Uma Antropologia Da Praxis Jean Langdon - Ebook-20mar23

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Sônia Weidner Maluf

Eliana Elisabeth Diehl


Juana Valentina Nieto Moreno
organização

UMA ANTROPOLOGIA
DA PRÁXIS:
homenagem a
Jean Langdon
COLEÇÃO
BRASIL
PLURAL
Uma antropologia da práxis:
homenagem a Jean Langdon
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Reitor
Irineu Manoel de Souza
Vice-Reitora
Joana Célia dos Passos

EDITORA DA UFSC
Diretor Executivo
Waldir José Rampinelli
Conselho Editorial
Waldir José Rampinelli (Presidente)
Antonio Fernando Boing
Bairon Oswaldo Vélez Escallón
Carlos Alberto Severo Garcia Junior
Diogo Robl
Elias Paiva Ferreira Neto
Fernando Luís Peixoto
Francisco Emilio de Medeiros
Jéferson Silveira Dantas
Jucinei José Comin
Luiz Gustavo da Cunha de Souza
Marília de Nardin Budó
Nildo Domingos Ouriques
Raphael Grazziano
Rosane Silvia Davoglio
Vanessa Aparecida Alves de Lima

COMITÊ EDITORIAL DA COLEÇÃO BRASIL PLURAL


Vânia Zikán Cardoso (Coordenadora da Coleção)
Alicia Castells
Esther Jean Langdon
Márcia Grisotti
COMITÊ GESTOR DO INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISA BRASIL PLURAL
Deise Lucy Montardo (UFAM)
Eliana Elisabeth Diehl (UFSC)
Esther Jean Langdon (UFSC)
Rafael Victorino Devos (UFSC)
Sônia Weidner Maluf (UFSC)
Vânia Zikán Cardoso (UFSC)

Editora da UFSC
Campus Universitário – Trindade
88040-900 – Florianópolis-SC
Fone: (48) 3721-9408
[email protected]
www.editora.ufsc.br
Sônia Weidner Maluf
Eliana Elisabeth Diehl
Juana Valentina Nieto Moreno
organização

Uma antropologia da práxis:


homenagem a Jean Langdon

2023
© 2023 (e-book) Editora da UFSC [Nota do Editor = mesmo conteúdo]
© 2023 (impresso)

Coordenação editorial:
Flavia Vicenzi
Capa e editoração:
pamalero artes
Imagem da capa:
Alan Stone Langdon
Revisão:
Maria Isabel de Castro Lima
Monique Heloísa de Souza

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina

A636
Uma antropologia da práxis [recurso eletrônico] : homenagem a Jean
Langdon / Sônia Weidner Maluf, Eliana Elisabeth Diehl, Juana
Valentina Nieto Moreno, organização. – Florianópolis : Editora
da UFSC, 2023.
611 p. : il. – (Coleção Brasil Plural)
E-book (PDF)
Disponível em: https://doi.org/10.5007/978-65-5805-083-4
ISBN 978-65-5805-083-4
1. Antropologia. 2. Ciências sociais. 3. Ciências humanas.
4. Langdon, Esther Jean. I. Maluf, Sônia Weidner. II. Diehl, Eliana
Elisabeth. III. Nieto Moreno, Juana Valentina.
CDU: 391/397
Ficha catalográfica elaborada por Dênira Remedi – CRB-14/1396

Este livro está sob a licença Creative Commons, que segue o princípio do acesso
público à informação. O livro pode ser compartilhado desde que atribuídos os
devidos créditos de autoria. Não é permitida nenhuma forma de alteração ou a
sua utilização para fins comerciais.
br.creativecommons.org
Sumário

Prefácio | Feitos e ditos, luzes, teias e pegadas: homenagem à


vida e à obra de Esther Jean Langdon....................................... 9
Apresentação................................................................................................ 13

PARTE I – XAMANISMO
Meio século de pesquisa sobre xamanismo............................................. 25
Isabel Santana de Rose

Os xamanismos hoje: entre arcaísmo e vanguarda................................. 45


Robert R. Crépeau

Esther Jean Langdon, o la perseverancia de una etnógrafa avant


la lettre........................................................................................................... 64
Carlos Alberto Uribe

A corporeidade do incorpóreo: reflexões a partir da noção siona


de “dau”......................................................................................................... 78
Laura Pérez Gil

Homenagem a Esther Jean Matteson Langdon: reflexões em


torno dos conceitos-imagem “toya” e “dau” dos Siona do
Putumayo................................................................................................... 101
Elsje Lagrou

Llorando la muerte del padre: una narrativa chamánica siekopai


de luto, enfermedad y adhesión al culto evangélico............................. 128
Luisa Elvira Belaunde

PARTE II – SAÚDE: PRÁTICAS LOCAIS E POLÍTICAS


PÚBLICAS
Antropologia da práxis na abordagem da saúde: práticas,
diferença e relações................................................................................... 156
Sônia Weidner Maluf
A saúde como política: narrativas, cosmografia e práticas de
autoatenção entre os Munduruku da Terra Indígena Kwatá-
Laranjal, Borba, Amazonas...................................................................... 170
Daniel Scopel e Raquel Paiva Dias-Scopel

Breve relato sobre as contribuições de Esther Jean Langdon aos


estudos em saúde....................................................................................... 199
Nádia Heusi

Cultura e atenção diferenciada: dos documentos oficiais à atuação


de profissionais de saúde na Terra Indígena Xapecó............................ 204
Ari Ghiggi Jr.

Contribuições de Jean Langdon às políticas públicas de medicina


tradicional indígena ................................................................................. 233
Luciane Ouriques Ferreira

Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu


e os Hupd’äh: xamanismo, corporeidade e saúde reprodutiva............ 259
Renato Athias

Regresos asesinos: violencia, suicidio y exhumación en la


economía de la muerte de los Emberá Katío (Chocó-Antioquia,
Colombia)................................................................................................... 291
Anne-Marie Losonczy

PARTE III – NARRATIVA, RITUAL E PERFORMANCE


Narrativas y experiencias de mujeres indígenas en la historia
colonial........................................................................................................ 315
Juana Valentina Nieto Moreno

O calendário da resistência: performances e mobilização política


nas assembleias e no 20 de Maio dos Índios Xukuru do Ororubá...... 337
Rita Neves

Vozes de homens, cantos de bichos: o que contam os Xetá sobre


o Canto do Urubu?.................................................................................... 358
Carmen Lucia da Silva

Historia indígena, fuentes documentales y narrativas etnohistóricas:


diálogos con Jean Langdon ..................................................................... 369
Camilo Mongua
Etnoterritorios y ritualidad en Oaxaca, México.................................... 376
Alicia M. Barabas

Ritualidad y contrahegemonía: acción simbólica y cultura de


resistencia................................................................................................... 394
Miguel Alberto Bartolomé

Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro


(Amazonia colombiana) .......................................................................... 424
Juan Alvaro Echeverri

GESTOs da Jean: jeangando por um texto em processo, com


muitas mãos, memórias, flechas e pegadas............................................ 456
Evelyn Schuler Zea, John Dawsey, Luciana Hartmann, Paulo Raposo,
Scott Head, Vânia Zikán Cardoso e Viviane Vedana

PARTE IV – HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E AFETOS


Ode a Jean Langdon: a antropologia como escuta, encontro e
cuidado....................................................................................................... 493
Marcos Antonio Pellegrini, Eliana Elisabeth Diehl e Fernando José Ciello

De escuchar, ser gente y de antropologías liminales:


consideraciones y afectos para Jean Langdon y su antropología........ 509
Sandra Carolina Portela G.

Engajamento e empatia: Jean Langdon como colega e amiga............. 517


Diana Brown e Mario Bick

Carta à mestra............................................................................................ 523


Alicia Castells

Minha amiga Jean...................................................................................... 525


Maria Soledad Etcheverry Orchard (Marisol)

Jean Langdon, uma antropóloga norte-americana em terras


catarinenses ............................................................................................... 531
Ilka Boaventura Leite

Da conversão à antropologia e de outros afetos: Jean Langdon.......... 537


Flávio Braune Wiik
Itinerários académicos, lúdicos e terapêuticos: memórias e
diálogos com Jean Langdon em Portugal e Brasil entre águas
e vinhos....................................................................................................... 553
Maria Manuel Quintela

Texto de homenagem à professora Jean Langdon................................. 562


Philippe Hanna

“Observei a vida através dessa lente...”: os caminhos da


antropóloga Jean Langdon ...................................................................... 566
Ana Lucia de M. Pontes, Ricardo Ventura Santos, Vanessa Hacon e
Vilma Reis

Mãe é Juanita.............................................................................................. 586


Alan Stone Langdon

Memória fotográfica.................................................................................. 588

Sobre as autoras e os autores.................................................................... 599


Prefácio

Feitos e ditos, luzes, teias e pegadas:


homenagem à vida e à obra de
Esther Jean Langdon

Com grande prazer respondo ao convite para prefaciar o livro


Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon, que traz um
conjunto de 32 textos que celebram a obra e a vida de nossa querida
Jean. Na leitura dos capítulos que fazem menção a algumas das inter-
relações contidas na grande teia de significados que é a obra profissional
de nossa homenageada, me maravilho com a consistência e a variedade
dos temas de pesquisa e das ações de advocacy dessa amiga e com-
panheira de trabalho cuja obra conheço, mas da qual somente agora
– em perspectiva – fui capaz de apreender a amplitude e a profundidade.
Entre as mil facetas de Jean que descortino neste leque de home-
nagens, destacam-se de forma nítida a relevância do desenvolvimento
teórico alcançado nos temas por ela pesquisados e a influência que con-
tinua a exercer naquilo que é elegantemente chamado de abordagem
antropológica da práxis. Das suas contribuições teóricas, me é caro o
tema das narrativas, tratadas como elementos-chave na interpretação
antropológica da vida social cotidiana dos Tukano ocidentais. É uma
contribuição que reverbera fundo entre aqueles que, como eu, se dedi-
cam às etnias do noroeste amazônico, igualmente famosas pelas sofisti-
cadas narrativas que nos conduzem ao desvendamento do pensar e do
agir dessa culta gente. Entretanto, a inovadora capacidade reflexiva da
nossa homenageada foi mais além e cruzou o estudo da etno-história
expressa nas narrativas com a história indígena vista através das fontes
documentais, ampliando a teia de relações que construiu e unindo mais
duas das diversas vertentes de sua trajetória profissional.
Mas não estamos aqui a falar somente sobre alguém que for-
mulou e consolidou importantes enfoques teóricos na antropologia da
10 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

saúde e na saúde indígena. Não que tal feito seja irrelevante; ocorre que
é insuficiente para apreender o percurso profissional de nossa amiga
homenageada. Assim, desejo aqui enfatizar a capacidade dela em fazê-
lo através de persistente e fiel adesão à conversação e ao diálogo com as
populações junto a quem pesquisou e com colegas de trabalho de di-
versos campos de conhecimento com quem contribuiu em fases diversas
de sua carreira.
A personalidade franca e confiável e as atitudes firmes e solidárias
forjaram uma rede de alianças acadêmicas temperadas com afeto e
respeito, que consolidou inovações que repercutiram em profundidade
em diversos campos de conhecimento, em particular no da saúde.
A singular capacidade de Jean de inspirar o espírito de colaboração
pessoal e científica atravessou países e continentes e alicerçou feitos raros
no nosso campo de estudo, como a implantação do Instituto Nacional
de Ciência e Tecnologia Brasil Plural (INCT-IBP), que tem sido pródigo
em contribuições ao campo da antropologia da saúde, à condução das
políticas públicas de saúde indígena e ao avanço da produção etnológica
nessa área.
Na entrevista dada ao projeto Saúde dos povos indígenas no Brasil:
perspectivas históricas, socioculturais e políticas,1 que dedicou tempo e
esforço ao registro da contribuição de estudiosos e ativistas ao campo da
saúde indígena, Jean apontou uma pergunta crucial que fez a si própria.
No depoimento, ela diz ter recorrentemente se questionado: “Qual
seria o papel do antropólogo para estabelecer um diálogo intercultural
e fazer diferença politicamente, para além dos interesses acadêmicos?”.
Esse questionamento deveria povoar o pensamento de todos nós, pois
implica um modo ético de realizar ciência e, sem abrir mão do rigor
metodológico, expandir a atuação do pesquisador rumo a uma práxis
que une o fazer acadêmico ao compromisso político. Esse foi um dos
passos relevantes entre os feitos de Jean Langdon, que, ao perceber
precocemente os limites das abordagens da etnociência, passou a optar
pela investigação-ação como caminho para superar temas típicos da
etnomedicina, como a taxonomia das doenças, e seguir o caminho
vitorioso que aqui celebramos.
Entre as alianças consistentes e produtivas construídas ao longo
de uma vida, dou destaque às parcerias indígenas, forjadas na luta

1
A respeito da participação de Jean Langdon nesse projeto, sugiro a leitura, nesta
coletânea, do capítulo “‘Observei a vida através dessa lente...’: os caminhos da
antropóloga Jean Langdon”.
Prefácio | Feitos e ditos, luzes, teias e pegadas 11

para a implantação de uma política de saúde indígena mais equânime


e culturalmente sensível em nosso país. Uma das consequências dos
caminhos trilhados por Jean foi a efetiva e prolongada contribuição
– jamais interrompida – na implantação do Subsistema de Atenção à
Saúde Indígena, voltado aos povos que vivem no Brasil. A escolha dessa
trincheira expressa um posicionamento ético sustentado também pelo
bom exercício de nossa profissão, pois se trata de escutar, observar
e registrar o que dizem e o que fazem os indígenas na lide com seus
problemas de saúde. Tal iniciativa foi algo que Jean converteu em
preciosas contribuições para aprimorar a qualidade e a efetividade
do cuidado à saúde dessas minorias e capacitar profissionais de
saúde indígena.
Integrando um grupo seleto de antropólogos contemporâneos
que apreendeu a multiplicidade e a complexidade dos itinerários
terapêuticos percorridos pelas pessoas reais na busca de alívio ou
cura para seus males, Langdon divulgou essas ideias nas inúmeras
participações nos fóruns de políticas de saúde. Defendeu sempre que
a atenção diferenciada no subsistema de saúde indígena não deveria se
restringir às fórmulas genéricas e etnocêntricas da biomedicina, mas
sim respeitar as noções indígenas de saúde e doença, que incorporam
aspectos como território, ecologia, cosmologia, cosmopolítica e
cotidianos indígenas, configurando um campo da saúde distinto
daquele habitualmente reconhecido pela medicina convencional. Para
desgosto da pesquisadora e ativista Jean, foi recorrente o descaso das
autoridades sanitárias quanto a prover um sistema de saúde capaz de
efetivar uma atuação sensível às necessidades dos indígenas e cultivar a
competência de seus profissionais na oferta de cuidados aos membros
dessas culturas, algo raramente ocorrido ao longo dos últimos 30 anos.
Numa abordagem mais pessoal, as lembranças dos primeiros
contatos que tive com Jean remetem às hesitações de uma médica
convertida em antropóloga que nela encontrou a generosidade de uma
acolhida calorosa e um confortador estímulo ao meu próprio trabalho,
além da presença bem-humorada e da crítica afiada aos gestores da
saúde indígena nos embates em que nos envolvemos ao longo de pelo
menos duas décadas. A relevância das trilhas partilhadas, a capacidade
de unir uma firme pegada teórica com as dimensões mais “periféricas”
do fazer antropológico e o modo gentil com que conduziu sempre suas
interações, na tessitura do afeto pessoal com o desempenho profissional,
me levaram a vê-la como um exemplo a seguir e alguém a quem dedicar
carinho e admiração.
12 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Redigir o prefácio de uma obra que homenageia o trabalho e a


pessoa de Jean Langdon também me leva a refletir sobre a natureza da
trajetória de um sujeito singular em cuja vida se entrelaçam o universal
e o particular, o global e o local, a grande teoria e os estudos locais. Mas,
sobretudo, faz pensar como a influência dos valores e o modo de estar
no mundo moldam o perfil dos saberes científicos produzidos em nossas
investigações. Fico a pensar nas pegadas que essa radical subjetividade
deixa na moldagem dos departamentos acadêmicos, das publicações,
da configuração de campos de conhecimento, na formação das novas
gerações de pesquisadores e de outros profissionais, sejam de saúde, de
ciências sociais ou de outros campos de conhecimento.
Gradualmente emergimos do obscuro lugar de sofrimento,
doença e morte em que a pandemia de covid-19 nos lançou. Num
tempo sombrio de perdas incomensuráveis, a leitura de uma coletânea
que retrata a vida e a obra exemplares de nossa querida Jean nos chama
de volta ao relevante mote sartreano na construção de nosso estar no
mundo: mais importante do que aquilo que a vida fez conosco é o
que fizemos com a vida que nos foi dada. Nossa condição de sujeitos
é construída nos passos percorridos, que resultam em atos, escolhas,
erros e acertos que deixam pegadas neste mundo e geram marcas nas
vidas das pessoas com quem convivemos e cujos cotidianos partilhamos.
A trajetória luminosa de Jean Langdon, fartamente registrada por tantos
que contribuíram neste volume, mostra que nossa amiga continua a
brilhar forte no firmamento. Desejamos à nossa Jean que sua estrela
continue a nos emprestar por muito mais tempo um pouco da luz e da
energia que a movem e que tão generosamente tem distribuído para
iluminar o caminho de todos nós.

Luiza Garnelo
Manaus, 5 de outubro de 2021
Apresentação

Quando conversamos sobre que título dar ao evento que


organizamos em homenagem à Jean em 2015, nos perguntamos,
junto às colegas da comissão organizadora, que palavra ou expressão
poderia definir a antropologia e a trajetória da homenageada. Foi aí
que despontou a expressão “antropologia da práxis”,1 síntese certeira
da diversidade das temáticas trabalhadas por Jean ao longo de sua
trajetória, que nesta coletânea reunimos em três temáticas agregadoras:
xamanismo, saúde e narrativa e performance. Esses foram também os
temas que estruturaram o colóquio “Uma antropologia da práxis –
homenagem a Jean Langdon”, realizado nos dias 28 e 29 de abril de 2015,
organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC) e pelo
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural (INCT-IBP),
honrando a trajetória acadêmica da professora e pesquisadora Esther
Jean Langdon, recém-aposentada. A ideia foi marcar suas contribuições
a diversas áreas da antropologia pela voz de alunos, ex-alunos,
colegas e demais pessoas que, por sua atuação com ela, encontraram
(e continuam encontrando) no trabalho de Jean inspiração, motivação
e desafios para suas próprias trajetórias profissionais e pessoais.
O evento coincidiu com o lançamento do livro La negociación de
lo oculto: chamanismo, medicina y familia entre los Siona del bajo
Putumayo, publicado pela editora da Universidad del Cauca, da
Colômbia. Passados esses anos, decidimos materializar o evento no
formato desta coletânea bilíngue, trazendo os textos de participantes
do colóquio e incluindo os de outros colegas, de diferentes países,
que ao longo do tempo acompanharam e acompanham o trabalho de
Jean. Como se poderá notar, mesmo relatando histórias e memórias
de conversas, diálogos, parcerias com Jean, os textos usam recorren-
temente o tempo verbal do presente: aposentada em 2014, Jean continuou
e continua atuante como professora, pesquisadora, orientadora na pós-
graduação, além de coordenar o INCT Brasil Plural. E segue fazendo
contribuições fundamentais para a antropologia brasileira.

1
Se bem lembramos, a proposta foi de Luciane Ouriques Ferreira, que
integrou a comissão de organização do evento.
14 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Nascida no Colorado, o estado que tem as maiores montanhas


dos Estados Unidos e uma forte influência da cultura hispânica, Jean
formou-se em antropologia no Carleton College (Minnesota) e realizou
o mestrado e o doutorado nessa área na University of Washington
(Washington) e na Tulane University (Luisiana), respectivamente. Em
1970, recebeu uma bolsa do Centro Internacional de Pesquisa Médica
da Universidad del Valle/Tulane University para viajar à Colômbia,
onde iniciou uma longa trajetória de pesquisa entre os povos indígenas,
principalmente com os Siona, no rio Putumayo. Nesse período, em 1973,
também foi professora na Universidad del Cauca. A experiência de quase
quatro anos na Colômbia foi decisiva para suas escolhas posteriores:
abandonou a carreira de professora universitária nos Estados Unidos,
motivada a vir ao Brasil.
Em 1983, Jean chegou como professora visitante à Universidade
Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, a cidade que se tornou
sua residência permanente e de onde construiu seus principais aportes
aos campos da antropologia da saúde, da saúde indígena, da etnologia
das terras baixas da América do Sul, do xamanismo e dos estudos de
performance, produzindo um estilo, uma forma de fazer antropologia,
que tem deixado um grande legado ao longo de quase quatro décadas de
formação de muitos antropólogos e antropólogas que atuam em várias
universidades e centros de pesquisa na região.
Apesar de sua formação na antropologia norte-americana, a
perspectiva de Jean provém de uma antropologia da periferia, do sul
global, plural, que questiona os paradigmas clássicos e as fronteiras
disciplinares, procurando estabelecer diálogos e pontes não só com as
antropologias latino-americanas, como também com outros campos. Os
aportes a esta coletânea são uma mostra das inspirações e contribuições
teóricas, metodológicas e humanas da obra de Jean Langdon, uma
antropologia que permanece inovadora, capaz de suscitar importantes
debates para a pesquisa etnográfica feita em vários contextos sociais e
culturais, debates esses que imprimem uma característica marcante: um
pensamento elaborado a partir da prática, e vice-versa.
Outros dois aspectos fundamentais que atravessam esta obra
dizem respeito às perspectivas de gênero e à pesquisa etnológica.
No caso da primeira, Jean não foi somente uma mulher que viveu os
primeiros passos do movimento feminista, mas também alguém que
no final dos anos 1960 e no início da década seguinte se propôs a
tornar-se uma antropóloga em campo, indo para regiões a que raras
pesquisadoras se permitiam. Essas primeiras experiências políticas e
Apresentação 15

etnográficas como mulher em campo permanecerão em sua trajetória,


estreitamente vinculadas à pesquisa etnológica. No caso da etnologia, o
interesse não estava (está) apenas em compreender e apreender diversas
cosmologias, mas em olhar sensivelmente para os contextos em que se
apresentavam (e se apresentam), perpassados por relações de poder,
de trocas, de ressignificações, tanto reafirmando a cultura como di-
nâmica e heterogênea quanto atualizando e contestando teorias etno-
lógicas vigentes.
Estruturamos o livro em quatro partes. As três primeiras cor-
respondem a temáticas gerais que Jean tem trabalhado ao longo de sua
trajetória na antropologia: xamanismo; saúde: práticas locais e políticas
públicas; e narrativa, ritual e performance. Esses eixos não pretendem
limitar os artigos nas margens exclusivas dos temas propostos, pois
a maioria deles atravessa vários temas. Como as(os) leitoras(es)
poderão observar, a maior parte dos textos dialoga estreitamente com
os trabalhos e as pesquisas de Jean, a partir das temáticas específicas
abordadas em cada um. Alguns poucos não dialogam diretamente com
a homenageada, porém, mesmo sem citá-la explicitamente, podem ser
tomados como ressonâncias importantes das pesquisas de Jean nos
campos da etnologia ameríndia, da antropologia da saúde e dos estudos
de narrativa e performance.
Outra característica importante, que decidimos resguardar
nesta edição, é a presença de artigos em português e em espanhol,
mostrando a relevância e a abrangência do trabalho de Jean na
antropologia latino-americana e ao mesmo tempo assegurando o
alcance da coletânea para além do público brasileiro, ao público e
às(aos) leitoras(es) hispanofalantes.
Essa fluidez das fronteiras nacionais e temáticas dos aportes
intelectuais e acadêmicos de Jean é coerente com sua priorização
da abordagem das práticas sociais e dos saberes que as envolvem ou
que são produzidos a partir delas – abordagem que sintetizamos com
base na ideia de uma antropologia da práxis, que também dá título a
esta coletânea.
Deixamos para a parte final do livro, mas não menos importantes
que os demais, os textos que tratam de memórias e de afetos por parte
daqueles e daquelas que conviveram (e convivem) com Jean como
colegas, orientandas(os) ou alunas(os). Mas, como alertamos antes,
essas divisões são apenas modos de organizar um conjunto de trabalhos
e reflexões, todos eles também atravessados por afetos, experiências,
memórias e histórias da antropologia.
16 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Parte I – Xamanismo

Jean Langdon foi pioneira no renascimento das investigações


sobre o xamanismo, ocorridas a partir da década de 1980, num período
em que os estudos sobre o tema eram amplamente dominados por
antropólogos homens (ver o artigo de Isabel de Rose nesta coletânea).
Seis autoras(es) realçam sua importante contribuição nesse campo.
Isabel de Rose comenta a trajetória de mais de 40 anos de pesquisas de
Jean Langdon sobre xamanismos indígenas. Ela e outras(os) autoras(es)
da coletânea, como Robert R. Crépeau e Luisa Elvira Belaunde, enfa-
tizam o fato de Jean ter destacado as características sociais e públicas
do xamanismo, que deveria ser entendido como um sistema cos-
mológico complexo e diverso. Os trabalhos dela sobre o xamanismo
não prestam atenção apenas aos conteúdos conceituais cosmológicos,
mas abordam principalmente as interações e a dimensão de práxis
social da cosmologia xamânica. Acompanhando as transformações dos
xamanismos ameríndios, Jean chama a atenção especialmente para
os aspectos dinâmicos e criativos e suas constantes mudanças, aspectos
que muitas vezes desafiam o imaginário antropológico.
Isabel de Rose aponta que, nos seus trabalhos mais recentes,
Jean sugere que os xamanismos emergem de contextos políticos e
históricos específicos e se propõe a abordar esse fenômeno como uma
categoria dialógica, resultante das interações entre atores de origens,
discursos e interesses muito diversos. Entre outros tópicos, Langdon
aborda o crescimento das redes xamânicas contemporâneas, circuitos
que se expandiram cada vez mais nos últimos 20 anos em países latino-
americanos, com a ayahuasca desempenhando um papel central, e
que conectam múltiplos atores indígenas e não indígenas, cruzando
fronteiras territoriais, simbólicas e conceituais.
Robert R. Crépeau tece uma discussão sobre a contribuição de
Jean ao estudo dos xamanismos, mostrando como para ela os dilemas
que os xamanismos trazem são muitos, a começar pelo profundo
questionamento que geram sobre a razão ocidental, ainda baseada
no cogito cartesiano. Tanto uma instituição social como um método,
o xamanismo foi e é ainda frequentemente reduzido a um modelo
de tipo mágico-religioso. Para o autor, os trabalhos de Jean ainda
apontam que os xamanismos são uma importante força dinâmica no
mundo contemporâneo.
Carlos Alberto Uribe analisa a obra La negociación de lo oculto:
chamanismo, medicina y familia entre los Siona del bajo Putumayo
Apresentação 17

(LANGDON, 2014) como um palimpsesto que evoca as pegadas de


toda uma vida de trabalho intelectual. Sua experiência acumulada
fez de Jean uma expert no xamanismo amazônico, tendo ela, com
sua generosidade, servido de ponte para que gerações posteriores de
antropólogos e antropólogas iniciassem suas próprias incursões.
Laura Pérez Gil toma como ponto de partida as análises realizadas
por Jean Langdon sobre o conceito siona de “dau”, que condensa um
conjunto amplo de sentidos relativos à agência xamânica. A proposição
de que o corpo do xamã, suas extensões e suas ações são a manifestação
vivente, senciente e agentiva do dau é usada pela autora para revisar seu
material de pesquisa relativo aos Yaminawa (família Pano), tendo como
foco a noção de ñuwë. Esta não apenas é central no xamanismo desse
povo, mas possui ressonâncias diversas no universo pano, apontando,
conforme sugere a autora, para transformações tanto no plano histórico
quanto no cosmo-ontológico.
Narrando seu próprio trajeto como pesquisadora, Elsje Lagrou
descreve Jean Langdon como uma mestre-guia desde sua chegada ao
Brasil e em suas pesquisas sobre arte e estética ameríndias. A autora
adentra no mundo estético ameríndio e em sua articulação estreita com o
xamanismo, revisitando os conceitos siona de “toya” (que pode significar
“pinta”, “visão”, “desenho”, “escrita” e “figura”) e de “dau” (ou “rau”),
definido como a delicadeza de quem possui o conhecimento do poder.
Para fechar a primeira parte da coletânea, Luisa Elvira Belaunde
analisa o relato de Liberato Coquinche, um sabedor curandeiro do
povo Siekopai, pertencente à família linguística Tukano ocidental da
Amazônia peruana e da Amazônia equatoriana. O relato foi contado a
ela pessoalmente em 2003, em resposta a um sonho que teve na visita
à comunidade de Vencedor Wajoya. A autora destaca a repercussão do
trabalho de Jean Langdon com os Siona da Colômbia para compreender
o xamanismo dos povos Tukano ocidental através das performances
cotidianas de narrativas de experiências xamânicas e oníricas. Luisa
Belaunde segue suas propostas para adentrar na narrativa siekopai e
desentranhar as complexas relações pai-filho que se entretecem no
drama onírico contado por Liberato Coquinche sobre o luto que viveu
após a morte de seu pai e a adesão ao culto evangélico pentecostal.

Parte II – Saúde: práticas locais e políticas públicas

A antropologia da saúde no Brasil é um campo, com suas


especificidades metodológicas e teórico-conceituais, que vem se conso-
18 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

lidando nos últimos anos e no qual Jean tem sido uma referência central.
Várias autoras salientam em seus artigos nesta coletânea o fato de que,
mesmo sendo uma antropóloga formada nos Estados Unidos, Jean
não foi uma representante da antropologia médica hegemônica. Em
sua atuação profissional, ela se tornou legionária de uma antropologia
periférica da saúde, que não só procura o diálogo com autores latino-
americanos e com as epistemologias do sul global, mas também advoga
que o diálogo com outros campos do saber é fundamental para avançar
em práticas e políticas públicas da saúde que reconheçam a diversidade
das práticas locais.
Recém-chegada ao Brasil em 1983, Jean ofereceu uma disciplina
de “Antropologia médica”, em que deu especial atenção às “medicinas
indígenas”. Ela foi uma das poucas antropólogas convidadas para a
1a Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio, em 1986, em
que afirmou a importância do conhecimento antropológico para pen-
sar as políticas públicas de saúde no Brasil. Sua atuação na avaliação
crítica dessas políticas teve continuidade em diversas intervenções e
participações em comissões e eventos no campo da saúde coletiva.
A saúde indígena tornou-se um dos temas centrais não apenas
de suas pesquisas e orientações, como também de suas aulas de
antropologia da saúde. Sua contribuição para o campo da saúde
indígena, discutida em vários artigos desta coletânea, é fundamental
para a análise das políticas específicas voltadas à população indígena
e para o debate crítico em torno do princípio da atenção diferenciada
à saúde, inspirando também discussões sobre políticas de saúde em
relação a outras populações.
Sônia Weidner Maluf destaca em seu artigo a abordagem
ampliada de “saúde” na antropologia, que busca articular questões
de saúde e adoecimento a outras dimensões da vida social. Para a
autora, a contribuição de Jean Langdon ao campo da antropologia da
saúde acentua três dimensões dos processos de saúde e adoecimento:
como práticas sociais produzidas a partir de compreensões sociais da
doença e do sofrimento; como relações nos sentidos micro, macro e
cosmopolítico; e articulados com questões de diferença, pluralismo e di-
versidade, dimensões que devem também ser levadas em consideração
na formulação de políticas públicas em saúde e nos diferentes en-
gajamentos antropológicos nas interpelações do tempo presente.
A partir de sua etnografia sobre as práticas de autoatenção, Daniel
Scopel e Raquel Paiva Dias-Scopel apresentam uma análise de narrativas
munduruku para enfatizar as dimensões práticas, sociais e ontológicas
Apresentação 19

de um projeto político coletivo. Os autores sugerem que as narrativas


analisadas evidenciam saberes sobre como os Munduruku buscam
saúde e bem-estar. Através das narrativas, os Munduruku mantêm um
conjunto de saberes de suma importância para lidar com doenças,
epidemias e mortes, assim como para promover a própria reprodução
biossocial coletiva.
Percorrendo as contribuições de Jean Langdon aos estudos em
saúde, Nádia Heusi Silveira nota que o horizonte interdisciplinar é uma
das características que tornam o trabalho de Jean tanto vigoroso quanto
rigoroso. Reconhece também que o diálogo com outros campos de saber
é fundamental para avançar em práticas de cuidados de saúde menos
enviesadas por valores dominantes no mundo ocidental. Como professora
de estudantes com formação na área da saúde, Jean tem se esforçado
em usar categorias conceituais capazes de estabelecer convergências de
entendimento entre campos de conhecimento distintos.
Em seu texto, Ari Ghiggi Jr. analisa o princípio da atenção di-
ferenciada presente na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos
Indígenas (PNASPI). O autor problematiza a noção essencializada de
cultura que transparece em alguns documentos oficiais subsidiários à
política e que subjaz às práticas de profissionais de saúde que atuam
na atenção primária junto aos Kaingáng da Terra Indígena Xapecó. Ele
expõe a emergência de relações de poder assimétricas embasadas na
avaliação de estereótipos indígenas atribuídos externamente para acesso
a direitos básicos no campo da atenção à saúde.
O artigo de Luciane Ouriques Ferreira evoca a influência da
abordagem antropológica da práxis, proposta por Langdon, no deli-
neamento de ações públicas voltadas à saúde indígena. O texto pontua,
por um lado, a necessidade de adotar uma perspectiva crítica sobre a
noção de medicina tradicional indígena, e, por outro, de dar visibilidade
à agência exercida pelos indígenas ao articularem os distintos modos de
atenção à saúde disponíveis em seu campo de atuação.
Renato Athias discute em grandes linhas a prática etnográfica, no
campo disciplinar da antropologia da saúde, como técnica de observação
etnológica entre os povos Pankararu do sertão de Pernambuco e os
Hupd’äh do noroeste amazônico. Seu texto baseia-se em debates que
surgiram em diversos momentos no diálogo com Jean Langdon sobre as
práticas tradicionais de cura e as compreensões sobre os cuidados com
o corpo.
Para finalizar essa seção, o artigo de Anne-Marie Losonczy
analisa o aparecimento de situações de suicídio entre os Emberá Katío,
20 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

em um contexto de violência e mudanças sociais, cosmológicas e ri-


tuais desencadeadas pela invasão de atores armados nos territórios de
Chocó e de Antioquia, Colômbia, a partir dos anos 1990. O suicídio,
até então completamente desconhecido para os Emberá, eclodiu, numa
infinidade de casos, principalmente entre os jovens. O discurso local
atribui esse fenômeno aos cadáveres resultantes da violência, que se
transformam em espíritos assassinos não controlados pelos xamãs.
O artigo analisa o surgimento de uma nova economia moral entre os
Emberá, na articulação entre uma escatologia renovada, os efeitos de
uma reorganização política interna e a irrupção simultânea em seu
espaço de novas formas de insurreição armada violenta.

Parte III – Narrativa, ritual e performance

No seu interesse em entender a profundidade da cosmologia


siona, Jean se propôs a aprender o idioma nativo, gravando narrativas
na língua Siona, transcrevendo e voltando ao narrador para perguntar
sobre as partes que não entendia. Essa metodologia de conversações e
diálogos com base nas transcrições de tais narrativas foi o modo como
ela conheceu a história, o mundo do oculto e os diferentes níveis do
universo que compõem o xamanismo siona. Foi assim que, como ela
mesma disse, os Siona ensinaram a ela a importância das narrativas na
vida social, constituindo-se na base de suas interpretações.
Em 1982, Jean realizou o “Seminário de Verão de Dotação Nacio-
nal para Humanidades (National Endowment for the Humanities) em
Literatura Oral”, no Centro Internacional de Folclore e Etnomusicologia
da University of Texas. Esse seminário com Richard Bauman introduziu
Jean nos Estudos da Performance, sob a abordagem baseada na
sociolinguística e uma preocupação com os aspectos estéticos da
literatura oral. Como destacou a professora Vânia Cardoso no colóquio
em homenagem a Jean, uma das mais importantes contribuições de
Langdon para os estudos da antropologia da performance no Brasil
foi precisamente colocar os estudos da linguagem – etnografia da fala,
análise de discurso e estudos de arte verbal – no centro do debate.
Seu reconhecimento da pluralidade e a abertura para a possibilidade
de explorar diferentes engajamentos – seja teóricos, etnográficos
e/ou disciplinares –, a problematização da formulação de paradigmas
únicos e sua grande inquietude intelectual nessa área se destacam em
dois textos já clássicos e bastante citados no campo de Estudos da
Performance no Brasil: “A fixação da narrativa: do mito para a poética
Apresentação 21

de literatura oral” (LANGDON, 1999), publicado na revista Horizontes


Antropológicos, e, uma década depois, “Performance e sua diversidade
como paradigma analítico: a contribuição da abordagem de Bauman e
Briggs” (LANGDON, 2006), publicado na revista Ilha. Reunimos nessa
parte da coletânea artigos que dialogam com a contribuição de Jean a
esse campo de estudos das narrativas, do ritual e da performance.
Alinhando-se às suas contribuições para os estudos de gênero
e a agência feminina na etnologia amazônica, Juana Valentina Nieto
Moreno analisa as narrativas de mobilidade das mulheres indígenas
Murui, da Amazônia colombo-peruana. Buscando compreender a
heterogeneidade da experiência das mulheres indígenas no mundo
contemporâneo a partir de seus próprios pontos de vista, Juana
apresenta histórias de mulheres de diferentes gerações e vai mostrando
como, caminhando, narrando e transitando entre fronteiras sociais,
geográficas, políticas e temporais, as mulheres indígenas constroem
territórios, gerem relações e distanciamentos, originam e consolidam
redes, transformando seus mundos, criando continuidades e recriando
sua existência.
Rita Neves narra os conflitos e o processo de organização política
dos Xukuru do Ororubá a partir de uma antropologia da performance
das assembleias anuais e da marcha Xukuru, que ocorrem entre 16 e 20
de maio de cada ano na Terra Indígena da Serra do Ororubá desde o
assassinato do Cacique Xicão, em 1998. Esse evento culmina com um
ato público na cidade de Pesqueira, Pernambuco, no exato local em que
o cacique foi assassinado. Tendo observado diversos desses eventos, em
seu artigo a autora analisa a assembleia e a marcha de 2003, quando o
atual cacique, Marcos, sofreu um atentado contra a sua vida, e finaliza
com a assembleia de 2020 (on-line), ano em que o cacique Marcos foi
eleito prefeito da cidade. O foco é pensar a dimensão performática desses
momentos em que os Xukuru experienciam e consolidam o sentimento
de comunidade e o seu modo de vida.
Baseada nas lembranças narradas por três sobreviventes do povo
Xetá, habitante original da região noroeste do estado do Paraná, Carmen
Lucia da Silva traz um dos cantos entoados durante o ritual de iniciação
masculina do grupo. Sem a pretensão de elaborar partituras, nem de
estudar do ponto de vista musicológico, a autora trabalha o Canto do
Urubu, na perspectiva etnográfica, a partir das falas dos sobreviventes
– considerados guardiões da memória dessa sociedade –, que passaram
pela experiência desse ritual. Os Xetá atribuem a esse canto uma grande
importância na criação da humanidade e de tudo que há no mundo.
22 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Camilo Mongua mostra o quanto o diálogo com Jean Langdon


o levou a se interessar pela perspectiva indígena como um importante
aspecto na interpretação das fontes documentais e da história da região
do Putumayo, na Colômbia. A historiografia dessa região acentuou os
ciclos extrativos (quina e borracha); porém, como Jean notou, para
os Tukano ocidentais, a época da seringa não constitui o acontecimento
mais importante nas suas narrativas etno-históricas. O autor considera
essencial entender os entrecruzamentos e as divergências entre as
narrativas etno-históricas e as fontes documentais, sendo a história
indígena uma perspectiva fundamental na sobrevivência, em meio à
expansão do capitalismo em seus territórios.
Alicia M. Barabas elabora uma aproximação etnográfica da
construção simbólica de espaços propícios para a celebração de rituais
de povos originários de Oaxaca, México. A autora apresenta exem-
plos de diversos rituais – terapêuticos, de cura e de danos – e dos lugares
onde são realizados, lugares carregados de significados, benéficos
ou nefastos, que requerem atitudes codificadas por parte de quem os
frequenta, sejam curandeiros, doentes, solicitantes ou acompanhantes.
Miguel Alberto Bartolomé escreve sobre o papel que os rituais
desempenham na manutenção e na reprodução das identidades étnicas
das comunidades indígenas, como componentes significativos do que o
autor denomina de “cultura da resistência”. Esta é definida como “ação
cultural contra-hegemônica” gerada por uma cultura não ocidental e
desenvolvida por meio de uma multiplicidade de práticas cotidianas na
tentativa de evitar o confronto direto com o sistema neocolonial, pois
está mais interessada em sobreviver do que em dominar.
Juan Alvaro Echeverri enfatiza o aporte intelectual de Jean
Langdon para os campos da performance e da arte verbal dos grupos
das terras baixas da América do Sul. O autor aborda a arte verbal da
chamada “Gente de Centro”, diferentes grupos da Amazônia colombo-
peruana que, apesar de sua heterogeneidade linguística, compartilham
traços de sua organização social e cerimonial, singularizando-os em
relação a outros povos vizinhos. O autor apresenta uma proposta de
organização da arte verbal do povo Murui a partir da análise de conceitos
centrais e dos gêneros cerimoniais.
Finalizamos essa parte da coletânea com o artigo escrito a sete
mãos pelos integrantes da rede de pesquisadores do Grupo de Estudos
em Oralidade e Performance (GESTO), para ser um brinde à Jean. As
autoras buscam “jeangar”, ou seja, conceber um momento de articulação
e criação a partir das provocações lançadas por Jean à antropologia feita
Apresentação 23

por elas, produzindo um texto “em performance”, assumindo a oralidade


e as diversas temporalidades com que o texto foi criado.

Parte IV – Histórias, memórias e afetos

A última parte da coletânea é composta de narrativas de


trajetórias, histórias, memórias e experiências, intercalando textos mais
pessoais e mesmo epistolares com outros que buscam testemunhar
momentos e eventos da trajetória acadêmica de Jean. Por meio de Ana
Lucia de M. Pontes, Ricardo Ventura Santos, Vanessa Hacon e Vilma
Reis, Jean retoma a palavra em uma entrevista em que fala um pouco de
seu trabalho e de sua trajetória na antropologia.
Contando suas experiências ao documentar Jean em campo,
finalizamos a seção e a coletânea com seu filho, Alan Stone Langdon,
e fotos antigas e recentes de Jean, somente para abrir novas portas: que
os textos, as imagens e o documentário Juanita continuem inspirando!

Sônia Weidner Maluf


Eliana Elisabeth Diehl
Juana Valentina Nieto Moreno
Florianópolis, entre agosto e outubro de 2021
PARTE I

Xamanismo
Meio século de pesquisa sobre
xamanismo1,2

Isabel Santana de Rose

Xamanismo como sistema cosmológico


Se fizermos um sobrevoo do histórico das pesquisas antropoló-
gicas a respeito do xamanismo, veremos que até por volta da primeira
metade do século XX as análises tentavam encaixar esse fenômeno
em categorias ocidentais preconcebidas, resultando em discussões
fragmentadas e que não davam conta da complexidade e da diversidade
do fenômeno. Somado a isso, até esse período o assunto ainda era
considerado marginal na academia, e existiam poucos trabalhos que se
dedicavam especificamente a esse debate. O revival dos estudos sobre
tal tópico, a partir dos anos 1960 e 1970, foi estimulado por uma série
de fatores que aconteciam tanto dentro quanto fora das universidades,
incluindo os movimentos contraculturais da década de 1960, que
valorizavam as chamadas “plantas de poder” e a busca por estados
alterados de consciência, assim como as pesquisas interdisciplinares
dos anos 1950 e 1960 sobre os potenciais terapêuticos de substâncias
psicoativas, como o LSD (ver, entre outros, LANGDON, 1996b,
2014). Como resultado dessa conjunção de fatores, a partir de 1980,
as publicações e os seminários dedicados a discutir o xamanismo

1
Agradeço a Esther Jean Langdon por esses mais de 15 anos de convivência, pela
amizade e generosidade e por todas as trocas e parcerias ligadas ao tema do
xamanismo. Este trabalho contou com o apoio do European Research Council (ERC)
Starting Grant no 757589, “Healing encounters: reinventing an indigenous medicine
in the clinic and beyond”, sediado no Centre de Recherche Médecine, Sciences, Santé,
Santé Mentale, Société (Cermes3), do Centre National de la Recherche Scientifique
(CNRS), École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Université de Paris.
2
Este capítulo foi adaptado de uma resenha do livro La negociación de lo oculto:
chamanismo, medicina y familia entre los Siona del bajo Putumayo publicada na
revista Ilha em 2016. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/
article/view/2175-8034.2016v18n2p201/33316. Acesso em: 27 out. 2022.
26 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

começaram a se multiplicar. Nessa mesma época, em diferentes partes


da América do Sul, grupos indígenas passaram a protagonizar processos
de reinvenção e revitalização de seus sistemas xamânicos (LANGDON,
2014). Como aponta Jean-Pierre Chaumeil (1998), em muitos casos
essas respostas e novas versões do xamanismo são surpreendentes e
contrariam as imagens e as expectativas antropológicas.
Durante um período em que os estudos sobre esse tema foram
amplamente dominados por antropólogos homens (ver, entre outros,
BÖSCHEMEIER, 2015), Esther Jean Langdon foi uma das pioneiras no
revival das pesquisas sobre xamanismo. Ela fez parte de uma geração
de antropólogas(os) que conduziu seus trabalhos de campo nas terras
baixas da América do Sul e que contribuiu de maneira decisiva para
aumentar o conhecimento a respeito dos povos indígenas dessa região.
Essas investigações abordaram temas como concepções indígenas a
respeito de corpo, organização social, socialidade, gênero, mitologia,
cosmologia, estética e ritual, possibilitando a consolidação de um
corpus de dados etnográficos mais consistentes sobre os povos das terras
baixas da América do Sul, bem como o desenvolvimento de modelos
teórico-analíticos mais adequados para compreender suas culturas
(LANGDON, 2013). Pensando especificamente o tema do xamanismo,
esse corpus possibilitou perceber tanto algumas características comuns
presentes nos xamanismos ameríndios quanto a grande diversidade
de práticas, de formas de aquisição e transmissão do conhecimento
e de especialistas xamânicos (LANGDON, 2013).
Nesse contexto, autores como Langdon (1988, 1994a, 1996b;
LANGDON; BAER, 1992; CIPOLLETTI; LANGDON, 1992, entre
outros) e Chaumeil (1983) questionaram a inclusão do xamanismo
nos debates clássicos sobre as fronteiras entre magia, religião e ciência.
Em contrapartida a trabalhos realizados entre os anos 1940 e 1960 que
associavam xamanismo e mentalidade primitiva ou patologia, ou ainda
a análises que abordavam o xamanismo como um fenômeno privado,
marginal e extraordinário – como o trabalho de Mircea Eliade, da década
de 1950 (ELIADE, 2002) –, os pesquisadores dessa geração ressaltaram
o caráter público e o papel social dessa instituição, fundamental
na organização da vida tanto social quanto individual dos povos
indígenas das Américas. Chamando a atenção para a complexidade e a
diversidade dos xamanismos indígenas, tanto Langdon (1996b) quanto
Chaumeil (1983) propuseram que o xamanismo fosse pensado como
um sistema cosmológico que se relaciona com várias esferas da vida
Meio século de pesquisa sobre xamanismo 27

ao mesmo tempo – política; cura, saúde e doença; aspectos estéticos;


guerra, canibalismo e predação; organização social etc. Outra discussão
importante que aparece nessas etnografias pioneiras é a proposta de
pensar xamanismos em movimento (CHAUMEIL, 1998), questionando
as visões estáticas que costumavam marcar as análises antropológicas
do período e apontando para os aspectos dinâmicos e criativos e para
as constantes transformações e reinvenções, que se encontram entre as
principais características dos xamanismos ameríndios (CARNEIRO
DA CUNHA, 2009).
A vinda de Esther Jean Langdon para o Brasil, em 1983, in-
fluenciou decisivamente o papel que a Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC) desempenhou nas pesquisas sobre esse tema no país.
Desde que chegou a essa universidade, Langdon começou a orientar
trabalhos sobre xamanismo, e em 1984 organizou, no Departamento
de Antropologia da UFSC, um grupo de estudos a respeito desse
assunto. Este, que teve reuniões regulares durante cerca de três anos,
contou com a presença de pesquisadoras(es) como Alberto Groisman,
o psiquiatra Ari Sell, Els Lagrou e Luis Eduardo Luna, entre outros.
Dois desdobramentos importantes desse grupo – que posteriormente
se tornou o Grupo de Estudos sobre Saúde Indígena e, finalmente, o
Núcleo de Estudos sobre Saúde e Saberes Indígenas (NESSI) – foram
a organização de um grupo de trabalho (GT) sobre xamanismo na
Reunião Brasileira de Antropologia (RBA) de 1990, realizada em
Florianópolis, e a organização do livro Xamanismo no Brasil: novas
perspectivas (LANGDON, 1996a).
Publicada em 1996, essa foi a primeira coletânea brasileira sobre
o tema, chamando a atenção para a relevância do xamanismo enquanto
tópico de estudo na antropologia e para a emergência das pesquisas
brasileiras sobre o assunto. O livro também ressalta a importância de
produzir modelos teóricos adequados para compreender o xamanismo
enquanto sistema, especialmente no que diz respeito ao seu caráter
dinâmico e à sua presença no mundo contemporâneo. As contribuições
desse e de outros trabalhos clássicos de Langdon sobre o tema foram
influenciadas pelo seu diálogo com autores da antropologia simbólica
norte-americana, principalmente Clifford Geertz e Victor Turner.
Desse modo, tais trabalhos propõem abordar o xamanismo como um
sistema cosmológico e ressaltam as relações dos sistemas xamânicos e
das necessidades expressivas humanas (que seriam preenchidas por
meio dos ritos, dos mitos, dos símbolos e das narrativas) com a busca
humana por organizar o mundo e conferir sentido à experiência, e
28 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

ainda com questões estéticas ligadas a essa necessidade de expressão.


Além disso, essa autora enfatiza que, embora haja elementos comuns
entre os diversos xamanismos ameríndios, os sistemas xamânicos
são heterogêneos. Mais ainda, eles se modificam ao longo do tempo
e podem ser mais bem compreendidos dentro de seus contex-
tos culturais.
Em seus trabalhos clássicos, Langdon enfocou especialmente a
análise das narrativas siona que tratam de temas como batalhas xa-
mânicas, voos xamânicos em sonhos ou induzidos pelo consumo
do yajé,3 além de enfermidades e mortes causadas por feitiçaria
(LANGDON, 2014). Ela argumentou que durante os anos 1970, quando
não havia rituais com yajé entre os Siona, as narrativas desempenhavam
um papel análogo ao rito, contribuindo para produzir e reproduzir as
experiências com os domínios invisíveis da realidade e para transmitir
conhecimento (ver, entre outros, LANGDON, 1994b, 2001, 2016). Para
Langdon, apesar da ausência dos caciques curacas,4 as performances
verbais das narrativas xamânicas expressavam uma cosmologia e
práticas que refletiam uma visão xamânica do mundo, bem como a
identidade étnica siona (LANGDON, 2020). Desse modo, ela propôs
abordar essas narrativas como uma forma de performance cultural e
as considerou centrais para a manutenção e a reprodução do sistema
xamânico siona (ver, entre outros, LANGDON, 1994b, 2001, 2016).
A autora aponta ainda que nesse período as narrativas não eram as
únicas expressões do xamanismo siona; este continuava presente nos

3
Os Siona também chamam o yajé de eco, expressão cujo significado geral
corresponde aos nossos termos “medicina” ou “remédio” (LANGDON, 2014,
p. 147). Essa expressão é empregada para designar um conjunto amplo de substâncias
e preparações (não necessariamente psicoativas) que podem ser usadas para
combater enfermidades e produzir bem-estar. Entretanto, na perspectiva siona, “el
yajé constituye la medicina por excelência”, sendo empregado em todos os casos de
infortúnio nos quais se suspeita da intervenção de entidades invisíveis (LANGDON,
2014, p. 148). Ademais, o yajé também é a principal substância usada durante o
aprendizado xamânico, com o objetivo de ensinar os aprendizes a contatar os espíritos
e a lidar com as forças ocultas do universo (LANGDON, 2014). A importância do
yajé no âmbito da cosmologia e do sistema xamânico siona encontra-se ligada ao fato
de que essa bebida constitui a ponte entre este mundo e o “outro lado” da realidade,
fazendo com que ele se torne visível (LANGDON, 2014).
4
De acordo com Langdon, o cacique-curaca era a principal autoridade das
comunidades siona, reunindo as funções de liderança política e religiosa em um
sistema no qual não havia separação entre o secular e o religioso e em que existem
diferentes graus de conhecimento e de poder xamânico (LANGDON, 2014).
Meio século de pesquisa sobre xamanismo 29

desenhos geométricos reproduzidos por algumas pessoas em seus


próprios rostos e em certos objetos (LANGDON, 2020).5
Essas preocupações com as necessidades expressivas humanas e
as questões estéticas também aparecem em La negociación de lo oculto:
chamanismo, medicina y familia entre los Siona del bajo Putumayo
(2014), que consiste na tradução da tese de doutorado de Langdon,
defendida na Tulane University of Louisiana em 1974. O trabalho é
baseado em pesquisa de campo conduzida durante quase quatro anos
na Terra Indígena de Buena Vista, localizada perto da cidade de Puerto
Assis, na região do Putumayo, na Amazônia colombiana,6 e inclui ainda
o material de quatro visitas feitas ao Putumayo entre 1980 e 1992. Em
todas essas visitas, Langdon dedicou-se a registrar as narrativas dos
Siona, tendo coletado mais de 100 relatos na língua nativa sobre temas
ligados ao xamanismo (LANGDON, 2014). Sua descrição do sistema
cosmológico siona está baseada principalmente em longas discussões
com seis homens Siona mais velhos que detinham conhecimento
xamânico. Entretanto, seu interlocutor central, tanto aqui quanto em
outros trabalhos, é Ricardo Yaiguaje,7 com quem a autora teve um
prolongado diálogo e intercâmbio de narrativas e outros conhecimentos.
Uma das principais motivações de La negociación de lo oculto
é a tentativa de compreender a cosmologia siona e suas relações com
as enfermidades e com os itinerários terapêuticos. Tem base em uma

5
Para Langdon, assim como as narrativas, a produção desses desenhos deve ser vista
como um modo performático, já que eles produzem e reproduzem a experiência do
artista. A autora sugere, portanto, que o conhecimento xamânico também é formado
através da criação desses desenhos, que constituem evidências de uma identidade
xamânica única e do patrimônio simbólico originado através dos rituais siona
(LANGDON, 2020).
6
A comunidade de Buena Vista foi fundada nos anos 1930. Sua demarcação como
terra indígena, em 1967, foi um fator fundamental para assegurar a continuidade
dos Siona no Putumayo, tendo em vista a crescente invasão dos seus territórios
(LANGDON, 2014). Desse modo, nos anos 1970, Buena Vista era a principal entre
as comunidades siona, sendo formada por uma população de cerca de 139 pessoas
(28 famílias).
7
Ricardo era o mais velho entre esses seis homens e foi o que recebeu o treinamento
xamânico mais completo. Ele era filho de um reconhecido xamã Siona, Leônidas
Yaiguaje, e irmão de Arsenio, considerado o último cacique curaca desse povo.
Quando Arsenio morreu, todos esperavam que Ricardo ocupasse seu lugar.
Entretanto, devido a sucessivas experiências ruins com o yajé e a ataques de
feitiçaria que o levaram a perder seu poder xamânico, Ricardo não conseguiu obter
o grau de conhecimento necessário para desempenhar o papel de cacique curaca
(LANGDON, 2014).
30 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

abordagem que propõe ver a doença como processo e como experiência


e que enfatiza: a negociação dos significados; as ambiguidades e
contradições presentes nas interpretações sobre os episódios de
enfermidade elaboradas por diferentes atores; e as ações concretas
empreendidas na vida cotidiana (LANGDON, 1994b, 2001, 2014,
entre outros). O trabalho consiste, portanto, em uma etnografia sobre
o sistema médico siona, estabelecendo relações entre esse sistema, o
sistema xamânico e o consumo do yajé (LANGDON, 2014).
Uma das perguntas iniciais de Langdon nesse livro é por que
publicar um estudo antropológico sobre um grupo amazônico, estudo
esse escrito há quase 40 anos (LANGDON, 2014). A autora indica
que o mundo dos Siona mudou de muitas maneiras, influenciado pela
constituição colombiana de 1991 e pelas políticas públicas resultantes
direcionadas para questões étnicas e identitárias; pelo impacto da
violência ligada ao tráfico de drogas na região durante mais de duas
décadas; e pela expansão da indústria do petróleo (LANGDON, 2014).
Entretanto, como veremos na seção seguinte, apesar de todas essas
transformações e dificuldades, houve uma revitalização do xamanismo
siona, vinculada a um movimento ativo para fortalecer a língua e a
cultura. Desse modo, em parte, a publicação do livro se justifica pelo
interesse dos próprios Siona em recuperar seu passado, sua memória,
sua cultura e sua linguagem (LANGDON, 2014). Langdon também
aponta que, apesar de ter sido escrito nos anos 1970, esse livro chama
a atenção para a interação dinâmica entre conhecimento tradicional e
experimentação e inovação, bem como para a constante reinvenção da
tradição que caracteriza o sistema xamânico siona.
Uma das questões destacadas nesse trabalho é que, durante o
período da pesquisa de campo da autora, a situação era de “xamanismo
sem xamãs” (LANGDON, 2014, p. 258), pois não havia entre os Siona
nenhum cacique curaca, isto é, a “figura político-religiosa” responsável
pelo controle social nas suas comunidades (LANGDON, 2014,
p. 113). Ademais, nas suas interações com a sociedade envolvente
regional, as gerações mais jovens dos Siona tentavam imitar a população
do entorno para evitar a discriminação e o preconceito que naquela
época estavam associados à identidade indígena (LANGDON, 2016,
2020). Assim, os hábitos alimentares, as roupas e as moradias dos Siona
se tornavam cada vez mais parecidos com aqueles da população não
indígena, e os jovens aparentemente não estavam muito interessados
no conhecimento e no aprendizado xamânicos (LANGDON, 2016).
Entretanto, como vimos, apesar do desaparecimento dos caciques
Meio século de pesquisa sobre xamanismo 31

curacas e da redução dos rituais com o yajé, o sistema xamânico siona


e sua cosmologia característica persistiam ao mesmo tempo que se
transformavam para se adaptar a essa e a outras mudanças.
Segundo Langdon (2014, p. 116), o poder que os caciques curacas
tradicionalmente detinham nas comunidades siona estava ligado à
influência da “realidade invisível” em todos os aspectos da vida cotidiana,
que são afetados por um “vasto mundo espiritual”. Os caciques curacas
obtinham o conhecimento para fazer a mediação entre os lados visível
e invisível da realidade,8 principalmente por meio da ingestão frequente
de yajé e dos sonhos xamânicos. Como em outros sistemas xamânicos
ameríndios, o sistema siona é ambíguo e ambivalente, sendo que o
poder do cacique curaca também tinha um “outro lado”: além de ser
o protetor e provedor da comunidade, ele podia causar enfermidades
e infortúnios para seus inimigos. Desse modo, a ambiguidade do
poder xamânico constituía um componente importante do controle
sociopolítico empreendido pelos curacas.
Ao discutir os temas das múltiplas realidades ou mundos, dos
múltiplos seres e povos ou “gentes” que compõem o cosmos siona e
do papel de mediação desempenhado pelos caciques curacas, como
outras etnografias dessa época, o trabalho de Langdon antecipou as
discussões sintetizadas no conceito de perspectivismo ameríndio
proposto por Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima no final dos anos
1990 (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, 2002; STOLZE LIMA, 1996).
A descrição feita por Langdon sobre esse tema inclui aspectos como a
transformação interespecífica e as “roupas” que os seres podem vestir
para se transformar em outros; os “donos” das plantas e das espécies
animais;9 o caráter ambivalente do poder xamânico; e a predação como
uma parte fundamental, embora não a única, do sistema xamânico siona.
Nesse sentido, para Langdon, de maneira geral, os Siona compartilham
princípios comuns da cosmologia e da ontologia que têm sido descritos

8
Segundo Langdon, o conceito siona de “lado” expressa “sua experiência com a
natureza fractal e transformativa do universo” (LANGDON, 2016, p. 183, tradução
nossa). No original: “the Siona concept of ka’ko or ‘side’, expresses their experience
with the fractal and transformative nature of the universe”. Nesse contexto, o yajé
possibilita entrar no “outro lado” (“other side”), conhecer os seres que vivem lá e
fazer negociações com eles (LANGDON, 2016, p. 183).
9
De acordo com Langdon, o cosmos é constituído por uma multiplicidade de “donos”
ou “mestres” (“owners/masters”) e seus povos, sendo que essas coletividades são
repetidas infinitamente nos diversos domínios do universo em uma “lógica fractal”
(“fractal logic”) (LANGDON, 2016, p. 183).
32 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

como característicos dos grupos indígenas amazônicos. Isso inclui uma


visão cosmológica de um mundo em constante transformação, no qual
dicotomias ocidentais como natureza/cultura, humano/não humano
ou natureza/sobrenatureza não se aplicam (LANGDON, 2016). En-
tretanto, no lugar de enfatizar os aspectos filosóficos presentes nos
sistemas xamânicos, essa autora ressalta a dimensão da práxis, ou seja,
a interação entre os modelos teóricos e a ação, em uma abordagem que
destaca a emergência dinâmica da cultura e a constante transformação
dos xamanismos.

Redes xamânicas contemporâneas, diálogos e


emergências
As reflexões sobre o xamanismo permeiam o imaginário oci-
dental há mais de 500 anos, sendo que os primeiros registros e reflexões
sobre essas práticas foram feitos por viajantes e missionários nos
séculos XVI e XVII (LANGDON, 2013). No final do século XIX, os
antropólogos começaram a se dedicar a esse tema, que então era visto
como restrito a grupos que compartilhavam uma cultura, uma região
geográfica e uma história. Como vimos, a partir dos anos 1950, outros
atores começaram a falar sobre esse fenômeno, incluindo buscadores
de experiências espirituais alternativas, interessados em plantas
psicoativas e estados alterados de consciência. Mais recentemente, os
próprios “nativos” têm se tornado atores centrais nessa multiplicação
de vozes, performances rituais e práticas xamânicas realizadas nos mais
diversos contextos (LANGDON, 2013). O conceito de xamã, que no
início era empregado principalmente em contextos acadêmicos, hoje
é amplamente usado por esses grupos contemporâneos, inclusive por
vários povos indígenas. Assim, em muitos casos, as palavras “xamã” e
“xamanismo” substituíram os termos nativos que classicamente eram
adotados para se referir às diversas práticas e aos múltiplos especialistas e
praticantes rituais indígenas (LANGDON; ROSE, 2014). Nesse sentido,
Langdon argumenta que os xamãs e os xamanismos hoje emergem desse
intercâmbio de expectativas e interações contemporâneas múltiplas e
diversas (LANGDON, 2013).
No Brasil, em particular, principalmente ao longo dos últimos 20
anos, temos visto a proliferação de redes xamânicas contemporâneas
que ligam grupos e representantes indígenas a diversos atores não indí-
genas, incluindo grupos espirituais, organizações não governamentais
Meio século de pesquisa sobre xamanismo 33

(ONGs), antropólogos e muitos outros. Um dos eixos dessas redes é um


conjunto de substâncias que costumam ser denominadas de “medicinas
da floresta”,10 entre as quais a ayahuasca desempenha um papel central.
Esta constitui possivelmente a substância psicoativa mais popular entre
os grupos espirituais alternativos, sendo frequentemente associada de
maneira metonímica aos xamanismos indígenas (LANGDON, 2013).
Também circula nessas redes um conjunto mais ou menos padroniza-
do de performances rituais, expressões estéticas e objetos associados a
imagens genéricas sobre xamanismo e indianidade, como cocares de
penas, braceletes e colares de miçangas coloridas, aplicadores de rapé
feitos de madeira e de osso, tecidos com motivos geométricos indíge-
nas, entre muitos outros. É comum também nesses contextos uma série
de imagens e conceitos presentes também no amplo e diverso movi-
mento da Nova Era, como os do “indígena espiritual” ou “ecológico”, da
“sabedoria primordial”, da “ancestralidade” e da “medicina tradicional”
(ver, entre outros, LANGDON, 2013; LANGDON; ROSE, 2012; ROSE;
LANGDON, 2013). Cabe apontar que esses conceitos dão margem a
uma série de equívocos de tradução (VIVEIROS DE CASTRO, 2004),
interpretados de maneiras bastante heterogêneas pelos atores muito di-
versos que participam desses circuitos. Ademais, as lideranças indígenas
que transitam nesses contextos muitas vezes agenciam essas imagens e
representações de forma reversa e criativa, empregando-as de maneira a
atender a reivindicações e interesses próprios (ROSE; OKENDA, 2021).
Em termos concretos, o crescimento das redes xamânicas con-
temporâneas se reflete no aumento de rituais indígenas direcionados
para um público urbano e de classes média e alta, conduzidos nas grandes

10
Além da ayahuasca, esse conjunto de substâncias costuma incluir o rapé, o tabaco,
a sananga e o kambô. O rapé geralmente é feito de tabaco (Nicotiana tabacum), que
costuma ser seco, moído, peneirado e misturado com outras plantas (OLIVEIRA,
2019). A sananga (Tabernaemontana sananho) é uma planta que contém ibogaína
e cujo sumo popularizou-se nos contextos urbanos como o “colírio da floresta”
(OLIVEIRA, 2019, p. 361). Já o kambô ou kapu é uma substância extraída da rã
Phyllomedusa bicolor, e entre povos indígenas como os Katukina, Yawanawá e
Huni Kuin costuma ser usada como revigorante e estimulante para a caça (LIMA;
LABATE, 2007). A denominação recorrente desse conjunto de “medicinas da
floresta”, conceito que muitas vezes não é problematizado nos trabalhos sobre o tema,
evidencia as associações apontadas por Langdon entre os xamanismos indígenas, o
discurso ambiental e as noções genéricas de medicina tradicional e ancestralidade.
Cabe apontar ainda que cada um dos diferentes grupos e atores que compõem essas
redes emprega e interpreta essas substâncias de maneiras culturalmente específicas e
distintas. Para uma discussão recente sobre este tema, ver Platero e Rose (2022).
34 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

cidades, nas mais diferentes partes do país e do mundo. Ao mesmo


tempo, vêm se multiplicando no Brasil os festivais culturais indígenas,
realizados nas aldeias – principalmente na Amazônia, mas também
em outras regiões e voltados majoritariamente para estrangeiros,
embora em alguns casos também contem com uma expressiva presença
indígena.11 Sem dúvida, o crescimento desses encontros retrata o
aumento da agência e do protagonismo indígenas nessas redes; ao
longo dos últimos anos, cada vez mais os representantes indígenas vêm
reivindicando participação e ganhando visibilidade nos debates públicos
ligados à ayahuasca e a outras questões do seu interesse (ver, entre outros,
LABATE; COUTINHO, 2014; ASSIS; RODRIGUES, 2018).
Acompanhando a ampliação dessas redes xamânicas contem-
porâneas e de seus desdobramentos, vemos um grande aumento nas
pesquisas antropológicas a respeito desse tema.12 Essas investigações
recentes, realizadas em diferentes contextos etnográficos, apontam para
a particularidade e a heterogeneidade desses movimentos, ao mesmo
tempo que indicam algumas recorrências interessantes. Paralelamente,
muitos desses trabalhos dialogam com temas centrais da teoria
antropológica contemporânea, como o debate sobre as agências não
humanas e o conceito de cosmopolítica, entre outros. Como sugere
Langdon (2013), a expansão do xamanismo para contextos não indígenas
traz a necessidade de rever os modelos analíticos clássicos sobre o tema
e está diretamente ligada a questões antropológicas centrais sobre as
noções de cultura, tradição, continuidade, lugar e práxis.
Dialogando com seus trabalhos e com as abordagens clássicas,
Langdon mostra como a emergência dessas redes xamânicas con-
temporâneas contribuiu para a renovação das práticas xamânicas siona,
que se encontravam em aparente declínio no início da década de 1970
(ver, entre outros, LANGDON, 2013, 2016, 2020). Como vimos, de
acordo com a autora, o período da sua pesquisa de campo nos anos 1970
poderia ser caracterizado por uma situação de “xamanismo sem xamãs”.
Ela afirma que, quando deixou a aldeia de Buenavista, em 1974, previu a
assimilação dos Siona e o desaparecimento de seu xamanismo. A autora

11
Dados recentes indicam que, apenas no ano de 2019, no estado do Acre, acon-
teceram mais de 40 desses festivais, a maioria envolvendo o uso da ayahuasca
(MENESES, 2020).
12
Ver, entre outros, Rose (2010); Langdon e Rose (2012, 2014); Rose e Langdon (2013);
Coutinho (2011); Oliveira (2012); Labate e Coutinho (2014); Soltze Lima (2018);
Platero (2018); Platero e Rose (2022); Meneses (2018, 2019, 2020).
Meio século de pesquisa sobre xamanismo 35

indica que, influenciada pela abordagem antropológica da época, nunca


imaginaria a revitalização desse sistema xamânico, a transformação da
ayahuasca em uma substância popular e globalmente conhecida, ou
ainda o aumento do interesse das classes médias urbanas nessa bebida
e nas práticas relacionadas a ela (ver, entre outros, LANGDON, 2009,
2013, 2016). Langdon afirma que também não imaginaria os processos
de etnogênese e transfiguração étnica13 em diferentes partes do mundo;
o crescimento dos movimentos indígenas nas décadas de 1970 e 1980;
e as mudanças nas Constituições em vários países da América Latina,
promovendo o reconhecimento dos povos indígenas e de seus direitos
(LANGDON, 2020). De acordo com a autora, suas próprias concepções
sobre cultura e identidade indígena no período a impediram de
compreender a profundidade da identidade indígena e a força do
xamanismo siona como um sinal diacrítico de diferenciação cultural e
como uma importante fonte de revitalização étnica (LANGDON, 2020).
Entretanto, já na década de 1980, alguns Siona retomaram os
rituais com o yajé, conduzindo sessões direcionadas principalmente
para seus vizinhos caboclos e visitantes não indígenas e passando a
participar nas redes regionais do curandeirismo, que fazem parte do
sistema de medicina popular na Colômbia (LANGDON, 2013). No final
dessa mesma década, os Siona começaram a se tornar extremamente
visíveis e valorizados nas redes xamânicas contemporâneas. Nas grandes
cidades colombianas, os diálogos entre indígenas e pessoas oriundas das
classes altas e médias resultaram no estabelecimento de diversos centros
rituais, denominados “malocas”, nos quais são realizados rituais de yajé
para centenas de pessoas (LANGDON, 2016, 2020). Posteriormente,
essas redes se expandiram para outros países da América Latina e para
a Europa (LANGDON, 2016). Nesses contextos, os novos taitas Siona
conduzem tomas de yajé direcionadas para um público formado por
antropólogas(os), jornalistas, artistas, profissionais urbanos e outros
(LANGDON, 2016). Como aponta Langdon (2013), a maioria das
pesquisas sobre os xamanismos contemporâneos indica que esses rituais
tendem a ser mais voltados para questões individuais, psicológicas e
terapêuticas do que para aspectos públicos coletivos, como costuma

13
De acordo com Miguel Bartolomé (2006), os processos de transfiguração étnica
constituem estratégias adaptativas produzidas pelas populações em situações de
subordinação, de acordo com seu próprio perfil cultural, e possibilitam que essas
populações se transformem para poder continuar sendo quem são (BARTOLOMÉ,
2006 apud LANGDON, 2020).
36 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

acontecer nos contextos indígenas. Somado a isso, essas performances


rituais costumam refletir um “xamanismo mais amoroso” (LANGDON,
2020, p. 41), trazendo expressões estéticas que representam um
xamã amazônico genérico, e não os diversos xamanismos indígenas
particulares. Assim, nessas performances e nesses discursos voltados
para um público majoritariamente urbano e não indígena, a am-
biguidade e os elementos ligados a canibalismo, feitiçaria e predação,
tão centrais nos xamanismos ameríndios, costumam estar ausentes.
Entretanto, a autora considera que esses praticantes urbanos devem ser
levados a sério no que diz respeito à sua intenção de obter perspectivas
alternativas e de valorizar experiências marginalizadas na cultura
ocidental (LANGDON, 2013).
Ela aponta que os taitas Siona atuais não desempenham o papel
tradicional do cacique curaca, que envolve poder político e religioso
sobre os grupos regionais (LANGDON, 2013). Por outro lado, eles
voltaram a exercer uma função política importante, pois se encontram
ativamente envolvidos em processos de revitalização cultural que
fazem parte dos movimentos indígenas na Colômbia e na América
Latina, promovendo o multiculturalismo e os direitos das minorias.
Nesse contexto, a autora argumenta que as trajetórias desses xamãs
emergentes foram construídas em diálogo com interesses e atores tanto
indígenas quanto não indígenas (LANGDON, 2013). Como também
vemos nas redes xamânicas que vêm se desenvolvendo no Brasil, esses
atores envolvem principalmente pessoas ligadas a grupos espirituais
não indígenas (especialmente as redes da Nova Era, os movimentos
heterogêneos que costumam ser denominados de “neoxamânicos” e as
religiões ayahuasqueiras) e membros de organizações governamentais
e não governamentais voltadas para questões como direitos indígenas,
sustentabilidade e medicina tradicional. Diversos estudos de caso
sobre o tema, tanto no Brasil quanto na Colômbia, sugerem que,
para os representantes e grupos indígenas envolvidos, essas redes
geram reconhecimento nacional e internacional e, em muitos casos,
possibilitam também produzir alianças e atrair recursos externos,
inclusive financeiros (ver, entre outros, LANGDON, 2016; ROSE, 2010;
PLATERO, 2018; MENESES, 2020; PLATERO; ROSE, 2022).
Langdon (2013) argumenta que, embora essas práticas atuais
sejam frequentemente denominadas de “neoxamanismo”, a expressão
“xamanismos contemporâneos” é mais adequada para designar essa
diversidade de atores e interesses. É importante ainda levar em conta
Meio século de pesquisa sobre xamanismo 37

que o termo “neoxamanismo” tem conotações negativas e ignora


fluxos e diálogos multidirecionais entre atores e práticas indígenas e
não indígenas, bem como os benefícios que eles podem trazer para os
diversos atores envolvidos (LANGDON, 2013).
Como vimos, existem vários relatos etnográficos recentes sobre
alianças e diálogos entre grupos indígenas e grupos espirituais não
indígenas, entre os quais, ao menos no Brasil, as religiões ayahuasqueiras
têm um lugar de destaque. Nesse contexto, muitas vezes grupos tidos
como usuários tradicionais da ayahuasca, como é o caso dos Huni Kuin,
para citar apenas um exemplo, revitalizam suas práticas xamânicas e
retomam o uso dessa bebida a partir do contato com igrejas daimistas
(ver, entre outros, MENESES, 2018, 2019, 2020). Existem também relatos
sobre casos nos quais grupos indígenas que não tinham um contato
prévio documentado com a ayahuasca passaram a utilizar essa bebida
a partir da interação com as religiões ayahuasqueiras, em contextos
bastante diversos, como o sul do Brasil (ROSE, 2010; LANGDON;
ROSE, 2012, 2014; ROSE; LANGDON, 2013) e o Alto Xingu (STOLZE
LIMA, 2018). Nesse sentido, pesquisas realizadas em diferentes contex-
tos etnográficos parecem apontar para uma recorrência interessante:
mesmo entre povos que não utilizavam previamente essa substância,
ela frequentemente se encontra ligada a processos de fortalecimento da
tradição e de revitalização das práticas xamânicas.
Pensando o caso específico dos Siona, Langdon sugere que o
fortalecimento do sistema xamânico deles faz parte de um processo mais
amplo na América Latina, envolvendo associações entre xamanismo e
discurso ambiental e conceitos como “medicina tradicional”, identidade
étnica, bem-estar e espiritualidade (LANGDON, 2016). De acordo com
ela, esses conceitos, e principalmente as relações entre espiritualidade
indígena e ambientalismo, tornaram-se uma referência importante
nas lutas por direitos indígenas em toda a América Latina e no
movimento neoxamânico global (LANGDON, 2016). Cabe apontar
ainda que, especificamente no Brasil, as práticas xamânicas costumam
ser associadas a uma visão essencialista sobre medicina tradicional
indígena. Essa percepção estática circula entre atores muito diversos,
como profissionais que atuam na área da saúde indígena e pessoas
ligadas aos circuitos da Nova Era, entre outros, e está presente inclusive
nas políticas públicas voltadas para áreas como saúde e patrimônio
(LANGDON; ROSE, 2012; ROSE; LANGDON, 2013).
38 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Considerações finais
Como consequência desses jogos de espelhos, tudo indica que
se encontra em andamento um processo de aparente padronização,
ou mesmo homogeneização, dos diversos xamanismos indígenas que
circulam nas redes xamânicas contemporâneas. Como vimos ao longo
do texto, nos mais diferentes contextos etnográficos aos quais essas
redes se estendem, encontramos um conjunto de elementos em comum,
compartilhados, que podem ser identificados pelos diversos participantes
indígenas e não indígenas. Esses elementos incluem um modelo mais ou
menos padronizado de performance ritual; um conjunto de substâncias,
entre as quais a ayahuasca desempenha um papel central (as chamadas
“medicinas da floresta”); um tipo particular de estética; um conjunto de
objetos característicos; e uma série de conceitos ou metáforas-chave que
implicam associações entre xamanismo, discurso ambiental, “medicina
tradicional”, bem-estar e espiritualidade.
No caso específico dos Siona, os trabalhos de Langdon su-
gerem que algumas características particulares, identificadas como
“especificamente siona”, desapareceram de seus rituais (LANGDON,
2020, p. 41). Do mesmo modo, o papel social do xamã também passou
por mudanças com relação à sua função e às expectativas envolvidas
(LANGDON, 2020). Entretanto, por outro lado, independentemente
dessas transformações, Langdon considera que o xamanismo siona
contemporâneo encontra-se fortemente enraizado nas práticas e na
cosmologia nativas, bem como nas estratégias, desenvolvidas desde o
início da invasão dos seus territórios, para resistir ao controle colonial
(LANGDON, 2016). A autora argumenta ainda que, para os Siona,
os rituais de yajé e seu sistema xamânico constituem expressões de
diferenciação cultural e respostas adaptativas aos interesses externos
e à violência na região do Putumayo desde o período colonial
(LANGDON, 2020).
Minha pesquisa sobre o protagonismo de uma família extensa
guarani de Santa Catarina na formação da rede xamânica autodeno-
minada Aliança das Medicinas14 também aponta para conclusões seme-

14
Essa rede emergiu em Santa Catarina no final dos anos 1990, com base nos diálogos
entre: moradores da aldeia guarani Yynn Morothi Wherá (Biguaçu, SC); lideranças
nacionais do grupo xamânico internacional Fogo Sagrado de Itzachilatlan, também
conhecido como Caminho Vermelho; lideranças de uma comunidade local do
Santo Daime; e funcionários da área da saúde contratados pela ONG que gerenciava
Meio século de pesquisa sobre xamanismo 39

lhantes. Por um lado, o envolvimento dos Guarani nessa rede esteve


ligado a um contexto mais amplo de abertura para os diálogos com não
indígenas e constituiu uma oportunidade de atrair apoiadores e recursos
externos para a comunidade indígena. Além disso, ao participarem
dos rituais da Aliança das Medicinas, realizados em diferentes espa-
ços, dentro e fora da aldeia, os Guarani passaram a se apropriar de
performances rituais, elementos e objetos comumente associados a
imagens e representações de um xamanismo genérico. Entretanto,
minha pesquisa de campo, e principalmente as narrativas indígenas,
indicaram que na aldeia Yynn Morothi Wherá as experiências com a
ayahuasca eram associadas aos sonhos e interpretadas com base em
elementos centrais da cosmologia e do sistema xamânico guarani, que
contribuíam para conferir sentido a essas experiências (ROSE, 2010).
Desse modo, eu argumentei que, ao potencializar a visão e a percepção
no contexto da experiência ritual, a ayahuasca tornava-se um elemento
auxiliar nas principais funções dos karaikuery Guarani:15 a cura, a
comunicação com os deuses, a intermediação entre os diferentes seres e
mundos que compõem o cosmos (ROSE, 2010).
Esses dois exemplos etnográficos, vindos de contextos bastante
distintos na Colômbia e no Brasil, sugerem que provavelmente existem
mais processos em jogo nas redes xamânicas hoje além da padronização
e da homogeneização de práticas, performances e discursos. Assim, é
preciso complexificar e aprofundar a análise para poder compreender
a dinamicidade, a criatividade e o caráter múltiplo desses movimentos
contemporâneos. As investigações mais recentes sobre o tema indicam
que os xamanismos hoje são caracterizados por redes, diálogos,
controvérsias e equívocos entre grupos indígenas e não indígenas,

a atenção à saúde indígena nas aldeias da região. Em suma, os diversos grupos e


atores que fazem parte dessa aliança estão estreitamente vinculados em relações de
influência mútua, formando uma rede que tem como um dos seus eixos centrais o
interesse em comum em torno da “medicina tradicional” e da espiritualidade (para
maiores informações, ver, entre outros, ROSE, 2010; LANGDON; ROSE, 2012, 2014;
ROSE; LANGDON, 2013; ROSE; OKENDA, no prelo).
15
O termo “karaí” – “karaikuery”, no plural – e seu feminino, “cunhá karaí”, são muitas
vezes considerados equivalentes ao termo “xamã”. O professor indígena Geraldo
Karaí Okenda frequentemente se refere aos karaikuery como “líderes espirituais” e
“médicos tradicionais” (ROSE; OKENDA, no prelo). Em suma, os karaikuery atuam
como protetores dos seus parentes e dos humanos em geral, trabalho que é realizado
através da comunicação com os diferentes mundos e seres que constituem o cosmos
e que ocorre principalmente durante os sonhos, as visões e os rituais (MELLO, 2006).
40 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

questionando dicotomias e análises estáticas. Esses fenômenos desafiam


conceitos e categorias analíticos clássicos e estáticos. Também cabe
apontar para o crescente protagonismo indígena nessas redes, bem como
para os agenciamentos criativos produzidos pelas lideranças indígenas.
Em muitos casos, as respostas e as novas versões dos xamanismos
indígenas que emergem a partir desses diálogos são surpreendentes e
contrariam as imagens e as expectativas antropológicas.
Nesse sentido, o conceito de redes xamânicas contemporâneas
(LANGDON, 2013) visa a tentar superar e deslocar essas dicotomias,
enfatizando o caráter extremamente dinâmico e emergente desses
encontros e desencontros. Trata-se de fenômenos marcados pela
construção e pela multiplicação constante de práticas rituais e de
sistemas simbólicos, que atravessam diferentes fronteiras – territoriais,
simbólicas, políticas e conceituais, nos levando a questionar dicotomias
estanques como aquelas entre “floresta” e “cidade”, “indígena” e “não
indígena”, “tradicional” e “moderno” (ROSE, 2019).
Em uma reflexão autobiográfica, Langdon (2009, 2014) argu-
mentou que o histórico das pesquisas sobre xamanismo coincide
com a própria história da antropologia, sendo que as preocupações,
os conceitos empregados e as perguntas feitas por antropólogos e
antropólogas nos anos 1970 e hoje são completamente diferentes. Os
trabalhos de Jean Langdon sobre esse tema ao longo de meio século
refletem essas transformações, acompanhando as mudanças que
aconteceram nos próprios xamanismos indígenas e em suas relações
com o chamado “mundo não indígena” nesse período. Como vimos,
para essa autora, a expansão dos xamanismos para contextos não
indígenas traz a necessidade de rever os modelos analíticos sobre o
tema e está diretamente ligada a questões centrais na antropologia
atual, incluindo as noções de cultura, tradição, continuidade, lugar
e práxis (LANGDON, 2013). Entretanto, ao mesmo tempo, existem
temas e questões que permanecem constantes em seus trabalhos, como
a ênfase nas relações entre os sistemas xamânicos e as necessidades
expressivas humanas; o destaque para as questões estéticas ligadas
a essa necessidade de expressão; e o enfoque na criatividade, na
constante reinvenção, na dinamicidade e na heterogeneidade que
caracterizam os xamanismos.
Meio século de pesquisa sobre xamanismo 41

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Os xamanismos hoje: entre
arcaísmo e vanguarda1

Robert R. Crépeau

O xamanismo não pode ser visto como uma filosofia ou lógica


isolada sem considerar os contextos social, político e histórico de
sua práxis. (LANGDON, 2013, p. 19, tradução nossa).2

Introdução
Pretendo aqui discutir a importante contribuição de Esther Jean
Langdon aos estudos dos xamanismos. Mesmo antes de encontrar
Jean por uma incrível coincidência, em um voo de São Paulo para
Florianópolis3 no início dos anos 1990, seus escritos sobre o xamanismo
siona faziam parte de minhas leituras. Seu compromisso com os Siona
e com a nossa disciplina há várias décadas tem sido para mim uma
importante fonte de inspiração metodológica, intelectual e ética.
Os dilemas dos xamanismos são grandes, a começar pelo
profundo questionamento à razão ocidental, ainda baseada no cogito
cartesiano ou na separação do corpo e da mente. Tanto uma instituição
social como um método, o xamanismo foi e é ainda frequentemente
reduzido a um modelo de tipo mágico-religioso. Porém, a antropologia
praticada por Jean mostrou que o xamanismo é uma relevante força

1
Todas as traduções deste capítulo são do autor, salvo indicação contrária.
2
No original: “Shamanism cannot be regarded as an isolated philosophy or logic without
considering the social, political and historical contexts of its praxis”.
3
Em 1992, viajei de São Paulo a Florianópolis sentado ao lado de Jean Langdon,
que não conhecia pessoalmente então – aliás, só através da leitura dos seus artigos
sobre os Siona da Colômbia. Não conversamos durante o voo, mas depois do pouso
perguntei sobre o hotelzinho em que ficaria hospedado, comentando que fazia
uma visita ao professor Silvio Coelho dos Santos, da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). Depois da surpresa mútua, Jean me deu uma carona até meu hotel,
no centro da cidade, e desde aquele primeiro encontro nosso diálogo não parou.
46 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

dinâmica social, histórica e política para pensar o mundo de hoje e o


seu futuro (LANGDON, 1992, 1996, 2013, 2015).
Historicamente, a disciplina antropológica, em vez de levar a sério
os desafios dos xamanismos, objetivou acabar com o tema ao tentar:
1. explicar a prática dos xamanismos a partir de um quadro clínico de
doença mental; 2. aplicar aos xamanismos uma crítica similar à que
Lévi-Strauss fez ao totemismo há 60 anos; e 3. problematizar a definição
do xamanismo e o uso de tal categoria. São problemas já assinalados
há tempos por Van Gennep (1903), e mais recentemente por Håkan
Rydving (2011), que qualifica os estudos sobre xamanismo de ilu-
são científica.
De fato, até meados do século passado, os trabalhos sobre
xamanismo estabeleceram uma diferença radical entre a pessoa do
xamã e a do etnógrafo ao conceber, por exemplo, a prática do primeiro
como uma desordem de personalidade. Desde então, entretanto, houve
uma aproximação entre os etnólogos e os xamãs, estes últimos que vie-
ram a aparecer como coconstrutores de uma intertextualidade que
questiona radicalmente o papel atribuído a cada um deles pela etnologia
clássica. As publicações de O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase,
de Mircea Eliade (1951), e de Os ensinamentos de Don Juan, de Carlos
Castaneda (1968), foram momentos-chave nessa aproximação. Hoje em
dia, a proximidade é maior ainda em razão dos encontros internacionais,
ligados à globalização, com xamãs de várias partes do mundo e com o
grande público, como veremos na próxima seção.

