EXDESERFILOSOFIA

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Devir-sem-teto na educação: um exercício filosófico

Chapter · February 2023

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Eric Machado Paulucci


Federal University of Minas Gerais
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OLIVEIRA, P. R.; BADIA, D. D. (Orgs). Exercícios de ser filosofia. 1ª
Ed: Gradus Editora. Bauru, São Paulo. 2022.

FICHA TÉCNICA

Editor-chefe
Lucas Almeida Dias

Projeto gráfico
Paulo Ricardo Cavalcante da Silva

Diagramação
Tatiane Santos Galheiro

Revisão
Gradus Editora

Comitê Editorial Científico – Gradus Editora 2022


Dr. Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana Dos Santos
Dra. Cintya de Oliveira Souza
Dra. Ana Cláudia Bortolozzi
Dra. Andreia de Bem Machado
Dra. Manuela Costa Melo
Dr. Carlos Gomes de Castro
Dra. Ana Beatriz Duarte Vieira
Dra Janaína Muniz Picolo
Dr. Yan Corrêa Rodrigues
Dr. Thiago Henrique Omena
Dr. Luís Rafael Araújo Corrêa
Dr. Fábio Roger Vasconcelos
Dr. Leandro Antônio dos Santos
Dr. Gustavo Schmitt
Dra. Renata Cristina Lopes Andrade
Dra. Daniela Marques Saccaro
Dra. Gladys del Carmen Medina Morales
Dra. Márcia Lopes Reis
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Exercícios de ser filosofia.


/ organizadores, OLIVEIRA, P. R.; BADIA, D. D.
Bauru, SP: Gradus Editora, 2022.
173p.. : il. (algumas color.) ; PDF.

Inclui bibliografias.
ISBN --- --- --- --

1. Filosofia; 2. Educação; 3. Filosofia da educação

CDD 331.0
SUMÁRIO

1, 2, 3 E JÁ! EXERCÍCIOS DE SER FILOSOFIA............................ 7

01. EXPERIÊNCIA E FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO:


REFLEXÕES SOBRE BULLYING COM ESTUDANTES E
PROFESSORES............................................................................. 11
André Augusto Maia

02. DIPLOMA NO PORTA-RETRATOS: EXPERIÊNCIA E A


FIGURA DO TURISTA NA SALA DE AULA.................................. 23
Leonardo Teixeira Gomes

03. SIM, ESTOU AQUI: EM BUSCA DA EXPERIÊNCIA


ADORMECIDA PELOS MEUS STORIES...................................... 37
Silena da Fonseca Pimentel Paizan

04. EXERCÍCIOS DE SER FILOSOFIA A PARTIR DO


ACONTECIMENTO EM FOUCAULT............................................. 49
Silvia Cristina Barbosa da Silva

05. HOSPITALIDADE ENTRE AS BORDAS DO (I)NOMINÁVEL:


ARQUIVO, APAGAMENTO E ACONTECIMENTO....................... 59
Edileia Pereira dos Santos

06. EXPERIÊNCIAS FILOSÓFICAS NA FORMAÇÃO


CONTINUADA DE PROFESSORES EM EXERCÍCIO................... 71
Jefferson Luis Brentini da Silva
Iara Barrios Nogueira da Silva
07. AS DANÇAS CIRCULARES NA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES................................................................................... 83
Lídia Morcelli Duarte

08. O FILÓSOFO E SEU TEMPO: REFLEXÕES SOBRE A


EXPERIÊNCIA FILOSÓFICA DE DESCARTES............................ 101
Marcelo Alexandre dos Santos

09. DEVIR-SEM-TETO NA EDUCAÇÃO: UM EXERCÍCIO


FILOSÓFICO................................................................................. 119
Eric Machado Paulucci

10. PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO EM CONTEXTOS DE


PRIVAÇÃO DE LIBERDADE........................................................ 131
Carolina Cunha Seidel

11. O DESENHO E AS PALAVRAS NO FILOSOFAR:


POSSIBILIDADES DE OUTROS LUGARES PARA A LEITURA,
A ESCRITA, A FALA E A ESCUTA DO MUNDO............................ 147
Paula Ramos de Oliveira
Denis Domeneghetti Badia
1, 2, 3 E JÁ! EXERCÍCIOS
DE SER FILOSOFIA

Exercícios de ser filosofia. Exercícios de ser infância. Aprendemos com


Manoel de Barros que nos contou sobre exercícios de ser criança. Queremos
também aprender a ser filosofia e infância. Mas já o somos. Por isso queremos
com estes dois livros mostrar o que já temos sido, o que estamos sendo e o
que podemos ser. Podemos ser filosofia. Podemos ser infância. Podemos ser
criança. Mas queremos ser filosofia e infância, infância e filosofia, filosofia da
infância e infância da filosofia. Somos filosoinfantes, fazemos filosofâncias. E
aqui queremos brincar. Brincar com nossas filosofias e infâncias. E queremos
começar já. Nosso convite é o de que entrem conosco nesta brincadeira. Ha-
bitualmente uma apresentação apresenta o livro e quem o escreveu. Nós não.
Não queremos falar sobre eles, nem por eles e nem re-falar do que eles falam.
Aliás, do que falamos também, pois não quisemos ficar fora da brincadeira.

Então, 1, 2, 3 e já!
Ousamos iniciar falando sobre a capacidade de amar, tão cara à filosofia.
Talvez o leitor se pergunte o porquê da necessidade de amar num contexto... (Não
vamos contar!)
Do lado avesso aos primeiros (quem serão esses?!), para os peregrinos as
paragens são estações pelo caminho, são domicílios. Os peregrinos constroem re-
lações com as pessoas dos lugares, pois nas próximas peregrinações esse encontro
tornará a acontecer, realizando comprometimento com o futuro, diferentemente
dos turistas que não desejam que os acontecimentos do hoje se liguem ao amanhã.
Sim, ainda estou aqui. As experiências acontecem, mas noto com certa an-
gústia a dificuldade que possuo em enxergá-las. Será o véu da ignorância pre-
conizado por John Rawls essa sombra que paira sob os olhares estigmatizados
da sociedade pós-moderna? Culpados inexistem, no entanto, poder de escolha,
posso tirar o véu de meus olhos e acordar com minhas experiências adormecidas,
rememorar e ressignificar os momentos já vividos.

Exercícios de ser filosofia 7


Por outro lado, ao pensarmos a educação imbuída de um exercício filosó-
fico, a plausibilidade de um diagnóstico da atualidade possibilita a suspensão. A
partir desse fato, o tempo não produtivo tende a propiciar uma experiência, isto
é, um saber da experiência. A educação compreendida em sua capacidade de re-
novação cria condições de diagnosticar a sua realidade no cumprimento de uma
suspensão. Nesse sentido, a acontecimentalização representada pela própria to-
mada de consciência das rupturas, nos auxilia na investigação dessa escola que
se fecha aos interesses do capital e aprisiona os sujeitos no tempo produtivo.
A desconstrução, nas linhas derridianas, não compele a nenhuma origem,
arké, precisamente porque para o filósofo, não há incursão do conceito ao mo-
mento primeiro. Diz sobre auferir algo que advém, mas que na mesma medida,
se projeta: um porvir do acontecimento. Assim, estamos sempre diante de uma
dívida com o rastro cedido pelo outro.
[...] aquele que se nutre da Filosofia se arroja e se debruça nos emaranhados
das falsas certezas, busca através de uma atitude estranhada, desnaturalizada
e distante, a experiência de se aprofundar nos problemas e, a partir do efetivo
exercício da dúvida, encontrar caminhos para produzir saberes em prol da ver-
dade.
Eis um gesto de interrupção necessário à educação. Para nós, este gesto de
interrupção faz do corpo um movimento no sujeito capaz de nele descortinar a
dimensão filosófica tão importante na formação de professores. É preciso esva-
ziar-se para surgir o novo. Corpo e expressão unem-se nessas coreografias com
os exercícios de infância e de filosofia que as danças circulares movimentam no
ser professor.
E os filósofos e a filosofia sempre se movimentam...
[....] a experiência filosófica de Descartes foi em certa medida um risco que
ele assumiu, apesar de toda a cautela que manteve ao argumentar sobre suas con-
clusões nas obras que produziu. Mas, esse risco pode ter sido exatamente a condi-
ção para a efetividade dessa experiência. [...]
Consideramos que Descartes desfrutou de uma experiência verdadeira a
partir do seu esforço intelectual com o intuito de produzir algo novo e que signifi-
casse um avanço para a filosofia de seu tempo, apesar dos riscos dessa atitude. As

8 Exercícios de ser filosofia


próprias contradições presentes nas cosmovisões sobre as quais ele articulou seu
pensamento favoreceram as bases da sua experiência filosófica.
Casa e telhado e ar e porta e roça e vizinho e futebol e meninos e pôr do sol
e e e... Conhecendo a infinidade de elementos que podem se instalar em uma no-
ção de casa, não respondemos mais à frase “a casa é”. Trocamos o verbo “é” pela
conjunção “e” e assim, a casa ganha sentido em prática. Torna-se o próprio verbo.
Viajamos, complexificamos nossas relações, expandimos nosso campo perceptí-
vel, sem levar a casa nas costas. Quer dizer, o pensamento finalmente se dá por
conceitos [encadeamentos interdependentes] e não mais por imagens [represen-
tações supostamente inanimadas]. Vamos ao centro, bagunçamos o centro, e vol-
tamos às margens trazendo conceitos e suas pertinências em um novo contexto.
Neste prisma, esta viagem coloca em cinesia nosso próprio processo de subjetivi-
dade, não por vontade própria, mas pela invasão de um novo ser rasgado em nós.
Eis um exercício filosófico.
Nós também gostaríamos de bagunçar e levar esse trecho perto do tu-
rista. Mas achamos que podem fazer isso sozinhos!
Se partimos da ideia de que há liberdade em todo lugar, independente da
sua forma manifesta, entendemos poder como uma relação de forças que só pode
ser exercido sobre algo que é livre, pois quando não há possibilidade de resistên-
cia ou de reação, não há necessidade de exercício de poder. Se o poder não for
exercido sobre sujeitos livres e em seus exercícios de liberdade, tudo seria apenas
manifestação de violência e domínio completo.
Sim, sujeitos livres e aqui juntos...
Então, há algo que une essas pessoas que se encontram nesse espaço es-
colar - seja em uma aula, seja em um grupo de estudo e pesquisa. Parece-nos que
um grupo de pesquisa fica mais aberto para destacar o que une. Nele há pessoas
que estudam e pesquisam. Elas formam um conjunto. Seus coordenadores fazem
parte desse conjunto. Nas aulas não há grupo. No máximo há turma. Uma turma
composta de alunos que é conduzida por um professor. Aluno remete imediata-
mente a um lugar que diz de uma determinada relação, e necessária, com outro.
Não há aluno sem professor. Não há professor sem aluno. Já estudante ou pesqui-
sador qualifica e remete a alguém que faz uma ação específica: estudar ou pes-

Exercícios de ser filosofia 9


quisar. Inclusive, estuda-se e pesquisa-se com alguém, mas também estuda-se e
pesquisa-se sozinho.
Mas, o que é isso tudo?
Isso somos nós.
Isso é filosofia.
Isso é o Grupo de Estudos e Pesquisas Filosofia para Crianças que às
vezes gostamos de chamar de Filosofâncias ou ainda, pelo que temos feito, de
Grupo de Estudos e Pesquisas de Filosofias com Crianças e Adultos.
Agora a ciranda é com vocês.

Paula e Denis,
São Carlos, setembro de 2022.

10 Exercícios de ser filosofia


01. EXPERIÊNCIA E FILOSOFIA NO ENSINO
MÉDIO: REFLEXÕES SOBRE BULLYING COM
ESTUDANTES E PROFESSORES

André Augusto Maia1

Se não fosse pelo meu temor em ser interpretado


equivocadamente como sentimental, eu diria que para haver
formação cultural se requer amor; e o defeito certamente se
refere à capacidade de amar. (ADORNO, 2020a, p. 69).

Ousamos iniciar falando sobre a capacidade de amar, tão cara à filoso-


fia. A conferência de Adorno - A filosofia e os professores - apresenta algumas
preocupações do pensador sobre o quanto a formação cultural passa não só
pelo rigor acadêmico e científico, mas por uma sensibilidade necessária para
evitar a desumanização e a barbárie. Não temos dúvida desse pressuposto
quando nos propusemos a pesquisar, em conjunto com os estudantes, as im-
plicações do bullying em nossa realidade escolar2.
Talvez o leitor se pergunte o porquê da necessidade de amar num con-
texto formativo escolar, especialmente aquele em que se verificam cotidiana-
mente situações de ausência desse amor – entendidos aqui enquanto precon-
ceito e bullying disseminados nas relações.

1
Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação Profissional em Filosofia (Pro-
f-Filo – UFSCar – SP). Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação Es-
colar (FCLAr – UNESP – SP). Professor da Rede Estadual de Ensino de São Paulo – SE-
DUC-SP.
2
Nos referimos à pesquisa de mestrado já defendida sobre a temática e realizada com
apoio da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Bra-
sil), bem como a continuidade desta pesquisa, em nível de doutorado, com o objeti-
vo geral de pesquisar a dimensão discursiva e reflexiva das vítimas e dos algozes do
bullying, tendo como subsídio as concepções dos filósofos da Teoria Crítica, sobretudo
Theodor Adorno.

Exercícios de ser filosofia 11


A ausência da capacidade de amar por aqueles que ensinam pode ser
responsável, segundo Adorno (2020a), por perpetuar a deficiência de amar
também nos estudantes, um estado intelectual, não ingênuo, mas responsável
pela barbárie nazista.
Diante de tamanha tarefa a ser realizada com nossos estudantes, enten-
demos que a escrita deste texto demandou um tempo de experiência e um
tempo de amadurecimento. Afinal, a pesquisa sobre tal fenômeno – o bullying
– e a possibilidade de enfrentá-lo, na escola, através de experiências filosófi-
cas, comporta não só um cuidado com o tempo que dedicamos ao estudante
para ouvi-lo e permiti-lo pensar sobre si mesmo, mas um tempo de amadure-
cimento do que somos e do que temos feito como professores.
Em um encontro nacional de professores de Filosofia, fomos questiona-
dos sobre o quanto escapam do nosso campo de formação os apontamentos
e experiências relatadas pelos estudantes, vítimas do bullying, aspectos que,
segundo o questionador, seriam pertencentes ao campo da subjetividade.
A pergunta comporta, por sua natureza, uma característica de satisfa-
ção da curiosidade e, ao mesmo tempo, uma ausência de reconhecimento de
um aspecto que entendemos fundamental: a filosofia, desde sua mais remota
origem, parte de indagações de sujeitos que estão em busca de si mesmos,
após terem se dado conta de estarem num mundo que assombra, complexo e,
muitas vezes, inexplicável pelos meios habituais.
Ao nos perguntarmos sobre o bullying e sua incidência nas relações
entre professores e estudantes, poderíamos, de maneira simplista, pensá-lo
como fenômeno corriqueiro e remediável com alguma ação pontual, sem a
ousadia de encarar sua realidade.
Entretanto, a pesquisa sobre o bullying e suas relações com os inúme-
ros preconceitos gerados e perpetuados dentro e fora da escola, comporta,
a nosso ver, uma íntima relação com a Filosofia, no sentido de que a escola
é o principal campo de resistência e persistência em um processo de ensi-
noaprendizagem que permita a nossos estudantes muito mais do que uma
formação para a sobrevivência num mundo estabelecido para ser desigual.

12 Exercícios de ser filosofia


Diante desses pressupostos, passaremos a refletir, nas páginas se-
guintes, numa perspectiva adorniana, sobre os pares experiência e filosofia,
bullying e preconceito, professores e estudantes, em busca de respostas para o
que consideramos possível no contexto escolar de ensino médio: uma forma-
ção para que a barbárie não se repita.

Experiência e Filosofia

“A formação que se esquece disso [da necessidade de uma


consciência não dissociada da humanidade], que descansa
em si mesma e se absolutiza, acaba por converter-se em
semiformação” (ADORNO, 2010, p. 10).

Que experiência a Filosofia nos permite, na escola? Capaz de romper


com os lugares-comuns – competências e habilidades, por exemplo – ou atual
a ponto de manter viva a resistência por um espaço escolar não dissociado da
humanidade?
A depender da resposta, opta-se por caminhos distintos que impactam
diretamente na formação cultural dos nossos estudantes que, muitas vezes,
chegam à escola já conformados com a sua situação de submetidos a um sis-
tema que perpetua os preconceitos.
Uma proposta filosófica, no contexto do “novo” Ensino Médio paulis-
ta, por exemplo, precisa ser encarada, a nosso ver, para além das competên-
cias gerais e habilidades especificadas pela Base Nacional Comum Curricu-
lar, pressupostos também reiterados pelo Currículo Paulista (SÃO PAULO,
2020).
Se assumidas as premissas dos documentos legais, apenas, corremos
o risco de validar ideais que generalizam e perpetuam a manutenção da si-
tuação de violência e barbárie presentes em nossa realidade, uma vez que
o Currículo não dialoga com a urgência da formação cultural de todos os
estudantes.
Trazemos esta problemática aqui para chamar a atenção do leitor sobre
o quanto a experiência de se ensinar Filosofia – ainda mais quando nos pro-

Exercícios de ser filosofia 13


pusemos a refletir sobre as implicações do bullying – está comprometida e
imbricada nas inquietações que passamos a apresentar a seguir.
A filosofia é experiência que nos desacomoda, nos conduz a contestar
os pontos críticos de uma realidade ameaçadora e permeada pela barbárie?
O estudante tem a oportunidade de refletir sobre sua realidade e avançar na
construção de uma nova história ou simplesmente conformar-se com o real?
Ao pensarmos no par experiência-filosofia, estamos motivados pela
ideia de que a escola tem potencial para além das determinações curriculares,
para permitir aos estudantes a experiência de um filosofar autêntico, crítico e
abandonar a estranha obsessão pela ignorância, infelizmente tão comum em
nossos dias.
Que experiência a filosofia nos permite no enfrentamento do bullying no
contexto escolar? Tratar-se-ia de uma conformação àquilo que já é costumei-
ro ou a tentativa de dar corpo à uma tarefa que o imediatismo consideraria
impossível: experimentar uma realidade em que a perversidade seja aban-
donada dos discursos, dos olhares e das palavras, em que o preconceito seja
substituído pelo reconhecimento do outro como ele é?
Adorno (2009), em sua Dialética Negativa, conclama-nos a negar aquilo
que parecia sólido, positivo e determinado: a dialética enquanto ideal a ser
atingido após um exercício reflexivo linear, previsível e infalível. A perspec-
tiva em que se coloca a negatividade como pressuposto da ação é necessária
em tempos em que o pensamento humano não só se encontra fragmentado e
sem sentido, mas é levado a acreditar que a vida comporta situações de nega-
ção do outro, de sobrevivência de uns em detrimento de outros.
Na Teoria da Semiformação, Adorno (2010) argumenta sobre a tensão
entre ausência-necessidade de formação cultural, num contexto em que a
agressividade acaba validada justamente quando a sobrevivência dos mais
fortes é categoria possível, levando a humanidade a uma formação regressi-
va, quando o desejável seria o inverso.
Diante disso, desejamos, em nossa proposta de associar experiência e
filosofia, a afirmação de que o bullying não é algo comum, individual, ou re-
sultado de mau comportamento, como se vê comumente. Trata-se, ainda, de

14 Exercícios de ser filosofia


uma negação que se estende às condições pelos quais nossos estudantes são
submetidos no instante em que se chocam com uma sociedade que considera
válida uma formação desarticulada da realidade e perpetuadora de sujeitos
danificados, que destroem a si mesmos.
A prática do bullying se dá quando os estudantes não enxergam outro
possível estado de coisas: a ausência de perversidade e a presença da autono-
mia e valorização da vida. A experiência escolar, em toda sua complexidade,
comporta o constante cuidado com a maneira como se trata a experiência
formativa dos estudantes e se essa experiência se dá num contexto de valori-
zação das coisas ou das pessoas.
A falta de experiências formativas na escola, que englobem a filosofia
como pressuposto para as ações, são resultado de uma não sensibilidade a
fatores que influenciam a formação de nossos estudantes, o que Adorno cha-
maria de uma “inocente despreocupação diante do poder que a realidade ex-
trapedagógica exerce sobre eles” (2010, p. 8), geradora de um espaço para que
a experiência escolar seja tão desarticulada e mantenha-se exatamente como
está – garantia de que a indústria cultural ocupe esse espaço com sucesso.
A experiência formativa que nos mobiliza em nossa pesquisa na escola,
comporta a Filosofia como aquela que se propõe como não conformação à
realidade que se impõe cotidianamente.

Bullying e preconceito

Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de


significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz
não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a
educação. Fala se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas
não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão;
a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que
têm de fundamental as condições que geram esta regressão.
(ADORNO, 2020b, p. 129).

Exercícios de ser filosofia 15


A persistência de Auschwitz é o que deveria apavorar a todos nós. A
existência das situações de preconceito combina com a persistência de uma
ideologia que nega a formação cultural aos mais jovens, objetivamente. “A es-
trutura social e sua dinâmica impedem [...] os bens culturais que oferecem ao
lhes negar o processo real da formação [...] (ADORNO, 2010, p. 16). As condi-
ções de bens materiais oferecidos pelo capitalismo, que aparentemente tra-
zem o bem-estar, combinam-se perversamente com uma experiência em que
a objetividade da desumanização passa despercebida aos olhares da maioria.
Ao tratar da desumanização sob a égide de um sistema pensado para
não constituir a autonomia dos sujeitos e para manter a consciência desses
diretamente vinculada à uma heteronomia, pretendemos traçar uma linha
tênue entre a desumanização, o preconceito e, por fim, o bullying.
Para além das definições correntes dos termos bullying e preconceito,
convidamos os estudantes e professores a refletirem sobre conceitos da obra
adorniana, que ajudam numa devida apropriação de ideias fundamentais
para se pensar esses fenômenos nas relações travadas no cotidiano escolar.
Assim, os conceitos de barbárie, ameaça de regressão à barbárie (ADOR-
NO, 2020b) e desbarbarização (ADORNO, 2020c), devidamente contextuali-
zados com os fatos ocorridos em Auschwitz e situações cotidianas como a
violência, a xenofobia, o racismo e o drama dos refugiados, por exemplo, vi-
sam gerar entre os estudantes e professores o diálogo sobre a problemática,
um necessário inconformismo e, sobremaneira, a resistência a todo de qual-
quer bullying e preconceito que permeiem o cotidiano escolar.
O rompimento com as situações persistentes – barbárie, autoritarismo,
preconceito, bullying – pode ser atingido através da realização de experiên-
cias filosóficas com estudantes e professores, motivando-os a refletir sobre
os sintomas dessas situações e pensando juntos em caminhos para a supera-
ção desse estado de coisas dentro da escola.

16 Exercícios de ser filosofia


Estudantes e professores
Selecionamos duas imagens, parte integrante de nossa pesquisa, que
são representativas da capacidade reflexivo-crítica de estudantes e profes-
sores, quando mobilizados pela problemática que nos propomos a investigar.

Imagem 1 – Atividade de estudante da 1ª série do Ensino Médio

Exercícios de ser filosofia 17


Imagem 2 – Atividade de professor do Ensino Médio

18 Exercícios de ser filosofia


As imagens foram colhidas em momentos diferentes das nossas expe-
riências filosóficas. Entretanto, guardam relações interessantes entre si, so-
bretudo por relacionarem a barbárie de Auschwitz com a questão dos pre-
conceitos.
A imagem 1 produzida pelo estudante tem a ousadia de colocar a escola
atrás dos arames farpados dos campos de concentração. Ademais, propõe a
reflexão do interlocutor sobre o quanto os preconceitos e o bullying prati-
cados no cotidiano se tratam de uma continuidade da perversidade de Aus-
chwitz.
O texto e imagem 2 produzidos pelo professor retratam a triste atua-
lidade da problemática e sua repetibilidade no cotidiano, de inúmeras ma-
neiras. Convidam, ainda, o leitor e a leitora a refletirem sobre o quanto as
pessoas não são capazes de se envolver com essas questões e apenas apontar
a câmera do seu smartphone para filmar a situação, causando ainda mais ex-
posição da vítima e sendo estas tão agressoras quanto os algozes que comete-
ram violência de forma tão cruel.
Voltemo-nos ao princípio deste texto. Sobre a capacidade de amar.
É possível amar e vivenciar o amor em uma escola que submete seus
estudantes a um regime agressivo, autoritário, não reflexivo – às farpas do
campo de concentração?
É possível amar e viver em uma sociedade que permite e perpetua
inúmeras situações de preconceito, violência e bullying em seu cotidiano, ain-
da mais quando são situações validadas por uma ideologia que desconsidera
a humanidade em sua potencialidade de atingir uma formação cultural que
garanta a liberdade e a autonomia?
Para o estado de coisas que perpetua e pretende manter os seres huma-
nos exatamente como são e estão, as respostas a esses questionamentos são
desfavoráveis. Entretanto, em Adorno, podemos nos mobilizar para o seguin-
te:

No caso do tipo com tendências à fetichização da técnica,


trata-se de pessoas incapazes de amar [...]. A capacidade

Exercícios de ser filosofia 19


de amar, que de alguma maneira sobrevive, eles precisam
aplicá-la aos meios. As personalidades preconceituosas e
vinculadas à autoridade com que nos ocupamos em Estudos
sobre a personalidade autoritária, em Berkeley, forneceram
muitas evidências neste sentido. Um sujeito experimental — e a
própria expressão já é do repertório da consciência coisificada
— afirmava de si mesmo: “I like nice equipament” (Eu gosto de
equipamentos, de instrumentos bonitos), independentemente
dos equipamentos em questão. Seu amor era absorvido por
coisas, máquinas enquanto tais (ADORNO, 2020b, p. 144).

Aqueles que acabam absorvidos pelo gosto pelas coisas, pelos equipa-
mentos, pelas máquinas, está muito próximo dos algozes de Auschwitz, pois
deixam de lado a sua energia vital de amar pessoas. Não se trata, entretanto,
de uma escolha autônoma, mas resultado de uma semiformação que danifica
os sujeitos a ponto de que o amor não faça sentido para estes.
O gosto pelos equipamentos, o gosto por utilizar um smartphone para
registrar imagens do outro sendo exposto e violentado – como fora retrata-
do pelo professor na imagem 2 – nos ajuda a perceber não só a presença da
incapacidade de amar, mas a absorção do tempo de vida em um gosto por
coisas. As pessoas acabam coisificadas, por fim. Por isso, um estado de coisas
gerador de violência acaba fazendo tanto sentido, quando não seria razoável.
A pesquisa sobre esta problemática escancara uma demanda extrema-
mente desafiadora. Uma realidade que, num olhar apressado, parece intrans-
ponível.
O que podem os estudantes e os professores diante de tão grande de-
safio? Pela característica da problemática e pela característica dialética da
filosofia adorniana, que nos mobiliza, estamos todos num campo de aprendi-
zagem, reflexão e, sobretudo, de abertura para o outro, proporcionando, pela
experiência filosófica, o espaço necessário para que estudantes e professores
possam construir juntos um legado, pela Filosofia. A postura que desejamos,
sobretudo de nossos estudantes, é que possam se manifestar, sendo ouvidos e
falando aquilo que pensam e, sobretudo, expressando o desejo de resistência
à barbárie.

20 Exercícios de ser filosofia


Referências
ADORNO, Theodor. Teoria da Semiformação. Trad: Newton Ramos-de-Oli-
veira. In: PUCCI, Bruno. ZUIN, Antônio A. S. LASTÓRIA, Luiz A. Calmon Na-
buco. Teoria crítica e inconformismo: novas perspectivas de pesquisa. Cam-
pinas-SP: Autores Associados, 2010.

______. A filosofia e os professores. In: ADORNO, Theodor. Educação e


Emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. 2ª ed. revista. São Paulo: Paz &
Terra, 2020a. p. 55-80.

______. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

______. Educação após Auschwitz. In: ADORNO, Theodor. Educação e


Emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. 2ª ed. revista. São Paulo: Paz & Ter-
ra, 2020b. p. 129-149.

______. Tabus acerca do magistério. In: ADORNO, Theodor. Educação e


Emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. 2ª ed. revista. São Paulo: Paz & Ter-
ra, 2020c. p. 105-127.

MAIA, André Augusto. O ensino de Filosofia e o bullying: entre o currícu-


lo e as aulas. Dissertação (mestrado) -Universidade Federal de São Carlos,
campus São Carlos, São Carlos, 2019. Disponível em: https://repositorio.ufs-
car.br/handle/ufscar/12259.

SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Currículo Paulista: Etapa


Ensino Médio; São Paulo: SEDUC, 2020.

Exercícios de ser filosofia 21


02. DIPLOMA NO PORTA-RETRATOS:
EXPERIÊNCIA E A FIGURA DO
TURISTA NA SALA DE AULA

Leonardo Teixeira Gomes3

[Fabiano] Não podia arrumar o que tinha no interior. (RAMOS,


1997, p.36).

Sobre as notas de experiência em Larrosa


De início, nos inspiramos nas reflexões do espanhol Jorge Larrosa Bon-
día. No senso comum, homem de experiência é um homem conhecedor das
coisas da vida. Como substantivo feminino, a experiência pode significar co-
nhecimento adquirido por práticas, estudos, observação, etc. Para o autor es-
panhol, experiência pode ser compreendida, na língua portuguesa, como “o
que nos acontece”. Vejamos:

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos


toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca.
A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo,
quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa
está organizado para que nada nos aconteça. (LARROSA, 2014,
p. 21).

Para explicar seu pensamento, Larrosa utiliza quatro argumentos, quais


sejam: a informação não é experiência; a experiência é cada vez mais rara por
excesso de opinião; a experiência é cada vez mais rara por falta de tempo; a
experiência é cada vez mais rara por excesso de trabalho. A seguir, realizare-
mos uma síntese desse pensamento.

3
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar (FCLAr – UNESP –
SP).

Exercícios de ser filosofia 23


Primeiramente, o autor nos aponta que vivemos na sociedade da in-
formação. Os sujeitos da informação correm todo o tempo para se mante-
rem informados, há uma vertigem de que lhes falte informação, ou ainda, que
ele não esteja suficientemente informado sobre alguma coisa. Porém, nessa
preocupação contínua, ele pode estar megainformado e mesmo assim nada
lhe aconteceu. Para Larrosa experiência difere de informação. Conhecimento
e aprendizagem são simplesmente adquirir e processar informações. Pode-
mos assistir a uma aula ou ler um livro e teremos mais informações sobre
algo que não sabíamos, no entanto, podemos descobrir que nada nos aconte-
ceu, que nada nos tocou, nos transformou.
Em segundo lugar, o sujeito moderno bem informado é um sujeito que
opina. Andamos pela vida opinando sobre qualquer assunto que sejamos mi-
nimamente informados. Caso não saibamos opinar diante de uma situação
corriqueira, sentimos um vazio, então buscamos informações para podermos
opinar e assim estarmos completos. Obtemos informações e emitimos opi-
niões sobre qualquer tema, e tal encadeamento anula nossa possibilidade de
experiência, de que algo nos aconteça.
Em terceiro lugar, “tudo o que se passa passa demasiadamente depressa,
cada vez mais depressa” (LARROSA, 2014, p.23). O sujeito contemporâneo é
estimulado inúmeras vezes de maneira fugaz e instantânea. Os acontecimen-
tos nos chegam em forma de choque pontual e em fragmentos. Nossa obses-
são por novidade impossibilita nossa memória, pois existe uma substituição
imediata da informação por outra igualmente excitante e efêmera que acon-
tece sem deixar qualquer registro. Para o autor, somos consumidores vorazes
e insaciáveis de notícias, novidades, curiosos que não aceitam ficar para trás,
eternos insatisfeitos. Portanto, o sujeito da vivência pontual é alvejado por
milhões de informações, mas nada lhe acontece. Essa velocidade de informações
e a falta de silêncio para assentar na memória estorvam a experiência.
Por último, ele analisa o clichê no qual tomamos trabalho por experiên-
cia. Aprendemos a teoria nas aulas programadas e nos livros da escola e ad-
quirimos experiência no trabalho. E nessa ação, trabalhar, o sujeito moderno
relaciona-se com o acontecimento, tudo é desculpa para sua atividade. Sem-

24 Exercícios de ser filosofia


pre hiperativo, deseja mudar as coisas, colocando sua existência a serviço do
fazer, e nesse modelo de atuação, não pode e não consegue parar, e nessa ló-
gica nada lhe acontece.
Perante seus argumentos, Larrosa prevê que algo nos acontece quando
a experiência requer um gesto de interrupção. No entanto, para ampliarmos
a reflexão, pensaremos na humanidade da modernidade líquida de Zygmunt
Bauman4, na qual parar, no tempo e nos espaços, não é viável. Este escritor
cria a metáfora do turista para esclarecer o demasiadamente humano de nos-
so tempo, de qual a estratégia de vida não é fazer a identidade deter-se, ao
contrário, é evitar que ela se fixe (BAUMAN, 1998). Estamos de passagem, vi-
sitamos lugares, pessoas e sentimentos. Na sociedade de vertiginoso fluxo de
informações e opiniões encontramos dificuldade para investirmos em proje-
tos de vivência longa, pois os valores permanentemente mudam.
Segundo Bauman, em relação aos sujeitos, a modernidade líquida traz
uma nova atmosfera de

estilos e padrões de vida livremente concorrentes, há ainda um


severo teste de pureza que se requer seja transposto por todo
aquele que solicite ali ser admitido: tem de mostrar-se capaz de
ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação
promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a
sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça
interminável de cada vez mais intensas sensações e cada vez
mais inebriante experiência (BAUMAN, 1998, p.23).

Experiência inebriante por sua incapacidade de se fixar. Seduzidos pe-


las infinitas possibilidades produzidas pela sociedade da informação, sacrali-
zamos nossa opinião individual e não damos espaço para que algo nos acon-
teça. Passemos a figura do turista.

4
Zygmunt Bauman (1927-2017) professor e sociólogo, o grande escritor polonês cons-
truiu algumas das críticas mais pertinentes da sociedade contemporânea. Sua expres-
são “Modernidade Líquida” classifica a fluidez do mundo atual na qual os sujeitos não
possuem mais padrão de referência.

Exercícios de ser filosofia 25


Sobre programas oficiais e os estudantes como turistas.
Atualmente o turismo se coloca como ambição e quase parte impossível
de evitar nas sociedades contemporâneas. Reconhecido como peça da engre-
nagem de consumo, o turismo adentrou a seara de desejos do humano atual.
Essas transformações sociais atingem com suas nuances catalográficas os
prazeres e desejos dos homens e mulheres. Como o impulsionador e o movi-
mentador do comércio de diversos países e cidades, ou na compra de bibelôs
ou hospedagem em hotéis, ou mesmo em travessias ilesas de restaurantes re-
quintados de comida tradicional, o turismo passou a ter suas características
acentuadas na pós-modernidade baumaniana5.
No texto, Turistas e vagabundos: os heróis e as vítimas da pós-moderni-
dade, Zygmunt Bauman explica que

No jogo da vida dos homens e mulheres pós-modernos, as regras


do jogo não param de mudar no curso da disputa. A estratégia
sensível, portanto, é manter curto cada jogo - de modo que um
jogo da vida sensatamente disputado requer a desintegração de
um jogo que tudo abarca, com prêmios enormes e dispendiosos,
numa série de jogos estreitos e breves, que só os tenha pequenos
e não demasiadamente preciosos. (BAUMAN, 1998, p. 113).

