JENKINS, Keith. A História Repensada
JENKINS, Keith. A História Repensada
JENKINS, Keith. A História Repensada
A História repensada
TRADUÇÃO
Mario Vilela
REVISÃO TÉCNICA
Margareth Rago
editoracontexto
Copyright© 2004 Keith Jenkins
iodos os direi tos reservados. Tradução autorizada da edição em inglês
editada por Routledge, membro da Taylor & Francis Group
Traduzo
Mario Vilela
Reiatâo téatita
Margareth Rago
Diagramação
Fábio Amancio
Reviiâo
Camila Kintzcl
Bibliografia
ISBN 85-7244-168-9
011280___________________________________________________ CDD-901
índice para catálogo sistemático:
1.1 listótia: Filosofia e teoria 901
Editora Contexto
Diretor editorial: Jaime Pimky
’2ÕÕ7
Keith Jenkins
Sumário
9
meçar, no que diz respeito ao seu principal instrumento de
trabalho, isto é, as fontes, ou antes, os discursos. Mesmo com
a descoberta de outros recursos documentais, como as ima
gens trazidas pelo cinema ou pela pintura, é a partir dos textos
escritos no passado, ou memorizados no presente, que pro
curamos descobrir o que se passou, reunindo os fragmentos
dispersos que restaram, dando-lhes uma certa forma e bus
cando seus possíveis sentidos. Construímos, pois, uma trama
e uma narrativa do passado a pari ir das fontes existentes, dos
recursos teórico-metodológicos escolhidos e de um olhar,
dentre vários outros possíveis, marcado por nossa atualida
de, vale dizer, por nossa inserção cultural e social enfim, por
nossa própria subjetividade.
Hoje, quando novas forças sociais, étnicas, sexuais e
geracionais ganham espaço e respeitabilidade no mundo públi
co, já nào se pode afirmar simplesmente que a História é o
registro do que aconteceu no passado, pois se vários aconteci
mentos foram lembrados e registrados, muitos perderam seus
rastros, foram esquecidos, ou deliberada mente apagados.
Como discurso do vencedor, identitário e fechado sobre
si mesmo, a História já foi bastante desmistificada. Para essa
direção apontava o filósofo Michel Foucault ao propor-se
estudar "A vida dos homens infames’’, isto é, as histórias des
conhecidas das pessoas sem fama, sem glória e, por isso mes
mo, ausentes de visibilidade histórica. Numa posição bastan
te próxima, os historiadores sociais defenderam a “história
vista de baixo’’, também desde os anos 1970, buscando res
gatar os sujeitos excluídos e suas histórias perdidas. Já as
feministas reivindicaram incisivamente muito mais do que a
presença das mulheres na grande narrativa histórica. Ao lado
de pós-estruiuralisias como Jacques Derrida, radicalizaram a
crítica, contestando a própria construção discursiva na qual
os acontecimentos ganhavam sentido, recusando-se a entrar
nos espaços previamente delimitados para as mulheres nas
meta narrativas históricas e a representar os personagens es
10
tereotipados aí configurados. Ousadamente, reivindicaram
histórias plurais, contadas também no feminino.
Como mostra Jenkins, em A história repensada. uma das
principais rupturas que marcaram a produção do conheci
mento histórico foi sinalizada por Foucauk, ao desestabilizar
muitas de nossas certezas c mostrar algumas das armadilhas
das quais estávamos sendo vítimas, em seu clássico livro A
arqueologia do saber. Questionava, por um lado, a crença
bastante ingênua de que o documento fosse uma mera trans
parência da realidade, um reflexo invertido do “real”, um
meio de acesso direto aos acontecimentos e aos personagens
esçolhidos-, por outro, apontava para os efeitos de uma narra
tiva histórica que. na ânsia de construir a “síntese totalizadora"
pregada pelo marxismo, ignorava as desconcinuidades c des
cartava o imprevisível, pois não sabia lidar com as diferenças
e com o acaso.
Assim, a convicção de que contavamos os fatos “realmen
te acontecidos", ou de que encontravamos “o” passado, sim
plesmente indo aos arquivos e folheando os documentos,
mesmo que munidos de um sofisticado arsenal “científico",
positivista ou marxista, foi profundamente abalada. Critican
do a teoria lukácsiana do reflexo, predominante nos meios
acadêmicos desde a década de 1970, explica Jenkins, o filó
sofo francês mostrou que o documento não é o reflexo do
acontecimento, mas que é ele mesmo um outro aconteci
mento, isto é, uma materialidade construída por camadas
sedimentadas de interpretações: o documento é, assim, pen
sado arqueologicamente como “monumento”.
Percebido como “prática discursiva”, produz efeitos. O que
vale dizer que as palavras deixam de ser pensadas como
vento, leves, transparentes, sem densidade e sem qualquer
importância em si mesmas. Os historiadores são, desta feita,
obrigados a prestar atenção ao discurso, à maneira pela qual
um objeto histórico é produzido discursivamente e à própria
narrativa que constroem ou reproduzem.
11
Analisando essas mutações, Jenkins recorda que, desde a
década de 1970, outro intelectual bastante importante na atua
lidade, Hayden White, em seu Metahistória e, posteriormente
em Trópicos do discurso, já traduzidos para o português, alertava
para os diferentes modos de narrar a história. Chamando a
atenção para a importância de se pensar a forma discursiva,
tanto quanto o conteúdo narrado, White ensinava que um
mesmo acontecimento podería ser contado e interpretado não
apenas a partir de diferentes perspectivas classistas, como apon
tara o marxismo, mas também por meio de diferentes modos
narrativos, seja como tragédia, seja como comédia, seja como
drama, entre outras formas literárias existentes.
'iodas essas questões, apenas sinalizadas nessa breve apre
sentação, nos mostram que a produção do conhecimento his
tórico se sofisticou profundamente ao longo dos últimos trin
ta anos, e que ainda temos de entender melhor os percursos
e percalços de nossa disciplina se quisermos garantir sua so
brevivência enquanto tal.
Visando aclarar o debate em torno dessa “revolução" his
tórica, a Editora Contexto publica A História repensada, este
pequeno e denso livro, escrito por um historiador preocupa
do em organizar um pouco a casa, digamos assim, por os
pingos nos is, focalizar os movimentos inesperados e as brus
cas rupturas que lemos vivido em nossa área.
Afinal, o que faz o historiador? Para que e para quem bus
ca o acontecido? A partir de que instrumentos, teorias, valo
res e concepções recorta seus temas, seleciona seu material
documental e produz sua escrita do passado? E, aliás, de que
passado se trata? Dos ricos e dos pobres? Dos brancos e dos
negros? Das mulheres e dos homens especifica mente consi
derados? Das crianças e dos adultos? Ou do de uma figura
imaginária construída à imagem do branco europeu, pensa
do como universal?
O livro de Keith Jenkins nos chega em boa hora, e é, acre
dito, um excelente convite para uma séria conversa entre os
12
historiadores preocupados em pluralizar a I listória, democrati
zando-a e libertando-a das formas hierarquizadoras e exclu-
dentes do pensamento identitário, abrindo-a não só para múl
tiplos sujeitos sociais, mas para enfoques, acontecimentos,
métodos e procedimentos diferenciados. Se a história preten
de ter vários rostos, como se afirma recentemente, é importan
te que saiba conviver com diferentes formas de produção do
conhecimento histórico, respeitando acima de tudo as propos
tas trazidas pelo “pensamento diferencial”. Antes dos ataques
muito rápidos, das críticas improcedentes, das cxclusões afli
tas, ou das tomadas de posição definitivas, beneficiaríamos a
todos se conhecéssemos um pouco mais os avanços e recuos
ocorridos em nossa área nas últimas décadas, como propõe
Jenkins, principalmente em tempos de acelerada moderniza
ção conservadora. Talvez assim a História pudesse encontrar
caminhos e sentidos mais úteis e criativos diante dos impasses
tão graves colocados em nossa atualidade.
Margaretb Rago
Professora doutora do Departamento de História da Unicamp
13
Suponho que ioda disciplina, como Nietzsche claramente ob
serva, constitui-se por aquilo que cia proíbe seus praticantes dc
fazer. Toda disciplina é constituída por um conjunto de restrições
ao pensamento e ã imaginação, e nenhuma c mais repleta de tabus
do que a historiografia profissional - tanto que o chamado "méto
do histórico" consiste em |x>uco mais que na obrigação de "obter
a história diretamente" (sem qualquer noção do que poderia ser a
relação entre “estória" c "falo") c de evitar a qualquer preço tanto
a sobredctcrminaçào conceituai, quanto o arroubo imaginativo (ou
seja, o "entusiasmo")
No entanto, o preço que se paga e alio: reprime se o aparato
conceituai (sem o qual os fatos diminutos não podem ser agrega
dos em macroestruturas complexas nem constituídos como obje
tos de representação discursiva numa narrativa histórica) e remete-
se o momento poético do escrito histórico para o interior do discur
so (onde esse momento funciona como um conteúdo irrcconhecido,
e portanto incrilicável, da narrativa histórica).
Os historiadores que estalxdecem uma distinção rígida entre a
história e a filosofia da história não percelsem que todo discurso
histórico contém uma filosofia da história que é autêntica, ainda
que apenas subentendida. (...) A principal diferença entre a histó
ria e a filosofia da história é que essa última traz para a superfície
do texto o aparato conceituai com que os fatos são ordenados no
discurso, ao passo que a "história dc per si" (como a chamam) o
oculta no interior da narrativa, onde ele serve como um aitifício
oculto ou implíticito.
15
Introdução
17
acarretado a consequência um tanto infeliz de ajudar a história
a isolar-se de alguns dos desdobramentos intelectuais mais
amplos e, poder-se-ia dizer, mais generosos que recentemente
vem ocorrendo em discursos correlatos. Tanto a filosofia quanto
a literatura, por exemplo, têm encarado muito seriamente a
questão de qual é a natureza de suas respectivas naturezas?
Assim, poderiamos muito bem argumentar que a história,
em relação a esses discursos próximos, está atrasada em ter
mos teóricos. Para evitar qualquer mal-entendido, essa ob
servação talvez exija um exemplo imediato.
Quando você vai a uma livraria acadêmica e inspeciona as
prateleiras ocupadas por textos de filosofia, encontra uma
vasta gama de obras nas quais o arroz com feijão é o proble
ma dos fundamentos e dos limites do que se pode saber e do
que se pode fazer “filosoficamente”: textos de ontologia (teo
rias do ser), epistemologia (teorias do conhecimento) e meto
dologia; textos sobre ceticismo, linguagem e significado, ti
pos de análise (idealista, materialista, realista, fenomenológica)
e assim por diante. Depois, indo às prateleiras dc livros sobre
literatura, você depara com uma seção exclusiva de teoria
literária (além de uma seção de crítica literária). Lá se acham
textos com interpretações marxistas e feministas, análises
freudianas e pós freudianas; sobre desconstrucionismo, teo
ria crítica, teoria da recepção e intertextualidade; sobre poé
tica, narratologia, retórica, alegoria etc. Mas então você che
ga ao setor de história. Quase certamente, não há uma seção
de teoria da história (até mesmo a expressão parece esquisita
e canhestra, indicando falta de familiaridade). O que existe é
apenas o já mencionado Elton c outros, discretamente escon
didos em meio às serradas fileiras dos livros de história. Com
sorte, você talvez encontre um ou outro exemplar de Bloch,
Collingwood ou Geyl (agora já devidamente “manso") e, com
mais sorte ainda, um Foucault ou um Hayden White “recen
te”.5 Em outras palavras, ao ter-se movido uns poucos metros,
você atravessou uma grande diferença de gerações, indo de
18
textos muitos recentes e ricos em formulações teóricas para
obras sobre a natureza da história que foram produzidas há
trinta anos ou, no caso de Bloch e seus contemporâneos,
durante as décadas de 1930 e 1940.
Isso, claro, não quer dizer que inexistam textos imensa
mente sofisticados e mais recentes sobre a história e a “teoria
da história” (vide, de perspectivas muito diversas, Callinicos,
Oakcshott, diversas obras pós-inodeinistas ou outros desdo
bramentos na área da história intelectual ou cultural).6 Tam
bém nào quer dizer que, volta e meia, essa falta de preocupa
ção com a teoria da história e suas consequências não tenha
sido notada. Muito tempo atrás, Gareth Stedman Jones assi
nalou a pobreza do empiricisino inglês; numa época mais
próxima, Raphael Samuel comentou o estado relativamente
atrasado de muitas obras históricas que mostram um fetichismo
pela documentação, uma obsessão pelos fatos e, em conse
quência, uma metodologia de "realismo ingênuo”. O ensaio
“British history: past, present - and future?", de David
Cannadine, com suas severas críticas à esterilidade, chatice e
miopia de muita história convencional, tem sido bastante ci
tado por historiadores profissionais, ao passo que o estudo
de Christopher Parker sobre as principais características da
“tradição inglesa" em historiografia, tal qual exemplificada
por seus maiores expoentes desde aproximadamente 1850,
investiga a comuníssima bitola que te-m nutrido certo tipo de
individualismo, uma perspectiva metodológica que, em larga
medida, nào faz uma reflexão sobre seus próprios pressu-
postòs ideológicos.7 No entanto, tais desdobramentos e aná
lises não se inseriram de modo a informar significativamente
as pesquisas e os manuais mais usados acerca da natureza da
história. No geral, os historiadores vigorosamente práticos
demais ainda fogem de discursos teóricos, e decerto os tex
tos ocasionais sobre teoria da história nào exercem pressão
com o mesmo grau de intensidade que muitos textos de teo
ria literária, por exemplo, têm sobre o estudo da literatura.
19
Nào obstante, pode-se muito bem dizer que esse é o cami
nho que a história deverá trilhar se quiser "modernizar-se”.
Por conseguinte, recorri a áreas correlatas, como, por exem
plo, a teoria filosófica e a literária - pois, se estudar história
refere-se a como ler e entender o passado e o presente, então
me parece importante usar discursos que tenham por grandes
preocupações as “leituras” e a elaboração de significados.8
De que modo, então, este texto se estrutura? Ele tem três
capítulos, todos propositalmente curtos.9 No primeiro, abor
do diretamente a pergunta "O que é a história?" e como se
pode responder a ela de maneiras que nào necessariamente
copiem formulações mais “inglesas”, que nào deixem intocados
esses tipos de discurso dominante (o “senso comum”) como
se eles não fossem problemáticos e que comecem a abrir as
perspectivas da história para horizontes mais amplos. (Leve
em conta que a “história” são na realidade “histórias”, pois
nesta altura já deveriamos parar de pensar na história como
se ela fosse uma coisa simples e bastante óbvia, e reconhecer
que existe uma multiplicidade de tipos de história, cujo único
traço em comum é que pretendem investigar “o passado”.)
No capítulo 2, aplico aquela “resposta” a alguns dos lemas
e problemas que comumente vêm à tona em certos debates
mais básicos e introdutórios sobre a natureza da história. Devo
sustentar aqui que, embora levantados com frequência, tais
lemas e problemas são bem mais raras vezes resolvidos ou
contextualizados. Por isso, eles desconcertam e/ou ficam em
aberto. Tratam-se de problemas como estes: será que é pos
sível dizer o que real mente aconteceu no passado, chegar à
verdade, alcançar uma compreensão objetiva? Caso a respos
ta seja negativa, será que a história está fadada a ser irremedi
avelmente interpretai iva? O que são fatos históricos? Será que
existe mesmo tal coisa? O que é parcialidade c o que significa
dizer que os historiadores devem detectá-la e erradicá-la? Será
possível estabelecer empatia com pessoas que viveram no
passado? A história científica é possível? Ou a história é es
20
sencialmente uma arte? Qual é a situação daqueles parea-
mentos que aparecem com tanta frequência nas definições
do que seja história - causa e efeito, semelhança e diferença,
continuidade e mudança?
No capitulo 3, reúno todos os argumentos que apresentei
até aquele ponto, para relacioná-los à posição que adoto;
faço isso mediante a inserção deles no contexto que dá for
ma a este texto. Eu já disse que meu objetivo é trazer alguma
contribuição para que se desenvolvam alguns dos argumen
tos que giram em torno da questão do que é a história. As
sim, para levar essa proposta adiante, julguei oportuno dizer
por que tenho uma e não outra concepção do que seja histó
ria, posicionar-me no discurso que venho comentando e con
siderar as possibilidades de tal discurso. Apresso-me a expli
car que, se ajo dessa forma, não é porque minhas idéias te
nham necessariamente muita importância, mas porque, como
não existimos num vácuo, pode muito bem ser que o perío
do que me produziu - aquele que, por assim dizer, “me es
creveu" - já produziu você também e continuará a fazê-lo.
Esse período eu denomino pós-moderno, e por isso termino
o livro com um rápido capítulo de contextualizaçâo que se
intitula “Construindo a história no mundo pós-moderno” - o
mundo que, pode-se argumentar, é aquele no qual vivemos.
21
O que é a História?
DA TEORIA
23
daquela sobre a qual discursa. Ou seja, passado e história são
coisas diferentes. Ademais, o passado e a história nào estão
unidos um ao outro de tal maneira que se possa ter uma, e
apenas uma leitura histórica do passado. O passado e a histó
ria existem livres um do outro; estào muito distantes entre si
no tempo e no espaço. Isso porque o mesmo objeto de in
vestigação pode ser interpretado diferentemente por diferen
tes práticas discursivas (uma paisagem pode ser lida/inter-
pretada diferentemente por geógrafos, sociólogos, historia
dores, artistas, economistas et al.), ao mesmo tempo que, em
cada uma dessas práticas, há diferentes leituras interpretativas
no tempo e no espaço. No que diz respeito à história, a
historiografia mostra isso muito bem.
O parágrafo acima não é fácil. Fiz um monte de afirmações,
mas, na realidade, todas giram em torno da distinção entre pas
sado e história. Essa distinção é, portanto, essencial. Se for com
preendida, ela e o debate que suscita ajudarão a esclarecer o
que a história é na teoria. Por conseguinte, vou examinar as
afirmações que acabo de fazer, analisando com alguma minúcia
a diferença entre passado e história e, depois, considerando
algumas das principais consequências dessa diferença.
Deixe-me começar pela idéia de que a história, embora
seja um discurso sobre o passado, está numa categoria dife
rente dele. Isso pode lhe parecer estranho, porque talvez
você não tenha notado essa distinção antes ou, do contrário,
talvez ainda não tenha se preocupado muito com ela. Uma
das razões para que isso aconteça - ou seja, para que em
geral a distinção seja deixada de lado - é que tendemos a
perder de vista o falo de que realmente existe essa distinção
entre a história - entendida como o que foi cscrito/registrado
sobre o passado - e o próprio passado, pois a palavra “histó
ria" cobre ambas as coisas.1 Portanto, o preferível seria sem
pre marcar essa diferença usando o termo “o passado" para
tudo que se passou antes em todos os lugares e a palavra
"historiografia" para a história; aqui, “historiografia” se refere
24
aos escritos dos historiadores. Também seria um bom critério
(o passado como o objeto da atençào dos historiadores, a
historiografia como a maneira pela qual os historiadores o
abordam) deixar a palavra “História” (com H maiusculo) para
indicar o todo. No entanto, é difícil livrar-se do hábito, e eu
mesmo talvez use "história” para me referir ao passado, à
historiografia e a ambas as coisas. Mas lembre que, se e quando
eu fizer isso, estarei levando em conta tal distinção - e você
deveria proceder da mesma maneira.
Contudo, pode muito bem ser que esse esclarecimento
sobre a distinção entre passado e história pareça coisa vã.
Talvez você pense: “E daí? Que importância tem isso?” Permi
ta-me oferecer três exemplos de por que é importante enten
der a distinção entre passado c história.
1. O passado já aconteceu. Ele já passou, e os historiado
res só conseguem trazê-lo de volta mediado por veículos
muito diferentes, de que são exemplo os livros, artigos,
documentários etc., e não como acontecimentos presen
tes. O passado já passou, e a história é o que os histori
adores fazem com ele quando põem mãos à obra. A
história é o ofício dos historiadores (e/ou daqueles que
agem como se fossem historiadores). Quando os histori
adores se encontram, a primeira coisa que perguntam
uns aos outros é: “No que vocês estão trabalhando?” Esse
trabalho, expresso em livros, periódicos etc., é o que
você lê quando estuda história. Isso significa que a histó
ria está, muito literalmente, nas estantes das bibliotecas e
de outros lugares. Assim, se você começar a fazer um
curso de história espanhola seiscentista (por exemplo),
não vai precisar ir ao século xvii nem à Espanha; com a
ajuda de uma bibliografia, vai, isto sim, à biblioteca. É ali
que está a Espanha seiscentista, catalogada pelo sistema
decimal Dewey, pois aonde mais os professores man
dam você ir para estudar? Claro, você poderia ir a outros
lugares onde é |X>ssível encontrar outros vestígios do
25
passado - por exemplo, aos arquivos espanhóis. Mas,
aonde quer que vá, sempre terá de ler/interpretar. Essa
leitura não é espontânea nem natural. Ela é aprendida
(em vários cursos, por exemplo) e informada (ou seja,
dotada de significado) por outros textos. A história
(historiografia) é um constructo linguístico intertextual.
