R - D - Eduardo Oliveira de Almeida
R - D - Eduardo Oliveira de Almeida
R - D - Eduardo Oliveira de Almeida
CURITIBA
2020
EDUARDO OLIVEIRA DE ALMEIDA
CURITIBA
2020
para Angelita, minha mãe
AGRADECIMENTOS
A pesquisa que apresentarei nas próximas páginas não teria acontecido sem
o apoio e financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES). Deixo meus sinceros agradecimentos à instituição.
Estive acompanhado por pessoas incríveis durante o período do mestrado e
da escrita da dissertação. Pessoas de quem recebi grande apoio.
Agradeço às professoras, professores e à secretaria do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Paraná pelo
empenho incansável em nossa formação de excelência.
Em especial, gostaria de dizer muito obrigado à minha orientadora, Ciméa
Barbato Bevilaqua, pela atenção, rigor e generosidade de suas leituras e conselhos.
Agradeço também a Flávia Medeiros, Juliane Bazzo e João Rickli por terem
aceitado o convite para a banca de defesa e, no caso de Juliane e João, estendo
meus agradecimentos pelas valiosas contribuições no exame de qualificação.
Às professoras e professores do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Estadual de Maringá, com quem aprendi tanto, gostaria de agradecer
pela formação, de modo geral. Em especial, à Eliane Sebeika, Eide Sandra Azevedo
Abreu e Thomás Meira.
Colegas e docentes do Núcleo de Pesquisa de Antropologia da Política, do
Estado e das Relações de Mercado (NAPER), muito obrigado pelos debates que em
muito influenciaram a escrita da dissertação.
Agradeço também ao pessoal da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa
da Polícia Civil do Paraná pela recepção sempre gentil durante meu trabalho de
campo.
Agradeço à escrivã do Setor de Vulneráveis, a quem chamo de Roberta
nesse trabalho, pela disponibilidade de explicar exaustivamente os procedimentos
investigativos de sua atribuição.
Para minha grande amiga Luara, agradeço o carinho, dedicação e
companheirismo. Talvez eu tenha tido sorte de te encontrar – mas se um dia ela
faltar, eu poderia costurar à mão, com uma agulha torta e pouca linha, os botão que
juntam a gente nessa vida.
Aline e Luana, obrigado pela parceria incansável, em especial quando mais
precisei. A vida nas terras frias da capital teria sido insuportável sem vocês e sem o
fumaceiro no meio das nossas risadas.
Alicinha, Ana Laura, André, Beatriz Protázio, Beatriz Rangel, Clara, Gian,
Laís, Lorena, Norma e Pedro – estou muito feliz por poder contar com amizade de
vocês. Agradeço pelos abraços, os cafés e as conversas – hiper ou anti materiais.
Agradeço também ao apoio do meu pai José Carlos, minha tia Vera Lúcia,
minha prima Aline e meu primo João Luís.
Álvaro, no meio de tudo, descobri com você como é bom confiar no carinho
de quem se ama. Obrigado pela alegria e intensidade que tem sido a tua companhia;
por ser, na boca da noite, o gosto de sol.
Para terminar, agradeço em memória de minha mãe Angelita, a pessoa com
quem eu mais gostaria de compartilhar o fim desse processo. A minha grande
saudade. Ao longo de toda minha vida, minha mãe foi a pessoa que mais me apoiou
e me deu suporte. Imaginei-me muitas vezes comemorando tudo isso com ela –
éramos imbatíveis juntos. De todo modo, minha mãe, meu maior agradecimento é
seu.
Para trabalhar direito, não temos necessidade de uma totalidade.
(Donna Haraway, em O manifesto ciborgue, 2000 [1985], p. 91)
RESUMO
This master thesis aims to describe how crimes against vulnerable people
are investigated by the Setor de Vulneráveis, a specialized law enforcement unit in
Curitiba that investigates willful crimes motivated by discrimination or prejudice of
color, race or ethnicity, religion, national origin, age, gender identity, sexual
orientation, disability or homelessness. The results were reached through
ethnographic research, which took place in the Setor de Vulneráveis’s facilities
between March and October 2019. The issue was approached from the perspective
of how cases came to be constituted an attribution of the police, that is, how they
were reported, investigated and concluded by the unit’s investigative work. The
existence of a specialized unit for dealing with such crimes, the legislation that
typifies them and the police work done to ascertain them are also brought into focus
as a means to understand the constitution of the crimes investigated by the unit.
Such crimes also depended on proof of dolo específico, a specific intent regarding an
exclusive and willful motivation to discriminate. Therefore, the search for an
unambiguous intention from the defendants’ part appears as a central element to
discuss the procedures through which crimes against vulnerable people are
constituted within the police unit in charge of them.
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 16
1.1 “...SÓ VENDO OS B.O.?” .................................................................................... 21
1.2 ORGANIZAÇÃO DOS CAPÍTULOS .................................................................... 26
2 AS EXISTÊNCIAS DO SETOR DE VULNERÁVEIS ............................................. 28
2.1 O ESPAÇO E O ENDEREÇO DO SETOR.......................................................... 29
2.2 O DECRETO 5.241 DE 4 DE OUTUBRO DE 2016 ............................................ 32
2.2.1 O Decreto do Setor .......................................................................................... 33
2.2.2 O Setor do Decreto .......................................................................................... 37
2.3 O SETOR DENTRO E FORA DA DIVISÃO ........................................................ 47
2.3.1 O Setor da publicização ................................................................................... 48
2.3.2 O Setor de dentro da Divisão ........................................................................... 51
3 AS COMUNICAÇÕES DO CRIME E O COMEÇO DA INVESTIGAÇÃO .............. 60
3.1 A CHEGADA DAS NOTÍCIAS-CRIME NO SETOR ............................................. 60
3.1.1 Identificando vítimas, desconhecendo autores ................................................. 62
3.1.2 O entusiasmo da investigação ......................................................................... 66
3.1.3 O tempo da conduta criminosa ......................................................................... 69
3.2 AS OITIVAS DO SETOR: HISTÓRIAS DE VÍTIMAS, AUTORES E
TESTEMUNHAS ....................................................................................................... 71
3.2.1 A chegada no Setor: identificar e intimar .......................................................... 73
3.2.2 Em busca de uma lógica do caso: qualificar e ouvir ......................................... 77
3.2.3 Autores e vítimas contra a retórica investigativa .............................................. 84
3.3 LIÇÕES SOBRE O TRABALHO INVESTIGATIVO ............................................. 87
3.3.1 Vítimas e autores “nem sempre são o que parecem ser” ................................. 90
3.3.2 Em busca da “verdade” e da “justiça” ............................................................... 94
4 OS REGISTROS E DECISÕES DA INEXISTÊNCIA DO CRIME .......................... 99
4.1 OS INQUÉRITOS POLICIAIS ............................................................................. 99
4.1.1 A digitalização dos inquéritos ......................................................................... 102
4.1.2 O inquérito de Ângela ..................................................................................... 109
4.2 A EXISTÊNCIA DO “DOLO” .............................................................................. 120
4.2.1 Se não dá pra ver, como é possível discriminar? ........................................... 123
4.2.2 Encontrando a pureza da intenção ................................................................. 125
4.2.3 A existência do dolo não é sempre consensual ............................................. 127
4.2.4 Os Relatórios .................................................................................................. 130
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 135
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 139
ANEXO 1 – ORGANOGRAMA DA DIVISÃO DE HOMICÍDIOS E PROTEÇÃO À
PESSOA ................................................................................................................. 148
16
1 INTRODUÇÃO
1
Os nomes mencionados durante essa dissertação são pseudônimos, com o objetivo de resguardar
as identidades das pessoas, conforme as exigências feitas por Roberta e pela Delegada da Divisão.
Com exceção dos Deputados e da coordenadora da Divisão de Políticas para Pessoas LGBT da
Secretaria da Justiça, Família e Trabalho, citados pelos seus nomes verdadeiros no Capítulo 1.
17
uma loja de departamentos, onde o crime teria acontecido. Alguns dias antes, Joana
havia sido ouvida e contou que enquanto escolhia algumas maquiagens, duas
mulheres e um homem se referiram ao cabelo de pessoas negras como “ruim” e
quando a viram debocharam de seus cachos. Então, procurou o Setor para fazer um
Boletim de Ocorrência a respeito do acontecido.
Era uma das primeiras oitivas que eu acompanhava e estava muito
interessado no modo pelo qual a escrivã investigava e concluía se havia o crime.
Roberta logo me disse que o mais importante nos casos do Setor era descobrir a
intenção da pessoa investigada, a intenção específica de discriminar, o “dolo
específico”. As pessoas intimadas chegaram, mas ainda faltava a “doutora” – assim
que chegou, a primeira oitiva começou. A Delegada e a escrivã, uma do lado da
outra, de frente para a pessoa investigada, se revezaram nas perguntas, não sem
antes retomar a portaria impressa que instaurava o inquérito e estava sobre a mesa
da escrivã. Não sem antes advertir a pessoa ouvida de que se tratava de uma
gravação e, por isso, era preciso falar em alto e bom som. Queriam saber o que ela
se lembrava da situação, qual a versão dela para a história, se havia mesmo dito o
relatado por Joana e qual o contexto do acontecimento.
Depois de termos ouvido que ela não havia rido do cabelo da noticiante,
Roberta tomou a palavra. De modo bastante enfático, direcionando a oitiva para o
fim, perguntou: “você teve a intenção de discriminar ou menosprezar a cliente da loja
por conta de sua cor?”.
***
caso que, mesmo investigado, não teve desfecho de acordo com a expectativa da
vítima. Por outro lado, como se tratou de um dos poucos casos de discriminação
racial que acompanhei no Setor, pode ser visto também quase como uma exceção
dentre os casos investigados em tal unidade.
Esse último ponto pode ser, ainda, vinculado à certa descaracterização
desses dispositivos penais, que surgiram como frutos das articulações e denúncias
dos movimentos sociais negros sobre o racismo contra pessoas negras e a
consequente desigualdade racial brasileira, mas que têm perdido sua especificidade.
Tratarei de todas essas questões mais detidamente ao longo da dissertação.
O objetivo que presidia minha inserção e interesse no órgão policial era o
modo pelo qual os crimes contra vulneráveis eram constituídos, do que dependiam
para existir enquanto tais. A ideia de crimes contra vulneráveis vinha do próprio
nome do Setor – de Vulneráveis –, cuja atribuição é investigar crimes de
discriminação e preconceito motivados por cor, raça ou etnia, religião, procedência
nacional, idade (idosos, especificamente), identidade de gênero, orientação sexual,
pela deficiência física e situação de rua.
Estava eu diante de uma unidade especializada da Polícia Civil do Paraná,
com o objetivo de realizar uma etnografia a respeito de sua atuação. Mas, afinal, a
que diz respeito uma unidade especializada?
Uma situação que vivi em campo ajuda a explorar essa questão. Fazia
quase dois meses que eu havia começado a pesquisa no Setor e, mais uma vez, ao
chegar nas suas dependências passei pelo plantão. Em geral, o plantão possuía
alguns investigadores que recebiam as pessoas e registravam os Boletins de
Ocorrência relativos às delegacias de homicídio, que compunham a mesma Divisão
à qual o Setor estava ligado e ficavam no segundo pavimento do prédio. Nesse dia,
não perguntei por Roberta assim que entrei no plantão, porque vi uma mulher
acompanhada por uma criança, que tive a impressão de serem mãe e filha. Essa
mulher, cujo nome não consegui ouvir, reclamava que suas malas haviam sido
extraviadas, a uma quadra da DHPP, na rodoviária, e tentava registrar um boletim
de ocorrência. Tentava sem o menor sucesso, porque o policial dizia não poder fazer
nada por ela, pois ela deveria ir à delegacia especializada que tratava, justamente,
de extravios, indicando, inclusive (sem muita precisão) o endereço. Perguntado por
ela o motivo pelo qual não podia fazer ali mesmo, alegando se tratar do mesmo
sistema, o investigador reforçou o caráter especializado das delegacias e, sendo
19
assim, o motivo pelo qual procurava ser atendida não correspondia àquele. Depois
de insistir um pouco, a mulher, cabisbaixa, saiu puxando a criança pelo braço sem
seu Boletim de Ocorrência.