Para o autor, a estratégia de manter curto cada jogo quer dizer alertar-
-se na presença de compromissos que podem ser tomados como de longo
prazo, é recusar a fixação de uma maneira ou de outra, não se amarrando a
nenhum lugar, ou mesmo a ninguém. E continua,

Não controlar o futuro, mas se recusar a empenhá-lo: tomar


cuidado para que as conseqüências do jogo não sobrevivam
ao próprio jogo e para renunciar à responsabilidade pelo
que produzam tais conseqüências. Proibir o passado de se
relacionar com o presente. Em suma, cortar o presente nas duas

5
Zygmunt Bauman (1927-2017) professor e sociólogo, o grande escritor polonês cons-
truiu algumas das críticas mais pertinentes da sociedade contemporânea. Sua expres-
são “Modernidade Líquida” classifica a fluidez do mundo atual na qual os sujeitos não
possuem mais padrão de referência.

26 Exercícios de ser filosofia


extremidades, separar o presente da história. Abolir o tempo
em qualquer outra forma que não a de um ajuntamento solto,
ou uma seqüência arbitrária, de momentos presentes: aplanar
o fluxo do tempo num presente contínuo. (BAUMAN, 1998, p.
113).

Dessa maneira, separando o presente da história e cortando suas ex-


tremidades, abolimos os apegos e afetos do passado e não nos ocupamos do
futuro, subtraímos do tempo sua qualidade de estruturar o espaço, reestru-
turando como mobilidade, e ao fazê-lo transcorremos na estratégia da vida
pós-moderna de evitar que algo se fixe. Tudo escorre.
Para Bauman, o ápice dessa evitação é a figura do turista. Eles possuem
como primazia a qualidade de “realizarem a façanha de não pertencer ao lu-
gar que podem estar visitando: é deles o milagre de estar dentro e fora do
lugar ao mesmo tempo.” (BAUMAN, 1998, p. 114). Carregados com suas mo-
chilas, aparelhamento fotográfico, vestimentas adaptadas ao novo mundo
exterior, viajam despreocupados com os rigores da fixação garantidos pelos
alicerces da mobilidade. A possibilidade de mudar instala-se como liberdade,
autonomia e independência, sua singularidade é estar em movimento e não
alcançar um destino final. E aqui Bauman introduz a comparação entre os
aspectos dos antecessores dos turistas: os peregrinos. Do lado avesso aos pri-
meiros, para os peregrinos as paragens são estações pelo caminho, são domi-
cílios. Os peregrinos constroem relações com as pessoas dos lugares, pois nas
próximas peregrinações esse encontro tornará a acontecer, realizando com-
prometimento com o futuro, diferentemente dos turistas que não desejam
que os acontecimentos do hoje se liguem ao amanhã. O controle da situação
manifesta-se na continuidade do movimentar-se. Retomando as possibilida-
des de experiências larrosianas, esse turista permanentemente agitado e em
movimento converte a experiência em moeda, créditos, valor de troca, etc.
Por conseguinte, essa modalidade de mobilidade transfigura-se em antago-
nista mortal da experiência.

Exercícios de ser filosofia 27


Analogicamente, comparamos nossos jovens estudantes aos turistas de
Bauman. Explicamos. No modelo escolar no qual se desenrolam as atividades
de aprendizagens por nós acompanhadas durante a investigação6 nas salas
de aula, observamos que os conhecimentos e valores histórico e socialmente
acumulados são transmitidos aos alunos em disciplinas específicas que mi-
ram a preparação do jovem para a vida adulta. No entanto, os conteúdos não
constituíam significados para os alunos, pois pronunciam-se separados da
realidade social deles. Os alunos comumente não se conectam a maneira de
transmissão dos conteúdos, pois neles não reconhecem comprometimento,
diferente dos peregrinos de Bauman. A exposição da matéria, ou como eles
dizem: a explicação, muitas vezes reduz-se à exposição verbal do professor
ou à cópia de anotações na lousa. Para eles, os conteúdos são ritmados pelos
números de aulas e quantidade de informações, em forma de choques e frag-
mentos. Não se estabelece comunicação com o ritmo de aprendizado dos jo-
vens. Institui-se um projeto de formação receptivo e mecânico, garantido pela
repetição ordenada de exercícios e resumos. Carregados com suas mochilas
preenchidas com os cadernos do aluno produzidos pelo Estado, vestidos de
uniforme (facilitador de reconhecimento) para se adequarem ao local, e com
seus celulares cheios de fotos, música, séries e redes sociais, os jovens estu-
dantes viajam todos os dias da semana para as salas de aula. Lá encontram
seus parceiros de viagem e os objetos a visitar: o currículo oficial do Estado
de São Paulo. Seus guias: os professores e professoras. Como os agentes de
turismo, estes organizam os roteiros e apresentam os objetos de apreciação.
No entanto, ouvimos os seguintes relatos sobre os acontecimentos de um dia
na escola: “Bom, praticamente todos os dias são iguais, não muda muita coisa.
Eu acordo, venho para cá e fico aqui. Tem algumas aulas que muitas vezes não
gostamos e vamos embora”. Outro aluno complementa, “Geralmente quase
nada acontece de novo, ou que seja tão extraordinário ao ponto de nos afetar,
é sempre o mesmo do mesmo, nada de anormal”. Reproduz-se a transmissão
de informações, num circuito tão fechado quanto o da pedra Sísifo. Adentra-

6
Turista da palavra: narrativas possíveis das sobras de experiência na escola. Leonardo
Teixeira Gomes, 2019. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação
Escolar da Faculdade de Ciências e Letras - Unesp - Campus Araraquara).

28 Exercícios de ser filosofia


mos, então, ao campo dos estudos nas disciplinas específicas e o desejo de
aprender. Uma aluna conta sobre a relação com os professores:

Muitas vezes em certas matérias que os alunos tinham certo


interesse de aprender foram até os professores que tinham
pouco interesse de ensinar e falaram que se nosso interesse
fosse aprender, tínhamos prestado atenção na explicação,
sendo que nada daquela matéria foi explicado, e que com isso,
saímos no prejuízo, sem falar de brigas na sala de aula o que é
muito chato.

Outra aluna relata a lembrança de quando a professora de Língua In-


glesa mandou todos copiarem a prova inteira para a correção, sendo que já
estava impressa. Na ausência de significado das atividades realizadas em sala
de aula, os estudantes vão tomando distância afetiva em relação ao conheci-
mento construído no programa oficial. Tornam-se turistas dentro das salas
de aula, pois não criam identificação e significados com aqueles afazeres e,
por conseguinte, como nos ensinou o sociólogo polonês supracitado, insta-
lam-se na qualidade de estarem dentro e fora ao mesmo tempo no lugar que
ocupam.
Podemos compreender esse não pertencimento em relação ao espa-
ço físico. Observamos que a disciplina imposta, desenredada no corpo doci-
lizado foucaultiano, interfere nos lugares e nos momentos em que os alunos
podem se locomover e ocupar os espaços escolares. Esse nível de controle
gera insatisfação, que, por sua vez, emancipa a despreocupação com o lugar,
ou mesmo afastamento afetivo. As relações se tornam muito mais epidérmi-
cas do que de participação em comum e partilha. A narrativa a seguir, sobre
episódios que viveram na escola e gostariam de esquecer, exemplifica essa
condição:

Teve uma vez que a moça que trabalha na secretaria fez o


seguinte. O povo do terceiro estava tirando foto aqui, e tipo
assim, o pessoal que vem tirar foto aqui, não conhece muito
a nossa história né, a escola quer dizer, aí ele pediu uma

Exercícios de ser filosofia 29


vassoura, aí eu perguntei assim, você quer que eu vou buscar
para você? Eu não era aluna do terceiro eu estava no segundo,
a gente estava aqui nessa, nessa escadinha aqui, aí ele falou
assim: “eu quero”, aí de repente eu fui lá na direção e era na
época que não podia entrar na direção sem autorização né.
Aí a secretária saiu do banheiro, a professora de geografia
que ainda foi pegar a vassoura pra mim né, e o coordenador
estava na sala quietinho assim né, encostadinho quietinho
assim, ninguém tinha visto ele só eu. Aí ela (a secretária) saiu
do banheiro e disse assim: “que você está fazendo aqui?” aí eu
não respondi, eu fiquei quieta. Ela virou e falou: “é, essa escola
está virando uma bagunça mesmo com aluno aqui”. Aí eu olhei
para ela, respirei fundo, olhei para o coordenador e ele falou
assim: “fica quieta”, e fazia assim pra mim (ela reproduz com
o dedo indicador na frente dos lábios um sinal de silêncio). Ai
de repente outra funcionária entrou e eu falei assim, eu só não
respondo porque tem poucas pessoas que eu gosto aqui nessa
escola, porque o coordenador estava lá e a outra funcionária
tinha entrado, senão eu ia dar uma má resposta para ela”.
(Explicações em itálico são nossas).

A aluna encerra sua história afirmando que não havia entrado lá para
bagunçar e que apenas iria fazer um favor. A pergunta da funcionária da es-
cola delimita os espaços de ocupação permitidos. Como uma turista, a aluna
deve reconhecer os lugares que se pode entrar. Além disso, o silenciar da alu-
na para evitar uma má resposta demonstra desconforto e consciência de que
a regra imposta para disciplinar pode variar conforme a situação e a pessoa.
Outro aspecto que gerou debate em nossas conversas, em relação à
apropriação afetiva dos espaços escolares e o sentimento de pertencer, foi a
reorganização escolar das salas de aula ocorrida entre o segundo e terceiro
ano Ensino Médio. Nessa escola a reorganização reduziu nove salas de segun-
dos anos em quatro salas de terceiros. Alguns professores comentaram que
essa reorganização atrapalhou muito o desenvolvimento do trabalho, pois

30 Exercícios de ser filosofia


algumas salas contavam-se mais de quarenta alunos. Esses, por sua vez, indi-
cam que a troca de salas separou grupos que estavam juntos desde o primeiro
ano, e isso os deixaram bastante desmotivados. Sobre uma amiga que está
quase para reprovar, ainda no início do segundo bimestre, uma aluna explica:

Ela está faltando muito, tem sério risco dela reprovar, dela
repetir, tento sempre motivá-la a vir, porque também lá é
assim, minha sala é toda misturada, é diferente, fica meio
desmotivado para vir para a escola, você vai chegar na sala e
não vai ter os mesmos outros, que você tinha assim uma certa
amizade, mas o que que eu vou fazer?

Pedimos que ampliasse sua explicação, e ela nos diz: “é porque separa-
ram as salas sabe, no começo do ano né as salas do segundo ano”. Outra aluna
a auxilia: “Separaram os terceiros, é que tipo assim, cada um tem o seu grupo,
sabe, ninguém é junto, unido tudo”. Outro acrescenta “é que no primeiro e se-
gundo ano a gente era da mesma sala, aí eles cataram todo mundo do segundo
e colocaram um pouquinho em cada sala”. Insistimos se a causa das faltas e
a desmotivação da aluna em perigo de repetência era a mudança das turmas.
Ela responde com a cabeça afirmativamente. Lembramos da figura baumam-
niana do peregrino: a estalagem é um domicílio. De que vínculo com a sala
de aula estamos tratando? Indagamos o que eles acharam dessa mudança.
A aluna verbaliza que foi horrível. A outra que havia interferido antes para
auxiliar discorda: “eu até gostei né porque era um trem muito bagunceiro né”.
“Ah, mas eu preferia”. Retoma a fala a aluna descontente e continua sua argu-
mentação: “a nossa sala assim num era das melhores salas (...)” Eles começam
a rir e dizem que era a pior sala da escola. Perguntamos em que sentido a pior
da escola. Eles falam ao mesmo tempo: bagunceira, todos, de estudo! A prin-
cipal interlocutora retoma a fala: “É assim, que a gente falava muito, e fomos
ameaçados de separar várias vezes, aí no final do ano separou”. Um aluno
que até o momento ouvia e olhava envolve-se na conversa: “Mas tipo todos os
professores se queixavam que a nossa sala era a pior, tal e etc., mas quando
a nossa sala pegava para estudar a nossa era boa”. Outro aluno relembra que
eles falavam muito. “Mas as nossas notas eram boas, os professores sempre

Exercícios de ser filosofia 31


falavam que nós éramos alunos muitos bons só que falamos muito”. Questio-
namos: “por que falar muito atrapalha?” “É porque eles querem que só eles
falem, tinha muitos professores incompreensíveis lá no segundo”, diz a nossa
narradora principal. “Ainda tem” complementa outra aluna. Essa fala causa
um pequeno silêncio e sondamos qual o assunto para tantas conversas. Eles
riem novamente. Um diz que falam sobre as próprias vidas, outro que contam
histórias.
O trecho atrás transcrito permite inferir que os alunos reconhecem sua
reduzida participação nas decisões sobre suas passagens pelo Ensino Médio.
Adiante questionamos se alguns deles haviam procurado o diretor para con-
versar sobre as relocações, e um aluno respondeu que havia falado com ele
e que escutou como resposta que era assim que seria. Não houve mais deba-
te. Fala-se sobre a vida, mas desacreditam de suas capacidades de escolha
perante a organização de suas aprendizagens. Os jovens transferem seus in-
cômodos com relação a isso para conversas paralelas, uma soneca, as faltas
contínuas, um fone de ouvido, pois o complexo contexto não lhes permite se
fixar.
Nesse momento, faz se necessário voltar às figuras de Bauman. Na con-
tinuidade e para completar sua alegoria do turista, ele nos apresenta a do va-
gabundo:

Os vagabundos, pode-se dizer, são turistas involuntários.


Mas a noção de “turista involuntário” é uma contradição em
termos. Ainda que muito da estratégia do turista possa ser uma
necessidade num mundo marcado por paredes movediças e
por estradas instáveis, a liberdade de escolha é o corpo vivo
do turista. Subtraia-se isso e a atração, a poesia e, na verdade,
a afabilidade da vida do turista estão quase liquidadas.
(BAUMAN, 1998, p.118).

A liberdade de escolha reduzida é característica primordial do vagabun-


do. Eles não vão para as estradas pela diversão, mas porque não dispõem de
nenhuma outra escolha. Quais as opções para a formação na educação bási-
ca? Relembramos a fala da aluna que só estava ali para colocar no currículo o

32 Exercícios de ser filosofia


título de ter concluído o Ensino Médio. O autor nos alerta que essas metáforas
pertencem à vida contemporânea e que um sujeito pode ser turista ou vaga-
bundo sem ter nunca viajado.

Estamos todos traçados num contínuo estendido entre os pólos


do “turista perfeito” e o “vagabundo incurável” - e os nossos
respectivos lugares entre os pólos são traçados segundo o grau
de liberdade que possuímos para escolher nossos itinerários
de vida. A liberdade de escolha, eu lhes digo, é de longe, na
sociedade pós-moderna, o mais essencial entre os fatores de
estratificação. Quanto mais liberdade de escolha se tem, mais
alta a posição alcançada na hierarquia social pós-moderna.
As diferenças sociais pós-modernas são feitas com a amplitude
e estreiteza da extensão de opções realistas. (BAUMAN, 1998,
p.118-119).

As opções realistas dos jovens estudantes que participaram de nossa


pesquisa são reduzidas na presença colossal dos conteúdos programados
a seguir, o papel do professor como transmissor do conhecimento, a verifi-
cação de que o conteúdo é reproduzível mesmo que de maneira automática
e invariável. O currículo estadual paulista coloca que aprender na escola é
atualmente o ofício do jovem estudante, maneira como pode realizar o trân-
sito para a autonomia da vida adulta. O documento de 2010 designava que a
educação está a serviço do desenvolvimento e construção da identidade, da
autonomia e da liberdade. Novamente tais questões são enaltecidas, porém
os exemplos demonstram que as possibilidades de escolhas são parcas no
cotidiano escolar dos estudantes ouvidos por nós. Ela não se apresenta em
relação às escolhas de conteúdos, nas produções realizadas em sala de aula,
nos acessos aos espaços escolares, na produção do próprio conhecimento.
Os alunos “veem sua situação como qualquer coisa que não a manifestação
da liberdade. Liberdade, autonomia, independência - se elas de algum modo
aparecem no seu vocabulário - invariavelmente vêm no tempo futuro (BAU-
MAN, 1998, p.117). E o futuro não pertence ao aplanar do tempo num presente
contínuo.

Exercícios de ser filosofia 33


Adiante nas metáforas baumamnianas, verificamos que o vagabundo é
compreendido como alter ego do turista, seu lado escuro e temível, pois zom-
ba do feitio turístico. Os vagabundos são “as vítimas do mundo que transfor-
mou os turistas em seus heróis, têm, afinal, suas utilidades. Como os sociólo-
gos gostam de dizer, eles são “funcionais”. É difícil viver em suas imediações,
mas é inconcebível viver sem eles.” (BAUMAN, 1998, p. 119-120).
De posse desta vagabundice, os jovens estudantes revelam a indigni-
dade de falarem muito na sala de aula, de não escutarem as explicações do
professor e de não entregarem a lição no tempo requisitado para o visto. São
funcionais porque mantêm os números das avaliações externas atreladas às
políticas educacionais. Na contradição de serem turistas e vagabundos ao
mesmo tempo, estão dentro e fora sincronicamente das atividades de apren-
dizagem. Não há ampliação de liberdade, pois as bases para valores de per-
tencimento são subtraídas. E por haver essa subtração, os jovens não se cons-
tituem como território de passagem para que algo aconteça com eles, como
na experiência larrosiana.
Por fim, o automatismo instalado nesse cotidiano escolar, no qual as ati-
vidades de aprendizagens não constituem significados, reveste dos adornos
característicos de um turista os estudantes. Relações duradouras com os con-
teúdos transmitidos não são construídas e, portanto, não realizam compro-
metimento com o futuro. Roupas adequadas ao lugar, mochila com pertences
não duráveis, máquinas fotográficas para registros exibicionistas. Averigua-
mos que o processo de aprendizagem está conectado ao futuro tão-somente
como a utilidade do título de conclusão do curso. O diploma serve como capa
do álbum de fotografia do turista. Estes que viajam e não solidificam relações,
atravessam os dias do cotidiano escolar sem permitir que esses mesmos dias
os atravessem. E como não abrem espaço para que algo os traspasse são inca-
pazes de experiência, como diz Larrosa, pois pelo buraco da lente fotográfica
nada lhes chega, nada lhes afeta, nada lhes ocorre. Os currículos organiza-
dos em pacotes e disciplinas fragmentadas são acelerados pela finalidade de
cumprir os cronogramas e, portanto, as aulas programadas seguem seu rumo
não levando em conta o tempo do sujeito. A individualidade concreta e singu-

34 Exercícios de ser filosofia


lar, hospedeira virtualmente de um saber finito, não contempla sua própria
existência, desvia de sua própria finitude e vagueia como turista e vagabundo
pelos corredores da escola. Por hora, são impedidos de arrumar o que têm no
interior.

Referências
BAUMAN, Z.. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução Mauro Gama,
Cláudia Martinelli Gama; revisão técnica Luís Carlos Fridman. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1998.

BAUMAN, Z.. . Modernidade Líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Ja-


neiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo


Horizonte: Autêntica, 2017.

LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução Cristina


Antunes, João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio, São Paulo: Record, 1997.

Exercícios de ser filosofia 35


03. SIM, ESTOU AQUI: EM BUSCA DA
EXPERIÊNCIA ADORMECIDA PELOS
MEUS STORIES

Silena da Fonseca Pimentel Paizan7

Introdução
Neste estudo refletirei sobre instantes que acompanham os sujeitos. Es-
ses instantes, muitas vezes, estão eternizados em imagens através de fotos
que em princípio retratam momentos felizes, momentos em que os sujeitos
mostram para os que compartilham a mesma rede social que são sujeitos da
felicidade.
Essa mesma foto é compartilhada através das mídias sociais por apli-
cativos e sites ligados automaticamente a um infinito número de sujeitos.
Sujeitos de muitos lugares, sujeitos de muitas histórias, sujeitos, talvez, da
experiência, sujeitos da felicidade ou sujeitos da ausência dela.
Sujeitos em sua maioria desconhecidos que passam a conhecer novos
sujeitos através da foto, ou mesmo de mensagens compartilhadas. Essa pu-
blicação na rede social recebe o nome de stories.
Os stories possuem um prazo de 24 horas para estarem visíveis nas re-
des sociais. Dentro desse espaço de tempo, você que compartilhou suas fotos
ou mensagem na rede social, agora passa a ser o sujeito dos stories. Todavia,
depois desse período, caso você não compartilhe uma nova informação, vol-
tará a ser o sujeito? E caberá a ele a escolha sobre qual sujeito passará a ser
nesse momento? Talvez o sujeito da escolha?
Talvez seus stories tenham produzidos uma nova amizade ou a reme-
moração da amizade adormecida, porém muitos sujeitos viram seus Stories,
7
Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação Profissional em Filosofia (Pro-
f-Filo – UFSCar – SP). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação Es-
colar (FCLAr – UNESP – SP). Professora da Rede Estadual de Ensino de São Paulo –
SEDUC-SP.

Exercícios de ser filosofia 37


mas quantos de fato se afetaram com eles? E você, sujeito dos stories, existiu
alguma experiência que o atingiu naquele momento? Você, de fato, se identi-
fica com aquele momento eternizado com uma bela imagem? Talvez uma bela
paisagem ou mesmo um largo sorriso?
Somos únicos. Nossas experiências seguem nosso paradigma, nossas
intuições, nossas verdades, nossa cultura. Porém, como sujeito filosofante,
algo me inquieta.
Será possível, de fato, ser sujeito da felicidade nos stories? Ou seria mais
uma ambivalência que caracterizaria a sociedade contemporânea? Um novo
obstáculo ao uso da autonomia que, de maneira sutil, subjuga as experiências
subjetivas.

O sujeito da experiência
O sujeito da experiência somos todos nós, desde que desejemos. O sujei-
to que aprende com os órgãos do sentido, que aprende com a experiência dos
outros, mas aprende desde sua autonomia, de seu momento, de sua intenção.
Parafraseando Larrosa, é o sujeito que se abre para o desconhecido com cal-
ma e sabedoria.

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos


toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca.
A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo,
quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está
organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em
um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que
caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas,
mas a experiência é cada vez mais rara. (LARROSA, 2002, p.21).

Estamos abertos a novos mundos, a novos desafios, a novas verdades?


Ou estamos prontos, fechados e modelados por padrões que empobrecem ex-
periências?
Somos levados a acreditar que estamos prontos, partindo de verdades
que não foram compartilhadas comigo, mas que me são colocadas como úni-

38 Exercícios de ser filosofia


cas, como paradigmas de uma felicidade que me fora depositada. Talvez, eu
até tenha sido feliz. Estou feliz agora. Quero estar feliz e compartilhar esse
momento de felicidade em minha rede social, mas o que me deixou feliz? Mi-
nha beleza produzida com essa intenção ou minha beleza que foi fruto de mi-
nha experiência de felicidade de fato?

o sujeito da experiência seria algo como um território de


passagem, algo como uma superfície sensível que afeta o
modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa
alguns vestígios, alguns efeitos. […] o sujeito da experiência é
um ponto de chegada, um lugar a que chega as coisas, como
um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá. […] o
sujeito da experiência é sobretudo um espaço onde têm lugar os
acontecimentos. (LARROSA, 2002, p. 24).

Temos espaço para acontecimentos? Estamos abertos ou não? A felici-


dade é a mesma para todos? Produz os mesmos sentidos? A beleza é única?
Não é. Sabemos que esses conceitos são frutos da cultura, da relação do sujei-
to com o meio, da relação do sujeito com o tempo. Impossível existir uma be-
leza que agrade a todos os olhos, uma felicidade que atinja a todos os sujeitos
em consonância com seus valores e intenções.
Onde estará a experiência? Sim, ela é possível. Mas o que acontece ne-
cessariamente me transforma? A felicidade poderá produzir uma experiên-
cia? Pode ser que não. Percebo que nem todas as vezes em que pensei que es-
tava feliz me vesti com essa felicidade de fato, aquela que me invade e aquece
minha alma. «A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo,
quase nada nos acontece” (LARROSA, 2002, p. 21).
Sentimento raro, sentimento único que merece ser eternizado em uma
foto, compartilhado com o desconhecido. Meu momento consiste na felicida-
de em que nele fui sujeito da experiência de felicidade. Uma grande conquista
e, naquele momento, que só eu sei o quanto desejei, aquele sentimento que
me faz grande, indestrutível, infinitamente maior do que a representação de
uma imagem ou de palavras. Ao rever aquela imagem, que eternizou meu mo-
mento único de sujeito da experiência de felicidade, me sinto feliz novamente.

Exercícios de ser filosofia 39


Rememoro que fui capaz, sou um novo sujeito da experiência, já me vesti com
a experiência da felicidade. Sentimento lindo, sentimento ímpar.
Essa é a relevância da experiência. Ninguém, além de mim mesma, po-
derá ser sujeito de minha experiência. Mas eu não estou pronta? A beleza já
não foi construída com o alicerce da felicidade? Talvez tenha sido, mas não
participei dessa construção. Assisti com o auxílio das mídias a essa constru-
ção alienante e massificadora. Quanta beleza, quantas possibilidades foram
criadas para que o sujeito da experiência se sentisse de fato feliz. Contudo,
não me identifico, caminho incansavelmente rumo àquela construção mo-
numental de felicidade. Percebo que a distância está aumentando, resolvo
correr, penso que consegui. Não. Tudo surge como ilusão, opiniões, imagens
aleatórias, palavras desconexas. Estarei perdida?

Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa,


tudo o excita, tudo o agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece.
Por isso, a velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio
e de memória, são também inimigas mortais da experiência.
(LARROSA, 2002, p.23).

Uma construção que silencia minhas escolhas, caminha em minha di-


reção, mas não me atinge, no entanto, anda rápido, voa em um ritmo inal-
cançável e se coloca cada vez mais distante de mim, e quando se aproxima,
condiciona minha vontade.
Silencia-me, assisto ao espetáculo. Quero participar, me visto daquela
felicidade que não foi compartilhada comigo, mas que me seduz. Opino, estou
bonita! Serei sujeito dos stories.

O sujeito do stories
Stories é uma palavra da língua inglesa traduzida como histórias. De
fato, muitas histórias. Quantas histórias existem dentro de cada sujeito? Sou
o produtor de minha história, estou conduzindo-a ou o final dela está pronto?
Ou sou apenas o sujeito que atua seguindo os padrões muitas vezes criados
por outras histórias e seguirei os paradigmas?

40 Exercícios de ser filosofia


A beleza será minha aliada, assim como boas frases, boas imagens, belas
paisagens. Reflexos da felicidade que adotei como minha. Quero estar bem,
mostrar para o mundo como estou. Compartilho meu momento e ao menos
por 24 horas estarei ali, sob olhares desconhecidos, sob opiniões que não che-
garam até mim, mas é meu momento. Cumpri os pré-requisitos que me foram
ideologicamente impostos.
O que aquele momento representa? Muitas características, muitas in-
formações, muitas visualizações que acompanho a cada atualização da rede
social. Vibro com cada elogio recebido virtualmente. Penso que atingi meu
objetivo. Minha beleza agradou outros olhos, muitas opiniões, outros sujeitos.
Contudo, algo me provoca certa inquietude ao visualizar os mesmos
stories em outros momentos. Não apenas ao contemplar minhas postagens,
mas também ao rever as postagens de outros seguidores da mesma rede
social. Como estarão, agora, os outros sujeitos dos stories? Como se sentem?
Confesso que aquela felicidade, que me invadiu em um primeiro momento e
passou por mim, começa a me abandonar. Gosto de rever, mas a cada visua-
lização o sentimento de satisfação diminui. Passa agora a produzir dúvidas,
inseguranças. Estou feliz de fato? Estive feliz naquele momento? Será essa
uma realidade compartilhada com os demais sujeitos dos stories?
Noto, com certa angústia, uma ameaça à subjetividade em que a minha
liberdade fica comprometida por mim mesma, ao dar espaço a um prazer mo-
mentâneo. A felicidade, nesse momento, é fruto de uma determinação social,
não é subjetiva. A felicidade está pronta, cabe ao sujeito se adequar àquela
realidade. Será a consolidação do processo de “semiformação”, preconizado
por Adorno?

Que a semiformação, apesar do esclarecimento da ilustração


e da difusão de informações e mesmo por seu intermédio se
tornou a forma dominante da consciência contemporânea – é
justamente isto que exige uma teoria mais ampla. A ideia de
cultura não deve ser sacrossanta para ela, conforme é hábito da
própria semiformação. (ADORNO, 1979, p. 94).

Exercícios de ser filosofia 41


Meus valores culturais relativos à felicidade e à beleza estarão envolvi-
dos de fato naquele instante compartilhado ou será a perpetuação mediati-
zada pelas redes sociais de um processo cíclico de aceitação de paradigmas
ideológicos dos conceitos de beleza e felicidade? Relembro que enquanto
sujeito dos stories, a felicidade é uma premissa para aumentar o número de
amigos virtuais e consequentemente o acesso a novas informações de outros
sujeitos dos stories.
Adorno (1979) me faz ver percebo a duplicidade da consciência humana
e não quero o resgate de minha emancipação cultural, quero a fama momen-
tânea. Quero os amigos virtuais, quero a felicidade estigmatizada por uma
cultura que me descaracteriza. O que quero de fato? O que sou? Onde estou?
Reproduzo uma felicidade que não é minha, agrado aos olhares des-
conhecidos, possuo fama. Como sujeito dos stories, a felicidade passou por
mim. Será esse o meu objetivo? Mas ela não me atingiu. Recorrendo nova-
mente a Adorno (1985), encontro uma experiência que se aproxima de minha
realidade. “A ‘finalidade que cabe’ aos sujeitos é serem sujeitos da reprodução
de um mundo em que sua condição é de sujeitos sujeitados. Os sujeitos pro-
duzem sua sujeição no tempo, como semiformação. (ADORNO, 1985, p. 193).
Compactuo com esse processo e nesse momento esqueço minhas ex-
periências, ainda que de forma momentânea. Quero viver o presente, quero
adotar como minha aquela felicidade. A felicidade na imagem de outros su-
jeitos. Quero adotá-la como minha. Sou o sujeito dos stories, estou “semifor-
mada”, minha formação se adequa à ideologia que domina a realidade social,
gerando angústia. Minha experiência está adormecida pelos stories. Como
ser filosofante, me obrigo penosamente a essa reflexão.
Novamente, recorrendo ao arcabouço de Adorno, busco caminhos e
respostas. Entretanto, acredito que elas não existam. Mas exemplos e pistas
me incomodam a ponto de não apenas passarem por mim, mas de me ressig-
nificarem em busca de possíveis respostas. “O defeito mais grave com que
nos defrontamos atualmente consiste em que os homens não são mais aptos
à experiência, mas interpõem entre si mesmos e aquilo a ser experimenta-
do aquela camada estereotipada a que é preciso se opor.” (ADORNO, 2003,
p.148-149).

42 Exercícios de ser filosofia


Minha experiência está em repouso, adormecida. Não a perdi, todavia a
deixei esquecida. Compartilho a experiência de outros sujeitos, sigo o ritmo,
caminho na mesma direção, na mesma marcha, rumo à felicidade. A semifor-
mação é “o espírito tomado pelo caráter fetichista da mercadoria.” (ADOR-
NO, 1979, p. 108). A mercadoria é a imagem da felicidade. Me perco dentro de
mim, não dou espaço a meu processo de construção, não estou pronta, mas
preciso estar. Por que preciso estar? Para eternizar uma felicidade que não é
minha? Talvez seja apenas alguns momentos.

O sujeito da ambivalência
Obstaculizada, revejo meus stories, alguns já arquivados. Rememoro
momentos com o auxílio das imagens, busco resgatar a significância de cada
imagem. São muitas, confesso. A grande maioria não traduz minha experiên-
cia de sujeito da felicidade. Já não sei onde fui feliz de fato.

Vivenciamos uma sensação de cansaço, de exaustão, um


sentimento de falta de sentido e finalidade da existência. Quase
que diariamente desmoronam verdades, certezas que davam
sustentação a uma determinada cosmovisão predominante
durante a grande parte da ocidentalidade e consequentemente
na modernidade. (BAZZANELLA, 2012, p.62).

Entretanto, quero esse resgate. Será um processo autoconsciente. Como


começarei? Resgatando minha cultura com minhas intenções e anseios mais
pessoais. Em que momento esse sono profundo me atinge e me adormece en-
quanto sujeito da experiência? Involuntariamente, dou espaço para a mer-
cantilização de minha felicidade. Aparentemente estou bonita, estou feliz.
Percebo uma ambivalência, pois todas as imagens demonstram a felicidade,
mas nem sempre naquele momento estava feliz de fato. A reflexão gera des-
conforto.

A ambivalência coloca-se como a possibilidade de o homem


civilizado moderno vivenciar a experiência do sem sentido dos
esforços civilizatórios na construção de utopias, de sociedades

Exercícios de ser filosofia 43


centradas na coletividade, na racionalidade científica, nos
dispositivos da técnica, onde os desejos, as necessidades, as
angústias de cada indivíduo são suprimidas em nome da
perfeição, da salvação do homem de rebanho, da segurança
alcançada pela previsibilidade e domínio sobre o tempo e
o espaço, sobre padrões comportamentais estatisticamente
definidos. (BAZZANELLA, 2012, p.75).

Crio a imagem da felicidade, no entanto, nem sempre estou feliz. Que-


ro estar feliz, quero compartilhar como realmente estou. Penso que em mui-
tos momentos não estou feliz, no entanto me mostro feliz: sou o sujeito da
ambivalência. Vivencio uma experiência que não é minha, que não me tocou.
Talvez tenha tocado. Certezas inexistem, verdades tampouco. A felicidade se-
gue esse ritmo no descompasso da sociedade contemporânea, ambivalente,
excessiva, massificada.