Xamanismo cosmopolita: diversos casos de


encontros

Xamãs Shuar: do Equador ao Canadá

Em 2004, convidei para falar em meu seminário de pós-


graduação, na Université de Montreal, o xamã ou uwishin Shuar Ricardo
Tsakimp, que era presidente fundador do Conselho dos Uwishin Shuar
do Equador. Ele chegava da França, para onde viajou como palestrante
a pedido de Arutam-France.4 Foi convidado, no Canadá, por um ex-

4
Associação de Solidariedade Internacional, cujo objetivo é promover os conhe-
cimentos indígenas na Europa. Disponível em: http://arutam.free.fr/Amerindien.
html. Acesso em: 22 abr. 2022.
Os xamanismos hoje 47

estudante meu, um policial estadual aposentado que fazia iniciação


xamânica com ele no Equador. Eles visitaram várias comunidades
indígenas e escolas não indígenas no Quebec. Durante as visitas às
comunidades indígenas, Ricardo Tsakimp realizou trabalhos de cura
que envolveram o uso de ayahuasca, uma bebida alucinógena típica da
prática xamânica dos Shuar. Em sua fala no meu seminário, declarou
que queria dar às comunidades que ele visitou a oportunidade de se
beneficiar de força e energia adicionais, particularmente em relação ao
problema do suicídio entre jovens indígenas. Informando-nos que a
medicina tradicional shuar é reconhecida desde 1999 pelo Ministério
da Saúde do Equador, Ricardo explicou: “Não sou um feiticeiro. Nós e
os médicos brancos nos complementamos; eles curam o corpo físico,
e nós curamos o corpo espiritual. Uma cerimônia de cura faz parte de
um remédio, não um culto ou uma religião”.
Depois do seminário, durante uma conversa informal, discutimos
com Ricardo o caso muito comentado na imprensa canadense, entre
2001 e 2003, do xamã Shuar Juan Uyankar, que foi acusado de tráfico de
drogas e de homicídio, por negligência, de uma mulher com diabetes.
Esta, que pertencia a uma comunidade indígena anishinaabe, da
província de Ontário, parou de tomar os seus remédios durante três
dias para fazer dieta de ayahuasca e tabaco com o visitante convidado
do Equador. Em 2003, o tribunal, falando de negligência por parte do
xamã, mas reconhecendo o valor da medicina indígena, condenou
Juan Uyunkar por tráfico de uma substância ilícita (ayahuasca) e pela
morte da mulher. Como ele havia se declarado culpado, foi proibido
de realizar qualquer ritual de cura com ayahuasca e condenado a uma
pena reduzida de 12 meses de prisão domiciliar e 150 horas de serviço
comunitário, a completar no Canadá. O mais interessante desse caso foi o
pronunciamento do juiz do Tribunal de Justiça de Ontário, que afirmou,
após se referir aos testemunhos a favor do xamã, que o tratamento foi
eficaz e que “‘o centro da cerimônia é o espírito. A substância, ou natem,
é considerada medicina sagrada. O objetivo da cerimônia é a cura’ e
tem sido ‘praticada com sucesso desde tempos imemoriais’” (LOGAN,
2003, s. p., grifo nosso, tradução nossa).5 Juan Uyankar não falou após
o veredito, mas o seu advogado disse que o xamã estava “emocionado”

5
No original: “[...] ‘central to the ceremony is spirit. The substance, or natem, is
considered sacred medicine. The purpose of the ceremony is healing’ and has been
‘successfully practised since time immemorial’”.
48 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

com a decisão: “Juan queria que o remédio fosse reconhecido, e a justiça


(o juiz) fez isso” (LOGAN, 2003, s. p., tradução nossa).6

A cura xamânica do biólogo Augusto Ruschi

No final dos anos 1980, o presidente José Sarney convidou


dois indígenas do Xingu, o cacique Raoni (Kayapó) e o pajé Sapaim
(Kamayurá), para salvar o cientista Augusto Ruschi (1915-1986), apa-
rentemente envenenado por um sapo dendrobata e condenado a morrer
por complicações hepáticas decorrentes.
Ruschi foi um biólogo famoso, professor da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Museu Nacional. Em 1975,
acabou sendo envenenado no Amapá por sapos dendrobatídeos. Foi
hospitalizado, e sua saúde, prejudicada. Ele andava sofrendo com febres,
dores quase permanentes pelo corpo, paludismo e cirrose hepática. Em
1986, no Rio de Janeiro, durante três dias, aconteceu o ritual de cura
dirigido pelo cacique Raoni e pelo pajé Sapaim. O evento “foi um prato
cheio para a mídia da época. […] Jornalistas do mundo inteiro vieram
cobrir o episódio” (TORRES, 2015, s. p.). Após o tratamento e a extração
xamânica do veneno do sapo, Ruschi foi declarado curado. Durante a
cura, Ruschi declarou:

Estou mais forte, estou andando mais forte. Não estou


cambaleando mais como antes, dias atrás, e vocês têm um
retrato fiel do meu estado de saúde, como eu falo mais normal.
Vocês estão notando que a minha voz melhorou. (RUSCHI...,
1986, s. p.).

Porém, Ruschi faleceu poucos meses depois, no dia 3 de junho


de 1986. A causa da morte foi insuficiência hepática originada por uma
cirrose, esta derivada de uma intoxicação por excesso de remédios
contra a malária. A autópsia não revelou presença de veneno de sapo
(TORRES, 2015, s. p.). O mais interessante do caso foi o debate sobre a
verdadeira eficácia do tratamento xamânico como uma forma de cura
alternativa confiável, em comparação com a biomedicina (PEREIRA,
1989). A Folha de S. Paulo citou os antropólogos Carmen Junqueira e
Egon Schaden como favoráveis à eficácia das curas xamânicas. Assim,

6
No original: “Juan wanted the medicine to be recognised, and the justice (judge) did
that”.
Os xamanismos hoje 49

Egon Schaden afirmou que “a pajelança tem como função principal a


cura, pela via mágica ou por plantas medicinais, mas há outras funções,
como a religiosa” (RUSCHI..., 1986, s. p.). Ruschi concordava plenamente
quando reduziu o ritual xamânico “à eficácia de uma medicina de dois
mil anos” (PEREIRA, 1989, p. 43). Analisando essa história toda, Pereira
(1989, p. 46) ressalta que, pelo menos entre os Kamayurá, o xamanismo
não pode ser reduzido stricto sensu a uma forma de medicina em razão
do “caráter mágico-religioso da performance do xamã”.
Por outro lado, Pereira apresenta uma hipótese muito interessante,
que nos permite pensar o caso Ruschi em outros termos que não sejam
mágico-religiosos. Notando “o caráter central do pajé na sociedade alto-
xinguana” e o fato de que o xamã e as crenças em feitiçarias “constituem
um sistema político”, Pereira (1989, p. 44) afirma que “o pajé realiza
adivinhações que intervêm em problemas cotidianos como furtos,
adultérios, homicídios […] e expressa a ‘vontade geral’ da coletividade”.

O caso de Qa’selid, apelido de George Hunt, famoso


colaborador de Franz Boas

Essa proposição traz de imediato à mente o famoso caso de Que-


salid (ou Qa’selid), um xamã apresentado por Franz Boas (1930) e Claude
Lévi-Strauss (1958) como Kwakiutl – ou, hoje em dia, Kwakwaka’wakw
(“as pessoas que falam Kwak’ wala”). Segundo Lévi-Strauss (1958, p. 195),
Quesalid “não acreditava no poder [...] dos xamãs [...] [mas], movido
pela curiosidade de descobrir seus truques, e pelo desejo de desmascará-
los, [...] começou a frequentá-los [...]”. Conhecemos a famosa fórmula
lévi-straussiana: “Quesalid não se tornou um grande feiticeiro porque
curou seus doentes, curou seus doentes porque se tinha tornado um
grande feiticeiro” (LÉVI-STRAUSS, 1958, p. 198). O autor acrescentou:
“Somos assim levados diretamente ao outro extremo do sistema, ou
seja, ao seu polo coletivo” (LÉVI-STRAUSS, 1958, p. 198). Quesalid
chegou a silenciar seu ceticismo por causa do consenso coletivo que fez
dele um grande xamã e um curandeiro renomado, apesar da natureza
falaciosa da técnica sangrenta de “que ele havia rido tanto no início”
(LÉVI-STRAUSS, 1958, p. 196). Assim, Quesalid encarnava para Lévi-
Strauss a figura do cético cartesiano (CRÉPEAU, 1997).7

7
Alguns anos depois da publicação do meu artigo revisitando o caso de Quesalid
(CRÉPEAU, 1997), Jean me apontou a existência de um novo artigo sobre essa figura
enigmática (WHITEHEAD, 2000). Ela me perguntou como conciliar o meu artigo
50 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

De fato, Qa’selid era o nome xamânico de um indivíduo chamado


George Hunt (1854-1933), que foi o principal informante de Franz Boas
entre os Kwakwaka’wakw. Não será possível neste artigo dar conta da
extensa literatura crítica sobre a colaboração etnográfica entre Hunt e
Boas (ver CANNIZZO, 1983; BERMAN, 1996; VERDON, 2007). Vou
simplesmente delinear os contornos desse complexo e intrigante caso de
George Hunt, ou Qa’selid.
Hunt era filho de mãe Tlingit e de pai inglês emigrado para
o Canadá para trabalhar em Fort Rupert, um posto comercial da
Hudson’s Bay Company. Desde criança, Hunt passou muito tempo em
contato com os Kwakwaka’wakw acampados em Fort Rupert. Então ele
aprendeu a falar o Kwakw’ala, além do Tlingit e do inglês (JACKNIS,
1991). Aos 18 anos de idade, casou-se com Lucy Homiskanis, uma
mulher Kwakwaka’wakw, que foi uma preciosa colaboradora nas
pesquisas de Boas. Após a morte de Lucy, Hunt acabou casando-se
novamente com Francine (Tsukwani, T’lat’lalawizamga) que era
irmã do xamã que desempenhou um papel central na sua iniciação
ao xamanismo, aos 13 anos (WHITEHEAD, 2000). Hunt era um
especialista das tradições dos Kwakwaka’wakw, que ele praticou desde
a infância e estudou durante um período de 40 anos, desde 1891 até
1933 (NEWELL, 2015).
Em um livro póstumo, Boas (1966, p. 123) afirma que o ceticismo
de Qa’selid era relativo ao contexto narrativo das quatro entrevistas
que conduziu com ele entre 1897 e 1930, um contexto influenciado
em particular pela percepção de Quesalid sobre a relação entre índios
e brancos:

O índio gosta de parecer racional e sabe que os brancos não


acreditam nas práticas xamânicas. Portanto, é provável que ele
adote uma atitude crítica, e ainda mais quando ele tem contato
próximo com os Brancos. [...] Isto também explica a posição
crítica tomada pelo meu principal informante na história
“I desired to learn the ways of the shaman” (BOAS, 1930, p. 1),8
na qual ele afirma que seu único objetivo era descobrir as fraudes
perpetradas pelos xamãs. Em outros momentos, entretanto,

com os fatos ressaltados por Harry Whitehead, ou seja, que o Quesalid de Lévi-
Strauss era, de fato, George Hunt (ver abaixo).
8
A história que foi usada por Lévi-Strauss no artigo “Le sorcier et sa magie” (1958).
Os xamanismos hoje 51

embora ele seja mais comunicativo, sua crença em suas próprias


experiências é muito clara. (BOAS, 1966, p. 121, tradução nossa).9

Boas cita uma longa história que Quesalid lhe contou em “um
lugar remoto na floresta” (BOAS, 1966, p. 121, tradução nossa),10 na
qual narra como, após uma grave queimadura aos 13 anos de idade,
ele foi repetidamente atormentado durante dez meses por forças
sobrenaturais, até que um dia sonhou com um encontro com uma orca.
Esse sonho lhe revelou que, no dia seguinte, ele realizaria sua primeira
cura e lhe deu informações sobre o paciente e seu tratamento (BOAS,
1966). Quesalid cumpriu a previsão da orca, e o paciente, para quem
já havia sido feito um caixão, recuperou sua saúde. Na noite seguinte,
a orca apareceu novamente em sonho para Quesalid e o informou dos
detalhes de outra cura. Então essa orca perdeu sua aparência humana e
recuperou a aparência do animal antes de nadar para longe. Quesalid
diz: “Quando ela soprou, uma espuma saiu de seu espiráculo. Depois
ouvi uma voz dizendo: ‘Esfregue esta espuma quatro vezes sobre seu
corpo. Ela tem um poder sobrenatural’. Sonhei que obedeci a sua
ordem” (BOAS, 1966, p. 122, tradução nossa).11 Quesalid tinha acabado
de confirmar sua aliança com seu animal auxiliar.
Boas também enfatiza a importância da pedra de quartzo
(“quartzo cristal”) para a prática de Quesalid. Este lhe confidenciou
que, durante uma cura a que ele assistiu, um dos xamãs presentes lhe
introduziu uma pedra de quartzo no corpo. Esse episódio aconteceu
pouco antes da primeira cura realizada por Quesalid. Tais relatos, Boas
conclui, indicam que, “apesar do conhecimento da fraude, persiste uma
profunda crença no poder sobrenatural do xamanismo, mesmo entre

9
No original: “The Indian likes to appear rational and knows that shamanistic practices
are disbelieved by the whites. So he is liable to assume a critical attitude, the more so
the closer his contacts with the whites. […] This accounts also for the critical attitude
exhibited in my principal informant’s account, ‘I desired to learn the ways of the shaman’
(Boas, 1930, 1), in which he takes the position that his only object was to discover the
frauds perpetuated by shamans. At other times, when in a more communicative mood,
his belief in jis own experience stands out very clearly”.
10
No original: “a lonely place in the woods”.
11
No original: “When he was blowing, foam came out of his blowhole. Then I heard a
voice which said, ‘Rub this foam four times over your body. It has supernatural power’.
I dreamed that I obeyed his order”.
52 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

pessoas refinadas” (BOAS, 1966, p. 125, tradução nossa).12 A expressão


“pessoas refinadas” usada por Boas sem dúvida parece referir-se a
George Hunt, empregado para conduzir pesquisas antropológicas por
alguns dos mais eminentes estudiosos de sua época, mas que por outro
lado se identificava como indígena. Alguns comentaristas julgaram
severamente Hunt, argumentando que ele nunca foi considerado um
Kwakiutl (CODERE, 1966). Porém, ele ocupou alternadamente uma
posição muito mais complexa, ou seja, externa em relação a seu trabalho
como pesquisador e colaborador de Boas, e interna como membro da
sociedade Kwakwaka’wakw, em virtude de seu casamento com Lucy e
de seu profundo envolvimento e interesse por sua cultura de aliança
e adoção (NEWELL, 2015). Boekhoven (2011, p. 66) escreveu que
Hunt “pode ter representado suas próprias atividades xamânicas com
cuidado e verdade, mas elas certamente não podem ser consideradas
comportamento xamânico Kwakiutl ancestral [age-old]”. Entretanto,
essa insistência na autenticidade e na pureza da tradição, recorrente
na antropologia, é problemática e faz pouco sentido devido à profunda
transformação colonial que vem ocorrendo desde 1880 nessa região
(NEWELL, 2015).
O certo é que os relatos de Hunt sobre sua iniciação xamânica
são semelhantes a outras narrativas de xamãs Kwakwaka’wakw (BOAS,
1930; JORGENSEN, 1970; BERMAN, 1994). É interessante ressaltar
que “um aspecto-chave de seus textos [de Hunt] é sua preocupação com
os detalhes processuais e não com o significado cultural, como se até
o final de sua vida ele permanecesse focado nas regras que tinha que
aprender para participar da vida Kwakiutl” (BERMAN, 2003, s. p.). Essa
observação, em minha opinião, indica que, embora ambivalente, Hunt
descreve um ponto de vista interno quando revela a importância do
animal auxiliar do xamã e da aquisição das substâncias – a espuma da
orca e o quartzo.
Em resumo, do ponto de vista dos Kwakwaka’wakw, a prática
do xamanismo era, portanto, baseada em dois elementos recorrentes:
1. uma relação privilegiada com um animal auxiliar (orca, lobo, urso,
sapo e alguns outros), do qual o indivíduo recebe o seu nome de xamã
(BOAS, 1966); 2. a introdução de uma substância no corpo do noviço:
“Seu poder é dirigido principalmente para a base do estômago, logo
abaixo do esterno, cujo movimento é interpretado como o efeito deste

12
No original: “notwithstanding the knowledge of fraud, a deep-seated belief in the
supernatural power of shamanism persists, even among the most sophisticated”.
Os xamanismos hoje 53

poder que reside ali” (BOAS, 1966, p. 135, tradução nossa).13 Quanto à
cura durante a qual o xamã mostra uma substância ou um objeto que ele
acaba de extrair por sucção do corpo, uma penugem sangrenta no caso
de Quesalid, o xamã confirma assim que o paciente foi de fato o alvo de
uma causa externa responsável pelos sintomas de sua doença.
A história de Quesalid nos remete à intrusão de um domínio
não humano no domínio humano através da pessoa do xamã, cujo
corpo torna-se o receptáculo de substâncias (nesse caso, espuma de
orca e pedra de quartzo) que se alojam nele, conferindo-lhe poderes e
conhecimentos. De modo mais geral, digamos que é uma característica
essencial do xamanismo, à qual os pesquisadores têm prestado uma
atenção renovada recentemente (CRÉPEAU, 2007; LANGDON, 2017;
ROSA; CRÉPEAU, 2020).

O poder xamânico e suas representações


De acordo com Jean Langdon (1992), o conceito-chave que liga
os sistemas xamânicos sul-americanos é o de poder, estreitamente
relacionado com os conceitos de força e energia. Como visto acima,
o poder é adquirido pelos xamãs por meio de várias substâncias
que constituem sua materialização. Por exemplo, entre os Siona da
Colômbia (LANGDON, 2014), a aquisição do rau transformava uma
pessoa comum em um xamã, modificando seu corpo, que o contém e
que se torna seu recipiente. O rau é uma substância que cresce no corpo
do xamã, difusa e sem localização precisa, e corresponde ao poder e ao
conhecimento dos xamãs. Ela se materializa fora do corpo, na forma de
dardo, pedra, presas de cobra ou borboleta preta (LANGDON, 1992).
Por outro lado, a mesma substância se espalha no corpo do paciente, se
torna difícil de extrair e é potencialmente letal. É interessante notar que
cada adulto pode acumular um pouco de rau à medida que envelhece.
Langdon (1992) indica que o rau difere da concepção ocidental de
conhecimento por ser concebido como algo que permite a seu possuidor
influenciar as forças do universo.
Cheguei a duas observações a respeito dessas dimensões essen-
ciais do xamanismo: 1. O auxiliar é geralmente uma entidade proto-

13
No original: “A key aspect of his texts is his concern with procedural detail rather than
with cultural significance, as if to the end of his life he remained focused on the rules he
had had to learn to participate in Kwakiutl life”.
54 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

típica, por exemplo, a entidade-mestre ou o dono da espécie do animal


auxiliar em questão (CRÉPEAU, 2015); 2. a transformação realizada
pelas substâncias durante a iniciação permite que os xamãs adquiram
um status assimétrico na sua sociedade. Essa “materialização do poder”
xamânico parece ser muito concreta, já que foi relatada em várias outras
regiões do mundo (CRÉPEAU, 2007). Então Quesalid curava seus
pacientes não só “porque ele havia se tornado um grande feiticeiro”
(LÉVI-STRAUSS, 1958, p. 198), mas também, segundo seu próprio
ponto de vista, por causa da espuma de seu animal auxiliar, a orca, e do
cristal de quartzo, introduzidos em seu corpo.
As substâncias xamânicas são consideradas provenientes dos
auxiliares não humanos dos xamãs. No entanto, se as substâncias são
originárias das entidades-mestras (que são os auxiliares animais dos
xamãs Kaingáng, por exemplo), elas estão, portanto, ligadas ao status
legal, ou seja, ao papel da pessoa que as incorpora. Essa transformação
é corporal e mental, sem distinção, pois as cosmologias em questão
postulam a unidade corpo-mente, e não a dualidade sujeito-objeto
cartesiana (LITAIFF, 2019). As substâncias provêm de entidades
prototípicas, mais precisamente entidades ancestrais que garantem a
autoridade e os poderes assim transferidos ao fiduciário das substâncias
(CRÉPEAU, 2007, 2015).
Como visto acima, de acordo com Lévi-Strauss (1958), a situação
“mágica” se baseia no consenso – em suma, na crença na eficácia
do tratamento. Temos que responder à questão seguinte: “se parte
fundamental do trabalho do xamã é uma mise-en-scène, como explicar a
cura?” (PEREIRA, 1989, p. 45, grifo do autor). Quanto a essa abordagem
externa e cética, proponho substituí-la pela ideia de que, do ponto de
vista interno, a adesão (nunca unânime) ao sistema de regras ao qual
o xamã se refere durante suas intervenções permite a atualização e a
arbitragem das relações interindividuais e sociais dentro de um contexto
cosmopolítico ou cosmojurídico. Então seria o respeito comum às regras
que permite tanto a adesão do xamã às suas manipulações quanto a
atitude do paciente, vítima de um ataque que põe em perigo sua pessoa
e seus relacionamentos, ou que se vê confrontado com alguns de seus
desvios de conduta em relação à sua comitiva. São os espíritos da lei que
invocam e convocam o xamã durante o ritual.14

14
Como afirma o jurista canadense Anishinaabe Johns Borrows (2016, p. 823): “Ao
distinguir ou desenhar analogias com o comportamento da água, vento, rochas,
Os xamanismos hoje 55

Entre os Kwakwaka’wakw, a orca era considerada o “shaman-


maker” (literalmente o “fazedor de xamãs”) e o ancestral comum dos
membros do numaym15 Great Ones de Ba’as – da reserva Blunden
Harbour, na província canadense de Colúmbia Britânica (BOAS,
1930, p. 182-183). Assim, o processo de iniciação aparece como uma
reencenação do tempo das origens, que aponta que o direito de praticar
como xamã foi instituído pelo fundador da linhagem, ou seja, a orca.

Os xamãs não estavam unidos apenas devido à iniciação através


de um antepassado comum, mas deviam lealdade a sua linhagem,
sendo o mais idoso entre eles o chefe dos xamãs. Como o xamã
mais poderoso deveria estar alinhado com o chefe de sua
linhagem, o xamanismo tendeu a manter o status quo político.
(JORGENSEN, 1970, p. 85).

Outra característica do xamanismo é justamente que os poderes e


a capacidade de ação do xamã são sempre atribuídos a seus guias ou suas
entidades auxiliares. Esses poderes são concebidos como derivados de
agentes imateriais16 aos quais os xamãs são aliados. Entre os Kaingáng,
o guia animal dá ao xamã um acesso privilegiado à caça e o auxilia
nos tratamentos indicando as plantas, seus preparos, a dosagem e a
duração da dieta que o paciente deve seguir (CRÉPEAU, 2002; ROSA;
CRÉPEAU, 2020).
Desse modo, no xamanismo, os agentes imateriais se manifestam
aos especialistas “comunicando” conhecimento e poder de uma forma
tangível. Entretanto, parece-me que a maioria das interpretações desse
tipo de relacionamento se baseia no modelo da interação do especialista
com as entidades. Esse modelo tem a desvantagem de não (ou
raramente) considerar como primeiro e determinante o aspecto público
das apresentações rituais – ou, mais precisamente, a interação do xamã
com um público de não especialistas. O trabalho de Jean Langdon é
uma notável exceção a essa perspectiva. De fato, ela insistiu com
convicção sobre a importância do aspecto público do ritual xamânico
(LANGDON, 1993, 2015). Como ela escreveu: “O xamanismo é

plantas, insetos, pássaros e animais, os povos indígenas geram padrões de como os


humanos devem se regular e resolver suas disputas”.
15
Linhagem ou grupo de descendência patrilinear proveniente de um antepassado
mítico comum (ver MAUZÉ, 1989).
16
Proponho o uso de agentes imateriais em vez de sobrenaturais para me aproximar da
linguagem do direito.
56 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

uma instituição central que, através do rito, unifica o passado mítico


com a visão do mundo, e os projeta nas atividades da vida cotidiana”
(LANGDON, 1996, p. 28).
Desse ponto de vista, e mais especificamente do da performance
ritual na frente de um público, por menor que seja, uma sessão
xamânica é geralmente caracterizada pela invisibilidade, para o público,
dos agentes imateriais que o xamã convoca e cujas ações ele narra e
representa em seu benefício – durante ou após a sessão, de acordo com
o contexto etnográfico (RACINE, 1995; LANGDON, 2015). Podemos
dizer de forma geral que os xamãs representam para o público suas
interações (encontros, brigas, trocas, alianças, casamentos etc.) com
agentes imateriais de forma dramática, utilizando vários processos
narrativos e rituais, tais como o canto, a mímica, a fala etc. As instâncias
imateriais não se expressam direta e publicamente, pois é o xamã que
deve comunicar palavras, cantos, ações e gestos delas ao público, como
um drama (LANGDON, 1993). Em suma, de forma esquemática, a
performance ritual implica um agente humano fiduciário de agentes
imateriais, ou seja, que incorpora, em si mesmo ou sobre si mesmo,
substâncias e objetos derivados deles e que fala de uma instância
imaterial que apenas ele controla, invisível para o público.
Jean-Claude Muller (1993, p. 95) apresenta o caso de uma
pedra “redonda, preta e do tamanho de uma grande bola de gude”
que um oráculo ventríloquo entre o povo Rukuba da Nigéria fez
falar publicamente. Muller (1993, p. 99) acrescenta um importante
esclarecimento: “Os Rukuba acreditam que certos animais, árvores e
pedras possuem, como os humanos, uma alma, ingyio. Mas os anciãos
me disseram que esta alma da pedra não entra de forma alguma no
corpo do adivinho”. O autor compara depois a ventriloquia com as
diferentes técnicas de representar “as vozes de seres sobrenaturais
dotados de fala articulada e visíveis aos ouvintes e espectadores, sendo
as máscaras e os possessos os agentes mais conhecidos nesta categoria”
(MULLER, 1993, p. 93). Segundo Muller (1993, p. 98), com a possessão,
“temos um deus ou espírito que fala através de um homem que não se
esconde”. As representações mascaradas são o oposto da possessão, pois
é “um humano que entra na aparência, no corpo, pode-se dizer, de um
espírito que o faz falar; [...] é um homem escondido que faz a máscara
parecer falar” (MULLER, 1993, p. 98). O caso da pedra rukuba falante
transforma esses dois primeiros exemplos:
Os xamanismos hoje 57

Como fazer uma instância sobrenatural falar em público sem


que o homem se esconda dentro dela, por um lado, e por outro,
sem dar a impressão de que fala através dela, mesmo estando
ele também presente diante do público, como na posse ou no
uso de máscaras? A única possibilidade em aberto permanece o
ventriloquismo. (MULLER, 1993, p. 98).

Se agora acrescentamos o xamanismo a essa comparação, obte-


mos outra variante possível – e, claro, tendo em mente que a prática
xamânica pode envolver possessão, máscaras e ventriloquismo em
diversos contextos etnográficos. Os xamãs dão a ver e ouvir para a
plateia suas interações com entidades ou agentes não humanos de
forma dramática, utilizando vários métodos narrativos e rituais, como
canto, mímica, discurso, gestos, objetos, substâncias manipuladas etc.
Em contraste, na possessão, um agente imaterial entra no corpo de um
humano e fala através de sua boca para o público. Na representação
com máscara, um humano assume publicamente a aparência do agente
imaterial que a máscara mostra e o faz falar. No ventriloquismo, uma
instância sobrenatural visível fala em público sem que o adivinho se
esconda dentro dela (como na máscara), por um lado, e, por outro,
sem dar a impressão de que fala através dele, mesmo estando ele
também presente diante da plateia. Finalmente, no que diz respeito
ao xamanismo, um humano, carregando dentro dele ou sobre ele uma
substância imaterial, age e fala em nome de uma instância que não é
visível para o público.
Nota-se que as respectivas posições do ventriloquismo e do
xamanismo nessa comparação aparecem de maneira invertida. No caso
do ventriloquismo rukuba, a pedra é concebida como a origem pública
e oficial do discurso (MULLER, 1993, p. 100), enquanto em contexto
xamânico as substâncias podem ser concebidas como falantes (LEVI,
1978; BILHAUT, 2006), mas elas falam diretamente apenas com o
xamã, que eventualmente poderá transmitir sua mensagem ao público.
Porém, em todos os casos, a origem e a autoridade do discurso, do
saber, do tratamento etc. não é o agente humano, mas bem os agentes
não humanos.

Conclusão: do local ao global e mais além…


Como demonstrou Jean Langdon (2015), no que se refere aos
Siona do Putumayo:
58 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

As apresentações rituais criam uma experiência coletiva na


qual os participantes acompanham as viagens dos xamãs, suas
transformações de aparência e os cantos e diálogos realizados
com os seres invisíveis. Várias estratégias performativas
contribuem para estabelecer expectativas comuns entre os
participantes. (LANGDON, 2015, p. 44).

Durante a performance ritual, o xamã Siona convoca e dialoga


com seus aliados – por exemplo o sol, a lua, o trovão, os donos dos
animais –, diálogo que ele dá a “ver” e a “ouvir” para os participantes.
A substância que transformava o xamã e que lhe conferia seu conhe-
cimento e seu poder de agir era o rau, transmitido ao noviço pelo mestre
durante a iniciação (LANGDON, 2017).
Em um artigo seminal publicado numa coletânea que organizei
recentemente, Jean descreve como o rau não é mais uma noção central
da cosmologia dos Siona contemporâneos: “Hoje, na interação dos
Siona com as práticas xamânicas globalizadas, o conceito polissêmico
de rau quase desapareceu e foi reduzido à tradução unívoca do obje-
to de feitiçaria” (LANGDON, 2017, p. 355, grifo da autora, tradução
nossa).17 Como um conceito tão central pode desaparecer é uma questão
de grande importância que só uma continuidade de 40 anos no campo
permite abordar empiricamente e descrever como uma “invenção da
tradição”. Como explica Jean, desde a Constituição colombiana de
1991, houve uma revitalização extraordinária do xamanismo como
consequência das mudanças do estatuto político e social do indígena
e da demanda pelo consumo de yajé ou ayahuasca por parte de uma
clientela não indígena. Então o xamanismo se tornou uma resposta às
forças externas: da história, do Estado e do mercado globalizado. O rau,
que Jean comparou com o mana polinésio, foi substituído pelo yajé,
considerado como uma “planta sagrada [sacred plant]” (LANGDON,
2017, p. 355). Podemos nos perguntar em que medida o poder do yajé
pode ser aproximado dos conceitos de tipo mana. Porém, o que fica
claro é que o xamanismo de tipo yajé é “o pilar central do movimento
etnopolítico contínuo que permitiu que os Siona sobrevivessem como
um grupo coletivo diante da violência e da crescente importância
econômica da região durante os últimos 30 anos” (LANGDON, 2016a,
p. 35).

17
No original: “Today, in the Siona’s interaction with globalized shamanic practices, the
polysemic concept of rau has all but disappeared and has been reduced to the univocal
translation of sorcery object”.
Os xamanismos hoje 59

Os casos que apresentei acima são homólogos ao contexto


siona contemporâneo; ou seja, os xamãs estão atuando em contextos
plurais e para novos públicos externos, o que poderíamos comparar a
uma diáspora criada pelas viagens e consultas extranacionais de cada
xamã – por exemplo, os xamãs uwishin Shuar que visitaram o Canadá
para organizar sessões de ayahuasca para não indígenas e comunidades
indígenas canadenses. Também é o caso de Raoni e Sapaim, que se aliaram
para curar Augusto Ruschi no Brasil. Depois dos acontecimentos, Raoni
virou o grande cacique que todos nós conhecemos e que recentemente
apresentou uma denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro na Corte
Internacional de Justiça. Sapaim18 ficou conhecido nos níveis nacional
e internacional, “especialmente entre pessoas brancas, urbanas, ligadas
a movimentos new age, e continua atendendo pacientes famosos, como
Leonardo DiCaprio e Gisele Bündchen” (TORRES, 2015, s. p., grifo
do autor). Ele viajou para vários países aos quais foi convidado, como
Alemanha, Suíça, Noruega, Marrocos, Egito, Japão, Estados Unidos.
De forma interessante, ao contrário dos xamãs Shuar que visitaram o
Canadá e dos xamãs Siona contemporâneos, Sapaim optou por manter
a concepção kamayurá de feitiçaria mesmo no exterior do Brasil:
“Sapaim disse-me que ‘no Xingu tem feiticeiro, tem Índio feiticeiro,
mas tem Branco feiticeiro aqui também, e feiticeiro em outros países’”
(MORAES, 2005, s. p.).
De acordo com os taitas ou xamãs Siona, a feitiçaria não faz
mais parte de sua ética xamânica (LANGDON, 2016b). Hoje em dia,
a ecologia parece ser a preocupação central dos taitas. Trata-se de uma
importante transformação histórica da autoridade dos xamãs, que não
é mais inteiramente baseada nos ancestrais e nos agentes imateriais,
embora ainda em boa parte, mas agora está fundamentada em uma
consciência cosmopolítica emergente, seguindo em particular as grandes
reformas constitucionais e o reconhecimento nacional e internacional
das culturas indígenas, que situa a autoridade dos xamãs e de forma
mais geral dos povos originários em relação à ecologia planetária.
Meu encontro com um kujá ou xamã Kaingáng em novembro
de 2019, no município de Ipuaçu, é significativo nesse sentido. Ele me
confidenciou que não concebia que todos os auxiliares dos xamãs, os
jãgré, fossem donos, mas no mesmo fôlego me revelou que seu jãgré é

18
Sapaim faleceu em 23 de setembro de 2017, em Brasília. Disponível em: https://www.
gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2017/nota-de-pesar-paje-sapaim-kamayura.
Acesso em: 8 nov. 2022.
60 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Gátãn, o dono da terra. Foi a primeira vez que conheci um kujá com tal
auxiliar e com uma consciência ecológica e política muito parecida com
a dos taitas Siona. É interessante ressaltar que Gátãn tem também a sua
contrapartida feminina, GáTãn-fi, o equivalente a “Terra mãe”. Estamos
frente a um aspecto-chave do xamanismo, que Jean nos ensinou durante
sua longa e fecunda carreira: “Os xamanismos hoje surgem e se recriam
constantemente em uma relação dialógica entre atores de um mundo
pós-colonial e de um mundo pós-moderno” (LANGDON, 2013, p. 31,
tradução nossa).19

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19
No original: “Shamanisms today constantly emerge and recreate themselves in a
dialogical relation between actors in a post-colonial and post-modern world”.
Os xamanismos hoje 61

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Esther Jean Langdon, o la
perseverancia de una etnógrafa
avant la lettre

Carlos Alberto Uribe

Bien considerado, el libro de Jean Langdon, La negociación de lo


oculto: chamanismo, medicina y familia entre los Siona del bajo Putumayo
(LANGDON, 2014), es sorprendente y revelador. Y es que, si se lee
bien, y para ello uno debe conocer de la vida y el periplo intelectual
de Jean Langdon, uno concluye que se trata no de un solo texto,
sino de varios textos superpuestos a la manera de un palimpsesto. Para
comenzar, la publicación en 2014 de la traducción española hecha por
discípulos colombianos en la editorial de la Universidad del Cauca, sita
en la señorial y aristocrática Popayán, no corresponde con la versión
original de 1974. Este último año es el de la presentación y sustentación
de la tesis doctoral en antropología de Langdon en la Universidad de
Tulane, Nueva Orleans, Estados Unidos. Empero, el texto de la tesis, en
inglés, es la base del libro bajo comento. Más aun, la traducción de la
tesis original constituye el cuerpo principal del libro en español. Pero,
y no es cuestión de fijar proporciones en las más de sus 300 páginas,
el libro es mucho más que eso. El libro es, como dije, un palimpsesto,
y aquí hay que descifrar y explicitar esas huellas de toda una vida de
trabajo intelectual que quizá el incauto dejará pasar de largo. Tal será mi
tarea, muy a la manera de una “deconstrucción” derridiana del texto de
referencia. En palabras de Peter Krieger (2004, p. 80), “la deconstrucción
exige la fragmentación de los textos y, en ella, […] detecta los fenómenos
marginales, anteriormente reprimidos por un discurso hegemónico”.
Empecemos por el principio, por un primer rastro, por la
presentación que de la traducción hace el colega de la Universidad del
Cauca, Hugo Portela Guarín. Portela Guarín (2014, p. 7) nos informa
que cuando él estuvo entre los Siona de Buena Vista en un trabajo de
“Construcción del Plan de Vida de su Pueblo”, en el mismo Buena Vista
donde Jean hizo su trabajo de campo, se tropezó con que los indígenas
Esther Jean Langdon, o la perseverancia de una etnógrafa avant la lettre 65

hablaban, “con sentimientos de gratitud y reverencia”, de una “Juanita”.


Esta Juanita, le confiaron los indígenas, llegó al bajo rio Putumayo a
comienzos de los años 1970. Juanita, “una gringa solitaria”, en palabras
de Portela (2014, p. 7), decidió quedarse a vivir en ese caserío, en los
márgenes del río, a 45 kilómetros abajo de Puerto Asís. Por cuatro años
Juanita ejerció allí como profesora de los Siona, “la primera maestra de
Buena Vista”, a la par que hacía los trabajos propios de una etnógrafa.
Además de las materias que la profesora Juanita enseñaba a los
indígenas, lectura y escritura, desarrollaba unos vínculos afectivos con
estas gentes que probaron resistir el paso de los años. Como que Juanita
permanentemente regresaba al caserío, a la vez que siempre fungía
(y funge) como mediadora de los Siona con el mundo de nosotros,
los de acá. La Juanita es, por supuesto, Jean Langdon, la autora de La
negociación de lo oculto que, nos informa Portela (in LANGDON, 2004,
p. 7), es un “producto de lo que ella vivió con la gente, y lo que captó en
las entradas y salidas al mundo siona por más de 40 años”; libro en el
que “da cuenta de las dinámicas sionas asociadas con la revitalización
del mundo chamánico”.
El título de este libro no es de ninguna forma gratuito. La
negociación de lo oculto. ¿Qué es lo que se oculta? O mejor, ¿qué es
lo que ocultan los Siona? ¿O son los antropólogos los que ocultamos?
¿O las antropólogas, como Juanita? Y, por último, ¿qué amerita una
negociación y con quién se va a negociar, si es que no se negoció ya?
Poco a poco iremos viendo tentativas de solución a estas preguntas.
Por lo pronto, hay un detalle que conviene explicitar, como lo
hace Jean. Y es que Juanita, a comienzos de los años 1970, no fue una
“gringa solitaria” entre los Siona, más allá de los estereotipos de género.
Porque en Buena Vista, la antropóloga tenía como vecinos, de forma
esporádica, según se colige de su texto, a una pareja de misioneros
protestantes evangélicos gringos y sus cuatro hijos, pertenecientes al
Instituto Lingüístico de Verano (ILV). Presente en Colombia desde 1962
por convenio con el gobierno nacional, interesado en contrarrestar la
centenaria influencia de la iglesia católica entre los indígenas, el ILV
fue siempre motivo de controversias en el país. En Buena Vista, la
familia evangélica se situó en las antípodas profesionales de Juanita.
Interesados en difundir los evangelios cristianos, el principal esfuerzo
de los protestantes era aprender la lengua para traducir al Siona la
palabra bíblica. Por tanto, la alfabetización de los indígenas era una tarea
prioritaria para sus desvelos evangélicos. Asimismo, la pareja misionera
prestaba servicios de enfermería y otras labores a los indígenas y
66 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

campesinos de los alrededores, en pro del “progreso” y de la “verdadera


fe”. Por lo menos, eso decían. Sin duda, una fuerte competencia para
Juanita en sus desvelos etnográficos y en no ser una mera intrusa
inquisidora, dilema compartido por quienes hacen trabajo de campo
entre comunidades indígenas (BELTRÁN, 2011).
En la etnografía de Langdon sobre los Siona, la presencia de
los misioneros es inconfundible. Así como la de sus pares cristianos, los
misioneros capuchinos, en el Putumayo desde finales del siglo XIX, y
empeñados en extender sus doctrinas en el territorio siona y en el de los
indígenas de las selvas aguas abajo del inmenso río. Para estos últimos, su
némesis eran los chamanes nativos – los “brujos de la selva”, campeones,
decían los curas, de las viejas idolatrías, y enemigos, por tanto, de
quienes sólo el dios judeocristiano vale como la verdadera deidad de los
efímeros mortales. Por su parte, el chamanismo como sistema médico
era, y es, el afán principal de la antropóloga. Cuando Jean llegó, ya
no había grandes chamanes entre los Siona. Los misioneros parecían
haber ganado la partida. El chamanismo siona, concluyó Jean, era “un
chamanismo sin chamanes”. Empero, y como una ironía histórica, el
ILV ya no está hoy en Colombia. Los frailes capuchinos, “siervos de
Dios y amos de indios”, para parafrasear a un célebre autor (BONILLA,
1969), también salieron de sus misiones en la Amazonía colombiana.
Los Siona ya tienen de vuelta su chamanismo con chamanes – claro,
chamanes de un nuevo tipo. Y Jean tiene un papel preponderante en esta
revitalización cultural de los Siona. Hay que añadir, además, que eso de
la desaparición de instituciones como el chamanismo indígena no es,
por cierto, asunto tan simple, a pesar de los desvelos de los misioneros
católicos y protestantes por erradicarlo.
Esta confesión de Jean sobre la presencia de miembros del ILV,
un tanto oculta durante su trabajo de campo, no aparece tan clara en
su informe doctoral de 1974. No es una sorpresa. El mismo fundador
del linaje etnográfico, el gran Malinowski, lo hizo en Kiriwina en los
albores de la revolución del trabajo de campo (JARVIE, 1964). Según
sus propias confidencias, que nunca esperó ver publicadas, Malinowski
sintió la presencia de los misioneros más de lo que reconoció en sus
Argonautas. De hecho, en su clásica introducción a esta última obra,
la formulación más precisa del canon etnográfico clásico, Malinowski
nos sermonea a sus descendientes sobre lo imperioso de “apartarse de
la compañía de los otros blancos y permanecer con los indígenas en un
contacto tan estrecho como se pueda” (MALINOWSKI, 1973, p. 24).
Separarse de este contacto, aún evitarlo, fue lo que hizo Jean; aunque
Esther Jean Langdon, o la perseverancia de una etnógrafa avant la lettre 67

en su etnografía no disimuló los cambios radicales que transformaban


a la sociedad indígena, la idea del “todo integrado” clásico guía la
organización de la representación etnográfica tradicional que la autora
nos regala de los Siona. Por ello, Jean advierte en el prólogo a la edición
de 2014 que muchos antropólogos pueden rechazar su etnografía,
porque no se basa “en la jerga y las teorías antropológicas más recientes”,
aunque de seguro los Siona la valorarán, empeñados en “recuperar su
memoria de una cultura y lenguaje, que parecen estar desapareciendo”
(LANGDON, 2014, p. 21).
La jerga antropológica vigente en estas épocas, ya lo sabemos,
puede convertirse en una pegajosa telaraña. El tema central de la
etnografía es el sistema médico de los Siona, “mejor concebido como
un sistema chamánico”, y analizar la interrelación entre sus prácticas
terapéuticas y la cosmología indígena (LANGDON, 2014, p. 23). La
perspectiva teórica que alumbra la pesquisa está informada por las
concepciones de Clifford Geertz, un autor estadounidense desde luego
muy influyente desde los años 60 del siglo pasado en la antropología
global, norte y sur. Al modo de Geertz, el sistema médico de los Siona
constituye un sistema compartido de símbolos y significados, que
resuena a la “descripción densa” y a la muy famosa nueva definición
de la cultura como una “telaraña” de significados, definición post-E.
B. Tylor que aparece en el libro La interpretación de las culturas
(GEERTZ, 2008).
Y entonces Langdon comienza su camino con un análisis de la
lengua de los Siona, sigue con temas de historia y poblamiento, pasa
a la vida económica y social, continúa con la familia y el ciclo de vida,
la organización sociopolítica y la cosmología de los indígenas. Ya
tiene todos los elementos para cascarle a la nuez del asunto: el yajé o
ayahuasca, Banisteriopsis caapi, el “bejuco del alma”, popularizado por el
etnobotánico Richard Evans-Schultes (EVANS-SCHULTES; RAFFAUF,
1994). Los cuatro capítulos finales del libro de Langdon, esos que tienen
que ver con la medicina del yajé, son así los que se ocupan del sistema
cultural que le da forma a la medicina tradicional de los Siona. Sólo que
los Siona de Langdon ya no tenían a la figura principal de este tipo de
terapéutica médica: los chamanes. Los grandes sabedores, los chamanes
más “pesados”, murieron, y sus descendientes fracasaron en medio de
las terribles guerras chamánicas, o por la presión de los misioneros.
Como lo confiesa Jean en su trabajo original de 1974, cuando ella llegó a
Buena Vista, tanto el taita Arsenio Yaiguajé, como su padre, el poderoso
cacique curaca Leonidas Yaiguajé, muy reconocido en la región durante
68 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

la primera mitad del siglo XX, habían muerto. El hermano de Arsenio,


Ricardo, el “mayor colaborador” de Langdon en su trabajo de campo
original, nunca logró alcanzar el grado de chaman tigre (yai), maestro
chamán, a pesar de que en los tiempos de Langdon era el único anciano
que se vestía con el traje ceremonial de los Siona. Su carrera ceremonial
como taita yajecero de los Siona se vio clausurada por las guerras
chamánicas emprendidas contra él por sus rivales, a más que el contacto
con “los blancos” hizo mella en sus poderes. Y es que, además, Ricardo
fue un informante de los misioneros lingüistas y prestó sus servicios
como traductor en Lomalinda, la base principal del ILV en las llanuras
del Meta, muy lejos del bajo Putumayo. En Lomalinda, le confió Ricardo
a Jean, un indígena Tukano del Vaupés “le había enviado rau, ya que era
sabido que los curacas de allí son muy poderosos” (LANGDON, 2014,
p. 220, énfasis del autor).
Por el camino del rau, entramos en el centro del interés de lo que
la autora denomina “la negociación de lo oculto”. El rau es uno y es
múltiple: en primer lugar, es la sustancia que el yajecero acumula dentro
de sí a medida que recorre el camino iniciático del yajé, y “equivale al
poder y el conocimiento que posee” (LANGDON, 2014, p. 153). Pero el
rau es un Phármakon, una sustancia que a la vez cura y a la vez envenena.
Como puede salvar una vida, puede traer la muerte. Entre los Siona,
aunque proporciona poder al yajecero, “también es susceptible de ser
‘dañado’ y puede así provocar enfermedades a su dueño” (LANGDON,
2014, p. 153). En segundo lugar, el rau es la sustancia “con la que se
cometen los actos de brujería”, los objetos que “el curaca envía para
atacar a su víctima” (LANGDON, 2014, p. 183, énfasis del autor)
– espinas, piedras, mariposas y otros objetos que como “dardos”,
impactan a sus víctimas, generando el caos de la enfermedad. Por último,
el rau es la enfermedad, tanto la enfermedad cuya causa es sobrenatural,
como aquella cuya causa es otra (LANGDON, 2014, p. 183). Y el yajé es
el remedio, es ëco. Y su consumo ritual, precedido por un taita yajecero,
por un chamán tigre, es la aproximación terapéutica requerida contra
el rau. Estamos así en el corazón del sistema médico de los Siona; en el
motivo principal de la reputación de sus chamanes, o taitas, como de
los grandes médicos indígenas de la selva, de esos anteriores a la vida
de Juanita entre los Siona, cuando sus grandes curacas habían desa-
parecido, en apariencia, y cedieron el lugar a taitas mestizos o de otros
indígenas del bajo Putumayo. Y también de la reputación de los “nuevos”
taitas Siona, de renovada fama, aquellos con quienes Jean reestableció
el contacto en 2011, “después de veinte años desde [su] última visita a
Esther Jean Langdon, o la perseverancia de una etnógrafa avant la lettre 69

Buena Vista, gracias a la colaboración y el esfuerzo de Hugo Portela,


profesor de la Universidad del Cauca” (LANGDON, 2014, p. 20).
No obstante, vamos por partes. Porque resulta que posterior a
su trabajo doctoral, los temas del sistema médico de los Siona fueron
elaborados por Langdon de forma sistemática en numerosos ensayos
y capítulos de libros. Son muchos, pero quiero apenas mencionar
dos ejemplos. El primero está en el libro que ella editó en conjunto
con Gerhard Baer, Portals of power: shamanism in South America
(LANGDON; BAER, 1992). El artículo se llama “Dau: shamanic power
in siona religion and medicine”, y en él Jean resume los resultados de su
tesis doctoral, con una acotación adicional: el rau de la tesis (y del libro
de las negociaciones) es aquí el dau del poder chamánico. El segundo
es un artículo publicado en Maguaré, la revista de antropología de la
Universidad Nacional de Colombia. Su título es “Configuraciones del
chamanismo siona: modos de perfomance en los siglos XX y XXI”, un
artículo recién publicado en 2020.
Este artículo de 2020 es muy significativo. Además de estar
escrito es un estilo muy libre, es una pieza etnográfica que da cuenta
de las transformaciones del chamanismo siona posteriores a la nueva
Constitución política de Colombia de 1991. Pero, además, contiene
revelaciones que muy pocas veces hacemos los antropólogos. Oigamos,
y esto merece ser citado in extenso:

Cuando dejé el Putumayo en 1974, pensaba que los siona se


asimilarían a la sociedad nacional colombiana; nunca imaginé
la extraordinaria revitalización de la identidad indígena y del
chamanismo que ocurrió en la década de 1990. En retrospectiva,
hoy me doy cuenta de que no entendí la identidad siona como
irreductible. La mimesis de formas coloniales fue una estrategia
performativa de supervivencia, en una zona de contacto en la que
los indios tenían poco poder y sufrían discriminación […], al ser
caracterizados como ignorantes, salvajes y como representantes
de un pasado incivilizado […]. Mi propia miopía me impidió
comprender la profundidad de la identidad indígena y la fuerza
del chamanismo como un signo diacrítico de diferenciación
cultural y como una importante fuente de revitalización étnica
[…]. (LANGDON, 2020, p. 30-31, nuestros énfasis).

Pienso que es inusual que una antropóloga o antropólogo con


un recorrido profesional y académico semejante al de Jean Langdon,
además de su gran reputación, haga estas confidencias en público. Que
70 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

alguien confiese que no entendió y que fue miope en la comprensión de


hechos desplegados en el trabajo de campo, solo lo puede hacer alguien
con el métier, el oficio, de Jean. Pero oigamos esto otro:

La mayoría de los curacas tiene mi edad y los conocí en la


década de 1970, pues eran los hijos y nietos de los ancianos
con quienes trabajé. Ellos se convirtieron en taitas, reanudando
las ceremonias colectivas de yajé, así como otras ceremonias
de curación y participando en las decisiones políticas […].
(LANGDON, 2020, p. 34).

Muy significativo, me parece. Porque en una profesión, y en unos


tiempos en los que se premia la juventud, la originalidad y ciertamente la
inteligencia, revelar una mayoría de edad y un reemplazo generacional
muestra un cierto talante diferente. Y es que Jean Langdon es esa clase
de persona: honesta y avant la lettre. En otro registro, sólo con el tiempo,
la experiencia y el perseverar en los quehaceres, lo oculto se va revelando
– sin necesidad de negociar nada.
Veamos estas revelaciones que Jean encontró en un simpático
“aquelarre” antropológico que tuvo lugar en Pasto, Nariño, Colombia,
en 2014, y al que ella le hizo su etnografía, en el artículo de 2020, con una
cierta picaresca. Empiezo por la etnografía. La ocasión fue la realización
del “IV Encuentro Internacional de Culturas Andinas”, cuyas jornadas
se realizaron en la Casona Taminango, un museo de arte y tradiciones
populares. El menú diario brindaba conferencias, exposiciones, venta
de artesanías y arte popular, tejidos, chaquiras, amuletos mágicos,
prácticas de sanación, rituales de limpieza y, por supuesto, mucho
yajé, muchas tomas de yajé y de otros psicotrópicos. De la narración
de Jean se desprende que los principales protagonistas eran los taitas
amazónicos y los taitas del valle de Sibundoy, incluidos los taitas Siona,
todos revestidos con sus vistosos trajes ceremoniales y sus largos collares
de cuentas y colmillos de jaguar y sus coronas de plumas. Completaba la
audiencia indígenas de otras partes del país, los Otavaleño del Ecuador
y los Mapuche de Chile. Para no mencionar las masas de antropólogos,
sociólogos y afines, estudiantes, artistas, artesanos mestizos, folcloristas,
partidarios de la Nueva Era. Todos en pos de la sabiduría ancestral
guardada en los pliegues de los ponchos a rayas que vestían en el evento
los indígenas tradicionales. La “ancestralidad” milenaria, que ahora
llaman. Y culmino la ambientación etnográfica con esta viñeta:
Esther Jean Langdon, o la perseverancia de una etnógrafa avant la lettre 71

Rituales más elaborados, comunes al circuito neochamánico


y que utilizan sustancias etnogénicas [sic] se llevaron a cabo
durante los nueve días y noches del evento, a un precio
moderado. Especialistas chamánicos vinieron desde México,
Ecuador, Perú, Brasil y de distintas regiones de Colombia, para
dirigir rituales con yajé, peyote, veneno de rana kambó, yopo,
rapé, coca (mambe), ambil y huachuma o cactus de San Pedro.
Miembros de la religión de ayahuasca brasileña Santo Daime
también realizaron ceremonias. (LANGDON, 2020, p. 38).

El punto que Langdon hace con esta descripción, muy similar a


la que un observador y observadora podría hacer de muchos eventos
globales centrados en el chamanismo y la ingesta de psicotrópicos,
especialmente del yajé o ayahuasca, es ilustrar cómo los Siona
recuperaron y revitalizaron su sistema chamánico y lo adecuaron al
neochamanismo emergente y sus diversas mixturas con la Nueva Era.
Para tal propósito, Langdon parte de la muy conocida obra del Michael
Taussig, publicada en 1987, Shamanism, colonialism and the wild
man. Taussig, de quien pronto oiremos más, opina que en el chamanismo
de nuevo cuño se incorporan redes de relaciones de poder y de
dominación que vinculan a indios con mestizos en el sur de Colombia, y
en general, en escalas mayores, con pueblos y países allende los confines
de las selvas de la Amazonía. Para Taussig, el indio amazónico y sus
prácticas rituales, vistos con los lentes coloniales y neocoloniales, concita
imágenes terroríficas cercanas a lo brujesco y demoniaco judeocristiano.
Empero, el indio también tiene el poder secreto de la curación y la
salvación merced a los arcanos del yajé y sus propiedades mágicas. “Las
prácticas chamánicas”, asevera Langdon en conformidad con Taussig,
“invocan imágenes poderosas, impulsadas por los miedos coloniales,
así como la resistencia a los miedos coloniales” (LANGDON, 2020,
p. 21). Lo interesante es que los Siona han sabido aprovechar la inflexión
histórica que hizo del antiguo y temido “brujo” de la selva, el chamán,
o mejor ahora, del taita, el sabio de la curación y el gran visionario de
la armonía con los ecosistemas. Esto forma parte, ya es bien sabido,
de la “protección de la diversidad cultural” y la “preservación cultural”
del indio y de lo indio “tradicional” en Colombia, y en otras partes,
procesos acompañados de la institucionalización del “nativo ecológico”,
las “autoridades tradicionales”, la “medicina tradicional” y nociones en
torno al patrimonio cultural, lo ancestral y la ancestralidad, entre otras
nociones (SARRAZIN, 2019).
72 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Ahora bien: como se infiere de una de las confesiones de Jean


que transcribí más arriba, el proceso de la revitalización de la identidad
y el chamanismo siona, tiene nombres propios y trayectorias vitales
específicas. Son por supuesto aquellos “hijos y nietos” de los ancianos
con los que Juanita trabajó a comienzos del decenio de 1970. Y entonces
saltan a la palestra nombres muy familiares para aquellos conocedores de
la escena yajecera neochamánica en este país. Sus identidades aparecen
como protagonistas de la adaptación renovadora siona en el escrito de
2020, con sus nombres y apellidos. Son personajes como Pacho Piaguaje y
sus hijos, entre ellos Felinto Piaguaje, varios nietos de Pacho, el hermano
de Pacho, y Juan Yaiguaje. De entre ellos resalta Pacho, quien, al decir de
Jean, antes de morir, en 2007, se había convertido “en el chamán más
conocido a nivel nacional y en patrimonio departamental y municipal”.
Como que desde por lo menos 1990, “ya viajaba, acompañado de
antropólogos y periodistas, a las grandes ciudades a dirigir tomas de yajé
para una amplia variedad de personas” (LANGDON, 2020, p. 35-36).
La riqueza del texto de Maguaré está en el epílogo de La negociación
de lo oculto, la capa más próxima en el tiempo del palimpsesto que
es este libro, donde Jean revela la trayectoria de su trabajo desde los
tiempos en que los Siona la llamaron Juanita. Todo comenzó en el valle
de Sibundoy, donde los taitas Inga y Kamentsá le indicaron a la joven
antropóloga que sus verdaderos maestros eran los taitas de la región
amazónica. A Puerto Asís, en el mítico río Putumayo, marchó Jean a
encontrar su destino con los Siona. Y a encontrarse con el largo linaje
de académicos estudiosos del yajé, el “bejuco del alma”, según la feliz
fórmula de Evans-Schultes y Raffauf (1994) – un linaje donde todos los
puestos de honor los ocupan hombres; hasta que llegó Juanita.
Ese linaje masculino de aplicados exploradores de los portentos
bio-ambientales, étnicos y culturales de la Amazonía se remonta hasta el
siglo XVIII, en tiempos del sabio alemán, el barón von Humboldt, y sigue
con Charles Darwin, Alfred Russel Wallace, Richard Spruce, Richard
Evans-Schultes, William S. Burroughs, Tim Plowman, Gerardo Reichel-
Dolmatoff, entre otros. El afamado explorador y antropólogo colombo-
canadiense Wade Davis, en su El río, exploraciones y descubrimientos en
la selva amazónica, nos detalla esta genealogía precisa. Este libro, por
lo demás, constituye un documento único. En el texto, Davis, a más de
clamar para sí un lugar en el linaje y de narrar sus trips, viajes, por el
territorio amazónico, revela asimismo su ego trip y hace un recuento
de su psychedelic trip, un viaje psicodélico empeñado en el consumo de
enteógenos como el yajé y las demás sustancias del repertorio ofertado
Esther Jean Langdon, o la perseverancia de una etnógrafa avant la lettre 73

en la Casona Taminango (DAVIS, 2001). De esto hay mucho en


el Putumayo, en el alto y en el bajo, como lo narra Langdon en su
epílogo; como, por ejemplo, se muestra en las aventuras yajeceras de
un periodista norteamericano, “un tanto chiflado”, en Buena Vista. Se
trata de Jimmy Weiskopf, “un antiguo hippy que estaba en busca de una
cura para las afecciones de sus pulmones, y en busca de un gurú. El
creía haber encontrado tal gurú en Pacho y lo consideraba ‘un ángel’”
(LANGDON, 2014, p. 265; WEISKOPF, 2002). El Pacho de esta anécdota
es precisamente Pacho Piaguaje.
En mi opinión, el trabajo de campo original de Jean en Buena
Vista representa la entrada de una mujer antropóloga en el antes
terreno casi exclusivamente masculino del campo chamánico. Su
experiencia acumulada entre los Siona, después de varias temporadas
de investigación, hizo de ella una experta en el chamanismo amazónico,
además de que, con su generosidad, sirvió de puente para que otros
antropólogos y antropólogas iniciaran sus propias incursiones. En el
epílogo, Jean confiesa que, así como Ricardo Yaiguaje fue el centro de su
tesis doctoral, ahora quiere “plasmar otras reflexiones sobre otro siona”
(LANGDON, 2014, p. 258). Ese Siona es nada menos que el “gurú” del
gringo, Francisco (Pacho) Piaguaje, casado con una de las hijas
del hermano de Ricardo, Arsenio, y perteneciente a una facción rival
entre los Siona, si se quiere, mucho más orientada hacia el mundo de
la sociedad nacional. Para presentar a Pacho, y situarlo dentro de otras
publicaciones antropológicas, Jean escribe lo siguiente en su epílogo
revelador de asuntos ocultos:

[…] se puede mencionar que Pacho era pariente de Salvador


Moreno el chamán mestizo hecho famoso por Taussig […] y
quien, para el tiempo de mi estadía con los siona, era acusado de
haber embrujado a Ricardo y a otras personas de la comunidad.
De hecho, Taussig hizo conmigo su primer viaje al Putumayo en
1972, después de que yo le contara acerca de la red chamánica de
mestizos e indios, entre el Valle del Sibundoy y las tierras bajas.
(LANGDON, 2014, p. 258).

La figura de Pacho ocupó parte de los intereses investigativos de


Jean, con posterioridad a su regreso a Buena Vista. La figura de este
indígena representa un buen ejemplo de los nuevos liderazgos indígenas
que en las últimas décadas se han desarrollado en Colombia. Además de
la reconfiguración del chamanismo siona. Inteligente, carismático, buen
hablante del español y familiarizado con el mundo de los “blancos”, Pacho
74 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

fue gobernador de la comunidad siona en el rio Putumayo, circunstancia


que le brindó la posibilidad de viajar más allá de los confines de la selva
putumayense y de empaparse con la política regional y nacional. Además,
Pacho hubo de lidiar con las perturbaciones que afectaron el Putumayo,
con posterioridad a la década de 1980. Pocas palabras concretan,
quizá, el pandemonio que se desató en la región en los últimos años
del siglo pasado, y que siguen vigentes en el cruel escenario de sangre
y conflicto violento que aún hoy muestra la geografía nacional en esas
áreas de frontera o de agudización de la guerra, después de la firma de
la paz con las Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia, FARC-
EP, en Cartagena en 2016. Estas palabras son narcotráfico, guerrilla,
paramilitares, petróleo, desaparecidos, desplazados. En suma, guerra
y dolor.
En este convulsionado escenario, Pacho Piaguaje supo proyectarse
como el gran chamán de los Siona y el summum del “indígena
patrimonial”, con resonancias nacionales e internacionales (LANGDON,
2014, p. 268). Eventos como su participación en la creación de la
asociación de médicos yajeceros de la Amazonia (UMIYAC) en un gran
encuentro de taitas de la Amazonia colombiana y, sobre todo, su buena
relación con áulicos de los portentos del yajé – antropólogos, periodistas,
miembros de organizaciones no gubernamentales, y en general,
intelectuales citadinos de clase media, nacionales e internacionales –,
hicieron de Pacho “el mayor y más respetado de los taitas de la etnia
siona” (LANGDON, 2014, p. 268).
A pesar de las dudas de Jean sobre las proezas chamánicas
de Pacho Piaguaje, una antropóloga colombiana, Alhena Caicedo-
Fernández, decidió seguir la pista de sus enseñanzas entre sus discípulos
no indígenas. Esos mismos discípulos quienes no sólo continuaron con
su legado, sino que son los corifeos principales en la entronización del
taita Siona en los altares de las redes neochamánicas y en los circuitos
terapéuticos del yajé en Colombia y allende. En su libro La alteridad
radical que cura, neochamanismos yajeceros en Colombia, Caicedo-
Fernández (2015), ella misma prosélita de Langdon, se centra en la vida
y milagros de cuatro nuevos taitas yajeceros que tomaron para sí la tarea
de ensanchar el campo chamánico en Colombia. Se trata, en primer
lugar, del artista plástico y profesor universitario Javier Lasso, bastión
de la maloca Cruz del Sur, en las cercanías de Pasto, cuyo maestro y
mentor fue el taita Pacho. Su maloca, saturada de íconos e imágenes
que recuerdan al taita Siona, “se convirtió en el principal espacio ritual
para los taitas indígenas pertenecientes al linaje siona de los Piaguaje”
Esther Jean Langdon, o la perseverancia de una etnógrafa avant la lettre 75

(CAICEDO-FERNÁNDEZ, 2015, p. 52). El segundo caso es el del


antropólogo William Torres, más conocido con el pomposo alias de
Kajuyali Tsamani, y quien se presenta como “mama kogui, yachac,
antropólogo Ph.D, shaman jaguar”. Torres también cuenta entre sus
maestros al taita Pacho y es el maloquero de la Casa del Jaguar, o Nabi-
Nuhué, en lengua Kogian de la Sierra Nevada de Santa Marta, situada
asimismo cerca de Pasto (CAICEDO-FERNÁNDEZ, 2015, p. 56). Los
otros dos casos son los del indígena Kamentsá del Putumayo, Florentino
Ágreda, y del supuesto indígena Carare Orlando Gaitán, hoy en graves
aprietos jurídicos por “acceso carnal con persona puesta en incapacidad
de resistir”.1 El siguiente aserto de la antropóloga Caicedo-Fernández,
compendia bien los empeños del cuarteto neochamánico:

Cabe resaltar […] que los cuatro se iniciaron con taitas de la


generación de los curacas yajeceros famosos que visibilizaron
el yajé en las ciudades en los años noventa, esto es, los abuelos
mayores de varios grupos del Putumayo, los primeros yajeceros
que salieron a la ciudad con el aval de especialistas no indígenas,
aquellos que figuraron en los medios de comunicación nacionales
e internacionales, aquellos que fueron informantes de la mayoría
de trabajos de estos temas. (CAICEDO-FERNÁNDEZ, 2015,
p. 65).

El cuadro que surge de estas trayectorias yajeceras entrecruzadas


muestra la presencia de dos sistemas chamánicos y neochamánicos
complementarios. El primero lo constituyen las redes chamánicas
que vinculan mestizos e indígenas de varios grupos étnicos del Valle
de Sibundoy y las tierras bajas, y en las que participan taitas Siona, y
más allá, puesto que también se tienden vínculos transnacionales que
conectan selvas y ciudades colombianas con muchos países del mundo,
incluyendo a Europa y los Estados Unidos. Por este sistema circulan, y
se nutren unos con otros, saberes y prácticas terapéuticas de muchos
tipos, unos provenientes del mundo amerindio, otros que pertenecen a
tradiciones orientales y aún a la medicina científica alopática occidental,
para sólo mencionar algunas fuentes de estos saberes. Todo este sistema
revela un pintoresco y ecléctico campo de culturas terapéuticas globales,
que se ofrece a nosotros, habitantes sufridos del Antropoceno, como

1
Disponible en: https://www.bluradio.com/judicial/orlando-gaitan-el-falso-profeta-
del-yage-que-termino-condenado-por-abuso-de-menores. Consultado en: 31
oct. 2022.
76 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

panacea que nos sane de la enfermedad, el sufrimiento, y en general, de


la hubris de este mundo descarriado.
El otro sistema lo conforman las redes que ligan aquellos
antropólogos y antropólogas interesados en dar cuenta del chamanismo
y sus desdoblamientos contemporáneos. Entre estos personajes se
establecen muchas conexiones de diverso tipo, algunas no tan sublimes o
altruistas. A su alrededor gravitan periodistas, exploradores, aventureros,
artistas, cinematografistas, en fin, toda una consunta multitud con
variopintos intereses. En el caso de los Siona, Esther Jean Langdon ha sido
a la vez continuadora de un largo linaje de eminentes investigadores del
yajé, de los grupos indígenas amazónicos y demás misterios de la selva,
y un nodo de origen generoso de numerosos especialistas de renombre
como Michael Taussig, amén de muchos antropólogos y antropólogas
colombianos colegatarios que han merecido la atención y la solidaridad
profesional de esta antropóloga avant la lettre.

Referencias
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religiosos entre los indígenas colombianos. Revista Colombiana de Sociología,
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Esther Jean Langdon, o la perseverancia de una etnógrafa avant la lettre 77

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WEISKOPF, J. Yajé: el nuevo purgatorio. Bogotá: Villegas Editores, 2002.
A corporeidade do incorpóreo:
reflexões a partir da noção
siona de “dau”

Laura Pérez Gil

Há frases, formulações de ideias particularmente felizes, que,


quando as lemos nos textos etnológicos, nos inspiram de uma forma
especial; fazem com que aquilo que encontramos durante o trabalho
de campo, de repente, como num passe de mágica, seja iluminado com
outra luz, tome um novo sentido e se torne mais elucidativo da realidade
sobre a qual estamos realizando a nossa reflexão. Em seu capítulo
etnográfico que integra o clássico e impreterível Portals of power, Jean
Langdon (1992) define o xamã como “a living embodiment of power”.
A ideia do xamã como corporificação vivente do poder é o resultado
da análise que a autora faz do conceito siona de dau. Como ela explica,
esse é um conceito-chave, complexo e com uma extensa variedade de
significados: dau pode designar determinadas doenças, pode se referir
à substância por meio da qual se realiza a feitiçaria, e é, também, uma
substância que cresce no interior do xamã e que constitui a base do seu
poder e do seu conhecimento.
Espalhado no corpo do xamã, como outras substâncias que o
constituem, o dau tem um caráter fisiológico, material. Sua extensão
resulta das experiências do xamã: à medida que, por meio da ingestão
do yagé ou da ayahuasca, ele visita os diversos níveis do universo;
ascendendo pelos cinco planos hierárquicos e conhecendo os povos que
os habitam, o dau cresce, se desenvolve. O conhecimento é acumulado
ao longo dos deslocamentos pelo “outro lado” – o invisível, que é
o domínio dos espíritos e onde operam um espaço e um tempo não
ordinários – por meio da experiência sensorial do ver e do escutar,
que se traduzem no pensar. O aprimoramento dessas capacidades
durante as sessões rituais de yagé alimenta o dau no corpo do xamã,
fundamentando assim a eficácia do seu pensamento, que é capaz,
então, de se transfigurar em ação (LANGDON, 2015). Nesse contexto,
A corporeidade do incorpóreo 79

o acúmulo e o desenvolvimento do dau operam uma transformação


ontológica, transmutando o “mero homem” em “cantador”, inicialmente,
ou “onça”, como são chamados os mestres-xamãs que atingem o grau de
poder mais alto (LANGDON, 2013).
Em certo sentido, o dau é um dispositivo que proporciona ao
xamã a capacidade não apenas para curar ou provocar doenças, mas,
sobretudo, para transitar pelo “outro lado” sem esquecer sua identidade
(LANGDON, 2013), ou seja, mantendo seu ponto de vista, nos termos
definidos por Viveiros de Castro (1996) para esse conceito. O trânsito
ao “outro lado” pode ocorrer voluntariamente, por meio da ingestão
de yagé, ou involuntariamente, quando uma pessoa, estando na selva,
é enganada por um espírito e levada para a sua aldeia. O conhecimento
– o pensar constituído progressivamente a partir das experiências
sensoriais – é o que permite ao xamã não tanto enxergar outras
subjetividades – já que qualquer um é passível de enxergá-las ao
ser levado por um espírito para o “outro lado” –, mas de dilucidar a
realidade do que está vendo e escutando. O dau, isto é, a materialização
corporificada desse pensamento, é o que possibilita a uma pessoa manter
o seu ponto de vista humano. Partindo da afirmação de Viveiros de Castro
de que o ponto de vista está no corpo, pode-se dizer que, entre os Siona,
o ponto de vista xamânico está no dau. E, aqui, o dau manifesta a sua
complexidade e, em certa medida, o seu caráter paradoxal. De um lado,
ele fornece o xamã da habilidade para se comunicar e influir nos espíritos,
se aproximando deles, assim como a capacidade para se transformar em
certos animais, principalmente a onça, usando a sua roupa (LANGDON,
2013). Assim, o dau é uma premissa tanto para interagir com outros como
para se transformar em outro. Em contrapartida, enquanto pensamento
corporificado, é, também, a condição de manter a sua humanidade
em determinados contextos de interação, evitando ser capturado por
pontos de vista outros. O corpo do xamã Siona opera, assim, como lócus
onde convergem pontos de vista a princípio irredutíveis e singulares
(CARNEIRO DA CUNHA, 1998).
O seu caráter material se manifesta, igualmente, nas ocasiões em
que é usado pelo xamã como objeto patogênico contra outras pessoas.
O xamã “trabalha” sobre a substância dispersa no seu corpo para formar
os dardos que lança contra a sua vítima e que uma vez extraídos do
corpo dela adotam formas como dentes de cobra, matérias podres ou
borboletas pretas (LANGDON, 1992).
Outro aspecto paradoxal do dau é a sua fragilidade. Ao mesmo
tempo que constitui a fonte da capacidade do xamã para operar
80 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

transformações no mundo, muito superior àquela de outras pessoas,


pode ser danificado com uma certa facilidade, pelo cheiro de mulheres
menstruadas, grávidas ou puérperas (LANGDON, 1992), mas também
intencionalmente por outros xamãs, em ocasiões inimigos, em outras
o próprio mestre que fica invejoso pelo progresso do discípulo. Vários
homens adultos afirmam ter abandonado a aprendizagem xamânica por
essas razões (LANGDON, 2014).

O incorpóreo corporificado
Substância cuja matéria prima é o ver/ouvir/pensar do xamã,
formada ao longo de um processo de aprendizagem cosmopolítica
guiada pelo mestre, o dau não se adequa propriamente ao conceito
geral de espírito-auxiliar, entendido como entidade-sujeito com agência
própria, mesmo que subordinada ao xamã, que opera nesse caso como
mestre (CHAUMEIL, 2010; FAUSTO, 2008). Isso não quer dizer, porém,
que não tenha nenhum tipo de agência. Como aponta Langdon (2014),
possui um certo grau de autonomia em relação às decisões conscientes
do seu dono. Um mau pensamento, mesmo sem a intenção de efetivar
uma ação, ou simplesmente o olhar, podem provocar a morte de outras
pessoas. Nesse sentido, se a ação xamânica decorre principalmente
de um uso consciente das técnicas desenvolvidas – o conhecimento
aprendido e a capacidade de comunicação com os espíritos –, o corpo
do xamã pode também ser a causa de atos involuntários derivados das
qualidades intrínsecas da substância dau que o compõe.
Nesse sentido, a noção de dau siona coloca em primeiro plano
um aspecto das corporalidades amazônicas que se manifesta em vários
âmbitos: a materialidade daquilo que, do ponto de vista ocidental, é
imaterial. Com efeito, a distinção entre materialidade e espiritualidade
é outro desses “predicados subsumidos nas duas séries paradigmáticas
que tradicionalmente se opõem sob os rótulos de Natureza e Cultura”
no pensamento multiculturalista e que são reembaralhados pelo
perspectivismo ameríndio (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 347-348).
O sangue é provavelmente a substância corporal que constitui
o caso mais representativo a esse respeito. Na sua análise comparativa
sobre sangue e gênero na Amazônia, Belaunde coloca em evidência,
através de casos etnográficos que se referem aos processos produtivos e
reprodutivos que envolvem um contínuo construir e destruir de corpos/
pessoas, que “as substâncias, os pensamentos, os afetos, os desejos, os
A corporeidade do incorpóreo 81

espíritos e os produtos do trabalho se interconstituem” (BELAUNDE,


2005, p. 38, tradução nossa).1
Para além do sangue, os sopros, os cheiros, as fumaças, os olhares
ou as exsudações corporais são outras tantas substâncias, emitidas por
corpos humanos, animais ou vegetais que com uma intencionalidade
mais ou menos definida, mais ou menos consciente, afetam os outros
corpos de formas decisivas. O fato é que substâncias corporais dos
mais diversos tipos possuem qualidades inerentes capazes de produzir
transformações em outros corpos.
Entre os Yaminawa,2 por exemplo, se atribui ao cheiro de
determinadas folhas a capacidade para acalmar a ira de uma pessoa ou
gerar um sentimento de atração em alguém desejado. Como na maioria
dos povos ameríndios, o contato com determinados tipos de substâncias
– por ingestão, por aspiração, por injeção ou pelo tato – é usado para
provocar transformações em si ou em outros, visando a propósitos
específicos. Em determinados contextos, a agência dessas substâncias
exige um controle que direcione as transformações para o objetivo
específico, associado a princípios regidos por uma conexão entre a ética
social e a estética. Um meio primordial para a realização desse controle é a
gestão alimentar. Por exemplo, um dos moradores de Raya3 me explicou
que em uma ocasião comeu inadvertidamente carne de boto, um dos
mais destacados seres xamânicos segundo a cosmologia yaminawa. Logo
depois, ele começou a ser perturbado em sonhos pelo espírito do boto
e adoeceu. O consumo de uma substância ou de uma parte corporal de
um ser de tal magnitude xamânica desencadeia processos de alteração
ontológica que, se forem bem direcionados, levam ao desenvolvimento
de qualidades xamânicas; se não forem controlados, levam à doença
e eventualmente à morte (PÉREZ GIL, 2010). Naquela ocasião, o
vínculo com o boto foi instaurado involuntariamente, por descuido, e
exigiu um processo de cura para desfazê-lo. Porém, nos processos de
desenvolvimento de capacidades e conhecimentos xamânicos, o que

1
No original: “las sustancias, los pensamientos, los afectos, los deseos, los espíritus y los
productos del trabajo se interconstituyen”.
2
Povo da família linguística Pano. Habita áreas localizadas nas proximidades da tríplice
fronteira entre o Acre (Brasil), o departamento de Ucaiáli (Peru) e o departamento
do Pando (Bolívia). Os dados que usarei aqui são relativos à comunidade de Raya,
onde realizei pesquisa de campo em várias estadias, entre 2000 e 2017.
3
Comunidade localizada no alto rio Mapuya, afluente do Inuya, que faz parte da bacia
do baixo Urubamba, na Amazônia peruana.
82 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

se pretende é, de fato, criar essas conexões com seres que são fonte
de conhecimento.
Os homens Yaminawa que me relataram suas experiências
para se tornar kuxuitia, possuidores dos cantos-sopros, explicam que
esses processos ocorriam de forma coletiva. Vários jovens, dirigidos
normalmente por dois mestres, se isolavam na floresta durante dois
ou três meses. O processo de aprendizado exigia vários ordálios,
que consistiam em se fazer picar por determinados tipos de vespas e
formigas. De manhã, saíam procurando essas vespas e formigas para se
fazer picar na boca e no peito e, voltando ao acampamento, tomavam
ayahuasca e caldo de tabaco. Entre as provações descritas, deviam
chupar uma substância extraída do corpo de uma jiboia/sucuri.4 Os
vários participantes capturavam uma e a golpeavam até que não podia
mais se mexer. Aproveitando a incapacidade do animal para se defender,
espremiam seu corpo. Primeiro eram retiradas completamente as fezes,
e depois extraía-se uma substância branca5 descrita como de cheiro e
sabor nauseabundos. Isso feito, soltavam a cobra, cujo bramido é en-
tendido como um kuxuiti (canto-sopro). Durante cinco dias, tomavam
ayahuasca, cantavam e cumpriam um rigoroso resguardo alimentar.
Após tomar a substância da cobra, ela aparecia em sonhos, ensinan-
do kuxuiti.
Essa prática reproduz, invertendo as posições de consumidor/
consumido, o mito que explica como os homens aprenderam a técnica
dos cantos-sopros kuxuiti, realizados sob efeito principalmente da
ayahuasca, e o uso das plantas medicinais disa. O mito conta que, tendo
ido pescar num lago, um homem foi enfeitiçado e devorado parcialmente
por uma sucuri. Apenas não o foi totalmente porque uma das suas pernas

4
Trata-se de um dos animais centrais do xamanismo yaminawa. Embora em certas
ocasiões e mitos se trate certamente da sucuri (runua), em outros casos parece
tratar-se de jiboias, mas a distinção entre as duas espécies é um tanto difusa entre
os Yaminawa e outros Pano. Uma jovem Yawanawa me explicou que a jiboia seria o
“filhote” da sucuri, não se tratando de dois tipos diferentes de cobras. Os Kaxinawa,
por sua parte, parecem estabelecer diferenças: enquanto a sucuri é julgada pouco
generosa, a jiboia (Yube) ensina verdadeiramente e é considerada o maior dos xamãs
(LAGROU, 2007).
5
Referem-se a essa substância como “awe ëdë”. Normalmente, ëdë designa substâncias
líquidas – como os alimentos preparados de forma que fiquem aquosos e os
sucos –, assim como algumas emanadas pelo corpo, como o leite materno, que é
chamado de xuba ëdë (“xuba” é o peito feminino). Em alguma ocasião, se referiram
em espanhol ao líquido extraído da jiboia como “su leche” (o seu leite) ou “awe sawa”
(as suas fezes).
A corporeidade do incorpóreo 83

ficou presa num daqueles emaranhados de lenhos que se ocultam sob as


águas e sobressaem aqui e acolá na superfície de rios e lagos amazônicos.
Desse jeito o encontraram seus parentes, que, preocupados com a
demora, tinham saído para procurá-lo. Abriram a sucuri, extraíram o
corpo do homem e o deitaram numa rede, aquecendo-o com brasas e
assoprando nele tabaco e pimenta. Conseguiram, dessa forma, fazê-lo
reviver, e ele pediu então para que seu irmão fizesse kuxuiti. Naquele
tempo, eles ainda não conheciam essa técnica. O homem escutava as
indicações da sucuri e os cantos-sopros que ela entoava, os reproduzia,
e, por sua vez, seu irmão imitava o que ele dizia. Assim aprenderam.
Igualmente, pediu a seu irmão, seguindo o conselho da sucuri, que fosse
ao mato pegar todo tipo de folha e trouxesse para ele. Conforme os
ensinamentos da cobra, ele ia explicando para que servia cada folha e
como devia ser aplicada.
O processo por meio do qual se extrai e se chupa a substância
da cobra é a atualização desse mito. Apesar de que, no caso, a cobra
não é morta, a ingestão da substância extraída produz efeitos análogos
à morte do animal no mito, cuja consequência é uma comunicação
intensificada com a sucuri. Em ambos os casos, essa conexão é induzida
por um ato de caráter canibal: a ingestão da substância, no caso da
prova, e a morte da sucuri no mito. É bem sabido que entre muitos
povos indígenas ameríndios, após o assassinato de alguém, seu sangue
se introduz no corpo do matador, e este deve realizar um período de
reclusão, observando diferentes cuidados para controlar as alterações
de forma a direcioná-las a objetivos produtivos e reprodutivos
(CONKLIN, 2001; FAUSTO, 2001). Entre os Yaminawa, a reclusão pós-
homicídio visa a uma espécie de “purificação”, expulsando o sangue
do inimigo e se apropriando da sua capacidade cinegética, awë bëtsa.
Os atos predatórios, entendidos a partir de uma lógica canibal na
Amazônia, instauram conexões fisiológicas e comunicacionais entre os
seres envolvidos, o que permite a transferência, voluntária ou não, de
qualidades, conhecimentos, afeições e habilidades.
Nesse sentido, os atos predatórios são um dos modos por
meio dos quais ocorre a modelagem sociofisiológica objetivando o
desenvolvimento de diversos aspectos da capacidade de ação das
pessoas. Aptidões associadas ao gênero, competências manuais e
estéticas, habilidades de comunicação social e afetos, entre outros, são
conformados ao longo da vida das pessoas por meio de ações rituais,
imposição de ornamentos, uso de plantas, ingestão de eméticos,
reclusões ou regras alimentares. Muitas etnografias sobre os povos
84 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

indígenas amazônicos têm registrado e refletido extensa e intensamente


sobre esses aspectos.
Os corpos xamânicos não fogem desses modos de produção.
No caso yaminawa, essa produção opera por dois efeitos interligados:
de um lado, pelo estabelecimento dessas conexões com seres que são
fonte de conhecimento; de outro, pela transformação fisiológica que
torna o corpo mais amargo e mais leve. É dessa forma que aquelas
pessoas que se empenham nos procedimentos xamânicos passam a ser
“corporificações vivas do poder”. Atendendo a esses aspectos, pretendo
apontar as convergências entre o conceito yaminawa de “ñuwë” e o de
“dau” siona.