2. Digamos que você esteja estudando pane do passado
inglês (o século xvi, por exemplo) no secundário britâni
co. Vamos imaginar que você use um renomado com
pêndio: England under lhe Tudors, de Geoffrey Elton.
Na aula em que se trata de aspectos do século xvt, você
faz anotações em classe. Mas, para os trabalhos e o gros
so da revisão da matéria, usa Elton. Na hora do exame,
escreve à sombra de Elton. Ao passar, está aprovado em
história inglesa, ou seja, está qualificado na análise de
certos aspectos do "passado”. No entanto, seria mais acer
tado dizer que você passou não em história inglesa, mas
em Geoffrey Elton - pois, nessa fase, o que é sua "leitu
ra" do passado inglês senão uma leitura de Elton?
3. Esses dois rápidos exemplos da distinção entre passado
e história talvez façam parecer que se trata de algo sem
tnaiores consequências. Na realidade, porém, aquela dis
tinção pode ter efeitos enormes. Eis outro exemplo para
ilustrar isso: embora milhões de mulheres tenham vivido
no passado (na Grécia, em Roma, na Idade Média, na
África, nas Américas...), poucas aparecem na história,
isto é, nos textos de história. As mulheres, para citarmos
uma frase, foram “escondidas da história", ou seja, siste
maticamente excluídas da maioria dos relatos de historia
dores. Por conseguinte, as feministas estão agora engaja
das na tarefa de “fazer as mulheres voltarem para a histó
ria”, ao mesmo tempo que tanto homens quanto mulhe
res vêm examinando os constructos de masculinidade
que são correlatos ao tema.2 Nesta altura, você talvez
26
pare para considerar quantos outros grupos, pessoas,
povos, classes foram e/ou sào omitidos das histórias e
por quê; e quais poderíam ser as consequências se (ais
“grupos” omitidos dominassem os relatos históricos e se
os grupos hoje dominantes ficassem à margem.
Posteriormente, diremos mais sobre a importância e as
possibilidades de trabalhar a distinção entre passado e histó
ria. Por ora, eu gostaria de analisar outro argumento daquele
parágrafo anterior (p. 24) no qual digo que precisamos en
tender que o passado e a história nào estão unidos um ao
outro de tal modo que se possa ter uma, e apenas uma leitura
de qualquer fenômeno; que o mesmo objeto de investigação
é passível de diferentes interpretações por diferentes discur
sos; e que, até no âmbito de cada um desses discursos, há
interpretações que variam e diferem no espaço e no tempo.
Para começar a exemplificar isso, vamos imaginar que
possamos ver uma paisagem inglesa através de uma janela
(não toda a paisagem, pois a janela a “enquadra" muito lite
ralmente). No primeiro plano, estão várias estradinhas; mais
além, outras estradinhas, ladeadas por casas; há campos on-
dulantes e, neles, casas de fazenda. Na linha do horizonte, a
alguns quilômetros, vemos uma sucessão de morros baixos.
No plano intermediário, uma cidadezinha com uma feira. O
céu é de um azul pálido.
Nào há nada nessa paisagem que diga "geografia”. No
entanto, está claro que um geógrafo pode julgá-la em termos
geográficos. Assim, ele pode “ler” que a terra exibe práticas e
padrões de uso específicos; as estradinhas podem tornar-se
parte de uma série de redes de comunicação local e/ou regi
onal; as fazendas e a cidade podem ser "lidas” em termos de
uma distribuição populacional específica; cartas topográficas
podem mapear o terreno; geógrafos especializados, explicar
o clima e, digamos, os tipos decorrentes de irrigação. Dessa
maneira, o panorama podería virar outra coisa: geografia. De
maneira semelhante, um sociólogo podería pegar a mesma
27
paisagem e elaborá-la em (ermos so< i.Jógicos: as pessoas na
cidade poderíam tornar-se dados para estruturas ocupacionais,
tamanho das unidades familiares etc.; a distribuição
populacional, ser considerada em termos de classe, renda,
idade, sexo; o clima, ser visto como algo que afeta as possibi
lidades de lazer; e assim por diante.
Os historiadores também conseguem transformar a mes
ma paisagem em discurso próprio. Os atuais padrões de
uso da terra podem ser comparados com os da fase anterior
aos Grandes Cercamentos-, a população atual com a de 1831
ou 1871; pode-se analisar como a propriedade fundiária e o
poder político evoluíram no decorrer do tempo; examinar
como um pedacinho da paisagem adentra um parque nacio
nal, quando e por que a ferrovia e o canal fluvial deixaram
de funcionar etc.
Oia, dado que aquele panorama não tem nada de intrínse
co que grite “Geografia!”, "Sociologia!”, “História!” etc., pode
mos ver claramente que, embora os historiadores e todos os
outros não inventem a paisagem (todas aquelas coisas pare
cem estar mesmo lá), eles realmente formulam todas as cate
gorias descritivas dessa paisagem e quaisquer significados que
se possa dizer que ela tem. Eles elaboram as ferramentas ana
líticas e metodológicas para extrair dessa matéria-prima as suas
maneiras próprias de lê-la e falar a seu respeito: o discurso. É
nesse sentido que lemos o mundo como um texto, e tais leitu
ras são, pela lógica, infinitas. Não quero dizer com isso que
nós simplesmente inventamos histórias sobre o mundo ou so
bre o passado (ou seja, que travamos conhecimento do mun
do ou do passado e então inventamos narrativas sobre ele),
mas sim que a afirmação é muito mais fone: que o mundo ou
o passado sempre nos chegam como narrativas e que não
podemos sair dessas narrativas para verificar se correspondem
ao mundo ou ao passado reais, pois elas constituem a “realida
de". No exemplo que estamos vendo, isso significa que a pai
sagem (a qual ganha significado apenas quando lida) não con
28
segue estabelecí definitivamente tais leituras; assim, os
geógrafos podem interpretar e reinterpretar (ler e reler) a pai
sagem até não mais poderem, ao mesmo tempo que discor
dam do que está sendo dito “geograficamente". Ademais, dado
que a geografia nem sempre existiu como discurso, então não
apenas as interpretações dos geógrafos tiveram de começar
um dia e foram sempre diferindo no tempo e espaço, mas
também os próprios geógrafos entendem/lêem diferentemen
te o que constitui o discurso no âmbito do qual trabalham. Ou
seja, a própria geografia como maneira de ler o mundo precisa
de interpretação/histoiiazação. E o mesmo se dá com a socio
logia e a história. Sociólogos e historiadores diferentes inter
pretam de maneira distinta o mesmo fenômeno, por meio de
outros discursos que estão sempre mudando, sempre sendo
decompostos e recompostos, sempre posicionados e sempre
posicionando-se, e que por isso precisam que aqueles que os
usam façam uma autocrítica constante.
Nesta altura, vamos então presumir já termos demonstra
do o argumento de que a história como discurso se encontra
numa categoria diferente daquela na qual o passado está. No
começo do capítulo, porém, eu disse que, no nível da “teo
ria” com relação à pergunta “O que é a história?”, eu apresen
taria dois argumentos. Eis o segundo.
Dada a distinção entre passado e história, o problema para
o historiador que de algum modo quer captar o passado em
seu discurso histórico torna-se este: como se conciliam aque
las duas' coisas? Obviamente, a maneira com a qual se tenta
essa conexão - a maneira com a qual o historiador tenta
entender o passado - é crucial para determinar as possibili
dades do que a história é e pode ser, até porque a pretensão
da história ao conhecimento (em vez de considerar-se sim
ples fé ou alegação) é o que a torna o discurso que é (com
isso, quero dizer que os historiadores não costumam consi
derar-se ficcionistas, embora possam sê-lo sem se darem con
ta).5 No entanto, se existe diferença entre passado e história,
29
e se o objeto da investigação em que os historiadores traba
lham está ausente na maioria de suas manifestações (pois só
restam vestígios do passado), então claramente há todo tipo
de limite controlando as pretensões que os historiadores pos
sam ter ao conhecimento. E, nesse conciliar o passado com a
história, surgem para mim três campos teóricos muito proble
máticos. Sào áreas da epistemologia, da metodologia e da
ideologia, cada uma das quais precisa ser explicada se quere
mos ver o que é a história.
A epistemologia (do grego episteme, "conhecimento") se
refere ao campo filosófico das teorias do conhecimento. Essa
área diz respeito a como sabemos o que quer que seja. Nesse
sentido, a história integra outro discurso, a filosofia, tomando
pane na questão geral do que é possível saber com referên
cia à própria área de conhecimento da história - o passado. E
aqui você talvez já veja o (amanho do problema, pois, se é
complicado ter conhecimento de algo que existe, então fica
especialmente difícil dizer alguma coisa sobre um tema efeti
vamente ausente como é "o passado na história". Portanto,
parece óbvio que todo esse conhecimento é provavelmente
circunstancial e elaborado por historiadores que trabalham
sob todo tipo de pressuposto e pressão, coisas que, é claro,
não atuam sobre as pessoas do passado. Não obstante, ainda
vemos historiadores tentarem invocar ante nossos olhos o
espectro do passado real, um passado objetivo sobre o qual
os relatos desses historiadores seriam precisos e até verda
deiros, na acepção mais ampla da palavra. Pois bem: acho
que tais pretensões à verdade não são - e nunca foram -
passíveis de realizar-se, e eu diria que em nossa atual situa
ção isso já deveria ser óbvio, conforme argumentei no capí
tulo 3. Não obstante, está claro que aceitar isso - permitir que
a dúvida se instale - afeta o que você pode pensar que a
história seja, isto é, dá a você uma parte da resposta para o
que a história é e pode ser. Porque, ao reconhecermos que
não sabemos realmente, ao vermos a história como sendo
30
(pela lógica) qualquer coisa que queiramos que ela seja (a
distinção entre fato e valor, além da circunstância de ter havi
do (antas histórias, possibilita isso), nós vamos colocar a ques
tão de como histórias específicas vieram a ser elaboradas
segundo um e nào outro molde, em termos não só episte-
mológicos, mas também metodológicos e ideológicos. Nesse
ponto, o que é possível saber e como é possível saber
interagem com o poder. Em certo sentido, porém, isso só
acontece - e trata-se agora de algo que precisamos enfatizar
- por causa da fragilidade epistemológica da história. Por
que, se fosse possível saber de uma vez por todas, hoje e
sempre, então não havería mais necessidade de escrever his
tória, pois qual seria o propósito de um sem número de his
toriadores ficarem repetindo a mesmíssima coisa da
mesmíssima maneira o tempo lodo? A história (os constructos
históricos, e nàç o “passado e/ou futuro") pararia. E, se você
acha absurda a idéia de parar a história (ou seja, parar os
historiadores), saiba que não é: isso é pane não apenas do
romance 1984, por exemplo, mas também da Europa dos
anos 30 - a época e o lugar mais imediatos que fizeram George
Orwell considerar aquela idéia.
Portanto, a fragilidade epistemológica permite que as inter
pretações dos historiadores sejam multíplices (um só passado,
muitos historiadores). Mas o que torna a história tão frágil em
termos epistemológicos? Há quatro respostas básicas.
Em primeiro lugar (e agora eu recorro bastante aos argu
mentos de David Lowenlhal em seu livro The past isaforeign
country)* nenhum historiador consegue abarcar e assim recu
perar a totalidade dos acontecimentos passados, porque o “con
teúdo" desses acontecimentos é praticarnente ilimitado. Não é
possível relatar mais que uma fração do que já ocorreu, e o
relato de um historiador nunca corresponde exatamente ao
passado: o simples volume desse último inviabiliza a história
total. A maior parte das informações sobre o passado nunca foi
registrada, e a maior parte do que permaneceu é fugaz.
31
Em segundo lugar, nenhum relato consegue recuperar o
passado tal qual ele era, porque o passado são acontecimen
tos, situações etc., e nào um relato. Já que o passado passou,
relatos só poderão ser confrontados com outros relatos, nun
ca com o passado. Julgamos a “precisão” dos relatos de histo
riadores vis-à-vis as interpretações de outros historiadores, e
nào existe nenhuma narrativa, nenhuma história “verdadei
ra", que, ao fim, nos possibilite confrontar todos os outros
relatos com ela — isto é, não existe nenhum texto fundamen
ta Imente “correto" do qual as outras interpretações sejam
apenas variações; o que existe são meras variações. O crítico
cultural Steven Gilcs resume bem esse aspecto, quando co
menta que o passado é sempre percebido por meio das ca
madas sedimentares das interpretações anteriores e por meio
dos hábitos e categorias de "leitura” desenvolvidos pelos dis
cursos interpretativos anteriores e/ou atuais? Esse insighltam
bém nos possibilita afirmar que tal maneira de ver as coisas
torna o estudo da história (o passado) necessariamente um
estudo da historiografia (os historiadores); por conseguinte, a
historiografia passa a ser considerada nào um adendo ao es
tudo da história, mas a própria matéria constituinte dessa
última. É um campo ao qual voltarei no capítulo 2. Por en
quanto, vamos à terceira razão para que a história se mostre
frágil em lermos epistemológicos.
Essa razào é que, nào importando o quanto a história
seja autenticada, amplamente aceita ou verificável, ela está
fadada a ser um constructo pessoal, uma manifestação da
perspectiva do historiador como “narrador”. Ao contrário
da memória direta (que em si já é suspeita), a história de
pende dos olhos e da voz de outrem; vemos por intermédio
de um intérprete que se interpõe entre os acontecimentos
passados e a leitura que deles fazemos. E claro que, confor
me diz Lowenthal, a história escrita reduz a liberdade lógica
do historiador para escrever tudo que lhe der na telha, pois
nos permite o acesso às suas fontes. No entanto, o ponto de
32
vista e as predileçòes do historiador ainda moldam a esco
lha do material, e nossos próprios constructos pessoais de
terminam como o interpretamos. O passado que “conhece
mos” é sempre condicionado por nossas próprias visões,
nosso próprio “presente”. Assim como somos produtos do
passado, assim também o passado conhecido (a história) é
um artefato nosso. Ninguém, nào importando quão imerso
esteja no passado, consegue despojar-se de seu conheci
mento e de suas pressuposições. “Para explicarem o passa
do, os historiadores vão além do efetivamente registrado e
formulam hipóteses seguindo os modos de pensar do pre
sente”, diz Lowenthal. “Maitland nota que somos modernos
e que nossas palavras e pensamentos só podem ser moder
nos. Segundo ele, ‘já é tarde demais para sermos ingleses
medievais’.”6 Portanto, existem poucos limites à influência
de discursos interpretai ivos que procuram recuperar o pas
sado pela imaginação. “Vejam”, diz o poeta russo Velemir
Khlebnikov em seus Decretos aos planetas, “o sol obedece à
minha sintaxe.”7 Vejam, diz o historiador, o passado obede
ce à minha interpretação.
É possível que isso pareça um tanto poético. Portanto,
talvez possamos ilustrar com um exemplo mais simples esse
argumento de que as fontes impedem a liberdade total do
historiador e, ao mesmo tempo, nào fixam as coisas de tal
modo que se ponha mesmo fim a infinitas interpretações.
Eis o exemplo: existe muito desacordo sobre as intenções
de I litler^pós ele ter conquistado o poder e sobre as causas
da Segunda Guerra Mundial. Nesse campo, uma discordância
de longa data e muito famosa se deu entre A. J. P. Taylor e
Hugh Trevor-Roper. Ela não se baseava nos méritos desses
dois historiadores ingleses. Ambos eram muito experientes,
ambos tinham “habilidades”, ambos sabiam ler documentos
(e, no caso em pauta, os dois freqüentemente liam os mes
mos). Apesar disso, um não concordava com o outro. As
sim, embora as fontes/acontecimentos possam simplesmen-
33
te impedir que se diga tudo que se queira, eles também nào
implicam que se deva seguir uma única interpretação.
As (rês razões citadas acima para a fragilidade epistemo-
lógica da história se baseiam na idéia de que a história é
menos que o passado - ou seja, a idéia de que os historiado
res só conseguem recuperar fragmentos. Mas a quarta razào
vem enfatizar que, graças à possibilidade de ver as coisas em
retrospecto, nós de certa maneira sabemos mais sobre o pas
sado do que as pessoas que viveram lá. Ao traduzir o passa
do em termos modernos e usar conhecimentos que talvez
não estivessem disponíveis antes, o historiador descobre nào
só o que foi esquecido sobre o passado, mas também “recons
titui” coisas que, antes, nunca estiveram constituídas como
tal. Assim, as pessoas e formações sociais sào captadas em
processos que só podem ser vistos retrospectivamente, en
quanto documentos e outros vestígios do passado sào tirados
de seus propósitos e funções originais para ilustrar, por exem
plo, um padrão que nem remotamente tinham significado
para seus autores. Conforme diz Lowenlhal, tudo isso é ine
vitável. A história sempre dá nova feição às coisas. Ela muda
ou exagera aspectos do passado. “O tempo é escorçado; os
detalhes, selecionados e realçados; a açào, resumida; as rela
ções, simplificadas, nào para alterar Ide caso pensado) os acon
tecimentos, mas para [...1 dar-lhes significado.””
Até o cronista mais empírico precisa criar estruturas narra
tivas para dar forma ao tempo e ao espaço. “O {relato) pode
até ser apenas uma maldita coisa atrás da outra (...) mas nào
pode parecer ser apenas isso, pois aí todo o significado seria
expurgado dele.”9 E, dado que as narrativas enfatizam os ne
xos e minimizam o papel das rupturas, Lowenthal conclui
que os relatos históricos tal como os conhecemos parecem
mais abrangentes e perceptivos do que o passado nos dá
motivos para crer que tenha sido.
Esses, portanto, são os (imites epistemológicos principais
(todos bem conhecidos). Eu os tracei de modo rápido e su
31
perficial, e você pode ir além e ler Lowenthal e os outros.
Mas agora pretendo seguir adiante. Porque, se esses sào os
limites epistemológicos para o que se pode saber, então eles
obviamente se inter-relacionam com as maneiras pelas quais
os historiadores temam descobrir o máximo possível. E, tanto
nos métodos historiográficos quanto na episteinologia, não
existe um procedimento definitivo que se possa usar por ser
ele o correto; os métodos dos historiadores sào sempre tão
frágeis quanto as suas epistemologias.
Até aqui, sustentei que a história é um discurso em constan
te transformação construído pelos historiadores e que da exis
tência do passado nào se deduz uma interpretação única: mude
o olhar, desloque a perspectiva, e surgirão novas interpreta
ções. No entanto, embora os historiadores saibam de todas
essas coisas, a maioria parece desconsiderá-las de caso pensa
do e se empenha em alcançar a objetividade e a verdade mes
mo assim. E essa busca pela verdade transcende posições ideo
lógicas e/ou metodológicas.
Assim, naquilo que (de certo modo) poderiamos denomi
nar direita empiricista, Geoffrey Elton (em r!he practice of
history) afirma no início do capítulo sobre pesquisa: “O estu
do da história equivale a uma busca pela verdade”.10 E, em
bora aquele mesmo capítulo se conclua com uma série de
ressalvas (“o historiador sabe que o que está estudando é
real, [mas] sabe que nunca conseguirá recuperar todo o real
(...) ele sabe que o processo da pesquisa e reconstituição his
tórica nào termina nunca, mas também está cônscio de que
isso não torna seu trabalho irreal ou ilegítimo”), é óbvio que
tais advertências não afetam seriamente aquela antiga “busca
pela verdade”.
No que (também de certo modo) poderiamos chamar de
esquerda marxista, E. P. Thompson escreve em A miséria da
teoria-. "Já faz algum tempo Í..J, a concepção materialista da
história (...) vem ganhando autoconfiança. Na qualidade de
prática madura [...], ela é talvez a disciplina mais forte a ter
35
surgido da tradição marxista. Mesmo nessas últimas poucas
décadas I...J os avanços têm sido consideráveis, e supõe-se
que sejam avanços do conhecimento"Embora Thompson
reconheça que isso nào quer dizer que tal conhecimento seja
passível de “prova científica”, ele mesmo assim o tem por
conhecimento real.