A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou


evento mais de uma categoria, é uma desordem específica da
linguagem, uma falha da função nomeadora que a linguagem
deve desempenhar. O principal sintoma de desordem é o agudo
desconforto que sentimos quando somos incapazes de ler
adequadamente a situação e optar entre ações alternativas.
(BAUMAN, 1999, p. 9)

Essa desordem poderá ser entendida como excesso de informações,


aquele que me distancia de minhas experiências, porém elas existem. Quero
rememorá-las, quero novas experiências, aquelas que pude viver como sujei-
to da experiência. Contudo, ainda que as experiências estejam adormecidas,
existe uma força que me impulsiona em direção a essa relação social. Na rea-
lidade, essa relação virtual, essa posição de sujeito dos stories, é a ambiva-
lência.
Sou ser racional, existencial por natureza. Percebo com o auxílio de mi-
nha reflexão que o conceito de verdade caminha em direção a um conceito
único, estabelecido dentro de cada sujeito. As verdades estão mais singula-

44 Exercícios de ser filosofia


res do que nunca. Essa premissa encontra reforço na ambivalência em que as
verdades caminham dentro de cada sujeito. Porém, em função do excedente
de informações, essas verdades caminham seguindo um ritmo desgovernado
ditado por alguém que não conheço, mas que me orienta ainda que me ape-
quene gradativamente.
São duplas as interpretações. Na realidade, são múltiplas, são progres-
sivas. Em contrapartida, são silenciadoras de verdades, adormecedoras de
experiências dos sujeitos. Com o auxílio das palavras de BAUMAN (1995),
percebo que essa assimilação de verdades, essa assimilação da felicidade é o
que tem consolidado a ambivalência. Como sujeito da ambivalência, assimilo
uma verdade exterior a mim e a partir de então, assumo como minha aquela
verdade que na realidade é uma verdade coletiva, previamente construída.
O sujeito da ambivalência é paradoxal, vivencia momentos únicos em
sua existência; está feliz por possuir saúde. Mas a felicidade é incomensurá-
vel ao compartilhar uma bebida alcoólica com os amigos, ao cantar tão alto
com a música a ponto de perder a voz. Identifico-me, estou como o sujeito da
ambivalência, sou o sujeito dos stories, fui, talvez, algumas vezes o sujeito da
experiência.

Para refletir e não concluir


A reflexão é uma característica humana e possuo essa capacidade. Mi-
nha existência é marcada por esse eterno questionar e dessa forma será pos-
sível caminhar na contramão, talvez voltar no tempo em que fui sujeito de
minhas experiências.
Sim, ainda estou aqui. As experiências acontecem, mas noto com certa
angústia a dificuldade que possuo em enxergá-las. Será o véu da ignorância
preconizado por John Rawls (1971) essa sombra que paira sob os olhares es-
tigmatizados da sociedade pós-moderna?
Culpados inexistem, no entanto, posso escolher, posso tirar o véu de
meus olhos e acordar com minhas experiências adormecidas, rememorar e
ressignificar os momentos já vividos. Posso ver e sentir cada acontecimento

Exercícios de ser filosofia 45


no calor de sua verdade. Consigo resgatar uma experiência de um momento
já acontecido. É o que permite minha memória. Será mais trabalhoso? Certa-
mente. Contudo, sei o que busco, por isso, meu impulso será minha vontade e
serei responsável por minhas escolhas.
Caminharei dentro da minha existência. Quero despertar desse sono
pós-moderno. Continuarei sendo sujeito dos stories? Talvez, mas como su-
jeito filosofante.
“O estigma traça o limite da capacidade transformadora da cultura. Os
sinais exteriores podem ser mascarados, mas não podem ser erradicados. O
laço entre sinais e verdade interior pode ser negado, mas não pode ser rom-
pido.” (BAUMAN, 1995, p. 78). A ambivalência é esse estigma e continuará
perpetuando os sujeitos, múltipla, díspar, infinitas vezes. Adormecendo ex-
periências, empobrecendo os sujeitos. Contudo, dentre esses sujeitos ainda
existirão os sujeitos da experiência, aqueles que estimulam as emancipações,
que acordam de seu sono ideológico e buscam ir ao encontro a suas experiên-
cias adormecidas. Certamente, não encontrarei a todas, mas as buscarei. Sei
que, como eu, outros buscarão também.
Sim, ainda estou aqui.

Referências
ADORNO, T.W. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel (Org.). Comunicação e indús-
tria cultural. 4.ed. São Paulo: Nacional, 1979.

ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmen-


tos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

ADORNO, Theodor. Educação – Para Quê? Trad. Wolfgang Leo Maar. In:
______. Educação e emancipação. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 139-
154.

ADORNO, Theodor. Teoria da semiformação. In: PUCCI, Bruno; ZUIN, Anto-


nio A. S.; LASTÓRIA, Luiz A. Calmon Nabuco (Org.). Teoria Crítica e incon-

46 Exercícios de ser filosofia


formismo: novas perspectivas de pesquisa. Campinas: Autores Associados,
2010.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Tradução Marcos Pen-


chel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

BAZZANELLA, Sandro Luiz. O conceito de ambivalência em Zygmunt Bau-


man. Cadernos Zygmunt Bauman. ISSN 2236-4099, v 2, n. 4 (2012), p. 59-
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BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiên-


cias. Revista Brasileira de Educação. nº 19, 2002.

JOHN, Rawls. A Theory of Justice. Cambridge, Massachusetts: Belknap


Press, 1971

Exercícios de ser filosofia 47


04. EXERCÍCIOS DE SER FILOSOFIA
A PARTIR DO ACONTECIMENTO EM
FOUCAULT

Silvia Cristina Barbosa da Silva8

Percepções foucaultianas
Um exercício filosófico na concepção foucaultiana conduz a uma inves-
tigação da atualidade. Ao contextualizarmos a escola, tal princípio nos instiga
a buscar por um diagnóstico dessa instituição. Por isso, o conceito de aconte-
cimento definido pelo autor sustenta nossas análises a respeito das experiên-
cias dos sujeitos inseridos no espaço escolar.
O pensamento de Michel Foucault9 nos estimula uma reflexão de nós
mesmos e daquilo que nos constitui. Para Foucault (1995) o sujeito é uma
construção histórica. Do mesmo modo, a escola para Masschelein e Simons
(2021) também se apresenta como uma invenção histórica. A partir dessas
criações, a instituição escolar tem a oportunidade de oferecer aos sujeitos
experiências10 diferenciadas de outros espaços, posto que o que a diferencia
de acordo com estes autores é, precisamente, a sua capacidade de renovar
o mundo, bem como reiterar o sentido de ela oferecer uma liberação na sua
faculdade de libertar os conteúdos de um uso comum.

8
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar (FCLAr – UNESP –
SP). Professora da rede Municipal de Araraquara (Centro de Educação)
9
Os estudos do autor: Arqueologia, Genealogia e Ética ou estética da existência foram
denominados por Veiga-Neto (2010) de “domínios foucaultianos”. A expressão “domí-
nio” compreende as investigações foucaultianas sem divisões. Nesses três domínios
são investigados os processos de subjetivação dos sujeitos. O primeiro relaciona-se ao
campo de saberes – por meio de uma “escavação” além do que fora apresentado pela
ciência, ou seja, investigação que não se limita aos discursos, mas sim ao não discurso.
O segundo relaciona-se a uma descrição e interpretação da história imersa nas rela-
ções de poder. E o último diz respeito a uma análise em como o próprio sujeito vê a si
mesmo.
10
Compreende-se a experiência definida por Larrosa (2002) por algo profundo com a
capacidade de atravessar o próprio sujeito.

Exercícios de ser filosofia 49


Diante disso, ambos destacam que as matérias trabalhadas nas escolas
– apesar de serem derivadas do mundo – não confluem com ele. Assim, afir-
mam que os conteúdos almejados no espaço escolar devem ser trabalhados
após serem apresentados como matérias distintas de seu uso no cotidiano.
Com isso, “a matéria sempre consiste em conhecimentos e competências
autoindependentes [...] o material tratado em uma escola não está mais nas
mãos de um grupo social ou geração particulares e não há nenhuma conversa
de apropriação; o material foi removido – liberado – da circulação regular”.
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2021, p. 32).
A partir dessa liberação, os professores no exercício de sua docência po-
dem criar uma atenção ao mundo. Para Larrosa (2018) essa atenção requer
uma experiência que amplie a capacidade do professor atuar na formação
e transformação do sujeito. Para o autor “a experiência e a necessidade de
pensar (não se pensa porque se quer, mas sim porque algo nos faz pensar)
como uma certa interrupção do nosso modo-de-estar-no mundo” (LARRO-
SA, 2018, p. 22). Este fato substancializa o termo escolar. Nessa condição:

[...] o escolar está preocupado com a abertura do mundo, a


atenção – e não tanto a motivação – é de importância crucial.
A escola é o tempo e o lugar onde temos um cuidado especial e
interesse nas coisas, ou, em outras palavras, a escola focaliza a
nossa atenção em algo. A escola (com seu professor, disciplina
escolar e arquitetura) infunde na nova geração uma atenção
para com o mundo: as coisas começam a falar (conosco).
A escola torna o indivíduo atento e garante que as coisas –
destacadas de usos privados a posições – tornem-se “reais”.
Ela faz alguma coisa, ela é ativa. Nesse sentido, não se trata de
um recurso, produto ou objeto para utilização como parte de
uma determinada economia. Trata-se do momento mágico
quando alguma coisa fora de nós mesmos nos faz pensar, nos
convida a pensar ou nos faz coçar a cabeça. Nesse momento
mágico, algo de repente deixa de ser uma ferramenta ou um
recurso e se torna uma coisa real, uma coisa que nos faz pensar,

50 Exercícios de ser filosofia


mas também nos faz estudar e praticar. (MASSCHELEIN;
SIMONS, 2021, p. 51).

Além do escolar possibilitar que o sujeito se torne atento e o convide a


pensar, a escola é a única instituição que promove uma suspensão relaciona-
da à efetivação de um tempo não produtivo, dizendo respeito a efetivação de
um tempo diferenciado. Nas palavras dos autores:

A suspensão, tal como a entendemos aqui, significa


(temporariamente) tornar algo inoperante, ou, em outras
palavras, tirá-lo da produção, liberando-o, retirando-o de
seu contexto normal. É um ato de desprivatização, isto é,
desapropriação. Na escola, o tempo não é dedicado à produção,
investimento, funcionalidade ou relaxamento. Pelo contrário,
esses tipos de tempo são abandonados. De um modo geral,
podemos dizer que o tempo escolar é o tempo tornado livre e
não é tempo produtivo. (MASSCHELEIN; SIMONS, 2021, p. 32-
33).

Como um modo de evitar essa possível suspensão, a escola está imersa


em um contexto neoliberal11, por meio do qual é considerada como uma insti-
tuição capaz de desenvolver nos alunos competências e habilidades que favo-
reçam os interesses do mercado, a fim de desenvolver um verdadeiro capital
cognitivo12. Essa relevância da escola voltada a um capital humano traduz
uma tentativa de domá-la, que “implica governar seu caráter democrático,
público e renovador”. (MASSCHELEIN; SIMONS, 2021, p. 105). Diante de tais
tentativas, os alunos são concebidos como sujeitos homo oeconomicus13. Nessa
11
Sistema que se preocupa com o sujeito de direito e valoriza a liberdade individual.
Para Veiga Neto (2010) o liberalismo é ampliado (neoliberalismo) quando o Estado é
visto como inimigo, e tem suas funções expandidas voltadas a serviço do capital. Este
fato consiste na busca por um sujeito mais adaptado aos interesses do mercado.
12
A denominação “capitalismo cognitivo”, de acordo com Larrosa (2018), configura a
atuação do professor como um “gestor da aprendizagem”.
13
Conceito apresentado por Foucault (2008) em que a sociedade é concebida como em-
presarial e nessa configuração o Estado supõe as regras a serviço da economia. Nesse
contexto os sujeitos (homo oeconomicus) são elementos essenciais para o funciona-
mento desse Estado que os compreendem como empresas.

Exercícios de ser filosofia 51


configuração, o Estado ameniza seu enfoque relacionado aos direitos civis e
inclina-se à prestação de serviços empresariais, a fim de transformar os su-
jeitos em empresários de si.
O cenário dessa suspensão, desse tempo não produtivo, permite uma
compreensão de escola distinta da concepção de uma sociedade empresarial.
Por essa razão, a escola pode ser vista como ativa e com a qualidade de pro-
mover um convite ao pensar. Neste caso, a suspensão na escola14 pode ser
efetivada a partir do que Larrosa (2002) nos expõe como sujeito da experiên-
cia, que está “aberto à sua própria transformação”, e o saber da experiência,
apresentado na relação entre “conhecimento e a vida humana”.
Na contemporaneidade, esse saber da experiência interpreta o conhe-
cimento por um aspecto utilitário associado à ciência e à tecnologia. Assim,
“Recordam-se as teorias do capital humano ou essas retóricas contemporâ-
neas sobre a sociedade do conhecimento, a sociedade da aprendizagem ou
a sociedade da informação”. (LARROSA, 2002, p. 27). Nesta perspectiva, a
vida é entendida em seu aspecto biológico, ou seja, voltada à sobrevivência e
ao consumo de maneira que conhecimento e vida sintetizam toda essa com-
preensão utilitarista. No entanto, o autor sublinha que o saber da experiência
se reporta à compreensão das experiências vividas pelos próprios sujeitos.
Por esse motivo, “no saber da experiência não se trata da verdade do que são
as coisas, mas no sentido ou do sem-sentido do que nos acontece. E esse saber
da experiência tem algumas características essenciais que o opõem, ponto
por ponto, ao que entendemos como conhecimento”. (LARROSA, 2002, p. 27).
A instituição escolar, ao possibilitar uma experiência capaz de trans-
formar os sujeitos, instala a possibilidade de os sujeitos exercerem uma per-
cepção filosófica de si e do mundo. Nesse aspecto, a filosofia para Foucault
possui um caráter investigativo. Assim o autor afirma que:

14
Larrosa (2002) esclarece a educação sob dois pares: o primeiro denominado ciên-
cia/técnica e o segundo teoria/prática. Este primeiro possui um caráter disciplinador
e busca uma ciência aplicada, e o segundo compreende a educação por meio de uma
reflexão crítica.

52 Exercícios de ser filosofia


Que o que eu faço tenha algo a ver com a filosofia é muito
possível, sobretudo na medida em que, ao menos depois de
Nietzsche, a filosofia tem como tarefa diagnosticar e não trata
mais de dizer uma verdade que possa valer para todos e para
todos os tempos. Eu trato de diagnosticar, de realizar um
diagnóstico do presente: dizer o que nós somos hoje e o que
significa hoje, dizer o que somos. Esse trabalho de escavação
sob os nossos pés caracteriza desde Nietzsche o pensamento
contemporâneo. Nesse sentido, posso declarar-me filósofo
(FOUCAULT, 2002, p. 606, apud CASTRO, 2009, p. 173)15

Logo, a função da filosofia equivale a uma análise da atualidade, cujas


experiências conduzem os sujeitos a um processo de diagnóstico. Revel
(2005) em sua leitura foucaultiana ressalta que a tarefa da filosofia não é a
busca de solução dos problemas, mas sim a incumbência de problematizar.
Gallo (2004) complementa que a filosofia, para Foucault, representa
uma caixa de ferramentas que nos auxilia na compreensão da realidade e que
por meio dela podemos estabelecer mecanismos adequados para uma análise
da realidade na qual estamos inseridos. Assim, Foucault “afasta-se de uma
visão de Filosofia transcendente, que lida com universais e não ‘suja as mãos’
com as mazelas e peculiaridades da vida cotidiana. Foucault está mais alinha-
do com a noção de filosofia que Deleuze [...] chamou de imanente: aquele pen-
samento conceitual que se constrói profundamente enraizado na realidade”.
(GALLO, 2004, p. 80). Desse modo, a filosofia é compreendida como:

[...] um esforço de luta contra a opinião, que generaliza e nos


escraviza com suas respostas apressadas e soluções fáceis, todas
entendendo ao mesmo; e luta contra a opinião criando conceitos,
fazendo brotar acontecimentos, dando relevo para aquilo
que em nosso cotidiano muitas vezes passa desapercebido. A
filosofia é um esforço criativo. (GALLO, 2008a, p. 51).

15
Citação presente em Ditos e Escritos (vol. I).

Exercícios de ser filosofia 53


A possibilidade de um exercício filosófico pode associar-se ao conceito
de acontecimento16. Na descrição apresentada por Castro (2009), este concei-
to relaciona-se de dois modos: o primeiro pela arqueologia – acontecimento
arqueológico – compreendido como novidade histórica, que simboliza a pos-
sibilidade de uma ruptura; e o segundo como – acontecimento discursivo –
orientado em uma regularidade histórica das práticas discursivas.
Revel (2005) ressalta que Foucault amplia as análises dos historiadores,
ao investigar não somente as continuidades dos acontecimentos, mas tam-
bém as descontinuidades, fato esse que configura uma busca em analisar os
efeitos dos acontecimentos. Em relação a esses efeitos, Castro (2009) eviden-
cia que as “lutas” podem ganhar um outro sentido, o de “relações de forças”,
e nesse contexto o conceito de acontecimento é ampliado. Dessa maneira, a
luta “deve ser estabelecida em sua especificidade, contra a forma particular
de poder imposto, e assim deve adquirir um caráter revolucionário.” (FOU-
CAULT, 2018, p. 142). Portanto, as lutas podem ocorrer e assim provocar
rupturas que manifestam por seus efeitos. Logo, uma luta no espaço escolar
possibilita a formação de sujeitos aptos para a efetivação de uma suspensão
no espaço escolar.
Em vista disso, Foucault apresenta o conceito de “acontecimentaliza-
ção”, um neologismo do acontecimento. Revel (2005)17 demonstra que essa
denominação não representa apenas:

[...] uma história acontecimental, mas a tomada de consciência


das rupturas da evidência induzidas por certos fatos. O que se
trata então de mostrar é a irrupção de uma “singularidade”
não necessária: o acontecimento que representa o
enclausuramento, o acontecimento da aparição da categoria de
16
De acordo com Revel (2005) para Foucault o acontecimento não representa apenas
uma descrição histórica. Por essa razão, a análise arqueológica investiga a rede de dis-
cursos de um acontecimento. Foi em oposição ao estruturalismo – que se restringe a
uma análise pela linguagem – que o autor focou seus estudos para analisar toda uma
rede discursiva de um acontecimento. Nesse processo de análise, inclui-se a filosofia
por ela atuar como ação para um diagnóstico.
17
Denominação apresentada por Foucault em Ditos e Escritos IV, no texto intitulado A
poeira e a nuvem.

54 Exercícios de ser filosofia


“doenças mentais”, etc. A partir da definição de acontecimento
como irrupção de uma singularidade histórica, Foucault vai
desenvolver dois discursos. O primeiro consiste em dizer que nós
repetimos sem o saber os acontecimentos “nós os repetimos na
nossa atualidade, e eu tento apreender qual é o acontecimento
sob cujo signo nós nascemos e qual é o acontecimento que
continua a nos atravessar”. A acontecimentalização da história
deve, portanto se prolongar de maneira genealógica por uma
acontecimentalização de nossa própria atualidade. O segundo
discurso consiste precisamente em buscar na nossa atualidade
os traços de uma “ruptura acontecimental” – traço que
Foucault localiza já no texto Kantiano consagrado as Luzes, e
que ele crê reencontrar por ocasião da revolução iraniana, em
1979 – porque está aí, sem dúvida, o valor da ruptura e de todas
as revoluções: “A revolução [...] corre o risco de banalizar-se,
mas como acontecimento cujo próprio conteúdo é importante,
sua existência atesta uma virtualidade permanente e que não
pode ser esquecida.” (REVEL, 2005, p. 14-15).

Considerações finais
Diante do exposto compreendemos a educação inserida em um comba-
te. Nesse confronto, de um lado temos o aspecto neoliberal, que visa ao de-
senvolvimento de um capital humano, no qual a constituição do sujeito res-
tringe-se ao homo oeconomicus, e este se vê impedido de exercer uma reflexão
de si e dos acontecimentos.
Por outro lado, ao pensarmos a educação imbuída de um exercício fi-
losófico, a plausibilidade de um diagnóstico da atualidade possibilita a sus-
pensão. A partir desse fato, o tempo não produtivo tende a propiciar uma
experiência, isto é, um saber da experiência. A educação compreendida em
sua capacidade de renovação cria condições de diagnosticar a sua realidade
no cumprimento de uma suspensão. Nesse sentido, a acontecimentalização
representada pela própria tomada de consciência das rupturas, nos auxilia na

Exercícios de ser filosofia 55


investigação dessa escola que se fecha aos interesses do capital e aprisiona os
sujeitos no tempo produtivo.
Desse modo, uma “ruptura acontecimental” no contexto escolar tende a
criar uma reflexão crítica do presente, na qual os acontecimentos não serão
compreendidos como algo natural, mas sim como acontecimento suscetível
de diagnóstico. Tal análise consiste em compreendermos todas as relações de
forças de um acontecimento, bem como os processos de subjetivação condu-
zidos pela instituição escolar. Logo, um exercício de ser filosofia – exercício
filosófico – configura o próprio acontecimento. E a partir dele prosseguimos
na inspiração de Foucault na busca por respostas sobre “o que nós somos hoje
e o que significa hoje, dizer o que somos”.

Referências
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ceitos e autores. Tradução: Ingrid Müller Xavier. 1. ed. Belo Horizonte: Autên-
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Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da her-
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56 Exercícios de ser filosofia


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Tradução: Cristina Antunes. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2021.

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Gregolim, Nilton Milanez, Carlos Piovesani. 1. ed. São Carlos: Claraluz, 2005.

Exercícios de ser filosofia 57


05. HOSPITALIDADE ENTRE
AS BORDAS DO (I)NOMINÁVEL:
ARQUIVO, APAGAMENTO E
ACONTECIMENTO

Edileia Pereira dos Santos18

A começar
Na pergunta – e no encontro – pelo, com, sobre e entre o outro, a alteri-
dade nos acena e, com esse gesto, (re)cobra, ecoa, inventa alargamentos dos
sentidos e das fronteiras da palavra procedida do prefixo latino alter. Pelo
traço e pelas entrelinhas do filósofo franco-argelino Jacques Derrida que nos
provoca a pensar que a coisa mesma sempre escapa, a saber, que na conside-
ração daquilo ou daquele que é outro e, portanto, adiante dos acercamentos
do meu, do seu, do nosso domínio, há o pressuposto de um pensamento de de-
cisão. A decisão na perspectiva derridiana, se trata de uma deliberada posição
em presença de uma condição, a priori, indecidível. Dito de outro modo, ao
reconhecer o outro de fato e estimá-lo entre as aberturas e fechamentos que
nos são apresentados, sem qualquer espera inócua pela totalidade, nos co-
locamos diante de uma singularidade, de uma imprevisibilidade que nos faz
encontrar com um não-saber e que, assim, nos exige uma responsabilidade.
Esse outro que, por definição, é aquele que evade (e invade); o comple-
tamente desconhecido, incógnito, estrangeiro e não nomeável. Apartado da já
conhecida prescrição da mesmidade, nos convoca ao deparamento dos abis-
mos do desejo de apreensão, apropriação, de saber e, portanto, de poder que
essa presença nos retira (ainda que imaginariamente) dada a sua inabarcável
outridade.

18
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar (FCLAr – UNESP –
SP). Professora formadora na Educação Infantil, na Rede Municipal de Ensino de Ara-
raquara – SP.

Exercícios de ser filosofia 59


Tal movimento nos lança, ao que Derrida provoca a pensar, à noção de
acontecimento. Derrida desenvolve a ideia de um acontecimento (im)possí-
vel, não tão somente impossível, a saber, um (im)possível que é ele próprio,
a experiência do possível. Para isso é preciso decompor a experiência, ou o
anúncio da experiência do possível ou do impossível. O acontecimento dis-
corrido desde essa perspectiva, não aponta para a condição da possibilidade
ou da impossibilidade, mas denuncia essa condição, balizando determinada
possibilidade no ensaio do impossível, assim como uma dada impossibilidade
naquilo que é dado ao possível. Para o filósofo, o acontecimento é algo que
descontinua a lógica em vigência. Aquilo que denota o imprevisível, o disrup-
tivo, aquilo que suspende. O acontecimento é a criança que nasce, o portador
do ineditismo, assim, o porvir.
Diante do porvir e, destarte, de um tempo outro, deposto do que já foi
e desapropriado do que é, o acontecimento pressupõe o impossível, já que
aquilo que está prescrito e, desta maneira, previsível, não tem ânimo de even-
to, ou seja, não acontece. O acontecimento é irrepetível, rompe com a mes-
midade, provoca rasura, despende responsabilidade. Requer posição. A mes-
midade, por sua vez, pressupõe repetição, o que, por sua vez, neutraliza as
possíveis rupturas. Um acontecimento advém sucessivamente pela primeira
e pela última vez sendo, entretanto, radicalmente singular e, por isso, da or-
dem da alteridade.

(I)nomináveis
Estimulados pelas escrituras de Jacques Derrida ao pensarmos ainda
quem (nos) chega, somos de antemão atravessados por uma herança, por
um arquivo. Em consonância com o filósofo franco-argelino, é crível pensar
o arquivo em uma perspectiva psicanalítica, assim como o desejo de arqui-
var como um desejo mesmo. Sendo o arquivo essa categoria que não existe
apartada de sua repetição, engendrando, desta forma, a lógica conflitiva, o
arquivo fomenta bordas à sua conservação, no entanto, também anseia pela
decomposição e, com ela, a possibilidade de um porvir. Essa repetição, - um

60 Exercícios de ser filosofia


não-vivido no vivido - espectralmente retorna. Essas ressurgências funda-
mentalmente agenciam uma desmontagem provocando a cada reiteração, a
cada eco, um apagamento.

Vale dizer, o arquivo seria um conjunto de documentos que


remeteriam a diversos acontecimentos que ocorreram numa
dada ordem social. Porém, tais documentos recobriram
os tratamentos prévios de decantação e de classificação,
que implicariam o agenciamento realizado pelo poder
propriamente dito. Seria este, na sua autoridade e pela força
que dispõe, que indicaria um lugar e um domicílio para o
arquivo, nos quais algo da ordem do segredo seria cultuado e
preservado. Com isso, o conjunto de documentos seria objeto de
uma consignação (DERRIDA, 1994, p. 14).

Na perspectiva derridiana, o apagamento decorre da desconstrução que


implica desmontar as conjecturas metafísicas em torno do evento, da gêne-
se, da presença, entre outros ajuizamentos fundados pelo axioma metafísico.
Para Derrida (2004) o estruturalismo e seu traço metafísico implica em um
núcleo que, apesar de estabelecer a espinha dorsal ou ainda, diferentes no-
ções de um sistema, está também apartado dessa estrutura. Assim, o juízo de
uma estrutura situada parte de “uma imobilidade fundadora e de uma certe-
za tranquilizadora” (DERRIDA, 2004, p. 408). O cerne da estrutura, procura
reencontrar uma gênese, procura uma verdade transcendental.
A dissolução da metafísica através do atravessamento que a descons-
trução propõe, grosso modo, desvencilha os conceitos que foram herdados da
reminiscência, a saber, do pensamento filosófico, assim como do pensamento
não-filosófico. Na baliza do apagamento, o arquivo se dá fundamentalmen-
te à condição de possibilidade para que o processo próprio de arquivamento
possa prosseguir e, à posteriori, ser reiterado ao ilimitado. A composição do
arquivo refere-se fundamentalmente ao apagamento de seus traços, condi-
ção imprescindível para sua própria renovação.

Exercícios de ser filosofia 61


A desconstrução, nas linhas derridianas, não compele a nenhuma ori-
gem, arké19, precisamente porque para o filósofo, não há incursão do conceito
ao momento primeiro. Diz sobre auferir algo que advém, mas que na mes-
ma medida, se projeta: um porvir do acontecimento. Assim, estamos sempre
diante de uma dívida com o rastro cedido pelo outro. Nesta dívida, neste apa-
gamento que reincide, neste perigo que nos assenta em constante inadim-
plência com o outro, Larrosa (2006, p. 41) complementa:

O homem se faz ao se desfazer: não há mais do que risco,


o desconhecido que volta a começar. O homem se diz ao se
desdizer: no gesto de apagar o que acaba de ser dito, para que
a página continue em branco. Frente à autoconsciência como
repouso, como verdade, como instalação definitiva na certeza
de si, prende a atenção ao que inquieta, recorda que a verdade
costuma ser uma arma dos poderosos e pensa que a certeza
impede a transformação. Perde-te na biblioteca. Exercita-te no
escutar. Aprende a ler e a escrever de novo. Conta-te a ti mesmo
a tua própria história. E queima-a logo que a tenha escrito.
Não sejas nunca de tal forma que não possas ser também de
outra maneira. Recorda-te de teu futuro e caminha até a tua
infância. E não perguntes quem és àquele que sabe a resposta,
porque a resposta poderia matar a intensidade da pergunta e o
que se agita nessa intensidade. Sê tu mesmo a pergunta.

Fazer-se ao se desfazer, dizer, desdizer, recordar, esquecer, perder-se,


escutar, receber, abrigar, selecionar, preferir, decidir, (re)interpretar, apagar
e tantos outros verbos, assim, no infinitivo, aludem ao oferecer uma aber-
tura ao outro: hospitalidade. Se considerarmos o percurso da história e as
singularidades das repetições, o que seriam esses verbos? Perguntaremos a
quem possui as respostas, ou como nos aconselha Larrosa (2006), não o fa-
remos para que a intensidade da pergunta não morra? Diante do perigo que
19
A palavra “arquivo”, comumente utilizada pelo filósofo franco-argelino para designar
também o conceito de herança tem em sua raiz etimológica a palavra arké, expressan-
do começo e comando, no entanto, Derrida expressa uma negação à ideia de origem. In.
DERRIDA, J. Mal de arquivo: Uma impressão freudiana, 2001.

62 Exercícios de ser filosofia


essa inadimplência ao outro nos coloca, Jacques Derrida nos provoca a uma
fidelidade infiel como a desconstrução sugere em sua expressão. Só se pode
ser fiel à herança, lançando a ela a infidelidade da desconstrução. É somente
na fidelidade infiel que a herança deixa sua rigorosa posição de arquivo e, na
sobrevida, provoca seu ressurgimento.

[...] A fidelidade às palavras é não deixar que as palavras se


solidifiquem e nos solidifiquem, é manter aberto o espaço
líquido da metamorfose. A fidelidade às palavras é reaprender
continuamente a ler e a escrever (a escutar e a falar). Só assim
se pode escapar, ainda que provisoriamente, à captura social
da subjetividade, a essa captura que funciona nos obrigando
a ler-nos e escrevermo-nos de uma maneira fixa, com um
padrão estável. Só assim se pode escapar, ainda que seja por um
momento, dos textos que nos modelam, ao perigo das palavras
que, ainda que sejam verdadeiras, convertem-se em falsas uma
vez que nos contentamos com elas. (LARROSA, 2006, p. 40).

Sustentar as frinchas dessa geografia que é da transformação e, porque


não dizer, do acontecimento, é estar comprometido com a alteridade e, por
ela, com a desconstrução. Considerar que há sempre algo que nos precede e
que, portanto, não aprisionamos em nosso saber e em nosso poder, nos rea-
firma e nos lança, faz-nos reconhecermo-nos como herdeiros na não-permis-
são das palavras coaguladas. Nos rastros de Derrida, pensar esse movimento
desconstrucionista é condição primeira para reviver, para hospedar, uma vez
que é somente por esse acesso que a herança pode reafirmar-se viva.
Essa dívida fantasmagórica nos reclama a indigência de dar-nos à ex-
periência que, para além da compreensão da herança, salvaguardados nes-
sa desmontagem em que aprendemos a utilizar toda a composição herda-
da, hospedamos e afugentamos ao mesmo tempo. Somos herdeiros de uma
herança. A esse encontro, Skliar (2008) nos provoca a pensar essa herança
que inegavelmente está colocada em um exercício de não afirmação simples
e irredutível, mas em uma reativação que considere outras questões, outras
escolhas em um movimento não previsível. É precisamente o errante, o im-

Exercícios de ser filosofia 63


previsível, o inapreensível outro que interessa à desconstrução derridiana.
Na possibilidade de arrazoar sobre uma herança que, ainda que esteja dada,
excede a temporalidade do hoje ou do ontem e se ordena numa inusitada re-
lação com o tempo. Solapar as conjecturas, a certeza, a esperança infértil pela
totalidade é o que o adensamento da herança pela dinâmica da desconstrução
solicita. Repetir, repetir e fazer de outra maneira, uma maneira inaugural, é a
exigência da crítica, é a proposição da desconstrução.

[...] A abertura da questão, a saída para fora da clausura de


uma evidência, o abalamento de um sistema de oposições,
todos estes movimentos têm necessariamente a forma do
empirismo e da errância. Em todo caso, não podem ser
descritos, quanto às normas passadas, senão sob esta forma.
Nenhum outro rastro está disponível, e como estas questões
errantes não são começos totalmente absolutos, deixam-se
efetivamente alcançar, em toda uma superfície delas mesmas,
por esta descrição que também é uma crítica. É preciso começar
de onde quer que estejamos e o pensamento do rastro, que não
pode não considerar o faro, já nos ensinou que seria impossível
justificar absolutamente um ponto de partida. De onde quer que
estejamos: já num texto em que acreditamos estar. (DERRIDA,
2011, p. 199).

Retirar-se do encerramento, abraçar a errância é o gesto mesmo de


constituir-se em um ir além. Sobre o pensamento do rastro que subverte o
imperativo da origem, Derrida nos faz um convite ao pensar da alteridade, da
acolhida, da hospitalidade que sempre se oferece ao outro: um pensamento
que seja outro, um olhar outro, um acontecimento outro. A hospitalidade em
seu pensamento, olhar e acontecimento outro se desenha em um aguerrido
gesto de receber, gesto esse que solicita ânimo, força, coragem. Ajuizar essa
acolhida, mormente no interior das relações remete-nos novamente à ocor-
rência do encontro entre pessoas outras, o que solicita uma vertigem, visto
que tais apresentações: do Outro, do Eu, do Mesmo, conduzem a uma respos-
ta que parte do rosto para ir além dele.

64 Exercícios de ser filosofia


Pensar a etimologia da palavra hospitalidade, como nos sugere Derri-
da, nos dá algumas pistas, não como uma maneira de pensar um destino de
sua significação, mas como compreensão dos atravessamentos que a consti-
tuíram e que continuam a constituir. Do latim hospes, formado de hostis (es-
tranho), que também significa o inimigo estranho (hostilis) ou estrangeiro,
que ora é reconhecido como hóspede (hôte), ora como inimigo. Ao acolher,
o anfitrião também se coloca na condição de refém, pois é acolhido pela vi-
sitação do outro. Ele se torna hóspede dessa visitação e sua propriedade é
expropriada. É necessário oferecer as boas-vindas, asilar o outro que chega e
possibilitar-lhe a hospitalidade. A hospitalidade, tal como desenvolve Derri-
da, a hospitalidade em si, se prepara antecipadamente para alguém que não é
esperado, chamado ou mesmo anunciado. Se prepara para aquele que chega
como visitante absolutamente alheio, aquele que chega, um forasteiro, im-
previsível, ameaçador.
Refugiar este completamente-outro, na consideração desconstrucionis-
ta, alude abrigar a sua questão, o seu tema. Questão que se assenta em lugar
elementar, que se impõe sobre as possíveis verdades. Derrida (2008), nos re-
clama o juízo de concebermos o caminho da resposta dada pelo Outro que se
inicia pelo seu sim:

Se é tão somente o Outro que pode dizer sim, o “primeiro”


sim, o acolhimento é sempre o acolhimento do outro. É preciso
pensar agora as gramáticas e as genealogias desse genitivo. Se
eu coloquei entre aspas o “primeiro” do “primeiro” sim, é de
qualquer maneira para entregar-me a uma hipótese apenas
pensável: não existe primeiro sim, o sim já é uma resposta.
Porém, como tudo deve começar por algum sim, a resposta
começa, a resposta comanda. É necessário habituar-se com esta
aporia na qual, finitos e mortais, somos de antemão jogados e
sem a qual não haveria promessa alguma de caminho. [...] (p.
42).

