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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

EDUARDO OLIVEIRA DE ALMEIDA

À PROCURA DA INTENÇÃO: UMA ETNOGRAFIA DO SETOR DE VULNERÁVEIS


DA POLÍCIA CIVIL DO PARANÁ

CURITIBA
2020
EDUARDO OLIVEIRA DE ALMEIDA

À PROCURA DA INTENÇÃO: UMA ETNOGRAFIA DO SETOR DE VULNERÁVEIS


DA POLÍCIA CIVIL DO PARANÁ

Dissertação apresentada ao curso de Pós-


Graduação em Antropologia e Arqueologia, Setor
de Ciências Humanas, da Universidade Federal do
Paraná, como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Antropologia e Arqueologia.

Orientadora: Prof.ª Dra. Ciméa Barbato Bevilaqua.

CURITIBA
2020
para Angelita, minha mãe
AGRADECIMENTOS

A pesquisa que apresentarei nas próximas páginas não teria acontecido sem
o apoio e financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES). Deixo meus sinceros agradecimentos à instituição.
Estive acompanhado por pessoas incríveis durante o período do mestrado e
da escrita da dissertação. Pessoas de quem recebi grande apoio.
Agradeço às professoras, professores e à secretaria do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Paraná pelo
empenho incansável em nossa formação de excelência.
Em especial, gostaria de dizer muito obrigado à minha orientadora, Ciméa
Barbato Bevilaqua, pela atenção, rigor e generosidade de suas leituras e conselhos.
Agradeço também a Flávia Medeiros, Juliane Bazzo e João Rickli por terem
aceitado o convite para a banca de defesa e, no caso de Juliane e João, estendo
meus agradecimentos pelas valiosas contribuições no exame de qualificação.
Às professoras e professores do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Estadual de Maringá, com quem aprendi tanto, gostaria de agradecer
pela formação, de modo geral. Em especial, à Eliane Sebeika, Eide Sandra Azevedo
Abreu e Thomás Meira.
Colegas e docentes do Núcleo de Pesquisa de Antropologia da Política, do
Estado e das Relações de Mercado (NAPER), muito obrigado pelos debates que em
muito influenciaram a escrita da dissertação.
Agradeço também ao pessoal da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa
da Polícia Civil do Paraná pela recepção sempre gentil durante meu trabalho de
campo.
Agradeço à escrivã do Setor de Vulneráveis, a quem chamo de Roberta
nesse trabalho, pela disponibilidade de explicar exaustivamente os procedimentos
investigativos de sua atribuição.
Para minha grande amiga Luara, agradeço o carinho, dedicação e
companheirismo. Talvez eu tenha tido sorte de te encontrar – mas se um dia ela
faltar, eu poderia costurar à mão, com uma agulha torta e pouca linha, os botão que
juntam a gente nessa vida.
Aline e Luana, obrigado pela parceria incansável, em especial quando mais
precisei. A vida nas terras frias da capital teria sido insuportável sem vocês e sem o
fumaceiro no meio das nossas risadas.
Alicinha, Ana Laura, André, Beatriz Protázio, Beatriz Rangel, Clara, Gian,
Laís, Lorena, Norma e Pedro – estou muito feliz por poder contar com amizade de
vocês. Agradeço pelos abraços, os cafés e as conversas – hiper ou anti materiais.
Agradeço também ao apoio do meu pai José Carlos, minha tia Vera Lúcia,
minha prima Aline e meu primo João Luís.
Álvaro, no meio de tudo, descobri com você como é bom confiar no carinho
de quem se ama. Obrigado pela alegria e intensidade que tem sido a tua companhia;
por ser, na boca da noite, o gosto de sol.
Para terminar, agradeço em memória de minha mãe Angelita, a pessoa com
quem eu mais gostaria de compartilhar o fim desse processo. A minha grande
saudade. Ao longo de toda minha vida, minha mãe foi a pessoa que mais me apoiou
e me deu suporte. Imaginei-me muitas vezes comemorando tudo isso com ela –
éramos imbatíveis juntos. De todo modo, minha mãe, meu maior agradecimento é
seu.
Para trabalhar direito, não temos necessidade de uma totalidade.
(Donna Haraway, em O manifesto ciborgue, 2000 [1985], p. 91)
RESUMO

O objetivo deste trabalho é abordar a constituição dos crimes contra


vulneráveis investigados pelo Setor de Vulneráveis da Divisão de Homicídios e
Proteção à Pessoa da Polícia Civil do Paraná. O Setor é responsável por apurar
crimes dolosos cuja motivação seja discriminação ou preconceito de cor, raça ou
etnia, religião, procedência nacional, idade, identidade de gênero, orientação sexual,
bem como em razão de a pessoa ser deficiente ou estar em situação de rua. O
trabalho é fruto de uma pesquisa etnográfica realizada nas dependências dessa
unidade entre março e outubro de 2019. Para abordar o tema, privilegiou-se o modo
como os casos se constituíam enquanto atribuição da polícia, ou seja, como eram
noticiados, investigados e concluídos pelo trabalho de investigação policial. A
existência de uma unidade exclusiva para tais casos, a legislação que os tipifica e o
trabalho policial de apuração dos crimes ganham destaque para compreender a
constituição dos crimes investigados pelo Setor. Tais crimes dependiam também da
comprovação do dolo específico, que diz respeito a uma motivação exclusiva e
intencional de discriminar. Assim, a procura por uma intenção unívoca dos
investigados se estabelece como um elemento central e de destaque para
compreender o modo pelo qual os crimes contra vulneráveis constituem-se nas
dependências do Setor que deles se ocupa.

Palavras-chave: Etnografia. Investigação policial. Crime de racismo. Injúria racial.


Dolo específico.
ABSTRACT

This master thesis aims to describe how crimes against vulnerable people
are investigated by the Setor de Vulneráveis, a specialized law enforcement unit in
Curitiba that investigates willful crimes motivated by discrimination or prejudice of
color, race or ethnicity, religion, national origin, age, gender identity, sexual
orientation, disability or homelessness. The results were reached through
ethnographic research, which took place in the Setor de Vulneráveis’s facilities
between March and October 2019. The issue was approached from the perspective
of how cases came to be constituted an attribution of the police, that is, how they
were reported, investigated and concluded by the unit’s investigative work. The
existence of a specialized unit for dealing with such crimes, the legislation that
typifies them and the police work done to ascertain them are also brought into focus
as a means to understand the constitution of the crimes investigated by the unit.
Such crimes also depended on proof of dolo específico, a specific intent regarding an
exclusive and willful motivation to discriminate. Therefore, the search for an
unambiguous intention from the defendants’ part appears as a central element to
discuss the procedures through which crimes against vulnerable people are
constituted within the police unit in charge of them.

Keywords: Ethnography. Police investigation. Race discrimination. Willful crime.


LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – DIVISÃO DE HOMICÍDIOS E PROTEÇÃO À PESSOA………………..30


LISTA DE ABREVIATURAS OU SIGLAS

ALEP Assembleia Legislativa do Paraná


CONSEPIR Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial
CPF Cadastro de Pessoa Física
CRPPR Conselho Regional de Psicologia do Paraná
DACHRI Delegacia de Atendimento a Crimes Homofóbicos, Racismo e
Intolerância Religiosa
DAGV Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis
DECRADI/RJ Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância do Rio de
Janeiro
DECRADI/SP Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância de São
Paulo
DECRISA Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Saúde
DHPP/PR Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa do Paraná
DM Delegacia da Mulher
DPP Delegacia de Proteção à Pessoa
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais
LGBTTQIA+ Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queers,
Intersexuais, Assexuais
MP Ministério Público
MPPR Ministério Público do Paraná
NUCIBER Núcleo de Combate aos Cibercrimes
NUCRIA Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de
Crimes
NUPIER Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico-Racial
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
PCPR Polícia Civil do Paraná
PDT Partido Democrático Trabalhista
PJPPC Promotorias de Justiça e Prevenção e Persecução Criminal
PPS Partido Popular Socialista
PSD Partido Social Democrático
PSDB Partido da Social Democracia Brasileria
PT Partido dos Trabalhadores
PUCSP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
SDP Setor de Descoberta de Paradeiros
SUS Sistema Único de Saúde
UFPR Universidade Federal do Paraná
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 16
1.1 “...SÓ VENDO OS B.O.?” .................................................................................... 21
1.2 ORGANIZAÇÃO DOS CAPÍTULOS .................................................................... 26
2 AS EXISTÊNCIAS DO SETOR DE VULNERÁVEIS ............................................. 28
2.1 O ESPAÇO E O ENDEREÇO DO SETOR.......................................................... 29
2.2 O DECRETO 5.241 DE 4 DE OUTUBRO DE 2016 ............................................ 32
2.2.1 O Decreto do Setor .......................................................................................... 33
2.2.2 O Setor do Decreto .......................................................................................... 37
2.3 O SETOR DENTRO E FORA DA DIVISÃO ........................................................ 47
2.3.1 O Setor da publicização ................................................................................... 48
2.3.2 O Setor de dentro da Divisão ........................................................................... 51
3 AS COMUNICAÇÕES DO CRIME E O COMEÇO DA INVESTIGAÇÃO .............. 60
3.1 A CHEGADA DAS NOTÍCIAS-CRIME NO SETOR ............................................. 60
3.1.1 Identificando vítimas, desconhecendo autores ................................................. 62
3.1.2 O entusiasmo da investigação ......................................................................... 66
3.1.3 O tempo da conduta criminosa ......................................................................... 69
3.2 AS OITIVAS DO SETOR: HISTÓRIAS DE VÍTIMAS, AUTORES E
TESTEMUNHAS ....................................................................................................... 71
3.2.1 A chegada no Setor: identificar e intimar .......................................................... 73
3.2.2 Em busca de uma lógica do caso: qualificar e ouvir ......................................... 77
3.2.3 Autores e vítimas contra a retórica investigativa .............................................. 84
3.3 LIÇÕES SOBRE O TRABALHO INVESTIGATIVO ............................................. 87
3.3.1 Vítimas e autores “nem sempre são o que parecem ser” ................................. 90
3.3.2 Em busca da “verdade” e da “justiça” ............................................................... 94
4 OS REGISTROS E DECISÕES DA INEXISTÊNCIA DO CRIME .......................... 99
4.1 OS INQUÉRITOS POLICIAIS ............................................................................. 99
4.1.1 A digitalização dos inquéritos ......................................................................... 102
4.1.2 O inquérito de Ângela ..................................................................................... 109
4.2 A EXISTÊNCIA DO “DOLO” .............................................................................. 120
4.2.1 Se não dá pra ver, como é possível discriminar? ........................................... 123
4.2.2 Encontrando a pureza da intenção ................................................................. 125
4.2.3 A existência do dolo não é sempre consensual ............................................. 127
4.2.4 Os Relatórios .................................................................................................. 130
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 135
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 139
ANEXO 1 – ORGANOGRAMA DA DIVISÃO DE HOMICÍDIOS E PROTEÇÃO À
PESSOA ................................................................................................................. 148
16

1 INTRODUÇÃO

Você é o João Guilherme?” – indagou-me o policial de plantão na Divisão de


Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil do Paraná (DHPP/PR), quando
perguntei por Roberta1, a escrivã do Setor de Vulneráveis. Por conta de um
imprevisto da rotina investigativa da Divisão, ela não estava no horário que
havíamos combinado por telefone, a tarde da segunda-feira do dia 8 de abril de
2019. Como era a única funcionária do Setor, sua ausência impossibilitava o retorno
efetivo ao meu trabalho de campo. No dia seguinte, quando voltei para encontrá-la,
Roberta se desculpou, mas sem muitos rodeios me avisou sobre a rotina do trabalho
da polícia ser cheia de situações que fugiam do controle e seria melhor eu me
acostumar. Além disso, lamentou não ter podido ouvir na tarde do dia anterior a
vítima de um caso de homofobia, que supus ser João Guilherme, a pessoa com
quem fui confundido pelo policial.
Roberta me conhecia desde outubro de 2018, quando procurei o Setor para
pedir autorização para realização da minha pesquisa. Havíamos combinado que eu
começaria o trabalho de campo em fevereiro, mas retornei da casa dos meus pais
para Curitiba apenas no fim de março, porque minha mãe não estava bem de saúde.
Havia voltado de Tuneiras do Oeste, no noroeste do estado, há uma semana e
depois dessa conversa com a escrivã e a autorização da nova Delegada chefe da
DHPP, a “doutora”, passei a acompanhar a rotina do Setor.
Pouco mais de um mês depois, indo semanalmente à Divisão, segui outra
vez em direção ao Setor para acompanhar a oitiva de um caso tipificado como de
injúria racial, o caso de Joana. Como de costume, entrei na Divisão e passei pelo
plantão para perguntar por Roberta. Não fazia muito tempo que eu havia começado
a pesquisa naquela unidade, por isso, não era conhecido pelos policiais do plantão.
Sendo assim, fazia questão de sempre perguntar pela escrivã. Nunca fui barrado e
poucas vezes perguntaram-me o motivo da minha procura por Roberta – em geral,
assim que dizia meu nome, os policiais indicavam o caminho de sua sala, a sala do
Setor. Na companhia da escrivã, esperávamos a chegada de três funcionários de

1
Os nomes mencionados durante essa dissertação são pseudônimos, com o objetivo de resguardar
as identidades das pessoas, conforme as exigências feitas por Roberta e pela Delegada da Divisão.
Com exceção dos Deputados e da coordenadora da Divisão de Políticas para Pessoas LGBT da
Secretaria da Justiça, Família e Trabalho, citados pelos seus nomes verdadeiros no Capítulo 1.
17

uma loja de departamentos, onde o crime teria acontecido. Alguns dias antes, Joana
havia sido ouvida e contou que enquanto escolhia algumas maquiagens, duas
mulheres e um homem se referiram ao cabelo de pessoas negras como “ruim” e
quando a viram debocharam de seus cachos. Então, procurou o Setor para fazer um
Boletim de Ocorrência a respeito do acontecido.
Era uma das primeiras oitivas que eu acompanhava e estava muito
interessado no modo pelo qual a escrivã investigava e concluía se havia o crime.
Roberta logo me disse que o mais importante nos casos do Setor era descobrir a
intenção da pessoa investigada, a intenção específica de discriminar, o “dolo
específico”. As pessoas intimadas chegaram, mas ainda faltava a “doutora” – assim
que chegou, a primeira oitiva começou. A Delegada e a escrivã, uma do lado da
outra, de frente para a pessoa investigada, se revezaram nas perguntas, não sem
antes retomar a portaria impressa que instaurava o inquérito e estava sobre a mesa
da escrivã. Não sem antes advertir a pessoa ouvida de que se tratava de uma
gravação e, por isso, era preciso falar em alto e bom som. Queriam saber o que ela
se lembrava da situação, qual a versão dela para a história, se havia mesmo dito o
relatado por Joana e qual o contexto do acontecimento.
Depois de termos ouvido que ela não havia rido do cabelo da noticiante,
Roberta tomou a palavra. De modo bastante enfático, direcionando a oitiva para o
fim, perguntou: “você teve a intenção de discriminar ou menosprezar a cliente da loja
por conta de sua cor?”.

***

Voltarei a esse caso ao longo do segundo capítulo, para descrever os


detalhes das oitivas dos envolvidos. O seu final, entretanto, contarei agora: ninguém
foi indiciado. O inquérito não encontrou a materialidade do crime, ou seja, a
comprovação do dolo específico, e a principal razão foi o vídeo fornecido pela loja
que, segundo Roberta, comprovava que os funcionários não teriam visto Joana e
isso impossibilitava o indiciamento. O argumento girava em torno da visão – se,
conforme a gravação, eles não a viram, como poderiam tê-la discriminado? Por
analogia e por contraste, o caso de Joana ajuda muito a pensar sobre os crimes
tipificados pela Lei 7.716 e pelo parágrafo terceiro do artigo 140 do Código Penal, os
chamados crimes de racismo e injúria racial, respectivamente. Ele é um exemplo de
18

caso que, mesmo investigado, não teve desfecho de acordo com a expectativa da
vítima. Por outro lado, como se tratou de um dos poucos casos de discriminação
racial que acompanhei no Setor, pode ser visto também quase como uma exceção
dentre os casos investigados em tal unidade.
Esse último ponto pode ser, ainda, vinculado à certa descaracterização
desses dispositivos penais, que surgiram como frutos das articulações e denúncias
dos movimentos sociais negros sobre o racismo contra pessoas negras e a
consequente desigualdade racial brasileira, mas que têm perdido sua especificidade.
Tratarei de todas essas questões mais detidamente ao longo da dissertação.
O objetivo que presidia minha inserção e interesse no órgão policial era o
modo pelo qual os crimes contra vulneráveis eram constituídos, do que dependiam
para existir enquanto tais. A ideia de crimes contra vulneráveis vinha do próprio
nome do Setor – de Vulneráveis –, cuja atribuição é investigar crimes de
discriminação e preconceito motivados por cor, raça ou etnia, religião, procedência
nacional, idade (idosos, especificamente), identidade de gênero, orientação sexual,
pela deficiência física e situação de rua.
Estava eu diante de uma unidade especializada da Polícia Civil do Paraná,
com o objetivo de realizar uma etnografia a respeito de sua atuação. Mas, afinal, a
que diz respeito uma unidade especializada?
Uma situação que vivi em campo ajuda a explorar essa questão. Fazia
quase dois meses que eu havia começado a pesquisa no Setor e, mais uma vez, ao
chegar nas suas dependências passei pelo plantão. Em geral, o plantão possuía
alguns investigadores que recebiam as pessoas e registravam os Boletins de
Ocorrência relativos às delegacias de homicídio, que compunham a mesma Divisão
à qual o Setor estava ligado e ficavam no segundo pavimento do prédio. Nesse dia,
não perguntei por Roberta assim que entrei no plantão, porque vi uma mulher
acompanhada por uma criança, que tive a impressão de serem mãe e filha. Essa
mulher, cujo nome não consegui ouvir, reclamava que suas malas haviam sido
extraviadas, a uma quadra da DHPP, na rodoviária, e tentava registrar um boletim
de ocorrência. Tentava sem o menor sucesso, porque o policial dizia não poder fazer
nada por ela, pois ela deveria ir à delegacia especializada que tratava, justamente,
de extravios, indicando, inclusive (sem muita precisão) o endereço. Perguntado por
ela o motivo pelo qual não podia fazer ali mesmo, alegando se tratar do mesmo
sistema, o investigador reforçou o caráter especializado das delegacias e, sendo
19

assim, o motivo pelo qual procurava ser atendida não correspondia àquele. Depois
de insistir um pouco, a mulher, cabisbaixa, saiu puxando a criança pelo braço sem
seu Boletim de Ocorrência.
As especializadas, em geral, aparecem voltadas para um público e/ou a um
crime específico, como as Delegacias da Mulher e de Homicídio. Entretanto, é
possível pensá-las também por aquilo que se negam a atender, ou seja, como
aquelas que deixam de registrar a notícia de um crime. E isso, pelo menos a
princípio, não está ligado a negligência da investigação, mas à atribuição
institucional de o atendimento e a investigação se passarem em outro espaço,
encabeçados por outras pessoas, ainda que tudo seja “parte de um mesmo
sistema”. Contudo, se na prática as especializadas podem ser definidas por um
público, um tipo de crime e também por aquilo que deixam de investigar, as próprias
competências que as diferenciam umas das outras são, às vezes, matéria de conflito
e envolvem diferentes elementos – farei um comentário mais detalhado a respeito
disso no segundo capítulo.
Estava eu diante de uma unidade especializada da Polícia Civil paranaense
voltada para crimes de preconceito ou discriminação, com o objetivo de realizar uma
etnografia.
O tema não é novo na produção antropológica e abrange diferentes
abordagens e perspectivas. No Brasil, por exemplo, os primeiros estudos das
práticas de policiais civis (KANT DE LIMA, 1989) e militares (MUNIZ, 1999) do Rio
de Janeiro as trataram como representativas de uma “cultura policial”.
Na primeira década dos anos 2000, surgiram alguns trabalhos a respeito das
Delegacias da Mulher (DM), a partir de um enfoque parecido (SANTOS, 2001;
RIFIOTIS, 2004), ao encontrar na cultura – policial ou da sociedade – a justificativa
para as práticas de tais agentes da segurança pública e também de quem procurava
pelas Delegacias. Frutos de reivindicações dos movimentos sociais feministas, as
DMs foram criadas em meados dos anos 1980 e atraiu a atenção de
pesquisadoras/es preocupados com a efetivação de direitos recém conquistados.
Alguns dos enfoques, por exemplo, foi o entendimento dos policiais sobre os casos
dessas Delegacias como não sendo assunto de polícia, mas de âmbito privado, e
também, o modo pelo qual acabaram não correspondendo às expectativas dos
movimentos organizados que a reivindicaram, por não produzirem muitos
indiciamentos. Etnografias nas DMs foram e continuam a ser um objeto privilegiado
20

e bastante representativo do campo (SANTOS, 1999; DEBERT; GREGORI 2002;


DEBERT; GREGORI; PISCITELLI, 2006; OLIVEIRA, 2008). E, mais recentemente,
como demonstraram os trabalhos de Andrade (2012), Nadai (2012) e Lins (2014), ao
conjugarem análises sobre a constituição da violência doméstica, os novos
dispositivos jurídicos e os documentos que sedimentam as investigações policiais.
Entretanto, os estudos antropológicos sobre delegacias especializadas não
se resumem a elas, como demonstram as etnografias de Iubel (2009), Ferreira
(2011) e Costa (2017), respectivamente sobre o Núcleo de Proteção à Criança e ao
Adolescente Vítimas de Crime (NUCRIA) em Curitiba, o Setor de Descoberta de
Paradeiros (SDP) da Delegacia de Homicídios da cidade do Rio de Janeiro e a
Delegacia de Estelionato também em Curitiba.
O argumento de uma “cultura policial” perdeu centralidade nos últimos
trabalhos e nos últimos anos, e deu lugar às condições e efeitos das práticas de
investigação policial, sem recorrer, necessariamente, a uma abstração conceitual
como via analítica. Nesse sentido, etnografias de Lowenkron (2012) e Medeiros
(2016) também apresentam contribuições importantes para compreender,
respectivamente, a atuação da Polícia Federal na investigação dos crimes de
pedofilia, e as linhas de investigação que sedimentavam as investigações feitas na
Divisão de Homicídios de Itaboraí, Niterói e São Gonçalo, na região metropolitana do
Rio de Janeiro.
De todo modo e a despeito das diferenças analíticas, as etnografias em
delegacias demonstram a rentabilidade de voltar-se para as práticas de investigação
policial, a partir de como o trabalho da corporação é desempenhado. Quando digo
que estou interessado no modo pelos quais os crimes do Setor de Vulneráveis são
constituídos, alinho minhas preocupações ao escopo das práticas cotidianas de
investigação e às rotinas burocráticas que as sustentam e das quais são frutos. Isso
implica estar preocupado com a existência de uma unidade especializada voltada
para eles, com o modo como chegam e os motivos pelos quais ficam, com os
desdobramentos das investigações que desencadeiam e a maneira pela qual
deixam o Setor em direção a outras instâncias estatais para resultar ou não em um
processo penal.
Se a procura pela intenção é o que constitui a centralidade das
investigações nos casos do Setor, assim o é porque amparada por um espaço onde
as investigações se passam, por uma legislação segundo a qual se vincula, pelas
21

notícias-crime responsáveis por comunicar o Setor a existência de algum crime,


pelos inquéritos policiais, técnicas de investigação e decisões a respeito da
materialidade do crime.
Com isso, não pretendo postular como as atividades devem ser, mas antes
encontrar os detalhes e as conexões que permitiam que as coisas se passassem do
modo como se passaram durante o período da pesquisa. Para poder encontrá-los,
contudo, lancei mão de recursos teóricos e metodológicos que possibilitaram-me
enxergá-los e associá-los. Ou seja, não são evidentes tampouco autoexplicativos. O
tópico a seguir tratará justamente disso, de como os dados de pesquisa foram
produzidos e analisados.

1.1 “...SÓ VENDO OS B.O.?”

“Você é estagiário?”, perguntou-me Vanderlei com seus braços cruzados e


costas coladas na cadeira onde estava, assim que Roberta se ausentou e ficamos
sozinhos por alguns minutos. Apresentei-me e disse que estava realizando minha
pesquisa de mestrado. “Então você fica aí, só vendo os B.O.?!” 2. Concordei e rimos
juntos, antes de um silêncio mais ou menos constrangedor tomar conta da sala
enquanto esperávamos por Roberta.
Tratava-se de um dia atípico no Setor, muitas pessoas circulando por sua
sala e muitas oitivas marcadas. Estávamos em meados de agosto e naquele dia eu
me dividia entre inquéritos e oitivas. Vanderlei, um homem autodeclarado branco,
esguio, cuja profissão era borracheiro, estava sendo investigado por intolerância
religiosa. Como de praxe, Roberta havia me apresentado assim que ele chegou à
sala do Setor e, em seguida, perguntou se ele autorizava a minha presença durante
sua oitiva. Para conferir ainda mais credibilidade, ela mantinha a versão do meu
projeto de pesquisa que eu havia submetido ao então chefe da Divisão, no fim de
2018, ao alcance de qualquer pessoa, sobre um móvel onde não ficavam inquéritos,
apenas o projeto e um vaso de flor. E, também, fazia questão de mencionar a
autorização da Delegada para minha pesquisa e minha presença.
Esse modo de Roberta me apresentar era recorrente e o que havia de novo
era a síntese de Vanderlei sobre meu trabalho. Voltarei a ela mais adiante. Por hora,

2
“B.O.” aqui não tem a ver apenas com os boletins de ocorrência, mas com os crimes propriamente.
22

a cena serve para explicar as condições do meu trabalho de campo. A etnografia


que segue é fruto, principalmente, de seis meses de trabalho de campo, entre abril e
outubro de 2019, no Setor de Vulneráveis. Fui autorizado pelo então Delegado-chefe
da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa no fim de 2018 e autorizado mais
uma vez pela nova Delegada no começo de 2019. Roberta mediou o processo, junto
com uma versão do meu projeto de pesquisa protocolado na secretaria da DHPP e
com uma carta de minha orientadora, Ciméa Bevilaqua, apresentando-me e também
a minha pesquisa. As pessoas ouvidas nas oitivas eram consultadas sobre a
pesquisa antes de informarem qualquer dado a respeito de seus casos e se me
autorizavam a acompanhar a investigação.
A pesquisa no Setor não era minha primeira opção. Entrei no mestrado com
a proposta de estudar as atividades do Núcleo de Combate aos Cibercrimes
(NUCIBER), também vinculado à Polícia Civil do Paraná, em especial, os crimes de
racismo na internet. O delegado responsável pelo núcleo, entretanto, não me
autorizou acompanhar a rotina de lá, tampouco consultar os inquéritos policiais e os
boletins de ocorrência que transitavam naquele espaço. Justificou que os
estelionatários (os principais investigados da especializada) seriam uma gente muita
esperta, qualquer informação dali poderia ser matéria para o aperfeiçoamento de
suas práticas ilícitas. Sugeriu-me consultar a Delegacia da Mulher, onde, em suas
palavras, haveria uma parceria mais consolidada com pesquisadoras e
pesquisadores (flexão de gênero minha). Diante da impossibilidade de acompanhar
os casos de racismo que eu até então imaginava serem de atuação do NUCIBER,
voltei-me para a possibilidade de acompanhá-los a partir de outras delegacias
especializadas.
Foi nesse movimento que descobri o Setor de Vulneráveis, pela página da
Polícia Civil na rede. Nas primeiras visitas ao Setor, soube que as discriminações
raciais feitas na Internet também eram investigadas por lá e não pela especializada
em crimes virtuais. Entretanto, não estava mais disposto a focar em um único tipo de
crime – ou, pelo menos, não mais a princípio – pois gostaria de entender melhor o
fluxo de casos que passavam por essa especializada, para então pensar em um
recorte. Interessei-me pelo Setor em questão porque parecia apresentar um tipo de
associação inusitada: o que possibilitava a articulação de tantos “grupos” sob o
mesmo nome de “vulneráveis”? O que tinham em comum pessoas negras, lésbicas,
gays, bissexuais, travestis, moradoras e moradores de rua, pessoas idosas e vítimas
23

de intolerância religiosa que permitia esse vínculo? Ou seria um vínculo feito a partir
de alguma ideia de diferença?
Não me parecia estar em questão a constituição de novos sujeitos de direito,
de que, por exemplo, fala Schuch (2005) a respeito da promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA). Diferente também de um núcleo voltado para
crimes virtuais, não estava em questão um novo ambiente onde crimes conhecidos
poderiam ser efetuados. Embora a questão principal do trabalho tenha sido
deslocada para a maneira pela qual o crime e a investigação se constituíram, a
diversidade de experiências alocadas como um mesmo problema de polícia me
intrigava muito. Além disso, por ser um homem gay, possuía especial interesse nas
investigações do Setor em relação aos casos de discriminação contra pessoas
LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) – embora essa nomenclatura
esteja defasada, ela era que aparecia no Setor, por isso, mantenho dessa forma.
O que tenho pensado como a aparência da minha sexualidade também
ajudou para entrar em campo. Nunca fui muito questionado no plantão da Divisão e,
de prontidão, era encaminhado para sala do Setor – ou como no exemplo com o
qual abro essa introdução, em que fui confundido com uma vítima. Além disso,
Roberta demorou alguns meses para entender que meu interesse de pesquisa não
era apenas aos casos relacionados a LGBTfobia. Penso que havia (e ainda há) algo
no meu corte de cabelo, na minha fala, nas minhas roupas e nos meus gestos que
permitiam ao pessoal da DHPP me diferenciar como sendo assunto do Setor e como
o Setor sendo assunto meu. Se eu estava mesmo “só vendo os B.O.”, como sugeriu
Vanderlei, foi porque em alguma medida foi possível ver em mim, no meu corpo,
algo que me permitia estar lá sem muitos infortúnios.
Durante o tempo em que acompanhei as atividades do Setor, fui
semanalmente, de uma a cinco vezes, entre segunda e sexta-feira. Tudo era
combinado e recombinado semanalmente, para não sobrecarregar as atividades
desempenhadas naquela unidade. Passava manhãs e/ou tardes sentado em uma
mesa próxima a da escrivã, transcrevendo à mão os inquéritos policiais e
acompanhando as oitivas. A frequência dependia da disponibilidade de Roberta em
poder me acompanhar, pois como abordarei no primeiro capítulo e mencionei no
começo da introdução, quando a escrivã do Setor não estava em suas
dependências, a unidade não funcionava.
24

As pessoas, os papéis e as instituições que circulavam pelo espaço do Setor


também eram parte do meu trabalho de campo. Nesse sentido, apesar do lugar de
destaque que a escrivã ocupa em minha etnografia, essa última não se limita à
primeira, pois a leitora e o leitor encontrarão a presença e as ações de vítimas,
autores, testemunhas, pastas de papel, funcionários da Divisão e de outras
repartições públicas. Além, é claro, da própria Delegada responsável pelos
inquéritos do Setor, a chefe da DHPP.
Talvez seja o caso de descrever o meu trabalho nos marcos do que Candea
(2010, p. 34-35) chama de uma localidade arbitrária. Para manter as complexidades
dos dados de pesquisa, o autor defende o trabalho de campo circunscrito a uma
única localidade, em contraposição a um estudo multi-situado que guardaria em
seus termos e pressupostos a aspiração por um sistema coeso e completo. Definir o
sítio do trabalho de campo seria, pois, uma maneira de abrir espaço para as
contingências, ausências e conexões presentes em uma localidade. A rigor,
entretanto, não mantive meu trabalho de campo nas dependências do Setor: fui a
uma audiência pública de combate a uma homofobia na assembleia legislativa –
porque a presença de Roberta foi requisitada como a representante da unidade – e
analisei algumas notícias da criação do Setor de Vulneráveis e da implantação do
inquérito digital no Paraná. Mas, passei a maior parte do meu trabalho de campo nas
dependências do Setor – e por lá passavam pessoas, acontecimentos, normas e
práticas de diversas outras instituições. Não era eu quem saía, mas coisas que
chegavam, passavam e modulavam o que acontecia lá dentro.
As considerações de Candea podem ser e não ser próximas dos meus
procedimentos em campo. Elas são interessantes, de qualquer forma, por investir
em reflexões a respeito de estratégias analíticas para construir uma etnografia em
que aspirações de totalidade não achatem os dados de pesquisa.
A importância de pensar essas estratégias é com o que gostaria de
prosseguir; e inspiro-me também em Strathern (2014 [1999]) para aproveitá-la. Se
para poder “ver os B.O.” eu precisava estar dentro do Setor, acompanhando uma
rotina de trabalho constante, os modos como via dependiam de um vaivém entre as
dependências da polícia e os meus locais de estudo na época – ou seja, entre o
trabalho de campo, e o de leitura e escrita dos diários. Os modos como apresento os
dados de pesquisa em minha dissertação dependeram de tais momentos, na figura
25

do caderno de campo, e das reflexões às quais tive acesso durante todo o processo
de escrita.
Se as análises de campo não são lineares, tampouco foram as leituras às
quais me dediquei. Digo isso, porque as ideias relativas a abrir espaço para as
complexidades não se originam com Candea, mas nada impede que a discussão
seja acessada por ele. O único prejuízo seria o de não confirmar uma linearidade
nas revisões teóricas, linearidade que já é bastante confrontada nas considerações
a respeito do trabalho de campo. Tal prejuízo, entretanto, está longe de ser uma
grande perda.
Dessa forma, mencionar estratégias para fazer as complexidades
aparecerem não remete a um grande pressuposto anterior a qualquer incursão em
campo, tampouco a uma revisão bibliográfica sistemática. Não se trata também de
ficção versus realidade, mas de diferentes maneiras de elaborar articulações que
possibilitam descrever temporalidades e retóricas não lineares. A potência do
exercício não reside em uma pretensa maior aproximação ao que seria a realidade,
mas em um projeto de multiplicação das modalidades de registros acadêmicos com
vistas a proliferar a renovação dos debates, das reflexões e as controvérsias
envolvendo os objetos de estudo.
Tendo isso em vista e o objetivo de descrever a constituição dos crimes do
Setor de Vulneráveis, a partir dos esforços investigativos da polícia, abordarei “os
B.O.” que vi em diálogo com a antropologia do direito e do estado. Estudos voltados
para investigar as instituições centrais do nosso mundo (BEVILAQUA; LEINER,
2000), descrevendo – e desnaturalizando – os elementos que constituem seus
modos de conhecimento (LATOUR, 2012; STRATHERN, 2014 [1987]). A principal
estratégia é não pressupor nas análises uma anterioridade legal e estatal às práticas
que efetivam suas existências, como se os casos e a atuação das pessoas
vinculadas ao Setor fossem uma aplicação automática de normas, leis e estatutos.
Ou, dizendo de outra forma, que não fossem vistos de partida como exemplos de
alguma entidade anterior e maior (MOL; LAW, 2002). Essa abordagem permitiu
deixar aberta a possibilidade de, inclusive, descrever o Estado como um ente
abstrato, quando foi assim referido – levando em consideração críticas importantes
sobre a abordagem holística do Estado (TAUSSIG, 1993; MITCHEL, 2006), mas
buscando diferenciar reificações antropológicas e nativas
26

Em síntese, a perspectiva que adotei para construir o texto a seguir está


muito informada por uma abordagem que considera as atuações do direito como
resultados indeterminados das práticas que o constituem (YNGVESSON; COUTIN,
2008). Se a instabilidade e as controvérsias são importantes, o modo pelo qual
unidades, ainda que temporárias, são construídas, o são na mesma medida
(BEVILAQUA, 2016). Ambas, em geral, estão conectadas e foram acessadas no
meu trabalho a partir das observações e dos diálogos em que me engajei nas
dependências do e sobre o Setor e sua atuação. Além disso, considerei os
documentos que circulavam pelo Setor como constitutivos da própria atuação da
unidade, da burocracia, do estado e da investigação – e, por conta de tudo isso, dos
próprios crimes (RILES, 2006; HOAG, 2011; HULL, 2012).
Dito tudo isso, talvez eu não estivesse apenas vendo “os B.O.”, como supôs
Vanderlei. Embora tenham sido importantíssimos para meu trabalho, também no
sentido empregado por ele, não se tratava apenas de ver. Mas ver, ouvir, ler, copiar,
discutir, entender e também me emocionar com eles. A constituição dos crimes do
Setor pôde, assim, ser sintetizada pela procura da intenção – porque amparada e
sustentada por uma institucionalização dentro da Polícia Civil, das notícias-crime
que chegavam e das investigações desencadeadas, e pelo modo como
completavam sua passagem por aquela unidade. Ou melhor, se tudo isso disser
respeito à possibilidade de enxergar, então, Vanderlei tinha razão.