Ñuwë
No xamanismo dos povos Pano, encontramos um amplo con-
junto de cognatos do termo “ñuwë”. Entre os Huni Kuin, Yube é uma
figura mítica em torno da qual se aglutina um conjunto de narrativas
que condensam enunciados sobre os poderes produtivos e reprodutivos
masculinos e femininos:

Do incesto, sua cabeça decapitada e sua saudade de um corpo


surge a lua; do seu corpo enterrado nasce o cipó; de seu namoro
na rede nasce a sucuri e desta sua pele nascem os desenhos. Yube
é para os Kaxinawa o ser humano prototípico, yuxibu nascido
homem, diriam os Kaxinawa; ele é o pajé por excelência, o
mediador que sabe da consubstancialidade do homem com a
cobra e com a lua, da temporalidade, dos fluxos e dos fluidos.
(LAGROU, 2007, p. 235, grifo da autora).

Também entre os Yawanawa, Yuve é um personagem mítico, fonte


de conhecimento xamânico. A narrativa que tem ele como protagonista
conta que, num tempo em que os seres humanos nada sabiam, se
juntavam e imitavam os animais tratando de criar algum pensamento,
alguma reza, mas sem sucesso. Do nada apareceu Yuve, que lhes ensinou
a tomar uma planta chamada kapi e a entoar os cantos xamânicos. Yuve é
um dos yuxin (espíritos) benfeitores convocados nos cantos-sopros para
auxiliar o xinaya6 nas suas ações de cura. O termo “yuve” é traduzido

6
Termo referido a um tipo de especialista xamânico. Significa “aquele que tem
pensamento”.
A corporeidade do incorpóreo 85

como “conhecimento”, qualificando, entre outras coisas, variedades de


substâncias xamânicas – por exemplo, uma variedade de ayahuasca,
yuve uni, e outra de datura, yuve xupa –, e designa igualmente o mestre
durante os processos de aprendizado xamânico, se colocando, dessa
forma, na mesma posição que o ser mítico (PÉREZ GIL, 1999). Já
entre os Nahua de Santa Rosa de Serjali, o termo “yofe” designa tanto
o curador como o feiticeiro, e, segundo Feather (2010, p. 269), significa
literalmente “aquele que vê” por sua capacidade não apenas de ver o que
vai acontecer, mas de discernir como as coisas são realmente.
Outra associação, embora menos direta, com o conhecimento
xamânico aparece no caso Marubo. Os yovehu são os espíritos-pajés,
hiper-humanos, associados às ações dos xamãs romeya, através dos
quais se expressam e atuam, e aos pajés rezadores aos quais auxiliam.
Por sua beleza ética e estética, e pelo tipo de relação que estabelecem
com os humanos, contrastam com os espíritos/espectros yochĩvo
(CESARINO, 2011).
Em outros povos Pano, entretanto, os cognatos se agrupam em
torno de sentidos associados ao “xamanismo escuro”. No caso dos
Shipibo, por exemplo, “yobé” se utiliza para designar os especialistas
xamânicos que, do ponto de vista do falante, fazem o mal: é o outro, o
não parente que se acusa de feitiçaria (COLPRON, 2004). Roe (1982)
aponta também outros sentidos do termo “yovui”: designa tanto a seiva
venenosa da samaúma,7 que é consumida e usada pelo feiticeiro como
projétil patogênico, quanto uma entidade “demoníaca” que habita na
garganta do feiticeiro, e este envia para atacar as suas vítimas. Esse
caráter agressivo se atribuía também antigamente ao yowïï amahuaca,
em contraposição aos hawa’ai, que curavam por meio dos cantos
(DOLE, 1998), e ao ñube uni kakataibo (DZIUBINSKA, 2014). Tanto
no caso shipibo como no amahuaca, o modo de ação próprio do yobé/
yowïï consistia em projetar sobre a sua vítima objetos patogênicos, o que
os habilita também a extraí-los.

7
As referências na etnologia pano sobre a associação entre sumaúma e feitiçaria,
ou sobre a sumaúma como ser predatório ou moradia de seres predatórios, são
numerosas (CALAVIA SÁEZ, 2006; LAGROU, 2007). Entre os Yaminawa, a
samaúma é a moradia de Xuba, uma entidade perigosa que, outrora, podia fazer
uma pessoa virar tsibuya, um tipo de xamã capaz de introduzir e extrair objetos do
seu corpo e dos corpos dos outros. É por ser moradia do Xuba que as sapopemas
dessa gigantesca árvore são lugares privilegiados para entoar cantos-sopros com a
finalidade de enfeitiçar alguém (PÉREZ GIL, 2006).
86 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

O termo “ñuwë”, entre os Yaminawa, congloba muitos dos


sentidos apontados por outros povos. Numa acepção imediata, se refere
a pessoas que adquiriram determinados tipos de capacidades. O tipo
de ação recorrentemente atribuída ao ñuwë é a de matar através do
sopro (huwãi ou xõwãi): mascava pimenta ou tabaco, passava as mãos
pelas axilas, impregnando-as do suor gerado pela pimenta, as juntava
em frente à boca e assoprava em direção à sua vítima. Muitos dos
meus interlocutores mais velhos afirmavam que esse tipo de sopro era
o modo de caçar de alguns dos seus pais, tios e avós. Eles iam para o
mato, assopravam no rastro dos animais, ou em direção a eles quando
os viam – tipicamente macacos e caititus –, e as presas morriam. Essas
descrições remetem diretamente à história da moça que se casou com
um jaguar: era uma menina chorona que foi raptada por um jaguar, e
ele a criou e se casou com ela. A família achava que o grande predador a
tinha devorado, mas um dia, quando o pai foi caçar, escutou barulho de
pessoa e acabou encontrando a filha. Graças a uma folha que a menina
passa no rosto dele, o homem pode ver o que para ele era o oco de
uma árvore como a casa da filha. O jaguar, genro do homem, era um
grande consumidor de tabaco e um grande caçador. Ele possuía umas
flechas com as quais picava as pegadas de suas presas, que corriam até
ele, morrendo aos seus pés. Apesar de ter reticências, ante a insistência
do sogro, o jaguar lhe empresta as flechas, mas o homem não as usa
corretamente, e elas acabam quebradas. Levados pelo medo que a onça
lhes infundia, os convizinhos do homem acabam matando o grande
felino, enfeitiçando-o por meio do sopro. Ao modo de muitos finais das
narrativas míticas, quem me relatou esta a concluiu fazendo a reflexão
de que, se não houvessem matado a onça, hoje as pessoas saberiam caçar
facilmente como fazia a onça com as suas flechas mágicas.
Nesta narrativa, o jaguar é descrito com duas das qualidades
principais atribuídas aos ñuwë: a de hipercaçador, que não precisa
perseguir as presas, senão que as atrai, sendo que a excelência cinegética
não deriva tanto dos seus atributos corporais (garras, dentes, rapidez,
olfato...) como de suas capacidades xamânicas; e a de consumidor
contumaz de tabaco. Embora no caso da narrativa ambas as qualidades
não apareçam explicitamente conectadas, na ação do ñuwë o estão de
forma precisa: mascar tabaco e assoprar sobre as pegadas ou em direção
às presas são atos necessariamente consecutivos. Por outro lado, o
tipo de técnica de cura que lhe é própria é a extração de sangue por
meio da sucção (kuui), enquanto masca tabaco, o que parece também
o aproximar do jaguar. É como se agressão e cura não fossem ações
A corporeidade do incorpóreo 87

de natureza diferente para o ñuwë: em ambos os casos se trata de uma


devoração, mas, enquanto ela é global no primeiro caso, no segundo
é uma microdevoração direcionada a um ponto específico do corpo
doente, sendo em ambas as circunstâncias atos predatórios próprios de
um corpo-jaguar (TAYLOR; VIVEIROS DE CASTRO, 2006). O exemplo
paradigmático de cura por sucção, própria do ñuwë, é a habilidade para
sarar as picadas de cobras venenosas.
O ñuwë nos aparece, a partir das lembranças, descrições e
narrativas míticas, como representativo de um modo de xamanismo em
que a caça tem precedência sobre a cura; a onça constitui o horizonte
do devir xamânico, e o tabaco é o principal operador que viabiliza o
processo transformativo.
Esse modo xamânico contrasta com outro, aparentemente mais
recente no tempo, cujo foco está nos processos de cura/adoecimento,
em que a figura que orienta o devir-xamã é a jiboia/sucuri, e a
substância que opera como chave para o desenvolvimento do poder e do
conhecimento é a ayahuasca. Esse modo converge em grande medida
com o “xamanismo de ayahuasca”, tal como definido por Gow (1996)
para se referir a um sistema que emerge no marco das missões em região
amazônica e se expande posteriormente rio acima para as cabeceiras
dos rios. O privilégio da ayahuasca e da cura, a horizontalização da
cosmologia, deixando o eixo vertical para ser ocupado pelas divindades
cristãs, a masculinização e a esoterização da prática, e o canto como
técnica principal de ação são algumas das características desse complexo,
cuja presença aparece numa boa parte do sudoeste amazônico indígena
e mestiço e que cada vez mais autores, a partir de suas etnografias de
povos específicos, consideram, se inspirando em Gow, como efeito do
contexto colonial (BRABEC DE MORI, 2015; SHEPARD, 2014).
Dessa maneira, no caso dos Yaminawa, um complexo de
xamanismo – representado pelo kuxuitia e cujos pontos densos são
a cura, a combinação entre ayahuasca e tabaco fumado, a cobra e o
canto – parece deslocar outro mais antigo em que a caça e a guerra,
a projeção de objetos patógenos e a sucção, o tabaco ingerido e o toé,
e a onça junto com outros seres da floresta (e não dos rios), eram os
ingredientes que pautavam o sistema (PÉREZ GIL, 2006). A figura do
ñuwë, própria desse segundo xamanismo, parece ter ficado numa posição
de transição. Apesar de ser caracterizado, recorrente e insistentemente,
como caçador e consumidor de tabaco – mascado ou ingerido, e não
fumado –, algumas pessoas me disseram que também tomava ayahuasca
e podia usar os kuxuiti (cantos-sopros) para curar.
88 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

O modo de matar do ñuwë por meio do sopro não se aplica


apenas à caça enquanto atividade produtiva masculina, mas aponta
também para seu aspecto mais deletério. Falando sobre os ñuwë, meus
interlocutores introduziam sempre relatos curtos de situações que eram
ilustrativas da sua letalidade.

Um ñuwë queria transar com uma jovem, mas ela o rejeitou.


O ñuwë ficou com raiva dela. A mulher correu e entrou na sua
casa. “Por que você entrou aqui? Eu vou te matar com feitiço,
porque você não quis transar comigo.” Ele entrou na casa dela
para fazer feitiço. “Eu não quero ficar com você.” O ñuwë queria
assoprar nas pegadas dela, mas a jovem foi atrás de outras
pessoas. Finalmente, o ñuwë não assoprou, porque senão ele
teria matado todas as pessoas atrás das quais foi a moça. Quando
o ñuwë assopra sobre a pegada de uma pessoa, ele a mata.
É imediato: quando a pessoa chega à sua casa, morre. Estando
com boa saúde, morre; enquanto dorme, ela morre. (Narrador
Waxapa, tradutor Xamoko, Raya, 1 fev. 2001).

Provocar a raiva de alguém envolve sempre algum grau de risco, já


que implica um estado de descontrole racional-emocional que costuma
ser a causa de uma ação agressiva, especialmente se desencadeado
por uma atitude classificada como “mesquinha” (PÉREZ GIL, 2020);
mas, quando o ofendido é ñuwë, o perigo aumenta exponencialmente.
O ñuwë participa, nesse sentido, do polo semântico associado ao
dark shamanism (WHITEHEAD; WRIGHT, 2004), que, como vimos,
determinados cognatos do termo possuem entre alguns povos Pano. De
fato, nas etnografias sobre os Yaminawa, esse é um dos sentidos que se
destaca. Townsley, que trabalhou com os Yaminawa no rio Juruá, no rio
Mapuya e nas proximidades de Sepahua, também registra um cognato
do termo em questão, “yowën”, que designa o xamã, envolvendo tanto
a cura como a agressão. Apesar de a maior parte dos homens aspirar a
adquirir algum grau de poder e conhecimento xamânicos e de os jovens,
no desabrochar da puberdade, serem iniciados no consumo da ayahuasca
e nos koshuiti (cantos-sopros), que constituem o âmago da prática
xamânica, apenas existiria um yowën por aldeia (TOWNSLEY, 1988).
Os Yaminawa radicados nas cabeceiras do rio Acre (Brasil), da sua parte,
reconhecem dois tipos de especialistas: o koshuitia e o ñiumuã. A segunda
dessas categorias, da qual não existe mais nenhum representante, se
caracteriza por possuir um grau de poder mais alto e pela letalidade
de suas ações (CALAVIA SÁEZ, 2006). Essa mesma dicotomia aparece
A corporeidade do incorpóreo 89

entre os Yaminawa da Bolívia, que fazem a distinção entre o cushuwea,


cuja prática está voltada principalmente à cura, e o yoeman, que possui
uma conotação negativa (FERNANDEZ ERQUÍCIA, 2005).
A referência ao caráter destrutivo da prática xamânica, que
parece portar o termo entre os grupos que receberam o etnônimo de
Yaminawa, deve ser nuançada. Aspectos destrutivos e produtivos se
encontram intimamente entrelaçados. O ñuwë, segundo os Yaminawa
de Raya e do Juruá, mata com o sopro, com o simples olhar, e a morte
acontece de forma quase imediata. Mas há outros sentidos para além
desse. De forma análoga aos Yawanawa, o ñuwë yaminawa se refere
também a quem ocupa a posição de mestre. É ele quem dirige o
processo de aprendizado, indicando qual substância deve-se ingerir
a cada momento, levando os jovens cada manhã para procurar
determinadas formigas e vespas para se fazer picar, dizendo o que
podiam ou não comer e aplicando métodos de cura neles quando
adoeciam por causa da rigorosidade e da dureza dos procedimentos. Os
ñuwë transmitem conhecimentos e cuidam dos iniciandos, aliviando
dores e mazelas. São a fonte de um saber que permite, especialmente
aos homens,8 desenvolver determinadas capacidades que são – ou
eram – consideradas necessárias para o adequado desempenho das
suas responsabilidades familiares e sociais.
Nesse mesmo sentido, determinados seres de magnitude
xamânica extraordinária, tais como a jiboia/sucuri, o boto ou a lua, são
considerados ñuwë. A sucuri/jiboia protagoniza várias narrativas que
tematizam os processos de aquisição e transmissão de conhecimentos
xamânicos. Uma das principais foi aquela do homem semidevorado
por uma sucuri, a que fiz referência anteriormente. Em outra narrativa,
um avô-sucuri, qualificado de ñuwë, ensina seu neto a realizar a
dieta do matador (ibi saba), que tem por efeito incrementar a capaci-
dade cinegética.9

8
A prática xamânica não era, de jeito nenhum, exclusiva dos homens. Embora
após o contato permanente com a sociedade regional o envolvimento feminino
com o xamanismo se restringiu e se transformou, são muitos os casos que me
foram relatados de mulheres que tomavam ayahuasca e outras substâncias, que
participavam ativamente nos rituais de cura, que se faziam picar por vespas e
formigas etc. A diferença em relação aos homens é que, enquanto o aprendizado
deles era coletivo e praticamente compulsório ao chegar à adolescência, no caso
delas era individualizado e arbitrário, dependendo em grande medida do incentivo
de pais, mães e maridos (PÉREZ GIL, 2006).
9
Trata-se da história de Kuushdawa ou Kukushnawa, segundo as versões existentes
(CALAVIA SÁEZ, 2006; PÉREZ GIL, 2006).
90 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Igualmente, existem dois outros mitos que indicam a sucuri


como a fonte do conhecimento sobre a ayahuasca. Um deles é a história
do povo cujo chefe, definido também como ñuwë, foi enfeitiçado
por uma sucuri-tracajá e subiu ao céu. Antes de morrer, avisou aos
seus para bater ao redor da casa, que, depois da morte, começou a se
elevar, com todas as pessoas dentro, impulsionada pela voz do ñuwë.
Grande parte das versões pano dessa história relatam que a ayahuasca
nasce do corpo enterrado do chefe, e se estabelece uma conexão entre
o consumo dessa planta, a transformação dos corpos, que se tornam
leves, e a subida ao céu. Na versão que registrei em Raya, a ayahuasca
não nasce propriamente do corpo do chefe, mas é uma das suas pernas,
que se transforma em cipó de ayahuasca, enquanto a outra se torna em
perna de queixada. Num certo sentido, essa dupla transformação parece
condensar uma oposição entre xamanismo e “a-xamanismo”, ou seja,
entre aquilo que se deve consumir e o que se deve evitar em relação a
um devir xamânico. Porém, pode haver uma outra leitura cuja chave
não seja uma oposição, mas que aponte a centralidade do coletivo: não
apenas o consumo de ayahuasca era antigamente coletivo, mas o termo
que designa esse mito, hudihu, se refere a “aqueles que vão juntos, em
manada”, e a representação paradigmática dele são as queixadas.
Uma última história é aquela referida ao homem que se casa com
uma mulher-sucuri e aprende a tomar ayahuasca embaixo das águas,
com os afins. Como aponta Calavia Sáez (2006, p. 326), o relato é “um
jogo de alternância de pontos de vista”: se a planta que a mulher-sucuri
passa no rosto do amante permite a ele viver no fundo das águas e ver
seus afins como humanos, assumindo o ponto de vista da sucuri, a
ayahuasca o faz reassumir seu ponto de vista humano e, na sequência,
começar a sentir saudades da família que deixou. As versões yaminawa
terminam com o homem voltando para sua família humana; na versão
sharanahua (DÉLÉAGE, 2009), essa volta provoca a cólera da família-
sucuri, de forma que o homem e a sua família devem fugir para longe
das águas, situação que se estende no caso da versão Huni Kuin, já que
o filho-cobra do homem se vinga devorando-o. Esse episódio do mito é
precisamente a narrativa yaminawa anteriormente mencionada em que,
por meio do homem semidevorado, a sucuri transmite os conhecimentos
que tornam eficaz o consumo da ayahuasca. No mito Huni Kuin, o
homem morre, e de seu corpo enterrado surgem várias classes de cipós
de ayahuasca (LAGROU, 2007). O nome desse homem é precisamente
Yuve (CAMARGO, 1999), apontando para a sua identificação com a
cobra e enfatizando seu papel como mestre das outras pessoas.
A corporeidade do incorpóreo 91

Chefia e xamanismo
Embora de uma forma menos acentuada que a sucuri, o boto é
igualmente associado à prática xamânica. Dele se diz também que
é ñuwë. Uma breve história que me relatou Xawaxta certa feita começa
assim: “Boto era ñuwë. Morava dentro da água. Ele bebia ayahuasca den-
tro da água. Saía à terra e convidava as pessoas para tomar ayahuasca para
que fossem pajés que nem ele. Assim, ensinava os homens”.
Ainda que sua presença na mitologia e no xamanismo pano
seja menor que o da sucuri, esse cetáceo de águas doces tem especial
destaque no caso shipibo, pois se trata de um ser de grande potência
xamânica e age frequentemente como espírito auxiliar (LECLERC,
2003). Porém, me interessa destacar outro aspecto. Além de ñuwë, o
boto (ëdë dawa) é o dono dos objetos dos brancos, notadamente dos
instrumentos de ferro. O relato mítico com o boto como protagonista
que me foi relatado com mais frequência, e por diferentes pessoas, conta
a história de um homem que, durante uma expedição para obter pedras
com as quais faria machados, é abandonado pelos seus primos numa
paliçada no meio do rio. A paliçada era, na verdade, a lixeira da casa
dos botos, e, quando a mulher-boto escuta o homem se lamentar, se
apresenta ante ele e, pelo nome, o reconhece como parente do marido.
Ela o faz cheirar uma planta que lhe permite entrar na sua casa no
fundo das águas. Antes de ajudá-lo a sair do rio para voltar à sua casa,
o boto o presenteia com muitas ferramentas de metal. Ele se comporta
tipicamente como um verdadeiro chefe, um xaneihu, que se caracteriza
principalmente pela sua generosidade.
A caracterização do boto como chefe é reforçada por outra
história. Nesse caso, um jovem boto é sequestrado por um homem que
quer torná-lo seu genro. Apesar de um primeiro momento de sobressalto,
o boto aceita encantado casar-se com as duas filhas do homem e protege
os seus parentes por afinidade dos ataques do seu avô, que costumava
capturar as crianças para transformá-las em banquinhos para se sentar.
A poligamia, o carisma com que é descrito na história e a proteção da
sua família são qualidades associadas à chefia. Olhados em conjunto, os
relatos revelam o boto como uma figura que condensa qualidades tanto
do chefe como do xamã.
Embora alguns autores tenham apresentado modelos sociopo-
líticos para os Pano nos quais chefe e xamã aparecem como figuras
contrastantes e excludentes (DESHAYES, 1992; TOWNSLEY, 1994),
92 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

encontramos numerosos casos em que ambos os atributos coincidem


na mesma pessoa (CARID NAVEIRA, 1999). No caso yaminawa, eu
diria que essa coincidência não é contingente. Pelo contrário, existe uma
continuidade conceitual entre xaneihu e ñuwë que se fundamenta em
qualidades inerentes a ambos.
O xaneihu, literalmente “dono da maloca”, é descrito tipicamente
como a figura que, sem qualquer tipo de coação, incentiva as outras
pessoas a realizarem uma ação coletiva para o bem comum – construir
a maloca e fazer um roçado –, organiza o trabalho grupal e redistri-
bui o fruto deste. A capacidade para se tornar um centro gravitacional
para o qual as agências das outras pessoas se sentem atraídas e se
organizam, de forma a constituir, ao menos temporariamente, um co-
letivo, é aquilo que institui um xaneihu. Em certo sentido, o coletivo
e o xaneihu se constituem mutuamente. As qualidades com as
quais se descrevem as pessoas que ocupam o lugar de xaneihu são a
generosidade10 – ele é oposto à figura do mesquinho, yuwaxi (PÉREZ
GIL, 2020) –, a capacidade para organizar o trabalho coletivo de forma
a gerar abundância e a preocupação por cuidar daqueles que estão ao
seu redor, assim como saber defender e velar pelos interesses comuns,
especialmente em relação aos brancos.
Ao falar dos ñuwë, especialmente em referência aos processos
de aprendizado, eles aparecem com muitas das qualidades do xaneihu.
Em primeiro lugar, em ambos os casos, são descritos sempre em
duplas: normalmente, quando se fala dos xaneihu na antiguidade,11
eles eram sempre dois; e, quando os homens me descreveram os seus
processos de aprendizado xamânico, também eram dois ñuwë os que
assumiam a direção. Essa característica os opõe à figura amoral do
yuwaxi (mesquinho), que recusa dar o que lhe é pedido e que come
sozinho – impossível não pensar nas reflexões guarani-clastrianas sobre
a malignidade do Um. A generosidade proverbial do xaneihu, que se
manifesta na retribuição dos frutos do trabalho coletivo – dos produtos
do roçado, mas também dos pagamentos dos madeireiros após o contato
permanente –, no caso dos ñuwë se evidencia na transmissão das
técnicas para agir xamanicamente. Se os cantos-sopros são as possessões

10
Essa conexão é tão intensa que, para se referir a alguém generoso, mesmo que não
ocupe um lugar de chefia, se usa o termo “xaneihu”.
11
Esse fato certamente faz pensar no sistema de metades que foi descrito para os
Yaminawa (TOWNSLEY, 1988) e outros Pano próximos; porém, nas informações
que registrei não há referências a esse sistema.
A corporeidade do incorpóreo 93

mais prezadas de uma(um) xamã, tanto que consistem em repositórios


do seu conhecimento e em veículo do seu poder (TOWNSLEY, 1993),
ensinar essa e outras técnicas é um ato intrinsecamente generoso que
fornece àqueles que aprendem a capacidade para poder cuidar de si
e de suas famílias. De outro lado, se os xanëihu organizam o trabalho
produtivo, cabe aos ñuwë, como mencionei acima, conduzir o processo
de aprendizado. Se a consequência da orientação dos xanëihu é a
fartura, a dos ñuwë é propiciar qualidades socialmente necessárias,
principalmente masculinas. Nesse sentido, a contribuição de ambos é
essencial para a produção continuada de pessoas morais.
Com essas considerações não quero negar o aspecto escuro dos
ñuwë. Não há qualquer dúvida de que a eles se atribui uma potência
letal que pode ser direcionada tanto contra seus inimigos como contra
os seus convizinhos. Porém, de um lado, os julgamentos em relação a
essa figura não são absolutos, senão que se referem a ações concretas
e ao posicionamento de quem faz o julgamento em relação a si
mesmo ou aos seus próximos. Em última instância, são relacionais e
altamente contextuais (LANGDON, 2004). De outro, essas ações não
são necessariamente negativas e prejudiciais para os outros – nesse
ponto, o conceito se afasta dos sentidos dados por outros Pano, já
que seu poder é também direcionado à cura e à produção moral de
pessoas. Frequentemente, quando me falavam dos ñuwë, as pessoas,
especialmente os homens, o faziam com admiração; uma admiração
que sempre interpretei como derivada da eficácia e da potência das
suas ações.

O poder feito corpo


Apontei até agora sentidos do termo “ñuwë” quando é usado para
se referir a tipos de pessoas, mostrando como aspectos que marcam o
significado dos diferentes termos no universo pano se entrelaçam no
caso yaminawa, o que faz dele um conceito multifacetado, provavelmente
um dos mais complexos do xamanismo desse povo. E, ainda, seu uso
não se esgota aí.
Além de se referir a um tipo de pessoa com determinadas
qualidades xamânicas, o termo se refere a essas qualidades. Diz-se que
alguém é ñuwë, mas também que alguém tem ñuwë, envia ñuwë, faz
ñuwë ou perde ñuwë. De fato, se tornar ñuwë envolve um processo de
acumulação e gestão de ñuwë que é longo, continuado e com momentos
94 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

de intensidade acentuada. Mencionei ao longo do texto que se fazer picar


por vespas e formigas e consumir determinadas substâncias amargas
faz parte do processo de desenvolver qualidades xamânicas. O cuidado
alimentar, a limitação das relações sexuais e sociais, além do contato
corporal e onírico com seres de magnitude xamânica, são alguns outros
aspectos desse processo. Tonoma me deu a seguinte explicação quando
perguntei sobre o termo:

Ñuwë, quando a gente consome rubë txatxi [caldo de tabaco]


com esse aí faz ñuwë. [...] com yunẽ [Brunfelsia grandiflora],
também tem que tomar para fazer ñuwë; mistura yunẽ com água,
o bebe, e depois disso, rubë txatxi, aí sim, já ñuwë, já está ñuwë.
Bebe ayahuasca, vespa também, anĩ [tipo de formiga] também se
faz ferrar, por aqui, formiga também; pucacura [tipo de formiga],
também tem que se picar com esse, é para fazer ñuwë, para ser
brujo. (Relato de Tonoma, Raya, abr. 2001).

Vir a ser ñuwë exige a produção ativa de ñuwë. Vimos que, no


caso dos Siona, o dau, enquanto substância constituinte dos corpos
xamânicos, se gera ao longo das sessões de ayahuasca, quando se
visitam os diferentes planos do universo e se conhecem os diversos
seres que neles habitam. No caso dos Yaminawa, o ñuwë parece ter um
caráter mais fisiológico e “sapido-lógico” (ERIKSON, 1996). A mesma
lógica se aplica em relação ao kuxuitia, cuja técnica característica é o
canto-sopro, entoado basicamente durante sessões de ayahuasca. No
caso, há também uma acumulação de ayahuasca e tabaco e a aplicação
continuada de aguilhoamentos de insetos.
No processo de desenvolvimento de qualidades xamânicas, a
introdução no corpo de substâncias de outros seres desencadeia dois
efeitos entrelaçados e paralelos. De um lado, como apontei ao longo
do texto, a introdução no corpo de substâncias impregnadas de yuxin12
instaura um vínculo com entidades de magnitude xamânica que, se
bem direcionado por meio da gestão alimentar e sexual, propicia a
transmissão de conhecimentos (os kuxuiti, por exemplo).

12
Termo complexo da cosmologia pano. No caso Yaminawa, pode designar os
“espíritos”, mais ou menos bem definidos e com um caráter intencional específico
(têm yuxin todos os animais e plantas, que em determinados contextos interagem
com os humanos; os espectros das pessoas falecidas que assombram os vivos; as
almas dos mortos que vão para o céu); ou pode designar uma espécie de agência,
mais ou menos concreta e intencional, presente nas substâncias dos seres vivos.
A corporeidade do incorpóreo 95

De outro, se produz uma espécie de mutação fisiológica, por


meio da qual o corpo se embebe das propriedades sensíveis das
substâncias consumidas. O amargor é uma das qualidades próprias
das substâncias que produzem corpos xamânicos.13 Assim, as pessoas
lembram que, ao passar ao lado de um ñuwë, era possível perceber o
cheiro amargo que emanava dele. Ou dos kuxuitia se diz que são como
as vespas (wida) pelas quais se fazem aferroar, que picam e vão embora
rapidamente. A pungência não apenas está associada conceitualmente
ao amargo e tem um caráter vigorante (ERIKSON, 1996); é também paë,
potente e capaz de produzir efeitos nos outros corpos, como a ayahuasca
e a caiçuma, que embriagam, ou a voz do ñuwë, que na narrativa
anteriormente mencionada faz a maloca, com seus habitantes dentro, se
elevar até o céu. Assim também as ferroadas de formigas e vespas tornam
a voz do kuxuiti potente e capaz de afetar o estado de saúde dos outros.
Dessa forma, por meio do consumo cumulativo de substâncias amargas
– tabaco, toé, yunẽ, cacto txai etc. –, o pensamento, a voz e o sopro
do ñuwë, cuja potência é aumentada ao atravessar o suor que impregna
as mãos, têm efeitos inelutáveis sobre os outros quando são projetados
ao assoprar sobre pegadas, olhar intencionalmente alguém ou entoar
os cantos-sopros. A alteração ontológica, sistemática e direcionada, que
se opera ao virar ñuwë ou kuxuitia, consiste na apropriação, absorção
e acumulação de atributos e feições de outros seres que possibilitam
modos específicos de agência. Em certa medida, determinados modos
de ação instituem e são intrínsecos a tipos particulares de pessoas:
ñuwë é, a um tempo, um modo específico e potente de agência e a sua
corporificação humana.

Transformações contemporâneas
Se o ñuwë se “faz” por meio do consumo reiterado de determinadas
plantas, que permite a acumulação de amargo (bua) e de vínculos com
seres de magnitude xamânica, é lógico pensar que ele pode também
se “desfazer” ou perder. Seu enraizamento somático exige, de fato, um
cuidado de si – no sentido foucaultiano da expressão – que deve ser, em

13
A oposição entre o amargo e o doce, bem como o papel do amargo na constituição
de corpos masculinos e de qualidades xamânicas, tem sido amplamente debatida
para o universo pano e se reflete na centralidade de conceitos associados ao amargo
no xamanismo – muka, bua, tsibo. A esse respeito, ver entre outros, Erikson (1996),
Lima (2000) ou Pérez Gil (2006).
96 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

grande medida, um cuidado corporal zeloso e escrupuloso. Da mesma


forma que o xamã Siona pode perder o dau, o ñuwë Yaminawa pode
perder seu... ñuwë. Embora essa perda não seja atribuída à intenção
de outro xamã, e sim à displicência da pessoa, podemos identificar no
ñuwë a mesma fragilidade que Langdon aponta em relação ao dau.

Quando alguém está aprendendo, pode comer carne, mas não


come doce, não toma caiçuma preparada por mulheres,
não come sal. Pode comer jabuti, mas não seus pés: pé de jabu-
ti não pode comer; de tracajá também não. Macaco preto pode
produzir dor de cabeça. Se comermos pé de jabuti, isso tira nosso
ñuwë. Quando alguém come açúcar, mel... logo o nosso ñuwë vai
embora, já não dá mais para aprender. (Relato de Tonoma, Raya,
abr. 2001).

Ao falar sobre os ñuwë, os Yaminawa o fazem se referindo ao


passado. Dependendo do interlocutor, alguns homens são apontados
ainda como ñuwë; porém, o mais frequente é escutar que já não
existem. Do mesmo modo, embora muitos dos homens adultos com
quem conversei afirmem terem passado durante a adolescência por
um processo de aprendizado de kuxuiti, se submetendo às picadas de
insetos, tendo ingerido a “merda” da sucuri e consumido de forma
continuada ayahuasca, tabaco e outras substâncias, poucos são
reconhecidos como kuxuitia. De forma geral, se atribui à comida, aos
modos de sociabilidade incorporados após o contato – notadamente
às festas em que se consomem bebidas alcoólicas – e ao açúcar a
diminuição geral das qualidades xamânicas. Seus efeitos prejudiciais
não se restringem aos corpos individuais, senão que têm implicações
coletivas: a mudança na alimentação e nos costumes afeta o grupo
como um todo. Em várias ocasiões escutei, com um tom de lamento
mais ou menos acentuado, dependendo do interlocutor, comentários
que associavam a diminuição do poder xamânico com o hábito de
beber caiçuma – aprendido recentemente com os Ashaninka e os
Amahuaca – ou cerveja. A despeito disso, seria um erro interpretar
esse fato em termos de “perda cultural”, e certamente não é assim
como o percebem os Yaminawa. Se o ñuwë, enquanto um determinado
tipo de especialista, já não existe, enquanto conceito que expressa
uma determinada forma de entender a agência e devir xamânicos
continua operativo. As práticas e os modos cosmopolíticos de se
relacionar num universo habitado por intencionalidades humanas e
não humanas continuam a se transformar, como sempre fizeram, num
A corporeidade do incorpóreo 97

fluxo permanente de transformações de transformações (VIVEIROS


DE CASTRO, 2012).
Tsibuya, ñuwë, kuxuitia, curandero ou vaporadora14 são desig-
nações de pessoas que tornam concretos diferentes modos de agir
xamanicamente que se sobrepõem, se sucedem, se alteram ou deri-
vam uns dos outros. Como demonstra Langdon nos seus escritos mais
recentes, que refletem sobre a revitalização e as transformações con-
temporâneas do xamanismo siona, esses modos emergiram e emergem
de forma dialógica em diferentes momentos históricos, conectados a
contextos sociais, ambientais, históricos e políticos diversos, permitindo
às pessoas desenrolar suas vidas nesse universo altamente heterogêneo
de subjetividades e intencionalidades (LANGDON, 2016).

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14
Técnica consistente em estabelecer diagnósticos e extrair a doença por meio de
banhos de vapor, associada ao xamanismo ashaninka, e que algumas mulheres
Yaminawa aprendem e praticam atualmente.
98 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

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Homenagem a Esther Jean
Matteson Langdon: reflexões
em torno dos conceitos-imagem
“toya” e “dau” dos Siona
do Putumayo

Elsje Lagrou

Introdução: Jean como mestre-guia


Pensando no que escreveria para esta homenagem, percebi que
um texto puramente acadêmico não seria suficiente, porque o relato da
minha dívida intelectual com Jean está intrinsecamente atrelado a uma
dívida maior, a de ter descoberto, através desse encontro, um caminho,
um projeto de vida. Me dei conta de que pertenço à primeira geração
de gente formada por Jean e de que vale a pena lembrar aos que vieram
depois um pouco desses tempos do começo.1
Quando cheguei ao Brasil, em 1986/1987, Jean também havia
chegado uns três anos antes, e, sendo vizinhas em vários momentos
nesta Ilha chamada “do Desterro”, foi com seus conselhos que aprendi
que “o Brasil não é para iniciantes”. Jean, já com experiência profissional
e mãe de dois filhos pequenos, tinha chegado a Florianópolis decidida
a construir sua vida na Ilha. Eu, com 22 anos, era estudante recém-
formada em história contemporânea e achava que estava apenas
visitando. Alguns anos mais tarde, me daria conta de que:

1
Há pouco mais de um ano redigi o memorial para meu concurso de professor titular
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de cujo júri Jean participava,
e partes do exercício de memória então empreendido serão retomadas neste texto,
pois, ao relembrar minha chegada ao Brasil, a figura de Jean Langdon se impôs de
forma incontornável.
102 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Para mim, tornar-me brasileira e tornar-me antropóloga são


processos que se confundem... O que era para ser uma mera
visita se transformou em algo que na medida em que o tempo
passa começa a parecer uma migração definitiva, apesar das
fortes saudades que também o Brasil me ensinou a cultivar.
Cultivar saudades e cativar visitantes são duas artes que os
brasileiros e os Kaxinawa [que hoje se autodenominam Huni
Kuin] têm em comum. A arte de cativar visitantes e torná-los um
de nós é provavelmente o que mais me seduziu tanto no Brasil
quanto entre os Huni Kuin. Ambos incentivam o estrangeiro a se
transformar, a abrir mão da sua identidade e se tornar um deles.
Das saudades falarei depois, cabe registrar aqui somente que este
incentivo às saudades dos parentes funciona como contraponto e
valor compensador desse movimento de querer engolir o outro.
(LAGROU, 1994, p. 93-94).

Jean partilhava comigo essa experiência de estrangeira apaixonada


por um país em pleno processo de mudança depois de longos anos de
ditadura. E presenciando hoje a volta dos ataques aos indígenas e suas
terras e o concomitante movimento de mobilização em sua defesa, me
dou conta de quão especial foi esse momento no qual chegamos, eu e
Jean, na véspera da nova Constituinte que implementaria uma legislação
promissora para os direitos indígenas e a proteção do meio ambiente,
garantias essas que voltaram a ser gravemente ameaçadas durante o
governo Bolsonaro.2
O ambiente acadêmico que encontrei no Brasil foi, para mim,
uma revelação e uma libertação. Por um lado, se tratava da mudança
de uma postura mais passiva e anônima, característica da graduação na
Bélgica, para uma mais ativa, seguindo o modelo dos seminários na pós-
graduação, mas era mais do que isso. O contexto todo, os professores,
os colegas, a abordagem crítica e franca, os temas abordados, tudo isso
produziu em mim a descoberta de uma vocação.
O final dos anos 1980 era uma época de renovação na academia
brasileira. Em Florianópolis, Silvio Coelho dos Santos, conhecido
por sua militância a favor dos indígenas do sul do Brasil e contra a
construção de barragens em seus territórios, tinha acabado de atrair para
o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade

2
O que mudou dos anos 1980 para cá foi o protagonismo desse movimento. Se
na época as lideranças indígenas ainda eram minoria e a força maior vinha das
organizações não governamentais (ONGs) e de seus antropólogos engajados, hoje o
protagonismo é fortemente indígena e, outra novidade, feminino.
Homenagem a Esther Jean Matteson Langdon 103

Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC) um grupo de jovens


professores provenientes de diferentes lugares do Brasil e do exterior;
Jean Langdon e Denis Werner, dos Estados Unidos; Rafael Bastos, de
Brasília; Ilka Boaventura Leite, da Universidade de São Paulo; Miriam
Grossi, de Paris. A pós fervilhava de gente recém-chegada, o que fez
com que as relações de coleguismo e amizade se realizassem de modo
intenso. Vivíamos o período carismático que antecede, no dizer de Max
Weber, o período burocrático que necessariamente o sucede. Trinta
anos depois da minha chegada, o PPGAS/UFSC se tornou grande, uma
referência para a etnologia e sede do prestigioso Instituto Brasil Plural,
coordenado por Jean Langdon.
O encontro com Jean, que aceitou me orientar no mestrado, foi
decisivo no delineamento da minha pesquisa. Nos seus cursos descobri
uma rica literatura sobre os temas que sempre sonhei em estudar:
etnologia ameríndia, ritos de passagem e de iniciação, xamanismo
amazônico e sua relação com as formas expressivas. As questões que
surgiram nesses primeiros anos de iniciação no pensamento etnológico
e antropológico me acompanham até hoje. Se outros professores me
introduziram nas leituras clássicas da antropologia e da etnologia
ameríndia nos moldes brasileiros, franceses e ingleses, Jean abria o
horizonte com leituras sobre povos ameríndios para além das fronteiras
do Brasil, principalmente no Peru e na Colômbia, e com abordagens
pautadas na tradição da etnologia americana e da antropologia
simbólica. Paralelamente aos seminários, Jean coordenava um grupo
de pesquisa interdisciplinar sobre estados alterados de consciência, do
qual participavam seus orientandos e o neurocientista Ari Sell.3 Essa
interdisciplinaridade era pouco comum nas ciências sociais brasileiras,
mais próximas da tradição europeia. As discussões trazidas pela
iniciação na antropologia americana foram, para mim, fundamentais:
um preparo intelectual e psicológico para a pesquisa de campo por vir.
Queria situar minha pesquisa no campo da antropologia da arte
e me interessava particularmente a relação entre grafismos e seu uso
ritual. Um dos temas abordados por Jean entre os Siona, grupo indígena
colombiano de língua Tukano ocidental, era a pintura facial usada
pelo xamã e sua relação direta com as visões com yagé (ayahuasca)
(LANGDON, 1979a, 1979b, 1992, 2013). Nos seus artigos sobre o tema,

3
Faço aqui uma homenagem a Ari Sell, espírito inquieto e aberto, de generosidade
intelectual ímpar e grande amigo de Jean, que foi um dos muitos que nos deixaram
durante este período de pandemia.
104 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Langdon dialogava com os trabalhos de Reichel-Dolmatoff (1972, 1978)


entre os Desana, que procurava estabelecer uma relação direta entre a
percepção de fosfenos durante a experiência visionária e a produção
dos desenhos. Se Reichel-Dolmatoff estava à procura de determinantes
neurofisiológicos para padrões recorrentes em diferentes contextos
culturais, Langdon propunha analisar os cantos, os desenhos e as
experiências visionárias a partir dos padrões culturais partilhados pelo
xamã e pelos seus discípulos. Sua pesquisa me serviu de inspiração, e, por
conta dessas afinidades, percebi logo que meus interesses se localizavam
na Floresta Amazônica ocidental, mais do que, por exemplo, no Xingu,
entre os Jê ou no sul do Brasil.
Naquela época, o acesso à bibliografia requeria uma verdadeira
garimpagem de papel em bibliotecas públicas e privadas. A biblioteca
de Jean sobre os temas de xamanismo e arte ameríndios, tanto do sul
quanto do norte, era um tesouro. Além dela, tive acesso, ainda nessa
fase preparatória do mestrado, e por intermédio da Jean, à biblioteca
de Lux Vidal, em São Paulo. Lux me recebeu generosamente em seu
apartamento, no centro de São Paulo, e desci ao xerox do térreo do prédio
onde ela morava com uma enorme pilha de livros para complementar
a já significativa coleção de livros e artigos sobre antropologia da arte
colecionados por Jean.
Para “encontrar minha tribo”, fui perguntar, novamente por
intermediação da Jean, a opinião de Berta Ribeiro. Berta, que trabalhava
no Museu Nacional, era referência no campo das artes e tecnologias
indígenas e tinha acabado de publicar a Suma etnológica sobre o tema.
Generosa como Lux e Jean, ela me recebeu para um jantar em seu
apartamento, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Quando lá cheguei,
me esperavam a própria Berta e Nietta Lindenberg Monte, na época
coordenadora da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre). Ambas
sugeriram que eu estudasse os Kaxinawa, que ainda não tinham assumido
a autodenominação Huni Kuin (gente propriamente dita, gente como
nós). Saí de lá com uma lista de nomes para procurar quando chegasse
a Rio Branco, no Acre. Estava pavimentado meu caminho para o Alto
Rio Purus.
Vale lembrar, no entanto, que Jean também teve papel importante
na escolha, pois ela conhecia bem os Kaxinawa. Eram eles que tinham
transformado Ken Kensinger, grande amigo seu, de missionário do
Summer Institute of Linguistics nos anos 1950 em antropólogo nos
anos 1960. Kensinger organizou, durante muitos anos, os “Amerindian
Seminars”, no Bennington College, onde um reconhecido grupo de
Homenagem a Esther Jean Matteson Langdon 105

etnólogos das Terras Baixas da América do Sul se encontrava anualmente.


Jean participou de todos esses encontros, que considerava o período
áureo da etnologia americanista. As reuniões eram pequenas e tinha-se
tempo para longas discussões em torno de papers extremamente bem
preparados. Segundo me contava Jean, esse clima colegial, de autêntica
colaboração e avesso à competição, se devia sobretudo à personalidade
acolhedora e discreta do anfitrião, Ken Kensinger.
Esses seminários dariam origem, mais tarde, à SALSA, Society for
the Anthropology of Lowland South America. Jean tinha todos os anais
dos encontros, nos quais as apresentações eram publicadas na íntegra,
e me deu muitas duplicatas. Em cada reunião, Ken apresentava outro
aspecto da sociedade huni kuin: sua organização social, sua onomástica,
sistemas de classificação, vida conjugal, chefia, e assim por diante. Eu
tinha lido esses textos, além do seu livro sobre a coleção de artefatos
depositada na Universidade de Philadelphia (KENSINGER et al., 1975).
Sabia, portanto, que os Huni Kuin possuíam um complexo sistema
gráfico e que usavam nixi pae (ayahuasca, yagé).
Apesar de todo o preparo para a viagem, me esperava uma
grande surpresa: a qualidade da água do rio Purus e sua relação com
a proliferação de populações específicas de insetos, os famosos piuns
ou borrachudos, além dos micuins, tipos de carrapatos minúsculos que
caem das plantas à beira do rio e se grudam nas roupas. Essa informação
eu só receberia uma vez chegada ao Acre, quando o caminho já estava
traçado. Durante muito tempo, pensei que a infestação de piuns e de
outros insetos era própria a toda a Floresta Amazônica. Depois descobri
que existe uma enorme diferença entre as águas turvas e vermelhas do
Purus, ricas em nutrientes, e as águas cristalinas e pretas de outros rios
amazônicos, como o Maici e o Marmelos, onde habitam os Pirahã e
onde os piuns não existem; ao visitá-los recentemente, soube que lá só
tem marimbondos e mutucas, mas esses insetos guerreiros e agressivos,
dos quais se pode desviar, incomodam bem menos que as nuvens de
insetos praticamente invisíveis dos quais não se escapa.
Pode-se constatar assim que ter uma americana como guia na
escolha dos rios amazônicos por onde passaria a navegar apresentava
suas vantagens e desvantagens, pois descobriria depois que nenhum
etnólogo brasileiro desconhecia essa crucial diferença entre águas
turvas e águas claras. Por outro lado, se soubesse antes, talvez não tivesse
a coragem e o privilégio de ter conhecido os Huni Kuin do Alto Rio
Purus como anfitriões generosos e preocupados, sempre prontos para
106 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

me ajudar com sua espetacular farmacopeia da floresta a curar “peles


excessivamente sensíveis”.4
Na minha dissertação de mestrado, Uma etnografia da cultura
kaxinawá: entre a cobra e o Inca (1991), estão prefiguradas as questões
centrais das minhas futuras pesquisas: a relação entre percepção e
cognição e o modo como determinadas técnicas perceptivas e expressi-
vas dialogam com uma ontologia específica em que a transformabilidade
dos seres ocupa lugar central. As questões da etnologia amazônica
ainda não tinham sido colocadas nos termos que hoje nos soam tão
familiares.5 Pertenço a uma geração que teve a liberdade de pensar sobre
a complexidade das ontologias ameríndias sem um modelo pronto.
E essa liberdade de pensamento, assim como o respeito pela diversida-
de das cosmologias ameríndias, é um credo que Jean defendeu durante
toda sua carreira. A consciência do nosso domínio extremamente
precário da língua e das exegeses xamanístico-ontológicas que requerem
longos períodos de iniciação, a convicção de que não devemos nunca
abandonar a certeza inicial da incerteza e o respeito para com a delicade-
za e o poder do conhecimento são lições de vida que aprendi com Jean.
Pois para aprender a inverter a perspectiva são necessários muitos anos
de treinamento. O encontro entre uma beatnik, livre pensadora ameri-
cana, com a etnologia brasileira marcou minha iniciação na antropolo-
gia e minha trajetória acadêmica enquanto exploração espiralar de
diferentes diálogos teóricos possíveis com o que os Huni Kuin tinham
tentado me ensinar sobre o viver em mundos diferentes.
Um exemplo dessa influência de diferentes tradições teóricas
no meu trabalho é o capítulo 12 da minha dissertação de mestrado,
“Origens e análise formal do estilo gráfico kaxinawá”, em que me engajei
em discussões com uma literatura americana e interdisciplinar que me
foi apresentada por Jean e somente recentemente viria a retomar. Hoje
me interessaria rever essa discussão à luz da nova aproximação entre
arqueologia e etnologia. Trata-se da proposta de Lathrap, Gebhart-

4
Essa expressão se inspira na “pele excessivamente pintada” de Lucia van Velthem
(2003) entre os Wayana e em um romance holandês que li na juventude, chamado
Vanwege een tere huid (Por causa de uma pele sensível).
5
Os conceitos de perspectivismo e multinaturalismo, propostos por Viveiros de
Castro (1996), e de animismo, proposto por Descola (2005), se tornaram modelos
filosóficos a partir dos quais a etnologia americanista passou a dialogar com outras
disciplinas, deixando, no entanto, na sombra, para leitores leigos ou excessivamente
apressados, as densas etnografias que embasaram a formulação do modelo e que
apontam para a multiplicidade dos mundos ameríndios.
Homenagem a Esther Jean Matteson Langdon 107

Sayer e Mester (1985) e da crítica de Deboer e Raymond (1987)


em torno das possíveis origens arqueológicas dos estilos shipibo-
conibo e “cashinahua” e de suas relações, por um lado, com os povos
amazônicos majoritariamente de origem tupi, responsáveis pela
cerâmica policromada de culturas como a marajoara, e, por outro, com
as tradições de origem quéchua e protoincaicas, baseadas em complexas
técnicas de tecelagem.
Essa discussão, além do texto de Jean sobre o grafismo Siona
e do diálogo com a tese de Regina Müller (1990) sobre o sistema
gráfico asurini, de origem tupi, me serviria de inspiração para meus
primeiros esboços comparativos do estilo huni kuin. Este se encontra
a meio caminho entre as tradições gráficas andinas, derivadas
tecnologicamente da tecelagem, e as tradições gráficas amazônicas,
entre as quais a asurini, que é muito próxima da huni kuin e que,
segundo o mito de origem do desenho, teria sua origem no trançado.
O grafismo shipibo-conibo, por sua vez, que possui outra dinâmica
gráfica, seria originada na pintura corporal e da cerâmica, como a
policromada marajoara. Franz Boas (1955 [1927]), em seu clássico
Primitive art, afirma que é preciso associar estilos gráficos específi-
cos às técnicas de produção dos artefatos que lhes deram origem.
A combinação do método boasiano com o malinowskiano mostrou
como poderia ser útil fazer dialogar estilos gráficos formais com mitos
de origem do grafismo, que especificam a técnica principal através da
qual um determinado estilo surgiu.
Deixaria descansar essa exploração formal dos estilos gráficos
por vários anos para retomá-la muitos anos depois, em diálogo com
a obra de Carlo Severi, a fim de formular uma proposta comparativa
dos estilos da Amazônia ocidental, que viria a chamar de “quimeras
abstratas” (LAGROU, 2013). O conceito “quimera abstrata” visa a
chamar a atenção para o caráter altamente estilizado, minimalista e
sugestivo da maioria dos grafismos amazônicos, que tendem a sugerir
mais do que revelam. Os grafismos agem num complexo contexto
performativo, ritual e sinestésico em que cantos e substâncias produzem
a alteração da percepção, permitindo a passagem entre os lados visível
e invisível do mundo, ou, como diriam os Siona, entre este e o outro
lado, fazendo com que o oculto se revele na sua dinâmica metamórfica,
que passa de grafismos a figuras, e vice-versa, assim como passa de
um corpo de humano para diversos tipos de corpos de outros seres,
dependendo da intenção agentiva do xamã. O que define a quimera
abstrata é exatamente essa ambiguidade entre grafismos e figuras que se
108 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

insinuam por entre as linhas, por entre os pontos e suas conexões que
tecem novas peles.

Toya: pinta, visão, desenho, escrita e figura


A relação entre este e o outro lado, entre o visível e o oculto, é o
que anima os toya dos Siona. A exploração da conexão entre as visões
com yagé e a arte siona é um tema sobre o qual Jean se debruça desde
os anos 1970, tendo publicado os textos “Yagé among the Siona: cultural
patterns in visions” (1979b) e “Siona clothing and adornment, or, you
are what you wear” (1979a), para mencionar apenas alguns. Em 1981,
no Working Group on South American Indians, grupo que depois se
tornou Sociedade para a Antropologia das Terras Baixas da América
do Sul (SALSA), Jean apresentou “Siona hallucinogenic art”, texto
que foi também apresentado no seminário de Lux Vidal em 1986, na
Reunião Brasileira de Antropologia (RBA). Essa apresentação foi a base
do artigo “Alucinógenos: fonte de inspiração artística: a cultura siona
e a experiência alucinógena” em Grafismo indígena, editado por Lux
Vidal (1992).
Mais tarde, em 2013, em um artigo publicado em Quimeras em
diálogo, Jean retoma a análise desse estilo gráfico específico e rigoroso
que nasce na relação entre a memória da experiência visionária do mestre
xamã e a crescente complexidade dos desenhos que produz na pintura
facial e nos objetos de seu uso. Ao enfatizar o contexto performático
do surgimento do desenho como índice da experiência e da relação do
xamã com os espíritos e suas casas visitadas, Jean aponta a consonância
estilística entre as visões, os cantos e os desenhos: no ritual xamanístico
entramos num universo múltiplo e fractal, onde o paralelismo, a
repetição, a cadência e as pequenas variações se reforçam mutuamente
– sem deixar de evocar a flutuação caleidoscópica e mutante dos
fosfenos que aparecem na visão daquele que tomou yagé como anúncio
da entrada em um outro território, como gatilhos para a percepção de
padrões geométricos em constante movimento de transformação. Nas
palavras de Jean:

Cada participante do rito se esforça para acompanhar o xamã


nos seus caminhos pelo universo. As experiências resultantes,
coletivas e individuais, não estão isoladas da construção desta
realidade que emerge das performances de narrativas xamânicas e
da arte gráfica, que devem ser pensadas como atos performativos.
Homenagem a Esther Jean Matteson Langdon 109

Em particular, a arte gráfica, com suas constantes variações


de motivos aparentemente repetitivos, indexa a experiência
subjetiva e também a qualidade fractal do universo produzido
pela ingestão de yajé, a de padrões escalares autossimilares
(Kelly, 2001, p. 95) que se replicam. Analogamente, os padrões
de socius repetem-se através dos povos que vêm cantando e
se apresentando nas passagens e nas cenas da experiência no
mundo oculto. (LANGDON, 2013, p. 134, grifo da autora).

Como as pinturas faciais dos Ashuar – que não representam


o espírito, mas são índices do encontro visionário da pessoa com
seu arutan, espírito guardião (TAYLOR, 2003) –, os “desenhos yagé”
(‘iko toya), desenhos autênticos, se distinguem dos “meros desenhos”
(do toya), porque os primeiros são cópias dos desenhos vistos pelo
mestre xamã nos rostos, nas roupas e nos instrumentos dos povos de
espíritos aliados – povo yagé, povo onça, povo lua, povo anaconda etc.
Saber copiar equivale aqui a saber reproduzir a coerência de um estilo
propriamente siona. Lógica similar pode ser encontrada entre os
Wayana, Pirahã, Halitit/Pareci, Yekuana e Ashaninka, para os quais os
desenhos possuem agência e devem ser executados de modo correto
porque são cópias de desenhos e artefatos primordiais produzidos
pelos povos celestes ou ancestrais míticos (VAN VELTHEM, 2003;
GONÇALVES, 2001; BEYSEN, 2013; ARONI, 2011; GUSS, 1989).
A “pinta”, toya, que o mestre evoca nas narrativas que antecedem
o ritual, que ele canta quando chama os aprendizes para a viagem, é
uma imagem completa, multissensorial e em movimento: são os povos-
espíritos com seus corpos cheirosos e pintados, em suas casas, com
suas músicas, suas flautas de bambu, seus adornos de contas, dentes
e plumas, seus desenhos, com sua fala e suas criações, seus mundos.
A “pinta” é tudo isso, mas a arte gráfica é só o índice fractal, o traço,
a imagem que aponta para um universo muito mais amplo, habitado
por povos-espíritos cujas roupas o xamã pode vestir, transformando-se
assim em gente-yagé, gente-onça, gente-jiboia, dependendo dos espaços
que visita.
Uma especialista, mulher, conhecedora dos desenhos huni kuin,
me disse, na minha primeira viagem de campo, em 1989, que o kene,
grafismo verdadeiro, era “a língua dos espíritos”. Assim como tinha a
escrita dos brancos, nawan kene, existia a escrita dos Huni Kuin, kene
kuin, que era a escrita dos povos-espíritos. A conexão entre desenho e
visão, entre o mundo dos humanos e o dos espíritos, no entanto, sofreria
110 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

várias torções em comparação com o universo siona e tukano oriental,


porque entre os Huni Kuin o uso ritual do nixi pae ou nawan huni (cipó,
yagé, ayahuasca) tende a ser uma especialidade masculina, enquanto o
desenho – na pintura, assim como na tecelagem e no trançado – é uma
prerrogativa feminina.
O desenho, por outro lado, é onipresente nos cantos de huni e
nos mundos e seres que o povoam. O mundo desse outro lado que se
revela para quem ingeriu a substância se caracteriza pelo fato de ser
um mundo keneya, todo coberto com desenho. A qualidade keneya
aponta para uma proximidade dos seres que possuem desenho com
o conhecimento da transformação das formas, com o xamanismo,
com os povos-espíritos, yuxin. A onça, a jiboia, o jabuti, as folhas com
desenho, todos esses seres keneya possuem uma relação estreita com o
que chamei na minha dissertação de mestrado de “yuxindade”. Esse
silogismo visava apontar para essa ideia do mundo das substâncias e das
formas permeadas por fluxos de yuxin, em que alguns têm mais xinan
(conhecimento), ou yuxin (força, espírito), que outros.
Gebhart-Sayer (1985, 1986) e Bruno Illius (1987) mostraram
para os Shipibo-Conibo como estes formularam uma teoria sinestésica
da experiência visionária. Esta consiste na transformação dos cantos do
xamã em desenhos, fenômeno igualmente constatado por Jean (1979b)
entre os Siona, por Overing (1986) entre os Piaroa e, mais tarde, em
1989, por mim entre os Huni Kuin. No caso dos Shipibo, no entanto,
essa transdução sinestésica implica também uma complementaridade e
uma inversão de gênero. Na visão do xamã, sob o efeito da ayahuasca,
surge o espírito do beija-flor, que pinta todo o campo perceptivo com
seus desenhos. Os desenhos invisíveis cobrem o corpo do doente como
uma tela, e quando há falhas no desenho a pessoa fica vulnerável, seja
à invasão de dardos xamanísticos, seja à evasão de seu próprio espírito.
A ação do xamã consiste em, cantando, consertar o desenho invisível
em seu paciente. A passagem de uma arte cantada, soprada, para uma
pintada, que cruza as fronteiras de gênero, consistiria no ensinamento,
passado do xamã para as mulheres, dos desenhos recebidos na visão
(GEBHART-SAYER, 1986).
A contribuição dos Huni Kuin a esse mosaico de microvariações
e transformações no universo gráfico amazônico, que segue a lógica
cromática das mitologias ameríndias, é a de terem formulado uma linha
de transmissão paralela para as capacidades perceptivas masculinas e
femininas, em que ambos os gêneros acessam paralelamente a mesma
fonte andrógena, a anaconda mítica, Yube, matriz geradora de todos
Homenagem a Esther Jean Matteson Langdon 111

os padrões e de todas as formas. A origem mítica desse ser, por sua


vez, se encontra na combinação dos princípios masculino e feminino:
durante o grande dilúvio vários artefatos se transformaram em animais
aquáticos. Um casal deitado na sua rede com desenho se transformou
na anaconda. Essa mesma anaconda será a encarnação do dispositivo
máximo de captura pela sedução, pela hipnose, capacidade agentiva
que está no seu olhar, no som que emite para atrair sua caça e nos
desenhos luminosos e ofuscantes da sua pele. São os desenhos na sua
pele que vão abduzir o ancestral que descobriu huni para a morada
do povo jiboia no lago, e são os mesmos desenhos que deixarão os
homens apaixonados ao encontrarem Napu ainbu, o primeiro Huni
Kuin com desenho.
Para o caso shipibo, por outro lado, vale notar que, já naquela
época, nos anos 1980, muitas mulheres Shipibo tomavam cipó e se
tornavam xamãs (COLPRON, 2004), além de serem também mestres
em desenho. A teoria mais elaborada da hipótese sinestésica, que
causaria tanto entusiasmo entre aqueles que procuravam nos sistemas
gráficos os rudimentos de uma escrita musical, e muita polêmica entre
os próprios Shipibo e seus especialistas, foi formulada por uma mulher
Shipibo, famosa desenhista e xamã, Herlinda Agustín (BELAUNDE,
2009; BRABEC DE MORI; BRABEC, 2009; BRABEC DE MORI,
2012). Foi de Herlinda a narrativa colhida por Gebhart-Sayer de que
duas mulheres, sentadas em lados opostos e pintando simultaneamente
um grande vaso, poderiam controlar o traçado de seus desenhos pelos
cantos entoados durante a execução, fazendo com que as linhas das duas
desenhistas se encontrassem ao completar o desenho. O que guiaria o
traço não eram palavras, mas a melodia (GEBHART-SAYER, 1984).6

6
Em livros recentes, Taussig (2011, 2015) reflete sobre esse sensorium fluido e os
deslizes entre os diferentes sentidos, aproximando suas experiências entre indígenas
e ribeirinhos com o yagé, na Colômbia, das experiências de escritores surrealistas e
modernistas que experimentaram com a alteração da percepção. Sobre a relação
entre visão e canto, nota que, na Colômbia, os cantos do yagé quase não possuem
palavras; os curadores cantarolavam, e eram a melodia e o ritmo que se traduziam
em linhas e figuras, não as palavras. Luna (1992) notou fenômeno similar entre os
vegetalistas ribeirinhos no Peru. As situações descritas por esses autores, no entanto,
marcam contextos de ingestão da bebida que são eminentemente interétnicos,
fazendo com que se evite a veiculação de conteúdos específicos. O uso da ayahuasca
ou do yagé em contextos intraétnicos, no entanto, como entre os Siona, os Desana,
os Barasana, os Huni Kuin e os Sharanahua, por exemplo, depende largamente da
referência a um corpus mítico mobilizado nos cantos rituais que visam a guiar os
noviços que acompanham o mestre xamã.
112 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Alguns homens, por outro lado, podiam se tornar exímios


ceramistas e desenhistas (ROE, 1979). Tratava-se de homens chamados
de Napu ainbu, Napu mulher, ou seja, homens que se comportavam
como mulheres e que, além de dominarem as técnicas tipicamente
femininas, também ocupavam o lugar da mulher na sua relação com
outros homens. Essa figura também existe entre os Huni Kuin e deu
nome ao mito de origem do desenho.
O mito trata de um jovem que vive sozinho com sua mãe,
primeira entre os Huni Kuin a aprender a fazer desenho com o espírito
da jiboia. Todo entardecer a mulher ia para a entrada da floresta, onde
se encontrava com a jiboia na forma de uma senhora, sentada atrás
de um tear, que lhe ensinava a tecer com desenho (tema keneya). Não
tendo filhas, a mulher resolveu transmitir suas artes na tecelagem, no
trançado e no desenho para seu único filho, Napu ainbu. Quando sua
mãe morreu, Napu ainbu foi procurar seus parentes. O jovem andava
belamente pintado e usava uma saia com desenho, um cesto com
desenho, era todo keneya. Todos os homens da aldeia queriam se casar
com Napu ainbu. Napu começou a ensinar suas artes às mulheres, e estas
o levaram para tomar banho. Ao voltar do banho, avisaram os homens
de que Napu não era mulher. Um homem, no entanto, insistiu em se
casar com Napu. Fazia amor com Napu ainbu, que engravidou. Na hora
do parto, no entanto, por não ter canal vaginal preparado, não tinha
como expelir a criança e morreu.
A relação entre os gêneros e suas possíveis inversões está no
âmago da questão do desejo pelo desenho, assim como está no centro
da iniciação no mundo de huni: todo noviço revive a experiência
aterradora do ancestral, que, no auge do efeito de huni no seu corpo, se vê
engolido por uma jiboia gigante, enquanto o canto de cura de sua esposa
Sidika evoca a estreita relação entre o ato sexual e a experiência de ser
devorado. Para acalmar seu marido, a mulher do povo jiboia canta que
está mastigando os intestinos da anta, seu amante. A figura feminina do
mundo de huni que consola o noviço amedrontado com uma ameaça
velada de devorá-lo sexualmente, imagem que evoca o famoso mitema
da vagina dentada, é uma das manifestações do potencial simetrizan-
te da possibilidade de inversões entre caça e caçador que caracteriza essa
cosmopolítica igualitária.
Tema similar ocorre na iniciação dos noviços Siona. Ao sentir
os efeitos fortes e nauseantes do yagé tomarem conta de seu corpo, o
noviço vê cobras que o querem engolir ou um fogo que o alcança. Nesse
momento, aparece a mulher-jaguar que chora e grita: “Por que você
Homenagem a Esther Jean Matteson Langdon 113

tomou yagé? Agora você vai morrer!”. Vemos aqui a figura do jaguar,
encarnação do poder de predação no universo ameríndio, ocupar a
posição de uma mãe nutridora que, depois de ameaçar o ser humano
que adentrou em seu território, avisando-o de que vai morrer, acolhe-o
em seus braços e o amamenta. Para os Huni Kuin, nenhum noviço se
tornará dono de canto, capaz de cantar com a voz de Yube e de todos
os seres da floresta, sem ter sido por ele engolido e digerido primeiro,
enquanto para os Siona a iniciação consiste em, depois de ter passado
pelo terror de vivenciar a própria morte, mamar nas tetas da mãe-jaguar,
que vem a ser também a mãe-yagé, mãe de todos os xamãs. Essa situação,
por sua vez, parece ser uma inversão simétrica do mito de origem
do yagé entre os Desana, Tukano orientais, em que são os humanos,
embriagados pela visão do yagé, que despedaçam e devoram o menino-
yagé, filho de uma estrangeira que aparece no meio da maloca, vinda da
floresta e carregando nos seus braços o filho, que enlouquece os homens
como uma revelação (REICHEL-DOLMATOFF, 1978). Percebemos
assim que nesses universos metamórficos o engendramento das formas
está intrinsecamente entrelaçado com processos vitais de ingerir, digerir
e gestar, sendo os regimes culinários, como já notava Lévi-Strauss,
altamente estéticos.
Mas voltamos aos grafismos, que podem ser marcas, como
índices de um encontro passado, ou linhas ao longo das quais se
estabelecem conexões. O fato de o desenho dar a ver relações mais do
que formas me levaria a propor, mais tarde, a ideia de uma “estética
relacional” que é a expressão de uma “ontologia relacional” (LAGROU,
2018a, 2018b, 2018c). O que se propõe com esse conceito é bem
diferente da estética relacional de Bourriaud (1998), tendo em vista que,
no caso ameríndio, a relação, em vez de precisar ser construída pelo
indivíduo, como nas ontologias dualistas de origem euro-americana,
é constitutiva do ser. O desenho não delineia figuras sobre um fundo,
porém dá a ver a constituição relacional de todos os seres. Desenhos
podem funcionar como marcas e índices, como no caso da arte siona,
ou como caminhos e fios invisíveis que conectam os seres, como na arte
do kene e no xamanismo waiãpi, em que o xamã está conectado aos
seus espíritos auxiliares por fios invisíveis, como uma aranha na sua teia
(GALLOIS, 1988).
Temos assim uma importante diferença entre as tradições dos
povos de língua Pano e dos Piro (povo Arawak que possui um estilo
gráfico muito próximo do shipibo-conibo), por um lado, e os povos de
língua Tukano, por outro. Entre os Tukano, como os Siona e os Desana,
114 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

são os homens, xamãs, que, além de terem as visões, também desenham


e trançam os grafismos. A mesma relação entre xamanismo, cantos
rituais e grafismos pode ser encontrada entre grupos de língua Karib na
Amazônia Ocidental, como os Wayana-Apalai (VAN VELTHEM, 2003)
e os Yekuana (GUSS, 1989).
Nos anos 1980, diferentes tradições acadêmicas se confrontavam
na literatura sobre os grafismos produzidos na Amazônia oriental.
Em Visual compulsion, Peter Gow (1988) formula uma crítica à
interpretação proposta por autores como Reichel-Dolmatoff de que a
origem dos grafismos está nos fosfenos percebidos sob a influência da
ayahuasca. Gow argumenta que, para os Piro e os Shipibo-Conibo, é
contraditório querer localizar a inspiração dos desenhos na experiência
visionária, tendo em vista que nesses grupos são as mulheres que
desenham, enquanto, na sua grande maioria, os homens tomam a
bebida e se especializam no xamanismo. Por outro lado, Gow notou que
“Em geral, os Piro são muito sensíveis ao ‘desenho’ no mundo natural e
classificam muitos animais e plantas como ‘com desenho’” (GOW, 1988,
p. 31, tradução nossa).7 As mulheres Piro, no entanto, insistiam em dizer
que a inspiração dos desenhos vinha dos “seus próprios pensamentos”:
“qualquer que seja a fonte última, mitológica, sua fonte imediata de
inspiração é dentro da sociedade humana, são os pensamentos das
mulheres” (GOW, 1988, p. 24, tradução nossa).8
Contra Gebhart-Sayer e Reichel-Dolmatoff, que seguem seus
nativos na afirmação de que a inspiração dos desenhos vem das visões,
Gow argumenta:

Há claras evidências de que a relação causal é de fato inversa, de


que a experiência de desenho induzida pelas drogas é derivada
da experiência de desenho na visão cotidiana. Na verdade,
embora muitos povos na Amazônia ocidental usem ayahuasca,
é apenas para aqueles povos que elaboram desenhos em sua cul-
tura material que desenhos complexos fazem parte da sua
experiência visionária. (GOW, 1988, p. 24, tradução nossa).9

7
No original: “In general, Piro people are very sensitive to ‘design’ in the natural world,
and classify many animals and plants as ‘with design’”.
8
No original: “Whatever the ultimate, mythological source, their immediate source is
inside human society, they are women’s thoughts”.
9
No original: “There is good evidence that the causal relation is in fact reverse, that the
drug-induced experience of design is derivative from the experience of designs in every
day vision. Indeed, while many peoples in Western Amazonia use ayahuasca, it is only
Homenagem a Esther Jean Matteson Langdon 115

Para concluir, afirma em nota que “A limitada informação dis-


ponível no momento sugere que classes individuais de desenhos em
sistemas complexos amazônicos podem ser concebidas como pequenos
fragmentos do ‘desenho total’ de poderosos sobrenaturais como a
anaconda” (GOW, 1988, p. 31, tradução nossa).10
Hoje a evidência na literatura da região sobre a relação intrínseca,
no pensamento amazônico, entre o surgimento de sistemas complexos
de desenho e a figura da anaconda está crescendo e foi notada desde
os povos de língua Pano (Huni Kuin, Shipibo-Conibo, Yawanawa),
passando pelos povos Karib (Wayana-Apalai, Wauja), Tupi (Waiãpi) e
Tukano (Barasana), até os Ashaninka de língua Arawak. A anaconda é
a matriz geradora das formas na Amazônia (ver HUGH-JONES, 1979;
LAGROU, 1991, 2007, 2013; GALLOIS, 2002; VAN VELTHEM, 2003;
BARCELOS, 2013; BEYSEN, 2013; REIS, 2015).
Mas voltamos à questão dos anos 1980, que parecia ser a de saber
se a inspiração do estilo gráfico de um povo vem das suas experiências
visionárias ou se, pelo contrário, a presença dos desenhos nas superfícies
de peles e de artefatos produzidos por um povo está na origem dos
desenhos vistos nas visões. Essa questão remete a uma disputa teórica
entre abordagens inspiradas nas neurociências, que procuram elementos
universais por trás das variações, e uma abordagem mais propriamente
social, que procura as raízes da forma na própria imaginação dos povos.
Fiel à postura que caracterizou seu trabalho, Jean sempre evitou essas
perguntas que requerem respostas unívocas. Nos textos sobre toya,
Jean explora a retroalimentação de uma sensibilidade que o ambiente
como um todo ajuda a criar. Assim como as mulheres Piro e Huni Kuin
são sensíveis à presença de desenhos nas peles de plantas e de animais
como onças, jiboias, certos peixes e os filhotes da queixada e da anta,
mas metamorfoseiam essas imagens em padrões que vêm dos seus
“próprios pensamentos”, os homens Siona e Desana são sensíveis aos
fosfenos que aparecem nas visões. Mas esses elementos luminosos serão
organizados em estruturas estilísticas distintamente siona ou desana,
respectivamente.
Como demonstrado por Jean, não há dúvida de que para os Siona
as regras estilísticas do desenho verdadeiro, ‘iko toya, são aprendidas no

for those peoples with an elaboration of design in their material culture that complex
design forms part of visionary experience”.
10
No original: “The limited information available at the moment suggests that individual
design classes in Amazonian complex systems may be conceived of as small fragments
of the ‘total design’ of such powerful supernaturals as the anaconda”.
116 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

esforço de copiar os desenhos do povo de yagé. Mas essa visão, por sua
vez, é aprendida: os noviços aprendem a ver através das pintas cantadas
e contadas pelos mestres-xamãs. Os “padrões culturais” nas visões
apontam assim para a experiência acumulada de uma determinada
tradição xamanística, a tradição siona, que os distingue de seus vizinhos
que também conhecem o yagé, mas não as pintas que cada xamã
coleciona, às vezes emprestando-as de mestres xamãs vizinhos, como
os Kofan.

Dau, ou a delicadeza de quem possui o


conhecimento do poder

Dau tem um significado de dupla face. Enquanto cresce e torna a


pessoa mais poderosa, também a deixa mais vulnerável a ataques.
Os Siona dizem que torna o xamã “delicado”. (LANGDON,
1979a, p. 73, tradução nossa).11

Em uma de suas primeiras publicações, em 1979, Jean se refere


a um texto de Kensinger, de 1973, que estabelece a diferença entre dois
tipos de remédio – o doce (bata) e o amargo (muka) – e de dois tipos
de especialistas na cura de doenças e aflições entre os Huni Kuin: o
primeiro seria o medicine man, conhecedor de plantas medicinais e de
remédios “doces”; o segundo, o xamã, que tem o dom de ver e chamar
os espíritos e trabalha com substâncias amargas. O primeiro aprenderia
sua arte com um mestre ervateiro; o segundo seria iniciado, na maior
parte dos casos, pelos próprios espíritos e possuiria, portanto, um dom
que independeria da iniciação por humanos.

Os Siona não têm dois termos distintos para distinguir entre


remédios alucinógenos que visam causas sobrenaturais e
aqueles que curam sintomas com causas não sobrenaturais,
como Kensinger descreveu para os Kaxinawá. Mas é visível, no
entanto, que essa distinção entre os dois tipos de remédios é
subentendida. (LANGDON, 1979a, p. 66, tradução nossa).12

11
No original: “Dau has a double-edged meaning. As it grows and gives more power to
the man, it also makes him more susceptible to its damage. The Siona say it makes the
shaman ‘delicate’”.
12
“The Siona do not have two separate terms to distinguish between hallucinogenic
‘remedies’ aimed at supernatural causes and those which cure nonsupernaturally
Homenagem a Esther Jean Matteson Langdon 117

Essa hipótese se justificaria, segundo Jean, porque muitas vezes


os Siona atribuem a falta de eficácia de certos remédios ou tratamentos,
também os dos brancos, ao fato de a doença não ser diagnosticável por
métodos que descubram causas “naturais”, e as causas últimas precisam
ser descobertas pelo xamã através do sonho ou do consumo de yagé.
Uma lógica parecida opera na distinção, muito recorrente no universo
ameríndio, entre as chamadas “doenças de branco” e “doenças de índio”,
se referindo às doenças para as quais a medicina ocidental pode ser
eficaz e a outras para as quais se precisa da ajuda de um xamã.
A doença que resulta da operação da força destrutiva da morte e
da podridão, chamada de dau pelos Siona, é atribuída ao feitiço de outro
xamã, que pode invocar a colaboração de um espírito para surpreender
a vítima. O encontro assustador com o espírito resultará em doença
repentina e, se esta não for tratada por um xamã, na morte da vítima.
Assim, existiriam duas forças opostas operando no universo siona: uma
positiva, chamada wahi, que promove o crescimento e a saúde, o bem-
estar; e outra destrutiva, o dau. Este pertence ao universo das guerras
xamanísticas, onde o cacique curaca, o líder-xamã de uma maloca,
cuidava de sua gente atraindo caça, negociando condições climáticas
favoráveis e a fertilidade das roças, adivinhando e combatendo os
perigos por vir e curando e extraindo feitiços dos seus parentes através
do acúmulo do seu dau. Para combater o dau que causa doença, o xamã
precisa possuir dau, preferencialmente o mesmo que o adversário usou
para lançar seu ataque através de dardos e espinhos invisíveis, que, ao se
tornarem visíveis no processo de extração, são a prova da cura da vítima
dos ataques xamanísticos.
Dau significa também conhecimento e força. Toda pessoa possui
um pouco de dau, força vital e conhecimento que se manifesta na
capacidade de pessoas adultas, homens e mulheres, de se protegerem
de feitiços e doenças, assim como de, quando sentem raiva, causarem
mal às pessoas alvo dos sentimentos, muitas vezes sem querer. Por
isso, dizem os Siona, assim como os Huni Kuin, é preciso respeitar os
velhos. Crianças, no entanto, ainda não possuem essa substância em
seus corpos, e por essa razão são mais vulneráveis a ataques de espíritos
e doenças. O dau é uma substância de poder que cresce dentro do
corpo do xamã à medida que este vai se familiarizando com as visões

caused symptoms, such as Kensinger (1973, p. 13) has described for the Cashinahua. It
is apparent, however, that the distinction between two kinds of remedies is understood
covertly within the culture”.
118 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

de yagé e com os povos de espíritos que habitam as camadas do cosmos


que visita.
O processo de iniciação no xamanismo consiste em expe-
rimentar sucessivamente as toya – “pintas”, visões, figurações – do
mestre xamã responsável pela iniciação e nessas ocasiões estabelecer
uma relação efetiva com os espíritos. A materialização do conhecimento
incorporado é o dau: este se manifesta no aprendizado dos desenhos
específicos de cada povo de espíritos visitado, mas também através de
dádivas jogadas pelos espíritos na forma de contas ou dentes que serão
incorporados na ornamentação corporal do noviço xamã. Adornos são
exteriorizações de conhecimento e poder agentivo.
Os dois especialistas dos quais falava Kensinger no seu artigo de
1973 eram chamados, respectivamente, de dau-ya (aquele com remédio)
e muka-ya (aquele com o amargo). Desde quando li os textos de Jean e de
Kensinger, essa coincidência no nome me chamou a atenção. Inclusive
na sua nova escrita como rau, seguindo as instruções linguísticas mais
recentes dos próprios indígenas, os Siona e os Huni Kuin andam por
caminhos paralelos, porém distintos.
Kensinger traduz dau como remédio, folha do mato, usado para
tratar sintomas como cortes, inflamações e todo tipo de aflição. Dau,
no entanto, significava também veneno, e era enquanto envenenador
em potencial que o dau-ya era mais temido. Ele podia colocar o dau no
caminho da vítima, soprá-lo em sua direção, ou ainda colocá-lo em sua
roupa ou seus excrementos. A contiguidade da substância contaminada
com o corpo de seu dono resultaria em doença súbita e mortal. Além de
folha medicinal e veneno, dau era também o nome dado aos adornos,
apontando para sua capacidade agentiva. A roupa do líder do canto,
quando enfeitada com penas e outras substâncias de poder, era chamada
de tadi dauya, roupa com remédio-adorno (KENSINGER et al., 1975).
Como o dente de jaguar do xamã Siona, os enfeites huni kuin eram dau.
O dau, na sua forma de folha do mato, curava maus sonhos e trazia de
volta o espírito da criança raptada pelo duplo da caça. As folhas do mato
tinham essa força porque já foram gente e resolveram se transformar
em remédio para curar as doenças causadas pelos duplos da caça, que
também já foram gente (MURU; QUINET, 2015). O curador sabia
qual planta usar para curar um doente depois de tomar cipó (yagé) e
se consultar com as próprias plantas. Vemos assim que o dau dos Huni
Kuin se aproxima muito do dau dos Siona.
Muka, por outro lado, era uma substância amarga, plantada
no coração do aprendiz de xamã pelos espíritos, yuxin, que crescia
Homenagem a Esther Jean Matteson Langdon 119

como uma semente, criando raízes até, quando madura, assoprar.


Numa narrativa que ouvi em 1989, o aprendiz, ao caminhar sozinho
pela floresta, é derrubado a pauladas pelo povo morcego. Quando cai
no chão, inconsciente, eles plantam muka em seu coração, o enfeitam
com jarina e pintam seu rosto com urucum. Quando a “vítima” volta
para a aldeia, vem acompanhada por uma grande quantidade de povos
de diferentes tipos de animais (LAGROU, 1991). Nas narrativas dos
grandes mukaya de antigamente, estes se alimentavam com rapé, dume,
sabiam chamar os espíritos quando queriam, e com eles negociavam a
recuperação de almas perdidas e a chamada de caça para perto da aldeia.
Mas o que realmente os distinguia de outros curadores/xamãs (yuxian)
era sua capacidade de tornar visível seu muka na forma de um espinho,
uma semente, uma pedra, ou qualquer tipo de dau, conta, enfeite, pena.
O conceito de rau, assim como seu caráter multivocal – que passa
dos cheiros e dos fluidos medicinais de plantas, tanto amargos quanto
doces, aos adornos como materializações do poder e do conhecimento
do xamã –, encontra-se também entre os Shipibo-Conibo, povo de
língua Pano do rio Ucayali, da floresta peruana, que, tal quais os Siona
e os Huni Kuin, é conhecido como povo de artistas-xamãs. Da mesma
forma que entre os Huni Kuin, a ligação entre plantas e xamanismo se
deve ao fato de as plantas possuírem donos, ou, como no caso Huni
Kuin, serem gente. A iniciação do xamã Shipibo consiste em aprender
a ver os donos dos diferentes rau; e, quanto mais ele aprende, mais ele
será enfeitado:

a “alma” (caya) de todo consumidor de ráo que segue as


restrições (samá) se torna enfeitado (raotá), belo (metsá) e
embelezado com desenhos geométricos (kéneya), visíveis para
o onaya durante a toma de ayahuasca. Segundo os onányabo
– homens e mulheres – os “ares benéficos” (jakón níwebo)
dos ráo se materializam assim em decorações corporais. Aliás,
muitos onányabo explicam sua “iniciação xamâmica” como uma
série de aquisições de adornos. (COLPRON, 2004, p. 275-276).