E, naquilo que (ainda de certo modo) poderiamos consi
derar o centro empiricista, A. Marwick reconhece em The
nature ofbislory o que ele denomina a "dimensão subjetiva"
dos relatos bistoriográlicos.1’ Mas, para Marwick, essa dimen
são está nào na postura ideológica do historiador (por exem
plo), e sim na natureza das provas apresentadas, pois os his
toriadores se vêem “forçados pela imperfeição de suas fontes
a exibirem um grau maior de interpretação pessoal”. Assim
sendo, Marwick argumenta que é trabalho dos historiadores
desenvolver “severas regras metodológicas", pelas quais eles
possam reduzir suas intervenções “morais”. Marwick estabe
lece aí uma conexão com Ellon: este “insiste em que, só por
que a explicação histórica nào é determinada por leis univer
sais, isso não quer dizer que ela nào seja regida por regras
muito estritas".
Para todos esses historiadores, poitanto, o conhecimento
e a legitimidade advêm de regras e procedimentos metodo
lógicos rígidos. É isso que limita a liberdade interpreiativa
dos historiadores.
Meu argumento é diferente. Pura mim, o que em última
análise determina a interpretação está para além do método
e das provas — está na ideologia. Porque, embora a maioria
dos historiadores concorde que um método rigoroso é im
portante, existe o problema de sabei a qual método rigoroso
eles se referem. Em lhe naliire ofbistory, Marwick passa em
revista uma seleção de métodos, entre os quais (supõe-se)
podemos escolher nosso favorito. Quem você gostaria de
seguir? 1 lá I legei, Marx, Dilthey, Weber, Popper, I lempel, Aron,
Collingwood, Cray, Oakeshott, Danto, Gallie, Walsh, Atkinson,
3G
Leff, Hexter... Ou você prefere os empiricistas modernos, as
feministas, a escola dos Annales, os neomarxistas, os neo-
estilistas, os econometristas, os estruturalistas, os pós-estrutu-
ralistas ou mesmo o próprio Marwick? Já citamos 25 possibi
lidades, e trata-se de urna lista curtinha! A questão é que,
mesmo se conseguirmos fazer uma escolha, quais seriam os
critérios? Como poderiamos saber qual método nos conduzi
ría ao passado mais “verdadeiro”? Claro que cada um desses
métodos seria rigoroso, ou seja, sistemático e coerente, mas
ele também remetería sempre a seu próprio quadro de refe
rências. Isto é, ele podería nos dizer como apresentar argu
mentos válidos segundo suas diretivas, mas, dadas todas aque
las opções para tanto, o problema de discriminar de alguma
maneira entre 25 escolhas simplesmente teima em nào ser
resolvido. Thompson é rigoroso, mas Ehon também. Com
base em que vamos escolher? Em Marwick? Mas por que ele?
Acaso não será provável que, no fim de contas, escolhamos
Thompson (por exemplo) porque gostamos do que Thompson
faz com seu método? Gostamos de suas razões para trabalhar
com a história - pois, se outros fatores nào intervierem, pelo
que mais faremos nossa escolha?
Resumindo: é enganoso falar do método como o caminho
para a verdade. Há uma ampla gama de métodos, sem que
exista nenhum critério consensual para escolhermos dentre
eles. Com frequência, pessoas como Marwick argumentam
que, nào obstante todas as diferenças metodológicas entre
empiricistas e estruturalistas (por exemplo), eles estão de acor
do no fundamental. De novo, porém, as coisas nào são as
sim. O fato de os estruturalistas chegarem a extremos para
explicar com muita minúcia que nào são empiricistas - mais
o fato de terem formulado suas abordagens específicas justa
mente para diferenciar-se de todo mundo - parece ter sido
um tanto desconsiderado por Marwick et al.
Agora, quero tratar rapidamente de apenas mais um argu
mento referente ao método, um argumento que aparece com
37
frequência em textos introdutórios sobre a “natureza da his
tória’’. Ele se refere a conceitos e é o seguinte: tudo bem,
talvez as diferenças metodológicas nào possam ser elimina
das, mas ainda assim nào existem conceitos fundamentais
que todos os historiadores usam? E disso nào se conclui que
eles tenham algum terreno metodológico em comum?
Ora, por certo é verdade que, cm todos os tipos de história,
deparamos continuamente com os supostos “conceitos históri
cos” (por nào serem denominados “conceitos de historiado
res’’, eles parecem impessoais e objetivos, como se pertences
sem a uma história que, de algum modo, surgiu por geração
espontânea.) E nào é só isso: com bastante regularidade, tais
conceitos sào chamados os “alicerces" da história. Trata-se de
coisas como, por exemplo, tempo, prova/corroboraçào,
empatia, causa e efeito, continuidade e mudança etc.
Nào vou argumentar que não se devam “trabalhar" concei
tos, mas me preocupo com o falo de que, quando se apre
sentam esses conceitos específicos, têm-se a forte impressão
de que eles sào mesmo óbvios e eternos e constituem os
componentes básicos e universais do conhecimento históri
co. No entanto, isso é irônico, pois uma das coisas que a
abertura das perspectivas historiográficas para horizontes mais
amplos devia ter feito era justamente historicizar a própria
história - ver que todos os relatos históricos nào sào prisio
neiros do tempo e do espaço e, assim, ver que os conceitos
hisioriográficos não são alicerces universais, mas expressões
localizadas e particulares. É fácil demonstrar a historicizaçào
no caso dos conceitos “em comum”.
Num artigo sobre novos desdobramentos no campo da
história, o pedagogo britânico Donald Steel ponderou de que
maneira certos conceitos se tornaram “alicerces", mostrando
que, na década de 19Ó0, cinco grandes conceitos foram iden
tificados como elementos constitutivos da história: o tempo,
o espaço, a cronologia, o juízo moral e o realismo social.’3
Steel assinala que, em 1970, esses elementos já haviam sido
38
refinados (até por ele mesmo) para fornecerem os “conceitos
fundamentais” da história: tempo; prova; causa e efeito; con
tinuidade e mudança; e semelhança e diferença. Steel explica
que, na Inglaterra, foram esses conceitos que se tornaram a
base do currículo histórico nas escolas e que influenciaram, e
continuam influenciando, tanto os cursos de graduação quanto
o sistema educacional de modo mais geral. Aparentemente,
portanto, aqueles "velhos" alicerces estão há cerca de três
décadas apenas, nào sào universais e se originaram nào dos
métodos historiográficos em si, mas do pensamento pedagó
gico geral. Obviamente, esses alicerces conceituais também
sào ideológicos, pois o que poderia acontecer se outros fos
sem usados para organizar o campo dominante - por exem
plo, conceitos como esirutiua/agente, sobredeterminaçào, con
juntura, desenvolvimento desigual, centro/periferia, dominan-
te/marginal, base/superestrutura, ruptura, genealogia, men
talidade, hegemonia, elite, paradigma etc.? É hora de abor
darmos a ideologia diretamente.
Deixe-me começar com um exemplo. Neste ponto do tem
po e do espaço, poderiamos muito bem implantar em qual
quer currículo do ensino médio ou universitário inglês um
curso de história que seria bastante "histórico" (no sentido de
que se parecería com outras histórias), mas no qual a escolha
temática e metodológica seria feita de uma perspectiva ne
gra, marxista e feminista. Entretanto, ou duvido que haja tal
curso em algum lugar da Inglaterra. Por quê? Não porque
nào seja história - ele é mas porque na realidade as femi
nistas marxistas negras nào têm poder de proporcionar a esse
curso o tipo de inserção pública que existe em nossas insti
tuições de ensino. Contudo, se fôssemos perguntar às pesso
as com poder de decidir o que constitui um "currículo ade
quado" - às pessoas com poder de efetuar tais inclusões e/ou
exclusões elas provavelmente argumentariam que a justifi
cativa para tal exclusão está em que aquele curso seria ideo
lógico. Ou seja, que as motivações de tal história viriam de
39
preocupações alheias à história propriamente dita - que aquela
história seria um veículo para expressar determinada posiçào
com objetivos propaga ndísticos. Ora, essa distinção entre a
“história ideológica” e a “história propriamente dita” é inte
ressante porque implica, e é esta sua intenção, que certas
histórias (em geral as dominantes) nào são de modo algum
ideológicas, nem expressam visões do passado que sejam
alheias ao tema. Mas já vimos que os significados dados às
histórias de lodo tipo são necessariamente isso mesmo - sig
nificados que vêm de fora. Nào significados intrínsecos do
passado (não mais do que a paisagem já linha em si os nos
sos significados antes de os lermos colocado lá), mas signifi
cados dados ao passado por agentes externos. A história nunca
se basta; ela sempre se destina a alguém.
Por conseguinte, parece plausível que as formações so
ciais específicas querem que seus historiadores expressem
coisas específicas. Também parece plausível que as posições
predominantemente expressas serão do interesse dos blocos
dominantes dentro daquelas formações sociais (não que tais
posições surjam automaticamente e depois sejam assegura
das para sempre, ponto-final, sem sofrerem nenhuma contes
tação). O falo de que a história propriamente dita seja um
constructo ideológico significa que ela está sendo constante-
mente retrabalhada c reordenada por todos aqueles que, em
diferentes graus, são afetados pelas relações de poder - pois
os dominados, tanto quanto os dominantes, têm suas própri
as versões do passado para legitimar suas respectivas práti
cas, versões que precisam ser tachadas de impróprias e assim
excluídas de qualquer posição no projeto do discurso domi
nante. Nesse sentido, reordenar as mensagens a serem trans
mitidas (com freqüência, o mundo acadêmico chama de "con
trovérsias" muitas dessas reordenações) é algo que precisa
ser continuamente elaborado, pois as necessidades dos do
minantes e/ou subordinados estào sempre sendo retrabalhadas
no mundo real à medida que eles procuram mobilizar pes
40
soas para apoiarem seus interesses. A história se forja em tal
conflito, e está claro que essas necessidades conflitantes
incidem sobre os debates (ou seja, a luta pela posse) do que
é a história.
Assim, nesta aluira, já fica claro que responder à pergunta
“O que é a história?” de modo que ela seja realista está em
substituí-la por esta outra: "Para quem é a história?” Ao fazer
mos isso, vemos que a história está fadada a ser problemáti
ca, pois se trata de um termo e um discurso em litígio, com
diferentes significados para diferentes grupos. Uns querem
uma história asséptica, da qual o conflito e a angústia estejam
ausentes; outros, que a história leve à passividade; uns que
rem que ela expresse um vigoroso individualismo; outros,
que proporcione estratégias e táticas para a revolução; outros
ainda, que forneça base para a contra-revolução... E por aí
vai. É fácil ver que, para um revolucionário, a história só
pode ser diferente daquela almejada por um conservador.
Também é fácil ver que a lista de usos da história é infinita,
tanto pela lógica quanto pela prática. Afinal, que aspecto te-
ria uma história com que todos pudessem concordar de uma
vez por todas? Permita que eu ilustre esses comentários com
um rápido exemplo.
No romance 1984, Orwell escreveu que quem controla o
presente controla o passado e quem controla o passado con
trola o futuro. Isso parece ser também provável fora da fic
ção. Assim, as pessoas no presente necessitam de anteceden
tes para localizarem-se no agora e legitimarem seu modo de
vida atual e futuro. (/X bem dizer, dada a distinção fato/valor,
os "fatos” do passado, ou tudo mais, nào legitimam absoluta-
mente nada. Mas o ponto é que as pessoas agem como se
legitimassem.) Portanto, elas sentem a necessidade de enrai
zarem o hoje e o amanha em seu ontem. Recentemente, esse
ontem tem sido procurado (e achado, já que o passado se
predispõe sustentar incontáveis narrativas) por mulheres,
negros, grupos regionais, minorias diversas et al. Esses passa
41
dos são usados para explicar existências presentes e projetos
futuros. Remontando um pouco mais no tempo, veremos que
a classe trabalhadora também procurou enraizar-se mediante
uma trajetória elaborada em termos históricos. Remontando
ainda mais, a burguesia descobriu sua genealogia e começou
a elaborar uma história para si (e para outros). Nesse sentido,
todas as classes e/ou grupos escrevem suas respectivas auto
biografias coletivas. A história é a maneira pela qual as pes
soas criam, em parte, suas identidades. Ela é muito mais que
um módulo no currículo escolar ou acadêmico, embora pos
samos ver que o que ocorre nesses espaços educacionais
tem importância crucial para todas aquelas partes diversa
mente interessadas.
Mas será que não estamos cientes disso o tempo todo? Não
fica óbvio que um fenômeno “legitimador” tão importante como
é a história tem raízes em necessidades e poderes reais? Acho
que sim, mas com uma ressalva: quando o discurso dominante
se refere ao constante processo de reesefita da história, ele o
faz de maneiras que sublimam aquelas necessidades. Aí, o
discurso dominante produz a anódina reflexão de que toda
geração reescreve sua própria história. A pergunta, entretanto,
é como e por quê. E uma resposta possível, à qual Orwell
alude, é que as relações de poder produzem discursos ideoló
gicos do tipo “a história como conhecimento" (por exemplo)
que, em (ermos de projetos conflitantes de legimitimação, são
necessários para todas as panes envolvidas.
Agora, vamos concluir a exposição sobre o que a história é
na teoria. Argumentei que a história se compõe de episte-
mologia, metodologia e ideologia. A epistemologia mostra que
nunca poderemos realmente conhecer o passado - que a dis
crepância entre o passado e a história (historiografia) é
ontológica, ou seja, está de tal maneira presente na natureza
das coisas que nenhum esforço epistemológico, não importan
do quão grande, conseguirá eliminá-la. Os historiadores ela
boram modos de trabalhar para reduzira influência do histori
42
ador interpretaiivo, desenvolvendo métodos rigorosos que eles
tentam universalizar das mais variadas maneiras, mas sempre
pretendendo que, se todos seguíssemos esses métodos, um
alicerce de habilidades, conceitos, rotinas e procedimentos
poderia permitir chegar à objetividade. No entanto, existem
muitas metodologias; os supostos “alicerces conceituais” sào
de construção recente e parcial, e eu argumentei que as dife
renças que vemos estão lá porque a história é basicamente um
discurso em litígio, um campo de batalha onde pessoas, clas
ses e grupos elaboram autobiograficamente suas interpreta
ções do passado para agradarem a si mesmos. Fora dessas
pressões, não existe história definitiva. Todo consenso (tem
porário) só é alcançado quando as vozes dominantes conse
guem silenciar outras, seja pelo exercício explícito de poder,
seja pelo ato velado de inclusão e/ou anexação. Ao fim, a
história é teoria, e a teoria é ideologia, e a ideologia é pura e
simplesmente'interesse material. A ideologia penetra todos os
aspectos da história, aí incluídas as práticas cotidianas para
produzir histórias naquelas instituições que, em nossa socieda
de, são destinadas principalmente a tal propósito- em especi
al as universidades. Agora, vamos olhar a história como parte
desse tipo de prática.
DA PRÁTICA
43
do e que poderia ser contraposto aos "passados” da memória
popular, do "senso comum" e dos estereótipos, para nos de
sembaraçarmos desses constructos mal acabados, mal digeri
dos e (para Plumb) mal concebidos. Em On liuing in an old
counlry^ Patrick Wright argumentou que a meta de Plumb é
não apenas impossível, pois (como já vimos) inexistem ver
dades históricas não-problemáticas, mas também provavel
mente indesejável, pois pode muito bem ser que na história
popular (por exemplo) haja virtudes e leituras alternativas
que, de quando em quando, talvez seja necessário opor às
histórias “oficiais". Aqui, ele sugere que tenhamos em mente
o processo de memória dos proles de 1984.
Wright igualmente assinala que o único tipo de instituição
na qual o desarraigamento proposto por Plumb poderia efetu-
ar-se é o educacional (e este, por sua vez, já está intimamente
envolvido nos processos de socialização do gênero “memória
popular"). Porque, embora a esmagadora maioria dos historia
dores de carreira se declare imparcial, e embora de cena ma
neira eles realmente consigam um “distanciamento", é ainda
assim esclarecedor ver que esses profissionais nem de longe
estão fora do conflito ideológico e que eles até ocupam posi
ções bem dominantes dentro de tal conflito - em outras pala
vras, é esclarecedor ver que as histórias “profissionais" são
expressões de como as ideologias dominantes formulam a his
tória em termos “acadêmicos”. Parece bastante óbvio que, vis
tos sob uma perspectiva cultural e "histórica” mais ampla, in
vestimentos institucionais multimilionários como aqueles fei
tos em nossas universidades (por exemplo) são essenciais para
reproduzir a presente formação social e, portanto, estão na
vanguarda das forças da tutela cultural (padrões acadêmicos) e
do controle ideológico. Seria certo descuido do campo domi
nante se as coisas não fossem assim.
Dado que até agora tentei situar a história entre os
interstícios de interesses e pressões reais, também preciso
levar em conta as pressões “acadêmicas”, não só porque é,
44
sobretudo, o seu tipo de História que define o campo do que
“a História realmente é", mas ainda porque é esse o tipo de
história estudado no ensino médio e nos cursos de gradua
ção. Nestes cursos, com efeito, você é, na prática, iniciado na
história acadêmica; você deve ficar como os profissionais.
Mas como sào os profissionais e como é que eles produzem
histórias?16
Vamos começar assim: a história é produzida por um gru
po de operários chamados historiadores quando eles vão tra
balhar. É o serviço deles. E, quando vão trabalhar, eles levam
consigo cenas coisas identificáveis.
Em primeiro lugar, levam a si mesmos: seus valores, posi
ções, perspectivas ideológicas.
Em segundo lugar, levam seus pressupostos epistemo-
lógicos. Estes nem sempre sào conscientes, mas os historia
dores terão “em mente" maneiras de adquirir “conhecimen
to”. Aqui, entra em ação uma gama de categorias (econômi
cas, sociais, políticas, culturais, ideológicas etc.), uma gama
de conceitos que integram essas categorias (dentro da cate
goria política, por exemplo, pode haver muito uso de classe,
poder, Estado, soberania, legitimidade etc.) e amplas pressu
posições sobre a constância, ou não, dos seres humanos (algo
que, com muita frequência, é irônica e a-historicamente de
nominado “natureza humana”). Mediante o uso dessas cate
gorias, conceitos e pressuposições, o historiador vai gerar
hipóteses, formular abstrações e organizar e reorganizar seu
materiakde forma a incluir e excluir.
Os historiadores também empregam vocabulários própri
os de seu ofício, e estes (como se não bastasse serem inevita
velmente anacrônicos) afetam não apenas o que os historia
dores vêem, mas a maneira pela qual eles vêem. Tais catego
rias, conceitos e vocabulários são continuamente retrabalhados,
mas sem eles os historiadores não conseguiríam nem entender
os relatos uns dos outros, nem elaborar os seus próprios, não
importando quanto possam discordar a respeito das coisas.
45
Em terceiro lugar, os historiadores têm rotinas e procedi
mentos (métodos, na estrita acepção da palavra) para lidar
com o material: modos de verificar-lhe a origem, a posição, a
autenticidade, a fidedignidade... Essas rotinas se aplicarão a
lodo material trabalhado, mesmo que com graus variados de
concentração c rigor (ocorrem muitos lapsos e des-acertos).
Há aí uma gama de técnicas que vão do extravagantemente
complexo ao prosaicamente direto; (ratam-se do tipo de prá
ticas que muitas vezes são denominadas as “habilidades do
historiador", técnicas que, de passagem, podemos ver como
momentos também passageiros naquela combinação de fato
res que produzem histórias. (Em outras palavras, a história não
é questão de “habilidades".) Assim, munidos desses tipos de
prática, os historiadores conseguem pôr-se mais diretamente a
“inventar" um pouco de história - “produzir histórias".
Em quarto lugar, ao tocarem seu serviço de encontrar ma
teriais diversos para trabalhar e “desenvolver”, os historiado
res vão e vêm entre as obras publicadas de outros historiado
res (o tempo de trabalho acumulado em livros, artigos etc.) e
os materiais não publicados. Estes, “quase novos”, podem
ser denominados os vestígios do passado (as marcas que so
braram do passado: documentos, registros, artefatos etc.).
São uma mistura de vestígios conhecidos mas pouco usa
dos; vestígios novos, não-utilizados e possivelmente desco
nhecidos; e vestígios velhos, ou seja, materiais que já foram
usados, mas que, em vista dos vestígios novos e/ou quase
novos descobertos, são agora passíveis de inserção em con
textos diferentes daqueles que ocupavam antes. O historia
dor pode, então, começar a organizar todos esses elementos
de maneiras novas (e várias), sempre procurando a tão alme
jada “tese original”. Ele começa assim a transformar os vestí
gios do que outrora foi concreto cm “pensamento concreto",
ou seja, em relatos dos historiadores. Nisso, o historiador lite
ralmente re-produz os vestígios do passado numa nova cate
46
goria. E esse ato de trans-formação - do passado em história
- é o trabalho básico do historiador.
