de junho, o
Generaloberst Fromm, chefe dos serviços gerais do Exército, informa a seus
oficiais de um projeto de golpe de estado fomentado por Röhm. Em 24 de
junho, o General Freiherr von Fritsch ordena a todos os oficiais superiores a
se prepararem para impedir uma tentativa próxima de putsch promovida pela
SA e a reunir discretamente suas tropas. Em 27 de junho, Himmler reúne os
Oberabschnittführer SD, cuja missão é vigiar os menores movimentos
suspeitos da SA.
É curioso: quanto mais avançam os preparativos e mais se fecha o círculo de
morte em torno do clã Röhm, mais o affaire toma um caráter irreal: contam-se
nos dedos os oficiais da Reichswehr que acreditam seriamente em uma
tentativa de putsch da SA.
Depois da queda do “império milenar” de Adolf Hitler, quando se procurarem
os responsáveis por estas bodas de sangue, os militares jurarão pelos seus
grandes deuses que o putsch da SA lhes parecia iminente. Na realidade, nada
existiu, e os testemunhos demonstram que antes da operação Röhm ninguém
— ou quase ninguém -— levava a sério a pretensa ameaça da SA. Assim,
Gotthard Heinrich, Oberst em exercício nos serviços gerais da Armada, diz
quando colocam um fuzil em seu escritório para que se defenda, se
necessário, contra os golpistas da SA: “Por favor, não sejam ridículos!”
Quanto ao General Ewald von Kleist, comandante das tropas da Silésia,
acredita tampouco no golpe, a ponto de começar por sua própria conta um
inquérito que quase faz fracassar o plano concebido por von Reichenau e
Heydrich. Inundado de informações, segundo as quais a SA ia tentar um
golpe, von Kleist, decidido a ter a consciência tranquila, convoca o
comandante da SA na Silésia, Heines, e pergunta-lhe cruamente o que se está
passando. Heines responde que não sabe de coisa alguma e jura que nunca
sonhou com qualquer ação contra a Reichswehr. Von Kleist vai a Berlim e
encontra-se com o General von Fritsch: no seu entender, tudo era uma
invenção da SS, com o objetivo de criar atritos entre a SA e a Reichswehr.
Von Fritsch convoca von Reichenau e pede-lhe sua opinião; Reichenau
considera os dois homens com seu olhar frio através do monóculo e responde
no mesmo tom: “É bem possível que os senhores tenham razão, mas de
qualquer forma agora é tarde demais”.
As pessoas do gênero de Heinrich e von Kleist mostram-se embaraçosas.
Heydrich trata de iniciar uma campanha de boatos, de falsas notícias
misturadas a verdadeiras, tudo com o objetivo de fazer calarem-se os
escrupulosos e de semear a dúvida nos espíritos mais convencidos da
impossibilidade de um putsch da SA. Com esse objetivo, Sepp Dietrich
transmite ao Ministério da Defesa Nacional um documento que teria vindo da
SA, prevendo pura e simplesmente a liquidação de todos os oficiais
superiores da Wehrmacht, começando pelos Generais Beck e von Fritsch.
Outros documentos falsificados circulam em toda a parte nos meios militares
alemães. Todos esses preparativos, levados a cabo com extremo cuidado, e
com a quase certeza do sucesso, não libertam da inquietação os adversários de
Röhm: a posição do Führer é sempre pouco clara. Sem dúvida Hitler deu seu
aval à ação que se desenvolve contra a SA, mas isso não lhe impede de
mostrar cada dia uma grande indecisão. Lealdade para com seu velho amigo
Röhm? Sentimento de perder com a SA um sustentáculo essencial a seus
projetos de ditadura, um contrapeso à influência da Reichswehr? Quem pode
saber?
Em 28 de junho, ainda não se sabe que partido tomou Hitler. Se os
adversários de Röhm tivessem tido conhecimento do encontro entre o Führer
e von Krausser, Obergruppenführer SA e representante pessoal de Röhm,
teriam ficado ainda mais inquietos.
Algumas horas antes de ser executado, von Krausser confiará ao
Gruppenführer SA Schreyer, que compartilha sua cela, o que se passara
naquele encontro: Hitler o recebera em 29 de junho. Mostrou-se bem
acomodado. Disse-lhe que tinha a intenção de aproveitar a sessão de Bad-
Wiessee para discutir a fundo os problemas da SA e trazer-lhes, enfim, uma
solução; que havia cometido erros em relação a vários chefes da SA e ia
repará-los; que de qualquer forma Röhm conservaria suas funções de chefe do
estado-maior da SA.
Um Führer tão hesitante não convém ao trio Himmler-Göring-Heydrich. Seria
melhor afastá-lo, em dias tão decisivos, do comando do poder. Mas como
fazê-lo?
Feliz coincidência, a 28 de junho Hitler resolve viajar em companhia de
Göring para a Westfalia, onde assistirá ao casamento do gauleiter Josef
Terboven. Esta viagem é comumente interpretada pelos historiadores como
tendo sido conscientemente planejada pelo Führer. Hitler teria partido para
permitir a Heydrich, Himmler e Göring agir com a maior discrição possível.
Tal interpretação parece errônea. Na realidade, ela está em contradição com a
tática geralmente adotada pelos adversários de Röhm. Esta tática consiste
essencialmente em uma campanha espetacular de propaganda anti-Röhm,
destinada a preparar o povo para o próximo banho de sangue. Assim, a 25 de
junho, Rudolf Hess declara em discurso pelo rádio: “Infelizes os que
acreditam servir a Revolução organizando uma revolta! Adolf Hitler é o
grande estrategista da Revolução! Ninguém está autorizado a romper os fios
pacientemente tecidos por este estrategista. Quem o fizer deve ser
considerado um inimigo da Revolução!” Ainda em 25 de junho, von
Reichenau exclui Röhm da associação dos oficiais alemães, de que participa.
Afinal, no mesmo dia, Göring declara em violento discurso: “Quem não tem
confiança em Hitler, comete um ato de alta traição. Quem destrói essa
confiança, destrói a Alemanha e deve temer por sua cabeça”.
Pode-se lançar desafio mais claro? E como conciliar tal desafio público com a
interpretação segundo a qual a viagem de Hitler é apenas uma manobra de
despistamento? Na realidade, os organizadores do golpe contra a SA ficaram
felizes em saber que o Führer estaria longe de Berlim. Lutze, o rival de Röhm,
também convidado para a mesa de Terboven, dirá: “Tive a impressão de que
algumas pessoas tinham interesse em aproveitar a ausência de Hitler para
acelerar o rumo dos acontecimentos e chegar a uma conclusão rápida”.
Mal Hitler se juntou aos convidados de Terboven, em Essen, é chamado por
um telefonema urgente de Berlim. Himmler transmite ao Führer as últimas e
ameaçadoras notícias sobre a maquinação da SA. O fiel Göring está ao lado
de Hitler, como por acaso, para proporcionar uma interpretação adequada.
Amolado, Hitler abandona as cerimônias e retira-se para o Hotel Kaiserhof,
onde se hospeda, e aconselha-se com seus colaboradores mais próximos, entre
os quais Göring e Lutze. O telefone funcionou sem descanso. Chovem
notícias. Parece que em todo o país a SA prepara-se ativamente para uma
revolta contra a Reichswehr.
Hitler explode: “Já estou cansado! Vou dar um exemplo!” A sentença final
acaba de ser proferida. Hitler ordena a Göring que volte imediatamente a
Berlim e espere sua chamada para começar a ação. Esta ação, precisa Hitler,
atinge tanto a SA quanto os outros adversários do regime. Göring não perde
tempo. Em 29 de junho, de volta a Berlim, põe em estado de alerta a
Leibstandarte Adolf Hitler e a Landespolizeigruppe General Göring.
No mesmo dia é enviada uma carta a Heydrich, levada pelo Untersturmführer
Ernst Müller, com ordem de fazê-la chegar sem demora ao
Oberabschnittführer SS responsável pelo Sudeste alemão. Seu conteúdo: o
chanceler do Reich teria delegado poderes a Göring. Com a força desses
poderes na Prússia, Göring dá ordem ao responsável SS do setor Sudeste, Udo
von Woyrsch, de prender todos os chefes SA da região, ocupar militarmente a
chefia de polícia de Breslau e reunir suas forças às do chefe de polícia da
Länd.
Durante esse tempo em Essen, Hitler pensa em como deverá agir para
surpreender o estado-maior da SA. Relembra o plano que anteriormente havia
apresentado ao Ministro von Blomberg: atrair os oficiais superiores da SA a
Bad-Wiessee e prendê-los. Em 28 de junho Hitler telefona a Röhm: homens
da SA teriam molestado um diplomata estrangeiro na região do Reno. Isto não
podia continuar. Era preciso uma explicação. Todos os Obergruppenführer,
Gruppenführer e inspetores da SA deveriam reunir-se na residência de Röhm
em Bad-Wiessee, a 30 de junho, às onze horas, para uma sessão plenária com
a presença do Führer.
Hitler espera uma reação. Mas ela não virá. A 29 de junho, Röhm faz em Bad-
Wiessee o passeio de costume. Ao seu ordenança, diz o quanto se sente alegre
por poder, afinal, explicar-se com Hitler; e recebe cordialmente os primeiros
chefes da SA, que chegam este dia à pensão Hanselbauer, acatando a ordem
dada pelo Führer.
Do outro lado, a agitação é extrema. A Reichswehr está em pé de guerra.
Todas as unidades da SS estão em seus quartéis, por ordem do Reichsführer
Heinrich Himmler. Hitler conferência no Hotel Dreesem, em Bad-Godesberg,
com os funcionários do Partido, e particularmente com Lutze e Goebbels.
Convoca a Sepp Dietrich, que chega pouco depois. A ordem do Führer é
curta: “Tomem o avião para Munique. Quando chegarem, chamem-me pelo
telefone”. O Gruppenführer SS Dietrich obedece. À meia-noite chama o
Führer de Munique e recebe uma segunda ordem: partir imediatamente para
Kaufering e assumir o comando de duas companhias da Leibstandarte,
dirigindo-se para Bad-Wiessee.
A máquina foi posta em marcha. Sepp Dietrich está a caminho de Kaufering,
quando Hitler recebe duas notícias que o levam a modificar seu plano.
A primeira vem de Berlim: Himmler comunica-lhe que a SA berlinense está
pronta para desferir o golpe, que a ordem de passar à ação é prevista para 30
de junho, às 17 horas, e que a SA começará por dominar os edifícios públicos.
Tudo isto é falso; Hitler não sabe que a maioria dos homens de tropa da SA
berlinense já havia partido em licença. Ainda em 13 de julho, declarará
publicamente que o comandante da SA berlinense, Ernst, em lugar de ir a
Bad-Wiessee, ficou em Berlim para chefiar o golpe de estado. Na realidade,
Ernst deixara Berlim a 29 de junho, para Tenerife, onde pretendia passar as
férias em companhia de sua esposa.
A segunda notícia é tão verdadeira quanto a primeira. Vem-lhe do gauleiter e
Ministro do Interior bávaro Adolf Wagner: em Munique, a SA teria ido para
as ruas com slogans hostis ao Führer e à Reichswehr. A informação é falsa e
verdadeira ao mesmo tempo. Houve efetivamente um desfile SA na noite de
29 de junho. Os manifestantes protestaram contra a atitude da Reichswehr.
Mas tudo havia entrado rapidamente em ordem, tendo os oficiais da SA feito
voltar à calma os seus homens. Um deles, na Königsplatz, disse-lhes o
seguinte: “Voltem tranquilamente para as suas casas e esperem a decisão de
Führer. Qualquer coisa que aconteça, seja qual for a decisão de Adolf Hitler,
quer ele nos autorize a usar este uniforme ou no-lo proíba, ficaremos com o
Führer, ao seu lado”.
Estas duas notícias, transmitidas entre meia-noite e uma hora da manhã,
deixam Hitler em violenta cólera. Agora ele sabia como agir. Os traidores
estavam desmascarados. Röhm mostrara seu verdadeiro rosto. Ia-se poder
esmagar este “verme”.
Sempre sob o impacto da emoção, Hitler toma uma decisão capaz de
surpreender os que estão ao seu lado: “Todos para Munique, imediatamente, e
em seguida para Bad-Wiessee” .
Às duas da manhã, o Führer, acompanhado de seus íntimos, toma seu trimotor
JU52. Seu rosto está descomposto, todo o seu corpo treme. O avião parte e
Hitler continua com os dentes apertados. Quando chega a Munique, pula
literalmente do aparelho. Passa ao lado de membros eminentes do Partido e da
SA, advertidos de sua chegada, sem conceder-lhes o menor olhar, para um
pouco mais longe ao lado de dois oficiais da Reichswehr que ele havia
convocado para sua chegada. Exclama com uma voz surda: “É o pior dia da
minha vida. Mas eu vou a Bad-Wiessee e saberei fazer justiça, tenho certeza.