1.2 ORGANIZAÇÃO DOS CAPÍTULOS

A dissertação está organizada em três capítulos, e todos eles informam a


questão sobre a constituição dos crimes no Setor de Vulneráveis. Ou talvez, mais
precisamente, sua não constituição, aquilo que impede que denúncias venham a
existir como crimes. No primeiro, intitulado “As existências do Setor de Vulneráveis”,
abordo o modo pelo qual o Setor – indispensável para a investigação dos crimes do
jeito como aconteceram – poderia ser multiplicado a partir das diferentes maneiras
de vincular a especificidade de sua atuação e o público para quem é voltado. Nesse
capítulo, trato da importância da intenção específica de discriminar para a
constituição dos crimes de atuação do Setor. No segundo, cujo título é bastante
elucidativo de seu conteúdo – “As comunicações do crime e o começo da
investigação” –, descreverei casos que chegaram ao Setor e foram ou não
27

transformados em inquéritos policiais. Além disso, abordo princípios do trabalho


investigativo constantemente repetidos pela escrivã do Setor para, justamente,
encontrar a intenção do investigado. Para terminar, prossigo com uma discussão a
respeito dos elementos que compõem o inquérito, também indispensável para a
constituição dos crimes no Setor – a comprovação da materialidade do crime e do
trabalho investigativo. E encerro com momentos decisivos relativos a quatro casos
nos quais a intenção de discriminar não foi encontrada, para abordar o desfecho de
uma procura bastante específica – a procura da intenção.
28

2 AS EXISTÊNCIAS DO SETOR DE VULNERÁVEIS

No momento da pesquisa, a constituição dos crimes contra vulneráveis em


Curitiba esteve intimamente associada a existência de uma instância policial, cuja
principal atribuição legal era investigar determinados crimes motivados por
discriminação ou preconceito: o Setor de Vulneráveis. Neste capítulo, meu objetivo
principal é descrever diferentes modos de existência desse Setor, pertencente à
Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). O material utilizado para isso
são normas legais que o constituem, práticas que o sustentam cotidianamente e a
apresentação pública de suas atividades. Buscarei argumentar que o Setor existe de
modos distintos, sobrepostos e nem sempre convergentes, em vez de descrevê-los
como expressões distintas de um fenômeno único.
Assim o faço inspirado por Mol (2007), para quem a realidade é o resultado
de práticas de conhecimento que interferem na sua constituição e efetivam
existências concomitantes. Nesse sentido, o vocabulário empregado pela autora é o
de realidades que são múltiplas: “o que a ‘multiplicidade’ implica é que embora as
realidades possam ocasionalmente colidir umas com as outras, noutras alturas as
várias performances de um objecto podem colaborar e mesmo depender umas das
outras” (sem paginação). Isso permite uma abordagem analítica que, ao se
desdobrar em diferentes escalas, ajuda a escapar de um ideal de unicidade, assim
como de uma separação irrestrita entre as “performances” enfatizadas pela autora.
Consequentemente, permite uma descrição que não prioriza de partida algumas
práticas em favor de outras, justamente por abarcar a possibilidade de existências
no plural.
No primeiro tópico, descreverei as instalações físicas do Setor e um conflito
sobre seu endereço, para pensar sua existência espacial. Em seguida, tratarei do
decreto que o inaugurou, em especial as atribuições e as leis mencionadas por ele,
para pensar sua existência legal-institucional. No terceiro, da existência do Setor
dentro e fora da DHPP, para enfatizar o modo como essa unidade policial existia na
Divisão, e em duas das instâncias onde foi publicizado – uma audiência de combate
à homofobia e algumas notícias da criação do Setor de Vulneráveis.
Meu objetivo é destacar como cada existência do Setor esteve associada a
um tipo de população específica e/ou um trabalho policial especializado.
29

2.1 O ESPAÇO E O ENDEREÇO DO SETOR

O Setor de Vulneráveis da Polícia Civil do Paraná (PCPR) estava localizado


no Centro de Curitiba nas dependências da Divisão de Homicídios e Proteção à
Pessoa (DHPP), na Avenida Sete de Setembro, 2077. A Divisão, cuja Delegada
Chefe é a responsável pelas investigações no Setor, é dividida entre a subdivisão de
Homicídios e a de Proteção à Pessoa. A primeira é composta por quatro Delegacias
de Homicídio, cada uma delas correspondente a uma região da capital, e a segunda
composta pela Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Saúde (DECRISA) e
pela Delegacia de Proteção à Pessoa (DPP), da qual o Setor faz parte (cf. Anexo 1).
As unidades de investigação que funcionam nas dependências do Setor são as
Delegacias de Homicídio, localizadas no segundo pavimento do prédio e o Setor de
Vulneráveis, que apesar de pertencer à Delegacia de Proteção à Pessoa, funcionava
no térreo da Divisão – a primeira modalidade de sua existência que destacarei.
A duas quadras do Mercado Municipal da capital, o Setor se avizinhava a
algumas lojas de embalagens em uma larga avenida de mão dupla, com fluxo
constante de carros e transeuntes. A localização da DHPP estava longe de ser
monótona. A Divisão ocupava uma esquina no cruzamento entre a Avenida Sete de
Setembro e a Rua Francisco Torres. O prédio geralmente estava cercado por
viaturas da Polícia Civil – grandes carros pintados de preto e branco e que ostentam
o brasão da PCPR em suas frentes e laterais, acompanhado da palavra “polícia”,
grafada em letras maiúsculas (ver Figura 1). A construção possuía dois pavimentos,
com a entrada principal sendo pela Avenida, embora houvesse também uma entrada
para a garagem pela Rua Francisco Torres.
Possuía duas placas em sua fachada: uma delas ficava acima da entrada e
carregava o nome da divisão policial, ao lado do brasão da PCPR e abaixo o nome
da secretaria à qual é vinculada – a saber, a Secretaria de Segurança Pública do
Estado do Paraná – e do órgão superior a ela nessa hierarquia – o Departamento da
Polícia Civil. A outra placa informava o número telefônico gratuito para efetuar
denúncias de homicídios – o Disque Denúncia Homicídios. Portas brancas, que
abriam na vertical, fechavam o prédio, tanto pela Sete de Setembro quanto pela
Francisco Torres e carregavam o brasão da PCPR. Além disso, possuíam
estampadas a abreviação da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa.
30

Entretanto, não havia nenhuma menção ao Setor de Vulneráveis na fachada do


prédio da Divisão.
Como é possível ver na figura abaixo (Figura 1), sua entrada era feita pela
porta espelhada, abaixo de uma das placas de sua fachada.

FIGURA 1 – DIVISÃO DE HOMICÍDIOS E PROTEÇÃO À PESSOA

FONTE: Google Street View (2018)

Ao atravessar a porta – a ser empurrada por quem entrava ou saía, como


recomendava o adesivo colado em seu exterior e interior –, era possível ver uma
escada no canto esquerdo, que levava para o segundo andar, e do seu lado havia
algumas cadeiras estofadas marrons. Antes dessas poltronas, na direita próxima de
quem entrava, era possível acessar o balcão do plantão, lugar onde eram
registrados os Boletins de Ocorrência3. Quem entrava e passava direto pela sala do
plantão parava nas poltronas – ocupadas por pessoas que esperavam para registrar
seus Boletins ou para serem ouvidas em investigações já instauradas – e
encontrava um corredor à direita que, por vezes, tinha seu acesso impedido por uma
porta: “entrada permitida somente para pessoas autorizadas”.

3
Não quaisquer boletins, evidentemente. Como mencionei na introdução, as delegacias
especializadas atendem a alguns tipos de crimes.
31

Para chegar à sala do Setor era preciso passar por aquela porta e depois de
alguns passos corredor a dentro, ela estava à direita. Dessa forma, o Setor ficava
bem atrás do plantão, o que muitas vezes servia para orientar as pessoas intimadas:
“você chega aqui [na DHPP] e procura por Roberta, uma sala que fica bem atrás do
plantão”. O Setor que era fisicamente encontrado em uma sala e, como descreverei
mais adiante, em uma pessoa.
Apesar de funcionar nessa localização, o endereço que constava nos
Boletins de Ocorrência era outro: “Rua Desembargador Ermelino de Leão, 513, São
Francisco, Curitiba”. Um dia, ao entregar um boletim de ocorrência para uma vítima
de um crime de injúria racial, Roberta explicou para o noticiante daquele crime e seu
advogado, depois que o segundo indagou-a a respeito do assunto, que o endereço
descrito no Boletim de Ocorrência era o da Delegacia de Proteção à Pessoa. Em
suas palavras, era esse o órgão ao qual o Setor pertencia. E completou do seguinte
modo: “mas, eu sou desmembrada de lá”. O principal motivo pelo qual o Setor e ao
mesmo tempo ela eram desmembrados da Delegacia de Proteção à Pessoa (DPP)
era bastante significativo para a população atendida naquelas dependências: as
escadas. O prédio da Delegacia de Proteção à Pessoa possuía inúmeras escadas, o
que poderia ser um empecilho para idosos e deficientes físicos noticiarem os crimes
contra eles. O Setor ficava, justamente, no térreo.
Nesses termos, havia uma primeira associação relativa à especificidade de
uma população: a suposição de que determinadas pessoas, para quem a atuação
especializada daquela unidade policial estaria voltada, não conseguiriam alcançar
fisicamente o lugar para registrar seus Boletins de Ocorrência. O Setor existia
naquele espaço para driblar condições do espaço físico que pudessem impedir o
acesso de parte da população de sua especificidade, e ao fazer isso, evitar falhar no
atendimento desse público – e, quem sabe, evitar se tornar, ele mesmo, vulnerável
por conta dessa possível falha de suas atribuições. Em síntese, o endereço daquela
unidade guardava em seu interior um espaço físico que fora arranjado para tornar
um trabalho de investigação especializado acessível ao seu público específico. Uma
existência do Setor voltada para vulneráveis.
No limite, tratava-se de um espaço físico que articulou uma atribuição da
unidade policial em questão, atender uma determinada população. A partir do
desmembramento em relação à Delegacia de Proteção à Pessoa, seu
funcionamento no térreo da DHPP contribuiu para realizar a existência do Setor
32

naquele espaço. Entretanto, tornar acessíveis suas incumbências não era sua única
atribuição. Havia outras delas, cuja especificidade tratarei como uma outra maneira
de encontrar a efetivação da existência dessa unidade policial; a seguir, uma delas:
o “Decreto do Setor”.

2.2 O DECRETO 5.241 DE 4 DE OUTUBRO DE 2016

Em uma das minhas primeiras visitas ao Setor de Vulneráveis, entrei na sala


de Roberta e, antes mesmo de dizer qualquer coisa muito além de um “Oi, tudo
bem?”, a escrivã à minha frente entregou-me um papel: “Eu imprimi algumas cópias
do Decreto que regulamenta o Setor, fique com uma pra você”.
Roberta quase sempre se adiantava às minhas perguntas e aos meus
pedidos, além de quase nunca me parecer acanhada para fazer sugestões ao meu
trabalho. Com uma altura em torno de um metro e setenta, a escrivã, autodeclarada
branca, de cabelos lisos, loiros e no meio das costas falava suas opiniões,
brincadeiras e desacordos de modo bastante firme e, muitas vezes, bem-humorado.
A mesa da escrivã era disposta de modo a possibilitar que ela ficasse ao mesmo
tempo de frente para o computador e para a porta, onde era possível conferir de
prontidão quem entrava, ter os dois armários sempre à vista e se dirigir a mim em
uma mesa à sua direita. A sala não era grande – para Roberta sair de sua mesa e ir
em direção à porta, eu quase sempre precisava movimentar minha cadeira um
pouco mais perto da mesa onde ficava.
O papel que ela me entregou naquele dia era o “Decreto 5241 – 04 de
Outubro de 2016”, responsável, nas palavras da escrivã, pela criação do Setor. A
justificava para uma nova unidade policial era a alteração no decreto de criação e
organização da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa – o de número 10.713,
de 09 de abril de 2014. Essa alteração criava uma nova atribuição para a Delegacia
de Proteção à Pessoa. Até então, competia a ela, à DPP, “a apuração da autoria dos
crimes dolosos contra a pessoa, de autoria ignorada ou incerta, previstos nos Artigos
122, 123, 124, 125 e 126 do Código Penal Brasileiro”. A nova atribuição mencionava
a investigação de crimes anteriormente não especificados, a saber:

a apuração de crimes dolosos, incluindo o homicídio, em que for


identificada a motivação por discriminação ou preconceito de cor,
33

raça ou etnia, religião, procedência nacional, idade, identidade de


gênero, orientação sexual, bem como em razão de a pessoa ser
deficiente ou estar em situação de rua, dentre outros, além daqueles
previstos no artigo 140, § 3.º, do Código Penal e na Lei Federal nº
7.716/1989.

A nova atribuição era referente à “apuração de crimes dolosos” motivados


por “discriminação ou preconceito”, bem como referente aos crimes previstos pelo
parágrafo terceiro do artigo 140 do Código Penal e da Lei Federal 7.716 de 1989.
São esses crimes que, uma vez tratados como matéria de menção e atenção
específicas, acabaram vinculados à criação de uma nova instância policial. Contudo,
em nenhum momento havia a citação do “Setor de Vulneráveis” no Decreto.
Tampouco, havia algo que sinalizava para essa nomenclatura ou para o surgimento
obrigatório de uma nova unidade policial. Apesar disso, a responsabilidade de sua
criação era encontrada nesse documento frequentemente. Assim, havia um modo
específico de fazer o Setor existir na sua própria criação e nomenclatura, um modo
que de partida não guarda nenhuma relação necessária, evidente e automática com
o Decreto.
A seguir, explorarei essa criação e nomeação do Setor, como uma maneira
de manusear a nova atribuição criada pelo Decreto e em um segundo momento
abordarei as tipificações penais mencionadas por esse documento, que sustentam a
legalidade penal de sua atualização (a Lei 7.716 e o parágrafo terceiro do artigo 140
do Código Penal). Meu objetivo é compreender a novidade do Decreto a partir de
seus próprios termos para argumentar em favor de uma existência legal e
institucional dessa unidade investigativa vinculada a atribuições mais gerais da
polícia civil e a uma população mais ampla.

2.2.1 O Decreto do Setor

O Decreto 5.241 especificava três novas atribuições para a Delegacia de


Proteção à Pessoa. A primeira delas era a apuração de crimes dolosos, incluindo o
homicídio, cuja motivação fosse discriminação ou preconceito de “cor, raça ou etnia,
religião, procedência nacional, idade, identidade de gênero, orientação sexual, bem
como em razão de a pessoa ser deficiente ou estar em situação de rua, dentre
34

outros”. A segunda era a apuração de crimes previstos pelo parágrafo terceiro do


artigo 140 do Código Penal, que qualificava o crime de injúria. O critério para a
qualificação consistia na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia,
religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. A última
especificação eram os crimes previstos pela Lei Federal 7.716 de 1989. Segundo
seu próprio texto, essa lei era responsável por definir legalmente os crimes
resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional.
Não havia menção de obrigatoriedade relacionada à criação de uma unidade
policial para dar conta das novas atribuições. As novas atribuições eram
direcionadas a uma instância já existente – a Delegacia de Proteção à Pessoa. O
Setor de Vulneráveis surgiu, então, como uma maneira dar conta dessas novas
atribuições da Polícia Civil4. A linguagem da vulnerabilidade foi acionada para
resolver institucionalmente especificidades aparentemente muito distintas, porque as
articulou na criação de uma nova unidade policial. Suponho que esse ato importe
porque pode ser visto como a primeira e mais clara expressão de como o Setor foi
entendido na experiência de quem o fez existir.
Todos os três elementos usados para dar corpo à nova atribuição falavam
em raça, cor, etnia e religião. A lei 7.716 mencionava esses quatro termos e
acrescentava a eles “procedência nacional”. O texto do Código Penal não falava em
“procedência nacional”, mas falava em “origem” e “condição de pessoa idosa ou
portadora de deficiência”. A redação do Decreto, que não mencionava lei alguma,
era a mais abrangente, pois além de tratar de raça, cor, etnia, religião e procedência
nacional, mencionava idade, identidade de gênero, orientação sexual, deficiência e
situação de rua. Ademais, encerrava sua abrangência genericamente ao falar em
“dentre outros”. Como me disse Roberta: “Aqui no Paraná, nós fazemos mais do que
diz na lei”, referindo-se ao alcance do Decreto 5.241.
A redação do Decreto 5.241 e a Lei 7.716 falavam em “discriminação” e
“preconceito”, ou melhor, “discriminação ou preconceito”. O texto do parágrafo
terceiro do Art. 140 do Código Penal não usava essas palavras, mas a doutrina que

4
As primeiras notícias que circularam na imprensa sobre a criação do Setor de Vulneráveis são do
final de 2016 e mencionam o então Delegado da DHPP e, também, seu superintendente, além de
alguns membros da OAB/PR. Fazia parte do projeto de pesquisa conversar com algumas dessas
pessoas para dispor de narrativas a respeito da história do Decreto e da criação do Setor. Entretanto,
devido a algumas adversidades, entre elas a pandemia do novo coronavírus, não pude concluir essa
parte da minha investigação.
35

consultei para compreendê-lo se referia a elas para explicar o aumento da pena


prevista em comparação com os crimes de injúria simples, tipificados pelo caput do
artigo 140. Tratarei desses detalhes logo adiante. De todo modo, “discriminação” e
“preconceito” articularam condições pessoais de existência aparentemente muito
diversas sob a possibilidade de uma mesma modalidade de relação. Uma relação
que colocaria uma das partes enquanto vítima e outra enquanto autora de
determinado crime motivado pela desqualificação de determinadas pessoas por
conta de características, ao mesmo tempo, individuais e ligadas a determinados
grupos.
“Preconceito ou discriminação” configuram uma “motivação criminosa” a ser
“apurada” e, a partir disso, o Setor de Vulneráveis, criado em 2016, surgiu para
investigar esses crimes e essas motivações. Diante das possibilidades de
discriminação abrangidas em tal documento – motivadas por raça, cor, etnia,
procedência nacional, religião, idade, sexualidade, identidade de gênero, situação de
rua e deficiência – a “vulnerabilidade” foi a linguagem escolhida para a
institucionalização desse Setor. Ela postulou uma especialização policial da
diferença, articulada em torno de uma mesma motivação criminosa – a
discriminação e o preconceito. Assim, ajudou a dar conta de conjugar sob um
mesmo espaço, sob uma mesma unidade, em um único “Setor”, o atendimento a
vítimas dos crimes mencionados pelo Decreto.
As experiências do estado de São Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo,
foram diferentes. A unidade policial responsável por investigar crimes de preconceito
na capital paulista é a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância
(DECRADI)5. Ela foi fundada em 2006 e substituiu a Delegacia Especializada de
Crimes Raciais, fundada em 1993, fruto de demandas de “representantes da
comunidade judaica, negra e nordestina da cidade de São Paulo” (FULLIN, 1999, p.
61-62). No Rio de Janeiro, também passou a existir uma DECRADI, que foi fundada
em 2018. Já em Aracaju, no Sergipe, a Delegacia de Atendimento a Crimes
Homofóbicos, Racismo e Intolerância Religiosa (DACHRI) faz parte do
Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV). Em todos esses
casos, as notícias de seu surgimento ou de sua atuação destacaram a discriminação
de pessoas negras, intolerância com religiões de matriz africana e preconceito

5
Sobre os crimes de intolerância registrados nessa unidade, ver Bokany (2013).
36

contra pessoas LGBT6 (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) como a principal


área de atuação das delegacias.
A criminalização do racismo, é importante destacar, faz parte de uma luta
histórica de reivindicação de direitos dos movimentos sociais negros do Brasil, que
articularam e articulam, entre diversas pautas, ações governamentais que corrijam
as desigualdades raciais do país. Na história recente do Brasil (1985-2016), ativistas
de movimentos sociais negros e suas demandas por igualdade racial estiveram
presentes dentro e fora das instituições, em âmbitos federais ou locais, e foram
decisivos para conquistas importantes dessa pauta (RIOS, 2018).
No Paraná, uma notícia do final de 2016 publicada na página do atual
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos menciona a visita da então
Secretária Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Luislinda Valois,
“às futuras instalações da Delegacia de Crimes de Racismo, Intolerância Religiosa,
Xenofobia e Afins, em Curitiba” (MMFDH, 2016). E relaciona a atuação da futura
Delegacia ao número de pessoas negras vítimas de homicídios por arma de fogo – o
dobro do número de pessoas brancas. A articulação entre a promoção da igualdade
racial e a criação do Setor tendo em vista as mazelas da população negra no Brasil
também foi possível de ser vista no Relatório de Atividades – Exercício de 2016 do
MPPR. A criação do Setor foi localizada dentro das ações do Núcleo de Promoção
da Igualdade Étnico-Racial (NUPIER), a partir da “necessidade de se determinar um
setor especializado na investigação em relação aos crimes cometidos contra grupos
vulneráveis no Estado do Paraná” (PARANÁ, 2018, p. 57).
Embora aquela notícia mencione a criação de uma delegacia, um setor foi
criado em uma delegacia já existente. O combate ao racismo era o principal enfoque
para a criação de uma nova instância policial. Entretanto, a unidade paranaense
voltada para os crimes de racismo e injúria racial deixou de levar em seu nome a
identificação específica em relação a tais crimes. Passou a abranger diferentes
categorias de vítimas de discriminação e preconceitos, e assim, a vulnerabilidade
contribuiu também para dissolver a ênfase no racismo e no seu combate.
Uma variedade de atributos e experiências foi abrangida pela linguagem da
vulnerabilidade na medida em que fez parte da qualificação da existência do Setor.

6
No debate político atual dos movimentos sociais, essa sigla tem caído em desuso e em seu lugar
uma mais abrangente tem aparecido: LGBTTQIAP+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros,
Transexuais, Travestis, Queers, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais e outras modalidades de
identidade de gênero e orientações sexuais).
37

A vulnerabilidade reuniu no Setor a amplitude do que o Decreto se propunha a


regulamentar. Assim, Setor e Decreto passaram a ser qualificados um pelo e outro
e, dessa forma, garantiram sua existência na produção conjunta de um documento e
de uma nova unidade de trabalho policial. Um modo de resolver uma nova
atribuição, que, além de não ser óbvio, nem espontâneo, e tampouco evidente,
articulou uma das existências do Setor.

2.2.2 O Setor do Decreto

Meu ponto de partida foi uma sala ocupada por uma escrivã cheia de
atribuições, recebendo ligações, vítimas e um antropólogo inconveniente: a sala de
um Setor da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil do Paraná.
A partir dela, tive acesso à história da criação dessa unidade policial ligada a um
documento – o Decreto em questão aqui. Isso me permitiu ouvir e falar em um
“Decreto do Setor”, que apesar de não ter mencionado o “Setor de Vulneráveis”
nesses termos, foi mobilizado para sua criação. Consequentemente, me fez olhar
para as novas atribuições de seu texto como tendo sido atribuições de tal unidade
policial. Ou seja, o movimento de mobilizar o Decreto 5.241 em função do Setor se
reverteu no próprio documento e o transformou no Decreto do Setor. Para melhor
compreendê-lo e explorar um outro aspecto da existência legal e institucional do
Setor de Vulneráveis, descreverei o que diz o texto dos dispositivos penais
presentes no Decreto em conjunto com as considerações do doutrinador Guilherme
de Souza Nucci.
Nucci era reconhecido por Roberta como um especialista dos crimes de
atuação da unidade policial em questão. Uma das suas justificativas era a de que
sua doutrina teria transformado o entendimento dos crimes de injúria racial, pois
teriam passado a ser considerados também como crimes de racismo e, por isso,
imprescritíveis e inafiançáveis7. Entendo os manuais de direito como uma prática,

7
Acusado por declarações públicas racistas em relação ao jornalista Heraldo Pereira, feitas em 2009,
o também jornalista Paulo Henrique Amorim foi condenado na ocasião, mas a câmara Criminal do
Tribunal de Justiça do Distrito Federal considerou o crime prescrito. O recurso julgado, em 2015, pela
6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça foi um caso de grande repercussão nacional e pode ser
usado como exemplo para essa indistinção, porque reconsiderou a imprescritibilidade. A decisão do
relator foi acompanhada por todos os outros ministros da Turma e dizia o seguinte: “De acordo com o
magistério de Guilherme de Souza Nucci, com o advento da Lei 9.459/97, introduzindo a denominada
injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e
sujeito à pena de reclusão”.
38

entre tantas, que possibilita a lei vir a ser alguma coisa. Nas obras que me informam,
especificamente, alguma coisa a ser ensinada. Os manuais servem, por exemplo,
para a formação e como argumento para diferentes profissionais no universo
jurídico: advogados, promotores, juízes, delegados e também escrivães como a
Roberta. Tendo em vista esses reconhecimentos, tratarei do texto do doutrinador
como uma espécie de informante privilegiado, cujas lições me ajudarão a entender
as leis 7.716 e o parágrafo terceiro do artigo 140 – e consequentemente, outro
aspecto de sua existência legal e institucional.

O parágrafo terceiro do artigo 140 e a Lei 7.716 de 1989


O Setor do Decreto deveria, sobretudo, investigar os crimes tipificados pelo
parágrafo terceiro do artigo 140 do Código Penal e pela Lei 7.7168. As leis
mencionadas definiam atribuições investigativas para o Setor e, dessa forma,
constituíam uma de suas razões de ser. Tais atribuições estavam sustentadas pelas
prescrições e discussões legais vinculadas ao bem jurídico que deveriam proteger,
as penas que acarretavam, o tipo de ação penal nelas implicado e o critério para
caracterizar tais crimes enquanto dolosos. Descrevê-las é um modo não apenas de
ajudar a compreender algumas atividades analisadas nos próximos capítulos, mas
também de destacar a especificidade que a atuação do Setor de Vulneráveis
possuía no universo das leis penais. Fazendo isso, espero sublinhar o modo como o
trabalho policial especializado dessa unidade e a especificidade da atuação a quem
se direciona foram sustentados por elementos diferentes dos até aqui mencionados
– e dos que serão nos próximos tópicos.
O artigo 140 do Código Penal brasileiro (1940), ao qual pertence o parágrafo
terceiro, compõe o “Capítulo V. Dos Crimes Contra a Honra” e tipifica a “Injúria” ao
lado da “Calúnia” (art. 138) e da “Difamação” (art. 139). O ato de “injuriar” aparece
como a possibilidade de “ofender” a “dignidade e o decoro”. Para esse crime, o
dispositivo estabelece a opção entre detenção de um a seis meses ou multa. Há,
ainda, duas ressalvas referentes à possibilidade de o juiz deixar de “aplicar a pena”:
trata-se, por um lado, de “quando o ofendido, de forma reprovável, provocou
diretamente a injúria” e, por outro, “no caso de retorsão imediata, que consista em
outra injúria”. O parágrafo terceiro introduz uma qualificação ao crime, por isso, trata-

8
Para um apanhado histórico dessas leis, ver Machado, Santos e Ferreira (2015) e Rodrigues (2018).
39

se em termos legais de uma “injúria qualificada”: “se a injúria consiste na utilização


de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa
idosa ou portadora de deficiência”9. Nesse caso, há a previsão de “reclusão de um a
três anos e multa”.
As previsões de pena são instrumentos importantes para compreender duas
atividades do Setor: crimes com pena máxima de até dois anos são juridicamente
considerados de menor potencial ofensivo e, por isso, o procedimento para
investigá-los eram Termos Circunstanciados em vez de Inquéritos Policiais10. Esse
era o caso para os crimes mencionados pela redação do Decreto 5.241 (preconceito
ou discriminação motivados por situação de rua e “dentre outros”), cuja tipificação
seria feita como injúria simples (artigo 140), com pena de no máximo seis meses (ou
multa). E também para o caso da discriminação motivada por orientação sexual e
identidade de gênero, até sua criminalização pelo Supremo Tribunal de Justiça em
meados de 2019, quando passou a ser tipificada pela Lei 7.716.
O outro dispositivo penal, a Lei 7.71611 definia os crimes resultantes de
preconceito de raça ou de cor em sua primeira versão. Ela foi alterada em 1997 e
passou a tipificar crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional. O texto da Lei é bastante abrangente e, de
modo geral, trata da segregação no ambiente de trabalho, de estudo, de lazer e em
ambientes privados (por exemplo, “[i]mpedir ou obstar, por qualquer meio ou forma,
o casamento ou convivência familiar e social”). As penas máximas de privação de
liberdade variam entre três e cinco anos, com exceção da tipificação penal voltada
para quem “exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego
cujas atividades não justifiquem essas exigências” em seus anúncios e modalidades
de recrutamento. Nesse caso, a previsão é de “penas de multa e de prestação de

9
Machado, Lima e Neris (2016) afirmam que as articulações e vínculos do movimento negro
organizado influenciaram na atuação do Deputado Federal Paulo Paim (PT), quando propôs o projeto
de lei 1.240/1995, responsável pela inclusão da injúria racial no Código Penal. Nesse mesmo
trabalho, as autoras mencionam sentenças de absolvição de injúria racial em que a justificativa foi a
existência de um contexto de provocação da ofensa.
10
Os crimes de menor potencial ofensivo, depois de concluídos seus respectivos Termos, são
encaminhados para o Juizado Especial Criminal, onde são julgados, executados e conciliados. Para
uma análise antropológica desses juizados, ver Fullin (2011).
11
A lei é conhecida por Lei Caó, apelido de Carlos Alberto Oliveira, então deputado federal pelo Partido
Democrática Trabalhista – PDT e autor do projeto que resultou na promulgação da lei. Foi fruto de um
trabalho dos agentes ligados a sua institucionalização e também de movimentos sociais engajados
nas lutas contra a discriminação e o preconceito racial. Considerada um grande marco na história de
tais lutas, a lei é comemorada por ter tornado o racismo crime imprescritível e inafiançável
(MACHADO; SANTOS; FERREIRA, 2015).
40

serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial”. As


atribuições investigativas do Setor, partindo das previsões penais dessa lei, são
quase todas ligadas a instauração de inquérito policial. Ou seja, não são crimes
considerados juridicamente de menor potencial ofensivo.
Dessa forma, entre as atribuições do Setor de Vulneráveis estavam a
previsão legal de elaborar inquéritos policiais e termos circunstanciados. Tratava-se
de uma atribuição legal do Setor que dependia das previsões de pena mencionadas
acima. A diferença entre essas duas modalidades de investigação não é trivial, como
mostrou Andrade (2012) ao descrever o cotidiano da Delegacia da Mulher de
Campinas e as mudanças implicadas pela promulgação da Lei Maria da Penha, em
que os casos de violência doméstica passaram a render Inquéritos no lugar de
Termos. Por consequência disso, os casos passaram a ser motivo de reclamação e
elogio das escrivãs, pois ao mesmo tempo em que rendiam muito mais trabalho de
investigação, tornaram o trabalho mais organizado e com maior possibilidade de
incriminar os autores.
Outra atribuição legal trazida pelo Decreto estava relacionada à investigação
de crimes que podem ser desdobrados em uma Ação Penal Pública. No Processo
Penal brasileiro, essas ações são uma forma de levar ao conhecimento do Poder
Judiciário o acontecimento de uma infração penal para que esse, no uso de suas
atribuições, julgue o caso em questão. Grosso modo, a Ação Penal se divide em
pública e privada. Nessa última, a vítima ou sua representação legal é responsável
por comunicar a existência do crime perante à vara criminal. Na primeira, quem leva
ao conhecimento do Poder Judiciário a existência de um crime é o Ministério Público
(MP). Essa instituição oferece a denúncia ao fórum competente da instância penal,
se promotores de justiça decidirem pela existência de elementos que embasam a
afirmação da existência da infração penal.
A legislação mencionada pelo Decreto definia uma atribuição do Setor
vinculada à investigação de crimes que poderiam se desdobrar em Ação Penal
Pública Condicionada ou Incondicionada à representação da vítima. Isto é, em
alguns casos o MP estaria juridicamente autorizado a oferecer a denúncia
independentemente da concordância da vítima e em outros não. Os casos tipificados
pelo parágrafo terceiro do artigo 140 e pela Lei 7.716 dependiam e não dependiam,
41

respectivamente, da representação da vítima para a investigação prosseguir12 – no


caso da injúria racial, até 2009 era um crime de Ação Penal Privada. Os casos
tipificados criavam uma atribuição em que uma das previsões era a possibilidade da
investigação ser ou não interrompida pela representação da vítima13.
A diferença em relação ao tipo de Ação Penal desses crimes está ligada ao
modo pelo qual são entendidos juridicamente. O crime previsto no parágrafo terceiro
do artigo 140, o de injúria racial, protege a honra do indivíduo enquanto um bem
jurídico, garantido pela Constituição Federal no décimo inciso de seu quinto artigo 14.
Guilherme de Souza Nucci (2019) trata da honra nos seguintes termos: “a faculdade
de apreciação ou o senso que se faz acerca da autoridade moral de uma pessoa,
consistente na sua honestidade, no seu bom comportamento, na sua
respeitabilidade no seio social, na sua correção moral; enfim, na sua postura calcada
nos bons costumes” (NUCCI, 2019, p. 279). A importância do Direito garantir e
proteger a honra aparece nas formulações do autor como um imperativo, porque
“sem ela, os homens estariam desguarnecidos de amor próprio, tornando-se vítimas
frágeis dos comportamentos desregrados e desonestos, passíveis de romper
qualquer tipo de tranquilidade social” (p. 280).
Dessa forma, umas das principais atribuições do Setor, segundo o Decreto
5.241, seria a investigação de um crime cuja tipificação e penalização estão ligadas
à proteção da honra de um sujeito. Nesse caso, trata-se da honra subjetiva, que é
descrita em termos de um julgamento próprio a respeito de si mesmo. A “honra
subjetiva” é tratada como um modo de autoconsideração respeitável, amável e
moralmente correta. Um modo de ver a si mesmo caracterizado pela
responsabilidade, honestidade, beleza, lealdade e pela dedicação ao trabalho. Nos
termos do autor, foi comparada com a “honra objetiva”, que é descrita como a
imagem de uma pessoa perante a “sociedade”. Dessa forma, a “honra subjetiva”

12
O parágrafo quarto do artigo quinto do Código de Processo Penal (1941) ajuda a entender a
diferença: “o inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá
sem ela ser iniciado”.
13
No cotidiano do Setor, quando a notícia do crime chegava por meio de Boletim de Ocorrência,
mesmo se tratando de um caso de Ação Penal Pública Condicionada, quase sempre a investigação
prosseguia, porque a vítima, em geral, não desistia de sua representação. Contudo, quando a
comunicação do crime era feita por Notícia de Fato, uma requisição de investigação proveniente do
Ministério Público, se a vítima não fosse encontrada ou se negasse a ir até ao Setor – e para vítimas,
lembrava-me Roberta, não há a possibilidade de condução coercitiva – o inquérito não prosseguia.
14
O inciso citado diz o seguinte: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”
(BRASIL, 1988).
42

medeia um senso moral e afetivo de uma pessoa sobre si, pois a subjetividade da
honra é sustentada por um apreço feito da pessoa para ela mesma, segundo Nucci
(p. 300-301).
A qualificação da injúria como racial, a partir dos termos desse mesmo autor,
sublinha uma nova maneira de conceber a ofensa à honra e, consequentemente, a
um direito:

aquele que, atualmente, dirige-se a uma pessoa de determinada


raça, insultando-a com argumentos ou palavras de conteúdo
pejorativo, responderá por injúria racial, não podendo alegar que
houve uma injúria simples, e tampouco mera exposição do
pensamento (como dizer que todo “judeu é corrupto” ou que “negros
são desonestos”), uma vez que há limite para tal liberdade. Não se
pode acolher a liberdade que fira direito alheio, que é, no caso, o
direito à honra subjetiva. Do mesmo modo, quem simplesmente
dirigir a terceiro palavras referentes a “raça”, “cor”, “etnia”, “religião”
ou “origem”, com o intuito de ofender, responderá por injúria racial ou
qualificada (NUCCI, 2019, p. 310).

A qualificação da injúria como racial a diferencia da injúria simples e,


também, de uma mera opinião. Segundo o autor, trata-se do estabelecimento de
uma tipificação penal que para proteger “o direito a honra subjetiva” retoma uma
ideia de limite da liberdade, diante da possibilidade de um direito alheio ser ferido.
Para Moreira (2019), entretanto, sua qualificação estaria “baseada em sua
significação social: a reprodução de estereótipos sobre indivíduos que possuem uma
longa história de exclusão social” (p. 79). A penalidade atenderia, portanto, ao
“interesse de minorias raciais em expandir a efetividade da legislação
antidiscriminatória em nosso país” (p. 80). Ainda assim, é nos marcos da proteção
da honra de um indivíduo que o texto da lei é comentado e ensinado por Nucci, um
doutrinador de grande destaque sobre essas leis. Assim, o crime de injúria
consistiria na ofensa, no desprezo e desrespeito do decoro de uma pessoa, de sua
honra subjetiva e, por isso, exigiria o conhecimento do ato ofensivo por parte da
vítima. E, para ser tipificado, a vítima deve se sentir ofendida por algum insulto e
comunicar esse sentimento às autoridades policiais para que o inquérito seja
43

iniciado. Uma das principais atribuições do Setor, então, seria investigar um crime
contra honra subjetiva passível de Ação Penal Pública Condicionada.
O outro dispositivo penal de atribuição do Setor de Vulneráveis, o texto da
Lei 7.716, foi explicado a partir de outros elementos, consonante ao tipo de Ação
Penal do crime que tipifica. O crime de racismo aparece genericamente na doutrina
como o de segregação de um determinado grupo de pessoas. Nucci (2008)
menciona o caso do editor Siegfried Ellwanger15, condenado em última instância por
crime de racismo por ter praticado ações antissemitas, para conceituar o termo
“raça”, fundamental no enquadramento desse caso à Lei 7.716. Nucci acompanha
as conclusões do Supremo e afirma que não há raças em termos biológicos, mas
apenas agrupamentos frutos de processos políticos e sociais. Esse tipo de
entendimento é acompanhado pelo apagamento da especificidade do racismo contra
pessoas negras, pois, segundo Nucci, “[c]ondicionar a discriminação como crime
imprescritível apenas aos negros e não aos judeus é aceitar como desiguais aqueles
que na essência são iguais perante tal garantia” (acórdão do julgamento apud
NUCCI, 2008). Delimitar o crime de racismo às pessoas negras aparece, assim,
quase como um privilégio indevido, pois a garantia da criminalização da segregação
deveria ser estendida a todos os grupos discriminados em algum momento.
A argumentação do autor referente à Lei 7.716 reforça ainda que o racismo
seria um “pensamento” voltado para a divisão dentre seres humanos e confirma a
possibilidade dessa divisão ser tanto de alguém da “maioria” para “minoria”, quanto
para o contrário. A centralidade da questão para a tipificação do crime envolveria
uma “mentalidade segregacionista” ligada a qualquer grupo, possível de estar
presente em qualquer pessoa. Isso daria margem para a justificativa legal da
existência de acusações de racismo contra pessoas brancas, por exemplo. Dessa
forma, uma conquista do ativismo negro voltada para pessoas negras vai sendo
descaracterizado enquanto um instrumento na luta contra o racismo.
Embora a doutrina de Nucci tenha sido mencionada no caso de Paulo
Henrique Amorim (cf. nota 5) e o autor tenha sido a recomendação de Roberta, a

15
Em 2003, o Supremo Tribunal Federal brasileiro manteve a condenação do editor Siegfried Ellwanger
acusado de racismo contra judeus, ao negá-lo um habeas corpus. O julgamento foi de grande
expressão e firmou o entendimento do crime de racismo introduzido pela alteração efetuada em 1997
na Lei 7.716. A lei promulgada em 1989 definia os crimes de racismo como resultantes de preconceito
de raça ou cor. A alteração de 1997 tornou-a mais abrangente e menos específica, ao incluir
preconceito de etnia, religião e procedência nacional. A partir disso, o doutrinador pôde tomar um
caso de antissemitismo para a exegese do termo “raça” e do crime de racismo.
44

doutrina felizmente não é consensual nesse aspecto. Por exemplo, em janeiro de


2020, um juiz federal da 11ª Vara da Seção Judiciária de Goiás, ao julgar um caso
de suposto “racismo reverso”, afirmou o seguinte: “é insofismável que o fim último da
proteção instituída pela Lei 7.716/89, com a criação de tipos penais como o do art.
2016, é o de proteger as minorias, especialmente negros e índios, contra a
discriminação proveniente dos grupos sociais dominantes”. Logo, concluiu que “o
conceito de racismo reverso constitui evidente equívoco interpretativo”.
Nas Ciências Sociais, o significado do racismo acompanha o entendimento
do Supremo Tribunal Federal e de Nucci no que diz respeito à existência, não de
diferenças biológicas significativas que marcam o comportamento de pessoas que
compartilham algumas características físicas, mas sim de grupos humanos formados
por processos políticos, históricos e culturais. O conceito de raça seria fruto de um
fenômeno social e não de uma determinante biológica (cf. MULLINGS, 2005 e
GUIMARÃES, 2014). No entanto, isso não leva a obliterar a noção de raça como
“um fator político importante, utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a
segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários”
(ALMEIDA, 2019, p. 22, grifos do autor).
No que diz respeito às considerações de Nucci sobre a “generalidade” do
racismo, tratado como um crime ligado a uma “mentalidade segregacionista” que
poderia atingir qualquer grupo social, o debate dentro e fora da academia ajuda a
estabelecer um contraponto importante. Sílvio Almeida (2019), por exemplo, trata o
racismo como um elemento presente na estrutura – e, por isso, na política, no
direito, na economia, na história e na subjetividade – da sociedade brasileira, que
discrimina e subjuga grupos inteiros que foram alijados das instâncias de poder
político. O autor menciona, entre outros, negros, latinos, judeus, árabes, persas.
Nesse sentido, a segregação racista não criaria nenhum impedimento sistemático
para as pessoas brancas, como acontece com as pessoas negras, porque “[h]omens
brancos não perdem vagas de emprego pelo fato de serem brancos, pessoas
brancas não são ‘suspeitas’ de atos criminosos por sua condição racial, tampouco
têm sua inteligência ou sua capacidade profissional questionada devido à cor da
pele” (p. 35).