Em quinto lugar, os historiadores, tendo feito sua pesqui
sa, precisam então colocá-la por escrito. É aí que os fatores
epistemológicos, metodológicos e ideológicos voltam a en
trar cm ação, inter-relacionando-se com as práticas cotidia
nas, tal qual aconteceu durante todas as fases da pesquisa.
Essas pressões do cotidiano variam, é claro, mas algumas são
dadas a seguir:
1. A pressão da família e/ou dos amigos: “Ah, vocc nào vai
trabalhar de novo no fim de semana, vai?” "Será que dá
pra você tirar uma folguinha disso?”
2. As pressões do local de trabalho, no qual se fazem sen
tir não só as diversas influências de diretores de faculda
de, chefes de departamento, colegas e políticas institu
cionais de pesquisa, mas também (tenhamos a coragem
de dizê-lo) a obrigação de lecionar.
3. As pressões das editoras no que se refere a vários fatores:
Extensão. As restrições dc tamanho são consideráveis e
têm seus efeitos. Pense quanto o conhecimento his
tórico poderia ser diferente se todos os livros fossem
um terço mais curtos ou quatro vezes mais longos do
que o “norma 1"!
Formato. A dimensão da página, a impressão e o projeto
gráfico, a presença ou não de ilustrações, exercícios,
bibliografia, índice etc., o fato de o texto estar ou não
em folhas soltas e ser ou não complementado por vídeo
ou som gravado - tudo isso também tem efeitos.
Mercado. O que o historiador considerar seu mercado
vai influenciar o que ele diz e a maneira pela qual
ele diz. Pense no quanto a Revolução Francesa teria
de ser "diferente” para crianças do primário ou do
secundário, nào-europeus, "especialistas em revolu
ção" ou leigos curiosos, para citarmos só alguns pú
blicos diferentes entre si.
47
Prazos. O tempo total de que o autor dispõe para fazer;
pesquisa e escrevê-la, mais a alocação desse temp<
(uma vez por semana, um semestre de licença, os fin;
de semana), afeta, por exemplo, a disponibilidade da:
fontes, a concentração do historiador etc. Frequente
mente, o tipo de condição que a editora impõe con
referência à conclusão do trabalho é também crucial.
Estilo literário. O estilo (polêmico, discursivo, exube
rante, pedante, mais as combinações de tudo isso) e
o uso gramatical, sintático e semântico do historia
dor influenciam o relato e podem ser modificados
para ajustar-se às normas da editora, ao formato de
uma série etc.
Leituras críticas. As editoras enviam os originais para
uma leitura crítica, e quem a faz pode talvez pedir
mudanças drásticas na organização do material (este
texto, por exemplo, era de início duas vezes mais
longo). Também há casos em que os chamados “lei
tores críticos” têm interesses pessoais em jogo.
Reescrita. Trata-se de algo que acontece em todos os está
gios, até o livro ir para a impressão. Às vezes, algumas
partes requerem três redações; outras vezes, são (reze.
Idéias brilhantes que no começo pareciam dizer tudo
ficam enfadonhas e apagadas quando já se tentou
escrevê-las uma dúzia de vezes. Além disso, coisas que
seriam incluídas acabam nào o sendo, e, com frequên
cia, as que o são parecem ter sido deixadas à própria
sorte. Que tipo de critério se faz presente então, quan
do o escritor “trabalha” materiais lidos e anotados (mui
tas vezes imperfeitamente) tanto tempo antes?
E por aí vai. Pois bem-, esses sào aspectos óbvios (pense
quantos fatores externos, ou seja, fatores alheios ao “passa
do", agem sobre você e influenciam o que você escreve nos
trabalhos de faculdade, por exemplo), mas aqui o que se
deve enfatizar é que nenhuma de tais pressões, aliás, ne
18
nhum dos processos comentados neste capítulo, age sobre o
que está sendo relatado (por exemplo, o planejamento para
uso de recursos humanos na Primeira Guerra Mundial). Mais
uma vez, as discrepâncias entre passado e presente se alar
gam imensamente.
Em sexto lugar, o que se escreveu até agora foi a produ
ção de histórias. Mas os textos também precisam ser lidos -
consumidos. Assim como se pode consumir bolo das mais
diferentes maneiras (devagar, depressa etc.) e numa série de
situações (no trabalho, ao volante, em dieta, num casamento
etc.) e circunstâncias (você já comeu o bastante? a digestão é
difícil?), nenhuma das quais se repete de maneira idêntica,
assim também o consumo de um texto se dá em contextos
que igualmente não vão se repetir. De maneira muito literal,
não existem duas leituras idênticas. (Por vezes, fazemos ano
tações à margem de um texto e, voltando a elas tempos de
pois, não conseguimos lembrar do que se tratava. No entan
to, são exatamente as mesmas palavras na mesma página.
Assim, como é que significados conservam significado?) Por
tanto, nenhuma leitura, ainda que efetuada pela mesma pes
soa, é passível de produzir os mesmos efeitos repetidamente.
Isso quer dizer que os autores não têm como impingir suas
intençòes/interpretaçòes ao leitor. Inversamente, os leitores
nào têm como discernir por completo tudo que os autores
pretendiam. Ademais, o mesmo texto pode inserir-se primei
ro num discurso amplo e depois em outro; não existem limi
tes lógicos, e cada leitura é um escrito diferente. Esse é o
mundo do texto desconstrucionista, um mundo no qual qual
quer texto, em outros contextos, pode significar muitas coi
sas. Está aí "um mundo de diferença".
Contudo, essas últimas observações parecem suscitar um
problema. (Mas será que na leitura surgiu mesmo algum
problema para você? E será que esse seu problema é diferen
te do meu?) Para mim, ele está nisto: embora o que se disse
acima pareça implicar que tudo é um fluxo interpretativo, a
49
realidade é que “lemos” de maneira bastante previsível. Nes
se sentido, portanto, o que vem a definir as leituras? Bom,
nào é um consenso detalhado sobre tudo e todos, pois os
detalhes sempre flutuam livres por aí (pode-se sempre fazer
que coisas específicas tenham maior ou menor significado).
Mas realmente ocorrem consensos de caráter geral. Isso acon
tece por causa do poder. Aqui, voltamos à ideologia, pois
pode-se muito bem argumentar que o que impede os livros
de serem usados de maneira totalmente arbitrária é o falo de
que certos textos estào mais próximos de outros; são menos
ou mais classificáveis dentro de certos gêneros ou rótulos;
são menos ou mais simpáticos às necessidades que as pesso
as têm e que se expressam em textos. E assim, après Onvell,
as pessoas encontram afinidades e referências (bibliografias,
leituras recomendadas, a classificação decimal Dewey) que,
em última análise, são também arbitrárias, mas que atendem
a necessidades mais permanentes de grupos e classes: vive
mos num sistema social, e não a esmo. Trata-se de um campo
complicado mas essencial para a compreensão, e aqui pode
riamos mencionai textos de teóricos como Scholes, Eagleton,
Fish e Bennetl.’7
Poderiamos também refletir sobre como essa situação um
tanto desconcertante (o texto volúvel que na teoria não pre
cisa acomodar-se, mas que na prática o faz) atende a uma
aflição interpretativa que se manifesta com freqüência em
estudantes. A aflição é esta: se entendemos que a história é o
que fazem os historiadores; que eles a fazem com base em
frágeis comprovações; que a história é inevitavelmente
interpretativa; que há pelo menos meia dúzia de lados em
cada discussão e que, por isso, a história é relativa... Se en
tendemos tudo isso, então podemos muito bem pensar:
“Bom, se a história parece ser só interpretação e ninguém
sabe nada realmente, então para que estudá-la? Se tudo é
relativo, para que fazer história?” Trata-se de um estado de
espírito que poderiamos chamar “desventura do relativismo".
50
Em certo sentido, essa maneira de ver as coisas é positiva.
É uma liberação, pois joga velhas certezas no lixo e possibi
lita desmascarar quem se beneficia delas. E, também em cer
to sentido, tudo é relativo (ou seja, historicista). Mas, libera
ção ou não, trata-se ainda de algo que faz as pessoas senti
rem-se num beco sem saída. Não há necessidade disso, en
tretanto. Desconstruirmos as histórias de outras pessoas é
pré-requisito para construirmos a nossa própria, de maneira
que dê a entender que sabemos o que estamos fazendo - ou
seja, de maneira que nos faça lembrar que a história é sem
pre a história destinada a alguém. Porque, embora a lógica
diga que todos os relatos são problemáticos e relativos, a
questão é que alguns são dominantes e outros ficam à mar
gem. Em termos lógicos, todos são a mesma coisa; mas, na
realidade, eles são diferentes; estão em hierarquias valorativas
(ainda que, em última análise, infundadas).
Por quê? Pórque o conhecimento está relacionado ao poder
e porque, para atenderem a interesses dentro das formações
sociais, os que têm mais poder distribuem e legitimam tanto
quanto podem o “conhecimento”. A forma de escapar ao
relativismo na teoria é analisar assim o poder na prática. Por
conseguinte, uma perspectiva relativista não precisa levar à
desesperança. Ela é o começo de um reconhecimento geral de
como as coisas parecem funcionar. Trata-se de uma emancipa
ção: de modo reflexivo, você também pode produzir história.
DA DEFINIÇÃO DE HISTÓRIA
51
se) nas relações de poder ein qualquer formação social de
que ele se origine. Ou seja, o problema surge quando dife
rentes pessoas, grupos e classes perguntam: “O que a história
significa para mim ou para nós e de que modo se pode usar
ou abusar dela?” É então, no campo dos usos e significados,
que a história fica tào problemática. “O que é a história?" se
torna "Para quem é a história?", como já expliquei. O essenci
al está aí. Assim, o que a história é para mim? Eis uma defini
ção:
52
Algumas perguntas e
algumas respostas
53
2. Existe história objetiva? (Existem “fatos” objetivos etc.?)
Ou a história nào passa de interpretação?
3- O que é parcialidade? E quais as dificuldades para
erradicá-la?
4. O que é empatia? Ela é possível? Como e por quê? E, se
ela não for possível, por que parece tão importante ten
tar alcançá-la mesmo assim?
5. Quais as diferenças entre fontes primárias e secundá
rias? E entre "provas” e “fontes"? O que está em jogo
nesse aspecto?
6. O que é que a gente faz com pareamentos como causa
e efeito, continuidade c mudança, semelhança e dife
rença? É possível fazer o que se pede com eles?
7. A história é arte ou ciência?
DA VERDADE
5'1
tentes. Sem a objetividade, como é que poderiamos discrimi
nar entre relatos rivais de um mesmo fenômeno? Num nível
mais chão, como é que poderiamos decidir quais foram as
causas mais importantes da reforma constitucional inglesa de
1882, por exemplo? E esse o tipo de preocupação que parece
nos perseguir.
Mas por quê? Para além das necessidades práticas inais ime
diatas, de onde se origina essa ânsia de certeza? As razões sào
muitas, indo desde generalizações sobre a “cultura ocidental”
até temores psicossociais de “desnorteamento" ante a incerte
za. O tão citado comentário do filósofo A. N. Whitehead de
que a tradição filosófica dominante no Ocidente (a "Tradição
Ocidental") nào passa de uma série de notas de rodapé à obra
de Platão explica muito, dada a visão platônica de que o co
nhecimento absoluto (da verdade, da justiça, da melhor políti
ca) é possível em suas formas mais puras e pode ser apurado
mediante a discussão filosófica (com o corolário de que não
seria racional agirmos de maneira não-virtuosa se soubésse
mos o que é a virtude; é a visão de que o bom/verdadeiro
conhecimento deveria acarretar a boa/verdadeira ação). 'lam
bem cruciais sào os argumentos cristãos nas quais a palavra de
Deus é a Verdade e de que conhecê-Lo é conhecer a Verdade;
de que o cristianismo fornece critérios para julgar tudo e todos
na balança do certo e do errado. Ademais, durante longo tem
po, as constantes tentativas do pensamento ocidental em tan
tas de suas manifestações (filosofia, teologia, estética etc.) para
formular alguma correspondência entre a palavra e o mundo
pelas teorias da verdade mantiveram um pouco à distância o
ceticismo destrutivo, do qual sào exemplos o sofismo, o
noininalismo e o antifundamentalismo (nesse sentido
epistemológico, “fundamentalismo", no inglês foiindationalism,
seria a visão de que o conhecimento consiste numa estrutura
erigida sobre alicerces seguros e certos). O desenvolvimento do
racionalismo e da ciência, e o fato de que essa última realmente
parece “funcionar”, são outros fatores que contribuíram para
55
aquela situação. Junte-se o fato de que, na existência cotidia
na, a verdade e seus sinônimos são termos de uso comum
(“Diga a verdade!”; “É fato que você disse isso?"; “Você tem
certeza?”); junte-se a vivência que temos na escola (“Quem
sabe a resposta cena?”; “Está errado, faça de novo!”); juntem-se
aqueles X cheios de certeza que pomos nas questões de múl
tipla escolha; juntem-se todos aqueles livros que nos intimi
dam porque nào conseguimos ver como seus “conteúdos" fo
ram produzidos... Junte-se tudo isso, e parecerá muito natural
que a verdade esteja à mão.
Mas nada na cultura é natural. Hoje, nào conhecemos ne
nhum fundamento para os absolutos platônicos. Hoje, vive
mos com a idéia da ausência de Deus. Desconstruímos e
tornamos arbitrários e pragmáticos os vínculos entre a pala
vra e o mundo. No século xx, assistimos à incapacidade da
razão para desbancar o irracionalismo de forma convincente.
Embora físicos e engenheiros sigam em frente com seu traba
lho e seus raciocínios hipotético-dedulivos, as bases do su
cesso deles permanecem um enigma. “Por que é que o mun
do exterior, no sentido simples e óbvio, deve coincidir com
os postulados de regularidade, as expectativas matemáticas e
regristas do racionalismo investigaiivo? É coisa que ninguém
sabe responder.”’ E, claro, entendemos o “senso comum",
com suas homílias que persistem e se mostram usuais muito
(empo depois que já desapareceram os motivos para elas
terem surgido. “Ainda dizemos que o sol ‘nasce’ e *se põe’.
Fazemos isso como se o modelo copernicano do sistema so
lar já não houvesse definitivamente substituído o ptolomaico.
Metáforas vazias, figuras de linguagem gastas, habitam nosso
vocabulário e nossa gramática. Elas se agarram com tenaci
dade ao desvãos de nosso linguajai comum.”2
Portanto, tudo isso são coisas que sabemos (se é que ainda
podemos usar essa palavra). Somos a morais, céticos, irôni
cos, temporais; nossa cultura é tudo isso. Somos parceiros na
incerteza; surpreendemos a verdade, saímos em seu encalço
56
e descobrimos que se tratava de um signo linguístico, um
conceito. A verdade é uma figura de retórica cujo quadro de
referencias não vai além de si mesma, incapaz de apreender
o mundo dos fenômenos: a palavra e o mundo, a palavra e o
objeto, continuam separados.
Agora vamos examinar esses tópicos em termos gerais e
depois relacioná-los com a separação análoga que ocorre en
tre o passado fenomênico e a história discursiva, de modo a
chegarmos ao fim daquela primeira questão.
Em As palavras e as coisas, Michel Eoucault assinala tanto
o absurdo quanto a utilidade de correspondências entre pa
lavras e coisas:
57
Essa ruptura (...) entre a palavra e o inundo é o que constitui uma
das poucas revoluções autenticas da história ocidental. (...) A pala
vra "rosa" não tem caule, não tem folha c não tem espinho. Nilo é
nem cor-de-rosa, nem vermelha, nem amarela Não exala nenhum
odor. De per si, é um rótulo totahnente arbitrário, um signo vazio.
Absolutamente nada (...) em seus componentes fenomênicos, his
tória etimológica ou funções gramaticais tem alguma correspon
dência com o que quer que acreditemos ou imaginemos ser o
objeto da referência, puramente convencional, da palavra “rosa".4
5R
verdadeiros dos falsos; a maneira como se sanciona uns e outros;
as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obten
ção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o
que funciona como verdadeiro.
(...) por "verdade", não quero dizer “o conjunto das coisas verda
deiras a descobrir e aceitar", mas “o conjunto das coisas verdadei
ras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e das re
gras se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”, enten-
dendo-se também que não se trata de um combate "em prol” da
verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econô
mico e político que a ela desempenha.
A "verdade" deve ser entendida como um conjunto de procedi
mentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação
e o funcionamento dos enunciados. A “verdade" está ligada (...) a
sistemas de poder, que a produzem e sustentam. [...I Um "Regime
da verdade".6
59
Existirão “coisas passadas" que pareçam ser factualmente
correias? Em certo sentido, é legítimo responder que sim. Sa
bemos, por exemplo, que a chamada Grande Guerra/Primeira
Guerra Mundial ocorreu entre 1914 e 1918. Sabemos que
Margaret Thatcher subiu ao poder em 1979- Se essas coisas são
fatos, então conhecemos fatos. Entretanto, tais fatos, embora
sejam importantes, são “verdadeiros” mas banais no âmbito
das questões mais amplas que os historiadores discutem. Isso
porque eles nào estão demasiado preocupados com os fatos
“descontínuos” (os fatos “individualizados”), já que essa preo
cupação só cabe àquela pane do discurso histórico que se
chama crônica. Nào: os historiadores têm ambições, desejam
descobrir não apenas o que aconteceu, mas também como e
por que aconteceu e o que as coisas significavam e significam.
Essa é a tarefa que os historiadores se propuseram (com isso,
quero dizer que eles não estavam obrigados a almejar tanto).
Assim, o que está em pauta nunca são os fatos de per si, mas
o peso, a posição, a combinação e a importância que eles
trazem com referência uns aos outros na elaboração dc expli
cações. Essa é a inevitável dimensão interpretai iva, a proble
mática, quando os historiadores transformam os acontecimen
tos do passado em padrões significantes que nenhuma repre
sentação literal desses acontecimentos como fatos podería ja
mais produzir. Porque, embora possam existir métodos para
descobrir “o que aconteceu", nào existe absolutamente ne
nhum método pelo qual se possa afirmar de uma vez por
Kxlas, “ponto-final”, o que os “fatos” significam. Aqui, mais
uma vez, o que Steincr tem para dizer é pertinente. Um texto,
considerando-se que seus componentes são
60
Está claro que isso se aplica à história como discurso. Se o
passado é um texto (repleto de “velhos" textos) para ser lido
e receber significado (lembre mais uma vez a paisagem lida
como geografia), então cabem as críticas aos limites de qual
quer textualidade. Nào há método que estabeleça significa
dos definitivos; a fim de terem significado, todos os fatos
precisam inserir-se em leituras interpretativas que obviamen-
te os contêm, mas que nào surgem pura e simplesmente de
les. Para desgosto dos empiricistas, trata-se de algo que a
dicotomia fato/valor possibilita e exige.K
Fica evidente que os historiadores deveriam levar em con
ta-esses argumentos quando põem màos à obra, mas com
frequência, eles nào o fazem. E, quando o fazem, raramente
os desenvolvem. Muitas vezes, os historiadores parecem su
por que as interpretações derivam dos “fatos" e que uma
interpretação temporária e localizada é na realidade verda-
deira/exata; quê “no centro", se encontram os fatos funda
mentais de alguma maneira dada e nào-interpretada.
Isso tudo pode talvez parecer um pouco abstrato. Assim,
permita-me mostrar com um exemplo o que está em jogo aqui.
Num artigo na imprensa nào-acadêmica,9 o historiador
Robert Skidelsky escreveu justamente sobre o problema que
estamos analisando. Nesse artigo, ele enfatiza que a maioria
dos fatos históricos nào está em discussão, que o relativismo
nào representa ameaça para a discussão disciplinada de um
corpus basicamente consensual e que valores e interpreta
ções em comum predominam na maioria de “nossas" inter
pretações do passado. Skidelsky reconhece que a atividade
interpretativa segue em frente, mas argumenta que ela se
situa nas margens do discurso, onde nào põe em dúvida aquele
centro em comum; aliás, é desse centro que se julgam pers
pectivas rivais (marginais).
Ao expressar tal visão dc maneira tão clara, Skidelsky fala
por muitos historiadores, e o que ele diz pode ser exempli
ficado rapidamente. Poderiamos afirmar que conhecemos os
61
fatos básicos sobre os anos do entreguerras na Europa; sabe
mos o que aconteceu e sabemos quando e (em larga medida)
por que aconteceu. Ocorreram e ocorrem debates em torno
desse consenso (sobre Munique, a política de apaziguamen
to etc.), mas eles respeitam os fatos e só de maneira limitada
procuram reautenticá-los. Com frequência, tais debates estão
vinculados a historiadores específicos (I). C. Watt, A. J. P.