O “povo do ráo” dos Shipibo é o próprio povo do cipó (ayahuasca,


yagé), que vem aos poucos oferecendo ao noviço que toma ayahuasca
seus enfeites, que são a concretização de seu “ar”, de seu “saber” e de
sua “força”. Aqui, como entre os Siona, quanto mais o noviço faz dieta,
mais os “donos do ráo” lhe dão presentes (COLPRON, 2004). Mas,
quando o aprendiz quebra a dieta e interrompe o aprendizado, ele perde
os presentes-enfeites, que são recuperados pelo povo do ráo que os
120 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

presenteou. Vemos assim reaparecer o xamã enquanto figura de poder;


quanto mais forte e conhecedor fica, mais vulnerável se torna, porque
pode perder seu conhecimento por quebrar a dieta ou por ataques de
rivais. Vemos igualmente, como entre os Huni Kuin e outros povos
de língua Pano, a suave transição entre uma força invisível que se
depreende das plantas e os adornos que materializam o conhecimento
e a relação. Tanto adornos quanto remédios transitam entre seus lados
doce e amargo, dau bata e dau muka, de fazer crescer os corpos e de
combater as forças da degeneração.
Em artigo recente, de 2018, Jean revisita o conceito de rau dos
Siona e o compara com noções polissêmicas de “tipo mana”, palavra de
origem polinésia em torno da qual Marcel Mauss (1974 [1902]) constrói
seu Esboço de uma teoria geral da magia e que aponta para “uma
força totalmente distinta do poder físico, que age de várias maneiras
para o bem e o mal, e possui-la ou controlá-la é de vantagem maior”
(TOMILSON; TENGAN, 2016 apud LANGDON, 2018, p. 113).
Nesse artigo, Jean retoma a história do xamanismo siona no em-
bate com os colonizadores desde o século XVI, quando “as forças
espanholas entraram na região do Putumayo, com o objetivo de minerar
os depósitos aluviais de ouro” (LANGDON, 2018, p. 118). Ela mostra
como a ambiguidade na tradução do conceito de rau reflete as vicissitudes
de uma guerra religiosa durante a qual os xamãs Siona, enquanto caciques
curacas, líderes políticos e religiosos de seus territórios, representavam
uma resistência secular e poderosa às investidas de missionários católicos,
jesuítas e franciscanos, que, derrotados, acabaram desistindo de seu
projeto de evangelização, sendo substituídos por outras levas, desta vez
de capuchinhos, 100 anos depois, quando uma nova onda extrativista
alcançou o Putumayo à procura de quina e caucho.
Durante a época colonial, os padres traduziam rau por “bruxo”,
“doença” e “brujear”, “amaldiçoar”, e evocavam sua associação com o dia-
bo. Em meados do século vinte, um etnógrafo capuchinho (CALELLA,
1940-1941 apud LANGDON, 2018) mostra uma face menos unívoca da
figura do xamã, que aparece como sacerdote, mágico, médico e bruxo
e é chamado pelos termos “yai” (onça), “huati” (fantasma ou diabo),
“nãiké” (aquele que vê), “dause-koké” (que cura) e “uinhaké” (que canta)
(LANGDON, 2018). O xamã é “aquele que devolve”, ou seja, aquele que
sabe lidar com o rau dos inimigos numa guerra cujo palco só é visível para
iniciados. Os xamãs Siona aparecem aqui como guerreiros e protetores
de seu povo, e o poder/conhecimento que acumulam deriva da ingestão
do yajé. Nas narrativas siona de batalhas xamânicas analisadas por Jean,
Homenagem a Esther Jean Matteson Langdon 121

vemos como o xamã veste a roupa do jaguar (LANGDON, 2018) ou


ingere o rau da sucuri e de outros seres para combater seus rivais. Por
trás de todos os fenômenos pode se esconder um xamã.
Nos anos 1970, foram as batalhas entre xamãs rivais que acabaram
com o último grande xamã Siona, deixando os Siona como “pobres
órfãos abandonados” (LANGDON, 2018, p. 126). Foi o tamanho de
seu poder de outrora de manipular essa força invisível, que provocava
e curava infortúnios, que fez com que eles fossem considerados
responsáveis pelas epidemias que dizimaram seu povo.13 Quando Jean
chega ao Putumayo, nos anos 1970, encontra uma cena de “xamanismo
sem xamãs”, com grandes contadores das narrativas da época em que
os xamãs sabiam manipular fenômenos climáticos, guerras e epidemias
através da extração e da remessa de seu rau. As tentativas dos últimos
herdeiros dessa tradição a fim de suceder os grandes xamãs pareciam
fadadas ao fracasso pelo aparecimento sistemático de sonhos e visões
aterradores de uma realidade que fugia do controle. Jean se defrontava
com a face “delicada” do xamã Siona, retrato de um povo guerreiro que
perdeu a guerra num país marcado pela violência, e chegou a pensar que
o xamanismo siona tinha morrido, apesar das insistentes tentativas de
alguns de continuar.
Mas o xamanismo siona ressurgiu a partir da primeira década
de 2000, e Jean passa a acompanhar a progressiva integração e o
grande prestígio dos xamãs Siona na cena internacional das práticas
neoxamânicas globalizadas. Nesse novo cenário, no entanto, o conceito
de rau perde sua força e centralidade conceitual. Enquanto o conceito
de mana dos Maori ganhou o mundo, o conceito de rau desapareceu
quase totalmente: “Mana tem sido apropriado pelas teologias da Nova
Era como a força vital universal” (TOMLINSON; TENGAN, 2016, p.
14-15) e incorporado por ativistas e acadêmicos indígenas como uma
orientação espiritual nos projetos de educação e reafirmação cultural
(TOMLINSON; TENGAN, 2016, p. 20-21). Entre os Siona do Putumayo,
rau, como conceito do tipo mana, em seu significado de poder ou força
mediadora no universo perspectivista, desapareceu quase totalmente.
Porém, em seu lugar de força mediadora, surgiram os novos xamãs

13
Explicação similar para o desaparecimento dos grandes xamãs pode ser encontrado
em outros lugares, como entre vários grupos de língua pano na fronteira entre o
Brasil e o Peru que deixaram de iniciar xamãs por considerá-los responsáveis
pelas epidemias que dizimaram seus povos (PÉREZ GIL, 1999; LIMA, 2000;
LAGROU, 2007).
122 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Siona, designados como taitas, e a planta Banisteriopsis, ou yagé, como


representações de identidade indígena nas políticas étnicas da Colômbia
e nas práticas da Nova Era. Diferentemente de mana, o termo “rau”
nunca se difundiu além dos grupos de língua Tukano ocidental, apesar
de haver noções semelhantes por toda a Amazônia (CRÉPEAU, 2007;
LANGDON, 2018).
As novas figuras e pinturas a evocarem as “pintas” que os xamãs
Siona têm a mostrar para seus aprendizes colombianos e estrangeiros
durante a experiência cantada com yagé não são mais os enigmáticos
toya, índices gráficos da relação do xamã com uma multiplicidade de
espíritos, mas telas realistas que, mais do que evocar e aludir, retratam
de maneira quase fotográfica as paisagens exuberantes da floresta e os
seres fantásticos que a habitam. Nas imagens, assim como nos conceitos,
passamos “do multivocal para o univocal” (LANGDON, 2018, p. 127),
um lugar onde os visitantes procuram a ilusão de tudo ver, de tudo
reconhecer. Mas o universo do rau, ao manter sua invisibilidade para
olhares não treinados, continua estabelecendo essa ponte peculiar ao
mundo estético ameríndio entre ventos, cheiros, cantos e adornos que,
como imagens fluidas, nunca podem ser nem captadas nem congeladas
para além da relação da qual são o índice, a marca.

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Llorando la muerte del padre: una
narrativa chamánica siekopai de
luto, enfermedad y adhesión al
culto evangélico1

Luisa Elvira Belaunde

En homenaje a Esther Jean Langdon, gran conocedora el


pueblo Siona y a Liberato Coquinche, sabio curandero
del pueblo Siekopai.

La primera vez que leí un texto de Jean Langdon fue en 1990.


Estaba en Inglaterra, haciendo mi doctorado en la London School of
Economics. Acababa de concluir un periodo de trabajo de campo en
la Amazonía peruana con el pueblo Siekopai,2 también llamado Secoya
y Airo Pai, perteneciente a la familia lingüística Tucano occidental y
vecino de los Siona. Como la biblioteca de la universidad no tenía los
libros de Jean en físico, pedí su tesis doctoral en microfilme a través
del sistema de préstamos interuniversitario. Cuando llegó, al cabo
de dos meses, devoré de un tirón su estudio de los sistemas médicos
siona (LANGDON, 1974, 2014), sentada al pie de una lámpara que
permitía leer los microfilms a duras penas. Ahora, 30 años después, me
doy cuenta de que mi lectura de novata dejó, realmente, muchas cosas

1
Este artículo es resultado del Proyecto de Investigación Pconfig código E22150121
financiado por la Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Migrantes indígenas
amazónicos en Huarochiri (Lima), durante la pandemia del covid-19: género, salud,
relaciones interétnicas, movilidades y políticas públicas.
2
El pueblo Secoya, también llamado Siekopai, Airo Pai, Aido Pai, pertenece a la familia
lingüística Tucano occidental y vive en la región fronteriza entre Perú y Ecuador, en
las cuencas de los ríos Napo y Putumayo. La población total siekopai en el Perú
es de aproximadamente 800 personas y de 700 en el Ecuador. En publicaciones
anteriores, he utilizado el nombre Airo Pai, pues este era el autodenominativo usado
en el Perú cuando se presentaban a las personas de las ciudades (CASANOVA, 1980;
BELAUNDE, 1994, 2001).
Llorando la muerte del padre 129

de lado. En la década de los 1970s, la tesis de Jean Langdon sobre los


Siona de Colombia inauguró la etnografía de los pueblos de la familia
lingüística Tucano occidental, en tándem con los estudios que William
Vickers (1976) realizó con los Siona y los Siekopai de Ecuador. Yo le debo
a ambos autores el fundamento de mi comprensión de la singularidad
histórica y sociocultural de dichos pueblos estrechamente relacionados.
Cada nueva lectura de la obra de Jean me trae una mejor comprensión
del trabajo pionero que realizó para caracterizar no solamente al pueblo
Siona, sino también a los otros pueblos de la familia lingüística Tucano
occidental que habitan las cuencas de los ríos Napo, Putumayo y
Caquetá, en la triple frontera entre Colombia, Ecuador y Perú.
A pesar de sus distintos abordajes metodológicos, los estudios de
Jean Langdon y William Vickers comparten el gusto por la vida cotidiana.
El cuidado que ambos autores tienen al retratar, cada cual a su manera,
los detalles de la interacción diaria entre las familias que los recibieron,
les permitió identificar algunos rasgos de los pueblos Tucano occidental
que los diferencian de los pueblos de la rama Tucano oriental. Estos
últimos, habitantes de la cuenca del río Vaupés, en la frontera colombo-
brasileña, han atraído desde los años 1960s a numerosos antropólogos,
debido a su organización jerárquico-ritual y, en especial, a la situación
de subordinación de las mujeres en la estructura patrilineal de exogamia
lingüística virilocal. Los clásicos estudios de Goldman (1963), Reichel-
Dolmatoff (1971), Christine Hugh-Jones (1979), Stephen Hugh-Jones
(1979), Jackson (1983), entre otros, ocuparon rápidamente una posición
de destaque en los debates antropológicos sobre el llamado noroeste
amazónico. Dicho protagonismo condujo a un cierto oscurecimiento de
las especificidades de los pueblos Tucano occidental, contra lo cual Jean
Langdon siempre ha luchado. Ella tuvo la suerte de conocer a pueblos de
ambas ramas de la familia lingüística Tucano, y siempre se preocupó
por subrayar con agudeza las diferencias entre las dos ramas, así
como por señalar las semejanzas y diferencias existentes entre los
pueblos de la rama Tucano occidental, principalmente entre los Siona
y los Siekopai.
Quisiera aclarar que en este artículo utilizo el nombre “Siekopai”
para referirme al pueblo que oficialmente, en Ecuador y Perú, es llamado
Secoya. En mi tesis y demás publicaciones, utilizo el nombre “Airo
Pai”, que significa “gente de este monte” y que es el autodenominativo
de las personas que me acogieron en sus comunidades. En 2019, las
organizaciones ecuatorianas (OISE) y peruanas (OISPE) de este pueblo,
separadas por la frontera, pero estrechamente unidas por el parentesco,
130 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

decidieron que su autodenominativo binacional sería “Siekopai”, que


significa “gente pintada con líneas de colores”, y hace referencia a las
divinidades que brindan conocimientos a los chamanes curanderos
(PAYAGUAJE, 1990).

La mirada hacia lo cotidiano y la caracterización


de los pueblos Tucano occidental
Uno de los rasgos socioculturales comunes a los Siona y los
Siekopai, que los distinguen de los pueblos de la rama Tucano oriental, es
el énfasis colocado en la jerarquía de género. En una serie de publicaciones
de carácter comparativo, Jean Langdon muestra que entre los Siona, la
patrilinealidad y la virilocalidad no constituyen una estructura de linaje
sobrecogedora, como ha sido descrita para los pueblos de la rama Tucano
oriental, donde las mujeres ocupan una posición marginal a lo largo de
sus vidas, con restringida capacidad de decisión y acción propia. Una
de las claves para entender la particularidad sociocultural actual de
los pueblos Tucano occidental, según Jean, está en la dinámica social
de la vida cotidiana y el alto grado de compañerismo que caracteriza
el día a día de las parejas. El entrecruzar y compartir las tareas diarias,
así como el involucramiento efectivo de los hombres en el cuidado de
los niños, son factores sobresalientes de la cotidianidad que modulan el
binarismo de género que está fuertemente presente en otros aspectos más
formales, como el lenguaje ritual y la mitología, pero sin marcar drásticos
antagonismos. Jean también destaca que es necesario tomar en cuenta
las transformaciones históricas de la cotidianidad como determinantes
de diferenciación sociocultural, puesto que los Siona han sufrido las
consecuencias de actividades misioneras católicas y evangélicas, invasión
de colonos y violencia de Estado, actividades de narcotráfico y paramilitar,
a lo largo de su historia pasada y contemporánea. También muestra
que la actual modernización de su economía ha generado cambios en
detrimento de las mujeres, como violencia de género y desvalorización de
sus saberes y prácticas (LANGDON, 1982, 1984a, 1984b, 1988).
Sus conclusiones concuerdan con los resultados de Vickers y
otros autores que trabajaron con los Siona y los Siekopai del Ecuador,
así como con mi propio estudio de los Siekopai del Perú.3 Nuestras

3
Estas conclusiones también convergen con el énfasis teórico y metodológico que
mi orientadora de tesis, Joanna Overing (1986, 1989) colocó sobre la necesidad de
Llorando la muerte del padre 131

etnografías indican que existe una congruencia social e histórica entre


estos dos pueblos vecinos, que, en alguna medida, también se extiende
a otros pueblos de la rama Tucano occidental, como los Macaguaje
y Coreguaje, de la cuenca del Caquetá en Colombia, sobre quienes,
desafortunadamente, hay pocos estudios etnográficos en profundidad
debido a la extrema situación de despojo y violencia colonial que los acosa
desde hace décadas (VICKERS, 1976; TELBAN, 1988; CIPOLLETTI,
1992; MOYA, 1992; BELAUNDE, 1994, 2001, 2019). El estudio de Bellier
(1986, 1990) sobre los Mai Huna del Perú, sin embargo, se aparta un
poco de este cuadro. Esta autora no parte de la vida cotidiana, sino del
análisis simbólico de la mitología y el ritual mai huna para caracterizar
las relaciones de género, subrayando la subordinación y desvalorización
de la mujer. Es probable que el distanciamiento histórico y espacial de los
Mai Huna refleje diferencias internas a la rama Tucano occidental. Por
ejemplo, los Siekopai del Perú sostienen que, a pesar de hablar lenguas
parecidas, los Mai Huna eran sus enemigos y, hasta el día de hoy, no
tienen proximidad con sus comunidades. Pero también es posible que si
Bellier hubiese priorizado la vida cotidiana mai huna para comprender
su mitología y ritual, hubiese llegado a un retrato más próximo a los
Siona y los Secoya, puesto que el corpus mitológico de estos tres pueblos
tiene importantes semejanzas.
Otro rasgo común a los Siona y los Siekopai, que los diferencia de
los pueblos de la rama Tucano oriental, es la práctica del chamanismo y
el curanderismo usando plantas, como el yajé (ayahuasca, Banisteriopsis
caapi) y el yoco (Paullinia yoco). Este es un tema que Jean ha tratado
en profundidad y extensión durante su carrera, literalmente abriendo
los portales de la comprensión del poder chamánico medicinal en la
Amazonía. Aquí también, su gusto por la cotidianidad y la atención
cuidadosa a los detalles de la interacción social entre personas de di-
ferentes edades y géneros le permitieron liberar el chamanismo de los
abordajes más formales que caracterizaban los estudios conducidos
entre los pueblos Tucano oriental. Para Jean, el shamanismo ofrece
mucho más que procedimientos rituales, conceptos mito-cosmológicos
y mecanismos reproducción de la estructura patrilineal. Se trata de
experiencias vividas, recordadas y narradas por las personas, hombres
y mujeres encarnados. Cargadas de afectos, las experiencias
chamánicas, y en particular las experiencias de enfermedad y cura,

partir de lo cotidiano para entender la organización social, la corporalidad, el ritual,


la mitología y la filosofía chamánica de los pueblos amazónicos.
132 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

marcan y redireccionan vidas. Su novedosa propuesta se inspira en


las teorías de autores como Burke (1964), Bateson (1972), Mitchell
(1981), Turner (1981) e Sherzer (1987), que articulan la experiencia a la
performance y la narrativa, en la medida en que, para Jean, el estudio de
las narrativas siona permite entender los episodios de enfermedad
de manera dinámica, como un drama social y una crisis vivida en busca de
una resolución.

Estes autores estão interessados na tradição oral como


“equipamento para viver” e em como a narrativa fornece um
“enquadramento” para a resolução de conflitos dentro de uma
sociedade. O enquadramento é uma forma de metacomunicação
em que a mensagem enviada inclui um conjunto de instruções
de como interpretá-la (BATESON, 1972). Em outras palavras,
a narrativa é uma expressão simbólica que explica e instrui
como entender “o que está acontecendo”, uma das maiores
preocupações e questões que dominam o discurso dos siona nos
casos de doenças graves. (LANGDON, 2001, p. 248).

Jean explora las narrativas siona sobre sus experiencias oníricas


y chamánicas durante la toma de yajé. Le presta atención no solo a los
cantos chamánicos y sus contenidos conceptuales cosmológicos, sino a
la manera como las personas interactúan cuando cuentan sus vivencias
de dimensiones normalmente invisibles. Aquí también, Jean advierte
sobre la necesidad de tomar en cuenta las transformaciones históricas y,
en particular, la influencia de las misiones católicas, más antiguas, y las
misiones evangélicas, má recientes, en la región. A pesar de los procesos
de cambio sociocultural y adhesión al culto evangélico pentecostal,
que condenan y prohíben el uso del yajé, sus estudios muestran que las
performances narrativas de las experiencias extraordinarias continúan
siendo elementos claves del rico repertorio de interacción social
cotidiana siona (LANGDON, 1992, 2004, 2013, 2014).

As performances das narrativas contadas sobre as experiências


com o mundo dos espíritos é uma atividade comum entre os
grupos familiares na madrugada ou no final do dia, ou entre
os grupos de homens reunidos que treinam para serem xamãs.
A performance é um evento interativo, em que o narrador conta
aos outros suas aventuras no lado oculto do universo, descre-
vendo em detalhes as passagens por cada região que visitou e
os espíritos que vieram cantando, apresentando-se e contando
como vivem. Esses eventos narrados são inerentemente intertex-
Llorando la muerte del padre 133

tuais; são performances de performances, recriando as experiên-


cias extraordinárias construídas pelos rituais e testemunhos das
experiências pessoais. Mecanismos poéticos, dramatizações cor-
porais e vocais e estratégias dialógicas constroem a presença do
mundo invisível, sendo que a plateia o experimenta junto com o
narrador. (LANGDON, 2013, p. 184-185).

En este artículo, me inspiro en el abordaje narrativo de Jean


Langdon para analizar un episodio de mi vida con los Siekopai del Perú,
durante el cual me contaron una poderosa historia de luto, enfermedad
y adhesión al evangelismo pentecostal. Esta historia estaba gravada en
una cinta casete desde 2003. Durante años la dejé descansar, guardada
en bolsas de plástico, sin transcribirla. Cuando me convidaron a
participar de este libro en honor a Jean, sentí que había llegado el
momento de volver a escucharla, siguiendo el camino abierto por ella.
Siento, también, que esta es una oportunidad de rendirle homenaje a
Liberato Coquinche, gran conocedor del pueblo Siekopai, quien siempre
me acogió con generosidad y me contó esta entrañable historia.

De vuelta a Vencedor Wajoya


En 2003, volví a la comunidad de Vencedor Wajoya, donde había
realizado la mayor parte del trabajo de campo para mi tesis doctoral a
finales de los 1980s. Llegué con mi primer libro publicado en la mano,
feliz de poder mostrarlo a las personas con quienes había aprendido
tanto y a quienes yo esperaba haber retratado de manera auténtica. La
comunidad había cambiado de lugar y se encontraba más cerca a la
boca del río Santa María sobre el río Napo. Fue una gran alegría ver
a los niños crecidos y en buena salud. Rápidamente, Estela Piaguaje y
su esposo, Liberato Coquinche, me invitaron a quedarme en su casa,
como solía hacerlo hacía diez años. El libro les gustó, pero sobre todo
les gustaron las fotos del pasado que les traje y que pasaron de mano en
mano, entre risas y comentarios.
La segunda noche, cuando dormía en mi mosquitero, bien
cerquita de mis anfitriones, me desperté sobresaltada. Mientras dormía
echada sobre la espalda, había sentido de manera muy vívida que un
hombre Siekopai, bellamente vestido con todos los atuendos rituales,
su túnica, aretes y corona, estaba sentado sobre sus rodillas detrás de
mí y había puesto su mano izquierda sobre mi hombro. Me sobresalté
cuando, en sueños, me volteé y lo vi, sentado con la espalda recta y el
134 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

rostro sereno. Abrí los ojos, miré alrededor y me convencí de que había
sido un sueño, pero para evitar que volviese a producirse la visión,
decidí echarme acurrucada sobre el costado izquierdo. Me dormí sin
darme cuenta y rápidamente, creo, me volví a despertar sobresaltada.
Apenas había cerrado los ojos cuando se me volvió a aparecer el mismo
hombre Siekopai, con todos sus atuendos. Esta vez lo vi mejor y noté
que su piel era verde pálido, color pastel blanquecino. Él estaba a cuatro
patas, con manos y pies en el suelo. Con una actitud juguetona de niño
travieso, acercaba su cabeza al piso de manera que su rostro llegó al
nivel del mío y nuestras miradas se encontraron. Cuando consiguió que
yo lo mirase de frente a la cara, me habló. “Ese que tu viste, soy yo”,
me dijo. Con estas palabras, me desperté atónita. ¡No podía creer lo
que había pasado! Entonces, esperé despierta a que Liberato y su esposa
se levantaran.
Como siempre, Liberato salió de su mosquitero antes del
amanecer. Raspó las lianas de yoco (Paullinia yoco) que tenía guardadas
en una esquina de la casa, bebió el líquido amargo y comenzó a torcer
hilo de chambira (Astrocaryum chambira). Después de un tiempo,
Estela se levantó, y yo aproveché para salir del mosquitero también y
sentarme junto a ellos. Sin poder contenerme, les conté lo que había
soñado. Liberato me miró sonriendo, algo tímido, mientras Estela se
reía y, con un típico estremecimiento de los hombros a la cabeza, decía,
“¡cadaye! ¡qué miedo!”. Al amanecer, fuimos a bañarnos al río, junto
con toda la comunidad, y volvimos a la casa para vestirnos y peinarnos.
Al poco rato llegó Oscar Vasquez Macanilla, el jefe de la comunidad.
Con su característico buen humor matutino, vino a ver qué planes
teníamos para el día. Cuando Estela le contó lo que yo había soñado,
me dijo riendo: “¡Vente a dormir a mi casa! ¡El wati de Liberato te está
molestando!” “¿Cómo así?”, le pregunté. Yo sabía que Liberato había
sido un gran yage uncuquë, “bebedor de yajé”, y como todo practicante
del chamanismo tenía su wati que lo acompañaba. Pero Liberato había
dejado de tomar yajé hacía años, antes de que yo lo conociera. ¿Por
qué su wati vendría ahora a molestarme por la primera vez? “Es que
tú estás regresando después de muchos años. Te ha venido a ver”, me
dijo Oscar, con tono bromista. “Ese wati nunca se va. Por más que ya
no tome yajé, ese nunca deja de acompañar. Es pai joyo wati, el wati
del corazón de la gente, el compañero del ayahuasquero”. Como me
estaba hablando en castellano, Oscar usó indiferentemente las palabras
“yajé”, en Siekopai, y “ayahuasca”, comúnmente usada en la Amazonía
Llorando la muerte del padre 135

peruana, para referirse a la planta central del chamanismo que sus


padres y abuelos les habían enseñado.
Cuando Oscar se fue, Liberato me dijo que me iba a contar cómo
eran las cosas antes, cuando su padre estaba vivo. Fue una sorpresa
para mí, porque cuando estaba haciendo mi investigación doctoral, era
yo quien siempre pedía que me narrara historias. Rara vez me ofrecía
contármelas espontáneamente. No sé si fue porque el libro y las fotos
le habían gustado, pero Liberato me pidió que grabara la historia que
me narró. Habló en español, y la única interrupción fue cuando tuve
que cambiar de lado el casete. Transcribo aquí sus palabras, intentando
seguir el ritmo de su narrativa, separándola en frases y parágrafos. Para
ser fiel a mi material etnográfico, mantengo la integridad de su relato
y de su manera de expresarse en castellano, una lengua que Liberato
hablaba con dificultad, usando construcciones gramaticales propias del
castellano usado por los Siekopai del Perú en 2003. Le pido al lector que
mantenga esto en mente al leer las frases que, de otra manera, podrían
ser consideradas simplemente gramaticalmente erradas.
Relato contado por Liberato Coquinche en la comunidade
Vencedor Wajoya, en 2003:

A mis 15 años, me dice mi padre: “¡Bueno muchacho, vas


a estudiar!”.
De allí me dice: “A los 15 años yo he probado ayahuasca.4 He
tomado y he amanecido, como a esta hora, a las 7”, me dice
mi padre.
“Hijo, tu buen curandero vas a ser”, me dice.
De allí, yo estaba escuchando.
De allí, me dijo mi padre: “¿Lo que enfermo, cómo yo gano?5
Cuando muchacho enfermo, yo curando, yo gano; una manta me
paga”, me dice mi padre.
De allí yo escuchaba.
“¡Tu así te vas a criar! Vas a tomar ayahuasca; como yo vas a
quedar. Así vas a curar todo enfermo, viejo, muchacho, niño. Así
vas a curar. Cuando sana, como a mí te pagan; así vas a ganar”,
me dijo mi padre.

4
Como está hablando en castellano, Liberato utiliza la palabra “ayahuasca”
comúnmente usada en la Amazonía peruana para referirse al yajé.
5
Liberato se refiere a que los pacientes sanados retribuían los servicios del curandero
con objetos de valor, como una manta o una hamaca.
136 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

De allí, ya comencé a tomar ayahuasca. Me ha enseñado a


preparar ayahuasca. Como a las 9 de la noche, he tomado, toda la
noche y he amanecido. Como a las 8, levantaba. De allí vomitaba,
de allí otra vez he cocinado, también igual tomaba. De allí, he
amanecido. He agarrado barriga, borracho he amanecido.
“Bueno hijo, tú no puedes estar con las muchachas. ¡Hay que vivir
bien, solito, no acompañar a tu familia! No puedes acompañar,
otros muchachos malos, hablan. Puro mujeres, hablan. No
puedes acompañar mujeres”, me dice mi padre.
Yo escuchaba. “Bueno así me voy a criar”, pensaba.
De allí, ya no he tomado hasta los 18 años.

De allí he tomado. Solito, yo vivía.


De allí, como cinco días descansaba, otra vez tomaba. ¡Pero
me gustaba duro! De allí más, toda la noche tomaba. De allí,
preparaba ayahuasca como a las 10, mi padre me dejaba cantando
toda la noche, borracho.
“Ya hijo, tú ya sabes. Tú ahora vas a curar niños, viejos”, me dijo
mi padre.
Otra vez, cocina como dos ollas. Mi compañero también ya tenía.
De allí, tomaba toda noche. ¡Pero me gustaba duro!
¡Pelado mi cara! ¡Toda mi cara parece pelado! En la hamaca
gritando me he amanecido!
De allí, me he levantado borracho. Otra vez borracho, así
he vivido.

Como a los 20 años, ha venido mi esposa. Hasta los 20 años,


soltero vivía.
De allí, también vivía mi esposa solita, yo solo he vivido. ¡Mi
esposa casi me ha dejado! Solito yo tomaba ayahuasca, ¿no?
Mi padre me dice: “¡No mires a las mujeres! ¡Usted tomando
ayahuasca! ¡Tú mirando mujeres, cuidado vas a malograr!”
Duro mezquinaba. Pescado, carne, pescado, todo me
ha mezquinado.
“Pura dieta”, dice mi padre.
“Usted ya ha visto todo en este mundo; todo aquí en la quebrada,
usted ya conoce. ¡Ahora vas a salir curandero!”, me dice.

De allí, a mis 23 años, “uno te ha faltado para cantar toda la


noche”, me dijo mi padre.
Llorando la muerte del padre 137

“Preparando tres veces, vas a cantar toda la noche. ¡Allí vas a


salir curandero!”, me dijo me padre.
De allí, ha venido el pastor. Mi padre estaba enfermo.
El pastor le ha dicho: “Dios es lo que salva, esa ayahuasca no
te salva”.
Mi padre lo ha oído: “Bueno, así voy a vivir. Con oración voy a
vivir, con bautizado voy a vivir”.
De allí, yo estaba bien conociendo todo en el cielo y también
todo wati.6 ¡Todo he conocido!
“¿Cómo voy a dejar?”, he pensado. “¡Todo he visto, todo
he conocido!”

De allí, mi padre me dice: “¡Vamos a dejar, hijo! Toda la gente


está hablando así: ‘¡Ese ayahuasquero va a salir brujo!’”.
“¡Ahora no vas a tomar! ¡Vamos a dejar, hijo! Dejando, solamente
curando vamos a vivir, niños, viejos. Así vamos a vivir”, me dice.
Ha venido misionero de evangelio, a mi padre ha bautizado.
“Bueno hijo, tú también puedes bautizar con misionero.”
De allí, hacía culto, vigilia. De allí, yo también, ya estoy orando a
Dios, orando a Dios.

De allí, he vivido.
De allí, ya tenía mis hijitos. Mataba tigre y yo no moría. Todo
animal comía y no me enfermaba. ¡Ayahuasquero muy mentiroso
ha sido!7
De allí, he vivido y mi padre ha vivido bien sanito. Cantaba en la
madrugada solito.
De oraciones vivía mi padre, de oraciones ha vivido. Y a la
otra gente que venía curaba; y regalaban carne, un pedacito,
un pedacito.
Hasta que mi padre se falleció. Me ha dejado a mí.
Se fue al cielo. Me ha dejado a mí.

6
Liberato se refiere a que su aprendizaje con yajé lo llevó a “ver” tanto a las divinidades
celestiales, como a los wati. Estos son una diversidad de seres que habitan el cosmos
por debajo del ámbito celestial. Explicamos la noción de wati en la próxima sección.
7
Liberato se refiere a que las prohibiciones alimenticias y sexuales que le fueron
impuestas durante su aprendizaje eran una “mentira” porque, cuando el adhiere al
culto evangélico y quiebra esas prohibiciones, no le sucede nada malo. Retomamos
este tema más adelante.
138 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Yo lloraba.
¡Qué año voy a ver a mi padre!
De allí, lo buscaba. ¿Dónde se fue mi padre?
En mi sueño, ¡nada, no puedo encontrar!
De allí, dos días, mi sueño me ha agarrado.
“Con Dios estaba”, me dice. “Mírame, soy tu padre.”

Parece mosquitero, me quise meter.8


De allí, como cinco metros adentro, adentro bien brilloso, se fue.
¡Parece el linterna!
De allí, yo he seguido a mi padre.
De allí, yo caminaba; a una quebrada9 he llegado. Bien corrientoso.
“Hasta aquí no más puedes llegar”, me dice mi padre. “Hasta aquí
no más te puedo dejar.”
¡Parece linterna!10 Se fue mi padre. Cielo se fue, matëmo, matëmo.

De allí mismo he regresado.


He llegado a un cementerio. Mirando, otro se metió en
el cementerio.
Cuando yo he llegado, allí estaba sentado el wati;11 sentado wati.
De allí, he pasado. De allí, he despertado.
De allí, he pensado: “Ya me ha dejado mi padre, ya se fue al cielo.
Mi padre se fue. Hasta ahorita mi padre está viviendo allí”.

De allí, dos días ha venido mi padre, lo que he mirado, pai joyo


wati. Lo que murió, corazones, lo que ha muerto. Antes, lo que

8
La expresión en castellano “parece mosquitero” es usada por Liberato, y por otros
conocedores Siekopai, para explicarle a una persona de fuera, como yo, que se trata
de otro ámbito o lugar (hueña) del cosmos, al cual se accede en visiones de yajé o en
sueños. Levantar el mosquitero y entrar en él son maneras de referirse, en castellano,
a la idea de entrar en otro ámbito cosmológico de experiencia visionaria.
9
La palabra “quebrada” significa “río pequeño” en el castellano regional.
10
La expresión “parece linterna” es característica de la manera como los Siekopai se
refieren en castellano a la luminosidad que acompaña la experiencia chamánica de
los seres poderosos, especialmente de las divinidades celestiales del matëmo.
11
Se refiera al pai joyo wati, es decir, el “wati del corazón” de los chamanes muertos.
Explicamos esta noción en la siguiente sección.
Llorando la muerte del padre 139

vivía. Bueno, parece vivo, ¿no?12


Mi padre ha venido.
“Hijo, en tu casa voy a vivir.”
Yo estaba sentado en la hamaca.
“Bueno, vivimos, papá”, le dije.
“Así voy a vivir, yo en hamaca sentado, usted del otro lado.”13 De
allí, se ha echado.
“Bueno, vivimos, papá, así, aquí en mi casa.”
De allí, han pasado como diez días, comenzó a traer a otros wati.
¡Más gente viene!14 Como mi casa ¿no? Así sentado,
¡puro, ayahuasquero!
¡Puro curandero! Lo que ha sido, lo que ha muerto.
Ohohohh, ¡llenito mi cuerpo! Han llegado. Parece una
casa, parecido.15
Han llegado, sentados, todo gente. Han venido, ¡llenito
mi cuerpo!
Mi padre, lo que ha conocido pai joyo wati, ha llegado. Pero no
es mi padre. Mi padre se fue cielo.

Bueno de allí, mi sueño dos veces.


Primero ha llegado. “¿Dónde está mi hijo? Quiero llevar ahorita”,
me dice.
Un cuarto, una casa, ¿no? Yo he entrado.
De allí, se ha corrido, se ha escapado mi padre, wati.
De allí, otra vez un sueño.
“¡Ahora sí! ¡Te va a llevar tu padre!”, así me dijo.
¡Engañando pai joyo wati! Quiere comer a mí.16

12
Aquí Liberato me está explicando que el pai joyo wati, es decir, el “wati del corazón”
de su padre, se le aparece en sueños con la imagen de su padre. Explicamos este
pasaje más adelante.
13
Es usual que padre e hijo se sienten a conversar en la misma hamaca, sentados frente
a frente, cada cual en un lado de la hamaca.
14
Liberato se refiere a los pai joyo wati de los chamanes muertos que su padre había
conocido cuando estaban vivos.
15
La “casa” a la que se refiere es el “cuerpo” de Liberato. Los pai joyo wati se instalan en
el “cuerpo” de Liberato. Explicamos este pasaje más adelante.
16
Liberato se refiere a que el pai joyo wati aparece con la imagen de su padre tiene la
intención de “comérselo”, es decir de causarle enfermedad y muerte.
140 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

“¡Quiero llevar de este mundo. Quiero ser su jefe!”, me dice.


De allí, yo me he corrido.
Así, yo he cruzado por otro camino.
De allí, he encontrado a mi padre, parecido a mi padre, wati. Lo
que miraba mi padre, lo que tomaba ayahuasca.
De allí ha llegado. Me ha agarrado así mi mano.
“Bueno hijo, ahora no vas a vivir. Voy a llevar”, me dice.
“¡No, mi padre, no! Tengo mi hija, tengo mi hijo, tengo mi
hermano, tengo mi mamá, ¡cómo voy a dejar, mi padre!”, le
he dicho.

“¡No!, ¡Te voy a llevar!”, me dice mi padre. “¡Voy a dejar, voy a


llevar!”, me dice mi padre.
De allí, ha venido mi tío. Le pide:
“Mira mi hermano, ¡tiene su hijo, tiene su hermano, tiene su
mamá, tiene su familia! ¿Cómo vas a llevar? Lo que muere,
terminando su vida, hasta ese mismo camino va a caminar”, le
dice mi tío al wati.
“¿Verdad?”, dice el wati.
“Ya”, dice el wati, en dos días no más voy a soltar.
De allí, me ha soltado a mí.
Me ha soplado todo mi cuerpo.
De allí, me ha dejado mi cuerpo.

De allí, ¡Oooooh más llenito mi casa!17


Dietando vivía enfermo. Con Mariano18 me he curado. Enfermo,
viviendo; así estaba viviendo.
Pensaba ahora, otra vez oración; llorando oración. Voy en el
monte, llorando oración.
De allí, una noche, parece mi casa. Parece mi pierna grande,
parece arriba, como mi pierna así, empuja ¡Paaaaaahhhhh!
Todos, allí mismo, ¡parece luz eléctrica!
Mi casa, así parecido, se fue wati cayendo, po po po.
Se fue el wati brincando, brincando, brincando. Se fue corriendo,
corriendo, corriendo.

17
Este pasaje se refiere a que la casa/cuerpo de Liberato continua llena de los pai joyo
wati de los chamanes muertos amigos de su padre.
18
Mariano Vásquez fue un reconocido bebedor de yajé de la comunidad de Vencedor
Wajoya y pariente próximo de Liberato.
Llorando la muerte del padre 141

Todos se han corrido. Vacío mi casa se ha quedado.


De allí, se ha quedado bueno.
De allí, estaba pensando en Dios. Oraciones vivía,
oraciones vivía.

De allí, uno se ha quedado, wati jefe.


Ese ha llegado como a los dos meses.
Así ha venido wati jefe. Adonde voy, me está siguiendo.
Más oraciones vivía, así, así.
A caminar me voy y me está siguiendo.
Más oraciones, así, así, así. De allí, yo viviendo con oración.
Y wati jefe se fue, se fue al cementerio. Se ha quedado y allí vive.
Vive en cementerio.
“Allí puedes vivir tú. Ahora, ¡no molestar a mí!”, le dije.
Teniendo miedo, más lejitos completando ¡Hasta ahorita, ya
ni aparece!
¡Ni he probado ayahuasca! ¡Muchacho así criado, ahora ni mirar
siquiera! ¡Nada!
Puro oración. Solamente oración viviendo y ahora estoy
tranquilo.

El “wati del corazón de la gente”


Hago un resumen del relato para resaltar los eventos claves de la
trama contada por Liberato. La narrativa se inicia cuando Liberato tenía
15 años y su padre le da de tomar yajé por primera vez y le dice que
será curandero como él. A los 18 años, Liberato comenzó su aprendizaje
en reclusión solitaria, bebiendo yajé, respetando dietas, viviendo
lejos de los demás jóvenes y sin tener contacto con mujeres. A los 20
años, su padre le entregó a Estela como esposa, pero Liberato siguió
tomando yajé, lo que casi le costó una ruptura matrimonial, porque
dejaba mucho tiempo sola a su esposa. Cuando tenía 23 años, llegó a la
comunidad un pastor Siekopai del Ecuador trayendo el culto evangélico
pentecostal, y su padre, que estaba enfermo, decidió seguirlo. Dejó de
tomar yajé, se bautizó y comenzó a curar “orando a Dios”. Liberato
quería continuar aprendiendo a “ver” con el yajé, pero aceptó el pedido
de su padre. Nacieron sus hijos y así vivieron, sin tomar yajé, hasta que
su padre falleció.
142 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

A partir de ese punto de inflexión, Liberato cuenta como,


inconsolable por la muerte de su padre, lo buscó en sueños y pudo verlo
cuando partía al “cielo”. Pero también fue acosado en sueños por el pai
joyo wati de su padre, es decir, por el “wati del corazón” de su padre
que lo aguardaba en la tumba de su padre. Siguen otros sueños, durante
los cuales Liberato logra librarse del pai joyo wati de su padre, pero es
asediado por los pai joyo wati de otros chamanes muertos, que entran
en su “casa/cuerpo” y le causan enfermedad. Liberato se mantiene firme
“orando a Dios” y logra expulsar a la multitud de pai joyo wati que se
le habían metido adentro. El último episodio cuenta que el “jefe” de los
wati reconoce a Liberato como su “jefe”, deja de asediarlo y se va a vivir
al cementerio.
La palabra wati es, probablemente, imposible de traducir
correctamente. Es una noción clave del chamanismo de los pueblos
Tucano occidental, que los estudios de Jean Langdon y William Vickers
y otros autores, como los sabios Siekopai Celestino Piaguaje y Fernando
Payaguaje, y la antropóloga María Susana Cipolletti, han examinado
en sus estudios (PIAGUAJE, 1990; PAYAGUAJE, 1990; CIPOLLETTI,
2008; LANGDON, 2013). Existen muchísimos tipos de wati en el
complejo cosmos de los pueblos Tucano occidental, con sus múltiples
lados de percepción y sus capas superpuestas de mundos, repletos
de diferentes lugares. Dada esta diversidad, es imposible encontrar
una traducción única de la palabra válida para todos los contextos
etnográficos. En el caso de los Siekopai del Perú, la palabra wati suele ser
traducida en castellano como “diablo” o “demonio”, pero por lo general,
usan la palabra sin traducir. Personalmente, considero que “monstruo”
podría ser una mejor traducción porque los wati son, en muchos casos,
seres que tienen alguna deformidad. Tienen comportamiento de ogros
devoradores de personas y causan estremecimientos de “miedo” (cadaye);
pero también pueden causar risa, porque son seres propensos a generar
engaños. Son peligrosos y, al mismo tiempo, risibles (BELAUNDE,
2001; CIPOLLETTI, 2008).
Hay un tipo de wati particularmente importante en el chamanismo
de las familias siekopai del Perú con quienes yo trabajé. Es el pai joyo
wati, el “wati del corazón de la gente”. Es el espíritu compañero del
chamán. Suele presentarse en sueños o visiones de yajé con la apariencia
de pai, “gente”. En el caso del chamán masculino, lleva puestos su túnica,
collares, plantas perfumadas en los antebrazos, pintura facial y corona.
Pero también puede revelar algo monstruoso, porque puede mostrar su
pecho transparente, dejando ver el corazón latiendo. Además, puede
Llorando la muerte del padre 143

sacarse el corazón del pecho para mostrarlo en su mano. Su asociación


al corazón se debe a que, según la concepción siekopai, el centro del
pensamiento, la escucha, la memoria y la voluntad de las personas está
su joyo, una palabra que ellos traducen en castellano como “corazón”,
y que se sobrepone en parte al órgano circulatorio, que es llamado
ahuë. Es decir, el pai joyo wati es un aspecto espiritual de las entrañas
del chamán, pero que puede residir dentro del chamán y fuera de él
(BELAUNDE, 2001).
No pretendo aquí examinar esta compleja noción. Solo quisiera
subrayar que el pai joyo wati es el espíritu auxiliar del chamán y el
ejecutor de su poder, pero es un compañero con el cual siempre existe
una tensión, puesto que el chamán curandero debe lograr “mandar”
sobre su pai joyo wati y hacer que este le obedezca como un “soldado”, y
no viceversa.19 El pai joyo wati es un ogro antropófago, por eso debe ser
controlado. Si el chamán se deja llevar por su pai joyo wati compañero,
se “comerá” a los vivos, es decir, será un “brujo” que causa enfermedad y
muerte a los demás. “Le comió la barriga” es una expresión típicamente
usada por los Siekopai en castellano para expresar el acto de brujería
de un chamán que causa enfermedades mortales alrededor. Es decir,
el pai joyo wati es un aspecto espiritual asociado a las entrañas del
chamán que, de no ser debidamente gobernado, amenaza con comerse
las entrañas de los demás, inclusive de sus propios parientes cercanos
(BELAUNDE, 2000b).
La preocupación intrínseca al chamanismo siekopai por
mantener el control sobre el “wati del corazón” se incrementa cuando
muere el chamán, y los diversos aspectos espirituales que componían
su persona se dispersan. Según me explicaron los Siekopai del Perú
con quienes trabajé, cuando un chamán muere, su joyo, “corazón”,
asciende al ámbito celestial de luz, llamado matëmo, donde reside
la divinidad principal, Ñañe, también llamado “Dios” en castellano;
pero, su pai joyo wati se queda merodeando cerca al cadáver, dispuesto
a devorar a los vivos. En el pasado, cuando un bebedor de yajé moría,

19
En Siekopai dicen que el chamán debe ser el “ëja’ë” y el pai joyo wati debe ser “joya’ë”.
Estos son conceptos claves de las relaciones de autoridad siekopai que he analizado en
otro lugar (BELAUNDE, 2001, 2019). La traducción de estas palabras en castellano
depende según el contexto en que son utilizadas. “Ëja’ë” puede ser traducido como
“padre”, “el que cría”, “jefe” o “comandante”. “Joya’ë” puede ser traducido como “hijo”,
“criado”, “domesticado” o “soldado”. En el caso de la relación entre el chamán y su pai
joyo wati, la traducción utilizada suele ser “comandante” y “soldado”, enfatizando que
el “soldado” debe obedecer al chamán.
144 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

era enterrado debajo de la casa, y esta era abandonada por el temor a


que su pai joyo wati pudiese “comerse” a sus habitantes. Por un lado,
este peligro se mantenía eminente durante muchos años, evitándose
siempre pasar cerca de las habitaciones convertidas en cementerio. Por
otro lado, la peligrosidad del pai joyo wati era domesticada cuando un
hijo, o pariente próximo del chamán fallecido, lo heredaba y conseguía
someterlo a los mandatos de su propio “corazón”. La herencia del pai
joyo wati se realizaba en sueños, durante los cuales el pai joyo wati
del chamán fallecido se aparecía bellamente vestido y le ofrecía a su
heredero un arma, que podía ser una bodoquera tradicional o un
arma de fuego. El soñador podía aceptarla o rechazarla. Si la acepta,
adquiría poder chamánico para manejar los dardos invisibles que
podían servir tanto para curar como para cometer actos de brujería,
causando enfermedades y muerte (BELAUNDE, 2000b, 2001).
María Susana Cipolletti (1987, 1988a, 1988b, 1992) ha escrito
en profundidad sobre las transformaciones post-mortem de los
diferentes elementos que constituyen a la persona Siekopai, a partir
de sus estudios con los Siekopai de Ecuador. También ha seguido de
cerca la vida y muerte del renombrado “bebedor de yajé” Siekopai
ecuatoriano, Fernando Payaguaje (1990), quien, en una publicación
propia, explica que existe un frágil límite entre curar, por un lado, y
causar enfermedades y muerte, por el otro lado. El título del libro de
Cipolletti (2008), La tentación del mal, publicado tras el fallecimiento
de Fernando Payaguaje, examina los dilemas éticos encarados por el
chamán desde el inicio de su aprendizaje, y la importancia otorgada
a la perseverancia de su decisión de lograr “ver” a las divinidades y
curar, evitando cometer actos de brujería. Su concepción de la doble
valencia del poder chamánico otorgado por el yajé tiene convergencias
con el chamanismo siona, que Jean Langdon ha analizado desde
su tesis doctoral, mostrando que el poder chamánico dau puede
inclinarse tanto hacia la generación de vida y salud, como hacia la
enfermedad y la muerte (LANGDON, 1992, 2004, 2013). El libro
publicado por Jean en base a su tesis de doctoral, La negociación de
lo oculto (LANGDON, 2014), examina preocupaciones con el poder
de muerte del chamanismo encaradas por los curanderos Siona que
también surgen entre los Siekopai.
A mi parecer, el relato que Liberato me confió en 2003 sigue
la línea de los dilemas asociados al poder chamánico presentes en
las etnografías de estos dos pueblos de la familia Tucano occidental;
Llorando la muerte del padre 145

con la particularidad que el relato de Liberato se sitúa explícitamente


en el contexto histórico reciente de la adhesión al culto evangélico
pentecostal. El testimonio de Liberato muestra, entre otros aspectos,
que la adhesión al culto evangélico afecta la situación post-mortem
del chamán, aunque solo de manera parcial: el joyo del chamán que
adhiere al evangelismo, es decir, su “corazón”, sigue el mismo destino
que antes y se va al matëmo, el cielo de luz. Su pai joyo wati, en cambio,
ya no tiene quien lo herede y se vuelca contra el hijo del chamán, quien
lo hubiera debido heredar y domesticar20 (BELAUNDE, 2000a).

Diálogos con un padre desdoblado en tres


Ahora quisiera examinar algunos elementos narrativos puestos
en acción en el relato de Liberato, intentando seguir las pautas de
análisis propuestas por Jean Langdon. Solamente presentaré los aspectos
principales del encuadramiento temporal, el drama del relato y su
resolución, la estructura dialógica narrativa y el significado chamánico
de algunas expresiones. Un análisis más detallado requeriría un artículo
más extenso. Es importante tener en mente que el relato que estamos
analizando no es una típica narración siekopai, en la medida en que es
un testimonio en castellano dirigido a mí, en un contexto de interacción
muy singular, en respuesta a los sueños que yo había tenido la noche
anterior. Si Liberato lo hubiese narrado en Siekopai, para un público
Siekopai, y en otras circunstancias, probablemente su relato no incluiría
ciertas explicaciones, y la construcción narrativa sería diferente. Sin
embargo, a mi parecer, su relato contado en castellano a una antro-
póloga de visita también revela algunos elementos característicos
narrativos siekopai.
La narrativa está encuadrada temporalmente en un periodo
cronológico que se inicia cuando Liberato tenía 15 años y termina en

20
Cipolletti (2008, p. 102) recoge un testimonio de Fernando Payaguaje que advierte
sobre las consecuencias del abandono del chamanismo debido a la adhesión al
culto evangélico y la influencia de los mestizos. Si nadie está preparado a heredar y
domesticar los wati de sus ancestros, estos permanecerán sueltos, atacando a todos
los humanos con sus enfermedades. Fernando Payaguaje explica que el decidió
seguir tomando yajé para evitar esta hecatombe. “Antes, en el tiempo de los abuelos,
dice que contaban así: cuando ya no quede ninguna persona que tome yajé, eso va a
pasar [el fin de los Secoya]. Por eso, al oír esto, yo tomaba yajé, para que no suceda.
Por eso tomaba para ver más visiones”.
146 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

el presente, cuando Liberato me contó su historia. El paso del tiempo


es expresado por medio de menciones a la edad que Liberato tenía
cuando sucedieron acontecimientos marcantes en su vida, por las veces
y número de noches durante las cuales tomó yajé, y también por el uso
recurrente de la fórmula lingüística “de allí”. Esta expresión en castellano
se repite constantemente a lo largo de relato para indicar la secuencia
temporal, el cambio de acción y el cambio de sujeto de enunciación.
El eje temático central que atraviesa todo el relato es la crianza con
ayahuasca que Liberato recibió de su padre para que aprendiera a ser
“buen curandero” igual a él, curando a “viejos, muchachos y niños”. Esta
intención introduce una proyección hacia el futuro que es claramente
expresada en el primer parágrafo, cuando el padre de Liberato le dice,
de manera imperativa: “¡Como yo vas a quedar!”. Liberato deja claro
que, por medio de la crianza con ayahuasca, su padre lo preparó
para que fuera su réplica y heredero: “‘¡Tu así te vas a criar! Vas a tomar
ayahuasca; como yo vas a quedar. Así vas a curar todo enfermo, viejo,
muchacho, niño. Así vas a curar. Cuando sana, como a mí te pagan; así
vas a ganar’, me dijo mi padre”.
Al final del relato, la idea de la crianza con ayahuasca vuelve,
pero la situación ha cambiado. El padre ha muerto y Liberato ya no
cura con ayahuasca, sino con “oraciones a Dios”. Principalmente, ha
logrado curarse con oraciones a sí mismo del luto y la enfermedad que
le ocasionó la muerte de su padre. Dejó de lado la crianza con ayahuasca
a la que su padre lo destinó, pero siguió siendo fiel a su padre, puesto
que fue él quien decidió que debería dejar de tomar yajé y curar con
oraciones. Las dos últimas frases del testimonio cierran el círculo del
tema de la crianza con ayahuasca abierto al inicio de la narración, y
describen la situación presente de Liberato, en el momento en que me
contó su testimonio: “¡Ni he probado ayahuasca! ¡Muchacho así criado,
ahora ni mirar siquiera! ¡Nada! Puro oración. Solamente oración
viviendo y ahora estoy tranquilo”.
La expresión “ni mirar siquiera”, se refiere a que Liberato ya
no busca ver otros ámbitos del cosmos usando yajé ni en sueños. Es
solamente por medio del rezo, “puro oración a Dios”, que él practica el
curanderismo. Cuando su padre falleció, el deseo de volver a verlo le hizo
volver a la búsqueda de visiones en sueños, a pesar de que llevaba años
de adhesión al culto evangélico. Las situaciones agonísticas que vivió
en sueños subsecuentemente y la enfermedad que le causaron solo se
resolvieron cuando él decidió abandonar definitivamente la búsqueda de
visiones y ceñirse firmemente a la oración. La última expresión, “y ahora
Llorando la muerte del padre 147

estoy tranquilo”, es característica de las secuencias narrativas siekopai,


cuando hablan en Siekopai y en castellano. Al concluir un relato, el o la
narradora siempre suele terminar describiendo su situación actual en
términos de quietud, de estar sentado contando la historia en un estado
de calma, recordando apaciblemente aquello que fue escuchado de otros
o lo que sucedió y fue vivenciado por sí mismo. En el caso del relato de
Liberato, la referencia a la tranquilidad al final de su narración, además,
contrasta claramente con el desconsuelo del luto, la lucha contra los wati
y la enfermedad de la que salió vencedor gracias a la “oración a Dios”. La
conclusión, “y ahora estoy tranquilo” afirma, por tanto, la resolución de
los conflictos dramáticos que son narrados a lo largo del relato.
Para entender mejor la lógica narrativa de este drama, es necesario
enfocar la estructura dialógica del relato. La secuencia temporal de los
acontecimientos se teje en torno a diálogos que Liberato mantuvo con
su padre y las citas constantes de las palabras de ambos, las de su padre y
las suyas, explicitando quién dijo qué y quién escuchó, y quién respondió
o actuó en consecuencia de este intercambio dialógico. Cuando el padre
de Liberato muere, y este se le presenta en sueños, el diálogo continúa,
pero su padre se desdobla en dos seres distintos, ambos con la apariencia
de su padre. Uno es el joyo, el “corazón”, de su padre que se va a la luz
del “cielo” a unirse con Dios; otro es el pai joyo wati, es decir “wati del
corazón” de su padre, que se queda en su tumba y asedia a Liberato.
Sin embargo, Liberato llama “padre” a las tres entidades de su padre: su
padre vivo; el “corazón” de su padre muerto que continúa viviendo en
el “cielo”; y el “wati del corazón” de su padre muerto, que lo esperaba
en el cementerio. Los tres son llamados “padre” en el relato, pero Liberato
indica cuando se trata del “wati del corazón” de su padre, introduciendo
algunas explicaciones dirigidas a mí, marcándolo con ambigüedad, es
y no es su padre: “Parece vivo, ¿no?”, explica Liberato, para darme a
entender que ese “padre” es solamente “parecido a mi padre” y no está
vivo, ni en la tierra ni en el cielo. Es el “wati del corazón” que su padre
veía cuando estaba vivo y tomaba ayahuasca.
Otro rasgo saliente de los diálogos con el padre es que, en gran
parte del relato, el padre es quien habla y propone, mientras Liberato
escucha y acepta lo que su padre sugiere, aunque no sea lo que él
quisiera hacer. Por ejemplo, cuando el padre decide adherir al culto
evangélico, abandonar la toma de yajé y comenzar a curar solamente
“orando a Dios”, Liberato accede, aunque el deseaba seguir aprendiendo
para lograr “ver” todos los seres y lugares del cosmos. Esta actitud de
respeto a la autoridad del padre se mantiene en los diálogos oníricos
148 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

con el “corazón” de su padre, que se va al cielo de luz, y, también, al


principio de la interacción onírica con el “wati del corazón” de su padre,
quien viene a sentarse en su hamaca. Pero llega un punto de quiebre,
en el que Liberato cambia de actitud y le dice claramente “No”. En la
grabación, este quiebre es enfatizado por el tono, ritmo y volumen de
voz de Liberato. Él se niega firmemente a seguir al “pai joyo wati” de su
padre que quería llevárselo “de este mundo” para transformarse en
“su jefe”. Liberato argumenta que no puede dejar solos a sus parientes
que dependen de sus cuidados: “‘¡No, mi padre, no! Tengo mi hija,
tengo mi hijo, tengo mi hermano, tengo mi mamá, ¡cómo voy a dejar,
mi padre!’, le he dicho”.
La negativa de Liberato, sin embargo, no es suficiente para
convencer al “pai joyo wati” de su padre. Es la intervención del hermano
del padre, quien repite las palabras de Liberato y promete que cuando
llegue el momento de su muerte, “terminando su vida”, entonces
Liberato seguirá su mismo camino, lo que convence al “pai joyo wati” de
soltar temporariamente a Liberato. A partir de ese momento, el diálogo
entre Liberato y su padre acaba. El resto del relato cuenta cómo, por
medio de la “oración a Dios”, Liberato consigue librarse de la multitud
de “pai joyo wati” de otros chamanes muertos que se le habían metido
en el “cuerpo”. Su cuerpo es presentado como una “casa” que había sido
invadida por los pai joyo wati, a quienes logra expulsar cuando, de tanto
orar, su pierna crece y le da una tremenda patada luminosa a su propio
cuerpo, espantando a todos los invasores.
Como es típico de las narrativas siekopai de guerra, siempre
queda un sobreviviente. En el último parágrafo, Liberato cuenta que dos
meses después, el “jefe” de los wati se le presentó en sueños y comenzó
a seguirlo por todas partes. Pero él se mantuvo firme, orando. El último
diálogo es una exclamación imperativa dirigida por Liberato al “jefe” de
los wati, indicándole que debe vivir en el cementerio: “‘Allí puedes vivir
tú. Ahora, ¡no molestar a mí!’, le dije”.
Liberato le asigna al “jefe” de los wati el lugar donde debe
permanecer, expulsándolo definitivamente de su propio cuerpo, y este
le obedece. La casa del “jefe” de los wati está en la tumba de los muertos,
no en el cuerpo de Liberato. Curiosamente, este tipo de exclamación
imperativa es característica del chamán que logra “mandar” sobre su
pai joyo wati, afirmándose como un curandero en control sobre
su “soldado”.
Llorando la muerte del padre 149

Conclusiones: relaciones entrañables de padre


a hijo
Cuando Liberato terminó de contarme su relato, le pregunté en
qué parte de su cuerpo habían entrado los pai joyo wati. Él conversó
por unos minutos con su esposa y me contestó: “ëtapë”, la “barriga”. Y
en seguida me explicó: “Todos estaban en mi cuerpo, pues. ¡Mi cuerpo
estaba, así, pareciendo una casa y allí se ha llenado bastante!” Después
de unos minutos, continuó explicándome lo siguiente:

Yo wati jefe he quedado; jefe de wati ha hablado.


Corazón afuera, corazón afuera estaba, pai joyo wati.
Ese pai joyo wati es igualito a gente.
“Jefe”, me dice a mí.
Hasta ahorita, ni apareciendo. Ni mirando. No vienen.
Toda noche durmiendo con oraciones, no hacen nada.
Wati quiere molestar a mí, yo matando, no más.
Con parece revólver, Dios entregando a mí. Con eso matando,
¡pa pa pa!

Estas explicaciones suplementares que Liberato me dio, clara-


mente tenían por propósito explicarme mejor cómo fue que él logró
establecer una relación de mando sobre el “jefe” de los wati. Gracias a su
perseverancia en la oración, Liberato consiguió que el “jefe” de los wati
lo llamase “jefe”, subordinándose a sus órdenes. Pero, además, “Dios”
le entregó un arma, “parece revólver”, con la cual Liberato puede matar
a los wati que le desobedecen. Lo curioso de estas explicaciones es que
describen típicos procesos de transmisión del poder chamánico, pero
modificados debido a la adhesión al culto evangélico. Liberato recibe
de “Dios”, no del pai joyo wati de su padre, el arma que le confiere la
herencia del poder chamánico y que él usa para ejercer control sobre el
jefe de los wati y sobre todos los pai joyo wati de los chamanes muertos
que su padre conoció. La modificación acarreada por la adhesión al
culto evangélico consiste, entonces, en convertirse en un hiper chamán,
podríamos decir, cuyo espíritu compañero es “Dios”. Según mi lectura,
el luto por la muerte del padre colocó a Liberato ante un dilema
profundo: entre continuar la búsqueda de visiones para ver a su padre,
o abandonarlas para solo practicar la oración. La enfermedad causada
por su deseo de ver el “corazón” de su padre, combinado a su negativa de
150 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

seguir al “wati del corazón” de su padre, solo se resolvió cuando él logró


controlar toda la jerarquía de los wati gracias a su adhesión definitiva
a la oración. Al dejar de lado el yajé y encarar el peligro de la herencia
chamánica de su padre, Liberato se transformó en un gran curandero
llamado “jefe” por el jefe de los wati. Solamente un curandero de esa
envergadura puede sobrevivir la enfermedad causada por el rechazo de
heredar el pai joyo wati de su padre.
Más que una ruptura entre chamanismo y evangelismo,
entonces, el testimonio de Liberato muestra que la “tranquilidad” es
recuperada cuando la búsqueda de visiones con yajé y en sueños
es definitivamente substituida por la “oración a Dios”. Durante el
relato, Liberato afirma que la práctica de la oración es un proceso
de cura de mayor eficacia que la toma de yajé y, además, requiere
menos prohibiciones, dietas y aislamiento. La ayahuasca “miente”, los
pai joyo wati “engañan”; la crianza con el yajé obliga a mantenerse
solitario, cumpliendo dietas alimenticias y abstinencia sexual. Todas
las restricciones y preocupaciones, que tanto pesaron en su juventud
durante su aprendizaje chamánico, se volvieron innecesarias con su
adhesión al culto evangélico. Liberato cuenta que comprobó que no le
sucedía nada malo cuando mataba a un tigre o comía la carne de un
animal prohibido, y finalmente pudo convivir sin interrupciones con su
esposa y dedicarse a criar a sus propios hijos. Pero también comprobó,
en sus experiencias oníricas, que para recuperar la salud y vivir tranquilo
cuidando a sus hijos, debía mantenerse orando diariamente y no volver
a buscar tener visiones de los mundos y los seres que conoció cuando
tomaba yajé.21
Nunca supe si el hombre Siekopai que yo vi en sueños era el pai
joyo wati del padre de Liberato, o el pai joyo wati del propio Liberato o,
tal vez, el jefe de los wati. Liberato nunca me lo dijo. Solo me contó su
historia y dejó que yo sacara mis propias conclusiones. Mi experiencia
onírica, sin embargo, me hace pensar que, a pesar de la determinación
de Liberato de mantener a todos los wati a distancia, algunos escapaban
un poco de su control y seguían haciendo de las suyas, “molestando”
y “engañando” a los visitantes, como yo. En mis recuerdos, la visión
onírica que tuve de este wati no me llenó de miedo. Me sobresaltó
porque era algo totalmente extraordinario, pero el sentimiento que me
generó no fue aterrador. Al contrario, en el primer sueño, fue una visión

21
Discutí en mayor profundidad las continuidades y discontinuidades entre la práctica
chamánica y la adhesión al culto pentecostal en Belaunde (2000a).
Llorando la muerte del padre 151

serena y luminosa. En el segundo sueño, fue una visión más inquietante,


pero con un tono juguetón. La frase que me dijo, “ese que tu viste, soy
yo”, continúa llenándome de admiración hasta el día de hoy. Sentí como
si este wati quería convencerme de que mi primera visión no había sido
un engaño, aunque por su cambio de actitud, entre un sueño solemne y
el otro travieso, era evidente que era un engañador.
Sea lo que fuera, esa visión onírica generó una conexión
inesperada con Liberato. De otro modo, él no me hubiera contado un
testimonio tan personal sobre la muerte de su padre y yo no hubiera
podido comprender las entrañables relaciones entre padre e hijo que
sustentaban la residencia virilocal siekopai, hasta el pasado reciente. En
otras ocasiones, cuando le había preguntado al propio Liberato y otros
hombres Siekopai por qué los muchachos debían quedarse a vivir junto
a sus padres, me habían respondido que era una cuestión de protección
chamánica. El joven no debía alejarse por mucho tiempo de su padre,
porque el aprendizaje con yajé no estaba suficientemente consolidado
y eso lo volvía vulnerable al ataque de los wati. El relato de Liberato
me mostró que la transmisión del conocimiento chamánico, asegurada
por la residencia virilocalidad, estaba cargada de afectos profundos,
de respecto, escucha y decisión, pero también de pugnas y peligros. La
herencia del pai joyo wati del padre no era una cosa fácil, ni mecánica.
Requería duras pruebas y enfrentamientos, durante los cuales el hijo
podía causar enfermedad y muerte a sí mismo y a los demás, si es que
no lograba ejercer control sobre ese ser proveniente de las entrañas de
su padre.
Liberato falleció en 2018, a los 66 años, y se mantuvo fiel
a la oración diaria hasta terminar su vida. Fue un hombre dulce,
extremadamente trabajador, excelente cazador, un gran tejedor de
hamacas, alegre y discreto, y un padre muy cuidadoso. Su presencia
emanaba tranquilidad, siempre atento, y al mismo tiempo, algo
pensativo, como si subiese de cosas que no todos sabíamos. Yo lo vi
curar varias veces a sus hijos pequeños. Los sobaba con las manos y los
soplaba con su aliento. Siempre participaba en las sesiones de oración
colectivas cuando alguien de la comunidad se enfermaba. Le agradezco
por toda su paciencia y generosidad conmigo. Su padre ciertamente
acertó cuando, a los 15 años, le dijo que sería un buen curandero, igual a
él. Su aprendizaje chamánico, así como su adhesión al culto evangélico,
se tejieron en torno a la poderosa afección que los unía.
152 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Llegué a una comprensión más íntima de las relaciones padre-


hijo y las consecuencias afectivas de la virilocalidad entre los Siekopai
del Perú, dejándome guiar por el abordaje narrativo desarrollado por
Jean Langdon (2013) entre los Siona de Colombia, cuyos relatos sobre
el aprendizaje y la práctica chamánica también retratan los poderosos
afectos y peligros que unen a padre e hijo. Continuar repensando la
virilocalidad a partir de las experiencias chamánicas y oníricas, vividas
y narradas en el día a día, es una vía privilegiada para seguir explorando
las particularidades de los pueblos de la familia Tucano occidental en su
cotidianidad y las transformaciones de su historia.

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PARTE II

Saúde: práticas locais e


políticas públicas
Antropologia da práxis na
abordagem da saúde: práticas,
diferença e relações

Sônia Weidner Maluf

Prólogo
Meus diálogos com Jean Langdon percorreram muitos temas
e momentos. De minha orientadora no mestrado, quando pesquisei
sobre as narrativas de bruxas e embruxamentos em uma comunidade
da Ilha de Santa Catarina, a colega de trabalho no Departamento de
Antropologia e, desde 2009, parceira na gestão do Instituto Nacional
de Ciência e Tecnologia Brasil Plural (INCT-IBP). Penso que um dos
fios temáticos que percorrem nossa relação acadêmica é o da saúde,
em alguns momentos de modo mais explícito, em outros como tema
tangencial. Mas, se pensarmos na abordagem ampla de “saúde” na
antropologia de Jean, que não entende a saúde como um fenômeno
a parte de outras dimensões da vida social, como ritual, xamanismo,
cosmologia e práticas cotidianas, penso que é um tema que esteve – e
está – presente em meus trabalhos. Minha dissertação de mestrado, em
que pesquisei sobre a vida nas comunidades do interior da Ilha de Santa
Catarina, em especial aquelas do entorno da Lagoa da Conceição, teve
como foco as narrativas que contam sobre embruxamento de crianças
e pescadores, envolvendo sofrimentos, mal-estares e mesmo a morte de
crianças na comunidade. As mulheres aparecem como figuras de poder
em diferentes posicionalidades, como bruxas, mas também como mães
ou avós das crianças e como benzedeiras. Lembro que no início de minha
pesquisa Jean apontou para a necessidade de um olhar mais apurado
sobre as questões de saúde, sugeriu que eu frequentasse o posto de saúde
local, para observar e conversar sobre essas situações de adoecimento
e cura em torno do embruxamento e das práticas de benzedura. Mas
muito rapidamente percebemos que minha inserção em campo estava
apontando para outra questão – as próprias narrativas exaustivamente
Antropologia da práxis na abordagem da saúde 157

contadas por minhas interlocutoras e meus interlocutores. Foi aí que


Jean me passou uma bibliografia sobre narrativa, em especial a coletânea
On narrative, além dos trabalhos sobre drama social, de Victor Turner.
Esses e os textos lidos na disciplina “Papéis sexuais e a questão da
mulher”, oferecida por Jean em 1985, em que foram abordados temas
como assimetria de gênero, prestígio e divisão sexual do trabalho,
poder feminino e autoridade masculina, entre outros debatidos na
disciplina, se tornaram centrais para minhas análises do material
etnográfico.1 Naquele momento, o mestrado tinha a duração de quatro
anos, e nesse período, paralelamente a uma pesquisa de campo que
se estendeu por quase três anos, comecei a dar aula na Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), situação que atrasou por alguns
meses a finalização e a defesa da dissertação, em dezembro de 1989.
Repassando os capítulos do trabalho final, percebo duas vertentes
que se tornaram muito fortes em meus estudos posteriores e que têm
uma origem nos diálogos e nas aulas que fiz com Jean. Para além das
discussões de gênero e feminismo, que já me acompanhavam desde
a graduação, narrativa e cosmologia foram dois temas centrais em
meu primeiro trabalho. Certamente, no caso da análise do discurso
sobre as bruxas como cosmologia, há uma influência forte das aulas
de antropologia simbólica da Jean e de sua abordagem articulada entre
diversas dimensões da vida social (saúde, ritual, linguagem, corpo
etc.). Posteriormente, em minha tese de doutorado, sobre as culturas
terapêuticas e espirituais alternativas no sul do Brasil, continuei a
trabalhar com narrativa – nesse caso, narrativas de vida e narrativas
terapêuticas – e defini essas práticas e discursos como cosmologia, a
partir de uma crítica ao conceito de religião, que considerei naquele
período como redutor de uma experiência que se estendia para bem
além da questão religiosa, incluindo dimensões de corpo, afetos,
sofrimento, morte, relações e construção do sujeito. Mais uma vez a
ideia de uma articulação entre diferentes dimensões da experiência se
tornou um indicativo central para a análise.

1
A disciplina “Papéis sexuais e a questão da mulher”, oferecida por Jean Langdon no
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/UFSC), foi uma das
primeiras – senão a primeira – disciplinas sobre o tema na UFSC. Foi no trabalho
final dessa disciplina, sobre poder feminino e as bruxas da Ilha, que eu decidi mudar
meu tema de pesquisa. Eu havia ingressado no mestrado em 1985 com um projeto
sobre o Jornal Nacional, para fazer um tipo de antropologia da comunicação, mas o
curso sobre “Papéis sexuais...” e a pesquisa de campo que fiz para elaborar o trabalho
final da disciplina balançaram meu interesse inicial.
158 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

A partir de 2006, dez anos após a defesa da tese, iniciei um


projeto de pesquisas em torno do campo da chamada “saúde mental”,
trazendo um diálogo mais intenso com a antropologia da saúde e um
novo diálogo com os trabalhos da Jean. Esses diálogos encontraram
uma face institucional com a criação do IBP, que tem como uma de
suas redes de pesquisa “Saúde: práticas sociais, experiências e políticas
públicas”, que coordeno junto com a Jean. Apesar de trabalharmos com
temáticas diferentes no campo da antropologia da saúde – Jean na saúde
indígena, e eu na saúde mental – e com perspectivas teóricas diferentes
– Jean trabalhando com xamanismo e com a abordagem das práticas
de autoatenção, e eu, com uma perspectiva de antropologia política
da saúde e uma abordagem de biopolítica e de regimes de subjetiva-
ção –, encontro muitos diálogos e ressonâncias. Considero também que
seu trabalho contribui para a constituição de alguns dos paradigmas
fundamentais do campo da antropologia da saúde, e é em torno de
três desses paradigmas que desenvolvo meu argumento neste artigo
sobre uma antropologia da práxis no campo da saúde: práticas sociais,
diferença e relações.

O campo dos estudos antropológicos de saúde


no Brasil
Os estudos antropológicos sobre saúde e adoecimento se
expandiram no Brasil nas últimas décadas, consolidando a antropologia
da saúde como um campo de estudos com especificidades metodológicas
e teórico-conceituais. Esse campo tem se caracterizado por diálogos
inter e transdisciplinares, principalmente com áreas afins, como a saúde
coletiva, a psicologia social, a sociologia da saúde, entre outras. Diante
de um objeto hegemonizado por outro campo de estudo e intervenção,
o biomédico, e das fronteiras eventualmente borradas com campos e
áreas afins, a especificidade da abordagem antropológica da saúde
tem sido uma questão recorrente nos trabalhos antropológicos e na
própria narrativa sobre a formação e o desenvolvimento do campo
na antropologia brasileira.2
Em minha própria trajetória, inicialmente me inseri nos estudos
antropológicos da saúde, mais propriamente, do que em uma antropo-

2
Diversos balanços da antropologia da saúde foram feitos no Brasil. Remeto ao mais
recente deles, referente à década de 2010 a 2019, com o qual dialogo mais diretamente
neste artigo.
Antropologia da práxis na abordagem da saúde 159

logia da saúde, ou com as demais vertentes associadas à antropologia


médica norte-americana, ou com a antropologia da doença na França.
Questões de adoecimento e cura estão presentes em minhas pes-
quisas desde o mestrado sobre narrativas de bruxaria3 (que abordou
embruxamento de crianças, sintomas, diagnósticos e cura ritual
através das benzedeiras), na pesquisa de doutorado4 (sobre alternativas
terapêuticas e espirituais no chamado universo da Nova Era, tematizando
corpo, subjetividade, narrativa, itinerário, trabalho e dispositivos
terapêuticos), em trabalhos sobre gênero e sofrimento social e mais
recentemente em pesquisas no campo da chamada “saúde mental”,
psiquiatrização e medicalização da vida e da subjetividade. Em todos
esses trabalhos, a abordagem de saúde e adoecimento esteve sempre
articulada e eventualmente subordinada à de outras questões, como
poder feminino, construção da pessoa e do sujeito, trajetórias de vida,
experiências e narrativas, políticas públicas.
Hoje me parece mais evidente que esse modo de lidar com as
temáticas de saúde e doença não é algo de minha trajetória particular,
mas uma característica do próprio campo de estudos e dos modos como
se desenvolveu no Brasil. A relativização radical da biomedicina e a
articulação de “saúde” e “doença” com temas mais abrangentes – como
sofrimento e emoções, pessoa e indivíduo, políticas públicas e práticas
locais – evidenciam paradigmas teóricos e analíticos diferenciados em
relação à antropologia médica dos Estados Unidos, por exemplo.5
Mas, com todas essas especificidades, fronteiras incertas, diálogos
e interlocuções permanentes com outras linhas, áreas e campos de
análise e todas as dificuldades iniciais, pode-se dizer que a antropologia
da saúde se consolidou no Brasil como uma das subáreas mais robustas
e importantes da antropologia brasileira, formando aquilo que Jean
Langdon tem denominado “um programa específico de pesquisa”
(LANGDON; FOLLÉR; MALUF, 2012).6 Isso pode ser percebido na
própria dinâmica de institucionalização do campo, através de Grupos

3
Na dissertação de mestrado, orientada pela Jean (MALUF, 1989), posteriormente
publicada como livro (MALUF, 1993).
4
Defendida em 1996 (MALUF, 1996) e publicada como livro em 1998 na França.
5
As especificidades da antropologia da saúde feita no Brasil e suas diferenças em
relação à antropologia médica do Atlântico Norte são discutidas e analisadas em
Langdon, Follér e Maluf (2012) e em Langdon (2016).
6
Esse artigo foi originalmente a conferência de Jean na abertura da “IX Reunião de
Antropologia do Mercosul”, em 2011.
160 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

de Trabalho nos congressos da área e nas edições da “Reunião de


Antropologia da Saúde (RAS)”, já em direção à sua quinta edição,
além da importante participação das antropólogas nos congressos de
saúde coletiva.7
Apesar da diversidade das temáticas estudadas (como saúde
mental e campo psi, álcool e outras drogas, saúde indígena, doenças
de longa duração, epidemias, terapias alternativas ou complementares,
medicamentos e novas tecnologias de saúde, genética e doenças raras,
ética na pesquisa, saúde e interseccionalidades, entre muitas outras), é
possível depreender algumas características que unificam o campo da
antropologia da saúde no Brasil.8
A primeira delas é a importância da pesquisa qualitativa e
etnográfica, que tem inclusive servido de inspiração a pesquisas
realizadas em outros campos, trazendo visibilidade e centralidade às
práticas e aos saberes locais das comunidades e dos sujeitos pesquisados,
ao mesmo tempo que abordam o Estado e as políticas públicas a partir
de suas práticas concretas. A pesquisa etnográfica traz ainda a percepção
da complexidade com que diferentes universos culturais e de valores se
cruzam e interpenetram, dialogam ou competem, produzindo diferentes
agenciamentos em torno da experiência da doença, do sofrimento e da
cura, do alívio ou da busca de bem-estar.
Uma segunda característica que marca a antropologia da saúde
brasileira, e que se acentuou fortemente no contexto da pandemia
de covid-19, é a abertura aos problemas e às questões emergentes e
emergenciais da saúde da população, como vimos em situações como o
HIV/aids, o sofrimento psicossocial e a saúde mental, ou nas urgências
provocadas pelas síndromes ligadas ao vírus zika e pela dengue. Nessas
situações, fica evidente como a pesquisa e a atuação da antropologia
abrangem aspectos centrais das crises sanitárias não respondidos
pela abordagem da biomedicina ou da epidemiologia quantitativa
e estatística. Mais do que linha auxiliar da biomedicina, a pesquisa

7
Sobre a trajetória e a consolidação da antropologia da saúde no Brasil, ver os vários
balanços e as análises sobre o campo publicados em Minayo (1998), Canesqui (1994,
2003), Sarti (2010), Langdon, Follér e Maluf (2012), Maluf, Quinaglia Silva e Silva
(2020). É necessário, no entanto, ressaltar que, à diferença da antropologia médica
nos Estados Unidos, a antropologia da saúde no Brasil “não forma um subcampo
especializado” (LANGDON, 2016, p. 37), na medida em que permanece totalmente
articulada com o conjunto da antropologia brasileira e seus debates teóricos,
conceituais e metodológicos.
8
Tal como percebemos e analisamos em Maluf, Quinaglia Silva e Silva (2020).
Antropologia da práxis na abordagem da saúde 161

antropológica traz elementos fundamentais para uma apreensão crítica


das políticas públicas de saúde e para a elaboração de políticas que
levem em consideração as especificidades e as demandas de populações,
comunidades e sujeitos envolvidos.
Esse aspecto anterior se articula com um terceiro, que são os
impactos e efeitos políticos desses estudos, tanto na avaliação de polí-
ticas sociais e de saúde existentes quanto na elaboração de novas
políticas de saúde. Os antropólogos e as antropólogas da saúde têm
também apoiado e mesmo protagonizado redes de resistência às tenta-
tivas de desmanche das políticas de saúde pública, como no caso da
saúde indígena e da saúde mental. Também a pandemia de covid-19,
assim como outras epidemias e pandemias anteriores e exaustivamente
estudadas pela antropologia, tem deixado evidente a importância da
pesquisa etnográfica para que os aspectos sociais do contágio e do
adoecimento, as dificuldades de enfrentamento, as formas locais de
autoatenção e de cuidado, entre outros elementos, sejam mais bem
compreendidos. Como outros autores já evidenciaram em relação a
outras pandemias, um enfrentamento exclusivamente biomédico ou
epidemiológico de uma epidemia, sem levar em consideração fatores
sociais e culturais, traz respostas muito limitadas e que não abarcam a
complexidade do fenômeno.9
Neste breve ensaio, pretendo discutir alguns conceitos e temas
da antropologia da saúde, os quais temos elaborado em redes e projetos
articulados no INCT Brasil Plural, adotando como referência um diálogo
com a antropologia da saúde desenvolvida pela colega Jean Langdon.
Vou estruturar meu argumento em torno de três temáticas primordiais
no estudo antropológico de saúde, que são ao mesmo tempo paradigmas
de uma análise crítica dos fenômenos de saúde e adoecimento: práticas
sociais, diferença e relações.

