Cesario Verde
Cesario Verde
Cesario Verde
pelo campo, representada por uma vendedeira e sua giga de frutas e legumes.
. Assunto: o percurso do sujeito poético, a caminho do emprego às dez horas de uma quente manhã
de agosto, pelas largas ruas macadamizadas de um bairro moderno da cidade, e ao longo
do qual faz contrastar o conforto dos habitantes do bairro com o esforço de uma vendedeira
ambulante, uma jovem camponesa pobre. Os frutos e legumes que vende são o pretexto
para uma transfiguração do real, transmutando os legumes e frutos num ser humano.
Perante este cenário, é fácil concluir que o poema apresenta uma linha narrativa:
o sujeito poético caminha, pelas ruas macadamizadas de um bairro da cidade, para o seu
emprego, às dez horas de uma manhã quente de agosto. Em determinado momento vê
uma camponesa pobre, uma vendedeira ambulante a colocar o cabaz pesado de frutos e
legumes nas escadas de uma casa luxuosa. Esta é a cena que inspira nela a “visão de
artista”, que é o principal foco do poema. O sujeito poético vai observando, com bastante
pormenor, o que o rodeia, contrastando a frescura da vida confortável das
casas “apalaçadas” com o calor daquela rua. Segue-se a caracterização da vendedeira e
transformação dos elementos da sua giga num “corpo orgânico”.
Estrutura interna
Porém, este luxo da vida confortável na sombra fresca das ilhas privativas de verdura, que
são as casas apalaçadas, contrasta com a crua hostilidade da luz e do calor na larga rua
desabrigada: “E fere a vista, com brancuras quentes, / A larga rua macadamizada.” (vv. 4-
5)
O sujeito poético desempenha um papel activo na medida em que, enquanto
caminha, vai observando o que o rodeia com uma particularidade de detalhes que
constituem o seu próprio comentário selectivo. As casas grandiosas têm fontes e jardins;
os seus interiores, vislumbrados através das janelas quando se abrem as persianas,
revelam a folhagem pintada dos papéis de parede – o jardim capturado e enclausurado
como um tema decorativo – e o reluzir reconfortante das porcelanas frias. Mas além de
reportar o que vê e o surpreende nas ruas durante os passeios pelos bairros da cidade,
ele integra-se nas várias cenas que anota na sua poesia. Daí, vemo-lo às “Dez horas da
manhã”, a descer, “Sem muita pressa, para o [seu] emprego”, e a observar agudamente o
meio ambiente. O “eu” projecta-se, assim, como quem vai todos os dias para o seu
emprego, tal como qualquer lisboeta o faz, na rotina e monotonia típicas do ambiente
citadino e burguês de qualquer capital em qualquer época. Perante esta vida monótona, o
sujeito poético reage negativamente – fala das “tonturas duma apoplexia” que já se lhe
tornaram quase habituais.
Os ataques de tonturas levam o sujeito poético a ironizar enquanto caminha sobre
a “vida fácil” representada pelas casas “apalaçadas” que abundam nas ruas largas e
modernas que distam do seu emprego (est. 1-3). A sua observação contém
particularidades que são o seu próprio comentário selectivo (estr. 2). O luxo contrasta com
a hostilidade da luz e do calor (est. 1, vv. 4-5) que retém a sua visão na presença da
vendedeira de hortaliça (est. 4-5), enquanto a restante cidade prossegue na sua rotina
quotidiana (est. 8); o sujeito poético fica, porém, imerso na visão que o leva a recompor
gradualmente um “novo corpo orgânico” com os produtos do cabaz da vendedeira (est. 9-
12).
. 2.ª parte (estr. 4-6) – Entrada da vendedeira, simbolizando a invasão da cidade pelo campo.