Exercícios de ser filosofia 65


A logicidade múltipla da aporia guia Derrida a discorrer sobre a hos-
pitalidade como o amparo ao completamente-outro. Compreendemos que
o exame derridiano ao etnocentrismo implica hospitalidade ao Outro, sen-
do Derrida um dos mais admiráveis articuladores da sustentação filosófica
para a constituição das sociedades multiculturais contemporâneas. Desta
maneira, a hospitalidade ao completamente-outro constitui necessariamente
a acolhida irredutível às suas tradições, costumes, à sua religião, à situação
também, por pressuposto, completamente-outra do Outro. Existe um eleva-
do apelo por uma responsabilidade pela alteridade, há uma descomedida ex-
posição, vulnerabilidade, uma demasiada implicação por generosidade, um
respeito, um atravessamento. A precedência da consciência submerge no e
pelo gesto do recebimento. Neste sentido, asilar, abrigar, hospedar o outro
nos consterna, nos abala, nos afeta, uma vez que a outridade do Outro e do Eu
se tramam e se embaraçam. Este Eu que se firmava na calmaria das suas res-
pectivas profissões de fé, vê-se interrogado pelo rosto que o perturba e que
por esse motivo, o despe. O esvaziamento agenciado pela compleição do rosto
estranho põe em questão a filáucia primeira que integrava o “dono da casa”.

[...] o hospedeiro que recebe (host), aquele que acolhe o


hóspede, convidado ou recebido (guest), o hospedeiro, que
se acredita proprietário do lugar, é na verdade um hóspede
recebido em sua própria casa. Ele recebe a hospitalidade que
ele oferece na sua própria casa, ele a recebe de sua própria
casa – que no fundo não lhe pertence. O hospedeiro como
host é um guest. A habitação se abre sobre ela mesma, a sua
“essência” sem essência, como “terra de asilo”. O que acolhe
é, sobretudo, acolhido em si. Aquele que convida é convidado
por seu convidado. Aquele que recebe é recebido, ele recebe a
hospitalidade naquilo que considera como sua própria casa, até
mesmo em sua própria terra [...] (DERRIDA, 2008, p. 57-58).

Elucidamos tal acolhimento como uma captura, como uma espera.


Paradoxalmente, aquele que hospeda é acordado pela entrada do Outro e à
medida que tenta dele se apropriar, tomando-lhe posse, torna-se ele mesmo

66 Exercícios de ser filosofia


capturado desse Outro que o dirige a uma resposta, certo cárcere. Derrida
compreende que é difícil conceber o Outro fora das relações de força, poder
e direito. De qualquer maneira, não existe hóspede sem hospedeiro, assim
como não existe hospedeiro sem o hóspede. Suas existências se incluem, se
amalgamam e se transmutam.
É no escopo de um entendimento outro sobre as relações colocadas que
a noção de alteridade protesta por ser deparada no aspecto do rosto, pois,
desta maneira, possibilita a passagem por uma ressignificação da relação do
Eu com o Outro. Tendo Derrida salientado que a hospitalidade é a abertura
moral ao que é estranho, ou seja, que há a incondicionalidade apriorística que
assegura o direito a ser bem-vindo, denegá-la suscita a destituição daquilo
que é imperativo do humano, sua própria diferença fundamental. Desta ma-
neira, assimilar o rosto remete-nos à constituição do outro para que assim
este outro possa se manifestar como verdadeiramente o é.

A possibilidade de possuir, isto é, de suspender a própria


alteridade daquilo que só é outro à primeira vista e outro em
relação a mim – é a maneira no Mesmo. No mundo, estou em
minha casa, porque ele se oferece e se recusa à posse. (O que é
absolutamente outro não só se recusa à posse, mas contesta-a
e, precisamente por isso, pode consagrá-la.) É preciso tomar a
sério o reviramento da alteridade do mundo na identificação de
si. [...] (LEVINAS, 2014, p. 24).

Oferecer asilamento para além do rosto, do tema, da língua é, ao mesmo


tempo, a disposição de oferecer trégua em um ato incomensurável, ao pas-
so que é módico ao se assentar como quem serve. Ser amigável e imergir na
ameaça de oferecer ao outro a estreita privacidade é um desapossamento.
Como nos abaliza Levinas (2014), trata-se de passar do amparo da totalida-
de para o infinito, do olhar para o rosto. É neste domínio que o imperioso
da hospitalidade é urgente, necessário, pois se estabelece um albergamento
absoluto.
O Eu que acolhe se assenta em uma relação assimétrica ao outro que
é acolhido, coloca-se assim, a cindir com a ordem posta e admite os riscos

Exercícios de ser filosofia 67


que se implantam ao oferecer hospedagem, onde o Eu que recebe não reduz
o Outro com a determinação de leis anteriormente situadas numa relação de
domínio e colonização.
A experiência com o rosto revela e expressa a alteridade do Outro-hós-
pede e do hospedeiro-Outro. Cria possibilidades de se instaurar uma noção
de sentido que transborda a racionalidade ontológica. Eis a desconstrução. A
epifania do Eu se abre à epifania do Outro, inverte-se os valores, prioridades
e preocupações. Solicita-se uma nova interpretação de posições.
Na hospitalidade, a legitimidade da ética desconstrucionista derridiana
está na impraticabilidade de moderar, limitar, restringir, de decidir, para no
outro se conservar, acondicionar seu saber e seu poder, quando lança mão de
preceitos, de padrões. Para que a hospitalidade incondicional seja possível, é
preciso transcender as oposições binárias postas pela metafísica. É preciso
e precioso que ela transgrida seus próprios limites, suas bordas nomináveis,
seus estatutos para se flertar com o acontecimento. O acolhimento do outro,
sem condição e sem tematização, (con)sentindo o perigo e a admoestação,
suporta a perversão.
Assim, compreender de fato o hospedeiro, é considerá-lo nas gradações
mesmas do hóspede, em sua total alteridade, no apagamento do arquivo, de
maneira a tê-lo alegoricamente como uma casa com portas e janelas, aberta
à acolhida, à hospitalidade, ao convite para sentar-se e dar-lhe abrigo efetivo
e afetivo. Assim, considerar um espaço de pensamento sobre a possibilidade
de elaboração de condições em uma via de mão dupla, faz-nos compreender
o hóspede e o hospedeiro num espaço de encontro.
A hospitalidade proposta por Jacques Derrida, a saber, uma hospitali-
dade inteira, pressupõe um acolhimento do acolhimento, uma acolhida que
tem um fim em si mesma. Uma abertura que não espraia-se em ditames, que
recebe ainda que esse outra que chega nçao tenha sido anunciado, predito,
sequer esperado. Um completo estrangeiro que é asilado ainda que não seja
assimilado, apreendido, capturado. A hospitalidade derridiana diz sobre a
completa diferença que não está para a exclusão.

68 Exercícios de ser filosofia


Compreendendo toda a alteridade da qual se acomoda o outro, o aconte-
cimento provoca, fere a mesmidade e pronuncia um sonoro não à colonização
do que é estrangeiro. A coisa mesma escapa incessantemente, foge da iden-
tidade. A hospitalidade como experiência de acolhimento do outro é marca-
damente um abrir portas, janelas, frestas, vãos para experimentar a ousadia
da convivência e da partilha de mundos, miragens, dessemelhantes que se
cruzam e se entrelaçam na interioridade da casa. Uma renúncia que consente
um aceno registrado num tempo. Algo comum nas díspares experiências com
o tempo, com o modo de se inventariar com a vida, com o outro, com o mun-
do. O ordinário que não representa a coincidência no sentido de mesmidade.
A confluência do outro, implica algo que venha antes, um compartilhar para
além das gerações, o que ainda nos confunde, perturba, desorienta e abala.
Só há acolhida a alguém se este alguém for compreendido como outrem,
como aquele que logra em não concordar com o seu hospedeiro e que pode
permanecer não concordando.
Distante de ser compreendida como mera aceitação da diferença, a hos-
pitalidade no âmbito da desconstrução se endereça a um modo de viver, um
exercício diuturno, uma experiência sempre inédita, irrepetível e inesperada.

Referências
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DERRIDA, J. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo. Perspectiva, 2008.

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Exercícios de ser filosofia 69


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LARROSA, J. Pedagogia Profana: Danças, piruetas e mascaradas. 4ª ed.


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Derrida e Educação. Belo Horizonte. Autêntica, 2008. p.9-33.

70 Exercícios de ser filosofia


06. EXPERIÊNCIAS FILOSÓFICAS
NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORES EM EXERCÍCIO

Jefferson Luis Brentini da Silva20


Iara Barrios Nogueira da Silva21

Introdução
A formação continuada dos professores em exercício é crucial para a
excelência profissional. Mas, para tanto, a formação continuada desses su-
jeitos deve estar atrelada às questões sociais e levar em consideração os alu-
nos que fazem parte desse cenário educacional, na medida em que a escola é
um espaço de resistência frente aos processos massificatórios, que vendem
ideais e destroem o processo de individuação por uma ilusão que as pessoas
que manipulam as massas precisam que acreditemos: o de se vender blocos
do nosso tempo para se comprar aquilo que vendem e, assim, sermos felizes
sem questionar.
Nesse sentido, é imperioso que as pessoas que trabalham na escola pen-
sem nela, em seus alunos e em seus múltiplos universos, além da sociedade
que se encontra. Isto é, uma escola cujos sujeitos que ali atuam vislumbrem
as expectativas e demandas dos educandos conforme o exposto em fomentos
e regulamentações da educação maior e que busquem caminhos para uma
formação que contemple os indivíduos dali, por meio do rigor metódico, da
generosidade e do respeito às diferenças na perspectiva de formar sujeitos
dotados de criticidade e autonomia.
Neste texto delimitou-se discorrer sobre a formação continuada de pro-
fessores em exercício a partir da experiência filosófica e apresentar um olhar
20
Doutorado e Pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar
(FCLAr – UNESP – SP). Coordenador de Gestão Pedagógica na EE “Abílio Alves Mar-
ques” – SEDUC-SP.
21
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar (FCLAr – UNESP –
SP). Professora de Educação Infantil da Secretaria Municipal de Bebedouro – SP.

Exercícios de ser filosofia 71


para a formação dos professores a partir do fortalecimento do eu-tu em de-
trimento do eu-isso, refletindo acerca da experiência filosófica com vistas à
formação.
Corroborando com o que foi apresentado até aqui, Marin (1995) apre-
senta a formação continuada como:

Atividade profissional dos educadores é algo que,


continuamente, se refaz mediante processos educacionais
formais e informais variados, amalgamados sem dicotomia
entre vida e trabalho, entre trabalho e lazer. Com as contradições
certamente, mas, afinal, mantendo as inter-relações múltiplas
no mesmo homem. O uso do termo educação continuada tem
a significação fundamental do conceito de que a educação
consiste em auxiliar profissionais a participar ativamente do
mundo que os cerca, incorporando tal vivência no conjunto dos
saberes de sua profissão. (MARIN, 1995, p. 35).

Todavia, o que geralmente se vê na prática escolar são momentos de


formação em que há um grande e pujante discurso de responsabilização e
ações que tem convergido na ressignificação do trabalho docente, ao passo
que tem levado muitos profissionais da educação a pensarem que essa se re-
sume apenas ao que é exposto nos resultados obtidos nas avaliações externas
de larga escala, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB)22,
o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SA-
RESP)23, nas Avaliações de Aprendizagem em Processo (AAPs)24 e nas Se-
quências Digitais25.

22
Para saber mais, acesse: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avalia-
cao-e-exames-educacionais/saeb. Data de acesso: 12/08/2022.
23
Para saber mais, acesse: https://saresp.fde.sp.gov.br/. Data de acesso: 12/08/2022.
24
Para saber mais, acesse: https://www.educacao.sp.gov.br/avalia-
cao-aprendizagem#:~:text=Avalia%C3%A7%C3%A3o%20identifica%20n%C3%AD-
vel%20de%20aprendizagem,Avalia%C3%A7%C3%A3o%20de%20Aprendizagem%20
em%20Processo. Data de acesso: 06/08/2022.
25
Para saber mais, acesse: https://institucional.caeddigital.net/tecnologias-2/sequen-
cias-digitais-de-atividades.html. Data de acesso: 06/08/2022.

72 Exercícios de ser filosofia


Na contramão dessa perspectiva, propomos que, por intermédio da ex-
periência filosófica, possamos caminhar na direção de uma formação autên-
tica. Cabe destacar que a Filosofia parte do pressuposto de que é possível,
urgente e necessário que se busque o conhecimento em prol da verdade (que
não se sabe e não se tem) e que, para isso, devemos reconhecer que sabemos
apenas facetas, representações de um todo que é muito maior do que somos
capazes sequer de imaginar, ou seja, adotar uma postura com vistas a se per-
mitir experienciar o saber e o fazer filosófico.
Nesse sentido, aquele que se nutre da Filosofia se arroja e se debruça
nos emaranhados das falsas certezas, busca através de uma atitude estranha-
da, desnaturalizada e distante, a experiência de se aprofundar nos problemas
e, a partir do efetivo exercício da dúvida, encontrar caminhos para produzir
saberes em prol da verdade.
A seguir tratamos de dois tópicos de suma importância para pensarmos
na formação de professores, a experiência filosófica e a sua emergência nes-
ses espaços de formação e, depois disso, a formação continuada em exercício
e o fortalecimento do Eu-Tu.

A experiência filosófica enquanto alternativa para a


formação docente
Para tratarmos da experiência filosófica, nos debruçaremos a delimitar
o que se entende de experiência a partir de Larossa (2002) e da acepção de
Kant (2009) no que se refere à questão da Filosofia e do seu ensino.
É sabido que a Educação é permeada por reflexões filosóficas e que
algumas dessas reflexões originam a chamada “Filosofia da Educação”. Em
contrapartida, há alargadas discussões sobre as tendências pedagógicas e
sobre quais seriam os métodos mais adequados para ensinar, considerando
elementos gerenciais como pressuposto de suas análises, como a eficiência e
o desenvolvimento de competências e habilidades.
Porém, o saber filosófico na educação não se limita aos métodos, mas
pelo objeto de estudo e o foco de análise, o humano e o que ele perspectiva

Exercícios de ser filosofia 73


investigar. A educação, deste modo, antes de ser filosófica é antropológica
e só se torna um problema filosófico quando busca compreender algo que o
instiga e que, portanto, é um saber que ele sente que necessita, ao ponto de o
encorajá-lo a transpor as barreiras do senso comum e das supostas verdades.
A questão central de Kant (2004) – o que é o homem? – é necessária
para refletirmos sobre a educação. Educar o homem nessa perspectiva é de-
senvolver seus atributos físicos enquanto um sujeito animal, epistemologica-
mente como um ser racional e moralmente para ser livre. Tais prerrogativas
são cruciais para o seu esclarecimento, isto é, para atingir a sua maioridade.
Temos em Kant dois conceitos fundamentais para tal discussão: o esco-
lástico e o cósmico:

A filosofia é, pois, o sistema dos conhecimentos filosóficos ou


conhecimentos racionais a partir de conceitos. Tal é o conceito
escolástico desta ciência. Segundo o conceito cósmico, ela é a
ciência dos fins últimos da razão humana. Esta noção eleva e
confere dignidade à filosofia, isto é, um valor absoluto. E, de
facto, só ela possui valor intrínseco, só ela confere valor aos
outros conhecimentos. (KANT,2009, p.11).

Diante disso, percebemos que a Filosofia se dá, portanto, enquanto efe-


tivo exercício do filosofar, ou seja, ela não oferece os meios para atingir a um
fim, mas ela é a sua finalidade, ao passo que permite desenvolver os diversos
saberes e suas relações daquele que a aprende ante as demais áreas do co-
nhecimento.
Nesse sentido, o discurso filosófico requer uma profunda fundamenta-
ção lógica, visto que a Filosofia “possui um nexo sistemático e confere unida-
de sistêmica a todas as outras ciências.” (KANT,2009, p.12).
É por meio de uma visão filosófica do mundo e de si frente às diferentes
áreas dos saberes, através da sua constante prática, se permitindo adotar essa
experiência (LAROSSA, 2002) de visão e de atitude filosófica inerentes a sua
conduta social, intelectual e profissional, que podemos perceber como os fe-
nômenos ideológicos e seus aparatos sofisticados de manipulação nos man-

74 Exercícios de ser filosofia


tém na redoma do senso comum: “Apesar de a filosofia ser uma disciplina a
priori, a informação empírica pode ser relevante em muitas das suas áreas.
Essa informação, contudo, é geralmente fornecida pelas outras disciplinas, e
não pela filosofia em si.” (MURCHO, 2008, p.84).
Assim, uma das distinções que a Filosofia possui dentre as demais é que
ela não se constitui necessariamente pelos objetos que se debruça a investi-
gar, mas pela maneira que as pessoas se colocam diante desses objetos.
A postura filosófica é uma espécie de um convite para olhar para deter-
minado objeto de maneira desnaturalizada, estranhada e destituído de juízos,
observando não apenas os fatos e os objetos de análise, seja de forma epis-
têmica, fenomenológica, estética, metafísica e/ou ontológica, mas também
como cada um percebe os fatos observáveis e os fenômenos sobrenaturais
que são o foco da reflexão. O saber filosófico milita em prol da argumentação,
da liberdade e da autonomia, por isso também que a Filosofia tem o fim em si
mesma, pois milita pelo que permite e busca construir na tentativa de conso-
lidar os saberes delimitados.
Nesse sentido a Filosofia enquanto atitude filosófica deve possibilitar e
motivar a autonomia do pensamento. Um meio que nos permitirá sermos ca-
pazes de nos guiar para o entendimento e é por isso que não é possível, segun-
do a perspectiva de Kant (2009) ensinar a Filosofia (e tampouco a aprende)
enquanto teoria, mas enquanto prática filosófica.
Deste modo, a proposta educacional kantiana permite que “o educando
seja concebido como sujeito ativo do processo educativo, e não mais como
um expectador passivo. Tal reviravolta está na base da ideia democrática de
educação defendida por teorias pedagógicas contemporâneas.” (DALBOSCO,
2011, p. 13).
Dessa forma, pensar em uma formação docente a partir da proposta
kantiana é possibilitar momentos de reflexão com vistas a pensar nas práti-
cas desenvolvidas de forma radical, rigorosa e de conjunto (SAVIANI, 1973),
pois

A educação é uma arte, cuja prática precisa ser aperfeiçoada


por várias gerações. Cada geração, de posse dos conhecimentos

Exercícios de ser filosofia 75


das gerações precedentes, está sempre melhor aparelhada para
exercer uma educação que desenvolva todas as disposições
naturais na justa proporção e de conformidade com a finalidade
daquelas, e assim, guie toda a humana espécie a seu destino.
(KANT, 1999, p. 19).

Em face ao exposto até aqui, é preciso que busquemos formações que


façam sentido, que visem atingir uma necessidade, ainda que apenas refle-
xiva, e que vá além das teorias, partindo também para a prática na tentativa
de tornar essa bipartição entre a teoria e a prática algo ultrapassado, dando
lugar a práxis, ou seja, vivificar e permitir espaços em momentos da expe-
riência em detrimento da informação (LAROSSA, 2002) em um mundo so-
brecarregado pelo seu excesso. (AUGÉ, 2005).
Por fim, resistir à avassaladora tempestade de informações e se permi-
tir experienciar o momento, o tempo e o espaço por meio da postura e da ati-
tude filosófica é algo emergente e necessário, sobretudo quando tratamos da
formação de professores, ao passo que é por meio do trabalho deles que outro
mundo, para além das amarras do senso comum e das fake news, é possível.

A formação continuada e o fortalecimento do eu-tu


A formação continuada dos professores em exercício é um dos meios de
oportunizar uma formação de excelência para que os professores atendam às
demandas regulamentárias e, ao mesmo tempo, da escola e dos alunos.
Nesse sentido, uma das grandes expectativas que existem atualmente
na educação frente ao trabalho dos docentes está atrelada ao planejamento
e à organização de um trabalho pedagógico coletivo com vistas a formar o
professor com excelência e ao mesmo tempo desenvolver as competências
que envolvem as esferas cognitivas e socioemocionais.
Por decorrência dessa expectativa é que há constantemente o fomento
da necessidade de se fundar uma nova forma de se pensar a escola e o contex-
to educacional, que seja determinada e capaz de ensinar e formar indivíduos
exemplares e aptos a transformar positivamente a sociedade (NÓVOA, 2002).

76 Exercícios de ser filosofia


Para tanto, é preciso que a escola seja feita por e para todos e, partindo
desse pressuposto, é de fundamental importância a realização de formações
que fortaleçam as relações entre o Eu-Tu em detrimento do Eu-Isso.
A partir da leitura e da interpretação de Buber (2001), de Arruda e Badia
(2007), pode-se dizer que o Eu-Tu trata da relação imediata, da reciprocidade
entre os sujeitos envolvidos, um ato que é essencial para o ser humano de
forma individualizada e para a sociedade como um todo, pois é por meio do
encontro que se percebe no outro a importância do eu, isto é a ontologia do
homem, o que define a percepção, a identidade e a identificação da existência
do ser no mundo.
Já o Eu-Isso é o mundo da experiência, do conhecimento, das repre-
sentações, das estatísticas, em momentos que a finalidade das relações é
estabelecida pelo resultado e não pelo processo. É o distanciamento do Tu,
uma vez que não há relação, mas só a experimentação, na medida em que
personificamos as coisas e coisificamos as pessoas, quando a prioridade na
vida do sujeito é pelo Isso.
A partir de Buber (2001) é possível dizer que a humanidade tem, de ma-
neira exorbitante, obtido grande conhecimento e apreensão do mundo pelo
Isso, o que implica no aumento da técnica em detrimento das relações sociais,
de modo que os homens têm buscado por respostas aos fenômenos existen-
tes, reduzindo o Tu a um objeto, quando deveria ser o oposto, a redução do
objeto ao Tu.
É possível estreitar a relação do Eu-Tu com Perrenoud (1999), pois
em sua leitura e interpretação é possível constatar que ele considera como
basilar para o processo de formação dos professores o foco em uma atitude
reflexiva visando uma ação prática a partir do entrelaçamento de diversas
disciplinas de maneira didática e transversal, na medida em que buscam o
desenvolvimento de estratégias mais eficazes para o processo de ensino/
aprendizagem, a fim de desenvolver aptidões, competências e habilidades
por meio do constante aprendizado e atualização a experiência, ressalvando
uma postura ética e moralmente aceita entre os pares e que esteja imbricada
com a criticidade e a ciência.

Exercícios de ser filosofia 77


Considera-se que a educação maior é o conjunto de instrumentos que
regulamentam a prática docente e a educação menor é a que é ocorre no es-
paço escolar e sala de aula, no encontro entre o aluno e o professor, entre o
aprender e o ensinar.
A educação maior é tida como instrumentos que dirimem e regulamen-
tam a educação a nível de políticas públicas e, por conseguinte, a educação
menor é aquela que é produzida em sala de aula, no encontro entre o aluno e
o professor, entre o aprender e o ensinar. Deste modo, pensamos na educação
menor como forma de incutir em nós a gana de despertar os vislumbres dos
caminhos em nossos desertos pessoais, com base no micro.
A educação menor é olhar para o local, é perceber e sentir a necessidade
e a dificuldade do educando, é reconhecer que ele possui seus limites, desa-
fios e potencialidades, assim como o educador e, diante dessa prerrogativa e
em alusão a Deleuze & Guattari (1997), é o encontro entre esses sujeitos e a
consequente transcendência deles.
Mas, para tanto, é preciso que tudo isso comece a ser fomentado nos es-
paços de formação inicial e continuada dos professores. No sentido bubberia-
no, é no encontro e no diálogo que é fundado, estabelecido e fundamentado
naquilo que é tido como essencial por todos que é a imprescindibilidade de
uma formação continuada para os professores da educação básica e que vise
à construção e a constituição da identidade do discente através também do
arcabouço que pode ser proporcionado por essa área do saber.

Considerações finais
Partiu-se de Kant (2009; 2004; 1999) para apresentar argumentos que
envolvem a Filosofia, o filosofar e, ainda, a atitude, o saber e o fazer filosófico
através de uma conduta de estranhamento e de desnaturalização, encarando
a Filosofia a partir da sua essência radical, rigorosa e de conjunto (SAVIANI,
1973) frente ao que é posto como verdade para o senso comum e, seguido a
isso, buscou-se em Larossa (2002) o conceito de experiência para que a partir
dela possamos compreender a relação da experiência e da não-experiência
(da informação) e, com isso, a imprescindibilidade de se valorar pela expe-

78 Exercícios de ser filosofia


riência como forma de oportunizar formações e momentos que façam senti-
do, satisfazendo, então, a uma necessidade.
Ao longo desse escrito se discorreu sobre a formação continuada dos
professores em exercício a partir da experiência filosófica. Para isso, disser-
tou-se sobre a importância dos espaços e momentos voltados para a forma-
ção de professores enquanto perspectiva de uma sociedade melhor, ao passo
que é pelo trabalho dos docentes que outro mundo é possível e por isso que
tais formações devem estar voltadas para as experiências para, através da
postura e da atitude filosófica, fortalecer a relação do eu-tu em detrimento do
eu-isso em um mundo onde a informação, a tecnologia e a naturalização de
conceitos administrativos para incutir na educação o papel de desenvolver,
de forma eficiente, competências e habilidades que fortalecem, ainda mais,
os aparatos ideologizantes que comungam para uma vida de excessos ofe-
recendo meros devaneios provenientes de uma vida calcada em simulacros,
símbolos e expectativas pouco atingíveis e, igualmente, vazia de amabilidade,
de alteridade, de ipseidade e valores fundamentados na ética.
Por fim, militar contra os devaneios que a sobremodernidade (AUGÉ,
2005) e seus ideais de uma vida voltada para o consumo e para o excesso de
informação trazem e resistir a partir do olhar, da atitude e da conduta filo-
sófica através do saber, do fazer e da experiência filosófica é crucial para en-
contrar o outro em um mundo que impera o ego e a cegueira acometida pelos
excessos que esse modelo carrega em seu bojo, inclusive em espaços onde se
formam aqueles que têm a potência de efetivamente mudar o mundo, com o
desenvolvimento do seu trabalho.

Referências
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ARRUDA, M. R. M. F.; BADIA, D. D. Martin Buber: uma alternativa para se


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Exercícios de ser filosofia 79


<http://seer.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/452/331>. Acesso
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80 Exercícios de ser filosofia


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Exercícios de ser filosofia 81


07. AS DANÇAS CIRCULARES NA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Lídia Morcelli Duarte26

Introdução
O presente texto traz temática de caráter multidisciplinar, pois envolve
duas ou mais áreas do conhecimento: dança e educação. É interdisciplinar,
porque essas áreas estão relacionadas entre si, e transdisciplinar, já que a
partir da relação entre essas áreas pode surgir um novo objeto de estudo e de
conhecimento.
Segundo Santos (2008), a teoria da complexidade e transdisciplinarida-
de surge em contraposição à fragmentação do conhecimento e dicotomia da
dualidade, como uma outra forma de pensar os novos desafios resultantes da
globalidade no século XXI. O autor enumera diversos estudos e teorias peda-
gógicas que seguem essa abordagem: Libâneo (1991, 2005) classifica como
“holística”, Aranha (1996) identifica essas características como paradigmas
emergentes, Gadotti (2003) chamou-os de paradigmas holonômicos, Edgar
Morrin (1991) sistematizou como o pensamento complexo e Basarab Nico-
lescu (1999) como transdisciplinaridade. “Recomendados nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) (Brasil, 2001), os temas transversais recorrem
a essa lógica quando articulam os conhecimentos das diversas disciplinas”
(SANTOS, 2008). Em suas considerações finais o autor denuncia que a frag-
mentação do conhecimento influencia atitudes e o modo de pensar de toda
comunidade educacional e suas estruturas organizacionais, sendo insuficien-
te para um dos principais propósitos da educação que é conferir sentido à
existência humana e a devida importância do conhecimento para a vida.

26
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar (FCLAr – UNESP
– SP). Professora de musicalização infantil na Maple Bear, em Araraquara-SP. Bolsista
de estudos da UNIVESP.

Exercícios de ser filosofia 83


É a partir deste princípio de recusa da fragmentação do conhecimento
que será apresentada aqui uma revisão bibliográfica com artigos que tratam
de temas que podem nos fazer pensar as Danças Circulares na educação, pro-
curando pistas para trabalhos futuros que aprofundem a ideia que busca-
mos defender: a de que as danças circulares são uma infância na formação
de professores e, como tal, capaz de esvaziar o pensamento. Infância capaz
de movimentar corpos e saberes. Infância porque é novidade que irrompe.
Infância porque é começo. Infância porque queremos que tal ideia possa se
alargar e crescer, mas sempre com a vivacidade infantil de quem se permite
ser diferente do que estamos sendo. Eis um gesto de interrupção necessário
à educação. Para nós, este gesto de interrupção faz do corpo um movimento
no sujeito capaz de nele descortinar a dimensão filosófica tão importante na
formação de professores. É preciso esvaziar-se para surgir o novo. Corpo e
expressão unem-se nessas coreografias com os exercícios de infância e de
filosofia que as danças circulares movimentam no ser professor.

Processos circulares na educação


De início gostaríamos de destacar o trabalho de Trindade e Rocha
(2014), que apresenta um relato de experiências resultantes de uma das li-
nhas de estudo dentro de uma pesquisa de doutorado que discute os pro-
cessos circulares. A experiência vivida evidencia uma partilha amorosa dos
processos com rodas de conversações, círculos reflexivos, danças circulares
sagradas e cirandas enquanto vivências inesquecíveis em que cada pessoa
sente-se ligada à outra e comprometida com ela. A discussão entre profes-
sores e outros profissionais que trabalham com desenvolvimento de pessoas
trata da potência humana, suas autorias e autonomias.
Em seu referencial teórico a autora descreve os trabalhos de Madalena
Freire (1983), Humberto Maturana (2009) e Kay Pranis (2010). Nas rodas com
crianças da Educação Infantil, Madalena Freire (1983) registrou seus proces-
sos de diálogo com o outro e o encontro pela palavra: rodas de trabalho, ro-
das de combinados, rodas de cantar, rodas para resolver conflitos, rodas para
organizar projetos e estudos, rodas para aprender e ensinar, rodas para ouvir

84 Exercícios de ser filosofia


histórias e todo tipo de roda que se fazia necessária em uma turma de 4 e 5
anos de idade na Escola da Vila, em São Paulo. A metodologia naturalmente
concedia a palavra a cada um e garantia a palavra de todos do grupo, de modo
a contribuir para a organização do cotidiano.
Humberto Maturana (2009) discorre sobre o viver de cada pessoa como
um contínuo que desde a infância é conservado de maneira espontânea e in-
consciente em seu presente, produzindo uma cultura de viver. O autor desco-
bre que é no conversar libertador em torno da dor e do sofrimento que o su-
jeito encontrará o caminho para a libertação da dor e do sofrimento que vive
no presente. Nas rodas de conversação flui o que se vive: a dor é escutada,
o sofrimento é compartilhado e o amar amplia o olhar e implica em aceitar
a legitimidade da circunstância que se vive. Assim, as condutas relacionais
atuam na reconstrução do ser.
Já nos círculos de construção de paz e justiça restaurativa Kay Pranis
(2010) tem como propósito criar espaços para que as pessoas possam esta-
belecer ligações mais próximas e amorosas umas com as outras. Nos círcu-
los de diálogos, um mesmo assunto ganha muitos pontos de vista, pois todas
as vozes dos participantes são ouvidas de maneira respeitosa. Nos círculos
de compreensão, o empenho do grupo é para compreender uma situação ou
conflito, mas não é necessário buscar um consenso. E muitos outros círculos
como: o círculo de apoio, o círculo de construção do senso comunitário, o cír-
culo de reintegração, o círculo de restabelecimento, o círculo de celebração
ou o círculo de reconhecimento também são processos circulares que facili-
tam os diálogos e ajudam a promover a paz entre os envolvidos. São espaços
em que se cria a “liberdade para expressar a verdade pessoal”.

Assim, os processos circulares, por meio das danças circulares


sagradas e das cirandas também se constituem como espaços de
viver e conviver com o outro, o com o legítimo outro, na entrega
e na confiança das humanidades de cada um, construindo uma
unidade, um todo circular que expressa pura vitalidade coletiva.
(TRINDADE E ROCHA, 2014, p.216).

Exercícios de ser filosofia 85


As autoras apontam que os processos circulares surgem de uma neces-
sidade pedagógica contemporânea de se provocar desconstruções nas ma-
neiras conservadoras e hegemônicas de se fazer o diálogo na escola. É preciso
construir espaços de conversações que permitam aprofundar as relações hu-
manas, que se apoiem na reflexão e no protagonismo e que fujam da condição
vertical e hierárquica.
A dança circular pode encontrar-se como um destes processos circula-
res na educação? O trabalho de Andrada e Souza (2015) investiga o potencial
desta dança como mobilizadora da expressão de afetos e de reflexões que re-
sultem na ampliação da consciência dos professores da rede pública de ensi-
no. Participaram da pesquisa dois grupos de professores: um de uma escola
de Ensino Fundamental I da rede municipal e outro formado por professores
de uma escola de Ensino Fundamental II da rede estadual, em diferentes ci-
dades do interior de São Paulo. O método foi fundamentado no materialis-
mo dialético, que focaliza a complexidade e as contradições constituintes dos
fenômenos humanos. A teoria, fundamentada nos pressupostos de Vigotsky
(1925/2001, 1933/2004) compreende a relação entre sujeito-meio de forma
indissociável, e o processo de desenvolvimento abarca uma integração cons-
tituída pela personalidade do sujeito inserido em uma situação social espe-
cífica. As ações foram realizadas nos horários de TDCs e HTPCs dedicados
à formação de professores nas escolas. A intervenção era aberta com: 1) um
aquecimento para as movimentações corporais; 2) a explicação da dança, in-
cluindo tanto os passos quanto o seu simbolismo; 3) a vivência de acordo com
o motivo conferido à dança e, 4) um espaço aberto para reflexões através de
questionamentos, rodas de conversas ou escritas. A partir das informações
coletadas e registradas em diário de campo, foram feitos agrupamentos das
expressões afetivas em torno de três grandes categorias: Desamparo/ Am-
paro; Desgaste/ Disposição e a Dança como Promotora da Consciência do
Professor. A opção pela análise dos pares de opostos (as duas primeiras cate-
gorias) está de acordo com a metodologia do materialismo dialético em que
se objetivou a observação das contradições relativas ao modo como os pro-
fessores lidam com os afetos na escola, onde a expressão de afetos negativos
esconde afetos positivos e vice-versa.

86 Exercícios de ser filosofia


Na categoria Desamparo/Amparo, discorre-se sobre as
vivências dos docentes nos enfrentamentos dos desafios da
escola sem parcerias, resultando nos sentimentos de solidão,
sofrimento e frustração. Como contraponto apresentam a
necessidade de união entre os integrantes da escola.