9
Discuto de modo mais detalhado a contribuição da antropologia (e das ciências
sociais) para a compreensão dos impactos sociais da pandemia de covid-19 e das
formas de enfrentamento em Maluf (2020a, 2020b, 2021). A coletânea da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), Cientistas
sociais e o coronavírus, que reúne os textos dos boletins publicados durante o ano
de 2020, traz uma verdadeira agenda de futuras pesquisas sobre o tema e mostra
o esforço das ciências sociais no Brasil em compreender as diferentes dimensões
sociais e políticas da pandemia (GROSSI; TONIOL, 2020).
162 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Práticas sociais, diferença e relações


Na antropologia da saúde, o tema das práticas sociais é central e
definidor da concepção de saúde (e de adoecimento e cura). Pensá-la
como prática social significa ir muito além de seus sentidos ontológicos,
de vê-la como algo dado anteriormente à experiência ou separado de
suas dimensões sociais. Nem a normalidade, nem a doença estão dadas
ou são exteriores à experiência e à ação humanas e aos sentidos sociais
que lhes são conferidos. Noções centrais na antropologia da saúde, como
autoatenção ou, mais recentemente, o cuidado, referem-se a práticas
sociais, individuais e coletivas, produzidas a partir de compreen-
sões sociais da doença ou do sofrimento, de conhecimentos locais ou
em fronteira com outras formas de conhecimento, de instrumentos e
dispositivos, de substâncias e objetos disponíveis, de escolhas e posi-
cionalidades sociais, entre outros fatores.
Parte dos trabalhos que desenvolvemos na rede de pesquisas
sobre saúde do IBP tem sido feita na zona de confluência entre as
práticas e os saberes dos sujeitos e as ações do Estado através das
políticas públicas, das instituições, dos serviços de saúde e de seus
agentes e especialistas. A expansão dos serviços de saúde e do Sistema
Único de Saúde (SUS) nas décadas anteriores fez com que dificilmente
se pudesse abordar o tema da saúde ou as trajetórias e os itinerários
terapêuticos sem levar em consideração a presença e a influência
da biomedicina e de práticas e rotinas institucionais dos serviços.
Práticas, saberes, linguagens e valores locais e biomédicos circulam,
se interpenetram, dialogam e se confrontam. Agências e práticas
locais, itinerários e experiências são atravessados pelas linhas de força
contraditórias e conflitantes dos saberes biomédicos hegemônicos e
dos saberes locais e mesmo dissidentes ou alternativos. Também nessa
perspectiva a abordagem etnográfica e a pesquisa realizada junto a
comunidades, grupos sociais e sujeitos concretos têm mostrado seu
vigor e sua importância.
Saúde e doença, além de práticas sociais, são relações. Esse é
outro conceito central, que pode ser abordado em várias dimensões
(que poderiam ser sintetizadas como micropolíticas, macropolíticas e
cosmopolíticas). De um lado, como uma rede ou malha de relações entre
pessoas (ou entre humanos), de humanos com entidades do sobrenatural,
Antropologia da práxis na abordagem da saúde 163

com plantas e animais,10 com objetos e substâncias, das pessoas “consigo


mesmas”, com seu corpo etc. De outro, a partir da percepção de que as
relações sociais no campo da saúde são também relações de poder, dadas
em determinadas condições sociais, econômicas e políticas. De um lado,
os fenômenos específicos de adoecimento e cura, de saúde e doença; de
outro, as condições históricas, sociais e políticas em que esses processos
acontecem, e ainda uma terceira dimensão, que são as dimensões
cosmológicas e cosmopolíticas que envolvem a experiência coletiva da
saúde, do adoecimento e do sofrimento e as políticas do viver.
A articulação entre esses diferentes modos de pensar os fenôme-
nos de saúde e doença, como relações sociais e como relações de poder,
já estava presente nos primórdios dos estudos sociais em saúde no Brasil
e no próprio movimento da reforma sanitária, que teve como um dos
desfechos a Constituição de 1988 e a criação do SUS, em 1990. Mas essa
articulação ficou também muito evidente nos acontecimentos políticos
brasileiros recentes e em seus desdobramentos nas mudanças radicais
nas políticas públicas de saúde do país. E, ainda mais recentemente, nas
respostas locais e do Estado à pandemia de covid-19. O próprio campo
biomédico se manifestou não mais como um bloco unívoco ou uníssono,
homogêneo, mas como um campo de forças em disputa, em que noções
como ciência, eficácia, ética, risco e emergência são evocadas. Os temas
de saúde, adoecimento e morte ocupam como em nenhum outro
momento o discurso público, as mídias e as redes sociais, e de certo
modo a saúde e a doença se tornam o contexto das demais vivências
sociais. Figura e fundo se invertem.
Mais uma vez, a relação entre políticas de saúde, saberes
biomédicos e práticas e saberes locais aparece como central, tanto
no modo como os comandos de isolamento social, uso de máscaras
e medidas de biossegurança são aceitos ou rejeitados pela população
quanto nas medidas próprias de autoproteção tomadas por cada
comunidade, na ausência de uma atuação mais efetiva do governo
federal no enfrentamento à pandemia. Se de um lado as poucas
providências tomadas não levam em consideração as especificidades
de cada população e comunidade, de outro o Estado não reconhece os
modos locais de enfrentamento. Neste momento, um conceito central
da saúde indígena extensamente trabalhado por Jean, o de atenção

10
Ou entre humanos e não humanos, expressão que considero larga demais para dar
conta de cada nicho específico dessa malha e de suas diferenças: espíritos, plantas,
animais, para citar alguns.
164 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

diferenciada, se torna fundamental para que se formule uma política


efetiva de enfrentamento à pandemia.
O princípio da atenção diferenciada pode ser definido, em pri-
meiro lugar, a partir da preocupação de pensar outra prática e outra
política de saúde que levem em consideração as especificidades e as
diferenças das populações-alvo dessas políticas – no caso, os povos
indígenas. Para isso, é também necessário perceber quais são as
práticas de saúde do Estado presentes nas políticas públicas, não apenas
nos documentos, nas leis ou nos protocolos formais, mas também, e
sobretudo, naquilo que as pessoas e os agentes do Estado estão fazendo
no cotidiano de seu trabalho nos serviços de saúde e nas instituições.
É nessa dimensão da etnografia junto aos sujeitos, em suas
práticas cotidianas, que emergem questões como diálogo, pluralismo
e multiplicidade médica, tão presentes nas reflexões de Jean e no seu
esforço em compreender a relação entre os diferentes saberes médicos
e terapêuticos – um dos objetos centrais de seus trabalhos. Conceitos
como atenção diferenciada, interculturalidade e intermedicalidade
nortearam estudos e políticas voltados principalmente à saúde dos
povos indígenas e são discutidos criticamente por Jean (LANGDON,
2004, 2016).
Apesar de uma certa “promessa inicial” de produzir políticas pú-
blicas que levassem em consideração os conhecimentos e as práticas
locais e que fossem elaboradas com a participação dos envolvidos (no
caso os povos indígenas), a atenção diferenciada (assim como os prin-
cípios de interculturalidade e intermedicalidade) não se realizou em
toda a sua radicalidade. Nem os saberes e as práticas locais foram
reconhecidos e incorporados nas políticas, nem a elaboração das
políticas contou de forma efetiva com a participação equitativa dos
indígenas. Mais recentemente essa situação se agravou com as tentativas
do governo federal de desmontar as poucas estruturas e instituições
voltadas para a atenção diferenciada na saúde dos indígenas – entre elas
a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) –, não sem a resistência
deles em manifestações que se estenderam por todo o país e que
conseguiram fazer o governo recuar em relação à extinção da SESAI,
mas não em relação a outras medidas de desmonte da saúde indígena.
Um terceiro tema central, estreitamente articulado com a noção
de saúde como relação social, é o da diferença, presente na própria
ideia de atenção diferenciada. Ele remete à atenção à diversidade, às
especificidades sociais e culturais e ao reconhecimento da existência
de uma pluralidade epistêmica em relação às questões de saúde e de
Antropologia da práxis na abordagem da saúde 165

adoecimento. Não se trata de uma diferença que possa ser apreendida


como um dado reificado ou ontologizado, mas uma diferença que se
produz no mundo, pelas práticas sociais, pelas experiências e agências
dos sujeitos. Esse é o diálogo teórico implícito que imagino existir entre
meus trabalhos e os da Jean e que está ligado, de um lado, às minhas
discussões sobre uma antropologia do sujeito, que percebe esses “outros”
com quem pesquisamos como sujeitos sociais construindo práticas,
agências e agenciamentos sociais, ou seja, são sujeitos políticos; e, de
outro, a uma teoria da ação social que incorpora a ideia de experiência
como uma dimensão fundamental para compreender como os sujeitos
com quem pesquisamos se inserem no mundo, produzem o mundo
e habitam o mundo. Falar em atenção diferenciada é de certo modo
sugerir ao Estado um outro tipo de relação com os sujeitos sociais,
com as diferentes comunidades e populações. Isso significa não
reificar a impossibilidade de relação nem a irredutibilidade absoluta
dos sujeitos sociais nos seus próprios mundos. Essa é uma discussão
que transcende a esfera da saúde e da doença e dialoga com uma teoria
antropológica geral que pensa fundamentalmente a possibilidade da
relação. E a possibilidade, não da redutibilidade das várias culturas
em uma coisa única, mas da relação e do diálogo intercultural – não
enquanto algo efetivamente existente, mas enquanto princípio que
pode mover a elaboração de outras políticas sociais e outros modos
de relação com o Estado. De certo modo, a práxis antropológica
existe no meio dessa tensão entre a possibilidade e a impossibilidade
de pensar um Estado menos separado do mundo social, ou de os
diferentes mundos sociais encontrarem canais de comunicabilidade
e de inteligibilidade mútua, para além do congelamento da relação
metafórica esvaziada de afetação.
As discussões sobre xamanismo como cosmologia11 propostas
nos trabalhos da Jean, que posteriormente se desdobram em suas refle-
xões sobre conhecimento e saberes locais, nos ajudam a entender essa
tríade de práticas, relações e diferença. A originalidade da discussão do
xamanismo como cosmologia e da cosmologia como articulação entre
teoria e prática é a de ir além da ideia da cosmologia como representação
social, ou como algo que apenas reproduz o mundo, retirando os
sujeitos do mundo ou imaginando os mundos sociais como instâncias
ontológicas sem sujeitos. Nessa outra perspectiva, a relação entre os

11
Que estão em diversos trabalhos da Jean, entre eles a coletânea Xamanismo no Brasil:
novas perspectivas (LANGDON, 1996).
166 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

diferentes mundos ou universos sociais é praticamente inexistente, ou


reduzida a metáforas uns dos outros.
O compromisso social da antropologia não vem como algo
separado da produção teórica e etnográfica. Ele é um resultado dessa
produção. Dispor-se a fazer uma antropologia que pense a possibilidade
das práticas sociais como práticas transformadoras, a refletir sobre a
diferença não como ontologia, mas como relação de poder, de conflito,
de circulação cultural, de agenciamentos de forças periféricas e centrais,
já pressupõe uma pesquisa antropológica que causará efeitos e impactos
sobre essas relações.
Por outro lado, pensar as práticas sociais e as diferenças como
construções permanentes dentro de processos sociais (e históricos) é
se colocar na zona de risco por onde caminha uma antropologia da
práxis, que rompe com uma certa “institucionalização do outro”.12 Ou
seja, quando se rompe com os grandes esquemas tradicionais e se busca
nesse outro cultural sujeitos que estão fazendo coisas desta ou daquela
maneira, vivendo seu cotidiano. O risco é justamente chegar a algumas
situações em que a teoria da antropologia que se tem disponível e
algumas generalizações esquemáticas sobre esses “outros” se mostram
insuficientes para uma compreensão dessas práticas, desses modos de
estar no mundo e de pensá-lo.
A antropologia da práxis evoca alguma instabilidade, alguma
desestabilização que é instigante para a antropologia, entre elas a
produção de teses rugosas, no sentido de não expressarem uma
harmonia, um encaixe entre teoria e mundo – sem contradições,
sem rusgas ou conflitos, sem agências. Pesquisas e trabalhos rugosos
são aqueles que trazem um incômodo para os já assentados modelos,
conceitos, teorias e mesmo jargões antropológicos – são aqueles que
colocam a teoria sob o crivo do mundo, mas não só a teoria.

A antropologia no crivo do mundo


Os acontecimentos recentes mostram que a antropologia bra-
sileira, ou pelo menos parte dela, também se coloca sob esse escrutínio
da experiência histórica. Fomos interpeladas, sobretudo quem pesquisa
no campo da antropologia da saúde, mas não só, a produzir reflexões

12
Expressão utilizada por um dos participantes do colóquio “Uma antropologia da
práxis: homenagem a Jean Langdon”, em 2015.
Antropologia da práxis na abordagem da saúde 167

sobre a situação da pandemia e sobretudo de seus impactos em


populações, comunidades e sujeitos com quem pesquisamos. Tem sido
um momento de grande aprendizado – e risco também, no sentido da
produção de um volume de reflexões, análises e compreensões um tanto
quanto no calor dos acontecimentos, o que chamei de uma antropologia
em tempo real e de antropologia das urgências. Isso já aconteceu em
outros momentos, como a criação do programa Urgent Anthropology,
nos anos 1960, cuja preocupação central era o impacto do processo
acelerado de modernização sobre culturas e modos de vida tradicionais
– colocadas em risco de desaparecimento. Mas talvez não na escala e na
intensidade com que estamos vivendo a pandemia de covid-19. Grande
parte do que a antropologia tem produzido neste período se fundamenta
em pesquisas anteriores e em conhecimentos acumulados dessas
pesquisas, num tipo de releitura para buscar entender este fenômeno
novo. Outra parte investe em novas pesquisas, com novas metodologias
(ou a adaptação de metodologias tradicionais a formas não presenciais
e com o substrato das redes sociais e das tecnologias de comunicação).
Mais do que nunca, dois princípios nem sempre valorizados nas
antropologias centrais ganham força: a reflexão sobre os impactos e os
efeitos da pesquisa antropológica (e eventualmente sua “aplicabilidade”
em situações de crise e de emergência) e a questão da comunicabilidade,
ou seja, da produção de uma textualidade antropológica inteligível
para não antropólogos. Esta última questão tem a ver também com a
democratização e o acesso ao conhecimento.
A pandemia desencadeou uma grande atenção sobre o conhe-
cimento científico, para muito além da ideia de “paciente informado”.
O conceito de “paciente informado” (expert patient), vindo do campo da
biomedicina para falar do envolvimento do paciente com seu tratamento,
e mesmo do automanejo da doença pelos pacientes, em especial
doenças crônicas, encontrou uma recepção em estudos antropológicos
focados em situações específicas – como pesquisas sobre associações
de pacientes, blogs de pessoas convivendo com determinadas doenças,
e inclusive investigações sobre itinerários terapêuticos e práticas de
cuidado. No entanto, a grande procura pelos conhecimentos em torno
do coronavírus e da covid-19 vai muito além, gerando um tipo de
disseminação e difusão da ciência que não se circunscreve ao paciente
com uma doença específica e aos conhecimentos necessários para
lidar com ela de uma forma menos dependente da presença ou do
controle permanente de um especialista. Viramos todos experts? Esse é
168 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

um assunto para outros artigos e pesquisas. Meu ponto aqui é o quanto


algo semelhante aconteceu com a antropologia e as ciências sociais
em geral. O enorme impacto da pandemia sobre a vida cotidiana das
cidades, o aumento das desigualdades sociais e da violência, os debates
sobre as políticas de saúde pública necessárias e a crítica dos governos
e da gestão da pandemia estabeleceram a pauta central da análise
social da pandemia. A produção de uma textualidade antropológica
compreensível se torna quase um imperativo em algumas situações,
sobretudo aquelas em que estamos diante de interlocutores que não
dominam o “jargão” da disciplina. A antropologia, e a antropologia da
saúde em especial, não podem deixar de responder a essas interpelações
do novo momento – e quanto a isso penso que uma antropologia da
práxis, as pesquisas e a trajetória da Jean têm muito a nos ensinar.

Referências
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A saúde como política: narrativas,
cosmografia e práticas de
autoatenção entre os Munduruku
da Terra Indígena Kwatá-Laranjal,
Borba, Amazonas

Daniel Scopel
Raquel Paiva Dias-Scopel

Introdução
Ao longo dos séculos, os Munduruku têm desenvolvido um
conjunto diversificado de saberes para manter a saúde e para lidar com
perigos decorrentes do uso do território e da interação entre os diversos
seres do cosmo. Esse tipo de conhecimento é referido pelos Munduruku
como “sabedoria dos antigos” e visa a evitar infortúnios, doenças e
morte. Trata-se de conhecimento evocado cotidianamente sobre como
lidar com espíritos, animais e plantas que são potencialmente perigosos.
O saber dos antigos não se restringe apenas à resposta ao sofrimento,
mas é evocado principalmente nas práticas preventivas e de promoção
do bem-estar e da qualidade de vida coletivos. Assim, por exemplo,
sempre que um Munduruku vai pescar ou caçar ele “pede licença” ao
espírito-mãe que protege o lugar de caça ou de pesca com o intuito
de evitar que a “mãe” que habita o lugar se zangue e aflija o caçador/
pescador ou qualquer outra pessoa da aldeia.
Neste capítulo, abordamos o papel das narrativas na produção
da sabedoria dos antigos. Apresentamos uma análise de narrativas
munduruku para enfatizar as dimensões práticas, sociais, ontológicas
e políticas de um projeto coletivo de reprodução biossocial e de
uso e manutenção do território. O texto dedica-se a refletir sobre
a noção de saúde como política (LANGDON, 2014). A abordagem
antropológica da saúde como política visa a contribuir criticamente
A saúde como política 171

para a compreensão das práticas de saúde dando ênfase à capacidade


de agência dos atores sociais. Essa perspectiva analítica reconhece
que é “a partir dos sujeitos e/ou grupos sociais que são construídas as
articulações entre os diferentes conceitos e práticas ligados à saúde/
doença” (LANGDON, 2014, p. 1020).

O contexto de pesquisa
Atualmente, o povo Munduruku habita 16 terras indígenas em
três diferentes estados: Pará, Mato Grosso e Amazonas. Os Munduruku
se consideram um único povo originário da região do Alto Tapajós, cuja
língua pertence ao tronco Tupi. Em cada terra indígena vive uma parcela
da população com especificidades socioculturais particulares, em razão
dos diferentes processos históricos que possibilitaram a permanência
no território munduruku. Nosso trabalho de campo realizou-se, entre
2007 e 2017, em diversas viagens à Terra Indígena (TI) Kwatá-Laranjal,
no município de Borba (AM).
Os Munduruku que vivem na TI Kwatá-Laranjal somam uma
população de cerca de 3.600 pessoas distribuídas em 33 aldeias. Todos
falam português no cotidiano, e apenas alguns idosos são bilíngues.
Não há acesso por estradas à TI, que se situa a aproximadamente 150
km de Manaus e abrange 11.578 km2. Para o transporte de pessoas e
mercadorias, utilizam-se os rios Canumã e Mari-Mari (ver Figura 1).
A TI Kwatá-Laranjal, que se localiza na área de abrangência da
microrregião do baixo Madeira, é caracterizada pela topografia plana e
pela floresta preservada. A paisagem no território munduruku é muito
dinâmica em razão do ciclo das chuvas, com grande variação do nível
dos rios durante o ano. O ciclo anual alterna períodos de fartura de
alimentos (estação seca e vazante) e de considerável escassez de caça e
pesca (estação chuvosa e cheia).
172 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Figura1 1– –Mapa
Figura Mapadada Terra
Terra Indígena
Indígena Kwatá-Laranjal
Kwatá-Laranjal

Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados da Fundação Nacional do Índio


Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI, 2020).
(FUNAI, 2020).
Em outros trabalhos demos ênfase ao pluralismo médico presente na TI Kwatá-
Laranjal Em outros DIAS-SCOPEL;
(SCOPEL; trabalhos demos ênfase
WIIK, 2012),ao assim
pluralismo
como médico
à crescente
medicalização promovida pelo Estado nacional através dos
presente na TI Kwatá-Laranjal (SCOPEL; DIAS-SCOPEL; WIIK, 2012), serviços de saúde oficiais,
orientados pelo modelo médico hegemônico, burocrático e biomédico (SCOPEL; DIAS-
assim como à crescente medicalização promovida pelo Estado nacional
SCOPEL; LANGDON, 2015; DIAS-SCOPEL; SCOPEL; LANGDON, 2017; DIAS-
através dos
SCOPEL; serviços
SCOPEL, de saúde oficiais, orientados pelo modelo médico
2019).
hegemônico, burocrático
A pluralidade de formas ede biomédico
atenção à saúde(SCOPEL; DIAS-SCOPEL;
e às enfermidades no contexto
munduruku
LANGDON, configurou-se por meio de SCOPEL;
2015; DIAS-SCOPEL; um longo LANGDON,
processo histórico,
2017;por trocas e
DIAS-
intercâmbios étnicos
SCOPEL; SCOPEL, 2019). e culturais. Atualmente, os Munduruku demandam os serviços
biomédicos oficiais como parte de um projeto político coletivo visando a melhores
condiçõesA depluralidade de formas
saúde, participação de direitos
social, atençãodeà cidadania
saúde e às enfermidades
e de autodeterminação
no contexto
(SCOPEL; mundurukuLANGDON,
DIAS-SCOPEL; configurou-se por meio de um longo processo
2018).
histórico, por trocas
Os serviços e intercâmbios
de saúde são apropriadosétnicos e culturais.
como recurso Atualmente,
escasso, ainda que cadaos vez
mais presentes nodemandam
Munduruku cotidiano (SCOPEL; DIAS-SCOPEL;
os serviços biomédicosLANGDON, no prelo).
oficiais como parteTodavia,
de
semelhantemente ao descrito por Langdon (1994a) entre os Siona, a biomedicina não
um projeto político coletivo visando a melhores condições de saúde,
cumpre uma função central nas interpretações sobre causas de doenças graves, nem serve
participação
como motivação social,
para as direitos de cidadania
práticas relacionadas e de da
à promoção autodeterminação
saúde e do bem-estar
(SCOPEL; DIAS-SCOPEL; LANGDON, 2018).
coletivos.
OOspluralismo
serviçosmédico
de saúdena TI
sãoKwatá-Laranjal
apropriados inclui,
como além dos escasso,
recurso serviços biomédicos
ainda
oficiais, uma ampla rede terapêutica que conecta diferentes
que cada vez mais presentes no cotidiano (SCOPEL; DIAS-SCOPEL; grupos na região do baixo
Madeira, abrangendo outros povos indígenas, como os Mura e os Sateré Mawé, e os
LANGDON,
ribeirinhos. no prelo).
Os praticantes Todavia,
dessa semelhantemente
rede terapêutica ao descrito
(curadores, doentes, poretc.)
familiares
Langdon (1994a) entre os Siona, a biomedicina não cumpre uma
compartilham noções similares sobre a relação entre corpos, pessoas e ambiente. Há função
diversos especialistas que atuam nessa rede interétnica, tais como: pessoas que sabem
fazer remédios do mato – chás, banhos ou pomadas com plantas ou partes de animais;
pegadores de dismintidura, que realizam terapias por meio de massagens; benzedores,
118
A saúde como política 173

central nas interpretações sobre causas de doenças graves, nem serve


como motivação para as práticas relacionadas à promoção da saúde e
do bem-estar coletivos.
O pluralismo médico na TI Kwatá-Laranjal inclui, além dos
serviços biomédicos oficiais, uma ampla rede terapêutica que conecta
diferentes grupos na região do baixo Madeira, abrangendo outros
povos indígenas, como os Mura e os Sateré Mawé, e os ribeirinhos. Os
praticantes dessa rede terapêutica (curadores, doentes, familiares etc.)
compartilham noções similares sobre a relação entre corpos, pessoas e
ambiente. Há diversos especialistas que atuam nessa rede interétnica,
tais como: pessoas que sabem fazer remédios do mato – chás, banhos ou
pomadas com plantas ou partes de animais; pegadores de dismintidura,
que realizam terapias por meio de massagens; benzedores, que rezam
para curar enfermidades tais como o quebranto – doença que acomete
crianças; parteiras, cujas práticas incluem massagens para acompanhar
a gestação e colocar no lugar a mãe do corpo; e os curadores-pajés ou
sacacas, que sabem todas as técnicas acima e além disso realizam ritos
de cura atuando como mediadores entre pessoas e espíritos (SCOPEL;
DIAS-SCOPEL; WIIK, 2012).

Cosmografia e processos de saúde/doença/


atenção
Para Little (2001), a cosmografia refere-se ao conjunto de
saberes que emerge das relações simbólicas e afetivas que a coletividade
desenvolve para se estabelecer e se manter em seu território.
Cosmografia, portanto, é um conceito antropológico que visa a dar
ênfase à relação entre saberes e territorialidade. Tal definição permite
incluir saberes específicos relacionados às práticas de autoatenção.
Conforme Menéndez (2005), as práticas de autoatenção, em sentido
amplo, referem-se às atividades realizadas no âmbito dos microgrupos
ou grupos domésticos que são necessárias para assegurar a reprodução
biossocial da coletividade. Ao aproximar os dois conceitos analíticos,
damos ênfase ao modo de ser dos Munduruku, para quem a saúde
coletiva está intimamente relacionada à qualidade de vida no território,
a qual é garantida por uma série de práticas de autoatenção.
Para os Munduruku, o cosmo é dinâmico, e o trânsito dos seres
implica encontros cujos efeitos se fazem sentir nos corpos. Os seres ocultam
174 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

intencionalidades e podem ser perigosos, causar doenças, infortúnios


e morte, especialmente quando as expectativas visadas nesses encontros
não são cumpridas ou respeitadas. O processo de desenvolvimento dos
corpos saudáveis, por sua vez, também requer intervenção e agência dos
Munduruku. A pessoa saudável é vista como um produto de interações
sociais, ambientais e cosmológicas conduzidas de forma adequada,
isto é, em conformidade às expectativas socialmente compartilhadas
(DIAS-SCOPEL; SCOPEL, 2019). O desenvolvimento dos corpos é
entendido como aquisição ou perda de habilidades ao longo da vida.
As habilidades socialmente valorizadas são conquistadas por meio do
cumprimento de conjuntos de práticas de autoatenção, um conjunto
específico para cada etapa da vida. Tais práticas incluem massagens,
chás, banhos e resguardos, e o cumprimento delas é condição para
alcançar a longevidade (DIAS-SCOPEL, 2018). Como veremos,
os cuidados com o corpo evidenciam uma associação entre saúde
e território, a qual é valorizada pelos Munduruku como parte da
sabedoria dos antigos.
Há, entre os Munduruku, diversas categorias de doença que não
têm paralelo com o modelo médico hegemônico, tais como assombro
de bicho, quebranto, vento caído, dismintidura, panema e derrame
(SCOPEL; DIAS-SCOPEL; WIIK, 2012). Essas doenças se relacionam
com a cosmografia na medida em que estão associadas à agência de
pessoas, animais, plantas e espíritos em um determinado território e
que figuram como saber compartilhado.
Entre as diversas práticas de autoatenção, há aquelas que incluem
os resguardos. Os resguardos são realizados por diferentes motivações,
tanto profiláticas quanto curativas, e podem abranger dietas, prescrições
comportamentais, bem como reclusão ou restrição da circulação,
evitando lugares e horários que representam perigo. A restrição de
circulação compõe parte das estratégias de aproximação e de afastamento
dos Munduruku para com os demais seres do cosmo (SCOPEL; DIAS-
SCOPEL; LANGDON, 2018; DIAS-SCOPEL; SCOPEL, 2019).
Sobre os seres perigosos que habitam o cosmo, não nos interessa
fazer uma lista exaustiva, mas alguns exemplos permitem compreender
a importância das estratégias de aproximação e de afastamento e a
gravidade das consequências de certos encontros. Pessoas podem ficar
gravemente doentes se desrespeitarem os espíritos-mãe que protegem
animais, plantas e certos lugares. Geralmente, os sintomas começam
com uma dor de cabeça que, se não for tratada por um curador-pajé,
progride para loucura e morte.
A saúde como política 175

Os taufú, por exemplo, são um tipo de gente feiticeira e maligna.


Oferecendo amizade, eles se aproximam de pessoas que estão sozinhas
em festas. Atacam à noite, convidam a vítima para beber ou passear,
induzindo-as a se afastar da festa em direção à escuridão. Raptam a
vítima sem que outros Munduruku percebam. Arrancam o bucho
(entranhas) das vítimas e o enchem com folhas. Com fumaça, trazem
a vítima novamente à vida, porém passa a ser uma vida de sofrimento
incurável. Sem lembrar que foi raptada pelos taufú, a vítima vai definhar
lentamente até a morte.
Doenças graves podem ser causadas por feitiços. A milonga,
por exemplo, é um feitiço maligno realizado para escravizar a pessoa
desejada, considerado extremamente deplorável, que revela cobiça.
A vítima presa pelo feitiço lentamente adoece e, com o passar do tempo,
fica doida.
O mais terrível dos seres é o espírito mau (Ikẽrẽat ou yurupari).
“Ikẽrẽat” traduz-se, literalmente, por “espírito feio”, mas é referido mais
frequentemente como “inimigo” ou “maligno”, entre outras expressões
equivalentes. É também identificado com o diabo cristão.1 Ele forma
uma legião com pessoas que tiveram morte violenta (“atirado, enforcado,
afogado”). O infortúnio é considerado obra do inimigo, que induz as
pessoas a cometerem violências ou quebrarem prescrições e proibições.
Os mortos que foram iludidos pelo inimigo tentam, de forma egoísta,
levar para junto de si parentes próximos, assediando-os. Nesses casos,
as pessoas assombradas por um morto têm ideias distorcidas que levam
à loucura e à morte.
Murphy (1958) registra toda uma classe de espíritos maus
chamada de yurupari. O termo “yurupari” é comum a diversos povos
falantes de línguas do tronco Tupi, como é o caso dos Munduruku.
É muito importante notar que a classe de espíritos yurupari, descrita por
Murphy, abrange os botos. Os botos malignos representam a agência do
próprio inimigo.

A última categoria de Yurupari inclui os botos de água doce que


habitam os rios amazônicos. Acredita-se que os botos nadam
nos rios apenas durante o dia; à noite, eles se transformam em
homens fortes ou belas mulheres que se vestem com roupas

1
“Ikẽrẽat” foi o termo utilizado pelo Summer Institute of Linguistics para a versão da
Bíblia traduzida para a língua Munduruku.
176 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

brancas e viajam pela terra. (MURPHY, 1958, p. 17, tradu-


ção nossa).2

Os botos (e as “bôtas”) vivem em cidades no fundo dos rios


chamadas de Encante. Os botos assombram e seduzem pessoas e as
convencem a viver no Encante com eles. Isso faz com que o corpo
da pessoa em terra adoeça e morra. Os botos são gente quando estão
no Encante. Eles têm um corpo de gente quando visitam a terra. Eles
também “vêm no sonho” das pessoas. Quando uma pessoa vai para o
Encante é convidada a ficar. Os botos oferecem comida. Tudo no Encante
é maravilhoso. Os alimentos aparentam ser deliciosos e em abundância.
Materiais e mercadorias cobiçados estão facilmente disponíveis. Os
botos convidam o visitante a formar uma nova família no fundo. As
pessoas da terra que se relacionam com os botos gradualmente vão
adoecendo; na medida em que se tornam próximas e íntimas dos bichos
do fundo, passam a comer a comida deles e a esquecer dos parentes em
terra. Elas trocam a vida na superfície pela vida no Encante.

Memória e narrativa de assombro de bicho


As narrativas de doença ajudam a compreender o significado
das práticas de autoatenção e a gravidade do risco e do perigo a que
as pessoas se submetem no uso do território. A narrativa a seguir
– de Maria Iracema, 70 anos – detalha um caso de assombro de bicho e
apresenta um exemplo da sabedoria dos antigos que evoca diretamente
a importância das práticas de resguardo. O evento narrado aconteceu
quando Maria Iracema ainda era jovem e se trata de uma experiência
que é impossível esquecer, pois se refere a uma situação-limite em que
a narradora esteve perto da morte. A narrativa de Iracema evidencia
o papel da cosmografia como um pano de fundo, um modelo de
realidade, que permite compreender as ações dos participantes, como
as estratégias de aproximação e de afastamento necessárias para lidar
com os seres do cosmo.
É interessante descrever o contexto da produção da narrativa de
Iracema. Havia quase uma semana que estávamos hospedados na casa

2
No original: “The last category of Yurupari includes the fresh-water porpoises that
inhabit the Amazonian rivers. The porpoises are believed to swim in the rivers only by
day; at night they are transformed into handsome men or beautiful women who dress
in white clothes and travel on land”.
A saúde como política 177

de Iracema e Guaraciaba. Ele era um curador-pajé sacaca, muito


respeitado na aldeia Niterói. Estabelecêramos uma rotina de diálogos
e entrevistas sobre o trabalho dele como curador-pajé. Iracema sempre
participava de nossas conversas. Naquela semana, passamos muitas horas
juntos conversando sobre assuntos diversos, especialmente durante o
preparo e após as refeições. A narrativa de Iracema emergiu quando
já havíamos criado certa intimidade com nossos anfitriões. Como a
cozinha não tinha paredes, frequentemente uma pequena plateia se
formava à nossa volta. Naquela noite, contudo, apenas o neto adulto de
Guaraciaba nos observava silenciosamente. O rio Canumã estava cheio,
e a noite, sem lua e muito escura. Sentamo-nos todos no assoalho da
cozinha da casa de Iracema, sob a luz fraca de uma lamparina. Era por
volta das 19 horas quando Iracema começou a narrar:

[1.] Meu marido foi pescar e me deixou, era uma baixa assim
como essa aí. Ele foi embora, assim, dia de domingo, aí nós
fomos tomar banho com a mulherada, assim, a baixa estava
assim, bonita, né. Estava cheia a água, ia lá bem. [2.] Aí nós fomos
tomar banho, a mulherada, tomaram banho. Aí eu lembro, nós
íamos a remo. Nós tava pulando n’água que a baixa ia lá perto do
canal. Oh, seu menino, quando nós vimos aquele bicho vinha
de onda, um mostro bicho, quando nós olhamos o bicho vinha.
Quando chegou, todo mundo correu, e eu fiquei ainda pra trás.
[3.] Quando correram, a mulherada foi ver. O bicho estava
procurando. Eu fiquei bem na beira e voltei embora. Quando eu
subi para a terra, aquele grande frio! Frio, frio, frio, frio, frio! Aí
eu disse: “Agora sim!”. Era frio, frio, frio, frio, frio, frio. [4.] Aí
eu disse pra minha comadre: “Comadre, eu tô com frio”. “Será
comadre?” “Será que não foi o bicho?” “Eu acho que foi.” [5.]
Porque desde aquela hora, seu menino, foi semana, seis meses.
Eu sei que minha cabeça ficou branco, branco, branco, branco,
branco, caiu tudinho, fiquei dessa grossurinha, os braços! Eu
não andava. Eu só fazia deitar na rede, e, quando vinham pra
me carregar, botavam na esteira, passava o dia inteiro como
esse compadre Cristão [nome de um idoso da aldeia que estava
acamado]. Foi um ano e seis meses. Eu fiquei com minhas
canelinhas, seu menino! Parecia uma piaçoca! Um ano e seis
meses! Pra mim andar, foi uma luta, mas eu consegui andar.
A minha sogra, que me tratou, fez tanto do remédio, remédio,
remédio, que eu levantei, mas também pra nunca mais eu tomo
banho assim, quando tô menstruada! Eu tenho muito medo
quando tô menstruada. [6.] Essas mulheres daqui, não é tudo
178 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

que se trata, mas aqui, quando a gente tá na visita, essa mulher


aí, aquela do Pitoca, o resto ninguém sabe! Até essas mocinhas,
eu não brinco com bicho do fundo, Deus me livre! Pra levar um,
não relaxa. [7.] Lá era um boto que tinha número encarnado
[vermelho], tudo a costa dele. De um lado era encarnado, do
outro lado, assim, parece era tudo branco, branco, branco. Até no
rabo era letreiro! Eram dois, a fêmea e o macho. A fêmea tinha
aquele letreiro a modo tudo rosa de um lado. E outro, aquele
bico dele tinha o seu número. Mas aquele de lá era muito grande,
brabo, brabo, brabo, brabo, brabo. [...] [8.] Hum, eu não comia,
quando vinham com comida pra mim, Ave Maria! Eu tinha a
maior raiva! Agora, quando eu fechava meus olhos, aí vinham
e me davam comida de todo o jeito! Eu comia mesmo a comida
deles. [9.] Aí meu marido me trouxe de lá, daí ele me trouxe,
aí, dona menina, a senhora acreditava que ele contava que do
boto só faltava virar a canoa. E eu ficava doidinha na canoa.
Eu não caía n’água porque me agarravam. E quando é lá, me
trouxeram para uma mulher que chamava Dona Mara, hoje em
dia tá embaixo da terra, era uma curadeira, ela. Chegamos na
terra preta, ela não estava. [10.] Era umas cinco horas da manhã.
Lá ele foi pra terra; chegando lá, ela estava pra roça. “Vai chamar
ela!” Eu fiquei na canoa, prostradinha, fazia o mesmo que tava
morta. Meu marido contava benzinho. Aí, ela chegou: “Tá bom,
Antônio, vou tomar um café, vou tomar um banho, deixa ela aí
na canoa, que até lá ninguém vai mexer com ela que aí os meus
mestres já tão tomando conta dela”. [11.] Oh, seu menino, foi
bater quando ela chegou, hum! Eu era rebelde, dona, rebelde,
rebelde, rebelde, que tudo o que eles me davam daqui eu não
queria, eu rebatia. Aí ela perguntou se eu comia. Eu dizia que
não. [...] [12.]. Ela tomou aquele banho, foi tomar banho com o
remédio dela. “Muito bem, agora desembarquem ela, botem ela
na casa.” Foi de tarde, foi umas horas, ela foi me benzer, foi me
benzer, os dois estavam fazendo mingau de farinha. [Curadora:]
“Um leite pra ela, ela tá com muita fraqueza”. [Marido:] “Não,
ela não come, não, ela rebate tudinho o que a gente dá pra ela;
não quer, é uma brabeza”. [Curadora:] “Podem fazer o leite pra
ela, botar a tapioca, que ela vai beber e ela vai sentar, vai dar
uma força nela”. [13.] Ela me chamou: “Maria Iracema, Maria
Iracema, tu me conhece?”. Disse: “Eu conheço!”. “Quem que eu
sou?” “Dona Mara!” “Olha aí! Aí tu quer beber as coisas?” “Eu
quero.” “Tá com fome?” “Eu tô.” “Quê que tu come?” “Eu como
o que me dão comida.” “Mas tu come daqui?” “Não, eu como do
fundo, é gente que tão me dando comida.” Ah!, eu tive força de
pegar a cuia, ela me deu, comi tudinho. “Olha só, ela estava muito
A saúde como política 179

assombrada! De tarde eu vou fazer a banca pra ela.” Ela fez a


banca [banca é como chamam o rito de cura]. [14.] Seu menino,
o bicho pulava lá em cima, eu queria correr, dez pessoas pra
poder me agarrar, e eu queria vencer as pessoas. Dona menina,
eles contam que ele pulava lá em cima, vinha em terra brabo,
brabo, brabo. Ele vinha diz que pum, pum, pum, e a curadeira:
“Não vem, não vem, aqui só Deus!”. Ele dizia que ia, que ele ia lá e
levava. Disse: “Não leva, não! Leva, não! Leva de jeito nenhum!”.
Aí ele teimou com ela. “Não leva! Aqui você não é Deus!” Aí
deu o tempo que ela calmou. [15.] Aí pegava meu corpo, estava
cansado, cansado, cansado, só osso e pele. Aí me botaram na
rede. “Agora vocês não vão deixar ela só.” Lá ela teve lá. “Já vou,
amanhã cedo venho aqui, de manhã.” [16.] Amanheceu o dia,
fiquei olhando, assim, eu e minhas filhas. Meu marido disse: “Tu
conhece essas aqui?”. “Eu conheço, é minhas filhas!” Aí eu chorei
em cima das minhas filhas, eu tinha até raiva das minhas filhas,
ah, isso é verdade! A menina, coitadinha, quando é filho que mãe
não tá tratando, magrinha, magrinha, a bichinha. “É tua filha!”
Foram dar banho na menina, trouxeram, eu agradei ela. Tá bom.
[17.] Quando foi de tarde ela chegou. “Cadê a mulher?” “Tá
aqui.” “Vocês deram banho pra ela?” “Demos.” “Ela já agradou
as filhas?” “Já.” Ela tornou a fazer outra banca, senhor! [18.] Ah,
o senhor pensa que minha cabeça ficou branco, branco, branco,
branco, branco, branco, branco, aí foi um ano e seis meses. Eu
andava assim, gatinhando. As minhas pernas e os meus braços,
um ano e seis meses, eu passei. [19.] Mas também ela fez a banca.
Aí ela pediu pra mim pra nunca mais eu andar assim atrás de
mulher menstruada, pra nunca mais. Se eu quisesse minha vida,
quando sangrasse ou tivesse mulher na visita andando na água,
eu não ia. Eu não vou! Não vou porque o velho vê [o marido a
avisa, ele também cuida]: “Tem mulher menstruada, tu não vai
na beira”. [20.] Quem já pegou uma, quem se esquece de uma, da
outra não se esquece mais [grifo nosso]. Eu tenho muito medo,
quem pegou assombração de bicho, leva a gente mesmo na hora
e perde até a comida, porque só tão dando a comida deles! [21.]
Eu via lá, seu menino, lá onde me levavam, eu via mulher, a casa
deles é bonita, som, pote, tudo. [...] Tudo o que tem aqui tem lá
também, tem bom e tem ruim [gente boa e má]. Me levavam,
seu menino, quando eu me recordava já estava lá. Bonzinha lá
com eles. Eu andava lá, comia o que eles davam, mas quando
acordava eu estava na rede, mas eu era muito braba, braba, braba.
[22.] É muito doído [sofrimento] o negócio de assombração.
Vocês ainda não pegaram. [Maria Iracema, anciã Munduruku,
19 maio 2011].
180 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

A narrativa foi registrada em português e apresenta estrutura


complexa, com características similares à estrutura típica das narra-
tivas na língua Munduruku, utilizando falas citadas, comentários,
sumarizações em uma cadeia de eventos (SCHEFFLER, 1978).3
Na introdução, a narradora indicou a época do evento narrado,
quando do seu primeiro casamento, a situação de estar desacompanhada
do marido e o lugar, numa parte baixa do rio, fornecendo as primeiras
pistas que vão caracterizar o evento disruptivo [1.]. Na sequência [2.] e
[3.], relatou que estava com várias mulheres que tomavam banho quando
os bichos apareceram. A partir desse momento, a narradora começou a
perceber que algo estava errado, inclusive tomando em conta a opinião
da comadre, indicando que o início da experiência foi caracterizado pela
dúvida [4.]. Na continuidade, iniciou-se um período que se caracterizou
pelo surgimento dos sintomas (queda e branqueamento do cabelo,
prostração, emagrecimento) e pelas tentativas de resolução [5.].
A narradora interrompeu o fluxo temporal para fazer comentários
antecipando a fase do fechamento da narrativa, comentando a relação
entre causa e efeitos do sofrimento e as medidas de prevenção que passou
a realizar [5.]. Ela cita o comportamento atual de vizinhas que mantêm
as práticas de resguardo na menstruação, inclusive as “mocinhas”, apesar
de afirmar que é impossível saber se todas realmente “se tratam” como
motivo para tornar mais rigoroso o próprio resguardo [6.]. O resguardo
na menstruação consiste essencialmente em evitar circular pela beira
– portanto, lavar roupas e louças e banhar-se em casa.
Em seguida, a narradora retomou a descrição dos agentes causais.
Descreveu os botos com sinais que os distinguiam como seres malignos
(número e letras no corpo) [7.]. A narrativa não deixa claro se era a
própria narradora ou outra mulher do grupo que estava menstruada
no dia em que os botos foram atraídos. Manter prescrições relativas à
menstruação é visto como cuidado, não apenas para si, mas para outras

3
Segundo Scheffler (1978), narrativas em Munduruku apresentam sequências de
padronização típicas – com orientação, complicação e avaliação – que se repetem,
assim como sumarizações e antecipações de resultados. O foco é alterado várias vezes.
As narrativas apresentam introdução, em que se apresenta o principal participante
e referências de tempo e lugar. O corpo da narrativa contém comentários, detalhes
descritivos, parênteses e flashbacks. Ainda no corpo, o fechamento pode ser
antecipado através de uma série de declarações-resumo. Scheffler cita ainda a forma
característica dos diálogos, em que as partículas de resposta indicam a mudança
do falante sem a nominação deles. A maioria dessas características está presente na
narrativa que transcrevemos.
A saúde como política 181

pessoas, pois os botos podem assombrar qualquer um. Os Munduruku


afirmam que uma mulher menstruada jamais deve se banhar na beira ou
na cacimba, pois o cheiro do sangue atrai os botos. O cheiro do sangue
para os botos é “doce como ananás” (DIAS-SCOPEL, 2018).
A seguir, a narradora passou a aprofundar a construção do quadro
de sintomas. O sintoma mais significativo da experiência de assombro de
bicho foi recusar comida, indicando que ela estava aceitando alimento
oferecido pelos bichos do fundo. Essa condição significa a iminência da
morte [8.]. Ela também cita que era muito “rebelde” [11.].
A narrativa prosseguiu de forma mais dramática com a busca
pelo tratamento junto à curadora-pajé. A narradora passa a relatar o
que o marido lhe contou, indicando que estava inconsciente (doida) e
não guardava lembranças do que acontecera no trajeto. A inconsciência
sinalizaria a piora em seu estado. O marido contou que ela tentava se
jogar na água e que foi necessário imobilizá-la. Afirmou que o boto
tentava virar a canoa para levá-la para o fundo [9.].
Na interação do marido e da curadora, esta disse a ele que
poderia deixar Iracema deitada na canoa. Essa mudança de foco põe em
evidência a agência dos mestres [10.]. “Mestre” é um dos termos usados
para designar os espíritos aliados dos curadores-pajés. Os curadores-
pajés são pessoas que têm o poder de viajar para o Encante. Lá fazem
parceiros que se tornam aliados nos rituais de cura (SCOPEL, 2013).4
A recusa pelo alimento foi novamente evocada como condição
extrema [11.]. O processo terapêutico incluiu a tentativa de alimentação
da narradora para combater a fraqueza. O mingau de farinha é o último
recurso que se oferece para alguém que está à beira da morte [12.]. Depois
de aceitar alimento, a narradora conversou com a curadora, indicando
retomar a consciência e confirmando o diagnóstico (assombro de
bicho) [13.].
O processo de cura inclui um momento ritual (banca). Durante
a banca, a narradora adquiriu uma força inexplicável (dez pessoas para
segurar). O momento mais dramático do ritual (e da narrativa) foi a

4
A iniciação dos curadores-pajés é frequentemente uma consequência de processo
terapêutico. Os sintomas são semelhantes aos do assombro de bicho. A pessoa
fica doida. Porém, a causa não se reduz à quebra de prescrições, mas abarca o dom
de nascença. O dom se constitui da capacidade de se comunicar e de fazer parcerias
com os espíritos. O tratamento consiste em afastar os espíritos maus e firmar parce-
ria com espíritos que se tornam aliados dos curadores. Isso implica uma série de
prescrições que o iniciado deverá manter por toda a vida para a própria saúde,
principalmente ajudar as pessoas que o procuram sem cobrar por isso (SCOPEL, 2013).
182 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

batalha entre a curadora e o boto, quando ela diz “aqui só Deus”. Em


oposição, o boto ameaçou vir a terra para levar Iracema para o fundo
[14.]. No dia seguinte, a narradora reconheceu as filhas e voltou a lhes dar
carinho, indicando, portanto, que foi reestabelecido o comportamento
ideal interrompido pelo processo de doença. Ela chorou junto às
meninas, indicando que a raiva cedeu lugar à demonstração de afeto
[16.]. A sequência da narrativa indica que o tratamento prosseguiu com
outros rituais. A narradora mencionou as recomendações que recebeu
da curadora. Interessante notar que a cura visa ao reestabelecimento
físico e social, mas as recomendações incluem também a restrição de
circular na beira do rio sempre que ela ou alguma outra mulher estiver
menstruada, demonstrando a eficácia das estratégias de aproximação e
afastamento [19.].
Perto do fechamento da narrativa, a narradora forneceu mais
pistas necessárias para compreender o relato, resumindo ensinamentos
e alertas [20.], e esclareceu algo sobre o que viu no Encante, como é a
vida no fundo [21.]. Ela concluiu fazendo referência à experiência da
doença como sofrimento. Para a narradora, a experiência pessoal deve
servir como um exemplo para que outros não sofram do mesmo modo,
seguindo o ensinamento dos antigos. A narradora concluiu alertando:
“Vocês ainda não pegaram” [22.]. E repete a ideia de alertar os ouvintes
sobre o perigo: “Quem já pegou uma, quem se esquece de uma, da outra
não se esquece mais” [20.].5

Narrativas e expectativas
O assombro de bicho do fundo condensa um conjunto de
memórias e expectativas que emergem em um contexto particular dos
Munduruku. O assombro diz respeito a uma condição de sofrimento
do sujeito e do grupo doméstico. Porém, além disso, num âmbito mais
coletivo, trata-se da observação de práticas que visam à reprodução
biossocial da coletividade. As narrativas evocam memórias e expecta-
tivas relacionadas a esse processo.
Scheffler (1978) argumenta que as estruturas das narrativas
na língua Munduruku apresentam um contraste entre dois tipos de

5
A conclusão da narrativa ficou clara pela mudança de entonação da narradora e
do foco da conversa. A plateia expressou frases curtas, ratificando a narrativa de
Iracema, e Guaraciaba tomou a palavra, iniciando outra narrativa.
A saúde como política 183

conteúdo. O conteúdo primário está relacionado a uma sequência


de eventos que reporta o progresso dos participantes no alcance dos
objetivos declarados no início da narrativa. O conteúdo secundário
consiste em descrições, explanações, conclusões e sumarizações com-
plementares que servem como um pano de fundo (background).
O modelo analítico utilizado por Scheffler nos ajuda a evidenciar
quais elementos criam contraste entre primeiro plano e pano de fundo
da narrativa. O contraste serve para entender como certos signifi-
cados ganham relevo no discurso através de padrões linguísticos
compartilhados. Desse modo, algumas características estruturais das
narrativas tendem a se repetir, e, assim, aspectos da experiência são
valorizados na práxis, contribuindo para aquilo que Bateson (1972
apud LANGDON, 1999, p. 20) chama de enquadramento, “uma forma
de metacomunicação em que a mensagem enviada inclui um conjun-
to de instruções de como interpretá-la”. A narrativa evoca memórias
que ganham “sentido no ato de narrar, nas mudanças que se desen-
cadeiam e nas subjetividades e nos agenciamentos que emergem”
(NIETO MORENO; LANGDON, 2020, p. 139, tradução nossa).6 As
narrativas ajudam a compreender as experiências pessoais, pois evocam
modelos de/para a realidade (LANGDON, 1994b).
Conforme Langdon (1997), as narrativas de doença põem em
relevo aspectos da experiência fornecendo um modelo de/para a ação
de duas formas:

Uma é por meio da estrutura narrativa que estabelece um conjunto


de certas questões e expectativas quanto à consequencialidade
dos eventos: como eles evoluem, a natureza dos motivos por
trás dos infortúnios e as estratégias de resolução. A segunda é
através do fornecimento de códigos ou sinais que auxiliam na
interpretação de eventos ocultos. Nesse sentido, as narrativas de
adoecimento não são preditivas, mas indicam o que é relevante
para interpretar o adoecimento e organizar um plano de ação.
(LANGDON, 1997, p. 188, grifo nosso, tradução nossa).7

6
No original: “sentido en el acto de narrar, en los câmbios que desencadenan y en las
subjetividades y agenciamentos que emergen”.
7
No original: “One is through narrative structure that establishes a set of certain
questions and expectations as to the consequentiality of events: how they evolve, the
nature of motives behind misfortunes, and strategies for resolution. The second is
through provision of codes or signs that aid in the interpretation of hidden events. In
this sense, the illness narratives are not predictive, but indicate what is relevant for
interpreting illness and organizing a plan of action”.
184 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

As narrativas8 sobre assombro de bicho do fundo compartilham


uma sequência padronizada: a pessoa doente é assediada pelos botos,
fica doida, emagrece, deixa de lado as responsabilidades, passa a comer
a comida do fundo, um curador é acionado, realiza-se um ritual de cura
com uma batalha entre curador e o espírito mau do boto, o curador
resgata a sombra da pessoa doente. Com a cura, a pessoa lentamente se
reabilita socialmente e passa a seguir as recomendações do curador.9
Essa cadeia de eventos é parte do conteúdo primário das narrativas e
manifesta um modelo cosmográfico socialmente compartilhado.
O processo de doença é um drama social no qual diversos
atores buscam interpretar o que está acontecendo e indicar o que fazer.
Esse drama segue sequências de diagnóstico, tratamento e avaliações
de maneira que as narrativas de experiências passadas fornecem
informações importantes sobre como agir (LANGDON, 2001). Nesse
sentido, as narrativas não são preditivas em casos concretos, porém,
através delas, é possível especular prognósticos. Conforme Young (1976),
as expectativas sobre esses prognósticos têm implicações pragmáticas,
sociais e ontológicas, pois, ao mesmo tempo que orientam a ação social,
implicam a confirmação ou a reformulação dos planos de ação e dos
modelos de/para a realidade evocados pelas etiologias.
A cosmografia, como saber dos antigos, é interativamente re-
construída através da dinâmica entre experiências e narrativas. As
narrativas permitem refletir sobre o jogo das aparências e dos sentidos
ocultos na cosmografia. Elas também ajudam a explicitar um propósito
coletivo implícito no modo de ser, semelhantemente ao que Langdon
descreve sobre o xamanismo siona:

Em seu significado mais amplo, implica uma preocupação com


o bem-estar da sociedade e de seus indivíduos, com a harmonia
social e com o crescimento e a reprodução do mundo como
um todo. Ele abrange o sobrenatural, bem como o social e o
ecológico. É uma instituição cultural central que, por meio de
várias formas culturais, como ritual, performance narrativa e
arte, unifica o passado mítico com a visão de mundo e os projeta

8
Registramos muitas narrativas com padrão semelhante.
9
Também há narrativas de casos em que a pessoa não cumpriu as recomendações e
por isso foi levada para o fundo.
A saúde como política 185

nas atividades da vida cotidiana. (LANGDON, 1997, p. 188,


tradução nossa).10

A cosmografia evoca planos de ação compartilhados de modo


intersubjetivo que, entretanto, não se restringem às intervenções em
casos de doença ou de sistematização de experiências vividas. Como
modelo de/para a ação, implica também expectativas relacionadas
ao futuro, tanto através das práticas preventivas como da promo-
ção da saúde e do bem-estar coletivos (SCOPEL; DIAS-SCOPEL;
LANGDON, 2018).

Narrativas e a sabedoria dos antigos


Os Munduruku utilizam as narrativas míticas para expressar
o modo como se realizam as interações entre gentes, bichos, plantas,
espíritos, objetos, lugares, enfim, seres que compartilham o território
(MURPHY, 1958). Ao expressarem as transações entre os seres que
habitam o cosmo, narrativas mobilizam memórias e saberes sobre como
agir (LANGDON, 2018). Elas fazem a conexão entre experiências e
expectativas. Evocam sentidos pragmáticos, sociais e ontológicos da
experiência coletiva, que se encontram imbricados na práxis (YOUNG,
1976). Elas também abarcam um sentido político e coletivo.
Os professores Munduruku têm se empenhado em manter o
rico acervo de narrativas míticas e históricas munduruku presente no
espaço escolar e na vida coletiva da TI Kwatá-Laranjal. A esse conjunto
de narrativas, chamam “histórias dos antigos”. Nas últimas três décadas,
realizando excelentes registros etnográficos, eles se dedicaram a
trabalhar como pesquisadores em um projeto de resgate das histórias
dos antigos.
Uma parte dos resultados dessas pesquisas, que diz respeito ao
processo de territorialização vivenciado, foi publicada na forma de um
livro didático intitulado Kwatá-Laranjal: história e reconquista da terra
(OLIVEIRA, 2002). A obra traz diversas narrativas da organização

10
No original: “In its larger meaning, it implies a preoccupation with the well-being of
society and its individuals, with social harmony and with the growth and reproduction
of the world as a whole. It embraces the supernatural as well as the social and ecological.
It is a central cultural institution, which through various cultural forms such as ritual,
narrative performance and art, unify the mythic past with world view and projects
them on the activities of the daily life”.
186 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

política dos Munduruku durante o processo de autodemarcação da TI,


assim como a relação conflituosa e violenta entre os Munduruku e os
invasores do território indígena.
Uma das narrativas contidas no livro didático conta que os
professores indígenas, em 1999, convidaram duas anciãs da aldeia
kwatá para conversar em sala de aula. Os professores pediram para elas
contarem com era a vida no passado. Uma dessas anciãs era Antônia,
que na ocasião tinha 98 anos.
Entre os Munduruku, os anciãos são tidos como sábios
conhecedores da língua, dos costumes, do passado, das histórias e da
cultura munduruku. Antônia, por exemplo, era citada como modelo
de sabedoria e resistência. Ela era comparada à árvore samaumeira
(Ceiba pentranda). A samaumeira é “uma árvore grande e forte”,
explicaram. Antônia era uma pessoa muito admirada pelos Munduruku
por seu conhecimento e por tudo o que já vivera. A longevidade, para
os Munduruku, é considerada expressão de sabedoria e resultado
do cumprimento de um conjunto de práticas de autoatenção
intencionalmente realizadas visando a manter a saúde, prevenir doenças
e evitar a morte (DIAS-SCOPEL; SCOPEL, 2019). Segundo Antônia:

Antigamente não existia branco na aldeia, só chegaram depois.


Manaus nem existia, só tinha um índio morando. O nome da
mulher do índio era Manauara, não havia casa em Manaus.
Os índios só começaram a casar quando apareceu o padre na
aldeia. Os índios eram levados da aldeia pra Vila de Canumã.
Eles iam tudo de batelão para serem batizados pelo padre. A Vila
de Canumã era terra de índios, os Munduruku e que ajudavam
a fazer os roçados. Naquela época o padre era o professor dos
índios. Foram os padres que ensinaram português para os índios.
Minha mãe falava, dizia dona Antônia, ainda me lembro bem,
para gente ter muito cuidado. Ela dizia que um dia os brancos
iam chegar na aldeia e que iam nos ensinar a falar o português e a
gente ia perder a linguagem. Quando isso acontecesse, a gente ia
perder a cultura. Os filhos não iam mais respeitar os pais, os pais
não iam mais respeitar os filhos, ninguém ia mais obedecer, tudo
ia se acabar. E assim mesmo que tá acontecendo nos dias de hoje.
Agora meu filho, diz dona Antônia, se referindo ao seu filho que
estava presente na sala de aula (seu Agapito, 63 anos, que naquela
época era vice-capitão da aldeia Kwata), está preocupado com
a linguagem. Quer aprender a falar a linguagem de novo. Mas
quando eu chamava sua atenção quando ele era pequeno, não
queria me obedecer não. Não queria aprender a falar a linguagem,
A saúde como política 187

tinha vergonha. Agora taí. [Antônia Cardoso Munduruku, anciã


Munduruku]. (OLIVEIRA, 2002, p. 38).

A narrativa registrada pelos professores Munduruku se inicia com


o tempo dos antigos, em que não havia brancos, e rememora a atuação
da missão católica no rio Canumã do início do século XIX;11 o foco é o
desuso da língua Munduruku na TI Kwatá-Laranjal. O relato contrasta
o passado e o presente e, como em outras narrativas típicas, evoca a
imagem do tempo dos antigos como tempo de fartura e alegria. Antônia
lembra-se da mãe alertando que um dia os Munduruku perderiam o
idioma e a cultura, haveria a falta de respeito mútuo entre pais e filhos e
“tudo ia se acabar”. É interessante observar que é contra a possibilidade
de tudo um dia acabar que os professores indígenas intencionalmente
trabalham, para manter viva a sabedoria dos antigos. Antônia cita o
próprio filho como exemplo, demonstrando a situação contraditória
e o conflito entre as gerações. Agapito, filho de Antônia, era uma das
lideranças que alertavam os professores sobre a necessidade da retomada
da língua Munduruku nas escolas, porém ele mesmo, quando criança,
“não queria obedecer”.
A publicação do livro, contudo, mostra que os alertas de
Antônia e de outros anciãos surtiram efeito, pelo menos entre a nova
geração de professores indígenas. O professor indígena Paulo Cardoso
Munduruku, por exemplo, é neto de Antônia. Ele é um dos principais
intelectuais Munduruku da aldeia kwatá e dedicou sua pesquisa ao tema
das narrativas míticas que coletou junto à avó.

Narrativas míticas e os pariwat


As narrativas míticas munduruku dividem-se em vários episódios
e temas em um extenso corpus inscriptionum, tal qual definido por
Malinowski (1978).12 A parte principal e mais importante desse corpo
são as narrativas sobre Karusakaibo, demiurgo Munduruku; entretanto,
há registros de centenas de narrativas míticas que versam sobre a agência

11
Missão Nova de Monte Carmel do Rio Canumã (MURPHY, 1958).
12
Um conjunto de narrativas míticas munduruku foi registrado por Murphy (1958).
Uma coleção muito ampla, em três volumes, bilíngue, foi publicada pelo Summer
Institute of Linguistics (BURUM, 1978). Diversas narrativas míticas munduruku
compõem o material analisado por Lévi-Strauss (2004). Um trabalho muito
interessante de compilação e análise pode ser encontrado em Loures (2017).
188 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

dos animais como gente. As narrativas míticas não ficam restritas ao


estudo dos intelectuais Munduruku e são intencionalmente evocadas
em situações diversas para além das salas de aula e do material didático,
tais como festivais, desfiles, encenações, danças. Nesse sentido é que
tomam forma como uma estratégia de resgate e fortalecimento da cultura
munduruku. Em seu Trabalho de Conclusão de Curso, Paulo registra a
narrativa da criação dos Munduruku tal como aprendeu com Antônia.13
As narrativas míticas tendem a ser evocadas como um evento que, ao ser
lembrado, comunica um sentido que é tanto pedagógico como político.

Karusakaibo, o pai supremo, foi ele quem trouxe os primeiros


homens Munduruku do subterrâneo, do centro da terra, para
viver na superfície. O Pai supremo criou a planta chamada
algodão de onde fabricou linhas compridas, depois de tudo
pronto, abriu um pequeno buraco no chão, por onde subiram
os primeiros homens Munduruku para superfície da terra.
Mas antes que todos conseguissem subir, a corda arrebentou.
Com isso, os que conseguiram chegar até em cima é que
são considerados os mais fortes e bonitos, que somos nós os
Munduruku. Karusakaibo criou também muitas coisas boas
como os rios, os lagos, os igarapés, as rochas, as montanhas,
as florestas, com todas as espécies de plantas como: itaúba,
cedro, pau-rosa, louro-rosa, sucupira, laranjinha, jacarandá,
massaranduba, preciosa, tento, andiroba e outras espécies. Criou
também muitas espécies de animais como: anta, onça, tatu,
macaco, veado, paca, porco, cutia, mutum, inambu, jacu, quati,
capivara, jacamim, cujubim, enfim, tudo que seu povo precisasse
para desfrutar e se alimentar na terra. Também ensinou seus
filhos como manejá-la, preservá-la e protegê-la por isso os
Munduruku têm profunda relação com a natureza e acreditam
que cada ser vivo existente na floresta, ou seja em seu habitat,
possui alma e vida própria e por isso na sociedade Munduruku,
nada se faz à natureza sem antes pedir-lhes licença, seja para
pescar, caçar ou fazer suas atividades produtivas. Os Munduruku
se relacionam com cada ser existente, na floresta e tudo que se
tira dela se tem como alimento e fonte de vida para todos das
aldeias por isso se o homem fere a terra, fere também os diversos
filhos da terra, entre eles nós os Munduruku. (MUNDURUKU,
[20--?] apud CABRAL, 2005, s. p.).

13
Trechos do TCC de Paulo foram publicados como anexo na dissertação de mestrado
de Cabral (2005).
A saúde como política 189

Na primeira parte do texto, Karusakaibo é lembrado como o


demiurgo que trouxe os Munduruku para a superfície. Karusakaibo é
o Deus criador, herói mítico retratado em uma série de episódios nos
quais interage com outros seres. Trouxe os Munduruku do subterrâneo
e os ensinou a cuidar da terra. Cada ser da criação tem alma e me-
rece respeito.
O texto do professor Paulo Munduruku evoca um modelo da
cosmografia refletindo o modo de ser dos Munduruku. O respeito é a
atitude esperada para com a natureza – há um paralelo entre o respeito
para com os antigos –, que se expressa no poder dos espíritos-mãe (mãe
da caça, mãe da roça, mãe dos peixes, mãe do corpo, mãe do olho d’água
etc.). “Cada ser vivo” possui “alma e vida própria”, são como “filhos”.
Assim, os próprios Munduruku se veem como “filhos da terra”. As
histórias dos antigos contam que o desrespeito a esses princípios ameaça
a vida no território.
Em outro trabalho, descrevemos com mais detalhes o longo
processo histórico da relação entre os Munduruku e os pariwat, marcada
por violências e ambiguidades (SCOPEL; DIAS-SCOPEL; LANGDON,
2018). “Pariwat” é o termo munduruku que designa o branco (o não
indígena). É necessário recuperar que, em muitos momentos da história,
os pariwat foram vistos como parceiros dos Munduruku; entretanto,
há uma série de situações nessa relação em que os pariwat foram
considerados inimigos invasores do território, prática que resultou em
mortes e epidemias (SCOPEL; DIAS-SCOPEL; LANGDON, 2018).
Narrativas sobre os eventos de conflito com os pariwat focalizam a
irracionalidade do comportamento destes, vistos como gananciosos que
desrespeitam os espíritos-mãe que protegem o território munduruku
e os seres que nele habitam. A narrativa abaixo é de Pergentino Lopes
da Silva (88 anos), faz parte da coletânea citada e foi registrada pelo
professor Munduruku Amarildo dos Santos Maciel:

[...] branco é muito teimoso, acha que sabe o que está fazendo.
Tudo começou quando vieram algumas pessoas lá do Paraná da
Eva. Vieram para um lugar chamado Careca, no rio Abacaxis,
onde eles se alagaram. Meu pai e os pajés sempre falaram
que aquele lugar era muito respeitado, era um lugar sagrado.
Ninguém podia ofender, mas no final da tarde eles pegavam suas
armas e começavam a atirar em direção ao barranco. Por isso
que eu digo, tudo tem sua mãe e nenhuma mãe gosta que mexam
com seus filhos. E aquele pessoal ofendeu a mãe daquele lugar. Aí
a febre apareceu e começou a atacar as pessoas, matando quase
190 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

todos os pais. Atingiu a aldeia do Cipó que matou quase todos de


lá. Chegou também na aldeia do Laranjal [Pergentino Lopes da
Silva, ancião Munduruku]. (OLIVEIRA, 2002, p. 67).

A sabedoria dos antigos confronta a ação irracional dos pariwat.


Os abusos dos pariwat são causa para epidemias. O espírito-mãe
que tomava conta daquele lugar, na narrativa do ancião Pergentino,
vingou-se dos Munduruku com febres que começaram a “atacar as
pessoas”. Semelhantemente ao assombro de bicho do fundo, as doenças
e os infortúnios não recaem necessariamente em quem realiza o ato de
desrespeito ou a quebra de prescrições comportamentais, mas podem
“atacar” qualquer pessoa.
Para os Munduruku, a paisagem expressa um nexo temporal
entre passado e presente. O cosmo impõe à experiência munduruku
expectativas sobre como viver em um lugar específico e particular: o
território munduruku. É preciso estar atento ao oculto, inquirir-se sobre
as aparências e identificar agências, atitude imprescindível para evitar
infortúnios e morte, tanto quanto para estabelecer os critérios básicos
da vida cotidiana. As histórias dos antigos falam, portanto, de saberes
sobre como viver num território vivo e como lidar com o perigo e com
as ambiguidades inauguradas no encontro colonial.

Confronto entre cosmografias


A presença pariwat também se faz sentir através da ação do
Estado nacional em território munduruku. O Estado sistematicamente
tem mobilizado estratégias ambíguas em relação aos Munduruku, como
exemplificam os casos recentes da construção de usinas hidrelétricas
no Alto Tapajós; das reiteradas invasões ao território (garimpo, pesca
e caça ilegais); ou dos impactos da pandemia de covid-19 (CARTA...,
2020). Nesses processos, é notável o desrespeito aos direitos indígenas,
conforme estabelecido pela Constituição Federal, pelas normas in-
fraconstitucionais e pelas convenções internacionais. O Estado nacio-
nal é ambíguo na medida em que as políticas públicas estabelecidas são
desrespeitadas por governantes e gestores.
A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígena
(PNASPI) é voltada para a “atenção diferenciada” e propõe como
diretrizes a “articulação dos sistemas tradicionais indígenas de saúde”
e a “promoção de ambientes saudáveis e proteção da saúde indígena”
A saúde como política 191

(BRASIL, 2002, p. 13). A PNASPI é clara quanto ao reconhecimento das


práticas de autoatenção e do papel das cosmografias indígenas para a
saúde dos povos indígenas:

Os sistemas tradicionais indígenas de saúde são baseados em


uma abordagem holística de saúde, cujo princípio é a harmonia
de indivíduos, famílias e comunidades com o universo que os
rodeia. As práticas de cura respondem a uma lógica interna
de cada comunidade indígena e são o produto de sua relação
particular com o mundo espiritual e os seres do ambiente em que
vivem. Essas práticas e concepções são, geralmente, recursos
de saúde de eficácias empírica e simbólica, de acordo com
a definição mais recente de saúde da Organização Mundial
de Saúde. Portanto, a melhoria do estado de saúde dos povos
indígenas não ocorre pela simples transferência para eles de
conhecimentos e tecnologias da biomedicina, considerando-os
como receptores passivos, despossuídos de saberes e práticas
ligadas ao processo saúde-doença. (BRASIL, 2002, p. 17,
grifo nosso).

A PNASPI representou certo avanço em relação ao reconhecimento


dos direitos indígenas, especialmente quanto à participação social na
gestão da saúde. Contudo, a efetivação desse direito ainda encontra
obstáculos decorrentes de um processo histórico assimétrico inaugurado
com o colonialismo. É necessário recordar que políticas integracionistas
e desenvolvimentistas foram promovidas pelo Estado durante os séculos
XX e XXI e que o exercício do poder tutelar, através de ações e omis-
sões do Estado, justificou uma fronteira civilizatória mantida como
parte do projeto político de construção da nação brasileira (SOUZA
LIMA, 2015). Evidentemente, o avanço desenvolvimentista sobre o
território indígena tem gerado uma série de impactos negativos sobre
o processo de reprodução biossocial dos Munduruku (SCOPEL; DIAS-
SCOPEL; LANGDON, 2018).
O confronto entre a cosmografia indígena e a desenvolvimen-
tista evidencia a agência e a resistência dos Munduruku. Um exemplo
evidente é o caso dos projetos de construção de usinas hidrelétricas no
Alto Tapajós. Os Munduruku tornaram explícito seu projeto político
coletivo de reprodução biossocial, pelo qual a saúde é definida de uma
maneira ampla, holística, com forte conotação socioambiental. Foram
produzidos vários documentos pelos Munduruku reivindicando
direitos, nos quais registram a importância sagrada de lugares que
192 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

seriam destruídos pelas hidrelétricas (LOURES, 2018; SCOPEL;


DIAS-SCOPEL; LANGDON, 2018). Nesses documentos, destacaram
a ameaça que tais projetos desenvolvimentistas representam para
o modo de vida indígena. Os Munduruku demonstram interesse
em proteger cachoeiras, rios e florestas vistos como parte viva de
sua cosmografia.
O mesmo aconteceu no caso do garimpo ilegal em território
munduruku. O confronto com o governo federal emergiu através de
denúncias sobre a omissão do Estado quanto a crimes ambientais e
o incentivo à atividade garimpeira em terras munduruku, conforme
recurso apresentado pelo Ministério Público Federal (MPF) no
Processo no 1000962-53.2020.4.01.3908. Em uma carta encaminhada
ao MPF, os Munduruku mostraram-se preocupados com a ganância
dos não indígenas, afirmando, por exemplo, que o garimpo trouxe
riqueza apenas para os brancos e que “para os Munduruku ficou apenas
destruição e aumento de doenças” (CARTA..., 2020, p. 2). Esse contexto
tem sido marcado pela destruição da floresta, pelo assoreamento dos
rios e pelos índices elevados de contaminação por mercúrio entre os
Munduruku (FIOCRUZ; WWF BRASIL, 2020).
A pandemia de covid-19 deu relevo às iniquidades em saúde
em territórios indígenas (SANTOS; PONTES; COIMBRA JR., 2020).
Da perspectiva munduruku, a pandemia trouxe prejuízos irreversíveis.
Como argumentam Rocha e Loures (2020, p. 338), entre os Munduruku
o conhecimento é comunicado oralmente, e os anciãos são vistos como
“repositório de conhecimento”. As mortes dos idosos, no decorrer da
pandemia, foram vivenciadas como perda do “saber dos antigos”.
Em maio de 2020, o professor Munduruku Itanajé Coelho
Cardoso registrou homenagem a Raimundo Cardoso Munduruku, o
Agapito, filho de Antônia, citado anteriormente. O professor Itanajé
expressou tristeza pela perda do tio em vídeo postado na platafor-
ma YouTube.14

A gente ficou muito triste porque ele é uma liderança muito


conhecida na região e um grande conhecedor da história do povo
Munduruku, e a gente perdeu essa liderança ontem. Infelizmen-
te, o coronavírus levou nosso tio [...]. (HOMENANGEM...,
2020, s. p.).

14
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4RzMJ9z-4SU. Acesso em: 17
ago. 2022.
A saúde como política 193

Para os Munduruku, a perda da “sabedoria dos antigos” é


lastimável, sendo que cada idoso é considerado uma “biblioteca viva”.
Alessandra Korap Munduruku, uma importante liderança do rio
Tapajós, sintetizou:

Para nós isso é uma perda que não dá para medir. Eles são nossa
biblioteca viva, uma biblioteca que está com a gente no dia a
dia. Eles carregam a história do nosso povo, contam as nossas
histórias. Não é uma biblioteca que você vai lá, tira o livro, lê
e devolve. Não. São bibliotecas vivas, que falam, que contam as
histórias para nós. Não são um museu porque não estão mortos,
eles ainda existem, nós existimos ainda, estamos aqui presentes.
(MUNDURUKU; CHAVES, 2020, p. 184).

É a partir da inserção dos Munduruku em uma rede mais ampla


de atores sociais que a cosmografia munduruku ganha contornos de
projeto político coletivo em um cenário que se caracteriza pelo confronto
entre cosmografias e pela ameaça à reprodução biossocial munduruku.

Considerações finais
A sabedoria dos antigos abrange um conjunto de saberes de
autoatenção relacionados à cosmografia munduruku. Esse conjunto
de saberes expressa o modo de ser, de viver e de buscar o bem-estar
individual e coletivo ancorado na memória compartilhada, no senti-
mento de pertencimento étnico através do uso e da manutenção do
território ao longo da história.
A forma de ocupação e de uso do território e a qualidade da
relação com os demais seres do cosmo, para os Munduruku, implicam
conhecimento sobre os lugares que habitam ou onde realizam
atividades. O infortúnio, a doença e a morte são reconhecidos como
resultado de comportamentos inadequados, conflitos ou encontros
com seres maléficos. Experiências e memórias sobre comportamentos,
conflitos e encontros foram sistematizadas pelos Munduruku como
saberes relativos aos processos de saúde/doença/atenção como parte da
cosmografia. Para os Munduruku, há uma relação indissociável entre
corpo, ambiente e território ratificada pela sabedoria dos antigos.
Esta ganha relevo na atualidade por meio do confronto entre a
cosmografia munduruku e a cosmografia desenvolvimentista impul-
sionada pelo Estado nacional. Como saber sistematizado através das
194 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

gerações, subsidia a luta munduruku para obter garantia de direitos de


cidadania e de autodeterminação. Essa luta é parte de um projeto político
coletivo mais amplo que visa a um sentido de perdurar, semelhante
ao descrito por Portela Guarín (2003, p. 63, tradução nossa),15 em
que perdurar

é equilíbrio, harmonia e bem-estar, e na sua busca é necessário


colocar em prática, no cotidiano, a ética comunitária (norma-
tividade cultural) que norteia o comportamento individual e o
social e a relação com o meio ambiente como sistema global de
pensamento, produto do exercício de apreensão e significação
que se faz do cosmos para compreendê-lo, explicá-lo e projetá-lo
nas formas de relação intercultural.

As narrativas contribuem para um projeto político coletivo


na medida em que são importantes para a preservação e o resgate
de memórias, o fortalecimento da identidade étnica e a revitalização
cultural (LANGDON, 2018). A efetividade das narrativas em
comunicar significados relacionados com processos de saúde/doença/
atenção reafirma a concretude da cosmografia munduruku nesse
projeto. Narrativas comunicam saberes sobre como agir. Elas efetivam
a conexão entre experiências e expectativas. Através das narrativas,
os Munduruku refletem sobre experiência histórica, pautam a ação
presente e indicam rumos para seus projetos políticos. Dizem sobre
o passado e sobre o futuro que se deseja. Expressam a eficácia da
sabedoria dos antigos.

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Mundurukú. Brasília: Summer Institute of Linguistics, 1978. v. 1, 2 e 3.

15
No original: “es equilibrio, armonía y bienestar y en su búsqueda es necesario poner
en práctica, en la cotidianidad, la ética comunitaria (normatividade cultural) que
guía la conducta individual, social y de relación con el entorno como sistema global
de pensamiento, producto del ejercicio de aprehensión y significación que se hace del
cosmos para entenderlo, explicarlo y proyectarlo en las formas de relación intercultural”.
A saúde como política 195

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Breve relato sobre as
contribuições de Esther Jean
Langdon aos estudos
em saúde

Nádia Heusi

A escolha desta narrativa é pontuar alguns elementos que con-


sidero relevantes na abordagem de Esther Jean Langdon para o campo
da saúde. Quando fui convidada a participar nesta coletânea, pensei
primeiramente em escrever um artigo sobre as contribuições de Jean,
mas as circunstâncias me levaram a um exercício mais breve. O que vem
a seguir é a visão de quem se tornou antropóloga sob orientação dela,
tendo formação e experiência profissional prévias na área da saúde.
Por ser um relato afetivo, além do teor acadêmico, menciono
características pessoais da Jean como mentora e antropóloga, pois as
dimensões da formação, da convivência e da sua herança no meu fazer
antropológico não se deram separadas. Trata-se, então, de uma visão
particular e não exaustiva sobre os atributos da antropologia que ela se
propõe a fazer e ensinar.
De começo, o elemento que mais me chamou a atenção na
abordagem de Jean foi seu reconhecimento de que o diálogo com outros
campos de saber é fundamental para avançar em práticas de cuidados de
saúde menos enviesadas por valores dominantes no mundo ocidental.
Valores esses que reiteram distâncias sociais e tendem a sufocar aqueles
conhecimentos sobre saúde e doença fundamentados em preceitos
distintos dos da ciência.
A bagagem que eu trazia sobre nutrição impulsionou nossas
primeiras conversas, em que tentava reenquadrar, esquadrinhar, re-
configurar, questionar e distanciar-me dos conhecimentos biomé-
dicos a respeito de processos de saúde, doença e atenção à saúde para
apreender o que seria uma abordagem antropológica sobre saúde.
Eu estava apegada a uma práxis profissional, mas Jean insistiu e me
200 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

chacoalhou com uma disciplina de leitura singularizada que foi eficaz


para me reposicionar nos estudos da antropologia.
Mais recentemente, dividindo disciplinas com ela como docente,
evidenciou-se de novo essa atenção em constituir um diálogo com
estudantes formados na área da saúde, com base em categorias concei-
tuais passíveis de estabelecer algumas convergências de entendimento
entre campos de conhecimento distintos.
O que esse primeiro contato com a antropologia langdoniana me
ensinou foi a atentar para um quesito essencial nas reflexões direcionadas
ao tema da saúde. Isto é, a existência desse nódulo constituído pela
relação entre os conhecimentos antropológicos e os biomédicos, que
fica mais ou menos ressaltado nas diversas teorias que orientam os
estudos sobre saúde e doença.
As maneiras de enquadrar os discursos e as práticas da biome-
dicina variam muito entre as vertentes teóricas. O que me convence
nessa abordagem de Jean é que se pode colocar em prática uma
premissa fundante da disciplina antropológica: o respeito às diferenças.
Nesse campo de estudos, às vezes certas posturas teóricas têm algo de
paradoxal. Por um lado, o senso comum antropológico assume que
todo tipo de conhecimento é legítimo e tem valor; por outro, algumas
etnografias dedicam-se a dissolver os fundamentos dos conhecimen-
tos biomédicos.
Essa perspectiva de buscar uma comunicação interdisciplinar
pode ser considerada equivalente a adotar uma posição etnográfica sobre
saúde considerando os diferentes atores e saberes envolvidos, como ouvi
Jean dizer há pouco tempo, o que inclui os próprios profissionais de
saúde, e não apenas as pessoas do grupo com o qual elegemos trabalhar.
O horizonte interdisciplinar é uma das características que tornam
o trabalho de Jean vigoroso e rigoroso, a meu ver. Aliás, esse é um ponto
importante a ser comentado: elaborar uma linguagem antropológica
apreensível para profissionais que têm domínio de outros campos de
conhecimento não é sinônimo de falta de rigor teórico. Ao contrário,
explicitar a densidade dos conceitos sem se encerrar nas abstrações do
discurso antropológico requer muita profundidade de estudo. E nisso
Jean é admirável.
No período em que cursei o doutorado, tive o privilégio de
inaugurar a nova casa que Jean mantém no terreno em que mora, em
Sambaqui. Foi uma época em que convivemos mais, e pude constatar
sua disciplina no trabalho, sua energia infindável para novos projetos
de investigação, de escrita e de estudos, além de seus dotes culinários.
Breve relato sobre as contribuições de Esther Jean Langdon aos estudos em saúde 201

É muito inspirador ver a intensidade com que ela se dedica ao trabalho


sem se deixar cair em uma rotina enfadonha, digo, de deixar a vida social
ser engolida por tarefas e compromissos acadêmicos. Esse momento de
vizinhança me deu a dimensão de seu acúmulo de trabalho intelectual.
As correções certeiras em meus deslizes teóricos enquanto orientan-
da também.
Outra característica da antropologia que Jean pratica, diretamente
relacionada ao horizonte interdisciplinar, é sua tendência de valorizar
a experiência etnográfica, o recurso da pesquisa de campo de longa
duração, de modo que a formulação teórica tenha um alcance médio,
adequado ao refinamento descritivo de uma boa etnografia. Acredito
que essa característica é parte da sua herança boasiana, como Jean gosta
de dizer. Além de destacar a observação participante na elaboração
teórica (para avançar na compreensão do objeto de estudo mais do
que produzir teorias), Jean sempre utilizou o conceito de cultura para
estimular debates em torno de categorias naturalizadas nas áreas de
saúde, como saúde e doença, entre outras.
Tendo essa postura teórica, Jean considera que a abordagem
antropológica, mesmo que possa ser pensada como um modo de
conhecimento mais holístico do que a abordagem das áreas da saúde,
tem também limitações enquanto saber acadêmico. Vi ela própria,
algumas vezes, diante de estudantes ou outra audiência, afirmar não ter
uma resposta definida para um questionamento feito, demonstrando
assim a validade de assumir essas limitações.
Penso que, na abordagem langdoniana, o horizonte interdiscipli-
nar e a etnografia não subsumida por teorias são aspectos que se fertili-
zam mutuamente no sentido do dialogismo. Por ela tomar como premissa
a natureza indeterminada da realidade, como entendo, se faz necessá-
rio esse trânsito de conhecimentos. Especialmente se consideramos
que processos de doença são um dos eventos mais críticos da experiên-
cia humana – haja vista esta pandemia que estamos enfrentando…
A terceira característica que tenho em conta na abordagem de
Jean é o quanto ela se deixou influenciar pela tradição antropológica
regional à medida que foi buscando categorias conceituais a fim de
orientar o fazer etnográfico para uma perspectiva ampla de saúde. Jean
fez sua pesquisa para o doutorado no começo dos anos 1970, entre
os Siona. Explorou atividades da vida diária, as práticas terapêuticas
e as narrativas desse povo sobre sonhos, transes e guerras xamânicos.
Valendo-se da antropologia simbólica, elucidou como a cultura siona
e as relações sociais envolvendo outros povos e os colonos que viviam
202 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

na região do Putumayo estruturavam sua práxis terapêutica. Sua tese,


publicada como livro há poucos anos (LANGDON, 2014), mostra
nuances constitutivas de sua linhagem interpretativa: a ênfase em
processos de doença como algo dado na ordem social tanto quanto
na experiência subjetiva, ambas dimensões que geram os significados
atribuídos coletivamente a um evento de doença grave.
Quando Jean veio morar em Florianópolis, nos anos 1980, pou-
quíssimos antropólogos trabalhavam com a temática de saúde no Brasil.
Sua formação se deu nos Estados Unidos, mas sua tese teve pouca
influência da antropologia médica norte-americana. Para reforçar essa
diferença, Jean sempre falou de seu trabalho como antropologia da
saúde, em vez de antropologia médica (em que as pesquisas são guiadas,
em geral, pelas preocupações e questões da biomedicina). Eis o nódulo
epistêmico do campo da saúde, sobre o qual comentei antes.
Logo Jean se inseriu nos debates sobre saúde indígena que foram
fundamentais para a formulação da Política Nacional de Atenção à
Saúde dos Povos Indígenas atualmente em vigor no país, e colabora em
iniciativas relacionadas a essa política até hoje quando é requisitada.
Tendo acompanhado seu trabalho desde o final dos anos 1990,
percebo que sua abordagem simbólica foi se deslocando para uma ênfase
na dimensão política, não apenas em razão dos avanços dos debates
teóricos na antropologia, mas especialmente pela atenção às questões
suscitadas na tradição latino-americana quanto aos estudos sobre saúde
entre povos indígenas.
Atribuo essa sensibilidade e abertura para a tradição antropológica
regional, em parte, a seu entusiasmo e sua identificação com o Brasil,
que se expressam em sua afirmação de que nasceu nos Estados Unidos
por acidente. Atribuo também ao seu genuíno interesse pelas pessoas
com quem partilha suas atividades profissionais. Talvez essa qualidade
empática tenha favorecido a retomada das pesquisas na Colômbia, nos
últimos anos, as quais tem revelado a riqueza da profundidade temporal
na pesquisa etnográfica. Nessa retomada de pesquisa, há esse óbvio e há
o inimaginado: diante das transformações históricas na vida dos Siona,
a etnógrafa se tornou um dos redutos da memória cultural desse povo.
A sensibilidade de Jean se mostra, ainda, quando observo seu
empenho em facilitar a vida dos orientandos e das orientandas de várias
maneiras, para que desfrutem do processo de formação. Sua maneira
direta de falar o que pensa, que pode ser lida por alguns como certo
distanciamento, contrasta com o lado acolhedor e bem-humorado que
se apresenta na convivência.
Breve relato sobre as contribuições de Esther Jean Langdon aos estudos em saúde 203

No meu caso, desde que comecei a atuar como antropóloga,


conto com a parceria de Jean para diversas atividades que tenho
desenvolvido no campo profissional. São muitos anos de convívio
e de aprendizado que este pequeno texto não se propôs a alcançar.
O propósito com esse relato sobre a abordagem langdoniana é, na
verdade, não perder a oportunidade de mostrar meu reconhecimento
por Jean, pelas contribuições que tem feito à antropologia da saúde no
Brasil e pelo jeito como sustenta com desenvoltura, seriedade e paixão
seu papel acadêmico.
Cheers, Jean!

Referência
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entre los Siona del bajo Putumayo. Popayán: Editorial Universidad del
Cauca, 2014.
Cultura e atenção diferenciada:
dos documentos oficiais à atuação
de profissionais de saúde na Terra
Indígena Xapecó

Ari Ghiggi Jr.