. Descrição da vendedeira:
– “rota, pequenina, azafamada” – tripla adjectivação, diminutivo;
– “esguedelhada” – desleixada – , feia” – dupla adjectivação, sensação visual;
– pobre, pelas vestes, que são apresentadas mesmo antes da camponesa em si mesma;
– “ressoam-lhe os tamancos” – sensação auditiva;
– “o algodão azul da meia” – sensação visual, metonímia;
– “os seus bracinhos brancos” – sensação visual, diminutivo carinhoso;
– demonstra ser activa, diligente, trabalhadora (estr. 13, vv. 1-5);
– mostra-se robusta [“Nós levantámos todo aquele peso / (...) Com um enorme esforço
muscular.” – estr. 14, vv. 3-5; “E como as grossas pernas dum gigante...”, “... abóboras
carneiras.”, estr. 20], em paralelo com o seu aspecto frágil: “magra, enfezadita” (estr. 19,
v. 4)
Esta descrição vinca bem o contraste entre a vitalidade dos produtos do campo
transportados pela vendedeira e a sua fragilidade.
Por outro lado, sugere a imagem de uma criatura pobre e privada de tudo, com uma
vida que é uma verdadeira luta, pis embora “azafamada",
continua “rota” e “esguedelhada”, de uma pobreza que se reflecte também nas meias que
se abrem quando ela se curva. Não obstante, ela é alegre e “prazenteira”; a sua boa
disposição reflecte-se nos tamancos que ressoam, no algodão azul das meias, na chita
estampada e nas ramagens da sua saia, e dá-lhe uma projecção ao mesmo
tempo “pitoresca e audaz”, como alguém que desabafa a sua própria penúria, com o “peito
erguido, os pulsos nas ilhargas” (mostrando-se decidida), e “duma desgraça
alegre” (paradoxo) que incita o sujeito poético.
Relações:
A tensão que existe entre o criado desdenhosamente impaciente e a hortaliceira
tem uma projecção simbólica nos últimos três versos da estrofe, cujo efeito é a
intensificação da atitude negativa do sujeito perante o criado: por
transferência metonímica, a moeda «lívida, oxidada» representa a cara cor de cadáver
(«lívido», significando cor de chumbo, entre o negro e o azul, ou a cor cadavérica) do
criado, o «bater» da imagem representa a atitude hostil deste perante a rapariga, enquanto
as «faces» dos «alperces», sobre os quais a moeda cai, simbolizam, pela sua frescura
saudável, as faces da própria rapariga. A bofetada verbal que se lhe dá transforma-se,
assim, numa bofetada simbolicamente física.
A pobreza desta vendedeira é um sintoma de injustiça social, tal como a riqueza
contrastante das casas apalaçadas.
. Recursos expressivos:
– sinestesia: "xadrez marmóreo" (sobreposição de sensações visuais e tácteis);
– nas estrofes 5 e 6 há um grande rigor de observação (“apesar do sol, examinei-a”), obtido
através da importância conferida às sensações auditivas ("ressoam os tamancos") e
às sensações visuais ("o algodão azul da meia", "os seus bracinhos brancos”, "um cobre
lívido, oxidado”);
– na estrofe 6 nota-se a grande capacidade de síntese de Cesário Verde e do seu génio em
conseguir caracterizar todo um universo social e psicológico através da fala do criado ("Se
te convém, despacha; não converses. / Eu não dou mais...”), de gestos burgueses de
arrogância presentes na expressividade do(a):
® superlativo analítico "muito descansado”;
® forma verbal "atira”;
® personificação "cobre lívido”;
® cariz pejorativo e desprezível presente no adjectivo oxidado – autênticos traços naturalistas
da poesia de Cesário;
– a adjectivação utilizada para a vendedeira caracteriza-a como inferior, desprezível;
bos: "notei", "examinei" – observação do sujeito poético.
1.ª) O ser humano vegetal que emerge da cornucópia trazida para a cidade pela
frágil mensageira do campo é uma mulher gigantesca com grandes seios maternais ("seios
injectados”) e opulentas “carnes tentadoras”; uma Deusa-Mãe arquetipal,
uma personificação da Natureza.