As especializadas, em geral, aparecem voltadas para um público e/ou a um
crime específico, como as Delegacias da Mulher e de Homicídio. Entretanto, é
possível pensá-las também por aquilo que se negam a atender, ou seja, como
aquelas que deixam de registrar a notícia de um crime. E isso, pelo menos a
princípio, não está ligado a negligência da investigação, mas à atribuição
institucional de o atendimento e a investigação se passarem em outro espaço,
encabeçados por outras pessoas, ainda que tudo seja “parte de um mesmo
sistema”. Contudo, se na prática as especializadas podem ser definidas por um
público, um tipo de crime e também por aquilo que deixam de investigar, as próprias
competências que as diferenciam umas das outras são, às vezes, matéria de conflito
e envolvem diferentes elementos – farei um comentário mais detalhado a respeito
disso no segundo capítulo.
Estava eu diante de uma unidade especializada da Polícia Civil paranaense
voltada para crimes de preconceito ou discriminação, com o objetivo de realizar uma
etnografia.
O tema não é novo na produção antropológica e abrange diferentes
abordagens e perspectivas. No Brasil, por exemplo, os primeiros estudos das
práticas de policiais civis (KANT DE LIMA, 1989) e militares (MUNIZ, 1999) do Rio
de Janeiro as trataram como representativas de uma “cultura policial”.
Na primeira década dos anos 2000, surgiram alguns trabalhos a respeito das
Delegacias da Mulher (DM), a partir de um enfoque parecido (SANTOS, 2001;
RIFIOTIS, 2004), ao encontrar na cultura – policial ou da sociedade – a justificativa
para as práticas de tais agentes da segurança pública e também de quem procurava
pelas Delegacias. Frutos de reivindicações dos movimentos sociais feministas, as
DMs foram criadas em meados dos anos 1980 e atraiu a atenção de
pesquisadoras/es preocupados com a efetivação de direitos recém conquistados.
Alguns dos enfoques, por exemplo, foi o entendimento dos policiais sobre os casos
dessas Delegacias como não sendo assunto de polícia, mas de âmbito privado, e
também, o modo pelo qual acabaram não correspondendo às expectativas dos
movimentos organizados que a reivindicaram, por não produzirem muitos
indiciamentos. Etnografias nas DMs foram e continuam a ser um objeto privilegiado
20
2
“B.O.” aqui não tem a ver apenas com os boletins de ocorrência, mas com os crimes propriamente.
22
de intolerância religiosa que permitia esse vínculo? Ou seria um vínculo feito a partir
de alguma ideia de diferença?
Não me parecia estar em questão a constituição de novos sujeitos de direito,
de que, por exemplo, fala Schuch (2005) a respeito da promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA). Diferente também de um núcleo voltado para
crimes virtuais, não estava em questão um novo ambiente onde crimes conhecidos
poderiam ser efetuados. Embora a questão principal do trabalho tenha sido
deslocada para a maneira pela qual o crime e a investigação se constituíram, a
diversidade de experiências alocadas como um mesmo problema de polícia me
intrigava muito. Além disso, por ser um homem gay, possuía especial interesse nas
investigações do Setor em relação aos casos de discriminação contra pessoas
LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) – embora essa nomenclatura
esteja defasada, ela era que aparecia no Setor, por isso, mantenho dessa forma.
O que tenho pensado como a aparência da minha sexualidade também
ajudou para entrar em campo. Nunca fui muito questionado no plantão da Divisão e,
de prontidão, era encaminhado para sala do Setor – ou como no exemplo com o
qual abro essa introdução, em que fui confundido com uma vítima. Além disso,
Roberta demorou alguns meses para entender que meu interesse de pesquisa não
era apenas aos casos relacionados a LGBTfobia. Penso que havia (e ainda há) algo
no meu corte de cabelo, na minha fala, nas minhas roupas e nos meus gestos que
permitiam ao pessoal da DHPP me diferenciar como sendo assunto do Setor e como
o Setor sendo assunto meu. Se eu estava mesmo “só vendo os B.O.”, como sugeriu
Vanderlei, foi porque em alguma medida foi possível ver em mim, no meu corpo,
algo que me permitia estar lá sem muitos infortúnios.
Durante o tempo em que acompanhei as atividades do Setor, fui
semanalmente, de uma a cinco vezes, entre segunda e sexta-feira. Tudo era
combinado e recombinado semanalmente, para não sobrecarregar as atividades
desempenhadas naquela unidade. Passava manhãs e/ou tardes sentado em uma
mesa próxima a da escrivã, transcrevendo à mão os inquéritos policiais e
acompanhando as oitivas. A frequência dependia da disponibilidade de Roberta em
poder me acompanhar, pois como abordarei no primeiro capítulo e mencionei no
começo da introdução, quando a escrivã do Setor não estava em suas
dependências, a unidade não funcionava.
24
do caderno de campo, e das reflexões às quais tive acesso durante todo o processo
de escrita.
Se as análises de campo não são lineares, tampouco foram as leituras às
quais me dediquei. Digo isso, porque as ideias relativas a abrir espaço para as
complexidades não se originam com Candea, mas nada impede que a discussão
seja acessada por ele. O único prejuízo seria o de não confirmar uma linearidade
nas revisões teóricas, linearidade que já é bastante confrontada nas considerações
a respeito do trabalho de campo. Tal prejuízo, entretanto, está longe de ser uma
grande perda.
Dessa forma, mencionar estratégias para fazer as complexidades
aparecerem não remete a um grande pressuposto anterior a qualquer incursão em
campo, tampouco a uma revisão bibliográfica sistemática. Não se trata também de
ficção versus realidade, mas de diferentes maneiras de elaborar articulações que
possibilitam descrever temporalidades e retóricas não lineares. A potência do
exercício não reside em uma pretensa maior aproximação ao que seria a realidade,
mas em um projeto de multiplicação das modalidades de registros acadêmicos com
vistas a proliferar a renovação dos debates, das reflexões e as controvérsias
envolvendo os objetos de estudo.
Tendo isso em vista e o objetivo de descrever a constituição dos crimes do
Setor de Vulneráveis, a partir dos esforços investigativos da polícia, abordarei “os
B.O.” que vi em diálogo com a antropologia do direito e do estado. Estudos voltados
para investigar as instituições centrais do nosso mundo (BEVILAQUA; LEINER,
2000), descrevendo – e desnaturalizando – os elementos que constituem seus
modos de conhecimento (LATOUR, 2012; STRATHERN, 2014 [1987]). A principal
estratégia é não pressupor nas análises uma anterioridade legal e estatal às práticas
que efetivam suas existências, como se os casos e a atuação das pessoas
vinculadas ao Setor fossem uma aplicação automática de normas, leis e estatutos.
Ou, dizendo de outra forma, que não fossem vistos de partida como exemplos de
alguma entidade anterior e maior (MOL; LAW, 2002). Essa abordagem permitiu
deixar aberta a possibilidade de, inclusive, descrever o Estado como um ente
abstrato, quando foi assim referido – levando em consideração críticas importantes
sobre a abordagem holística do Estado (TAUSSIG, 1993; MITCHEL, 2006), mas
buscando diferenciar reificações antropológicas e nativas
26
3
Não quaisquer boletins, evidentemente. Como mencionei na introdução, as delegacias
especializadas atendem a alguns tipos de crimes.
31
Para chegar à sala do Setor era preciso passar por aquela porta e depois de
alguns passos corredor a dentro, ela estava à direita. Dessa forma, o Setor ficava
bem atrás do plantão, o que muitas vezes servia para orientar as pessoas intimadas:
“você chega aqui [na DHPP] e procura por Roberta, uma sala que fica bem atrás do
plantão”. O Setor que era fisicamente encontrado em uma sala e, como descreverei
mais adiante, em uma pessoa.
Apesar de funcionar nessa localização, o endereço que constava nos
Boletins de Ocorrência era outro: “Rua Desembargador Ermelino de Leão, 513, São
Francisco, Curitiba”. Um dia, ao entregar um boletim de ocorrência para uma vítima
de um crime de injúria racial, Roberta explicou para o noticiante daquele crime e seu
advogado, depois que o segundo indagou-a a respeito do assunto, que o endereço
descrito no Boletim de Ocorrência era o da Delegacia de Proteção à Pessoa. Em
suas palavras, era esse o órgão ao qual o Setor pertencia. E completou do seguinte
modo: “mas, eu sou desmembrada de lá”. O principal motivo pelo qual o Setor e ao
mesmo tempo ela eram desmembrados da Delegacia de Proteção à Pessoa (DPP)
era bastante significativo para a população atendida naquelas dependências: as
escadas. O prédio da Delegacia de Proteção à Pessoa possuía inúmeras escadas, o
que poderia ser um empecilho para idosos e deficientes físicos noticiarem os crimes
contra eles. O Setor ficava, justamente, no térreo.
Nesses termos, havia uma primeira associação relativa à especificidade de
uma população: a suposição de que determinadas pessoas, para quem a atuação
especializada daquela unidade policial estaria voltada, não conseguiriam alcançar
fisicamente o lugar para registrar seus Boletins de Ocorrência. O Setor existia
naquele espaço para driblar condições do espaço físico que pudessem impedir o
acesso de parte da população de sua especificidade, e ao fazer isso, evitar falhar no
atendimento desse público – e, quem sabe, evitar se tornar, ele mesmo, vulnerável
por conta dessa possível falha de suas atribuições. Em síntese, o endereço daquela
unidade guardava em seu interior um espaço físico que fora arranjado para tornar
um trabalho de investigação especializado acessível ao seu público específico. Uma
existência do Setor voltada para vulneráveis.
No limite, tratava-se de um espaço físico que articulou uma atribuição da
unidade policial em questão, atender uma determinada população. A partir do
desmembramento em relação à Delegacia de Proteção à Pessoa, seu
funcionamento no térreo da DHPP contribuiu para realizar a existência do Setor
32
naquele espaço. Entretanto, tornar acessíveis suas incumbências não era sua única
atribuição. Havia outras delas, cuja especificidade tratarei como uma outra maneira
de encontrar a efetivação da existência dessa unidade policial; a seguir, uma delas:
o “Decreto do Setor”.
4
As primeiras notícias que circularam na imprensa sobre a criação do Setor de Vulneráveis são do
final de 2016 e mencionam o então Delegado da DHPP e, também, seu superintendente, além de
alguns membros da OAB/PR. Fazia parte do projeto de pesquisa conversar com algumas dessas
pessoas para dispor de narrativas a respeito da história do Decreto e da criação do Setor. Entretanto,
devido a algumas adversidades, entre elas a pandemia do novo coronavírus, não pude concluir essa
parte da minha investigação.
35
5
Sobre os crimes de intolerância registrados nessa unidade, ver Bokany (2013).
36
6
No debate político atual dos movimentos sociais, essa sigla tem caído em desuso e em seu lugar
uma mais abrangente tem aparecido: LGBTTQIAP+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros,
Transexuais, Travestis, Queers, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais e outras modalidades de
identidade de gênero e orientações sexuais).
37
Meu ponto de partida foi uma sala ocupada por uma escrivã cheia de
atribuições, recebendo ligações, vítimas e um antropólogo inconveniente: a sala de
um Setor da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil do Paraná.
A partir dela, tive acesso à história da criação dessa unidade policial ligada a um
documento – o Decreto em questão aqui. Isso me permitiu ouvir e falar em um
“Decreto do Setor”, que apesar de não ter mencionado o “Setor de Vulneráveis”
nesses termos, foi mobilizado para sua criação. Consequentemente, me fez olhar
para as novas atribuições de seu texto como tendo sido atribuições de tal unidade
policial. Ou seja, o movimento de mobilizar o Decreto 5.241 em função do Setor se
reverteu no próprio documento e o transformou no Decreto do Setor. Para melhor
compreendê-lo e explorar um outro aspecto da existência legal e institucional do
Setor de Vulneráveis, descreverei o que diz o texto dos dispositivos penais
presentes no Decreto em conjunto com as considerações do doutrinador Guilherme
de Souza Nucci.
Nucci era reconhecido por Roberta como um especialista dos crimes de
atuação da unidade policial em questão. Uma das suas justificativas era a de que
sua doutrina teria transformado o entendimento dos crimes de injúria racial, pois
teriam passado a ser considerados também como crimes de racismo e, por isso,
imprescritíveis e inafiançáveis7. Entendo os manuais de direito como uma prática,
7
Acusado por declarações públicas racistas em relação ao jornalista Heraldo Pereira, feitas em 2009,
o também jornalista Paulo Henrique Amorim foi condenado na ocasião, mas a câmara Criminal do
Tribunal de Justiça do Distrito Federal considerou o crime prescrito. O recurso julgado, em 2015, pela
6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça foi um caso de grande repercussão nacional e pode ser
usado como exemplo para essa indistinção, porque reconsiderou a imprescritibilidade. A decisão do
relator foi acompanhada por todos os outros ministros da Turma e dizia o seguinte: “De acordo com o
magistério de Guilherme de Souza Nucci, com o advento da Lei 9.459/97, introduzindo a denominada
injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e
sujeito à pena de reclusão”.