Introdução
Neste texto analiso o princípio de atenção diferenciada, presente
na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI)
(BRASIL, 2002). Procuro problematizar a noção essencializada de
cultura que transparece em alguns documentos oficiais subsidiários à
política e subjaz às práxis de profissionais de saúde que atuam junto
aos Kaingang da Terra Indígena Xapecó (TIX). Trata-se, portanto, de
uma tentativa de chamar a atenção para algumas limitações da política
diante da complexidade dos contextos interculturais, num diálogo com
trabalhos da professora Esther Jean Langdon e de alguns de seus colegas
que têm abordado essa temática.
Em 2002, foi publicada a PNASPI, que delineou diretrizes quanto
à forma de lidar com as especificidades dos contextos socioculturais,
buscando consoar o discurso em favor da cidadania indígena e do
multiculturalismo, teoricamente tomados como marcos ideológicos
da Constituição de 1988 (BANIWA, 2012; DUPRAT, 2012), com
as ações em saúde promovidas pelo Estado. Ou seja, como política,
elaborou um discurso baseado na promoção do princípio de atenção
diferenciada para práticas médicas e sanitárias de intervenção junto
a essas populações. Além da organização dos serviços, esse princípio
especifica a necessidade de respeito às práticas culturais e aos saberes
tradicionais das comunidades, inserindo-os, sempre que possível, nas
rotinas do trabalho em saúde. Ele indica, portanto, que a atenção básica
oferecida pelas unidades de saúde deve estar articulada com as práticas
terapêuticas indígenas.
Cultura e atenção diferenciada 205

Enquanto instrumento retórico, a política é bastante interessante


e representa um marco importante na chamada reforma sanitária
brasileira, desenvolvida nos anos 1990 (GARNELO; MACEDO;
BRANDÃO, 2003). Entretanto, na prática, o princípio da atenção
diferenciada ainda esbarra em dúvidas, ambiguidades e diversos outros
problemas estruturais que refletem nos modos como o diálogo dos
serviços oficiais de saúde com os indígenas é estabelecido. De fato,
as divergências emergentes expressam uma situação complexa que
tem envolvido pesquisadores de diversas áreas em discussões visando
a problematizar e aprimorar a compreensão dessa interface. Como
exposto por Langdon (2004), tal política lançou desafios para aproximar
o discurso político da sua efetivação nos contextos específicos, como a
tolerância e a articulação dos serviços oficiais com as práticas de atenção
empregadas autonomamente pelos indígenas. Ou seja, trata-se de uma
problemática que, mesmo tendo se passado tantos anos, ainda requer
muitos avanços para alcançar o dito respeito aos processos socioculturais
dos grupos quanto à articulação com as práticas de saúde locais.
A antropologia da saúde e a saúde coletiva vêm contribuindo
com tal debate, fomentando um campo temático interdisciplinar em
emergência (GARNELO; LANGDON, 2005). Em termos gerais, os
trabalhos produzidos, principalmente os de caráter etnográfico, têm
elegido a compreensão dos contextos de atenção primária à saúde como
foco de análise no intuito de caracterizar amplamente as contradições
entre as diferentes perspectivas dadas nos encontros entre os atores
presentes em cada contexto sanitário. Uma característica comum
é a tendência a uma crítica ao Estado, aos serviços oficiais e, mais
especificamente, às atuações dos profissionais de saúde, que revela, em
última instância, que o Estado tem dificuldades em atingir seu objetivo
de promover a atenção à saúde nos contextos indígenas de forma geral
e, em particular, com relação às características propostas pela PNASPI.
É nesse sentido que, como veremos na análise dos documentos
e no âmbito da atenção à saúde na TIX, há certa essencialização da
noção de cultura, o que mina o modo como os profissionais de saúde
atuam em contextos indígenas, implicando julgamentos que pautam
o reconhecimento das práticas locais de saúde e as possibilidades de
articulação destas às rotinas dos serviços oficiais. Não me parece tarefa
da antropologia ensinar como os profissionais de saúde devem atender
seus pacientes, nem elencar as práticas de saúde que devem utilizar. Da
mesma forma, não se trata de ensinar os indígenas como e quais são
as formas corretas de acessar os serviços ou que os modos higiênicos
206 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

ocidentais são uma forma de obterem melhores condições de saúde.


Acredito, sim, que a antropologia pode contribuir para problematização
de alguns temas emergentes da PNASPI, como o princípio da aten-
ção diferenciada.
Neste texto, portanto, além da análise da literatura e de alguns
documentos oficiais ligados à temática, subsidio meu argumento na
minha experiência de pesquisa etnográfica entre os Kaingang da TIX
– iniciada em meados dos anos 2000 e desenvolvida como orientando e
colega da professora Jean Langdon até os dias atuais (GHIGGI JR., 2006,
2010, 2015, 2018; GHIGGI JR.; LANGDON, 2013, 2014).

Os Kaingang da TIX
Antes de entrar no assunto central do artigo, é necessário apre-
sentar brevemente os Kaingang da TIX. Essa etnia indígena faz parte
do tronco linguístico Macro-Jê e juntamente com os Xokleng compõe
o grupo dos Jê-Meridionais. Representam hoje a terceira maior po-
pulação indígena do Brasil, com mais de 37 mil indivíduos (IBGE,
2012). Estão localizados desde o estado de São Paulo até o Rio Grande
do Sul e distribuídos em 32 áreas indígenas, sete destas no oeste de Santa
Catarina. As diversas pressões exercidas desde o século XIX em nome
das diferentes frentes econômicas de exploração, ocupação e colonização
da região resultaram na redução da Terra Indígena Xapecó, de 50 mil
hectares – decretados no início do século XX (D’ANGELIS; FÓKÂE,
1994) – para 16.283 hectares (ISA, [2022]). Sua atual configuração inter-
na está estabelecida em 13 aldeias com uma população total de cerca de
6 mil habitantes (FUNAI apud ISA, [2022]). A aldeia Sede, a mais
populosa, possui cerca de 1,5 mil pessoas e representa o centro da TIX.
É nela que se concentram algumas instituições burocráticas – como o
posto da Fundação Nacional do Índio (Funai), uma escola de ensino
básico completo, o ginásio de esportes em formato de tatu, a casa da
cultura, uma escola de ensino infantil, um campo de futebol e um posto
de saúde relativamente bem equipado. Outras instituições que chamam
a atenção na aldeia Sede são as igrejas, das quais pelo menos dez são
evangélicas e apenas uma é católica – quase todas localizadas na rua
principal, a poucos metros umas das outras.
A TIX está situada nos pequenos municípios de Ipuaçu e Entre
Rios, em Santa Catarina, distante mais ou menos 30 km da cidade de
Xanxerê, 70 km da cidade de Chapecó e cerca de 540 km da capital
Cultura e atenção diferenciada 207

do estado, Florianópolis. A proximidade dos centros urbanos regionais


está associada às dinâmicas cotidianas de circulação dos indígenas pelos
municípios vizinhos e dos não indígenas pelo interior da reserva, devido
às mais diversas finalidades.
Além da presença cotidiana no setor público de saúde das
cidades maiores, essa circulação dos indígenas pela região está
associada essencialmente a estratégias de subsistência diante da
situação socioeconômica precarizada em que vivem. Grande parcela
da população recebe auxílios governamentais, como o Bolsa Família,
outros poucos se alimentam com o que conseguem plantar em
hortas e cultivos de pequena escala, mas, para a maioria das famílias,
os gêneros alimentícios básicos, como a carne de frango, o feijão e
o arroz, ainda precisam ser adquiridos fora da aldeia, através de
recursos particulares (BLOEMER; NACKE, 2009; OLIVEIRA, 2009).
Assim, a procura por empregos é uma das principais motivações para
sua presença nas cidades do entorno. Na maioria das vezes, atuam em
serviços subalternos – como pedreiros, ou então como roçadores na
preparação de terra para as lavouras nos arredores da TIX, no caso dos
homens; e como empregada doméstica ou babá, no caso das mulheres.
Visto que a região em questão é polo nacional da produção de suínos
e aves, tem aumentado o número de indígenas que optam por vender
a força de trabalho em frigoríficos da região, com larga escala de
produção. Os índios também são contratados temporariamente para
trabalhar em lavouras sazonais de maçã ou milho em outras localidades
do estado. Algumas pessoas ainda se aventuram em viagens mais
longas, estabelecendo-se nas periferias de cidades maiores, como
Chapecó, Florianópolis ou Curitiba, em empregos que exigem baixo
ou nenhum nível de escolaridade. Poucos indígenas buscam sustento
administrando pontos comerciais informais no interior da TIX, as
chamadas “bodegas”, onde revendem doces, picolés, refrigerantes ou
gêneros alimentícios mais urgentes, que também são adquiridos nas
cidades vizinhas. O artesanato igualmente é fonte de renda apenas
para uma minoria de famílias da TIX que cotidianamente vendem
balaios, cestos, arcos e flechas nas cidades do entorno.
No contexto regional, os Kaingang lidam rotineiramente com
os preconceitos que marcam as relações com os habitantes do entorno.
É comum que os brancos taxem os indígenas de sujos, bêbados ou
vagabundos. Os índios são ainda chamados de “bugres”, uma categoria
altamente pejorativa que reforça as representações externas acerca de
um suposto processo aculturativo, afinal, “não são índios, são bugres”.
208 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Por parte dos indígenas também existem diversas queixas quanto aos
brancos – estes dizem, por exemplo, que quando estão na TIX “não
comem a comida, não entram nas casas, nem bebem a água”. Para
os índios, a sovinice dos brancos é uma regra, pois, “nunca querem
compartilhar nada e cobram por tudo que fazem”.
Essa breve descrição ilustra parte do processo de exclusão
incorporado pelos Kaingang ao longo da história de contato, aspectos
que, em termos gerais, corroboram a consideração de que os indígenas
sejam uma população epidemiologicamente vulnerável. Em termos
constitucionais e ideais, o Estado deveria atuar no desenvolvimento
de ações para responder a esses problemas sociais por meio do setor
público. É preciso, dessa forma, avançar nas garantias da participação
social dos cidadãos indígenas nas esferas de decisão e do seu direito
à atenção diferenciada, tendo-os como reais protagonistas no campo
político da saúde. Trata-se de problemas amplamente reconhecidos na
temática da saúde indígena e que certamente agravam-se com o atual
cenário de retrocesso no campo geral das políticas públicas de saúde no
Brasil (CASTRO et al., 2019).

Diferença cultural nos documentos oficiais


O propósito geral da PNASPI, expresso em seu texto, é assegurar
aos povos indígenas o acesso à atenção integral à saúde, como proposto
pelas instruções gerais do Sistema Único de Saúde (SUS), “contemplando
a diversidade social, cultural, geográfica, histórica e política para
superação dos fatores que tornaram tal população vulnerável aos
agravos à saúde, reconhecendo a eficácia de sua medicina e o direito
desses povos à sua cultura” (BRASIL, 2002, p. 13). Assim, no seio da
PNASPI está manifestado o que se convencionou chamar de atenção
diferenciada, pois, em diversos trechos, a política passou a afirmar a
necessidade de um modelo complementar de atenção à saúde das
populações-alvo das ações que orienta:

A implementação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos


Povos Indígenas requer a adoção de um modelo complementar
e diferenciado de organização dos serviços – voltados para a
proteção, promoção e recuperação da saúde –, que garanta aos
índios o exercício de sua cidadania nesse campo. [...] Para que
esses princípios possam ser efetivados, é necessário que a atenção
à saúde se dê de forma diferenciada, levando-se em consideração
Cultura e atenção diferenciada 209

as especificidades culturais, epidemiológicas e operacionais


desses povos. (BRASIL, 2002, p. 6).

O princípio que permeia todas as diretrizes da Política


Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas é o respeito
às concepções, valores e práticas relativos ao processo saúde-
doença próprios a cada sociedade indígena e a seus diversos
especialistas. A articulação com esses saberes e práticas deve ser
estimulada para a obtenção da melhoria do estado de saúde dos
povos indígenas. (BRASIL, 2002, p. 18).

De forma mais ampla, podemos notar que o princípio de


atenção diferenciada emerge das discussões que têm regido o modo
como os Estados democráticos modernos se comportam com relação
às populações autóctones ao redor do mundo, segundo o marco dos
direitos na sociedade civil, bases que se desenvolveram desde meados
do século XX e hoje orientam, ou deveriam orientar, as políticas sociais.
Em geral, nesses contextos, as populações autóctones passaram
paulatinamente a ser tratadas – ao menos ideologicamente – como
sujeitos dignos de respeito quanto à sua autonomia, a partir de garantias
jurídicas voltadas para criar condições de manutenção das especificidades
de seus modos de vida ditos tradicionais. A Convenção no 169, da
Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2011), a Declaração
Universal sobre a Diversidade Cultural (DUDC) (UNESCO, 2002) ou
a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas
(ONU, 2008) podem ser tomadas como marcos contemporâneos da
política internacional que adentram essa discussão.
Tais documentos denotam o rumo a uma sociedade livre e
participativa e são considerados avanços na questão dos direitos civis das
minorias. Constituem ferramentas que ressaltam o direito universal da
expressão da diferença, principalmente pelos povos autóctones, em que
o pluralismo cultural é uma resposta política característica dos contextos
democráticos – dada a premissa da ampliação das possibilidades de
escolha pelas minorias (UNESCO, 2002). Assim, questões como a
autodeterminação, o direito ao consentimento livre, prévio e informado
e o direito a manter suas culturas são reiteradas praticamente em todos
os documentos. O multiculturalismo, como base desses debates, traz à
tona o tema da diferença ao lançar a problemática do lugar e dos direitos
das minorias em relação às maiorias e da discussão do problema da
identidade e seu reconhecimento (SEMPRINI, 1999).
210 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

A agenda constitucional brasileira (BRASIL, 1988, s. p.) consoaria


com tais diretrizes. Esse texto reza, no artigo 215, por exemplo, que “o
Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso
às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a
difusão das manifestações culturais”. No parágrafo 1o, reforça que “o
Estado protegerá as manifestações às culturas populares, indígenas
e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional”.
Assim, em linhas gerais, a PNASPI emerge desse contexto
jurídico, pois estabelece, por um lado, a participação dos indígenas na
gestão e na execução de ações relativas aos serviços de saúde oficiais e,
por outro, o respeito às suas práticas culturais e tradicionais em relação
à atenção à saúde. A Convenção no 169 da OIT sobre povos indígenas e
tribais trata deste último aspecto de forma mais direta:

Na maior medida possível, os serviços de saúde deverão ser


baseados na comunidade. Esses serviços deverão ser planejados e
administrados em cooperação com os povos interessados e levar-
se-á em consideração suas condições econômicas, geográficas,
sociais e culturais, bem como seus métodos tradicionais de
prevenção, práticas curativas e medicamentos. (OIT, 2011, p. 33).

Enfim, todas essas diretrizes são valiosas por indicar que os


indígenas conquistaram, finalmente, direitos relacionados à diferença.
Contudo, uma análise mais detalhada demonstra muitas ambiguidades
em torno de termos centrais dos documentos, gerando dúvidas
cruciais que podem interferir nos modos como as políticas públicas
são interpretadas e implementadas nos contextos particulares. Nesse
sentido, embora a noção de diferença subjaza ao princípio da atenção
diferenciada, em nenhum dos documentos a diferença está explícita
de forma clara e incisiva. Situação semelhante acontece com a noção de
cultura, repetidamente acionada como qualificativo da diversidade ou
da diferença.
De fato, apenas a DUDC esboça no seu preâmbulo que cultura
deve ser entendida como “o conjunto dos traços distintivos espirituais
e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou
um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de
vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e
as crenças” (UNESCO, 2002, s. p.). Somado a esse entendimento, chama
a atenção o tratamento da cultura como patrimônio que, apesar de a
Cultura e atenção diferenciada 211

DUDC fazer ressalvas da compreensão da cultura como relacionada à


ideia estrita de mercadoria, torna enfática no artigo 9o a preocupação
com a formulação de políticas culturais que fomentem o que chama de
“produção e difusão de bens e serviços culturais”.
A Constituição brasileira reitera uma noção semelhante ao atentar
para a formulação de um Plano Nacional de Cultura no parágrafo 3o do
artigo 215:

A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração


plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à
integração das ações do poder público que conduzem à: I – defesa
e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II – produção,
promoção e difusão de bens culturais; III – formação de pessoal
qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;
IV – democratização do acesso aos bens de cultura; V – valorização
da diversidade étnica e regional. (BRASIL, 1988, s. p.).

Na sequência, o artigo 216 torna mais claro que:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza


material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais
se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar,
fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos
urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL,
1988, s. p.).

Complementarmente, no artigo 231 está escrito que “são


reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens” (BRASIL, 1988, s. p.).
Em suma, nos documentos, a noção de cultura é tratada sob dois
aspectos agregados: um conjunto de sinais e um bem a ser portado pelos
grupos sociais. A cultura como um conjunto de sinais se aproxima da
definição apresentada por Edward Tylor no final do século XIX. Para ele,
cultura, “em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo
que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer
212 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de


membro da sociedade” (TYLOR, 2005, p. 31). Kuper nota que cultura,
nessa perspectiva, “é um todo; ela é assimilada e abarca praticamente
tudo o que se pode pensar, com exceção da biologia” (KUPER, 2002,
p. 83). Como notado por Kuper, essa definição foi amplamente criticada
no decorrer do século XX por inúmeros antropólogos devido ao seu
baixo valor heurístico e operacional – além de remeter ao preconceito.
Trata-se de uma essencialização da cultura que também pode implicar
a noção ordinária e de senso comum de que cada povo indígena possui
uma cultura única e unívoca, que o distinguiria claramente dos outros
povos indígenas e da própria sociedade envolvente. Cultura remeteria,
assim, a um objeto fixo com fronteiras congeladas no tempo e no
espaço, em que os sinais utilizados para denotar a identidade de um
grupo não poderiam ser partilhados com outros. Além do mais, a
associação da noção de patrimônio parece denotar a emergência de um
contexto político imperativo que transforma o direito à expressão da
diversidade cultural em um fardo a ser carregado pelos grupos sociais
– especialmente as minorias étnicas. Ou seja, mesmo com as reiteradas
alegações de que se superou a orientação tutelar pré-Constituição de
1988, a tão reivindicada autonomia dos povos indígenas ainda esbarra
na necessidade de expressar sinais distintivos sob a pena de não
reconhecimento dos seus direitos nas políticas da diferença.

Profissionais de saúde da TIX e suas noções de


atenção diferenciada1
A essencialização da noção de cultura se transporta para o modo
como os profissionais de saúde atuam em contextos indígenas. Podemos
afirmar que poucos deles parecem estar a par dos documentos oficiais
que trabalham a noção de cultura, diversidade ou diferença como
norteadora das suas práticas. No caso específico da TIX, onde todos os
profissionais graduados da Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena

1
Durante o ano de 2009, realizei pesquisa de campo na TIX em parceria com
minha colega Sandra Carolina Portela Garcia, também orientanda de Esther Jean
Langdon, que elaborou dissertação sobre a temática da atenção diferenciada na
localidade (PORTELA GARCIA, 2010). Saliento que boa parte da sua experiência
de pesquisa de campo foi compartilhada comigo e que as referências ao seu trabalho
são um reconhecimento da sua sistematização de dados etnográficos efetuada de
forma brilhante.
Cultura e atenção diferenciada 213

(EMSI)2 são não indígenas, as reflexões passam pelo questionamento


das necessidades terapêuticas dos indígenas. Tais necessidades, ao serem
colocadas sob o crivo da noção de atenção diferenciada, reproduzem
representações e imagens sobre a cultura e o ser índio, destacando as
posições de poder que ocupam em relação à oferta de práticas oficiais
de atenção primária à saúde.
O trabalho de Portela Garcia (2010) demonstra, para a TIX,
que essa noção remete a uma heterogeneidade de pontos de vista que
realça ambiguidades e polissemias a respeito do termo. Quer dizer,
entre os profissionais da EMSI, alguns reconhecem o princípio de
atenção diferenciada nas práticas de saúde que empregam; entretanto,
não têm um acordo tácito quanto aos aspectos que as qualificam como
diferenciadas. Como notou Portela Garcia, essas percepções baseadas
em suas atividades cotidianas remetiam a dois níveis: um instrumental
e um relacional.
O nível instrumental do reconhecimento da atenção diferenciada
teria a ver com a falta de infraestrutura e as dificuldades das equipes para
realizarem determinados processos como os profissionais aprendem nas
faculdades. Isto é, um dos problemas da atenção diferenciada aparecia
quando os profissionais não conseguiam armazenar os medicamentos,
não conseguiam combustível para os deslocamentos das viaturas da
Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), ou não contavam
com certos tipos de instrumento. Isso os levou a elaborar uma série
de estratégias para conseguir superar tais dificuldades. Nesse sentido,
vários profissionais da EMSI reclamavam da ausência de orientação nos
programas de graduação que frequentaram, alertando para o trabalho
com populações com tais adversidades. Entretanto, contraditoriamente
em relação a esse mesmo nível, o discurso do dentista dizia que a atenção
era diferenciada pela abundância de recursos ofertados aos indígenas na
área odontológica, particularmente referindo-se aos materiais em geral
(como pastas de dente, escovas, fios dentais, material para restauração

2
A Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena atua nos postos de saúde da TIX. Na
aldeia Sede, a equipe é composta por um dentista, um médico, duas enfermeiras,
uma nutricionista, um auxiliar de dentista, dois técnicos em enfermagem, dois
auxiliares de enfermagem e dois Agentes Indígenas de Saúde (AIS). Algumas aldeias
menores possuem postos de saúde menores, que contam com a atuação permanente
apenas de técnicos de enfermagem e AIS. Essas esporadicamente recebem visitas das
enfermeiras ou da nutricionista quando do desenvolvimento de alguma atividade
mais específica, como vacinação, acompanhamento pré-natal, atividade educativa
em saúde etc.
214 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

e obturação) e às próteses dentárias distribuídas de forma gratuita


– diferentemente de sua experiência em outras localidades pobres.
O nível relacional do reconhecimento da atenção diferenciada,
por sua vez, teria a ver com as dificuldades que surgem nas práticas
diárias dos profissionais e são relacionadas a uma ideia de “diferença
cultural”, a qual atrapalharia a execução dos procedimentos terapêuticos.
Assim, a atenção era diferenciada na localidade porque os indígenas
possuíam traços de comportamento que necessitavam ser contornados
para efetivar a correta atuação profissional. Por exemplo, relatavam que
era constante a necessidade de buscar os índios mais velhos na porta,
convidá-los a adentrar no posto de saúde e acompanhá-los até o interior
do prédio. Segundo os profissionais, os mais velhos teriam vergonha de
falar o que estavam sentindo e esperavam que os questionassem sobre
suas necessidades. Havia ainda o fato de terem que explicar diversas
vezes os procedimentos médicos e tratamentos aos indígenas porque o
ritmo de entendimento deles era diferente. Ou, numa situação bastante
criticada pela EMSI, porque os indígenas não seguiam as orientações
de tratamento corretamente, abandonando medicamentos em favor
da utilização de práticas desnecessárias ou contraditórias aos métodos
biomédicos de atenção à saúde.
Por outro lado, o dentista, mais uma vez na contramão da
equipe, relatou que a atenção era diferenciada porque o público era
positivamente diferenciado no comportamento, ou seja, julgava que
atender as crianças indígenas era muito melhor que atender as crianças
nos contextos urbanos porque eram “menos manhosas” e acatavam
mais facilmente suas solicitações.
Portela Garcia (2010) também constatou que entre a maioria
dos profissionais persiste o não reconhecimento de uma atenção
diferenciada na localidade. No nível instrumental, a justificativa
para essa afirmação se pautava na associação do subsistema de saúde
indígena como integrante do sistema amplo do SUS, ou seja, porque faz
parte de uma estrutura organizacional e administrativa preestabelecida
que, segundo tal perspectiva, não é suficientemente flexível para atender
à população de acordo com as suas particularidades.
Já no nível relacional, talvez mais importante aqui, reiteravam a
ideia de que os Kaingang atualmente não vivem como indígenas. Para
eles, a população local era uma comunidade pobre que teria perdido
seus traços culturais originais e ancestrais. Isso poderia ser apenas mais
um preconceito direcionado à população Kaingang, mas, no contexto
em questão, servia de argumento corrente para não problematizar o
Cultura e atenção diferenciada 215

modo como a população local era atendida pelos serviços oficiais e


para deslegitimar qualquer mudança nos procedimentos terapêuticos.
Em outras palavras, a maioria dos profissionais, principalmente os
não indígenas, deixava claro que não haveria necessidade de uma
atenção diferenciada.
Nessa mesma direção, como notou Portela Garcia (2010), existia
outro argumento que ilustrava a relação dos indígenas com os contextos
terapêuticos oficiais externos à TIX. Segundo os profissionais Kaingang
da EMSI, o fato de os indígenas terem que esperar na mesma fila que
todos os outros pacientes nas instituições públicas de saúde da região
atestava a inexistência da atenção diferenciada nesses locais. Essa
ideia, de certa forma, corrobora o que percebi entre os profissionais
que atendiam os indígenas nas cidades vizinhas à TIX, a exemplo do
Hospital Regional São Paulo, de Xanxerê, onde o assunto da atenção
diferenciada sequer era pauta. Assim, de forma mais acentuada do que se
notava com os profissionais do posto de saúde da TIX, nesses contextos
a preocupação com a burocratização, a rotinização e a padronização dos
procedimentos não deixava opções senão a introdução dos indígenas
nos modos de atendimento oferecidos para toda a população segundo
as orientações genéricas do SUS – muito embora na PNASPI esteja
expressa, com relação à atenção de média e à de alta complexidade, a

oferta de serviços diferenciados com influência sobre o processo


de recuperação e cura dos pacientes indígenas (como os
relativos a restrições/prescrições alimentares, acompanhamento
por parentes e/ou intérprete, visita de terapeutas tradicionais,
instalação de redes, entre outros) quando considerados
necessários pelos próprios usuários e negociados com o prestador
de serviço. (BRASIL, 2002, p. 15).

Podemos aproximar a atuação dos profissionais de saúde da TIX


àquilo de que trata Alcida Ramos (1995) sobre a formulação de uma
imagem do índio pelos agentes do indigenismo brasileiro – fruto do
processo de profissionalização e burocratização pós-redemocratização
em 1988. A superação do regime militar foi um período marcante
na emergência de organizações não governamentais (ONGs) e de
associações civis de defesa dos direitos dos índios, instituições que
passaram a guiar suas atuações a partir do indígena como um simulacro.
Ou seja, para cumprir o destino ocidental da burocratização e, ao mesmo
tempo, lidar com questões indígenas, a saída utilizada foi inventar um
índio “burocratizável”. Os indígenas “de carne e osso” passaram a ser
216 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

filtrados, num processo de domesticação, para retirar sua alteridade


criadora de desordem potencial. A ética profissional indigenista passou
a calcar-se numa imagem idealizada pelo distanciamento asséptico
e formal. A burocratização e a profissionalização das relações que
envolviam a defesa dessas populações representaram a emergência de
uma figura hiper-real, um modelo de índio como “índio-modelo”. De
fato, a autora nota que isso foi uma consequência do fenômeno mais
amplo de “defesa dos direitos humanos”, quando o “humano genérico”
substituiu o indivíduo complexo, multifacetado e incontrolável pela
ordem burocrática. Ramos (2012) avança e compreende o indigenismo
do século XXI como uma ideologia sobre diferenças culturais em
contextos étnicos e nacionais. Trata-se de uma construção ideológica
sobre alteridade e mesmidade, relacionada a um variado território onde
imaginários sobre as múltiplas faces do índio emergem. Sustentando
essas imagens está a anti-imagem do branco, do dito “civilizado”.
Segundo Ramos, esse contexto de ambivalência do ser índio propicia
um meio fértil para a propagação de tantos indígenas quantos forem os
agentes interessados em construir esse edifício multifacetado.
A atuação profissional no campo da atenção primária à saúde
em contextos indígenas, e mais especificamente na TIX, não supera os
problemas criados pela barreira interétnica e pela relação assimétrica
dos índios com os brancos. Ou seja, quando os profissionais alegam que
os indígenas perderam seus traços culturais, a imagem hiper-real do
indígena passa a figurar como um meio justificável para deslegitimar
o acesso dos índios reais à atenção diferenciada. Os traços culturais
originais figuram como capital simbólico na relação com o Estado e,
mais especificamente, com os profissionais de saúde – o que retoma, de
certa forma, a ideia de cultura como patrimônio.
Capital simbólico (BOURDIEU, 2003) diz respeito a todo recurso
ou poder que se manifesta em uma atividade social. Essencialmente,
trata das características que permitem identificar a posição dos agentes
no espaço social, denotando distinções entre si. São operações de
classificação em que as diferenças se retraduzem em marcas distintivas
associadas a valores de crédito, descrédito, reputação, prestígio ou
estigmas sociais. Desse ponto de vista, os grupos sociais existem nas
classificações das representações contrastantes que são produzidas
pelos agentes com base num conhecimento prático distributivo dos
estilos de vida. Os símbolos de distinção estão associados a um papel
expressivo, que lhes confere pertinência e legitimidade social em função
de um sistema de classificação. É nesse sentido que Bourdieu trata do
Cultura e atenção diferenciada 217

habitus, ou seja, a representação que os agentes fazem de sua posição


no espaço social é o produto de um sistema incorporado de esquemas
de percepção e de apreciação. O capital simbólico só existe na relação
entre os grupos dotados de esquemas de percepção e de apreciação que
os predispõem a reconhecer essas propriedades, ou seja, a instituí-los
como estilos expressivos.
Portanto, a acusação de perda dos traços culturais torna a noção
de diferença um construto marcado por relações de poder, muitas
vezes contextuais, que fatalmente colocam acento sobre agentes que
se alinham a serviços e discursos oficiais. Nos próprios termos de
Bourdieu, podemos associar essa atitude a um habitus emergente do
distanciamento dos brancos quanto aos índios, como fruto das relações
históricas de desigualdade que geraram preconceitos e julgamentos
externos, e ao construto originado das ideologias e cosmologias que
envolvem a compreensão das doenças por meio do modo biomédico
– uma implicação séria nas atitudes terapêuticas primárias embasadas
na ética profissional em saúde.

Integração e articulação
Como dito anteriormente, o conceito de atenção diferenciada
não trata apenas da organização diferenciada dos serviços médicos, mas
também do oferecimento de serviços oficiais que estabeleçam relações
com as práticas de atenção à saúde utilizadas pelas comunidades.
Contudo, as diretrizes que orientam e qualificam tais relações são
tratadas de forma ambígua. A PNASPI fala em “articulação dos
sistemas tradicionais de saúde” (BRASIL, 2002, p. 13). Já a Portaria
no 70, que aprova as diretrizes da gestão da Política Nacional de Atenção
à Saúde Indígena, fala em “integrar as ações da medicina tradicional”
(BRASIL, 2004, p. 2). Esse jogo de palavras pode parecer sutil, mas tem
implicações sérias no modo como os serviços oficiais encaram as formas
de atenção à saúde das populações indígenas. Integrar e articular requer
estratégias políticas e culturais diferentes (LANGDON; DIEHL, 2007;
LANGDON, 2013). Alguns casos nos servem de base para a discussão
sobre propostas e estratégias de aproximação das medicinas tradicionais
aos programas de saúde, um processo reconhecidamente marcado por
conflitos ideológicos (FERREIRA, 2013).
Posso afirmar com segurança que a grande maioria das práticas
terapêuticas estabelecidas pela EMSI na TIX não é voltada a estabelecer
218 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

nenhum tipo de conexão com as práticas indígenas. Pude notar isso


claramente durante a minha pesquisa de mestrado, quando acompanhei
a tentativa de efetivação de um programa de enfrentamento aos
problemas relacionados ao uso de álcool (GHIGGI JR.; LANGDON,
2014). Na ocasião da pesquisa, percebi que os indígenas lançavam
olhares específicos sobre esses problemas e desenvolviam estratégias
autônomas para controlar o abuso de álcool na localidade (GHIGGI
JR., 2010; GHIGGI JR.; LANGDON, 2013). Entretanto, a EMSI, em
conjunto com a Funai e uma ONG do Paraná, procurou impor uma
metodologia externamente concebida segundo moldes universais
de entendimento e de ação sobre a problemática. Essas instituições
até buscaram articulação com alguns agentes indígenas importantes
da TIX, mas, no momento da efetivação da intervenção, não obteve
nenhum sucesso em agregar participantes pela falta de abertura e de
conhecimento do contexto sociocultural.
Em outras ocasiões, entretanto, pude perceber que a EMSI
expressava abertura e vontade de retomada e de incentivo de algumas
práticas ditas tradicionais de saúde dos Kaingang; contudo, os
argumentos empregados e as formas como isso acontecia estavam
embebidos na ética do distanciamento epistemológico reproduzido
pelas atividades profissionais. Um desses casos que acompanhei dizia
respeito à utilização de plantas medicinais, que passou a ser considerada
um traço tradicional indígena que poderia ser aproveitado como forma
alternativa de tratamento eficaz no combate a algumas moléstias.
Para entender como a EMSI agiu, primeiramente é preciso levar
em conta a atuação conjunta da Pastoral da Saúde,3 que em meados
dos anos 2000 incentivou alguns técnicos em enfermagem indígenas a
participar de cursos sobre plantas medicinais ministrados pelas Irmãs
Franciscanas. Também foram incentivados a frequentar um curso mais

3
Segundo Diehl (2001, p. 90), a Pastoral da Saúde, organismo de ação social também
ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), iniciou suas atividades
na TIX por volta de 1993, em reuniões nas comunidades indígenas, mostrando a
importância da cultura, das ervas, da alimentação, com uma proposta de “voltar aos
antigos e valorizar o que tem” no aproveitamento dos recursos locais. A pastoral
incentivava o feitio de hortas comunitárias, a proteção de fontes de água e, em
parceria com a EMSI, o acompanhamento de gestantes no pré-natal, nas atividades
de pesagem de crianças e de vacinação nas aldeias. Essa entidade também era
conhecida por promover a produção e a comercialização de remédios fitoterápicos e
da multimistura – um composto nutricional utilizado no combate à desnutrição em
populações carentes.
Cultura e atenção diferenciada 219

completo em um laboratório de processamento de plantas medicinais em


Medianeira, no Paraná, chamado Yanten. Lá eles aprenderam sobre os
princípios ativos das plantas, sua nomenclatura científica e as finalidades
de uma diversidade de vegetais. Aprenderam também a processar e
extrair essências das plantas, como fazia o pessoal da Pastoral da Saúde
para atuar junto às populações carentes dos municípios vizinhos.
Portanto, formalizaram e instrumentalizaram uma forma de lidar com
as plantas medicinais. Sabiam quais plantas eram remédio e quais eram
veneno, as doses a serem usadas e o modo correto de produzi-las – em
forma de chá, abafamento/infusão ou cozimento/decocção. Por um
bom tempo, o posto de saúde manteve uma horta com ervas medicinais
utilizadas na produção de remédios fitoterápicos a serem distribuídos
para a população local.
Ao acompanhar a atuação da EMSI, percebi que o argumento de
incentivo e respeito às práticas ditas tradicionais kaingang esbarrava em
diversos problemas. Um dos pontos básicos, como havia notado Portela
Garcia (2010) em sua pesquisa sobre diabetes e hipertensão, dizia
respeito à própria nomenclatura usada pelos profissionais, diferente
daquela usada pelos indígenas. Enquanto os primeiros chamavam as
plantas e as ervas de “fitoterápicos”, os segundos preferiam chamar de
“remédios do mato”. Outro empecilho era o bloqueio desse incentivo
às práticas tradicionais com plantas quando os profissionais da saúde
avaliavam que algumas dessas práticas vinham sendo feitas de forma
equivocada pelos pacientes. Dessa forma, argumentavam que os índios,
no dia a dia, usavam plantas inadequadas, que até poderiam ser nocivas
à sua saúde, além de prepará-las de maneira errada. Nesse sentido, os
profissionais sentiam-se na obrigação de orientá-los a abandonar tais
práticas ou substituí-las pelo emprego correto das plantas, conforme a
cartilha do laboratório Yanten (CPSLY, 2004).
Outra situação que estava na mira e empolgava a EMSI era a
retomada da ação das parteiras, que há algum tempo já não estavam
mais ativas pelo fato de os partos das mulheres Kaingang serem
majoritariamente realizados no hospital em Xanxerê. Essa retomada
estava em discussão nos últimos anos, mas ainda não se sabia muito
bem como se daria. Entretanto, o que me chamou a atenção foi o espanto
de alguns membros da EMSI quando relatei algumas práticas relativas
ao parto, que eu conhecia pela literatura sobre os Kaingang. Falei que
muitas dessas parteiras também eram “remedeeiras”, curandeiras ou
lideranças locais. Além disso, muitas de suas ações estavam voltadas
para o grupo familiar ou os vizinhos. Expliquei que, além de diversos
220 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

cuidados com relação à mulher grávida, especificamente, as parteiras


orientavam o marido a participar ativamente do processo de parto,
por exemplo, cortando uma quantidade razoável de lenha na parte
exterior da casa para que a criança fosse parida mais rapidamente. Os
profissionais presentes na conversa acharam interessante o que relatei,
mas falaram que isso tudo eram crenças dos Kaingang. Indicaram que
não havia nenhum problema que o marido cortasse lenha ou fizesse
qualquer exercício físico, desde que a mulher fosse bem assistida
individualmente pela parteira.
Assim, retomando o que foi dito acima, em ambos os casos – dos
fitoterápicos e das parteiras – a EMSI encaminhava suas ações para uma
integração das práticas tradicionais. Portanto, integrar está orientado
à identificação de práticas tradicionais e à sua instrumentalização,
ou seja, retirá-las do entorno social e cultural para incorporá-las nos
programas de saúde. É uma forma de limitar os sistemas médicos
indígenas e tradicionais, uniformizando-os e excluindo os caracteres
plurais. Integrar retoma o aspecto de hegemonia e dominação por parte
da biomedicina para decidir quais práticas são legítimas e adequadas,
eliminando outras inadequadas. Nesse sentido, a medicina oficial se
beneficia de status e poder, uma ciência autorizada a julgar a validade de
outros conhecimentos e práticas de saúde. Trata-se de um processo
de medicalização da medicina indígena, que seleciona, a partir da ótica
do não índio, o que é legitimamente tradicional. Esse processo incorre no
perigo de elaborar uma medicina tradicional homogênea e hegemônica
a partir de uma visão externa do que é ser índio (LANGDON, 2013)
– da mesma forma que o indigenismo e os profissionais de saúde fizeram
construindo o índio hiper-real (RAMOS, 1995).
Para Langdon (2013), integrar remete à procura de práticas
terapêuticas estritas que a ciência biomédica pode validar e identificar
como eficazes para a saúde. A medicina científica adota o paradigma do
modelo biológico do corpo como base dos processos de saúde e doença,
em que a causa das doenças está material e individualmente exposta.
Esses processos são universais, ou seja, se manifestam igualmente em
diferentes contextos socioculturais, o que leva ao argumento do poder
de diagnóstico das doenças e das suas causas em qualquer grupo,
independentemente das características culturais, sociais ou econômicas.
A validação das práticas passa pela avaliação da sua eficácia instrumen-
tal, ou seja, deve ser empírica e comprovada nos efeitos produzidos pela
ação, principalmente na dimensão biológica.
Cultura e atenção diferenciada 221

Outro ponto a ser levado em conta é que para integrar as práticas


da medicina tradicional o sistema oficial precisa formalizar papéis.
Ou seja, para ele, a atuação dos profissionais é bem definida segundo
a formação, as competências e as responsabilidades. A organização
burocrática dos profissionais remete a hierarquia, a categorias mutuamente
exclusivas e a domínios de atuação e de competências claramente
definidos. As fronteiras entre essas categorias são bem delimitadas tanto
entre os profissionais como entre o profissional e o leigo.
Por essa perspectiva, é preciso uniformizar a pluralidade, essen-
cializando a cultura, julgando e reduzindo as práticas a serem ins-
trumentalizadas. Assim, se partirmos do processo de autoatenção4
como mecanismo de empoderamento dos sujeitos e dos grupos
domésticos, devemos considerar que existe a articulação de uma série
de conhecimentos e práticas que estão relacionados às diversas tradições
médicas. Ou seja, na prática os indígenas lidam com um contexto
heterogêneo sem se preocupar com as descontinuidades entre si. Além
disso, tomam como importante a pluralidade de recursos para tratar da
sua saúde.
Nesse sentido, tratar medicinas tradicionais como uma categoria
reducionista não é interessante, principalmente se entendermos que

4
Menéndez (2009, p. 48) define autoatenção como “as representações e práticas que
a população utiliza tanto individual quanto socialmente para diagnosticar, explicar,
atender, controlar, aliviar, suportar, curar, solucionar ou prevenir os processos que
afetam sua saúde em termos reais ou imaginários, sem a intervenção central, direta
e intencional de curadores profissionais, embora eles possam ser os referenciais
dessa atividade” (p. 48). É a partir do que acontece na autoatenção, na evolução do
padecimento, que o sujeito e seu microgrupo decidem consultar ou não curadores
profissionais. Os próprios membros do grupo doméstico agem autonomamente
em torno do problema, diagnosticando e avaliando a doença, gerenciando seus
desdobramentos, seus recursos econômicos e culturais, sua infraestrutura de serviços
etc. A autoatenção é um processo estrutural porque implica a ação mais racional, em
termos culturais, de estratégia de sobrevivência e inclusive de custo-benefício – não
só econômico, mas de tempo – por parte do grupo. É nesse nível que as atividades
de sujeitos e grupos domésticos geram a maioria das articulações entre as diversas
formas e os saberes de atenção à saúde, superando supostas incompatibilidades em
função da busca de uma solução pragmática. A autoatenção é sempre parte de um
processo amplo que inclui não só os atos dos sujeitos e microgrupos, mas também
leva em conta os referenciais terapêuticos, os diferentes curadores e recursos que
intervêm no processo de saúde/doença/atenção como atores relevantes. Autoatenção
pode ser compreendida como uma esfera de empoderamento através da qual
sujeitos e grupos domésticos destacam sua capacidade de ação, de criatividade para
encontrar soluções. É um mecanismo de potência para a afirmação de micropoderes
e a validade de saberes.
222 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

os Kaingang agem sobre um contexto intermédico.5 Neste, a variedade


de recursos utilizados pelos Kaingang segue num contínuo que vai
da informalidade à formalidade – ou seja, em alguns casos, não
há burocratização de papéis ou de competências; em outros, há uma
formalização não burocrática; e, em outros ainda, há total forma-
lização. Da mesma forma, a gama de diferentes especialistas, terapeutas
ou curadores nem sempre está definida por critérios de formação,
competências e responsabilidades, valendo-se muito mais do reco-
nhecimento da comunidade para ser legítima.
Na TIX, essa gama de diferentes especialistas, curadores ou
terapeutas reconhecidos pelos indígenas como referenciais atua sobre
práticas e conhecimentos antagônicos, mistos ou híbridos, tendo em vista
a multiplicidade de matrizes e recursos médicos que incorporam durante
suas trajetórias de vida. Em outras situações, é extremamente complexo
julgar o que é um especialista ou enquadrá-lo em alguma categoria
específica. Portanto, como alerta Langdon (2013), julgar quem são os
especialistas tradicionais pode levar a uma limitação em reconhecer que
algum especialista possui eficácia instrumental e resultar na criação de
novos papéis se não houver conhecimento sociocultural do grupo.
No contexto em questão, também vimos que a fronteira do
especialista com a do não especialista nem sempre é clara, e boa parte
do conhecimento não é de domínio de uma só categoria. Como se trata
de um contexto estratificado, especialistas podem ser reconhecidos por
determinadas parcelas da população, e não por outras. Além do mais,
saberes e práticas podem não estar limitados aos especialistas, mas sim
distribuídos entre outros membros do grupo, que os utilizam de for-
ma autônoma.
Também podemos dizer que nem todos os recursos empregados
pelos Kaingang são subsidiados por relações contratuais que subjazem

5
O conceito de intermedicalidade (GREENE, 1998) permite entender a TIX como
um contexto de pluralismo médico fruto de negociações entre agentes no desenrolar
de projetos imersos em regimes de poder. Dessa perspectiva, os sistemas médicos
locais são híbridos, de caráter dinâmico e forma emergente, e agem sintetizando e
incorporando elementos, práticas e cosmologias diversas. Follér (2004) denomina
como “zonas de contato” os espaços onde se constituem processos de diálogo
entre os vários modos de conhecimento sobre saúde e enfermidade presentes em
determinado contexto sociocultural. Dessa forma, a intermedicalidade pode ser
tomada como uma zona fronteiriça dada na coexistência de diferentes tradições
médicas, entre as quais ocorrem confrontos, oposições, conflitos, reapropriações,
ressignificações e fusões de elementos e técnicas a partir da agência.
Cultura e atenção diferenciada 223

às relações médico-paciente, do mesmo modo que as práticas de atenção


podem remeter a aspectos amplos e múltiplos, como rituais, ritos de
passagem, reciprocidade, sociabilidade, fortalecimento de laços sociais
ou de alianças políticas, ou seja, são processos sociais e cosmológicos
que não estão descolados de outros aspectos da vida social do grupo no
próprio contexto intermédico.
Da mesma forma, segundo os diversos recursos identificados, não
existe uma percepção unívoca do corpo, nem a limitação da percepção
do corpo a aspectos biológicos. Na pluralidade de concepções, há
entendimentos que se aproximam à concepção biomédica, como é o caso
da pastoral da saúde. Entretanto, em outros casos, as perspectivas sobre o
corpo podem ser múltiplas e híbridas. Muitas vezes, percebemos que os
aspectos coletivos precisam ser considerados na apreciação das doenças
que venham a se manifestar no corpo ou fora dele. Algumas práticas
de prevenção e tratamento, portanto, devem examinar o contexto mais
amplo para diagnosticar e tratar as doenças, levando em conta eventos
fora do corpo (biológico) para entender seu início, suas causas ou seus
tratamentos. Os tratamentos e as causas de doenças podem estar no
corpo social, nas relações conflitantes ou em poderes invisíveis.
As doenças, portanto, remetem aos conhecimentos que as
populações têm do universo e do seu funcionamento, à cosmologia.
Mas, num contexto intermédico, os casos de doenças podem aludir
a questionamentos que vão desde o registro dos efeitos até temas
existenciais mais amplos – tendo mais a ver com religião ou filosofia
do que com o tratamento biomédico. Além do mais, o processo de
experimentação da enfermidade pode fazer menção à reelaboração
constante das interpretações acerca dos estados por parte dos sujeitos
enfermos, reconhecendo diversas causas, adotando vários diagnósticos
e reavaliando o processo de saúde e doença no seu desenrolar. Nesse
sentido, a eficácia dos tratamentos é simbólica, ou seja, pode não
ser facilmente identificada pela observação de efeitos biológicos e
instrumentais porque é muito mais arbitrária e negociável entre uma
gama maior de atores envolvidos. Em suma, as práticas locais associadas
aos recursos são mais abrangentes que as da biomedicina, pois não se
pode isolar práticas de saúde das demais práticas socioculturais e do
contexto intermédico.
Para finalizar, lembremos também que o termo “tradicional”,
na intersecção entre os campos da saúde e da religiosidade entre os
Kaingang, possui uma conotação bastante específica, ou seja, aos olhos
de quem está de fora, trata-se de um sistema cosmológico híbrido que
224 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

carrega em seu âmago aspectos simbólicos de um xamanismo indígena


e do catolicismo popular ligado à figura de São João Maria (OLIVEIRA,
1996). Ou seja, um verdadeiro paradoxo para a biomedicina, que
tenderia a separar o joio do trigo e, quiçá, nunca encontrar nada de
essencial para absorver em termos de medicina tradicional.

Multiculturalismo e interculturalidade
Para Semprini, as resistências a uma sociedade mais diversificada
e mais pluralista revelam que o multiculturalismo é fruto da crise do
próprio projeto de Estado democrático laico moderno, “construído a
partir de um universalismo que era com frequência apenas um disfarce
de uma monocultura sob os traços de um simulacro de humanidade
incrivelmente branca e europeia” (SEMPRINI, 1999, p. 160). Para esse
autor, o cerne da modernidade descansa sobre fundamentos filosóficos
que remetem a uma realidade objetiva, externa ao indivíduo, que pode
ser conhecida pelo raciocínio – concepções que norteiam o Iluminismo
e as ciências experimentais. Contudo, a epistemologia multicultural
vem para afirmar o contrário, que a realidade é convencional, que
o indivíduo participa de sua construção e que o conhecimento nada
tem de objetivo ou definitivo: ele depende do poder e da história. Isto
é, em lugar de uma compreensão realista, o argumento multicultural
aproxima-se muito mais de uma concepção relativista do universo
social porque a experiência da diferença mostra que existem caminhos
distintos para chegar à verdade e que esta está sempre dentro de uma
trama conceitual, social e histórica.
Entretanto – como diferença e identidade, igualdade e justiça,
relativismo e universalismo, racionalismo e subjetividade –, cidadania,
ética, direito são categorias filosóficas do projeto moderno. Essas
concepções, como demonstrou Latour (1994), se apoiam em práticas de
purificação para o engendramento de divisões em zonas radicalmente
diferentes entre gêneros. Assim, será que as categorias modernas estão
em condições de compreender as mudanças em curso nas sociedades
contemporâneas e de dar uma resposta às perguntas da sociedade que
mudaram de natureza e de forma de expressão?
Portela Guarín (2008, 2015), avaliando a situação da saúde indí-
gena colombiana, convida à superação da noção de multiculturalismo.
Sua justificativa está no fato de o multiculturalismo fomentar as diferen-
ças e o afastamento entre as populações e incluí-las na agenda gerencial
Cultura e atenção diferenciada 225

para seu controle pelo Estado neoliberal. Como argumenta Ferreira


(2015), o multiculturalismo neoliberal não questiona nem transforma as
relações assimétricas de poder entre o Estado e as populações indígenas,
pois, ao resolver a coexistência de traços culturais diversos, valoriza a
cultura hegemônica e subalterniza e marginaliza as outras culturas
tomadas como exóticas – uma insistência sobre a diferença cultural
pode ocultar a produção de desigualdade social (PIZZA, 2005).
É a partir de discussões como essas que a categoria “intercul-
turalidade” emerge no campo político, associada ao que se convencionou
chamar de diálogo intercultural. Para Ferreira (2015), a proposta de
atenção diferenciada contém em seu âmago tal noção pelo fato de ex-
plicitar a articulação dos serviços médicos com os saberes e as práticas
tradicionais e ainda pelo fato de a PNASPI considerar a participação
indígena na elaboração e na gestão da saúde.
O discurso da interculturalidade estaria pautado por dois
vieses. Um deles é de tipo funcional, ou seja, remeteria à interlocução
para a resolução de um problema comunicativo, dos riscos e das
incompreensões linguísticas e culturais. O outro é de tipo prescritivo,
associado a um projeto de transformação social voltado para a construção
de relações simétricas e dialógicas, pautadas no reconhecimento mútuo
e no respeito à diferença. A segunda opção seria o viés mais coerente
com a proposta de uma atenção diferenciada efetiva, que, segundo a
visão de Portela Guarín (2008, 2015), estaria ligada ao diálogo entre as
diversas epistemologias que norteiam processos de saúde e enfermidade.
Entretanto, para Ferreira (2015) e muitos outros autores que trabalham
a saúde indígena, a perspectiva funcional da interculturalidade acaba
sendo a hegemônica no campo político das políticas públicas, atuando
como um meio de adaptar e adequar as mensagens sanitárias aos
contextos locais – uma vez que a verdade sobre os processos de saúde e
doença ainda é exclusiva da biomedicina.
Além do mais, Ferreira (2015) percebe que a noção de zona de
intermedicalidade constitui a forma assumida pela antropologia médica
para falar da interculturalidade. Tal zona, como foi descrita neste
trabalho, acrescenta mais problemas à implementação das políticas de
saúde indígena, pois trata de uma interação entre diversas tradições
médicas que a perpassam, e não de uma simples dicotomização entre
saberes biomédicos e tradicionais, muito menos de um determinismo
cultural que remete a crenças que os indígenas seguem cegamente.
A PNASPI não reflete sobre a noção de interculturalidade e a transforma
226 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

em adjetivo que qualifica o campo da saúde indígena, sem atentar para


as relações assimétricas constitutivas da zona de contato intermédico.

Considerações finais
Diversas ambiguidades e impossibilidades marcam a efetivação
da atenção diferenciada para a saúde dos povos indígenas. Desde
as categorias sobre as quais se assenta e da relação com o Estado
neoliberal democrático até as atitudes dos profissionais de saúde no
contexto específico da TIX, remete-se à construção de uma imagem
hiper-real do indígena, associada a uma essencialização da noção de
cultura, para o controle das populações exóticas. A ideia de diferença,
portanto, é assumida de forma a afastar as diferentes culturas e evitar a
simetrização das relações de poder entre elas. Em resumo, a integração,
ou instrumentalização, de práticas equivalentes da biomedicina
não leva em conta a heterogeneidade dos contextos locais e suas
especificidades culturais. A perspectiva integracionista, central no
discurso dos profissionais de saúde, alude à colonização das práticas
pelo saber biomédico, mesmo a partir de categorias e propostas críticas
sob os auspícios do abuso da racionalidade (BOCCARA, 2015). Isso
está claro e presente no modo como gestores das políticas de saúde
elegem as medicinas tradicionais e indígenas como o “outro” do diálogo
intercultural (FERREIRA, 2015). O contato entre as culturas é tomado
como dado entre duas entidades claramente delimitadas. Os efeitos disso
são as imagens estereotipadas sobre os povos indígenas, em que “cultura
e medicina tradicional [são] conceituadas no molde museológico,
procurando traços culturais, homogeneidade e integridade que não
existem” (LANGDON; DIEHL, 2007, p. 9).
Essa visão está associada às limitações do próprio Estado mo-
derno, que não parece apto a integrar uma diferença autêntica que não
seja comandada de cima, nem pasteurizada para se tornar digerível.
Ao lidar com a questão da diferença, o multiculturalismo tornaria
emergente uma profunda crise vivenciada pelos Estados modernos,
pois, nas sociedades contemporâneas, está posta a emergência da questão
do reconhecimento do outro e, consequentemente, das reivindicações
acerca da alteração do espaço social e das condições históricas e
socioeconômicas calcadas no individualismo em favor de um espaço
público subsidiado por um fundo cultural. Nas últimas décadas, a
diferenciação étnica ampliou-se consideravelmente, uma vez que as
Cultura e atenção diferenciada 227

políticas identitárias demandam que as especificidades dos grupos


sejam reconhecidas e que leis sejam criadas, podendo ir da simples
outorga de direitos ou privilégios especiais até a concessão de formas
de autonomia política e governamental. No Brasil, a categoria “etnia”
teria sido tomada pelo Estado tutelar anterior à Constituição de 1988
como marco de territorialização para o controle administrativo dos
povos indígenas, ao incentivar a superação dos valores autóctones para
a integração à nação. Atualmente, tal categoria tornou-se extremamente
valiosa no novo projeto democrático multicultural, catapultando
políticas de identidade e suscitando uma série de processos de emergên-
cia de limites e fronteiras étnicas entre grupos indígenas (OLIVEIRA
FILHO, 1998). Ramos (2012) nota que a territorialização prossegue
na atualidade e esconde uma questão mais fundamental, ou seja, a
persistência no credo da unidade nacional brasileira, que toma a nação
como indivíduo coletivo – ao gosto do Estado tutelar –, e não como uma
coletividade de indivíduos de inclinação liberal. Segundo a autora, neste
contexto, os índios ainda são o protótipo do objeto de tutela pelo Estado
e pela nação, em que a essencialização da cultura permanece como uma
das bases instrumentais para a formulação e a legitimação do acesso às
políticas públicas. O fato é que os indígenas ainda participam pouco
da elaboração das concepções de diferença ou de cultura que regem a
sua própria existência diante do Estado moderno. A eles resta aprender
a operar segundo as categorias dos brancos e desenvolver estratégias
práticas para o embate contra as formas de opressão. Gersem Luciano
Baniwa (2006) chama a atenção para o fato de que os povos indígenas
têm dificuldade em entender o modo como os brancos trabalham,
especialmente a partir da formulação de categorias estrangeiras como
interculturalidade, diálogo cultural ou projeto.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que as relações entre os
profissionais de saúde e as comunidades indígenas não escapam do
contexto mais amplo de relações interétnicas. Esse contexto interétnico
é caracterizado por relações de hierarquia que subalternizam os
indígenas ao restante da população. Ao mesmo tempo, hierarquizam
os saberes e colocam a biomedicina em posição superior ao saber dos
indígenas, tornando ainda mais difícil o respeito a essas populações.
Isso nos leva a perceber que, por outro lado, articular os serviços com os
saberes indígenas ou tradicionais não é uma tarefa fácil, pois os saberes
utilizados pelos indígenas podem estar associados a modelos de saúde
e doença com lógicas radicalmente diferentes. Assim, como os saberes
228 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

locais atuam a partir de categorias e processos que não se conformam


aos da medicina hegemônica, articular exige ouvir o outro na tentativa
de adequar os serviços de saúde ao contexto intercultural específico.
É preciso reconhecer a complexidade e a diversidade de saberes
e práticas e, fundamentalmente, manter uma abertura para epistemo-
logias diferentes. Além disso, trata-se de entender que todo contexto
intercultural é um contexto intermédico potencial, em que limites e
fronteiras entre esses saberes e práticas não são tão claros. Para
contemplar essa complexidade e evitar julgamentos sobre as populações
indígenas, talvez seja interessante retomar a sugestão de Menéndez
(2009) de que os profissionais de saúde atuem no estímulo dos processos
de autoatenção, fomentando a autonomia dos sujeitos e dos grupos
domésticos na avaliação dos processos de saúde e de enfermidade e na
articulação dos recursos disponíveis para a atenção à sua saúde.

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Brasília. 2006.
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Contribuições de Jean Langdon
às políticas públicas de medicina
tradicional indígena

Luciane Ouriques Ferreira

Desde o início de minha trajetória junto aos povos indígenas, no


final dos anos 1990, fui atravessada pela potente reflexão realizada por
Esther Jean Langdon sobre os temas do xamanismo e da saúde indígena.
O agenciamento que Langdon faz da teoria de Clifford Geertz (1989) e
dos conceitos da antropologia médica (KLEINMAN, 1980) constituiu
fundamentos importantes para a compreensão de determinados aspec-
tos da realidade sociomédica das sociedades indígenas, em particular
dos Mbyá-Guarani – primeiro povo com que tive oportunidade
de trabalhar.
A leitura de alguns dos seus trabalhos, tais como o que trata sobre
as representações de doença e os itinerários terapêuticos dos Siona e
a introdução à coletânea sobre o xamanismo no Brasil (LANGDON,
1994), direcionou o meu olhar para o campo da saúde indígena
desde quando eu ainda estava na graduação em ciências sociais, na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tais leituras
foram estruturantes da abordagem que desenvolvi no Mestrado em
Antropologia Social, ainda na UFRGS, quando tive a oportunidade
de escrever sobre a concepção cosmológica da doença entre os Mbyá-
Guarani no Rio Grande do Sul.
No início dos anos 2000, passei a ter uma interlocução mais
próxima com Jean Langdon ao participar das atividades do Centro
de Monitoramento em Saúde Mental Indígena, promovidas pelo
Componente da Saúde Indígena, do Projeto VIGISUS, da Fundação
Nacional de Saúde (Funasa). As reuniões do Centro de Monitoramento
congregaram pesquisadores – de diferentes disciplinas – que inves-
tigavam questões relacionadas ao campo da saúde mental indígena, tais
como os fenômenos do abuso de álcool e do suicídio. Desde então, a
posição crítica de Jean Langdon e os aportes teóricos trazidos ao debate
234 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

sempre lançaram luz sobre dimensões importantes e constitutivas dos


fenômenos em pauta.1
Já nos primórdios da criação do Subsistema de Atenção em Saúde
Indígena (SasiSUS), em 1999, Jean Langdon assumiu um posicionamento
crítico quanto à questão da atenção diferenciada, pontuando a distância
que havia entre a legislação e as normativas que reconhecem os direitos
diferenciados dos povos indígenas e a prática dos profissionais de saúde
no âmbito das aldeias (LANGDON, 2004; LANGDON, 2007a, 2007b;
LANGDON; CARDOSO, 2015; LANGDON; GARNELO, 2017).
Em 2004, já com Jean Langdon como minha orientadora de
doutorado no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC), fui
convidada a gerenciar a área de medicina tradicional indígena (MTI),
recém-criada na segunda fase do Projeto VIGISUS II/Funasa. Langdon
me aconselhou a não assumir o cargo, em primeiro lugar, com receio
de que eu não conseguisse concluir o doutoramento; em segundo lugar,
apresentava críticas à noção de medicina tradicional indígena e à sua
possível instrumentalização por parte das políticas de saúde indígena.
Enquanto orientanda de Jean, avessa às assimetrias do poder
instituídas inclusive no âmbito das relações acadêmicas, aceitei o convite
e me senti desafiada por seus argumentos: decidi tanto provar que eu era
capaz de defender o meu doutorado – sem abrir mão de uma experiência
profissional fantástica que me permitiria construir um amplo panorama
da situação da saúde indígena no Brasil – quanto tentar realizar projetos
diferenciados dentro da estrutura estatal do Poder Executivo.
Jean Langdon foi convidada por mim, como gerente da área de
medicina tradicional indígena, do VIGISUS II/Funasa, para acompanhar
a implementação dos projetos participativos de pesquisa-ação, por meio
de sua participação nas duas reuniões de monitoramento. As refle-
xões de Langdon realizadas durante a primeira reunião, que aconteceu

1
No que se refere ao uso de bebidas alcoólicas, Langdon propôs a revisão da categoria
de alcoolismo e o deslocamento de uma abordagem centrada no indivíduo/na causa
única/no fenômeno universal para uma abordagem focada na dimensão cultural/
coletiva/multifatorial dos fenômenos de alcoolização nas sociedades indígenas
(LANGDON, 1999). Além disso, sugeria que adotássemos o conceito de processos
de alcoolização, desenvolvido por Eduardo Menéndez, como uma forma de fazer
frente a uma tendência moralista que marcava os então vigentes debates sobre o
“alcoolismo” entre os povos indígenas, bem como chamava a atenção para os riscos
de intervenções sobre o fenômeno que pudessem medicalizar importantes aspectos
da socialidade e da vida cotidiana dessas sociedades.
Contribuições de Jean Langdon às políticas públicas de medicina tradicional indígena 235

no decorrer do ano de 2007, serão retomadas no decorrer desta


narrativa para que possamos visualizar alguns dos pontos fundamentais
que sustentam a sua crítica às políticas da saúde indígena (FERREIRA;
OSÓRIO, 2007).
Outra política que tive a oportunidade de formular – no âmbito da
consultoria prestada para o Departamento de Atenção à Saúde Indígena,
da Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena, Ministério da
Saúde (DASI/SESAI/MS), em 2017, oito anos depois do encerramento
do Projeto VIGISUS II – foi o Programa Articulando Saberes em Saúde
Indígena (PASSI). Importante dizer que as experiências adquiridas
como gestora da área de MTI constituíram os fundamentos a partir dos
quais o PASSI foi elaborado.
É a partir das experiências que tive ao ocupar diferentes posições
no campo da saúde indígena que passo a refletir sobre as contribuições
do pensamento de Jean Langdon para o desenvolvimento das políticas
de medicinas tradicionais indígenas no Brasil e a estabelecer um diálogo
a contrapelo com as perspectivas assumidas pela pesquisadora.

A atenção diferenciada e a articulação com as


medicinas tradicionais indígenas
Se a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas
(PNASPI)2 é orientada pelos mesmos princípios doutrinários que
regem o Sistema Único de Saúde (SUS) – universalidade, equidade
e integralidade –, o que lhe confere especificidade é o princípio da
atenção diferenciada. Apesar de essa política não definir com clareza
os contornos da atenção diferenciada à saúde com os quais opera, a
articulação com as medicinas tradicionais indígenas constitui uma das
diretrizes estratégicas para a efetivação do direito dos povos indígenas
de terem acesso a uma atenção integral e diferenciada à sua saúde.
Desde a criação do SasiSUS, em 1999, e da aprovação da PNASPI,
em 2002, foram elaborados dois programas voltados para desenvolver
estratégias de reconhecimento e valorização das medicinas indígenas
e de articulação entre os saberes em saúde indígena. O primeiro foi a

2
A PNASPI foi aprovada pela Portaria no 254, de 31 de janeiro de 2002, tendo o intuito
de compatibilizar a Lei Orgânica da Saúde (Lei no 8.080/1990) com a Constituição
Federal de 1988, de modo a garantir aos povos indígenas o acesso integral e
diferenciado à saúde, em consonância com os princípios e as diretrizes do SUS.
236 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

área de medicina tradicional indígena, do Projeto VIGISUS II/Funasa,


criada em 2004, com vigência até 2009, ainda quando a gestão do
SasiSUS estava sob a responsabilidade da Funasa. E o segundo, o PASSI,
originado em 2017, já sob a gestão da SESAI/MS.
Os aportes teóricos e as reflexões sobre atenção diferenciada
à saúde indígena realizados por Jean Langdon exerceram grande
influência em minha atuação, tanto como formuladora quanto como
atuante na implementação de ambas as políticas públicas. A abordagem
antropológica orientada pela práxis sempre pontuou a necessidade
de adotar uma perspectiva crítica sobre a própria noção de medicina
tradicional indígena, a qual se vincula a uma visão estereotipada
e instrumental muito difundida no campo da saúde indígena. Em
contraposição, para lançar luz sobre a agência exercida pelos sujeitos
indígenas nos processos de articulação dos distintos modos de atenção
à saúde disponíveis em seu campo de atuação, Langdon propunha
conceitos como o de práticas de autoatenção (MENÉNDEZ, 2003) e o
de intermedicalidade (GREENE, 1998; FOLLÉR, 2004).
No entanto, como operacionalizar tais conceitos antropológicos
no contexto de formulação e execução das políticas públicas voltadas
para a efetivação do direito dos povos indígenas de terem acesso a
essa atenção diferenciada à saúde? Eis um debate que ainda está por
ser empreendido.

O acompanhamento de Jean Langdon da área de


medicina tradicional indígena
A área de MTI,3 que vigorou entre os anos de 2004 e 2009,
teve como um de seus objetivos principais desenvolver, de forma
participativa, estratégias para a articulação entre o sistema oficial de
saúde e as medicinas indígenas (FERREIRA; OSÓRIO, 2007). Para
isso, realizou uma série de projetos participativos de pesquisa-ação
voltados para a produção de conhecimentos sobre temas relacionados
às medicinas tradicionais indígenas e à sua articulação com o sistema

3
A área de MTI integrou o Subcomponente II – Ações Inovadoras em Saúde Indígena,
do Projeto VIGISUS II/Funasa. O Projeto VIGISUS II (Projeto de Modernização do
Sistema Nacional de Vigilância em Saúde) foi viabilizado por meio do Acordo de
Empréstimo no 7227 BR/1999, firmado entre o governo brasileiro e o Banco Mundial.
A área de MTI foi encerrada em 1999, junto com a fase II do Projeto VIGISUS.
Contribuições de Jean Langdon às políticas públicas de medicina tradicional indígena 237

oficial de saúde: sistemas de parto tradicionais, plantas medicinais e


remédios caseiros, especialistas e xamanismo. Esses projetos operaram
com conceitos antropológicos agenciados por Jean Langdon em suas
análises sobre a saúde indígena, tais como os de sistemas médicos
(KLEINMAN, 1980), intermedicalidade (GREENE, 1998; FOLLÉR,
2004) e xamanismo (LANGDON, 1996).
As ações da área de MTI foram discutidas em reuniões de
monitoramento que congregaram as equipes interétnicas dos projetos,
os profissionais da saúde indígena, os gestores e os antropólogos
especialistas em saúde indígena. Jean Langdon foi convidada a
acompanhar o debate sobre os resultados e as reflexões produzidos
pelos projetos de pesquisa-ação e a contribuir com suas análises para o
desenvolvimento e a implantação dessa política pública.

A reflexão de Jean Langdon na primeira reunião


de monitoramento da área de MTI
Durante a primeira reunião de monitoramento, realizada no
ano de 2007, Jean Langdon pontuou a importância da reflexão crítica
– de modo a evitar tanto a essencialização da categoria “medicina
tradicional indígena” quanto a medicalização de dimensões da vida
indígena associadas aos sistemas tradicionais indígenas de saúde. Entre
suas preocupações, a questão dos múltiplos significados da noção de
“atenção diferenciada” sempre esteve em destaque.

Apesar de todas as boas intenções, chamo atenção para a


necessidade de cada um de nós adotar uma atitude reflexiva
sobre o nosso conhecimento, sobre nossa posição hierárquica
nas relações interétnicas e sobre nossas responsabilidades. Para
este grande experimento se realizar é necessário que cada um
tente ser crítico de si mesmo, ou seja, que mantenha uma atitude
reflexiva. Particularmente é necessário pensar como estamos
conceituando a noção de “medicina tradicional”. Eu pessoalmente
não gosto de falar de “medicina “tradicional”, porque traz uma
imagem errada e romântica das práticas e dos conhecimentos
indígenas. [...] Apesar desta imagem ser veiculada fortemente
pela mídia e de não podermos eliminá-la, devemos refletir como
nós representamos e lidamos com a medicina tradicional, já que
esta acopla a imagem genérica do índio como representante da
pureza de um passado. (LANGDON, 2007a, p. 110).
238 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Jean Langdon enfatiza a necessidade de situar a área de MTI


no contexto da PNASPI, “que visa oferecer atenção diferenciada a
estes povos, mas que frequentemente falha devido a problemas de
centralização e burocratização sem realizar uma reflexão crítica sobre
a sua atuação. Não é fácil intervir e ser reflexivo simultaneamente”
(LANGDON, 2007a, p. 111).
Entre as categorias acionadas pelos discursos sobre as medicinas
tradicionais indígenas vigentes no campo da saúde indígena, Jean
Langdon problematizou o termo “pajé”, amplamente empregado como
sinônimo de “médico dos índios”, definindo-o como um estereótipo. Para
ela, esse discurso trata os pajés de modo genérico, reduzindo a um só a
diversidade de especialistas de cura e de “especialistas rituais que atuam
como mediadores entre o mundo visível e o invisível”. Nesse sentido,
“[v]árias práticas e detentores de saberes acabam sendo simplificados a
um único papel: ao do pajé. E o pajé acaba representando uma caricatura
do que seria a medicina tradicional” (LANGDON, 2007a, p. 112).
Sobre os entendimentos a respeito da noção de medicina
tradicional, Langdon chama a atenção para a necessidade de superar a
tendência à essencialização dos sistemas sociomédicos indígenas.

Também, a medicina tradicional tende a ser essencializada


pelos profissionais de saúde. Ou seja, as práticas de saúde são
concebidas como hábitos universais praticados por todos os
índios e saberes que nunca se transformam, mas que são capazes
de desaparecer se nós não os resgatarmos. Os saberes indígenas
perdem suas especificidades e as práticas estão implementadas
por profissionais de saúde fora de seus contextos específicos,
em nome de uma medicina tradicional universal. [...] Assim,
é necessário tanto não essencializar a medicina tradicional,
quanto não romantizar nossas imagens sobre as práticas de
saúde associadas à mesma. (LANGDON, 2007a, p. 112-113).

A ideia de que existem fronteiras fixas e rígidas estabelecidas


entre a “medicina do índio” e a “medicina do branco” também precisa
ser desconstruída. Tais fronteiras são fluidas e dinâmicas, havendo
apropriações de saberes e práticas entre os sistemas sociomédicos em
interação em uma determinada zona de contato entre distintas tradições
de saúde, definindo-a como uma zona de intermedicalidade.
Langdon (2007a, p. 114) defende que as práticas tradicionais
encontram-se em permanente transformação, em razão das relações
intermédicas que acontecem nas zonas de contato. O conceito de
Contribuições de Jean Langdon às políticas públicas de medicina tradicional indígena 239

intermedicalidade evidencia a agência que as comunidades indígenas


exercem ao decidir sobre suas próprias vidas e sobre os recursos
terapêuticos empregados nas curas das doenças. “São eles os que
escolhem, incorporam e avaliam as alternativas terapêuticas para curar
seus males. [...] A noção de intermedicalidade (Greene, 1998) ajuda a
entender a práxis” (LANGDON, 2007a, p. 114).
Para Langdon, por enfocar as práticas cotidianas – práxis –, o
conceito de práticas de autoatenção proposto por Menéndez (2003) é
interessante para pensar os sistemas sociomédicos indígenas. Porém,
aponta não apenas para as representações da doença e os recursos
terapêuticos empregados para tratá-las (sentido restrito), mas também
fala das práticas requeridas para assegurar a reprodução biossocial de
um grupo, remetendo a práticas culturais mais amplas.
Um dos aspectos da crítica de Langdon à categoria de medicina
tradicional indígena, amplamente difundida no campo da saúde
indígena, diz respeito ao fato de essa categoria ignorar a dimensão
ampla da autoatenção e limitar-se à dimensão terapêutica, quando de
fato existe uma íntima imbricação entre as duas dimensões.

É necessário ter clareza de que o conceito de medicina tradicional


incorpora o sentido lato e o sentido estrito das práticas de
autoatenção, o que não é o caso do conceito de medicina vigente
em nossa cultura ocidental. Esta divergência complica o diálogo
entre culturas, porque os domínios que constituem as práticas de
saúde não são iguais. [...] Penso que só com relações dialógicas
se pode superar um enfoque limitado de medicina tradicional,
possibilitando a articulação não só com as práticas de autoatenção
no sentido estrito, mas também com as que têm a ver com as
formas tradicionais de organização social. (LANGDON, 2007a,
p. 116-117).

Por fim, Jean Langdon também alerta para os riscos das ações
do Estado de medicalizar dimensões sociais constitutivas das medicinas
indígenas, principalmente quando se volta para intervir sobre a
dimensão ampla das práticas de autoatenção.

As críticas à atenção diferenciada e à articulação


com as medicinas indígenas
Após a experiência da área de MTI, Jean Langdon, em parceria
com Luiza Garnelo, publica um artigo em que propõem explorar o
240 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

pluralismo terapêutico nas políticas e nos serviços de saúde indígena no


Brasil. Ali, elas estão interessadas em pontuar as contradições e tensões
existentes entre a organização do SasiSUS e as práticas cotidianas das
equipes de saúde nos contextos locais.
Nesse artigo, as autoras retomam a questão de que a política
de saúde indígena não define com precisão o significado da atenção
diferenciada, que, para elas, estaria associada ao respeito a conhecimen-
tos e práticas indígenas e à sua articulação aos serviços de saúde.
Também apontam para o caráter vago que marca a recomendação de
articular os serviços de saúde às medicinas indígenas e mencionam a
experiência da área de MTI para sustentar os seus argumentos.

A legislação brasileira e os documentos normativos exigem a


articulação entre as práticas oficiais de saúde e as diversas terapias
indígenas. Esse compromisso de articulação entre as práticas
indígenas e as oficiais se reafirmou em 2004 [...] no Projeto
VIGISUS II sobre medicina tradicional (2004-2008), que buscava
validar os conhecimentos tradicionais e desenvolver estratégias
de articulação entre os sistemas de saúde oficiais e indígenas.
Apesar de seu caráter dialógico e participativo, esses projetos
tiveram pouco impacto nas ações do subsistema. Além disso, os
esforços para a criação de uma legislação reguladora das práticas
terapêuticas alternativas e a medicina tradicional contradizem a
validação do conhecimento tradicional como legitimo. No caso
do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, a legislação não é
clara quanto ao que constitui “articulação” e como se poderiam
realizar as ações cotidianas da atenção primária. [...] Existe pouca
congruência entre o direito abstrato garantido na legislação e as
práticas terapêuticas das equipes multiprofissionais que prestam
atenção primária nas comunidades indígenas. (LANGDON;
GARNELO, 2017, p. 459-460, tradução nossa).4

4
No original: “La legislación brasileña y los documentos normativos exigen la
articulación entre las prácticas oficiales de salud y las diversas terapias indígenas.
Este compromiso de articulación entre las prácticas indígenas y las oficiales se
reafirmó en 2004 [...] en el Proyecto VIGISUS II sobre Medicina Tradicional (2004-
2008), que buscaba validar los conocimientos tradicionales y desarrollar estrategias
de articulación entre los sistemas de salud oficiales e indígenas. Apesar de su carácter
dialógico y participativo, estos proyectos tuvieron poco impacto en las acciones del
subsistema mayor. Además, los esfuerzos para crear una legislación reguladora
de las prácticas terapéuticas alternativas y la medicina tradicional, contradicen
la validación del conocimiento tradicional como legítimo. En el caso del SASI, la
legislación no es clara en cuanto a lo que constituye “articulación” y sobre cómo se
Contribuições de Jean Langdon às políticas públicas de medicina tradicional indígena 241

Outra crítica retomada por Langdon nesse artigo diz respeito ao


fato de o sistema oficial de saúde operar com uma visão estreita sobre a
medicina tradicional indígena, reduzindo-a a um xamanismo genérico
e/ou ao uso de plantas medicinais, sem levar em conta a diversidade
de sistemas indígenas de cuidado e de cura. Como podemos ver, dez
anos atrás essa mesma crítica já havia sido feita no âmbito da reunião de
monitoramento dos projetos da área de MTI.
Para elas, por serem influenciados pela ideologia hegemônica da
biomedicina, “os profissionais de saúde não reconhecem as dinâmicas
e a agência expressada nas práticas indígenas de saúde” (LANGDON;
GARNELO, 2017, p. 457). Com isso, o modelo hegemônico de atenção
primária à saúde passa a ser “desenvolvido de forma padronizada e
mecânica nas reservas indígenas” (LANGDON; GARNELO, 2017,
p. 461, tradução nossa).5 Para superar tal impasse seria necessário que
os profissionais de saúde estabelecessem um diálogo com seus pacientes
e suas respectivas comunidades indígenas.
No entanto, como se aprende a dialogar com os indígenas?

As sementes plantadas pela área de MTI: o PASSI


No mesmo ano de publicação do artigo de Langdon e Garnelo
(2017), fui convidada pela SESAI/MS para elaborar a estratégia voltada
ao fortalecimento das medicinas tradicionais indígenas no âmbito da
gestão em curso nesse momento. Foram justamente as experiências
antropologicamente orientadas (FERREIRA, 2013) e os conhecimentos
produzidos pelos projetos da área de MTI que permitiram, oito anos
após o seu encerramento, a elaboração do Programa Articulando
Saberes em Saúde Indígena.6

podrían llevar a cabo en las acciones cotidianas de atención primaria. [...] existe poca
congruencia entre el derecho abstracto garantizado en la legislación y las prácticas
terapéuticas de los equipos multiprofesionales que prestan atención primaria en los
poblados indígenas”.
5
No original: “desarrollado de forma estandarizada y mecánica en las reservas
indígenas”.
6
O PASSI foi elaborado em 2017 como primeiro produto do Contrato de Prestação
de Serviços no CON17-00022697, firmado entre a antropóloga Luciane Ouriques
Ferreira e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).
242 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

O PASSI, atual política da SESAI/MS que trata das medicinas


tradicionais indígenas, tem como objetivo promover a articulação entre
os saberes e as práticas de saúde dos povos indígenas e o sistema oficial
de saúde como estratégia de efetivação do direito desses povos à atenção
integral e diferenciada à sua saúde, em consonância com o estabelecido
pela PNASPI.7
O PASSI agencia um conjunto de conceitos da antropologia
da saúde e da saúde coletiva para propor às políticas públicas uma
linguagem que possibilite uma relação mais equânime e simetrizante
entre o sistema oficial de saúde e as medicinas indígenas. Os mesmos
conceitos já operacionalizados pela área de MTI são retomados pelo
PASSI; todavia, no programa o conceito de práticas de autoatenção
ganha maior destaque, marcando a influência do pensamento de Jean
Langdon também para a elaboração dessa política.
A abordagem conceitual desenvolvida pelo PASSI se diferencia
daquela desenvolvida pela área de MTI justamente por dialogar com
os conceitos do campo da saúde coletiva que fundamentam a criação
do próprio SUS. Uma das principais concepções resgatadas por esse
programa diz respeito à própria noção ampliada de saúde, tal como
preconizada pelo artigo no 196 da Constituição Federal de 1988.
Informado pela concepção ampliada de saúde, o PASSI prevê que
a articulação com as medicinas tradicionais indígenas deve acontecer

7
Em março de 2018, o PASSI foi apresentado para a avaliação do Fórum dos
Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (FPCONDISI), em sua
reunião ordinária, ocorrida em Brasília. Desde então, o programa foi divulgado
em diferentes eventos e debatido por indígenas, gestores e profissionais de saúde.
Inúmeras foram as reuniões técnicas realizadas no âmbito do DASI/SESAI para
tratar sobre as estratégias de implementação do programa. Em 2019, as orientações
para a sua implantação foram repassadas aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas
(DSEIs) por meio da Nota Técnica (NT) no 16, elaborada pela Divisão de Programas
e Projetos (DIPROSI) do DASI/SESAI. A NT no 16 foi encaminhada aos DSEIs
via Processo no 25000.201924/2018-90, do Sistema Eletrônico de Informações
(SEI). Entre outras coisas, a NT informa aos DSEIs que o incentivo financeiro aos
projetos de valorização das práticas tradicionais e de articulação de saberes em saúde
indígena está previsto no termo de referência do plano de trabalho da prestação de
serviço das conveniadas no âmbito dos DSEIs. A NT determina que a elaboração
de projetos de valorização das práticas tradicionais e de articulação de saberes em
saúde indígena deve ocorrer de forma participativa junto a representantes, lideranças
e comunidades indígenas. No entanto, com a mudança de gestão do Ministério da
Saúde nesse mesmo ano – quando assumiu o novo presidente da República – e com o
advento da pandemia de covid-19, que atingiu os povos indígenas, a implementação
do PASSI deixou de ser prioritária para a SESAI.
Contribuições de Jean Langdon às políticas públicas de medicina tradicional indígena 243

tanto no âmbito da dimensão clínico-epidemiológica quanto nas ações


de intervenção sobre os determinantes sociais que contribuem para
configurar a situação de saúde da população indígena. Para tanto, orienta
que a estratégia de articulação de saberes seja transversal aos variados
programas de atenção à saúde indígena e contemplada pelos distintos
níveis da atenção – atenção de básica, média e alta complexidade
(FERREIRA, 2017).
Além disso, institui a intersetorialidade como um dos seus
eixos de ação voltado para intervir sobre os determinantes de saúde
fundamentais à sustentabilidade das medicinas indígenas. Dessa for-
ma, o desenvolvimento de estratégias de articulação de saberes em
saúde indígena passaria tanto a se dar nas diferentes dimensões que
constituem a atenção – promoção, proteção e recuperação da saúde –
quanto a contemplar os níveis que conformam as práticas indígenas de
autoatenção – no sentido amplo e no sentido restrito (FERREIRA, 2017).
Sabemos, todavia, que há muito por fazer para que a noção
ampliada de saúde passe a embasar a atuação dos sujeitos que trabalham
nas distintas posições do sistema oficial de saúde, de modo a superar
a abordagem centrada na doença que sustenta a práxis de gestores
e profissionais de saúde nos diversos contextos institucionais que
constituem o sistema. As ações de educação permanente, bem como as
universidades responsáveis pela formação dos trabalhadores da saúde,
desempenham um papel importante para a consolidação desse princípio
no âmbito da organização do SUS.
Estão em curso no Brasil algumas experiências de articulação de
saberes em saúde indígena que encerram um grande potencial criativo e
que podem contribuir para lançar luz sobre a própria noção de atenção
diferenciada e delinear os princípios que devem orientar a gestão e o
fazer saúde nos múltiplos contextos da saúde indígena.

O PASSI parte do princípio que existe uma grande diversidade


de experiências no campo da saúde indígena [...] desperdiçadas
por não serem visíveis, conhecidas e nem reconhecidas pelo
sistema oficial de saúde. Saberes que ao longo da história foram
silenciados e produzidos como não existentes. Para promovermos
a articulação entre saberes e práticas se faz necessário visibilizar
essas experiências e reconhecer os povos indígenas como
interlocutores válidos e sujeitos produtores de conhecimentos.
O diálogo intercultural e a tradução constituem suportes me-
todológicos propostos pelo Programa a serem empregados no
244 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

processo de construção participativa de estratégias de articulação


de saberes em saúde indígena. (FERREIRA, 2019, p. 9).

Apresento aqui fragmentos de três experiências de campo


realizadas em 2017 e 2018 para refletirmos sobre a articulação entre
os serviços de saúde e as medicinas indígenas enquanto dispositivo
epistemológico e sobre alguns aspectos da atenção diferenciada à saúde
indígena que escapam à crítica acurada de Jean Langdon.