Advirtam imediatamente ao General Adam de nossas intenções”. Em seguida
Hitler vai ao Ministério do Interior para dar suas instruções. Pouco depois das
quatro horas, toca o telefone em casa do Gruppenführer SA Schmid. Ordem
do Ministério do Interior: Hitler espera o Gruppenführer. Que venha
imediatamente. Schmid obedece. Não terá tempo sequer de abrir a boca. Mal
o chanceler o vê, precipita-se sobre ele, arranca-lhe os galões, qualifica-o de
traidor e grita: “O senhor está preso, o senhor será fuzilado”. Logo Schmid é
levado para a prisão de Munique-Stadelheim. Fora precedido pelo
Obergruppenführer SA Schneidhuber.
Enquanto o gauleiter Wagner solta os comandos da SS e da polícia política
bávara (Bay Po Po) com ordem de prender os chefes da SA e alguns
adversários do regime. Hitler dirige-se para Bad-Wiessee.
São seis e trinta da manhã quando o Führer e sua escolta chegam à pensão
Hanselbauer. Os oficiais da SA ali hospedados ainda dormiam. Os homens de
Hitler precipitam-se para as portas dos quartos, com o revólver na mão. Lutze
fica na recepção e percorre a lista dos hóspedes. Chegará no momento de
assistir à prisão de Röhm. O próprio Hitler está de pé a dois passos do quarto
do chefe do estado-maior da SA. Um policial bate na porta. Que Röhm faça o
favor de abrir, aconteceu uma coisa grave. Passa-se um momento e abre-se a
porta. O Führer precipitasse, revólver em punho. Acusa Röhm de traição;
Röhm replica aos gritos, Hitler não o escuta. Ordena-lhe que se vista e
comunica-lhe sua prisão. Vários policiais ficam ali para vigiar Röhm.
Hitler continua seu caminho. Bate em outra porta. Ela se abre. Aparece o
rosto de Edmund Heines e o de um companheiro que certamente passara a
noite com ele. Goebbels evocará mais tarde esta cena em um discurso bem
comovido: “… uma dessas cenas que provocam enjoo e vontade de vomitar”.
Lutze penetra no quarto. Hitler já está mais adiante, batendo raivosamente em
outras portas. Então diz Heines a Lutze: “Mas meu velho Lutze, eu não fiz
nada, e você sabe perfeitamente; ajude-me em nome de Deus!” Lutze desvia-
se com um ar incomodado: “Não posso dizer nada, não posso fazer nada,
nada”.
Logo, todo o “ninho de traidores” estava limpo. Os prisioneiros foram
encarcerados, um após o outro, na adega da pensão, sob vigilância da Bay Po
Po. Preparam-se para partir, quando surge um caminhão no pátio da
hospedaria. É a guarda do estado-maior de Röhm, armada até os dentes.
Situação perigosa: o chefe da guarda, Julius Uhl, prisioneiro na adega; seus
homens do lado de fora, bem armados, não sabendo o que pensar, mas nem
por isso deixando de fazê-lo.
Então Hitler avança. Pigarreia, depois ordena-lhes, com voz forte, que voltem
a Munique imediatamente. Eles obedecem, mas sem muita convicção.
Tomados de escrúpulos, pararão um pouco adiante, para “ver o que há”. Hitler
considera a situação ameaçadora. Decide deixar Bad-Wiessee e se dirigir para
o Sul. Tudo continua a correr tão bem quanto possível. Hitler e seus
prisioneiros estão na estrada que leva a Munique. Já o diretor da prisão de
Stadelheim, o Dr. Robert Koch, foi avisado da prisão iminente de oficiais
superiores da SA. Na estação de Munique, cheia de SS, os chefes da SA que
partiam para Bad-Wiessee são presos, um após outro, e transportados para
Stadelheim. Quase todos os nomes ilustres da SA estão aí reunidos: Manfred
von Killinger, Hans Peter von Hydebreck, Hans Hayn, Georg von Detten,
Hans Joachim von Falkenhausen.
Um pouco antes das 10 horas, Hitler deixa a estação em direção ao quartel-
general nazista na Briennerstrasse. Chega às 10 horas precisamente. A Casa
Parda está cercada pelas forças da Reichswehr. Hitler penetra no edifício. Faz
um sinal discreto a Goebbels.
O ministro da Propaganda precipita-se para o telefone, chama Göring e
pronuncia a palavra “colibri”. O tão esperado sinal fora dado. Heydrich e
Himmler começam imediatamente a trabalhar. Em todo o território alemão, os
comandantes regionais do SD abrem os envelopes lacrados onde se
encontram as ordens confidenciais. Os comandos da morte começam a
trabalhar por toda parte.
Na Baviera, a tarefa assassina já começara. Homens da SS prendem Ritter
von Kahr, que estivera na origem do fracasso do putsch de Hitler em 1923.
Mais tarde seu corpo será encontrado, mutilado a golpes de picareta, nos
pântanos de Dachau. O Padre Berhard Stempfle, que conhecia alguns
segredos da vida particular de Hitler, morrerá com três balas no coração e a
coluna vertebral quebrada.
Outros homens da SS procuram um médico de Munique, o Dr. Ludwig
Schmitt, colaborador de Otto Strasser, inimigo íntimo de Hitler. Ao
verdadeiro Schmitt não se consegue encontrar; não importa, encontram outra
pessoa que o substitui! E o comando SS prende o crítico musical Wilhelm
Eduard Schmid. O crítico morava em outra rua; seu nome era escrito com
“d”; era doutor em filosofia e não médico; mas todos esses detalhes
pareceram pouco importantes! Levam-no. Sua família não o verá senão em
seu sarcófago, no KZ de Dachau.
Uma vez iniciada a ação, Hitler revela-se particularmente impiedoso. Diz a
quem quer ouvir que não haverá interrupções. Tendo reunido seus
colaboradores próximos na Casa Parda, conduz as decisões: qual será a sorte
dos oficiais da SA presos? Para Buch, o juiz do Partido, chegou a hora da
vingança. Afinal, alcança o que vinha desejando desde 1932, ou seja, a
liquidação do clã Röhm. Rudolf Hess e o diretor das edições nazistas Max
Armann disputam o prazer de assassinar Röhm. Hess grita: “Meu Führer, sou
eu que tenho o dever de abatê-lo!”
Lutze assiste aos debates sem dizer uma palavra. Jamais poderia imaginar que
as coisas se passariam assim. Hitler pergunta-lhe de que pessoas gostaria de
livrar-se. Lutze responde que nada tem a dizer. Deixa a sala. Às 17 horas
chega Martin Bormann, genro de Buch, em companhia de Sepp Dietrich.
Hitler a Dietrich: “Vá imediatamente para o quartel. Peça que lhe deem seis
suboficiais e um oficial e execute esses chefes da SA por alta traição”.
Bormann entrega ao Gruppenführer Dietrich uma lista dos prisioneiros,
enviada de manhã pelo diretor da prisão, Koch.
Aí figuram os nomes dos oficiais da SA presos. Seis desses nomes foram
marcados com uma cruz por Hitler: Auguste Schneidhuber,
Obergruppenführer SA e chefe de polícia de Munique (cela 504); Wilhelm
Schmid, Gruppenführer SA em Munique (cela 497); Hans Peter von
Heydebreck, Gruppenführer SA em Stettin (cela 502); Hans Hayn,
Gruppenführer SA em Dresde (cela 503); o Conde Joachim von Spreti-
Weilbach, Standartenführer em Munique (cela 501) e Edmund Heines,
Obergruppenführer SA e chefe de polícia em Breslau (cela 483).
O nome de Röhm não foi marcado com uma cruz: “Eu agraciei Röhm, tendo
em vista os serviços prestados”, dirá pouco depois o Führer. Quando Sepp
Dietrich, chegado entrementes em Stadelheim, pede que lhe entreguem os
prisioneiros que figuram na lista, Koch, diretor da prisão, discute até perder o
fôlego, para ganhar tempo. Não pode entregar os prisioneiros pois a lista não
foi assinada. Dietrich é obrigado a voltar à Casa Parda. O ministro de Estado,
Wagner, põe sua assinatura sob a lista. Koch tem de obedecer. Vai procurar os
prisioneiros. Quando os oficiais da SA percebem Dietrich, um deles,
Schneidhuber, grita: “Camarada Sepp, o que quer dizer isto? Nós somos
inocentes!” Sepp Dietrich permanece frio como gelo. Nem um músculo de
seu rosto movimenta-se. Bate nos calcanhares e declara: “Vocês foram
condenados à morte pelo Führer, Heil Hitler”. Os oficiais são levados, um
após o outro, para o pátio da prisão. Aí está o pelotão de fuzilamento. Um
oficial SS recebe o grupo com estas palavras: “O Führer e Chanceler do Reich
condenou-vos à morte, execução imediata”. Logo em seguida começam os
tiros. Cai um prisioneiro. Chega outro.
O próprio Sepp Dietrich não aguenta a situação e deixa o lugar antes do fim
das execuções. “Quando chegou a vez de Schneidhuber, fui-me embora. Não
aguentava mais.” No dia seguinte, ao meio-dia, Dietrich voltará a Berlim,
onde campeava o terror desde que Goebbels pronunciara no telefone a palavra
“colibri”. A ação no império de Göring fora iniciada, apesar dos veementes
protestos do Vice-Chanceler Franz von Papen.
Uma lista de pessoas que deveriam ser liquidadas fora entregue a certos
funcionários da Gestapo. Um deles foi encarregado de proceder à prisão dos
supostos inimigos do Estado, apoiado pelos homens de Gildisch,
Hauptsturmführer SS. Gildisch foi pessoalmente encarregado por Göring de
“resolver o caso Klausener”: “Vocês devem ir imediatamente ao Ministério
dos Transportes. Procurem encontrar Klausener e matem-no!”. Gildisch
obedece. Vai ao Ministério, sem preocupar-se um só instante em saber por que
Klausener, chefe de gabinete do Ministério dos Transportes, presidente da
Ação Católica, ex-diretor dos serviços de polícia do Ministério Prussiano do
Interior, deve morrer dessa maneira.
Chega ao lugar às 13 horas. Klausener está lavando as mãos no toalete. O SS
diz que deseja falar-lhe. Klausener volta ao escritório, manda entrar Gildisch
e este lhe diz que está preso. Klausener espanta-se e sem dizer palavra vai a
um armário apanhar o paletó. Gildisch tira então seu revólver e faz fogo.
Klausener cai no mesmo instante, morto com uma bala na cabeça. Gildisch
chama imediatamente Heydrich. Vem a ordem de simular um suicídio. O
assassino SS coloca seu revólver perto da mão direita do morto e vai-se
embora, depois de ter colocado dois homens na porta do escritório. Para o III
Reich, o caso Klausener está encerrado.
Às 13,15, Gildisch está de volta. Recebe logo outras instruções. O oficial SA
berlinense Karl Ernst e o Dr. Erwin Villain, Standartenführer SA do serviço
de saúde, estarão também entre suas vítimas.
Gildisch e seus dezoito assassinos não são uma exceção; muito ao contrário.
Nesse 30 de junho de 1934, nuvens de comandos SS esquadrinham a Prússia
de Göring à procura das vítimas que lhes foram designadas. Esses homens
não pensam, obedecem. Não fazem perguntas, agem. Querem apenas saber o
nome das vítimas. Em seguida, matam-nas. Raros são os que escapam ao
assassínio, que rapidamente ultrapassa os quadros das listas negras, para
também resolver problemas pessoais. Assim, Erich von dem Bach-Zelewski,
Oberabschnittführer SS, livra-se de seu rival, o Reicherführer SS Anton
Freiherr von Hohberg und Buchwald, que dois SS assassinarão diante de seu
filho de 17 anos de idade.
Sobretudo na Silésia, as soluções de problemas pessoais são moeda corrente.
O Oberabschnittführer SS Udo von Woyrsch perde o controle e suas tropas
aproveitam a ocasião para livrar-se das mais diversas pessoas.
O rancor pessoal inspira as decisões de Himmler e também as de Göring.
Gregor Strasser, antigo número dois do Partido, depois de Hitler, é um
exemplo. É preso e depois assassinado em sua cela, com um tiro de revólver
nas costas. Interpretação oficial; suicídio. Motivo: Strasser havia transmitido
ao Führer, várias vezes, o mau juízo que tinha de Göring e de Himmler.
E o golpe da SA? E os golpistas responsáveis, segundo as palavras de Hitler,
da “pior traição da história da humanidade”, que fazem eles? Aproveitam o
fim de semana ensolarado, preparam-se para partir de férias. Na sua casa de
Neu-Babelsberg, Griebnitzstrasse, o General Kurt von Schleicher está sentado
em sua mesa de trabalho. A cozinheira, Marie Güntel, introduz dois senhores
no escritório do dono da casa. Um deles: “O senhor é o General von
Schleicher?” Von Schleicher volta-se para ver quem lhe pergunta e responde
afirmativamente. Ouvem-se os tiros. O general tomba sobre a mesa. Sua
esposa surge atraída pelo barulho. É também assassinada.