Taylor), e trata-se aí da chamada dimensão historiográfica.
Ou seja, historiadores re-interpretam detalhes do entreguerras,
e isso é historiográfico no sentido de que fica possível estu
dar o que os historiadores dizem.
Ora, essa posição tem certos corolários, até porque, se a
historiografia só ocorre nas margens do conhecimento, então
uma abordagem (como a minha, por exemplo) que veja toda
a história como historiografia também fica marginalizada (ou
seja, considerada incorreta). Frequentemente ouço dizer que
os estudantes precisam parar de ouvir o.que os historiadores
falam e concentrar-se no que efetivamente aconteceu; eles
precisam estudar a história "como se deve”. Mas isso vai de
encontro a tudo que venho afirmando. Se a história é inter
pretação, se ela é obra (ou obras) dos historiadores, então a
historiografia é mesmo o estudo da história "como se deve”.
Em meu argumento, tudo isso é um constructo discursivo,
inclusive o centro não-interpretativo ã Skidelsky; ou seja, o
chamado "centro" é apenas uma interpretação cristalizada.
Está aí uma importante diferença entre mim, de um lado, e
Skidelsky et al., de outro. Para apoiar meu ponto de vista,
gostaria de apresentar o argumento seguinte.
Usando mais uma vez o período do entreguerras, eis minha
posição. Skidelsky, dentre outros, afirma que existe um grande
corpus de conhecimento factual e consensual sobre 1918-39-
Nas margens, alguns detalhes são até retrabalhados, mas o
centro resiste. E não é incomum que esses autores caracteri
zem tais debates "marginais" como uma disputa entre "esquer
da" e “direita”. É um modelo que podemos visualizar assim:
62
CENTRO DIREITA
ESQUERDA
EQUILÍBRIO
torna-se:
ESPECTRO ESPECTRO
EQUILÍBRIO
63
Aqui, vemos de imediato que o centro, na realidade, não é
centro de coisa nenhuma. Em vez disso, o que temos é um
conjunto de posições de esquerda/centro/direita rumo a uma
das extremidades de determinado espectro (que, pela lógica,
é infinito). Portanto, quando alguém supostamente dá res
postas equilibradas a partir do “centro", fica a dúvida: é o
centro de quê? Porque, se deslocarmos o conjunto esquerda/
centro/direita para qualquer outra posição no espectro, vere
mos que não só o centro é des-centrado, mas também todo
aquele conceito se torna problemático - pois um espectro
não pode ter centro.
Se isso ainda parece um tanto vago, vamos nos deter um
pouco mais. Na Inglaterra atual, será que as interpretações
marginais/opositivas, as quais podemos somar e julgar, giram
em torno de um centro inarxista-leninista?
Creio que a resposta seja não. .Mas por que não? Afinal,
existe por ai um número enorme de relatos marxista-leninistas
sobre 1918 39 (referentes ao fascismo, às causas da Grande
Guerra Patriótica etc.). Por que então esse não é o centro
(nào-interpietativo) ao redor do qual os outros relatos são
apenas interpretações marginais? Não se trata de um exem
plo irrealista, pois na urss os relatos marxista-leninistas eram
o centro. Na urss, nosso centro “em comum" era burguês e
ficava à margem. Em outras palavras, “nosso" centro é ape
nas “nosso". O argumento de Skidelsky, segundo o qual nos
so centro era essencialmente o de todo mundo (universal) e
havia mesmo um centro que não era só mais uma posição,
parece falacioso. Creio que existam não centros em si, mas
padrões localizados de dominação c marginalização, os quais
sào todos elaborados histori-.»gralh amente e precisam ser
historiograhcamenle interpretados. O discurso específico que
Skidelsky ocupa (e que nesse sentido o ocupa também, ou
seja, faz dele o historiador que é) o posiciona, tal qual acon
tece com todos nós. E, se estamos certos sobre a natureza
ideológica das posições, aquele discurso também o posiciona
G4
ideologicamente: lembre que não existem histórias que não
se destinem a alguém. Agora vamos para a questão da parcia
lidade.
DA PARCIALIDADE
65
Visto que esse tipo de abordagem tem em seu centro a
objetividade, a parcialidade aí faz sentido. No caso, ela signi
fica distorcer fontes para validar uma tese, ocultar documen
tos, falsificar provas...
Mas, e esta é a terceira pane do argumento, a história
pode ser outras coisas além de empiricista (aqui, basta lem
brarmos as 25 variedades apresentadas por Marwick). Assim,
por exemplo, a história pode ser vista como a maneira pela
qual grupos e/ou classes dão sentido a seu próprio passado
apossando-se dele; por conseguinte, pode-se elaborar o pas
sado de modo que tenha significado para os marxistas, os
radicais de direita, as feministas et al. E claro que, em cada
um desses constructos, haverá mecanismos de verificação para
validar as interpretações dadas (referências a fontes em notas
de rodapé etc.). No entanto, a palavra “parcialidade" quase
nào aparece nesses discursos. No marxismo (por exemplo),
veremos referências a muitas posturas partidárias diferentes:
talvez leiamos sobre tendências voluntaristas ou economicistas,
interpretações gramscianas ou akhusserianas, desvios
trotskistas e assim por diante. Mas tais posturas nào serão
denominadas parcialidade, pois todos sabem que os
gramscianos usam o passado diferentemente dos marxistas-
economicistas. Assim, qual é o sentido de dizer que Gramsci
era "parcial"? Parcial em relação a que tipo de relato? Ao
trotskisla? Ao burguês? Aos fatos?
Agora, a quarta parte do argumento. Olhando a história
dessa maneira (como uma série de interpretações, todas elas
posicionadas), fica claro nào existir nenhum critério nâo-
posicionado com que se possa julgar o grau de parcialidade.
Pode-se até dizer que nào há muito sentido em usar o termo
“parcialidade" de modo genérico para afirmar, por exemplo,
que as feministas são parciais; elas simplesmente irào per
guntar se esse julgamento é feito de uma posição patriarcal. E
nào é só. A pretensão empiricista de que é possível detectar
a parcialidade e erradicá-la, bastando seguir "o que as fontes
66
dizem”, vê-se solapada pelo faio de que as fontes sào mudas.
Sào os historiadores que formulam tudo que as fontes "di
zem”, pois, pergunto, nào é fato notório que um grande nu
mero de historiadores (todos honestos e escrupulosos a seu
jeito) vai às mesmas fontes e acaba produzindo relatos dife
rentes? Nào é fato que todo historiador tem suas próprias e
muitas narrativas para contar?
Por conseguinte, a quinta parte do argumento se torna uma
pergunta e uma resposta. A pergunta.- se é esse o caso, se (a) a
parcialidade tem mais sentido no empiricismo, se (b) as pre
tensões do empiricismo de chegai à verdade mediante algum
relato embasado nas fontes sào problemáticas e se (c) afirma
ções genéricas do tipo "As feministas sào parciais” não têm
muito sentido, entào por que os termos “parcial” e “parcialida
de" sào de uso geral? Acho que a resposta podería ser esta:
67
agarra à noção de relato fiel (“verdadeiro”), afirmando
ser possível alcançar essa verdade se a parcialidade é
detectada e erradicada. Mas, se no fim das contas é tudo
interpretação e se a parcialidade de uns é a verdade de
outros, como é que ficamos? Logo, o problema da parci
alidade é especificamente empiricista, mas, dado que se
trata da prática dominante, seus problemas se distribuem
como se fossem de todos. Contudo, não o são. É claro (e
precisamos enfatizar isto) que outros discursos têm seus
próprios problemas de coerência interna etc., mas eles
nào se expressam em termos de parcialidade.
Concluindo: em nossa cultura, os estudantes tendem a
encontrar por todos os lados o conceito de parcialidade, muito
embora ele só seja problemático em alguns segmentos. A
idéia de parcialidade, se e quando for utilizada, deverá ser
aplicada de maneira específica e localizada. (Do jeito que
está, ela é usada ideologicamente.) No mais, já que aquilo
que elaboram como história é sempre elaborado diferente
mente, os problemas de veracidade serão tratados também
diferentemente.
DA EMPATIA
68
com tal destaque naquele projeto; e, por fim, vou propor
algumas conclusões.
Acho que a empatia é inalcançável por quatro razões. Duas
sào basicamente filosóficas, e duas sào práticas.
O problema filosófico de “outras mentes”, conforme expos
to por Wittgenstein e outros,12 considera se é ou nào possível
entrar na cabeça de uma pessoa que já conhecemos bem e
que, ainda por cima, é uma só e conclui que nào. Os historia
dores, entretanto, nào levam em conta essa conclusão e conti
nuam a levantar questões baseadas no pressuposto de ser mes
mo possível entrar na cabeça de um número enorme de pes
soas, até mesmo daquelas que nào há jeito de conhecermos
bem e que estão muito distantes de nós no tempo e no espaço.
Isso se vincula ao segundo problema filosófico, pois o que
acaba sendo ignorado na busca da empatia é que todo ato de
comunicação acarreta um ato de interpretação - ou seja, que
toda fala é uma “tradução que ocorre entre âmbitos distintos”
\translalion between priuacies], E, se esse ato de interpreta
ção transcorre nào entre “você e mim", no aqui-e-agora, mas
entre “nós e eles”, em algum outro tempo e lugar, então a
tarefa se torna extremamente problemática. Isso porque os
historiadores transportam para todos os acontecimentos pas
sados o seu próprio modo de pensar, que é “programado” no
presente. Eis o que diz Steiner:
69
recente, ele se vê cada vez mais transformado em tradutor, no
sentido estrito do termo. |...)Eo significado a que se chega dessa
maneira tem cie ser o “verdadeiro". Qual será então a mágica me
tafórica de que o historiador precisará?’5
É difícil ver a crítica (história) como nada mais que uma disciplina
‘ pura ’. Suas origens parecem espontâneas; sua existência, natural:
existe a literatura, e assim, porque queremos compreendê-la e avaliá-
la, existe também a crítica. (...) Mas a crídca, na qualidade de servi-
çal da literatura, acaba impedindo cm toda a parte (tal compreen-
sâol. Se a função da crítica é facilitar a difícil passagem do texto ao
70
leicor, el;il)orar o texto de modo que se possa consumi-lo com
menos dificuldade, como é que .1 crítica pode evitar interpor sua
própria sombra entre o produto e o consumidor, eclipsando o ob
jeto? I...I Parece que. aqui, a crítica é surpreendida numa contradi
ção insolúvel.1'
71
po discursivo. Donde a pergunta: quais eram as intenções do
grào-chanceler? Ora, nào é possível estabelecermos uma empatia
com Thomas Cromwell, pois chegamos a ele indiretamente,
por meio de Elton, de modo que na realidade estabelecemos
menos empatia com a mente de Cromwell do que com a de
Elton. Isso é realçado quando nos pedem para inserir as inten
ções de Cromwell em seu contexto. Se nas instituições de en
sino sào as aulas de história que proveem grande parte daque
le contexto (um contexto que os professores também recebem
de Elton), se o lema todo é o contexto tal como nós, os estu
dantes, o conhecemos (e se estávamos prestando atenção o
tempo todo, interpretando com precisão a fala dos professo
res, e se ainda conseguimos achar as anotações que fizemos...),
então o pedido para que insiramos Cromwell no contexto da
primeira metade do século xvi é, na realidade, um pedido para
inseri-lo no contexto de nossa vivência em sala de aula. Daí,
estabeleceremos empatia com aquilo que os professores ti
nham em mente, mediada pelas circunstâncias de sala de aula
- ou seja, com Elton muito longe dali. Caso se trate de uma
prova de admissão ou similar, as correções feitas pelos exami
nadores nas respostas assim apresentadas serão correções fei
tas levando em conta o que eles têm na cabeça. E por aí vai.
Assim, por causa dessas razões filosóficas e práticas (que
aqui abordamos apenas ligeiramente), nào creio que a empatia
tal qual costumam entendê-la seja possível. Mediante muita
interpretação crítica, os historiadores talvez adquiram uma “com
preensão provisória e incerta”, mas isso já é outra coisa, e a
empatia pode ser de pouca monta para obter-se tal conheci
mento. No entanto, o argumento que eu gostaria de apresentar
aqui é de natureza diversa. Até onde vejo, a empatia está no
projeto historiográfico por motivos que vão além da oportuni
dade de tentarmos estabelecê-la. A empatia está conosco por
motivos que advêm nào dos problemas epistemológicos e
metodológicos em si, mas de três pressões díspares - uma
pedagógica, uma acadêmica e uma ideológica.
72
Começaremos analisando a pressão pedagógica. Em grande
parte, ela surgiu graças a noções de pertinência e envolvimento
pessoal que, pelo menos na Inglaterra, se iniciaram nas esco
las do ensino fundamental e depois estenderam-se para ou
tros níveis. Pense naqueles vôos imaginativos que, no primá
rio, pediam que fizéssemos para fingirmos ser uma raposa,
um floco de neve, um rei irado. Tais apelos se destinavam, e
se destinam ainda, a fazer com que as crianças em idade
escolar sintam-se participantes e que, assim, o ensino e a
aprendizagem se personalizem. Na Inglaterra, a uniformida
de curricular, sem determinar cursos diferentes para alunos
com diferentes graus de aptidào, era antes característica ape
nas do ensino fundamental. Mas, quando ela se estendeu
também ao ensino médio, trazendo problemas concomitantes
de organização e disciplina em sala de aula, a tendência geral
passou a ser o colapso das hierarquias, no rumo de iguais
direitos a um mesmo currículo, do começo ao fim. Hoje, a
personalização da pedagogia leva a procedimentos de avali
ação também personalizados, e em alguns aspectos o fim
desse processo já se aproxima: um histórico positivo ou ne
gociado significará o fim dos exames hierárquicos e definiti
vos (que se caracterizam pela supremacia de alguns e pela
subordinação de outros). Por conseguinte, nesse contexto
democratizante em que todos os alunos trazem para a escola
suas opiniões igualmente válidas e/ou valorizadas, devem-se
estimular as oportunidades de expressá-las: o que cies pen
sam do passado? O que a história é para eles? Quais as expli
cações que eles oferecem? Em outras palavras, vamos deixar
que os alunos tentem entrar na cabeça do (seu) príncipe
medieval. Trata-se de um currículo feito sob medida para
cada escolar. Na prática cotidiana, é o mundo dos trabalhos
individuais, das folhas de exercício diferenciadas, do tema de
livre escolha, do seminário, da dissertação... Essas aborda
gens transbordaram para o âmbito acadêmico.
73
E a segunda pressão é acadêmica. Na Inglaterra, ela se
vincula bastante à maneira específica de ver a história (o
idealismo) que relacionamos ao historiador R. G. Collingwood.
Este argumentava que toda história é a história da mente, um
conceito que parece difícil de apreender (e usar) quando
empregado no sofisticado discurso do próprio Collingwood,
mas que se compreende com facilidade quando resumido,
até porque, nesta altura, já estamos familiarizados com gran
de parte de seu argumento.
Eis, em linhas gerais, o argumento de Collingwood. Os
seres humanos sào animais linguísticos. Por meio da fala, as
coisas ganham significado. Esses códigos simbólicos (idio
mas) se referem ao mundo, mas a palavra e o mundo perten
cem a categorias diferentes. Em diferentes formações sociais
e diferentes culturas, as pessoas falam e/ou falavam diferen
temente. O passado é terra estrangeira: lá, as pessoas falavam
outra língua. É como diz Steiner:
74
ria da(s) mente(s). Em consequência, se quisermos adquirir
conhecimento histórico, deveremos inserir lais vestígios do
passado nas mentalidades que lhes deram vida e, assim, ver
o mundo tal qual elas viam. Por conseguinte, é essa pressão
idealista, diversamente elaborada, que legitima para muitos
historiadores a abordagem da empada; para alguns, aliás, esse
argumento acadêmico constitui o que realmente é empada.
Acho, porem, que há mais coisa aí, pois a empada, tal como
elaborada pela pedagogia e pelo idealismo, necessita da ide
ologia para completar-se. E a necessidade é total, porque é
na ideologia que se encontram as características mais impor
tantes da empada. Essa ideologia é o liberalismo. Nào qual
quer liberalismo, mas um que evoca John Stuart Mill e sua
idéia de liberdade recíproca. Assim, tal liberalismo será mais
bem explicado com um rápido resumo daquela idéia.
Fundamental para a idéia de liberdade em Mill é a noçào de
que o indivíduo pode lazer o que quiser, desde que o exercí
cio dessa liberdade nào restrinja a liberdade de outros. Para
calcularas conseqüências de determinada ação, a pessoa (agen
te) precisa imaginar que conseqüências seriam essas, colocar-
se no lugar dos outros, entender o ponto de vista deles. O
cálculo tem de ser tào racional quanto universal, ou seja, apli
car-se reciprocamente a todos os envolvidos, porque, se os
afetados estiverem em posição de retribuir fazendo a mesma
coisa ao agente, poderá ocorrer dano mútuo. Isso, portanto,
vem sugerir uma ponderação e um equilíbrio pragmáticos dos
pontos de vista, um exame dos pró e dos contra ("Por um
lado... Por outro...”) e a exclusão de todos os extremismos,
invalidando-os como opções racionais de ação.
Essa abordagem - mostrar-se racional, enxergar o ponto
de vista de outrem e equilibrar as opções e, assim, as conse
qüências potencialmente nocivas do extremismo - é, logo, o
que subjaz a todas aquelas solicitações para que nos colo
quemos no lugar das outras pessoas (no passado); ou seja,
para que vejamos as coisas da perspectiva delas, calculemos
75
i aciona Imente suas opções e nos conservemos “imparciais”
sem idéias preconcebidas. É por isso, claro, que tantas ques
tões de empatia sâo exercícios de solução de problemas.
No meio dessa atividade estão, portanto, a racionalidade e
o equilíbrio. Ali, a empatia atrai para o centro todas as pessoas
sensatas, racionais. Ali, a ideologia liberal está em ação, traba
lhando para nos transformar em liberais. Em conseqüência, é
duvidoso que isso produza o resultado supostamente preten
dido - entender a história. Produzirá, isto sim, o contrário, pois
o que essa abordagem realmente faz é universalizar no espaço
e no tempo urna ideologia muito localizada, o liberalismo. Desse
modo, projeta-se a mentalidade de John Stuart Mill nas mentes
de todas as pessoas - aí incluídos vikings e camponeses medi
evais que não conheciam o liberalismo e que, infelizmente,
nunca tiveram o prazer de ler Mill.
Isso é irônico. A única maneira de colocar sob nosso con
trole as pessoas do passado, que eram tão diferentes de nós,
estaria em fazê-las iguais a nós, sempre impulsionadas pelo
pensamento racional, no estilo liberal. Aqui, bem no centro do
argumento de que esta seria a maneira dc obter-se a compre
ensão hisloiica, vemos a própria essência do que significa pensar
de modo a-histórico - e, muito literalmente, anacrônico.
Assim, o que constitui a empatia é a pedagogia, o idealis
mo e a ideologia, e essas sâo três pressões que nào se ajus
tam facilmente umas às outras. A pedagogia do envolvimento
pessoal enfatiza a imaginação, que a maioria dos historiado
res considera suspeita, “ficcional”. Já o problema entre o idea
lismo (que acentua a alteridade do passado) e a ideologia
liberal (que remete à constância dos seres humanos e da
natureza humana, no estilo do homo economicus) é que se
trata mesmo de perspectivas diferentes de como c por que o
“conhecimento" do passado seja possível. Isso, aliás, ajuda a
explicar por que a empatia é (no momento em que escrevo)
um dos aspectos mais discutidos da pergunta "O que é a
história?”; temos aí uma disputa ideológica que precisamos
76
entender para enxergar não só o que está acontecendo, mas
também o porquê de tanta coisa, politicamente, parecer estar
em jogo nesse assunto.