16
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa.
45

Almeida ainda destaca que por sua qualidade estrutural, o racismo


prescindiria da intenção subjetiva para se manifestar. Nesse sentido, Túlio Custódio
(2020) afirma: “Você é racista – só não sabe disso ainda” e destaca que as pessoas
fazem associações preconceituosas ao vincularem inconscientemente grupos
desprivilegiados socialmente a ladroagem, pobreza, animalidade ou a postos de
trabalho que não exigem escolaridade. O racismo não seria, assim, um mero
comportamento fruto de um tipo de mentalidade que visa conscientemente segregar
determinados grupos, mas práticas e pensamentos, diretos ou indiretos, que
reforçariam as desvantagens e a segregação de pessoas não-brancas,
majoritariamente. Djamila Ribeiro (2020), retomando todo um debate sociológico e
antropológico das relações raciais, afirma que o racismo no Brasil teria, ainda,
logrado o êxito de ter sua existência negada cotidianamente, ao discriminar pessoas
negras, mesmo estando em todo lugar – na cor branca de quem estatisticamente
ocupa posições de poder e na cor negra de quem não as ocupa.
Uma das maneiras do racismo ter sua existência negada, e negada em
nome da suposta convivência harmônica entre pessoas brancas e negras no Brasil,
seriam as intenções de piadas e brincadeiras em que pessoas não-brancas
aparecem desumanizadas e ridicularizadas. Moreira (2019) caracteriza essas
condutas como fruto do “racismo recreativo”, em que o tom jocoso dessas pretensas
brincadeiras reforça a posição de respeitabilidade como exclusiva de pessoas
brancas. Ou seja, essas “brincadeiras” não estariam isentas da contribuição para a
segregação de pessoas negras no Brasil, pois ajudariam a manutenção do arranjo
social que as exclui e as desrespeita, ao mesmo tempo em que, por oposição,
exaltam a respeitabilidade como atributo exclusivo de pessoas brancas. Nesse
sentido, o racismo independe de intenção, não diz seu nome e, por isso, favorece a
posição social vantajosa de pessoas brancas no Brasil.
Esse debate chama atenção para a impossibilidade lógica de o racismo ser
uma experiência sistemática de discriminação de pessoas brancas, pois se trata de
uma experiência coletiva que segrega pessoas negras e outros grupos
subalternizados.
A tônica dessa discussão sobre o racismo do debate público brasileiro,
dentro e fora da academia, se diferencia da defesa de Nucci e da jurisprudência
brasileira quanto à necessidade de a intenção da discriminação ser consciente e
46

deliberada para configurar crime17. Digo isso porque a caracterização do tipo penal
do parágrafo terceiro do artigo 140 e da Lei 7.716 dependem da comprovação de
uma intenção específica de discriminar. Em relação ao primeiro, a Secretaria de
Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicou na edição 130 de
Jurisprudência em Teses, em 2019, com o tema Crimes contra a Honra: “Para a
configuração dos crimes contra a honra, exige-se a demonstração mínima do intento
positivo e deliberado de ofender a honra alheia (dolo específico), o denominado
animus caluniandi, diffamandi vel injuriandi”. Assim como nos crimes contra a honra,
os crimes tipificados pela Lei 7.716 precisam da comprovação do elemento subjetivo
específico para serem caracterizados, argumenta Nucci (2008). Tal elemento
consistiria “na vontade de discriminar, segregar, mostrar-se superior a outro ser
humano (…). Afasta-se o delito se houver outro ânimo, como, por exemplo, o de
brincar (animus jocandi), fazer uma descrição ou uma crítica artística, entre outros
fatores” (p. 275).
Se as práticas racistas não dependem da intenção subjetiva para existir, o
que a exigência de comprovação da intenção para tipificar esses crimes implica?
Diante da impossibilidade de se alcançar a intenção íntima de alguém, “o direito
penal normalmente atua imputando um certo tipo de intenção” (MACHADO, LIMA,
NERIS, 2016, p. 20). As autoras, a partir da análise de sentenças de crimes de
injúria racial e de racismo, criticam a inexistência de uma justificativa para muitos
juízes não vislumbrarem o intuito racista. Na mesma direção, o trabalho de Moreira
(2019) recupera algumas sentenças de crime de injúria racial e mostra como elas,
na maioria das vezes, absolvem as pessoas denunciadas, porque suas ações são
vistas como brincadeiras cotidianas sem potencial de dano moral, porque feitas com
intenção consciente de “descontração”.
Por isso, para a efetivação da proteção do direito a honra, o autor afirma que
a “injúria racial não deve ser analisada apenas a partir da motivação do acusado,
mas também a partir do dano causado à vítima” (p. 91) e, talvez, essa também seja
uma possibilidade para os crimes previstos pela Lei 7.716. Por outro lado, a própria

17
Um dos desdobramentos dessa diferença é o que os trabalhos de Santos (2015), Machado, Lima e
Neris (2016), Matos (2016) e Moreira (2019) mencionam quando falam da ineficiência do Sistema
Judiciário brasileiro para condenar casos de racismo e injúria racial enquanto tais. Em todos eles, o
principal motivo apresentado é a ilusão de que no Brasil as relações raciais seriam marcadas pela
harmonia. Isso aponta para uma diferença: a “importância do insulto racial na construção do que
define o racismo para suas vítimas” – e também para as teorias das Ciências Humanas – “o que
não encontra eco no modelo jurídico” (MACHADO, LIMA, NERIS, 2016, p.16).
47

forma de judicialização dessas demandas é questionada por Machado, Lima e Neris


(2016). Reconhecendo a importância da possibilidade de recorrer à justiça nesses
casos, mas criticando a individualização do ato ofensivo, as autoras afirmam que “é
impossível considerar sua lesividade sem considerar um contexto mais amplo de sua
repercussão social e sua história de repetição e estigmatização”. A força do ato
racista residiria, nessa concepção, em “ecoar atos anteriores, [pois] sua força e sua
autoridade são cumulativas e vêm da repetição, e isso pode trazer dificuldade ao
funcionamento dos critérios de responsabilização do direito penal” (p. 26).
De todo modo, a principal sustentação da atribuição do Decreto 5.241 – o
crime de racismo e de injúria racial – implica o Setor de Vulneráveis em
investigações que devem, segundo a legislação, comprovar uma motivação
específica para os crimes de sua atuação. Comprovar a vontade, a motivação e o
intento positivo e deliberado de macular a honra subjetiva de um sujeito ou segregar
uma ou mais pessoas tendo em vista o grupo histórico, político e cultural com o qual
se identificam ou são identificadas.
Em síntese, as leis mencionadas implicaram o Setor em algumas
atribuições: elaborar termos circunstanciados e inquéritos policiais, investigar crimes
de Ação Penal Pública condicionada ou incondicionada à representação da vítima, e
comprovar uma motivação muito específica para ações que, em sua maior parte,
não a explicitam. Boa parte dessas atribuições é comum a outras unidades policiais.
Entretanto, a análise da doutrina de um dos principais juristas que orienta o
entendimento desses crimes permite imaginar a possibilidade legal de o Setor
investigar qualquer alegação de discriminação. Ou seja, sua existência pode ser
pensada como tendo o trabalho policial voltado para a investigação da discriminação
e da segregação de qualquer pessoa ou grupo.
Essa existência é diferente da que pude acompanhar tanto em seu espaço,
quanto em seu cotidiano e nas expressões públicas de sua atuação.

2.3 O SETOR DENTRO E FORA DA DIVISÃO

Neste tópico, tratarei de outra existência do Setor de Vulneráveis. Farei isso,


a partir de algumas de suas aparições públicas, da relação entre a existência do
Setor e o trabalho de sua única escrivã e do modo como é acionado dentro da
Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa. Falarei do modo como sua existência
48

foi publicizada, associada a uma pessoa e comparada à Divisão dentro da qual suas
atividades cotidianas funcionavam. Abordarei como mais uma vez a especificidade
do trabalho policial esteve ligada a uma população específica e promoveu
determinadas atuações do Setor.

2.3.1 O Setor da publicização

A criação do Setor de Vulneráveis foi noticiada por portais da imprensa, pela


própria página da Polícia Civil paranaense, da seção estadual da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB/PR) e do Conselho Regional de Psicologia do Paraná
(CRP/PR). Retomarei essas notícias para abordar o modo como a especialização do
trabalho policial foi vinculada a uma população, enquanto justificativa para a criação
do Setor de Vulneráveis. A partir desse mesmo vínculo, entre o trabalho da polícia e
o público de sua atuação, abordarei o modo como o Setor foi anunciado em uma
Audiência Pública de Combate à Homofobia na Assembleia Legislativa do Paraná
(ALEP). Meu objetivo é argumentar que o Setor veio a existir publicamente pela
articulação entre um trabalho policial especializado e uma população específica,
para quem seu trabalho se direcionava.
As notícias analisadas foram as seguintes: “Delegacia de Vulneráveis:
conquista social” (OAB/PR, 2017), publicada em 22 de fevereiro de 2017 pela
OAB/PR; “Ministra dos Direitos Humanos elogia Atendimento a Vulneráveis em
Curitiba” (DEDIHC, 2017), publicada em 20 de março de 2017, na página da Polícia
Civil paranaense; “Setor de Atendimento ao Vulnerável inaugurado em Curitiba mira
crimes de ódio” (CRP/PR, 2017), publicada em 10 de janeiro de 2017 no sítio
eletrônico do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP/PR); “Unidade
especializada atende vítimas de discriminação ou preconceito em Curitiba” (BELO,
2016), publicada por Massa News, no dia 13 de dezembro de 2016; e, por fim, a
notícia do Paraná Portal, intitulada “Curitiba terá unidade especializada na
investigação de crimes de ódio” (OHDE, 2016), publicada em 02 de novembro de
2016.
Todas foram unânimes em relacionar a especialização de um trabalho
policial a uma população diferenciada, a quem a unidade deveria atender.
Entretanto, a publicização da criação do Setor por diferentes instituições mobilizou a
justificativa em torno de sua inauguração de diferentes modos.
49

Nas promessas dos representantes do estado do Paraná, o Setor foi


inaugurado como “uma medida necessária e justa que vem atender a um nicho de
crimes que possuem uma particularidade”, conforme afirmou o então Secretário da
Segurança e Administração Penitenciária. No sentido de enfatizar crimes
particulares, adicionou a isso um trabalho diferenciado: “um preparo especial, um
atendimento mais humanizado e ferramentas para fazer um trabalho melhor para
aquelas comunidades que demandam uma atenção especial, seja por crime de
racismo, por raça, cor e gênero”. A notícia reproduz uma consideração do na época
delegado-geral da Polícia Civil, também a respeito de um trabalho policial específico
para, de modo parecido, uma população especificada e marcada pela discriminação:
“um atendimento diferenciado, especializado, mais célere e humanizado às pessoas
que são discriminadas por sexo, por raça, ou aquelas que estejam em uma situação
especial”. A existência de uma unidade com um trabalho especializado para uma
população específica apareceu também como uma maneira de atualizar a polícia,
que “tem de se adaptar e modernizar (...) para dar um atendimento à altura”.
As expectativas da notícia da OAB/PR trouxeram para o debate uma
existência do Setor parecida, em que a especificidade da população a ser atendida
foi qualificada como sendo “mais vulneráveis” e a atuação especializada da polícia
foi associada, não apenas ao atendimento dessa população, mas também a uma
maior severidade no enquadramento dos crimes noticiados. De modo análogo, o
trabalho policial na divulgação do portal da “Rede Massa” foi tratado como um
atendimento especializado da nova unidade – a especificidade do Setor seria
“registrar e investigar os crimes de ódio, além de oferecer atendimento especializado
às vítimas”. A linguagem de um atendimento especializado também esteve presente
na notícia do “Paraná Portal” e relacionou à criação do Setor uma maneira de
precisar a contagem dos casos referidos como crimes de ódio, aspecto que também
foi destacado pela notícia do CRP/PR.
Embora tenham aparecido de modo muito pontual para abordar criação do
Setor, essas notícias não foram as únicas maneiras de tratar publicamente de um
trabalho especializado, diferenciado e humanizado voltado para uma população
específica – aqui tratada como “vulnerável”.
Em uma das minhas visitas ao Setor, Roberta mencionou uma audiência
pública da qual precisaria participar no dia seguinte, a pedido da Delegada chefe da
DHPP. Tratava-se de uma audiência pública sobre o combate à homofobia na
50

Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP). Fui até o local no dia 21 de maio de 2019
e cheguei antes do horário previsto. Quando entrei no local indicado, deparei-me
com dois blocos de cadeiras, separados horizontalmente, dispostos em numerosas
fileiras. Assim que entrei no espaço, vi uma tela à direita de uma mesa larga,
posteriormente composta pelas pessoas responsáveis pelas exposições naquele
dia. Na tela, possível de ser vista de qualquer lugar do auditório, estava escrito em
letras grandes: “Dia Internacional do enfrentamento à LBGTIFOBIA”, e em letras
menores: “Proposição: Deputado Tadeu Veneri/Goura/Delegado Recalcatti”.
A mesa e as pessoas que a compunham passaram a ser a atração principal
daquele evento: os deputados Tadeu Veneri (Partido dos Trabalhadores – PT),
Professor Lemos (PT), Goura (Partido Democrático Trabalhista – PDT) e Delegado
Recalcatti (Partido Social Democrático – PSD). Além deles, compuseram a mesa
uma representante do Grupo Dignidade – organização não governamental com
pautas ligadas a direitos da população LGBT, um promotor de justiça do Paraná e
um futuro funcionário comissionado do governo paranaense, apresentado como
alguém que trabalharia no gabinete do governador empossado poucos meses antes.
Além dessas pessoas, uma representante do estado do Paraná estava na mesa:
Ana Raggio, apresentada como coordenadora da Divisão de Políticas para Pessoas
LGBT da Secretaria da Justiça, Família e Trabalho. Em sua fala, tratou das políticas
públicas do estado do Paraná dos últimos anos para a população mencionada.
Ana Raggio estava no governo desde a gestão anterior, do então
governador Beto Richa (Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB), por isso
usou uma dimensão temporal além do atual governo de Ratinho Júnior (PSD). Ela
acumulava múltiplas funções dentro da Secretaria de Justiça, Trabalho e Direitos
Humanos, no Departamento de Direitos Humanos e Cidadania: fazia parte da
diretoria do “Projeto Criança e Adolescente Protegidos”, coordenava a “Divisão de
Políticas para LGBT”, a “Divisão de Políticas para Igualdade Racial”, o “Conselho
Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Estado do Paraná”, o
“Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial” e o “Comitê de
Acompanhamento da Política de Promoção e Defesa dos Direitos de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais”.
Ao mencionar as políticas públicas do governo, falou justamente do Setor de
Vulneráveis: “a Roberta atende”, apontando para ela na plateia, “lá na Delegacia de
Homicídios e Proteção à Pessoa, no Setor de Vulneráveis que foi uma iniciativa do
51

governo do estado para garantir atendimento adequado a pessoas LGBT e também


à população negra, à população em situação de rua. Então a Roberta tem uma
sensibilização e uma capacitação para atender esse público, para que a situação de
discriminação seja atendida da forma correta”. Nas palavras de Ana Raggio, a
representante do governo, Roberta era dotada de “sensibilização” e “capacitação”, o
que garantiria um atendimento “adequado” do Setor – práticas essas que comporiam
a correção do atendimento à discriminação.
A unidade policial em questão estava literalmente presente naquele espaço
quando a Diretora apontou para Roberta e falou a respeito de suas qualidades como
a característica do atendimento especializado do Setor. As capacidades de Roberta
foram a própria atuação daquela unidade e apareceram como um mérito da atuação
da gestão do governo do estado.
Dessa forma, o Setor foi evocado mais uma vez segundo uma
especialização de atendimento para um público determinado – pessoas negras e
LGBT. E, mais uma vez, o atendimento especializado foi atrelado a uma atuação
eficaz do governo do estado, assim como na notícia da página oficial do estado.
Nesse momento, entretanto, houve uma novidade: as figuras do Setor e de Roberta
se confundiram. E essa última colocação foi assim feita em conexão com outro
modo de existência dessa unidade policial: na grande maioria de suas atribuições,
era uma unidade formada por apenas uma pessoa, a escrivã do Setor.

2.3.2 O Setor de dentro da Divisão

“O Setor aqui não tem investigador”. Ouvi essa frase de minha principal
interlocutora depois de já ter feito algum tempo de trabalho de campo. A justificativa
era de que ali naquela unidade, as investigações de homicídio ou sua tentativa não
eram realizadas – pelo menos, em tese. Roberta era a única pessoa naquela sala e
a única responsável pelas atividades do Setor, além da Delegada – havia também o
policial incumbido de entregar as intimações, mas ele não era um funcionário restrito
ao Setor, pois fazia esse trabalho para outros cartórios da Divisão de Homicídios. A
existência do Setor dentro da Divisão indicava outro modo de articular o trabalho
especializado de uma unidade voltada para uma população específica, muito
vinculado à própria Roberta.
52

Em minha primeira ida à DHPP, cheguei ao plantão e perguntei a respeito do


Setor de Vulneráveis. A resposta do policial com quem conversei foi imediata em me
indicar o caminho e uma pessoa com quem conversar: Roberta. Roberta é formada
em Direito e possui uma especialização em gestão pública terminada em 2019, cujo
trabalho de conclusão trata da Lei 7.716 de 1989. “Quando eu cheguei aqui, eu era
igual você, não sabia nada”, disse-me um dia ao me contar da importância de sua
formação e, mais do que isso, de se manter sempre atenta às decisões judiciais
sobre os crimes com os quais trabalhava no Setor. Tentei algumas vezes saber mais
detalhes de sua trajetória acadêmica e profissional, mas suas respostas evitavam
grandes descrições sobre isso. Além de algumas vezes ter pedido para conhecer
seu trabalho de monografia de especialização e ter ouvido como resposta um
adiamento: “amanhã eu te mostro” ou um “estou muito ocupada agora, em outro
momento te envio”.
Apesar disso, algumas histórias de seus antigos trabalhos me eram narradas
para afirmar seu caráter honesto, imparcial e competente no serviço público. Era
nesse tom que suas antigas experiências como agente penitenciária e investigadora
em outra delegacia de polícia apareciam, inclusive quando me contou sobre os
motivos pelos quais estava no Setor: em razão de problemas ligados a seu
relacionamento interpessoal com policiais de outra unidade, ela foi convidada por
seu antigo chefe a ir para a DHPP “fazer um trabalho que nenhuma outra pessoa
queria fazer”. Então, lá estava ela18.
Em um cartório de uma só escrivã, todos os inquéritos e boletins de
ocorrência eram feitos por Roberta. Caso ela não estivesse lá, os trabalhos do Setor
eram interrompidos. Pude acompanhar de perto uma situação anterior a um período
em que ela precisaria se afastar. Uma escrivã de um dos cartórios das
especializadas em homicídio desceu para discutir com Roberta a possibilidade de
tocar os seus inquéritos naquele período. Elas acertaram os detalhes relacionados a
esse trânsito pelas escadas: a escrivã eventualmente desceria para a sala do Setor,

18
Apesar de combinar previamente meus dias de trabalho de campo, algumas vezes fui surpreendido
pelo não funcionamento do Setor ou pela impossibilidade de acompanhar suas atividades. Se
Roberta não estivesse lá ou estivesse realizando atividades ligadas a outras rotinas, o Setor também
não funcionava. Reuniões em conselhos municipais, como CONSEPIR (Conselho Estadual de
Promoção da Igualdade Racial), operações de investigação – Roberta é uma investigadora em
atividade como escrivã, o que a obriga a periodicamente fazer plantões e eventualmente acompanhar
operações de investigação e de mandato de prisão fora da Divisão –, férias e folga.
53

quando fosse preciso ouvir testemunhas, vítimas e autores19, já que na rotina


daquela unidade essas atividades investigativas eram gravadas. E algumas pastas
de inquéritos subiriam para que o restante do trabalho pudesse ser feito. A situação
parecia estar resolvida e eu estava convencido de que esse era o desfecho da
história. Entretanto, poucos dias depois, perguntei para Roberta se era mesmo
aquela colega de trabalho quem ficaria responsável pelos inquéritos. “Não”, me
respondeu, e completou: “ninguém aqui faz o meu trabalho”.
Fiquei intrigado com sua resposta e ao perguntar a respeito da continuidade
dos inquéritos, Roberta me explicou que ficariam parados na sua ausência e o Setor
fechado. “Quem, então, assumiria o Setor caso você não pudesse mais?”, perguntei.
“Ninguém”, e prosseguiu: “ninguém aqui [na Polícia Civil] faz o trabalho que eu faço”.
A primeira justificativa para a afirmação estava ligada aos desdobramentos dos
processos judiciais: eram crimes que, segundo ela, não levavam ninguém para a
prisão, o que não traria muita motivação para o trabalho – “quando a gente entra na
polícia, a gente quer crime legal, que resulta em prisão, aqui ninguém vai preso”. A
segunda, com o público atendido pelo Setor: “99% dos meus colegas repugnam a
população que eu atendo”, referindo-se em especial à população LGBT.
Diferenciando-se dos outros policiais, ela me disse: “acho que todos têm direito de
ser respeitados”.
Em um dia muito movimentado na Divisão, ou seja, envolvendo muitas
pessoas a serem ouvidas como testemunhas, autoras e vítimas de possíveis crimes,
uma colega de Roberta, Mariane, perguntou por ela enquanto tomávamos o café de
sua sala. Falei da correria daqueles dias e da quantidade de pessoas ouvidas
naquela semana, por isso Roberta não tinha aparecido muito por ali. Então, ela
comentou comigo: “eu e a doutora [a delegada-chefe] estávamos conversando, a
Roberta é muito paciente, só a Roberta para aguentar, eu não ia aguentar um dia
[nesse trabalho]”. Na ocasião, não entendi muito bem o que isso significava e
Mariane tampouco me explicou. Voltei para a sala de Roberta e mencionei que
Mariane, sua colega, havia acabado de elogiar o seu trabalho. Ela foi à sala onde eu
estava com sua colega e, em tom de brincadeira, perguntou sobre a matéria de
nossa conversa: “o que você estava aí falando de mim?!”. Mariana explicou que
achava o trabalho do Setor muito chato, e os motivos foram parecidos com os

19
Essa é uma das principais atividades do Setor de Vulneráveis; tratarei mais detidamente dessa rotina
no Capítulo 2.
54

elencados por Roberta: os crimes, em suas palavras, “não dão em nada”, ou seja,
muito dificilmente levariam alguém à prisão.
Além disso, para ela, a matéria dos delitos atendidos pelo Setor seriam
problemas íntimos e privados, dando a entender que poderiam ser resolvidos de
outro modo: não levava ninguém para a prisão, pois seriam matéria de “briga de
fundo de quintal”. Dessa forma, a especialização do trabalho de Roberta se tornou
sua paciência com aqueles crimes que não levavam para a cadeia e que não seriam
assunto propriamente da polícia, mas de assunto privado.
Assuntos entendidos como sendo de âmbito privado, entretanto, podem
muito bem ser vistos e tratados como crime, como os casos de violência doméstica
investigados pelas Delegacias da Mulher mostrados por Fabiana de Andrade (2012),
em sua etnografia de uma Delegacia de Mulher de Campinas. Andrade, contudo,
também menciona um certo desapontamento de escrivãs e delegadas, porque
muitas vezes as noticiantes desistem da investigação e não seguem adiante com a
representação – e, de uma perspectiva de quem valoriza a penalização do crime,
também “não davam em nada”. Além disso, algumas policiais entendiam que “o
tratamento da questão deveria ser de responsabilidade da psicologia ou do serviço
social, como queixas de ofensas mútuas, dificuldade em se decidir pela separação,
desavenças entre pais e filhos, discórdia entre vizinhos (…)” (ANDRADE, 2012, p.
81).
Penso que isso seja análogo não apenas às situações que acompanhei, mas
também àquelas descritas por Letícia Ferreira (2011) quando estudou os casos de
desaparecimento de pessoas em uma delegacia especializada no Rio de Janeiro.
Ferreira destaca que, no Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP), os
casos de desaparecimento eram muitas vezes vistos como problemas da família e
de assistência social e não da polícia. Uma de suas interlocutoras, por exemplo,
defendia que fossem investigados por outros órgãos e instituições. A autora
menciona também a precariedade da investigação que, muitas vezes, não dava
conta de responder o onde, como e quando do desaparecimento – sem perder de
vista que como desaparecimento não é crime não pode gerar inquérito policial.
Sendo assim, não seria “difícil imaginar o quão frustrante pode ser, tanto para
policiais, quanto para comunicantes, relatar e registrar um caso de
desaparecimento” (FERREIRA, 2011, p.114).
55

Com base no trabalho de Medeiros (2016), é possível estabelecer outro


contraponto: quando o trabalho de investigação policial se torna atrativo para os
policiais. Interessada nas investigações de homicídio na região metropolitana da
cidade do Rio de Janeiro, a autora descreve as elaborações técnicas e morais que
compõem as chamadas “linhas de investigação”. A partir da interlocução com um
Delegado, a autora menciona o motivo: não atender o público, apenas trabalhar com
investigação era visto como algo positivo, porque mais próximo do “trabalho policial”
(p. 95).
Dentro da DHPP, o trabalho de Roberta tornava-se diferenciado e
especializado porque era paciente para os crimes que não levavam à prisão, para
aqueles que não eram vistos como assunto de polícia e para uma população que
não seria muito benquista por colegas da corporação. Assim, o Setor existia dentro
da Divisão não apenas associado à própria Roberta, mas também a suas
características consideradas ímpares e que a habilitavam para o atendimento dos
crimes que chegavam, ao mesmo tempo, até lá e até ela. Roberta emprestava
algumas de suas características ao Setor e a unidade policial também o fazia em
relação à escrivã. Quero dizer, Roberta também era qualificada, em alguns
momentos, pela população atendida no Setor.
Em um dia de muitas oitivas, no fim de maio de 2019, quase no final do
expediente, estávamos Roberta e eu na sala do Setor quando uma delegada e um
investigador passaram pela porta. A delegada perguntou para Roberta se ela teria
disponibilidade para estender seu turno naquele dia e acompanhar sua equipe em
uma operação. O motivo era o seguinte: a equipe precisava de mais uma mulher,
pois se tratava do cumprimento de mandados de prisão em uma casa de prostituição
de mulheres, o que implicava a necessidade de uma investigadora acompanhar a
operação. Roberta, ao aceitar prontamente o pedido, ouviu um agradecimento da
delegada e do investigador e, antes de partirem, este último em tom de brincadeira
disse que lembraram da escrivã do Setor pois a população do bordel seria uma por
quem Roberta teria afeição.
Eu não estava entendendo muita coisa, até que, por fim, aquela delegada
me ajudou a compreender o que seria motivo da graça: “vai que você prende a
Luana”, fazendo referência a um caso envolvendo uma mulher transexual com um
mandato de prisão expedido, mas não cumprido, conforme soube posteriormente.
Isso me sugeriu certo entendimento compartilhado da conexão entre prostituição,
56

transexualidade e o Setor de Vulneráveis – ninguém, afinal, precisou explicar o


motivo da risada e os pormenores da suposta anedota. Foi interessante como a
relação com o que já apareceu ligado ao Setor como “pessoas vulneráveis” foi se
desdobrando. Se, em tese, essa unidade policial deveria existir para apurar crimes
relacionados a essa população, em situações nas quais elas sejam vítimas, a
condição de vítima parece se autonomizar de tal população e essa última passou a
ser articulada com a figura da escrivã e do próprio Setor em momentos da rotina da
DHPP como o que acabei de descrever..
Essa maneira de associar uma determinada população do Setor a uma casa
de prostituição foi mediada pela atuação de um estereótipo. Conforme Herzfeld
(2016), estereótipos não são apenas uma maneira sem consequências de falar, mas
de realizar algo no mundo – na política ou no Estado, por exemplo. Nesse caso, o
estereótipo ligado a mulheres transexuais as associou à prostituição e vinculou
Roberta a uma parte do público a quem o Setor se direcionava. O esterótipo como
uma maneira de categorização de um grupo pessoas (MACHILLOT, 2012) contribuiu
para a associação de uma determinada população atendida pelo Setor à sua única
escrivã. Assim, evocou uma existência dessa instituição que estava, não apenas
vinculada a uma pessoa legalmente reconhecida para a ocupação de uma função
em seu interior, mas também a um determinado grupo de pessoas.
“Esses aí são amigos da Roberta, um velho e um travesti”, teriam dito dois
investigadores em tom jocoso para a escrivã em outra ocasião. Ouvi essa história
nos corredores da Divisão e, mais uma vez, tratava-se de uma suposta anedota:
dois policiais civis teriam enviado uma fotografia de si mesmos em um grupo de
mensagens instantâneas, ao que um terceiro teria respondido com a associação
desses dois homens às pessoas por quem Roberta teria afeição – uma pessoa idosa
e uma mulher transexual. A intenção daquele ato narrado parece ter sido a de
ironizar a idade de um deles e, ao mesmo tempo, tentar envergonhar o outro com
suposições a respeito de sua identidade de gênero. Ou melhor, a respeito de sua
sexualidade, tendo em vista o constante tratamento de transexualidade como
homossexualidade por parte de algumas pessoas da DHPP – o que Roberta
prontamente destacava como um erro conceitual.
Ou seja, dentro da DHPP não era apenas Roberta que existia no e para
Setor, por meio de sua atuação especializada, mas as próprias populações às quais
o Setor esteve vinculado em alguns momentos foram consideradas predileções da
57

escrivã. E isso importa porque destaca uma outra maneira de vincular o próprio
Setor (existente na figura de Roberta) a população para qual se volta, marcada pelos
estereótipos e pelo tom jocoso.
Resta uma última maneira de articular o trabalho especializado dessa
unidade às suas atividades investigativas em uma outra modalidade de existência do
Setor – comparando-as com as atribuições das delegacias de homicídio. A Divisão
de Homicídios e Proteção à Pessoa, onde estão localizados o Plantão, o Setor de
Vulneráveis e as outras unidades, possuía dois pavimentos. No de cima, ficavam as
delegacias da Subdivisão de Homicídios e embaixo o Setor. Roberta fazia questão
de me dizer que não havia nenhuma diferença entre aqueles de cima e o cartório
pelo qual ela era a escrivã responsável: “é tudo igual, tem o mesmo funcionamento,
tudo é delegacia”.
Todos estavam incumbidos de produzir os inquéritos policiais e,
consequentemente, as investigações – reunir provas, ouvir vítimas, testemunhas,
suspeitos, juntar os papeis, literalmente, aos autos do processo, responder
requisições do Ministério Público, fazer intimações e se comunicar com outros
setores, como o de inteligência. Uma dessas atividades em comum era a de ouvir as
pessoas intimadas, nas chamadas oitivas. Em uma das oitivas, a Delegada ouviu de
uma testemunha que havia ficado desesperada depois de ter recebido a intimação
para estar ali, na “Delegacia de Homicídios”. A delegada ouviu a história atenta e,
em uma aparente tentativa de acalmar a testemunha, disse para ficar tranquila,
porque na DHPP havia um setor que não estava ligado à apuração de mortes. Ela
era sorridente e cordial com as pessoas que ouvia, embora fosse de poucas
palavras. Assim como Roberta, era formada em Direito e, segundo minha
percepção, era branca, de cabelos loiros, com idade por volta de seus 35 anos. Em
seus termos, descreveu na ocasião o Setor de Vulneráveis como “um setor mais
light”.
O nervosismo era comum na narrativa das pessoas intimadas e Roberta
usava uma retórica parecida para convencer as pessoas intimadas por ela da
prescindibilidade do nervosismo sentido: “Presta atenção, é Delegacia de
Homicídios e, no finalzinho, tem um proteção à pessoa”.
Dentro da DHPP, o Setor também pôde ser uma unidade mais leve, por ter
tido como especificidade a investigação de crimes considerados mais brandos –
esses últimos, em outro momento descrito acima, serviram para justificar uma
58

suposta desmotivação em relação à sua atuação, por parte da corporação. Além


disso, pôde ser vinculado a ambientes fora da Divisão – uma casa de prostituição –,
em virtude da população para quem a justificativa de sua existência é voltada. Dessa
forma, as pessoas para quem a ação da unidade de investigação seria voltada
apareceram de outra maneira: como as pessoas que deveriam ser o alvo das
operações de prisão por parte da polícia e como pessoas com quem a escrivã teria
afinidades, mediadas por estereótipos.
O Setor existiu dentro da Divisão de Homicídios, portanto, não apenas
associado à Roberta, mas também aos estereótipos de algumas pessoas, para além
apuração de crimes contra elas – crimes cuja especificidade faria da atuação dessa
unidade uma unidade investigativa mais branda.

***

Ao longo do capítulo, meu esforço foi demonstrar as existências do Setor de


Vulneráveis. Se a constituição dos crimes contra vulneráveis e a consolidação da
procura pela intenção dependeeram da criação de uma unidade especializada,
argumentei no sentido da existência não de um Setor, mas de alguns, conforme a
localização de sua atuação. Uma primeira ligada ao espaço, onde uma população
específica – sobretudo, idosos e deficientes físicos – pudesse ser atendida, o que
resultou em um desmembramento do Setor para a DHPP. Uma segunda legal-
institucional, em que a vulnerabilidade articulou as diversas populações
mencionadas pelo Decreto 5.241, em muito, desdobramento da atuação de
movimentos negros pela igualdade racial. As atribuições legais postularam
especificidades quanto à rotina burocrática da unidade (elaborar Termos
Circunstanciados e Inquéritos Policiais) para qualquer pessoa que pudesse ser
segregada ou ofendida pessoalmente por conta do grupo social com o qual se
identificasse. Uma terceira, pública, em que o Setor apareceu como um trabalho
especializado, capacitado e humanizado fomentado pelo governo do estado para
uma população específica – os vulneráveis (pessoas negras e LGBT). Por fim, uma
quarta, em que o trabalho especializado do Setor se tornou a paciência de sua única
agente policial para crimes com pouquíssima chance de levar à prisão e que seriam
“mais leves” quando comparados com homicídios. E a especificidade de parte da
59

população atendida pôde trazer à tona estereótipos e preconceitos presentes na


própria corporação.
Todas essas existências não estavam irremediavelmente separadas umas
das outras. Os endereços fornecidos nas páginas da polícia e em algumas notícias
correspondiam a um lugar onde era possível encontrar uma escrivã trabalhando
entre mesas, computador e papéis. Papéis esses que, muitas vezes, retomavam o
decreto que foi responsabilizado pela inauguração do Setor e que era enunciado
pela escrivã responsável pelo Setor. Um Setor de uma escrivã só, carregando-o
consigo para conselhos estaduais e audiências públicas. Uma audiência pública
onde o Setor foi referido a partir de seu espaço e de sua única funcionária – “lá na
DHPP”. De acordo com o que afirma Mol (2008), “as realidades alternativas não
coexistem simplesmente lado a lado, mas também se encontram dentro umas das
outras” (sem paginação). As existências do Setor de Vulneráveis por muitas vezes
continham umas às outras.
De todo modo, tendo sido possível dizer que o Setor era Setores, pude
explorar etnograficamente a multiplicidade em que essa unidade existia, da qual os
crimes que atende dependem para vir à existência. Abordarei, a seguir, outros
elementos para constituição dos crimes contra vulneráveis e a consolidação da
procura pela intenção que acompanhei durante meu trabalho de campo: a chegada
das notícias-crime e o começo da investigação.
60

3 AS COMUNICAÇÕES DO CRIME E O COMEÇO DA INVESTIGAÇÃO

Neste capítulo, descreverei como algumas comunicações de conduta


criminosa chegaram ao Setor de Vulneráveis e os desdobramentos investigativos
vinculados a elas. Em um primeiro momento, tratarei das “Notícias de Fato” e dos
“Boletins de Ocorrência” que circularam por essa instância policial, com o objetivo de
compreender as práticas implicadas na instauração ou não do inquérito. Para isso,
vou considerar mais detalhadamente quatro casos: dois de racismo, um de
homofobia e outro não enquadrado nas atribuições do Setor. Seguirei alguns dos
que permaneceram e abordarei as “oitivas” do Setor – momento no qual vítimas,
autores e testemunhas eram ouvidos pela escrivã e pela Delegada. Assim o faço
com o propósito de explorar dois aspectos fundamentais relacionados ao modo
como as investigações são levadas adiante: as maneiras de identificação das
“partes” e a busca por uma “lógica da história” a partir das perguntas da
investigação. Para terminar o capítulo, volto-me para algumas lições enunciadas
pela escrivã sobre como os “fatos” deveriam ser “apurados”, com o objetivo de
destacar aspectos tidos como fundamentais para o exercício do trabalho
investigativo do Setor: documentos, questionamentos e histórias de um trabalho
aprendido. A partir dos aspectos mencionados, enfatizarei momentos dos quais
depende a constituição dos primeiros passos da “apuração dos fatos” ligados às
investigações conduzidas por essa instância policial, que contribui para sustentar a
procura pela intenção dos investigados.