A Gestapo irá, evidentemente, remexer nos papéis de von Schleicher, mas não
encontrará nenhum indício de sua cumplicidade ou conluio com Röhm.
Nunca se saberá quem tomou a iniciativa desse assassínio. Mas pode-se
perceber a existência de divergências entre os organizadores dessa orgia de
sangue. Depois do assassinato, Himmler e Göring mostram alguma
inquietude. Von Schleicher era um dos generais mais influentes da
Reichswehr. O exército não iria tomar providências? Conheciam mal o
General von Reichenau, que não era de realizar uma ação depuradora de tal
envergadura, por um incidente do gênero. E além disso, uma morte a mais ou
a menos…
Na própria tarde do assassinato, divulgou-se um comunicado oficial de von
Reichenau, anunciando a morte de von Schleicher: “Suspeito de estar
envolvido no complot fomentado por Röhm, dois homens da SS foram
encarregados de prender o General von Schleicher. Tendo-lhes oposto uma
viva resistência, os policiais foram obrigados a fazer uso de suas armas.
Durante o tiroteio, o general e sua esposa, que surgiu imprevistamente, foram
mortalmente feridos”.
Himmler e Göring não têm motivos para preocupações. Mas eis que uma
surpresa desagradável os espera. Voltando a Berlim, Hitler diz-lhes que Röhm
deve ser perdoado. Isso está longe de satisfazê-los. Esse 30 de junho de 1934,
organizado com tanta paciência, não teria razão de ser se Röhm continuasse
vivo. Já em 29 de junho, Himmler declarara à Senhora von Ribbentrop que
“Röhm era um homem morto”. Era preciso que assim o fosse.
Mas, afinal, por que essa decisão de Hitler? É que Hitler ainda não era o
Führer no pleno sentido da palavra, tal como o será depois da morte de
Hindenburg. Por enquanto, a política de equilíbrio impõe-se. Conservar Röhm
será atenuar um pouco as pretensões dos senhores nazistas, especialmente as
de Himmler e Göring, e assegurar-se uma soberania que, por enquanto, ainda
está frágil para ser reconhecida.
Agora o chanceler inicia um jogo astuto: ele, que ontem, em Stadelheim,
fizera executar a sangue frio os principais chefes da SA e que falava em
“exterminar o verme”, conduz-se hoje como um Führer cheio de precaução,
cuidando de moderar os excessos de seus subordinados. Declara abertamente
que endossa a responsabilidade das execuções realizadas, embora nem todas
tenham sido decididas diretamente por ele. Ao oficial SA Jüttner afirma que
teria preferido um inquérito em boa e devida forma, mas foi ultrapassado
pelos acontecimentos.
Os sobreviventes da SA, inclusive o novo chefe do estado-maior Viktor
Lutze, acreditam na palavra do Führer. Hitler obtém o resultado desejado: à
medida que se tornar clara a hostilidade dos sobreviventes dos assassínios de
Himmler e de Göring, ele passará a ser o homem cuja equidade e moderação
não podem ser postas em dúvida. Lutze, especialmente, está persuadido de
que o Führer ordenou apenas a execução dos sete chefes da SA: “Inútil falar
nas execuções decididas pelo Führer. Elas não se prestam a qualquer
discussão”.
Quaisquer que sejam os pensamentos secretos de Hitler, uma coisa é certa: os
que obtiveram dele, num momento ou em outro, a segurança de ter a sua vida
salva, continuam, apesar disso, em perigo. O Führer tem apenas uma palavra,
mas ela dura pouco. E já na noite de 30 de junho para l.° de julho Himmler e
Göring esforçam-se por convencer Hitler: estão decididos a obter a cabeça de
Röhm. Na manhã de 1o de julho, Hitler mantém-se firme. Ao meio-dia,
Himmler e Göring vencem a parada: o chefe de brigada SS Theodor Eicke
recebe ordem de abater Röhm. Hitler pede a Eicke que tente convencer Röhm
a suicidar-se. Entrega a Eicke uma pistola carregada com uma bala e,
acompanhado do Sturmbannführer SS Michael Lippert e do Gruppenführer
SS Schmauser, porta-voz da SS junto à Reichswehr, Eicke vai a Stadelheim.
O diretor Koch cria dificuldades. Recusa-se a entregar Röhm sem uma ordem
escrita, e chama o Ministro da justiça Franck. Este dá razão a Koch. Eicke
arranca então o aparelho das mãos de Koch e diz ao ministro que isto não é
assunto para ele, que não se meta em seus negócios, a ordem vem do Führer
—- e desliga. Koch cede e designa um guarda para acompanhar os senhores
até a cela 474.
Sentado com o peito nu, Röhm vira um pouco a cabeça quando a porta se
abre, rangendo. Eicke penetra na cela, coloca sobre a mesa o revólver
carregado e a última edição do Völkischer Beobachter, que menciona a
destituição de Röhm, e diz: “Você estragou sua vida. O Führer dá-lhe ainda
uma oportunidade para que você tire as conclusões necessárias”. Depois,
antes de sair: “Você tem dez minutos”. Os três SS esperam diante da porta da
cela. Nada se mexe no interior. Eicke olha o seu relógio. Passa-se um quarto
de hora. Saca o seu revólver, Lippert faz o mesmo. Empurra a porta da cela e
exclama: “Röhm, prepare-se!” Na mão de Lippert, a pistola treme. Eicke diz
em um tom glacial: “Mire lenta e tranquilamente”. Ouvem-se dois tiros.
Röhm cai para trás e murmura em um suspiro: “Meu Führer, meu Führer”.
Eicke, em tom sarcástico: “Era preciso pensar nisso um pouco antes, agora é
um pouco tarde”. Röhm respira dificilmente. Um dos dois SS — nunca se
saberá qual — acaba de matá-lo com uma bala no peito. Ernst Röhm,
fundador da SA, rival da Reichswehr, o único amigo que Hitler jamais tivera,
estava morto. Estamos a 1o de julho de 1934. São 18 horas.
O fim de Röhm é seguido de uma nova série de execuções. No dia seguinte,
na casa da Colônia, em Berlim, segunda prisão da SS, o Gruppenführer SA
Karl Schreyer escuta com inquietude o ranger das portas das celas, as ordens
que se transmitem, os tiros que se disparam. Schreyer conta: o
Obergruppenführer SA Falkenhausen cai às duas horas: às 2h30min é a vez
do Gruppenführer von Detten; meia hora depois, Ritter von Krausser,
anteriormente agraciado por Hitler.
Às três horas, a porta da cela de Schreyer é brutalmente aberta. Pernas
afastadas, um Truppführer SS está à entrada. Atrás dele, dois SS com baioneta
calada. O Truppführer: “Schreyer, fora! Você será executado por ordem do
Führer”. Schreyer: “Eu peço um julgamento prévio”. O Truppführer: “Isto lhe
agradaria, hein? seu traidor! Mas não há possibilidade. Você será fuzilado.
Faça como os outros, ponha sua cabeça na torneira de água fria, assim você se
sentirá refrescado e dará boa impressão”. No fim de algum tempo, vêm buscar
Schreyer, mas depois o devolvem à sua cela. Decidiu-se que será fuzilado em
Lichterfeld, na escola de cadetes, mas o carro que deve conduzi-lo ainda não
chegou. Pouco depois chega o carro. Tiram novamente Schreyer da cela,
levam-no para a porta da prisão onde o automóvel estaciona. Ele se prepara
para subir quando chega, correndo com a capota aberta, uma enorme
Mercedes. O automóvel para. Um Standartenführer da Leibstandarte sai e
agita os braços gritando: “Pare! Pare!” Aproxima-se e explica: “Parem! O
Führer deu sua palavra a Hindenburg de que os fuzilamentos cessariam
imediata e definitivamente”.
O relógio marca quatro horas, em 2 de julho de 1934. O III Reich acaba de
escrever na História o seu primeiro massacre. Oitenta e três homens sofreram
morte brutal, sem que lhes dessem a menor oportunidade de defesa, sem
qualquer preocupação de legalidade.
Um hurra geral ressoa nos quartéis da Reichswehr. Nos cassinos de oficiais
toma-se champanha. O Major-General von Witzleben “lamenta não ter
participado”. O Ministro da Defesa von Blomberg louva a “firmeza dos
militares e a coragem excepcional demonstrada pelo Führer nesse episódio”.
Apenas Erwin Planck, antigo secretário de Estado da chancelaria do Reich,
tem escrúpulos. Diz ao General von Fritsch: “Quem aprova tais ações, como o
senhor próprio fez, sem intervir, sem tentar parar a carnificina, arrisca-se a
sofrer cedo ou tarde sorte semelhante”.
Planck não imaginava o quanto era certa a sua previsão: von Fritsch será
vítima de uma intriga análoga à sofrida por Röhm; von Witzleben terminará
seus dias pendurado em um gancho de açougueiro. Quanto aos outros, muito
breve vão lembrar-se com mal-estar do “caso Röhm”. Muito cedo se
perceberá que a Reichswehr não saiu vitoriosa da orgia sangrenta; vitoriosa
foi a SS de Heinrich Himmler. Liberada da tutela da SA, recebe de Hitler a
autorização necessária para constituir unidades armadas, para grande desgosto
da Reichswehr.
30 de junho de 1934 é uma data capital, sob vários aspectos, na história do III
Reich: Hitler vai poder assumir o poder total com que sonha; as lutas internas
serão doravante determinadas pela existência de um eixo Himmler-Göring;
uma falha existirá, a partir de agora, na base do edifício nazista: a irredutível
hostilidade entre a SA e a SS. A partir de hoje, os dois grupos vão entregar-se
a uma guerra subterrânea, que só terminará quando terminar o Reich milenar.
A Ordem Negra
Heydrich e a Gestapo
PRETENSA origem judaica de Heydrich, desmentida pelo inquérito dirigido
no Partido por Gregor Strasser, vai prestar-se, no curso da carreira sangrenta
do temível chefe do SD e braço direito de Himmler, a muitos rumores e,
depois do fim do III Reich, a outros tantos comentários. Pois quanto maior a
importância de Heydrich, quanto mais se estende seu poder, mais a lenda de
sua ascendência judaica irá espalhar-se.
Os historiadores, sobretudo, concedem-lhe especial atenção. A origem de
Heydrich permite-lhes fazer um pouco de luz sobre esse personagem
monstruoso: um rompimento interior, um segredo terrível e pesado, o
sentimento de ser um renegado, explicariam a constância do personagem no
crime e o caráter impiedoso de seu fanatismo racial.
Reitlinger entrevê em Heydrich “uma aversão patológica ao seu próprio
sangue judeu”; H. G. Adler exprime a opinião de que “o III Reich deu a
Heydrich a possibilidade de destruir o germe judeu de que era portador,
fornecendo-lhe os meios de destruir fisicamente os judeus que o cercavam”.
Na realidade, todos os detalhes anedóticos acumulados sobre “a besta loura”,
como Heydrich foi muitas vezes chamado mesmo dentro da SS, todas as
interpretações dos atos significativos ou não de sua vida servem apenas para
dar ainda mais peso à idéia de que se pode passar a vida ao lado de um
homem, conhecer tudo a seu respeito e ao mesmo tempo não conhecer nada.
Pois Reinhard Heydrich não é, como se pretendeu, o Saint-Just da revolução
nazista, não é tampouco o fanático do racismo que se quis enxergar nele, nem,
seguindo a fórmula agradável do historiador Freund, “a encarnação satânica
do crime contra o espírito”.
Sem dúvida, é tentador comparar o duo Himmler-Heydrich à dupla Saint-Just-
Robespierre, mas a comparação é falha. No crime, os resultados de Heydrich
são muitas vezes superiores aos dos dois revolucionários franceses. Por outro
lado, e isso é mais importante, o idealismo de Saint-Just, doutrinário da
revolução burguesa, nada tem a ver com Heydrich.
O duo Himmler-Heydrich é completamente diferente. Trata-se do encontro de
dois arquétipos do século XX, ou seja, o ideólogo e o tecnocrata. Têm prazer
em referir-se à História, mas não farão outra coisa senão falsear a verdade
histórica em seu benefício exclusivo. Tanto um quanto outro tornaram-se
adversários da História, desenraizados que negam todas as normas morais e
humanas tradicionais.
Heydrich não tem senão um deus: o poder. O poder despido de sentido: o
poder pelo poder. Não detesta absolutamente os judeus. Eles serão apenas
formas sem almas, que lhe cabe suprimir em virtude de uma “preocupação de
higiene” que anima os escalões superiores do Partido, e suprimi-los segundo
um plano harmonioso, dentro de uma técnica tão eficaz quanto possível.