Na categoria Desgaste/Disposição, discorre-se sobre as


vivências dos docentes em relação à opressão pelas imposições
políticas, esgotamento físico/afetivo e desmotivação
provocados pelas condições materiais que caracterizam o
trabalho docente. Nas propostas de intervenção os sujeitos
engajam-se nas atividades com as danças por promoverem
tranquilidade e entrega. (ANDRADA E SOUZA, 2015, p.362)
(grifos das autoras)

Na categoria Dança como promotora da consciência do professor, as


falas trazem um aumento da percepção sobre os seus corpos. Relatos sobre
uma abertura para a busca de um equilíbrio interno, a consciência de si e do
outro e um estado de relaxamento ou alívio. Um despertar para a paz interior
que proporciona um desligamento dos problemas e aumenta o centramento
ou o foco na realização dos trabalhos.
Os dados apontam que o sofrimento no trabalho docente é grande, já
que o volume e profundidade dos dados apontam para uma lacuna nas inte-
rações dentro da escola: as expressões de afetos negativos foram mais proe-
minentes do que os positivos. Entretanto, o trabalho com o corpo nas danças
circulares impulsiona novas formas de expressão de sentimentos que podem
se converter em porta de acesso a pequenas transformações. Segundo as au-
toras, “quando se produzem novas conexões, cria-se também a configuração
de novos sentidos provocando avanços no desenvolvimento do sujeito”. (AN-
DRADA E SOUZA, 2015).
As autoras ressaltam a importância e o cuidado para que seja estabele-
cido um ambiente adequado às práticas dentro da escola, uma sala fixa, que
seja reservada para tal finalidade. É de suma importância o investimento em

Exercícios de ser filosofia 87


um espaço físico e simbólico para o trabalho do psicólogo escolar em todos os
estabelecimentos de ensino.
O artigo de Ostetto (2007) apresenta como aporte teórico conceitos da
psicologia analítica de C.G. Jung que fala da criança interna presente em todo
adulto e do arquétipo mestre-aprendiz. A autora desenvolveu o tema em sua
pesquisa de doutorado ao criar um “espaço-tempo de encontros para dançar”
envolvendo alunas do curso de Pedagogia da Unicamp, professoras e outros
profissionais da Educação Infantil e Ensino Fundamental da Rede Pública
Municipal de Blumenal-SC. Em sua proposta, a autora não pretendia dar au-
las de dança, mas sim criar um espaço para o adulto se reencontrar consigo
mesmo. Sua ideia central é de que para fazer com a criança o adulto-educador
precisa primeiro saber fazer para si, pois “não se pode encorajar o outro a vi-
ver uma aventura que nós mesmos não vivemos” (ALBANO MOREIRA, 2002).
Nos encontros, a autora tencionava provocar nas educadoras lembranças de
tempos e espaços vividos em “memórias de criança” marcados pela entrega,
pela imaginação e inventividade em jogos compartilhados.

Nos encontros em que dançamos “memórias de criança”,


o que se viu foi um abalo, uma mexida geral no estado das
participantes. O sentimento foi tocado visivelmente. A emoção
tomou lugar na roda e mostrou-se, por meio de reações e
atitudes diversas, durante e ao final das danças: respiração
ofegante, silêncio profundo, falta de palavra, lágrimas, olhos
brilhando, alegria, tristeza, irritação, serenidade, expansão,
recolhimento. Um turbilhão de sentimentos e emoções, eu
poderia dizer, veio à tona. Foram encontros fortes, capazes
de remexer camadas da história de cada uma. Não seria
demais afirmar que, nessa remexida, conteúdos conscientes e
inconscientes foram ativados: algo aconteceu. Afigura-se para
mim que a experiência, como algo que “nos acontece” (Larrosa,
2002), explodiu para grande parte do grupo. (OSTETTO, 2007
p. 201).

88 Exercícios de ser filosofia


Um outro aspecto evidenciado na relação mestre-aprendiz é o erro, que
pode ser experienciado através da roda de dança, não por ser apontado, mas
por ser parte constituinte da proposta enquanto possibilidade e até mesmo
um convite à coragem de errar. A surpreendente exclamação: - “que bom, eu
posso errar!” - indica o caráter prescritivo de algumas práticas pedagógicas
em curso, que desconsideram justamente o fator que possibilita o acerto: a
experiência. Como conclusão, esta trilha de encontro com a criança na dança
possibilitou uma abertura, um caminho na formação de professores em que
se reconhece o “não-saber”, o entregar-se à aventura do “não-sei-o-que-virá”,
perceber e aceitar as imperfeições e os erros. Um processo de autoconheci-
mento e reflexão sobre a relação professor-aluno ou dos dois pólos mestre-
-aprendiz presentes em cada um. (OSTETTO, 2007).
O artigo de Trindade et al. (2018) apresenta os resultados de uma pes-
quisa qualitativa que objetivou conhecer as experiências de uma prática
interdisciplinar das danças circulares na universidade. Derivado de uma
dissertação de mestrado em Psicologia, de cunho descritivo exploratório, o
campo de pesquisa refere-se a uma disciplina complementar com carga ho-
rária de 30 horas da qual participaram 23 estudantes dos cursos de gradua-
ção em Pedagogia, Educação Especial e Terapia Ocupacional. Foram objeto
de análise os 23 diários de aula dos estudantes onde foram registradas as suas
impressões e experiências pessoais na disciplina intitulada “Dança dos povos:
um exercício para paz”, da UFSM. A apresentação e discussão dos resultados
se apoia no mito de Gaia (SAHTOURIS, 1991) e foi dividida em 3 etapas: 1) o
início (Caos), 2) o nascimento de Gaia por meio da dança - que corresponde
à familiarização com a disciplina e 3) a criação da vida - que corresponde a
reflexão das representações sociais identificadas nas narrativas dos acadê-
micos.
Na primeira etapa, o referencial teórico apresenta a universidade en-
quanto um espaço constituído de aversões às mudanças, rígido em sua orga-
nização, estrutura e funções, além de ser fragmentado, distanciado da preo-
cupação humanista e cultural e das práticas de transformação da sociedade.
Um lugar onde a conexão pessoa-vida-universidade-sociedade fica desmem-

Exercícios de ser filosofia 89


brada, desassociada, rompida. Espaços de educação formal em que se pre-
sencia a coibição de livres expressões do corpo, das emoções e dos sentimen-
tos na nossa sociedade (SANTOS, 2004; MOSÉ, 2013).
Dessa forma, os relatos iniciais sobre os estranhamentos dos primeiros
dias falam justamente de espaços, posturas e regras incomuns na universi-
dade como símbolos, mitos, poesias e rituais das mais diversas culturas. O
desconforto veio acompanhado de palavras como preocupação, nervosismo,
vergonha, medo de errar, e o receio dos outros, de ter que corresponder a um
espaço de seriedade onde é preciso acertar e onde se é avaliado.
Na segunda etapa as autoras descrevem o mecanismo que foi denomi-
nado “ancoragem” por Moscovici (2013), um retorno à estabilidade ou ao fa-
miliar, onde cada um procura dentro de si novas possibilidades de pensar,
interpretar, comparar, criar e fazer nascer outras formas de representação.
A partir do que cada um conhece do simbolismo apresentado nas danças,
surgem várias ancoragens de um tempo remoto de saudade, magia, liberda-
de, proteção, simplicidades e brincadeiras. Os relatos desta etapa descrevem
sensações corporais ligadas aos elementos da natureza e lembranças da in-
fância.
Na terceira etapa nasce a dimensão do sentir e a antiga dicotomia razão
versus emoção surge nos relatos dos diários. Segundo Angela Arruda, (2014)
os afetos estão intimamente ligados com a representação de objetos, pessoas,
acontecimentos e fenômenos, pois é justamente aquilo que provoca o desejo
de comunicação, de falar e de compreender que se pode representar social-
mente. Nos diários, os estudantes expressam o entendimento de conceitos
que já haviam decorado sobre a empatia, mas que agora puderam sentir na
prática. Fortalecimento do grupo, parceria, envolvimento e a permissão para
olhar nos olhos, segurar nas mãos, tocar e sentir a energia do outro.
Ao final do processo, as autoras consideraram que os métodos da disci-
plina de dança circular estranham-se com os métodos hegemônicos da uni-
versidade, pois não correspondem ao império do paradigma predominante.
Entretanto, apesar das resistências e estranhamentos, a dança circular ten-
de a ser mais confiável somente pelo fato de estar neste espaço hegemônico.

90 Exercícios de ser filosofia


Desperta maior credibilidade e respeito nos trabalhos acadêmicos que estão
sendo desenvolvidos. Nesta pesquisa as danças movimentaram representa-
ções sociais e ainda sensibilizou os sujeitos para a abertura à alteridade e ao
mundo, afetando suas relações sociais. As autoras perceberam nas vivências
e nos relatos que os estudantes:

buscaram a convicção nos seus próprios sentimentos e


sensações, a participação nos processos de aprendizagem, o
uso do próprio corpo e do grupo para se permitir experienciar,
a disponibilidade para conhecer por meio dos saberes práticos
e tradicionais dos povos e a entrega nos encontros com o outro.
(TRINDADE, 2018, p.30).

Como contribuição fica a crítica em relação às formas de ser e estar na


universidade e a abertura para as práticas que criam espaços de reflexão para
experiências sensíveis, artísticas e simbólicas que possibilitem outras formas
de relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo. Para pesquisas fu-
turas as autoras sugerem a realização de um estudo longitudinal em que se
possa avaliar o impacto da proposta na vida acadêmica e no cotidiano dos
estudantes ao longo do semestre.
O trabalho de Carneiro e D’Ávila (2019) também apresenta as expe-
riências formativas das danças circulares e ludicidade em contextos uni-
versitários. Como problemática de pesquisa são apontados o desinteresse,
a insatisfação e o desencanto, tanto dos educandos quanto dos educadores,
nos espaços formais de ensino, dentro e fora das universidades no que diz
respeito ao relacionamento interpessoal professor-aluno. Em seu referencial
teórico as autoras apresentam estudos empíricos em que se observa “a pre-
sença de sinais de enrijecimento corporal, cansaço, desgaste físico, emocio-
nal e estresse nos professores e alunos.” (CARNEIRO D’ÁVILA, 2019, p. 364)
O estudo foi realizado com 363 participantes em 23 rodas de danças cir-
culares realizadas no período de 2016 a 2017 em duas instituições de ensino
superior (pública e privada). Abrangeu a faixa etária dos 6 aos 84 anos, sendo
76% do gênero feminino e 24% do gênero masculino. As atividades foram vi-

Exercícios de ser filosofia 91


venciadas em diferentes contextos como: no grupo de pesquisa, em seminá-
rios interdisciplinares, no ensino privado, em projetos de extensão, em sim-
pósios e encontros e no hospital universitário. A abordagem utilizada foi o
método qualitativo de trabalho com as percepções dos participantes segundo
o paradigma interacionista. As estratégias contaram com quatro momentos:
1) acolhimento pautado em centramento e harmonização inicial; 2) explana-
ção dos símbolos utilizados nas danças circulares; 3) vivências das danças e
4) harmonização final com avaliação das vivências. Os dados obtidos foram
organizados em gráficos e analisados através da análise de conteúdo, possibi-
litando a organização dos significados encontrados em emoções e sensações
corporais.

Figura 1: Sensações corporais e/ou emoções mais referidas pelos participan-


tes em rodas de danças circulares.

Fonte: Carneiro e D’Ávila (2019, p. 368)

As sensações corporais e/ ou emoções mais referidas pelos participan-


tes em rodas de danças circulares foram: paz, alegria, tranquilidade, leveza,
amor, relaxamento e felicidade, sinalizando, portanto, respostas emocionais
positivas.
As autoras ressaltam “a necessidade de estarmos sensíveis à comunica-
ção via outras linguagens que não apenas a verbal”, já que o aporte teórico do

92 Exercícios de ser filosofia


saber sensível fala sobre a capacidade de sentir, de se movimentar e de perce-
ber o mundo através de cores, sons, odores, sabores e texturas. Uma didática
que envolve arte e ludicidade na construção do sentido da vida, inclusive em
contextos universitários. (DUARTE-JUNIOR, 2006; LUKESI, 2017; CARNEI-
RO D’ÁVILA, 2016).
O artigo de Machado e Quadrado (2018) investiga a utilização das dan-
ças circulares na formação continuada de professores(as) a partir de valores
civilizatórios afro-brasileiros como: cooperativismo, circularidade, ludicida-
de, territorialidade, oralidade, religiosidade, ancestralidade, memória e ener-
gia vital. É um estudo que propõe uma ação pedagógica para o cumprimento
da lei 10.639/03, viabilizando para todos estudantes e professores conheci-
mentos sobre história e cultura africana e afro-brasileira.
O trabalho apresenta uma coletânea de textos sobre racismo, pre-
conceito e discriminação racial, que desde o século XV foram escritos para
sustentar essas práticas como necessárias e para justificar a escravidão de
negros e indígenas. Da mesma forma, o fato da intolerância religiosa ser pra-
ticada, geralmente contra as religiões de matriz africana, está diretamente re-
lacionado ao preconceito declarado aos negros desde a escravidão no Brasil
(MACHADO e QUADRADO, 2018).
A produção dos dados da pesquisa qualitativa foi realizada durante um
curso de 40 horas (16 presenciais e 24 à distância) de formação continuada
para professores(as) das redes estadual, municipal e federal de ensino sobre
educação étnico-racial com a metodologia das danças circulares. Durante o
curso, os participantes receberam um caderno para escrita das suas narrati-
vas docentes, com o objetivo de registrarem suas reflexões, opiniões, suges-
tões, experiências e críticas sobre os temas trabalhados. A análise dos dados
partiu das dúvidas e tensões que os professores enfrentam em sala de aula.
As perguntas disparadoras de reflexões foram: 1) Quais são as dúvidas e ten-
sões que vocês, docentes, enfrentam na sala de aula sobre as temáticas das
relações étnico-raciais (racismo, discriminação, intolerância religiosa entre
outros)? 2) Como você percebeu a abordagem do tema tão complexo, como a
intolerância religiosa, a partir das danças circulares? 3) O racismo pode ser

Exercícios de ser filosofia 93


abordado através das danças circulares de forma lúdica sem que se perca a
seriedade das questões que envolvem este tema?
Nos resultados obtidos da primeira questão foram encontrados o en-
frentamento de discriminação em 80% das respostas, intolerância religiosa
em 60% das respostas e racismo em 40% das respostas. A análise das outras
duas questões contou com a descrição dos relatos de 9 sujeitos.

Sujeito 6: “as danças circulares possibilitaram a proximidade


entre os diferentes favorecendo a sensibilidade e encorajamento
para expressar a opinião mesmo que divergente sobre a
religiosidade de matriz africana.” (depoimento de docente,
MACHADO e QUADRADO, 2018, p.10).

Sujeito 1: “desde o primeiro encontro percebo o quanto as danças


circulares está presente em nossos registros. Escutar músicas,
sons diversos, nos remete ao conhecimento do aprender com o
movimento e escuta. Trocando ideias, desvendando histórias,
o acolhimento da roda nos leva a reflexão da verdadeira
contribuição e benefícios que nos trouxeram e deixaram nossos
antepassados que foram retirados da África.” (depoimento de
docente, MACHADO e QUADRADO, 2018, p.12).

Nas considerações finais sobre o exercício de educar para as relações


étnico-raciais, as autoras ressaltam que muitas são as dúvidas sobre racismo,
intolerância religiosa e discriminação em sala de aula. A utilização das danças
circulares para discutir e problematizar estas temáticas foi considerada pelos
docentes como uma atividade leve e alegre que proporciona reflexão, ressig-
nificação e respeito à diversidade étnico-racial. Uma forma de aprendizagem
através do movimento, da oralidade e do acolhimento da roda.
O artigo de Oliveira e Fischer (2015) avalia a prática dos jogos coope-
rativos e das danças circulares para a inclusão escolar de alunos com defi-
ciência intelectual, especialmente nas aulas de Educação Física. Os autores
trazem contribuições de estudos sobre a inclusão escolar que deve considerar
um processo de reforma e reestruturação, desde as instalações físicas até a

94 Exercícios de ser filosofia


qualificação profissional, enfatizando práticas pedagógicas em todo âmbito
escolar que busquem participação e aprendizado de todos, sem diferenciação
de alunos. Para tanto, as atividades com os jogos cooperativos e as danças
circulares contribuem justamente pelo objetivo comum de unir as pessoas, já
que nessas atividades os participantes dependem uns dos outros e de alguma
forma precisam desenvolver integração, apoio mútuo e cooperação.
A pesquisa de caráter qualitativo foi realizada em uma escola pública
da Rede Estadual de Santa Catarina durante as aulas de Educação Física de
uma turma de 6o ano com 18 alunos em que dois deles tinham diagnóstico de
deficiência intelectual. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com
todos os 18 alunos. Com os alunos diagnosticados com deficiência intelectual
e com a professora de apoio as entrevistas foram de caráter individual. Com
o restante da turma foram realizadas entrevistas coletivas por meio da técni-
ca de grupo focal em dois grupos com o mesmo número de componentes. O
professor pesquisador assumiu o papel de moderador e utilizou como guia o
tópico: - comentem sobre a prática pedagógica vivenciada nas aulas de Edu-
cação Física.
Na discussão dos resultados, os autores ressaltam que os depoimentos
dos alunos coincidem com os princípios expostos por Brotto (2001) a respeito
da pedagogia da cooperação. Quando a dinâmica das atividades em grupo é
divertida e estimulante incentiva o desenvolvimento dos alunos nos aspectos
social e moral em propostas de cooperação e solidariedade. Tais aspectos são
fundamentais para entender as diferenças e conviver com elas de modo que
a inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais seja realizada
com sucesso.

Com essas danças a gente aprende a dançar com aquela pessoa


que não temos amizade, que achamos diferente, que a gente
não gosta, aí a gente acha que nunca vai dançar com aquela
pessoa que achamos chata, daí acaba dançando e começa
a se divertir com ela (AL7). (depoimento de aluno do 6o ano,
OLIVEIRA e FISHER, 2015 p. 168).

Exercícios de ser filosofia 95


É legal que a gente aprende com o AL1, quando tem que fazer
aquela parte de pular ele abre a perna, a gente tem que ensinar
como ele tem que fazer, é a mesma coisa com as outras pessoas,
não tem que tá xingando ninguém (AL3). (depoimento de
aluno do 6o ano, OLIVEIRA e FISHER, 2015 p. 169).

Danço com todo mundo, a música é muito bonita e eu gosto


muito, tem que ter paciência [...] Gosto muito da dança, danço
até cansar (AL1). (depoimento de aluno diagnosticado com
deficiência intelectual, OLIVEIRA e FISHER, 2015 p. 169).

Um dos grandes problemas que eram constatados nessa turma


era que eles não podiam se encostar não se davam abraço
aperto de mão, se mantém de mãos dadas nem pensar, e sem
eles perceberem hoje eles tão fazendo tudo isso, ficam de mãos
dadas [...] talvez para eles seja só uma dança, o que vem por
traz o fato de ter a proximidade com as pessoas que eles acabam
excluído, aquele que não vem tão bem vestido isso tem acabado,
e acho que eles não tão se dando conta [...] ele não tem mais o
problemas em sentar junto de quem antes eles não sentavam,
eles não tem mais dificuldades em fazer trabalho em grupos,
que não seja aquela panelinha, talvez ele nem percebam o
benefício que as danças trouxeram para eles (depoimento da
professora de apoio, OLIVEIRA e FISHER, 2015 p. 170).

Com base nos discursos coletados, os autores concluem que tais práti-
cas possibilitaram a afetividade, trabalho em grupo, a amizade e a convivên-
cia mais próxima entre os alunos da turma. A dança circular contribuiu para a
possibilidade da inclusão escolar dos alunos com deficiência intelectual e dos
demais alunos também ajudou na socialização de quem era antissocial, na
autoestima, na confiança entre os alunos. Enfim, possibilitou uma abertura
para formação de amizades e afastou o medo de se relacionar com outras pes-
soas antes consideradas diferentes. Entretanto, a proposta desse estudo não é
criar uma fórmula, mas sim incentivar outros professores a criarem suas pró-

96 Exercícios de ser filosofia


prias práticas pedagógicas de acordo com as características de seus alunos
com o objetivo de proporcionar a inclusão total dos alunos no ensino regular.

Considerações Finais:
A partir desta revisão bibliográfica, foram levantados alguns pontos
para pensar as danças circulares como disparadoras de reflexões na forma-
ção de professores. Nos trabalhos descritos, temas transversais foram con-
templados como a ludicidade, a educação para as relações étnico-raciais e as
práticas pedagógicas de inclusão. A proposta aqui não é encontrar respostas
para tais problemáticas, já que assim como na infância e na filosofia a busca
está justamente em “desconhecer todas as coisas, questioná-las, desaprender
o que sabemos, afirmar o valor do não saber e do buscar responder, com to-
das as suas forças, questões que não podem ser respondidas.” (KOHAN, 2015,
p.221). Entretanto, pretende-se oferecer como possibilidade a inserção do
corpo em movimento como forma de expressão além das palavras. Um modo
alternativo de provocar aprendizagens, tanto a respeito de si mesmo como
sobre os gestos envolvidos no encontro coletivo, entre vidas compartilhadas.

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100 Exercícios de ser filosofia


08. O FILÓSOFO E SEU TEMPO:
REFLEXÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA
FILOSÓFICA DE DESCARTES

Marcelo Alexandre dos Santos27

Apresentação
Na história do pensamento ocidental muitos estudos já foram realizados
sobre o legado epistemológico durante o período histórico da modernidade.
Não obstante o monumental acervo cultural produzido durante os períodos
históricos anteriores – Antiguidade e Idade Média – na Idade Moderna se con-
figurou as bases do pensamento científico que prevalece até os dias atuais.
Considerando que o conteúdo do pensamento individual e coletivo de
uma determinada época tem origem nas condições objetivas do mundo, não
é possível discorrer sobre as alterações produzidas na epistemologia da mo-
dernidade sem antes apresentar o contexto em que elas se originaram. Para
tanto, ao abordarmos aqui o pensamento do filósofo francês René Descartes
temos a tarefa primeira de expor o conteúdo histórico que motivou as princi-
pais questões filosóficas da sua época sobre as quais ele refletiu.
Apesar dos quatro séculos transcorridos entre o momento histórico vi-
vido por Descartes e os nossos dias, sua filosofia permanece viva, norteando
muitas pesquisas na atualidade em diversos temas.
Ao longo desse estudo buscaremos, portanto, destacar os aspectos es-
senciais do pensamento cartesiano inserindo-os no contexto histórico em
que ele viveu e procurando demonstrar em que sentido as suas reflexões filo-
sóficas significaram uma experiência para ele.

27
Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Supervisor
de Ensino da Secretaria Municipal da Educação de Votuporanga–SP.

Exercícios de ser filosofia 101


Contextualizando o pensamento de Descartes: as polêmicas da
modernidade
Quando situamos historicamente o pensamento de Descartes perce-
bemos o alinhamento das suas preocupações em relação às transformações
pelas quais passava a cultura europeia no período em que ele viveu. Ao mes-
mo tempo, Descartes também era herdeiro da tradição filosófica anterior, so-
bretudo, a escolástica, que se reproduzia nas suas reflexões. Por esse motivo,
analisaremos primeiramente em linhas gerais as características do advento
da Idade Moderna, período no qual se desenvolveu filosofia cartesiana.
De acordo com Koshiba e Pereira (1996) dentro da periodização da so-
ciedade ocidental encontramos a seguinte divisão: 1) Antiguidade Clássica
greco-romana (1950 a. C. a 476 d. C.); 2) Idade Média (de 476 a 1453); 3) Ida-
de Moderna (de 1453 a 1789); 4) Idade Contemporânea (de 1789 até os dias
atuais). No entanto, esses autores são contundentes em ressaltar que essa di-
visão se trata apenas de um marco cronológico, não significando uma cisão
total entre as épocas. Ou seja, o que procuram esclarecer é que a Idade Mo-
derna, por exemplo, não iniciou no primeiro dia do ano de 1453, mas a partir
de um processo de transição.
No entanto, devemos salientar que a periodização apresentada ante-
riormente não pode ser simplesmente ignorada, visto que favorece a com-
preensão das transformações históricas. Nesse sentido, Gomes (1977, p. 15)
afirma que:

A divisão da História em períodos não resulta de mera


necessidade didática, como frequentemente se diz. Na
realidade, através da periodização, expressa-se a compreensão
da História em sua totalidade. Os períodos são expressões
tipológicas (generalizações) das características fundamentais
de uma época, implicando no próprio significado dessa época.

Portanto, a Idade Moderna se desenvolveu de modo mais específico en-


tre os anos de 1453 e 1989. Esse foi um período de relevantes transformações
culturais e econômicas na sociedade em geral que possibilitaram a instaura-

102 Exercícios de ser filosofia


ção da ciência como a principal forma de conhecimento e explicação da reali-
dade. Porém, o início da modernidade foi um período ainda caracterizado por
uma transição em ralação à Idade Média. Por esse motivo, o desenvolvimento
da ciência não significou de imediato uma ruptura com o ideário medieval,
mas, em vários aspectos consistiu numa continuidade da tradição anterior,
assumindo apenas uma argumentação mais elaborada.
É nesse sentido que Marcondes (2010) afirma que na Idade Moderna
vamos encontrar rupturas, avanços, progressos, continuidades e até mesmo
revolução. Mas, o que nos interessa aqui é oferecer um enfoque mais direto
das mudanças que estiveram relacionadas às contribuições do pensamento
de Descartes no início da era moderna.
É interessante observar que o termo moderno não surgiu na Idade Mo-
derna. Segundo Marcondes (2010) durante a Idade Média esse termo já havia
sido empregado na filosofia:

Na realidade, entretanto, o termo “moderno” era usado já


na filosofia medieval, designando um novo movimento na
lógica a partir do séc. XII, que se opunha à tradição anterior,
a chamada logica vetus. A lógica modernorum, ou lógica
terminista, tem assim um sentido inovador, introduzindo uma
nova problemática nesse campo. (MARCONDES, 2010, p. 142).

Marcondes (2010) aponta que o conceito de moderno também já havia


aparecido em outras ocasiões, como por exemplo, relacionado à fé cristã,
quando havia uma oposição entre os termos antiqui e moderni. O primeiro
denominava aqueles que vieram antes de Cristo e o segundo os posteriores.
O autor adverte ainda que o termo moderno é derivado do latim “modo”, que
tem exatamente o sentido de “agora mesmo”, “neste instante”, “no momento”,
ou seja, atual28.
Mas, o que há de novo na Idade Moderna em relação à Idade Média?
Conforme já afirmamos, anteriormente à era moderna uma sólida
tradição do pensamento filosófico já havia sido estruturada. Na Idade Mé-

28
MARCONDES, 2010, p. 142

Exercícios de ser filosofia 103


dia predominava a escolástica29, termo pelo qual ficou conhecida a essência
da chamada filosofia cristã desenvolvida naquele período. A escolástica teve
entre seus representantes mais conhecidos Santo Agostinho e São Tomás de
Aquino e, de acordo Abbagnano (2007, p. 401), um de seus objetivos princi-
pais era “[...] ajudar o homem a compreender a verdade revelada”. Segundo o
autor, esse termo identificou ainda “[...] qualquer filosofia que assuma a tare-
fa de ilustrar e defender racionalmente determinada tradição ou revelação
religiosa”. (ABBAGNANO, 2007, p. 401).
Apesar da influência de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, Mar-
condes (2010) destaca também Santo Anselmo como “[...] o primeiro grande
pensador da escolástica, elaborando sua filosofia a partir de uma preocupa-
ção em articular a fé e o entendimento, a razão e a revelação”. (MARCONDES,
2010, p. 119).
A tensão entre fé e razão esteve presente no foco das reflexões da esco-
lástica que, a princípio, teve sua lógica baseada na metafísica transcendental
para explicar a realidade. Essa tensão se ampliou atingindo seu maior êxito
na chamada “alta escolástica30” com as ideias de São Tomas de Aquino.
Segundo Marcondes (2010) o esforço filosófico feito por São Tomás
na grande obra que produziu, a “Suma Teológica”, – considerada a obra mais
influente da Idade Média – tinha como objetivo provar a existência de Deus
por meio de princípios. Nesses princípios – que na obra foram chamados de
“artigos” – São Tomás retomou aspectos tanto do naturalismo de Aristóteles
quanto do pensamento de Santo Anselmo. Nas suas conclusões, de acordo
com Marcondes (2010), Santo Anselmo reconheceu a partir da filosofia cristã
que não se pode conhecer a Deus apenas por meio da evidência sem o auxí-
lio da experiência sensível. Essa tese se desdobrou na ideia de que é possível
conhecer a Deus não somente pela fé, mas também por meio de uma “razão
natural” que se verificava nas obras divinas, como na natureza, por exemplo.31
29
ABBAGNANO, 2007, p. 401 “Em sentido próprio, a filosofia cristã da Idade Média”.
30
ABBAGNANO, 2007, p. 401 “Período que vai do século IX ao fim do século XII, ca-
racterizada pela confiança na harmonia intrínseca e substancial entre fé e razão e na
coincidência de sues resultados”.
31MARCONDES, 2010, p. 132

104 Exercícios de ser filosofia


Assim:

Isso torna legítimo, do ponto de vista teológico, o interesse


pela investigação científica do mundo natural, que despertava
já nesse momento grande curiosidade do homem medieval,
devido à influência das obras científicas aristotélicas e árabes,
bem como correspondia às necessidades de desenvolvimento
de um mundo em rápido crescimento econômico e social.
Abre-se com isso um novo caminho para a ciência e a filosofia,
prenunciando as grandes transformações pelas quais passará o
mundo europeu ocidental nos séculos seguintes. (MARCONDES,
2010, p. 132).

Portanto, é perceptível que essas mudanças iniciaram uma série de


transformações no pensamento filosófico predominante da época, e, associa-
das a questões de ordem política e econômica culminaram na crise da esco-
lástica e numa nova forma de interpretar o mundo.
Assim, o ponto a partir do qual Descartes desenvolveu sua filosofia foi
justamente esse contexto. Ou seja, num mundo onde ainda predominavam os
ideais escolásticos e, ao mesmo tempo, surgiam interpretações naturalistas
da realidade, sobretudo, na filosofia. Dentre as grandes transformações por
que passava a Europa em meados do século XVII, quando Descartes alcançou
a idade adulta, destacaram-se a descoberta do heliocentrismo por Galileu, as
mudanças na geografia do mundo decorrentes da descoberta da América por
Cristóvão Colombo e a reforma protestante. Essas transformações foram de-
cisivas para a crise da escolástica. Mas, como afirma Marcondes (2010, p. 135)
essa crise não representa de forma alguma o fim da escolástica, pois:

[...] A filosofia escolástica e o próprio tomismo, sobrevivem


no período moderno, e até hoje encontram adeptos como, por
exemplo, o neotomismo de Jacques Martitain (1882-1973).
Porém, é certo, tanto de um ponto de vista histórico quanto
conceitual, que o pensamento escolástico entra em crise e
declínio a partir do séc. XIV.

Exercícios de ser filosofia 105


Apesar de não se opor diretamente aos princípios da escolástica, Des-
cartes também foi seguidor do clima de incertezas que reinava no pensamen-
to europeu da época. Mesmo diante das polêmicas que as grandes descobertas
científicas haviam produzido no campo da filosofia havia ainda certa cautela
por parte dos filósofos com relação às críticas que faziam à filosofia cristã.
Diante desse contexto, analisaremos agora de modo mais específico os
principais aspectos da filosofia de Descartes e como eles se articularam aos
valores da ciência e da religião.

O posicionamento filosófico de Descartes: entre a religião e a


ciência
No interior das polêmicas em torno da escolástica originadas nas con-
tradições do pensamento metafísico que se valia da transcendência para
explicar a realidade, Descartes construiu a fundamentação da sua filosofia.
Assim, ele desenvolveu de modo mais amadurecido uma leitura do mundo
baseada numa concepção que propunha a submissão dessa metafísica a uma
investigação prévia das explicações produzidas acerca da realidade, dando
origem a uma epistemologia fundada num método preciso e não mais na
mera evidência conforme ocorria na escolástica.
Conforme afirmamos anteriormente, o contexto histórico vivido por
Descartes influenciou decisivamente na sua trajetória intelectual, oferecen-
do o conteúdo histórico das suas discussões mais polêmicas. Assim, tal como
destaca Marcondes (2010), a Idade Moderna foi marcada pela crise da con-
ciliação entre fé e razão e pela supervalorização do indivíduo em virtude do
movimento humanista que se fazia presente.
Portanto, todo o trabalho produzido por Descartes naquele período é
ainda hoje objeto de discussão entre os filósofos que se debruçam sobre seu
pensamento e, de modo geral, à modernidade. Entre essas discussões estão
presentes algumas divergências em relação ao significado da obra de Descar-
tes no campo da epistemologia moderna. Assim:

106 Exercícios de ser filosofia


Alguns consideram seu pensamento quase uma extensão da
escolástica, da qual sofreu grande influência, pretendendo ser
sua obra uma fundamentação do pensamento católico diante
da nova ciência. Seria essa inspiração do cardeal Bérulle
que Descartes teria seguido. Outros chegam a considerar o
pensamento de Descartes como a “Reforma da filosofia”, assim
como o protestantismo teria sido a Reforma no cristianismo.
(MARCONDES, 2010, p. 165).

Essa polêmica demonstra que uma das consequências da contradição


decorrente da tensão entre os princípios filosóficos da escolástica e do natu-
ralismo que se associava a uma concepção mais científica da realidade permi-
tiu divergentes interpretações sobre o significado histórico do pensamento
de Descartes.
No exemplo da divergência apresentada pretendemos chamar a aten-
ção para a importância de se contextualizar o pensamento de um filósofo
para compreendê-lo. Marcondes (2010) ressalta que a necessidade de con-
textualização também era uma preocupação para Descartes que procurava
sempre expor as razões que o levavam à formulação de suas ideias. O autor
afirma que essa atitude de Descartes era um exemplo da importância dada à
experiência de vida do sujeito pensante, sendo essa uma característica pró-
pria daquele período e que foi herdada do humanismo.
Nesse sentido, um aspecto interessante da obra de Descartes é a nar-
ração em primeira pessoa. Isso porque naquela época praticamente não ha-
via obras que utilizava essa forma de discurso, muito menos demonstrando
os caminhos pelos quais se alcançava determinadas conclusões. Marcondes
(2010) comenta que além das obras de Descartes, somente outras duas ha-
viam sido escritas da mesma forma: “Cartas de Platão” e “Confissões de Santo
Agostinho”.
É na obra Discurso do Método que Descartes formulou os princípios
fundamentais da sua filosofia, bem como construiu as premissas para a ela-
boração do “método científico” que consistia no seu principal objetivo.