38
entre tantas, que possibilita a lei vir a ser alguma coisa. Nas obras que me informam,
especificamente, alguma coisa a ser ensinada. Os manuais servem, por exemplo,
para a formação e como argumento para diferentes profissionais no universo
jurídico: advogados, promotores, juízes, delegados e também escrivães como a
Roberta. Tendo em vista esses reconhecimentos, tratarei do texto do doutrinador
como uma espécie de informante privilegiado, cujas lições me ajudarão a entender
as leis 7.716 e o parágrafo terceiro do artigo 140 – e consequentemente, outro
aspecto de sua existência legal e institucional.
8
Para um apanhado histórico dessas leis, ver Machado, Santos e Ferreira (2015) e Rodrigues (2018).
39
9
Machado, Lima e Neris (2016) afirmam que as articulações e vínculos do movimento negro
organizado influenciaram na atuação do Deputado Federal Paulo Paim (PT), quando propôs o projeto
de lei 1.240/1995, responsável pela inclusão da injúria racial no Código Penal. Nesse mesmo
trabalho, as autoras mencionam sentenças de absolvição de injúria racial em que a justificativa foi a
existência de um contexto de provocação da ofensa.
10
Os crimes de menor potencial ofensivo, depois de concluídos seus respectivos Termos, são
encaminhados para o Juizado Especial Criminal, onde são julgados, executados e conciliados. Para
uma análise antropológica desses juizados, ver Fullin (2011).
11
A lei é conhecida por Lei Caó, apelido de Carlos Alberto Oliveira, então deputado federal pelo Partido
Democrática Trabalhista – PDT e autor do projeto que resultou na promulgação da lei. Foi fruto de um
trabalho dos agentes ligados a sua institucionalização e também de movimentos sociais engajados
nas lutas contra a discriminação e o preconceito racial. Considerada um grande marco na história de
tais lutas, a lei é comemorada por ter tornado o racismo crime imprescritível e inafiançável
(MACHADO; SANTOS; FERREIRA, 2015).
40
12
O parágrafo quarto do artigo quinto do Código de Processo Penal (1941) ajuda a entender a
diferença: “o inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá
sem ela ser iniciado”.
13
No cotidiano do Setor, quando a notícia do crime chegava por meio de Boletim de Ocorrência,
mesmo se tratando de um caso de Ação Penal Pública Condicionada, quase sempre a investigação
prosseguia, porque a vítima, em geral, não desistia de sua representação. Contudo, quando a
comunicação do crime era feita por Notícia de Fato, uma requisição de investigação proveniente do
Ministério Público, se a vítima não fosse encontrada ou se negasse a ir até ao Setor – e para vítimas,
lembrava-me Roberta, não há a possibilidade de condução coercitiva – o inquérito não prosseguia.
14
O inciso citado diz o seguinte: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”
(BRASIL, 1988).
42
medeia um senso moral e afetivo de uma pessoa sobre si, pois a subjetividade da
honra é sustentada por um apreço feito da pessoa para ela mesma, segundo Nucci
(p. 300-301).
A qualificação da injúria como racial, a partir dos termos desse mesmo autor,
sublinha uma nova maneira de conceber a ofensa à honra e, consequentemente, a
um direito:
iniciado. Uma das principais atribuições do Setor, então, seria investigar um crime
contra honra subjetiva passível de Ação Penal Pública Condicionada.
O outro dispositivo penal de atribuição do Setor de Vulneráveis, o texto da
Lei 7.716, foi explicado a partir de outros elementos, consonante ao tipo de Ação
Penal do crime que tipifica. O crime de racismo aparece genericamente na doutrina
como o de segregação de um determinado grupo de pessoas. Nucci (2008)
menciona o caso do editor Siegfried Ellwanger15, condenado em última instância por
crime de racismo por ter praticado ações antissemitas, para conceituar o termo
“raça”, fundamental no enquadramento desse caso à Lei 7.716. Nucci acompanha
as conclusões do Supremo e afirma que não há raças em termos biológicos, mas
apenas agrupamentos frutos de processos políticos e sociais. Esse tipo de
entendimento é acompanhado pelo apagamento da especificidade do racismo contra
pessoas negras, pois, segundo Nucci, “[c]ondicionar a discriminação como crime
imprescritível apenas aos negros e não aos judeus é aceitar como desiguais aqueles
que na essência são iguais perante tal garantia” (acórdão do julgamento apud
NUCCI, 2008). Delimitar o crime de racismo às pessoas negras aparece, assim,
quase como um privilégio indevido, pois a garantia da criminalização da segregação
deveria ser estendida a todos os grupos discriminados em algum momento.
A argumentação do autor referente à Lei 7.716 reforça ainda que o racismo
seria um “pensamento” voltado para a divisão dentre seres humanos e confirma a
possibilidade dessa divisão ser tanto de alguém da “maioria” para “minoria”, quanto
para o contrário. A centralidade da questão para a tipificação do crime envolveria
uma “mentalidade segregacionista” ligada a qualquer grupo, possível de estar
presente em qualquer pessoa. Isso daria margem para a justificativa legal da
existência de acusações de racismo contra pessoas brancas, por exemplo. Dessa
forma, uma conquista do ativismo negro voltada para pessoas negras vai sendo
descaracterizado enquanto um instrumento na luta contra o racismo.
Embora a doutrina de Nucci tenha sido mencionada no caso de Paulo
Henrique Amorim (cf. nota 5) e o autor tenha sido a recomendação de Roberta, a
15
Em 2003, o Supremo Tribunal Federal brasileiro manteve a condenação do editor Siegfried Ellwanger
acusado de racismo contra judeus, ao negá-lo um habeas corpus. O julgamento foi de grande
expressão e firmou o entendimento do crime de racismo introduzido pela alteração efetuada em 1997
na Lei 7.716. A lei promulgada em 1989 definia os crimes de racismo como resultantes de preconceito
de raça ou cor. A alteração de 1997 tornou-a mais abrangente e menos específica, ao incluir
preconceito de etnia, religião e procedência nacional. A partir disso, o doutrinador pôde tomar um
caso de antissemitismo para a exegese do termo “raça” e do crime de racismo.
44
16
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa.
45
deliberada para configurar crime17. Digo isso porque a caracterização do tipo penal
do parágrafo terceiro do artigo 140 e da Lei 7.716 dependem da comprovação de
uma intenção específica de discriminar. Em relação ao primeiro, a Secretaria de
Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicou na edição 130 de
Jurisprudência em Teses, em 2019, com o tema Crimes contra a Honra: “Para a
configuração dos crimes contra a honra, exige-se a demonstração mínima do intento
positivo e deliberado de ofender a honra alheia (dolo específico), o denominado
animus caluniandi, diffamandi vel injuriandi”. Assim como nos crimes contra a honra,
os crimes tipificados pela Lei 7.716 precisam da comprovação do elemento subjetivo
específico para serem caracterizados, argumenta Nucci (2008). Tal elemento
consistiria “na vontade de discriminar, segregar, mostrar-se superior a outro ser
humano (…). Afasta-se o delito se houver outro ânimo, como, por exemplo, o de
brincar (animus jocandi), fazer uma descrição ou uma crítica artística, entre outros
fatores” (p. 275).
Se as práticas racistas não dependem da intenção subjetiva para existir, o
que a exigência de comprovação da intenção para tipificar esses crimes implica?
Diante da impossibilidade de se alcançar a intenção íntima de alguém, “o direito
penal normalmente atua imputando um certo tipo de intenção” (MACHADO, LIMA,
NERIS, 2016, p. 20). As autoras, a partir da análise de sentenças de crimes de
injúria racial e de racismo, criticam a inexistência de uma justificativa para muitos
juízes não vislumbrarem o intuito racista. Na mesma direção, o trabalho de Moreira
(2019) recupera algumas sentenças de crime de injúria racial e mostra como elas,
na maioria das vezes, absolvem as pessoas denunciadas, porque suas ações são
vistas como brincadeiras cotidianas sem potencial de dano moral, porque feitas com
intenção consciente de “descontração”.
Por isso, para a efetivação da proteção do direito a honra, o autor afirma que
a “injúria racial não deve ser analisada apenas a partir da motivação do acusado,
mas também a partir do dano causado à vítima” (p. 91) e, talvez, essa também seja
uma possibilidade para os crimes previstos pela Lei 7.716. Por outro lado, a própria
17
Um dos desdobramentos dessa diferença é o que os trabalhos de Santos (2015), Machado, Lima e
Neris (2016), Matos (2016) e Moreira (2019) mencionam quando falam da ineficiência do Sistema
Judiciário brasileiro para condenar casos de racismo e injúria racial enquanto tais. Em todos eles, o
principal motivo apresentado é a ilusão de que no Brasil as relações raciais seriam marcadas pela
harmonia. Isso aponta para uma diferença: a “importância do insulto racial na construção do que
define o racismo para suas vítimas” – e também para as teorias das Ciências Humanas – “o que
não encontra eco no modelo jurídico” (MACHADO, LIMA, NERIS, 2016, p.16).
47
foi publicizada, associada a uma pessoa e comparada à Divisão dentro da qual suas
atividades cotidianas funcionavam. Abordarei como mais uma vez a especificidade
do trabalho policial esteve ligada a uma população específica e promoveu
determinadas atuações do Setor.
Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP). Fui até o local no dia 21 de maio de 2019
e cheguei antes do horário previsto. Quando entrei no local indicado, deparei-me
com dois blocos de cadeiras, separados horizontalmente, dispostos em numerosas
fileiras. Assim que entrei no espaço, vi uma tela à direita de uma mesa larga,
posteriormente composta pelas pessoas responsáveis pelas exposições naquele
dia. Na tela, possível de ser vista de qualquer lugar do auditório, estava escrito em
letras grandes: “Dia Internacional do enfrentamento à LBGTIFOBIA”, e em letras
menores: “Proposição: Deputado Tadeu Veneri/Goura/Delegado Recalcatti”.
A mesa e as pessoas que a compunham passaram a ser a atração principal
daquele evento: os deputados Tadeu Veneri (Partido dos Trabalhadores – PT),
Professor Lemos (PT), Goura (Partido Democrático Trabalhista – PDT) e Delegado
Recalcatti (Partido Social Democrático – PSD). Além deles, compuseram a mesa
uma representante do Grupo Dignidade – organização não governamental com
pautas ligadas a direitos da população LGBT, um promotor de justiça do Paraná e
um futuro funcionário comissionado do governo paranaense, apresentado como
alguém que trabalharia no gabinete do governador empossado poucos meses antes.
Além dessas pessoas, uma representante do estado do Paraná estava na mesa:
Ana Raggio, apresentada como coordenadora da Divisão de Políticas para Pessoas
LGBT da Secretaria da Justiça, Família e Trabalho. Em sua fala, tratou das políticas
públicas do estado do Paraná dos últimos anos para a população mencionada.
Ana Raggio estava no governo desde a gestão anterior, do então
governador Beto Richa (Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB), por isso
usou uma dimensão temporal além do atual governo de Ratinho Júnior (PSD). Ela
acumulava múltiplas funções dentro da Secretaria de Justiça, Trabalho e Direitos
Humanos, no Departamento de Direitos Humanos e Cidadania: fazia parte da
diretoria do “Projeto Criança e Adolescente Protegidos”, coordenava a “Divisão de
Políticas para LGBT”, a “Divisão de Políticas para Igualdade Racial”, o “Conselho
Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Estado do Paraná”, o
“Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial” e o “Comitê de
Acompanhamento da Política de Promoção e Defesa dos Direitos de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais”.
Ao mencionar as políticas públicas do governo, falou justamente do Setor de
Vulneráveis: “a Roberta atende”, apontando para ela na plateia, “lá na Delegacia de
Homicídios e Proteção à Pessoa, no Setor de Vulneráveis que foi uma iniciativa do
51
“O Setor aqui não tem investigador”. Ouvi essa frase de minha principal
interlocutora depois de já ter feito algum tempo de trabalho de campo. A justificativa
era de que ali naquela unidade, as investigações de homicídio ou sua tentativa não
eram realizadas – pelo menos, em tese. Roberta era a única pessoa naquela sala e
a única responsável pelas atividades do Setor, além da Delegada – havia também o
policial incumbido de entregar as intimações, mas ele não era um funcionário restrito
ao Setor, pois fazia esse trabalho para outros cartórios da Divisão de Homicídios. A
existência do Setor dentro da Divisão indicava outro modo de articular o trabalho
especializado de uma unidade voltada para uma população específica, muito
vinculado à própria Roberta.