Heydrich tem apenas ressentimentos pessoais. Continuará com seu ódio,
apesar de todas as tentativas de reconciliação, contra o Almirante Erich
Raeder, que o excluiu da Marinha. A ideologia não é seu forte. As filosofias,
mesmo a filosofia parda, não lhe interessam. É sobretudo um desportista.
Esgrimista, excelente cavaleiro, aviador, bom esquiador, especialista em
pentatlo, conseguirá salvar alguns desportistas judeus de renome: é graças a
ele que o campeão alemão de esgrima Paul Sommer poderá emigrar para a
América; também fornecerá papéis e dinheiro ao campeão olímpico polonês
Kantor.
Quanto ao Führer, este elixir de vida de Himmler, Heydrich não lhe devota
uma fé incondicional. Não imagina uma Alemanha sem Heydrich; mas uma
Alemanha sem Hitler não lhe parece impossível. Técnico da força, apóstolo
da eficácia, o papaguear ideológico de Himmler sempre o aborrecera
profundamente. Sua irritação vai-se desabafar muitas vezes junto à esposa
Lina, que o escuta com prazer, porque detesta cordialmente “os Himmlers”,
especialmente a mulher do Reichsführer.
Entretanto, diante de Himmler, saberá sempre manter-se perfeitamente calmo,
evidenciando até um tom servil pouco usado na SS: “Sim, senhor
Reichsführer… se o senhor Reichsführer pensa que… o senhor Reichsführer
tem mil vezes razão… etc.”
Quanto ao senhor Reichsführer, este braço direito às vezes o incomoda. Um
verdadeiro mal-estar toma conta de Himmler cada vez que Heydrich vem
fazer-lhe seu relatório. “São”, confia ele a Kersten, “obras-primas de
concisão. Breve descrição da pessoa ou da situação, argumentos apresentados
por ordem crescente de importância, conclusão tirada como um traço por
baixo de uma soma. Depois disso, ele dá sua opinião sobre o problema e
sugere a posição que deve ser adotada.” Himmler fica encurralado diante de
tanta clareza. Não sabe como livrar-se dessas investidas. Em seguida, telefona
a Heydrich, declara que precisará antes de levar a cabo qualquer coisa
apresentar o problema ao Führer. Depois, uma solução diferente será
geralmente adotada por Himmler que, diante de Heydrich, alega supostas
ordens de Hitler. Uma vez o Reichsführer enfrentou Heydrich de frente. Com
as palavras mal arrumadas, a voz insegura, ele dirá: “Você, você… sua lógica,
sempre sua lógica. Tudo que você propõe vem apoiado na lógica. Já estou
cansado de você e de seu espírito crítico”. Heydrich retira-se, cede, e esquece.
Himmler sempre temerá possíveis rivais. Mas nunca considerará Heydrich
perigoso desse ponto de vista. Pois Heydrich não é estimado por ninguém e a
ninguém estima. À sua volta, há o deserto. Heydrich é o tipo de indivíduo que
sempre quer saber mais do que os outros, pretende sempre o primeiro lugar,
seja entre as mulheres de pequena virtude — que ele frequenta enormemente,
mas que não gostam do “homem com olhos de lobo” — ou nas salas de
armas, onde seus companheiros, apenas por temor, não se afastam do homem
logo que terminam as competições.
Se não tem inimigos declarados, também não tem amigos verdadeiros. Até
sua mulher, Lina, só se liga a Heydrich por laços sexuais.
Himmler, pelo menos, deixou atrás de si colaboradores que ainda hoje falam
com prazer da atenção afetuosa que o Reichsführer dedicava ao seu círculo
mais chegado. Heydrich, “o homem com coração de ferro”, como o próprio
Hitler o chamava, não deixará outra lembrança senão a da tranquilidade que
todos sentiam ao livrar-se dele. Comentário de Sepp Dietrich à morte de
Heydrich: ‘‘Deus seja louvado, afinal morreu esse porco”.
A agressividade de Heydrich, sua necessidade de afirmar-se, de ser
reconhecido como o mais forte, o mais inteligente, traduz evidentemente uma
certa fraqueza do homem e certamente o complexo de inferioridade do oficial
de Marinha fracassado, insucesso de que nunca se perdoará.
Com tais títulos, e considerando sua personalidade, Heydrich pode realmente
ser considerado o companheiro ideal de Himmler.
Além disso, os dois são conscientes do fato de que têm necessidade um do
outro. Sem Himmler, que tem seu lugar no seio da hierarquia nazista,
Heydrich não teria nenhuma possibilidade de ascender a uma função
importante, e muito menos de manter-se nela; sem a extrema lucidez e o
dinamismo de seu assistente, o pequeno-burguês Himmler sabe que teria
todas as possibilidades de perder-se no labirinto do Estado nacional-socialista
e de seus potentados.
O jovem a quem Himmler confia, em junho de 1931, a responsabilidade do
SD, é evidentemente um amargurado a quem se proibiu a única coisa
importante para ele: a carreira de oficial.
Nascido em 7 de março de 1904, em Halle, no Saale, a carreira de Reinhard
Tristan Eugen Heydrich foi igual à da maioria dos filhos da burguesia alemã
do pós-guerra republicano. Filho de um cantor de ópera e de uma comediante,
aluno do liceu de Halle, o jovem Heydrich deixa a casa paterna paralisada
pela crise econômica com a idade de dezesseis anos e entra nos corpos de
livres-combatentes do General Maerker. O seu sonho já é ser oficial. Saindo
dos corpos de livres-combatentes, vai para a Marinha que, como nos
lembramos, foi o primeiro amor de Himmler.
Em 1922, veste o uniforme dos cadetes da Marinha, em Kiel. Em seu
primeiro ano de formação, trava conhecimento com o Capitão-de-Corveta
Wilhelm Canaris, que desde o princípio se sente indisposto ao ver esse
adolescente magro “de olhos asiáticos”. Mas a esposa de Canaris, Erika,
entusiasma- se com os dons de violinista de Heydrich.
Em 1924, Canaris é nomeado para o Estado-Maior da Marinha em Berlim. O
marinheiro Heydrich sobe na escala da hierarquia: em 1926 é tenente. Depois
de ter servido em diversos navios, passa em 1928 a Oberleutnant. Faz exames
de língua russa e evidencia todos os talentos necessários a um oficial de
Marinha. Marca particular: não tem amigos e é cordialmente detestado por
seus homens.
O futuro parece-lhe assegurado, quando ei-lo envolvido em uma aventura
amorosa, que vai liquidar a sua carreira No verão de 1930, Heydrich conhece
uma jovem, Lina Mathilde von Osten. Em dezembro de 1930, contra a
vontade de seus pais, tornam-se noivos. No início, a ligação não é diferente
das outras de Heydrich, grande colecionador de sucessos femininos,
acostumado a numerosas e sucessivas amigas. Mas acontece o que teria de
acontecer, mais cedo ou mais tarde: uma jovem, antiga conquista de
Heydrich, vem perturbar a felicidade dos noivos. Heydrich diz-lhe que sua
aventura já é coisa do passado, mas a mulher, filha de um dos diretores do
consórcio IG Farben, não aceita. Usando a influência de sua família, submete
o assunto ao Almirante Erich Raeder, comandante-em-chefe da Reichsmarine.
Tendo Heydrich recusado a abandonar Lina e ceder, por pressão do almirante,
aos desejos da antiga amiga, a justiça militar passa a cuidar do assunto.
Durante o processo, Heydrich usa toda espécie de artimanhas para jogar
dúvidas sobre a honestidade da jovem. Seu comportamento é a tal ponto
desagradável que os jurados terminam por se perguntar se o código de honra
da Marinha pode admitir a presença de um oficial desse estilo; o Almirante
Raeder acha que não. No fim de abril de 1931 é pronunciado o veredicto. O
enunciado da sanção é breve: “Demissão imediata por motivo de
indignidade”. Heydrich teria declarado à sua ex-amiga (a quem engravidara)
que não poderia admitir a hipótese de casar-se com uma “maria-deita-te-ai”
De qualquer forma, eis Heydrich desempregado. E não faltam desempregados
na Alemanha. Que fazer? A única possibilidade seria entrar na Marinha SA.
Heydrich alista-se, sem qualquer pensamento político. Lina Heydrich: “Ele
era um oficial, eis tudo. Nada lhe interessava fora de sua carreira ou fora do
esporte. De política, não queria nem ouvir falar”.
Mas Lina, ao contrário, interessa-se por política. Entusiasmada pela ação de
Hitler, acredita que seu futuro marido deveria encontrar aí uma maneira de
assegurar o futuro. Graças à recomendação de Karl Freiherr von Eberstein,
amigo de infância da irmã de Heydrich, tão convencida quanto Lina do
interesse que haveria para “Reini” em uma aproximação com os nazistas, o
jovem oficial de Marinha desempregado obtém uma entrevista com Heinrich
Himmler. Em 14 de junho de 1931, Heydrich encontra-se com o Reichsführer
SS, que nesse preciso momento está procurando o homem capaz de criar na
SS um serviço de informações. Por que não ele? Em 5 de outubro, Reinhard
Heydrich integra o estado-maior da SS com o posto de Sturmführer,
encarregado de criar o serviço projetado.
Depois de uma breve estada na Casa Parda, onde se isola com alguns arquivos
pertencentes a Himmler, Heydrich, desejoso de evitar a curiosidade dos
funcionários do Partido, afasta-se e instala-se com três colaboradores em um
prédio de dois cômodos na Türkenstrasse 23, em Munique. Aparentemente,
encontrou seu caminho: a carreira policial convém-lhe ainda mais que a de
oficial de Marinha. Suas ordens não se fazem esperar: as unidades da SS
devem fornecer um relatório geral que contenha qualquer fato suscetível de
interessar ao serviço de informações. Os contatos com alguns espiões e outros
informantes espalhados pelo território devem ser intensificados. Heydrich
percorre a Alemanha a fim de criar uma rede de informações melhor
estruturada. Os homens que lhe servem são retirados de unidades da SS e
colocados sob controle direto do serviço de informações de Heydrich, que
toma o nome de Sicherheitsdienst ou SD.
O SD depende, evidentemente, da SS. Apesar disso, goza de tal autonomia
que toma, desde agora, características de uma SS dentro da SS. Pois Heydrich
cria uma organização SS paralela. Em todo território, os serviços SD —
Abschnitte, Oberabschnitte — são repetições da estrutura SS original. Os
homens que aí trabalham são encarregados por Heydrich de localizar os
inimigos do Partido no seu seio ou no exterior, e de controlar discretamente a
atividade dos partidos hostis ao NSDAP. Cada informação, o mais ínfimo
detalhe, tudo é classificado e fichado em Zuccalisstrasse 4, em Munique, nova
central SD e trincheira de Heydrich.
Himmler está encantado com a atividade do chefe de seu serviço secreto.
Tanto empenho no trabalho merece recompensa. As promoções chovem sobre
Heydrich. 10 de agosto de 1931, Sturmführer; em l.° de dezembro de 1931,
Hauptsturmführer; em 29 de julho de 1932, Standartenführer; em 21 de março
de 1933, Oberführer.
O Reichsführer SS sente que a sorte — como ele diz a Kersten — trouxe-lhe
às mãos “um agente nato de informações, um cérebro capaz de desvendar
todos os fios e atar nós onde é necessário”. É, verdadeiramente, Heydrich tem
todas as qualidades de um chefe de serviço secreto ideal: impiedoso,
aparentemente desprovido de sentimentos, possui, segundo a própria
expressão de Himmler, “uma vantagem extraordinária”: sabe
maravilhosamente adivinhar os pensamentos escondidos nas pessoas e prever
suas reações. Antes dele, a polícia especial contentava-se em prender o
adversário na ação, intervinha sob a ameaça do perigo. A polícia de Heydrich
é encarregada de despistar o adversário, antes mesmo que ele conceba a idéia
de levantar-se contra a autoridade do Estado.
O conceito policial de Heydrich não tem limites. Estende- se ao conjunto das
manifestações da vida dos cidadãos e da nação. No espírito de Heydrich, a
polícia não é um simples organismo defensivo, garantidor da segurança do
Estado. É. pelo contrário, um sistema ofensivo, encarregado, além disso, de
educar o povo e de livrar a nação de todas as idéias tidas como malsãs ou
perigosas.
É necessário que a polícia seja onipresente. Trata-se, segundo as próprias
palavras de Werner Best, “de garantir o Estado contra todas as formas de
atentado à ordem pública, não somente punindo-as mas prevenindo-as”.
Dentro desta visão, a polícia não poderia ficar sujeita às leis que regem a
comunidade. Sua ação teria de ser regulamentada por uma carta especial. Os
projetos de Heydrich são os seguintes: preliminarmente, o SD deve ocupar os
postos-chave da nova polícia política: em seguida, esta polícia deve ser
liberada da administração e formar um órgão de segurança, único e autônomo.
Enfim, terceira operação, será preciso criar uma administração SS própria,
reunindo a polícia e a SS em um bloco homogêneo.