Exercícios de ser filosofia 107


A formulação da filosofia de Descartes é baseada numa pergunta epis-
temológica do qual ele se empenhou profundamente para respondê-la. Essa
questão pode ser resumida na sua obra da seguinte forma: “Como temos cer-
teza da verdade?” ou, “É possível obtermos um conhecimento verdadeiro do
mundo?”
Assim como os demais filósofos da sua época, Descartes não era ateu.
Contudo, buscava demonstrar por meio da sua filosofia que a natureza pos-
suía suas leis próprias e que elas poderiam ser conhecidas com certa auto-
nomia em relação à religião. Porém, isso não significava independência em
relação ao Criador, mas que era possível explicá-las a partir de elementos da
realidade e do uso correto da razão compreendida como obra divina inscrita
a priori no ser humano. Portanto, buscou estabelecer conexões lógicas entre
os princípios por ele formulados de modo que suas ideias não se transfor-
massem num conjunto de conhecimentos contrários à religião dominante na
época, muito menos negassem os valores eclesiais.
Descartes (1999a) analisou a possibilidade de certeza da verdade a par-
tir da instauração da dúvida que, segundo ele, era decorrente da falha dos
nossos sentidos. E a certeza só poderia ser alcançada por meio do uso correto
da razão. Para tanto, a razão necessitava de se orientar a partir de um método
adequado.
Porém, Descartes (1999a) não ficou satisfeito apenas com a aparente
garantia que o método proporcionava. Ele acreditava que, apesar de haver
encontrado um método capaz de sustentar a verdade de um princípio, era
possível que ainda assim houvessem erros de compreensão. Ele diz: “Contu-
do, pode ser que me engane, e talvez não seja mais do que um pouco de cobre
e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos
enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os
juízos de nossos amigos” (DESCARTES, 1999a, p. 36).
O princípio da dúvida é justamente o sentido atribuído à seguinte ex-
pressão formulada por Descartes: “penso, logo existo”. Nela está inserida a
chamada dúvida metódica. Isso porque, mesmo não sendo cético em relação
ao conhecimento, Descartes atribuía grande importância ao ceticismo no

108 Exercícios de ser filosofia


sentido de que é necessário, a princípio, duvidar de tudo que nos é dado de
modo imediato (MARCONDES, 2010). Inclusive das nossas ideias, conclusões
e, a partir daí, encontrarmos uma resposta verdadeira.
Descartes (1999a), quando se referiu à dúvida enquanto um dos princí-
pios fundamentais na busca da verdade, foi enfático ao deixar claro que não
pretendia se assemelhar aos céticos: “Não que imitasse, para tanto, os céticos
que duvidam só por duvidar e fingem ser sempre indecisos: pois, ao contrá-
rio, todo o meu propósito propendia apenas a me certificar e remover a terra
movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila”. (DESCARTES, 1999a,
p. 58).
Assim, a expressão “penso, logo existo” foi elaborada por Descartes
(1999a) para demonstrar, a princípio, que ele duvidava até mesmo da sua exis-
tência. Porém, ao colocar a própria existência em dúvida Descartes chegou à
conclusão de que, se ele pensava, então, ele existia. A lógica desse raciocínio
era a de que, ao duvidar, ele estaria pensando. Portanto, havia uma certeza de
que pelo menos enquanto ser pensante ele existia. Descartes concluiu, assim,
que essa era uma verdade clara e distinta, ou seja, evidente.
Descartes (1999a) considerava a dúvida, portanto, a primeira atitude na
busca pela verdade. Ele afirmava que o primeiro passo para o entendimento
da realidade era justamente:

[...] o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu


não conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar
cuidadosamente a pressa e a prevenção, e de nada fazer
constatar de meus juízos que não se apresentasse tão clara
e indistintamente a meu espírito que eu não tivesse motivo
algum de duvidar dele. (DESCARTES, 1999a, p. 49).

Nessa passagem do Discurso do Método fica também evidente que, para


Descartes (1999a), a única possiblidade de obtenção da verdade era dada pela
razão. Isso significa que a experiência dos sentidos pode o tempo todo nos en-
ganar, e que sem uma análise racional pura não é possível obtermos a certeza
sobre as coisas.

Exercícios de ser filosofia 109


Descartes (1999a) definiu a “dúvida metódica” como a primeira regra
de seu método. No entanto, ele formulou outras três regras: dividir o obje-
to estudado em partes para que melhor pudesse ser analisado; analisar cada
parte dividida de forma a organizar seus elementos seguindo uma ordem de
complexidade e, por último, reunir as partes estudadas verificando a relação
entre todos os elementos analisados de forma a não desconsiderar nenhum
detalhe. Por último procederia a uma revisão metódica garantindo que nada
havia esquecido. Tais regras devem ser seguidas exatamente nessa ordem: 1.
Evidência; 2. Análise; 3. Síntese; 4. Enumeração.
Com a formulação do seu método Descartes (1999a) permitiu à episte-
mologia moderna uma nova visão de mundo baseada em princípios racionais
que se estendeu pelos séculos subsequentes.
No entanto, reiteramos que a necessidade de certeza da verdade que
motivou Descartes (1999a) a elaborar sua filosofia não consistiu numa ruptu-
ra completa com os valores da escolástica. Ele mesmo demonstrou isso quan-
do esclareceu que suas ideias estavam baseadas em quatro máximas, sendo
a primeira delas:

[...] obedecer às leis e aos costumes de meu país, mantendo-me


na religião na qual Deus me concedera a graça de ser instruído
a partir da infância, e conduzindo-me, em tudo o mais, de
acordo com as opiniões mais moderadas e as mais distantes
de excesso, que fossem comumente aceitas pelos mais sensatos
daqueles com os quais teria de conviver. (DESCARTES, 1999a,
p. 53).

Essa proximidade entre Descartes e os valores da escolástica, ou, mais


precisamente da religião, levou-o a desenvolver uma tese muito importante
no interior da sua filosofia que é a chamada “prova da existência de Deus”
abordada na obra Meditações metafísicas.
Para desenvolver essa tese Descartes retomou na quinta e sexta medi-
tações um princípio que, de acordo com Marcondes (2010), já havia sido em-
pregado anteriormente na escolástica por outros dois grandes pensadores:

110 Exercícios de ser filosofia


Santo Anselmo e São Tomás de Aquino. Esse princípio consistia na aceitação
primeira de que Deus é um ser perfeito. Contudo, a ideia de Deus é inata ao
ser humano e, de acordo com Descartes (1999b), já foi inscrita em nós pelo
criador. Assim, sustenta o seu argumento da seguinte forma: se é possível ao
homem ter a ideia de Deus, sendo ele um ser perfeito, é necessário, portanto,
que ele exista, pois, caso não existisse, ele não seria um ser perfeito, visto que
a existência é uma condição da perfeição.
No entanto, a prova da existência de Deus para Descartes (1999b) não
estava atrelada exclusivamente à fé. Portanto, não se esforçou para provar
a existência divina apenas porque ele mesmo acreditava nela, mas, princi-
palmente porque essa era uma condição necessária para a sua filosofia. Para
Marcondes (2010), ao provar a sua própria existência por meio do cogito, Des-
cartes permanecia no chamado solipsismo32, ou seja, ele provava apenas a sua
existência, mas não do mundo ao seu redor.
Assim, ao provar a existência de Deus, Descartes (1999b) conseguiu
romper com o solipsismo e afirmou a existência da realidade, possibilitan-
do o conhecimento científico do mundo. Além disso, nesse raciocínio Des-
cartes conseguiu demonstrar que o mundo natural era uma criação divina e
que poderíamos conhecê-lo por meio da razão. Na quarta meditação o filó-
sofo afirma: “E creio estar descobrindo um caminho que nos conduzirá desta
contemplação ao verdadeiro Deus (no qual todos os tesouros da ciência e da
sabedoria estão encerrados) ao conhecimento dos outros aspectos do Univer-
so”. (DESCARTES, 1999b, p. 291-292).
Com a superação do solipsismo presente no raciocínio do cogito foi pos-
sível a Descartes (2010) elaborar e justificar toda a estrutura de uma episte-
mologia baseada não apenas em princípios racionais, mas também susten-
tada em dados da própria realidade. Isso é de extrema importância não só
para avanço do seu pensamento, mas para a ciência de modo geral. Segundo
Marcondes (2010, p. 174): “O objetivo de Descartes, contudo, é fundamentar
a possibilidade do conhecimento científico, construir as bases metodológicas
para uma ciência mais sólida, mais bem fundamentada que a tradicional”.
32
ABBAGNANO, 2007, p. 1086 “Tese de que só eu existo e de que todos os outros entes
(homens e coisas) são apenas ideias minhas”.

Exercícios de ser filosofia 111


Na obra O discurso do Método Descartes (1999a) chegou a duas con-
clusões: primeiramente que era possível conhecer a realidade do mundo; em
segundo lugar que a única certeza de que as conclusões humanas são verda-
deiras depende do uso correto da razão orientado por um método seguro, tal
como o que ele havia desenvolvido.
Assim, a elaboração desse método provocou uma nova postura filosófi-
ca dos pensadores que, a partir de então, reconheceram a necessidade de uma
comprovação metodológica de suas conclusões.
Apesar da tensão presente no pensamento de Descartes entre os valo-
res escolásticos e científicos – e mesmo ele jamais abrindo mão de ambos –
é considerável que os resultados de suas obras proporcionaram muito mais
impactos no campo da ciência do que da religião em si.

Refletindo sobre a experiência filosófica de Descartes


A trajetória intelectual de Descartes pode ser considerada uma expe-
riência filosófica singular quando compreendida no contexto histórico em
que ele viveu. Refletir sobre essa singularidade é um exercício filosófico im-
portante que permite repensar as potencialidades da própria filosofia e suas
contribuições para a compreensão da realidade.
Conforme afirmamos anteriormente, as reflexões de Descartes carac-
terizaram o pensamento moderno e permanecem vigentes até os dias atuais,
mesmo depois de transcorridos mais de quatro séculos desde que foram de-
senvolvidas. Defendendo ou refutando-as, diversos trabalhos produzidos du-
rante esse longo período se referenciaram nelas. Sobretudo, em relação ao
método formulado por esse filósofo.
Conforme afirma Kohan e Costa Carvalho (2018a, p. 532):

Poucos filósofos tiveram um efeito tão marcante na semântica


do conceito de método como Descartes. O seu pensamento
confunde-se com o paradigma filosófico que caracteriza a
própria modernidade, pelo que o modo cartesiano de entender
o método (como um procedimento técnico claramente

112 Exercícios de ser filosofia


definido e com etapas sequenciais, à imagem das ciências de
caráter matemático que produzem conhecimento certificado)
extrapolou os limites da sua obra.

Portanto, independente da avaliação feita sobre o método ou a filosofia


de Descartes, uma coisa é certa: a sua produção intelectual ainda hoje motiva
novas reflexões filosóficas possibilitando novas experiências.
Mas, no que se refere à singularidade do seu pensamento o que chama
a atenção é a sua capacidade de criar um novo caminho para alcançar a ver-
dade orientando-se por critérios fundados numa concepção mais científica
da realidade, sem se opor, ao mesmo tempo, às ideias religiosas que ainda
prevaleciam na época.
O período vivido por Descartes foi marcado pela tensão provocada pe-
las perseguições religiosas na Europa das quais resultaram, inclusive, na con-
denação de Galileu Galilei por defender a tese do heliocentrismo. Essa tensão
preocupava excessivamente os pensadores da época em relação à defesa de
ideias que pudessem contrariar a autoridade da igreja. Inclusive, Marcondes
(2010) observa que Descartes desistiu da publicação de uma obra intitulada
Tratado do Mundo logo após saber da condenação de Galileu.
Diante disso a experiência filosófica de Descartes foi em certa medida
um risco que ele assumiu, apesar de toda a cautela que manteve ao argumen-
tar sobre suas conclusões nas obras que produziu. Mas, esse risco pode ter
sido exatamente a condição para a efetividade dessa experiência. Isso pode
ser concluído a partir da afirmação de Kohan numa entrevista concedida a
Dário Jr. e Silva (2018, p. 299) quando falava aos entrevistadores sobre as sig-
nificações da palavra “experiência”:

Tenho outra palavra que tem o mesmo radical de experiência


que é a palavra ‘perigo’, ou seja, isso sugere que quando fazemos
uma experiência, se fazemos uma experiência de verdade, ela é
perigosa. Significa que saímos de um lugar em que podemos
sentir certo conforto e não sabemos o lugar que vamos alcançar.
Então é um risco, uma experiência de verdade é um risco. Mas,

Exercícios de ser filosofia 113


de fato, há coisas interessantes na vida que só vêm quando
corremos alguns riscos, no conforto da inércia nada acontece.
Além do mais, há um tipo de riscos, em particular, os que dizem
respeito ao pensamento, que nos interessam particularmente,
os perigos que têm a ver com ideias, conceitos e pensamentos.
Já começamos nossa experiência.

Consideramos que Descartes desfrutou de uma experiência verdadeira


a partir do seu esforço intelectual com o intuito de produzir algo novo e que
significasse um avanço para a filosofia de seu tempo, apesar dos riscos dessa
atitude.
As próprias contradições presentes nas cosmovisões sobre as quais ele
articulou seu pensamento favoreceram as bases da sua experiência filosó-
fica. Em outro trabalho Kohan (2007) afirma que a criação do novo ocorre
justamente quando o pensamento encontra contradições, movimentando-se
entre o possível e o impossível. E, nesse sentido, ele conclui “[...] É na tensão
da contradição entre os dois extremos que algo nos força a pensar, nos faz
perceber o sentido e o valor de pensar algo não-pensado. E, assim, pensamos
como quem caminha sobre um fio composto pela consciência e a contradi-
ção”. (KOHAN, 2007, p. 88).
Mesmo considerando as limitações e contradições do pensamento de
Descartes apontadas por estudiosos que o sucederam não podemos negar o
avanço que suas reflexões trouxeram para o desenvolvimento da ciência e
da filosofia de modo geral. E, se levarmos em conta todas as transformações
estruturais da sociedade ocorrida nos últimos quatro séculos, bem como o
surgimento de novas correntes filosóficas, a permanência dos reflexos do
pensamento cartesiano pode ser considerada uma expressão da dimensão
desse avanço.
Assim, os esforços feitos por Descartes na luta pela realização do seu
propósito renderam-lhe a possibilidade de uma experiência única. E, cer-
tamente, sua produção intelectual tem proporcionado conteúdos de pensa-
mento e novas experiências filosóficas para tantos outros pensadores que se

114 Exercícios de ser filosofia


debruçaram sobre ela em contextos históricos muito diferentes daquele vivi-
do por esse filósofo.

Considerações finais
Ao analisar a filosofia de Descartes e expor as principais diretrizes do
seu pensamento no âmbito do contexto histórico do início da Idade Moderna,
procuramos demonstrar as circunstâncias polêmicas no âmbito da cultura
europeia em que esse filósofo conseguiu formular as bases de uma epistemo-
logia que permanece viva até a atualidade.
Da mesma forma, buscamos refletir sobre a experiência filosófica de
Descartes resultante da tentativa de desenvolvimento de algo novo que pro-
porcionasse um avanço significativo para a filosofia sem que, ao mesmo tem-
po, rompesse decisivamente com a filosofia cristã da época.
Ao discutir a relação entre tempo e experiência a partir de Deleuze,
Kohan (2007, p. 92) afirma que: “[...] A história não é a experiência, mas o
conjunto de condições de uma experiência ou acontecimento”. Considerando
esse raciocínio podemos afirmar que as condições objetivas do período his-
tórico que Descartes vivenciou constituíram os meios pelos quais lhe foi pos-
sível a experiência do pensamento na criação do novo pela ação do filosofar.
Assim, as assertivas de Descartes na sustentação lógica do seu méto-
do, bem como as reflexões acerca da possibilidade de se conhecer a verdade
a partir do uso correto da razão atreladas aos princípios da filosofia cristã,
tiveram seu significado histórico. Mesmo a estratégia da retórica cautelosa
adotada por ele como tentativa de contornar os riscos provenientes das per-
seguições religiosas precisa ser compreendida a partir das razões pelas elas
foram necessárias, e não simplesmente como mera resignação, por exemplo.
Reiterando, devemos a Descartes boa parte dos avanços que a ciência
moderna alcançou a partir da sua produção intelectual. Nas palavras de Co-
ttingham (1995, p. 11) “Descartes articulou alguns dos pressupostos centrais
daquilo que hoje denominamos perfil ‘científico moderno’; ao final da sua

Exercícios de ser filosofia 115


vida ele tinha, se não destruído, ao menos enfraquecido muitos dos princípios
sagrados da tradicional filosofia escolástica medieval”.
Diante do exposto até aqui, acreditamos que refletir sobre a experiência
filosófica de Descartes pode contribuir para a compreensão da evolução da
ciência enquanto forma dominante de explicação da realidade, bem como do
quanto ela dependeu das atitudes corajosas e arriscadas de muitos pensado-
res.
Por fim, esperamos que a presente reflexão incentive outros trabalhos
acerca da experiência filosófica de outros pensadores da história da filosofia
que tentaram ao seu modo, e a partir das condições possíveis de cada épo-
ca, responder às principais questões que intrigavam a sociedade. Para todos
aqueles que se arriscarem a realizar esses estudos, certamente essa também
será uma valiosa experiência.

Referências
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GOMES, P. M. História Geral das Civilizações: 2º grau e concursos vestibu-


lares. 10 ed. Belo Horizonte: Livraria Lê, 1977.

116 Exercícios de ser filosofia


KOHAN, W. O. Infância, estrangeiridade e ignorância – Ensaios de filosofia
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KOSHIBA, L; PEREIRA, D. M. F. O sistema feudal: crise e superação. In.


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MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wi-


ttgenstein. 13 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2010.

Exercícios de ser filosofia 117


09. DEVIR-SEM-TETO NA EDUCAÇÃO:
UM EXERCÍCIO FILOSÓFICO

Eric Machado Paulucci33

Isso é um abismo, isso é uma queda. Então a pergunta a fazer


seria: Por que tanto medo assim de uma queda se a gente não
fez nada nas outras eras senão cair? (KRENAK, 2019, p. 31).

Não superaremos o maior desafio da trajetória humana neste


planeta sem mudar a matriz de pensamento. Não sairemos do
abismo com o mesmo pensamento que nos levou ao abismo:
branco, patriarcal, masculino e binário. (BRUM, 2021, p. 97).

Nos últimos anos Eliane Brum, Ailton Krenak e tantos outros autores
têm me ajudado a notar algumas ignorâncias antes não percebidas. Uma de-
las diz respeito ao meu sedentarismo auditivo. Acostumado a escutar apenas
palavras, não decifro os sons dos rios; não respondo às montanhas; não re-
colho os signos da chuva; poucos são os animais que acredito me comunicar.
Quando muito, sou pego por uma das camadas do aniquilamento da Amazô-
nia ou de uma pandemia que perdura por mais de dois anos. Agora, sei que o
rio fala – e que também há quem o entenda -, mas eu, até o momento, não fui
capaz de entendê-lo. Aprendi que isso tudo tem a ver com minha maneira de
habitar a terra, atravessada pela branquitude e por um modo muito específi-
co de ocupar o espaço. Espaço ou terra ou casa ou corpo ou natureza, que no
íntimo, se não são a mesma coisa, são conceitos vizinhos que se conhecem
muito bem.

33
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Fede-
ral de Minas Gerais (UFMG). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
Escolar (FCLAr – UNESP – SP).

Exercícios de ser filosofia 119


Desde então tenho colocado cada parte do meu corpo para se esticar,
quem sabe a tensão dos membros faça emergir um outro funcionamento dos
sentidos menos familiarizados com o que parece já ser, e mais atento aos
acontecimentos guardados nos “entres” da vida cotidiana. Se para mim pa-
rece distante a linguagem dos rios e das montanhas, me dedico a abrir os ou-
vidos para os ruídos das cidades, ritmo que provoca em mim o pensamento.
Tal como os povos da floresta conhecem os encantos da Amazônia, desconfio
de que mesmo na mais infernal das cidades, algo acontece nos becos. Resta
algum encanto nas ruas que diagramam as cidades? Para muito, meu corpo,
urbano, demasiadamente urbano, sequer é afetado, mas há algo no modo de
organização das cidades que ganha minha atenção, manifesta um desconfor-
to e faz nascer um embrião de mundo pedindo respiração: dai-me um territó-
rio por onde eu possa transitar! Pode parecer loucura para alguns, mas penso
ser a consciência um espaço muito pequeno para sustentar a existência de
tantos mundos. Por alguns instantes a cidade convida a experimentar uma
fissura recém-aberta. Eu, ainda com medo, caminho em direção à fenda e na
medida que me aproximo dela vou firmando os passos como quem mal pre-
vê que está em vias de ser engolido. Uma vez devorado, nada voltará a ser o
mesmo: nem meus ouvidos, nem eu, nem a fenda, nem a cidade, nem a vida.

Notas sobre o pensamento


A vida é puro movimento, nós quem temos por prática estratificar os
acontecimentos em histórias a fim de construir um chão por onde possamos
passar. Tem mais a ver com um balanço que areja e “provoca a inversão das
lógicas do habitante da cidade, e até a inversão de nossa condição mais gene-
ralizada.” (GROS, 2010, p. 37). As passagens podem até parecer obstruídas,
entretanto, o movimento acontece ainda que imperceptivelmente. Em outras
palavras, a terra – e aqui incluo a cidade - sempre tem o que dizer. É nela, por
ela e com ela que somos inventados em um espaço de constante agitação, nos
sugerindo um saber do corpo, um saber configurado de acordo com os afetos
em relação à voz da cidade.

120 Exercícios de ser filosofia


Triste é quando todo som não passa de barulho. Triste mesmo é quando
deixamos de ouvir até mesmo o ruído. O ruído tem o potencial de fazer o cor-
po estranhar, mas aquele que por nada é abalado tende a viver por metanar-
rativas. Se nada abala a ordem, duvide da existência de vida. A paz não é a paz
dos cemitérios, e a vida é vibração molecular.

Uma das coisas que mais me entristece hoje é ver uma casa
infeliz, e uma casa infeliz é aquela que você entra e está tudo
arrumado. É uma casa sem uso. Você vai à sala e as almofadas
estão no lugar, como se a revista caras fosse entrar para
fotografar, uma casa que não tem nada fora do lugar é uma
casa morta. Onde há vida, há perturbação da ordem. Aliás, a paz
não é a paz dos cemitérios, e a vida não é a do congelamento da
criogenia. Vida, é vibração, vibração é movimento molecular e
nessa hora, a casa em ordem, é uma casa triste, é a casa que não
se vive mais nela, para muita gente o lugar de estar feliz em
algumas situações.34

Como em um quadro que pretende explicar a verdade sobre as coisas,


uma casa arrumada tem cara. Sob o quadro, fixamos um modelo de ordem e,
sem percebermos, nos encontramos desesperados por manter as almofadas
no lugar. E que lugar é este que não pode ser outro? Numa tarde de verão, só
poderíamos experimentar a felicidade de sentir nossa pele colando no piso
gelado se empurrássemos as almofadas para o chão, fazendo-as responder a
um critério de ordem que respondesse mais a problemas variáveis que a um
papel essencial.
Encontrando ressonâncias nas filosofias da diferença, não quero espe-
rar por um caminho de redenção que esconde o novo. Pouco pode nos ofe-
recer o medo pelo incerto ou a receita do sucesso. Toda matéria-prima para
ser e estar no mundo de outra maneira está aqui, se não pronta, pedindo para
ser fabricada. Basta habitar a pele da cidade para que ela produza em nós

34
Palestra de Mário Sérgio Cortella. Disponível em: https://www.youtube.com/wat-
ch?v=Zv0zDodNLKQ (min 52:43). Acesso em 01 de setembro de 2022.

Exercícios de ser filosofia 121


um sussurro que nos leve a esperançar35, quer dizer, para tornar nossa vida
imprevisível e, no entanto, menos colonizada, é conveniente ampliar nossa
sensibilidade para encontrar, nas formas de se relacionar e estabelecer trocas
com os outros seres, novas possibilidades de realizar composições. Não há
equilíbrio a ser alcançado, trata-se mais de uma brincadeira de desequilíbrios
que constituem territórios existenciais.
Nessa direção, a cidade é terra que reúne elementos num mesmo abra-
ço, se servindo de um ou de outro para (re)configurar o território (DELEUZE;
GUATTARI, 1992), território este tecido junto de uma estrutura do pensa-
mento. É um espaço vivido, é um sistema de hábitos, é uma atmosfera que nos
faz sentir em casa. Aliás, enganam-se os homens que confiam chegar primei-
ro para definir o que é uma casa, tendo como referências as grandes cidades
do Norte global. Mesmo o conceito de casa só é em iminente transmutação:
seu mistério se revela, não por completo, em uma realidade organizada pela
sedução entre conceitos adjacentes que se tocam e se atualizam de acordo
com a sua (a)efetividade.

Para Otávio das Chagas [beiradeiro], casa é o telhado de babaçu


e também o ar que entra pela porta jamais trancada, são as
fruteiras da floresta e os peixes no rio, é a roça e a liberdade
de não ir pra roça. É a cutia e a paca no mato. O canto dos
macacos guaribas na madrugada. Casa também são os vizinhos
e as brincadeiras ao pôr do sol. É o futebol dos meninos e das
meninas. É onde se amarra a rede para quem chegar. Mas essa
casa não estava inscrita nos papéis dos homens da empresa.
Quem é que diz o que é uma casa? Quem diz o que é aquele que
é? (BRUM, 2021, p. 89).

Casa e telhado e ar e porta e roça e vizinho e futebol e meninos e pôr do


sol e e e... Conhecendo a infinidade de elementos que podem se instalar em
uma noção de casa, não respondemos mais à frase “a casa é”. Trocamos o ver-
35
Paulo Freire me parece um bom ouvinte da vida. Certa vez me convenceu de uma
esperança ativa, que se levanta, vai atrás, constrói e não desiste. “Esperança do verbo
esperançar, […] levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro
modo…” (FREIRE, 1992, s. p.).

122 Exercícios de ser filosofia


bo “é” pela conjunção “e” e assim, a casa ganha sentido em prática. Torna-se o
próprio verbo. Viajamos, complexificamos nossas relações, expandimos nos-
so campo perceptível, sem levar a casa nas costas. Quer dizer, o pensamento
finalmente se dá por conceitos [encadeamentos interdependentes] e não mais
por imagens [representações supostamente inanimadas]. Vamos ao centro,
bagunçamos o centro, e voltamos às margens trazendo conceitos e suas per-
tinências em um novo contexto. Neste prisma, esta viagem coloca em cinesia
nosso próprio processo de subjetividade, não por vontade própria, mas pela
invasão de um novo ser rasgado em nós. Eis um exercício filosófico.
Tratando-se de uma situação que envolve o pensamento, não são os fi-
lósofos ou os educadores os únicos interessados na temática. Enquanto ten-
to convencê-los de que o movimento é real, o capitalismo se aproveita dele
para produzir seres fortes no campo econômico, mas sem nenhuma força no
campo político36. Nem tudo na máquina capitalista é estratificação. Ela opera
não só por códigos, contudo observa e mapeia os promissores “produtores de
novo” para que eles possam ser úteis a sua lógica de acúmulo de capital. Ora o
capitalismo opera reduzindo nossas necessidades a um núcleo de preocupa-
ções inventadas pelo neoliberalismo37, desdobrando a produção de um grupo
de narcisistas tementes as transformações que rompam com sua autoima-
gem. Ora o capitalismo usa dessa subjetividade identitária para colocar, no
fronte das decisões macropolíticas, conservadores que facilitem a servidão
do Estado em relação ao mercado e à valorização dos modos de vida consu-
mistas.
Tão intensa é essa articulação que uma megamáquina social permanece
atenta a qualquer fluxo que tente trair o jogo do capitalismo. Nosso pensa-
mento é minado ao ponto de sequer imaginarmos uma outra vida que não
seja essa conduzida pelas métricas coloniais de posse. A pedagogia do oci-
dente, por exemplo, é a pedagogia do capital: muito embora a sala de aula seja

36
Claudio Ulpiano – Pensamento e Liberdade em Spinoza. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=oBDEZSx6xVs&t=5861s. Acesso em 01 de setembro de 2022.
37
Não faltam exemplos de preocupações inventadas: a crise da economia como anor-
malidade ou irresponsabilidade; a insegurança; os “insultos” contra a moral e os bons
costumes; etc.

Exercícios de ser filosofia 123


um cruzamento de forças com potencial de fissurar a prescrição e liberar a
vida, a educação parece querer findar o caos. Paradoxalmente, este espaço li-
bertário pode também nos limitar a um desejo de ocupar um papel meritocrá-
tico na hierarquia arquitetada pelo jogo do mercado. Desta perspectiva, uma
tensão abre nosso apetite para gozar de uma filosofia da educação que convo-
ca os “metodólogos, sociólogos, filósofos, psicólogos, historiadores, cientis-
tas políticos, além dos chamados ‘especialistas em educação’” (GALLO, 2000,
p. 62) para correr o risco de complexificar a percepção, ampliando também
a capacidade de pensar de seus atores para além do arranjo preestabelecido.

Poéticas sem-teto: uma vez devorado, nada voltará a ser o


mesmo
Do desejo de estabelecer alguma troca com a cidade, tropeço na voz de
um movimento social que me cativa. Em direção à fenda percebo um som
diferente, um grito. Não o grito de um sem-teto, mas o grito que ganha in-
tensidade na carne de uma luta. Por uma educação autoral, na qual tenha-
mos o direito de dizer o que foi dito, e mesmo o que não foi dito, de um modo
que seja nosso, retorno aos ruídos da cidade para pensar os processos de
coengendramento que atravessam a educação e as metrópoles. No processo,
encontrar as manifestações sem-teto inaugura em mim uma nova camada,
desta vez afetada por existências que indisciplinam espaços, fazendo oscilar
um Brasil onde 6.273.000 famílias sem casa, contrastam com os 7.351.000 de
imóveis vazios (BOULOS, 2014, p. 17). Mais uma vez o pensamento se desen-
rola por conceitos: pensar outras pedagogias atentas à reinvenção da cidade,
das nossas relações com a natureza ou dos nossos valores estéticos, traz para
perto a resistência do sem-teto, personagem sensível às práticas de ocupação
e de luta por moradia digna.
O que faz o povo sem-teto? Esta é uma pergunta que não para de ressoar.
Faltariam páginas neste texto para descrever as práticas e estratégias desse
povo que enfrenta os mais diversos tipos de preconceitos. De mais a mais, me
parece menos pretensioso escrever apenas sobre o que eles têm me ensinado.
Apesar de toda admiração pelo robusto sistema de resistência que inclui ou-

124 Exercícios de ser filosofia


tros ritmos à cidade, quero pensar uma aproximação com o movimento social
não efetuada pela captura de um modelo de justiça ou de construção de uma
identidade; minha intenção é compartilhar um espaço-tempo comum, onde
sejamos capazes de explorar a linha de fuga que é o devir-sem-teto.
Como escapar e desterritorializar, efetivamente, a vida-metrópole?
Exatamente, não sabemos. Logo, ao invés de imitar formas, nos cabe expe-
rimentar devires. Não imitaremos o fazer do povo sem-teto, mesmo porque
essas pessoas não se concentram em ocupar os espaços por vocação ou por
vontade. Reivindicam o direito à cidade porque se veem frente a um esgota-
mento causado por uma política urbana extremamente extrativista, exclusiva
e subserviente ao capital. Ocupar, portanto, não é invadir. Ocupar, além de
um ato de transgressão das áreas sem função social para movimentar inte-
rações nas/das vivências coletivas, traduz-se em uma necessidade vital. Tal
como nosso corpo biológico rejeita o contato com determinadas comidas e
bebidas, prevendo a má composição que elas podem gerar, o militante sem-
-teto também encontra o seu intolerável. Frente à necropolítica (MBEMBE,
2018) dissolvida nos modos de organização da cidade, passam pela experiên-
cia ética e política de não encontrar outra alternativa senão inventar sua pró-
pria maneira de romper com o sistema de distribuição de terras urbanas.
São pessoas que para preservar a vida, reviram sua existência e apren-
dem a brigar. Uma vez forçados a estar na guerra, sua paz deve ter um gosto
diferente. No meio de uma crise, onde nada mais parece possível, a briga pode
figurar um outro agenciamento que nada tem a ver com a discussão. Colocam
um desvio no caminho obsceno, mas habitual das coisas. Escolhem as lutas
que valem a pena e nos ensinam que a submissão não é uma opção.
Sendo o movimento dos sem-teto, justamente, um movimento, nossa
relação não é de interpretação, é de contágio. Um devir-sem-teto: à medida
que um professor deixa sua estrutura para aprender algo da luta, a luta se
transforma tanto quanto o professor. “Os devires não são fenômenos de imi-
tação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela,
núpcias entre dois reinos (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 10).

Exercícios de ser filosofia 125


Devir-sem-teto é entrar em contato com a terra para encontrar nela o
recomeço. Num dia, a ocupação está como um enxame, cheia de ideias, pul-
sante. No outro, o movimento aparente se apresenta mais calmo, parado, mas
andando. O importante é que um terreno nunca morre, no menor sinal de tris-
teza, o sem-teto inventa logo uma brincadeira. Coloca todo mundo para correr no
meio da ocupação. É guerra de água, é garrafão, esconde-esconde, é pau na lata.
Toda a vida ele inventa uma brincadeira diferente38. Olha para o céu e brinca de
desenhar nas nuvens; ergue os olhos e se dá conta de que mirar as estrelas,
daqui do chão, é uma das poucas coisas que ainda não foram moneterizadas.
Por ser capaz de olhar para cima e ver o céu é também capaz de trazer um
pouquinho de infinito para a cidade (PAULUCCI, 2022). De qualquer manei-
ra, a cada brincadeira que repete, a terra e o território sofrem desvios e dife-
renças. No fim do dia, todos voltam para casa carregando consigo uma dobra
nos modos de atuar em comunidade. Para o sem-teto não há luta ganha, nem
luta perdida, há (re)começo de luta. Porque se mantem à espreita, desterrito-
rializa sem ter medo da retorritorialização.
Um militante que não possui casa própria ou que vive em situação pre-
cária de domicílio, recorre à macropolítica para exigir o cumprimento dos
parâmetros da dignidade humana, reconhecidos na Declaração Universal
dos Direitos Humanos. Busca na organização extensiva das cidades, cenários
para que uma vida digna seja garantida. Em outro rumo, mas não tão distan-
te, vive em seu devir-sem-teto a manutenção de um espaço intensivo. Mobili-
za afetos para (re)introduzir no quadro urbano uma geo-metria sentimental.
Cada medida subjetiva, seja legislativa, geográfica, econômica ou matemática
questiona, por dentro das territorializações capitalísticas, os modos indivi-
dualistas de nos relacionarmos com a terra. Contribui para que a cidade não
possa mais ser pensada sem os dinamismos que a torna multiplicidade.
Seu saber não é ideia-produto, é aprendizagem emergente. Não possui
um tempo específico, ainda em curso, costura presente, passado e futuro.
38
Palavras de Claudia Garcez transcritas por mim. Claudia experimenta o devir-
-sem-teto sendo coordenadora estadual do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
(MTST). Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/11/apos-polemi-
ca-mtst-organiza-novo-almoco-com-camarao-para-moradores-de-ocupacao-em-sp.
shtml. Acesso em 01 de setembro de 2022.