52
18
Apesar de combinar previamente meus dias de trabalho de campo, algumas vezes fui surpreendido
pelo não funcionamento do Setor ou pela impossibilidade de acompanhar suas atividades. Se
Roberta não estivesse lá ou estivesse realizando atividades ligadas a outras rotinas, o Setor também
não funcionava. Reuniões em conselhos municipais, como CONSEPIR (Conselho Estadual de
Promoção da Igualdade Racial), operações de investigação – Roberta é uma investigadora em
atividade como escrivã, o que a obriga a periodicamente fazer plantões e eventualmente acompanhar
operações de investigação e de mandato de prisão fora da Divisão –, férias e folga.
53
19
Essa é uma das principais atividades do Setor de Vulneráveis; tratarei mais detidamente dessa rotina
no Capítulo 2.
54
elencados por Roberta: os crimes, em suas palavras, “não dão em nada”, ou seja,
muito dificilmente levariam alguém à prisão.
Além disso, para ela, a matéria dos delitos atendidos pelo Setor seriam
problemas íntimos e privados, dando a entender que poderiam ser resolvidos de
outro modo: não levava ninguém para a prisão, pois seriam matéria de “briga de
fundo de quintal”. Dessa forma, a especialização do trabalho de Roberta se tornou
sua paciência com aqueles crimes que não levavam para a cadeia e que não seriam
assunto propriamente da polícia, mas de assunto privado.
Assuntos entendidos como sendo de âmbito privado, entretanto, podem
muito bem ser vistos e tratados como crime, como os casos de violência doméstica
investigados pelas Delegacias da Mulher mostrados por Fabiana de Andrade (2012),
em sua etnografia de uma Delegacia de Mulher de Campinas. Andrade, contudo,
também menciona um certo desapontamento de escrivãs e delegadas, porque
muitas vezes as noticiantes desistem da investigação e não seguem adiante com a
representação – e, de uma perspectiva de quem valoriza a penalização do crime,
também “não davam em nada”. Além disso, algumas policiais entendiam que “o
tratamento da questão deveria ser de responsabilidade da psicologia ou do serviço
social, como queixas de ofensas mútuas, dificuldade em se decidir pela separação,
desavenças entre pais e filhos, discórdia entre vizinhos (…)” (ANDRADE, 2012, p.
81).
Penso que isso seja análogo não apenas às situações que acompanhei, mas
também àquelas descritas por Letícia Ferreira (2011) quando estudou os casos de
desaparecimento de pessoas em uma delegacia especializada no Rio de Janeiro.
Ferreira destaca que, no Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP), os
casos de desaparecimento eram muitas vezes vistos como problemas da família e
de assistência social e não da polícia. Uma de suas interlocutoras, por exemplo,
defendia que fossem investigados por outros órgãos e instituições. A autora
menciona também a precariedade da investigação que, muitas vezes, não dava
conta de responder o onde, como e quando do desaparecimento – sem perder de
vista que como desaparecimento não é crime não pode gerar inquérito policial.
Sendo assim, não seria “difícil imaginar o quão frustrante pode ser, tanto para
policiais, quanto para comunicantes, relatar e registrar um caso de
desaparecimento” (FERREIRA, 2011, p.114).
55
escrivã. E isso importa porque destaca uma outra maneira de vincular o próprio
Setor (existente na figura de Roberta) a população para qual se volta, marcada pelos
estereótipos e pelo tom jocoso.
Resta uma última maneira de articular o trabalho especializado dessa
unidade às suas atividades investigativas em uma outra modalidade de existência do
Setor – comparando-as com as atribuições das delegacias de homicídio. A Divisão
de Homicídios e Proteção à Pessoa, onde estão localizados o Plantão, o Setor de
Vulneráveis e as outras unidades, possuía dois pavimentos. No de cima, ficavam as
delegacias da Subdivisão de Homicídios e embaixo o Setor. Roberta fazia questão
de me dizer que não havia nenhuma diferença entre aqueles de cima e o cartório
pelo qual ela era a escrivã responsável: “é tudo igual, tem o mesmo funcionamento,
tudo é delegacia”.
Todos estavam incumbidos de produzir os inquéritos policiais e,
consequentemente, as investigações – reunir provas, ouvir vítimas, testemunhas,
suspeitos, juntar os papeis, literalmente, aos autos do processo, responder
requisições do Ministério Público, fazer intimações e se comunicar com outros
setores, como o de inteligência. Uma dessas atividades em comum era a de ouvir as
pessoas intimadas, nas chamadas oitivas. Em uma das oitivas, a Delegada ouviu de
uma testemunha que havia ficado desesperada depois de ter recebido a intimação
para estar ali, na “Delegacia de Homicídios”. A delegada ouviu a história atenta e,
em uma aparente tentativa de acalmar a testemunha, disse para ficar tranquila,
porque na DHPP havia um setor que não estava ligado à apuração de mortes. Ela
era sorridente e cordial com as pessoas que ouvia, embora fosse de poucas
palavras. Assim como Roberta, era formada em Direito e, segundo minha
percepção, era branca, de cabelos loiros, com idade por volta de seus 35 anos. Em
seus termos, descreveu na ocasião o Setor de Vulneráveis como “um setor mais
light”.
O nervosismo era comum na narrativa das pessoas intimadas e Roberta
usava uma retórica parecida para convencer as pessoas intimadas por ela da
prescindibilidade do nervosismo sentido: “Presta atenção, é Delegacia de
Homicídios e, no finalzinho, tem um proteção à pessoa”.
Dentro da DHPP, o Setor também pôde ser uma unidade mais leve, por ter
tido como especificidade a investigação de crimes considerados mais brandos –
esses últimos, em outro momento descrito acima, serviram para justificar uma
58
***
20
Meu objetivo não é uma análise dos casos a partir da perspectiva das/os noticiantes. A esse respeito,
ver o terceiro capítulo da tese de Denise Rodrigues (2018). A autora apresenta uma minuciosa
descrição e análise dos crimes de racismo e injúria racial a partir de entrevistas realizadas com
62
que foram relevantes para a constituição inicial de tais crimes e puderam sustentar a
procura pela intenção: a data do acontecimento da conduta criminosa, o
reconhecimento de vítimas e autores enquanto tais, e o entusiasmo com os
desdobramentos da investigação e com a possibilidade de ela terminar em sentença
condenatória no Poder Judiciário.
pessoas que foram vítimas de discriminação e noticiaram a conduta a DECRADI, na cidade de São
Paulo.
63
21
As perguntas feitas em oitivas e preenchimentos de boletins de ocorrência variam entre uma e outra
situação e também entre vítima, autoria e testemunha. O modo de fazer essas perguntas compunha
as técnicas de investigação policial, que Roberta descreveu como sendo importante para “quebrar o
gelo” e, assim, deixar as pessoas mais à vontade para contarem suas versões dos “fatos”. Tratarei
desse aspecto mais detidamente no decorrer deste capítulo.
64
22
O trabalho de Santos (2009) aborda como delegados de polícia de Campinas entendem a tipificação
do crime de racismo e da injúria racial e ajuda a compreender como essa tipificação é, nos termos do
autor, confusa para esses agentes.
66
de Timóteo estava a tipificação do crime como injúria qualificada23. De todo modo, foi
a criminalização da homofobia24 que permitiu a casos como o de Timóteo deixarem
de ser investigados como injúria simples e passarem a ser tratados como injúria
qualificada ou crime de racismo.
As questões relativas à necessidade de uma vítima para que a investigação
pudesse correr ficaram evidentes para mim quando o Setor foi procurado para o
registro de um “Boletim” e não o fez. Tratava-se do seguinte caso: Laís procurou
aquela unidade para noticiar uma situação de discriminação, em que um homem
teria afirmado que “as feministas” mereciam ser estupradas. Entretanto, Laís ouviu
como justificativa que era impossível fazer um “Boletim” em nome das mulheres e
das feministas em geral. Era preciso ter “uma” vítima, em especial. Ademais, ouviu
que juridicamente não era possível incriminar o desejo, a vontade – em tese, não
havia esse tipo de previsão no Código Penal brasileiro. No limite, não havia um
nome em nome do qual o “Boletim de Ocorrência” pudesse ser feito. Sem a
possibilidade de encontrar uma vítima na lei e no formulário, Laís e sua
comunicação não permaneceram no Setor.
23
Ela foi adicionada na complementação do “Boletim” feita por Roberta e somou-se à tipificação – pela
Lei de Contravenções Penais, Lei 3.688/1941 – feita pelo Distrito Policial onde Timóteo fez a primeira
versão “B.O.”.
24
Por meio de uma Ação Direita de Inconstitucionalidade do Partido Popular Socialista (PPS), a
criminalização da homofobia aconteceu na esteira de outras conquistas jurídicas do movimento
LGBT, como a conquista do direito à união estável por casais homossexuais e o reconhecimento das
identidades transexuais. Para uma análise mais detida das decisões anteriores à criminalização da
homofobia, depois de 2010, ver Vecchiatti (2018), e para uma discussão sobre o surgimento e
desdobramentos do movimento LGBT no Brasil, ver Trindade (2018) e Facchini (2018). Ainda, cf.
Aguião (2014) para compreender uma atuação desse movimento nas esferas estatais, na sua
constituição enquanto sujeitos de direitos. Sobre o caso de Timóteo, não acompanhei suas
investigações até o fim, mas até onde o fiz, a parte autora não havia sido identificada – a escrivã
estudava a possibilidade de, com base na hora do crime e na identificação do caixa por onde ele
passou, conseguir o número do Cadastro de Pessoa Física (CPF) do autor. Assim, nos despedimos
deste caso sem saber o seu desfecho.
67
***
preso da história, e tal motivo era amparado pela existência de capturas de tela
digitais impressas nas folhas da “Notícia” em que o suposto autor assumiria a
intenção deliberada de transmitir uma doença infecciosa, segundo Roberta.
Comprovar essa versão da história implicaria acionar diversas instâncias estatais
para fazer uma descoberta – e isso parecia movimentar os ânimos investigativos
daquela policial. Essas questões foram fundamentais para que tal comunicação
pudesse continuar nas dependências do Setor e se tornar um potencial “crime contra
vulnerável” – além, claro, da autorização da Delegada.
Essa situação ajuda a pensar sobre entusiasmo e imprevisibilidade
presentes no funcionalismo público. Embora haja uma previsão legal que se
pretende absoluta ao descrever os casos de atuação das instâncias estatais de
modo geral, a existência das leis e da burocracia dependem da atuação
indeterminada de seus agentes, como os trabalhos recentes de Maricato (2015) e
Bevilaqua (2016) exemplificam. Em relação, especificamente, ao trabalho de fazer
ou não os registros das notícias-crime e efetivar a investigação, Costa (2017)
menciona um “conflito de competência” entre a Delegacia de Estelionato e outras
especializadas de Curitiba na definição do que deveria ser ou não investigado por
aquela. E aponta para uma prática responsável por definir o escopo da lei para
resolvê-lo.
Por sua vez, o caso que venho descrevendo, colocado na perspectiva dessa
literatura, permite olhar para outro aspecto: o engajamento subjetivo no
funcionalismo público como uma maneira possível de atuar na constituição das
burocracias, ao estar presente na decisão da permanência de um caso a ser
investigado. E ele não é o único. Souza (2008), em outro exemplo, analisou casos
noticiados às Delegacias Distritais da cidade do Rio de Janeiro chamados de
“feijoada”. O argumento da autora demonstra como a falta de entusiasmo com as
notícias-crime de casos vistos pelos policiais como impossíveis de se desdobrarem
em ação penal, prisão ou investigação estimularam uma conduta administrativa de
desencorajar os registros dessas ocorrências. Em grande medida, porque eram
vistos como “perda de tempo” e, por isso, com certa impaciência. Em ambos os
casos não se trata de uma reação indiferente aos casos que chegam, mas de
engajamentos subjetivos distintos que constituíram as próprias investigações.