4.ª) Serão a reacção física negativa e a tensão psicológica que o sujeito patenteia
na 1.ª parte apenas o resultado da monotonia da sua vida? Ou serão ao mesmo tempo o
resultado de um esforço constante de sublimar problemas pessoais? Nesta ordem de
ideias, o que lhe desperta o interesse não é a paisagem, em geral, mas, especificamente,
as casas, os lares, que, por sua vez, representam tudo aquilo que lhe é negado pela sua
inadaptação sexual. Enquanto o «eu» vai observando e anotando, apresenta-se-lhe
repentinamente, de costas, a figura de uma pequena hortaliceira, e logo, numa imagem
brilhante e visual, o sujeito foca nela um aspecto erótico, ou pelo menos, sugestivo, no
«algodão azul da meia» que se abre quando ela se curva. Neste momento começa-se a
sentir a tensão que noutros poemas se manifesta perante a figura feminina quando,
«Subitamente, através da sua visão de artista», todos os controles, as barreiras censoriais
erguidas contra os impulsos da líbido no processo de sublimação, se rompem, e segue-
se-lhe depois o quadro mais sensual de toda a obra de verdiana, como seu o «eu»
estivesse protegido e desculpado agora pela sua «visão de artista». É neste momento que
a sexualidade inerente, insatisfeita e problemática do «eu», em termos da sua
ambivalência, atinge o seu clímax.
5.ª) Por outro lado, é aqui que o sujeito poético se apresenta na pele de um artista,
de um poeta, no gesto demiúrgico de transformar esses alperces, humilhados pelo valor
de troca e pela classe que o determina (representada no criado de uma casa apalaçada),
num motivo de metaforização poética de recriação vital - de uma sobre-vida. Trata-se aqui
de um projecto de sobre-vivência não só do sujeito, que passa a ter uma visão de artista e
se autocontempla no acto de transmutar os simples vegetais, com a ajuda da luz do sol,
num corpo recriado, mas também de sobre-vivência da própria natureza vegetal, reagindo
contra a funesta redução do seu uso ao valor de troca, entendido como mortal: o cobre é
qualificado de oxidado e além disso Cesário substituiu a qualificação da versão primitiva,
«ignóbil», por «lívido». Deslocou o enfoque do conflito humano e sentimental para um nível
mais profundo, onde a lógica económica se cruza com uma lógica fantasmática dominada
pela pulsão de morte. Para revalorizar a natureza - os frutos e os legumes - o sujeito
torna-se e mostra-se poeta, capaz de a recriar num corpo carnal, e põe a nu o
procedimento metafórico com a sua capacidade fecundadora e produtiva. A metáfora
transforma-se assim num equivalente da fertilidade da natureza.
Convém ainda notar que não é um corpo qualquer que a «visão de artista»
recompõe, mas pedaços de um organismo feminino, agigantados e plurais, numa série que
caminha do mais epidérmico para o mais visceral, para os órgãos da digestão, da
procriação e para os centros de vida: «ventre», «feto», «sangue» e «corações pulsando».
Se a natureza comestível se transforma em natureza carnal e fértil, o contrário também
sucede. A metáfora é também pretexto para uma oralização dos estilhaços do corpo
feminino, tornando-o deglutível e nutritivo como as hortaliças e como elas revigorante, pois
que é do «gigo» que o sujeito recebe «emanações sadias».
6.ª) Uma vez que o sujeito poético recompõe, isto é, compõe de
novo “um novo corpo orgânico” com os frutos e legumes vistos em
termos metafóricos (“... descobria / Uma cabeça numa melancia...”), a sua actividade
implica a existência anterior de um modelo ou arquétipo, de uma «ideia» no sentido
platónico, que houvesse sido decomposto em frutos e legumes. Esse modelo é, portanto,
a própria Natureza. Mas como o corpo que é recomposto é um corpo “novo”, fica também
implícito que a Natureza, no processo da sua decomposição, tinha perdido a sua forma ou
totalidade original. A visão de artista ganha, assim, uma dimensão mais ampla e mais
profunda: é um projecto “visionário” de reconquista de um paraíso perdido.