Os projetos do chefe do SD enchem Himmler de contenta mento. Certos
chefes da SS o previnem contra uma fusão, que poderia tornar a SS impopular
ou arranhar as suas características de Ordem. Mas nada adianta: Himmler
quer a soberania absoluta sobre a polícia do III Reich.
As idéias de Heydrich vão ser executadas, em primeiro lugar, na Baviera do
Norte. Em 9 de março de 1933, o golpe de estado nacional-socialista
aproxima Himmler e a polícia do Länd. Ele se torna chefe de polícia de
Munique e Heydrich é colocado à frente da seção política da polícia. Uma
semana mais tarde, os dois comparsas dão um passo de gigante: o
Reichsführer é convidado a ocupar as funções de responsável político no
Ministério bávaro do Interior e de chefe da polícia política; Heydrich vai
representá-lo nas novas funções.
O que mais tarde será aplicado a todo o Reich é agora pôsto em prática na
Baviera. Himmler cria no Ministério do Interior um comando de polícia
política (Bay Po Po), que é assumido pelos homens do SD, e subtraído à
autoridade da chefia de polícia de Munique. Com um estatuto próprio, a Bay
Po Po pode requisitar os serviços da polícia bávara; além disso, reinará como
soberano nos campos de concentração. É verdade que o chefe de polícia
Himmler está sob ordens do Ministro do Interior bávaro Wagner. Mas, como
Reichsführer SS, Himmler é superior a Wagner. Inversamente, como chefe do
estado-maior da SA, Röhm pode dar ordens ao Reichsführer SS, mas não ao
chefe da polícia de Munique, comandante da polícia política bávara.
Himmler e Heydrich exploram sua independência enquanto podem. O número
de prisioneiros cresce em Dachau, enquanto no resto da Alemanha a onda de
terrorismo já era assunto do passado. Himmler: “Respondendo a solicitações
dos ministérios, muitos prisioneiros foram liberados na Prússia e no resto da
Alemanha. Só eu, na Baviera, consegui acelerar o plano de prisões
preventivas”.
Tal ódio não podia contentar-se com o pequeno panorama da Baviera. Os
dezesseis Länderpolizeien esperam ainda seu chefe. E o tempo exige ação
rápida. Na Prússia, Göring cria uma polícia política, independente do Estado e
do Partido: a Gestapo.
Himmler e Heydrich encontrarão em Frick, ministro do Interior do Reich, um
aliado para sua empresa de expansão. O reformador da administração alemã,
incapaz de lutar sozinho contra o separatismo prussiano de Göring, chama
Himmler e Heydrich em seu apoio. Com sua bênção, os dois comparsas se
apoderam das Länderpolizeien alemãs. Uma a uma vão caindo em suas mãos.
Quanto a Göring, amolado pela agitação da SA, desejoso de libertar-se de
Röhm, firma a paz com Himmler e lhe entrega a Gestapo. Em troca, vai obter
o apoio da SS para o ajuste de contas sangrento com Röhm.
Em fins de abril, Himmler e Heydrich tomam as rédeas da polícia prussiana:
Himmler é nomeado chefe e inspetor da polícia secreta do Estado (Gestapo)
— variante prussiana da Bay Po Po —, Heydrich assume, na qualidade de
representante de Himmler, a direção da Geheime Staatpolizeiamt,
administração da Gestapo ou Gestapa. Ao mesmo tempo o SD torna-se, por
decisão da direção do Partido, o serviço oficial único de informações do
NSDAP.
Heydrich triunfa. Mas percebe também a incapacidade do SD para assumir
semelhante papel. O SD ainda é apenas uma organização esquelética. Conta
somente com uma centena de homens que, além disso, mostram-se menos
qualificados do que os funcionários de polícia da antiga escola. Que fazer?
Atrair os antigos funcionários para a sua causa, é claro. Mas isso não é
simples. Anexados por Himmler e Heydrich, os antigos membros da Bay Po
Po e da Gestapo detestam cordialmente os recém-chegados do SD. A própria
noção do SD os indispõe. Outro problema não menos espinhoso: são
sobretudo funcionários de polícia, e diferentes idéias que os animam. Entre os
mais capazes, há antigos adversários do regime, como F. J. Huber e Reinhard
Flesch. Há também anticomunistas notórios, como Heydrich Müller, que mais
tarde será chefe supremo da Gestapo, mas o anticomunismo não chega para
fazer um nazista.
Em Berlim como em Munique, na Bay Po Po como na Gestapo, os melhores
elementos são integrados por Heydrich no SD. Isso se passa com Arthur
Nebe, que se tornará diretor da polícia criminal do Reich e participará da
conspiração de 20 de julho de 1944. A esses dois grupos de criminalistas
juntam-se especialistas, funcionários e juristas que Heydrich traz dos quatro
cantos da Alemanha. Entre eles, o que se tornará o seu mais próximo
colaborador e depois seu adversário mais perigoso: o juiz de Hesse, Werner
Best, discípulo de Ernst Jünger, nacionalista convicto, defensor intransigente
de uma razão de Estado exclusiva. Em 1930, Best publica um ensaio que pode
ser considerado como o programa mesmo do Estado nazista em vias de
instauração: “O fim de cada poder no interior do Estado é dominar os outros
poderes. Nesta luta, cada poder tenta identificar-se com o Estado, cuja
tendência profunda é o poder total: quanto mais se estende o poder do Estado,
mais o Estado está próximo da perfeição”.
Depois do acesso dos nacional-socialistas no poder, Best assume a direção da
polícia de Hesse. Imediatamente, entra em conflito com o gauleiter Sprenger,
a quem desagrada a atitude objetiva e crítica do jurista com relação nos
assuntos do Partido. Best é forçado a deixar suas funções. Seu nome figurará,
a partir de agora, nas listas pessoais de Heydrich e ele o utilizará quando
precisar reorganizar a Gestapo. Na época, Heydrich não percebe que com
Best pôs “grilhões nos pés” (sic). Pois Best é sobretudo um teórico e um
jurista. Heydrich não se acomodará muito tempo com este pensamento que —
mesmo Best completamente imbuído de idéias nazistas — continuará sendo
um freio. Pois tem o pensamento dirigido por um certo número de princípios
e a ação de Heydrich não se acomoda a princípios.
Mas na época o problema ainda não se coloca. É com toda tranquilidade de
espírito que Heydrich afia o principal instrumento de seu aparelho policial, o
instrumento cuja simples citação do nome fará tremer milhões de alemães: a
Gestapo.
As bases da Gestapo, a Geheime Staatspolizeiamt ou Gestapa, com suas
quatro seções (I. organização e administração; II. justiça; III. polícia política;
IV. polícia de segurança), tinham sido traçadas por Göring. Heydrich reduz a
três o número de seções. Best dirige as seções I (administração e justiça) e II
(polícia de segurança). A seção III, polícia política, coração mesmo da
Gestapa, é ocupada pela equipe bávara de Heydrich, ou seja, pelos antigos
membros da Bay Po Po.
Esta seção política é dividida em várias subseções: “marxismo” (vigilância e
eliminação dos elementos socialistas e comunistas); “reação, oposição de
direita, igrejas” (vigilância dos movimentos não-nazistas e das organizações
para-religiosas); “raça” (perseguição de homossexuais, casos de aborto,
relações sexuais entre judeus e não-judeus); “economia” (vigilância de grupos
financeiros e industriais, associações e sindicatos); “franco-maçonaria e seitas
religiosas” (pesquisas sobre correntes hostis ao nazismo nas comunidades
não-religiosas e luta contra as lojas da franco-maçonaria).
Os novos donos da Gestapo dedicam-se, paralelamente a esta reorganização, a
apertar as malhas da rede jogada por Göring sobre o país. Trata-se, agora, de
definir de maneira mais precisa a natureza de seu combate, de detalhar
perfeitamente a fisionomia do adversário. Pois o adversário, o inimigo
público, qual é? Para Göring é o comunista ou o marxista. Isso parece muito
vago à nova direção da Gestapo e deve ser definido com mais precisão. O
comissário criminal Wendzio escreverá uma nota, onde diz: “Por inimigos
públicos, compreendemos: os comunistas, marxistas, judeus, igrejas mais ou
menos politizadas, franco-maçons, descontentes políticos e apolíticos,
oponentes do regime, reacionários de direita, sabotadores da economia,
ladrões e criminosos impenitentes, homossexuais e abortadores, traidores.
Todos”, declara Wendzio, “têm isto em comum: sua influência se exerce
contra o vigor racial e espiritual do povo alemão”.
Todos esses inimigos públicos, assim definidos, são divididos em três grupos
no gigantesco fichário da Gestapo. Grupo Al (um cavaleiro vermelho na
margem esquerda de cada ficha): inimigos do regime, que devem ser
aprisionados em caso de mobilização provável; grupo A2 (cavaleiro azul):
inimigos do regime, que devem ser aprisionados em caso de mobilização
certa; grupo A3 (cavaleiro verde): cidadãos que não são nocivos propriamente
à segurança do Estado mas que, segundo as próprias palavras de Heydrich,
devem, em virtude da sua tepidez política, ser vigiados fortemente ou até
presos em tempo de guerra.
Um segundo cavaleiro à margem direita da ficha define a natureza do
adversário: o cavaleiro vermelho é um comunista; rosa é um marxista; pardo,
um sabotador; roxo, um espírito crítico. A cada l.º de abril e l.° de outubro, o
fichário é colocado em dia e as características das fichas individuais
controladas uma a uma.
A vigilância sobre um inimigo tão diverso — e cada vez mais diferenciado —
necessita pessoal sempre mais numeroso. A Gestapo contava com 35 homens
em seu início. Em 1935, seus funcionários e empregados chegam a 607. Em
1933, suas despesas estão na ordem de um milhão de marcos; em 1937,
quarenta milhões.
Os serviços regionais da Gestapo multiplicam-se. A polícia de segurança
penetra cada vez mais em domínios propriamente militares, sobretudo em
matéria de contraespionagem. As zonas fronteiras passam pouco a pouco ao
controle exclusivo da Gestapo. Os comissariados de fronteira, serviços
marginais do Landeskriminalpolizeiamt ou LKPA, caem em suas mãos. É
criada uma polícia fronteiriça da Gestapo, emanação da seção III da Gestapo
ou política de segurança.
Desde então, estende-se uma verdadeira rede de ferro pelas fronteiras da
Alemanha de Adolf Hitler. O olhar monstruoso da Gestapo vigia tudo, registra
tudo. Nada escapa á sua vigilância. A tarefa é-lhe facilitada pela extensão
desmesurada de seus poderes. Ela obtém primeiro o direito de encarcerar os
apátridas nos campos de concentração, até que se resolvam as formalidades
relativas à sua expulsão. Em seguida, poderá editar mandados de prisão e
prender a título preventivo, nos campos, pelo tempo que lhe interessar, todo
cidadão julgado perigoso. De 1935 a 1936, 7.000 “marxistas” são atirados nos
campos de concentração. Assim, são postas em prática as teorias do Dr. Best:
“Toda idéia política hostil ao regime deve ser considerada como uma forma
de doença que põe em perigo a saúde deste grande organismo que é o povo:
por isso, aquele que quer levar essa idéia à prática — e também o que se
contentar com formulá-la — deve ficar sem possibilidades de causar mal”.
É claro que a Gestapo terá muito o que fazer, à medida que estende seu campo
de ação, devido a alguns adversários decididos a impedir sua marcha para
adiante. Tentarão arrancar dela a arma mais perigosa de que dispõe, o KZ.
Corajosos juristas começam a ordenar inquéritos em certos campos de
concentração.
Desde 1933, o procurador-geral de Munique pede que se faça luz sobre casos
obscuros de mortes em Dachau. Inquéritos sucessivos, exumações de corpos,
trazem a prova de mortes violentas, resultados de torturas, fustigações,
estrangulamentos. Himmler é obrigado a demitir o Oberführer SS Hilmar
Wäckerle, comandante do campo, que será condenado, tal como o Dr.
Nuernbergk, médico do KZ, e o secretário-geral da chancelaria Nutzbauer, a
muitos anos de prisão.
Na Prússia, o antigo chefe da Gestapo, Diels, apoiado por dois funcionários
nazistas do Ministério da Justiça, o Procurador-Geral Werner von Haacke e o
Procurador Günther Joel, procura igualmente acabar com as atividades
praticadas em certos campos, especialmente nos da SA. Sua ação o levará a
atacar a SS e a Gestapo. Von Haacke consegue um êxito importante ao obter a
condenação, a 13 anos de prisão, do Sturmführer SS Joachim Hoffmann,
comandante do campo de Stettin Bredow, onde os prisioneiros eram
torturados com uma crueldade pouco comum. Walther Schäffer, procurador-
geral de Breslau, e o Dr. Walther, procurador em Saxe e membro da SA,
levam a cabo ação semelhante. O sucesso dessas tentativas é indiscutível, mas
passageiro. Himmler e Heydrich estão lá para restabelecer a situação e
explorá-la em seu proveito, confiando na arbitragem do Führer.