Essa maneira corporificada e senciente, por assim dizer, da constituição
burocrática-estatal não está restrita ao universo das corporações policiais. Por
69
25
Em termos técnicos, o inquérito policial é responsável por comprovar a materialidade do crime e
encontrar a autoria, o que deve servir para o indiciamento ou não da autoria do crime. Para uma
discussão a respeito do inquérito policial enquanto atividade administrativa, porque à parte do
processo penal, ver Kant de Lima (1989).
73
26
As “Oitivas” eram, em geral, conduzidas pela Delegada chefe da Divisão, mas excepcionalmente, em
virtude de uma semana bastante agitada na DHPP, um dos delegados dos cartórios das Delegacias
de Homicídio, que ficavam no segundo andar do prédio, desceu para conduzir as perguntas.
27
Para uma reflexão sobre os preconceitos e estereótipos relacionados às mulheres negras na
sociedade brasileira, ver Gonzales (1984) e Carneiro (1995).
80
dissabor”28 com alguma aluna. Profª. Isabel afirmou existirem muitas apresentações,
sobre muitos assuntos e, por isso, não se lembrava de nada “constrangedor” que
tivesse ocorrido. Roberta perguntou, ainda, se havia alguma aluna ou aluno negro
na sala onde ela eventualmente ficava de costas para algumas pessoas e se ela se
recordava de, em algum momento, ter sido indelicada com alguém. A professora
prontamente respondeu que não e se justificou dizendo, mais uma vez, que era
professora de ética e que fazia a formação de postura de seus estudantes.
Entretanto, mencionou uma aluna negra que sempre se sentava na fileira29 disposta
de modo que ela ficava de costas para algumas pessoas.
Roberta anotou esse nome e anunciou estar satisfeita em relação às
perguntas. O delegado, então, retomou a palavra e perguntou se a profª. Isabel e o
seu advogado teriam mais alguma coisa a dizer. Não tendo, ele disse a hora,
agradeceu os presentes e encerrou a “Oitiva”.
Em um primeiro momento foram feitas perguntas de confirmação de
algumas informações, como a identidade, para verificar se aquela pessoa diante das
câmeras era a mesma mencionada pelo “Inquérito”. Depois disso, as perguntas
pareciam ter sido direcionadas para confirmar ou negar a versão apresentada pela
denúncia lida no começo da própria “Oitiva”. Como me explicou Roberta e eu pude
ver nos documentos do MPPR e dos “Inquéritos”, a versão da história de todos os
envolvidos era muito importante. Por isso, uma das primeiras perguntas foi sobre o
que a profª. Isabel teria a dizer sobre a denúncia. Feito isso, as perguntas do
Delegado e da escrivã pareciam procurar por algum momento ou história que
pudesse desmentir ou endossar a autoria e a denúncia lida naquele momento. A
busca da lógica da história estava em muito ligada à busca pela intenção do modo
como aquela professora tratava as pessoas negras e indígenas. Para comprová-la
era preciso encontrar uma intenção discriminatória30. Diante da negativa da
professora, parecia não haver muito a ser feito. A alternativa encontrada foi investir
na associação entre preconceito ou discriminação a momentos de dissabor,
confusão e constrangimento; e as técnicas para tanto foram perguntas sobre
momentos vividos pela professora em sala de aula. De todo modo, encontrar a
28
Essa informação havia sido mencionada por uma oitiva anterior, de uma das testemunhas do caso.
29
A aluna, Rosa, seria mais tarde intimada para ir ao Setor como testemunha.
30
Sobre a importância dessa motivação na jurisprudência dos crimes de responsabilidade do Setor, ver
Capítulo 1; para o trabalho policial de “encontrá-la”, ver Capítulo 3.
82
31
Apesar de algumas das “Oitivas” desse caso ter sido conduzida pelo Delegado que mencionei, o
Relatório foi produzido pela “doutora”, a Delegada chefe da Divisão, quem era responsável pelos
inquéritos do Setor.
83
32
Antes das “Oitivas” começarem, em geral, Roberta fazia algumas perguntas preliminares, muito
parecidas com as que fazia durante a gravação. Esse é o motivo pela qual ela sabia sobre a
autodeclaração de cor da testemunha.
33
Essa informação fora afirmada por Rosa em sua “Oitiva”.
84
Outro aspecto nas “Oitivas” que me chamou muito a atenção foi o modo
como algumas “vítimas” e “autores” intimados se aproximaram e se distanciaram
dessas categorias. Tratarei desse aspecto com base em dois casos que já
mencionei ao longo deste capítulo: o de Joana e o da profª. Isabel. Em ambos,
retomarei as justificativas apresentadas em momentos da gravação das oitivas ou
posteriores a ela.
Conforme descrevi anteriormente, Joana alegou ter sido vítima de racismo
em uma loja de departamentos de Curitiba. Em resumo, ouviu dos funcionários
dessa loja a afirmação preconceituosa de que o cabelo de pessoas negras era
“ruim”. Depois de registrar seu Boletim, ela retornou sozinha ao Setor para ser
ouvida e, de modo a constar nos autos do inquérito, gravada. Sua gravação não
começou imediatamente após sua entrada na sala daquela instância policial. Depois
de ter visto algumas fotografias, para confirmar quem seriam os funcionários da loja,
Roberta conversou com ela para ouvir mais uma vez o que teria se passado no dia
do crime. Essa era uma prática recorrente nas oitivas que acompanhei – uma
conversa anterior à gravação com o objetivo de direcionar as perguntas de modo
85
34
Sobre as experiências de maternidade entre mulheres negras, ver Baia (2020).
86
35
Schavelzon (2010) destaca os estudos antropológicos sobre o Estado que se dedicaram “las
relaciones y las prácticas sociales que estarían más abajo y serían más concretas y, también,
observables” (p. 88). Isso implicaria contrapor a ideia do Estado como um ente abstrato, anterior à
existência das práticas que o constituem e apostar nas técnicas de governo e seus efeitos
(MITCHELL, 2006). Entretanto, também não é o caso de qualificar a unidade totalizante apresentada
por nossos interlocutores e interlocutoras como “ilusão” (SHARMA; GUPTA, 2006). Se para alguns de
nossos interlocutores de pesquisa, o Estado possui o caráter de um ente transcendente – como o
exemplo que mencionei, de um Estado que demanda algo –, os dados frutos de uma investigação
das práticas concretas que constituem uma repartição pública podem interpelar algum pressuposto
antropológico que, de partida, negue esse tipo de existência holística.
89
36
Recentemente, estudos antropológicos voltaram-se para a desconfiança enquanto objeto de análise.
Allard, Carey e Renault (2016), Carey (2017) e Muhlfried (2018) destacam que o tema foi esquecido
nas ciências sociais, de modo geral, e propõem sua retomada, mas não como a mera falta de
confiança. Ao invés disso, suas contribuições ajudam a pensar a desconfiança como um modo de
organizar e estabelecer relações.
90
a figura constantemente elencada é a de pender: nem para um lado, nem para outro,
ao referir-se à pessoa investigada como autora e à vítima.
Ao ter me dito para ouvir igualmente quem se apresentava como vítimas e
quem era investigado como autores, além das testemunhas, Roberta chamava
minha atenção para um aspecto muito particular e importante das investigações
feitas naquele espaço: não importava o quanto as pessoas com o estatuto de
vítimas na investigação se sentissem ofendidas, era preciso prestar atenção na
intenção da parte investigada como autora. Atentar-se para a natureza do propósito
que orientou o ato e, por isso, para sua verdade. Em síntese, procurar pela intenção.
Prestar atenção não enquanto um fim em si mesmo, evidentemente: tratava-se da
necessidade de descobrir se houve, de fato, uma intenção de desqualificar ou
menosprezar alguém – o dolo específico, em função de cor, raça, etnia, religião,
identidade de gênero, orientação sexual, ser idoso, procedência nacional ou estar
em situação de rua. Por conta disso, a presença da testemunha era bastante
considerável, pois se por um lado havia sempre a possibilidade de pessoas
investigadas mentirem, por outro, o sentimento de ofensa e discriminação poderia
ser um “engano”. Um “engano”, porque poderia não encontrar respaldo na intenção
de quem ofendeu.
“Por estar no lugar do Estado, meu compromisso é com a justiça”, resumia a
escrivã referindo-se ao princípio de suas atribuições. Além da desconfiança,
entretanto, Roberta elencava outras maneiras de estabelecer tal compromisso: a
compreensão do contexto social da autoria, do contexto do acontecimento do ato
noticiado ao Setor, o aprendizado constante com as decisões judiciais recentes e a
própria experiência de trabalhos passados dentro ou fora do Setor. Em seguida,
abordarei cada uma delas, com o objetivo de enfatizar as lições que efetivavam de
uma maneira específica tal “compromisso”.
necessidade de olhar para o que ela chamava de “a verdade dos fatos” e, como já
disse, de não pender nem para o lado da vítima, nem da autoria. Ou seja, desconfiar
das pessoas para que fosse possível confiar no fato enquanto verdade. Isso remete
à afirmação feita por Muhlfried (2018) que confiança e desconfiança convivem
mutuamente – ou, nos termos do autor, a “desconfiança precisa ser possível para
que a confiança exista” (p. 11, tradução minha). No cotidiano do Setor, entretanto, a
afirmação parecia se inverter, pois para que a desconfiança existisse era preciso
que a confiança a sustentasse – ou seja, desconfiar sempre, mas a partir da
confiança de que é possível determinar a “verdade dos fatos”.
Isso estava vinculado ao engano das aparências: quem chegava como
vítima nem sempre era, de fato, vítima e quem chegava como autor nem sempre era
um algoz. A clássica divisão entre realidade e aparência era atualizada na prática
investigativa do Setor de procurar pela intenção, a partir de duas ferramentas: os
contextos – “o contexto social” de quem está sendo acusado de cometer o crime e o
“contexto da situação” relacionado ao momento em que o crime teria acontecido.
Consequentemente, agir de modo neutro e justo se amparava na consideração da
ferramenta do contexto – ou, do contexto como ferramenta. O “contexto da situação”
envolvia para a escrivã estar atenta a diversos atenuantes presentes nas histórias
contadas. Isso parecia importante porque diante de um olhar atento para a “história
como um todo”, a ação da vítima poderia aparecer como uma provocação da ofensa
noticiada. Isso, em geral, estava ligado ao momento cronologicamente anterior a tal
evento. Para me explicar a respeito disso, histórias de casos apurados ou não pelo
Setor foram mobilizadas com o objetivo de exemplificar uma espécie de não
passividade (que talvez fosse esperada) da vítima. Ela me dizia sempre: “às vezes,
a vítima não tem nada de vítima”.
Em meados do meu trabalho de campo, por volta de julho de 2019, cheguei
ao Setor e observei novas pastas sobre a mesa de Roberta – como eu já possuía
certa familiaridade com as pastas daquela divisão, logo percebi que uma delas era
um inquérito. Eu estava certo: recentemente, voltara do MPPR uma investigação em
que três homossexuais acusavam um homem de agressão motivada por homofobia
e, além de terem feito o boletim de ocorrência na Delegacia, denunciaram o caso à
imprensa. Ouvi atentamente aquela história cujo desfecho me pareceu inusitado:
quando Roberta ouviu investigado e testemunhas, as últimas disseram ter se tratado
de uma tentativa de roubar o investigado como autor do crime e que a agressão teria
92
37
Segundo consta em seu currículo na plataforma Lattes, André Estefam é professor de Direito Penal,
com mestrado (2008) e doutorado (2016) defendido na mesma área, pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP). O título de sua tese de doutoramento é “A dignidade sexual como
fruto da dignidade humana” e foi orientado por Guilherme de Souza Nucci – cuja doutrina e
importância para o Setor abordei no Capítulo 1.
95
própria delegacia. Atentar-se a isso era uma maneira para não deixar-se enganar
pelas aparências e pelas possíveis mentiras contadas – era uma maneira de ver
além das aparências. Isso ficou mais evidente quando conversamos a respeito de
um investigado como autor de injúria motivada por procedência nacional.
O homem chegou ao Setor ofegante e assim que soube do motivo pelo qual
estava ali, ficou pálido. “Você viu como ele ficou nervoso?”. Embora fosse muito
comum as pessoas intimadas se sentirem nervosas e acuadas no ambiente da
Delegacia, a escrivã me chamou atenção para um aspecto novo: a mudança na
respiração. Isso não significava que de antemão aquele homem estava acusado,
antes disso, tratava-se de voltar a atenção mais detidamente para as possíveis
controvérsias de sua história. Nos termos de Roberta, o corpo também falava, se
expressava e, eventualmente, poderia denunciar a verdadeira intenção das pessoas
– a gravação das oitivas era vista como um ponto positivo porque justamente
permitia replicar essas nuances para além da delegacia.