Já vimos que, para os idealistas, a tentativa de penetrar a
alteridade do passado está no cerne do estudo histórico. Mas
ela requer certo esforço de imaginação, nào importando quan
to o entendimento do sujeito se enriqueça com o entendi
mento daquele passado, e essa ênfase na imaginação é justa
mente o que vem sendo atacado. Tal ataque tem vindo so
bretudo dos empiricistas liberais e direitistas, pois eles (se
posso generalizar) pensam que a empatia é, basicamente,
uma perda de tempo. Na qualidade de empiricistas, querem
“chegar aos fatos” e assim “conhecer" o passado, mas tam
bém sabem que a maioria dos fatos está ausente e, logo, que
o conhecimento acaba por escapar-lhes. Portanto, a fim de
produzirem relatos tão completos quanto possível, eles pre
cisam fazer seir próprio esforço de imaginação (interpreta
ção) para preencher as lacunas. O problema é que, se as
pessoas do passado tinham todo tipo de coisa estranha na
cabeça, como é que os historiadores podem conseguir imagi
nar com precisão? A resposta tem sido negar essa alteridade
das pessoas do passado e ressaltar o argumento da “constân
cia da natureza humana", o qual afirma que todas as pessoas,
se despojadas de suas culturas, são e sempre foram basica
mente urna mesma coisa. Dessa maneira, podem-se preen
cher as lacunas com exatidão, porque se trabalha com o pres
suposto de que, em face de uma mesma situação, todas as
pessoas se comportariam de maneira previsível, despindo-se
(de alguma maneira) de suas limitações culturais e agindo de
maneira “natural", ou seja, conforme à natureza humana. Em
consequência, nào precisamos da empatia (não precisamos
do idealismo) porque esse tipo de idéia nos incentiva a pen
sar que as pessoas do passado estão sempre presas à cultura,
nunca sâo “naturais” e, por conseguinte, nunca podemos real
mente saber o que elas tinham na cabeça.
77
Da posição empiricista liberal-direitista, o problema está
justamente aí, e por duas razões. A primeira é que o tipo de
conclusão que encerra o parágrafo anterior pode levar ao
ceticismo relativista. A segunda é que ele talvez suscite uma
situação na qual as pessoas de hoje imaginem que as de
ontem tinham reações uni versa li záveis - reações do tipo soci
alista, por exemplo. Aliás, grande parte do debate sobre a
empatia tem sido vinculada a essas críticas da "interpretação
direitista", com referência a saber se aqueles espaços imagina
tivos que sempre existiram e sempre existirão, serão preenchi
dos pela “natureza humana" correta. Minhas opiniões sobre
isso e sobre a empatia em geral vêm expostas a seguir.
Acho que as pessoas do passado diferiam muito de nós nos
significados que davam a seu mundo e que não terá funda
mento nenhuma interpretação desses significados do tipo (ou
de qualquer tipo) que se baseie na constância da natureza
humana. Do contrário, qual modelo de natureza humana leri
amos de escolher? Nào acho que isso deva necessariamente
levar ao ceticismo sobre a possibilidade de conhecer a “histó
ria", pois, mais uma vez, o que fazemos quando estudamos
história é estudar nào o passado, mas o que os historiadores
construíram acerca do passado. Nesse sentido, se as pessoas
do passado tinham ou não a mesma natureza que nós é algo
que não apenas não podemos determinar, mas que também
nào está em questão. Porque, ainda nesse sentido, o passado
não entra na equação. Nossa necessidade real é estabelecer os
pressupostos que os historiadores transportam para o passa
do. Logo, seria mais construtivo (embora, em última análise,
também impossível) tentar entrar na cabeça dos historiadores,
e nào na das pessoas que viveram no passado e que, em rigor,
só aparecem pela cabeça dos historiadores. Trata-se de uma
tarefa que este livro todo vem incentivando. Assim, a questão
nào é "ver toda a história corno a história da mentalidade das
pessoas do passado", mas sim “ver toda a história como a
história da mentalidade dos historiadores".
78
DAS FONTES PRIMÁRIAS E SECUNDÁRIAS E D/\S
FONTES E PROVAS
79
eterna busca pela verdade, unia busca que também se evi
dencia no desejo de compreensão pela empatia - o desejo de
voltar às mentes genuínas das pessoas originais, para que as
visões delas nào sejam adulteradas pelas nossas.
Se nào lemos esse tipo de idéia, se estamos libertos da
ânsia de certeza, da noção de que a história jaz no estudo das
fontes primárias/documentais, de que produzir história é es
tudar apenas estas e de que com base em tais originais pode
mos arbitrar as posteriores discordâncias entre historiadores...
Enfiin, se atendemos a todos esses requisitos, então estamos
livres para ver a história como um amálgama daquelas consi
derações de ordem epistemológica, metodológica, ideológi
ca e prática que descreví em linhas gerais.
Isso posto, nào será preciso que nos detenhamos por muito
tempo no debate sobre “prova”. Aliás, nào fosse o fato de
que o “problema da prova” é pane daquela polêmica entre
Carr e Ellon que ainda acontece e causa complicações nos
cursos introdutórios sobre a natureza da história, nem preci
saríamos falar disso agora.
Mas a questão em pauta é a seguinte: será que, como
afirma Elton, as provas do passado se impõem tão irresisti
velmente ao historiador que este só pode deixar que elas
falem por si? Ou será que a prova, agora interpretada como
recurso absolutamente mudo, precisa muito literaimente falar
por intermédio do historiador, que, sobrepondo sua própria
voz à da prova de per si, acaba na prática por silenciá-la?
Aqui, mais uma vez, está em jogo a questão do tipo e do grau
de liberdade que o passado concede aos historiadores para
que ajam na qualidade de intérpretes, aquilo que se formula
como a "questão da prova”.
Esse problema pode ser analisado de duas maneiras. A
primeira é ver que as proposições de Carr e Ellon se baseiam
numa confusão linguística elementar. A segunda é reformular,
de maneira bem diferente e sugestiva, a distinção entre pas
sado e história.
80
A razào pela qual esse debate específico sobre a prova se
baseia numa confusão terminológica é que a palavra "prova”
\evidencà se vê aplicada, sobretudo poi Eicon, aos mesmos
materiais quando eles aparecem em contextos diferentes e,
portanto, precisariam ser entendidos e denominados como
coisas diferentes. Ellon usa o termo "provas" para descrever as
fontes às quais o historiador recorre quando realiza pesquisas.
Ele deveria tê-las chamado, por exemplo, "vestígios do passa
do”. Mas, ao denominá-las provas, Ellon dá a impressão (que,
é claro, ele quer mesmo dar) de que tais provas imaculadas
sempre se organizam em explicações latentes, de modo que,
quando se enconua e se reúne um número suficiente de pro
vas, aquelas explicações “corroboradas" evidenciam-se por si
mesmas, nào importando as predileções do humilde historia
dor, que aí, como profissional, "curva-se ante o peso delas"
(uma metáfora espantosa, que, entretanto, mostra-se compre
ensível nos termos da noção de soberania do passado, o qual
temos a obrigação de servir etc.).
Já Carr, muito mais "rebelde”, percebe que o historiador
ativo é quem faz todo o trabalho de organizar os vestígios do
passado (e quem, portanto, tem direito a ficar com lodo o
mérito) e que os tipos de explicação que os vestígios podem
corroborar dependem do tipo de organização adotado pelo
historiador. Por conseguinte, no argumento de Carr, o vestígio
só se torna prova quando é usado para-sustentar um argumen
to (interpretação); antes disso, ele, embora exista, permanece
apenas um pedaço nào-utilizado do passado. Isso me parece
perfeita mente aceitável e clareia a posição que a terminologia
de Ellon turvou. No entanto, uma das razões pelas quais a
perspectiva de Carr não tem sido considerada conclusiva den
tro dos parâmetros do “debate” (e pelas quais, em parte, o
debate vem perpetuando-se) é que às vezes o próprio Carr
usava a palavra “prova" nos contextos em que deveria ter con
servado o termo “fome” (vestígio), vendo-se assim na posição
paradoxal de aparentemente afirmar que a prova já está lá
81
antes de usarem-na e, ao mesmo tempo, que só se torna prova
quando a usam. A saída desse debate entre Cair e Elton é,
portanto, ser coerente e nào utilizar o termo "prova” de manei
ra ambígua. Com isso, quero dizer que devemos simplesmente
recordar os principais aspectos: (a) o passado aconteceu; (b)
ficaram vestígios dele; (c) esses vestígios estào lá, sem impor
tar se o historiador vai a eles ou nào; (d) "prova" é o termo
utilizado quando alguns vestígios sào usados para corroborar
algum argumento (interpretação) e nào antes. Portanto, se a
prova (à diferença dos vestígios) é sempre o produto do dis
curso do historiador, isso acontece simplesmente porque, an
tes de formular-se aquele discurso, a prova (história) nào exis
te. Só existem os vestígios (ou seja, só existe o passado).
Nesta altura, podemos passar para a segunda maneira de
resolver o problema da prova; ou melhor, podemos,
reformulando as proposições apresentadas no parágrafo an
terior e trabalhando de novo a distinção entre passado e his
tória, enfatizar o argumento (à Carr) de que o domínio do
passado sobre a história é, na realidade, o domínio do histo
riador sobre a história; o argumento de que o próprio passa
do, graças a alguma maneira pré-discursiva, muito literalmente
nào tem voz ativa.
Aqui, o argumento - que, quando desenvolvido, dá funda
mentos mais rigorosos ao debate Carr-Elton - é o contrário
do que Elton afirma na prática: a prova do passado de per si
nào consegue, pela lógica, atuar como um freio ao arbítrio
do historiador, pois o passado, constituído pelo discurso e
como efeito do discurso, nào pode funcionar como causa do
discurso nem como freio pré-discursivo de si mesmo. Esse
problema (talvez difícil) foi explicado por Roland banhes em
“O discurso da História", ensaio em que ataca os historiado
res (em nosso contexto, Elton) que pretendem apresentar
relatos “verdadeiros” e garantidos pela “prova in natura" do
"real” (ou seja, do passado real). Banhes afirma que tais his
toriadores fazem um truque de mágica: o referente (a “coisa"
82
a que o historiador se refere) é projetado num âmbito que,
pretende-se, esteja para além do discurso, uma posição de na
qual esse referente pode então ser considerado precedente e
determinante daquele mesmo discurso que, na realidade, já o
posicionava como referente. Segundo Barlhes, esse parado
xo rege o caráter próprio e distinto do discurso histórico: “o
fato nunca tem mais do que uma existência linguística (como
termo de um discurso), e, no entanto, tudo se passa como se
existência não fosse senão a ‘cópia’ Í...1 de outra existência,
situada no campo do (...) ‘real’. Esse discurso é, sem dúvida,
o único em que o referente é visado como exterior ao discur
so, sem que jamais seja, entretanto, possível, atingi-lo fora do
discurso".’7 Podemos parar por aí.
83
sal são apresentadas a você quando lhe dizem que a história
é, em parte, a maneira com que os historiadores descobrem
as causas dos acontecimentos passados? Marxistas, estrutura-
listas, fenomenológicas, hermenêuticas? Ou nenhuma? Quan
do você combina os fatores causais segundo os diversos pe
sos que eles possam ter tido em algum acontecimento, quan
do se levanta a questão da influência relativas que eles te
nham uns em comparação com os outros, como é que você
os discrimina? Se lhe pedissem agora para explicar as causas
da Revolução Francesa, o que você faria?
Pois bem, considere esta pergunta: "Até onde seria preciso
recuar no tempo e no espaço para oferecer uma análise
satisfatória das causas necessárias e suficientes do movimen
to de 1789?”
Como é que você responde? O que lhe dá a resposta? O
marxismo? O funcionalismo estrutural? Uma abordagem à
moda da Escola dos Annales?
Se alguma dessas coisas lhe dá a resposta, se o marxismo,
por exemplo, oferece um método (grosso modo, as condi
ções econômicas só podem ser consideradas determinantes
básicos das mudanças superestruturais quando se trabalha
com a tese da lula de classes; grosso modo, envolvem-se abs
trações metodológicas etc.), então como é que você trabalha
os detalhes disso? Por exemplo, a que data você faz remontar
a influência da economia? A 1783? A 1760? A 1714? A 1648? E
o que, exatamente, você incluiu nessa categoria do econômi
co? Como é que você sabe quando aspectos dele desempe
nham um papel decisivo e depois ficam relativamente laten
tes até se mostrarem decisivos? E até onde você irá em ter
mos espaciais? A França seria metaforicamente uma ilha? Ou
ela estaria inextricavelmente presa a uma trajetória européia
geral? O que significa a "Europa” no século xvm? Ela abarca
também a América? Mais uma vez, como é que você mede os
diversos níveis e graus de interpenetração entre, digamos, o
econômico, o político, o social, o cultural, o ideológico? E o
84
que entra nessas categorias? Quanto sua análise depende de
eventualidades cotidianas, como, por exemplo, os tipos de
material disponíveis, o tempo de acesso a eles, o tempo que
deram a você e que você dá a si mesmo para responder à
pergunta etc.? Que tipo de definição condicionada e situação
filosófica delicada e perigosa está à espreita nos termos
“satisfatório”, "necessário", “suficiente" e “análise”? E por aí
vai... Com isso, quero dizer: “Como é que você começa a
atacar o problema de todos os fatores causais e de toda a
complexidade analítica em que essas poucas perguntas óbvias
fazem pensar? Onde é que terminam tais perguntas?”
Nesta altura, você talvez responda: “Bem, a realidade é
que as perguntas nào se apresentam daquele jeito. Elas são
mais diretas, do tipo: ‘Por que a Revolução Francesa aconte
ceu em 1789?”’ Mas, embora as perguntas sobre 1789 costu
mem ter essa formulação, ainda assim subjaz o tipo de per
gunta que propus. Ou seja, “Por que 1789?” significa “Quais
as causas de 1789?’’; aparentemente, tais causas seriam uma
cadeia infinita que se estende para trás e para o exterior e
que você precisa penetrar, não obstante o fato de que ne
nhum método (e nenhuma vivência) conseguiría proporcio
nar-lhe pontos de apoio lógicos ou definidos para uma expli
cação suficiente e necessária.
O problema permanece, não quer desaparecer. Então, como
é que você fica? Acho que a resposta é que, no mais das
vezes, você copia outras pessoas. Isto é, você sabe ter algo
semelhante a uma resposta sobre 1789 porque (se descontar
mos um ou outro lapso ou inovação) sua resposta parecerá a
de outras pessoas que operam no mesmo discurso. Aprender
história tem muito a ver com aprender a jogar do mesmo
jeito que aqueles que já estão no jogo, ou no ofício. Nesse
sentido, aprender história é como exercitar um ofício, fazer
um aprendizado, de modo que se ofereça uma análise
satisfatória porque ela foi construída, por exemplo, com tex
tos secundários (livros, artigos, ensaios) de mestres-de-ofício
85
como, por exemplo, Hobsbawn, Hampson, Schama, que tam
bém tentam explicar 1789. No geral, portanto, produzir histó
ria está longe de ser algo muito rigoroso em termos teóricos,
mesmo no que se refere a algumas das preocupações mais
cruciais da própria história, como, por exemplo, explicar por
que as coisas aconteceram. Poucos cursos secundários ou
superiores levam em conta, de maneira sistemática e
aprofundada, os problemas metodológicos ocultos para aque
les que, na verdade, gostariam mesmo de saber o que estão
fazendo. Claro, todos os cursos poderíam e deveríam consi
derar aqueles problemas, e no decorrer deste livro ofereci
notas de rodapé para indicar textos que abordam o método.
Isso posto, lembremos que tal lacuna na “formação" nào de
veria nos causar surpresa, pois, como já mencionei no capí
tulo 1, o discurso dominante nào está lá muito interessado
em clareza metodológica, já que esta pode ser apreendida
(céus!) quando se pratica a história "como se deve". (Ou seja,
a mitologia reza que vamos aprender de modo natural o que
fazer, graças à prática de procurar explicar o que aconteceu
no passado fornecendo uma reconstituição precisa dos acon
tecimentos registrados nas fontes primárias e contextualizados
em cenas fontes secundárias, reprimindo o mais possível o
impulso de interpretar e/ou assinalando na própria narrativa
o momento em que os fatos estào apenas sendo representa
dos e o momento em que eles são interpretados.)’8 Não, po
deriamos é dizer que o que interessa ao discurso dominante
(embora, também aqui, ele nem sempre esteja consciente
disto) é transmitir certo tipo de cultura histórica (que esse
discurso considera a única cultura histórica) de modo que o
crucial seja, no âmbito daquela formulação acadêmica, co
meçarmos a copiar tais acadêmicos de maneira eficaz. Nesses
níveis da história, somos induzidos a um tipo específico de
discurso acadêmico, em que o crucial é nossa capacidade de
incorporá-lo e depois pô-lo por escrito (formar juízo; passar
nos exames, ou “testes”). Eis o que Terry Eagleton diz sobre
86
o que seria predominantemente o estudo acadêmico da lite
ratura. Basta substituirmos “literatura” por “história”:
87
sionados a nào deixarem a coisa pela metade e expressarem-
se como os praticantes de qualquer outro discurso narrativo
que reconheça organizar o passado mediante vários recursos
retóricos, tropos etc., os historiadores resistiram, abrigando-
se na visão de que a história é de fato uma semiciência, na
qual os dados do historiador nào se prestam à liberdade artís
tica de criação, e de que a forma e o conteúdo das narrativas
sào nào uma questão de escolha, mas algo exigido “pela
própria natureza dos materiais históricos". Dessa maneira, a
ciência, antes ruidosamente expulsa pela porta da frente, foi
sem muito entusiasmo readmitida pela porta dos fundos. Como
resultado, a oscilação entre “ciência" c “arte” continuou sen
do parte da problemática interna da história dominante.
Nesse aspecto, a história se encontra um tanto isolada,
pois os teóricos de discursos correia tos nào concordam com
o pressuposto dos historiadores “convencionais” de que a
arte e a ciência sejam maneiras muito diferentes de ler o
mundo. Já faz tempo, aqueles teóricos perceberam o locus
ideológico dessa dicotomia que os historiadores em geral dei
xaram de reconhecei e que, portanto, eles retiveram como
problema de epistemologia e método. Logo, a continuação do
debate se deve até àquela antipatia pela teoria que já assinalei
na Introdução, uma antipatia de que sofrem os historiadores.
Ilayden White observou que, desde a metade do século XIX, a
maioria dos historiadores toma ares de certa ingenuidade
metodológica que, no entanto, é proposital:
88
Assim, u i prática, o debate "arte/ciência” já se mostra ul
trapassado nos próprios termos epistemológicos e metodo
lógicos com que foi conduzido. Entretanto, pode-se interpre
tar que ele conserva sua presente vitalidade graças às pres
sões ideológicas que ainda se expressam no termo “método”,
até por causa da atitude relativamente descuidada e arrogan
te dos historiadores no que se refere à teoria e à autocrítica.
CONCLUSÃO
89
guinas das razões epistemológicas, metodológicas, ideológi
cas e práticas que tornam problemática a transformação do
passado em história. Assim, ao ter chegado a uma série de
conclusões que põem bastante em dúvida o grau cm que é
possível conhecer o passado, eu, para ser coerente, estava
obrigado a investir contra todo tipo de conhecimento que
tenha pretensões à certeza. Por conseguinte, em relação aos
debates, precisei argumentar que nos escapa a verdade (ou
verdades) do passado; que a história é intersubjetiva e ideo
logicamente posicionada; que a objetividade e a imparciali
dade sào quimeras; que a empatia é um conceito viciado;
que "original" nào significa necessariamente "genuíno”; que
a história nào é arte nem ciência, mas uma coisa diferente -
uma coisa sui generis, um jogo de linguagem que nào está
para brincadeiras, que está localizado no tempo e no espaço
e no qual as metáforas da história como ciência, ou da histó
ria como arte, refletem justamente a distribuição de poder
que põe essas metáforas no jogo.
Pode ser, é claro, que esse tipo de ceticismo em relação ao
conhecimento histórico cause descrença, desdém, sarcasmo
e diversas outras formas de negativismo. Mas as coisas nào
precisam ser assim, e não o são em meu caso. Pelas mesmas
razões de Hayden White, considero que o relativismo moral
e o ceticismo epistemológico constituem a base da tolerância
social e do reconhecimento positivo das diferenças.23 É como
diz White:
90
Aplicado à escrita histórica, o cosinopolilisnio metodológico e
estilístico promovido por este conceito de representação obrigaria
os historiadores a abandonarem a tentativa de retratar "uma parcela
particular da vida, do ângulo correio" c na perspectiva verdadeira
(...) e a reconhecer que nào há essa coisa de visão única e correta.
Poderiamos assim considerar seriamente de algum objeto em exa
me as distorções criativas oferecidas pelas mentes capazes de olhar
o passado com a mesma seriedade com que o fazemos com (...)
orientações [diversas) Então, já nào deveriamos esperar ingenua
mente que as afirmações sobre uma determinada éjxxra ou sobre
um conjunto de acontecimentos do passado “correspondam" a al
gum corpo preexistente de “fatos em estado natural". Pois deveria
mos reconhecer que o <pte constitui os próprios fatos é o problema
que o historiador (.. .) tem tentado solucionar na escolha da metáfora
com que possa ordenar o seu mundo passado, presente e futuro.24
91
Construindo o História no
mundo pós-moderno
93
tipo de tentativa que eles possam fazer para definir aquilo de
que julgam fazer parte. Ademais, alguns comentaristas têm
colocado em dúvida (a despeito de quem se denomina pós-
moderno) a própria existência do pós-modernismo? Cada
vez mais, acho que a definição proposta pelo filósofo francês
Jean-François I.yotard em O pós-moderno é a que consigo
entender e utilizar.2 É inevitável que Lyotard tenha seus
detratores, c o uso que aqui faço de suas idéias nào significa
que eu simplesmente nào leve em conta diversas críticas.