Algumas experiências de atenção diferenciada


em curso no Brasil
As experiências etnográficas aqui apresentadas constituem
fragmentos das incursões em campo realizadas no âmbito da consultoria
para a elaboração do PASSI, prestada à SESAI/MS no decorrer dos
anos de 2017 e 2018. Tais atividades foram efetuadas tendo em vista a
produção de subsídios para delinear as estratégias de implementação do
referido programa no âmbito dos DSEIs.
Duas das situações descritas ocorreram no contexto da ação de
mapeamento das práticas de autoatenção e dos especialistas indígenas
nos territórios dos DSEIs, empreendido em meados de 2018: o encontro
com os Shanenawa, atendidos pelo DSEI Alto Rio Juruá, e com os
Munduruku, assistidos pelo DSEI Rio Tapajós (FERREIRA, 2018).
A outra experiência mencionada diz respeito à atenção diferenciada
ofertada aos Zo’é, povo de recente contato, pelo DSEI Guamá-Tocantins.
Meu encontro com os Zo’é ocorreu em novembro de 2017, por ocasião
da realização de um evento de intercâmbio entre integrantes das EMSIs
desse povo e dos Awa Guajá, que habitam o estado do Maranhão.

O festival cultural shanenawa: desdobramentos de


um projeto

Minha visita à aldeia Shane Kaya, do povo Shanenawa, para


acompanhar o seu festival cultural atendeu a uma solicitação feita pela
então presidenta do Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI)
do DSEI Alto Rio Juruá e integrante do FPCONDISI, Edna Shanenawa.8

8
A aldeia Shane Kaya está localizada na TI Katukina/Kaxinawa, situada na região
centro-norte do Acre, à margem esquerda do rio Envira, município de Feijó. A TI
Contribuições de Jean Langdon às políticas públicas de medicina tradicional indígena 245

O festival cultural aconteceu nos dias 29 e 30 de junho de 2018 e contou


para a sua realização com o apoio do DSEI Alto Rio Juruá.
Edna Shanenawa, liderança do movimento de mulheres indígenas
no estado do Acre, participou ativamente na elaboração e na execução do
projeto de valorização e de adequação dos sistemas de parto tradicionais
das etnias indígenas do Acre e do sul do Amazonas, promovido pela área
de MTI. A liderança atuou fortemente na mobilização das comunidades
da região para participarem das reuniões de parteiras, pajés e Agentes
Indígenas de Saúde (AIS), que ocorreram no decorrer do ano de 2006
(OLHAR ETNOGRÁFICO, 2006).
A organização social da aldeia Shane Kaya está baseada na
formação de núcleos familiares compostos de um casal de anciãos, suas
filhas casadas (com esposos nem sempre indígenas), seus filhos solteiros,
seus netos e seus filhos de criação. Todos os membros da comunidade
se envolveram com a realização do festival cultural, inclusive por ser
um momento de celebração do aniversário de quatro anos de fundação
da aldeia.
Os preparativos para o festival se iniciaram na noite anterior ao
evento, com a organização do espaço e a preparação dos corpos com as
pinturas tradicionais feitas de jenipapo e urucum: os kenes. Contudo, a
festa começou na manhã de sábado, com a bênção do pajé centenário
da aldeia, e seguiu até o amanhecer de domingo. Participaram do evento
os Shanenawa de outras aldeias, os Huni Kuin (Kaxinawá) das aldeias
vizinhas e os amigos não indígenas da comunidade.
Durante o dia, inúmeras atividades foram realizadas para animar
os participantes: danças, cânticos, distribuição do machu (bebida
alcoólica fermentada a base de uma batata rosa nativa), brincadeiras
e refeições compartilhadas. À noite, por volta das 20h, com a lua cheia
iluminando o terreiro, o huni (ayahuasca) passou a ser servido aos
participantes do evento. A liderança explicou a todos que havia dois
tipos de huni – o huni de cura e o huni de festa – e que naquela ocasião
seria servido o huni para iluminar e alegrar a festa shanenawa.9

Katukina/Kaxinawa, com uma extensão de 23.474 hectares homologados, abriga


aldeias das etnias Shanenawa e Kaxinawá (Huni Kui). O povo Shanenawa, falante de
uma língua da família Pano, conta com uma população de, aproximadamente, 763
pessoas (SIASI apud ISA, 2014a), enquanto a população total na TI, de acordo com
os dados do Censo Demográfico de 2010, era de 1.259 pessoas.
9
O que distingue um huni de cura de um huni de festa é a cura – reza – que o pajé faz
na bebida logo depois de pronta: essa é a prática que estabelece a diferença entre as
finalidades do huni.
246 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Logo após o huni ser servido houve um período de concentração


e, em seguida, os pajés que estavam presentes entoaram os seus
cânticos, marcando o ritmo com as suas maracás. Terminada
essa etapa, mais um período de concentração, para que a força do
huni se manifestasse e logo em seguida teve início a cantoria que
embalaria a festa até o outro dia pela manhã. Os participantes
com seus corpos pintados e seus cocares de penas coloridas
dançaram em fila, de braços dados, serpentando pelo terreiro
noite adentro. Eventualmente, outra rodada de huni era servida
para aqueles que queriam seguir festejando. Também, o cacique
da aldeia Morada Nova estava oferecendo sananga para acordar
aqueles que estavam com sono. (FERREIRA, 2018, p. 48-49).

Se a partilha entre os parentes e as práticas empregadas durante


o evento podem ser consideradas como autoatenção, o festival cultural
por si só também constitui uma forma de autoatenção no sentido
amplo, voltada para a promoção da saúde e do bem viver daqueles que
participam da experiência, sendo entendido no âmbito do PASSI como
uma prática indígena de promoção de saúde.

Celebração entre parentes e reafirmação da identidade Shanenawa,


o Festival Cultural também é um momento de fortalecimento dos
laços de parentesco e do vínculo intergeracional, tão importante
para a continuidade dos saberes e práticas de saúde dos povos
indígenas. (FERREIRA, 2018, p. 51).

O retorno à região do Alto Juruá, passados 15 anos da realização


do projeto promovido pela área de MTI, o VIGISUS II, constituiu uma
excelente oportunidade para avaliar os desdobramentos e os efeitos da
ação efetuada há mais de uma década no contexto das aldeias indígenas
que participaram do projeto. Como afirma Edna Shanenawa, o Projeto
VIGISUS II, por ser implementado de modo colaborativo, incentivou
as comunidades a valorizar seus saberes tradicionais e suas medicinas
sagradas, contribuindo para com o processo de revitalização cultural
dos povos da região do Alto Juruá. Desde então, o povo Shanenawa
passou a realizar os seus festivais culturais para celebrar os seus saberes
e as suas identidades.
Contribuições de Jean Langdon às políticas públicas de medicina tradicional indígena 247

O encontro com os Munduruku, DSEI Rio Tapajós


O meu encontro com os Munduruku que residem na TI
Munduruku,10 situada no município de Jacareacanga, estado do Pará,
se deu em junho de 2018. Para entrar em território munduruku,
acompanhei uma equipe do DSEI Rio Tapajós que foi à área para fazer
a supervisão das atividades da EMSI e para organizar o “I Encontro de
Saberes da Medicina Tradicional Munduruku”, planejado para ocorrer
no mês de agosto desse mesmo ano.11
Durante esse período, ficamos alojados na aldeia Missão São
Francisco, onde se situa o Polo Base Missão Cururu, e compartilhamos
as instalações utilizadas pelos profissionais de saúde que estão em
área. Na ocasião, encontravam-se em serviço na aldeia Missão uma
enfermeira e dois odontólogos, além dos AIS que residem na região. Na
aldeia Santa Maria, distante quatro horas da Missão, localiza-se o outro
polo base, onde permanece na escala uma técnica de enfermagem.12
Durante o tempo que permaneci nessa região, percebi que os
profissionais do DSEI e da EMSI construíram vínculos sólidos com as
comunidades desse povo – o que não os impede, principalmente aqueles
que atuam nas aldeias, de reconhecer que trabalhar com saúde indígena
exige inúmeros sacrifícios, tais como afastar-se por longos períodos de
seus familiares.
Inúmeras situações que dizem respeito à atenção à saúde prestada
aos Munduruku ocorreram em minha estada em campo. Entretanto,
para os fins deste texto, gostaria de tecer alguns comentários sobre três
episódios, particularmente. O primeiro foi relatado pela enfermeira
responsável pela escala de serviços em razão da minha visita. Em um
dos momentos que conversamos, entre os atendimentos prestados aos

10
Os Munduruku pertencem à família linguística Munduruku, do tronco Tupi. Sua
população perfazia um total de, aproximadamente, 13.755 pessoas (SIASI, 2014 apud
ISA, [2022b]) distribuídas nos estados do Pará, do Amazonas e de Mato Grosso.
A maioria das comunidades situadas nessa TI é bilíngue, e em algumas delas as
mulheres, as crianças e os anciãos falam unicamente a língua indígena.
11
A equipe foi composta de um enfermeiro, anteriormente integrante da EMSI que
atende os Munduruku em área, a apoiadora em saúde indígena e a técnica responsável
pelas ações de educação permanente do DSEI.
12
Os profissionais das EMSIs cumprem uma escala de 20 dias em área para 10 dias
na cidade onde residem com suas famílias. Nesse período, também trabalham na
organização das informações sobre os atendimentos e os procedimentos realizados
em serviço, de modo a alimentar o Sistema de Informação da Atenção à Saúde
Indígena (SIASI).
248 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Munduruku nas instalações do polo base, ela nos disse que estava grávi-
da há três meses. Indagada sobre se os indígenas sabiam de sua gestação,
ela nos disse que sim, mas que inicialmente havia ficado apreensiva
quanto à reação que eles poderiam ter, já que entre os Munduruku as
mulheres grávidas e menstruadas não devem ficar próximas de pessoas
que foram picadas por escorpião, cobra ou arraia.
Decidiu então conversar com os AIS de sua equipe sobre a
situação. Surpresa ficou quando eles não apenas a acolheram, mas
também se propuseram a fazer o atendimento das pessoas, caso alguém
da comunidade sofresse algum acidente com esses animais peçonhentos
no período de sua escala. A enfermeira então os acompanharia a
distância, repassando as orientações para a realização dos procedimen-
tos necessários.
Outra situação que nos fala sobre a articulação de saberes em
curso nos contextos da atenção foi a que ocorreu quando estávamos
nos deslocando de barco para a aldeia de Santa Maria, onde dormimos
por duas noites. O barqueiro que nos conduziu é um AIS que reside
em uma aldeia localizada a meio caminho entre o polo base Missão e
a aldeia para onde nos dirigíamos. Esse AIS informou ao enfermeiro
do DSEI que nos acompanhava que uma grávida em sua aldeia havia
entrado em trabalho de parto e que estava com dificuldades para dar
à luz. O enfermeiro perguntou a ele, então, qual era a avaliação da
parteira que estava acompanhando a gestante. O AIS informou que a par-
teira havia solicitado que o caso fosse encaminhado para a equipe.
Decidimos parar na aldeia da mulher em trabalho de parto
para que o enfermeiro pudesse examiná-la. O profissional identificou,
a partir de uma avaliação clínica da gestante, que nesse momento se
encontrava na rede, rodeada pelos seus familiares e parentes, que a
criança não estava posicionada para nascer e que havia pouca margem
para a parteira realizar as manipulações tradicionais que colocam o
bebê na posição cefálica. Depois de acordar o procedimento com as
pessoas ali presentes, passou uma mensagem via rádio para o polo base
Missão solicitando a remoção da gestante e o encaminhamento para o
hospital, já que se tratava de um parto de risco. O polo providenciou
outro barco para buscá-la na aldeia e a aeronave para levá-la até
o município de Itaituba, onde está situada a rede de referência hospita-
lar para atendimento dos indígenas. Após essa situação, seguimos
viagem para a aldeia de Santa Maria.
Contribuições de Jean Langdon às políticas públicas de medicina tradicional indígena 249

Lá fomos recebidos pela técnica de enfermagem responsável


pela escala na ocasião.13 Acreditava a técnica que sairia de área junto
conosco quando fôssemos embora. No entanto, assim que chegamos, foi
informada de que a colega que iria substituí-la havia adoecido e que ela
teria que ficar mais tempo em área, até que alguém pudesse entrar para
fazer a substituição. Decepcionada com a notícia e preocupada com
seus familiares, pois havia dias que estava longe do conforto de sua casa,
pediu aos colegas para comunicarem sua mãe sobre a situação.
De modo distinto ao que ocorre na aldeia-sede, os Munduruku
que residem na aldeia de Santa Maria mantêm a sua organização social
tradicional baseada nas metades exogâmicas e na divisão de trabalho
por gênero e classe de idade (FERREIRA, 2018). Grande parte dos
moradores dessa aldeia fala apenas a língua indígena. Ali, a responsável
por “pegar os meninos” é uma das mulheres mais velhas da comunidade.
Na assistência à gestação e aos partos, a técnica de enfermagem
realiza alguns procedimentos do pré-natal em conjunto com a parteira
e a acompanha no momento do parto, para que logo após o nascimento
as medidas protocolares de atenção ao recém-nascido sejam realizadas.
A maioria dos partos ocorre na aldeia. As remoções, se necessárias, são
feitas apenas quando a técnica de enfermagem e a parteira identificam
complicações na gestação ou no parto.
A condução realizada pelos profissionais de saúde nas situações
de atenção aqui mencionadas demonstra que não apenas os indígenas
exercem sua agência no que diz respeito às decisões sobre os recursos
terapêuticos a serem empregados nos episódios patológicos, mas tam-
bém os próprios profissionais atuam de modo criativo nos contextos da
atenção primária à saúde indígena, negociando procedimentos, adaptan-
do protocolos e, não raramente, articulando saberes em saúde indígena.
Essas situações também nos falam de experiências em atenção
diferenciada à saúde indígena que, por regra, são invisíveis tanto para
a gestão da SESAI/MS quanto para as investigações antropológicas que
tratam sobre a saúde indígena. Com essa invisibilidade desperdiçamos
as experiências interessantes que ocorrem em aldeias e os aprendizados
que os profissionais adquirem ao trabalhar junto com os povos indígenas.
Tais saberes aprendidos pelas EMSIs em suas práticas geralmente não são
sistematizados e, portanto, acabam por não retroalimentar as reflexões

13
Diferentemente das instalações da aldeia-sede, que abrigam os profissionais de saúde
com algum nível de conforto, as instalações desse polo base são bastante precárias.
Aliás, a aldeia de Santa Maria é a mais distante da aldeia-sede da terra indígena.
250 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

acerca dos possíveis delineamentos do que seja a atenção diferenciada


na prática da assistência.

A atenção diferenciada aos Zo’é

Outra experiência de atenção diferenciada à saúde indígena que


tive oportunidade de conhecer enquanto atuei como consultora da
SESAI foi a prestada ao povo Zo’é. Meu encontro com os Zo’é ocorreu
em dezembro de 2017, por ocasião do intercâmbio entre integrantes
das equipes de saúde dos Zo’é e do povo Awa Guajá.14 Para chegar ao
território Zo’é15 e acompanhar a rotina da atenção à saúde prestada a esse
povo, aproveitei a entrada via aérea de uma equipe em área, composta de
uma técnica de enfermagem (também cientista social), uma enfermeira
e um médico.16
Nas instalações da empresa Piquiatuba Taxi Aéreo, contratada
pela SESAI para fazer os deslocamentos das EMSIs ou remover pacien-
tes Zo’é quando necessário, fui examinada pelo médico dos Zo’é, com
o intuito de verificar se estava com condições de saúde adequadas para

14
O intercâmbio entre as EMSIs dos povos de recente contato – Zo’é e Awa Guajá – foi
promovido pela SESAI/MS com o objetivo de proporcionar à equipe dos Awa Guajá
conhecer a estratégia de atenção diferenciada prestada aos Zo’é, particularmente no
que diz respeito à assistência ao pré-natal e ao parto realizado em aldeia.
15
A Terra Indígena (TI) Zo’é, localizada no estado do Pará, compreende um território
de 669 mil hectares onde habita uma população de 305 pessoas, conforme dados
fornecidos pela Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena. Apesar da aproximação
aos grupos Zo’é ter sido iniciada nos anos 1970, apenas em 1987 os Zo’é foram
efetivamente contatados pelos missionários da Missão Novas Tribos no Brasil,
depois de estes terem se instalado na Base Esperança por eles construída para
atrair os ameríndios. Em 1989, a Fundação Nacional do Índio (Funai) constatou
que a situação de saúde dos Zo’é era precária, sendo que esse povo sofreu grandes
baixas populacionais em virtude de doenças tais como a gripe. Em 1991, a Funai
assumiu o controle da base/área, passando a desenvolver uma política especial de
proteção aos Zo’é.
16
A equipe de saúde que atende aos Zo’é compõe-se de duas técnicas de enfermagem,
duas enfermeiras, uma dentista e um médico. Essa equipe se divide em duas para
fazer a assistência em área e se organiza em um esquema de rodízio: os profissionais
que entram em área – geralmente uma enfermeira e uma técnica – permanecem
por 16 dias; findo esse período, são substituídos pelo outro grupo. A odontóloga
acompanha uma dessas equipes, e o médico entra periodicamente sempre que há
necessidade de sua presença. Após sair da área, a equipe de enfermagem ainda
trabalha durante quatro dias no polo, consolidando as informações em saúde
produzidas durante o período que atuaram junto aos Zo’é.
Contribuições de Jean Langdon às políticas públicas de medicina tradicional indígena 251

entrar em área. Esse constitui um procedimento padrão adotado


para proteger os Zo’é do contato com microrganismos responsáveis
pelos surtos de doenças infecciosas, tais como a gripe.
Durante o voo, o médico explicava o princípio da intervenção
mínima e a concepção de saúde que informava a atuação de sua equipe.
Para eles, a situação de saúde dos Zo’é está intimamente relacionada às
condições ambientais da TI, já que a floresta abastece esse povo com
os recursos necessários à sua sobrevivência. Por isso, consideram que a
área de amortecimento de 30 km que existe no entorno das fronteiras
da TI dos Zo’é e que a protege do avanço das frentes extrativistas
– garimpeiros, madeireiros, caçadores etc. – também constitui uma
medida de proteção sanitária à população, por manter os estrangeiros e
os patógenos por eles disseminados distantes do território. A equipe dos
Zo’é opera com uma noção ampliada de saúde.
Desde o momento em que chegamos, durante todos os dias
que por lá permanecemos, os Zo’é se direcionavam até a casa dos
profissionais de saúde para receber atendimento. Cotidianamente, na
primeira hora da manhã, logo após o café, a técnica de enfermagem e a
enfermeira iniciavam o atendimento dos Zo’é que estavam esperando-as
na frente da casa e nas instalações do posto de saúde. Enquanto uma se
dirigia ao posto de saúde, atendendo aos gripados, a outra aplicava as
pomadas nos Zo’é ao lado da casa. Esse procedimento foi adotado para
evitar que os pacientes gripados disseminassem o vírus entre aqueles
que não estavam doentes.
Nesse meio tempo, o médico também se dirigia ao posto de saúde
para fazer o atendimento das pessoas que já estavam sendo tratadas,
observando a resposta dos pacientes aos tratamentos preconizados
e atendendo aos Zo’é que chegavam lá relatando dores ou alguma
outra queixa.
É importante destacar que todos esses atendimentos são
realizados na língua indígena, o que facilita amplamente a comunicação
entre a equipe de saúde e a população Zo’é, constituindo esse um dos
fatores que configuram o caráter diferenciado do modelo de atenção à
saúde desenvolvido nesse território.
Após o atendimento matutino no posto, a equipe inicia as
visitas domiciliares nas malocas dos Zo’é. Conforme as profissionais da
enfermagem, há em torno de 15 malocas distribuídas por seu território:
algumas são mais próximas à base, outras são bem distantes. Algumas
pessoas precisam de cuidado e não podem se deslocar até o posto de
saúde situado na base, por isso a equipe percorre, em certas situações,
252 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

longos percursos em meio à floresta para chegar até as malocas


onde residem os seus pacientes. Esse é o caso de uma mulher de
aproximadamente 36 anos acometida por uma miopatia autoimune
que compromete o movimento de suas pernas. Para realizar a visita
domiciliar, a equipe caminha, periodicamente, uma distância de 7,5 km
até a casa dela.
A partir da observação da rotina de atenção da EMSI e dos diálo-
gos com os profissionais de saúde, gostaria de tecer alguns comentários
sobre a especificidade da atenção diferenciada prestada às mulheres Zo’é.
As mulheres Zo’é sempre são atendidas na presença de seus maridos. Do
contrário, eles não permitem que elas – ou tampouco que seus filhos –
sejam submetidas ao atendimento de saúde. Um dos maridos sempre
acompanha a esposa quando esse cuidado é demandado.17
No que se refere ao acompanhamento da gestação, a equipe de
enfermagem adequou os procedimentos do pré-natal às particularidades
das mulheres indígenas. A enfermeira conta que os Zo’é utilizam o coito
interrompido e outras práticas como estratégia de controle da natalidade.
Como as mulheres mantêm em segredo a sua gestação durante os três
primeiros meses, os casos de gravidez só são registrados a partir do
segundo trimestre, quando as mulheres decidem informar a equipe.
Nas consultas de pré-natal, a enfermeira evita realizar alguns
procedimentos para não correr o risco de ser acusada de provocar um
aborto. As medidas adotadas incluem não tocar a barriga da gestante
nem prescrever certos suplementos vitamínicos durante a gestação. As
consultas de pré-natal se dão por meio de conversas entre as enfermeiras
e as mulheres Zo’é. Para fazerem essas adaptações aos procedimentos
protocolares de atenção ao pré-natal, no entanto, a equipe de enfermagem
conta com o respaldo do médico da equipe e com a anuência do DSEI.
Nesse contexto, a equipe de saúde indígena exerce sua agência para
adequar os protocolos de atenção preconizados pelo gestor da SESAI/
MS no âmbito nacional, tendo em vista prestar uma atenção diferenciada
aos Zo’é. Pelos serviços ofertados a esse povo, os profissionais da equipe
amam e são amados pelos indígenas.

17
Os Zo’é são polígamos: os homens possuem duas ou três esposas; e as mulheres, dois
ou três maridos.
Contribuições de Jean Langdon às políticas públicas de medicina tradicional indígena 253

Considerações finais
As reflexões e as abordagens teóricas adotadas e desenvolvidas
por Jean Langdon no decorrer das últimas décadas lançam luz sobre
aspectos fundamentais do processo saúde-doença-atenção vivenciado
pelas sociedades indígenas no Brasil que precisam ser considerados pelas
políticas públicas de saúde indígena. No que se refere ao desenvolvimento
das duas políticas públicas de medicina tradicional indígena elaboradas
até o momento, as diversas contribuições de Langdon se devem tanto
à análise crítica e reflexiva que ela realiza sobre a atuação do Estado
como pelo arcabouço teórico-conceitual que mobiliza no esforço de
direcionar o olhar para determinados aspectos das dinâmicas no campo
da saúde indígena.
A advertência de Langdon quanto aos riscos de uma política de
medicina tradicional indígena instrumentalizar os sistemas sociomé-
dicos indígenas, subordinando-os à racionalidade biomédica hege-
mônica – ou mesmo à operação com uma visão estereotipada sobre os
saberes, as práticas e os especialistas indígenas –, constitui uma premissa
ética a ser observada pelos formuladores e pelos executores das políticas
de saúde indígena.
Jean Langdon emprega o conceito de autoatenção e orienta o olhar
dos agentes das políticas públicas para o que os sujeitos indígenas fazem
na prática a fim de promover, proteger e recuperar a sua saúde, bem como
para o exercício de sua agência criativa quando combinam recursos
provenientes dos distintos modelos de atenção que estão disponíveis em
uma zona de contato intermédica. Assim, ela desloca o foco da arena
especializada para a arena familiar dos sistemas sociomédicos indígenas.
A articulação com as medicinas indígenas, dispositivo epistemológico
fundamental para a efetivação do direito dos povos originários de terem
acesso a uma atenção diferenciada à sua saúde, agora não se dá apenas a
partir de um diálogo com os especialistas, mas sim envolve os sujeitos e
suas famílias, que decidem sobre quais recursos utilizar para cuidar de
sua saúde.
Por outro lado, a crítica de Langdon aponta para a falta de definição
clara sobre a noção de atenção diferenciada no âmbito da PNASPI e
denuncia o fato de a atenção diferenciada não ser operacionalizada
nos contextos da assistência à saúde. Contudo, tende a desconhecer e
a contribuir para manter na invisibilidade uma série de experiências
interessantes que estão ocorrendo nos recônditos a que a saúde indígena
atende neste Brasil.
254 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Tais experiências nos falam de uma outra agência – da agência


exercida pelos próprios profissionais de saúde, de como eles manejam
os protocolos clínicos e negociam com as comunidades indígenas
diferentes maneiras de implementar as condutas de atenção à saúde
no contexto das aldeias indígenas. Nesse processo, alguns profissionais
criam formas de fazer saúde e de cuidar das comunidades. Promover a
atenção diferenciada nas aldeias indígenas significa agir criativamente
nas margens que emergem do encontro, da interação entre os distintos
modelos de atenção à saúde. Não é raro tais profissionais entrarem
em conflitos por saberem que muitas condutas preconizadas pelos
programas de atenção à saúde elaborados no nível central da SESAI não
se aplicam ou não são eficazes nos contextos comunitários onde atuam.
A forma como a enfermeira dos Munduruku conduziu o diálogo
com os AIS – construindo uma forma de lidar com o impasse colocado
pela sua gravidez, que a impossibilitava de atender pessoas picadas por
animais peçonhentos –, ou mesmo as estratégias adotadas pela equipe
que atende aos Zo’é, demonstra que a atenção diferenciada ocorre e
é possibilitada pela maior ou menor competência dialógica e pelo
vínculo que os profissionais de saúde estabelecem com as comunidades
indígenas a que atendem. A atenção diferenciada à saúde não pode ser
definida a partir de protocolos previamente estabelecidos. Ela precisa ser
construída localmente e caso a caso, junto às comunidades indígenas.
Assim, deveríamos falar da necessidade de desenvolvermos múltiplos
modelos de atenção diferenciada.
Apesar de a análise antropológica tecer uma crítica à imprecisão
com a qual opera a PNASPI acerca do princípio da atenção diferenciada,
tal como aos seus efeitos no que tange à qualidade dos serviços de saúde
prestados aos povos indígenas, poderíamos nos perguntar: como definir
um conceito de atenção diferenciada que dê conta da diversidade étnica
e cultural e de situações sanitárias que compõem o universo dos povos
indígenas? Será que a atenção diferenciada prestada para as aldeias
Kaingang em Santa Catarina seria a mesma para os Guarani-Mbyá?
Será que a atenção diferenciada prestada aos Xukuru-Kariri em Alagoas
seria a mesma para os Matis, povo de recente contato que reside no Vale
do Javari, Amazonas? Evidentemente que não.
Nesse caso, estamos diante do risco de, ao definir previamente
os termos da atenção diferenciada, ou mesmo as linhas da articulação
entre os serviços de saúde e as medicinas indígenas, contribuir para
instituir protocolos homogeneizadores e, portanto, colonizadores de
atuação junto aos povos indígenas. A atenção diferenciada constitui um
Contribuições de Jean Langdon às políticas públicas de medicina tradicional indígena 255

fazer criativo e precisa ser construída em cada contexto específico da


assistência à saúde.
Temos de compreender que a articulação que os indígenas
fazem dos diferentes recursos provenientes de distintos modelos de
atenção à saúde disponíveis – por meio das práticas de autoatenção,
criando assim “medicinas híbridas”, intermédicas –, se precisa ser
considerada pelas políticas, não esgota a obrigação destas de efetivar
os direitos diferenciados dos povos indígenas. Isso garante o princípio
epistemológico da articulação entre os saberes indígenas e o sistema
oficial de saúde desde o planejamento, a execução e a avaliação de suas
ações, percebendo-o como estruturante de um modelo de atenção
diferenciado à saúde indígena.
De qualquer forma, não se fará atenção diferenciada se a gestão
em saúde indígena não for diferenciada, se a vigilância epidemioló-
gica em saúde indígena não for diferenciada, se o planejamento em
saúde indígena não for diferenciado, se o financiamento em saúde
indígena não for diferenciado. Centrar a crítica da dificuldade de
implementação da atenção diferenciada sobre a atuação dos profissionais
de saúde é perder de vista o contexto sistêmico e institucional do qual
esses profissionais fazem parte. Da mesma maneira, é desconsiderar
as dimensões biopolíticas do controle de populações realizado pela
manipulação das informações estatísticas-epidemiológicas; é perder de
vista a dinâmica política e partidária que determina a continuidade e a
descontinuidade das políticas públicas em saúde indígena; é não levar
em conta o caráter disciplinar e hierárquico do conhecimento técnico-
científico, que faz com que diferentes profissionais formados pela
mesma universidade não dialoguem e não criem, desde a graduação,
condições para o desenvolvimento das habilidades necessárias a uma
atenção diferenciada aos povos indígenas.
A antropologia da saúde indígena certamente tem muito a
colaborar para efetivar o princípio da atenção diferenciada à saúde dos
povos indígenas e para construir estratégias factíveis de articulação entre
saberes em saúde indígena. Entendemos que o processo de produção
de conhecimentos deve estar diretamente associado à formação de
pessoas para atuar em tal campo. Nesse caso, talvez uma de suas mais
importantes tarefas seja contribuir para a formação dos próprios
profissionais e gestores da saúde, realizada pelas mesmas universidades
onde se situam os departamentos e programas de pós-graduação aos
quais os antropólogos estão vinculados.
256 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Para que a colaboração antropológica realmente ocorra, se faz


necessário que os antropólogos se impliquem nos processos inter-
disciplinares e interculturais de produção de saúde: para além de uma
antropologia da práxis, é preciso antropólogos nas práticas. Nesse
sentido, eles também devem estar preparados para atuar no campo da
saúde indígena e contribuir para o desenvolvimento de estratégias de
articulação de saberes. Mas esse é outro ponto, que deixaremos para
aprofundar no decorrer do profícuo diálogo proposto por Jean Langdon
ao campo das políticas públicas da medicina tradicional indígena.

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Etnografia e práticas tradicionais
de cura entre os Pankararu
e os Hupd’äh: xamanismo,
corporeidade e saúde
reprodutiva

Renato Athias

Preâmbulo
Este texto discute, em grandes linhas e transversalmente, a
etnografia como prática de observação antropológica de dois povos
indígenas, com os quais tenho produzido academicamente como
pesquisador, nesses últimos anos, no campo que poderemos chamar
de antropologia da saúde indígena: entre os Pankararu do sertão de
Pernambuco e entre os Hupd’äh do noroeste amazônico. Vou tratar
aqui de questões que passaram a ser discutidas juntamente com a colega
e amiga Jean Langdon em diversas situações entre esses dois grupos
indígenas. Posso dizer que foi um importante diálogo profissional, com
uma perspectiva etnográfica, sobre as práticas de cura entre esses povos.
Jean Langdon e eu tivemos a oportunidade de discutir alguns elementos
da etnografia desses dois povos, buscando analisar os aspectos de suas
práticas de cuidado com o corpo.
A minha temática de interesse antropológico durante este período
– em que estou diretamente trabalhando no sertão de Pernambuco,
bem como no noroeste amazônico – são as práticas xamânicas dos
Pankararu e dos Hupd’äh quanto ao que costumamos chamar de saúde
reprodutiva, com atividades de pesquisa e projetos de intervenção
diretamente vinculados com esses povos. O mais interessante é que eu
tive oportunidade de visitar essas duas áreas indígenas com a Jean e
passar com ela momentos importantes em que juntamente analisamos
essas etnografias locais.
260 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Em meados de 1999, quase no final do milênio, estivemos


juntos em várias aldeias pankararu do sertão do submédio rio São
Francisco, nos municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá. Naquele
ano, eu estava trabalhando com os agentes de saúde e os técnicos de
enfermagem, que na ocasião se agrupavam na chamada Associação
dos Profissionais Indígenas de Saúde Pankararu (APROISP). Em 2003,
novamente estivemos juntos (acompanhados também pelo saudoso
Dr. Roberto Baruzzi), dessa vez na região do Alto Rio Negro, em uma
viagem – até complicada, do ponto de vista da logística – em que
visitamos algumas aldeias tukano e uma aldeia hupd’äh na margem do
rio Tiquié, entre elas a São José II e a Barreira. Nessa viagem, vivemos
a experiência da celebração de uma festa com a bebida chamada caxiri,
bastante concorrida na aldeia de São José II, e pudemos discutir uma
série de questões sobre a relação desses povos com festas e ritualidades,
além do debate sobre os serviços de saúde e as práticas tradicionais
de cura, grande parte já descrita em publicações anteriores (ATHIAS,
1998, 2007a).
Esses dois momentos em que participamos dessas atividades
foram importantes para que eu pudesse compreender muito mais sobre
a prática antropológica da observação participante e a relação direta com
esses dois povos indígenas que são sujeitos deste texto. Esteve presente
a preocupação em focar, em buscar evidências com o que chamarei
aqui de detalhes, procurar registros da atividade de antropólogos, dentro
de uma situação etnográfica no campo da saúde indígena – também
explorado por Roberto DaMatta (1978) e Antonio Arantes (1992)
em anos anteriores, autores ainda pertinentes no campo da pesquisa
antropológica e, sobretudo, quando se trata das questões relacionadas
aos saberes tradicionais.
Quando convidei Jean Langdon para visitar o sertão pernam-
bucano e conhecer de perto os Pankararu, eu tinha uma agenda que
me associava ao registro etnográfico, relacionada com as práticas
tradicionais de cura no campo da saúde reprodutiva, pois estava
coordenando um projeto nessa região entre os Pankararu. Nos anos
posteriores a essa visita, alguns resultados dessa pesquisa foram
então publicados em coletânea, e Jean Langdon havia participado dos
debates, em evento que gerou o texto para essa referida publicação
(ATHIAS, 2004a).
É importante assinalar que, em 1996, Jean publicou uma coletânea
de textos sobre práticas tradicionais de cura que foi extremamente
importante, eu diria, para todos nós desse campo de saber, intitulada
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 261

Xamanismo no Brasil: novas perspectivas, cuja introdução direcionava


para os estudos das práticas tradicionais de cura entre os povos indígenas.
Evidentemente, eu já havia lido o livro, e através de situações
etnográficas dessa região poderíamos discutir as práticas xamânicas
desses povos especificamente. Inclusive, havia usado a coletânea na
elaboração dos objetivos do projeto realizado entre os Pankararu,
juntamente com o artigo de Jean sobre itinerários terapêuticos
(LANGDON, 1994), com análises ainda válidas para o campo da saúde
indígena e essenciais naquela ocasião para elaborar tal projeto, que obteve
financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). Portanto, era meu interesse acadêmico buscar as
etnografias e, assim, poder entender as práticas tradicionais de cura,
em seus contextos sociais e culturais, gerando, sobretudo, subsídios
para as questões relacionadas à saúde reprodutiva e à organização dos
serviços de saúde nas diversas áreas indígenas – serviços que fossem
culturalmente adequados e respeitassem os sistemas de cuidados dos
povos indígenas.
Nessa ocasião da visita ao sertão pernambucano, ainda não
haviam sido implementados os Distritos Sanitários Especiais Indígenas
(DSEIs). A noção de território distrital estava presente entre aqueles
colegas, entre os quais a Jean Langdon, que haviam participado em
1993 da “II Conferência Nacional de Saúde para os Povos Indígenas
(CNSPI)”. Trabalhávamos nesse campo ainda com os debates frescos
dessa conferência, em que a articulação dos serviços de saúde e das
práticas tradicionais deveria ser de fato uma meta a alcançar.
Ainda durante esse período, os serviços de saúde entre os povos
indígenas dividiam-se entre a Fundação Nacional do Índio (Funai)
e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Nós, antropólogos, e os
profissionais de saúde estávamos envolvidos nessa ocasião em buscar
uma solução, no âmbito da gestão, para acabar com essa dicotomia de
ações no interior da organização dos serviços de saúde, visto que não
fazia sentido as ações de saúde para áreas indígenas serem divididas
ou separadas em dois ministérios – um responsável pelos aspectos
preventivos, e o outro, pelos aspectos curativos. Os textos de Jean
Langdon e o referido livro vêm ajudar a proporcionar uma saída para essa
situação no campo da gestão dos serviços de saúde, nas diversas áreas
indígenas do Brasil, e, sobretudo, dar arcabouço teórico para as práticas
tradicionais de cura. Isso era importante naquele momento histórico
que estávamos vivendo, tanto os povos do Brasil como as populações
indígenas de outros países da América do Sul, principalmente.
262 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Talvez seja necessário dizer que o meu envolvimento com as


questões de saúde em áreas indígenas remonta ao ano de 1984, quando,
pela primeira vez em toda a história recente do povo Hupd’äh, durante
meu trabalho de pesquisa e de coleta de dados para minha tese de
doutorado, conseguimos, com o apoio de uma médica cedida pela
Funai, percorrer 17 das 33 aldeias hupd’äh da região interfluvial dos
rios Papuri e Tiquié, realizando um primeiro levantamento da situação
de saúde entre os Hupd’äh. Eu conhecia o contexto político deles, e a
médica apontava a precária situação de saúde desses índios. No relatório
produzido após esse levantamento (ATHIAS; SELAU; VERDUM,
1984), já se denunciava uma circunstância de saúde bastante crítica,
que merecia atenção imediata. Era tão grave, do ponto de vista de
sobrevivência física desse povo, que se pensou em elaborar um projeto
específico para atuar com a população indígena da bacia hidrográfica
dos rios Uaupés e Ayari, cujas etnografias estão apresentadas em
trabalhos anteriores (ATHIAS, 1995).
Em 1994, através da organização não governamental (ONG)
Associação Saúde Sem Limites (SSL), foi elaborado um projeto, com
o apoio da cooperação internacional britânica Health Unlimited,
Christian Aid, juntamente com a União Europeia, para atuar na região.
Esse projeto recebeu os recursos previstos, foi implantado, e, com a
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), iniciou-
se um processo bastante participativo de discussão sobre um modelo de
atenção à saúde para a região do rio Negro, com a presença de vários
profissionais de saúde que trabalharam ativamente nessa região, cujo
relatório sobre o diagnóstico situacional evidencia o estado geral de
saúde das populações indígenas da localidade (MACHADO et al., 1999).
Os resultados desse projeto forneceram a base para a discussão
e a elaboração de um plano de implantação de serviços de saúde
já dentro do modelo de Distritos Sanitários Indígenas, tal como
formulado posteriormente pela Lei no 9.836/1999, conhecida como Lei
Arouca (BRASIL, 1999). Acredito que as informações (qualitativas e
quantitativas) obtidas através desse projeto possibilitaram montar em
muito pouco tempo a rede e a estrutura para a implantação do que se
tem hoje no DSEI Rio Negro (DSEI-RN).
O modelo organizacional dos DSEI está amplamente descrito em
um texto produzido para a avaliação do Subsistema de Atenção à Saúde
Indígena (SasiSUS) em 2008 (COELHO; ATHIAS; RECH, 2009). Talvez
seja possível abordar essas questões em outro texto, juntamente com o
papel dos antropólogos no processo de recrutamento, seleção e formação
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 263

de recursos humanos para atuar no DSEI-RN, em áreas indígenas, o


que funcionou muito bem no conjunto de atividades desse distrito até
meados de 2011. Inclusive, tive a oportunidade de montar dois cursos de
especialização em antropologia da saúde para os profissionais de nível
superior que atuavam no DSEI-RN. Referencio aqui essas informações
para enfatizar que, durante a última década do século passado, o
campo disciplinar denominado hoje de “saúde indígena” estava sendo
implantado e teve um enorme crescimento apoiando-se nas atividades
de implementação dos modelos de DSEI. Todas essas questões foram
fundamentais e amplamente discutidas desde a criação do Sistema
Único de Saúde (SUS), bem como a noção de territórios distritais,
essencial para entender os DSEIs (MENDES, 1999).

Práticas tradicionais de cura entre os povos


indígenas
Evidentemente, não podemos deixar de mencionar os autores
que são indispensáveis para entender xamanismo entre as populações
indígenas no Brasil, os quais Jean Langdon nos tem apresentado em
suas obras e com os quais temos nos envolvido desde então. Entre eles,
gostaria de citar pelo menos três nomes que certamente constituem o
alicerce desse processo de discussão e debate sobre o xamanismo na
obra de Jean Langdon, o que ela própria chama de “para uma abordagem
adequada do xamanismo”. São eles Alfred Métraux (1941), Mircea Eliade
(1964) e Michael Taussig (1987), os principais com que ela dialoga
teoricamente, mas ainda incluindo Tylor (1871), Frazer (2009 [1890]) e
Durkheim (2003 [1912]).
Jean assina uma maravilhosa introdução de sua coletânea sobre
o xamanismo no Brasil (LANGDON, 1996), citada acima, dando assim
as bases para eu agrupar essas etnografias e discutir elementos centrais
nas práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh, com
os quais tenho mantido contato durante a minha trajetória acadêmica,
muito inspirado na colega e amiga Esther Jean Langdon, entre outros
colegas que foram importantes na minha formação de etnólogo.
Não se trata aqui de fazer uma história dos serviços de saúde no
contexto dos povos indígenas, e muito menos de olhar através do método
comparativo para essas etnografias, mas de assinalar os momentos
paradigmáticos em que a vasta produção acadêmica de Jean Langdon
foi importante nesse processo e, portanto, me ajudou a perceber certas
264 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

situações etnográficas que foram imprescindíveis para um entendimento


sobre as práticas tradicionais de cura como lugar-comum desses povos
indígenas e, sobretudo, sobre a relação com o corpo reprodutivo.
É muito importante salientar a decisão política de implantar o
modelo assistencial já discutido e referendado pela II CNSPI (1993),
que foi tomada pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) ao final
de 1998, obedecendo, em linhas gerais, a proposta da conferência
no que se refere à participação social na elaboração das políticas de
saúde. No entanto, apresenta algumas distorções quanto ao aspecto
de autonomia orçamentária e financeira dos DSEIs. É necessário
assinalar que o modelo administrativo adotado pela Funasa continha
duas vertentes, sendo que na primeira as coordenações regionais da
FUNASA atuavam como ordenadoras de despesas e, por conseguinte,
controlavam os recursos financeiros destinados aos distritos instalados
sob a responsabilidade dessas coordenações (COELHO; ATHIAS;
RECH, 2009). Na segunda modalidade administrativa, o nível central
da Funasa celebrava convênios com organizações indígenas, ONGs,
secretarias de saúde e universidades para a execução das ações de saúde
nas áreas indígenas. Um debate acirrado sobre essa questão encontra-
se na tese de doutoramento de István Varga (2002). Assim, para que
haja de fato uma organização dos serviços de saúde que possibilite o
atendimento das demandas e promova uma postura mais próxima às
propostas referendadas na II Conferência, foi necessária a discussão do
modelo administrativo preconizado nesse momento pela Funasa.
Os distritos foram implementados em todo o Brasil contemplando
as características peculiares de cada área indígena e concebidos dentro
de um processo de discussão que envolve vários atores sociais, tais
como: as organizações indígenas, os profissionais de saúde, as ONGs, as
universidades e os órgãos federais (como a Funasa e a Funai). De um lado,
essa pluralidade é importante e crucial, pois reflete as características de
cada área. No entanto, dadas as diversas formas de contato das populações
indígenas com a sociedade envolvente e, em consequência, os diferentes
estágios de organização política diante dessa mesma sociedade, o
processo de distritalização nas áreas indígenas tende a desenvolver-se
de maneira variada de uma região para outra. Em determinadas regiões,
como a Amazônia, onde a organização política das populações indíge-
nas tem histórico mais longo, a possibilidade de participação no controle
social das ações de saúde torna-se viável. Em outras, como no Nordeste,
no Centro-Oeste e no Sul, o exercício do controle social em saúde deve
ser estimulado por instituições responsáveis pela execução dos serviços
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 265

de saúde, pela implantação e pelo funcionamento regular dos Conselhos


Distritais de Saúde Indígena (CONDISI), com a participação efetiva dos
índios. Apesar dessa diversificação e das dificuldades pertinentes a todo
o processo de democratização e de inclusão social, existe um vislumbre
de serem gerados modelos sanitários que atendam às necessidades
básicas e estratégicas das comunidades indígenas no Brasil, desde que
seja mantida a linha política de distritalização da saúde indígena.
Grande parte dos antropólogos que estão trabalhando nas áreas
indígenas teve ou tem ligações com a questão da saúde indígena. Esta
é tema central em muitas regiões em virtude da situação precária, em
termos de acesso aos serviços de saúde, a que a maioria dos povos
indígenas do Brasil está submetida. Pode-se notar que, nos últimos 30
anos, vários projetos de saúde foram iniciados nas áreas indígenas – em
especial por ONGs – com o apoio de recursos provindos da cooperação
internacional. Os resultados desses projetos (ATHIAS; MACHADO,
2001) constituem-se em acervo significativo de experiências em saúde
indígena, apresentados e muito bem-organizados por Dominique
Buchillet (1991) em uma publicação importante, em que se pode
visualizar bem de perto a diversidade temática de tais projetos no
campo da saúde indígena. Em anos posteriores, através de um projeto
governamental, o VIGISUS II, a colega Luciane Ouriques Ferreira
(FERREIRA; OSÓRIO, 2007), com a presença também de Jean Langdon
(2007) como consultora, vai organizar um importante evento para
discutir essas práticas tradicionais baseadas em diferentes experiências
de relações entre a prática tradicional de cura e os serviços de saúde
(ATHIAS, 2007b). Em outro trabalho, Luciane Ouriques Ferreira (2010)
problematiza ainda mais essas práticas tradicionais e os serviços de
saúde – com uma abordagem muito interessante, em que se percebe
bem a orientação da professora Jean Langdon em suas partes analíti-
cas – nesse processo ao qual a Política Nacional de Atenção à Saúde dos
Povos Indígenas (PNASPI) se refere pelo termo “articulação”.
Neste texto, apenas vamos assinalar como importante e mostrar
a diversidade existente nas mais variadas áreas indígenas, que inclusive
receberam apoio da cooperação internacional (ATHIAS; MACHADO,
2001), mas não vamos discutir essas experiências, e sim referi-las no
contexto desse processo das experiências etnográficas de meu percurso
acadêmico, relacionado com os dois povos indígenas aos quais me refiro
aqui e aos diálogos com Jean Langdon. Aliás, vários desses projetos já
foram debatidos nas obras de Jean Langdon (LANGDON, 1996, 2015;
LANGDON; GARNELO, 2004) e de Dominique Buchillet (1991, 2001).
266 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Isso implica ressaltar que há de fato um saber antropológico construído


a partir de práticas sanitárias em áreas indígenas com mais de 40 anos
de acompanhamento, e acredito que grande parte desse saber está
referenciada na produção acadêmica de Jean Langdon.
As experiências originadas pelo Serviço de Proteção aos Índios
(SPI) e pela Funai também merecem ser sistematizadas, pois por décadas
a agência oficial mantém projetos de saúde em áreas indígenas. Esse
saber deve ser classificado nas diversas abordagens em saúde indígena,
a fim de enfatizar as experiências que deram resultados significativos e
divulgá-las tanto aos prestadores de serviços quanto aos formuladores
de políticas de saúde, no sentido de colaborar com o trabalho de ambas
as categorias, assim como de contribuir para a melhoria das condições
de vida e de saúde dos povos indígenas.
Deve-se destacar que o SUS oferece, como concepção geral, a
possibilidade de criação de sistemas de saúde baseados na realidade
local, o que favoreceria a diversidade de modelos. No âmbito da saúde
indígena, o que se observava como inconsistente era a divisão dos
serviços de saúde entre a Funai e a Funasa em parte da década de 1990:
a primeira, com atividades eminentemente curativas, e a segunda, com
atividades de prevenção. Em se tratando de modelos de saúde e sob a
perspectiva de um comando único de ações, essa dicotomia mostrou-se
inviável e incoerente, criando relações paternalistas para determinadas
populações indígenas e gerando a impossibilidade de execução dos
serviços de saúde de maneira integral.

Os contextos etnográficos
Quanto às duas situações etnográficas em que pessoalmente
eu me situo, o contexto social e político no sertão de Pernambuco
não permitia a “presença indígena”. Esta deveria ser assimilada pelas
populações sertanejas, deixando as suas especificidades étnicas. O caso
dos Pankararu é muito interessante, pois Carlos Estevão de Oliveira
já havia alertado em 1938 para o contexto em que viviam na região
conhecida hoje como Brejo dos Padres e para as relações interétnicas do
agrupamento de indígenas em 1700, nas margens do rio São Francisco,
que será a formação dos Pankararu de hoje.

Dizem os atuais habitantes daquele vale que foram os “Pancararús”,


do antigo “Curral-dos-Bois”, hoje “Santo Antônio da Glória”, na
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 267

Baía, os primeiros indígenas que alí estabeleceram aldeamento.


Essa tradição me foi transmitida pelo Chefe da Aldeia, o velho
Serafim, e por outros caboclos. Em seguida, de acordo ainda
com a tradição alí corrente, dois Padres, vindos, tambem, do
lado da Baía, chegaram ao “Brejo”, e neste, construindo uma
pequena capela, ficaram habitando com os “Pancararús”. Como
a estes indígenas de “Curral-dos-Bois” reuniram-se povos de
outros lugares, não obtive informações seguras. O que sim-
plesmente me informaram foi que, depois daqueles índios
chegou ao “Brejo” gente da “Serra Negra”, “Rodelas”, “Serra-do-
Urubá”, “Águas Belas”, “Colégio” e “Brejo-do-Burgo”. (?) Todavia,
repito, penso que a reunião de povos pertencentes a grupos tão
diversos naquele vale, resultou na Missão que nele existiu em
épocas remotas.
Alem dos “Pancararús”, há, na aldeia, reminiscência de índios
chamados “Macarús”, “Geripancós”, e “Quaçás” ou “Ituaçás”. Estes
últimos vindos da “Serra-Negra”, segundo dizem. (OLIVEIRA,
1938, p. 159).

O trecho acima foi retirado do artigo que Carlos Estevão de


Oliveira escreveu em 1937, publicado em 1938 pelo Boletim do Museu
Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Talvez
seja um dos primeiros escritos etnográficos sobre os Pankararu enquan-
to um grupo indígena resistente às dominações colonizadoras do sertão
do submédio rio São Francisco. Mais tarde, Estevão Pinto vai escrever
sobre as máscaras pankararu. Carlos Estevão de Oliveira insiste, mais
de uma vez, em que os atuais Pankararu fazem parte, talvez, de uma
confederação de povos, provenientes de vários lugares dos arredores da
Serra Negra, que se agruparam nessa parte do rio São Francisco, nas
proximidades da Cachoeira de Itaparica, em meados do século XVIII.
É nessa condição de grupos confederados que a noção de terra indígena
unitária e contínua será elaborada entre eles, sob os parâmetros do que
vão chamar de “árvore Pankararu”, com o seu “tronco” e suas “ramas”.
Através de documentos históricos, evidencia-se que esses índios
vão iniciar um aldeamento em 1700, de acordo com carta régia de 1703.
Mais tarde, tem-se notícias de que os padres Oratorianos organizaram
a missão católica nessa parte do rio desde 1752, com um número
significativo de índios provenientes de vários lugares, certamente
fugidos e expulsos de algum lugar porque as terras eram necessárias
para as fazendas de gado. A capela da missão terá o nome de Nossa
Senhora da Saúde. Outras notícias afirmam que escravos negros fugidos
268 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

de fazendas de gado receberam guarida nesse agrupamento indígena,


que foi denominado de Brejo dos Padres, mas não se sabe o tamanho
dessa área. A impressão que se tem é de que essa terra era muito grande,
pois ia até a margem do rio São Francisco. Durante todos esses anos, a
terra desses índios agrupados vem sendo reduzida, espoliada. Depois,
veio a criação da Freguesia de Tacaratu, que em 1875 será transformada
em Vila de Tacaratu. Os “praiás”, os “caboclos” do Brejo dos Padres,
que são as representações humanas dos “Encantados” neste mundo
terreno, de acordo com a tradição dos Pankararu, abrem oficialmente as
comemorações da festa de Nossa Senhora da Saúde, padroeira da cidade
de Tacaratu (ATHIAS; SARAPO, 2017).
Cem anos após a criação do agrupamento do Brejo dos Padres, em
1877, Dom Pedro II, em viagem pelo rio São Francisco, visita a cidade de
Petrolândia – que, também um século mais tarde, estará destinada a ficar
embaixo das águas que hoje formam o lago da Hidrelétrica de Itaparica,
implicando uma grande mobilidade de pessoas e transformações
fundiárias em toda essa região do submédio rio São Francisco.
Para nós, hoje seja talvez muito difícil imaginar a vida cotidiana
das pessoas nesses agrupamentos, durante um período no qual os índios
provenientes de muitos lugares vão precisar se refugiar, se esconder,
pois por decreto imperial (BEOZZO, 1875) deixaram de ser índios. Os
aldeamentos indígenas passaram por grandes mudanças e se tornaram
vilas politicamente organizadas. Foram muitos acontecimentos e
muitas situações que levaram os índios a aceitar simplesmente sua
nova condição para continuarem a sobreviver. Portanto, as estratégias
de sobrevivência física e cultural foram e estão sendo em grande parte
os objetivos de resistência desses índios até hoje, sempre incluídos nos
planejamentos de todas as lideranças.
A terra, nessa nova relação política, foi retirada dos índios. Os
senhores coronéis se apropriavam de sesmarias e utilizavam os índios
como agricultores; estes moravam de aluguel em suas próprias terras,
trabalhando na agricultura e pagando a algum coronel. Não eram mais
chamados pelos nomes indígenas, e as diversas línguas não puderam
ser desenvolvidas, porque foram proibidos de falá-las. Os indígenas
se tornaram, então, o que comumente se chama de “caboclo”. Essa é,
portanto, a identidade genérica que assumem forçadamente. Eles são os
“caboclos do Brejo dos Padres”.
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 269
da Hidrelétrica de Itaparica, implicando uma grande mobilidade de pessoas e
transformações fundiárias em toda essa região do submédio rio São Francisco.
Figura 2 – Retrato do pajé Serafim com duas cantadoras, fotografado por
Para nós, hoje seja talvez muito difícil imaginar a vida cotidiana das pessoas
Carlos Estevão em 1937

nessesFonte:
agrupamentos, durante
Acervo da Coleção um período
Etnográfica Carlos no qualdeosOliveira,
Estevão índiosMuseu
provenientes
do Estado de
de muitos
lugares vão precisar
Pernambuco. se refugiar, se esconder, pois por decreto imperial (BEOZZO, 1875)
deixaram de ser índios. Os aldeamentos indígenas passaram por grandes mudanças e se
tornaram vilas politicamente
Quando organizadas.
Carlos Estevão escreveu Foram
o texto muitos
acima,acontecimentos
a unidade étnica e muitas
situações que levaram os índios a aceitar simplesmente sua nova condição para
Pankararu estava se formando, eles ainda eram apresentados como
continuarem a sobreviver. Portanto, as estratégias de sobrevivência física e cultural foram
caboclos.
e estão sendo emAgrande
esse agrupamento de índios
parte os objetivos provenientes
de resistência dessesdeíndios
váriosaté
lugares,
hoje, sempre
as lideranças mais antigas – como
incluídos nos planejamentos de todas as lideranças. o seu João Tomás, que eu tive a
oportunidade
A terra, nessade conhecer
nova relação quando
política, ele
foi ainda
retiradamorava na aldeia
dos índios. Macacocoronéis
Os senhores
– vão denominar
se apropriavam de sesmariasde e“Pancarú
utilizavamGeripacó
os índios Cacalancó Umã Canabrava
como agricultores; estes moravam de
aluguel em suas
Tatuxi próprias
de Fulô”. Foiterras, trabalhando
um grande na agricultura
processo de negociaçãoe pagando a algum ocoronel.
para compor
Não eram mais chamados pelos nomes indígenas, e as diversas
que seriam os Pankararu atuais. Tais lideranças puderam participar línguas nãodessa
puderam ser
desenvolvidas, porque foram proibidos de falá-las. Os indígenas
longa caminhada de negociações internas, cujas narrativas podemos se tornaram, então, o que
comumente se chama de “caboclo”. Essa é, portanto, a identidade
ainda encontrar na tradição oral e nos versos dos rituais torés dos genérica que assumem
forçadamente. Eles são os “caboclos do Brejo dos Padres”.
Pankararu. Certamente, o famoso Serafim, “chefe dos caboclos” como
Figuraescreveu Carlos
2 – Retrato Estevão,
do pajé foicom
Serafim um daqueles importantes
duas cantadoras, personagens
fotografado queEstevão
por Carlos
incentivaram
em 1937 a criação da unidade Pankararu pela sua sobrevivência
Fonte:física e cultural
Acervo já relatada
da Coleção pela imprensa
Etnográfica desdede
Carlos Estevão 1938.
Oliveira, Museu do Estado de
Pernambuco.

Quando Carlos Estevão escreveu o texto acima, a unidade étnica Pankararu estava
se formando, eles ainda eram apresentados como caboclos. A esse agrupamento de índios
270 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Foi em 1999, exatamente nessas terras, que Jean Langdon e eu


estivemos discutindo as questões relativas às práticas tradicionais de
cura entre os Pankararu, em conversas com lideranças e detentores
de conhecimentos tradicionais. A seguir, vou fazer um relato resu-
mido dessas notas etnográficas, apontando para alguns aspectos
antropológicos que nos darão pistas para uma melhor compreensão
desses povos e de sua relação com as práticas tradicionais de cura.
Em nossa estadia entre os Pankararu, naquela ocasião, não
encontramos o pajé Serafim, mas sim outros que puderam nos brindar
com informações preciosas sobre essas práticas, e vale a pena assinalar
esses eventos etnográficos. Encontramos o seu João Tomás em uma
cadeira de rodas na aldeia Macaco, com seu corpo já bastante debilitado,
muito usado, fraco, mas com uma lucidez impressionante. Dona Creusa,
sua filha, nos levou até a casa e nos apresentou a ele. Ficamos horas
conversando, e ele, lembrando os tempos em que andava “levantando
as aldeias”. Ele falava das pessoas e dos coletivos que havia conhecido
durante esse tempo. Explicava para nós os conceitos e as redes de
parentesco que circulavam em todo o território pankararu, e a relação
deste com seu entorno.
Em seguida, visitamos outro mestre zelador de praiá, o seu João de
Páscoa. Na sala da casa dele, conversando e anotando, ficamos a escutar
todo o sistema de organização espacial que foi desenvolvido entre os
Pankararu, assim como as estratégias de ocupação especial. Realmente,
a partir do relato de seu João de Páscoa, pudemos entender o que Carlos
Estevão descrevia em 1938 sobre os Pankararu, como colocado acima.
O seu João de Páscoa decifra para nós as relações interétnicas e a
formação desse coletivo, que se tornará os Pankararu.
Depois, fomos visitar o seu João Binga, cacique Pankararu, em
sua casa, onde nos recebeu com aquela tranquilidade que era bem
específica dele. Eram tempos difíceis nesse ano: as lideranças estavam
sendo questionadas, pois havia um conflito bastante forte nessa ocasião
entre os diversos grupos. O seu João Binga, descrevendo a situação
de conflito, comprovava para mim aquelas observações etnográficas de
1937, de Carlos Estevão, sobre o Brejo dos Padres.
Nessa oportunidade, visitamos também a Carrapateira, uma
aldeia menor, mas outro zelador de praiá nos recebeu, o seu Zé
Honório. Conversamos tomando um café preparado pela esposa de
seu Zé Honório, dona Maria, que fazia perguntas-chave para Jean. Ela
estava muito interessada em saber mais sobre esse lugar que então,
diferentemente das outras aldeias pankararu, não dispunha de energia
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 271

elétrica, pois ainda se analisava a possibilidade de puxar os cabos de


energia para esse lado da Terra Indígena Pankararu. Seu Zé Honório
falava das principais festas e contava como ele ia até o Brejo para as
corridas de umbu, como ia andando a pé da Carrapateira para a saída
do Mestre Guia até o Terreiro da Serrinha. O seu Zé Honório me deu
o modelo de ocupação espacial de todo esse lado e apontou nas serras
bem em frente os lugares onde poderiam estar os Encantados. Jean e eu
passamos um bom tempo a discutir esse depoimento, e vou utilizá-lo em
outros textos publicados, quando menciono a questão da sexualidade e
da reprodução das redes de parentesco (ATHIAS, 2007c).
Os Hupd’äh, da família linguística Nadehup (EPPS, 2006),
vivem tradicionalmente no território entre os rios Papuri e Tiquié, que
deságuam na margem direita do Uaupés. Eles estão espalhados por mais
de 35 aldeias (grupos locais), onde vivem cerca de 1.500 indivíduos.
Existem outros grupos, também conhecidos como Maku, na bacia do
rio Negro. Todos eles, cada um com sua língua, vivem dentro da floresta,
ao longo dos riachos menores.
Os Yohupd’äh, por exemplo, residem por toda a extensão dos
riachos da margem direita do Tiquié (e dos rios Castanha, Samaúma,
Cunuri e Ira). São menos numerosos e dificilmente têm contato com
os Hupd’äh. Os Bará-Maku, ou Kákwa, vivem ao longo dos riachos da
margem esquerda do rio Papuri, em território colombiano. Também
na Colômbia estão os Nukak, dos rios Guaviare e Inírida. Os Dâw,
popularmente conhecidos como Kamã, situam-se no entorno de São
Gabriel da Cachoeira, embora seu território tradicional sejam os
riachos do rio Curicuriari (os Dâw estão reduzidos a 100 pessoas). Por
fim, os Nadëb, em contato permanente com os ribeirinhos, vivem do
extrativismo nos rios Jurubaxi, Téa e Enuexi, afluentes que se bifurcam
na margem direita do rio Negro. Devido à localização geográfica de suas
aldeias, os Tukano foram descritos como índios ribeirinhos, enquanto
os Hupd’äh são vistos como índios da floresta, ou simplesmente Maku.
A palavra “maku” é de origem arawak e significa “sem fala ou sem [nosso]
idioma” (ma = prefixo possessivo / aku = fala/idioma). Esse termo
foi usado inicialmente por índios do grupo Arawak; posteriormente, foi
empregado em toda a região com o significado de “atrasado, selvagem,
sujo etc”. Hoje, tem uma conotação pejorativa, às vezes até ofensiva, e foi
incorporado ao português regional.
Os povos indígenas da região do Alto Rio Negro estão em contato
com os colonizadores desde o século XVII, e existem histórias de que
inúmeras epidemias de sarampo, varíola e gripe ocorreram, dizimando
272 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

parte da população (BUCHILLET, 1995). Apesar das diferenças sig-


nificativas entre os vários sistemas médicos tradicionais dos Tukano,
Arawak e os Nadahup (Hupd’äh), há, no entanto, elementos comuns
a eles, especialmente dentro dos processos terapêuticos dos xamãs.
Os xamãs operam entre diferentes clãs e são vistos e percebidos pelos
diversos grupos indígenas como agentes intermediários capazes de
“ver” corpos, fazer o diagnóstico e depois curar, em diálogo com os
“espíritos”. Outro elemento comum – entre Hupd’äh, Tukano e Arawak –
é o uso da palavra como um agente importante na cura terapêutica.
Nesse processo de cultura, assimilação e encontro com novas doenças,
os povos indígenas criaram conhecimentos sobre essas enfermidades,
inserindo-as em suas práticas tradicionais de cura e em sua linguagem
associada. Na verdade, são unânimes em afirmar que, embora não
saibam a causa dessas doenças, eles têm uma explicação mítica para o seu
aparecimento. A vasta experiência que os povos indígenas adquiriram
quanto às doenças infecciosas, introduzidas através do contato, leva-os
a identificar o rio (meio de comunicação interétnica) como veículo de
transmissão dessas infecções: a “doença vem pelo rio”, ou “a gripe vem
junto com as mercadorias do homem branco”, dizem os Hupd’äh.
Apesar de muitos anos de uma forte presença missionária,
a medicina tradicional indígena não foi destruída. Convive com a
biomedicina oficial, até certo ponto pacificamente, e talvez possamos
dizer que os dois sistemas médicos são complementares. Durante
minhas pesquisas de saúde, em 1996 e 2006, foram realizadas três
oficinas com trabalhadores indígenas da saúde – o Agente Indígena de
Saúde (AIS) – e líderes comunitários, sobre a compreensão das noções
de saúde e de doença prevalentes na região. Durante essas oficinas, os
próprios AIS enfatizaram a importância do sistema médico indígena e a
necessidade de os profissionais de saúde aprenderem mais e respeitarem
o tratamento xamânico.
Conforme destacado em trabalhos anteriores (ATHIAS, 1995,
1998, 2004b), as mudanças na organização econômica e social indígena
levaram à deterioração das condições sanitárias em quase todas as
aldeias. O novo modelo de habitação familiar nuclear introduzido pelos
Salesianos, que envolve pequenas casas de latão, por exemplo, teve
um efeito negativo. Além disso, as alternativas implantadas na região,
como os hospitais missionários, os postos médicos e os próprios AIS,
reforçam o sistema médico ocidental, mas não oferecem uma solução
sustentável para os problemas de saúde dessas populações. Há uma
demanda urgente por parte dos trabalhadores indígenas da saúde
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 273

Tukano e Arawak por melhorias na situação de saúde da região, bem


como pelo reconhecimento da medicina indígena. Entre os indígenas,
há demanda também por remédios “brancos”.
Este trabalho está inserido em um contexto em que a medicina
tradicional indígena sofre mudanças significativas a partir do contato,
e, portanto, o conhecimento é transformado e reformulado à medida
que novos elementos são introduzidos em uma esfera social em que
as relações são mais intensas. As questões aqui apresentadas reforçam
o fato de que todos os saberes relativos a corpo, saúde e doença são
construídos culturalmente, negociados e renegociados em um processo
dinâmico associado com o tempo (mitologia) e o lugar (território e
contexto ecológico) em termos sociais. A intenção aqui é argumentar
que a classificação usual de “doenças dos homens brancos” e “doenças
dos índios” não é um agrupamento direto para as populações indígenas,
tampouco realmente importa, da maneira que os Hupd’äh veem suas
práticas terapêuticas. As visões dessas populações fazem parte de uma
coleção mais ampla de interpretações e representações no contexto de
sua cosmogonia. O que se espera é que as instituições responsáveis ​​pela
saúde em áreas indígenas possam oferecer um serviço que incorpore tal
conhecimento e, portanto, seja acessível a essa população.
Uma das características dos Hupd’äh é a relação histórica e
contingentemente complexa que mantêm com os índios da família
linguística Tukano oriental (principalmente Desana, Tuyuka, Piratapuia
e Tariano) que habitam os rios Uaupés, Tiquié e Papuri. Essa relação
interétnica faz parte da tradição dos povos dessa região e merece ser
preservada como forma de garantir o equilíbrio cultural dos povos
do Alto Rio Negro. Nesse sentido, tem sido descrita como simbiótica,
assimétrica e hierárquica, ou mesmo como uma ligação patrono-cliente
(ATHIAS, 1995), e se justifica por meio dos mitos que contam a origem
dos grupos indígenas da região. Os Hupd’äh, de acordo com as versões
tukano dos mitos da “criação”, foram os últimos a virem a este mundo.
Consequentemente, são considerados inferiores, os mais baixos em
uma escala hierárquica que regula as relações interétnicas, e, portanto,
estão sujeitos às chamadas tarefas inferiores, que apenas os clãs mais
baixos da hierarquia desempenham. Em outras versões, os Hupd’äh
foram os primeiros a sair da P’amiri-Masa (canoa ancestral) para ajudar
os Tukano a descer até a margem. Nas versões hupd’äh, eles não vieram
na “canoa anaconda”, mas saíram de um buraco da pedra localizada nas
corredeiras, para alguns em Ipanoré. Não é minha intenção reduzir a
peculiaridade e a complexidade dessa relação à interpretação do mito.
274 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Existem outros elementos que corroboram essa visão tukano em relação


aos Hupd’äh. Os clãs/irmãos de grupos Tukano e Arawak também são
classificados hierarquicamente em uma escala de antiguidade. Os mais
baixos na hierarquia são igualmente considerados inferiores.
Figura 3 – Importante registro fotográfico, feito por Curt Nimuendajú em
1927, de dois Hupd’äh nos fundos da grande maloca do rio Japu

Fonte: Coleção Etnográfica Carlos Estevão de Oliveira, do acervo do Museu do Estado


Fonte: Coleção Etnográfica Carlos Estevão de Oliveira, do acervo do Museu do Estado
de Pernambuco (ATHIAS, 2015b).
de Pernambuco (ATHIAS, 2015b).
Acima, encontra-se uma fotografia produzida por Curt Nimuendajú, que em 1927,
quando estava
Acima, descendo o rio Uaupés,
encontra-se uma registra dois Hupd’äh
fotografia na porta de por
produzida uma grande
Curt
maloca, com as mulheres que ali moravam. A imagem mostra claramente a posição
Nimuendajú,
hierárquica que em
desse povo emrelação
1927,aosquando estava
seus vizinhos descendo
e às suas o rio Uaupés,
relações territoriais.
registra dois Hupd’äh na porta de uma grande maloca, com as mulheres
Alquimia e transformações
que ali moravam. corporais
A imagem mostra claramente a posição hierárquica
desse A
povo quanto aos seus vizinhos e às suas relações territoriais.
representação Hupd’äh de saúde e de doença é fundada na concepção de seu
mundo e de sua humanidade, o que explica sua própria presença neste mundo terreno.
Essa cosmologia é baseada na existência de vários mundos sobrepostos uns aos outros. O
Alquimia e transformações corporais
mundo terreno (s’áh) é onde nós (índios e não índios) vivemos com nosso corpo (sáp).
Situa-se entre duas extremidades de um plano contínuo: no lado oriental (mená) está o
wedó ip mòy (a casa do pai do sol e da lua), e no lado oeste (porá) fica a s’áh tút, onde
A representação
nascem todos os rios e é frio. Hupd’äh de saúde
Os outros mundos estão elocalizados
de doença é fundada
verticalmente na
abaixo
concepção
da terra e dasde seu(s’àk’móy
águas mundo ee de pèdsua
móyhumanidade, o que explica
– mundo dos ancestrais); acimasua própria
da terra, na
direção
presençado céu infinito
neste mundo(Kèg teh móy, wedo
terreno. Essam’éh móy, tút móy),
cosmologia é o mundonadeexistência
é baseada K’èg-Tẽh,
das estrelas, dos pássaros e dos abutres. Esses mundos são todos habitados por seres
mitológicos na forma de animais, frutas e energias. O mundo terreno está ligado ao céu
por um cipó (yúb tut).
O sáp do Hupd’äh e de todos os humanos está em oposição a outros seres “vivos”
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 275

de vários mundos sobrepostos uns aos outros. O mundo terreno (s’áh) é


onde nós (índios e não índios) vivemos com nosso corpo (sáp). Situa-se
entre duas extremidades de um plano contínuo: no lado oriental (mená)
está o wedó ip mòy (a casa do pai do sol e da lua), e no lado oeste (porá)
fica a s’áh tút, onde nascem todos os rios e é frio. Os outros mundos estão
localizados verticalmente abaixo da terra e das águas (s’àk’móy e pèd móy
– mundo dos ancestrais); acima da terra, na direção do céu infinito (Kèg
teh móy, wedo m’éh móy, tút móy), é o mundo de K’èg-Tẽh, das estrelas,
dos pássaros e dos abutres. Esses mundos são todos habitados por seres
mitológicos na forma de animais, frutas e energias. O mundo terreno
está ligado ao céu por um cipó (yúb tut).
O sáp do Hupd’äh e de todos os humanos está em oposição a
outros seres “vivos” que podem ser classificados como “uma substância”
(b’atìb), que não se manifesta por meio do corpo, mas em outras formas
materiais. Os Hupd’äh afirmam que dentro de seu próprio corpo há
um ponto, uma energia que podemos identificar analogamente como a
“alma” (hãwäg). Eles são unânimes em afirmar que se situa em um ponto
no peito, próximo ao coração. Na verdade, o coração, na anatomia dos
Hupd’äh, tem o mesmo nome (hãwäg). Quando eles nascem e recebem o
nome do clã, começam a ficar mais fortes, e assim se inicia o processo de
crescimento do hãwäg (ainda é pequeno e vai crescer ao mesmo tempo
que o corpo físico). Para dizer “estar doente”, o Hupd’äh usa a expressão
“hãwäg páy” (hãwäg ruim) ou Hup pë ‘ (Hup = dor), indicando em qual
parte do corpo há dor (pë ‘). Quando estão tristes, dizem “hãwäg hi hú”.
Assim, o estado de tristeza tem o mesmo significado que estar doente.
A coca (pu’uk), o tabaco e o cipó “kahpi” (Banisteriopsis sp.) – este
também conhecido como ayahuasca, cipó, yagé – estão associados
a tut, o cordão ou cipó que liga os mundos. Dizem que, ao utilizar
essas substâncias, a “pessoa pode perceber o hãwäg” (ATHIAS, 2015a,
p. 67). O xamã (o Bi’ín) usa essas plantas para sonhar e assim obter o
diagnóstico de um paciente. O xamã é o único que, por meio de um
transe ou sonho, pode perceber o hãwäg do outro (paciente). Embora
outros Hupd’äh nos informem que, quando estão usando pu’uk, também
podem perceber o hãwäg de outra pessoa, um diagnóstico só pode ser
oferecido por alguém que é iniciado ou por um xamã.
Além de sáp (corpo) e hãwäg (alma), os Hupd’äh também possuem
o termo “b’atìb”, que é muito utilizado e, apesar de sua semântica ser
de difícil tradução, pode ser entendido como “espírito”, “fantasma”
ou “sombra”, também se referindo aos vários espíritos da floresta. Os
Hupd’äh ainda usam essa expressão para nomear a escuridão, ou,
276 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

como eles dizem: na escuridão está o mundo do b’atìb, e é na escuridão


que o b’atìbd’äh pode ser visto. Esse ser geralmente está associado a
forças negativas ou malévolas. Na floresta, por exemplo, ao acampar,
é imprescindível comer seus mantimentos, pois se sobrar alguma coisa
aparecem os b’atìbd’äh para comer, dizem os Hupd’äh. Além disso, esse
termo pode ser confundido com “diabo”, devido à influência católica,
que o vinculava ao termo tukano “wãnti”, correspondente ao b’atìb entre
os grupos Tukano. Vale dizer que corpos de animais têm apenas hãwäg,
mas não b’atìb. Alguns dizem que os cães são capazes de ter seu próprio
b’atìb porque podem perceber outro b’atìb no escuro (REID, 1979).
Se a consciência da vida vem por meio do hãwäg, a morte
aparece quando a pessoa o perde ou quando o xamã determina que a
pessoa está sem ele. É possível encontrar alguém para quem a morte
já está predeterminada. Geralmente, essa pessoa fica deitada na rede,
esperando o corpo parar de funcionar. Após a morte, o sáp é enterrado,
e o hãwäg vai para o mundo das “almas”, que fica próximo ao mundo
de K’èg-Tẽh e de outros heróis, nos céus mais altos. O b’atìb (b’atìb
ním/fantasma) permanece na terra por algum tempo, depois vai para
um mundo localizado sob as águas (mas às vezes é capaz de aparecer
na terra).
A materialização do b’atìb está em todas as secreções e excreções
do corpo, como urina, suor, catarro e fezes, além do sangue. É por meio
dessas substâncias que todas as doenças e enfermidades penetram.
Portanto, doença e saúde estão no equilíbrio de duas forças ou energias
existentes em nosso corpo: o hãwäg e o b’atìb. Todo aquele que é
iniciado conhece as cerimônias de proteção e de fortalecimento do
hãwäg. Todas as cerimônias de cura [bi’íd] invocam as forças da floresta
para o fortalecimento do hãwäg e a redução das influências do b’atìb
sobre o hãwäg. Se um Hupd’äh está doente ou se sente mal, é comum
vê-lo apontando primeiro para o coração, mesmo que a doença esteja
localizada em outra parte do corpo. Doença, portanto, significa, em
última análise, uma manifestação da fraqueza do hãwäg e um maior
controle do b’atìb sobre o corpo.

Práticas tradicionais de cura


O sistema médico Hupd’äh é mediado por pessoas, geralmente
homens (iniciados), que possuem as “chaves” que abrem os vários
mundos em busca de uma interpretação para os acontecimentos no
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 277

s’àh, ou na terra. Cada clã possui conhecimentos específicos sobre como


se tratar. Segundo os Hupd’äh, tudo o que acontece neste mundo, em
certa medida, já aconteceu no outro mundo dos tempos míticos. Há,
portanto, uma interpretação para tudo, e isso pode ser encontrado nas
histórias de K’èg-Tẽh (filho do osso), o demiurgo e criador de todas
as coisas mundanas. O sistema médico é um sistema xamanístico no
que diz respeito às representações de saúde e doença e às suas prá-
ticas terapêuticas.
No que se refere aos Pankararu, é importante dizer que entre eles,
como também na região do rio Negro, coexistem dois sistemas médicos,
podendo-se observar que essa convivência é pacífica e não antagônica.
Porém, permanece uma falta de compreensão entre ambos. Como
alguma consistência na etiologia pode ser alcançada? E como fazer o
Hupd’äh entender que o B’atìb’pãt (cabelo do “diabo”) pode ser curado
com os remédios da biomedicina?
A questão que se coloca aqui é precisamente a da validade das
classificações indígenas, quando sabemos que a etiologia se baseia na
cosmologia e nos mitos. A lógica na elaboração das representações das
chamadas doenças do homem branco só pode ser entendida a partir
de uma compreensão da mitologia e da cosmologia que, em última
instância, estruturam as relações interétnicas da bacia do rio Negro. Mas
a escolha do tratamento não ocorre porque há uma compreensão clara
do que são doenças dos brancos ou doenças de Hupd’äh. Além disso, do
ponto de vista deles, além de aspirinas e pílulas para parasitas, não
procurariam a medicina ocidental, como na realidade não procuram. Em
outras palavras, a demanda por tratamento está vinculada e submersa
em contextos culturais muito específicos. Os processos terapêuticos são
associados a uma compreensão da mitologia e ao poder das palavras de
transformação “sopradas” no paciente.
Dois assuntos principais emergiram neste artigo, embora eu
acredite que a abundância de minhas anotações de campo me permitirá
discuti-los mais detalhadamente outra hora. O primeiro diz respeito
ao mito e à representação do corpo – isso são todas as histórias e
interpretações do Hupd’äh e de sua presença neste mundo. Quase todas
as narrativas mitológicas enfatizam como o corpo é formado para
constituir a humanidade. Durante a criação, por exemplo, um Hupd’äh
disse que as pessoas estavam em um mundo subaquático, com um corpo
diferente do que é hoje. O segundo assunto nos remete exatamente
à famosa “articulação” entre as medicinas indígenas e a ocidental no
tocante aos serviços de saúde entre os povos indígenas, já mencionada
278 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

anteriormente, que será o tema fundamental de Jean Langdon em suas


atividades acadêmicas e do diálogo entre nós.
A descrição dessa situação pode ser detalhada, pois, para os
Hupd’äh, no mundo subaquático existem vários processos estabelecidos
a fim de substituir o corpo anterior (da narrativa mitológica) pelo corpo
do mundo de hoje. Essas mudanças no corpo e como ele é moldado são
amplamente discutidos em debates sobre histórias de criação, que os
Hupd’äh chamam de “Tempo de Hi’bahtëh”. Este é o nome que o Hupd’äh
dá a toda a mitologia da criação. Significa a época dos ancestrais, mais
precisamente a época em que toda a criação estava debaixo d’água, antes
da transformação dos corpos dos humanos (Hupd’äh) e de como eles
vieram a existir neste mundo.
Neste artigo, tentei relacionar o corpo a doenças específicas,
particularmente com uma discussão sobre como as substâncias
corporais do Hupd’äh podem ser usadas como elementos para modificar
o corpo, levando a uma melhoria na qualidade de vida. É o constituinte
do corpo que suporta a experiência de sua própria identidade, levando
à crença de que um “eu” habita este corpo e apenas este corpo. O hãwäg
e o b’atìb são fluidos que geralmente se opõem, mas juntos fornecem um
equilíbrio para apoiar o corpo neste mundo.

Etnografia, corpo e xamanismo


É importante enfatizar que, tanto na região do rio Negro como
em Pernambuco, a dinâmica das relações políticas traduz as tensões
existentes nas localidades onde estão as aldeias indígenas. Essas
tensões podem ter origem nas relações de parentesco e nas suas áreas
geográficas, em que os representantes indígenas obtêm a sustentação
política para suas atividades. Tal tensão é real, e dificilmente os gestores
da saúde indígena ou os membros da equipe de profissionais que atuam
na região podem perceber com clareza os diversos pontos de conflitos.
Esses novos espaços de negociação estão fornecendo aos povos
indígenas novas práticas e estratégias para a efetivação de acordos com
instituições não indígenas.
Se no rio Negro essas novas estratégias de atuação convivem
com as formas tradicionais de exercer a liderança, em Pernambuco
estão fazendo cair o clientelismo e o modelo tutelar no trato com as
instituições governamentais, implantado desde que o SPI instituiu o
“cacicado” nas relações com o Estado. Por um lado, pode-se perceber
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 279

pontos comuns entre essas duas realidades, principalmente no


tocante ao estabelecimento de novas estratégias de negociação; por
outro, há diferenças significativas quanto ao movimento indígena
e sua dinâmica interna de representação, seja no nível interno, nas
aldeias, seja fora delas. Nas duas situações, essas diferenças situam-
se principalmente no âmbito interno das relações de poder. Ainda,
a percepção que os índios têm sobre os antropólogos e seu papel
reflete a relação que aqueles mantêm com a sociedade envolvente.
Em Pernambuco, os índios procuram o antropólogo para “falar por
nós”. Isto é, se apropriam do discurso dos antropólogos e os citam
como “argumento de autoridade”. Muitos Pankararu se referem a
Carlos Estevão de Oliveira (1938) como o antropólogo que ajudou
a conseguir o reconhecimento étnico por parte do Estado brasileiro,
com a implantação dos postos indígenas na área e o início do processo
de regulação fundiária – ainda em andamento após 83 anos (ATHIAS,
2015a). Enquanto isso, na região do rio Negro, o antropólogo é
visto como aquele que “está junto”, mas quem fala são os índios. Ao
contrário, não é visto como argumento de autoridade, sobretudo
aqueles antropólogos que não falam uma das línguas locais.
Em geral, podemos dizer que associações indígenas de base
existentes nas diversas áreas de Pernambuco não têm exercido o poder
de representação como na região do rio Negro, onde estão agrupadas
em uma federação. Mais recentemente, a Articulação dos Povos e
Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo
(APOINME) tem realizado esse tipo de representação, porém bem
menos atuante, eu diria, em uma avaliação bem geral. É importante
mencionar que as associações indígenas estão presentes nos espaços
de negociação de projetos governamentais – no estilo de cestas básicas
ou de projetos produtivos para produtores rurais. As lideranças
exercem esse poder de representação, e suas falas são escutadas como
aquelas que definem a direção nos processos de negociação. Trata-se
de uma participação em que a liderança estabelece de antemão com a
comunidade os interesses específicos quanto à saúde. Quem garante o
acesso aos “bens” e aos “recursos” é a liderança. No caso do rio Negro,
a associação tem o poder de trazer o recurso. Essas duas formas de
atuar fazem com que o aspecto da escolaridade seja um condicionante
e interfira nos modelos de negociação. Nesses casos, os antropólogos
são vistos como aqueles que podem viabilizar recursos, seja elaborando
projetos, seja atuando como intermediários entre os grupos indígenas e
as agências de cooperação, presentes nas diversas áreas indígenas.
280 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

As lideranças mais escolarizadas vão obtendo maior entendimento


e importância nesses espaços, uma vez que a quantidade de papéis
distribuídos tem aumentado e que os índios não treinados na leitura
do português (uma língua imposta para a comunicação nesses espaços)
não conseguem acompanhar o desenvolvimento das discussões e
a posterior decisão. Na realidade, a documentação distribuída nas
reuniões dos conselhos sobre as atividades das equipes de saúde, como
tabelas, planilhas de mortalidade e morbidade, índices sobre a cobertura
vacinal, entre outras, necessita de uma melhor apresentação para facilitar
a compreensão dos índios. Os indicadores de saúde ainda carecem de
uma reorganização, de modo a mostrar claramente como está, de fato,
a situação de saúde dessas populações. Pessoalmente, tenho advogado
uma produção acadêmica mais direcionada para as populações
indígenas, com uma epidemiologia intercultural e indicadores mais
adequados às realidades indígenas desses povos. Nesse sentido, a
participação de antropólogos nessas reuniões de conselhos tem sido
importante para mediar a discussão e propiciar para os índios não só
um melhor entendimento dessas questões, como também traduzir em
linguagem técnica os interesses mais imediatos dos próprios indígenas,
relacionando-os com os aspectos culturais negligenciados nos dados
estatísticos trabalhados por aqueles que organizam a informação em
saúde no distrito.
O embate de forças políticas se dá principalmente nas reuniões
dos conselhos locais. Nessa instância, situam-se as principais pautas e as
negociações entre os diversos grupos ou facções locais. Em Pernambuco,
tive a oportunidade de várias vezes participar em reuniões do conselho
local pankararu, e nesses dois últimos anos observei uma discussão
calorosa nos encontros em que atuei como mediador, buscando em
todas elas o consenso entre as partes e possibilitando um melhor
entendimento sobre a situação. Essas reuniões se tornaram importantes,
pois nelas se decide em qual aldeia se situará um novo posto de saúde
e/ou os recursos que serão alocados para a área. No rio Negro, as
reuniões dos conselhos locais, pelo menos aquelas de que participei,
eram conduzidas pelos responsáveis pelo “controle social”, uma instância
(departamento) da FOIRN que as acompanha no nível local. A pauta,
portanto, vem de São Gabriel, e os presentes dão sugestões e a aprovam.
Não tive a oportunidade de presenciar embate político, como naquelas
reuniões de que participei na área indígena pankararu.
Meu entendimento dessas relações passa pelo conhecimento
acumulado sobre a inserção desses índios nos diversos contextos e pela
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 281

maneira específica do fazer antropológico, que pode ser caracterizado


como uma atividade crítica e independente baseada numa convivência
com os grupos indígenas. Essa postura crítica vem através do
conhecimento da história dos diversos clãs e da estrutura social, ou
seja, das relações de parentesco. No rio Negro, é preciso conhecer as
estruturas movidas através do mito de Jurupari (ATHIAS, 1995), hoje
parte das relações interétnicas. Em Pernambuco, se faz necessário
entender a história da ocupação territorial para facilitar a compreensão
das relações de parentesco e, sobretudo, das formas de representação
política. A partir de minha experiência pessoal, o papel do antropólogo
nas reuniões de conselhos de saúde continua sendo aquele de tradutor,
mediador e intérprete. A presença do antropólogo torna-se aceita pelo
conselho quando aquele, juntamente com os índios do conselho, tenta
colocar em linguagem adequada e compreensível as questões de fundo
das pautas das reuniões (e as agendas), procurando mostrar aos índios
os diversos lados da situação, o que geralmente os gestores não fazem.
Alguns elementos que podemos observar a partir desses dados
etnográficos serão importantes para compreender a prática xamânica,
conforme desenvolvido na introdução do livro de Jean Langdon
(1996) – Xamanismo no Brasil: novas perspectivas, já citado aqui. Nesse
sentido, ao relatar elementos etnográficos dos dois contextos históricos,
sociais e políticos, desenvolve-se uma análise que busca situar aspectos
relevantes para uma compreensão maior da prática tradicional de cura
ou das práticas xamânicas presentes nessas duas situações etnográficas
que procurei descrever acima.