126 Exercícios de ser filosofia


Ocupados em estudar seus próprios problemas, produzem uma educação ou
uma filosofia que são, antes de tudo, uma prática de potencialização da exis-
tência. Por não separarem o território da terra, sentem a emergência de uma
educação à brasileira que encontra, na economia da escolarização moderna,
brechas para insurreição do novo. Reencantam a hegemonia da ciência para
fazê-la funcionar ao modo sem-teto: explorando seu território e sua vizi-
nhança, indo adiante das caixas de ferramentas de descrição e quantificação.
O sem-teto pesquisa constrangendo uma sociedade mais apreciadora da pro-
priedade do que da vida.
Temos aqui um mestre na malandragem, no sentido mais positivo.
Emancipando-nos das cargas neoliberais do termo resiliência, prefiro a bra-
silidade da palavra malandragem para descrever o exercício da força política
do sem-teto. Como é a própria paisagem, conhece tão bem os ruídos da cida-
de que dialoga com seus habitantes adentrando desde a camada mais popular
à classe média mais chauiana. Por um lado, povoa uma linguagem acessível e
igualmente sensível às vivências do povo. É especialista no tom da conversa,
sabe ouvir e ser ouvido com simplicidade. De outro modo, penetra os mais ca-
pitalistas processos de subjetividade, lembrando-os de sua participação nos
problemas urbanos. O desconforto manifestado em alguns neste interim não
é outra coisa senão um sintoma do medo de uma ação coletiva que correspon-
de a um promissor vetor de variação.
Disso decorre o valor coletivo de um devir-sem-teto. Cada itinerário
traçado pela cidade funciona como um atrator de pessoas para suas causas,
indo além de uma questão de identificação. Permeada por desejos que apon-
tam em diferentes direções, por vezes em direções desconhecidas, uma ocu-
pação está menos associada às convergências absolutas e se faz nas relações e
experimentações vividas cotidianamente. Um sem-teto não se mobiliza ape-
nas para si, mas reorganiza um corpo erguido sob diálogos dissidentes. Sua
distribuição do espaço quer encontrar metrias de trair a cena onde apenas
determinados personagens tem o poder e o reconhecimento para estabelecer
os sentidos das coisas na construção de uma cidade comum.
Ainda que se possa reconhecer posturas contribuintes com a mercan-
tilização predatória, não interessa para um devir-sem-teto eleger algo ou al-

Exercícios de ser filosofia 127


guém para atribuir a culpa. Seu projeto maior não focaliza um sujeito nem um
objeto. Tendo em vista a pobreza produzida pelo neodesenvolvimentismo,
mesmo nos Nortes globais, temos como alternativa à vontade de tornar-se
Norte, a possibilidade de aprendermos em rede com aqueles que preservam
a capacidade de ver a vida por outras óticas. Povos de subjetividade coletiva
ainda sensíveis ao saber-do-corpo, saber este constituído na luta.

***

Mas e agora? Depois de passear pelas costuras de um devir-sem-teto,


o que convêm, em suma, “sem-tetizar” na educação? Aos que chegaram até
aqui para voltar para casa com um caminho sugerido, lamento decepcioná-
-los. Minha única expectativa com esta escrita é encorajá-los a conhecer suas
próprias fendas. Não consistindo, o devir, em um conteúdo e menos em um
conjunto de técnicas nas quais são incorporadas posições, muitas podem ser
as aprendizagens da educação com o povo sem-teto. Se o devir não tem um
estado final, não nos prestamos a função de pastorar: “venham por aqui”. Até
o húmus da terra desta escrita é datado, na verdade, foi inaugurado outrora e
só agora tive condições de percebê-lo.
Hoje, deixar que as partículas do sem-teto entrem em ressonância com
as nossas para inaugurar uma outra educação, significa fazer da escola um
espaço de luta. Com isso me refiro a sensibilidade de um currículo que sente
as violências das formas de organização da cidade e nos provoca a problema-
tizar os agenciamentos capistalísticos da educação. Não se trata somente da
integração de saberes; interessa escapar do pensamento que dá lugar a apatia
de nossas vidas em relação ao espaço que ocupamos. Sobre a avareza de uma
formação para a participação no mercado, alguém ainda arriscaria uma (re)
volta? Cabe um devir-sem-teto toda vez que nos vendem a naturalidade de
uma vida morna. Voltemos a escutar nosso corpo e para isso, levemos ao limi-
te nossa percepção sobre o espaço. Mais uma vez: espaço ou terra ou casa ou
corpo ou natureza, são conceitos vizinhos que dão vazão um ao outro.

128 Exercícios de ser filosofia


Não há a menor possibilidade de devir-sem-teto na educação excluindo
a existência do outro. Recomeçar a luta, local e provisoriamente, é sempre
agarrar uma surpresa desencadeada pela explosão em comunidade. “Partir,
abrir, devir, sozinho não tem a menor graça. Ensinar é buscar companhia
para paixões. Quem ensinou algo sempre estará naquilo que quem aprende
leva” (ZORDAN, 2009, p. 37). Uma sala de aula só forma coletivo, quando seus
integrantes exercem a malandragem de encontrar no desejo do outro passa-
gem para se fazer ouvir.
Pode ser interessante entrar em devir-sem-teto junto da educação? Sem
dúvidas. Mas que aconteça com prudência. Tirar o teto, pode sim, revelar um
problema singular no infinito das estrelas, entretanto isso deve ser feito de
maneira que não percamos o contato com o chão. Nós pertencemos à terra
e, se ela apequenarmos, nosso edifício inteiro corre o risco de desabar em
nossas cabeças.
Que nos reste ao menos a arte da resistência. Uma educação se reúne
com um elemento aqui, faz alguém rir, uma outra educação combina com
uma máquina acolá e faz alguém chorar. É aí que está a beleza da criação:
conhecer formas de fazer um devir-sem-teto funcionar. O que vale é com-
plicar o pensamento com aprendizagens coletivas, fazendo da educação um
território que ao contrário de dizer sobre a escola, sobre a filosofia, sobre a
matemática, as cidades ou os sem-teto, dá passagem para que o desejo produ-
za verdades estilhaçadoras de disciplinaridades.

Referências
BOULOS, G. Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos sem-teto. São
Paulo: Scortecci, 2014.

BRUM, E. Banzeiro òkòtó: uma viagem à Amazônia Centro do Mundo. 1ª ed.


São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro, São Paulo:
Escuta, 1998.

Exercícios de ser filosofia 129


DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é Filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Al-
berto Alonso Muños. Editora 34, 1992.

FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: reencontro com a Pedagogia do Opri-


mido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

GALLO, S. O que é Filosofia da Educação? Anotações a partir de Deleuze e


Guattari. Perspectiva, v. 18, n. 34, p. 49-68, 2000.

GROS, F. Caminhar, uma filosofia. Trad. Lília Ledon da Silva. São Paulo: É
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KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora Compa-
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MACHADO, M. Claudio Ulpiano: Pensamento e Liberdade em Spinoza (com-


pleto), 2016. (1h49m42s). YouTube, 13 Mar. 2014. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=oBDEZSx6xVs&t=5879s . Acesso em: 27 ago. de
2022.

MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política


da morte. Trad. Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.

PAULUCCI, E. M. Poéticas sem-teto: ocupar e movimentar e aprender ma-


temáticaS. 2022. 149f. Dissertação (Mestrado em Educação Escolar). Univer-
sidade Estadual Paulista. Araraquara, Brasil, 2022. Disponível em: https://
repositorio.unesp.br/handle/11449/216770.

SEMPRE UM PAPO. Frei Betto, Leonardo Boff, Mario Sérgio Cortella no


#Sempre Um Papo / Parte 2. (1h03m11s). YouTube, 12 jun. 2016. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=Zv0zDodNLKQ. Acesso em 24 ago.
2022.

ZORDAN, P. Ensinar. In: CORAZZA, S.; AQUINO, J. G. Abecedário: Educação


da Diferença. Campinas: Papirus, p. 36-38, 2009.

130 Exercícios de ser filosofia


10. PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO
EM CONTEXTOS DE PRIVAÇÃO DE
LIBERDADE

Carolina Cunha Seidel39

Introdução
O interesse pela escrita deste artigo surge como forma de retomar um
pouco do caminho e experiência como integrante do Grupo de Estudos e Pes-
quisas em Filosofia para Crianças (GEPFC) nos últimos 19 anos, tempo em
que participei como estudante de graduação, mestrado, doutorado e sigo vin-
culada como pesquisadora.
Considero este grupo um espaço potente, por variados motivos. Inicial-
mente, por garantir o tripé – ensino, pesquisa e extensão na universidade,
articulando na área da educação, saberes essenciais para formação integral
do profissional pedagogo. Ainda, temos neste grupo algo que, durante minha
trajetória em diferentes espaços universitários, pouco me deparei, que é a ca-
pacidade de dialogar para além dos muros da universidade sem prescritivi-
dade, articulando educação, filosofia e vida de forma ampliada e horizontal.
Rompe-se com a lógica da educação transmissora de conhecimentos
formais e necessários para o mundo do trabalho, útil, hierarquizada e cria-se
a educação questionadora, construtora do conhecimento e experiência. Há
uma relação horizontalizada, de compartilhamento, troca, uma brecha, um
espaço de fuga aos procedimentos homogeneizantes.

A escola que se nos apresenta tem intencionalidades


formativas que sobram, transbordam e se espalham, porém,
tais intencionalidades transfiguram o pensamento, tentam a

39
Doutora e Pós-doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar
(FCLAr – UNESP – SP). Pedagoga na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
onde atua na Coordenadoria de Diversidade Sexual e Enfrentamento de Violência de
Gênero (PROAFE -SAAD).

Exercícios de ser filosofia 131


todo modo castrá-lo, submergi-lo, domesticá-lo, fechá-lo,
concluí-lo. Em contrapartida, o que uma escola-casa-da-
formação profana, ou suspensa se propõe a fazer, ou a pensar
é uma intencionalidade formativa que seja a própria abertura,
o olhar desnudo para o conhecimento, a inconformidade.
(SONEGO, 2016, p.6).

Importante lembrar que, durante sua trajetória, o GEPFC construiu


caminhos alternativos para se fazer filosofia, produzindo material literário
e visual, mas também procurando nas diversas linguagens artísticas, pistas
para um fazer filosófico vivo e contemporâneo. Diversos níveis e modalida-
des de ensino foram campo de atuação e pesquisa durante esses anos, e esta
perspectiva foi meu ponto de partida e interesse por entender os processos
de subjetivação possíveis em grupos de pessoas privadas de suas liberdades.
Para tanto, procurei, inicialmente, pensar esta questão com um grupo
particular formado por adolescentes infratores cumprindo medidas socioe-
ducativas na Fundação CASA40, com o objetivo de compreender de que forma
a percepção destes sujeitos sobre eles mesmos é permeada pelo contexto e
suas implicações.
Inclusive, ressalto que estas relações entre as juventudes e os espaços
sociais, foram desenhando minhas pesquisas futuras, já que, durante o per-
curso, percebi que a imagem do adolescente marginalizado, privado de bens
culturais e materiais, se constrói socialmente de forma bastante específica,
haja visto que existe um intenso processo de silenciamento e invisibilização,
evidenciados desde o primeiro contato.
Em seguida, a escolha foi investigar junto com adultos presos, matri-
culados em salas de aula de EJA (Educação de Jovens e Adultos), instaladas
dentro de uma penitenciária brasileira no estado de SP, quais as questões que
os tocam, os sensibilizam, os movem.
Neste cenário, a partir da mesma metodologia que proporcionava espa-
ços de troca e encontro intencional, estive junto a uma turma da modalidade,

40
Centro Atendimento Sócio-educativo ao Adolescente, nova denominação para anti-
ga FEBEM (fundação do bem-estar do menor).

132 Exercícios de ser filosofia


acompanhando alunos-presos, e, junto com eles, criando possibilidades para
uma investigação coletiva sobre os significados da escolarização para esses
adultos, quem eles são, como se percebem, quais seus mecanismos de subje-
tivação e desdobramentos possíveis.
Assim, a partir das noções inaugurais aqui apresentadas, temos nosso
ponto central desta escrita: Quais mecanismos de subjetivação possíveis em
contextos de privação de liberdade? O que representa o cárcere para o ho-
mem?
Michel Foucault nos acompanhou nessas quase duas décadas de estu-
dos, sendo nossa fundamentação teórica principal e esclarecendo que as rela-
ções se estabelecem por tensões, nas quais indivíduos assumem papéis deter-
minados e determinantes. Faz-se necessário perceber, portanto, como atuam,
quais são seus interesses e o que fundamenta suas práticas que acontecem a
partir do tecido de relações que vai sendo construído por e para cada um dos
interessados, de que forma cada indivíduo “torna-se” sujeito.
A partir da análise sobre as “formas de subjetivação”, que poderíamos
também chamar de noção de pessoa, desembocamos na questão do tempo
e do corpo, pois, para o filósofo, ambos se relacionam com a subjetividade.
Acreditamos que os encontros propostos, tanto na Fundação CASA,
quanto na Penitenciária, nos forneceram pistas e elucidaram questões para
as pesquisas desenvolvidas, mas também questionou as mesmas, conside-
rando que as intervenções na cena política e social têm sempre em vista uma
atitude de diagnóstico, unindo os conceitos de coragem e verdade, quando
sugere que haja paralelamente ação e escritura.
Nesta nova forma do fazer científico uma nova modalidade de intelec-
tual é produzida, em que o diagnosticador recria sua relação com a realidade
e também com seu próprio corpo.

O intelectual me parece atualmente não ter o papel de dizer


verdades, de dizer verdades proféticas para o porvir. Talvez o
diagnosticador do presente [...] pode tentar fazer as pessoas
entenderem o que está se passando, nos domínios precisos onde

Exercícios de ser filosofia 133


o intelectual é competente. Pelo pequeno gesto que consiste em
deslocar o olhar, ele torna visível o que é visível, faz aparecer
o que é próximo, tão imediato, tão intimamente ligado a nós
que, por esta razão, nós não o vemos. [...] O físico atômico, o
biólogo para o meio ambiente, o médico para a saúde devem
intervir para fazer saber o que se passa, fazer o diagnóstico
para anunciar os perigos e não justamente para fazer a crítica
sistemática, incondicional, global. (FOUCAULT, 2004, p.18).

É como se aceitássemos que o acontecimento dita seu próprio discurso


durante a operação de diagnóstico. Ao sermos defrontados com a realidade
durante a realização dos encontros comentados, um outro olhar emergiu. É
justamente a tensão entre estrutura e acontecimento que permite que, caso
estejamos atentos, manifestações de realidade aconteçam. E com elas uma
escrita que pretende se aproximar ao máximo do outro lado da história, re-
tratando o lado que escuta quem vive contar, que pretende olhar a realidade a
partir dos olhos que veem e vivem o lado de dentro destas instituições totais.
Ao ouvir os acontecimentos, e não as estruturas, amplificamos a voz dos
sujeitos e assim tentamos nos aproximar dos meandros que residem no inte-
rior do discurso e que falam por si. Voltamos assim nosso olhar para a ruptu-
ra, para o descontínuo, para o momentâneo e transitório.

Encontros filosóficos com adolescentes privados de


liberdade: Fundação CASA
Numa tentativa de construir um espaço (ainda que singelo) de entendi-
mento junto com jovens infratores, privados de liberdade, criamos, durante a
pesquisa, uma pequena comunidade de investigação, com o intuito de refletir
sobre as histórias, percursos e atravessamentos, precedentes e também du-
rante a internação.
Para isso, utilizamos materiais de apoio, tais como trechos de livros e
imagens, que despertavam o desejo de conversarmos juntos sobre como estes
adolescentes, privados de tantas coisas, se percebem, constroem - se é que
constroem - suas identidades, se enxergam através de seus olhos e dos olhos

134 Exercícios de ser filosofia


dos que os observam. E ainda, pensarmos quais os pontos de inauguração e
pontos de dobras.
Tentamos acompanhar, portanto, o movimento feito por Foucault para
o entendimento dos mecanismos de subjetivação destes sujeitos, inicialmen-
te os compreendendo a partir das técnicas de sujeição e individuação, e de-
pois, a partir do deslocamento para práticas de autoformação desse sujeito.
Exercícios de liberdade a partir das relações intersubjetivas voltadas para um
exercício sobre si – a dobra, pelo qual se busca o seu modo de ser.
Temos então, antes do sujeito, processos de subjetivação e de assujeita-
mento, sendo o primeiro constituído pelas linhas de força que os indivíduos
fazem dobrar sobre si mesmos e o segundo pelas composições de forças con-
jugadas nos dispositivos de poder-saber.

Se analisamos a maneira como o sujeito se relaciona, se


comporta com o outro, em suas dimensões sociais e identitárias,
nos dedicamos a entender como funciona a maneira ativa do
indivíduo constituir a parte mais secreta de sua subjetividade,
compreendendo por subjetividade “a maneira pela qual o
sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de verdade,
no qual ele se relaciona consigo mesmo.” (FOUCAULT, 2004,
p. 236).

O sujeito é, portanto, constituído a partir de práticas que lhe são exte-


riores e que lhe subordinam e ao mesmo tempo por práticas de si que são
relações interiores e autônomas. As maneiras de constituição do sujeito e da
subjetividade são fundadas em instâncias exteriores, mas também no interior
do próprio sujeito.
À época, entendemos que a metodologia desenvolvida pelo grupo e uti-
lizada em outros campos, nos oferecia os recursos necessários para inaugu-
rar com os adolescentes um processo dialógico investigativo, aprofundando
reflexões, buscando a coerência dos argumentos e a autocorrecão em grupo.
Percebemos ainda que, com a filosofia, a capacidade de abstração, criativida-
de, cooperação e autoconhecimento desenvolvia-se de forma crescente.

Exercícios de ser filosofia 135


Partindo destas observações, podemos pensar um pouco sobre os pro-
cessos de representação ali envolvidos. Acreditamos que a tomada de cons-
ciência oportuniza pensarmos em alguma atividade crítica no presente. Para
Michel Foucault, a atividade da crítica filosófica precisa se defrontar com a
necessidade de um diagnóstico de nossa atualidade ou traçar uma ontologia
do momento presente, diferenciando o momento atual do passado.
Nossas principais questões nos encontros foram: Como nos vemos?
Como nos percebemos? Como nos transformamos a partir de nós mesmos
e do que nos cerca? Estas são questões de cunho político e devem ser trata-
das por toda a filosofia que, deste modo, identifica a problematização de uma
atualidade e a interroga, podendo assim caracterizar a filosofia como discur-
so da modernidade e sobre a modernidade.
Adentramos na instituição, portanto, com a intenção de criar um espa-
ço em que os adolescentes pudessem falar com liberdade, transportando-se
além de um diálogo de cartas marcadas. Nada nos pareceu mais adequado
do que os encontros de filosofia. E, de fato, com eles conseguimos observar
e compreender um pouco dos olhares dos adolescentes, suas práticas e suas
percepções de mundo.
Ressaltamos que não nos interessa exatamente caracterizar estes ado-
lescentes e nem mesmo a Fundação CASA – apenas queríamos que este grupo
situado nesta instituição nos fornecesse pistas para compreensão de nossa
questão mais ampla.
Se as relações se estabelecem por tensões, nas quais indivíduos assu-
mem papéis determinados e determinantes, precisamos perceber, portanto,
como atuam, quais são seus interesses e o que fundamenta suas práticas que
acontecem a partir do tecido de relações que vai sendo construído por e para
cada um dos interessados, de que forma cada indivíduo se subjetiva.
É através das relações e práticas que os constituem que podemos che-
gar aos sujeitos em si. Portanto, essas devem ser tomadas como ferramentas
operadoras – quer de dominação, quer de libertação – moldando relações de
poder cujo resultado final será uma dada forma de sujeito. Se for por opera-
ção dominadora, a modalidade que produz o sujeito será a do assujeitamen-

136 Exercícios de ser filosofia


to; se for libertadora, será a da subjetivação. Nos dois casos sempre se supõe
práticas tomadas por elas mesmas, e nunca a partir de sujeitos plenamente
reconciliados consigo.
Assim, conseguimos, junto com os adolescentes, compreender sobre as
formas que a suposta reinserção social e educacional que têm, na verdade, a
função principal de docilizar e normatizar, com ações simuladas e taxadas
como conscientizadoras. Ainda construímos uma noção inaugural a respeito
do que seriam ações libertadoras neste cenário, e as possibilidades de encon-
trar meios, por menores que sejam, para tal. Nos pareceu que a tomada de
consciência do processo de normatização, onde há reflexão sobre as ações,
antes vazias, é também libertadora.

A escola no cárcere e suas contradições


É sabido que as prisões, tais como estão configuradas hoje, representam
a promoção da violência e despersonalização dos indivíduos, numa teia de
relações de repressão, ameaça, falta de privacidade, desumanidade, e, em
meio a esse cotidiano marcado por regras de conduta, expectativas de res-
posta e um difícil gerenciamento de si, o sujeito preso encontra alguns pro-
gramas de educação e recreação como possibilidades que permeiam o con-
texto prisional.
Neste ponto da pesquisa, nossas questões centrais foram: “A educação,
ou através da educação, são possíveis novos espaços para uma percepção di-
ferenciada do sujeito preso sobre si e sobre o mundo?”, “Podemos pensar em
caminho(s) de luz na escuridão das celas?”, “A escola, sabidamente conforma-
dora e normatizadora, pode no contexto prisional se configurar num espaço
outro, de criação e reflexão?”
Para Paulo Freire:

[...] a melhor afirmação para definir o alcance da prática


educativa em face dos limites que se submete é a seguinte:
não podendo tudo, a prática educativa pode alguma coisa. Ao
se pensar na educação do homem preso, não se pode deixar

Exercícios de ser filosofia 137


de considerar que o homem é inacabado, incompleto, que se
constitui ao longo de sua existência e que tem vocação para ser
mais, o poder de fazer e refazer, criar e recriar. (FREIRE, 1995,
p 96).

O que o espaço escolar dentro do espaço carcerário significa enquanto


experiência para os detentos e de que forma essas experiências dialogam com
suas construções subjetivas e seus períodos de encarceramentos, são ques-
tões que só podem ser respondidas por eles mesmos. As reflexões que propo-
mos aqui acontecem a partir das vozes que buscamos em campo, num diálogo
sincero e afetivo entre a escuta e a teoria.
Durante a pesquisa, vimos inaugurar um movimento de presos que co-
meçaram a serem monitores de aulas, lecionando assim para seus colegas, e
criando pontos de ruptura e resistência do equilíbrio da lógica do controle e
da punição. O resultado disso é um espaço com práticas singulares, compon-
do um sistema educacional que descaracteriza por alguns instantes o caráter
da instituição total e forma um outro mosaico, de relações fragmentadas e
disformes mas compondo um todo que só é visto a alguns passos de distância.
De perto nos parece um cenário caótico, desorganizado, mas quando
olhamos cuidadosamente, vemos ali suspiros de alívio de um cenário de ten-
são e regulação constante. Espaço deles, feito por eles, onde se pode expres-
sar, criar, refletir, conversar livremente, olhar nos olhos. A sala de aula é para
o preso espaço de ruptura, onde pode se ver feixes de luz e libertação.
De forma nenhuma temos a intenção de romantizar o sistema, que fique
claro. A análise feita na referida pesquisa não se propõe, como sublinhado
anteriormente, a investigar a estrutura carcerária ou validar procedimentos
da mesma. Ao contrário, a intenção aqui é perceber nuances dos processos de
subjetivação dos sujeitos privados de liberdade e, neste caso, como se confi-
guram os momentos de contato com a educação.
Podemos dizer que o tempo da aula oferece ao sujeito, ainda que por
instantes, a dignidade que deveria lhe ser garantida. Sente-se de fato perten-
cente a um movimento que o leva a algum lugar. De volta à sua vida anterior,

138 Exercícios de ser filosofia


ao encontro de uma nova vida, várias são as respostas. A escola ocupa seu
tempo ocioso, movimenta seus conhecimentos.
A sala de aula parece ser um possível ponto de luz na escuridão do cár-
cere, onde há partilha de ideias e pensamentos, onde desejos são manifestos,
onde sonhos são traçados. As dinâmicas formal e informal, os exercícios e
rituais regulatórios, os jogos e confrontos, são todos movimentos que ficam,
por um instante, porta afora. Dentro, deixam de ser seus números de identi-
ficação ou os artigos que representam os crimes que praticaram, para serem
alunos, para serem colegas de turma e parceiros de aprendizagem.
Envolvem-se francamente com as atividades escolares, para além da
remissão de pena ou outros benefícios que possam lhes interessar tal partici-
pação. Sentem naquele espaço, um espaço de resistência, de possibilidades,
de criação. Temos aqui uma inversão de sentidos em relação às observações
comumente feitas em relação à escola regular.
Outro aspecto muito presente nos encontros foi a liberdade. Sabemos
que todo contato com o encarceramento é muito marcado pela repetição do
discurso da necessidade da liberdade, como algo externo, como espera, como
aguarde. A experiência do cárcere é profundamente sentida como cercea-
mento do ser livre. De fato, falar em sujeito livre nesse contexto pode mesmo
parecer uma grande contradição, já que temos sujeitos sendo sujeitados.
Partimos, neste ponto, da noção que poder e liberdade existem em ten-
são, não em exclusão. Vemos a liberdade sendo manifesta como uma liberda-
de negativa ou uma não-liberdade, uma vez que ela é reduzida à resistência
de reagir às manifestações de poder que lhes são impostas e não a liberdade
de agir como se bem entende. São configurações de respostas dadas diante de
situações de tensão e cada pessoa reage de uma maneira.

Pode-se afirmar que o problema que gira em torno da


constituição do sujeito percorre todo o trabalho de Foucault.
Ora remetido às práticas de saber, ora às relações de poder e, por
último, através das práticas de si, é o sujeito (ou a subjetividade)
como processo histórico um dos principais alvos das análises do
autor, senão o principal, como ele mesmo o afirma num dos

Exercícios de ser filosofia 139


momentos em que lança um olhar retrospectivo sobre o próprio
trabalho. (FOUCAULT, 1995, p. 208).

Isso quer dizer que, a partir de um exercício sobre si mesmo, do governo


de si, do controle de apetites e de domesticação de afetos, o sujeito escolhe
seu modo de ser e a maneira como pretende se portar. A partir do entendi-
mento da noção de corpo em Foucault, podemos nos aproximar da multiplici-
dade de composições de forças que atravessam os sujeitos e constituem-nos
em planos de produção de subjetividades: “O corpo: superfície de inscrição
dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as ideias os dis-
solvem), lugar de dissociação do EU (que supõe a quimera de uma unidade
substancial), volume em perpétua pulverização.” (FOUCAULT, 2003, p. 22).
Entretanto, para Foucault, mesmo sendo sujeitados, os indivíduos pos-
suem um campo de possibilidade para várias condutas e diversos comporta-
mentos. Desse modo, o sujeito é livre, pois “se há relações de poder em todo o
campo social, é porque há liberdade em todo lugar.” (FOUCAULT, 2003, p. 23).
Se partimos da ideia de que há liberdade em todo lugar, independente
da sua forma manifesta, entendemos poder como uma relação de forças que
só pode ser exercido sobre algo que é livre, pois quando não há possibilidade
de resistência ou de reação, não há necessidade de exercício de poder. Se o
poder não for exercido sobre sujeitos livres e em seus exercícios de liberdade,
tudo seria apenas manifestação de violência e domínio completo.
Podemos então entender esses movimentos educacionais dentro do
contexto prisional como exercícios de liberdade? Para Foucault, o único ob-
jeto que se pode querer livre, absoluta e com tal vontade que nenhuma cir-
cunstância externa, ocasião ou tempo poderá modificar é o eu. Essa busca
por si não tem condicionantes externos, sendo assim, portanto, todos os in-
divíduos capazes de cuidarem de si, de ter a prática de si próprios, de ter esse
movimento em direção ao eu que configura domínio e posse de si, chegando
através dessa relação ao “status pleno e inteiro de sujeito” (FOUCAULT, 2004,
p. 146).
O sujeito do cuidado de si, pleno e inteiro, é o sujeito que tem vontade
livre e indeterminada. O que se deseja, se deseja sem que esse desejo tenha

140 Exercícios de ser filosofia


sido programado e tenha essa ou aquela finalidade, representação ou deter-
minação.
O processo de subjetivação do sujeito do cuidado de si acontece, neces-
sariamente, através da liberdade, e escapa às relações de poder e aos deter-
minismos do saber. Não haveria espaço para a subjetivação, e, consequente-
mente, para “os jogos de verdade na relação de si para si e a constituição de si
mesmo como sujeito” (FOUCAULT, 1984, p.11), se as determinações externas
não deixassem pontos de fuga aos sujeitos nas relações destes com os dispo-
sitivos de saber e poder.
Nesse plano Foucault pensa a liberdade como condição de possibilida-
de da ética e do político, como condição de possibilidade do cuidado de si,
reestruturando as relações entre poder e liberdade. As relações de poder con-
sistem em ações que incidem sobre ações, ações de um indivíduo ou de um
grupo com uma finalidade, produzindo então realidades, comportamentos,
saberes.

Conclusões
O objetivo aqui não é apresentar uma visão geral e sistemática das no-
ções de aprisionamento, subjetivação, sociedade ou história. Ao contrário, a
intenção é, como nos ensina Foucault, traçar um diagnóstico do presente, dei-
xando aberto o campo das indagações sobre a sociedade, a história, o sujeito e
o poder e mostrando que a verdade não está posta, não é algo que alcançamos
apenas porque sabemos que ela está ali, definida, à espera de ser lograda pe-
los que acreditam nela. Entendemos que a verdade é produzida por discursos
que carregam poder e saber - ela não está fora do poder e nem é possível sem
ele.
Interessou-nos, especificamente, analisar as relações e mecanismos
de subjetivação nos grupos em questão, refletindo sobre os diferentes mo-
dos pelos quais os seres humanos tornam-se sujeitos. Podemos dizer que os
mecanismos de objetivação e de subjetivação acontecem como processos de
constituição do indivíduo, sendo, os primeiros, mecanismos que tendem a fa-
zer do homem um objeto, ou seja, se referem aos processos disciplinares que

Exercícios de ser filosofia 141


tendem a tornar o homem dócil politicamente e útil economicamente, e, os
segundos, referentes aos processos que em nossa sociedade faz do homem
um sujeito preso a uma identidade que lhe é atribuída como sua.
É necessário cautela quando pensamos o significado dos conceitos de
indivíduo e sujeito. Quando dizemos que os mecanismos de objetivação e
subjetivação produzem o indivíduo moderno, pode-se afirmar que o termo
sujeito serve para designar o indivíduo preso a uma identidade que reconhece
enquanto sua. É nesse sentido que podemos dizer que a análise de Foucault
não começa pelo sujeito, mas consiste em pensar os processos de objetivação
e subjetivação que antecedem à constituição deles.
Não podemos tomar o sujeito como uma essência pré-histórica, ou
a-histórica, nem como condição primeira de todas as coisas, tampouco como
núcleo central, a partir do qual seriam construídos todos os outros conceitos
que formariam seu pensamento que, assim, seria um projeto para mostrar o
homem construindo sua própria libertação do jugo do poder. O que temos é
que não existe um sujeito pré-estabelecido do qual emanariam as relações
de poder. O sujeito do conhecimento é constituído, produzido dentro de uma
conjunção de estratégias de poder. Ou seja, o sujeito é um produto das re-
lações de poder, não seu produtor. Não há um sujeito essencial que estaria
alienado por ideologias, por relações de poder que encobririam sua visão da
realidade.
Qualquer ponto de exercício de poder é múltiplo, no sentido de que as
relações de poder são melhores representadas por feixes e não por uma linha,
ou seja, uma pequena relação de poder está ligada e pode gerar inúmeras ou-
tras totalmente imprevisíveis quanto ao seu sentido.
Justamente por não tomar as relações de poder como dominação ab-
soluta é que é possível pensar a questão da liberdade, mas devemos tomar as
mesmas preocupações em relação à questão do sujeito e do poder, a saber: a
liberdade foucaultiana supõe o abandono de uma essência humana que esta-
ria atravancada, escondida, amarrada pelo poder. Ela não é uma substância
essencial, mas deve ser constituída em meio às lutas políticas, ou seja, não é
uma forma essencial a-histórica, mas sim produzida e tem diferentes con-

142 Exercícios de ser filosofia


figurações nos diferentes “períodos” históricos - por isso Foucault utiliza a
terminologia “práticas de liberdade”.
Percebemos que liberdade e poder não são práticas que se excluem, ou
melhor, o fim de uma não supõe o início da outra. O exercício da liberdade
é um exercício de poder, ou seja, não há exercício de poder onde não há ne-
nhuma possibilidade de ação e também não há exercício de liberdade onde
não há exercício de poder. O poder se constitui como uma rede que perpas-
sa toda a sociedade, mas não devemos de forma alguma achar que não há
saída, que a dominação é absoluta. Todos os pontos de poder constituintes da
rede constituem também uma possibilidade de resistência. Se não houvesse
nenhuma resistência não haveria nenhuma mudança.
Porém, é preciso tomar cuidado quando falamos que todas as relações
são relações de poder para não deduzirmos disso que todas são iguais. Aliás,
as práticas de liberdade configuram-se como outras possibilidades de ação,
como outras formas de vida, pois são simplesmente outros modos de exis-
tência ainda não normatizados. As práticas da liberdade buscam dissolver
pactos e modelos estabelecidos na sociedade. Nesse sentido, o movimento, a
história são cheios de choques, de desvios, de destruição, de mascaramentos.
Essa relação intrínseca entre liberdade e poder é possível porque não
ligamos a posse do poder à condição de existência de um indivíduo, grupo ou
classe dominante; entretanto, como condição de existência de um indivíduo,
grupo ou classe dominada o exercício da liberdade já é entendido como luta
pela posse do poder para que a emancipação aconteça.
O que está em jogo é o problema da diferença, da singularidade frente à
norma, já que são as relações de poder que nos tornam iguais, sendo singula-
ridade uma nova possibilidade de vida. Toda ação ética, é verdade, comporta
uma relação com o real no qual ela se realiza e uma relação com o código ao
qual se refere. Porém, ela implica também certa relação consigo mesmo. Esse
processo de construção de si implica necessariamente a crítica constante da
norma e das relações de poder.
Nesse sentido, pensamos que as práticas de liberdade vão ao invisível, ao
desconhecido. Ao mesmo tempo em que as relações de poder criam normas,

Exercícios de ser filosofia 143


verdades, criam possibilidades de rachadura da norma, criam possibilidade
de uma “dobra”, de uma outra “forma” de subjetividade ainda não conhecida.
Para Foucault:

Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a


ver com o significante. [... ] É preciso que sirva, é preciso que
funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-
la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico,
é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou.
(FOUCAULT, 2003, p.71).