3.1 A CHEGADA DAS NOTÍCIAS-CRIME NO SETOR

“Notícia-crime” é o nome que se dá para o momento no qual a existência de


uma conduta considerada criminosa chega ao conhecimento da polícia ou do
Ministério Público. Essa comunicação acontecia, e penso que continue acontecendo,
de duas maneiras distintas no Setor de Vulneráveis: pela elaboração de “Boletins de
Ocorrência”, quando a vítima era quem comunicava, feita por Roberta; e pela
chegada das “Notícias de Fato”, informação de conduta criminosa feita pelo MPPR.
Essas duas modalidades de comunicação possuíam outras diferenças significativas:
seus pontos de partida e modos de chegada ao Setor, a localização nas pastas dos
inquéritos e as práticas policiais que suscitavam.
61

As elaborações dos “Boletins” que pude acompanhar foram feitas quando


uma pessoa desejava noticiar à polícia uma situação em que havia sido vítima de
algum crime. Menos comuns que as requisições do MPPR, os “Boletins” resultavam
em uma folha de papel impressa contendo alguns dos dados pessoais da vítima e
sua descrição do acontecido. A incumbência da polícia em relação a esses
documentos era produzir algo a partir do relato de uma vítima de discriminação ou
preconceito. Isso envolvia fazer perguntas a respeito do que havia acontecido e, a
partir disso, encontrar uma tipificação penal na qual aquela narrativa ouvida pudesse
ser encaixada. Não qualquer artigo do Código Penal, entretanto – era preciso
correlacionar a “notícia-crime” com os artigos que definiam as atribuições
investigativas do Setor, a saber, o parágrafo terceiro do artigo 140 e a Lei 7.716 de
1989, conforme explicitei no Capítulo 1.
Já as “Notícias de Fato” apareciam no Setor como pastas provenientes do
Ministério Público do Paraná, feitas de papel aparentemente reciclado, cujo escopo
era desencadear uma investigação policial. A Corregedoria Geral da Polícia Civil era
quem direcionava as requisições do MPPR para a delegacia especializada
competente. Em um primeiro momento, a incumbência policial em relação a elas me
parecia ser apenas seguir uma ordem expressa do Ministério Público e da
Corregedoria. Contudo, as requisições advindas dessas instâncias que acompanhei
passavam por uma análise para decidir se eram mesmo atribuição do Setor ou se
deveriam ser devolvidas para a Corregedoria. Geralmente, os questionamentos
tinham em vista a data do ocorrido e o desconhecimento da autoria a quem o fato
criminoso estava sendo imputado – tratarei desses pontos no desenvolvimento deste
capítulo. Grosso modo, aceitar ou negar as requisições do MPPR e da Corregedoria,
tanto quanto registrar os “Boletins”, dependia de um esforço analítico e elaborativo
por parte da polícia.
O desenvolvimento dos argumentos deste capítulo está, pois, ancorado
nesse empenho. A seguir, descreverei duas “Notícias de Fato” e dois momentos nos
quais o Setor foi procurado para o registro de “Boletins de Ocorrência”. Meu objetivo
é tratar dos elementos que permitiram a comunicações serem registradas ou não
como “Boletins” e se transformarem em investigações20. Enfatizarei três aspectos

20
Meu objetivo não é uma análise dos casos a partir da perspectiva das/os noticiantes. A esse respeito,
ver o terceiro capítulo da tese de Denise Rodrigues (2018). A autora apresenta uma minuciosa
descrição e análise dos crimes de racismo e injúria racial a partir de entrevistas realizadas com
62

que foram relevantes para a constituição inicial de tais crimes e puderam sustentar a
procura pela intenção: a data do acontecimento da conduta criminosa, o
reconhecimento de vítimas e autores enquanto tais, e o entusiasmo com os
desdobramentos da investigação e com a possibilidade de ela terminar em sentença
condenatória no Poder Judiciário.

3.1.1 Identificando vítimas, desconhecendo autores

Em um dia de bastante sol, atípico para o mês de agosto em Curitiba,


Azevedo e eu estávamos sozinhos na sala do Setor, conversando sobre a rotina da
Divisão, quando o telefone tocou. O investigador do Setor de Inteligência da
DHPP/PR o atendeu: “tem autoria conhecida? Então é no Distrito da área”. Ele se
referia a uma das primeiras informações às quais tive acesso em meu trabalho de
campo – se a notícia do crime trouxesse consigo a identificação da autoria, ela não
seria, em tese, investigada pelo Setor. Dois fatores foram importantes nos casos aos
quais tive acesso para que os crimes noticiados fossem investigados: a identificação
da vítima e a não identificação da autoria, ambos tema desta seção. O sujeito que
procurou o Setor pelo telefone era uma pessoa idosa em busca de uma medida
protetiva. Não teve seu caso atendido naquela unidade, embora, segundo Azevedo,
tenha afirmado ser idoso e noticiado uma prática aviltante em razão de sua idade.
Ele foi aconselhado a procurar o Distrito Policial de sua região, porque, conforme o
próprio senhor teria afirmado, a autoria do crime que pretendia noticiar era
conhecida.
Em um dos casos a seguir, o “Boletim” também não foi registrado diante da
impossibilidade de se identificar uma vítima; já no outro, tendo sido possível
identificar a vítima e desconhecendo-se a parte autora, o “Boletim” foi feito.
Começarei pelo último.
Timóteo, um homem autodeclarado pardo, de altura pouco maior que um
metro e setenta, de cabelo recém cortado e voz calma, procurou o Setor para fazer
uma complementação de seu “Boletim de Ocorrência”. Ele havia noticiado no Distrito
Policial de sua região uma discriminação homofóbica que teria sofrido em seu
ambiente de trabalho, um famoso supermercado da capital paranaense. Por

pessoas que foram vítimas de discriminação e noticiaram a conduta a DECRADI, na cidade de São
Paulo.
63

“complementação” me refiro à possibilidade de o “Boletim” ser alterado digitalmente,


uma vez que esses documentos eram e ainda são gerados em um sistema digital
integrado da PCPR, o “Boletim de Ocorrência Unificado”. Entretanto, conforme
Roberta me explicou, tal alteração era permitida apenas para o acréscimo de
informações, ou seja, nenhuma informação é excluída, apenas adicionada. Pude
perceber que, como se tratava de uma “complementação”, os “dados” da vítima
haviam sido registrados no “sistema” e prescindiam de um novo preenchimento. De
todo modo, os dados requisitados eram os seguintes: nome, data e local de
nascimento, escolaridade, profissão, estado civil, e-mail, endereço, telefone fixo,
celular, cor, se possui deficiência, altura e peso21.
Acompanhado de sua advogada, aquele homem noticiava que um cliente do
supermercado onde trabalhava como caixa o teria chamado de “veadinho” e o
agredido fisicamente. Depois de o “Boletim” ter sido impresso, pude ver como a
“complementação” era feita na constituição desse documento e, ao mesmo tempo,
desse caso. Quando os “Boletins” eram a “notícia-crime”, possuíam em seu interior
os dados que mencionei acima e um campo intitulado “Descrição Sumária dos
Fatos”. Nesse campo, o investigador ou a escrivã responsável por preenchê-lo
descrevia “os fatos” narrados por quem procurava o serviço da polícia. Além disso,
era nesse momento que o enquadramento penal era feito, ou seja, que algum
dispositivo penal era primeiramente relacionado à história contada. As informações
relativas ao enquadramento penal ficavam no campo “Natureza(s) constatada(s)” e
eram seguidas por “tipo(s) de ambiente(s)”, “meio(s) empregado(s)” e “providência(s)
da autoridade policial”. A atividade policial de, nos termos da escrivã, “ouvir e por no
papel”, era contada por Roberta como neutra e de mera reprodução dos “fatos”.
O trabalho de Nadai (2017), entretanto, ajuda a estabelecer um contraponto:
demonstra como a elaboração dos boletins de ocorrência de uma Delegacia da
Mulher de Campinas estava intimamente ligada ao modo como escrivãs e escrivães
de polícia elaboravam convenções narrativas para descrição e tipificação de casos
de estupros. O “por no papel” descrito por Roberta é diferente também do “apenas
preencher papel” mencionado por Ferreira (2013), quando esta última fala do modo

21
As perguntas feitas em oitivas e preenchimentos de boletins de ocorrência variam entre uma e outra
situação e também entre vítima, autoria e testemunha. O modo de fazer essas perguntas compunha
as técnicas de investigação policial, que Roberta descreveu como sendo importante para “quebrar o
gelo” e, assim, deixar as pessoas mais à vontade para contarem suas versões dos “fatos”. Tratarei
desse aspecto mais detidamente no decorrer deste capítulo.
64

dos funcionários da SDP enxergarem seu trabalho, como o de apenas produzir


documentos, uma vez que os casos de desaparecimento não eram entendidos como
assunto propriamente da polícia. Entretanto, a autora argumenta que “esse fazer
policial não só registra, mas também enseja compromissos, obrigações e
sentimentos com que as próprias famílias administram casos de desaparecimento”
(p. 60), ou seja, não é de apenas preencher papel.
Em minha primeira ida ao Setor, ainda para negociar os termos da pesquisa
de campo, Roberta me disse que o trabalho dos “operadores” do direito era o de
encaixar o que ouviam na legislação da qual seus trabalhos dependiam, e isso
também indica uma certa atividade diferente de apenas reproduzir fatos no papel – o
que ela também defendia. Sendo assim, o trabalho burocrático, no Setor e em outras
repartições, parece ser e não ser o de apenas “preencher papel”.
No caso de Timóteo, depois de preenchidos alguns dos papeis relativos à
comunicação do crime que noticiava, o “desconhecimento da autoria” foi
fundamental para que fosse registrado e permanecesse no Setor. Terminado o
atendimento, Roberta explicou à vítima que não garantia aquela investigação pelo
Setor, “porque o decreto diz que precisa ser autoria incerta ou desconhecida. Eu
entendo que no seu caso é incerta, mas se o supermercado encontrou o nome do
agressor e repassou vai ser pelo seu distrito”. O advogado do supermercado onde o
crime teria acontecido havia prometido as imagens à Polícia Civil. Sendo possível
identificar a parte autora do crime, as investigações não seriam empreendidas pelo
Setor de Vulneráveis. O supermercado posteriormente alegou não dispor mais das
imagens e, sendo assim, a autoria passou a ser reconhecidamente desconhecida. O
caso pôde prosseguir no Setor e teve sua investigação tocada por lá.
Entretanto, esse não foi o único motivo responsável pela sua permanência.
Em termos jurídicos, a possibilidade de encontrar uma vítima naquela história e
naquele homem também foi significativa. Na prática, isso implicou ser possível
localizar individualmente o alvo de uma fala e uma ação motivadas por
“discriminação ou preconceito”. Esse alvo poderia ser uma única pessoa e/ou um
grupo de pessoas mencionado de modo genérico – a vítima nesses últimos era o
“Estado”, mencionado na capa do “Inquérito”, no campo “Vítima(s)”. Ou seja, para
que os casos permanecessem era preciso haver a associação entre vítima e uma
pessoa, ou entre vítima e o “Estado”. Isso estava vinculado, por sua vez, ao
preenchimento de outro campo do “Boletim”, o “Natureza(s) Constatada(s)”, pois
65

para que os crimes fossem recepcionados e prosseguissem era necessário


encontrar uma tipificação na qual o caso pudesse ser encaixado. Sendo assim,
preencher esse campo de determinado modo e encontrar um motivo jurídico para
isso era parte fundamental do trabalho policial para aceitar ou negar as notícias-
crime22. Nesses momentos, o parágrafo terceiro do artigo 140 e a lei 7.716
reapareciam no cotidiano do Setor, geralmente, o primeiro ligado aos casos em que
a vítima era um indivíduo e a segunda aos casos em que a vítima era o “Estado”.
O fato de ter o “Estado” como “Vítima(s)” dizia respeito ao estatuto da “Ação
Penal” possível de ser desdobrada a partir da comunicação de um crime. O
“Inquérito” partia da delegacia em direção ao Ministério Público, que oferecia ou não
a denúncia ao Poder Judiciário para julgamento, nos casos de Ação Penal Pública,
conforme expliquei no Capítulo 1. Essa ação podia ser “condicionada” ou
“incondicionada”, isto é, podia depender ou não da representação da vítima no caso.
Os casos nos quais o Estado aparecia como vítima eram, via de regra, os de “Ação
Penal Pública Incondicionada” e podiam ter o encaminhamento da investigação feito
sem o posicionamento de uma pessoa. Por outro lado, os casos de “Ação Penal
Pública Condicionada” dependiam da presença da vítima na delegacia e de sua
anuência em relação à investigação para prosseguir até mesmo dentro do Setor.
Ademais, alguns casos comportavam as duas modalidades, com sua notícia dando
origem a uma investigação que poderia se desdobrar nos dois tipos de Ação Penal
Pública, pois poderia se tratar de crimes tipificados pela lei 7.716 e pelo parágrafo
terceiro do art. 140.
De todo modo, era preciso ter uma vítima reconhecida: na lei, na história do
crime, no formulário – o que se passou no caso de Timóteo. A “complementação” de
seu “Boletim” permitiu que o caso fosse investigado nas dependências do Setor
porque ele alegou sua posição de vítima em uma violenta história de discriminação.
Uma história em que a autoria não era conhecida e que pôde ser vinculada a um
dispositivo penal – ao parágrafo terceiro do artigo 140. Embora o que tenha
criminalizado a homofobia tenha sido uma decisão da Suprema Corte brasileira, em
junho de 2019, que permitiu tipificar casos de homofobia pela Lei 7.716, no “Boletim”

22
O trabalho de Santos (2009) aborda como delegados de polícia de Campinas entendem a tipificação
do crime de racismo e da injúria racial e ajuda a compreender como essa tipificação é, nos termos do
autor, confusa para esses agentes.
66

de Timóteo estava a tipificação do crime como injúria qualificada23. De todo modo, foi
a criminalização da homofobia24 que permitiu a casos como o de Timóteo deixarem
de ser investigados como injúria simples e passarem a ser tratados como injúria
qualificada ou crime de racismo.
As questões relativas à necessidade de uma vítima para que a investigação
pudesse correr ficaram evidentes para mim quando o Setor foi procurado para o
registro de um “Boletim” e não o fez. Tratava-se do seguinte caso: Laís procurou
aquela unidade para noticiar uma situação de discriminação, em que um homem
teria afirmado que “as feministas” mereciam ser estupradas. Entretanto, Laís ouviu
como justificativa que era impossível fazer um “Boletim” em nome das mulheres e
das feministas em geral. Era preciso ter “uma” vítima, em especial. Ademais, ouviu
que juridicamente não era possível incriminar o desejo, a vontade – em tese, não
havia esse tipo de previsão no Código Penal brasileiro. No limite, não havia um
nome em nome do qual o “Boletim de Ocorrência” pudesse ser feito. Sem a
possibilidade de encontrar uma vítima na lei e no formulário, Laís e sua
comunicação não permaneceram no Setor.

3.1.2 O entusiasmo da investigação

3 de setembro de 2019. Roberta subiu para a sala da Delegada com


algumas pastas de “Notícias de Fato”, mas não retornou com todas elas – algumas
seriam despachadas de volta para a Corregedoria Geral da Polícia Civil. Eram
“Notícias de Fato” que há pouco estavam sobre minha mesa e das quais me
ocupava. Entre aquelas retidas na sala da Delegada, havia uma que noticiava um

23
Ela foi adicionada na complementação do “Boletim” feita por Roberta e somou-se à tipificação – pela
Lei de Contravenções Penais, Lei 3.688/1941 – feita pelo Distrito Policial onde Timóteo fez a primeira
versão “B.O.”.
24
Por meio de uma Ação Direita de Inconstitucionalidade do Partido Popular Socialista (PPS), a
criminalização da homofobia aconteceu na esteira de outras conquistas jurídicas do movimento
LGBT, como a conquista do direito à união estável por casais homossexuais e o reconhecimento das
identidades transexuais. Para uma análise mais detida das decisões anteriores à criminalização da
homofobia, depois de 2010, ver Vecchiatti (2018), e para uma discussão sobre o surgimento e
desdobramentos do movimento LGBT no Brasil, ver Trindade (2018) e Facchini (2018). Ainda, cf.
Aguião (2014) para compreender uma atuação desse movimento nas esferas estatais, na sua
constituição enquanto sujeitos de direitos. Sobre o caso de Timóteo, não acompanhei suas
investigações até o fim, mas até onde o fiz, a parte autora não havia sido identificada – a escrivã
estudava a possibilidade de, com base na hora do crime e na identificação do caixa por onde ele
passou, conseguir o número do Cadastro de Pessoa Física (CPF) do autor. Assim, nos despedimos
deste caso sem saber o seu desfecho.
67

homem transmitindo deliberadamente uma doença infecciosa para outros homens,


com quem mantinha relações sexuais. Embora Roberta não tenha me deixado ter
acesso a essa “Notícia”, contou-me que ficara intrigada. Ela logo me detalhou, sem
mencionar dados a respeito do caso, o que faria se pudesse investigar aquela
história: quem intimaria, quais instâncias estatais mobilizaria e como eventualmente
driblaria os percalços a jurídicos a serem encontrados. Vi a escrivã se animar com a
possibilidade da investigação, em grande medida, pelo trabalho investigativo
decorrente daquela requisição feita pelo Ministério Público, que havia chegado até lá
como uma denúncia anônima. Mas também, porque parecia ter condições de levar à
incriminação do autor, se as suspeitas dela fossem confirmadas. Em seguida, ela
deixou mais uma vez a sala do Setor em direção à da Delegada, para pedir que o
caso permanecesse com ela. O sujeito estava mesmo infectado com a doença
contagiosa mencionada? Como saber com quem ele havia mantido relações
sexuais? Como intimar pessoas para contar histórias tão íntimas? Ela voltou
rapidamente, e bastante animada me disse que, em caráter de excepcionalidade, a
delegada havia autorizado a “Notícia de Fato” a permanecer e ter sua investigação
tocada pelo Setor.

***

Conforme mencionei no primeiro capítulo, o Setor de Vulneráveis existia em


alguns momentos como uma instância de investigação policial sem um propósito
motivador para a corporação. A razão principal elencada era que tais crimes quase
nunca resultavam em acusações penais entendidas como severas, especialmente
em prisões. Entretanto, houve alguns momentos nos quais a comunicação da
existência de condutas criminosas chegou ao Setor e mobilizou outras previsões a
respeito do desdobramento da investigação. Embora mais raros, eram crimes que
muito possivelmente resultariam em uma sentença condenatória, porque era
possível identificar, de partida, uma intenção motivação de discriminar difícil de ser
negada. Por isso, mobilizaram algum contentamento e satisfação logo no início da
procura pela intenção.
No caso da “Notícia de Fato” em questão, o crime recém comunicado
parecia ter mobilizado a imagem de um percurso investigativo bastante interessante
aos olhos da escrivã. O principal motivo era a suposição de que alguém poderia sair
68

preso da história, e tal motivo era amparado pela existência de capturas de tela
digitais impressas nas folhas da “Notícia” em que o suposto autor assumiria a
intenção deliberada de transmitir uma doença infecciosa, segundo Roberta.
Comprovar essa versão da história implicaria acionar diversas instâncias estatais
para fazer uma descoberta – e isso parecia movimentar os ânimos investigativos
daquela policial. Essas questões foram fundamentais para que tal comunicação
pudesse continuar nas dependências do Setor e se tornar um potencial “crime contra
vulnerável” – além, claro, da autorização da Delegada.
Essa situação ajuda a pensar sobre entusiasmo e imprevisibilidade
presentes no funcionalismo público. Embora haja uma previsão legal que se
pretende absoluta ao descrever os casos de atuação das instâncias estatais de
modo geral, a existência das leis e da burocracia dependem da atuação
indeterminada de seus agentes, como os trabalhos recentes de Maricato (2015) e
Bevilaqua (2016) exemplificam. Em relação, especificamente, ao trabalho de fazer
ou não os registros das notícias-crime e efetivar a investigação, Costa (2017)
menciona um “conflito de competência” entre a Delegacia de Estelionato e outras
especializadas de Curitiba na definição do que deveria ser ou não investigado por
aquela. E aponta para uma prática responsável por definir o escopo da lei para
resolvê-lo.
Por sua vez, o caso que venho descrevendo, colocado na perspectiva dessa
literatura, permite olhar para outro aspecto: o engajamento subjetivo no
funcionalismo público como uma maneira possível de atuar na constituição das
burocracias, ao estar presente na decisão da permanência de um caso a ser
investigado. E ele não é o único. Souza (2008), em outro exemplo, analisou casos
noticiados às Delegacias Distritais da cidade do Rio de Janeiro chamados de
“feijoada”. O argumento da autora demonstra como a falta de entusiasmo com as
notícias-crime de casos vistos pelos policiais como impossíveis de se desdobrarem
em ação penal, prisão ou investigação estimularam uma conduta administrativa de
desencorajar os registros dessas ocorrências. Em grande medida, porque eram
vistos como “perda de tempo” e, por isso, com certa impaciência. Em ambos os
casos não se trata de uma reação indiferente aos casos que chegam, mas de
engajamentos subjetivos distintos que constituíram as próprias investigações.
Essa maneira corporificada e senciente, por assim dizer, da constituição
burocrática-estatal não está restrita ao universo das corporações policiais. Por
69

exemplo, ela aparece na execução de uma política pública do governo australiano


(LEA, 2012), nas considerações de Aretxaga (2003) sobre “dinâmicas subjetivas que
conectam pessoas aos estados” e a respeito do que ela menciona como
“subjetividade do estado” (p. 395, tradução minha). Além disso, voltando aos
contextos de atuação policial, o trabalho de Renoldi (2013) é outro importante
exemplo de como a atuação estatal é constituída pelas práticas engajadas de seus
agentes, no contexto da fiscalização de contrabando na fronteira entre Argentina e
Paraguai. Em síntese, acompanho a ressalva feita por Ferreira (2011) à ideia da
“produção social da indiferença” de Herzfeld (1992), ao chamar a atenção para a
“possibilidade de um espectro de sentimentos bastante distintos da indiferença”
(FERREIRA, 2011, p. 115) no registro policial de pessoas desaparecidas.
No exemplo que descrevi, a “Notícia de Fato” que foi resgatada momentos
antes de quase ter deixado as dependências do Setor tornou notável a
imprevisibilidade do futuro das comunicações de fato criminoso. Outro aspecto
fundamental foi o exercício imaginativo do qual aquela “Notícia de Fato” dependeu
para continuar no Setor, ou melhor, do entusiasmo que suscitou. As suposições a
respeito do futuro da investigação e da sentença eram próprias de quem possuía
alguma familiaridade com aquela rotina burocrática. E de quem apostava em uma
possibilidade – delegada, escrivã e investigadores, por exemplo, chamavam minha
atenção para o fato de que muitas vezes os casos terminavam de maneira diferente
de como haviam pensado. “Você precisa ir ao Ministério Público”, recomendou-me a
Delegada da Divisão quando fomos apresentados, destacando que muitas vezes a
denúncia não era oferecida. Ou seja, mesmo que não houvesse a garantia de a
previsão se cumprir, o futuro emocionante aventado vinculou um determinado
trabalho burocrático e jurídico ao entusiasmo policial. A possibilidade de um
determinado futuro tornou-se presente – e assim, a “Notícia” pôde ficar.

3.1.3 O tempo da conduta criminosa

O futuro aventado na investigação não era o único elemento importante na


rotina do Setor para que os casos permanecessem – o passado também o era. Em
alguns casos recepcionados por aquela unidade policial, o dia em que a conduta
criminosa denunciada teria acontecido era fundamental para o destino da notícia-
crime. Retomo uma “Notícia de Fato” saída do MPPR para tratar dessa característica
70

dos crimes que permaneceram e se transformaram em “Inquéritos Policiais”. Em


especial, aqueles cuja motivação discriminatória noticiada era a “homofobia”.
Sempre que chegava ao Setor, perguntava a Roberta se havia algum caso
novo noticiado. Em algumas semanas o movimento da delegacia era maior, o que
significava mais casos chegando e em outras um ou nenhum deles. Isso era
encarado pela escrivã e por alguns de seus colegas da DHPP como algo natural do
ritmo de trabalho da Divisão. Em uma das semanas mais agitadas, com mais gente
e papel circulando por aquela sala, Roberta me contou da chegada de inúmeras
“Notícias de Fato” do MPPR, referindo-se a uma grande quantidade de trabalho a
ser feita naquela semana. Boa parte delas era sobre homofobia e algumas não se
transformariam em “Inquéritos Policiais”. O motivo desse desdobramento era que
teriam ocorrido em uma data anterior à decisão do Supremo Tribunal Federal de
enquadrar “homofobia” na mesma lei que define o “crime de racismo”. Roberta me
explicou que a lei nunca retroagia em prejuízo do réu, logo, se aconteceu antes da
decisão, o “Inquérito” não poderia ser instaurado e, por isso, seria devolvido à
Corregedoria.
A escrivã, entretanto, se enganou a respeito de um deles, porque teria
acontecido depois dessa decisão do STF. Tratava-se de um caso de discriminação
por homofobia acontecido em um serviço de transporte privado urbano, por parte do
motorista do carro em relação a uma das passageiras – o caso de Ângela. Ele havia
sido denunciado na Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, por meio de seu
principal canal de atendimento, o Disque Direitos Humanos – Disque 100 e, em
seguida, encaminhado ao MPPR. Essas informações estavam registradas na pasta
da “Notícia de Fato” do caso, composta por todo o trajeto percorrido pela denúncia
até chegar àquela sala. Entre os registros, um lembrete: “os fatos narrados (…)
revelam a possibilidade de amoldarem ao comportamento criminoso descrito pelo
art. 20, caput da Lei nº 7716/1989, na forma do entendimento firmado, por maioria,
pelo plenário do STF no julgamento do ADO26 e MI4733/DF”. Em seguida, o texto
do informativo da Suprema Corte compunha na íntegra tais “Notícias” e aquela à
qual me refiro.
Voltarei a esse caso ao longo da dissertação. Por enquanto, é importante
sublinhar que “Notícia”, órgãos estatais e decisões judiciais estavam e
permaneceram sobre as mesas do Setor porque a data da mencionada pela notícia-
crime era posterior à decisão do STF. Isso remete à “importância do tempo” (HOAG;
71

HULL, 2017) na constituição dos crimes de homofobia de modo específico e, de


modo geral, nas rotinas burocráticas das repartições públicas. Por exemplo,
Maricato (2015), ao descrever um pedido de pensão negado pela comissão que
concedia o auxílio para pessoas “atingidas pela hanseníase”, menciona a atuação
da “temporalidade do Estado” (p. 92) no caso. Gonçalves (2013), ao tratar da
produção e circulação dos documentos regulatórios em Moçambique, chama a
atenção para o caráter provisório das normas na modulação do tempo das políticas
públicas – e da centralidade disso para a própria governança. No caso que venho
descrevendo, a decisão do STF em criminalizar a homofobia marca uma data na
rotina burocrática do Setor a partir da qual as notícias-crime de discriminação ou
preconceito em razão de sexualidade e identidade de gênero desencadeiam a
instauração de um inquérito policial.
Ou, nos termos de Roberta, quando ela mesma se corrigiu a respeito da
“Notícia” que supostamente não ficaria nas dependências do Setor: “essa eu vou ter
que instaurar [o inquérito], por conta da data”.

3.2 AS OITIVAS DO SETOR: HISTÓRIAS DE VÍTIMAS, AUTORES E


TESTEMUNHAS

Instaurados os “Inquéritos”, havia ainda muito trabalho a ser realizado para a


constituição dos crimes no Setor ser concluída. As ações eram voltadas, sobretudo,
para descobrir a “verdade dos fatos”, isto é, voltadas para “averiguar” se a versão
contada no momento da comunicação do crime ao Setor era “a verdadeira” ou se
outras versões possuíam mais “sentido”. Isso era realizado nas “Oitivas” –
momentos centrais para a rotina de investigação, para a constituição dos crimes e
para a procura pela intenção. Momentos nos quais possíveis vítimas, autores e
testemunhas eram intimados para falar o que haviam visto e sabiam a respeito do
caso.
Os “Inquéritos” eram formalmente instaurados por uma “Portaria” que,
assinada pela Delegada, determinava algumas “diligências”. Entre elas, duas em
geral contribuíam mais diretamente para o desdobramento da investigação em
“Oitivas”: a intimação da vítima para “prestar esclarecimentos” e a identificação,
intimação, qualificação e interrogação do investigado. Além disso, alimentar e editar
a pasta do “Inquérito” era atividade concomitante ao processo de identificar, intimar
72

e ouvir autores, vítimas e testemunhas. Tratarei especificamente disso no terceiro


capítulo. Por ora, gostaria de destacar que o trabalho investigativo transformava
graficamente a própria pasta do inquérito. As diligências das portarias eram
dispostas em tópicos e, em geral, marcadas com tiques a lápis à frente das
atividades cumpridas entre as requisitadas. Ou seja, a constituição da investigação
estava vinculada à manutenção de uma pasta de papel, em tempos de arquivos
digitais, que contribuía especialmente para a organização daquele trabalho.
O trabalho de investigação policial dependia também de práticas que
modificavam documentos, faziam lembretes e alimentavam um sistema digital.
Refiro-me a esse último, pois era para onde iam as gravações das “Oitivas”. As
“Oitivas” do Setor eram gravadas e anexadas a um sistema digital possível de ser
acessado pelas/os policiais. Nele as peças dos inquéritos eram juntadas. Em relação
às “Oitivas”, as pessoas chegavam, sentavam-se de frente para a escrivã e para a
câmera acoplada em seu computador e dali contavam suas versões para os crimes.
A partir disso, um arquivo digital era gerado e posteriormente anexado ao “Inquérito”.
Ou seja, se em um primeiro momento as “Oitivas” me pareciam depender apenas do
encontro entre escrivã e vítimas ou autores ou testemunhas na sala do Setor, ao
acompanhar as atividades daquela unidade policial, encontrei outros elementos que
eram tão importantes quanto.
A explicação jurídica para a existência dos “Inquéritos” encontra ressonância
no próprio cotidiano do Setor: são responsáveis por identificar a autoria dos crimes e
comprovar a materialidade de sua existência. Como bem descreveu Iubel (2009),
“materialidade é o termo “nativo” utilizado pelos policiais, que está também na lei,
para descrever o conjunto de provas por eles construídas ou encontradas que
autorizam falar na real ocorrência de um crime ou não” (p.87). Esse conjunto de
provas e seus desdobramentos podem ser descritos como uma “forma de saber”
(FOUCAULT, 2005, p. 77) que busca encontrar uma determinada “verdade” passível
de uma determinada “comprovação”25. A principal característica da maioria dos
casos investigados no Setor era a expressão de palavras ou gestos discriminatórios.
Dessa forma, a materialidade desses crimes não deixava registros, a menos que
fossem gravados ou fotografados (no caso de capturas de tela, por exemplo, em

25
Em termos técnicos, o inquérito policial é responsável por comprovar a materialidade do crime e
encontrar a autoria, o que deve servir para o indiciamento ou não da autoria do crime. Para uma
discussão a respeito do inquérito policial enquanto atividade administrativa, porque à parte do
processo penal, ver Kant de Lima (1989).
73

discriminação na Internet). Assim, a “Oitiva” era em geral o único recurso para


comprovar a “materialidade do crime”. Diferentemente dos casos de homicídio, por
exemplo, em que é possível, se for o caso, recuperar a bala, encontrar o calibre e
rastrear a arma de fogo utilizada na cena do crime.
A materialidade desses crimes parecia ser, então, a própria palavra. Ou
melhor, a intenção da palavra, pois assim como na doutrina que apresentei no
capítulo 1 sobre crimes de racismo e crimes de injúria, a intenção específica de
discriminar é uma “evidência” perseguida para comprovar ou não a “existência” do
crime. O trabalho policial se tornava, nas palavras da escrivã do Setor, “uma questão
de hermenêutica”. Pois, encontrar a “realidade” e “desvendar os fatos” dos casos
que chegavam àquela unidade policial dependia de um trabalho de interpretação de
histórias contadas e colocadas lado a lado, na tentativa de encontrar uma “lógica”.
A seguir, tratarei especificamente das oitivas do Setor e da tentativa de
encontrar essa “verdade” dos casos. Para tanto, descreverei o que escolhi dividir em
três momentos: de identificação e intimação de autores, vítimas e testemunhas; do
acontecimento das oitivas, com foco na qualificação dos ouvidos e nas perguntas da
investigação; e do modo como vítimas e autores tentam, em alguma medida,
escapar a essa identificação. Com isso, meu objetivo é apresentar mais alguns
aspectos que estavam presentes na constituição da investigação dos crimes e na
procura pela intenção dos investigados.

3.2.1 A chegada no Setor: identificar e intimar

O trabalho policial relacionado às “Oitivas” começava muito antes do


momento em que vítimas, autores e testemunhas chegavam ao Setor de
Vulneráveis. As pessoas vinculadas a essas três categorias precisavam ser
identificadas ou localizadas para que pudessem ser intimadas e, então, ouvidas.
Sebastião era o policial responsável por entregar as intimações feitas por Roberta. A
“intimação” era um documento em duas vias, que exigia o comparecimento à
DHPP/PR da pessoa no nome de quem estivesse endereçada, em um determinado
dia e horário. Uma das vias ficava com a pessoa intimada e outra voltava para o
Setor com a devida assinatura e o número do documento de identidade. Ele me
contou sobre a dificuldade que enfrentava em seu trabalho, pois encontrar as
pessoas não era sempre uma atividade tranquila, mesmo em posse de seus
74

respectivos endereços – “às vezes, o endereço não bate”. A fala de Sebastião me


remete a mais um aspecto do trabalho policial do qual depende a investigação dos
crimes do Setor e sua constituição enquanto tal: encontrar e intimar vítimas, autores
e testemunhas, pois, era um passo fundamental para o prosseguimento das
atividades desempenhadas naquela instância policial.
Pude presenciar uma investigação sendo interrompida porque não havia
endereço registrado no nome da vítima de um caso encaminhado pelo MPPR.
Tratava-se de uma denúncia anônima: Mariana teria sido vítima de transfobia no
prédio onde morava, por parte do síndico. Sebastião até a procurou no endereço em
questão, mas foi informado de sua mudança. Constavam na “Notícia de Fato” os
seus nomes de registro e social, entretanto, não havia endereço registrado em
nenhum desses nomes nas bases de dados da Companhia Paranaense de Energia
(COPEL) ou do Departamento de Trânsito do Paraná (DETRAN/PR). Embora ambas
fossem utilizadas para esse trabalho, a primeira era considerada mais bem
atualizada e, por isso, mais confiável. Mas, nesse caso, não havia endereço
registrado em nome de Mariana, tampouco em nome de seus pais – procurar pelo
endereço de pais ou cônjuges era uma técnica muitas vezes empregada para esse
trabalho. Não encontrar o endereço da vítima impossibilitou a continuação do
trabalho, porque o crime teria acontecido em data anterior à decisão do STF, o que
fazia do caso uma injúria simples. Dessa forma, sem a representação da vítima, a
investigação fora interrompida.
Dificuldades da atuação estatal ligadas ao endereço da população atendida
não são uma exclusividade do Setor. Bevilaqua (2008), por exemplo, menciona a
dificuldade de encontrar o endereço da parte reclamada como um entrave ao
prosseguimento dos casos no Departamento Estadual de Proteção e Defesa do
Consumidor (Procon-PR); e Jardim (2015) fala sobre a mudança de endereço de
uma usuária do Sistema Único de Saúde (SUS) que inviabilizou a continuidade de
seu atendimento pela unidade onde fazia seu acompanhamento em Porto Alegre.
De todo modo, quando a intimação era bem-sucedida ou a notícia-crime era feita
pela própria vítima, encontrá-la já não era um problema a ser resolvido,
evidentemente. Nesses casos, o trabalho era voltado para encontrar a parte autora
e, sendo assim, a necessidade de muitas vezes a autoria ser desconhecida era um
elemento a mais a ser contado nesse empenho. Caso fosse possível contar com
outras instituições – públicas ou privadas – o trabalho da identificação era facilitado.
75

Como no caso com o qual a dissertação, o caso de Joana – uma mulher


autodeclarada negra, com idade por volta de 30 anos, que procurou o Setor em maio
de 2019 para denunciar atitudes racistas por parte de trabalhadores de uma loja de
departamentos em Curitiba. Resumidamente, ela alegava estar nessa loja tentando
comprar maquiagens e ouvira de alguns dos funcionários que o cabelo de pessoas
negras era “ruim”. A situação, entretanto, não teria terminado aí: depois de terem
percebido sua presença, teriam olhado para ela e começado a rir debochadamente.
Como não conhecia essas pessoas, o caso pôde ser enquadrado como tendo a
“autoria desconhecida” e foi possível identificá-los com a ajuda da loja que, a partir
do horário, turno e imagens da câmera interna, forneceu os nomes e os endereços
dos funcionários. Algo parecido se passou quando chegou ao Setor uma “Notícia de
Fato” de um caso de racismo em uma escola de Curitiba, por parte de uma
professora. A denúncia, feita anonimamente ao MPPR, noticiava que a “Profª.
Isabel” desqualificava alunas negras em sala de aula, em uma turma de ensino
técnico profissionalizante subsequente. A partir de um ofício enviado à escola,
então, a professora pôde ser identificada e posteriormente intimada para falar a
respeito do caso.
Ambos os casos tiveram o prosseguimento de suas investigações, porque
autoras e autores puderam ser identificados e intimados. No primeiro caso, a vítima
também pôde, porque foi quem, justamente, registrou o “Boletim de Ocorrência”; e,
no segundo, por se tratar de um crime inscrito naqueles considerados de “Ação
Penal Pública Incondicionada”, prescindia da representação da vítima. Restava
ainda “qualificá-las” e encontrar as testemunhas dos acontecimentos. Seguirei com
um desses casos para explorar esse aspecto – o da “professora”, pois o caso de
Joana não possuía testemunhas. Apesar de não ser fundamental para o
prosseguimento das investigações, a existência de testemunhas era entendida como
bastante importante, porque estabelecia um contraponto supostamente neutro às
versões de vítimas e autores.
Havia duas maneiras mais recorrentes de encontrar testemunhas: identificar
e intimar pessoas citadas nos “Boletins” ou nas “Notícias de Fato” ou fazer o mesmo
com pessoas mencionadas nas “Oitivas”. No caso da professora Isabel, havia
inúmeras potenciais testemunhas – o crime de discriminação racial teria acontecido
sistematicamente em sala de aula, na frente das alunas e alunos da turma do curso
em que lecionava. Pois bem, a escrivã pediu à escola em questão não apenas os
76

dados da professora, mas também dos alunos da turma mencionada na “Notícia de


Fato”. Diante da grande quantidade de nome nas listas, Roberta decidiu intimar três
pessoas. A escrivã descartou os nomes cujos documentos de identidade eram do
estado de São Paulo, porque era preciso tê-los expedido pelo estado do Paraná. Em
seguida, fez questão de escolher não apenas homens ou apenas mulheres, embora
preferisse os primeiros, e mencionou a importância de serem pessoas de meia idade
– as pessoas com menos de 25 anos poderiam “não ser muito sérias” e as com mais
de 40 ou 50, de acordo com a escrivã, em geral tinham medo de se comprometer e,
por isso, dariam poucas informações. A justificativa para essas afirmações vinha de
investigações passadas. Ela me contou a respeito de um caso, também de um
professor acusado de racismo, em que tendo intimado as pessoas mais velhas da
turma, elas não teriam “aberto o jogo”, de fato, pois não contaram com todas as
letras aquilo dito em sala pelo então professor, por medo de se comprometerem.
Tanto em relação aos aspectos formais, quanto de geração e de gênero, a
atuação de Roberta na intimação dessas testemunhas pôde vincular o Setor àquelas
escolhidas pela escrivã. Tratou-se de uma técnica investigativa, não apenas porque
foi orientada por uma finalidade específica, mas também porque estabeleceu um
“modo de instituir relações” (SAUTCHUK, 2017, p. 22). Referindo-me aos últimos
aspectos, gostaria de explorar a hipótese de que essa técnica foi constituída
também por uma “habilidade” (INGOLD, 2010). Quando Roberta articulou sua
atuação no presente a um caso no passado, pude perceber um aprendizado que
dependeu de sua experiência na investigação de outro caso. Uma experiência que,
por conseguinte, dependeu da própria presença de Roberta no ambiente das
atividades investigativas, diferenciando-se da mera transmissão de normas
formalmente estabelecidas. A escrivã selecionou as testemunhas voltando sua
atenção para aspectos relativos à geração, porque passou por uma experiência que,
como efeito, a educou para tanto. Nesse sentido, é possível dizer que sua habilidade
foi fruto de uma educação de sua atenção. E na medida em que descartou a
possibilidade de menores de 25 anos e maiores de 40, assim o fez tendo em vista a
suposição de um aprendizado insuficiente dos mais jovens, quem por isso faltaria
“seriedade” e das possíveis testemunhas que as levaria a reter informações. Sendo
assim, na efetivação da habilidade técnica de intimar, tanto é possível falar em uma
educação da atenção, quanto em uma atenção voltada para a educação ligada ao
aprendizado geracional.
77

Identificadas e intimadas as testemunhas, a investigação do caso


prosseguiu. Roberta marcou as oitivas de vítimas, autores e testemunhas para dias
próximos uns dos outros. Ainda havia algum trabalho pela frente: gravar as “Oitivas”,
registrar na pasta impressa do “Inquérito”, consultar a “doutora” e relatar o caso para
o MPPR. Ainda assim, o mais importante era ouvir as histórias, dos mais diversos
pontos de vista, em especial, ouvir “os dois lados” e encontrar uma “lógica nisso
tudo”.