O caso Walther, cujo nome foi citado mais acima, é um exemplo típico.
Walther apresenta queixa contra os responsáveis pelo campo de Hohnstein em
Saxe, onde os prisioneiros são submetidos a tratamentos particularmente
ferozes. Outra ação da justiça é iniciada, paralelamente, contra um
funcionário eminente da Gestapo, o Oberregierungsrat Erich Vogel, que está
notoriamente participando nas atividades desse campo. Os “animadores” do
KZ foram condenados a vários anos de prisão, e então o gauleiter de Saxe
Mutschinann exerce severa pressão sobre o tribunal, exigindo a revisão do
processo e a absolvição dos acusados. O ministro da Justiça do Reich, Dr.
Franz Gürtner, faz um vigoroso protesto: “Mesmo a dureza do combate que
levamos a cabo não justifica a crueldade sádica desses indivíduos”. O
julgamento inicial é confirmado pele tribunal. A reação nazista não se faz
esperar. Walther é demitido de suas funções e deve abandonar a SA. Para
coroar tudo, o juiz supremo Hitler intervém: todos os condenados são
agraciados e anulado o julgamento contra Vogel.
Nacionalista liberal, o Ministro da Justiça Gürtner, revoltado com essa
decisão, tenta tudo de todas as formas: vai jogar o jogo dos nazistas, propor
uma nova legislação concebida no espírito da ditadura de Führer. Esta
legislação não será evidentemente ideal do ponto de vista do direito, mas ao
menos terá a vantagem de impor certos limites jurídicos à ação de Hitler e de
sua polícia.
Para consegui-lo, Gürtner alia-se ao Reichsjustizkommissar Hans Frank, o
mais duro dos juristas nazistas. Este último, por mais antiliberal que seja, é
também adversário de entregar-se todo o poder à polícia em matéria de
direito.
Frank e Gürtner entregam-se juntos à redação de um novo código penal.
Também juntos, solicitam a Hitler, no verão de 1934, que acabe com os
campos de concentração. “Eu falei com Hitler”, conta Frank em suas
Memórias, “sobre a necessidade de suprimir os campos em um futuro
próximo, de proibir imediatamente todas as prisões arbitrárias, de confiar ao
Ministério da Justiça o cuidado de julgar do bom fundamento das já efetuadas
e de queixas sobre maus tratamentos sofridos pelos prisioneiros. Gürtner
apoiava nossos argumentos, mas Hitler não queria ouvir coisa alguma. Era
muito cedo, dizia ele, para imaginar a supressão dos campos”.
Mas este não será o único fracasso. Pouco depois, Hitler joga no lixo o
projeto de código penal que lhe é submetido por Frank. Gürtner dirige então
uma série de inquéritos sobre as mortes nos campos e pede que as pessoas
presas preventivamente sejam assistidas por um advogado. Himmler a
Gürtner, em 6 de novembro de 1935: “Eu submeti seu pedido ao Führer. O
Führer proibiu a intervenção de advogados nos casos de prisão preventiva e
me encarregou de dar-lhe conhecimento de sua decisão”.
As tentativas de Gürtner e de seus aliados chocam-se contra a barreira
Himmler-Heydrich. Chocam-se também — e isto é sem dúvida o ponto mais
importante — contra a inércia retrógrada de um grande número de juristas
alemães, que se entregarão imediatamente, com um servilismo onde não está
ausente a euforia, ao culto nazista do Führer, para o que estão predispostos
por uma formação cheia de idéias positivistas.
Quanto ao tom guerreiro, é dado no domínio jurídico por professores do
gênero de Karl Schmitt, que pretende fazer do jurista “um colaborador eficaz
do Führer”. “Morte à fraseologia”, escreve em 1934 a Juristische
Wochenschrift, e de fato a justiça alemã dará cada vez menos atenção a
códigos e regulamentos que considera ultrapassados.
É assim que, a partir de 2 de maio de 1935, por decisão do tribunal
administrativo prussiano, as medidas tomadas pela Gestapo não poderão ser
julgadas pela justiça. Em 7 de outubro de 1935, o tribunal administrativo de
Hamburgo decide que “no Estado nacional-socialista, a constituição, a
administração e a justiça vão juntas… O Estado age em função de motivos de
ordem política; a justiça não poderia opor-se a essas razões sob pretexto de
defender um ponto de vista diferente”.
Werner Best, o jurista da Gestapo, está satisfeito. A justiça alemã aceita a sua
definição da polícia: “A ação da polícia é necessariamente de acordo com o
direito, pois é expressão da vontade do Führer”.
Himmler está próximo de conseguir a soberania absoluta sobre as forças de
polícia unificadas do Reich. Os tardios escrúpulos do Ministro do Interior
Frick não serão obstáculo. A polícia política do Reich inteiro já está sob as
ordens de Himmler. Resta definir que forma tomará a extensão de seus
poderes às forças de polícia não-política. Talvez aí o ministro do Interior
ainda possa conseguir alguma coisa. Frick e os funcionários do ministério
sonham em colocar o resto da polícia sob sua tutela e favorecer tanto quanto
possível as ambições de Daluege, Obergruppenführer SS, tenente-geral da
polícia, em detrimento do Reichsführer.
O plano de Frick e de Daluege é o seguinte: todas as policias do Reich serão
reunidas sob a autoridade do Ministério do Interior; ao inspetor da Gestapo
Himmler confiar-se-á a direção do departamento “polícia” no interior do
ministério. Assim, colocado sob as ordens do ministro do Interior, Himmler
será representado no exterior pelo general de polícia Daluege. Mas o objetivo
não confessado desse plano é confinar Himmler nas funções públicas quase
honoríficas, confiando a direção efetiva das polícias a Kurt Daluege.
A reação de Himmler não se faz esperar. Em 9 de junho de 1936, o chefe do
SD Heydrich pede, em nome do Reichsführer SS, que seja concedido a este
último o nível de ministro e título de “Reichsführer SS e chefe da polícia
alemã”, o que o colocaria no mesmo nível dos três comandantes-em-chefe da
Wehrmacht.
Frick revolta-se. Vai ao encontro de Hitler. Durante a entrevista percebe que
perdeu a luta. Himmler não conseguirá ser nomeado ministro, mas quanto ao
resto obterá o que quer. Em 17 de junho, Himmler é chamado a ocupar suas
funções de chefe da polícia alemão no Ministério do Interior. O ministro pode
lhe pedir que preste contas de sua atividade, mas exclusivamente ‘‘a título
pessoal e sem intermediários”, o que significa que a tutela administrativa do
ministério sobre o departamento “polícia” é puramente fictícia. Daluege é
nomeado representante permanente de Himmler “em caso de ausência do
Reichsführer SS”.
Mal Himmler instalou-se em suas funções começará a mostrar como
compreende suas novas responsabilidades. Não contente de dirigir o
departamento de polícia, anexa imediatamente serviços vizinhos: imprensa,
autorização de porte de armas, entrega de passaportes serão a partir de agora
submetidos à sua aprovação.
Chefe supremo da polícia alemã, Himmler cria dois serviços principais
reunidos sob suas ordens. O serviço Sicherheitspolizei reúne a Geheime
Staatspolizei (Gestapo) e a Kriminalpolizei (Kripo); a responsabilidade desses
serviços é confiada ao Gruppenführer SS Reinhard Heydrich. O serviço
Ordnungspolizei (Orpo) reúne a Schutzpolizei ou Schupo, a gendarmaria e a
polícia municipal: seus cuidados são entregues ao Obergruppenführer SS e
general de polícia Kurt Daluege.
Heinrich Himmler chegou ao clímax em sua ascensão. Todas as polícias da
Alemanha hitlerista estão em suas mãos. Poderá realizar agora, tendo
Reinhard Heydrich como braço direito, a segunda parte de seu plano: fundir a
SS e a polícia em um corpo homogêneo, que se dedicará à segurança do III
Reich.
O SD
A 27 DE JANEIRO DE 1937 o sinal de alarma soa no
Landeskriminalpolizeiamt prussiano, central da polícia criminal alemã. Os
telex do LKPA funcionam sem parar, distribuindo a ordem do dia a todos os
serviços regionais da Kripo.
Eles são avisados de que devem, no menor espaço de tempo, fornecer ao
LKPA uma lista dos indivíduos considerados perigosos em sua circunscrição.
Cada lista deverá ser numerada. No caso de alguma ação efetiva contra esses
“inimigos da nação”, os números correspondentes aos criminosos que devem
ser presos serão dados pelo rádio.
Em 23 de fevereiro, o chefe da polícia alemã ordena ao LKPA que passe à
ação. Os telex voltam a funcionar. Em 9 de março de 1937 inicia-se a
operação em todo o território alemão: 2.000 homens são presos e
encarcerados a “título preventivo” nos campos de concentração de
Sachsenburg, Lichtenburg e Dachau.
O objetivo dessa operação não era de natureza política. Tratava-se
exclusivamente de “prevenção do crime”, isto é, prisão “preventiva”
atingindo antigos “criminosos” capazes de reincidir ou criminosos em
potencial.
Fazendo isso, a polícia de segurança substituía os tribunais, a quem o artigo
42 do Código Penal do Reich concede o direito de proceder a prisões de tal
natureza. Motivo da substituição: a polícia tem mais capacidade para julgar da
necessidade de prender algumas pessoas e deixar outras livres.
É claro que esta ação não é legal. Caracteriza-se como um abuso de poder.
Mas como bem disse Werner Best: “Uma tal ação policial é de qualquer
forma fundada no direito, pois as autoridades, como os cidadãos, são órgãos
do povo. Estes órgãos devem colaborar harmoniosamente para a realização de
um objetivo único que é a nação. O caso atual é um exemplo perfeito desta
colaboração harmoniosa entre órgãos do povo: a polícia age, e o criminoso
colabora de maneira passiva, aceitando ser preso a título preventivo.”
Esta prática de luta preventiva contra o “crime”, ou melhor, contra o que é
considerado crime na ótica nazista, retira todo o poder da justiça ordinária.
Chega-se, como diz o historiador Martin Broszat, de Munique, a “proceder
com o povo como se age em uma horta, da qual se retiram regularmente as
ervas daninhas e as plantas que se consideram prejudiciais”. A Alemanha não
tem uma taxa de criminalidade particularmente elevada, mas a
Sicherheitspolizei (Sipo) executa de tempos em tempos, por ordem do chefe
de polícia, tal “limpeza”.
Sob a direção de Heydrich, a Sipo ultrapassa largamente os quadros do que
tradicionalmente se considera “atividade de segurança”. Antes de Hitler, o
termo Sicherheitspolizei designava o conjunto da Verwaltungspolizei (por
exemplo, a polícia rodoviária) e a Vollzugspolizei, que incluía a polícia
criminal, a política, a gendarmaria, as forças de ordem. Himmler reúne todos
os grupos de polícia criminal e política em uma Sicherheitspolizei (Sipo) de
novo tipo. O resto da Vollzugspolizei e o conjunto da Verwaltungspolizei são
fundidos em uma nova polícia da ordem ou Ordnungspolizei (Orpo), confiada
a Kurt Daluege.
Os dois novos grupos, Sipo (Heydrich) e Orpo (Daluege), caminham
paralelamente sob ordens diretas e exclusivas de Himmler.
A Sipo apoia-se sobre duas instâncias administrativas, a saber: 1) a Geheime
Staatspolizeiamt (direção da polícia secreta do Estado ou Gestapo), que dirige
o conjunto de policias políticas do Reich; 2) a Landeskriminalpolizeiamt
(direção da polícia criminal ou LKPA), que toma em julho de 1937 o nome de
Reichskriminalpolizeiamt ou RKPA, e administra a polícia criminal em todo o
território alemão.
É com este formidável instrumento que Heydrich assegurará um controle cada
vez maior e mais firme sobre os mais diferentes setores da vida nacional.
Subordinado, em princípio, ao ministro do Interior, Heydrich não concederá a
Frick o menor direito de imiscuir-se nas atividades da Sipo.
Juristas conquistados para a causa e empregados por Heydrich demonstrarão
desde logo, a quem quiser entender, que o arbítrio policial é uma forma
superior de direito. “Inútil”, dirá Brest, “ter leis preestabelecidas, pois cada
ordem do Führer é uma lei em si e reforma a lei até então em vigor”. Por seu
lado, o professor do SD, Höhn, proclama que “o Estado e o indivíduo não
podem ser considerados como sujeitos jurídicos; o Estado não é um fim em si,
mas um meio de realizar as aspirações do povo, que são conhecidas pelo
Führer”.
A realidade jurídica do Estado e do indivíduo são assim contestadas, e o
cidadão não terá qualquer recurso contra o arbítrio policial. Heydrich é o
único juiz da forma e da importância que convém dar ao domínio que exerce
sobre o povo. Senhor e dono da vida e da liberdade dos cidadãos, lavra
mandados de prisão e encarcera quem lhe desagrada, a título preventivo, nos
campos de concentração.