Nào obstante, sua análise sobre a parte do mundo em que
vivo (uma formação social na qual, sob o impacto da secula-
rização, democratização, computadorização e consumismo,
o mapa e o status do conhecimento estão sendo retraçados e
redescritos) é tal que me parece reconhecível. Sua definição
oferece uma perspectiva e uma gama conceituai das quais e
pelas quais parece possível ver o que acontece atualmente,
tanto em termos gerais quanto numa daquelas áreas (a histó
ria) que vêm sendo afetadas.
Em seu aspecto mais básico, a definição de I.yotard é bas
tante minimalista. Ao caracterizar o pós-modernismo, ela o
vê testemunhar a “morte dos centros" e demonstrar “incredu
lidade ante as metanarrativas”. O que significam essas coisas?
E como podemos explicá-las?
Antes de mais nada, elas significam que todos aqueles ve
lhos quadros de referência que pressupunham a posição pri
vilegiada de diversos centros (coisas que eram, por exemplo,
anglocêntricas, eurocêntricas, elnocêntricas, logocêntricas,
sexistas) já não são mais considerados legítimos e naturais
(legítimos porque naturais), mas temporários, ficções úteis
para formular interesses que, ao invés de universais, eram
muito particulares; já a “incredulidade ante as metanarrativas"
quer dizer que aquelas grandes narrativas estruturadoras (meta
físicas) que deram significado(s) à evolução ocidental perde
ram a vitalidade. Após as proclamações oitocentistas da mor
te de Deus (a metanarrativa teológica), ocorre também a morte
94
dos substitutos temporais Dele. O final do século xix e o
século xx assistiram a um solapa mento da razão e da ciência,
fenômeno que tornou problemáticos todos aqueles discursos
que se fundamentavam nelas e tinham pretensão à verdade:
todo o projeto do Iluminismo; os vários programas de pro
gresso, reforma e emancipação do homem que se manifesta
vam, por exemplo, no humanismo, liberalismo, marxismo etc.
Por que ocorreram tais términos? Por que agora esse “sen
so comum” de incredulidade? Permita que eu, embora côns-
cio da natureza artificial de todas as narrativas históricas, ofe
reça um breve relato explanatório.5
Muito tempo atrás, as hierarquias sociais pré-modernas
se baseavam predominantemente no que se consideravam
valores intrínsecos: divindade, raça, sangue, estirpe. O que
determinava a posiçào de um homem era o nascimento, de
modo que ele/'nascia para mandar”, "nascia para servir”,
conhecia e tinha “seu lugar”. Mas foram justamente essas
ordens naturais, outrora legitimadoras de monarquias, aris
tocracias e cleros, o que a burguesia comercial, financeira e
industrial solapou. Ocupada em manufaturar lodo tipo de
coisa, a burguesia começou a manufaturar a si mesma, vin
do a expressar suas ambições mediante a idéia liberal de
utilidade. Segundo essa teoria, os homens deveríam agora
ter valor nào pelo nascimento, mas pelo mérito; o valor que
um homem teria na vida deveria ser conquistado, e não
dado. Por conseguinte, a esforçada burguesia nào demorou
a localizar seu próprio valor naqueles objetos exteriores que
expressavam e encarnavam o labor burguês: a propriedade
privada. Dessa posição, os burgueses puderam veicular duas
críticas que procuravam estabelecei que eles eram não só
diferentes de todos os outros, como também mais impor
tantes; ou seja, eles diferiam daqueles cujas riquezas e pro
priedades eram consideradas imerecidas (os ricos ociosos)
e daqueles que tinham pouca ou nenhuma propriedade (os
pobres relativamente ociosos).
95
No entanto, essa legitimação, do final do século xix e do
começo do século xx estava fadada a nào durar. Quando de
senvolveu o modo capitalista de produção, a burguesia tam
bém desenvolveu outras coisas: liou ve uma reação romântica,
aristocrática, que, pode-se argumentar, cevou um ennuielitista
para então ressurgir de maneiras desagradáveis no século xx;‘
ao passo que os assalariados (trabalhadores que reconheciam
ser pobres, mas que nào se reconheciam ociosos) preferiam
ser vistos tal qual viriam a ser descritos: a classe operária. Em
consequência, nào demorou muito para que esses trabalhado
res começassem a usar contra uma burguesia relativamente
improdutiva o mesmo conceito de utilidade que a burguesia
linha usado contra o antigo regime. Dessa forma, a idéia de
utilidade forneceu uma espécie de “guia básico da explora
ção”, e depois Marx, cm especial, elaborou para as classes
trabalhadoras (o proletariado) uma compreensão filosófica e
histórica de sua posição que se mostrou bem mais sofisticada.
Isso viría produzir uma ideologia que nào valorizava o ganho
de alguma espécie de propriedade pelo proletariado, de modo
que ele pudesse desfrutar os mesmos direitos e liberdades for
mais da burguesia (o sedutor incentivo burguês da respeitabi
lidade); o argumento era que, em vez disso, o caminho para a
liberdade real eslava na abolição da propriedade. Visto que os
proletários nào tinham propriedade alguma, o que podería ser
mais valioso para eles do que as suas próprias pessoas, a única
coisa que realmente possuíam? Afirmava-se que os homens
adquiriam valor simplesmente por estarem vivos. Se, para efei
to prático, o tipo de distribuição de propriedade que existia
com o nome de capitalismo impedia que se vivesse a vida,
então tal propriedade tinha de desaparecer. Num futuro nào
uo distante, eslava a perspectiva de um mundo vivido em
comum e com autêntica lilx.*rdade humana - o comunismo.
Em 1917, esse experimento teve inicio na urss. Desde o
começo, suas ambições globalizantes (“ Trabalhadores do mun
do, uni-vos’.”) sofreram reveses. O caráter universal do marxis
96
mo logo se mtxiificou ein variantes nacionais, e seu propósito
emaneipatório não demorou a enroscar-se na contingência dos
meios ditatoriais. Dessa maneira, sem querer, o socialismo real
acabou ajudando a desconstruir seu próprio potencial, tornan
do cada vez mais pessimista aquilo que um dia tinha sido a
mais otimista das meta narrativas, o marxismo.
Enquanto isso, no Ocidente, as duas guerras mundiais ini
ciadas na Europa, as crises econômicas, o fascismo, o nazis
mo e os traumas cheios de culpa da descolonização, junto
com as críticas ulteriores do capitalismo apresentadas pelos
“marxistas ocidentais” (Gramsci, a escola de Frankfurt e
Althusscr, entre outros) e, mais recentemente, pelas feminis
tas, finalmente demoliram as derradeiras teorias que alicer
çavam as noções de progresso liberal, de harmonia pela com
petição, de crença otimista na racionalidade do homem (bur
guês). Nessa situação, o capitalismo teve de achar para si
outra forma de valorização, e, dessa vez, ele a localizou numa
celebração explícita daquilo que, na realidade, sempre o linha
sustentado, mas que ele considerava, há muito, demasiado
arriscado para expor sem alguma espécie de faceta protetora
(organicista, humanista, previdenciarista) do homem: as pró
prias forças do mercado, as quais ganharam uma visibilidade
teórica (no monetarismo etc.) que caminhou de mãos dadas
com a extraordinária produtividade econômica da era |X>s-1950.
Mas é claro que, como se desconfiava, tal valorização ex
plícita do “nexo monetário”, tal prioridade enfática atribuída
à escolha do consumidor, só podia ser comprada à custa de
trazer para primeiro plano o relativisino e o pragmatismo. No
mercado aberto, as mercadorias não têm a presunção de pos
suírem valor intrínseco; o valor dos "bens" reside naquilo
pelo qual podem ser trocados, ou seja, cm seu valor de troca.
Num mercado assim, as pessoas também assumem o aspecto
de objetos, encontrando seu valor em relações externas a si
mesmas. De modo similar, a moralidade privada e a pública
são afetadas; a ética se torna personalizada e narcisista, uma
97
questão de gosto e de estilo, sendo relativa e livre de regras:
“Cara, você pode ser o que quiser!” Nenhum absoluto moral
transcende o cotidiano. Tsse relativismo e esse ceticismo afe
tam também a situação das práticas epistemológicas e
metodológicas: restaram apenas posições, perspectivas, mo
delos, ângulos, paradigmas. Os objetos de conhecimento pa
recem elaborar-se arbitrariamente, reunidos à maneira de
colagem, trucagem e pastiche, de modo que, nas palavras de
Lyotard, “a modernidade parece ser (...) um jeito de formular
de tal maneira uma sequência de momentos que ela aceite
um alto índice de imprevisibilidade".5 Nisso, impera um
pragmatismo flexível (“o que é bom é o que rende dividen
dos"), resultando numa série de práticas calculistas. Por con
seguinte, numa cultura assim tão balizada pelo relativismo,
qualquer versão remanescente de emancipação esquerdista
(já viciada pelos regimes do socialismo real) se torna confu
sa, até por causa do virtual desaparecimento do proletariado,
o objeto (objetivo) da inquirição/engajamento da esquerda.
Dada a reestruturação de práticas industriais mais antigas em
face daquelas empresariais/terciárias mais novas, o proletari
ado, assim como a indústria pesada à qual ele devia sua pró
pria composição, acabou na prática sendo decomposto. No
lugar dele, existe agora uma série de coisas diferentes: um
pequeno núcleo de operários, uma nova (ou quase nova)
classe de marginalizados e os agrupamentos bastante instá
veis de (alguns) jovens, desempregados, negros, mulheres,
homossexuais, ambientalistas.
Concluindo a história: nesta época que se poderia denomi
nar “pós-tudo" (pós-libcral, pós-ocidental, pós-indústria pesa
da, pós-marxista), os velhos centros mal se aguentam, e as
velhas meta narrativas já não soam reais e promissoras, vindo a
parecer inverossímeis dos pontos de vista céticos do fim do
século xx. ("Imagine se alguém vai acreditar numa coisa des
sas!") É possível que nenhuma formação social que conhece
mos tenha ei radicado tão sistematicamente quanto o capitalis
98
mo liberal de mercado a idéia de valor intrínseco, por meio
nào da escolha, mas da “lógica cultural do capitalismo tardio".6
Em consequência, como observou George Steiner, “é esse co
lapso, mais ou menos completo, mais ou menos consciente,
daqueles gradientes de valor hierárquicos e definidores (e jxxle
haver valor sem hierarquia?) o que constitui agora o fato mais
relevante de nossa situação intelectual e social”.7
O pós-modernismo é a expressão geral dessa situação. Ele
nào é um movimento unificado. Nào é uma tendência que
pertença essencialmente à esquerda, ao centro ou à direita
(em algum ponto do espectro), nem é um resultado da me
lancolia intelectual/parisiense pós-1968/ Em vez disso,
ideólogos aristocráticos, burgueses e esquerdistas (de
Nietzsche a Derrida, passando por Freud, Saussurre,
Wittgenstein, Althusser, Foucault) precisaram, conforme as
necessidades, reavaliar numa ampla gama de discursos (filo
sofia, linguística, política, arte, literatura, história) as bases de
suas respectivas posições à medida que se ajustaram às revi
ravoltas mais amplas no campo socioeconômico, político e
cultural. Essas reavaliações, embora conduzidas de maneiras
muito diversas e por motivos opostos, chegaram todas à mes
ma conclusão. Enquanto esses ideólogos forcejavam cada vez
mais para fundamentar de algum modo as suas posições, o
que todos cies perceberam foi que tal fundamentação não
existia nem para eles (todo ídolo tem pés de barro), nem
para ninguém mais. Como resultado, o ceticismo ou, em ter
mos mais fortes, o niilismo fornecem os pressupostos intelec
tuais dominantes e subjacentes de “nosso tempo”.9
É claro que tipos e graus de ceticismo subsistem desde
longa data na “Tradição Ocidental” (conforme vimos no capí
tulo 2), mas a diferença agora é esta: o que antes apenas se
vislumbrava de modo intermitente e que em larga medida se
mantinha à margem não só veio abarcar nossa cultura, mas
também é, de diversas maneiras, acolhido com satisfação.
Isso porque os pós-modernos nào apenas se negam a chorar
99
ou sentir nostalgia por aqueles centros e metanarrativas hoje
fantasmagóricos (ou por quem se beneficiava mais desses
centros e meta narrativas), como também festejam ou utilizam
de modo estratégico, por uma série de razões, a amplamente
reconhecida “inadequação da realidade aos conceitos”.10
100
creveu-se o que linha valor para o aristocrata, o burguês e o
proletário). E, naturalmente, tal "virada redescritiva” foi o que
veio abarcar o passado/história, a coisa específica que nos
interessa neste texto.
Isso porque, como já vimos, trata-se de um passado que
pode ser redescrito infinitamente. Ele pode sustentar (e sus
tenta) incontáveis relatos históricos plausíveis e, vis-à-uis as
próprias orientações metodológicas deles, igualmente legíti
mos; sem exceção, esse passado tem dado tudo que os histo
riadores (e seus imitadores) quiseram e querem: variados
nascimentos, origens, antecedentes legitimadores, explicações
e genealogias (conservadoras, liberais, marxistas etc.), úteis
para eles quando procuram estar no controle, de modo que
possam apropriar-se do passado e assim dizer com Nietzsche:
"Assim quis eu".
Hoje mais do que nunca, há pessoas querendo coisas. No
rastro desses centros ausentes e metanarrativas ruídas, as con
dições do pós-modernismo produzem aquela multiplicidade
de relatos históricos que encontramos por toda a parle em
nossas sociedades democráticas/consumistas, uma massa de
gêneros ("histórias com griffe") para usar e/ou abusar a gosto.
Nisso podemos identificar, por exemplo, as histórias dos
historiadores (histórias profissionais que tentam estabelecer
hegemonia naquele campo de estudo, uma versão expressa
nas teses, monografias, artigos e livros), as histórias dos pro
fessores de escola (necessariamente popularizações das his
tórias dos historiadores profissionais) e depois toda uma gama
de outras formas características que só podemos listar: rela
tos históricos para crianças, relatos da memória popular, relatos
de negros, brancos, mulheres, feministas, homens, relatos de
herança cultural, relatos de reacionários, elites, marginais etc.
'Iodos esses diversos constructos sào influenciados por pers
pectivas locais, regionais, nacionais e internacionais.
E não é tudo. Todos esses gêneros têm fronteiras irregulares
e sobrepostas, e todos se apoiam uns nos outros e se definem
101
pelo que não são - é a intertextualidade. Mais: todos são ras
gados por pressupostos epistemológicos, metodológicos e ide
ológicos que, em vez de manterem relações apenas bilaterais,
movem-se por todo o campo, de modo que podemos ver cada
um desses gêneros em termos aqui estruturais ou fenomeno-
lógicos, ali empíricos ou existenciais; da perspectiva primeiro
do lil^eralismo ou do marxismo, por exemplo, e depois da
direita radical etc.; combinando e recombinando os elementos
disponíveis de forma que os relatos resultantes nào tenham
necessariamente permanência - nào expressem nenhuma es
sência. O que fica claro é, portanto, a absoluta imprevisibilidade
das leituras e o reconhecimento de que as interpretações no
(digamos) “centro” de nossa cultura estào lá não porque sejam
verdadeiras ou metodologicamente corretas (relatos brilhantes
podem ver-se marginalizados caso seu tema seja difícil de acei
tar), mas porque estão alinhadas com o discurso dominante.
Mais uma vez, temos a relação entre poder e saber.
Esse fluxo interpretaiivo, quando visto de forma positiva,
tem o potencial para capacitar até os mais marginalizados, na
medida em que eles pelo menos podem produzir suas pró
prias histórias, mesmo que nào tenham poder para torná-las
a de outras pessoas. Conforme argumenta Peter Widdowson,
é improvável que hoje a história possa ser resgatada do
desconstrucionismo historiograficamente orientado e
metodologicamente balizado. “Aliás, nem se deve tentar isso."12
Questionar a noção da verdade do historiador, assinalar a
facticidade variável dos fatos, insistir em que os historiadores
escrevem o passado a partir de posições ideológicas, enfatizar
que a história é um discurso escrito tão passível de des-
construção quanto qualquer outro, afirmar que o “passado” é
um conceito tão especulativo quanto o “mundo real” a que
os romancistas aludem na ficçào realista - só existindo nos
discursos presentes que o formulam. Tudo isso desestabiliza
e fratura o passado, de modo que nas rachaduras nele aber
tas se podem produzir novas histórias.
102
Mas, por outro lado, a lilx?rdade de proporcionar interpreta
ções alternativas parece subversiva, pois é vista negativamente
por aqueles que detêm suficiente poder para estabelecer os
limites da “história como se deve", ainda teimosamente defini
da com referência a uma suposta objetividade; para eles, aque
la liberdade parece uma contestação. Por conseguinte, o que
em geral ocorre é que as práticas de discurso dominantes pro
curam encenar (isolar e/ou findar) as leituras/interprctaçôes
que consideram indesejáveis. Em nossa atual conjuntura, po
demos ver dois desses procedimentos de encerramento: ou as
práticas dominantes tentam recuperar/incorporar os relatos his
tóricos indesejáveis (do que sâo exemplo as tentativas de
“redomesticar” as interpretações feministas concedendo-lhes
uma posiçào respeitável dentro da história propriamente dita,
em vez de deixar que elas permaneçam “apenas no femini
no"); ou, ironicamente, essas práticas dominantes capitalizam
o fenômeno da ausência de passado pós-moderna, transfor
mando (redescrevendo) o passado para os fins delas próprias.
Se o passado pode mesmo ser lido como um trânsito infi
nito de interesses e estilos insubstanciais, então isso se aplica
nào apenas às leituras que são dominantes, como também
àquelas que são as alternativas mais recentes. Isso porque,
embora em certo sentido todo mundo esteja talvez no mes
mo barco, nem todos os ocupantes do barco estão na mesma
posiçào, dado que alguns já estabeleceram seus constructos
históricos e, portanto, tal problematização dos alicerces do
edifício histórico é considerada mais danosa para aqueles
cujos constructos se vêem em estágio inicial. Widdowson:
103
recombinar a nosso bel-prazer. A única história que existe é a
história do signiticanie, e esta nào é história coisa nenhuma’.’’”
10-1
sumariadas acima, no rumo positivo da emancipação demo
crática; uma emancipação democrática que, ao mesmo tem
po, esclareça ainda mais a questão da “natureza da história”.
No ensaio “O discurso da História ”, Roland Banhes argu
menta que o passado pode ser representado por meio dos
muitos modos e tropos dos historiadores, alguns dos quais,
no entanto, sào menos mitológicos e inistificadores do que
outros, na medida em que chamam franca e propositalmente
a atenção para seus próprios processos de produção e assi
nalam a natureza construída (e nào "descoberta”) de seus
referentes. No que me diz respeito, os benefícios disso são
óbvios. Trabalhar assim é adotar um método que desconstrói
e historiciza todas aquelas interpretações que têm pretensão
à certeza e não que questionam suas próprias condições de
produção; interpretações que esquecem de indicar sua sub
serviência a interesses ocultos, que nào conseguem reconhe
cer seu próprio momento histórico e que mascaram os pres
supostos epistemológicos, metodológicos e ideológicos que
(tal qual procurei mostrar no decurso deste texto) mediam
em todo os lugares e um todos os momentos a transformação
do passado em história.
Como então por em prática essa abordagem desejável da
história, uma abordagem concebida para desenvolver uma
inteligência crítica que seja democratizante e matizada pela
ironia? Talvez se necessite de duas coisas. A primeira seria o
que poderiamos denominar "metodologia reflexiva". Isso sig
nifica que precisa proporcionar a você (talvez quando estu
dante) uma análise explícita do porquê de ensinarem-lhe esta
ou aquela história e do porquê de ensiná-la desta ou daquela
maneira. Uma análise assim trabalharia a fértil distinção entre
passado e história, da qual emerge a problemática da "ques
tão da história” que comecei a esboçar neste texto. Ademais,
havería então a necessidade de fazer estudos historiográficos
detalhados para examinar em que medida as histórias anteri
ores e atuais foram construídas, tanto do aspecto metodológico
105
quanto do conteudístico. Para isso, seria necessário outro li
vro, e nào este. O que sugiro aqui é uma historizaçâo radical
da história ("historizar sempre”, como recomenda o currículo
escolar britânico), coisa que considero o ponto de partida
para um historiador que saiba refletir sobre a sua própria ativi
dade. Sugiro ainda que, para trabalhos históricos subsequen
tes, você desenvolva uma posição consciente (e assumida).