3.2.2 Em busca de uma lógica do caso: qualificar e ouvir

As pessoas intimadas chegavam no plantão da DHPP e apresentavam sua


intimação ou procuravam por Roberta. Não raramente, Roberta e eu éramos
interrompidos por algum investigador do plantão que ao bater e abrir a porta
chamava nossa atenção, dirigindo-se a Roberta: “tem aí uma pessoa procurando por
você”. Na maioria das vezes, a escrivã já sabia de quem se tratava, tendo em vista o
dia e o horário previamente agendados, e imediatamente pedia para o investigador
autorizar a entrada. No caso da profª. Isabel não foi diferente. Foram ouvidas três
testemunhas e a parte investigada. Por se tratar de um delito enquadrado pela lei
7.716 e ser fruto de uma denúncia anônima, o “Estado” era a vítima.
As “Oitivas” começavam com a qualificação das pessoas ouvidas. O
documento de identidade era o primeiro requisitado e só seria devolvido quando
deixavam a delegacia, depois de uma cópia ser feita e ficar no Setor. Em seguida,
passava-se em geral para as perguntas sobre informações pessoais. De todo modo,
no caso das testemunhas, as indagações eram a profissão, estado civil, endereço e
telefone. Nome, número do documento de identidade, nacionalidade e naturalidade
das testemunhas apareciam nos inquéritos, mas como são informações constituintes
dos documentos de identidade não eram perguntados. A quantidade de perguntas
para vítimas e pessoas investigadas como autoras era maior, pois contavam com:
apelido, número do Cadastro de Pessoa Física (CPF), se possuía casa própria,
profissão, renda, se a pessoa era a responsável pela renda da família, altura, peso,
se já havia sido indiciado, se possuía móveis ou imóveis no nome, com quem
morava, se tinha filhos – caso tivesse, a quantidade, idade e se possuíam alguma
deficiência –, religião e se possuía algum tipo de vício.
78

A “qualificação” das pessoas envolvidas era feita, em geral, de uma maneira


descontraída. Por exemplo, ao perguntar campos como “altura” e “peso”, Roberta
fazia alguma brincadeira: “não pode mentir, viu?!”. Além disso, muitas vezes, fazia
questão de estabelecer uma conexão ao perguntar, como quem se lembra de uma
informação – “você mora em Curitiba, né?!”. Ou ainda, sublinhava características
compartilhadas com as pessoas que ouvia. Por exemplo, quando perguntava a
respeito da “religião” e tinha como resposta “católico não praticante” dizia
compartilhar desse modo de viver sua crença. Essa maneira de qualificar vítimas,
autores e testemunhas não era feita por acaso. Depois de alguns meses indo ao
Setor semanalmente, a escrivã me explicou o quanto isso era uma maneira de
“quebrar o gelo” com as pessoas que ali chegavam. A importância estaria assentada
em duas razões: a primeira delas ligada à necessidade de tranquilizar as pessoas
que em geral chegavam nervosas ao Setor, assustadas por conta da intimação; e a
segunda ligada a uma estratégia para fazer as pessoas falarem. Explicou-me, por
conseguinte, a respeito da importância desse momento de descontração como uma
forma de convencer as pessoas a dizer aquilo que poderia ajudar a “desvendar” o
caso.
As marcas de oralidade e o destaque de características em comum eram um
modo de construir e indicar um reconhecimento do outro, tendo em vista um fim
investigativo. Embora isso gerasse críticas por parte de seus colegas de profissão,
conforme me afirmara, a escrivã insistia nessa prática, porque dizia ser eficaz para
tirar as informações das pessoas. Assim, a descontração era usada como uma
técnica de investigação, no sentido de que tratei no tópico anterior, privilegiada nas
atividades do Setor. Uma técnica que tinha por objetivo, antes mesmo do início
propriamente dito das “Oitivas”, fazer com que as pessoas falassem a “verdade”
sobre os casos. Isso remete ao trabalho de van Charldorp (2011), pois a autora
aborda as técnicas discursivas da polícia holandesa para fazer os suspeitos falarem
– ou, nos termos da autora, “[to] elicit the suspect’s version of the story” (p. 128).
Contudo, as técnicas descritas por ela, por exemplo, a pergunta “o que aconteceu”
ou a postura da/o policial que busca deixar evidente o seu conhecimento a respeito
da verdadeira história, são relativas aos momentos em que os casos são relatados e
não ao momento de perguntar as informações pessoais dos suspeitos. No Setor de
Vulneráveis, argumento que havia uma técnica para que as pessoas falassem sua
versão antes mesmo de relatarem o caso.
79

Mas, de modo análogo ao descrito pelo trabalho de van Charldorp (2011),


havia também um interesse e um esforço por parte de Roberta e da Delegada
responsável para que as pessoas falassem na gravação da “Oitiva”, como no caso
da profª. Isabel. Ela, uma mulher loira, autodeclarada branca, com mais de 50 anos
e altura por volta de um metro e sessenta, chegou ao Setor acompanhada por seu
advogado. Apesar de sua fala calma e tranquila, adentrou as dependências do Setor
bastante assustada, com os olhos arregalados e esfregando apertando
constantemente uma mão na outra
Depois de “qualificada”, esperamos – Roberta, o advogado, a profª. Isabel e
eu – o delegado descer para conduzir as perguntas. Quando chegou, o Delegado26
se apresentou e se sentou ao lado de Roberta. Ele era o Delegado responsável por
um dos cartórios das Delegacias de Homicídio que ficavam no piso de cima, de
poucas palavras, não se estendia em conversas com Roberta. A informalidade de
sua calça jeans azul e camiseta preta compunham a discrição daquele homem
franzino, por volta de seus 40 anos, de óculos de grau esportivo. Assim que chegou,
retomou a pasta do inquérito e se atentou, especificamente, para a sua “Portaria”.
Além disso, a escrivã advertiu a parte autora para falar em alto e bom som, pois se
tratava de uma gravação. Dito isso, a oitiva começou de fato. Como de costume, o
Delegado se apresentou, dizendo seu cargo, seu nome, o dia, o horário, o número
do inquérito e fazendo a leitura da denúncia. Em seguida, mencionou o “teor da
denúncia”, ou seja, que a professora em questão ignorava as dúvidas de alunos
negros e indígenas, virava as costas para eles e, além disso, mencionava a fala de
um outro aluno, Paulo Henrique, que teria dito que “mulher negra com homem
branco só poderia ser prostituta, porque nenhum homem branco namoraria uma
mulher negra”27. O Delegado prosseguiu ao afirmar estar na presença de Roberta,
escrivã de polícia, da professora que fora ouvida como autora e de seu advogado.
Dito isso, pediu para a profª. Isabel confirmar seu nome completo, o número
de seu documento de identidade e sua filiação. Em seguida, perguntou sobre sua
profissão, se era mesmo professora e se trabalhava no Colégio mencionado na
denúncia lida. “O que a senhora tem a dizer sobre isso?”, perguntou o delegado. A

26
As “Oitivas” eram, em geral, conduzidas pela Delegada chefe da Divisão, mas excepcionalmente, em
virtude de uma semana bastante agitada na DHPP, um dos delegados dos cartórios das Delegacias
de Homicídio, que ficavam no segundo andar do prédio, desceu para conduzir as perguntas.
27
Para uma reflexão sobre os preconceitos e estereótipos relacionados às mulheres negras na
sociedade brasileira, ver Gonzales (1984) e Carneiro (1995).
80

mulher, com a fala trêmula e embargada, disse que desconhecia “qualquer


polêmica” envolvendo ela e questões de racismo. Em tom de justificativa, começou a
narrar sua história profissional negando ter tido qualquer comportamento
discriminatório ao longo de sua biografia. O Delegado perguntou se ela se lembrava
de alguma situação de constrangimento entre ela e alguma pessoa que fosse
sua/seu discente. A única que se recordara foi de ter sido chamada a atenção por
um aluno depois de uma aula, por ter usado a expressão “ovelha negra”. Completou,
entretanto, dizendo ter ouvido, compreendido, mas que não havia entendido isso
como algo racista, porque se tratava de uma “expressão que todo mundo usa”.
Prosseguindo a “Oitiva”, o Delegado passou a querer saber se a professora
possuía alguma ou algum discente negro nos cursos em que lecionava. Muito
prontamente e com um sorriso no rosto, afirmou que sim: “uma menina linda que eu
a elogiei inclusive, ela tem um cabelo lindo”. A despeito dos elogios, “a senhora se
lembra de algum aluno que tenha ficado ofendido com algo que a senhora tenha
dito?”, indagou. Depois que ela negou mais uma vez qualquer conduta
discriminatória, o advogado interrompeu sua cliente e sugeriu uma história para ser
contada sobre o modo como as carteiras eram dispostas em algumas das salas
onde dava aula. A professora contou o seguinte: as carteiras ficavam dispostas na
sala de aula de um jeito que, para ela falar para a maioria, precisaria ficar de costas
para as pessoas que se sentavam junto à parede. Ela fez questão de se explicar
dizendo que quando ela ficava de costas, se desculpava prontamente: “eu faço por
educação, porque sou professora de relações interpessoais [e de ética no curso
técnico], coisa que outro professor não faria”. Além disso, lembrou nunca ter deixado
de responder ninguém e que, ainda, quando alguém fazia uma pergunta em voz
baixa, ela ia até a frente, repetia a pergunta e respondia para todos ouvirem.
O delegado prosseguiu perguntando se ela possuía algum aluno pelo nome
de Paulo Henrique e se alguma vez ouviu dele a frase mencionada no começo da
gravação. Prontamente, negou a segunda pergunta e respondeu positivamente a
primeira. Completou mencionando Paulo Henrique como alguém de um excelente
comportamento e como alguém cujos comentários complementavam as aulas.
Depois disso, Roberta interrompeu, se apresentou como escrivã de polícia, e
perguntou para a professora se na apresentação de seminários houve “algum
81

dissabor”28 com alguma aluna. Profª. Isabel afirmou existirem muitas apresentações,
sobre muitos assuntos e, por isso, não se lembrava de nada “constrangedor” que
tivesse ocorrido. Roberta perguntou, ainda, se havia alguma aluna ou aluno negro
na sala onde ela eventualmente ficava de costas para algumas pessoas e se ela se
recordava de, em algum momento, ter sido indelicada com alguém. A professora
prontamente respondeu que não e se justificou dizendo, mais uma vez, que era
professora de ética e que fazia a formação de postura de seus estudantes.
Entretanto, mencionou uma aluna negra que sempre se sentava na fileira29 disposta
de modo que ela ficava de costas para algumas pessoas.
Roberta anotou esse nome e anunciou estar satisfeita em relação às
perguntas. O delegado, então, retomou a palavra e perguntou se a profª. Isabel e o
seu advogado teriam mais alguma coisa a dizer. Não tendo, ele disse a hora,
agradeceu os presentes e encerrou a “Oitiva”.
Em um primeiro momento foram feitas perguntas de confirmação de
algumas informações, como a identidade, para verificar se aquela pessoa diante das
câmeras era a mesma mencionada pelo “Inquérito”. Depois disso, as perguntas
pareciam ter sido direcionadas para confirmar ou negar a versão apresentada pela
denúncia lida no começo da própria “Oitiva”. Como me explicou Roberta e eu pude
ver nos documentos do MPPR e dos “Inquéritos”, a versão da história de todos os
envolvidos era muito importante. Por isso, uma das primeiras perguntas foi sobre o
que a profª. Isabel teria a dizer sobre a denúncia. Feito isso, as perguntas do
Delegado e da escrivã pareciam procurar por algum momento ou história que
pudesse desmentir ou endossar a autoria e a denúncia lida naquele momento. A
busca da lógica da história estava em muito ligada à busca pela intenção do modo
como aquela professora tratava as pessoas negras e indígenas. Para comprová-la
era preciso encontrar uma intenção discriminatória30. Diante da negativa da
professora, parecia não haver muito a ser feito. A alternativa encontrada foi investir
na associação entre preconceito ou discriminação a momentos de dissabor,
confusão e constrangimento; e as técnicas para tanto foram perguntas sobre
momentos vividos pela professora em sala de aula. De todo modo, encontrar a

28
Essa informação havia sido mencionada por uma oitiva anterior, de uma das testemunhas do caso.
29
A aluna, Rosa, seria mais tarde intimada para ir ao Setor como testemunha.
30
Sobre a importância dessa motivação na jurisprudência dos crimes de responsabilidade do Setor, ver
Capítulo 1; para o trabalho policial de “encontrá-la”, ver Capítulo 3.
82

materialidade desse crime dizia respeito a encontrar na história contada pela


professora alguma conduta a partir da qual o crime pudesse ser comprovado.
O caso teve outras três “Oitivas”, como a de Rosa, a mulher mencionada
pela profª. Isabel. O objetivo era o de encontrar, justamente, uma história com uma
lógica que permitisse ou não atribuir uma intenção discriminatória à conduta da prof.ª
Isabel. Entretanto, não abordarei todas as “Oitivas” aqui – tratarei apenas de uma, a
de Sílvio, um dos alunos da profª. Isabel. Ele foi citado por Rosa como alguém que
teria ouvido Paulo Henrique, que nunca chegou a ser intimado, fazer o comentário
sobre a relação entre prostituição e mulheres negras. Faço essa escolha em virtude
de sua importância: além de ter durado quase uma tarde inteira – as oitivas em geral
não duravam mais de quinze minutos –, serviu de matéria para Roberta encontrar
“uma lógica na história dos fatos”. A escrivã levou em conta boa parte das
declarações de Sílvio e isso fez com que, inclusive, ela divergisse da Delegada31
sobre o relatório do “Inquérito” – assunto ao qual voltarei no terceiro capítulo. De
todo modo, descreverei sua “Oitiva” com o objetivo de indicar o modo pelo qual mais
um elemento fundamental para a procura da intenção e para a constituição da
investigação do crime.
A escrivã começou a “Oitiva” se apresentando e afirmando que estava sendo
monitorada pelo Delegado que estava acompanhando o caso. Em seguida, informou
que ouviria Sílvio em inquérito de determinado número, na condição de testemunha.
Assim como o Delegado, leu a denúncia e pediu para Sílvio confirmar alguns dados
como seu nome, número de identidade, filiação e data de nascimento. Roberta
começou perguntando o seguinte: “quem sofre essas ofensas, como se dão essas
desmotivações?”. O homem com quase um metro e oitenta de altura, cabelo cortado
baixinho e autodeclarado pardo, não titubeava nas respostas e – mantendo ao longo
da oitiva um tom de voz constante – contou que existiam na sua classe duas
“meninas loirinhas de olhos claros” preferidas pela professora. Para elas, a profª.
Isabel já teria dito que eram suas “bonequinhas”, enfatizando seus cabelos loiros e
olhos claros. Isso, entretanto, não se dava com outras alunas e alunos. “Você se

31
Apesar de algumas das “Oitivas” desse caso ter sido conduzida pelo Delegado que mencionei, o
Relatório foi produzido pela “doutora”, a Delegada chefe da Divisão, quem era responsável pelos
inquéritos do Setor.
83

considera pardo, certo?32”. Depois de Sílvio ter respondido positivamente, a escrivã


seguiu com as perguntas: “você se sentiu ofendido?”. O homem respondeu que sim,
porque disse que não entendia como elas, “as bonequinhas”, seriam melhores.
Roberta passou a querer saber se a professora tratava essas alunas de um jeito
melhor, mais carinhoso. Sílvio confirmou esse aspecto e apresentou mais uma
justificativa, a de que a professora seria mais rude com alguns.
“Você já presenciou a professora pedindo trabalho antes para algumas
pessoas33?”, “você percebe discriminação de cor e origem?”. A testemunha
reafirmou uma diferença de tratamento por parte da professora e estimulou mais
perguntas: “em relação à menina que parece indígena, a professora já a maltratou
pela cor?”, “qual o tratamento da professora em relação a dúvidas?”. Sílvio
descreveu Isabel como uma professora impaciente, mas quando indagado se isso
estaria relacionado à cor de alunas/os, a testemunha declinou. Passando para a fala
de Paulo Henrique, Roberta leu a frase que ele teria dito e afirmou que segundo uma
pessoa ouvida na delegacia, Sílvio foi quem ouviu a frase. Ele confirmou e a escrivã
indagou se havia mesmo sido nesse tom. A história teria sido a seguinte, em sua
versão: eles estavam entre amigos em um bar falando sobre viagens e o Paulo
Henrique, então, teria dito que “se você vê uma mulher negra bonita com um homem
branco pode ter certeza que é prostitua”. A escrivã retomou a palavra e quis saber
se ele achava que o rapaz teve a intenção de discriminar, menosprezar as mulheres
negras. Sílvio negou essa intenção específica e afirmou ter se tratado apenas de um
“comentário infeliz”.
Roberta passou, então, a encaminhar a “Oitiva” para o final. Para encerrar,
retomou algumas informações: “pelo que entendi, a professora não humilha, não
desmotiva, não tem a intenção de magoar e nem menosprezar os alunos em razão
de sua cor”. Ele concordou, mas contra-argumentou: “ela faz comentários
inadequados, mas não com o intuito de denegrir”. A escrivã perguntou, ainda, se
havia outras informações sobre os fatos e, depois de a testemunha ter respondido
negativamente, Roberta anunciou que encerraria a gravação.
De modo análogo ao que aconteceu com a professora, a testemunha
respondeu a perguntas que pareciam procurar por alguma intenção discriminatória.

32
Antes das “Oitivas” começarem, em geral, Roberta fazia algumas perguntas preliminares, muito
parecidas com as que fazia durante a gravação. Esse é o motivo pela qual ela sabia sobre a
autodeclaração de cor da testemunha.
33
Essa informação fora afirmada por Rosa em sua “Oitiva”.
84

Para tanto, Roberta mobilizou momentos da própria prática pedagógica de Isabel e


elaborou perguntas diretas sobre a intenção de menosprezar em função de cor e
origem, por parte da professora. Encontrar uma lógica para a história estava
vinculado à procura por práticas no ambiente escolar que confirmassem ou
negassem um tratamento nitidamente diferenciado em relação às alunas e alunos
negros e indígenas. Encontrar uma história lógica passava também por desmentir ou
confirmar informações ditas em outras “Oitivas”, com o objetivo de confrontar as
informações, pois para a “lógica” ser encontrada seria preciso que as informações
fossem coincidentes e não se contradissessem, conforme me explicou a escrivã.
Portanto, a grande cruzada da “lógica” da história parecia estar intimamente
ligada à “comprovação” de uma intenção muito evidente e anunciada da motivação
de discriminar – aspecto também presente na doutrina e na jurisprudência desses
crimes (cf. Capítulo 1). Contudo, havia outros elementos que gostaria de destacar
nas “Oitivas”, para explorar a investigação: o modo como algumas vítimas e autores
contaram suas versões.

3.2.3 Autores e vítimas contra a retórica investigativa

Outro aspecto nas “Oitivas” que me chamou muito a atenção foi o modo
como algumas “vítimas” e “autores” intimados se aproximaram e se distanciaram
dessas categorias. Tratarei desse aspecto com base em dois casos que já
mencionei ao longo deste capítulo: o de Joana e o da profª. Isabel. Em ambos,
retomarei as justificativas apresentadas em momentos da gravação das oitivas ou
posteriores a ela.
Conforme descrevi anteriormente, Joana alegou ter sido vítima de racismo
em uma loja de departamentos de Curitiba. Em resumo, ouviu dos funcionários
dessa loja a afirmação preconceituosa de que o cabelo de pessoas negras era
“ruim”. Depois de registrar seu Boletim, ela retornou sozinha ao Setor para ser
ouvida e, de modo a constar nos autos do inquérito, gravada. Sua gravação não
começou imediatamente após sua entrada na sala daquela instância policial. Depois
de ter visto algumas fotografias, para confirmar quem seriam os funcionários da loja,
Roberta conversou com ela para ouvir mais uma vez o que teria se passado no dia
do crime. Essa era uma prática recorrente nas oitivas que acompanhei – uma
conversa anterior à gravação com o objetivo de direcionar as perguntas de modo
85

mais assertivo durante o momento no qual a câmera e o microfone permaneciam


ligados.
Depois disso, a gravação começou. Roberta pediu para que Joana ficasse
bem à frente da câmera e lembrou que seu tom de voz deveria ser alto, pois se
tratava, justamente, de uma gravação. O tom de voz de Roberta, que até então era
mais descontraído, intercalado por algumas risadas e com palavras mais comuns
aos espaços não especializados, passou a ser mais uniforme, sem alterações de
altura e com um vocabulário mais formal – ou seja, um português mais próximo da
norma convencionalmente correta. Ela começou dizendo seu nome, seu cargo de
escrivã, a data, o horário e afirmou estar sob supervisão da delegada da Divisão de
Homicídios e Proteção à Pessoa. Depois disso, perguntou o nome e o número do
documento de identidade de Joana. Em seguida, explicou por que ela fora chamada
ali: para “prestar esclarecimentos” sobre determinado caso, especificado pelo
número de seu inquérito. A escrivã continuou e leu um resumo da história anotado
no boletim de ocorrência, como o que “constava” nos autos. Depois disso, pediu
para Joana descrever “com suas palavras” o que teria acontecido naquele dia.
A vítima contou que estava na loja porque precisava comprar algumas
maquiagens. Enquanto escolhia os produtos, teria ouvido os funcionários da loja
dizendo que “cabelo de preto era tudo ruim, se alguém já tinha visto algum preto
com cabelo bom”. Depois de terem avistado Joana, em suas palavras, teriam saído
de sua proximidade dando risada. Roberta quis saber se ela se sentiu diminuída ou
menosprezada como pessoa ou com a sua humanidade diminuída. Joana
respondeu positivamente e prosseguiu afirmando que isso acontecia desde quando
ela era criança, pois “é a maneira como a sociedade vê as pessoas negras”.
Completou dizendo que pensou em não fazer nada, mas como ensinava suas filhas
a não se calarem, não poderia deixar passar, como fez a vida toda e provavelmente
o faria, se não tivesse pensado nas crianças34. Joana afirmou, ainda, ter saído da
loja e em seguida ter voltado para falar com a gerente, que teria dado pouca atenção
para a história e a tratado como algo banal. Segundo ela, a gerente desqualificou
suas objeções com a justificativa de que a loja sob sua responsabilidade contratava
pessoas negras e, por isso, não era racista. Escrivã e vítima compartilharam uma
perplexidade em torno da afirmação.

34
Sobre as experiências de maternidade entre mulheres negras, ver Baia (2020).
86

Joana apresentou a justificativa de dar o exemplo para suas filhas, duas


crianças menores de oito anos, ao não “deixar passar” o ato racista. Esse tipo de
formulação compôs com o sentimento que articula sua condição de vítima – e isso
de modo algum foi ou deve ser minimizado, vide sua própria afirmação ao ter sido
perguntada por Roberta sobre ter sua humanidade diminuída. Refiro-me a esse
aspecto, pois quando tratei da legislação dos crimes de injúria racial – o crime que
tipifica o caso de Joana –, a vítima aparecia como fruto de uma ofensa muito
pessoal e subjetiva. Ao mencionar suas filhas e uma sociedade que nega a
humanidade para pessoas negras, a vítima se colocou enquanto tal a partir de um
agenciamento de sua história de vida e de sua “sociedade”. Ela esteve ali porque,
em alguma medida, reconheceu a importância daquele ato contra uma sociedade
injusta, em nome do futuro de suas filhas. Com isso, gostaria de destacar o quanto
há esforços concomitantes e diferentes na constituição da figura da “vítima”.
Dependendo das circunstâncias, precisa ser quase inerte – a legislação prevê, por
exemplo, a descaracterização do fato se for comprovada a “provocação” da vítima,
nos casos de injúria. Em vez disso, a procura de Joana constituía uma resposta
ativa ao descaso da gerente da loja onde fora discriminada e, desse modo, sua
articulação como “vítima” diferenciava-se de uma apatia frente a uma situação
preconceituosa e aviltante.
A articulação situacional da ofensa também esteve presente no modo como
a profª. Isabel mobilizou a história de seu caso, mas de uma maneira muito diferente.
Depois que teve sua “Oitiva” gravada, a profª. Isabel reclamou da proporção tomada
pelo caso: “às vezes nós somos mal interpretados”. Reconheceu que poderia ter
sido enérgica em alguma situação, mas que nunca discriminaria ninguém, em
hipótese alguma. Um pouco chorosa, a professora reclamou que a história chegara
na escola onde trabalha e afirmou ter sido ela mesma transformada em uma vítima
de ofensa: “eu fiquei discriminada, eu chego na sala dos professores, todo mundo
fica em silêncio, ninguém me cumprimenta nos corredores”. Ou seja, diante de uma
“mentira”, ela teria se tornado a vítima, a pessoa discriminada e atingida por uma
injustiça. A investigação e a denúncia a teriam tornado vítima, ao investigá-la como
parte autora de um crime.
Uma retórica parecida também constituiu outros casos. Como no próprio
caso de Joana, no qual duas das três pessoas intimadas como autoras do crime
falaram de ameaças e ofensas sofridas depois de o caso ter sido publicizado em
87

uma rede social da vítima. Uma delas, inclusive, mencionou a possibilidade de


processar Joana. Mais uma vez, a suposta injustiça do acontecido e da investigação,
na perspectiva de quem estava sendo investigado como autor do crime, teria
suscitado ofensas a essas pessoas e as transformado em vítimas. Alegaram terem
falado de si mesmos, pois se tratava de uma “brincadeira” comparando seus cabelos
alisados artificialmente com o de uma colega de trabalho com os fios lisos: “o meu é
ruim, eu aliso”, afirmou uma das investigadas no caso de Joana. Quando indagados
a respeito da intenção de menosprezar ou magoar alguém com o que estavam
chamando de “brincadeira”, apresentaram a justificativa de possuir uma “família
negra” e que isso os impossibilitava de cometerem atos racistas. Muito enfática,
Roberta contra-argumentava: “possuir parentes negros não faz com que alguém não
seja racista, porque às vezes um comentário é feito e é racista, mesmo que a
pessoa não seja”.
O comentário pode ter sido racista e a pessoa não ser. Assim, não importava
para o inquérito e para Roberta determinar se a pessoa era ou não racista, como um
atributo intrínseco, mas se o ato que deu origem à investigação o era. Porém, como
a qualidade do ato dependia da qualidade da intenção com que foi realizado (o dolo
específico), a distinção ato/pessoa não era simples. Para lidar com isso, Roberta
possuía algumas explicações que, em geral, contava-me depois das “Oitivas” – eram
lições sobre seu trabalho investigativo que articulava a busca pela “verdade” e pela
“justiça”, e o que, para ela, deveria ser também o dever da minha pesquisa.

3.3 LIÇÕES SOBRE O TRABALHO INVESTIGATIVO

Depois que as “Oitivas” terminavam, Roberta ia até o plantão com a pessoa


intimada para tirar uma fotocópia de seu documento de identidade. Quando
retornava, em geral perguntava minha opinião a respeito do caso. Nessas
interações, aprendi muito sobre os princípios que orientavam o trabalho ali no Setor
– afinal, tudo que eu dizia estava sempre errado. Em geral, eram histórias de crimes
já investigados ou da trajetória de trabalho anterior da escrivã. De modo geral, eram
lições a respeito de como desvendar os crimes e conduzir as investigações do ponto
de vista de quem, na procura pela intenção, desejava ser imparcial e ter
compromisso com a justiça. Nesse contexto, ouvi algumas histórias de investigações
passadas e do quanto elas ensinavam sobre o trabalho policial e como
88

influenciavam sua atual conduta profissional. Descreverei a seguir algumas dessas


orientações, responsáveis por nortear opiniões, condutas investigativas e organizar
o enunciado de algumas histórias de crimes investigados no passado.
“Nós [policias] aqui estamos no lugar do Estado e o Estado quer esclarecer a
verdade”. Foi com essas palavras que Roberta me descreveu a importância de seu
ofício e a responsabilidade aí implicada. “Estar no lugar do Estado” se relacionava a
um senso de justiça que, ao menos enquanto princípio anunciado a um antropólogo
desconhecido, deveria orientar sua prática e a de seus colegas – “nem defender,
nem atacar, é preciso ser o mais justo possível”, referindo-se ao trabalho de
investigação policial. Ademais, “estar no lugar do Estado” conferia uma importância
e um compromisso aparentemente oriundo de alguma origem impalpável – era
enquanto abstração responsável por interpelar por justiça os funcionários da polícia
que minha interlocutora se referia a essa entidade: “o Estado quer esclarecer a
verdade”35. E, sendo assim, competia aos responsáveis pelo serviço público de
modo geral, e pelo serviço policial de modo específico, representar e se
comprometer com esse objetivo.
Ouvi essa explicação depois de ter feito um comentário a respeito do
trabalho de ouvir uma pessoa intimada para “prestar esclarecimentos”, como autor
de crime, no caso de um homem jovem que fez um boletim de ocorrência porque
teria sido xingado de “veado podre” em uma briga de trânsito. Depois de ter
acompanhado a oitiva do homem acusado, minha primeira, Roberta perguntou-me o
que eu havia achado. Prontamente, respondi destacando a dificuldade de seu
trabalho de ouvir, fazer perguntas e descrever as respostas – esse foi o primeiro e
único caso não gravado que acompanhei, sendo assim, a escrivã digitava o que
ouvia. Ela riu e afirmou o quanto aquela situação era tranquila e ordinária, pois ali
não havia nada demais para ser notado, segundo suas palavras. Insisto no que me
pareceu estranho e pouco familiar: perguntas repetidas e desconfiadas à procura de

35
Schavelzon (2010) destaca os estudos antropológicos sobre o Estado que se dedicaram “las
relaciones y las prácticas sociales que estarían más abajo y serían más concretas y, también,
observables” (p. 88). Isso implicaria contrapor a ideia do Estado como um ente abstrato, anterior à
existência das práticas que o constituem e apostar nas técnicas de governo e seus efeitos
(MITCHELL, 2006). Entretanto, também não é o caso de qualificar a unidade totalizante apresentada
por nossos interlocutores e interlocutoras como “ilusão” (SHARMA; GUPTA, 2006). Se para alguns de
nossos interlocutores de pesquisa, o Estado possui o caráter de um ente transcendente – como o
exemplo que mencionei, de um Estado que demanda algo –, os dados frutos de uma investigação
das práticas concretas que constituem uma repartição pública podem interpelar algum pressuposto
antropológico que, de partida, negue esse tipo de existência holística.
89

alguma incompatibilidade de informações. Expliquei isso a ela e em resumo falei a


respeito do quanto a premissa da minha profissão de antropólogo era diferente,
porque pretendia levar a sério o que as pessoas dizem. Aparentemente desconfiada,
respondeu-me enfaticamente: “eu sou paga para duvidar das pessoas”.
O ato de duvidar e desconfiar36 apareceu como um princípio recorrente nas
falas de minha principal interlocutora – não à toa, evidentemente, me foi
apresentado como parte de suas atribuições profissionais.
Quando comecei meu trabalho de campo, logo depois de ter sido autorizado
a acompanhar as oitivas e a rotina do Setor, foi para isso que ela direcionou minha
atenção. Essa também era a matéria de seus conselhos e ressalvas nos momentos
precedentes e posteriores às oitivas. Em tais situações, muitas vezes destacou
enfaticamente qual deveria ser o meu compromisso, apresentado como sendo
também o dela: a verdade. Para tanto, advertiu-me a respeito de minha obrigação de
não tomar partido, nem da vítima, tampouco, da autoria, pois era preciso antes de
tudo ouvir os dois lados e não acreditar, de partida, em nenhuma das versões. Tal
importância era descrita como uma necessidade de neutralidade em relação aos
casos atendidos por aquela unidade policial. Em suas palavras, quem às vezes se
apresentava como vítima podia ter na verdade provocado aquela situação, e isso
impediria a comprovação do dolo. Como já disse, encontrar o dolo estava ligado à
comprovação de uma motivação específica de desqualificar ou menosprezar
alguém, por meio de algum ato de segregação e discriminação.
Dessa forma, seria preciso ter cuidado, esperteza e sempre manter-se
atento para as possíveis mentiras e contradições nas falas das pessoas ouvidas,
independentemente da situação a partir da qual se apresentavam na configuração
primeira do que talvez viesse a ser um crime. Em tom de quem fala para orientar e
de quem aconselha ao recuperar sua experiência passada, resumia a advertência
em uma metáfora: é preciso olhar os dois lados da moeda. Ao assim proceder,
consolidava-se o compromisso com a “veracidade dos fatos”. Nesse movimento,
uma terceira pessoa era evocada para auxiliar nessa tarefa: a testemunha. A
testemunha seria quem poderia estabelecer o contrapeso – falo em contrapeso, pois

36
Recentemente, estudos antropológicos voltaram-se para a desconfiança enquanto objeto de análise.
Allard, Carey e Renault (2016), Carey (2017) e Muhlfried (2018) destacam que o tema foi esquecido
nas ciências sociais, de modo geral, e propõem sua retomada, mas não como a mera falta de
confiança. Ao invés disso, suas contribuições ajudam a pensar a desconfiança como um modo de
organizar e estabelecer relações.
90

a figura constantemente elencada é a de pender: nem para um lado, nem para outro,
ao referir-se à pessoa investigada como autora e à vítima.
Ao ter me dito para ouvir igualmente quem se apresentava como vítimas e
quem era investigado como autores, além das testemunhas, Roberta chamava
minha atenção para um aspecto muito particular e importante das investigações
feitas naquele espaço: não importava o quanto as pessoas com o estatuto de
vítimas na investigação se sentissem ofendidas, era preciso prestar atenção na
intenção da parte investigada como autora. Atentar-se para a natureza do propósito
que orientou o ato e, por isso, para sua verdade. Em síntese, procurar pela intenção.
Prestar atenção não enquanto um fim em si mesmo, evidentemente: tratava-se da
necessidade de descobrir se houve, de fato, uma intenção de desqualificar ou
menosprezar alguém – o dolo específico, em função de cor, raça, etnia, religião,
identidade de gênero, orientação sexual, ser idoso, procedência nacional ou estar
em situação de rua. Por conta disso, a presença da testemunha era bastante
considerável, pois se por um lado havia sempre a possibilidade de pessoas
investigadas mentirem, por outro, o sentimento de ofensa e discriminação poderia
ser um “engano”. Um “engano”, porque poderia não encontrar respaldo na intenção
de quem ofendeu.
“Por estar no lugar do Estado, meu compromisso é com a justiça”, resumia a
escrivã referindo-se ao princípio de suas atribuições. Além da desconfiança,
entretanto, Roberta elencava outras maneiras de estabelecer tal compromisso: a
compreensão do contexto social da autoria, do contexto do acontecimento do ato
noticiado ao Setor, o aprendizado constante com as decisões judiciais recentes e a
própria experiência de trabalhos passados dentro ou fora do Setor. Em seguida,
abordarei cada uma delas, com o objetivo de enfatizar as lições que efetivavam de
uma maneira específica tal “compromisso”.