Quando um condenado é libertado depois de ter cumprido seu tempo, os
esbirros de Heydrich esperam-no à saída. O homem termina em um campo de
concentração. Isso acontece com os antigos funcionários comunistas,
membros de certas seitas religiosas (Testemunhas de Jeová), considerados
culpados por suas tendências pacifistas. E culpados, segundo Heydrich, de
alta traição.
As vítimas “políticas” já não chegam para o SD. Introduzem alguns critérios
mais propriamente criminais. E a noção de inimigo público vai estender-se a
todo indivíduo que quiser, de uma maneira ou de outra, libertar-se da vontade
totalitária do regime. A rede das prisões preventivas estende-se cada vez mais,
e o conceito de inimigo público vai-se tornando cada vez mais elástico.
Às novas e muito vagas noções de “criminalidade” correspondem três grupos
de indivíduos, considerados a grosso modo. Há os criminosos por profissão e
habituados ao crime; são os que já foram condenados pelo menos três vezes a
penas de prisão de pelo menos seis meses. Em seguida, há os “associais”:
mendigos, vagabundos, ciganos, prostitutas, homossexuais, espíritos críticos,
bêbados, pervertidos (por exemplo, relações sexuais com judeus); psicopatas,
doentes mentais e outros pertencem a esta categoria. Por fim, há os “inimigos
do trabalho”: a este último grupo pertencem todos os que se recusaram, duas
vezes, sem justa razão a aceitar empregos que lhes foram oferecidos. Sobre
bases tão elásticas, a Sipo tem toda a facilidade para decidir quem merece o
campo de concentração e quando convém aí prender os culpados.
O campo de concentração, KZ ou KL, cercado de fios eletrificados, está no
centro da concepção policial SS: é o espantalho destinado a paralisar entre os
cidadãos toda veleidade de oposição ao regime. Desde sua origem, os
senhores da SS desistem de fazer desses campos centros de reeducação, como
pretendiam alguns nacional-socialistas tão convictos quanto inocentes. São,
desde logo, concebidos como instrumento de terror e de manutenção do
regime. Durante a guerra, tomarão a forma de campos de trabalhos forçados.
Antes da guerra, o papel exclusivo dos KZ era inspirar terror e exercê-lo. Os
ossos moídos em Dachau, Buchenwald e Sachsenhausen aí estão para mostrar
a cada alemão o que lhe acontecerá se não quiser andar direito.
“Esqueçam suas mulheres, seus filhos, sua família: aqui vocês vão ser
enterrados como cachorros”, esse era o discurso com que o comandante do
KZ, Karl Fritzsch, costumava receber os recém-chegados. E
permanentemente circulam rumores do tratamento monstruoso infligido aos
prisioneiros, das execuções sumárias em Buchenwald, das “covas de
cachorro” em Dachau, dos “acidentes de trabalho” em Mauthausen. Circulam
os boatos e o terror reina como senhor.
Himmler recusa-se a ceder a Heydrich o controle dos campos. É um domínio
sobre o qual ele quer assegurar seu privilégio. Seu braço direito conseguirá
afinal demonstrar-lhe que há interesse em confiar a administração dos KZ à
Sipo para que a SS conserve o seu apanágio. Quando Heydrich se torna
excessivamente insistente, Himmler barra-lhe definitivamente o caminho,
entregando os campos a um homem que lhe é inteiramente dedicado. Este
homem é Theodor Eicke, assassino de Röhm. Desde junho de 1933, Eicke
vinha-se destacando, como comandante do campo de Dachau, por uma
crueldade bárbara, uma ausência total de sentimentos e uma extraordinária
aptidão para entusiasmar os homens de seu regimento no cumprimento das
tarefas sanguinárias.
Himmler está entusiasmado pelo sucesso de Eicke. Em 20 de junho de 1934,
ele o nomeia comandante-em-chefe das tropas de vigilância KZ, que passarão
a chamar-se, a partir de 1936, Totenkopfverbände ou TV. Além disso, Eicke
recebe o título de inspetor dos campos de concentração.
Por processos bem característicos da Sipo, Heydrich tentará comprometer
Eicke. Colocará em evidência alguns efeitos de administração e criticará os
métodos bárbaros de seu rival. Mas é em vão: nunca reinará sobre os KZ.
No setor propriamente policial, Heydrich também sofre alguns desgostos. A
luta de competências que caracteriza o III Reich está em seu auge. O general
de polícia Daluege opõe-se às pretensões de Heydrich de sempre obter
maiores poderes.
O chefe da direção Orpo não está, evidentemente, em condições de declarar
guerra aberta a seu concorrente da Sipo. Mas é suficientemente forte para
impedir o ambicionado acesso de Heydrich à hegemonia policial. Ele
comanda um dos mais famosos corpos de polícia, a Schutzpolizei (Schupo)
prussiana, que foi o orgulho da República de Weimar e que ainda goza de
certo prestigio nos primeiros anos do III Reich: além disso, está cercado de
alguns funcionários resolutamente hostis a Heydrich.
Um dos pontos mais calorosos dessa luta de competências refere-se à polícia
criminal. Aqui, como em outras partes, o regime nacional-socialista deixa
entrever uma de suas características: a de sempre criar novas estruturas, sem
suprimir inteiramente as antigas. No nível superior, polícia criminal e polícia
política (Kripo e Gestapo) estão fundidas em uma só polícia de segurança
dirigida por Heydrich. No nível médio e inferior, as velhas estruturas
administrativas foram entretanto conservadas. Os centros regionais Kripo
recebem ordens do Reichskriminalpolizeiamt — ou RKPA —, dirigido por
Nebe, por serem órgãos da polícia de segurança; entretanto, do ponto de vista
administrativo, dependem das chefaturas regionais de polícia. Consequência:
os chefes de polícia que pertencem à direção Orpo são os chefes efetivos dos
centros regionais Kripo, que são entretanto, de maneira indireta, órgãos da
direção Orpo de Daluege.
Para reduzir esse inconveniente, Heydrich, com o consentimento de Himmler,
nomeia inspetores de segurança (IdS) encarregados de superintender os chefes
de polícia regionais. Desde então, os centros regionais Kripo terão á sua
frente dois chefes, o chefe de polícia, por um lado, e o inspetor IdS por outro,
o que provocará problemas incessantes.
Esta fraqueza administrativa da Kripo, somada à hostilidade declarada entre a
Gestapa — dirigida pela brigada bávara de Heydrich — e a RKPA,
comandada por Arthur Nebe, levam o chefe da Sipo a acelerar a entrada em
função de uma outra organização ainda esquelética, presidida igualmente por
ele: o Sicherheitsdienst ou SD.
Até agora o SD não tivera ocasião de provar seu valor. A tomada do poder
fora obtida sem sua participação. Raramente os cem funcionários da
organização e os cem outros que aderiram com títulos honoríficos puderam
prestar serviços ao regime (outono de 1933). Mesmo a extensão dos poderes
do Reichsführer SS às polícias regionais foi conseguida sem a ajuda da SD.
Para que serve, então, o Sicherheitsdienst do Reichsführer SS, é o que se
perguntam alguns eminentes oficiais da SS.
O desconhecimento provoca desprezo. No outono de 1933, o gauleiter
Sprenger demite de suas funções de chefe de polícia de Hesse a Werner Best,
que é ao mesmo tempo o chefe do SD. Pior ainda, no verão de 1933, o
primeiro-ministro de Brunswick, Dietrich Klagges, apresenta uma queixa
diante do tribunal supremo do Partido contra o SD, que havia organizado um
complot contra ele e seus adjuntos, dois oficiais SS rivais de Himmler. O
Reichsführer SS levanta rapidamente a bandeira branca. O chefe do SD de
Brunswick é afastado da SS e atirado em um campo de concentração; seu
adjunto é demitido das funções e o responsável pelo caso no nível da central
SD é julgado por um tribunal do Partido. Para coroar tudo, Klagges, que nem
sequer era da Ordem, é nomeado por Himmler Gruppenführer SS.
No fim de 1933, o prestígio do SD está tão baixo que, por ordem do Führer,
Martin Bormann redige uma circular a todos os gauleiter a fim de pôr cobro
ao boato de que a organização fantasma seria proximamente dissolvida.
Este desconhecimento do SD, a pouca estima de que goza, contradiz
inteiramente a tese segundo a qual ele foi, desde os primórdios do Reich, um
serviço onipresente, um “espectro a inspirar pavor até no interior do Partido”
(Eugen Kogon). Na realidade, ele se assemelha, no início do regime, mais a
uma organização de escoteiros do que a um serviço secreto. Apesar disso o
SD existe, e já nesta época apresenta a particularidade capital de ser a única
organização centralizada de informações de que dispõe a direção do Partido.
Por pequeno que seja então este serviço “secreto”, a direção do Partido não
dispensará suas informações e não desconhecerá a sua importância. Pois
depois de 30 de janeiro de 1933 o Partido, aparentemente unido, está na
realidade fragmentando-se. A elite do NSDAP assume os postos de comando
do Estado em Berlim; os pequenos príncipes do NSDAP edificam nas
províncias seus microimpérios particulares. Nesta selva de clãs adversas, de
rivalidades abertas ou surdas, a direção do Partido não dispõe de fontes
seguras de informações, fora do SD, justamente um órgão que não participou
da corrida para o poder. A direção do Partido pode então confiar-lhe a tarefa
de seguir e de ver desenvolverem-se as intrigas dos pequenos potentados
nazistas. Em junho de 1934, Rudolf Hess proclama o SD como único
organismo oficial de informações do NSDAP.
O ar de romance que envolve a noção de serviço secreto, junto à hostilidade
aberta do SD contra os “pequenos Hitlers”, atraem para esta organização um
grupo importante de jovens intelectuais nacional-socialistas, cujo desejo
confessado é o de “melhorar o nacional-socialismo”, segundo a expressão de
Gunther d’Alquen, que foi um deles. Em muito pouco tempo, o SD torna-se o
lugar de encontro da jovem elite intelectual nazista.
Quem são eles? Descendentes de uma burguesia arruinada, porque perdeu os
seus valores. De formação geralmente jurídica, criados e instruídos no
desprezo da República de Weimar, defendem um regime especificamente
alemão. O Estado todo-poderoso é a primeira condição. É o Estado-deus, para
o qual todos os sacrifícios são válidos. Mas que espécie de Estado? Ditatorial,
sem dúvida, “a fim de que a responsabilidade anônima da sociedade seja
encarnada por um homem de carne e osso”. Mas que gênero de ditadura?
Nacional-socialista, evidentemente. A catástrofe social da burguesia, a crise
econômica da década dos trinta, aumentou entre eles o gosto pela ditadura,
que além do mais está de acordo com as idéias anticapitalistas herdadas de
seus pais.
Seu ressentimento contra os trustes e os bancos está na origem deste veneno:
o antissemitismo. O antissemitismo, para eles, é o soro da revolução
econômica. Só conhecem uma norma ética: o poder, sua manutenção, seu
fortalecimento, sua permanência.
O nacional-socialismo vulgar dos veteranos do Partido está inteiramente
ultrapassado. Para os jovens do SD, a ordem do III Reich deve ser “razoável”,
a revolução nacional-socialista deve ser ativada pela inteligência clara e sadia.
Mas há uma distância entre idéias que eles têm do nacional-socialismo e a
realidade que enfrentam. Há uma grande distância preenchida pela fatuidade
dos bonzos do Partido, pelas querelas e pelo oportunismo dos grandes e
pequenos nazistas. Não, não é assim que eles imaginavam o III Reich. E
chegam a perguntar-se como e onde poderão participar dele.
Eis então que lhes falam de uma organização que tem por finalidade descobrir
os erros do Estado e apontar os corretivos. Esta organização não é
negligenciável, pois é Heinrich Himmler quem preside seus destinos.
Heinrich Himmler, o homem do futuro. A esses jovens com problemas, o SD
oferece uma tábua de salvação. O caso do jovem Otto Ohlendorf é um
excelente exemplo. Nascido em 1907, membro do Partido desde 1925,
Ohlendorf bateu-se contra as correntes coletivistas de inspiração socialista
existentes no Partido, quando era professor no Instituto de Economia Mundial
de Kriel. Lutou com tanto ardor que terminou por ter problemas com a
Gestado, que lhe proibiu de pronunciar conferências públicas. A fé de
Ohlendorf foi abalada. Que pensar desse nacional-socialismo no qual tanto
havia acreditado? Seu amigo e velho professor Jens Peter Jessen aconselha-o
a ir procurar o Professor Reinhard Höhn, que dirige uma das seções da
direção do SD, no número 102 da Wilhelmstrasse, em Berlim. Ohlendorf vai
lá e fica surpreendido com o encontro: Höhn declara-lhe sem-cerimônia que é
precisamente de espíritos críticos como o dele de que precisa o SD. Ohlendorf
integra-se imediatamente.