De todo modo, para perceber o tom e a linguagem do corpo era preciso
algum estudo e alguma experiência naquele trabalho. De modo análogo, estudo e
trabalho eram importantes para outros aprendizados. Não foram poucas as vezes
que ouvi sobre sentenças recentes relacionadas aos crimes de discriminação. Os
estudos de Roberta se estendiam também para as decisões atuais dos juízes ao
redor do país: “um cuspe na cara pode ser tão grave quanto um soco em um ato de
discriminação, por exemplo”, disse-me a escrivã se referindo a uma sentença de um
desembargador do estado de São Paulo. Ainda falando sobre ele, afirmou sua
prática de reformulação recorrente das sentenças de primeira instância, ao levar em
consideração, justamente, aquelas condições que mencionei acima: classe, renda,
escolaridade e lugar de moradia. Foi com ele que aprendera, me confessa.
Não o bastante, mencionava com frequência as últimas decisões do
Supremo Tribunal Federal a respeito dos crimes concernentes ao Setor, como o já
mencionado (cf. Capítulo 1) entendimento do crime de injúria racial como crime de
racismo. Ademais, Roberta algumas vezes pautava suas concepções a respeito da
existência de motivação discriminatória em decisões judiciais – “depois chega na
mão do juiz e ele diz que não houve dolo, pois muitas vezes o juiz entende a fala
como uma brincadeira, como um ‘animus jocandi’ e não como uma intenção de
discriminar”, referindo-se a piadas preconceituosas.
96
***
Há, pela frente, bastante trabalho a ser descrito. Afinal, a procura pela
intenção continuava e precisava de outros elementos para ser sustentada. Ela se
materializava em “Inquéritos” e a partir principalmente das oitivas a existência do
dolo específico era decidida – em busca daquelas descrições, seguimos para o
último capítulo.
99
tempos de inquéritos “físicos”, essas pastas eram as que circulavam entre o Setor e
o MPPR, ou entre a sala da escrivã e a da Delegada. Depois que deixavam o Setor,
as investigações policiais encerradas naquelas pastas de papel poderiam servir de
embasamento para o oferecimento da denúncia das pessoas indiciadas por parte do
Ministério Público ao Poder Judiciário, dando origem a uma Ação Penal Pública,
conforme expliquei no Capítulo 1.
Constituir os inquéritos era constituir as investigações. Registravam-se
cópias de documentos de identidade, intimações, ofícios, diligências, registros de
comunicação com outras instituições, termos e mais termos. Cada investigação
estava vinculada a uma pasta-inquérito, circulando sobre as mesas do Setor e que
poderiam ser divididas em dois tipos: pastas de inquéritos físicos e digitais. As
primeiras eram brancas e encapadas com um plástico transparente, para protegê-los
de deterioração caso de precisarem ir ou voltar do Ministério Público. As segundas
eram pastas sem o encape, porque circulavam digitalmente e eram impressas
apenas para facilitar o trabalho na hora das oitivas – tratarei desse tema mais
detidamente ao longo do capítulo. As modalidades de circulação dos inquéritos
estavam, assim, implicadas em suas constituições materiais.
As pastas dos inquéritos, que eram ao mesmo tempo os inquéritos das
pastas, possuíam um prazo para permanecerem no Setor. Ou melhor, há um prazo
estipulado pelo Código de Processo Penal (1941) brasileiro para a conclusão dos
inquéritos. Depois de 30 dias, terminadas ou não as investigações, os inquéritos
físicos precisavam deixar as dependências daquela unidade policial ou serem
avolumados com uma autorização do Ministério Público para sua prorrogação.
Tratando-se de inquéritos digitais, possuíam o mesmo prazo, mas eram
encaminhados virtualmente. Em geral, as investigações terminavam antes dos trinta
dias previstos. Às vezes, algumas eram devolvidas para o MP antes do término da
investigação e, em outros momentos, outras pastas apareciam de volta trazendo
consigo a história de algum caso. Esse foi um aspecto interessante do trabalho
etnográfico com inquéritos em andamento e em contextos burocráticos: o tempo que
eu tinha para analisá-los era o tempo de sua investigação ou do seu prazo, pois não
tive autorização para acessar o arquivo da Divisão, tampouco para acessar o
sistema onde muitos casos estavam. Por um lado, quando deixavam o Setor
levavam parte do meu material de pesquisa, por outro, havia os que retornavam e
101
38
A autorização que recebi para ter acesso a esses documentos estava condicionada à supervisão de
Roberta e ao meu compromisso de não divulgar as identidades das pessoas envolvidas na
investigação. Assim, dependia tanto do horário de expediente da Divisão, quanto da presença da
escrivã.
102
39
Sobre esse aspecto, ver Capítulo 2.
103
policiais. O vídeo, nesses termos, seria prova infalível40 da “injustiça” sofrida por toda
a corporação policial, que muitas vezes teria sua imagem deturpada diante da
“opinião pública”, por conta de “casos isolados” de maus tratos policiais41. As
gravações também eram consideradas importantes porque poderiam contrapor
acusações de coação, da parte investigada, de ter sido forçada a produzir provas
contra si mesma. A digitalização dos inquéritos faria, ainda, o processo ser mais
rápido, segundo Roberta, pois o sistema possibilitaria a comunicação quase que
imediata com o MPPR.
Se o “sistema digital” era responsável por acelerar a comunicação entre as
instâncias burocráticas e, consequentemente, o próprio trâmite possível de levar a
um processo penal, nem tudo ligado a ele estava vinculado à rapidez – ele também
atrasava os protocolos burocráticos. O computador, o sistema ao qual dava acesso
e a conexão com a rede mundial de computadores cadenciavam o tempo do
trabalho e, por isso, ocupavam uma centralidade naquela rotina burocrática. Depois
que as oitivas terminavam era preciso “gerar” o arquivo e convertê-lo em um formato
compatível com o “sistema”, ou seja, esperar um tempo até que o momento gravado
se transformasse, por meio de um software, em um item na tela do computador da
escrivã e, em seguida, esperar mais um ou dois minutos (dependendo da duração
da gravação) para que seu formato digital fosse modificado para poder ser
carregado pelo sistema.
Do modo como estava posto, o trabalho investigativo dependia de aparelhos,
programas de computador, um sistema digital da Secretaria da Justiça e de uma
rede de Internet que, com exceção do penúltimo, não possuíam a princípio nada de
estritamente policial ou investigativo. Essa infraestrutura42 se convertia, entretanto,
nas condições do trabalho de Roberta e o possibilitava da maneira como acontecia –
40
Essa maneira de entender a gravação em vídeo como algo incontestável também está presente no
trabalho de Freire (2019), ao descrever a inserção do árbitro de vídeo na Copa do Mundo de 2018.
Se a imagem gravada pode ser considerada infalível, seus efeitos nos espectadores têm sido
considerados variáveis de acordo com o tipo e o ângulo de gravação, conforme os experimentos de
Turner et. al. (2019) sobre a relação entre o julgamento da intenção policial e dois tipos de câmeras
que registraram a atuação policial (câmera corporal e a de painel).
41
Apesar de Roberta me descrever as acusações à polícia como uma injustiça, dados recentes
apontam para violência dessa corporação no Brasil: segundo relatório do Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), em 2019 foram denunciados à Ouvidoria dos Direitos
Humanos 1491 denúncias de violência policial (AGÊNCIA BRASIL, 2020); e, segundo reportagem do
G1, apenas no primeiro semestre de 2020, 3148 pessoas foram mortas por policiais (VELASCO et.
al., 2020). As mortes de policiais também informam sobre essa realidade violenta: segundo a mesma
reportagem, mais de 100 agentes foram mortos entre janeiro e junho desse ano.
42
Para uma síntese sobre a abordagem antropológico do tema, ver Larkin (2013).
104
ou, nos termos de Knox (2017), emergiam de “mundane matters of concern” (p.356).
Para que esse trabalho fosse desenvolvido sem reclamações de demora ou
complicações era preciso contar com uma boa conexão de internet e com uma boa
performance do “sistema”. Contudo, isso nem sempre acontecia e não dependia das
pessoas da DHPP: às vezes mesmo digitando seu login e senha, Roberta não
conseguia entrar43 ou, uma vez “dentro” do sistema, ao digitar os dados das pessoas
ouvidas, ele não obedecia o comando de ir para a página seguinte; por outras, uma
conexão precária com a rede impedia seu acesso ou, embora funcionasse,
“demorava dez anos” para receber o preenchimento dos dados.
Embora esse aspecto vá ao encontro da concepção de Star (1999) de que
as infraestruturas aparecem apenas quando deixam de funcionar, o “sistema digital”
era possível de ser visto no próprio funcionamento regular da rotina do Setor. Digo
isso porque a rapidez e praticidade eram bastante valorizadas no cotidiano de
investigação e apesar de formalmente a digitalização do inquérito não demandar sua
impressão, pouquíssimos ou nenhum deixou de sê-lo. Roberta estava convencida da
obsolescência do papel na rotina do Setor, entretanto, durante uma oitiva relativa a
um inquérito eletrônico, a Delegada da Divisão perguntou pela “Portaria” impressa
do caso. Ela achava mais prático ter à mão a descrição dos fatos que a motivaram
para poder conduzir as oitivas. Depois disso os inquéritos, ainda que digitais,
voltaram a ser impressos: por isso me referi no começo do capítulo a diferentes
pastas-inquéritos. As pastas sem as sobrecapas de plástico, brancas com a borda
vermelha, ostentavam uma marca d’água impressa na diagonal em suas capas:
DIGITAL. O sistema eletrônico estava, assim, estampado nas pastas que o
carregavam.
A digitalização dos inquéritos existia no Setor como possibilidade de
aceleração dos procedimentos nos quais os inquéritos estavam inseridos,
surgimento de uma nova pasta, entrave e facilitador para as tarefas cotidianas e
também como uma maneira deixar a investigação mais transparente. E, desse
modo, era parte da constituição dos crimes tocados por aquela unidade. Entretanto,
essas não eram as únicas atualizações dessa mudança. Houve uma movimentação
na imprensa a respeito dela, que também ajuda a entender as atuações nas quais
43
O acesso ao sistema do inquérito eletrônico não me foi permitido. Sendo assim, o que eu sabia sobre
o sistema era o que Roberta eventualmente me dizia ou quando, muito pontualmente, ela me
convidava para ver algo na tela do computador.
105
essa nova tecnologia esteve implicada e como foi percebida. Ainda que não tratem,
especificamente, do modo como os crimes se constituíam no Setor de Vulneráveis,
as notícias ajudam a acessar uma generalidade da qual os procedimentos do Setor
também fazem parte – o “Inquérito Policial Eletrônico” da PCPR.
44
Nos tempos em que os inquéritos não eram digitais, as pastas às quais tanto me refiro contavam
com um articulador fundamental para encadeá-las: os carimbos. Analisar os inquéritos foi também
uma experiência de começar a olhar para os versos das páginas que os compunham – e lá, então,
eles estavam. Registravam, inclusive, a ausência de qualquer informação quando estampavam “EM
BRANCO”. O mais comum deles era o “JUNTADA”, pois registrava e anunciava o documento
seguinte: Aos -[dia]- dias do mês de -[número do mês]- do ano de -[ano]-, faço juntada aos presentes
autos dos documentos que seguem, fls -[título de documento]- conforme adiante se vê. Do que, para
constar, lavro esse termo. Eu - [nome da escrivã]- escrivã de polícia o subscrevi”. Dessa forma, todos
as páginas inseridas eram antes anunciadas por esse pequeno instrumento. Se nos tempos dos
inquéritos digitais tornaram-se autenticações digitais, os registros dos inquéritos antigos não os
deixavam despercebidos. Sempre presentes, pareciam-me indispensáveis para promover a coerência
dos dados da investigação, ao identificar a próxima página do inquérito.
108
eram alimentadas com a mesma frequência daquelas referentes aos inquéritos não-
digitais e ambas ajudavam a organizar o trabalho de acompanhar e efetivar o
andamento de cada uma das investigações.
De todo modo, ainda que “Juntar” dissesse respeito a duas modalidades
diferentes de documentação, ambas se referiam ao movimento de colocar algum
documento para dentro – do inquérito, da pasta, do sistema. E a semelhança não se
esgotava nessa função. Na prática, as pastas de todos os inquéritos auxiliavam na
organização desse trabalho: suas capas serviam de suporte para papeis adesivos
colados pela própria escrivã para lembrar da próxima atividade a ser realizada na
investigação.