3.3.1 Vítimas e autores “nem sempre são o que parecem ser”

Roberta fazia questão de me dizer para o que e como eu deveria olhar e


como analisar os crimes que passavam pelo Setor. No esforço de me ensinar as
dinâmicas da investigação, da descoberta da verdade dos fatos e na tentativa de
direcionar o meu trabalho, evocava muitas histórias para exemplificar posições a
serem ou não tomadas por mim. Em geral, essas histórias faziam referência à
91

necessidade de olhar para o que ela chamava de “a verdade dos fatos” e, como já
disse, de não pender nem para o lado da vítima, nem da autoria. Ou seja, desconfiar
das pessoas para que fosse possível confiar no fato enquanto verdade. Isso remete
à afirmação feita por Muhlfried (2018) que confiança e desconfiança convivem
mutuamente – ou, nos termos do autor, a “desconfiança precisa ser possível para
que a confiança exista” (p. 11, tradução minha). No cotidiano do Setor, entretanto, a
afirmação parecia se inverter, pois para que a desconfiança existisse era preciso
que a confiança a sustentasse – ou seja, desconfiar sempre, mas a partir da
confiança de que é possível determinar a “verdade dos fatos”.
Isso estava vinculado ao engano das aparências: quem chegava como
vítima nem sempre era, de fato, vítima e quem chegava como autor nem sempre era
um algoz. A clássica divisão entre realidade e aparência era atualizada na prática
investigativa do Setor de procurar pela intenção, a partir de duas ferramentas: os
contextos – “o contexto social” de quem está sendo acusado de cometer o crime e o
“contexto da situação” relacionado ao momento em que o crime teria acontecido.
Consequentemente, agir de modo neutro e justo se amparava na consideração da
ferramenta do contexto – ou, do contexto como ferramenta. O “contexto da situação”
envolvia para a escrivã estar atenta a diversos atenuantes presentes nas histórias
contadas. Isso parecia importante porque diante de um olhar atento para a “história
como um todo”, a ação da vítima poderia aparecer como uma provocação da ofensa
noticiada. Isso, em geral, estava ligado ao momento cronologicamente anterior a tal
evento. Para me explicar a respeito disso, histórias de casos apurados ou não pelo
Setor foram mobilizadas com o objetivo de exemplificar uma espécie de não
passividade (que talvez fosse esperada) da vítima. Ela me dizia sempre: “às vezes,
a vítima não tem nada de vítima”.
Em meados do meu trabalho de campo, por volta de julho de 2019, cheguei
ao Setor e observei novas pastas sobre a mesa de Roberta – como eu já possuía
certa familiaridade com as pastas daquela divisão, logo percebi que uma delas era
um inquérito. Eu estava certo: recentemente, voltara do MPPR uma investigação em
que três homossexuais acusavam um homem de agressão motivada por homofobia
e, além de terem feito o boletim de ocorrência na Delegacia, denunciaram o caso à
imprensa. Ouvi atentamente aquela história cujo desfecho me pareceu inusitado:
quando Roberta ouviu investigado e testemunhas, as últimas disseram ter se tratado
de uma tentativa de roubar o investigado como autor do crime e que a agressão teria
92

sido em resposta à tentativa de assalto. Os noticiantes, então, teriam deixado de


responder às intimações do Setor, segundo Roberta, porque teriam percebido que
não sairiam bem da história. Seu objetivo era destacar para mim o engano das
aparências e o quanto a verdade do crime precisava ser “apurada” e “averiguada”.
Por meio do Boletim de Ocorrência e da primeira versão do ocorrido, a
chegada do caso à delegacia tratava de três jovens homossexuais enquanto vítimas,
por conta de uma agressão física motivada por discriminação ligada à orientação
sexual. Entretanto, ouvidas as testemunhas, que nesse caso foram pessoas cujas
residências eram próximas ao lugar onde teria acontecido a agressão, surgiram
outra motivação e outra configuração de autoria e vítima. As histórias das
testemunhas traziam consigo outra motivação para a agressão: a defesa diante de
um assalto. Assim, outra possibilidade de articular vítima e autoria em torno de um
evento de agressão estava presente nas dependências do Setor. A agressão figurou
como uma resposta e, por isso, parecia ter outra gravidade, ou ainda, a gravidade da
situação estaria localizada agora também no momento anterior ao da agressão.
Enquanto história contada do trabalho policial que descobriu a verdade e contribuiu
para desvendar os fatos, o contexto da situação mobilizado pelo trabalho policial em
questão encontraria na história um motivo outro que não de discriminação. Por sua
vez, isso conferiria a autoria e vítima, à realidade e sua aparência, e verdade e
engano um vínculo distinto daquele primeiramente (d)enunciado.
Outra história seguiu um rumo parecido. Entretanto, em tal caso pude
acompanhar algumas oitivas. O MPPR havia requisitado a investigação de um caso
de discriminação contra uma mulher transexual – Mariana, quem mencionei na
primeira seção desse capítulo. “Vou tratar você igual homem, porque pra mim você é
um homem”, teria dito o síndico do prédio onde ela morava, depois de uma
discussão. As seguintes pessoas foram ouvidas: o síndico, uma ex-colega de
apartamento de Mariana e a dona do apartamento onde elas moravam. A discussão
teria acontecido depois de o síndico ter chamado a atenção de Mariana para sua
obrigação de limpar as fezes do seu animal de estimação. Ela teria se negado sob a
alegação de que o síndico não tinha como saber se fora ou não seu bicho o
responsável pela sujeira. Depois de alguns desdobramentos, a confusão teria se
resolvido, não sem antes o síndico ter, em tese, desferido ofensas transfóbicas.
Como mencionei no começo do capítulo, Roberta enfrentou dificuldades
para intimar Mariana, pois ela havia se mudado e não a encontrava nos endereços
93

que os sistemas disponíveis indicavam como sendo o seu, e isso impossibilitava o


prosseguimento das investigações. Em mais um dia de trabalho de campo, cheguei
ao Setor e entre oitivas e leituras de inquéritos, perguntei para Roberta se ela
conseguira intimar Mariana. Ouvi uma resposta negativa, mas havia uma nova
informação: a escrivã ouvira a dona do apartamento. A senhora teria se
disponibilizado prontamente e trazido informações relevantes, segundo a escrivã, ao
afirmar que a moça “dava mesmo muito problema” e uma vez teria chegado a dar
uma festa com mais de 30 transexuais – “agora, me fala se isso é discriminação?!” –
interpelava-me Roberta. Na avaliação dela, tínhamos ali, mais uma vez, um contexto
de provocação, não imediatamente anterior à ofensa, mas, ainda assim, presente.
Se por um lado, o contexto “da situação” poderia ser de provocação e
recolocar as posições de vítimas e autores, por outro, ele poderia aparecer como
“social” e atuar de modo distinto. Explico: conhecer a verdade dos fatos deveria
passar pela consideração da classe social, do lugar onde se mora, da escolaridade e
da renda das pessoas acusadas da autoria de algum dos crimes do Setor de
Vulneráveis. Roberta me falou da história de um homem com mais de sessenta anos
acusado de injúria racial – o caso teria se passado quando o senhor supôs que um
menino negro roubara sua esposa. “Eu não vi dolo ali”, completou a escrivã. E
concluiu ao me dizer a respeito da classe social do senhor: “era uma pessoa muito
simples”. Mais uma vez, então, afirmou a importância de considerar renda,
escolaridade e a localidade da residência – perguntas feitas pela escrivã para
preencher os dados das pessoas ouvidas no sistema tratam disso de modo direto,
pois há campo, por exemplo, para salário, endereço, grau de instrução.
Contrapondo-se a essa história, ouvi também a história de um jornalista acusado de
intolerância religiosa em uma de suas matérias: “um jornalista é uma pessoa
estudada, formadora de opinião, e por isso sabe o significado das palavras”. E
completa: “eu vi dolo ali, mas o juiz não”, referindo-se à sentença do Poder
Judiciário.
Nos dois casos, o “contexto social” foi acessado de modo parecido, ao
possibilitar a relação entre a autoria do crime com escolaridade e renda,
principalmente. Entretanto, o que foi feito a partir dele não era similar.
De um lado, a associação entre simplicidade, pobreza e escolaridade
sustentou-se pela falta – de estudo, de dinheiro e, consequentemente, de
entendimento do alcance de suas atitudes. Do outro, alto grau de instrução
94

vinculado a uma determinada posição de trabalho fez supor uma presença – de


conhecimento do significado da palavra e de suas consequências. Como, em geral,
os crimes que passavam pelo Setor estavam ligados de alguma maneira à
expressão falada ou escrita, a palavra aparecia de modo contundente. Dessa forma,
as suposições ligadas a classe e anos de estudo compunham a possibilidade de
uma expressão complexa, consciente e responsável. Dizendo de outro modo,
tratava-se de ações talvez criminosas, que dependiam do atravessamento de alguns
“marcadores sociais” – não da diferença, como sociologicamente costuma-se dizer,
mas da consciência. O dito, para a constituição dos crimes do Setor, poderia ou não
ser o feito.

3.3.2 Em busca da “verdade” e da “justiça”

Um trabalho sério, nas palavras da escrivã do Setor, também envolveria


estudo. Muitas vezes, sobre sua mesa ficava, além das habituais pastas dos
inquéritos, um livro chamado “Direito Penal”, de André Estefam37. Tratava-se de um
autor responsável por ajudar a escrivã em seu trabalho de procurar pela intenção.
Aproveitei a presença do livro para indagá-la a respeito da importância desses
estudos para sua prática de investigadora e a resposta veio de modo enfático: “eu
gosto de seriedade [no trabalho], por isso estudo”. O objetivo era caro a ela –
estudava para saber como o dolo do crime poderia se “apresentar”. Saber identificar,
então, a intenção específica de discriminar era o grande desafio investigativo do
Setor: estudar, não se deixar enganar pelas aparências e ouvir os “dois lados” eram
atributos importantes para esse empenho.
Se a “intenção de menosprezar” era o principal argumento para comprovar a
materialidade desses crimes, encontrá-la não era autoevidente: “é uma questão de
hermenêutica”. Interpretar não apenas as palavras a partir do que aparece como
contexto, mas também o tom em que foram proferidas ou ainda as posturas
corporais conectadas a elas. Segundo Roberta, era possível perceber um
menosprezo no modo como as pessoas falam e como se comportam dentro da

37
Segundo consta em seu currículo na plataforma Lattes, André Estefam é professor de Direito Penal,
com mestrado (2008) e doutorado (2016) defendido na mesma área, pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP). O título de sua tese de doutoramento é “A dignidade sexual como
fruto da dignidade humana” e foi orientado por Guilherme de Souza Nucci – cuja doutrina e
importância para o Setor abordei no Capítulo 1.
95

própria delegacia. Atentar-se a isso era uma maneira para não deixar-se enganar
pelas aparências e pelas possíveis mentiras contadas – era uma maneira de ver
além das aparências. Isso ficou mais evidente quando conversamos a respeito de
um investigado como autor de injúria motivada por procedência nacional.
O homem chegou ao Setor ofegante e assim que soube do motivo pelo qual
estava ali, ficou pálido. “Você viu como ele ficou nervoso?”. Embora fosse muito
comum as pessoas intimadas se sentirem nervosas e acuadas no ambiente da
Delegacia, a escrivã me chamou atenção para um aspecto novo: a mudança na
respiração. Isso não significava que de antemão aquele homem estava acusado,
antes disso, tratava-se de voltar a atenção mais detidamente para as possíveis
controvérsias de sua história. Nos termos de Roberta, o corpo também falava, se
expressava e, eventualmente, poderia denunciar a verdadeira intenção das pessoas
– a gravação das oitivas era vista como um ponto positivo porque justamente
permitia replicar essas nuances para além da delegacia.
De todo modo, para perceber o tom e a linguagem do corpo era preciso
algum estudo e alguma experiência naquele trabalho. De modo análogo, estudo e
trabalho eram importantes para outros aprendizados. Não foram poucas as vezes
que ouvi sobre sentenças recentes relacionadas aos crimes de discriminação. Os
estudos de Roberta se estendiam também para as decisões atuais dos juízes ao
redor do país: “um cuspe na cara pode ser tão grave quanto um soco em um ato de
discriminação, por exemplo”, disse-me a escrivã se referindo a uma sentença de um
desembargador do estado de São Paulo. Ainda falando sobre ele, afirmou sua
prática de reformulação recorrente das sentenças de primeira instância, ao levar em
consideração, justamente, aquelas condições que mencionei acima: classe, renda,
escolaridade e lugar de moradia. Foi com ele que aprendera, me confessa.
Não o bastante, mencionava com frequência as últimas decisões do
Supremo Tribunal Federal a respeito dos crimes concernentes ao Setor, como o já
mencionado (cf. Capítulo 1) entendimento do crime de injúria racial como crime de
racismo. Ademais, Roberta algumas vezes pautava suas concepções a respeito da
existência de motivação discriminatória em decisões judiciais – “depois chega na
mão do juiz e ele diz que não houve dolo, pois muitas vezes o juiz entende a fala
como uma brincadeira, como um ‘animus jocandi’ e não como uma intenção de
discriminar”, referindo-se a piadas preconceituosas.
96

Os aprendizados com a jurisprudência e a doutrina orientavam a prática


anunciada da escrivã. Desse modo, levar a sério o trabalho e encontrar a verdade
dos crimes envolvia estar a par das últimas decisões judiciais e dos modos de
reconhecer a intenção da fala ou do ato discriminatório. “Por isso estudo”, porque
seriedade, justiça e verdade eram possíveis de ser acessadas, também, a partir de
um aprendizado de teorias e das atualizações das decisões judiciais recentes. Se
estudar enquanto prática de atualização ajudava a compor uma investigação séria e
justa, a experiência em outros trabalhos também auxiliava nesse empenho.
O Setor de Vulneráveis investigava também crimes cujas vítimas eram
pessoas idosas, em relação às quais também era preciso manter o rigor de
desconfiança e da busca pela verdade, segundo Roberta. Ouvi inúmeras vezes a
história de uma experiência de trabalho anterior da escrivã do Setor que servia para
amparar a manutenção de sua desconfiança, inclusive com os velhinhos. Como
agente penitenciária, uma de suas funções era revistar as pessoas que entravam
nos presídios para visitar seus familiares. Contava-me em tom de espanto que ela e
seus colegas presenciaram uma senhora idosa tentando entrar na prisão levando
cocaína na própria dentadura. No caso envolvendo o síndico que era investigado por
ter discriminado uma moradora transexual, por exemplo, ela me afirmara: “Eu
acredito nele até ouvir a outra parte” e, em seguida, relembrou a história da velhinha
que carregava em seu corpo drogas consideradas ilícitas – e a “prova” de que
pessoas idosas não eram necessariamente inocentes ou ingênuas. “Patife também
envelhece”, dizia-me com frequência.
“Ouvir a outra parte”: essa foi uma das frases de que mais fui lembrado
durante meu trabalho de campo. Ela remetia à obrigação de ouvir, como já
mencionei, os dois lados da história, sem pender, em tese, nem para um lado, nem
para outro. Essa lição aparecia para corrigir um erro no qual a própria escrivã
incorrera. Roberta falava de sua chegada no Setor como tendo uma postura que
“comprava muito o lado da vítima”, ou seja, ela dizia o quanto se compadecia das
versões narradas pelas supostas vítimas em detrimento das outras versões. O
aprendizado naquela unidade, em suas palavras, mostrou que na verdade essa não
era uma postura adequada: “às vezes, a vítima não tem nada de coitadinha”. Ouvi,
então, outra história a respeito da importância da neutralidade: uma mulher noticiou
um crime de discriminação racial, porque teria sido demitida em razão do
preconceito por ser negra. Na ocasião de chegada do caso ao Setor, minha
97

interlocutora afirmou sua revolta com a situação, mas em seguida teria se


surpreendido. Ao pedir para a empresa dados sobre a assiduidade da funcionária,
viu aquilo que qualificou como o real motivo da demissão: inúmeras faltas não
justificadas e atestados de saúde.
Dessa forma, o passado articulado em uma experiência possível de ser
aproveitada no presente apontava para sua permanência não apenas como história
a ser contada, mas também como alguma coisa a ser lembrada e orientadora da
atuação policial atual. Pautar-se nessas histórias para justificar um modo de pensar
e/ou de agir nos momentos que compõem a investigação policial me parecia um
esforço reflexivo voltado para uma atuação que, em seus próprios termos, se
propunha séria e capaz de verdadeiramente “revelar a verdade”, por meio da
desconfiança e da disposição em ouvir “os dois lados”.
Aproveitar a experiência do passado para justificar a desconfiança em
relação às pessoas investigadas no presente: um esforço empreendido na busca
pela “verdade” e pela “justiça” na busca por encontrar a intenção.

***

Para descrever a constituição dos crimes contra vulneráveis em Curitiba,


comecei abordando o Setor responsável por essa tarefa. Agora, neste capítulo,
esforcei-me para traduzir o modo pelo qual os crimes chegavam nessa instância
policial e os primeiros desdobramentos da procura da intenção. Os “Boletins” e as
“Notícias” que permaneceram e se transformaram em inquérito foram aqueles que
puderam comprovar a autoria desconhecida e a existência de uma vítima. No caso
dos crimes de homofobia, o tempo foi também um fator fundamental. Descrevi um
caso que embora não estivesse previsto na legislação do Setor, pôde permanecer
porque mobilizou um engajamento subjetivo da escrivã. Ao descrever a “intimação”,
a “qualificação” e as “Oitivas” de alguns casos, prossegui com o objetivo de fornecer
dados empíricos da busca por uma lógica na história dos casos. Além disso, abordei
como em alguns momentos “vítimas” e “autores” procuraram escapar da retórica
presente na investigação relacionada a essas últimas categorias. Por fim, retomei as
lições que aprendi com Roberta e que eram bastante caras a ela no empenho de
buscar a “verdade” e a “justiça dos casos.
98

Há, pela frente, bastante trabalho a ser descrito. Afinal, a procura pela
intenção continuava e precisava de outros elementos para ser sustentada. Ela se
materializava em “Inquéritos” e a partir principalmente das oitivas a existência do
dolo específico era decidida – em busca daquelas descrições, seguimos para o
último capítulo.
99

4 OS REGISTROS E DECISÕES DA INEXISTÊNCIA DO CRIME

Seguindo com o objetivo de descrever a constituição dos crimes no Setor de


Vulneráveis da DHPP/PR e a procura pela intenção, tratarei de dois aspectos
fundamentais para a consolidação e finalização da investigação: a estrutura dos
inquéritos policiais e as decisões em torno da existência da materialidade do crime.
Ambos estavam interligados e, em grande medida, eram produzidos
concomitantemente. Nesse sentido, a última peça do inquérito – o “relatório” –
aparecia como um articulador privilegiado, pois encerrava o inquérito policial e
efetivava a existência ou não do “dolo específico”. Em termos nativos, o “dolo” era a
“motivação específica de discriminar” procurada pelas investigações para que fosse
possível indiciar ou não as pessoas investigadas. Os esforços de elaboração do
inquérito, do relatório e das discussões relativas às oitivas eram voltados para sua
“comprovação”. Meu objetivo é mostrar como os inquéritos se sustentavam a partir
de um encadeamento de seus documentos e da sistemática “identificação”, não
apenas de vítimas, autores e testemunhas, mas também dos funcionários públicos
responsáveis por sua elaboração. Antes disso, tratarei da novidade efetivada pelos
“inquéritos digitais” e, para finalizar, tematizarei papeis, controvérsias e lições que
sedimentaram a inexistência dos crimes contra vulneráveis, pois nenhum dos casos
que acompanhei terminou com indiciamento.

4.1 OS INQUÉRITOS POLICIAIS

Havia inúmeras histórias de crimes entre mim e Roberta. Eram histórias


contadas não apenas pela escrivã, mas também pelas pastas de papel que
povoavam as mesas do Setor. Conforme as investigações se desenvolviam, essas
pastas ficavam cada vez maiores, mais robustas e cheia de marcas, frutos de seu
manuseio. Algumas eram novas, recém grampeadas, com suas capas limpíssimas;
outras, velhas conhecidas, um pouco sujas, que já haviam circulado por aquele e
outros espaços e teriam deixado o Setor por conta de alguma exigência burocrática.
Algumas eram fininhas, mesmo em vias de serem concluídas; outras, calhamaços
um tanto quanto amassados e desgastados. Refiro-me aos “Inquéritos Policiais”, a
consolidação do trabalho investigativo. Eles eram “instaurados” formalmente por
uma “Portaria” e eram construídos por uma grande quantidade de documentos: em
100

tempos de inquéritos “físicos”, essas pastas eram as que circulavam entre o Setor e
o MPPR, ou entre a sala da escrivã e a da Delegada. Depois que deixavam o Setor,
as investigações policiais encerradas naquelas pastas de papel poderiam servir de
embasamento para o oferecimento da denúncia das pessoas indiciadas por parte do
Ministério Público ao Poder Judiciário, dando origem a uma Ação Penal Pública,
conforme expliquei no Capítulo 1.
Constituir os inquéritos era constituir as investigações. Registravam-se
cópias de documentos de identidade, intimações, ofícios, diligências, registros de
comunicação com outras instituições, termos e mais termos. Cada investigação
estava vinculada a uma pasta-inquérito, circulando sobre as mesas do Setor e que
poderiam ser divididas em dois tipos: pastas de inquéritos físicos e digitais. As
primeiras eram brancas e encapadas com um plástico transparente, para protegê-los
de deterioração caso de precisarem ir ou voltar do Ministério Público. As segundas
eram pastas sem o encape, porque circulavam digitalmente e eram impressas
apenas para facilitar o trabalho na hora das oitivas – tratarei desse tema mais
detidamente ao longo do capítulo. As modalidades de circulação dos inquéritos
estavam, assim, implicadas em suas constituições materiais.
As pastas dos inquéritos, que eram ao mesmo tempo os inquéritos das
pastas, possuíam um prazo para permanecerem no Setor. Ou melhor, há um prazo
estipulado pelo Código de Processo Penal (1941) brasileiro para a conclusão dos
inquéritos. Depois de 30 dias, terminadas ou não as investigações, os inquéritos
físicos precisavam deixar as dependências daquela unidade policial ou serem
avolumados com uma autorização do Ministério Público para sua prorrogação.
Tratando-se de inquéritos digitais, possuíam o mesmo prazo, mas eram
encaminhados virtualmente. Em geral, as investigações terminavam antes dos trinta
dias previstos. Às vezes, algumas eram devolvidas para o MP antes do término da
investigação e, em outros momentos, outras pastas apareciam de volta trazendo
consigo a história de algum caso. Esse foi um aspecto interessante do trabalho
etnográfico com inquéritos em andamento e em contextos burocráticos: o tempo que
eu tinha para analisá-los era o tempo de sua investigação ou do seu prazo, pois não
tive autorização para acessar o arquivo da Divisão, tampouco para acessar o
sistema onde muitos casos estavam. Por um lado, quando deixavam o Setor
levavam parte do meu material de pesquisa, por outro, havia os que retornavam e
101

apresentavam outras histórias de crimes e evocavam de Roberta boas histórias do


trabalho investigativo.
Somadas a essa constante iminência de perder ou ganhar material de
campo, dificuldades em relação à própria linguagem e estrutura formal das pastas-
inquéritos se impuseram – nada de novo ou especial, tratando-se de uma pesquisa
antropológica. A primeira investigação que pude acompanhar foi um inquérito com
mais de 150 páginas que, inclusive, perdi de um dia para o outro, pois foi devolvida
ao Ministério Público. Tratava-se de uma investigação de lesão corporal, fruto de
uma briga entre punks, em uma região central de Curitiba. Não me demorarei nesse
caso, porque destoava muito da maioria dos casos atendidos pelo Setor. Contudo,
foi-me importante porque fui apresentado por ele a uma grande investigação e a
toda sorte de documentos e provas, o que não teria acontecido pelos inquéritos
comparativamente mais curtos e com menos provas, recorrentes no Setor.
Ou seja, pude conhecer detalhes formais da estrutura de um inquérito e isso
me ajudou bastante ao longo do meu percurso. Se, de início, impaciência, irritação e
medo eram companheiros infalíveis em minha aproximação com os inquéritos,
conforme participei com maior frequência do cotidiano do Setor, lendo e copiando –
à mão – longos trechos dos inquéritos38, aquelas pastas deixaram de ser uma fonte
de aborrecimento e passaram a ser interlocutoras de pesquisa importantes para a
compreensão do trabalho da polícia. Ou melhor, compreender como os crimes
narravam e eram narrados pelo trabalho policial.
Acompanhar a rotina investigativa do Setor era também acompanhar o
trabalho de produção e alteração de inquéritos policiais e das histórias de crimes
vindas à existência naquelas pastas. Quase sempre, havia inquéritos a serem
instaurados, diligências a serem cumpridas ou pastas a serem mexidas – ou seja,
crimes sendo “apurados”. Na esteira desse trabalho de documentação, meu objetivo
é continuar especificando a constituição dos crimes investigados pelo Setor de
Vulneráveis, a partir das transformações implicadas pelo formato da investigação,
pois tais procedimentos ampararam a procura singular do Setor – a da intenção.
Tratarei das diferenças introduzidas pela digitalização dos inquéritos no cotidiano do
Setor e de como as notícias de sua implementação na PCPR circularam em

38
A autorização que recebi para ter acesso a esses documentos estava condicionada à supervisão de
Roberta e ao meu compromisso de não divulgar as identidades das pessoas envolvidas na
investigação. Assim, dependia tanto do horário de expediente da Divisão, quanto da presença da
escrivã.
102

comunicados oficiais à imprensa. Em seguida, principalmente a partir do inquérito de


Ângela, abordarei elementos relacionados ao trabalho de constituição desse último,
do encadeamento que o ordena enquanto tal e de dois modos de identificação que
também o formam – a dos funcionários responsáveis por sua elaboração e da parte
investigada como autora dos fatos.

4.1.1 A digitalização dos inquéritos

Depois de pouco tempo que comecei meu trabalho de campo, cheguei ao


Setor e fui surpreendido pela notícia do fim dos inquéritos impressos, o que
significava a impossibilidade de usá-los como material de pesquisa. Essa mudança
tratava de uma ordem da Secretaria de Estado da Segurança Pública do Paraná
(Sesp/PR) para os inquéritos investigados em Curitiba, segundo Roberta – a
implantação do “Inquérito Policial Eletrônico”. O modo como essa mudança existiria
no cotidiano do Setor era bastante notável, pois as oitivas passariam a ser gravadas,
as pastas de papel deixariam de existir e a comunicação entre Delegacia e MPPR
seria feita por meio de um sistema digital. Ou seja, o trabalho investigativo descrito
por Roberta39 como o de “ouvir tudo e por no papel” parecia não se referir mais
apenas às folhas de papel impresso. O papel, dessa forma, talvez tenha se
convertido em uma metáfora para outras atividades, como gravar vídeos, subir seus
respectivos arquivos no sistema que comportava os inquéritos e lidar com as
temporalidades, possibilidades e impossibilidades de ação vinculadas a essas novas
técnicas.
Tais atividades estavam associadas à esperança de um processo
investigativo imparcial, justo e transparente que mostrasse a verdade diante da
“opinião pública”. A possibilidade de gravar e juntar o arquivo audiovisual das oitivas
ao inquérito era uma das principais atividades mencionadas pela escrivã a respeito
da importância dessa mudança. Dessa forma, a gravação seria uma prova
importante, segundo Roberta, para desmentir as acusações falsas que eram feitas
em relação à polícia, de modo geral. Uma vez em posse das gravações das oitivas,
advogadas/os não poderiam mais dizer que seus clientes foram coagidos a
confessar crimes e também não seria possível afirmar maus tratos por parte das/os

39
Sobre esse aspecto, ver Capítulo 2.
103

policiais. O vídeo, nesses termos, seria prova infalível40 da “injustiça” sofrida por toda
a corporação policial, que muitas vezes teria sua imagem deturpada diante da
“opinião pública”, por conta de “casos isolados” de maus tratos policiais41. As
gravações também eram consideradas importantes porque poderiam contrapor
acusações de coação, da parte investigada, de ter sido forçada a produzir provas
contra si mesma. A digitalização dos inquéritos faria, ainda, o processo ser mais
rápido, segundo Roberta, pois o sistema possibilitaria a comunicação quase que
imediata com o MPPR.
Se o “sistema digital” era responsável por acelerar a comunicação entre as
instâncias burocráticas e, consequentemente, o próprio trâmite possível de levar a
um processo penal, nem tudo ligado a ele estava vinculado à rapidez – ele também
atrasava os protocolos burocráticos. O computador, o sistema ao qual dava acesso
e a conexão com a rede mundial de computadores cadenciavam o tempo do
trabalho e, por isso, ocupavam uma centralidade naquela rotina burocrática. Depois
que as oitivas terminavam era preciso “gerar” o arquivo e convertê-lo em um formato
compatível com o “sistema”, ou seja, esperar um tempo até que o momento gravado
se transformasse, por meio de um software, em um item na tela do computador da
escrivã e, em seguida, esperar mais um ou dois minutos (dependendo da duração
da gravação) para que seu formato digital fosse modificado para poder ser
carregado pelo sistema.
Do modo como estava posto, o trabalho investigativo dependia de aparelhos,
programas de computador, um sistema digital da Secretaria da Justiça e de uma
rede de Internet que, com exceção do penúltimo, não possuíam a princípio nada de
estritamente policial ou investigativo. Essa infraestrutura42 se convertia, entretanto,
nas condições do trabalho de Roberta e o possibilitava da maneira como acontecia –

40
Essa maneira de entender a gravação em vídeo como algo incontestável também está presente no
trabalho de Freire (2019), ao descrever a inserção do árbitro de vídeo na Copa do Mundo de 2018.
Se a imagem gravada pode ser considerada infalível, seus efeitos nos espectadores têm sido
considerados variáveis de acordo com o tipo e o ângulo de gravação, conforme os experimentos de
Turner et. al. (2019) sobre a relação entre o julgamento da intenção policial e dois tipos de câmeras
que registraram a atuação policial (câmera corporal e a de painel).
41
Apesar de Roberta me descrever as acusações à polícia como uma injustiça, dados recentes
apontam para violência dessa corporação no Brasil: segundo relatório do Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), em 2019 foram denunciados à Ouvidoria dos Direitos
Humanos 1491 denúncias de violência policial (AGÊNCIA BRASIL, 2020); e, segundo reportagem do
G1, apenas no primeiro semestre de 2020, 3148 pessoas foram mortas por policiais (VELASCO et.
al., 2020). As mortes de policiais também informam sobre essa realidade violenta: segundo a mesma
reportagem, mais de 100 agentes foram mortos entre janeiro e junho desse ano.
42
Para uma síntese sobre a abordagem antropológico do tema, ver Larkin (2013).
104

ou, nos termos de Knox (2017), emergiam de “mundane matters of concern” (p.356).
Para que esse trabalho fosse desenvolvido sem reclamações de demora ou
complicações era preciso contar com uma boa conexão de internet e com uma boa
performance do “sistema”. Contudo, isso nem sempre acontecia e não dependia das
pessoas da DHPP: às vezes mesmo digitando seu login e senha, Roberta não
conseguia entrar43 ou, uma vez “dentro” do sistema, ao digitar os dados das pessoas
ouvidas, ele não obedecia o comando de ir para a página seguinte; por outras, uma
conexão precária com a rede impedia seu acesso ou, embora funcionasse,
“demorava dez anos” para receber o preenchimento dos dados.
Embora esse aspecto vá ao encontro da concepção de Star (1999) de que
as infraestruturas aparecem apenas quando deixam de funcionar, o “sistema digital”
era possível de ser visto no próprio funcionamento regular da rotina do Setor. Digo
isso porque a rapidez e praticidade eram bastante valorizadas no cotidiano de
investigação e apesar de formalmente a digitalização do inquérito não demandar sua
impressão, pouquíssimos ou nenhum deixou de sê-lo. Roberta estava convencida da
obsolescência do papel na rotina do Setor, entretanto, durante uma oitiva relativa a
um inquérito eletrônico, a Delegada da Divisão perguntou pela “Portaria” impressa
do caso. Ela achava mais prático ter à mão a descrição dos fatos que a motivaram
para poder conduzir as oitivas. Depois disso os inquéritos, ainda que digitais,
voltaram a ser impressos: por isso me referi no começo do capítulo a diferentes
pastas-inquéritos. As pastas sem as sobrecapas de plástico, brancas com a borda
vermelha, ostentavam uma marca d’água impressa na diagonal em suas capas:
DIGITAL. O sistema eletrônico estava, assim, estampado nas pastas que o
carregavam.
A digitalização dos inquéritos existia no Setor como possibilidade de
aceleração dos procedimentos nos quais os inquéritos estavam inseridos,
surgimento de uma nova pasta, entrave e facilitador para as tarefas cotidianas e
também como uma maneira deixar a investigação mais transparente. E, desse
modo, era parte da constituição dos crimes tocados por aquela unidade. Entretanto,
essas não eram as únicas atualizações dessa mudança. Houve uma movimentação
na imprensa a respeito dela, que também ajuda a entender as atuações nas quais

43
O acesso ao sistema do inquérito eletrônico não me foi permitido. Sendo assim, o que eu sabia sobre
o sistema era o que Roberta eventualmente me dizia ou quando, muito pontualmente, ela me
convidava para ver algo na tela do computador.
105

essa nova tecnologia esteve implicada e como foi percebida. Ainda que não tratem,
especificamente, do modo como os crimes se constituíam no Setor de Vulneráveis,
as notícias ajudam a acessar uma generalidade da qual os procedimentos do Setor
também fazem parte – o “Inquérito Policial Eletrônico” da PCPR.

As promessas e esperanças do inquérito eletrônico


Separei as notícias em dois grupos: as de canais oficiais de imprensa do
governo paranaense e as de grupos de comunicação privados. Em comum, tratam
de uma “mudança” cuja principal marca é a digitalização dos procedimentos, desde
a elaboração dos boletins de ocorrência até o relatório de conclusão de
investigação. As primeiras notícias relativas ao tema apareceram no fim de 2018,
para noticiar a implantação do “sistema” em Pinhais (BEM PARANÁ, 2018), cidade
da Região Metropolitana de Curitiba (RMC). Outra leva apareceu em março de 2019,
quando trataram do começo da utilização do “Inquérito Digital” na própria capital do
estado e em outras cidades da RMC – “Inquérito Digital passará a funcionar na
capital, na RMC e em Bocaiúva do Sul” (TJPR, 2019). Por fim e com circulação mais
robusta, notícias foram publicadas em setembro de 2019, quando as páginas oficiais
de comunicação do governo anunciaram a mudança de procedimento em todo
estado: “Inquéritos Policiais passam a ser 100% digitais no Paraná” (AENPR, 2019)
e “100 % dos inquéritos das polícias do Paraná são digitais” (SSPPR, 2019).
Existem dois aspectos que gostaria de destacar: o primeiro deles ligado à
história da implantação desse sistema lembrada sistematicamente pelas notícias
não oficiais e o segundo às vantagens mencionadas por todas essas notícias.
Além do “Bem Paraná”, o “Plural” (2019) também mencionou Pinhais como a
primeira cidade onde o sistema foi instalado no fim de 2018 e conferiam a
responsabilidade de seu desenvolvimento à Companhia de Tecnologia da
Informação e Comunicação do Paraná (CELEPAR). Além disso, a notícia do “Plural”
falou em alguns números, entre 2015 e 2018: “já foram instaurados digitalmente e
encaminhados por meio eletrônico ao Poder Judiciário 17.973 inquéritos. O MPPR
ofereceu 6.702 denúncias fundadas exclusivamente em inquéritos policiais
eletrônicos”. As informações tratavam de uma história de sua criação, de sua
primeira implantação e de certa efetividade exemplificado por números. Por outro
lado, mencionavam uma maior agilidade do processo engendrada pelo sistema – no
caso da notícia do “Plural”, entretanto, isso figurava como uma promessa: “Um novo
106

programa disponível para as polícias civil e militar do Paraná promete agilizar a


instauração e tramitação de processos criminais”.
O que era promessa na imprensa não oficial se tornava garantia nas páginas
de comunicação governamentais. A implantação de um sistema que permitia chamar
um inquérito de digital ou eletrônico foi vinculada à certeza de um processo mais ágil
e racional, porque permitiria um compartilhamento de informações entre os órgãos
atuantes na investigação. Isso faria parte não apenas da otimização dos trabalhos,
mas também da maior credibilidade do inquérito, pois teria seus dados seguramente
armazenados em um “sistema”, e de um projeto de transformar o Paraná no estado
mais moderno e digital do País. A agilidade seria também a tônica de um
atendimento mais comprometido com o cidadão. Conforme a fala do delegado-geral
da Polícia Civil do Paraná, Sílvio Rockembach: “na prática ele [o sistema] melhora
em muito o atendimento ao cidadão, fazendo com que eles fiquem muito menos
tempo dentro de uma Delegacia para registrar uma ocorrência” (SSPPR, 2019).
O “Inquérito Eletrônico” pôde ser uma promessa de agilidade, a certeza da
racionalidade e da modernização e assim, nutriram um entusiasmo pela nova
qualidade técnica do governo. Isso remete às considerações feitas por Larkin (2013)
a respeito do impacto de rodovias e estradas nas expectativas, para além de sua
função pragmática no transporte de veículos. Segundo o autor: “it can also be an
excessive fantastic object that generates desire and awe in autonomy of its technical
function” (p. 333). A ideia de um aparato técnico capaz de gerar desejo e admiração
parece interessante também para explorar as notícias sobre a criação do “Inquérito
Eletrônico”. Esse deslumbramento foi sustentado também por outro aspecto: “É o fim
do papel”, conforme disse o Delegado-chefe da Coordenação de Informática da
Polícia Civil, Eduardo Castella, no evento de anúncio da nova infraestrutura
(AENPR, 2019).
Como já adiantei, entretanto, o papel não chegou ao fim no cotidiano do
Setor. Decerto, a relação da polícia com ele se transformou: em meu último dia de
campo derrubei um copo de café sobre vários inquéritos que ficavam sobre a mesa
onde eu costumava analisá-los. Aqueles cujas capas ostentavam a marca d’água
“DIGITAL” não foram motivo de preocupação. Por sorte, os encapes de plástico
protegeram os insubstituíveis. As pastas dos inquéritos digitais poderiam ser
facilmente substituídas, pois além de não circularem elas mesmas por outras
instâncias, seus documentos eram cópias do que se comunicava no sistema, sendo
107

assim, um modo de ter acesso facilitado ao trabalho feito. A obra da investigação


policial na era da digitalização do trabalho.
De todo modo, as pastas-inquéritos continuaram sobre aquelas mesas,
carregando consigo histórias de crimes e de atuações de funcionários públicos,
conforme tratarei a seguir.