Depois de Ohlendorf, uma onda de jovens intelectuais alemães entra no SD.
Entre eles, Gunther d’Alquen, antigo jornalista NS afastado pelo Partido: o
Dr. Hermann Behrends, doutor em Direito, amigo de Heydrich: Walther
Schellenberg, doutor em Direito e em Ciências Políticas, em quem Heydrich
logo encontra um colaborador de talento.
Este afluxo de intelectuais jovens e dinâmicos empresta grande apoio a
Heydrich. Seu sistema na realidade está ameaçado pelo funcionalismo.
Apesar de sua eficiência, a Gestapo apresenta os vestígios ainda vivos de uma
tradição administrativa de espírito prussiano.
Chega o momento em que o chefe da Sipo percebe que, apesar das aparências,
Werner Best é um defensor intransigente de métodos funcionais prussianos
tradicionais. Várias vezes Heydrich e Best entram em conflito, e,
singularmente, sempre que se devem fazer escolhas para postos-chave da
Gestapo. Para Best, deveriam ser escolhidos juristas conformados,
especialistas. Para Heydrich, precisavam ser encontra dos homens seguros,
capazes, mas, sobretudo, não-técnicos.
Em resumo, surge um clima que põe em perigo o dinamismo do qual, para
Heydrich, deveria ser impregnado o aparelho policial. Como afastar esse
perigo? No princípio de 1935. Heydrich encontra a solução. Divide o SD em
duas formações distintas, a saber: de um lado, o SD, como integrante do
Partido: todos os funcionários da Sipo farão parte deste: este SD será o
instrumento de integração do conjunto da Sipo na SS Por outro lado, o SD
como centro de informações: este será o instrumento móvel, o sexto sentido
do Partido, presente e agindo em todos os meios, em todos os domínios, entre
os simpatizantes e os adversários. Este será o barômetro da nação.
Desde logo, Best e seus amigos são eliminados. Farão parte apenas do SD-
formação nazista. Sua participação no Serviço de Inteligência do Reich é
apenas nominal. Isso explica a posterior hostilidade de Best a qualquer
intrusão do SD na Gestapo.
O atual quadro da organização está inflado. Novas seções e novas direções
são criadas no seio da Reichssicherheitshauptamt (direção-geral da Segurança
do Reich), criada pelo Standartenführer SS Siegfried Taubert.
As seções de direções mais importantes são confiadas a universitários com
formação completa. O Dr. Wilhelm Albert, engenheiro, dirige a seção
“organização”. A seção “serviço” é confiada ao Economista Herbert
Mehlhorn; o Professor Franz Six dirige o serviço de “luta contra as idéias
hostis ao regime”; o Dr. Reinhard Höhn, a seção “relatórios”; o Oberführer SS
Heinz Jost, o serviço de “contraespionagem”.
Este estado-maior centraliza as informações provenientes de sete
Oberabschnitte SD (OA), que por sua vez centralizam as informações
fornecidas pelos Unterabschnitte SD (UA). Esses últimos recolhem o fruto da
atividade dos postos chamados exteriores, células capitais desta rede de
informações, cada uma com responsabilidades em uma região, em um cantão,
em uma cidade.
“Cada chefe de posto”, assinala na primavera de 1937 o Oberabschnitte SD
Noroeste, “deve procurar obter o auxílio de um ou de vários homens de
confiança (Vertrauensmann ou V Mann) em cada local habitado, na região de
sua responsabilidade. Cada um desses agentes terá seus informantes.
Exemplo: o posto D cobre trinta e duas comunas. Em cada comuna, o chefe
de posto terá o auxílio de um V Mann, que representará os interesses do SD.
Cabe a este homem criar em sua comuna a sua própria rede de informações.
Mas atenção: os informantes do representante local do SD não devem de
nenhuma forma saber que trabalham para nós. Quem pode tornar-se um V
Mann? Qualquer homem que disponha de um mínimo de cultura, de bom-
senso, objetividade e lógica”. E o Oberabschnitte Noroeste acrescenta que
“esses postos ajustam-se especialmente a professores, chefes SS e SA,
proprietários de terras, chefes de grupos locais, veterinários e (eventualmente)
funcionários aposentados”.
Este é o grande exército fantasma do SD. Entre os homens de linha da
organização, poucos são os que pertencem à SS ou ao Partido. Entre eles há
até adversários do regime, que entregam, sem sabê-lo, preciosas informações
sobre a neutralidade dos grupos não-nazistas ou antinazistas.
Os tentáculos do SD penetram nos locais mais recônditos da sociedade alemã.
Pois as informações não são apenas dadas por gente do povo e outros espiões
com sorte. A Wilhelmstrasse utiliza também juízes, homens de empresa,
artistas, sábios. Enquanto o estado-maior do SD é ocupado por jovens
universitários experientes, os postos exteriores do SD são alimentados de
informações pelas elites intelectuais locais. Assim é que a seção SD de
Koblenz dispõe, em 1938, de 24 colaboradores benévolos, dos quais quatro
são universitários: entre os onze “homens de confiança”, há oito funcionários
(dos quais quatro da polícia), um médico, um professor e um veterinário.
A partir de 1934, a rede cresce de ano para ano, a velocidade vertiginosa. Seus
tentáculos multiplicam-se e se estendem aos quatro pontos cardiais da
Alemanha. Em 1937, o SD conta com 3.000 membros inscritos na central e
um exército de 50.000 informantes.
Mas qual é, então, o papel exato da organização? Nos primeiros tempos do
regime, seu papel era simples: tratava de descobrir e neutralizar o adversário
nas fileiras do Partido e lutar contra as ações e reações de partidos
adversários. Isso no tempo em que esses partidos estavam no poder e
controlavam o aparelho policiai do Estado. Depois de 30 de janeiro de 1933,
os nazistas passaram a controlar esse aparelho. A relação de forças já não era
a mesma. Para que serviria então o SD?
No princípio, a organização de Heydrich apresenta-se como uma espécie de
polícia de apoio. Em 4 de julho de 1934, Himmler a eleva a “organização
política de defesa da Gestapo”. Seis meses depois, o chefe SS define mais
precisamente o seu papel: “o SD desmascara os adversários das idéias
nacional-socialistas e orienta assim a ação da polícia. Pois”, acrescenta o
Reichsführer SS, “o papel executivo é reservado exclusivamente à polícia”.
Pouco dispostos a ver-se confinados em um papel de auxiliar da Gestapo, os
chefes da organização entregam-se a um objetivo mais elevado: o SD será
uma polícia do espírito, o instrumento da medida e do controle do
pensamento.
Ainda Himmler: “O SD é o serviço de informação ideológico do Partido e do
Estado…” É o guardião do ideal nazista e por isso luta no plano do
pensamento contra “comunistas, judeus, franco-maçons, reacionários, grupos
confessionais ou politizados”. Isto não é, afinal, senão uma maneira nova de
formular o mesmo papel inicial do SD, anteriormente definido sumariamente:
“luta contra o adversário”.
Infatigáveis, os agentes do SD cumprem o seu papel, descobrindo a menor
aspereza ideológica, registrando a menor falha orgânica durante o exame
clínico da nação. As informações chegam incessantemente ao quartel-general
da Wilhelmstrasse. São registradas, classificadas, examinadas e conduzem a
ordens que mantêm a polícia permanentemente atenta.
Oberabschnitt SD Rhin a Unterabschnitt SD Koblenz, em 25 de novembro de
1937: “Vários relatórios estão fazendo referência à impopularidade dos
tribunais especiais. Solicitamos enviar-nos com urgência um resumo da
situação. Digam- nos se e em que medida as prisões nessa jurisdição suscitam
críticas”.
Oberabschnitt SD Sudoeste ao quartel-general, em 27 de maio de 1936:
“Julgamentos incompreensíveis nos assuntos raciais. As penas são
extremamente leves. Até agora nenhuma pena de prisão foi decretada apesar
das determinações do código”.
Relatório do SD n.° 037: “A situação do nacional-socialismo nesta região
(Colônia) tornou-se problemática em consequência da influência
preponderante da Igreja Católica. É uma região-teste, que demonstrará se a
revolução nacional-socialista tem possibilidades de impor-se ou não.
A sombra do SD está em toda parte, vigiando tudo, espionando cada cidadão,
desde que ele se encontre em público.
Relatório do Obersturmführer SS Grillenberger, de 26 de janeiro de 1938:
“Volta da Itália do navio Der Deutsche. O passageiro Fritz Schwanebeck,
nascido em 30 de março de 1901, residente em Mückenberg, manifestou por
sua atitude e por sua postura negligente a mais perfeita indiferença quando foi
tocado o hino nacional”.
A época das pseudo-eleições em 1938, o SD mostra-se particularmente
interessado na identificação dos votos brancos e negativos. As cédulas
enviadas aos cidadãos são marcadas com números invisíveis batidos em
máquinas de escrever sem fita. Os mesmos números figuram nas listas
eleitorais. Por ocasião da apuração, as cédulas são envolvidas em um leite
com creme especial para que os números apareçam. Procura-se então o
número correspondente na lista eleitoral e identificam-se os eleitores.
Novos fichários aparecem no quartel-general do SD e todos os cidadãos
suspeitos são anotados…
São várias as tarefas do SD, que se esforça para descobrir ascendência judaica
em nazistas de primeira hora, dos quais se querem livrar, por um ou outro
motivo. Mas isso ainda não basta a Heydrich. A ação silenciosa de seu
exército fantasma, decide acrescentar — para assegurar o total controle de
pensamento que ele ambiciona — o barulho de uma propaganda
cuidadosamente orquestrada. O homem desta propaganda será Gunther
d’Alquen, antigo redator-chefe do jornal berlinense Der Angriff, demitido de
suas funções pelo Partido em virtude da originalidade de suas idéias
(d’Alquen sustenta que “uma oposição construtiva é necessária a todo Estado
que não quiser perecer por inatividade”).
O órgão dessa propaganda será o Schwarze Korps, “jornal dos Schutzstaffeln
do NSDAP, órgão da Reichsführung SS”. A tiragem fixada no início —
primeira aparição em 6 de março de 1935 — é de 40.000 exemplares. Mas
sobe rapidamente e no fim de 1935 atinge 189.317 exemplares; em 1937,
500.000, e durante a guerra, 750.000.
As razões do êxito: a extrema ambiguidade do jornal, que os alemães logo
classificam como “o único jornal de oposição”. Tem, é claro, o veneno
comum contra a burguesia, os judeus, a Igreja, mas também — fato único —
critica severamente a vaidade de certos dignitários do Partido, a corrupção
que os envolve e o carreirismo pardo.
O espírito crítico do órgão da SS seduz a multidão. E nas fontes de
informação não são apenas as melhores, mas também indiscutíveis. E teria de
ser assim: o SD aí está, seus arquivos, suas atas e fichários completamente
abertos para Gunther d’Alquen.
Mas essa estreita colaboração entre o Schwarze Korps e o SD não trará os
frutos desejados. Heydrich perceberá a importância da arma de que dispõe. E
insistirá em fazer do Schwarze Korps um órgão propriamente SD. Que o
conteúdo de seu jornal seja pensado do princípio ao fim em função da
estratégia do estado-maior de Heydrich. Isso não poderia agradar ao artista da
demagogia que é Gunther d’Alquen. Entretanto, o caráter violentamente
panfletário do Schwarze Korps atrapalhava a ação do SD, ou pelo menos
comprometia a reputação desta organização, que deveria cuidar-se em uma
época de muitas controvérsias.
Correm os meses e os anos. Multiplicam-se os atritos. A colaboração termina
por ficar comprometida. Heydrich chegará a ter de nomear um conciliador
permanente entre o SD e o órgão de imprensa do SD. Ohlendorf formulará de
maneira clara a natureza desse conflito: “Os artigos do Schwarze Korps estão
repletos de hipóteses falsas, de generalizações abusivas. O aspecto
excessivamente difamatório do jornal encontra bons ouvidos apenas entre
espíritos pouco exigentes e compromete afinal a influência que queremos
exercer… O tom geral e as fórmulas empregadas levaram certos nacional-
socialistas, que podemos considerar nossos partidários, a ficar do lado dos que
criticamos com razão”.
Ohlendorf conclui que “uma colaboração real não será possível enquanto o
jornal não decidir basear suas críticas apenas em fatos indiscutíveis e para tal,
antes de explorar abusivamente informações obtidas no SD, deve contar com
a audiência competente dos funcionários dessa organização”.
Tal colaboração nunca existirá. Heydrich logo percebera que o poder do SD
não atinge o Schwarze Korps. Perceberá que chegou o momento de definir
muito bem os objetivos precisos da organização e encontrar justificativas reais
para a sua existência.
O Reichssicherheitshauptamt
SS e a Política Exterior
A Volkstumspolitik Oriental
A Solução Final
Potência e Impotência da SS