Aqui, faz-se necessário um comentário sobre a "escolha de
posição”.
Ao dizer que deve fazer uma escolha explícita de posição,
nào quero deixar subentendido que você, se nào quiser fazer
essa escolha, talvez produza urna história "sem tomada dc
posição". Ou seja, nào quero dar a entender que você terá
algum tipo de liberdade para escolher ou não - pois isso
seria irrefletidamente liberal. No discurso liberal, em algum
lugar e de alguma maneira, sempre existe uma espécie de
campo neutro de onde parece mesmo que podemos escolher
ou não. Esse campo neutro não é considerado uma posição
que a pessoa já ocupa. Em vez disso, é lido como um ponto
de vista desapaixonado, de onde podemos relaxar e fazer
objetivamente escolhas e juízos imparciais. Mas já vimos que
as coisas não sâo assim. Não existe um "centro nâo-posicio-
nado” (expressão que, aliás, é contraditória); não é possível
haver um lugar não-posicionado. A única escolha é entre
uma história que está consciente do que faz e uma história
que nào está. Aqui, os comentários do teórico literário Robert
Young vêm a calhar. Onde ele escreve “crítica", leia-se "inter
pretação”:
Toda crítica (em uma posição teórica implícita — quando nào ex
plicita. Assim, a queixa que se faz da chamada “crítica teórica" —
de que ela impõe suas teorias ao texto lao passado) — aplica-se
com muito mais propriedade à chamada “crítica antiteórica", cujas
idéias preconcebidas sobre o que ler e por que ler sào tão funda
mentais que permanecem "naturais" [...), livres de teoria.1'
106
Logo, toda história é teórica, e todas as teorias posicionam
e se posicionam. Quando você for escolher sua própria posi
ção, eu obviamente não vou querer impor-lhe minha manei
ra de interpretar o passado. Mas peço que sc lembre de que,
ao escolher, você sempre escolhe uma versão do passado e
uma maneira de apropriar-se dele que tem efeitos, que faz
você alinhar-se com certas interpretações (ceitos intérpretes)
e contra outras.*6 O xis da questão é este: aqueles que afir
mam saber o que é a história sempre realizam (assim como
eu) um ato de interpretação.*7
Por fim, a segunda coisa que ajudaria a consumar uma
abordagem cética e criticamente reílexiva, tanto da “questão
da história” quanto do estudo da história, sei ia uma seleção
do conteúdo adequada a essa prática. É claro que, em certo
sentido, qualquer momento do passado bastaria para tanto,
dada a presteza com que ele atende a lodo e qualquer intér
prete. Apesar disso, se outros fatores não intervierem, minha
preferência j>essoal seria por uma série de histórias que nos
ajudassem a compreender não só o mundo em que vivemos,
mas também as formas de história que nos ajudaram a pro
duzi-lo e que, ao mesmo tempo, ele produziu. Trata-se de
uma pretensão bastante banal, mas, em cena medida, ela
pode sofrer uma virada quando se usa uma formulação de
Foucault: não tanto uma história para nos ajudar a entender o
inundo em que vivemos, mas antes uma série de "histórias
do presente".
A razão para essa escolha pode ser exposta em poucas
palavras. Se a melhor maneira de ver o presente for considerá-
lo pós-moderno (e se, como observou Philip Rieff, conse
guirmos sobreviver a este experimento chamado moderni
dade),’8 então penso que o conteúdo de uma história desejá
vel deveria ser constituída por estudos desse fenômeno. Ou
seja, as análises de nosso mundo moderno por intermédio
das perspectivas metodologicamente balizadas do pós-mo-
dernismo não apenas nos ajudam a situar todos os atuais
107
debates sobre a pergunta "O que é a história?" ("Para quem é
a história?"), mas também nos fornecem (num momento que
oscila entre o velho e o novo) aquilo que, em certo sentido,
todos esses debates desejam, um contexto que possibilitara
uma resposta balizada e viável àquela pergunta. Portanto, no
mundo pós-moderno, pode-se argumentar que o conteúdo e
o contexto da história deveríam ser constituídos por uma ampla
série de estudos metodologicamente reflexivos sobre as ma
neiras de se fazerem as histórias da própria pós-modernidade.
108
Notas
INTRODUÇÃO
109
curso" indica que sabemos que a história nunca é só ela, nunca é
formulada ou interpretada inocentemente e sempre serve a alguém.
Este texto opera com base no pressuposto de que estar ciente disso
pode talvez outorgar poder e, portanto, tratar-se de uma coisa boa.
Observação: essa maneira de usar os termos nào é a mesma ex-
posta por 1 layden White em Trópicos do discurso, Sào Paulo, Edusp,
1994; vide em especial a Introdução, que trata da terminologia e é
brilhante.
E. II. Carr, O que é a História?, Gradiva, 1986; G. Elton, The
practice ofhistory, London, Fontana, 1969; A. Marwick, The nature
of history, London, Macmillan, 1970.
•'J. Tosh, Thepursuit of history, London, Longman, 1984.
' Por exemplo: R. Rony, Pbilosophy and lhe mirror of nature,
Oxford, Blackwell, 1980; R. Rony, Contingência, ironia esolidarie
dade, Presença, 1994; T. Eagleton, Literary tbeory, Oxford, Blackwell,
1983; .1 Erow, Marxism and literary history, Cambridge (Mass.),
Harvard University Press, 1986, I). Bromwich, A cboice of
inheritance, Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1989-
5 P. Geyl, Debates with hislorians, London, Eontana, 1962; M.
Bloch, The bistorian's craft, Manchester, Manchester University Press,
1954 (original: Apologiepour Thistoire, ou métier d'historien, 19491;
R. Collingwood, 'lhe idea of bistory, Oxford, oup, 1987; C. Gordon
(cd), Power/knowledge, New Yoik, Pantheon, 1980 (que traz ma
terial de Foucault).
6 A. Callinicos, Making history, New York, Cornell University Press,
1988; M. Oakeshott, On history, Oxford, Blackwell, 1983; R Chanier,
Culturalhistory, Oxford, Polily, 1988; S. Horigan, Nature and culture
in Western discourses, London, Routledge, 1989; E. Wolfe, Europe
and thepeople without history, London, University of Califórnia Press,
1982; M. Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar, Sào Paulo,
Companhia das Letras, 1988; I. Hassan, "The culture of post
modernism", Tbeory, Culture and Society, 2, 3, 1985, 119-32.
7 G. Stedman-Jones, "'lhe poveity of empiricism", em R. Blackbum
(ed.), Ideologyin social history, London, Fontana, 1972; R. Samuel, "Grand
narraiives", History WorkshopJournal, 2f), 1990, D. Cannadine, “British
history: past, present - and future?", PastandPresent, 116,1987; C. Parker,
'lhe English historical tradition since 1850, Edinbuigh, Donald, 1990.
110
3 Jsso nào significa dizei que nào se deva estar cônscio do peri
go da possível subordinação da história ao imperialismo literário.
Vide Bennett, por exemplo: “o conspecto do passado como texto
infinito que só se pode incessantemente retextualizar consiste em
transferir para o passado o objeto e os procedimentos da literatura.
A litcralizaçào do passado é algo que precisamos considerar uma
tentativa de estender o domínio do próprio regime da verdade da
literatura para o do passado” (l ‘. Bennett, Outsideliterature, London,
Routledge, 1990, p. 280). Assim, uma incursão consciente contra
os procedimentos da literatura, se e quando necessário, está mais a
meu gosto.
9 Os capítulos ficaram curtos por várias razões, e a principal foi
o caráter introdutório e polêmico do texto, o que significa que nào
me propus apresentar uma cobertura geral (como, por exemplo, a
de Marwick, op. cit.) e, em vez disso, procurei manter este livro-
arguinento-introdutório curto o suficiente para que fosse lido de
uma ou duas sentadas e, assim, ponderado de uma vez só. Devo
também dizer qtie nào tentei lazer deste texto nada além de básico
e didático. Estou ciente da maneira pela qual simplifiquei áreas
complexas (por exemplo, a história do pós-modernismo), mas meu
objetivo foi expor rapidamente os argumentos e depois indicar nas
notas de rodapé abordagens mais doutas e sofisticadas. Em outras
palavras, tentei levar à leitura de alguns textos que utilizei “nos
bastidores”, ao mesmo tempo que mantinha a maioria deles fora
do livro.
O QUE É HISTÓRIA?
111
1991; T. Bennett, Outside lileraiure, London, Routledge, 1990; V.
Descombes, Modem French philosopby, Cambridge, cup, 1980, so
bretudo o capítulo 4; H. White, Trópicos do discurso, São Paulo,
Edusp, sobretudo o capítulo 5, “As ficções da representação factual".
4 D. Lowenthal, Tbe past is a foreign country, Cambridge, cup,
1985, sobretudo o capítulo 5.
5 S. Giles, “Against interpretation”, Tbe Brilisb Journal of
Aestbelics, 28, 1, 1988. Michael Oakeshott, em On hislory, Oxford,
Blackwell, 1983, apresenta um argumento similar, embora formu
lado por motivos muito diferentes. Para Oakeshott, um passado
compreendido historicamente é a conclusão de certo tipo de in
vestigação crítica, “só encontradiça num livro de história. (...) a
história é (...) uma investigação na qual os vestígios autenticados
do passado se dissolvem em seus traços componentes, a fim de ser
usados pelo que valem como provas circunstanciais com que se
possa inferir um passado que não perdurou; um passado compos
to de passagens de acontecimentos históricos inter-relacionados
(...) e reunidos como respostas a perguntas sobre o passado for
muladas por historiadores” (p. 33).
6 Lowenthal, op. cit., p. 216.
7 George Steiner, After Babel, Oxford, oup, 1975, p. 234.
8 Lowenthal, op. cit., p. 218.
9 Ibid.» p. 218.
10 G. Elton, Tbepraclice ofbislory, London, Fontana, 1969, p. 70,
112-3.
“ E. P. Thompson, A miséria da teoria, London, Merlin, 1979, p-
193.
12 A. Marwick, Tbe nalure of bislory, London, Macmillan, 1970,
p. 187, 190.
13 D. Steel, “New hislory”, Hislory Resource, 2, 3, 1989.
11 J. H. Plumb, Tbe deatb of tbe past, London, Macmillan, 1969,
passim.
15 P. Wiight, Oh living in an old country, London, Verso, 1985.
16 Um tratamento mais completo desses tipos de prática pode
ser encontrado em M. Stanford, Tbe nature ofbislorical knowledge,
Oxford, Blackwell, 1986, sobretudo do capítulo 4 em diante.
17 R. Scholes, Textualpotver, London, Yale University Press, 1985;
112
T. Eagleton, Crilicism and ideology, London, New Left Books, 1976;
S. Fish, Js there a text in íbis class?, Cambridge (Mass.), Harvard
University Press, 1980; T. Bennett, op. cit.
18 Essa definição lembra aquela à qual John Frow, Marxism and
literary bislory, Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1986,
chega para a literatura. Segundo Frow, literatura “designa um con
junto de práticas para significação que foram socialmente sistemati
zadas como unidade e que, por sua vez, regulam a produção, recep
ção e circulação de textos destinados a essa categoria. Portanto, ela
constitui uma forma em comum de textualidade para textos formal e
temporalmente díspares, muito embora esse espaço compartilhado
possa estar cindido por regimes antagônicos de significação, corres
pondentes às diferentes posições de classe (ou de raça, sexo ou
religião) e às diferentes bases institucionais delas" (p. 84).
113
(iva) e não aos contextos mais amplos dos quais os enunciados sào
apenas um dos tipos de constructo lingüístico, assim também os
historiadores, envolvidos como estão nesses argumentos (interpre
tações) mais amplos, nào conseguem referir-se a tais argumentos/
interpretações como verdadeiros. Aliás, é contra-senso falar de “in
terpretação verdadeira". Sobre isso, vide Oakeshott, On history,
Oxford, Blackweil, 1983, p. 49 e passim, e F. R. Ankersmit, “Reply
to Professor Zagorin", History and Theory, 29, 1990, 275-96. Vide
igualmente os artigos que suscitaram aquele artigo de Ankersmit:
F. R. Ankersmit, “Historiography and post-modernism", Historyand
'Theory, 28, 1989, 137-53, e P. Zagorin, “Historiography and post-
modernism: reconsiderations”, History and Theory, 29, 1990, 263-
74. Vide também R. Rorty, Consequences of pragmatism,
Minnea polis, University of Minnesota Press, 1982, e H. White, Tró
picos do discurso, Sào Paulo, Edusp, 1994.
9 R. Skidelsky, UA question of values", lhe Times Educational
Supplement, 27.5.1988. Skidelsky é um desses historiadores que pare
cem acreditar que diferentes interpretações de um mesmo conjunto
de acontecimentos são resultado de distorções, ideológicas ou dados
inadequados. De fato, ele afirma que, se apenas nos abstivéssemos da
ideologia e nos mantivéssemos fiéis aos fatos, havería de surgir certo
conhecimento. Mas (conforme White argumenta), no registro bruto
do passado e na crônica dos acontecimentos que o historiador extrai
daquele registro, os fatos só existem como amontoados de fragmen
tos contiguamente relacionados que então precisam ser organizados
mediante alguma matriz que possibilite isso. Tal coisa não seria novi
dade para muitos historiadores “se não estivessem eles tão
fetichisticamente enamorados da noção de ‘fatos’ e não fossem tão
congênita mente hostis à ‘teoria’, de forma tal que a presença numa
obra histórica de uma teoria formal para explicar a relação entre os
fatos e os conceitos é suficiente para atribuí-las a responsabilidade de
ler desertado para a menosprezada sociologia ou escorregado para a
nefanda filosofia da história" (White, op. cit., p. 142).
10 Grande parte deste argumento foi extraído de K. Jenkins e P.
Brickley, “On bias", History Resource, 2, 3, 1989.
” O âmago deste segmento foi extraído de K. Jenkins e P
Brickley, "On empathy", Teacbing History, 54, April 1989.
114
12 L. Wittgcnstein, Phílosopbical inuestigations, Oxford, Blackweil,
1983 íoriginal: Philosophische Untersucbungen, 19531; O. R. Jones,
Theprivate langttage argument, London, Macmillan, 1971.
15 Steiner, After Babel, p. 134-6.
" Ibid., p. 138.
15 Eagleton, Crilicism and ideology, London, New Left Books,
1976, p. 3.
16 Steiner, After Babe!, p. 18.
17 R. Barthes, "O discurso da História”, in: O rumor da língua.
Brasiliense, 1988, p. 154. Como já vimos neste segmento sobre
prova/corroboraçào, o parecer de Elton contraria tanto o de Banhes
quanto o meu; Elton fala de uma "massa de fatos históricos" c da
quase nào-problemática "elaboração cumulativa de conhecimento
seguro tanto dos fatos quanto das interpretações" (G. Elton, lhe
practice of history, London, Fontana, 1969, p. 84-5). Vide também
o que M. Stanford diz sobre a prova/corroboraçào e a elaboração
históricas em Ibe natureofbistoricalknowledge, Oxford, Blackweil.
1986, sobretudo no capítulo 5-
18 Vide White, op. cit., p. 52.
19 T. Eagleton, Literary theory, Oxford, Blackweil, 1983, p. 201.
20 Para uma leitura introdutória sobre história e ciência, vide P.
Gardner, Teorias da História, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1995.
21 Este segmento se baseia em White, op. cit., sobretudo no
capítulo 1, "O fardo da História".
22 Ibid., p. 40.
25 H. White, lhe contem of tbe forin, London, Johns Hopkins
University Press, 1987, p. 227, nota 12.
24 White, Trópicos do discurso, pp. 59-60.
CONSTRUINDO A HISTÓRIA NO
MUNDO PÓS-MODERNO
115
5 Boa pane desce relato é usada em K. Jenkins e P. Brickley,
"Always liisioricise...”, Teacbing Hislory, 62, January 1991, para
explicar o currículo escolar de história adotado no Reino Unido (o
National curriculum scbool history).
* Vide G. Steiner, In Bluebeard’s castle, London, Faber, 1971,
sobretudo o capítulo 1, “ l he Great Ennui”.
$J. F. Lyotard, “Time today”, The Oxford Literary Review, 11, 1-
2, 1989, p. 3-20, na p. 12.
6 F. Jameson, “Post-modeinism, or, The cultural logic of late
capitalisin”, Netv Lefl Revieiv, 146, 1984. Vide também P. Dews(ed.),
Habennas: autonomy and solidarity, London, Verso, 1986.
7 Steiner, op. cit., p. 66.
K Vide Callinicos, op. cit., sobretudo o capítulo 5, “So what else
is new?”, p. 121-71.
9 Para uma visào geral do pós-modernismo, vide D. Harvey, A
condição pôs-moderna, Sào Paulo, Loyola, 1999.
10 Callinicos, op. cit., p. 18.
“ R. Rorty, Conlingency, irony and solidarity, Cambridge, cui»,
1989, sobretudo a Introdução.
12 P. Widdowson, “'l he creation of a pasC, lhe Times Higher
Educaiion Supplemenl, 3 11.1990. Vide também P. Widdowson (ed ),
Re-reading English, London, Methuen, 1982.
15 Widdowson, lhe Times Higher Educalion Supplemenl.
Vide em especial T. Bennett, Oulside literature, London,
Roudcdge, 1993, sobretudo os capítulos 3 (“Liièratiiie/histoiy") e
1U (“Criticism and pedagogy: lhe role of lhe literary inieilechial").
Os argumentos de Bennetl em prol de certo pós-marxismo e para
além da disputa com o pós-modernismo sào interessantes e têm
pertinência no que se refere à "natureza da história", pois Bennetl
se debate com o passado-constructo-discursivo mas, ao mesmo
tempo, deseja que esse passado de algum modo impeça todo tipo
de prática discursiva que se aposse dele à vontade. Para uma ten
tativa de produzir uma forma de solidariedade que aceite a
imprevisibilidade, a ironia e a liberdade e ainda assim procure
impedir que isso se torne um “vale-tudo”, vide também a obra
(liberal) realmente brilhante de Roíty.
116
” R. Young, Untying the text, London, Routledge and Kegan
Paul, 1981, p. vni.
16 Para unia exposição crítica ampla e estimulante das frouxas
noções de democracia, capacitação social {empowernieni}, alinha
mento e emancipação, vide Bennetl, op. cit., capítulos 9 e 10. Vide
também a abordagem discursiva pós-marxista de C. Mouffe e E.
Laclau em Hegemony anã socialist slrategy, London, Verso, 1985,
que Bennetl analisa no capítulo 10, aprofundando a problemática
da "solidariedade" na democracia etc., questões que só assinalo de
passagem neste livro.
17 Sobre isso, vide os comentários de White de que, diferente
mente do pressuposto novecentista de que a história empírica é o
único acesso à realidade, os grandes filósofos da história (Vico,
liegel, Marx, Nietzsche, Croce) e os grandes autores clássicos da
historiografia (Michelet, Carlyle, Ranke, Droysen, Burckhardt) pelo
menos "tinham uma autoconsciência retórica que lhes permitia re
conhecer que qualquer conjunto de fatos era descritível variada*
mente, e também legitimamente; que nào existe esta coisa de uma
única descrição correia de alguma coisa, com base na qual se pos
sa subsequentemente fazer uma interpretação dessa coisa. Eles re
conheciam, em suma, que todas as descrições originais (...) já sào
interpretações" (W. White, Trópicos do discurso, Sào Paulo, lídusp,
1994, p. 144).
,K P. Rieff, The triumpb of ibe tberapeulic, London, Penguin,
1973.
117
índice remissivo
I 19
Marwick, Arthur 17, 36-37
marxismo 39, 65-66, 84, 88-89, 95, 99, 104-105
marxistas-lcninistas 64
metanarrativa 94-100
metodologia 29-30, 33-38, 42, 44-51
Mill, John Stuait 76
Oakcshott, Michael 19, 36
Orwell, George 31,41
parcialidade 65-68
pareamentos historiográficos
(causa e efeito, semelhança e diferença etc.) 83-87
Parker, Christopher 19
passado e história, distinção entre 25-30
Platão 55-56
Plumb, J. H. 43
pós-modernismo 20, 95-108
prática/práxis 43-51
Ricff, Philip 107
Rorty, Richard 58, 100
Samuel, Raphael 19
Scholes, R. 50
Skidclsky, Robert 61-64
Stuiner, George 57-58, 61, 79, 74, 99
teoria 23- 43
Thompson, lidward Paimer 37, 79
Tosh, John 17
verdade 54-59
White, Hayden 18, 88-90
Widdowson, Peter 102-104
Wright, Patrick 44
Young, Robeit 106
120