Dentro da pasta-inquérito: o trabalho registrado em papel


Se os inquéritos carregavam em suas pastas as histórias dos crimes ao
constituir materialmente suas “investigações”, assim o faziam porque as histórias
que chegavam no Setor, por sua vez, permitiam seus desdobramentos. Desdobrar
os casos e suas histórias dependia por outro lado do trabalho da escrivã do Setor,
que transformava cada nova atitude ligada à investigação, ao mesmo tempo, em
uma folha de papel impressa e um fato da investigação. Nesse contexto, tratava-se
de registrar, no sistema e nas pastas, intimações, ofícios, e-mails enviados e
recebidos, cópias de documentos de identificação – com foto –, termos e mais
termos. Eram essas folhas de papel, com seus cabeçalhos e assinaturas, que
avolumavam as pastas e os próprios percursos da investigação, depois de
“Juntadas”.
“Juntar” era, exatamente, o nome que se dava para a atividade de colocar os
documentos comprobatórios do desempenho das funções investigativas e das
provas dos crimes dentro dos inquéritos44. Assim feito, passavam a constar na
história da investigação do crime – ou nos “autos”, como se dizia e se escrevia na
Divisão. No caso dos inquéritos eletrônicos, esse procedimento era feito digitalmente
quando Roberta subia os arquivos das oitivas e preenchia os dados de identificação
diretamente no formulário do sistema. Isso não significava que as pastas com a
impressão do inquérito eletrônico eram apenas aspectos decorativos. Pelo contrário,

44
Nos tempos em que os inquéritos não eram digitais, as pastas às quais tanto me refiro contavam
com um articulador fundamental para encadeá-las: os carimbos. Analisar os inquéritos foi também
uma experiência de começar a olhar para os versos das páginas que os compunham – e lá, então,
eles estavam. Registravam, inclusive, a ausência de qualquer informação quando estampavam “EM
BRANCO”. O mais comum deles era o “JUNTADA”, pois registrava e anunciava o documento
seguinte: Aos -[dia]- dias do mês de -[número do mês]- do ano de -[ano]-, faço juntada aos presentes
autos dos documentos que seguem, fls -[título de documento]- conforme adiante se vê. Do que, para
constar, lavro esse termo. Eu - [nome da escrivã]- escrivã de polícia o subscrevi”. Dessa forma, todos
as páginas inseridas eram antes anunciadas por esse pequeno instrumento. Se nos tempos dos
inquéritos digitais tornaram-se autenticações digitais, os registros dos inquéritos antigos não os
deixavam despercebidos. Sempre presentes, pareciam-me indispensáveis para promover a coerência
dos dados da investigação, ao identificar a próxima página do inquérito.
108

eram alimentadas com a mesma frequência daquelas referentes aos inquéritos não-
digitais e ambas ajudavam a organizar o trabalho de acompanhar e efetivar o
andamento de cada uma das investigações.
De todo modo, ainda que “Juntar” dissesse respeito a duas modalidades
diferentes de documentação, ambas se referiam ao movimento de colocar algum
documento para dentro – do inquérito, da pasta, do sistema. E a semelhança não se
esgotava nessa função. Na prática, as pastas de todos os inquéritos auxiliavam na
organização desse trabalho: suas capas serviam de suporte para papeis adesivos
colados pela própria escrivã para lembrar da próxima atividade a ser realizada na
investigação.
Se algum deles estava fixado, isso implicava trabalho a ser feito: “oficiar
uber”, “printar imagem”, “ouvir Rosa”, “ver com a doutora”, “aguardo retorno CP MG”,
“pedir mais prazo”, “juntar termo”, “despachar ofício”, “aguardo retorno da escola”,
enfim. Os adesivos serviam de “memória visual” (LATOUR, 2019, p.108) para a
escrivã otimizar sua rotina de trabalho e acessar visual e semanticamente o estado
da investigação. Na etnografia de Latour sobre o Conselho de Estado da França, a
ideia de uma “memória visual” apareceu vinculada às prateleiras que organizavam
os dossiês e sinalizavam aqueles que poderiam ser levados aos gabinetes de seus
relatores. No caso do Setor, se os adesivos são técnicas que permitem a
visualização da próxima atividade a ser realizada, ao mesmo tempo, na investigação
e nos inquéritos, também sinalizam e lembram uma passagem que deve ser feita
dos fatos no mundo para a pasta do inquérito. Assim, muito das atribuições envolvia
colar os pequenos papéis retangulares nas capas dos inquéritos e se desfazer
deles, não sem antes elaborar novos documentos e colocá-los dentro da pasta e/ou
do sistema.
“Olha o tanto de coisas que eu tenho pra mexer hoje”, dizia-me Roberta
frequentemente, ao bater as mãos sobre uma pilha de inquéritos. A referência era,
justamente, à produção dos documentos e sua inserção nos “autos”. Enquanto ainda
estavam fora, clipados nas capas, aguardando sua vez de entrarem, poderiam ser
descartados e substituídos; depois que entravam, muito dificilmente eram
modificados. Os papéis que entravam atendiam a um formato e a uma lógica, e
assim compunham a coerência e o encadeamento que conformavam uma verdade
do inquérito. Para explorar esses aspectos, tratarei mais detidamente do inquérito de
Ângela, um dos casos que pude acompanhar, noticiado pelo MPPR; e o contrastarei
109

seletivamente com o caso de Gilberto, noticiado por um Boletim de Ocorrência, para


evidenciar algumas diferenças de procedimentos que compunham e sustentavam a
procura pela intenção.

4.1.2 O inquérito de Ângela

Começo de setembro de 2019. Eu me preparava para encaminhar o fim do


meu trabalho de campo. Era o dia 3, uma terça-feira e o segundo dia daquela
semana em que eu mais uma vez cruzava a porta da DHPP, aquela a ser
empurrada na entrada e na saída. Passava pelo plantão, perguntava por Roberta,
mesmo entrevendo sua presença pela luz acesa de sua sala – o Setor, afinal, ficava
bem atrás do plantão.
Nesse dia, cheguei e vi que havia inúmeras pastas de requisição de
investigação vindas do MPPR. Uma delas era a do caso de Ângela, que depois de
alguns dias teve sua capa de papel reciclado trocada por uma bem branquinha, com
uma fita larga vermelha no canto esquerdo. Uma marca d’água no centro da capa,
impressa na diagonal, indicava os novos tempos: DIGITAL. Sobre a marca, quatro
campos principais em quadros abaixo do seu título (INQUÉRITO POLICIAL):
natureza da infração (a tipificação do caso), investigado (campo em geral escrito “a
apurar”, porque os casos do Setor eram de autoria desconhecida), vítima (campo em
geral preenchido por um nome e sobrenome ou por “Estado”) e autuação (que dizia
o seguinte: “Ao(s) [data], nesta cidade de Curitiba, Estado do Paraná, sala do (s)
cartório do (a) Delegacia de Proteção à Pessoa, localizado (a) na Rua
Desembargador Ermelino de Leão – 513, São Francisco45, autua o Inquérito Policial.
Eu, [...], Escrivão (ã) de polícia que digitei e subscrevi”). No cabeçalho, a indicação
do quadro institucional hierarquizado:

Secretaria de Estado da Segurança Pública e Administração Penitenciária


Departamento da Polícia Civil
Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa
Delegacia de Proteção à Pessoa

45
Conforme descrevi no Capítulo 1, havia uma diferença entre o endereço institucional, que aparecia
nos documentos do inquérito e o físico.
110

Nos inquéritos mais antigos, em geral, havia abaixo um carimbo escrito


“SETOR DE VULNERÁVEIS”. Esse carimbo deixou de existir também depois dos
inquéritos terem se tornado eletrônicos, mas que embora informatizados,
continuaram a ser impressos, como indiquei anteriormente. Era por esse motivo,
inclusive, que eu conseguia ter acesso às investigações mesmo depois do “fim” dos
inquéritos físicos. Foi por esse motivo que pude, uma semana depois daquele 3 de
setembro, entrar no Setor, cumprimentar Roberta, sentar-me na mesa ao seu lado,
abrir o inquérito de Ângela e me deparar com a história de sua investigação – a
começar por sua “Portaria”.

A lógica do inquérito
A coerência de informações produzidas pelo inquérito ancorava-se em um
encadeamento entre os documentos que o compunham. Não apenas as
informações deveriam ser encontradas, como as próprias “diligências” requisitadas
apareciam seguidas dos respectivos registros de seu cumprimento. Procurar pela
intenção envolvia procedimentos que transformavam elementos exteriores do
universo dos inquéritos noticiados por B.O. e Notícia de Fato em casos, assuntos e,
mais especificamente, em papéis de polícia.
Para tratar desse transporte, analisarei o inquérito do caso que mencionei no
capítulo anterior, de uma vítima de homofobia em um serviço de transporte privado
urbano, a quem tenho chamado de Ângela. O caso chegou ao Setor por uma notícia
de fato e permaneceu nele porque além de ter a autoria desconhecida, aconteceu
depois da decisão do STF de criminalizar a homofobia, conforme tratei no Capítulo
1. Além disso, abordarei alguns aspectos de outro caso, o de Gilberto, para mostrar
a diferença de registro entre as investigações requisitadas pelo MPPR e as
instauradas a partir de um Boletim de Ocorrência. Procedimentos fundamentais para
que a procura pela intenção e a constituição ou não do crime fossem efetivadas.
Quando abria as pastas dos inquéritos, deparava-me de pronto com o
documento responsável por instaurá-los, a “PORTARIA” – com seu título
centralizado, em letras maiúsculas. Em geral, era a folha 2 do inquérito (a primeira
era a capa, embora não fosse numerada), numeração que permitia fazer referência
constante a ela ao longo do inquérito. Era quase sempre um documento de uma
página, com os símbolos da PCPR à direita e o brasão do governo do estado do
Paraná à esquerda. A do inquérito relativo ao caso de Ângela dizia o seguinte:
111

Tendo chegado ao meu conhecimento, através da notícia de fato nº


MPPR-[...], relatando fato descrito como discriminação sexual por
parte do motorista do aplicativo [nome comercial de um aplicativo de
transporte privado urbano] de nome Rafael. Assim sendo, para a
completa elucidação do fato, em tese, tipificado no art. 20 da lei
7.716/89, instauro os presentes autos (…).

Como de praxe, descrevia resumidamente as informações do caso, o modo


pelo qual o “fato” chegou ao “conhecimento” da Delegada – quem assinava tais
documentos – e a lei responsável por tipificar como crime as práticas investigadas,
que assim o eram porque puderam ser associadas a um artigo específico dessa
legislação. A “Portaria” seguia um padrão, presente nos outros inquéritos, que
remetia a um modelo pronto completado segundo as especificidades de cada caso.
Uma das consequências disso era o texto truncado, por exemplo, ao chamar
Roberta de Sr. Escrivão (ã), conforme descreverei abaixo
A outra “Portaria” é a referente ao caso de Gilberto, um homem
autodeclarado pardo, por volta de seus trinta anos que um tanto sem jeito chegara
ao Setor acompanhado por seu advogado para fazer um B.O. - o que marca a
diferença que gostaria de destacar em relação ao caso de Ângela, que foi noticiado
por uma requisição do MPPR. Também elaborada com base no art. 20 da Lei
7716/1989, contava que havia chegado ao conhecimento da Delegada um “Boletim
de Ocorrência verificado nº […] relatando que Gilberto teria sido vítima de RACISMO
(em tese), assim como todo o povo nordestino, dando conta que no dia [inverno de
2019], a vítima foi ofendida em razão de sua procedência nacional, pela pessoa de
Luiz”.
As “Portarias” seguiam em geral com determinações da Delegada ao
“senhor Escrivão de Polícia” – no caso, Roberta. A “Portaria” determinava ao caso
de Ângela as providências a seguir, listadas verticalmente:

Registre-se o Boletim de Ocorrência;


Junte-se o caderno requisitório aos autos;
Intime-se as vítimas para que prestem esclarecimentos dos atos;
Oficie-se o Ministério Público da instauração deste Inquérito Policial;
112

Oficie-se a empresa [de transporte urbano privada] com o intuito de


localizar o motorista de nome Rafael.

No caso de Gilberto, as determinações eram a de juntar seu respectivo B.O.,


intimar a vítima “para que apresente cópia dos áudios contendo as ofensas, bem
como esclareça as circunstâncias [em] que as ofensas se deram”, intimar, qualificar
e interrogar o “autor dos fatos” e encaminhar os “áudios fornecidos pela vítima para
degravação junto ao setor de inteligência desta [divisão]”. Em comparação com a
“Portaria” do caso de Ângela, o de Gilberto prescindia do registro do B.O., porque já
havia sido feito quando comunicou o crime ao Setor. Consequentemente, como não
se tratava de uma requisição feito pelo MPPR, não possuía “caderno requisitório” a
ser juntado. Oficiar o MP da instauração também era uma exigência das notícias de
fatos, o que justifica sua ausência do caso de Gilberto noticiado por um Boletim de
Ocorrência.
De todo modo, para encerrar as “Portarias”, a última determinação: “voltem-
me os presentes autos devidamente conclusos para ulteriores deliberações”. Os
inquéritos seguiam com o “Termo de compromisso de Escrivão (ã) Ad Hoc”,
documento que encarregava Roberta do cargo de escrivã para uma finalidade
específica, pois o concurso pelo qual ingressara na corporação era para
investigadora de polícia.
As atividades registradas nos inquéritos contavam uma história da
investigação desdobrada e efetivada a partir das determinações da “Portaria”. No
caso de Ângela, o documento seguia com o B.O., a primeira determinação da
portaria, cuja “Descrição Sumária dos Fatos” dizia o seguinte: “Boletim
confeccionado para instaurar IP conforme requisição do Ministério Público do PR”. A
requisição do MP chegava à delegacia pelas notícias de fato e se apresentavam no
inquérito pela exigência da juntada do “caderno requisitório”.
Ele apresentava na íntegra a notícia de fato, o que servia para rastrear a
origem da comunicação de conduta criminosa e seus percursos institucionais até
sua chegada ao Setor. A “denúncia registrada no Disque Direitos Humanos”,
documento do atual Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
(MMFDH), trazia o “relato de denunciantes vítimas de discriminação”. Além da data
do ocorrido, a descrição tratava de uma corrida compartilhada contratada por
Ângela, que a dividiu com mais duas mulheres – “Thaís e vítima de nome não
113

informado”. O motorista teria afirmado estar “aliviado com a saída das duas, e que
as pessoas dessa raça [grifada a lápis a palavra raça] deveriam saber se comportar
perante a sociedade”. O relato prosseguia descrevendo a reação da “vítima
restante”, Ângela: “ofendida com a situação, o debateu e expôs a sua orientação
também, resultando em uma alteração do comportamento do suspeito, que começou
a gritar e afirmar que as atitudes das vítimas eram uma vergonha”. Por fim, a atitude
do suspeito de “colocar músicas evangélicas durante a viagem” apareceu como
sendo motivada pelo intuito de ofender as vítimas.
A denúncia era endereçado ao MPPR e as páginas seguintes eram desse
órgão, sinalizando o seu recebimento e distribuição. Mediando-os, um comunicado
do Promotor Coordenador Administrativo para a Secretaria do MPPR mencionando
o recebimento dos “autos” e seu registro em “planilha própria dessa secretaria" – da
Coordenação Administrativa das Promotorias Criminais de Justiça de Prevenção e
Persecução Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de
Curitiba. Esse documento determinava a atribuição da atual notícia de fato a uma
das Promotorias de Justiça de Prevenção e Persecução Criminal (PJPPC) do Foro
Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. E assim seguiu, com um
despacho para uma determinada PJPPC. O “caderno requisitório”, documento no
qual as notícias de fato se transformavam quando passavam a compor um inquérito,
era encerrado com um “Ofício” de tal Promotoria para o Corregedor Geral da PCPR,
em que encaminhava “os autos de Notícia de Fato nº MPPR [...], requisitando a
instauração do inquérito policial para a apuração de crime previsto no art. 20 da Lei
7.816/1989 contra Ângela, Thaís e outra vítima. O documento requisitava, ainda, que
a corporação informasse o número gerado quando da instauração do inquérito
policial.
O destino ao Setor estava próximo. A história que pude observar a partir
daquelas páginas se passava agora na Corregedoria e fazia referência ao ofício
enviado pela PJPPC. Tratava-se de um “Despacho” com duas ordens: a primeira
delas pedia o encaminhamento à “Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa
para providência de Polícia Judicial”, a segunda previa a possibilidade de negar a
determinação – “Caso a Autoridade Policial entenda que não lhe cabe, deverá
fundamentar sua decisão e encaminhar ao protocolado”. A página seguinte era um
ofício da Delegada responsável pela Divisão ao promotor que assinara o ofício
destinado à Corregedoria: “tem o presente a finalidade de informar que foi
114

instaurado inquérito policial nº […], conforme solicitado na notícia de fato Nº MPPR-


[...] e no ofício [...]/2019 da [número cardinal] PJC”. O caso chegara ao Setor
acompanhado por duas referências que o encadeavam à antiga notícia de fato – o
número da própria notícia e o do ofício enviado pelo MPPR à Corregedoria.
A notícia de fato percorreu as instituições e as instituições percorreram a
notícia – e isso tudo agora estavam dentro do inquérito, nomeado como caderno
requisitório, conforme exigência da “Portaria”.
Conforme o terceiro requisito do documento que instaurou o inquérito
(“Intime-se as vítimas para que prestem esclarecimentos dos atos”), a história
naquelas páginas seguia com a intimação de Ângela e com seu “Termo de
Declaração (Por Videoconferência)” – documento comum a vítimas, autores e
testemunhas que registrava suas oitivas –, em que ela se responsabilizava por suas
afirmações e era identificada com alguns documentos pessoais. Depois disso, havia
um ofício solicitando à empresa de transporte em questão os dados cadastrais do
motorista Rafael, em cumprimento à última diligência da “Portaria”. Para precisar sua
identificação, o documento mencionava o nome, RG e CPF de Ângela, bem como o
dia e o horário aproximado de sua corrida. Seguia anexada ao ofício uma foto do
motorista fornecida pela vítima no dia de sua “Oitiva”, conforme constava no próprio
registro. Depois disso, o motorista foi localizado, ouvido e decidiu-se não indiciá-lo –
decisão da qual tratarei no último tópico do capítulo. No inquérito, constaram o
registro de sua identificação, intimação e do seu “Auto de Interrogatório, Qualificação
e Vida Pregressa”
Voltando às diferenças com o inquérito de Gilberto, a “Portaria” deste
acionou outros setores e se desdobrou em outros registros, ambos presentes em
sua pasta. Por se tratar de um crime noticiado por um B.O., esse documento
contava com uma “Descrição Sumária dos Fatos” detalhada, em que os comentários
xenofóbicos ouvidos por Gilberto por meio de um aplicativo de mensagens
instantâneas foram descritos a partir da reprodução do áudio no momento de
registro do B.O. Nesse caso, havia elementos para provar a existência do crime,
além das oitivas. Gilberto apresentou os áudios gravados em um disco,
consequentemente, sua “Portaria” determinou o encaminhamento deles para o Setor
de Inteligência da DHPP. A resposta a essa determinação apareceu em seu
inquérito como um “Relatório de Gravação”: “Conforme solicitação do Setor de
Vulneráveis desta especializada, segue degravação de 04 áudios entregues ao
115

Setor de Inteligência a meus cuidados”. O relatório seguia com os áudios


enumerados, o tempo de sua duração e a descrição na qual foram transformados.
Para terminar, havia no documento a reafirmação da originalidade da descrição –
“Aqui reforçamos que a presente denúncia é transcrita em sua forma original” – e a
sinalização do arquivamento do áudio em seu formato “original”46.
Gostaria de destacar que meu interesse etnográfico nos inquéritos de
Ângela e Gilberto é enfatizar o registro da passagem que transformou dois episódios
lamentáveis em crimes investigados sob a tipificação da Lei 7.716. Para que tais
inquéritos pudessem existir como tais uma série de ações investigativas foi
registrada e encadeada para que fosse possível identificar o investigado e
comprovar a materialidade do crime47 e, assim, existir como um caso de polícia. As
“Portarias” foram fundamentais nesse sentido.
No caso em destaque aqui, o de Ângela, a “Portaria” permitiu que uma
notícia de fato passasse a se chamar “caderno requisitório” e, assim, compor o
inquérito; permitiu também elaborar e registrar um boletim de ocorrência, registrar a
oitiva de Ângela, transformar dados de uma em prestador de serviços de uma
empresa em uma intimação. Desse modo, permitiu compor uma história do trabalho
policial encadeado pelo documento que instaurou o inquérito e transformar uma
história de preconceito e discriminação na prestação de um serviço em assunto de
polícia. Como no caso de Ângela não havia outras provas que não as oitivas dela e
de Rafael48, o caso de Gilberto ajuda a visualizar uma outra passagem para o
inquérito: a de provas gravadas. Gilberto chegou ao Setor com um disco em que
estavam gravadas as ofensas direcionadas a ele e isso foi formatado (descrito pelo
investigador responsável pelo Setor de Inteligência) em uma página que passou a
fazer parte de seu inquérito.
Assim, para o caso de Ângela ter se tornado um caso investigado pela
Polícia Civil Paranaense, o inquérito teve que registrar: i) a identificação de vítima e
autoria, ii) o cumprimento de uma requisição do MPPR e iii) os esforços para
investigar a materialidade do crime, isto é, as oitivas. Entendo o registro como uma

46
Não acompanhei o caso de Gilberto até o fim. Mas Roberta apostava que levaria ao indiciamento do
investigado, pois as gravações de mensagem de áudio enviadas para Gilberto, em que ofensas
racistas de baixíssimo calão eram dirigidas a ele, tornavam a intenção específica de discriminar
contundente.
47
Isso era “concluído” pelo último documento do inquérito, o “Relatório”, quando se referia
numericamente às folhas de cada página do inquérito, por exemplo.
48
As outras passageiras não foram localizadas.
116

atividade que, na verdade, ajuda a produzir uma realidade específica de vítimas,


autores e provas: a realidade do inquérito policial, que opera a passagem de
experiências de discriminação para um formato inquisitorial. Isso feito a partir das
práticas investigativas das pessoas envolvidas na sua elaboração e passíveis de
serem responsabilizadas por essas ações.
Conforme é possível notar nos documentos que descrevi, muitos são
escritos em primeira pessoa. Isso me chamou a atenção para uma constante
identificação também dos agentes envolvidos no trabalho investigativo para
sustentar a existência do inquérito que consolidava a investigação e a procura pela
intenção. Seguirei com o caso de Ângela para descrever aspectos dos inquéritos
que identificam os próprios funcionários públicos ligados à investigação e, para
contrastar, enfatizarei mais uma vez a identificação de Rafael.

Identificando e sendo identificado


Um dos principais objetivos da constituição da investigação é a identificação
da autoria do crime. A história contada na pasta-inquérito de Ângela dizia respeito ao
empenho em localizar o motorista que a teria discriminado, ou seja, de registrar no
formato do inquérito sua identificação. Isso aparecia já na “Portaria” de seu caso:
“Oficie-se a empresa [de transporte urbano privada] com o intuito de localizar o
motorista de nome Rafael”. Além do primeiro nome do motorista, o “Ofício”
encaminhado à empresa mencionava também o nome da passageira, seus
documentos pessoais de identificação, a modalidade do serviço contratado e a data
e o horário aproximado da viagem. Assinado pela Delegada e endereçado ao Diretor
da filial da empresa em Curitiba, carregava consigo a própria investigação: “Informo
que tais solicitações são necessárias para instruir o Inquérito Policial Nº [...]”.
Identificar o possível culpado dependia da identificação da própria investigação – e
lá estavam os números responsáveis por singularizar o caso de Ângela, bem como
as informações para facilitar a localização do motorista.
A resposta ao documento encadeava-se no inquérito mencionando o número
do “Ofício” que a antecedia de maneira ao mesmo tempo lógica, cronológica e
material. Trazia para o corpo da investigação os “dados cadastrais” registrados pela
empresa em questão da parte indicada como sendo autora: nome, endereço e
telefone. O que se tratava de informações imprescindíveis para a prestação de
serviço na empresa de transporte transformou-se, dentro daquela pasta, em
117

informação privilegiada da investigação – agora, pois, seria possível registrar sua


intimação. Foi o que se passou.
O inquérito seguiu com a cópia da “Intimação” de Rafael para o
comparecimento ao Setor de Vulneráveis, em determinada dia, hora e endereço
para “prestar esclarecimentos”. O “Auto de Interrogatório, Qualificação e Vida
Pregressa” registrava o comparecimento do “indiciado” no dia marcado para a
gravação, na presença da escrivã e da Delegada “na cidade de Curitiba, Estado do
Paraná, no cartório de Vulneráveis da DHPP, localizado na Rua Sete de Setembro,
2077”. Ademais, precisava a identificação de Rafael, pois registrava sua
“qualificação”, ao fazer constar algumas informações pessoais físicas, de identidade
e da relação com a justiça criminal (se já fora indiciado, processado e se no
momento estava preso).
“Portaria”, “Ofício” e sua resposta, “Intimação” e “Auto de Interrogatório,
Qualificação e Vida Pregressa” davam conta de identificar Rafrael para as
finalidades do “Inquérito”. Pois, se a “Portaria” desencadeia uma tarefa a ser
cumprida, o “Ofício” se converteu no primeiro procedimento dessa ordem ao pedir os
dados cadastrais de Felipe e, em seguida, os transforma em informação de polícia.
Essa conversão se fez não apenas porque a resposta passou a fazer parte do
“Inquérito”, mas também porque a informação foi aproveitada para a elaboração e
registro de uma “Intimação”, cuja principal finalidade era que Rafael comparecesse e
que ficasse registrado que ele foi intimado – e talvez o registro seja até mais
importante que o comparecimento, porque é ele que assegura que o inquérito foi
bem conduzido, respeitando as determinações legais. Feito isso, sua “qualificação” e
sua identificação puderam ser formatadas no modelo do inquérito e assim
concluídas enquanto assunto de polícia.
As páginas do inquérito que sustentavam a procura pela intenção não
apareciam do nada, evidentemente. Conforme mencionei ao longo da dissertação,
dependiam do trabalho constante de organizar papéis, ouvir pessoas e alimentar um
sistema eletrônico. Em especial, dependiam do trabalho da Delegada e de sua
escrivã, um trabalho devidamente identificado e assinado. A “Portaria” do caso de
Ângela – e de todos os outros que pude acompanhar – não era diferente. Além de
conter a assinatura, o nome e o cargo da Delegada, era redigida em primeira pessoa
do singular. A seguir um trecho que citei anteriormente, agora enfatizando outros
aspectos:
118

Tendo chegado ao meu conhecimento, através da notícia de fato nº


MPPR-[...], relatando fato descrito como discriminação sexual […].
Assim sendo, para a completa elucidação do fato […], instauro os
presentes autos, e após, devidamente R. e A. [Registrada e Autuada]
esta, determino ao senhor Escrivão de Polícia, de meu cargo, que
tome as providências a seguir: […] (grifos meus).

Meu conhecimento, eu instauro, eu determino. Em um primeiro momento, o


texto escrito em primeira pessoa chamou minha atenção, porque eu não esperava
encontrar elementos que remetessem à pessoalidade na formalidade da
administração pública. E, de fato, não se tratava disso. O texto era em primeira
pessoa, mas assinado por alguém em determinada posição da hierarquia da Polícia
Civil – as “Portarias” são encerradas, afinal, pela assinatura, nome e cargo da
Delegada. Mais do que isso, elas só puderam se tornar um documento válido, que
pôde produzir efeitos, porque feitas segundo determinado formato, e assinadas por
uma determinada pessoa em um determinado cargo.
Os “Relatórios”, as últimas peças dos “Inquéritos”, forneciam mais uma pista:
“A Polícia Civil do Estado do Paraná, representada neste ato pela Delegada de
Polícia […]” (grifos meus). A “representação” da Delegada era promovida pelo “uso
de suas atribuições legais e regulamentares”, ou seja, ao registrar atos e ordens em
primeira pessoa, assim o fazia em seu nome, em nome de seu cargo e da PCPR,
porque as “atribuições legais” constituíam essa atuação. Eram “suas atribuições
legais” que lhe permitiam falar em primeira pessoa e em nome da Polícia ao mesmo
tempo. Por outro lado, a identificação também assegurava que ela agisse no limite
das suas atribuições legais e funcionais.
Mas, essa não era a única maneira de identificar os funcionários
responsáveis pelo inquérito. O “Termo de Compromisso de Escrivão (ã) Ad Hoc”,
presente no caso de Ângela e em todos os outros investigados no Setor, também
contava uma história de identificação pessoal-institucional. Assinado por Roberta e
pela Delegada, dizia o seguinte:

Aos [dia e horário], nesta cidade de Curitiba, Estado do Paraná, onde


presente se achava o (a) senhor (a) Doutor (a) [nome da Delegada],
119

R.G. […], Delegado(a) de polícia, por ele foi dito que, na ausência de
Escrivão (ã) de Polícia de seu cargo, me havia nomeado Escrivão (ã)
“ad hoc” para servir nestes autos. E, como aceitei o encargo, pela
referida autoridade, nos termos do artigo 305 do CPP, o
compromisso legal de bem e fielmente desempenhá-lo […]. Eu
[nome completo de Roberta], Escrivão (ã) ad hoc que o digitei e
subscrevi (grifos meus).

Escrivã em uma circunstância específica, eis o significado da expressão “ad


hoc”. Roberta o era constantemente e a cada novo “Inquérito” instaurado essa
história de atribuição e responsabilidade era renovada. A identificação, nesse caso,
fazia a articulação entre atribuições legais do cargo – o “compromisso legal”, o
emprego da primeira pessoa do singular, seu nome e o próprio cargo dentro da
corporação. Mais uma vez, tratava-se da atualização de uma existência pessoal e
institucional promovida pela identificação de uma pessoa, Roberta, e um cargo
dentro da hierarquia da PCPR, o de “Escrivão (ã)”. Bem como, a “nomeação”
justificava a atuação daquela escrivã nas providências determinadas pela Delegada
na “Portaria”. Em síntese, só era possível assinar e escrever em primeira pessoa,
porque assim era feito na qualidade de ocupante de um cargo determinado, devido a
uma nomeação e amparado por um “compromisso legal”. Um compromisso legal
que, entretanto, não o era das atribuições próprias do cargo de concurso Roberta –
de investigadora –, ela só podia atuar em circunstâncias específicas, por isso era
preciso refazer a delegação de função a cada vez como se fosse a primeira. E o
modo como era constantemente refeita também interessa, porque apesar de a
nomeação ter sido supostamente feita pela palavra (“por ele foi dito”) foi preciso o
registro escrito para que ela tivesse pleno efeito.
Atualizar a existência pessoal-institucional das pessoas envolvidas na
elaboração do inquérito e sua validade legal não era o único efeito da produção de
suas respectivas identificações. Identificar era também uma maneira de garantir a
possibilidade de responsabilização. Digo isso a partir de uma pista que encontrei em
uma nota de rodapé do “Despacho” da Corregedoria Geral da Polícia Civil para a
DHPP no caso de Ângela, presente também nos outros casos que chegavam por
Notícia de Fato ao Setor. Dizia o seguinte: “Artigo 213, inciso XXX: negligenciar
parte, queixa, representação ou procedimentos administrativos ou criminais.
120

Penalidade: suspensão de trinta a sessenta dias”49. A pena era, justamente, relativa


à responsabilidade administrativa, ou o que se entende pela falta dela.
Sendo possível identificar o autor de algum ato administrativo no serviço
público, seria possível, também, atribuir alguma responsabilidade, especialmente em
momentos nos quais pesasse algum apontamento de infração legal ou regimental.
O que descrevi a respeito da identificação da escrivã, da Delegada e de um
possível culpado no “Inquérito” de Ângela aponta para dois propósitos. O primeiro
ligado a averiguar a existência de um crime e identificar seu possível autor, para que
seja possível a abertura de processo penal. O segundo ligado à identificação de
ocupante de um cargo no serviço público no que diz respeito a suas atribuições
legais – por um lado, para endossar Delegada e Escrivã em seus atos investigativos
e, por outro, para manter atualizada a possibilidade de responsabilizá-las. Desse
modo, o “Inquérito” de Ângela, e de tantos outros casos, prosseguia porque produzia
a identificação não apenas de um possível indiciado, mas também de quem era
responsável por sua elaboração.

4.2 A EXISTÊNCIA DO “DOLO”

“Ver com a doutora”. Esse era um recado bastante comum deixado por
Roberta para ela mesma nas capas dos Inquéritos em curso no Setor. O papelzinho
retangular colorido colado naquelas pastas lembrava a escrivã de encaminhar o
encerramento das investigações para a produção do “Relatório”, a última peça do
“Inquérito Policial”. “Ver com a doutora” era uma maneira de não deixar Roberta
esquecer de consultar a Delegada a respeito da confirmação ou não da existência
da materialidade do crime, ou seja, se a conduta noticiada à polícia era motivada por
uma intenção discriminatória. Conforme Roberta me explicou, o encerramento das
investigações dependia de uma decisão a respeito da existência ou não do “dolo
específico”. Isto é, a “comprovação” de que houve uma motivação específica de
discriminar por parte de quem estivesse sendo investigado, pois essa era a condição
para o enquadramento penal da maioria dos crimes investigados no Setor, os crimes
de racismo e contra a honra50.

49
Lei Complementar nº 14, de 26/05/1982 (Estatuto Civil do Paraná).
50
Ver Capítulo 1.
121

Sendo assim, a elaboração do “Relatório” dependia da localização,


identificação, qualificação e oitivas de vítimas, autores e testemunhas para que
fosse possível encerrar a procura pela intenção. O recado indicava a última atividade
do trabalho policial a ser feita, pois todas as outras determinações da “Portaria”
haviam sido cumpridas. Tal atividade, por sua vez, estava vinculada à decisão da
“doutora” a respeito de “indiciar” ou não a pessoa investigada. Era isso o que
precisava ser “visto com a doutora”, pois o modo como ela interpretava a intenção
era decisivo e fundamental para o “indiciamento” promovido ou não pelos
“Relatórios”. Não apenas o modo como ela interpretava, para ser mais exato, pois
Roberta também era ouvida e consultada a respeito da existência do dolo.
Desse modo, a escrivã participava das tomadas de decisões das quais
dependia para prosseguir com seu trabalho, ou, conforme ela me dizia, “ajudava” a
Delegada em suas atribuições. A “ajuda” dentro da corporação estava implicada nas
condições de trabalho na Polícia Civil. “Está todo mundo super sobrecarregado”,
conforme me dizia Roberta, pois havia muito trabalho para poucos servidores e, por
isso, investigadoras/es, escrivãs/ãos e Delegadas/os viviam correndo com suas
atribuições. Esse era o motivo pelo qual era preciso ajudar e ser ajudado pelos
colegas de profissão, tanto os do mesmo nível hierárquico, quanto aqueles de níveis
superiores – como a própria Delegada. Na prática, isso se mostrava no constante vai
e vem de pessoas pelos corredores da DHPP e nas inúmeras atividades
desempenhadas por Roberta e seus colegas ao mesmo tempo – atende o telefone,
junta documento, lacra prova aprendida, faz cópia de documento, comparece a uma
reunião, representa a Delegada em outra, manda prova para perícia, enfim.
A quantidade de trabalho não era a única dificuldade enfrentada no Setor de
Vulneráveis. Logo nas primeiras conversas que tive tanto com Roberta, quanto com
a Delegada, elas me falaram sobre a dificuldade de “indiciar” os investigados nos
crimes noticiados ao Setor. A principal insatisfação estava ligada ao que elas
descreviam como a dificuldade de “comprovar o dolo”. Tratava-se da “velha
dificuldade da prova”, conforme desabafou a Delegada depois da oitiva de um caso
de intolerância religiosa.
Diferentes contextos policiais de investigação relacionam-se de maneiras
também diferentes com a “comprovação” dos crimes que investigam, como mostram
trabalhos antropológicos recentes. Iubel (2009), por exemplo, que em parte de seu
trabalho acompanhou as atividades da delegacia especializada em investigar crimes
122

contra crianças e adolescentes em Curitiba (Nucria), destaca a importância da


sensibilidade dos agentes para ouvir e considerar a fala das crianças durante a
investigação. Na etnografia de Lowenkron (2012), acompanhando o trabalho
investigativo de crimes de pedofilia na internet, a autora destaca um esforço policial
para distinguir os “verdadeiros crimes” daquelas imagens falsificadoras de uma
infantilidade ou adolescência sexualizada. Nas investigações de homicídios
analisadas por Medeiros (2016), por sua vez, a autora sublinha a importância de
construir uma ou duas “linhas de investigação” – mais do que isso seria considerado
demais (p. 141) – com base em depoimentos, suas contradições e/ou evidências
materiais (como projéteis), dependendo de cada caso. A ajuda pelo excesso de
trabalho era importante, mas não esgota o tema.
Como, em geral, os casos investigados pelo Setor tratavam de comprovar a
“intenção” em discriminar de expressões preconceituosas, não havia objetos que
ajudassem a “comprovar” a autoria do crime. Nesses termos, a intenção era a prova
– e, consequentemente, um atributo capaz de qualificar as condutas como
criminosas ou não –, se ela estava presente, havia crime. Para fins legais, isso não
dependia de como a vítima pudesse ter se sentido, porque, nos termos da escrivã, o
fundamental para tipificar alguma conduta como crime motivado por preconceito era
a “intenção de discriminar”. Uma intenção muito específica de discriminar. Assim, o
trabalho investigativo voltado para “comprovar” o “dolo específico” era, em muito, o
de materializar o intangível. E isso, quase sempre, não era possível.
A própria dificuldade de identificar a intenção fazia com que as decisões
sobre a intenção e o indiciamento fossem compartilhadas. Isso chama a atenção
para um caráter “distribuído” desse conhecimento. No sentido empregado por
Candea (2010) em sua pesquisa na Córsega, o conhecimento distribuído diz
respeito a uma partilha de informações e aprendizados entre observadores de
queimadas que aventam formas de controlá-las. Além disso, é sustentado pela
premissa de que “ninguém sabe tudo” (p. 80) e que o conhecimento não é um
amontoado de elementos nas mentes das pessoas, mas uma propriedade da
interação entre as pessoas envolvidas, seus conhecimentos e os artefatos em
discussão. Esse entendimento é útil para ajudar na descrição das atividades do
Setor: em boa parte das vezes, a Delegada e a escrivã, a partir de doutrinadores por
elas reconhecidos e da legislação pertinente aos casos, ponderavam juntas a
decisão, mesmo que a palavra e a assinatura final fossem da “doutora”. A etnografia
123

de Lewandowski (2014) sugere algo parecido ao descrever o trabalho dos analistas


dos gabinetes dos ministros do STF na composição dos processos e a necessidade
da assinatura dos ministros para que as decisões se consolidem – afinal, “[n]ão existe
decisão em um processo até que o ministro assine o documento” (p.104).
Voltando às atividades do Setor, não acompanhei um caso sequer que tenha
terminado com autoras ou autores indiciados durante meu trabalho de campo. Por
isso, tratarei neste tópico de quatro casos em que o crime não foi configurado, pois o
“dolo específico” não foi “comprovado”.
Primeiramente, tratarei do caso de Ricardo, não tipificado, porque a parte
autora alegou desconhecer sua deficiência física e sexualidade – se não dá para
ver, como é possível discriminar? Em seguida, voltarei ao caso de Ângela, não
tipificado, porque a motivação da reclamação do motorista não era sobre sua
sexualidade, mas de outra ordem – encontrando a pureza da intenção. Voltarei
também ao caso da profª. Isabel, não tipificado, porque a Delegada não viu intenção
da professora em menosprezar alunas e alunos negros, apesar de Roberta discordar
– a existência do dolo não é sempre consensual. E para encerrar, a partir do último
documento do “Inquérito”, o “Relatório”, apresentarei o caso de João, que noticiou
discriminação motivada por sua idade em um terminal de ônibus em Curitiba.