. 4.ª parte (est. 13 - fim) – Interrupção da visão pelo pedido da vendedeira ao sujeito poético que a ajude,
seguida da observação:
. da vendedeira:
- a palidez e a fragilidade:
. metáfora / sensação visual: "descolorida nas maçãs do rosto"(1) ;
. metáfora e hipérbole: "e sem quadris na saia de ramagem"(1) → associado à “rama dos
papéis pintados” (v. 9) nas paredes da casa apalaçada, este verso torna-se
numa comparação entre a vendedeira rural que invade a cidade com o campo e a casa
citadina que aprisiona o campo na cidade;
. adjectivação expressiva: "pitoresca e audaz"; "magra, enfezadita"; "ver-dura rústica, abundante";
"repolhudas, largas"; "pobre caminhante"; "duas frugais abóboras carneiras";
. antítese e construção estrófica final, onde o verso mediano carrega com todo o peso dos 2
+ 2 versos marginais, referindo-se aquele à «pobre caminhante» e os outros quatro, que o
encaixam e esmagam, às «grossas pernas dum gigante» e à «verdura
rústica, abundante» das abóboras:
"Ela apregoa, magra, enfezadita, / As suas couves repolhudas largas." → contraste entre
a fragilidade da vendedeira e a "robustez" dos produtos que transporta;
. comparação: "E como as grossas pernas dum gigante (...) / Duas frugrais abóboras carneiras", realçando
as grandes dimensões e o peso das abóboras em contraste com a fragilidade da
vendedeira;
. sensação auditiva: o pregão da vendedeira;
. oxímoro/paradoxo: "desgraça alegre";
. do conteúdo da giga:
expressiva: "repolhudas, largas"; "emanações sadias"; "duas frugais abóboras carneiras";
- sensações olfactivas: os aromas provenientes da giga;
. da realidade exterior:
- metáforas: "O sol dourava o céu";
“Seus raios de laranja destilada”;
ões auditivas: "E ao longe rodam umas carruagens"; "Oiço um canário";
- imagem: "... parece que joeira / Ou que borrifa estrelas"; "... e a poeira / Que eleva nuvens altas a
incensá-lo";
- exclamação: "que infantil chilreada";
- adjectivação expressiva: "infantil chilreada".
O aspecto da colaboração aprazível que se salienta na expressão «sem desprezo»
reforça-se pelo uso da 1.ª pessoa do plural do verbo junto com o pronome correspondente,
que estabelece um cunho de intimidade relativamente à relação que assim se institui entre
o sujeito e «ela». A hortaliceira depois agradece-lhe e ´é como se o «eu» se purificasse e
purgasse do fastio que sente em relação ao meio urbano por ter tido este contacto com
uma presença feminina bem diferente da maioria das mulheres que se nos afiguram na
poesia de Cesário em geral. Mas, se bem que o contacto se realize e o sujeito consiga
vencer momentaneamente a distância social entre ele e ela, é um contacto passageiro cujo
aspecto transitório se salienta pelo substantivo «despedida», com a sua conotação de
partida, que, por sua vez, se realça em função do pronome demonstrativo do terceiro grau
(«naquela despedida»). A separação já implícita concretiza-se pelos verbos motores que
se lhe seguem quando os dois seguem em direcções opostas, num acto mútuo de
afastamento que transpõe para o lado espacial o que já se verificou no temporal: «E
enquanto sigo para o lado oposto, / [...] / A pobre afasta-se [...].» A relação «eu-ela» marca-
se com o afastamento, um afastamento implícito e "psicológico", em função da divergência
de classe social, e um afastamento explícito e físico, em função da dinâmica do
desencontro.
. Marcas do Surrealismo: a transfiguração surrealista dos frutos e legumes num "corpo humano", uma
transfiguração que foi tornada possível, esteticamente, pelo poder de uma «visão de
artista».
. Marcas do Impressionismo:
. a presença da cor;
. a presença da luz;
. as formas;
. o uso da sinestesia;
. o uso da hipálage;
. a acumulação de pormenores;
. a impressão inicial que o objecto provoca no sujeito;
. as sensações;
. a noção de movimento [“Sobem padeiros (...)”].
. Síntese
. Espaço: “larga rua macadamizada” enquadrada por casas apalaçadas com quartos estucados,
paredes de papéis pintados, mesas com porcelanas, jardins com nascentes Þ bairro
burguês (1, 2).
. Personagens:
- sujeito poético: frágil, doente, “Com as tonturas de uma apoplexia”;
- hortaliceira: mulher do povo, esguedelhada, magra, feia, doente, enfezadita (5, 16, 19).
A mulher do povo, apresentada de uma forma realista, não sujeita a uma metamorfose
poética, constitui uma inovação da poesia de Cesário. Esta mulher pobre, feia, “sem
quadris”, esmagada pelo peso do cabaz, simboliza também as preocupações sociais
presentes na poesia de Cesário, aspectos «revolucionários» para a época.