Se algum deles estava fixado, isso implicava trabalho a ser feito: “oficiar
uber”, “printar imagem”, “ouvir Rosa”, “ver com a doutora”, “aguardo retorno CP MG”,
“pedir mais prazo”, “juntar termo”, “despachar ofício”, “aguardo retorno da escola”,
enfim. Os adesivos serviam de “memória visual” (LATOUR, 2019, p.108) para a
escrivã otimizar sua rotina de trabalho e acessar visual e semanticamente o estado
da investigação. Na etnografia de Latour sobre o Conselho de Estado da França, a
ideia de uma “memória visual” apareceu vinculada às prateleiras que organizavam
os dossiês e sinalizavam aqueles que poderiam ser levados aos gabinetes de seus
relatores. No caso do Setor, se os adesivos são técnicas que permitem a
visualização da próxima atividade a ser realizada, ao mesmo tempo, na investigação
e nos inquéritos, também sinalizam e lembram uma passagem que deve ser feita
dos fatos no mundo para a pasta do inquérito. Assim, muito das atribuições envolvia
colar os pequenos papéis retangulares nas capas dos inquéritos e se desfazer
deles, não sem antes elaborar novos documentos e colocá-los dentro da pasta e/ou
do sistema.
“Olha o tanto de coisas que eu tenho pra mexer hoje”, dizia-me Roberta
frequentemente, ao bater as mãos sobre uma pilha de inquéritos. A referência era,
justamente, à produção dos documentos e sua inserção nos “autos”. Enquanto ainda
estavam fora, clipados nas capas, aguardando sua vez de entrarem, poderiam ser
descartados e substituídos; depois que entravam, muito dificilmente eram
modificados. Os papéis que entravam atendiam a um formato e a uma lógica, e
assim compunham a coerência e o encadeamento que conformavam uma verdade
do inquérito. Para explorar esses aspectos, tratarei mais detidamente do inquérito de
Ângela, um dos casos que pude acompanhar, noticiado pelo MPPR; e o contrastarei
109
45
Conforme descrevi no Capítulo 1, havia uma diferença entre o endereço institucional, que aparecia
nos documentos do inquérito e o físico.
110
A lógica do inquérito
A coerência de informações produzidas pelo inquérito ancorava-se em um
encadeamento entre os documentos que o compunham. Não apenas as
informações deveriam ser encontradas, como as próprias “diligências” requisitadas
apareciam seguidas dos respectivos registros de seu cumprimento. Procurar pela
intenção envolvia procedimentos que transformavam elementos exteriores do
universo dos inquéritos noticiados por B.O. e Notícia de Fato em casos, assuntos e,
mais especificamente, em papéis de polícia.
Para tratar desse transporte, analisarei o inquérito do caso que mencionei no
capítulo anterior, de uma vítima de homofobia em um serviço de transporte privado
urbano, a quem tenho chamado de Ângela. O caso chegou ao Setor por uma notícia
de fato e permaneceu nele porque além de ter a autoria desconhecida, aconteceu
depois da decisão do STF de criminalizar a homofobia, conforme tratei no Capítulo
1. Além disso, abordarei alguns aspectos de outro caso, o de Gilberto, para mostrar
a diferença de registro entre as investigações requisitadas pelo MPPR e as
instauradas a partir de um Boletim de Ocorrência. Procedimentos fundamentais para
que a procura pela intenção e a constituição ou não do crime fossem efetivadas.
Quando abria as pastas dos inquéritos, deparava-me de pronto com o
documento responsável por instaurá-los, a “PORTARIA” – com seu título
centralizado, em letras maiúsculas. Em geral, era a folha 2 do inquérito (a primeira
era a capa, embora não fosse numerada), numeração que permitia fazer referência
constante a ela ao longo do inquérito. Era quase sempre um documento de uma
página, com os símbolos da PCPR à direita e o brasão do governo do estado do
Paraná à esquerda. A do inquérito relativo ao caso de Ângela dizia o seguinte:
111
informado”. O motorista teria afirmado estar “aliviado com a saída das duas, e que
as pessoas dessa raça [grifada a lápis a palavra raça] deveriam saber se comportar
perante a sociedade”. O relato prosseguia descrevendo a reação da “vítima
restante”, Ângela: “ofendida com a situação, o debateu e expôs a sua orientação
também, resultando em uma alteração do comportamento do suspeito, que começou
a gritar e afirmar que as atitudes das vítimas eram uma vergonha”. Por fim, a atitude
do suspeito de “colocar músicas evangélicas durante a viagem” apareceu como
sendo motivada pelo intuito de ofender as vítimas.
A denúncia era endereçado ao MPPR e as páginas seguintes eram desse
órgão, sinalizando o seu recebimento e distribuição. Mediando-os, um comunicado
do Promotor Coordenador Administrativo para a Secretaria do MPPR mencionando
o recebimento dos “autos” e seu registro em “planilha própria dessa secretaria" – da
Coordenação Administrativa das Promotorias Criminais de Justiça de Prevenção e
Persecução Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de
Curitiba. Esse documento determinava a atribuição da atual notícia de fato a uma
das Promotorias de Justiça de Prevenção e Persecução Criminal (PJPPC) do Foro
Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. E assim seguiu, com um
despacho para uma determinada PJPPC. O “caderno requisitório”, documento no
qual as notícias de fato se transformavam quando passavam a compor um inquérito,
era encerrado com um “Ofício” de tal Promotoria para o Corregedor Geral da PCPR,
em que encaminhava “os autos de Notícia de Fato nº MPPR [...], requisitando a
instauração do inquérito policial para a apuração de crime previsto no art. 20 da Lei
7.816/1989 contra Ângela, Thaís e outra vítima. O documento requisitava, ainda, que
a corporação informasse o número gerado quando da instauração do inquérito
policial.
O destino ao Setor estava próximo. A história que pude observar a partir
daquelas páginas se passava agora na Corregedoria e fazia referência ao ofício
enviado pela PJPPC. Tratava-se de um “Despacho” com duas ordens: a primeira
delas pedia o encaminhamento à “Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa
para providência de Polícia Judicial”, a segunda previa a possibilidade de negar a
determinação – “Caso a Autoridade Policial entenda que não lhe cabe, deverá
fundamentar sua decisão e encaminhar ao protocolado”. A página seguinte era um
ofício da Delegada responsável pela Divisão ao promotor que assinara o ofício
destinado à Corregedoria: “tem o presente a finalidade de informar que foi
114
46
Não acompanhei o caso de Gilberto até o fim. Mas Roberta apostava que levaria ao indiciamento do
investigado, pois as gravações de mensagem de áudio enviadas para Gilberto, em que ofensas
racistas de baixíssimo calão eram dirigidas a ele, tornavam a intenção específica de discriminar
contundente.
47
Isso era “concluído” pelo último documento do inquérito, o “Relatório”, quando se referia
numericamente às folhas de cada página do inquérito, por exemplo.
48
As outras passageiras não foram localizadas.
116
R.G. […], Delegado(a) de polícia, por ele foi dito que, na ausência de
Escrivão (ã) de Polícia de seu cargo, me havia nomeado Escrivão (ã)
“ad hoc” para servir nestes autos. E, como aceitei o encargo, pela
referida autoridade, nos termos do artigo 305 do CPP, o
compromisso legal de bem e fielmente desempenhá-lo […]. Eu
[nome completo de Roberta], Escrivão (ã) ad hoc que o digitei e
subscrevi (grifos meus).
“Ver com a doutora”. Esse era um recado bastante comum deixado por
Roberta para ela mesma nas capas dos Inquéritos em curso no Setor. O papelzinho
retangular colorido colado naquelas pastas lembrava a escrivã de encaminhar o
encerramento das investigações para a produção do “Relatório”, a última peça do
“Inquérito Policial”. “Ver com a doutora” era uma maneira de não deixar Roberta
esquecer de consultar a Delegada a respeito da confirmação ou não da existência
da materialidade do crime, ou seja, se a conduta noticiada à polícia era motivada por
uma intenção discriminatória. Conforme Roberta me explicou, o encerramento das
investigações dependia de uma decisão a respeito da existência ou não do “dolo
específico”. Isto é, a “comprovação” de que houve uma motivação específica de
discriminar por parte de quem estivesse sendo investigado, pois essa era a condição
para o enquadramento penal da maioria dos crimes investigados no Setor, os crimes
de racismo e contra a honra50.
49
Lei Complementar nº 14, de 26/05/1982 (Estatuto Civil do Paraná).
50
Ver Capítulo 1.
121
síndico do prédio onde morava, por ser “homossexual e pessoa com deficiência
física”. Como sempre acontecia, a Delegada começou a oitiva se apresentando e
apresentando Roberta. Para confirmar os dados de identificação fornecidos pela
denúncia, a Delegada perguntou para Francisco se ele era o síndico do prédio citado
na “Notícia de Fato” e se ele conhecia Ricardo. Após as informações terem sido
confirmadas, a oitiva prosseguiu com a Delegada lendo a denúncia, que dizia
também que o síndico teria impedido um “amigo homossexual de Ricardo de entrar
no prédio com sua bicicleta”. Com a palavra, Francisco um tanto surpreso afirmou ter
pedido para a visita de Ricardo e ele mesmo terem cuidado ao entrar com suas
bicicletas pela porta do prédio e que, como síndico, não teria o direito de impedir
ninguém de entrar no prédio.
Conforme tenho procurado demonstrar, as oitivas eram marcadas pela
tentativa de confirmar ou desmentir as histórias contadas nas denúncias. Sendo
assim, para confirmar mais uma vez, a Delegada perguntou ao síndico se recordava
de ter “impedido algum homossexual de entrar no prédio?”. Ele disse que não se
lembrava e a pergunta seguinte foi a respeito de sua intenção, ou seja, se era para
preservar o patrimônio do prédio, a porta. Chegando ao fim e tentando mais uma vez
confirmar qual seria a intenção de Francisco em chamar a atenção de Ricardo e seu
amigo, a Delegada perguntou se Francisco sabia que o rapaz, o morador do prédio
em questão, era homossexual e deficiente físico. Aparentando surpresa, com os
olhos arregalados, o síndico negou veementemente e completou dizendo não ter
tido conhecimento de “nenhum desses defeitos”.
Um silêncio rápido foi sucedido por uma intervenção de Roberta que entrou
na conversa e perguntou se a deficiência física do rapaz era aparante. Outra vez, a
resposta foi “não”. Referindo-se tanto à sua deficiência física, quanto à sua
sexualidade, afirmou que o rapaz era uma “pessoa normal”. Na tentativa de justificar
que desconhecia a orientação sexual de Ricardo, afirmou que homossexuais
“sempre têm trejeitos” e o morador do prédio em questão não os tinha. A oitiva foi
encerrada como de costume, com Roberta indo ao Plantão para fazer uma cópia do
documento de identidade da pessoa ouvida. Em seu retorno, perguntou-me a
respeito do caso e, em seguida, chamou minha atenção para o que deveria ser
observado: “você percebeu que ele não sabia que o rapaz era homossexual? Como
vai discriminar se não sabe que a pessoa é homossexual?”.
125
51
Falei dos detalhes dessa oitiva na seção “b) Em busca de uma lógica do caso: qualificar e ouvir” do
tópico “2.2 As oitivas do Setor: histórias de vítimas, autores e testemunhas”.
129
resposta afirmativa veio acompanhada de uma justificativa: “eu não entendo como
elas seriam melhores”. A queixa e a percepção da testemunha estavam ligadas não
ao modo pelo qual a professora tratava as pessoas negras e indígenas da turma,
mas ao modo privilegiado como se referia e se relacionava às duas mulheres
brancas mencionadas por ele.
Roberta gostou muito da versão da história de Sílvio, pois, segundo ela,
suas informações foram precisas, sérias e ponderadas. Entretanto, ao falarmos
sobre o caso, a escrivã me disse que ainda estava em dúvida a respeito da
existência ou não do “dolo específico” por parte da professora. A “versão dos fatos”
trazida por Sílvio pesava a favor da existência. Diferentemente do que mencionava a
denúncia que originou a notícia de fato, o motivo não seria um tratamento que
subjugava e perseguia pessoas negras e indígenas, mas sim privilegiar e favorecer
as “bonequinhas”. A escrivã aproveitou para me explicar a explicação jurídica para
tanto: a “discriminação” pode acontecer no enaltecimento de algumas pessoas em
relação a outras. Ou seja, não apenas no desprezo explícito e direto a alguns, mas
na comparação implícita se exaltar algumas pessoas.