Desta forma, podemos concluir que a liberdade não significa ausência


de poder, ou seja, toda relação de poder - ao agir, ao construir, ao produzir, ao
tentar normatizar as singularidades -, também deixa escapar, produz, torna
possível singularidades, torna possível outras formas de agir, construir, pen-
sar. Essas novas singularidades são relações de poder que vão se chocar, vão
inverter, vão ser invertidas, vão colonizar, vão ser colonizadas pelas relações
de poder vigentes.
O que chamamos liberdade são essas novas singularidades, essas novas
formas de ver e pensar que se constituem enquanto resistência. O conheci-
mento, a liberdade, a verdade, não são considerados conceitos universais,
mas sim produtos das lutas históricas, portanto, ligadas ao poder. Nesse
sentido, ser livre é criar novas possibilidades para agir, pensar e ser. E não é
porque a liberdade, a verdade, o conhecimento não são considerados livres
de poder que não devemos pensá-los.
Que forma tem a liberdade? Quais feixes de poder e quais brechas de
resistências encontramos em pessoas em privação de liberdade?
Estas pesquisas, de cunho exploratório, nos permitiram pensar na con-
tramão, pois, afinal, violência e liberdade ou violência e resistência, costu-
mam ficar em lados opostos. A nossa inserção junto aos sujeitos, a partir do
referencial foucaultiano, permitiu-nos compreender, para além do discurso
oficial, que quando entram em contato com a lógica da instituição total são
capazes de inverter os olhares. E mais: acabam por subverter a própria razão

144 Exercícios de ser filosofia


de ser destas instituições, ou seja, se valem dos mecanismos de objetivação
e de docilização que estão ali postos, encontrando brechas para práticas de
subjetivação que aparecem a eles como libertadoras.

Referências
FREIRE, Paulo. Política e Educação. São Paulo, Cortez, 1995.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis:


Vozes, 1984.

FOUCAULT, M. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janei-


ro. Graal, 1984.

FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, RABINOW. Michel Fou-


cault, uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

FOUCAULT, M. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: Ética,


sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

SONEGO, Edileia Pereira. Os (não) saberes da casa da formação e a hos-


pitalidade como abertura à skholé. Artigo submetido e aceito no 8º CIFE
– UERJ, 2016.

Exercícios de ser filosofia 145


11. O DESENHO E AS PALAVRAS NO
FILOSOFAR: POSSIBILIDADES DE OUTROS
LUGARES PARA A LEITURA, A ESCRITA, A
FALA E A ESCUTA DO MUNDO

Paula Ramos de Oliveira41


Denis Domeneghetti Badia

Introdução
Quando pensamos em Filosofia e em Educação logo pensamos nas pa-
lavras. Essas duas áreas vivem de certas relações com a palavra. E tanto em
uma quanto em outra há palavras que se fazem dominantes. Assim, há na
contemporaneidade um lugar para o que já foram – Filosofia e Educação –
que depende também de um olhar do presente. Esse olhar pode ser de conti-
nuidade ou de ruptura, mas por algum motivo continuar parece sempre mais
fácil. Os caminhos de ruptura dependem de mudanças nos modos de nos re-
lacionarmos com as palavras e/ou de mudanças de palavras.
Apesar de mais raro, em ambas as áreas há pessoas que conseguiram
eleger novas palavras ou novas relações com elas que foram responsáveis por
verdadeiros “giros” nos pensamentos dominantes. Às vezes algo que parece
muito pequeno tem um potencial avassalador e nos coloca diante de um novo
lugar.
O que propomos está longe de qualquer pretensão maior ou mais am-
pla, mas, por outro lado, pretende sim ser um “giro” para nós, sujeitos dessa
experiência, quanto a certos lugares ocupados na prática filosófica, especial-
mente os de leitura, escrita, escuta e fala. E quem sabe poderá ser exemplo de
um caminho para encontro de outros caminhos.
41
Professores do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em
Educação Escolar (FCLAr – UNESP – SP). O tema foi apresentado por Paula Ramos
de Oliveira em uma comunicação no IV Congreso Latinoamericano en Filosofía de la
Educación, realizado em Buenos Aires – Argentina, 2017, e posteriormente reelaborado
como texto com a colaboração de Denis Domeneguetti Badia.

Exercícios de ser filosofia 147


Então, apresentaremos a seguir uma experiência de um filosofar que
pretende criar esses novos lugares no fazer filosófico.

Uma experiência de filosofar com desenho e palavras


Ler diferentemente o mundo nos coloca diante do mundo diferente-
mente também. A filosofia é um modo de ler o mundo, mas há muitas filo-
sofias e muitas formas de se ler. E isto nos coloca, seguramente, diante de
muitos mundos possíveis, diante de muitas possibilidades de mundo.
É comum a afirmação sobre a importância da leitura e, claro,
concordamos com ela, mas que implicações temos na dimensão educativa,
na sala de aula ou fora dela, ou ainda - o que é o mesmo – em nossas vidas,
por lermos de um jeito e não de outro? Há diversas leituras possíveis, tanto
no que diz respeito à forma, quanto ao conteúdo. Que valores afirmamos, e
reafirmamos, com nossas práticas de leitura? Com elas estamos mais perto
de nós ou mais distantes?
O filosofar está intimamente ligado às formas expressivas, especial-
mente a oral e a escrita. Falamos e escrevemos o que pensamos, e o que pen-
samos se relaciona também com outros pensamentos escritos ou falados. Em
ambos os casos, tem sido sempre a palavra que permite a expressão do pen-
samento.
O Grupo de Estudos e Pesquisas Filosofia para Crianças (GEPFC/CNPq/
FCLAr/UNESP)42, sob a nossa coordenação, tem experimentado o que temos
entendido como uma nova experiência de leitura e escrita de pensamento.
Resolvemos dar outro tempo às palavras e chegar a elas de outra maneira,
introduzindo uma nova forma expressiva: o desenho.
Em nossas reuniões semanais, ocorridas em 2017 e 2018, fizemos a lei-
tura de “O Abecedário de Deleuze”. Antes, porém, dedicamo-nos à leitura in-
dividual, em casa, e em seguida desenhávamos o que mais nos tocava nesta

42
Grupo coordenado por Paula Ramos de Oliveira e Denis Domeneghetti Badia, com
atividades desde 1998, na Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara (FCL/
Car), da Universidade Estadual Paulista (UNESP), e cadastrado no diretório do instituto
de pesquisa “Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico”(CNPq).

148 Exercícios de ser filosofia


leitura. Somente após o desenho chegavam as palavras. Tentávamos escrever
algo sim, mas apenas a partir das imagens. Chegando às reuniões do grupo –
composto na época por alunos e ex-alunos de Pedagogia (graduação, mestra-
do e doutorado) e por um aluno de mestrado em Filosofia - fazíamos a leitura
coletiva e depois discutíamos a partir da apresentação das imagens e do que
escrevíamos. Assim, com nossos desenhos e escritas, cada um apresentava o
caminho do seu pensamento. Neste momento entrava então a expressão oral.
Apresentamos, a seguir, alguns exemplos com o verbete “Neurologia”43:

• Voz do Nilton (respectivamente frente com escrita, e verso da folha):

43
Em outro texto, ainda não publicado, as vozes de Lígia e Mariana foram citadas.

Exercícios de ser filosofia 149


Escrita: “Sobre o nascimento das ideias, sob duas perspectivas. De um
lado a relação com um objeto material que produz conhecimento; de outro
lado, o fluxo intenso e exaustivo das ideias. É um movimento dialético, o ob-
jeto toma forma, as ideias tendem a ficar claras.”

150 Exercícios de ser filosofia


• Voz de Daniella:

Escrita no desenho: “Falo do que não sei, mas falo do que não sei em
função do que sei”.

Comentário posterior: “Em busca do equilíbrio, que resulta da experiên-


cia, entre o saber e o não-saber.”

Exercícios de ser filosofia 151


• Voz de Lígia:

Escrita: “É perfeito! O encontro entre o filosófico, o estético e o cientí-


fico. A compreensão acontece no não-compreendido. Desvendar o mundo a
partir do não desvendado.”

152 Exercícios de ser filosofia


• Voz da Paula, incluindo imagem, escrita e fala:

Escrita: “Duas leituras diferentes se tocam e se distanciam, pois de outro


modo o ´dito´ se desfaria tal como um pássaro que, ao ligar uma asa à outra
por um tempo pouca coisa maior que o mínimo, não venceria a resistência
do ar.”

Fala: O meu foi assim: duas coisas que me chamaram mais a atenção, a
compreensão ser um tipo de leitura. A compreensão é uma leitura. E a coisa
das duas asas. Meu desenho está horrível, mas é assim: é um passarinho... Co-
mecei a ver que passarinho parece peixe! É um passarinho com as asas assim.
Daí eu imaginei um passarinho juntando uma asa na outra e escrevi assim:
“Duas leituras diferentes se tocam e se distanciam, pois de outro modo o ´dito´
se desfaria tal como um pássaro que, ao ligar uma asa à outra por um tempo
pouca coisa maior que o mínimo, não venceria a resistência do ar.” Então as

Exercícios de ser filosofia 153


leituras têm que se tocar, mas se se tocarem muito cai o pássaro, entendeu?
Como se fosse a arte. Você pode ter uma asa que é a arte, outra que é a filoso-
fia, uma que é ciência, outra que é filosofia, outra que é a arte e que é a ciên-
cia, outro que é o leigo e o não-leigo, vamos colocar assim. É porque ele fala
que não pode ser as duas leituras simultâneas. Então eu pensei no simultâneo
como as duas asas que têm que ter alguma individualidade para se manter no
ar, para ter essa sustentação.

154 Exercícios de ser filosofia


• Voz da Eduarda:

Escrita: “Ler não filosoficamente. Só a partir do que sei ... o que não sei.”
Escrevi em um espaço ‘’A partir do que sei’’ deixando sair dele letras indo
ao encontro com o que escrevi ‘’O que não sei’’, com o intuito de demonstrar
a frase de Deleuze ‘’Falo do que não sei, mas falo do que não sei em função do
que sei’’. Pensei que muitas vezes falamos sobre determinado assunto que não
sabemos, ou que não temos uma visão profunda. Isso representa o que não
sei. No entanto quando falamos isso, não deixamos sair de nossas bocas sim-
plesmente palavras sem sentido. Penso que a partir desse ‘’não sei’’, buscamos
em nossa mente algo que se assemelhe com aquele determinado assunto, por
exemplo, eu posso não saber matemática, no entanto eu sei filosofia. Logo a
partir do que eu sei, filosofia, posso falar de matemática, ou seja, ter um olhar
filosófico da matemática, falar de matemática a partir da filosofia, pensar em
filósofos que pensaram em matemática e em seus conceitos. Penso que nun-
ca poderemos possuir todo o saber, já que há conhecimentos que ainda nos
faltam. No entanto, se esperarmos saber de tudo minuciosamente para falar

Exercícios de ser filosofia 155


sobre, nunca falaremos nada. Podemos falar do que não sabemos, mas em
função de algo que sabemos. Para mim, falar do que eu não sei pensando no
que eu sei não é apenas falar sem sentido algum - é pensar. Escrevi também a
frase de Deleuze ‘’Ler não filosoficamente’’. Penso que podemos ter diversas
visões sobre um determinado assunto. É o que tentei explicar acima. Eu posso
não saber sobre astronomia, mas posso pensar e ter uma visão de astronomia
a partir da filosofia que pode pensar ‘’o que são os astros’’. Estarei falando de
algo do campo de astronomia sem ter conhecimentos profundos desse cam-
po, no entanto estarei pensando em astronomia, mas a partir da filosofia, e
o que compreendi dessa frase é que às vezes precisamos pensar sobre um
determinado assunto de diversas formas. Penso também que eu posso estu-
dar biologia e que por eu estar nessa área, por exemplo, eu já tenha me acos-
tumado com as maravilhas do mundo, da natureza, e com isso perder o meu
espanto, no sentido de admiração. Já uma criança que ainda não possui um
estudo acadêmico, só tem uma visão própria do mundo, se espanta mais com
as maravilhas da natureza.

156 Exercícios de ser filosofia


• Voz da Cesira:

Escrita: “Sim, há alguma coisa aqui”. “Aqui / Em mim / Há muito mais


que aqui/ Há o lá/ E o além.”

Exercícios de ser filosofia 157


• Voz da Lara, incluindo imagem, escrita e fala:

Escrita: “- A dualidade de pensamento do ser”


“- A expansão do campo de visão se remete à junção de ideias opostas”
“O pensamento modifica a nossa visão de mundo, bem como dos que
convivem ao nosso redor. Assim como as pontes ligam cidades, nossos pensa-
mentos nos ligam às pessoas e ao universo que nos rodeia. São pontes que nos
levam da normalidade para o descobrimento de novos mundos.”

Fala: “A parte que mais me pegou no texto foi a questão que ele fala que
o pássaro não pode voar sobre uma asa; precisa de duas. Aí eu pensei nessa
dualidade de pensamento que a gente tem todo dia, de pensar uma coisa e ao
mesmo tempo pensar outra totalmente oposta. E me remeteu à ideia de que

158 Exercícios de ser filosofia


se a gente pensar sempre a mesma coisa, buscar sempre as mesmas ideias, a
gente nunca vai ver uma coisa nova no conhecimento. Eu acho que o conhe-
cimento vai nessa junção de duas ideias opostas que de alguma maneira são
complementares; preencher o vazio de uma ideia original e criar uma coisa
nova. (Mostrando o desenho) Eu fiz duas carinhas (não sei desenhar), e numa
ele está tentando encaixar peças que aparentemente se encaixam, mas não
encontra uma resposta para o que está procurando. E a partir do momento
em que ele junta a dúvida dele com a certeza do que ele já sabe, consegue
produzir alguma coisa nova.

Exercícios de ser filosofia 159


• Voz de Alessandra, incluindo imagem, escrita e fala:

Escrita: “Falar besteira ou (não legível). Continuidade do pensamento,


conhecimento. Quebra e construção. Definições do ´filósofo´. Falar sobre o
que não sei.”

Fala: “A ideia da corrente quebrando no final é dupla: pode ser uma


construção ou uma desconstrução. Então seria o ponto de falar sobre o que
não sei, sabendo o que estou falando, mas ao ponto de falar uma besteira.
Então seriam os dois. Pode ser o inverso, o reverso. O que mais que eu anotei
aqui? Tem o som quebrando das ligações, mas pode ser a construção de uma
nova corrente, no pensamento, na continuidade do pensamento. O que mais?
Eu falei das situações filosóficas que outro dia a gente estava conversando
bastante sobre falar o que eu não sei. Só isso a minha ideia.

160 Exercícios de ser filosofia


• Voz de Ana Paula, incluindo imagem, escrita e fala:

Escrita: Pensamento. Cérebro. Construção de algo -> compreender par-


te de algo. O DNA e suas voltas. “Falo do que sei em função do que não sei.”
Parte da fala: “Tem as linhas de luz e as linhas geométricas. Aí então
eu fiquei pensando em uma figura geométrica que compreendesse a ideia do
meu pensamento, e meu cérebro querendo compreender algo profundo, esta-
rem nessa dúvida no instante de trabalharem essa compreensão de algo e que
forma geométrica poderia ser essa. A princípio eu tinha pensado no triângu-
lo, mas eu entendi que os vértices talvez seriam uma ideia de linear. E depois
pensando a ideia que eu fiz de cérebro eu cheguei à conclusão do profundo
e o volume de um círculo, de repente. Mas, assim, o que seria esse volume
aqui dentro? Eu deixei um símbolo de interrogação, que é essa compreensão
do profundo. Eu acho que todo mundo falou. (...). De isso ser um círculo e ao
mesmo tempo estar em um processo constante porque com o triângulo eu
tinha pensado nisso, de ter uma interpretação, de ter um ponto onde se en-
contram, e não.”
Comentário posterior: “O que pensei: a construção de um conhecimento
gera um pensamento (que passa pelo meu cérebro) num movimento circular

Exercícios de ser filosofia 161


capaz de gerar dúvidas que me possibilitam falar de algo que ainda não sei. A
linha de luz (nossas ideias e pensamentos), não sendo linear, forma a figura
de um círculo.”

162 Exercícios de ser filosofia


• Voz de Mari, incluindo imagem, escrita e fala:

Fala: “Bom, o meu, acho que vai ao encontro do que as pessoas já fala-
ram. É um homem e dentro da cabeça dele tem um universo. Então ao mesmo
tempo em que ele se situa no universo a cabeça dele é um universo. Da mes-
ma forma que a gente não conhece o universo a gente não conhece o nosso
universo. E o olhar dele, ele sempre vai de acordo com um. Aqui no caso foi
um planeta que influenciou um olhar dele. Então, a cada momento a gente
tem um ângulo de visão para alguma coisa e também não só nós mesmos a
cada dia, mas existem também as especialidades, os filósofos, cientistas, as
diferentes lentes, como se fossem diferentes lentes para você enxergar o uni-
verso. Então, são várias lentes. E aqui na verdade era um poeminha, um versi-
nho, que eu já havia feito há algum tempo atrás e eu lembrei dele. Eu vou ler.
´Tanto se fala de muito/ Pouco se fixa de tudo/ A maior parte de tudo/ parece
se esvair/ na atmosfera do outro´.”

Exercícios de ser filosofia 163


• Voz de Heula (que não compareceu à reunião):

Escrita: “Meu desenho é uma sucessão de páginas já lidas.” Meu texto:


“As páginas do conhecimento que antecedem as páginas ainda a serem vira-
das se encontram à beira do precipício se não houver entre ambas uma com-
pletude. Tudo que iremos descobrir tem um sentindo maior quando atribuído
ao que já temos de conhecimento/saber. O envolvimento entre elas é o/um
movimento perfeito. Também me faz pensar que quanto mais conhecimento
encontrado, mais vazios achamos em nós. Quanto mais sabemos, nos con-
vencemos que não sabemos, ou que há ainda muito a saber. O que remete ao
pensamento de Sócrates “só sei que nada sei”. Damos conta do espaço, que vai
dilatando a cada saber. Por isso, o vazio!”

164 Exercícios de ser filosofia


Pensando a experiência
Quando se fala em filosofar, sempre parece ficar em evidência a prática
filosófica, como se a forma fosse superior ao conteúdo. Mas, nós, em hipótese
alguma, queremos sobrepor a prática ao conteúdo, até porque entendemos
que não podemos separá-los. Um remete ao outro. E é exatamente por isso
que percebemos facilmente como cada modo de filosofar diz sobre alguma(s)
filosofia(s) e como cada aula de filosofia remete a um modo de filosofar. E
assim o faremos considerando, em nossa experiência, o ato de ler, atividade
fundamental na filosofia e no filosofar. Tentaremos pensar o que podemos
aprender com essa experiência acerca do encontro entre filosofia, texto, alu-
nos e professores. E esse exercício envolve pensar com pessoas (membros do
grupo e Deleuze) e ideias (dos membros do grupo e de Deleuze).

A nossa leitura
Em “N de neurologia”, Deleuze (1997, p. 50)44 afirma: “É verdade que a
neurologia sempre me fascinou, mas por quê? É o que acontece na cabeça de
alguém ao ter uma idéia. Prefiro quando alguém tem uma idéia, senão é como
um flipperama.”
E um pouco adiante:

Há uma coisa que chamou muito a minha atenção. Assim


chegamos onde você queria. O que me impressionou foi uma
história... algo de que os físicos se utilizam muito sob o nome de
“transformação do padeiro”. Pega-se um quadrado de massa,
faz-se um retângulo, dobra-se, estica-se novamente etc. São
feitas transformações. Ao final de x transformações, dois pontos
contíguos, sem dúvida, estarão muito distantes. Não há pontos
distantes que, após x transformações, não sejam contíguos. Eu
me pergunto: ao procurarmos algo na cabeça, será que não
acontecem misturas desse tipo? Será que não há dois pontos
que, num dado momento, num estágio do pensamento, eu não
44
As páginas aqui citadas de Deleuze referem-se ao texto de transcrição integral do
vídeo.

Exercícios de ser filosofia 165


sei como aproximar e que, ao final dessa transformação, estão
um do lado do outro? (DELEUZE, 1997, p. 50)

Quando um professor chega a uma aula de filosofia ele oferece um


texto aos alunos, com algumas ideias que devem ser compreendidas. Será que
aqui também não há dois pontos que devem se aproximar? Como conseguir
uma aproximação do aluno com essas ideias? Como um professor pode se
aproximar dos alunos? Talvez procurando algo no qual ambos estejam en-
volvidos. Talvez em filosofia isso seja o processo que envolve as leituras de
textos que, por sua vez, são leituras de mundo.
Então, há algo que une essas pessoas que se encontram nesse espaço es-
colar - seja em uma aula, seja em um grupo de estudo e pesquisa. Parece-nos
que um grupo de pesquisa fica mais aberto para destacar o que une. Nele há
pessoas que estudam e pesquisam. Elas formam um conjunto. Seus coorde-
nadores fazem parte desse conjunto. Nas aulas não há grupo. No máximo há
turma. Uma turma composta de alunos que é conduzida por um professor.
Aluno remete imediatamente a um lugar que diz de uma determinada rela-
ção, e necessária, com outro. Não há aluno sem professor. Não há professor
sem aluno. Já estudante ou pesquisador qualifica e remete a alguém que faz
uma ação específica: estudar ou pesquisar. Inclusive, estuda-se e pesquisa-se
com alguém, mas também estuda-se e pesquisa-se sozinho.
Outro ponto que impõe uma distância entre alunos e professores é
a ideia de que o professor está de posse do que o texto diz. E há aqui uma
pretensão absurda de completude. Rancière soube mostrar esse aspecto de
forma magistral em um de seus argumentos de crítica da razão explicado-
ra. A explicação pretende diminuir a distância entre o aprendiz e a matéria a
aprender, mas com isso faz o contrário, posto que justamente cria essa dis-
tância e não a reduz. Kohan (2003, p. 188-192) apresenta a crítica feita por
Rancière, destacando sete problemas a que está exposto quem pensa que en-
sinar é sinônimo de explicar. A seguir um deles, o que mais nos interessa:

[...] o duplo gesto obscurantista da pedagogia explicadora. Por


um lado, a explicação supõe que, com ela, começa o aprender
do outro; ela se institui a si mesma como ato inaugural da

166 Exercícios de ser filosofia


aprendizagem. Por outro lado, a explicação cobre como um
manto de obscuridade tudo o que não pode explicar, aquilo
que fica oculto por trás de cada explicação. Desta maneira, a
explicação não explica nem reconhece os limites de si mesma
e cria a ilusão da máxima abrangência. (KOHAN, 2003, p. 190;
grifos do autor).

No verbete estudado, uma das partes que mais nos chamou a atenção
foi a ideia de que a compreensão é “uma” leitura. Normalmente o professor,
mesmo em uma aula de filosofia – onde se supõe que a problematização seja
absolutamente necessária -, identifica a compreensão do texto por parte do
aluno no momento em que esta coincide com a sua: o especialista, o não-lei-
go, o que leu mais sobre filosofia, o que leu mais vezes o texto em questão,
o professor, etc. Nesta perspectiva, a compreensão liga-se muito mais facil-
mente à ideia de verdade – até pelo argumento de autoridade - do que à uma
leitura possível.
Diz Deleuze (1997, p. 50):

Tem uma coisa que me reconforta muito. Acho que há várias


leituras de uma mesma coisa e acredito piamente que não
é preciso ser filósofo para ler filosofia. A filosofia é suscetível,
ou melhor, precisa de duas leituras ao mesmo tempo. É
absolutamente necessário que haja uma leitura não-filosófica
da filosofia, senão não haveria beleza na filosofia. Ou seja, não-
especialistas lêem filosofia e a leitura não-filosófica da filosofia
não carece de nada, possui sua suficiência. É simplesmente uma
leitura.

Deleuze nos leva a pensar mais aprofundadamente sobre a leitura, con-


siderando o olhar daquele que lê. De que lugar ele lê? Em uma aula, dizemos
nós, esse lugar comumente já está dado. Há a leitura do professor e os demais
devem fazer leituras que ao menos convirjam para a do seu propositor, o pro-
fessor, posto que ocupam um determinado lugar, o de alunos.

Exercícios de ser filosofia 167


Claro que há muitas aulas possíveis e também muitos lugares para os
professores e para os alunos. Mas, em geral, quem fala é o professor e o aluno
escuta. E não raro há alunos que “vocalizam” suas leituras, ideias e pensa-
mentos, mas via de regra um possível diálogo ainda vem muito carregado da
voz de verdade que chega do professor.
O que compreendemos de importante quando compreendemos o que
um professor quer que entendamos? Como tal compreensão poderia nos
aproximar de nossas próprias vidas?
Escutemos um pouco mais de Deleuze (1997, p. 50) que continua o seu
pensamento:

Nietzsche mais ainda. Todos os filósofos de que gosto são


assim. Acredito que não haja necessidade de compreensão. É
como se a compreensão fosse um nível de leitura. É como se
você me dissesse que, para apreciar Gauguin ou um grande
quadro, é preciso conhecê-lo profundamente. O conhecimento
profundo é melhor, mas também há emoções extremamente
autênticas, extremamente puras e violentas na ignorância total
da pintura. É claro que alguém pode ficar abalado com um
quadro e não saber nada a seu respeito. Podemos ficar muito
emocionados com a música ou com uma certa obra musical
sem saber uma palavra. Eu, por exemplo, fico emocionado com
LuluWozzeck. Nem falo do Concerto em memória de um anjo,
que acredito que seja o que mais me emociona no mundo. Sei
que seria ainda melhor ter uma percepção competente, mas
digo que tudo que é importante no campo mental é suscetível
a uma dupla leitura, desde que não façamos essa dupla leitura
casualmente enquanto autodidatas. É algo que fazemos a
partir de problemas vindos de outro lugar. É como filósofo que
tenho uma percepção não-musical da música, que talvez seja
para mim extraordinariamente comovente. Da mesma forma, é
como músico, pintor etc. que alguém pode ter uma leitura não-
filosófica da filosofia. Não ter essa segunda leitura, que não é

168 Exercícios de ser filosofia


exatamente a segunda, não ter duas leituras simultâneas... São
como as duas asas de um pássaro, não é muito bom não ter as
duas leituras simultâneas. Até um filósofo tem de aprender a ler
um grande filósofo não-filosoficamente.

Ouvir ecos de nossas próprias vozes, como professores, é perder a opor-


tunidade de entrar em contato com outras leituras e de eventualmente mudar
a nossa, sob um ou mais aspectos. E é curioso imaginarmos a dificuldade de
voo de um pássaro que tenha que voar com apenas uma asa... Ficar apenas
com a nossa própria voz é permitir tão somente um nível de leitura e impedir
que outras vozes se levantem abrindo-nos aos tantos sentidos que uma leitu-
ra pode ter verdadeira e autenticamente para cada um que a lê e a comunica
com sua própria voz. É perder a oportunidade de problematizarmos o que sa-
bemos colocando-nos na esteira de nossa não-saber. E não é isso a filosofia?

Dialogando com as outras leituras


“Portanto, falo do que não sei, mas falo do que não sei em função do que
sei.”, disse Deleuze. E Daniella gostou. Gostou e complementou: “Em busca do
equilíbrio, que resulta da experiência, entre o saber e o não-saber.”
Eduarda também gostou e incluiu a questão da leitura não-filosófica:
“Ler não filosoficamente. Só a partir do que sei ... o que não sei.” É possível
falar do que não se sabe e isto ainda é pensamento, pois falamos a partir do
que sabemos. Posso então saber de outras áreas pelo que meu olhar filosófico
alcança. E ela entendeu que às vezes é preciso aprender a falar de um assunto
de diversas formas.
Já Nilton interessou-se pelo nascimento das ideias. Ele diz que há um
movimento dialético, que coloca em relação um objeto material que produz
conhecimento e o fluxo intenso das ideias. É assim que um objeto toma forma
e as ideias ganham clareza.
A Lígia descobriu, com alegria, que a relação entre o compreendido e o
não compreendido permite esse encontro produtivo entre o filosófico, o es-
tético e o científico. E o pássaro voa, descobrindo novos lugares para voar.

Exercícios de ser filosofia 169


Cesira disse (e nós ouvimos): “Sim, há alguma coisa aqui”. “Aqui / Em
mim / Há muito mais que aqui/ Há o lá/ E o além.” E o seu desenho nos diz
destas presenças.
Lara escreveu: “- A dualidade de pensamento do ser”; “- A expansão do
campo de visão se remete à junção de ideias opostas”; “O pensamento modifi-
ca a nossa visão de mundo, bem como dos que convivem ao nosso redor. As-
sim como as pontes ligam cidades, nossos pensamentos nos ligam às pessoas
e ao universo que nos rodeia. São pontes que nos levam da normalidade para
o descobrimento de novos mundos.” E não era essa a ligação que estávamos
vivendo nesta experiência? E mostrando o seu desenho diz que é a junção da
dúvida com o que já sabemos que é possível produzir o novo.
Alessandra desenhou correntes. Há algo que continua e há algo que
quebra. É possível falar sobre o que não se sabe. E ela falou o que quis. Pensou
nas situações filosóficas. Lembrou que falava sobre isto outro dia. E concluiu:
“Também...só isso a minha ideia.” A minha ideia, diz Alessandra, que pode
falar sobre ela.
Depois veio Ana Paula e escreveu: Pensamento. Cérebro. Construção de
algo -> compreender parte de algo. O DNA e suas voltas. “Falo do que sei em
função do que não sei.” Em sua fala mostra o movimento do seu pensamento
para encontrar uma figura geométrica que fosse capaz de representá-lo: “Aí
então eu fiquei pensando em uma figura geométrica que compreendesse a
ideia do meu pensamento, e meu cérebro querendo compreender algo pro-
fundo, estarem nessa dúvida no instante de trabalharem essa compreensão
de algo e que forma geométrica poderia ser essa. A princípio eu tinha pen-
sado no triângulo, mas eu entendi que os vértices talvez seriam uma ideia de
linear. E depois pensando a ideia que eu fiz de cérebro eu cheguei à conclusão
do profundo e o volume de um círculo, de repente. Mas, assim, o que seria
esse volume aqui dentro, eu deixei um símbolo de interrogação, que é essa
compreensão do profundo. Eu acho que todo mundo falou. (...). De isso ser
um círculo e ao mesmo tempo estar em um processo constante... porque com
o triângulo eu tinha pensado nisso, de ter uma interpretação de ter um ponto
onde se encontram, e não.” E seu comentário posterior : “O que pensei: a cons-

170 Exercícios de ser filosofia


trução de um conhecimento gera um pensamento (que passa pelo meu cére-
bro) num movimento circular capaz de gerar dúvidas que me possibilitam
falar de algo que ainda não sei. A linha de luz (nossas ideias e pensamentos!),
não sendo linear, forma a figura de um círculo.” A retomada do pensamento
de Ana Paula foi praticamente integral porque exemplifica bem o exercício
que nos propusemos a fazer. É preciso aprofundar e sair do lugar comum
para acharmos uma representação do que estamos pensando para que de-
pois, somente depois, a palavra possa voltar. E ela volta diferente, modificada.
Ela passeou em cada um de nós, tornou-se visceral em nós, mesclou-se com
a nossa história, tornou-se parte de nós porque se ligou à nossa própria vida.
Mari (Mariana) descreve seu desenho: “É um homem e dentro da cabeça
dele tem um universo. Então ao mesmo tempo em que ele se situa no universo
a cabeça dele é um universo. Da mesma forma que a gente não conhece o uni-
verso a gente não conhece o nosso universo. E o olhar dele, ele sempre vai de
acordo com um. Aqui, no caso, foi um planeta que influenciou um olhar dele.
Então a cada momento a gente tem um ângulo de visão para alguma coisa e
também não só nós mesmos a cada dia, mas existem também as especialida-
des, os filósofos, cientistas, as diferentes lentes, como se fossem diferentes
lentes para você enxergar o universo. Então são várias lentes. E aqui na ver-
dade era um poeminha, um versinho, que eu já havia feito há algum tempo
atrás e eu lembrei dele. Eu vou ler. ´Tanto se fala de muito/ Pouco se fixa de
tudo/ A maior parte de tudo/ parece se esvair/ na atmosfera do outro´.” Há
algo nela que permanece. Há algo dela que chega ao outro. Há um encontro de
mundos que se mesclam ao mundo de cada um de nós. É a vida dela chegando
a nossa e a nossa chegando na dela.
E Heula não compareceu à reunião, mas sua voz chegou até nós.
Há páginas já lidas e outras ainda por ler. E chega a pensar “Quanto mais
conhecimento encontrado, mais vazios achamos em nós. (...) Damos conta do
espaço, que vai dilatando a cada saber. Por isso o vazio!”

Exercícios de ser filosofia 171


****

O fazer filosófico instaura uma dimensão educativa e a educação ins-


taura uma dimensão filosófica. Porém, às vezes deixamos que o campo peda-
gógico tome uma presença exagerada nas aulas de filosofia, demarcando com
rigidez esses lugares já conhecidos da relação professor e aluno. Aprendamos
um pouco com Larrosa quando afirma:

Mas creio que para além ou para aquém de saberes


disciplinados, de métodos disciplináveis, de recomendações
úteis ou de respostas seguras; para além mesmo de idéias
apropriadas e apropriáveis, talvez seja a hora de tentar
trabalhar no campo pedagógico pensando e escrevendo de uma
forma que se pretende indisciplinada, insegura e imprópria. O
discurso pedagógico dominante, dividido entre a arrogância
dos cientistas e boa consciência dos moralistas, está nos
parecendo impronunciável. As palavras comuns começam a nos
parecer sem qualquer sabor ou a nos soar irremediavelmente
falsas e vazias. E, cada vez mais, temos a sensação de que
temos que aprender de novo a pensar e a escrever, ainda que
para isso tenhamos que nos separar da segurança dos saberes,
dos métodos e das linguagens que já possuímos (e que nos
possuem). (LARROSA, 2003, p. 7).

Não só pensar e escrever de outras maneiras, mas também falar, diría-


mos nós. E para falar é preciso escutar. E que privilégio conhecer escutar a
voz do outro e seu pensamento! Daí o exercício com o desenho. Para nós tem
sido uma possibilidade de termos entre nós outra escuta e outra fala conosco
e com os outros, porque cada um faz da filosofia e do filosofar um caminho
próprio para ler e escrever o seu próprio mundo, para ler e escrever o mundo
de seu próprio jeito, trazendo filosofia à própria vida e vida à filosofia. Isso,
por sua vez e curiosamente, somente se torna possível por uma espécie de
abandono de nós mesmos na experiência da leitura, para que possamos che-
gar diferentemente até nós.

172 Exercícios de ser filosofia


O filosofar exige a expressão do pensamento, seja para nós mesmos,
seja para o outro, e essa experiência nos lança em direção a nós mesmos e em
direção ao outro que está junto de nós nessa leitura do texto, da filosofia, da
vida. Esse fazer filosófico implica uma escuta e uma leitura de mundo visce-
ral e também autoral e é o exercício da escuta e da leitura que nos permite fa-
lar e escrever nosso mundo, a nossa vida, vivificando novas escutas e leituras
do que somos todos nós.

Referências
DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Entrevista com G.Deleuze.
Editoração: Brasil, Ministério da Educação, TV Escola, 2001. Paris: Éditions
Montparnasse, 1997, VHS, 459min.

KOHAN, Walter Omar. Infância. Entre Educação e Filosofia. Belo Horizonte:


Ed. Autêntica, 2003.

LARROSA, Jorge. Apresentação. In: Pedagogia Profana: Danças, piruetas e


mascaradas. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2003. p. 7-18.

Exercícios de ser filosofia 173


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