4.2.1 Se não dá pra ver, como é possível discriminar?

1 de outubro de 2019. Estava em uma das minhas últimas semanas de


trabalho de campo. Cheguei mais uma vez à DHPP e, como de praxe, perguntei por
Roberta no plantão. Fui avisado por um dos investigadores que ela estava em sua
sala e, então, ele autorizou minha entrada, pois muitos deles já me conheciam. Bati,
abri a porta e pedi licença para entrar. Na sala estavam Roberta, a Delegada e em
seguida chegou um homem, por volta de seus 60 anos, com cabelo grisalho e
estatura mais ou menos parecida com a minha, em torno de um metro e setenta.
Antes de ele chegar, deixei minhas coisas sobre a mesa onde eu costumava ficar e
fui imediatamente à sala ao lado para pegar uma cadeira.
Aquele senhor, Francisco, seria ouvido como parte autora no caso de
Ricardo. O caso chegara ao Setor por uma “Notícia de Fato” do MPPR encaminhada
para essa última instituição pelo Disque Direitos Humanos do Governo Federal, o
Disque 100. Constava na denúncia feita que Ricardo estaria sendo discriminado pelo
124

síndico do prédio onde morava, por ser “homossexual e pessoa com deficiência
física”. Como sempre acontecia, a Delegada começou a oitiva se apresentando e
apresentando Roberta. Para confirmar os dados de identificação fornecidos pela
denúncia, a Delegada perguntou para Francisco se ele era o síndico do prédio citado
na “Notícia de Fato” e se ele conhecia Ricardo. Após as informações terem sido
confirmadas, a oitiva prosseguiu com a Delegada lendo a denúncia, que dizia
também que o síndico teria impedido um “amigo homossexual de Ricardo de entrar
no prédio com sua bicicleta”. Com a palavra, Francisco um tanto surpreso afirmou ter
pedido para a visita de Ricardo e ele mesmo terem cuidado ao entrar com suas
bicicletas pela porta do prédio e que, como síndico, não teria o direito de impedir
ninguém de entrar no prédio.
Conforme tenho procurado demonstrar, as oitivas eram marcadas pela
tentativa de confirmar ou desmentir as histórias contadas nas denúncias. Sendo
assim, para confirmar mais uma vez, a Delegada perguntou ao síndico se recordava
de ter “impedido algum homossexual de entrar no prédio?”. Ele disse que não se
lembrava e a pergunta seguinte foi a respeito de sua intenção, ou seja, se era para
preservar o patrimônio do prédio, a porta. Chegando ao fim e tentando mais uma vez
confirmar qual seria a intenção de Francisco em chamar a atenção de Ricardo e seu
amigo, a Delegada perguntou se Francisco sabia que o rapaz, o morador do prédio
em questão, era homossexual e deficiente físico. Aparentando surpresa, com os
olhos arregalados, o síndico negou veementemente e completou dizendo não ter
tido conhecimento de “nenhum desses defeitos”.
Um silêncio rápido foi sucedido por uma intervenção de Roberta que entrou
na conversa e perguntou se a deficiência física do rapaz era aparante. Outra vez, a
resposta foi “não”. Referindo-se tanto à sua deficiência física, quanto à sua
sexualidade, afirmou que o rapaz era uma “pessoa normal”. Na tentativa de justificar
que desconhecia a orientação sexual de Ricardo, afirmou que homossexuais
“sempre têm trejeitos” e o morador do prédio em questão não os tinha. A oitiva foi
encerrada como de costume, com Roberta indo ao Plantão para fazer uma cópia do
documento de identidade da pessoa ouvida. Em seu retorno, perguntou-me a
respeito do caso e, em seguida, chamou minha atenção para o que deveria ser
observado: “você percebeu que ele não sabia que o rapaz era homossexual? Como
vai discriminar se não sabe que a pessoa é homossexual?”.
125

A história evocou outro caso, cujo destino também fora a recomendação de


seu arquivamento, e uma lição a respeito da relação entre o que é possível ser visto
e o preconceito. Traçando um paralelo com a deficiência física de Ricardo, a escrivã
me contou a história de um caso de discriminação noticiado ao Setor, em que uma
mulher, Angélica, procurou a unidade para registrar um “Boletim de Ocorrência”, pois
teria sido discriminada por conta de sua deficiência física. A história se passou em
um estacionamento, onde a vítima teria estacionado seu carro em uma vaga
reservada para deficientes físicos. Uma segunda pessoa teria se ofendido com a
atitude de Angélica, porque supôs que ela não tivesse nenhuma deficiência e
estivesse, assim, burlando a reserva legal dessas vagas. Diante disso, o
desconhecido teria se referido a Angélica como alguém que tivesse alguma
“deficiência mental, problemas na cabeça, no cérebro”, em tom depreciativo. Ela,
segundo Roberta, procurou o Setor, porque era diagnosticada com esclerose
múltipla e se sentira discriminada por conta disso. Apesar do sentimento de ofensa,
o caso não foi para a frente, porque o “dolo específico” não pôde ser configurado. E
a escrivã, então, me explicou o motivo: “se a pessoa não disser, ninguém consegue
ver, e se não dá pra ver, como é possível discriminar?”.
Ou seja, encontrar uma motivação específica para o preconceito implicava
procurar por uma intenção voltada exclusivamente para a discriminação. Encontrar
uma intenção que, em um primeiro momento, levasse em conta o reconhecimento
do indubitável pertencimento de uma pessoa a um grupo de pessoas mencionado
pelo decreto de inauguração do Setor e/ou pela legislação dos crimes de racismo e
contra a honra. Por outro lado, se poder ver era condição imprescindível para poder
discriminar, não poder alegar o desconhecimento da sexualidade ou da deficiência
de alguém não bastava para ter o crime configurado. Tal impossibilidade precisava
ser conjugada a uma intenção específica de discriminar, como tenho insistido neste
tópico. Encontrar essa intenção era uma atividade que dependia de como escrivã e
Delegada, a partir das sentenças anteriormente proferidas sobre tais crimes e da
doutrina de determinados juristas, interpretavam e depuravam a motivação das
pessoas investigadas por discriminação.

4.2.2 Encontrando a pureza da intenção


126

Nesta seção, voltarei ao caso de Ângela. As investigações do Setor não


conseguiram identificar as “outras vítimas” e, sendo assim, não puderam ser
localizadas. O motorista, por sua vez, pôde ser identificado, intimado e, dessa forma,
prestou esclarecimentos em relação ao caso nas dependências do Setor. Sua oitiva
aconteceu em setembro de 2019 e foi conduzida pelo Delegado responsável por um
dos Cartórios acompanhado por Roberta, pois a Delegada da Divisão, quem em
geral acompanhava os casos do Setor, estava muito ocupada naquela semana.
Como de costume, o objetivo foi comprovar se a parte autora havia mesmo dito o
que constava na denúncia do Disque 100 e procurar por uma intenção que fosse
específica de discriminação.
Para começar, o Delegado leu a denúncia em que constava o motivo
pelo qual Rafael foi intimado, qual seja, o de ter discriminado três mulheres
bissexuais ou lésbicas durante um serviço de transporte prestado para elas.
Conforme a denúncia, o motorista teria dito para Ângela que ficara aliviado pela
saída das outras passageiras, pois pessoas “dessa raça” deveriam saber se
“comportar em sociedade” – comentário referente à sexualidade das duas mulheres.
Perguntado se teria algo dizer sobre a denúncia, Rafael afirmou que o texto lido pelo
Delegado não estava “em conformidade com a realidade”. Depois de fazer uma
conta aproximada do número de “lésbicas e gays” a quem já havia prestado seus
serviços e para justificar a improcedência da denúncia, o Delegado o interrompeu e
indagou se ele teria algo a dizer sobre o caso de Ângela, em específico.
E ele teve: “o meu problema não é com o público LGBT, o meu
problema é com pessoas alcoolizadas. Elas estavam alcoolizadas e elas começaram
a se agarrar e uma pediu a outra em casamento. Ninguém deve expor sua
intimidade em um carro, não é um lugar adequado (…). Essas meninas estavam
alcoolizadas, se agarrando. Quando a outra entrou, aí elas pararam com tudo (…).
Quando ela entrou, fiz o comentário infeliz: “graças a Deus que você entrou no carro,
porque elas estavam se agarrando, se pedindo em casamento”, aí a moça perdeu o
controle, ficou nervosa, me falou que era crime e que eu era obrigado a aguentar
aquilo, porque era parte do meu trabalho”. Para confirmar a versão da história, o
Delegado a resumiu ao perguntar se, então, fora ele quem se sentira ofendido pelo
comportamento alcoolizado das duas mulheres e que não chegara a ofender
ninguém. O motorista confirmou sua versão ao responder afirmativamente e repetiu
127

que não considerava adequado “expor suas intimidades” em um carro. O Delegado,


em seguida, entendeu ter sido suficiente e deu a oitiva por encerrada.
Pude acompanhar seu desdobramento e compreender o motivo pelo qual
não houve indiciamento. Nesse mesmo dia, depois de um tempo, o Delegado
retornou para a sala de Roberta para outra oitiva relativa a outro caso. Depois de
encerrada, a escrivã e o Delegado retomaram o caso de Ângela. Eles estavam de
acordo quanto à inexistência do “dolo específico”, pois o motivo do comentário do
motorista não havia sido a sexualidade das passageiras: “o incômodo não foi por
serem lésbicas, mas por estarem fazendo coisas inapropriadas em lugar não
apropriado”, explicou o Delegado. Dessa forma, a fala do motorista em relação às
passageiras não teria tido a intenção de discriminar “por conta da sexualidade”, mas
por comportamentos entendidos como inapropriados por Rafael – embora nenhum
dos dois tenha se perguntado se o incômodo seria o mesmo se fosse um casal
heterossexual. Sendo assim, o motorista não foi indiciado e o crime não foi
configurado enquanto tal, conforme me confirmou Roberta.
A especificidade dos crimes investigados pelo Setor residia na procura da
intenção, como disse repetida vezes. No caso de Ângela, “comprovar” essa intenção
parecia ser a sustentação da impossibilidade de atribuir qualquer outro tipo de
motivação à conduta noticiada como criminosa. Referir-se a uma intenção específica
parecia dizer respeito a uma motivação exclusivamente preconceituosa e
discriminatória. Ou seja, a procura parecia ser por uma intenção dotada de uma
univalência quanto aos motivos do motorista. Se a motivação era relacionada ao
senso de apropriação vinculado a determinadas condutas em detrimento de outras,
isso não poderia ter sido também vinculado a outras intenções, logo, não possuía o
ânimo específico da discriminação. Por isso, o nome desta seção – encontrando a
pureza da intenção. Pois, na medida em que se procurava uma motivação exclusiva,
o convencimento do Delegado a respeito da existência de uma motivação não
discriminatória fez com que outra possibilidade a respeito da motivação de Rafael
fosse descartada. Consequentemente, o motorista não foi indiciado e o “dolo
específico” não caracterizado.

4.2.3 A existência do dolo não é sempre consensual


128

Como mencionei, os “Relatórios” encerravam as investigações dos casos e


elaborá-los era uma atribuição da Delegada ou do Delegado responsável pelo
inquérito em questão, uma atribuição muitas vezes compartilhada com a escrivã.
Pude acompanhar muitas situações nas quais não houve divergência de
entendimento sobre a existência ou não do “dolo específico”. Contudo, explorarei
nesta seção um caso em que o entendimento a respeito da existência do “dolo
específico” não foi consensual entre a Delegada e a Escrivã. Trata-se do caso da
profª. Isabel, cujas oitivas abordei no segundo capítulo. As práticas da professora em
sala de aula foram objeto de uma denúncia feita diretamente ao MPPR, atribuindo-
lhes caráter discriminatório em relação a pessoas negras e indígenas. A
investigação correu durante o mês de setembro de 2019 e, também, não levou ao
indiciamento da parte autora – vejamos o motivo.
Diferentemente dos casos anteriores, testemunhas foram fundamentais para
o desdobramento das investigações no caso da professora Isabel. Como se tratava
da apuração de um caso de discriminação que se passava em uma sala de aula, já
havia de partida inúmeras testemunhas em potencial – os estudantes da turma.
Depois de a escola ter mandado para o Setor a lista com o nome das alunas e
alunos do curso citado pela denúncia, cinco pessoas foram escolhidas, intimadas e
ouvidas. Entre elas, um depoimento teve destaque – o de Sílvio, um homem pardo,
com pouco mais de 30 anos, aluno da professora Isabel e apontado como alguém
próximo a um suspeito citado nominalmente na denúncia por ter feito comentário
racista em relação às mulheres negras51.
A principal contribuição da oitiva de Sílvio foi seu relato sobre o modo
especial como a professora Isabel tratava duas alunas – suas “bonequinhas”. A
testemunha afirmou que, embora a professora tenha sido hostil em determinados
momentos com uma pessoa negra e uma indígena, não viu nessas atitudes uma
motivação racista, pois havia outras pessoas negras na turma para quem o
tratamento não era ríspido. Contudo, destacou um tratamento superior por parte da
professora em relação a duas alunas loiras de olhos azuis, a quem a professora se
referia como “minhas bonequinhas”. Roberta perguntou, ainda, como ele declarava
sua cor e, depois de ter afirmado ser pardo, a escrivã quis saber se ele se sentira
ofendido pelo tratamento “melhor e mais carinhoso” dado a essas duas alunas. Sua

51
Falei dos detalhes dessa oitiva na seção “b) Em busca de uma lógica do caso: qualificar e ouvir” do
tópico “2.2 As oitivas do Setor: histórias de vítimas, autores e testemunhas”.
129

resposta afirmativa veio acompanhada de uma justificativa: “eu não entendo como
elas seriam melhores”. A queixa e a percepção da testemunha estavam ligadas não
ao modo pelo qual a professora tratava as pessoas negras e indígenas da turma,
mas ao modo privilegiado como se referia e se relacionava às duas mulheres
brancas mencionadas por ele.
Roberta gostou muito da versão da história de Sílvio, pois, segundo ela,
suas informações foram precisas, sérias e ponderadas. Entretanto, ao falarmos
sobre o caso, a escrivã me disse que ainda estava em dúvida a respeito da
existência ou não do “dolo específico” por parte da professora. A “versão dos fatos”
trazida por Sílvio pesava a favor da existência. Diferentemente do que mencionava a
denúncia que originou a notícia de fato, o motivo não seria um tratamento que
subjugava e perseguia pessoas negras e indígenas, mas sim privilegiar e favorecer
as “bonequinhas”. A escrivã aproveitou para me explicar a explicação jurídica para
tanto: a “discriminação” pode acontecer no enaltecimento de algumas pessoas em
relação a outras. Ou seja, não apenas no desprezo explícito e direto a alguns, mas
na comparação implícita se exaltar algumas pessoas.
Na mesma semana, perguntei para Roberta qual fora o destino do caso da
professora Isabel, se na procura pela intenção, havia mesmo encontrado naquele
caso o “dolo específico”. Depois de alguns dias, a escrivã consolidou sua opinião em
relação à existência da motivação específica em discriminar, por conta da
preferência citada por Sílvio e confirmada pela professora. Contudo, ninguém seria
indiciado, pois “a Delegada não viu dolo”. No entendimento da Delegada da Divisão
a preferência não seria motivada por “ódio” ou “discriminação”, mas por amizade – a
professora tratava as alunas com mais carinho porque sentia-se mais próxima delas.
Roberta insistiu em sua discordância e me disse que, nesses casos, é possível
atribuir não o “dolo direto”, mas o “dolo indireto”52. De todo modo, o entendimento
que prevaleceu foi o da Delegada, a pessoa na hierarquia da corporação da Polícia
Civil responsável por elaborar os “Relatórios”.
Mais uma vez, o que se buscou foi definir uma verdade sobre a univalência
da intenção e, por isso, a tarefa da investigação foi concluída. A discordância entre
Delegada e escrivã sugere que, se o propósito da investigação era determinar a

52
Grosso modo, o “dolo direto” diz respeito à intenção com o objetivo de alcançar determinado objetivo,
que nesses casos, seria o de discriminar; já o “dolo indireto” diz respeito a assumir o risco, mesmo
não objetivando determinado fim.
130

“verdade” da intenção, essa “verdade” não era independente das interpretações de


ambas nem da hierarquia da polícia.

4.2.4 Os Relatórios

Não tive acesso a nenhum “Relatório” dos casos que mencionei ao longo
desse trabalho. No caso dos inquéritos anteriores aos digitais, suas últimas peças
não haviam sido produzidas e, por outro lado, uma vez elaborados seus “Relatórios”,
eles eram despachados para o MPPR da própria sala da Delegada53. No caso dos
inquéritos digitais, eram enviados já pelo sistema e, sendo assim, não chegavam a
ter seus “Relatórios” impressos. “Por motivos de segurança”, Roberta não me
deixava ter acesso aos “Relatórios” dos casos recentes no Setor, sob a justificativa
de que a Delegada não permitia. Além disso, alegava não ter ela mesma acesso a
alguns deles. Depois de alguma insistência e meu repetido compromisso com o
sigilo das informações pessoais dos envolvidos, pude ter acesso a alguns
“Relatórios” dos quais ela dispunha, sob sua supervisão.
Os “Relatórios” eram peças fundamentais para entender melhor o modo
como a materialidade do crime era constituída ou não, porque encerravam os
inquéritos quando produziam um resumo das atividades investigativas registradas.
Roberta, contudo, desdenhava-os – dizia-me, também como um argumento para
não permitir meu acesso a eles, que eram meras formalidades das quais o seu
possível desdobramento em um processo penal prescindia. Eu queria e achava
importante ver aquilo que Roberta não queria ou achava desnecessário que eu
visse. Esse dilema indica que o trabalho antropológico em repartições públicas não
necessariamente deve seguir os fins burocráticos para compreender como suas
funções e atribuições são efetivadas. Além disso, está ligado aos limites e ao
segredo de certas práticas e documentos que são, ao menos em um primeiro
momento, negados ao pesquisador, de diferentes maneiras.
Tenho insistido ao longo desse trabalho que, de um ponto de vista
antropológico, a constituição dos crimes em contextos policiais dependia de
determinadas pessoas, papéis e instituições. Nesse sentido, as “Portarias” e os

53
Durante meu trabalho de campo, insisti inúmeras vezes, de diferentes formas, na possibilidade de
consultar inquéritos arquivados. Todas as vezes sem sucesso – ou a possibilidade estava sendo
avaliada pela Delegada, ou a reforma de uma área próxima ao arquivo impedia, ou não havia cópias
dos inquéritos no Setor.
131

“Relatórios” articulavam a responsabilidade de uma pessoa, em uma determinada


posição na hierarquia da corporação, a Delegada, no início e no final do registro da
investigação, o “Inquérito”. Consequentemente, a constituição dos crimes dependia
do trabalho envolvido não apenas na produção desse último compêndio, mas
também do empenho nas ações que tornavam possível a elaboração de
“Relatórios”: o recebimento das comunicações de crimes, as intimações, as oitivas,
os lembretes nas capas dos inquéritos, a elaboração de ofícios, termos e e-mails, as
discussões entre escrivã e Delegada e a escrita, enfim, do “Relatório”. Para encerrar
a procura pela intenção, registrava a “comprovação” ou não da autoria e da
materialidade do crime e o encaminhamento às autoridades competentes.
Tratarei do “Relatório” do inquérito de João, um caso no qual um homem
com mais de 60 anos procurou o Setor noticiando um crime de discriminação
motivado por sua idade. Um crime contra um idoso que teria acontecido em um
terminal de transporte público de Curitiba, quando um fiscal teria empurrado João,
que caiu e se machucou. O documento, assim como os outros “Relatórios”, fora
endereçado ao “Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da __ª Vara Criminal
de Curitiba”, sendo apresentado como “RELATÓRIO FINAL POLICIAL”. Ou seja, a
comprovação ou não da existência do crime assim o era na comunicação da Polícia,
assinada pela Delegada, com o Poder Judiciário. No limite, a própria existência do
crime era uma informação justificada no documento que encerrava o inquérito
Policial ao ser encaminhado para outra instância estatal.
Os “Relatórios” em geral eram curtos (e talvez ainda sejam, embora em
minha última ida ao Setor, no começo de 2020, antes da pandemia do novo
coronavírus, Roberta tenha me dito que havia um novo Delegado responsável
apenas pelo Setor). Não possuíam mais de quatro ou cinco páginas. O de João, por
exemplo, era composto por duas, organizadas em parágrafos não numerados e que
carregavam os símbolos da Polícia Civil e do estado do Paraná.
O “Relatório” fazia referência aos documentos presentes nos inquéritos. O
primeiro deles, responsável por ter instaurado o “Inquérito” foi a “Portaria”,
mencionada pelas folhas do inquérito às quais correspondia (“fls 01/03). O objetivo
era de apurar uma “prática de discriminação à condição de idoso e vias de fato em
relação ao idoso [nome completo do noticiante]” e uma “suposta conduta prevista no
132

art. 21 parágrafo único do Decreto Lei 3688/41 e do art. 96 da Lei 10741/03 54”. Em
seguida, mencionou a expedição de uma “Ordem de Serviço” com o seguinte
objetivo: “identificar imagens de câmeras de segurança interna do terminal de ônibus
[nome do terminal] desta capital, onde teriam ocorridos os fatos, assim como
identificar possíveis testemunhas em relação ao fato, conforme fls 07”.
Depois disso, pormenorizou a “Ordem de Serviço”, porque mencionou um
ofício, às “fls 08”, encaminhado à empresa que controla o sistema de transporte
público de Curitiba, a URBS – Urbanização de Curitiba para solicitar as imagens do
circuito interno do terminal. Em seguida, mencionou o relatório presente nas “fls
23/28” feito pelo “Setor de Inteligência” em que “examinou as imagens entregue
(sic), descrevendo e printando as telas para melhor verificação da dinâmica dos
fatos”. Depois disso, as pessoas ouvidas foram citadas: “ouviu-se nas fls 10/1155 a
vítima, o senhor [nome completo]”; “o segurança que interferiu dos (sic) fatos
apaziguando a situação desenvolvida pela vítima e pelo fiscal da URBS”, nas “fls
13/14”; e por fim, o “fiscal, em tese autor dos fatos”, nas “fls 16/21”. A informação
seguinte não mencionou nenhuma folha do “Inquérito”, mas o arrependimento da
vítima sobre o “registro de ocorrência” possível de ser visto em sua “declaração”.
Entretanto, isso não foi suficiente para interromper as investigações, pois
“conforme preceitua o Estatuto do Idoso e também a Lei das Contravenções Penais,
tais diplomas normativos são infrações de ação penal pública incondicionada, não
sendo possível a paralisação das investigações em face do arrependimento da
vítima na representação”. A nova versão contada durante sua declaração não foi
suficiente para interromper as investigações, mas foi uma informação privilegiada
para justificar a inexistência do dolo e do crime. O “Relatório” dizia que não havia
ocorrência de crime, “principalmente em face das contradições da vítima entre os
fatos narrados no boletim de ocorrência e em suas declarações, assim como pela
análise das imagens de segurança e ainda pelo relato da testemunha”. O documento
assinado pela Delegada representando a “Polícia Civil do Estado do Paraná”
finalizou o “Inquérito” com a seguinte frase: “dou por encerrado este Inquérito

54
Respectivamente, Lei das Contravenções Penais e Estatuto do Idoso.
55
Por mais que as pessoas ouvidas tenham sido gravadas, o “Relatório” não fez nenhuma menção a
isso e também não mencionou nenhum resumo do que foi dito. Nas “fls” citadas estão os registros do
acontecimento da gravação das oitivas, com exceção das folhas da parte autora, cuja oitiva não foi
gravada, devido a um contratempo na rotina da Divisão. O fiscal teve sua oitiva realizada em outra
dependência da DHPP e sua fala foi transcrita pela escrivã.
133

Policial”. Ademais, remetia-o “para a análise deste douto Magistrado e do digníssimo


representante do [Ministério Público]”.
O “Relatório” do caso de João informava, assim, em um documento
endereçado a um Juiz de Direito, que não havia a configuração de um crime.
Quando Latour (2019) trata das diferenças entre a produção dos fatos científicos e
jurídicos, uma das apontadas é relacionada aos destinatários a quem as produções
escritas de juízes e cientistas são direcionadas (p.250). De modo análogo, penso
que o destinatário dos “Relatórios” importa para a finalização do trabalho do
inquérito: enquanto uma atribuição oficial da Delegada, e também cotidianamente,
na medida em que Roberta mencionava vez ou outra o possível desdobramento de
seu trabalho no Poder Judiciário. De todo modo, o “Relatório” informou que não
havia o crime, cuja motivação seria uma intenção específica de discriminar, mas não
de qualquer maneira. Assim o fez na medida em que pôde contar uma história a
respeito da investigação passível de ser confirmada pelas folhas do inquérito,
relativa ao porquê de não existir o crime, embora confirmassem a procura pela
intenção.
Portaria, Ordem de Serviço, Ofício, prints de imagens, oitivas de vítima,
autor e testemunha e o registro do arrependimento da vítima foram articulados para
que “contradições da vítima entre os fatos narrados no boletim de ocorrência e em
suas declarações”, “análise das imagens de segurança” e o “relato da testemunha”
pudessem justificar a comunicação da inexistência do crime. Para que pudessem
comprovar, ao mesmo tempo, a existência de uma investigação e a inexistência de
um crime.

***

Chegamos, assim, ao fim do capítulo e da descrição do trabalho policial


envolvido nas investigações e registros do crime. Para encerrar, descrevi os
registros da investigação e o trabalho policial envolvido nesse empenho. Meu
objetivo principal foi abordar o final da constituição das investigações e dos crimes
na sua passagem pelo Setor. Ambientei a leitora e o leitor não apenas à diversidade
dos crimes que passavam por lá, mas também aos seus elementos cotidianos, como
enunciados, pastas e documentos. Por isso, comecei com os inquéritos e sua
novidade eletrônica, e segui com um caso, o de Ângela, para demonstrar como
134

naquelas pastas havia uma lógica que registrava a procura pela intenção e a
inexistência do crime, a partir do encadeamento das informações e da identificação
não apenas do investigado, mas também dos envolvidos na elaboração do inquérito.
Por fim, tratei dos momentos decisivos para encontrar a intenção criminosa – que
não foi vista em nenhum dos casos do Setor a que tive acesso. Conseguir é uma
questão de perspectiva, de posição, de técnica, estudo, experiência e engajamento.
No cotidiano do Setor de Vulneráveis, o “dolo específico” quase nunca era visto,
como eu mesmo presenciei, e como Roberta e a Delegada me disseram, era difícil
encontrá-lo, para lembrar da expressão da “doutora”. Em minhas últimas
considerações, voltarei meus esforços para refletir sobre essa dificuldade – ou sobre
as implicações e as condições de uma procura bastante particular do Setor, a
procura da intenção.
135

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As investigações de crimes das mais variadas tipificações penais estão


ligadas a diferentes modos e matérias da procura. Na constituição dos crimes no
Setor de Vulneráveis da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil
do Paraná não era diferente. Boa parte da especificidade do trabalho dessa unidade
especializada era procurar pela intenção específica de discriminar, o “dolo
específico”, sobretudo nos crimes de racismo e injúria racial. Essa não era a única
atividade de sua rotina burocrática, mas era bastante central. Até aí, nada de
surpreendente, se não fosse pela aridez dos resultados – apesar de apurada, ela
quase nunca era encontrada. Para fins de pesquisa, isso não era necessariamente
um problema, diferente do que expressavam os lamentos da Delegada e da escrivã,
por exemplo. Além, é claro, das importantes reflexões e denúncias dos movimentos
sociais contemporâneos sobre o tema – entre, por exemplo, o reconhecimento da
importância desses instrumentos penais no combate ao racismo, a avaliação da
eficácia das investigações e das sentenças, e a geração de indicadores para a
formulação de políticas públicas.
A etnografia que realizei, infelizmente, não tem condições de fornecer uma
solução para o problema, mas contribui para sua discussão. O problema de
pesquisa inicial relacionado à constituição dos crimes no Setor de Vulneráveis
conduziu o trabalho para a procura da intenção, que, por sua vez, desdobrou-se na
inexistência do indiciamento na maioria dos casos. Os argumentos centrais de cada
capítulo podem auxiliar na reflexão, na medida em que informam como e sob quais
condições determinadas condutas puderam se tornar uma atribuição da polícia civil,
um caso a ser investigado e uma forma de proferir uma verdade provisória sobre os
crimes – provisória porque o MP possui autonomia para oferecer a denúncia
independentemente do indiciamento
No primeiro capítulo, tratei do espaço, da legislação e, na falta de uma
palavra melhor, das representações vinculadas ao Setor de Vulneráveis. Para
escapar da ideia de diferentes expressões de um fenômeno único, abordei o tema
explorando as existências concomitantes dessa unidade. Assim, pude argumentar
em favor de existências de suas instalações físicas, legal (ligada às atribuições
criadas pelo decreto de sua inauguração, em especial, a Lei 7.716 e o parágrafo
terceiro do artigo 140 do Código Penal), e do seu cotidiano público (veiculado em
136

notícias e na participação do Setor em uma audiência pública) e dentro da instituição


(presente na relação da atribuição do Setor em comparação com as das Delegacias
de Homicídio). Se a existência dos “crimes contra vulneráveis” dependia da atuação
do próprio Setor, demonstrei como essa unidade se desdobrava em existências que
articulavam o trabalho da polícia e o estatuto da população por ela atendida.
Nessa reflexão, a importância do “dolo específico” para a tipificação dos
crimes apareceu como um atributo responsável para qualificar os crimes enquanto
tais, em especial, na descrição que fiz de um jurista importante para Roberta e para
a doutrina dos crimes de injúria e discriminação racial. Ou seja, a importância de
uma intenção específica de tratar preconceituosamente. A preocupação com a
existência do “dolo específico” esteve, também, expressamente anunciada no
Capítulo 3, intitulado “Os registros e decisões da inexistência do crime”. Nesse
ponto, explorei as práticas de documentação e interpretação voltadas para fazer
aparecer o trabalho investigativo e a inexistência do crime. Com esse intuito,
considerei importante descrever os modos pelos quais as queixas iniciais se
transformavam em enunciados e pastas, que informavam um modo de
conhecimento elucidativo da atuação investigativa da polícia civil: os inquéritos
policiais. Muito trabalho era feito para que eles existissem e registrassem tanto a
“verdade” do crime, quanto o trabalho cumprido de acordo com a atribuição do
ofício.
Investigação, inquérito e trabalho policial caminhavam juntos e, por isso,
dependiam um do outro desde a chegada das notícias-crime. Tratei dessa última
questão, da chegada de tais comunicações no Setor, no segundo capítulo, em que
abordei os primeiros passos da investigação. As notícias de fato e os boletins de
ocorrência que possuíram seus desdobramentos na instauração de inquéritos
encontravam nas oitivas um momento importantíssimo para comprovar a
materialidade do crime. Identificar e qualificar eram condições, e a desconfiança
modulava os enunciados do trabalho da escrivã na busca pela verdade e a justiça,
como ela me dizia. Os esforços estavam vinculados à possibilidade de encontrar a
intenção consciente e específica de discriminar, mais uma vez. Isso ficava evidente
nas oitivas, quando a pessoa investigada era diretamente indagada a respeito de
sua intenção: “você teve a intenção de discriminar ou menosprezar?”.
Assim, retorno à questão com a qual introduzi esse trabalho e que sintetiza
grande parte das investigações do Setor. O que, afinal, amparava essa indagação?
137

Como ela vinculava uma legislação ao trabalho policial? Qual efeito é possível
associar a essa conexão? Por que era razoável perguntar assim, de modo tão
direto?
Os principais crimes de atuação do Setor eram aqueles tipificados pelo
parágrafo terceiro do artigo 140, o de injúria racial; e pela Lei 7.716, o de racismo. O
primeiro considerado um crime contra a pessoa, especificamente, contra a honra
subjetiva da pessoa, e o segundo considerado um crime de segregação contra um
grupo de pessoas. Respectivamente, um crime de Ação Penal Pública condicionada
à representação da vítima e um de Ação Pública incondicionada, pois nesse último o
“Estado” figurava como vítima. De todo modo, eram assunto de importância no Setor
na medida em que deveriam ter a intenção específica de discriminar comprovada,
conforme uma determinada doutrina confirmada pela escrivã e pela Delegada. A
intenção específica do investigado era o elemento central mesmo nos casos em que
o bem jurídico a ser resguardado era a honra subjetiva e a tipificação dependesse,
em um primeiro momento, de comunicação do crime e do sentimento de ofensa da
vítima. Os crimes que chegavam ao Setor teriam seus investigados indiciados se
fosse comprovada a sua intenção específica em discriminar, a intenção específica
do ato discriminatório do sujeito. Ou seja, não importava o quanto a pessoa que
procurou o Setor se sentisse ofendida.
A importância da legislação para esse procedimento não estava presente
apenas na doutrina consultada por escrivã e Delegada, ela também aparecia nas
suposições das duas a respeito do desdobramento dos casos. Isso ficou evidente
logo no começo do meu trabalho de campo, quando ambas, em dois momentos
diferentes, chamaram minha atenção para o fato de que as investigações feitas no
Setor, na maioria das vezes, não conseguiam chegar até o Poder Judiciário – e,
quando chegavam, muito raramente terminavam na incriminação dos que um dia
foram indiciados pela Delegada. O modo como juízes e procuradores costumavam
encarar os casos não determinava a atuação naquela unidade, mas o modo como
os casos prosseguiam também não era ignorado. Havia uma consideração grande
pelo “quando chegar lá”, ou seja, pela possibilidade de o caso poder ir adiante – ter
condições de sair do MP como uma denúncia, ser aceita e julgada pelo Poder
Judiciário.
As técnicas de investigação e interpretação da existência do “dolo
específico” buscavam uma intenção possível de ser confirmada pelo Ministério
138

Público, que pudesse encontrar adesão no Poder Judiciário, e, por isso, amparada
por uma doutrina considerada amplamente aceita. Tendo isso em vista, a
consideração do decorrer das investigações permite ver que ela deixava para trás o
sentimento de ofensa da vítima e passava a voltar-se quase que exclusivamente
para a intenção do investigado, à procura de uma intenção também quase que
exclusiva. Ou melhor, unívoca e indubitável, conforme a pergunta feita nas oitivas
dos investigados. Para “chegar lá” com alguma possibilidade de prosseguir, a
intenção da pessoa investigada era privilegiada em detrimento da expectativa e do
dano à vítima.
Dizendo de outro modo, o “dolo específico” permitia a conexão do caso com
uma determinada doutrina e isso pesava na sua consideração em relação à
possibilidade ir adiante no processo penal. Consequentemente, o dano causado à
vítima ficava em segundo plano – não porque não importasse à escrivã e à
delegada, mas pela confluência entre o modo de tipificação legal dos crimes, sua
exegese pela doutrina, a definição de atribuições institucionais e as relações entre
diferentes instituições. Em decorrência disso, o foco da investigação priorizava não
mais a relação entre vítima e autor, responsável por transportar o caso para as
dependências do Setor, mas entre ato e sujeito. O trabalho investigativo buscava
fabricar ao mesmo tempo, essa passagem, a existência do dolo e da discriminação,
em conjunto com determinados procedimentos, legislação e doutrina. Ou seja, não
se tratava de uma questão individual.
Por outra entrada analítica, é possível descrever a intenção como fabricada
nesse movimento e isso ajuda a mais uma vez não reduzir a questão a escala
individual, porque indica uma maneira não essencializada de destacar a intenção
como uma composição específica, localizada e localizável.
O conselho que tanto ouvi de Roberta sobre considerar a outra parte poderia
ser interessante para pensar outras incursões etnográficas, pois permitiria voltar a
atenção para as relações concretas enunciadas pelos noticiantes. No contexto da
investigação, a exigência de eliminar qualquer heterogeneidade impossibilitava
reconhecer, em tais relações, a existência de algo que dificilmente alcança a
univocidade pressuposta pela lei, a doutrina e as instituições. Ou seja, ao ser
considerada em formato exclusivo, a intenção terminava alijada da possibilidade de
qualquer ambivalência. Dizendo de outro modo, a procura da intenção era uma
maneira de torná-la um ato unívoco.
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1o-semestre-em-plena-pandemia-assassinatos-de-policiais-tambem-sobem.ghtml.
Acesso em: 05 set. 2020.

YNGVESSON, Barbara; COUTIN, Susan. Schrodinger’s cat and the ethnography of


law. PoLAR, v. 31, n.1, p. 61-78, 2008.
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ANEXO 1 – ORGANOGRAMA DA DIVISÃO DE HOMICÍDIOS E PROTEÇÃO À


PESSOA

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