Na mesma semana, perguntei para Roberta qual fora o destino do caso da
professora Isabel, se na procura pela intenção, havia mesmo encontrado naquele
caso o “dolo específico”. Depois de alguns dias, a escrivã consolidou sua opinião em
relação à existência da motivação específica em discriminar, por conta da
preferência citada por Sílvio e confirmada pela professora. Contudo, ninguém seria
indiciado, pois “a Delegada não viu dolo”. No entendimento da Delegada da Divisão
a preferência não seria motivada por “ódio” ou “discriminação”, mas por amizade – a
professora tratava as alunas com mais carinho porque sentia-se mais próxima delas.
Roberta insistiu em sua discordância e me disse que, nesses casos, é possível
atribuir não o “dolo direto”, mas o “dolo indireto”52. De todo modo, o entendimento
que prevaleceu foi o da Delegada, a pessoa na hierarquia da corporação da Polícia
Civil responsável por elaborar os “Relatórios”.
Mais uma vez, o que se buscou foi definir uma verdade sobre a univalência
da intenção e, por isso, a tarefa da investigação foi concluída. A discordância entre
Delegada e escrivã sugere que, se o propósito da investigação era determinar a
52
Grosso modo, o “dolo direto” diz respeito à intenção com o objetivo de alcançar determinado objetivo,
que nesses casos, seria o de discriminar; já o “dolo indireto” diz respeito a assumir o risco, mesmo
não objetivando determinado fim.
130
4.2.4 Os Relatórios
Não tive acesso a nenhum “Relatório” dos casos que mencionei ao longo
desse trabalho. No caso dos inquéritos anteriores aos digitais, suas últimas peças
não haviam sido produzidas e, por outro lado, uma vez elaborados seus “Relatórios”,
eles eram despachados para o MPPR da própria sala da Delegada53. No caso dos
inquéritos digitais, eram enviados já pelo sistema e, sendo assim, não chegavam a
ter seus “Relatórios” impressos. “Por motivos de segurança”, Roberta não me
deixava ter acesso aos “Relatórios” dos casos recentes no Setor, sob a justificativa
de que a Delegada não permitia. Além disso, alegava não ter ela mesma acesso a
alguns deles. Depois de alguma insistência e meu repetido compromisso com o
sigilo das informações pessoais dos envolvidos, pude ter acesso a alguns
“Relatórios” dos quais ela dispunha, sob sua supervisão.
Os “Relatórios” eram peças fundamentais para entender melhor o modo
como a materialidade do crime era constituída ou não, porque encerravam os
inquéritos quando produziam um resumo das atividades investigativas registradas.
Roberta, contudo, desdenhava-os – dizia-me, também como um argumento para
não permitir meu acesso a eles, que eram meras formalidades das quais o seu
possível desdobramento em um processo penal prescindia. Eu queria e achava
importante ver aquilo que Roberta não queria ou achava desnecessário que eu
visse. Esse dilema indica que o trabalho antropológico em repartições públicas não
necessariamente deve seguir os fins burocráticos para compreender como suas
funções e atribuições são efetivadas. Além disso, está ligado aos limites e ao
segredo de certas práticas e documentos que são, ao menos em um primeiro
momento, negados ao pesquisador, de diferentes maneiras.
Tenho insistido ao longo desse trabalho que, de um ponto de vista
antropológico, a constituição dos crimes em contextos policiais dependia de
determinadas pessoas, papéis e instituições. Nesse sentido, as “Portarias” e os
53
Durante meu trabalho de campo, insisti inúmeras vezes, de diferentes formas, na possibilidade de
consultar inquéritos arquivados. Todas as vezes sem sucesso – ou a possibilidade estava sendo
avaliada pela Delegada, ou a reforma de uma área próxima ao arquivo impedia, ou não havia cópias
dos inquéritos no Setor.
131
art. 21 parágrafo único do Decreto Lei 3688/41 e do art. 96 da Lei 10741/03 54”. Em
seguida, mencionou a expedição de uma “Ordem de Serviço” com o seguinte
objetivo: “identificar imagens de câmeras de segurança interna do terminal de ônibus
[nome do terminal] desta capital, onde teriam ocorridos os fatos, assim como
identificar possíveis testemunhas em relação ao fato, conforme fls 07”.
Depois disso, pormenorizou a “Ordem de Serviço”, porque mencionou um
ofício, às “fls 08”, encaminhado à empresa que controla o sistema de transporte
público de Curitiba, a URBS – Urbanização de Curitiba para solicitar as imagens do
circuito interno do terminal. Em seguida, mencionou o relatório presente nas “fls
23/28” feito pelo “Setor de Inteligência” em que “examinou as imagens entregue
(sic), descrevendo e printando as telas para melhor verificação da dinâmica dos
fatos”. Depois disso, as pessoas ouvidas foram citadas: “ouviu-se nas fls 10/1155 a
vítima, o senhor [nome completo]”; “o segurança que interferiu dos (sic) fatos
apaziguando a situação desenvolvida pela vítima e pelo fiscal da URBS”, nas “fls
13/14”; e por fim, o “fiscal, em tese autor dos fatos”, nas “fls 16/21”. A informação
seguinte não mencionou nenhuma folha do “Inquérito”, mas o arrependimento da
vítima sobre o “registro de ocorrência” possível de ser visto em sua “declaração”.
Entretanto, isso não foi suficiente para interromper as investigações, pois
“conforme preceitua o Estatuto do Idoso e também a Lei das Contravenções Penais,
tais diplomas normativos são infrações de ação penal pública incondicionada, não
sendo possível a paralisação das investigações em face do arrependimento da
vítima na representação”. A nova versão contada durante sua declaração não foi
suficiente para interromper as investigações, mas foi uma informação privilegiada
para justificar a inexistência do dolo e do crime. O “Relatório” dizia que não havia
ocorrência de crime, “principalmente em face das contradições da vítima entre os
fatos narrados no boletim de ocorrência e em suas declarações, assim como pela
análise das imagens de segurança e ainda pelo relato da testemunha”. O documento
assinado pela Delegada representando a “Polícia Civil do Estado do Paraná”
finalizou o “Inquérito” com a seguinte frase: “dou por encerrado este Inquérito
54
Respectivamente, Lei das Contravenções Penais e Estatuto do Idoso.
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Por mais que as pessoas ouvidas tenham sido gravadas, o “Relatório” não fez nenhuma menção a
isso e também não mencionou nenhum resumo do que foi dito. Nas “fls” citadas estão os registros do
acontecimento da gravação das oitivas, com exceção das folhas da parte autora, cuja oitiva não foi
gravada, devido a um contratempo na rotina da Divisão. O fiscal teve sua oitiva realizada em outra
dependência da DHPP e sua fala foi transcrita pela escrivã.
133
***
naquelas pastas havia uma lógica que registrava a procura pela intenção e a
inexistência do crime, a partir do encadeamento das informações e da identificação
não apenas do investigado, mas também dos envolvidos na elaboração do inquérito.
Por fim, tratei dos momentos decisivos para encontrar a intenção criminosa – que
não foi vista em nenhum dos casos do Setor a que tive acesso. Conseguir é uma
questão de perspectiva, de posição, de técnica, estudo, experiência e engajamento.
No cotidiano do Setor de Vulneráveis, o “dolo específico” quase nunca era visto,
como eu mesmo presenciei, e como Roberta e a Delegada me disseram, era difícil
encontrá-lo, para lembrar da expressão da “doutora”. Em minhas últimas
considerações, voltarei meus esforços para refletir sobre essa dificuldade – ou sobre
as implicações e as condições de uma procura bastante particular do Setor, a
procura da intenção.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como ela vinculava uma legislação ao trabalho policial? Qual efeito é possível
associar a essa conexão? Por que era razoável perguntar assim, de modo tão
direto?
Os principais crimes de atuação do Setor eram aqueles tipificados pelo
parágrafo terceiro do artigo 140, o de injúria racial; e pela Lei 7.716, o de racismo. O
primeiro considerado um crime contra a pessoa, especificamente, contra a honra
subjetiva da pessoa, e o segundo considerado um crime de segregação contra um
grupo de pessoas. Respectivamente, um crime de Ação Penal Pública condicionada
à representação da vítima e um de Ação Pública incondicionada, pois nesse último o
“Estado” figurava como vítima. De todo modo, eram assunto de importância no Setor
na medida em que deveriam ter a intenção específica de discriminar comprovada,
conforme uma determinada doutrina confirmada pela escrivã e pela Delegada. A
intenção específica do investigado era o elemento central mesmo nos casos em que
o bem jurídico a ser resguardado era a honra subjetiva e a tipificação dependesse,
em um primeiro momento, de comunicação do crime e do sentimento de ofensa da
vítima. Os crimes que chegavam ao Setor teriam seus investigados indiciados se
fosse comprovada a sua intenção específica em discriminar, a intenção específica
do ato discriminatório do sujeito. Ou seja, não importava o quanto a pessoa que
procurou o Setor se sentisse ofendida.
A importância da legislação para esse procedimento não estava presente
apenas na doutrina consultada por escrivã e Delegada, ela também aparecia nas
suposições das duas a respeito do desdobramento dos casos. Isso ficou evidente
logo no começo do meu trabalho de campo, quando ambas, em dois momentos
diferentes, chamaram minha atenção para o fato de que as investigações feitas no
Setor, na maioria das vezes, não conseguiam chegar até o Poder Judiciário – e,
quando chegavam, muito raramente terminavam na incriminação dos que um dia
foram indiciados pela Delegada. O modo como juízes e procuradores costumavam
encarar os casos não determinava a atuação naquela unidade, mas o modo como
os casos prosseguiam também não era ignorado. Havia uma consideração grande
pelo “quando chegar lá”, ou seja, pela possibilidade de o caso poder ir adiante – ter
condições de sair do MP como uma denúncia, ser aceita e julgada pelo Poder
Judiciário.
As técnicas de investigação e interpretação da existência do “dolo
específico” buscavam uma intenção possível de ser confirmada pelo Ministério
138
Público, que pudesse encontrar adesão no Poder Judiciário, e, por isso, amparada
por uma doutrina considerada amplamente aceita. Tendo isso em vista, a
consideração do decorrer das investigações permite ver que ela deixava para trás o
sentimento de ofensa da vítima e passava a voltar-se quase que exclusivamente
para a intenção do investigado, à procura de uma intenção também quase que
exclusiva. Ou melhor, unívoca e indubitável, conforme a pergunta feita nas oitivas
dos investigados. Para “chegar lá” com alguma possibilidade de prosseguir, a
intenção da pessoa investigada era privilegiada em detrimento da expectativa e do
dano à vítima.
Dizendo de outro modo, o “dolo específico” permitia a conexão do caso com
uma determinada doutrina e isso pesava na sua consideração em relação à
possibilidade ir adiante no processo penal. Consequentemente, o dano causado à
vítima ficava em segundo plano – não porque não importasse à escrivã e à
delegada, mas pela confluência entre o modo de tipificação legal dos crimes, sua
exegese pela doutrina, a definição de atribuições institucionais e as relações entre
diferentes instituições. Em decorrência disso, o foco da investigação priorizava não
mais a relação entre vítima e autor, responsável por transportar o caso para as
dependências do Setor, mas entre ato e sujeito. O trabalho investigativo buscava
fabricar ao mesmo tempo, essa passagem, a existência do dolo e da discriminação,
em conjunto com determinados procedimentos, legislação e doutrina. Ou seja, não
se tratava de uma questão individual.
Por outra entrada analítica, é possível descrever a intenção como fabricada
nesse movimento e isso ajuda a mais uma vez não reduzir a questão a escala
individual, porque indica uma maneira não essencializada de destacar a intenção
como uma composição específica, localizada e localizável.
O conselho que tanto ouvi de Roberta sobre considerar a outra parte poderia
ser interessante para pensar outras incursões etnográficas, pois permitiria voltar a
atenção para as relações concretas enunciadas pelos noticiantes. No contexto da
investigação, a exigência de eliminar qualquer heterogeneidade impossibilitava
reconhecer, em tais relações, a existência de algo que dificilmente alcança a
univocidade pressuposta pela lei, a doutrina e as instituições. Ou seja, ao ser
considerada em formato exclusivo, a intenção terminava alijada da possibilidade de
qualquer ambivalência. Dizendo de outro modo, a procura da intenção era uma
maneira de torná-la um ato unívoco.
139
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