As transversalidades
Para pensar em xamanismo entre esses povos indígenas, há que
levar em consideração a noção de uma memória coletiva e a especifici-
dade de cada grupo quanto à sua posição dentro de seu contexto étnico
e cultural. Cada um desses grupos indígenas possui relações específicas
que mostram a existência de entendimento mais profundo da pessoa
com as dimensões do mundo físico e do mundo transcendental, cujas
distinções estão bem colocadas por Langdon em sua introdução ao
Xamanismo no Brasil quando elenca os diversos elementos das práticas
tradicionais de cura, que ela própria vai retomar em seu artigo intitulado
“Xamãs e xamanismos: reflexões autobiográficas e intertextuais sobre a
antropologia”, publicado na revista Ilha (LANGDON, 2009). Trata-se
282 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

de um texto que ajuda a perceber a minha própria prática de pesquisa


e o olhar distanciado para as conclusões expostas nas pesquisas
desenvolvidas entre os Pankararu e entre os Hupd’äh.
O outro elemento importante para entender as práticas tradi-
cionais de cura entre os povos indígenas é a noção ou o modelo de
territorialidade. Relendo as notas de campo da viagem que fiz com
Jean, das pessoas que encontramos principalmente entre os Pankararu,
observo uma ênfase na ocupação espacial – a forma como os locais
estão ocupados na atualidade e como são vistos pelos diversos grupos
de famílias que participam de um entendimento comum entre os
Pankararu. Isso nos permite afirmar que um grupo de parentesco tem
acesso a detentores de saberes, curadores e rezadeiras situados dentro
do contexto específico da ocupação espacial. Evidentemente, vamos
perceber mais propriamente essa ideia de espaço social de território
entre os índios, que determina as ações e as performances nos processos
de cura. Esse aspecto do xamanismo e a territorialidade, presentes
nessas narrativas e nos textos de Jean Langdon sobre os Siona, poderiam
ainda ser mais bem desenvolvidos.
Diante do exposto e tendo em vista as etnografias de que tenho
participado e as que tenho produzido sobre esses dois povos – com os
quais aprendo significativamente sobre as práticas tradicionais de cura –,
e com o apoio da literatura produzida por Jean Langdon, chego a algumas
considerações que acredito ser importante colocar aqui neste texto.
Algumas das condições ambientais e territoriais (tanto a terri-
torialização quanto a territorialidade) são essenciais, entre os Hupd’äh
e entre os Pankararu, para obter o que chamamos de sustentabilidade.
Essas condições podem ser encontradas nas práticas produtivas dos
povos indígenas e percebidas nos seus entendimentos simbólicos, muito
bem relacionados aos seus instrumentos tecnológicos. Isso é resultado
de uma convivência com a natureza e com a transformação ambiental
(LÉVI-STRAUSS, 1977; DESCOLA; PÁLSSON, 1996). Em tal relação
com o que chamamos de natureza, os povos indígenas produzem
seus saberes baseados na, digamos assim, “simbolização” cultural do
seu território em significados sociais. Estes estão vinculados ao meio
ambiente e às apropriações de regras sociais de acesso e uso das práticas
de gestão de ecossistemas da saúde e do corpo.
A saúde (a doença), tal como é concebida por esses povos
indígenas, leva em consideração o bem-estar, que é visto como uma
totalidade do ser. Isso sem, no entanto, dar uma ênfase exagerada aos
aspectos apenas biológicos, como se entende a partir de uma perspectiva
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 283

da biomedicina, que cria, de fato, uma separação entre a parte biológica


do corpo e aquela onde se situam as compreensões simbólicas vinculadas
a uma cosmologia. Esses entendimentos, tanto entre os Hupd’äh como
entre os Pankararu, conformam, a nosso ver, os laços necessários para
uma postura intercultural com relação a essas diferentes concepções
do corpo, das energias corpóreas, da territorialidade e das palavras
transformadoras, ou seja, as palavras encantadas, ou os benzimentos,
como outros chamam. Portanto, seria nesses espaços do cotidiano do
atendimento onde deveria acontecer o diálogo entre os representantes
dessas medicinas, das práticas tradicionais de cura, e os profissionais
de saúde.
Em geral, a epistemologia indígena tem seus fundamentos em
cada uma das culturas, nas tradições individuais de cada povo. Esse é
um fato inclusive reiterado pelos autores que citamos anteriormente.
Apesar da existência de uma distância geográfica significativa entre
esses dois povos, dos quais estou tratando especificamente neste
capítulo, posso dizer que há mais elementos comuns de entendimento
do que discrepantes quando pensamos nos aspectos da corporeidade, do
território e do uso das palavras nos processos terapêuticos. Todos esses
aspectos citados foram mencionados nas entrevistas que realizamos
com os detentores de saberes desses dois povos.
É importante ressaltar aqui que, quando falamos da ideia de
doença (de infortúnio, de mal-estar), estamos falando sobre como
um determinado povo entende e reproduz essa noção. É verdade
que a saúde e o bem-estar estão relacionados ao corpo biológico e
ao corpo simbólico. Portanto, para entender o corpo, é necessário
entender a anatomia e a fisiologia do ponto de vista de um determinado
grupo indígena.
Estamos argumentando, com apoio da literatura produzida por
Jean Langdon e por outros colegas, que a noção de medicina indígena,
de sistemas de cuidados ou de práticas tradicionais de cura se apre-
senta como um modelo específico intimamente relacionado a uma
cosmologia própria de um determinado grupo social, e não como
um fenômeno fragmentado, sem relação com os entendimentos de
saberes tradicionais acumulados e comuns de um povo indígena. Nesse
sentido, aprendemos com os detentores de saberes a que tivemos acesso
que as diversas etiologias são as portas de entrada para entender as
dinâmicas das medicinas indígenas e, sobretudo, apreender os diversos
procedimentos, diagnósticos e terapêuticas (itinerários terapêuticos)
que têm sido o enfoque principal das pesquisas e dos debates teóricos de
284 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

uma antropologia da saúde indígena no Brasil da atualidade, muito bem


debatida por Jean Langdon (2007) quando faz uma espécie de tipologia
desses projetos de saúde em áreas indígenas.
Em termos gerais, as práticas de cura dos povos indígenas buscam
um equilíbrio entre o ser e a relação com ele mesmo. Essa totalidade,
muitas vezes difícil de ser percebida por nós, ocidentais, na realidade
engloba o que poderíamos chamar de constituição genética, as emoções,
os saberes, o sistema de cuidados inseridos no cotidiano, as formas de
alimentação e as atividades de produção. E o indivíduo tem relação com
o seu grupo, mantendo uma compreensão de ancestralidade que está
associada aos modelos e às redes de parentesco, bem como às formas de
comunicação e ao uso das palavras nas performances e nos processos
de ritualização de práticas de cura. A relação do grupo com os aspectos
da natureza oferece muitas possibilidades de interpretação de fatores
ambientais e territoriais que produzem entendimentos sobre o frio, o
calor, os entes e os personagens da natureza que estão presentes nas
narrativas mitológicas desses povos.
Portanto, argumentamos que as práticas tradicionais de cura
– a medicina tradicional indígena – estão eminentemente ligadas a um
entendimento sobre os modelos ecológicos e se apresentam de uma
forma pragmática quanto ao tratamento e à intervenção de especialistas
de cura que usam as palavras transformadoras. Em geral, tentam buscar
soluções para os problemas individuais e coletivos ao mesmo tempo.
A base filosófica e dialética das medicinas indígenas relaciona a natureza
com uma vivência coletiva, e nesta se apresentam as “chaves holísticas”
para explicar a presença humana neste planeta. As atividades terapêuticas
na medicina indígena situam-se em um campo que alguns chamariam
de bioenergético, para atingir todas as dimensões constitutivas do
ser humano. Nesse sentido, será necessário entender o patológico e o
“normal” nas concepções das diversas medicinas indígenas.
Usualmente, na medicina indígena, se fala mais das pessoas
(aspectos sociais e interacionais) que das doenças (aspectos biológicos).
Então, as desarmonias se incluem no conjunto de enfermidades que
podem responder a processos biológicos básicos e fundamentais.
Portanto, nos princípios teóricos da medicina indígena, exprime-se
claramente o valor da singularização e da individualização na hora de
estabelecer um diagnóstico. Cada pessoa tem um nome próprio e requer
um diagnóstico específico, a sua individualização vem definida pela sua
singularidade ancestral em relação aos demais. Considerando todos
os fatores sociais e econômicos, a medicina indígena leva em conta e
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 285

inter-relaciona o que nós denominamos de corpo, “espírito” e mente,


em que se situam as “mentalizações energéticas” dos princípios vitais
(imateriais) que possibilitam o equilíbrio do “estar com saúde”, ou seja,
do bem-estar. O corpo, os “espíritos” do corpo (da pessoa) e a mente
representam uma unidade. É no corpo que se dão as manifestações
dos espíritos do corpo. Nas medicinas indígenas, compreende-se
que a doença e as patologias encontram-se no corpo, na mente e no
espírito; as emoções se manifestam através do corpo físico; as curas
realizadas por especialistas tradicionais tratam do corpo e do espírito
do corpo (princípio vital) ao mesmo tempo, uma vez que fazem parte de
uma totalidade.
As ciências biológicas, sociais e da natureza não se apresentam
distintamente para os povos indígenas. As explicações dos fenômenos
devem satisfazer o entendimento. A partir daí, há níveis de conhecimen-
to derivados da tradição cultural, dos rituais e das práticas organizativas,
traduzidos na linguagem simbólica, que são a chave para a compreensão
desses conhecimentos. A medicina indígena é “uma literatura de
símbolos”. As imagens e as metáforas fazem parte dessa literatura e dos
conhecimentos ancestrais sobre o corpo.
Com base nesses elementos da medicina indígena, se pode pensar
e definir a interculturalidade em saúde como a capacidade de transitar
equilibradamente entre conhecimentos, crenças e práticas culturais
diferentes em relação à saúde, à doença, à vida e à morte em um corpo
biológico e social.
Para avançar em uma proposta de política intercultural em saúde
para os DSEIs, hoje se faz necessário que o conceito de interculturalidade
se constitua em um eixo temático central nas discussões sobre políticas
e programas de saúde. A interculturalidade não pode ser vista como
algo distante, e sim como uma atitude presente entre os profissionais de
saúde, no momento em que se tem claro quem são os atores envolvidos
e os obstáculos que se apresentam para o respeito aos sistemas médicos
tradicionais indígenas. Questões sobre as adequações de uma abordagem
intercultural no modelo médico oficial são uma possibilidade concreta
de uma ação.
Como disse antes, parece não existir um conflito entre a medicina
indígena e a medicina oficial. Em geral, os gestores, os profissionais e
os especialistas da saúde dos povos indígenas estão de acordo em uma
série de aspectos – por exemplo, que não se deve reprimir nem eliminar
as práticas terapêuticas indígenas e que estas merecem respeito. Várias
experiências foram efetivadas na América Latina sob a orientação de
286 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

que os serviços de saúde deveriam ser de boa qualidade, apropriados às


necessidades específicas dos povos indígenas. Tivemos oportunidade de
ver vários exemplos nessa direção.
Os responsáveis pela execução da saúde indígena incluíam
nessas experiências a contratação e a formação de equipes bilíngues,
que poderiam prestar serviços nas comunidades, inclusive treinar
pessoal para a gestão e a instalação dos ditos “hospitais interculturais”,
originando até mesmo uma valorização dos terapeutas tradicionais. Em
geral, os especialistas na saúde indígena também estão de acordo com a
participação dos terapeutas tradicionais até certo ponto, em que se possa
coordenar a interferência nos processos formativos. Contudo, quando se
trata da incorporação dos pajés no sistema médico e na organização dos
serviços de saúde, não existem, apesar de várias experiências, acordos
nessa direção. E isso nos mostra que ambos os sistemas médicos podem
andar juntos com ações complementares, porém não se poderia inserir
na organização dos serviços de saúde oficiais os processos indígenas
de cura.
Talvez uma das primeiras atividades a serem realizadas nas ações
de saúde em áreas indígenas não seria simplesmente o respeito passivo
com os profissionais de saúde que atuam no DSEI, mas o reconhecimento
e a formalização de um diálogo com os terapeutas indígenas. E essa
formalização seguirá um modelo próprio para cada área indígena,
conforme a criatividade local. Apesar de a Política Nacional de Atenção
à Saúde dos Povos Indígenas abordar a “articulação”, dever-se-ia
possibilitar espaços criativos e inovadores de atuação nas diversas áreas
indígenas. Cada uma das culturas colocará a ênfase necessária para o
desenvolvimento de um diálogo intercultural em saúde.
Além da formalização desse reconhecimento de uma ciência
indígena, seria preciso buscar mecanismos para que sabedores indí-
genas pudessem participar nas etapas formativas do pessoal do DSEI,
inclusive dos Agentes Indígenas de Saúde. E tal inserção deveria
estar acompanhada de um processo formal para que esses terapeutas
tradicionais se fizessem também presentes nos espaços de discussão e
de decisão sobre toda a formação do pessoal do distrito.
Para finalizar, é importante que se busquem alternativas, nas
diversas áreas indígenas, para a efetivação de um diálogo formal entre
sabedores indígenas e profissionais de saúde. Esse diálogo possibilitará,
de fato, uma abordagem intercultural e visará a uma compreensão dos
profissionais sobre os processos de saúde e de doença que se dão entre os
distintos povos indígenas. Ainda a favor desse diálogo efetivo encontra-
Etnografia e práticas tradicionais de cura entre os Pankararu e os Hupd’äh 287

se a possibilidade de uma mudança estrutural no funcionamento do


distrito, possibilitando uma adequação, de fato, dos interesses dos povos
indígenas e dos profissionais de saúde. Essa adequação pode fornecer a
base para uma organização dos serviços de saúde mais respeitosa e para
a construção de uma nova prática em saúde com relação às questões
culturais dos povos indígenas. Do mesmo modo, as novas maneiras
de produzir conhecimento e a formação em saúde implicam também
aceitar desafios e muitos problemas, talvez sem respostas. Não temos
uma fórmula mágica, nem sabemos o final dessa história, mas já é
possível desvendar alguns caminhos a partir das várias experiências que
estão sendo desenvolvidas nos DSEIs.

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Regresos asesinos: violencia,
suicidio y exhumación en la
economía de la muerte de
los Emberá Katío (Chocó-
Antioquia, Colombia)1

Anne-Marie Losonczy

Para Jean Langdon, maestra, amiga y compañera inspirante


en los caminos del chamanismo.

In memoriam Italiano Dumasa y Custodio Domico,


chamanes Emberá del Alto Chocó

Mañana gris de marzo de 2011, al lado de una fosa y su fondo


embarrado, en una aldea emberá katío rodeada por una espesa selva
tropical en la orilla del río Juradó del Chocó, en el noroeste colombiano.
El equipo de exhumaciones de la Fiscalía llegó el día anterior de
Medellín, así como la etnóloga y un periodista. El equipo se encarga
de la exhumación, para efectos de identificación, de los restos de dos
líderes Emberá, así como del hijo de uno de ellos y de otros nueve
indígenas que fueron asesinados por un grupo paramilitar en 1999,
después de haber sido acusados de colaboración con el grupo guerrillero
Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia – Ejército del Pueblo
(FARC-EP). Si bien el hermano de los líderes – sobreviviente a la
masacre – presentó una solicitud de exhumación y señaló vagamente
al equipo dónde yacen, ni él ni ningún habitante de la aldea quiso
permanecer cerca en el momento de la apertura de la fosa, como
tampoco aceptó ayudar a excavarla. Ante la fosa abierta, una mujer

1
Este texto constituye una versión algo actualizada del artículo del mismo título
publicado en: LOSONCZY, A.; AZEVEDO, V. R. (ed.). Retorno de cuerpos, recorrido
de almas: exhumaciones y duelos colectivos en América Latina y España. Bogotá:
Ediciones Uniandes; IFEA, 2021.
292 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Emberá dirige un ritual corto y apresurado, que parece improvisado:


hecho de llantos y lamentaciones fúnebres tradicionales, entrelazados
con oraciones provenientes del catolicismo popular. Al acabar el acto,
todos salen disparados hacia sus casas, lanzando a los miembros del
equipo: “El espíritu de los muertos busca el conflicto con el alma de
los vivos” y “Los muertos se adueñan de todo”. Un denso silencio
vuelve al lugar, únicamente interrumpido por el ruido de las palas
y por las palabras intercambiadas entre el equipo y los sepultureros
improvisados, todos negros, reclutados de forma precipitada en
la aldea más cercana. El equipo se marcha de la aldea antes de que
caiga la noche. Los restos exhumados se enviarán inmediatamente al
laboratorio de antropología forense de Medellín y se devolverán a las
familias un año más tarde.
Habrá que quedarse varios días en la aldea para captar algunas
palabras deshiladas y poder reconstruir, hilo a hilo, una historia de
masacre que se parece a tantas otras y que no había sido evocada por
ningún habitante desde entonces. Las autoridades nacionales supieron
de ella únicamente a través de la solicitud de exhumación presentada
unos meses antes por el hermano superviviente. Desde la apertura de
la fosa, este mantiene una postura silenciosa y postrada. Sin embargo,
las mujeres de su familia acabarán por evocar entre murmullos la
desesperación ante la necesidad de “pacificar los espíritus de estos
muertos” y la ineficacia de los rituales tradicionales. Poco a poco darán
detalles, a cuentagotas, de esa mañana de agosto de 1999 que desgarró
la trama de los días y el sentido de su vida.
Evocan la huida hacia el bosque de P., el hermano superviviente.
Al ser alcanzado por una bala en el hombro, se lanza al río, nada bajo el
agua y se esconde bajo una cascada. Por la noche, vuelve furtivamente
a la aldea, pero no encuentra más que algunos animales domésticos,
por lo que cree que asesinaron a todos los habitantes. Al día siguiente,
al amanecer, sale rumbo a la aldea mestiza más cercana y ahí encuentra
a sus familiares, vivos y muertos: los cadáveres, envueltos en sábanas
prestadas, esperan a que llegue una canoa al embarcadero y los lleve a
otra aldea emberá, situada río arriba, para que se les entierre de forma
apresurada y anónima. La viuda de uno de sus hermanos le comunica la
orden de los paramilitares: no volver a la aldea. “Ya no existe: no vuelvas
jamás”. Se establecen, pues, en la aldea emberá de Dos Bocas, donde
sepultarán rápido a los muertos. A partir de ahí, pasan a ser uno de los
dos grupos locales emberá de entre diez que viven en el municipio de
Juradó, convertidos colectivamente por orden de los paramilitares en
Regresos asesinos 293

“desplazados internos”,2 que sobreviven difícilmente en otras aldeas o


en las periferias de las ciudades regionales. Nadie hablará nunca más de
estos muertos, como tampoco del pasado: es como si una comunidad
de silencio uniese a los Emberá, desde los dirigentes de la autoridad
étnica (cabildos) hasta los simples aldeanos. Doce años después de
los asesinatos, además de la solicitud de exhumación realizada por la
familia, prescrita por la Ley de Víctimas de 2007, la Fiscalía considerará
conveniente solicitar también esta autorización, que las autoridades
étnicas concederán a regañadientes.
La actitud ambivalente y huidiza de los Emberá a lo largo de
esta exhumación parece estar relacionada con la percepción de un
choque entre varias temporalidades, choque representado aquí como
peligro de invasión de los vivos por la mala muerte. Hace eco a otros
relatos de exhumación de fosas en su territorio, difundidos por la
prensa colombiana, entre las cuales se encuentran las solicitadas por los
propios líderes cabildos. Esta actitud contrasta con la de otros grupos
indígenas y mestizos rurales que parecen concebir la exhumación y la
identificación de las víctimas locales de la violencia como un esperado
regreso de los cuerpos, capaz de aliviar la incertidumbre y de ofrecer
un anclaje del trabajo del luto, así como de territorializar su memoria.
Más allá de la angustiosa ambivalencia que caracteriza la configuración
colombiana del posconflicto y que lleva a que amplios sectores del país
vivan bajo dos registros simultáneos y dolorosamente contradictorios,
el del conflicto que prosigue a nivel local y el del posconflicto judicial y
político, la postura emberá ante este regreso de los muertos violentados
remite a la recomposición inédita de su relación colectiva con la muerte,
objeto del presente texto.

2
Según los principios rectores de los desplazamientos internos de la Organización
de las Naciones Unidas, “los desplazados internos son personas o grupos de
personas que han sido forzados u obligados a huir de sus hogares o de sus lugares
de residencia habitual, o a abandonarlos, en particular a causa de un conflicto
armado, de situaciones de violencia generalizada, de violaciones de los Derechos
[…] y que aún no han cruzado una frontera reconocida entre Estados […]. Los
desplazados internos siguen siendo ciudadanos del Estado y tienen derecho a su
protección” (ONU, 1998, p. 5). Tras un enconado debate y a pesar de la reticencia
de parte de la clase política, Colombia recoge estos principios a partir de 2011
en la Ley de Víctimas. Cabe recordar que entre 1997 y finales de 2013, fueron
registradas 5.185.000 personas desplazadas: los indígenas y los afrocolombianos
están sobrerrepresentados (ACNUR, 2013). Disponible en: https://www.acnur.org/
fileadmin/Documentos/RefugiadosAmericas/Colombia/2013/SituacionColombia_
Fact_sheet_dic2013_ES.pdf. Consultado en: 8 abr. 2015.
294 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

La aparición de nuevas normas institucionales en el hori-


zonte social y cultural emberá es lo que parece haber fisurado la
comunidad de silencio que rodea a sus víctimas de la violencia
armada multiforme. En este sentido, la llamada Ley de Justicia y
Paz de 2005 facilita y ofrece un marco para las desmovilizaciones
colectivas de combatientes paramilitares a través de penas de prisión
relativamente cortas, con “la confesión integral y la reparación” como
contrapartida. Su consecuencia paradójica es que, al igual que las
familias de las víctimas y las organizaciones de defensa de los derechos
humanos, los paramilitares desmovilizados acaban constituyendo un
componente importante de los informadores de la nueva “unidad de
exhumación” de la Fiscalía, indicándole la ubicación de los restos y
de las fosas comunes en las regiones rurales colombianas. Otra piedra
angular de la justicia transicional es la denominada Ley de Víctimas
y Restitución de Tierras de 2011, que convierte la exhumación y
la identificación de las víctimas en el principal medio para acelerar la
restitución de las tierras que fueron ocupadas por actores armados
ilegales a los habitantes que huyeron ante su violencia. Ofrece también
un lenguaje mediante el cual las consecuencias traumáticas de los
acontecimientos violentos pueden decirse y legitimarse en el espacio
nacional e internacional. Muchos líderes étnicos conciben el reto de
la exhumación y de la identificación de las víctimas como garantía del
regreso a los territorios abandonados, así como del acceso a recursos
financieros acordados por la política pública de reparación para el
restablecimiento de una vida comunitaria. Es muy frecuente, pues,
que las solicitudes de exhumación surjan a su iniciativa e incluso que
ejerzan presiones sobre los allegados de las víctimas para que estos
los apoyen.
La irrupción, desde hace dos décadas, en los universos sociales
indígenas aislados hasta entonces de formas y de escalas inauditas de la
violencia – como la tortura, la violación, las masacres, el reclutamiento
forzado de niños y la desaparición – puede ser interpretada como una
cadena de acontecimientos que crea una ruptura del sentido del orden
del mundo (BENSA; FASSIN, 2002), abriendo la vía a nuevos modos
de interpretación. Las exhumaciones, entendidas como regreso de
estos muertos bajo presión y según modalidades surgidas del exterior,
constituyen una nueva ruptura de inteligibilidad. Esta última produce
a su vez inflexiones de sentido, que remodelan las prácticas y las
ritualizaciones emergentes, que buscan amoldarse a las particularidades
Regresos asesinos 295

relacionales de la interfaz entre familiares de las víctimas, actores


institucionales y expertos.
La entrada de actores armados luchando por los recursos y las
zonas de pasaje a territorios ya reconocidos como propiedad colectiva
de grupos negros y amerindios, así como sus devastadoras y mortíferas
consecuencias, dio lugar, a lo largo de las décadas, a un voluminoso
corpus documental de denuncia realizado por antropólogos, juristas,
organizaciones no gubernamentales (ONG) y medios nacionales e
internacionales. Describen y denuncian las masacres, las torturas,
las desapariciones, las destrucciones de aldeas, de campos y de
ganados, la prohibición de desplazarse, el secuestro de jóvenes para
abocarlos a la lucha armada o la prostitución y el consumo de drogas
ilícitas, provocando la explosión de los resguardos (territorios étnicos
delimitados por el Estado) y las huidas colectivas hacia el anonimato de
las ciudades. Denuncian también las consecuencias de la actividad
de las multinacionales que explotan recursos minerales y forestales,
por un lado, así como las de una colonización agrícola intensiva que
“atenaza” y reduce los territorios indígenas, por otro lado. Documentan
la indigencia, la desnutrición y la pobreza de los desplazados indígenas.
Además, dan cuenta de los esfuerzos de muchas organizaciones
indígenas apoyadas por ONG en la conservación o recreación de los
vínculos comunitarios y la recuperación de los territorios. En contraste,
carecemos de estudios sobre las inflexiones y las readaptaciones
cosmológicas y rituales de prácticas y discursos que giran en torno a
la muerte, inflexiones provocadas por la irrupción en las sociedades
amerindias de modos y grados inauditos de ejecuciones llevadas a
cabo por actores nuevos. Por ende, este texto propone interrogar la
emergencia de una nueva economía moral emberá de la muerte, en
la nueva articulación entre escatología tradicional, consecuencias
conjuntas e imbricadas de una reorganización política interna basada en
normas jurídicas impuestas por el Estado y el concomitante surgimiento
de nuevas formas de violencia armada insurreccional en su territorio.
296 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

El archipiélago social emberá: de guerreros a


víctimas
Los grupos emberá del Chocó y de Antioquia3 viven en un
entorno interétnico histórico con grupos de descendientes de esclavos
africanos y de pueblos mestizos (LOSONCZY, 2006a). Estas sociedades
se caracterizan históricamente por una gran fragmentación dialectal,
un fuerte grado de movilidad y de expansión intra e interregional y un
sistema chamánico que se concibe como intrínsecamente ambivalente;
incluso se le teme, pues genera constantes cisiones internas. También
se caracterizan por su producción de grafismos corporales, cestería,
collares, bastones y bancos chamánicos esculpidos, así como de cantos
chamánicos; todos atestiguan su porosidad histórica ante diversas
influencias culturales extraétnicas.
La legislación impulsada por la nueva Constitución colombiana
de 1991 impone a la diversidad política de los grupos amerindios una
figura única de territorialidad colectiva, el resguardo, por un lado, y
de autoridad política por otro, el cabildo. Ambas son reinterpreta-
ciones de figuras administrativas coloniales. El surgimiento de una
nueva jerarquía política interna, la sedentarización territorial y la
concentración del hábitat como fundamentos de la legitimidad étnica
obstaculizan el modo tradicional emberá de resolución de los conflictos
por la movilidad y la atomización residencial, reactivando antiguos
conflictos internos a los que se añaden los nuevos y que oponen a
jóvenes y mayores, así como a hombres y mujeres. Exacerban también
un faccionalismo ya antiguo, pero de poca intensidad. Por lo demás, la

3
También llamados Eperä, los Emberá, conocidos como “Chocoes” a partir de la época
colonial, representan uno de los mayores grupos amerindios de Colombia. Numerosos
documentos históricos demuestran su antigua y remarcable estabilidad demográfica:
desde los años 1980 su población, así como la de otros tantos pueblos, conoció un alto
crecimiento demográfico. En efecto, los dos grandes subgrupos dialectales (los Katíos
y los Chami) representan cerca de 70 mil personas (DANE, 2005). Hoy día sus grupos
residenciales, organizados en resguardos, viven en el Litoral Pacífico del Occidente, en
la región selvática del Chocó, en las montañas de Antioquia, en los llanos de la región
de Córdoba (Katío) y en Risaralada y en el Valle del Cauca (Chami). Su expansión
les condujo también hasta la Amazonia (en la región del Putumayo), el noroeste de
Ecuador y en el Darién panameño. Los Emberá se clasifican a sí mismos como dobidà
(habitantes de los ríos y de los bosques tropicales), eyabidà (de los llanos deforestados),
oibidà (de los bosques andinos) y purabidà (del litoral marítimo). Desde hace unos
20 años son muchas las familias emberá que viven en las periferias y en los barrios
populares de determinadas ciudades.
Regresos asesinos 297

multiplicación institucional de los contactos interétnicos, controlados y


formalizados por las organizaciones indígenas, refuerza las rivalidades
interétnicas alrededor de la apropiación de los recursos financieros
nacionales e internacionales y contribuye a la emergencia de jerarquías
étnicas, regionales y nacionales que se establecen en términos de
prestigio y de visibilidad supralocales.
Sus relatos míticos de carácter histórico (REICHEL-
DOLMATOFF, 1960; PINTO, 1978; PARDO, 1985; LOSONCZY, 1986)
retratan a los Emberá como actores activos en continuo movimiento,
que desarrollan numerosas iniciativas y estrategias de contacto con
distintas figuras de alteridad (indígenas Cuna, negros, misionarios,
comerciantes): guerra relámpago, negociaciones, intercambio, esquiva,
defensa o huida. La reorganización política y territorial, a la par de una
movilización identitaria, para lograr el reconocimiento legal del estatus
de minoría, crea planos curriculares nuevos y genera nuevas formas de
ritualidad política, tales como las “reuniones de refuerzo cultural” o
los “talleres de saber ancestral”. Es en estos contextos que se trasmite
una nueva lectura teológica de su historia, a través de los maestros
nativos, los líderes étnicos y los “asesores”: juristas, funcionarios,
agentes de ONG y antropólogos militantes. Desde esta lectura, los
contactos extraétnicos pasados y presentes se conciben todos como
antagonismos opresores. En esta sociedad, cuya organización política
tradicional valora la autonomía de las parentelas y la expansión
territorial mediante la dispersión residencial, esta nueva lectura hace
emerger una representación cada vez más victimaria del sí colectivo,
reforzada por la violencia insurreccional multiforme, sufrida desde el
principio de los años 1990. Si esta afecta sobre todo a las mujeres, a los
niños y a los ancianos, en los grupos indígenas, y en particular en
los Emberá del Chocó y de Antioquia, es elevado el número de asesinatos
y de desapariciones que atañen a líderes étnicos.4

4
Para el periodo de 1984-2014, el Registro Nacional de Víctimas identificó a 6,2
millones de víctimas colombianas de distintas formas de violencia (masacres,
desapariciones, desplazamientos forzados, minas antipersona, raptos, secuestros)
características del conflicto armado multiforme. Estas exacciones afectaron prin-
cipalmente a las poblaciones rurales desfavorecidas y a los grupos afrodescendientes
y amerindios. El informe de 2008 elaborado por la Organización Nacional
Indígena de Colombia (ONIC) establece la cifra aproximada de 1.980 amerindios
ejecutados entre 1998 y 2008. Según los datos facilitados por las oficinas regionales
de la Cruz Roja, entre los Emberá Katío del Chocó y de Antioquia, objetos de esta
investigación, los asesinados y los desaparecidos se cuentan por centenares tanto
298 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

De forma paralela, se desarrolla con frecuencia una política de


control, de imposición y de sanciones implementada por los jóvenes
líderes de cabildos emberá y ejercida sobre los chamanes y sus rituales.
Sospechosos y a menudo acusados de brujería por los miembros de
su grupo local, se les considera o bien como peligrosos o bien como
ineficaces ante las amenazas de violencia armada o las enfermedades
atribuidas a los nuevos contactos. El aval político de los cabildos que
alimenta sospechas comunitarias difusas vulnera la legitimidad
chamánica, contribuyendo así a disminuir las vocaciones de los jóvenes.
Por añadidura, la huida masiva de los Emberá ante el conflicto armado,
su mendicidad y pauperización urbana, así como las recientes olas
de suicidio de jóvenes Emberá, tanto en el campo como en la ciudad,
proyectan su imagen de “desplazados indígenas” o de “mendigos
indígenas” a través de los medios nacionales. Dicha imagen los sitúa
debajo de la escala de la jerarquización emergente en las sociedades
indígenas, tanto desde la perspectiva de las instituciones como desde la
de los grupos indígenas cercanos.

Malogros de la fabricación ritual de la muerte:


malos muertos emberá
“Caragabi creó a todos los emberá, no hay ninguno nuevo.
El emberá no acabará nunca: Siempre volverá a subir para nacer”
(LOSONCZY, 1987, p. 229). Estas palabras concluían, en una noche
sin luna, el relato de uno de los mitos de origen emberá, contado por
Italiano Dumasa, chamán Emberá del río Capa del Alto Chocó.5
Desde la perspectiva emberá, la concepción de un niño viene
determinada por la “subida” en el cuerpo de una mujer joven, durante

antes como durante y después de este periodo. Además, los líderes étnicos están
sobrerrepresentados en este recuento.
5
Recogí los primeros materiales etnográficos sobre la representación del nacimiento,
de la muerte y del destino post mortem entre los Emberá entre 1986 y 1990 en los
ríos Capá, Mumbarado, Tutunendo, Neguá y Bebará en el alto y medio Atrato
(Chocó). De 1993 a 2006, la presencia de múltiples actores armados en el Chocó y
en Antioquia no permitió dar continuidad a la investigación etnográfica. Se retomó
a partir de 2008, a través de sucesivas visitas a las comunidades de Chigorodo,
Murindo y Guapa Alta (Antioquia), y posteriormente a Unión Emberá Katío del río
Salaqui (Bajo Chocó) y a Juradó. En 2013, me puse en contacto con familias emberá
del Chocó y del Valle, refugiadas en el barrio de La Favorita en Bogotá.
Regresos asesinos 299

el acto de amor, del alma de un muerto anónimo, fallecido de “buena


muerte”, ritualmente enterrado y habiendo encontrado sitio en el
Inframundo, en el mítico mundo situado “del otro lado de la tierra y
de los mares”. Pero para bajar al Inframundo, una larga agonía tiene
que “volver el cuerpo más pesado”, postración a la cual los Emberá
reconocen la virtud de “hacer que el cuerpo se vuelva pesado como la
tierra” (LOSONCZY, 1987, p. 229). En el Chocó se entierra al cadáver en
una pequeña canoa cubriéndolo con un tejido colorido mientras que,
en las zonas montañosas, se le gira la cabeza hacia el oeste. Esta
inhumación, precedida por la marcación del cadáver mediante grafismos
corporales rojos y negros y las lamentaciones rituales de las mujeres,
representa la segunda condición sine qua non para una fácil transición
al Inframundo.
Tradicionalmente, los Emberá Katío del Chocó enterraban a sus
difuntos debajo de sus casas sobre pilotes. Sin embargo, la transformación
y la concentración de su hábitat, ligadas a la delimitación de los territorios
colectivos denominados resguardos por la legislación multicultural,
provocaron la creación de cementerios que colindan con la aldea.
No obstante, hasta una fecha reciente, las tumbas emberá carecían de
cualquier inscripción de los nombres. En efecto, se entiende la unicidad
del jaure – componente vital que anima tanto al cuerpo vegetal como al
animal o al humano, doble inmaterial móvil representado por la sombra –
como ligada a su condición de vivo: su nombre propio representa su
signo y es uno de sus soportes. Para que jaure se desapegue del cadáver,
condición de su disponibilidad para subir en el útero de una mujer y
asegurar así la reproducción de los Emberá, el nombre debe borrarse con
la vida del individuo: el muerto tiene que volverse anónimo. Pronunciar
el nombre de un muerto significa “reanimarlo”, atrasar su disolución
identitaria post mortem, necesaria para su transformación en fuente de
nacimiento, y arriesgarse a proyectarlo de este modo entre los vivos,
transformándolo por tanto en una figura de desgracia.
Aquellos que fallecieron por muerte súbita o violenta en el monte
o en el río tienen el cuerpo “demasiado ligero”: la ausencia de agonía y
de entierro ritual, creadores de su “pesadez”, hace aleatorio su descenso
hacia el Inframundo, y les deja planear en un espacio intermediario
entre el mundo humano y el Inframundo, cuyas materializaciones en la
geografía emberá katío corresponden a las cuevas, las calas aisladas y las
grietas de las rocas.
Si en ambos casos la muerte significa la disolución de la unidad
entre el cuerpo y el jaure, los Emberá distinguen “la buena podredumbre”
300 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

del cuerpo, mediante la cual el alma se vuelve disponible para “subir” en


el útero de una futura madre, de la podredumbre llamada “animal”. Esta
última es la de un cuerpo que no se volvió pesado y que no se enterró,
como resultado de una muerte súbita o violenta. Lo último impide que
el jaure se aleje del cadáver e impide volver a encontrar la movilidad
flotante que caracteriza a los seres del Inframundo y que le permite volver
a emerger para animar un nuevo ser humano en gestación. Además,
la ausencia de entierro expone cuerpo y jaure a la promiscuidad con
elementos vegetales o animales, terrestres o acuáticos. Este contacto
acabará transformando al jaure del muerto en jaï. La palabra “espíritu”
traduce mal este término, que designa una forma de condensación de
energía vital propia a todas las figuras del mundo de los vivos. Puede
tomar una apariencia humana, animal o vegetal. El origen de la mayoría
de las enfermedades se halla en su capacidad de afectar a los humanos
mediante el secuestro del jaure o a través de su penetración en un órgano
del cuerpo. Los jaï capturados por la jaïbaná (chamán), recurriendo
a la seducción o al combate, y encerrados en su jaïdé (casa de jaï) en
el monte, o en sus bastones chamánicos, movilizados en los rituales a
través del canto, el baile o la comida, pueden curar los males causados
por los espíritus de otro chamán.
Los jaï surgidos de los malos muertos fuera del control chamánico
merodean cerca de los humanos. La figura dominante de este grupo de
jaï “libres” o “encerrados” por un jaïbaná es Aribada, nombre que se
refiere a los espíritus de los chamanes muertos, que mandan y movilizan
un número importante de espíritus de malos muertos anónimos que
forman aldeas de jaï. En el momento de la iniciación de un chamán,
su maestro puede convertirlos ritualmente en jaï zarra (jaï guerrero,
jaï guardián) e instalarlos a la vez en el cuerpo del nuevo jaïbaná y en
uno de sus bastones chamánicos. Cuando este muera, vuelven a ser
libres y aparecen frecuentemente bajo la forma de jaguares: el peligro
de depredación letal que representan para los humanos únicamente
puede ser conjurado por otro chamán que les “encierra” de nuevo. Los
jaïbaná, reputados todos por su continua “avidez” de poder, amplían su
stock de jaï a través de la captura de jaï libres, mediante la compra de
espíritus o incluso haciéndose con un jaure humano para convertirlo
en jaï, alimentándolo y familiarizándolo en su jaïdé (casa de jaï en
bosques). Si un ritual realizado a contrarreloj por un chamán rival no
logra recuperar al jaure así “escondido” antes de su transformación, esta
pérdida de alma – figura temida por la brujería chamánica – conduce
a una rápida muerte. Es esta forma maligna de adquisición de jaï, cuyo
Regresos asesinos 301

deseo se imputa a todos los chamanes, la que funda la representación


tradicionalmente ambivalente del jaïbaná emberá, así como el halo de
temor y de sospecha que le rodea.
Alma (jaure) y espíritu (jaï) aparecen, pues, como interde-
pendientes, ligados por relaciones de transformación. Si la circulación
de los jaure de las buenas muertes entre el Inframundo y el mundo
humano es el fundamento de la reproducción social de los vivos,
por el contrario, los malos muertos transformados en jaï fuera del
control chamánico se convierten en kachirua (mesquinos) que quieren
“apropiarse sin dar a cambio”. Las relaciones de los vivos con estas
dos figuras post mortem se integran en un régimen más amplio de
depredación recíproca en inestable equilibrio, donde las posturas de la
multiplicidad de los espíritus y los humanos, ya sea como predadores
o como presas, son movedizas y reversibles. Le corresponde al poder
chamánico asegurar el balance positivo para los miembros de su grupo.
Mientras este poder se legitima por la “captura” y la toma de control
sobre el jaï para curar los males humanos y proteger su grupo de los
peligros, la reproducción de la vida humana prima sobre su destrucción.
Ello se traduce en la tradicional percepción del reducido número de
accidentes generadores de malas muertes con respecto al número
de nacimientos.
Los jaï kachirua, espíritus nefastos de los malos muertos que
llevan en ellos las huellas del jaure humano que fueron un día, desean
acapararse el jaure de los vivos para “reforzarse”, y encuentran en el
sueño de los humanos su vía de acceso. Para los Emberá el sueño
significa la separación recurrente del cuerpo y del jaure. La trama del
sueño se teje por la deambulación autónoma de este y sus encuentros
con distintas figuras de la alteridad. Este tiempo, nocturno, peligroso
para la integridad individual, es tradicionalmente objeto de un
aprendizaje, ya sea por la transmisión matutina de relatos de sueños
contados por mayores, o por el arte de los despertares nocturnos para
“salir del sueño” (LOSONCZY, 2006b, p. 125). En efecto, cuando el
encuentro onírico del jaure del soñador con humanos desconocidos o
de insólito aspecto en lugares extraños se acompaña de percepciones
visuales, auditivas y olfativas agradables – frecuentemente descritas
en los mismos términos que la seducción prenupcial entre chicos y
chicas – ceder ante el deseo sexual onírico permitiría el secuestro
del jaure por el jaï surgido de un mal muerto. Ello se traduce en
un debilitamiento diurno que puede llegar a ser letal. No obstante,
mientras esta peligrosa y seductiva confusión entre vida y muerte se
302 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

limite al territorio onírico nocturno, el ritual chamánico será siempre


eficaz para recuperar al jaure perdido.

Figuras inéditas de la mala muerte: nuevos


espíritus en la aldea
Ya desde el principio de los años 1990, el régimen multicultural
y la globalización neoliberal de la economía colombiana convierten
en visibles y accesibles los recursos de regiones anteriormente aisladas
y marginadas de la economía nacional. La subsecuente irrupción
del conflicto armado multiforme entre movimientos guerrilleros,
paramilitares, narcotraficantes y el ejército colombiano esparce a partir
de entonces en los territorios emberá malos muertos de un nuevo tipo:
cadáveres de actores armados y cadáveres mutilados, fragmentados y
abandonados. Estos provienen de los desmembramientos ritualizados
que ejecutan frecuentemente los asesinos (LOSONCZY, 2003; URIBE,
2004). La constancia con la que estos se repiten desde la guerra civil
entre partidos de los años 1950 hace parte del actuar de todos los grupos
violentos presentes. Los preceden unas ejecuciones a menudo públicas,
caracterizadas por el exceso y el hiperbolismo. Además, en las últimas
dos décadas, hasta el entierro de los cadáveres dejados por las masacres
en las aldeas se ha ido consolidando como un acto que muchas veces
designa a su autor como siguiente víctima, en numerosas zonas del
país. A partir de ahí, esta nueva amenaza vuelve a alimentar el miedo,
desperdigando por los paisajes familiares nuevas figuras de terror
materializadas en los cadáveres fragmentados y dispersados. Al mismo
tiempo, plasma la prohibición de la territorialización de los muertos que
representan el entierro y la sepultura, anclajes tradicionales del trabajo
de luto y del estatus post mortem positivo del difunto.
Desde principios de los años 1990, la cercana presencia de actores
armados cambiantes que reclutan jóvenes siembra la desconfianza entre
los miembros de la comunidad e impone nuevas normas coercitivas a
la vida cotidiana. Estas reducen la movilidad de los Emberá de forma
drástica, cuando no la convierten en huida. De forma concomitante a
la multiplicación de malas muertes generadas por esta violencia en su
propio territorio, emerge un nuevo fenómeno (ROELENS; BOLAÑOS,
1997) que remite a la reconfiguración de la representación tradicional
de la muerte súbita o accidental. Para los Emberá es la multiplicación de
los malos muertos, convertidos en jaï, libres o supuestamente enviados
Regresos asesinos 303

por chamanes interpuestos, lo que permite que su acoso desborde las


fronteras del espacio onírico del sueño y alcance el cotidiano diurno.
Estos jaï desencadenan una sucesión de crisis, a las que llaman
wawamia en Emberá y ataques en español. Afectan principalmente a los
jóvenes, pues su jaure todavía no está suficientemente “compacto y bien
anclado”.6 Se suponen provocadas por la visita diurna intempestiva de
un jaï, experiencia anteriormente restringida a los chamanes, formados
a través de su aprendizaje en mantener el contacto visual directo con los
espíritus sin peligro.
Esta nueva modalidad relacional patógena se encarna en una
nueva figura de espíritu, llamado “jaï de la tontina”, siempre en español, y
se describe a este espíritu como hombre alto y fuerte, kampunia (blanco)
o negro, con una cuerda en el hombro que “acosa” a los jóvenes, sobre
todo a las muchachas (HERNÁNDEZ, 1995). Las crisis de convulsión
se generalizan y se acompañan de diarreas, vómitos y fiebre; van
alternándose con estados de postración, manifestaciones espectaculares
de ira, llanto o quejas que contrastan con la reserva y el control de las
emociones, piedras angulares del ethos emberá. Pueden desembocar
en un estado de aburrimiento, que los lleva a “malpensar”, a aislarse,
a no querer ni comer ni hablar, a cantar en una lengua desconocida
y a dormir cada vez más. El peligro de este estado se concibe como el
traslado de la vida del individuo hacia el sueño: es empujado por el jaï
hacia un encierro progresivo en un espacio onírico poblado de malos
muertos que lo capturan mediante la seducción y el acoso.
Mientras que la prensa se apropia del tema, los chamanes, bajo
la presión de los cabildos y de las familias, enfrentan las crisis a duras
penas. Se les considera al mismo tiempo como posibles instigadores de
estas, para sancionar las relaciones sexuales extraétnicas de los jóvenes.
Su reputación, ya perjudicada, sufre de la ambivalencia de las familias
emberá, que oscilan entre la percepción de estas relaciones como
peligrosas para la vida comunitaria y la “cultura” y la preocupación por
sus hijos. A partir de ahí, la legitimidad chamánica va royéndose cada
vez más, mientras que la religión evangélica, presente entre los vecinos

6
Un relato mítico que recogí en Unión Emberá Katío en 2009, también evocado por
Lina Marcela Tobón Yagarí y María Patricia Tobón Yagarí (2012) y que parece haber
sido creado recientemente, pone en escena una aldea emberá en la que todos los
habitantes sufren crisis de convulsión generadas por la intrusión de un jaï malo.
Llega entonces un jaïbaná, que curará a toda la aldea gracias a una larga ceremonia
terapéutica, movilizando sus buenos jaï.
304 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

negros o mestizos, gana conversos en muchos resguardos afectados por


los suicidios.

“Los jaï se han vuelto contra nosotros, ningún


jaïbanà puede controlarlos ya. Somos víctimas de
nuestros muertos”7

Los jaïbaná del Chocó atribuyen siete suicidios emberá recientes,


de los cuales seis por ahorcamiento, a espíritus malignos,
provenientes de los muertos no enterrados del conflicto armado
que tiene lugar en toda la región. La aldea Unión emberá-katío
del río Salaqui acaba de construir una gran cruz hecha de jaguá,
árbol sagrado de los emberá, para que los proteja del mal.
(HERRERA, 2003, s. p.).

Desde principios de los años 2000, los suicidios, fenómeno


absolutamente inaudito en el universo emberá katío, se suceden por
oleadas sin cesar, hasta la fecha. De resguardo en resguardo, de aldea en
aldea, de región en región hasta la periferia de las ciudades, donde se
refugian numerosas familias emberá huyendo de la violencia armada.
Se multiplican estos casos y se repite el mismo guion. Tras un breve
periodo de calma de unos pocos meses, reaparecen en otra aldea, en
otra región.8 Numerosos jóvenes de entre diez y 30 años, muchachas
en su mayoría, se ahorcan en la viga de su casa con una paruma, la
falda tradicional.

7
Rodrigo Iván Sepúlveda López de Mesa cita al chamán en “Vivir las ideas, idear la
vida” (2008, p. 260).
8
Si los suicidios que afectan ante todo a los jóvenes aparecen de forma esporádica
en los años 2000 en otros pueblos indígenas de Colombia como los Wounaan y los
Cuna – vecinos de los Emberá Katío –, así como los Tucano, los Desana y los Cubeo
del Vaupés en la Amazonia colombiana (ROMERO CASTRO, 2009), la recurrencia,
la extensión y el carácter masivo de este fenómeno entre los Emberá y, en particular,
entre los del Chocó, de Antioquia y de Córdoba, son factores que justifican su
resonancia mediática e institucional. Sin embargo, no existe ninguna estadística
que evalúe el número de víctimas de este grupo amerindio; a lo sumo, unas pocas
estimaciones realizadas por trabajadores sociales y por antropólogos (en particular
aquellos que forman parte del Colectivo Jenzara) y que atañen a determinados
resguardos. Apoyándonos en estos datos, parece pertinente hablar de un centenar de
Emberá Katío suicidados en los últimos 15 años.
Regresos asesinos 305

En la lengua Emberá no existe una palabra equivalente a


“suicidio”: a la hora de construir los relatos, se recurre a la expresión
“matarse a sí mismo”. En cuanto ocurren las primeras muertes, las
autoridades intensifican todavía más el control y las reglamentaciones
de las actividades rituales terapéuticas de los jaïbaná, imponiéndoles
la “certificación” del cabildo o la actividad ritual conjunta con otros
chamanes. Estos requerimientos se hacen cada vez más acuciantes. La
incapacidad de los chamanes para impedir los suicidios incrementa
las sospechas de maleficio que pesan sobre ellos. Según numerosos
testimonios, les fuerzan a huir de muchos resguardos, cuando no los
matan o los bañan en una decocción hecha a base de una compleja
combinación de plantas: esta debe despojarlos de su poder chamánico.
Ni los jaïbaná invitados procedentes de lejanas aldeas emberá, ni
la presencia evangélica, en particular en las regiones montañosas
de Antioquia, logran frenar los suicidios por mucho tiempo. El
evangelismo introduce su lectura en términos de sanción divina de los
pecados y demoniza a los jaï, proponiendo rituales públicos preventivos
de exorcismo que se inscriben en una matriz de “guerra espiritual”.
Incluso más que la observación etnográfica de la violencia
externa, la de los suicidios debe lidiar con lo callado por jóvenes y
adultos, expresiones intensas de emociones potentes y contenidas. A lo
largo de los días, gracias a cierto conocimiento de la lengua Emberá,
que me permitía captar frases o palabras deshiladas y apresuradamente
murmuradas, gracias también a los gestos y a las mímicas de evocación
vislumbrados a lo largo de un encuentro, se perfila la omnipresencia
paradójica de este fenómeno que hace chocar temporalidades, entre el
pasado de los suicidios ya acontecidos y el temor ante los que surjan. Es,
al fin y al cabo, la evocación por parte de la antropóloga de su presencia
en la zona desde finales de los años 1970 lo que parece permitir que los
interlocutores de más edad recuerden el carácter inaudito, no “ancestral”
de los suicidios, lo cual, según ellos, justifica una intervención exterior.
En efecto, al constatar que la neutralización de los chamanes
locales no frena el fenómeno, la mayoría de los cabildos emberá katío
acaban recurriendo a instituciones exteriores, asumiendo romper el
silencio intracomunitario que rodea estos acontecimientos. Las ONG
nacionales e internacionales (entre las cuales están Oxfam y la Cruz
Roja) y las instituciones nacionales que gozan de importantes recursos
financieros envían a sus agentes, trabajadores sociales, psicólogos,
enfermeros y médicos únicamente a aquellos resguardos de los cuales se
alejaron temporalmente los actores armados. Así pues, muchas aldeas
emberá no recibirán ninguna visita de estas instituciones.
306 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

El planteamiento institucional asigna los suicidios al campo de


“la salud pública” y los clasifica en la categoría de “trastornos mentales”,
asociándolos a veces al nuevo consumo de marihuana e incluso de
crack de ciertos jóvenes Emberá, jornaleros en las haciendas y las aldeas
mestizas de los alrededores.
En segundo lugar, algunos programas, supervisados en ocasiones
por el organismo estatal de protección de la infancia, se extienden en tres
vertientes: el acompañamiento psicosocial, los proyectos productivos
y el refuerzo político del cabildo. La primera conlleva la organización
de talleres y de reuniones comunitarias, de sesiones de psicoterapia
individual y de grupos de ayuda mutua, acompañados por campañas
de atención médica de enfermedades comunes. Es probablemente en
estas interfaces cortas pero intensas con la biomedicina que los Emberá
se apropiaron el término “epidemia” para referirse a la expansión
del suicidio. No obstante, la elección de este término proyecta una
dimensión nueva en el suicidio: el contagio.
La segunda vertiente prevé un apoyo financiero y técnico en
la revitalización de la agricultura y la ganadería, la artesanía étnica
y la escuela local, así como la construcción de campos de fútbol y
casas comunitarias. En cuanto a la tercera, más allá de un efecto de
legitimización supralocal de los líderes, la realización de reuniones entre
representantes de instituciones y dirigentes de los cabildos tiene como
objetivo la creación de un “plan de vida” aprobado por los primeros.
Se espera que este proyecto multianual de desarrollo local refleje las
necesidades mayoritarias de los habitantes. La implementación de
estas actividades, así como la continua presencia de personas externas,
consideradas a la vez como recursos materiales y simbólicos y como
figuras mediadoras entre el grupo residencial y los actores armados,
logran calmar por un tiempo las oleadas de suicidios y parecen mitigar
los conflictos entre hombres y mujeres, familias y generaciones dentro
de los resguardos (MESA, 2008). Pero las tensiones y los suicidios
vuelven a aparecer, a veces incluso mientras se desarrollan los propios
programas, aunque suceden con más frecuencia al final de la corta
presencia de los intervinientes o a un nuevo acercamiento de los actores
armados (TOBÓN YAGARÍ; TOBÓN YAGARÍ, 2012).
Los relatos a posteriori de los allegados a los suicidados siguen
movilizando nuevas figuras de malas muertes violentas, convertidas
en espíritus incontrolables por los rituales chamánicos, así como su
irrupción diurna en el espacio social de las aldeas. Sin embargo, “matarse
a sí mismo” constituye una nueva salida de las wawamia (ataques)
Regresos asesinos 307

(TOBÓN YAGARÍ; TOBÓN YAGARÍ, 2012) y del “aburrimiento”, así


como del temor ante muertos peligrosamente seductores que quieren
llevarse a los vivos con ellos. El acto tiene lugar tras la experiencia de
otra forma relacional, inaudita entre un jaï y un humano: la entra-
da del primero en el cuerpo del segundo y su toma de posesión progresiva
del cuerpo y del jaure a la vez. Esto genera una nueva figura patológica,
expresada por un término que proviene del vocabulario exterior: la
locura, pues no existe ninguna palabra en Emberá para este concepto,
refractario al ritual terapéutico de los jaïbaná. Lejos de capturar y de
esconder el jaure o de herir los órganos del cuerpo como en el modelo
etiológico tradicional de las enfermedades reversibles, los nuevos jaï se
fusionan con la persona del enfermo y la empujan a matarse a sí misma
según modalidades que difuminan los límites del universo emberá. Usar
la falda tradicional como instrumento mortífero, proyectar la muerte
violenta hasta dentro de las casas con el ahorcamiento en la viga central,
refuerza la percepción colectiva de una invasión de la intimidad cultural
a través de la figura de la violencia asesina. Por añadidura, el resultado
de esta posesión, la muerte violenta, contribuye a aumentar la cifra
local de malos muertos que, a su vez, pueden invadir el cuerpo y el
espacio social emberá.
La irrupción de este cara a cara letal entre espíritus y humanos
remite a una transformación de la representación del sí colectivo: los
Emberá pasan de ser copartícipes de una relación con los espíritus
– antaño mediatizada por un poder chamánico protector – a ser
sus víctimas. En este proceso, la deslegitimización de la institución
chamánica se acompaña de la reducción de la multiplicidad y del
perfil polifónico tradicional de los jaï. En un primer momento, tienen
tendencia a fundirse en la nueva categoría de mala muerte surgida de la
violencia armada. Posteriormente, esta categoría parece cristalizarse en
la figura única de un nuevo espíritu, al que se describe en los años 1990
como el “jaï de la tontina”, para convertirse en los años 2000 en “como
paraco” (como paramilitar), vestido con un pantalón de uniforme verde
y botas militares (MESA, 2008). La representación de esta figura, cuya
nueva agencia permite atormentar, “seducir” y poseer después a los
individuos para empujarlos hacia el suicidio, parece fusionar el perfil de
los verdugos con la categoría de espíritus chamánicos provenientes
de sus víctimas. Dicha categoría, reconfigurada para acoger a los
muertos de la violencia armada, es demonizada por la influencia
evangélica. Por este cauce, los verdugos entran a la vez en el núcleo del
espacio social y de la corporeidad emberá. Una vez interiorizado, esta
308 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

peligrosa confrontación amenaza con reproducir indefinidamente la


destrucción violenta.

Desenterrar e identificar. ¿La nueva economía de


la muerte como economía moral?
El último avatar, revelador de los resortes simbólicos de este
proceso, parece ser la exhumación y la identificación de los restos de
las víctimas, lo que explica la profunda ambivalencia de los Emberá
al respecto. Desenterrar los restos, hacer emerger lo que queda de
los cadáveres en el mundo de los vivos significa para ellos desdoblar
su temible eficacia como malos muertos, provenientes de la violencia.
La exhumación acelera su transformación en jaï fuera del control
chamánico, temibles portadores de muertes. Por añadidura, el nombre
de las víctimas, resucitado por la identificación judicial y reinscrito en
la genealogía familiar en el momento de la devolución de sus restos,
contribuye todavía más a “reanimarlos”, a proyectarlos en el mundo de
los vivos como figuras de una muerte contagiosa. Desde la perspectiva
emberá, las exhumaciones y las identificaciones de las víctimas no
acaban de alimentar la autodestrucción suicida.
Así se dibuja una verdadera economía circular de la muerte
violenta. Lejos de alimentar la reproducción de los vivos, tal y como las
almas de los buenos muertos lo hacen, los jaure de las víctimas generan
jaï asesinos que invaden el espacio onírico y social de los Emberá,
empujando a los niños y a los jóvenes a matarse, para unirse a ellos a través
de la violencia. Desde esta perspectiva, los actos públicos – como las
exhumaciones, acordes con la lógica exterior de una razón humanitaria
(FASSIN, 2010) y de las que se espera que marquen simbólicamente el
fin de la violencia armada, generadora de mala muerte – se convierten
entonces en instrumento de fabricación de jaï asesinos.
Esta economía de la muerte se cimienta a nivel sociológico sobre
una frecuente destrucción física y una gran fragilización social de dos
figuras rivales de la autoridad: la figura reciente y política de los líderes y
la tradicional del chamán. La imagen de los primeros se hace ambigua
y equívoca con su transformación post mortem en figuras de depredación.
En cuanto al segundo, a la percepción tradicional de su ambivalencia
y de su peligrosidad, se añade su impotencia para frenar los daños
infligidos por los nuevos jaï. Esta última, con frecuencia considerada
Regresos asesinos 309

como prueba de su complicidad con los espíritus asesinos, conduce


a su repudiación.
Según el testimonio de numerosos estudios etnográficos y
etnohistóricos (WASSÉN, 1952; REICHEL-DOLMATOFF, 1960;
ISACSSON, 1973; STIPEK, 1975), el suicidio es ausente de la trayectoria
poscolonial de los Emberá. Fenómeno inaudito en la historia, su
aparición en olas sucesivas dentro de su espacio social constituye una
ruptura de sentido que exige una nueva elaboración cultural colectiva.
Sin embargo, para que la trama del sentido logre tejerse de nuevo
en la intimidad cultural, parece necesario inscribirla en términos
culturalmente familiares y no prestados, que formen parte del saber
implícito local. Así, la readaptación de la figura de los jaï y de sus modos
relacionales con los humanos sigue asociándoles a los espíritus, figuras
de una alteridad familiar. La nueva agencia que se les atribuye permite
justificar elecciones, actos y deseos inauditos o que escapan a las normas
tradicionales, como la muerte autoinfligida. Asignada a un exterior
sobrehumano, cuyo poder se impone sobre ellos, la responsabilidad de
dichos actos no corresponde ya a los humanos.
Este círculo vicioso creado por el engranaje de violencias remite a
la entrada de una lógica exterior de masacre en el núcleo de la intimidad
emberá. Se plasma en los suicidios de los jóvenes, asesinatos desviados
hacia sí mismos e imputados a los malos muertos que se convierten en
espíritus asesinos. ¿Esta fractura en la sucesión de generaciones estaría
ligada con la imposibilidad de venganza ante la violencia armada,
venganza como reciprocidad negativa?
No obstante, la apropiación emberá del término “epidemia” para
captar el carácter expansivo, contagioso e imprevisible de los suicidios
crea una pasarela hacia las interpretaciones del fenómeno, generadas
por determinados intervinientes exteriores, trabajadores sociales y
antropólogos. Estos discursos, a veces rechazados por los cabildos,
vinculan los suicidios con la fuerte conflictividad interna de los grupos
locales Emberá, traducida en profundas divisiones intergeneracionales,
como entre chamanes, entre hombres y mujeres y entre líderes y
miembros del resguardo. Estos conflictos, exacerbados por el aisla-
miento y la penuria, generados por la presencia de actores violentos,
conducirían a la desorganización de los grupos. Estas interpretaciones,
difundidas por la prensa, reflejan el cotidiano de muchos resguardos,
pero proponen, sobre todo, un nuevo idioma supralocal para hablar
de ello, una alternativa al silencio y al tabú comunitario, tradicionales
estrategias de defensa del sí. Además, estas interpretaciones proyectan
310 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

en filigrana un modelo de salida de la economía circular de la muerte


a través del voluntarismo social, en manos de los humanos. Por ende,
estos discursos contienen elementos movilizados contextualmente por
los Emberá, que desmienten la percepción del suicidio como estrategia
culturalmente aceptada ante la adversidad. En cambio, soslayan el
trasfondo de esta cadena de acontecimientos que, por el contrario, es
asumida por la elaboración indígena: la identificación de actores no
humanos desencadenantes y de sus modos de acción.
De forma paralela, van surgiendo nuevos rituales que reúnen
elementos heterogéneos para intentar “pacificar” a los muertos
exhumados, identificados y devueltos. En el momento de la apertura de
las fosas y en el de la inhumación, rearticulan, muchas veces de manera
improvisada, elementos de la parafernalia chamánica, lamentaciones
fúnebres tradicionales y oraciones provenientes del catolicismo popular
negro o mestizo, a lo que se añade la evocación de figuras neoindígenas
como la Madre Tierra. La iniciativa ritual corresponde frecuentemente
a las mujeres, madres de las víctimas: este nuevo papel preeminente
contrasta con su papel tradicional, menos destacado, en los ritos
mortuorios. A ello se añade una ritualización funeraria de los discursos
políticos de los líderes que movilizan fórmulas conmemorativas
provenientes de la cultura mestiza. Por lo demás, muchos de los
interlocutores de más edad toman a pecho el hecho de recordar lo que,
a su juicio, constituye la prueba que los jaure de los buenos muertos
siguen “subiendo”: el reciente crecimiento de las hermandades emberá,
promovidas y valorizadas por la dirección de los cabildos en nombre de
la “defensa de la cultura y de la identidad”.
Esta economía emberá de la muerte, articulada en torno a figuras
victimarias convertidas en predadoras sin límites ni reciprocidad,
¿formaría parte de una economía moral? Si se concibe esta última como
“la producción, la repartición, la circulación y el uso de sentimientos
morales, de emociones y de valores dentro de una sociedad” (FASSIN,
2009, p. 1259), hemos de constatar que el perfil, el sentido y los usos
sociales y narrativos de los malos muertos convertidos en jaï, dotados
de una nueva agencia, transmiten y ponen en escena no solo una nueva
representación del sí colectivo en términos victimarios, sino también una
gestión de valores y de formas emergentes de expresión de las emociones
vinculadas a este. No obstante, la coexistencia y la activación contextual
de registros discursivos y pragmáticos heterogéneos y contradictorios
que configuran la inteligibilidad emberá de nuevas formas de muerte
y de luto sirven también para sostener formas emergentes de reparación
Regresos asesinos 311

y de resiliencia colectivas. En estas últimas, la intervención de un


lenguaje y de agentes terceros exteriores parece imprescindible para
ejercer de mediador y de tapón entre los Emberá y sus espíritus. Así se
dibuja una economía moral de transición.
En esta trágica maraña de violencias que desconcierta al
etnógrafo y cuestiona las herramientas conceptuales de la antropología,
la nueva relación emberá con la muerte cuestiona la capacidad de
estas sociedades amenazadas de inventar, a partir de representaciones
cosmológicas tradicionales, formas, funciones y sentidos nuevos de
su panoplia espiritual, acogiendo en ella a nuevas figuras. Estas confi-
guraciones tienen tal vez mayor capacidad de explicar lo inexplicado y
lo contradictorio, así como de dar constancia de ello, que los discursos
compasionales formulados en el espacio nacional y global. Pueden
brindar nuevos recursos que permiten recomponer una vez más su
economía moral.

Referencias
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LOS REFUGIADOS. Situación Colombia: hoja informativa diciembre
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PARTE III

Narrativa, ritual e
performance
Narrativas y experiencias de
mujeres indígenas en la
historia colonial

Juana Valentina Nieto Moreno

Introducción
En 1984, Jean Langdon publicó “Siona women and modernization:
effects on their status and mobility”, un artículo pionero en visibilizar
las transformaciones del estatus de las mujeres indígenas amazónicas
en un contexto histórico de colonización y expansión de la economía
capitalista y los gobiernos nacionales. En este artículo, Jean nota que la
migración de las mujeres Siona a los centros urbanos en los años 1970s
reflejaba una tendencia en aumento en América Latina. De hecho, en la
segunda mitad del siglo XX, las ciudades latinoamericanas crecieron,
recibiendo mujeres indígenas, campesinas, rurales que llegaron a
limpiar y ejercer los oficios domésticos de las casas de las familias de
clase media y alta urbana. Estas mujeres llegaron a ejercer un oficio
subvalorado, mal remunerado, sin regulaciones legales, que las colocaba
en el eje de múltiples sistemas de discriminación – de género, etnia, clase
y condición migratoria. Como notan trabajos recientes (SÁNCHEZ,
2011; CHERNELA, 2015; NIETO MORENO, 2017, 2021; ROSAS,
2021), la Amazonia no fue ajena a esta realidad, lo que contrasta con
la ausencia de los análisis de este fenómeno en la antropología de las
tierras bajas de América Latina en las décadas posteriores al artículo
de Jean. Pese a que el género no es un tema central en la obra de Jean
Langdon, sus preocupaciones sobre la condición de las mujeres y las
relaciones de género entre los Siona estuvieron presentes desde el inicio
de su carrera.
Comienzo este artículo destacando los importantes aportes de la
obra de Jean Langdon a los estudios de género, y la agencia femenina en
la etnología amazónica a partir de varias de sus publicaciones. Después
316 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

de esta primera parte, hablaré de mi investigación de doctorado,


orientada por Jean, sobre narrativas de movilidad y migración de
mujeres Murui, un grupo indígena de la Amazonia colombo-peruana.
Discuto que un enfoque en narrativas y movilidades es una apuesta
para comprender la heterogeneidad de las experiencias de las mujeres
indígenas en el mundo contemporáneo desde su punto de vista, sus
memorias, reflexiones y construcciones narrativas. Para ilustrar este
enfoque, presento las historias de dos mujeres Murui de generaciones
diferentes que conocí en Bogotá, para luego discutir algunos asuntos
que surgieron en esta investigación y que nos invitan a pensar en las
posibilidades y limitaciones de la agencia de las mujeres indígenas en
el mundo contemporáneo, en medio de diferentes configuraciones
sociales y universos culturales, atravesados por múltiples fronteras,
opresiones y explotaciones.

Jean Langdon y su aporte a los estudios de género


y la agencia femenina en la Amazonia
Jean presenta originalmente el artículo “Siona women and
modernization: effects on their status and mobility” en 1979, en el
simposio “Women’s roles in traditional and modernizing societies”,
organizado pelo “78th Annual Meeting of the American Anthropological
Association”. En aquella época, Jean y William Vickers eran los únicos
antropólogos que habían hecho trabajo de campo prolongado entre
los Tucano occidentales, Vickers desde 1976 con los Siona-Secoya de
Ecuador y Jean, que vivió por 24 meses, entre 1970 e 1974, entre los
Siona del rio Putumayo en Colombia (LANGDON, 2017).
Durante los cuatro años que Jean estuvo en Colombia (a inicio de
los 1970s), nació y se desarrolló la “antropología de la mujer”, precursora
de la antropología feminista, que, entre otras cosas, problematizó el
androcentrismo de la literatura antropológica, que consideraba a las
mujeres como “esencialmente carentes en importancia e irrelevante”
(ROSALDO, 1974, p. 17), con la consecuente invisibilidad analítica de
la experiencia femenina (MOORE, 2004 [1991]).
De regreso a los Estados Unidos, Jean entró a trabajar en el Cedar
Crest College, una universidad femenina, dónde coordinó el proceso de
recredenciamento de una facultad cuya misión era educar a las mujeres,
y se envolvió en los asuntos de los “nuevos estudios sobre la mujer”,
examinando su impacto en la educación superior (LANGDON, 1981,
Narrativas y experiencias de mujeres indígenas en la historia colonial 317

1985).1 En esta universidad, dictó el curso de “Papeles sexuales”, que la


condujo a una revisión sobre la literatura de género en los 1970s. Las
nuevas inquietudes que surgieron de estos trabajos y su participación
en congresos donde conoció otras antropólogas que trabajaban con
poblaciones indígenas (Jean Jackson, Christina Hugh-Jones, Gertrude
Dole, Joan Bamberger, Alcida Ramos, Judy Shapiro, Joanna Overing,
Janet Siskind e Irene Bellier) la llevó a reexaminar los materiales sobre
los Siona (LANGDON, 1982, 1984a, 1984b, 1988, 1991, 2013a).
En la etnología amazónica, el antagonismo sexual, sustentado en
la idea de la universalización de la dominación masculina (LASMAR,
1999), fue el modelo a través del cual se pensaron las relaciones de
género (MURPHY, 1959; SISKIND, 1973; BAMBERGER, 1974;
MURPHY; MURPHY, 2004 [1974]).2 La experiencia de Jean, como la de
Vickers con los Tucano occidentales ofrecieron evidencias importantes
para desafiar las generalizaciones sobre el antagonismo sexual como
paradigma estructurante de las relaciones de género en esta región.
Jean Langdon (1982, 1984b, 1988, 1991) mostró que el antagonismo
sexual no se ajustaba a la realidad de los Siona, porque, a pesar de que
el sistema de prestigio ritual y las actividades de organización política
centradas en el chamanismo eran de dominio masculino, las relaciones
de género en la vida cotidiana estaban marcadas por la reciprocidad y
complementariedad de tareas, predominando la cooperación, el respeto,
y ausencia de tensión y conflicto. Las actividades de las mujeres, como
cuidar de los cultivos y alimentar a sus familiares, eran valorizadas, y
sus opiniones eran escuchadas por todos, teniendo influencia en las
decisiones colectivas. Su cuestionamiento a la universalización de
la dominación masculina desde los procesos y prácticas cotidianas y la
preminencia de un ethos pacífico en el día a día fueron pioneros de
la perspectiva de género que se popularizó décadas después con el
trabajo de autoras como Overing (1986), Belaunde (1992, 1994, 2001,
2005), y McCallum (1996, 1999, 2001).
En 1971, acompañando a su esposo en su investigación doctoral,
Jean visitó los Barasana, un grupo Tucano oriental del Vaupés, donde

1
Uno de estos trabajos fue traducido en Brasil (LANGDON, 1985).
2
Este fue caracterizado por Naomi Quinn (1977) como un complejo mítico-ritual
basado en la oposición y separación entre los sexos, la amenaza institucionalizada
de violencia colectiva contra las mujeres, ideas de agotamiento sexual masculino,
contaminación femenina, rituales prohibidos para mujeres y niños y enfatiza las
diferencias de género en términos de poder y estatus.
318 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

observó importantes contrastes en las relaciones de género, en relación


con los Siona (LANGDON, 1982, 1988, 2013a). Aunque ambos grupos
comparten un cuerpo mítico y principios cosmológicos similares, en
las relaciones diarias los Barasana mantenían un marcado antagonismo
sexual. Con base en este contraste y su interés en la praxis, Jean llama
la atención sobre la importancia de tener en cuenta varios factores
– no solo la ideología o el aporte a la subsistencia – a la hora de analizar
la situación de las mujeres en cualquier sociedad. Jean enfatiza que las
concepciones de género surgen de diferentes formas de acción, siendo
necesario no solo tener en cuenta las representaciones de género en
las estructuras simbólicas expresadas en mitos, ritos y narrativas, sino
también en la praxis cotidiana, sin perder de vista las transformaciones
producidas por la historia colonial (LANGDON, 1984a).
En su artículo de 1984, Langdon indaga sobre los cambios
en el estatus de las mujeres indígenas Siona desde una perspectiva
transcultural, su incorporación a las economías nacionales, al trabajo
asalariado, la migración a las ciudades y los matrimonios con hombres
no indígenas. En contraste con la idea de que el desarrollo tendría
una influencia positiva para la vida de las mujeres, garantizando una
mayor libertad e igualdad, Jean argumenta que la incorporación a las
economías del mercado y la migración a las ciudades tenía un impacto
negativo en el estatus de las mujeres Siona. En relación con la migración
y movilidad hacia las ciudades, ella nota el predominio de la salida de
mujeres jóvenes en comparación a los hombres. Su salida se daba por
dos principales vías: como esposas de hombres no indígenas, o como
empleadas domésticas en hogares de familias urbanas. En el primer
caso, era común que las mujeres perdieran el contacto con sus familias
y, en ocasiones, estas alianzas terminaban en trágicos feminicidios.
A diferencia de los matrimonios entre los Siona, en los matrimonios con
hombres no indígenas las mujeres pasaban a depender económicamente
del esposo, quedando así más vulnerables a la violencia doméstica.
También notó mayores transformaciones en las relaciones de género
entre los hombres Siona que habían establecido fuertes vínculos con
la economía de mercado, como el caso de los que trabajaban como
jornaleros. Estos hombres tenían mayores problemas con el alcohol e
incluso reproducían comportamientos machistas comunes en otras
regiones del país. A diferencia de estos pocos casos, en la mayoría
mantenían relaciones igualitarias y pacíficas.
La segunda ruta por la que migraban las jóvenes Siona era el
servicio doméstico, una forma de vínculo laboral que históricamente
Narrativas y experiencias de mujeres indígenas en la historia colonial 319

ha sido la puerta de entrada de las mujeres indígenas a las ciudades


latinoamericanas y al mercado laboral a lo largo del siglo XX (NIETO
MORENO, en imprenta). Esta vinculación se daba a través de lazos de
compadrazgo que la gente indígena establecía con actores no indígenas
que pasaban por la región del Putumayo. Las familias en las ciudades
preferían las jóvenes indígenas por ser tímidas, obedientes, sin redes
de apoyo locales. Jean nota la explotación laboral a la que muchas de
ellas eran sometidas: sin límite de tiempo, ni funciones, un trabajo
mal remunerado, infravalorado y con ninguna o poca regulación legal.
Como señalamos en otro trabajo (NIETO MORENO; LANGDON,
2020), estas formas de violencia contra las mujeres indígenas han tenido
poca visibilidad en la memoria histórica, en los discursos de reclamos y
resistencias étnicas, así como en la literatura antropológica de la región.
Cuando Jean se radicó en Brasil en los 1980s, fue la primera
profesora en dictar el curso de “Papeles sexuales” en la Universidad
Federal de Santa Catarina, y en 1988, en la reunión 16 de la Associación
Brasileña de Antropología (ABA), presentó “Mulheres na ideologia e na
vida cotidiana dos Siona” (1988). Con la presentación de este trabajo,
Jean notó que “meus interesses na práxis não estavam batendo com os
estudos de gênero que aqui estavam iniciando. Abandonei o tema após
esta apresentação” (conversación personal). Ella descubrió que las
antropólogas brasileñas se hacían otras preguntas y los estudios de
género en Brasil seguían una vertiente más feminista y más orientada
hacia la sociedad compleja (LANGDON, 2013a). Sus contribuciones
más conocidas en la antropología brasileña son en la antropología de
la salud, la política de salud indígena, chamanismo, literatura oral,
performance y, más recientemente, la discusión sobre las antropologías
de la periferia (LANGDON, 2013a).

Un enfoque antropológico en narrativas


Los Murui son uno de los grupos indígenas pertenecientes a
los autodenominados Gente de Centro,3 grupos vecinos de los Siona,
que tiene como territorio original la zona entre los ríos Caquetá y

3
Gente de Centro es una identidad supra-étnica autodefinida en los años 1980 y
1990. Está formado por ocho grupos étnicos: Murui (Uitoto), Ocaina, Nonuya, Borá,
Miraña, Muinane, Resigaro y Andoke, que hablan idiomas mutuamente inteligibles
(FAGUA, 2015).
320 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Putumayo, en la cuenca amazónica. En el pasado, la Gente de Centro


vivía en grandes malocas, ocupando la tierra firme y estaba organizada
en grupos de patrilinajes. El holocausto del boom del caucho a inicio del
siglo XX llevó a estos grupos al límite del exterminio, los sobrevivientes
fueron desplazados o concentrados en los pueblos de las misiones
católicas (ECHEVERRI, 1997). La Chorrera, El Encanto, Araracuara
y Puerto Santander se fueron constituyendo como poblados indígenas
con cierta infraestructura urbana, dónde circulan funcionarias(os)
estatales, religiosas(os), visitantes, comerciantes, investigadoras(es), y
con ellas(os), información, imaginarios, vínculos afectivos, económicos
y sociales con las ciudades regionales y las capitales del país (SÁNCHEZ,
2010). El establecimiento de estas redes, la fuerza de atracción que las
ciudades fueron ejerciendo como lugar de oportunidades y la articulación
al movimiento indígena nacional, sumado a la violencia estructural que
fueron dejando los auges extractivos posteriores (pieles, coca, madera,
oro), además del conflicto armado, motivaron la migración y movilidad
de los indígenas hacia las ciudades. Actualmente se estima que la Gente
de Centro tiene una población de 11,6 mil personas, de las cuales
6,8 mil habita en el Predio Putumayo, y el resto, en asentamientos
en otras regiones de la Amazonia colombo-peruana. Su presencia en
la ciudad de Bogotá es cada vez más notable. Entre los dos cabildos
indígenas Murui de Bogotá hay aproximadamente 250 familias, sin
contar las que no están adscritas a estas organizaciones.
La primera vez que hice trabajo de campo con los Murui fue en
el 2005 para la investigación de la maestría en la comunidad murui
Nimairai Naimeki Ibiri, un asentamiento cercano a la ciudad de Leticia,
al sur de la Amazonia Colombiana.4 A pesar de que esta comunidad
se encuentra en un territorio restringido, sus habitantes logran
mantener una economía que combina actividades de auto subsistencia
– horticultura, cacería y pesca –, con actividades de obtención de dinero
en la ciudad: venta de artesanías, alimentos o contratos esporádicos.
En esta etnografía, concluí que las mujeres Murui mantenían una
gran autonomía en virtud de las redes de solidaridad entre mujeres,
así como de sus habilidades y conocimientos en la producción y
distribución de alimentos cultivados. Titulé este trabajo “Mujeres de la
Abundancia” (NIETO MORENO, 2006), un concepto nativo que refiere
la agencialidad femenina como la capacidad de producir y distribuir

4
Tesis de maestría, orientada por Juan Alvaro Echeverri y defendida en la Universidad
Nacional de Colombia, Sede Amazonia.
Narrativas y experiencias de mujeres indígenas en la historia colonial 321

comida en abundancia y mantener las buenas relaciones con los


parientes, comuneros, poblaciones vecinas, y otros habitantes humanos
y no humanos del territorio. La abundancia es así un ideal moral, con un
fuerte significado social y simbólico, central en las nociones locales de
bienestar, salud, vinculado a la agencia femenina, a su experiencia como
mujeres y a sus prácticas cotidianas.
Ahora bien, esta autonomía contrastaba con otra realidad, la
de muchas mujeres Murui que desde los años 1980s salieron hacia las
capitales del país en busca de otras oportunidades. Si de un lado la vida
en comunidad, la chagra, los alimentos tradicionales, las relaciones con
los parientes, eran altamente valorizados, en las historias de vida de
varias mujeres se evidenciaba una gran movilidad hacia las ciudades.
La mayoría ya había vivido en ciudades del Perú, Colombia y Brasil,
estudiando o/y trabajando como empleadas domésticas, o viviendo con
un cónyuge no indígena y las más jóvenes anhelaban viajar a Bogotá
para estudiar, profesionalizarse, vivir y vestirse elegantemente como una
mujer de ciudad. Los hombres también viajaban, pero su movilidad a las
ciudades ha sido menor, en contraste con las mujeres.
Bogotá es una metrópoli con más de 7 millones de personas
donde, según parte de la literatura, los indígenas viven en una realidad
de marginalidad, pobreza y desigualdad social. Las mujeres ¿estarían
dejando la abundancia en sus territorios para vivir un mundo de
pobreza en la ciudad? Y si la producción hortícola y la chagra son tan
importantes y tan valoradas, ¿por qué ellas decidieron probar suerte en
las grandes ciudades, donde no tenían posibilidad de cultivar? Con estas
inquietudes, me propuse investigar la movilidad de las mujeres Murui
desde su punto de vista, sus recuerdos, reflexiones e interpretaciones.
Como orientadora, Jean incentivó en mi la importancia de
reconocer y visibilizar la heterogeneidad de experiencias y el riesgo
del abuso de las generalizaciones en el análisis etnográfico. Feministas
decoloniales como Chandra Mohanty (1984) nos han advertido sobre la
colonización discursiva con la que el feminismo “occidental” representa
a las mujeres del “tercer mundo”, suprimiendo las heterogeneidades
materiales e históricas que constituyen sus vidas y luchas. Opté por seguir
el camino propuesto por Suely Kofes (2001) de hacer de la intención
biográfica5 un ejercicio etnográfico, buscando evitar generalizaciones
y sus efectos de homogeneidad, cohesión y atemporalidad (ABU-

5
Según Suely Kofes (2001), el enfoque biográfico no es estrictamente una biografía, ya
que se centra en la experiencia de un sujeto y no pretende reconstruir su vida.
322 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

LUGHOD, 1991), teniendo en cuenta las fuerzas y dinámicas históricas,


pero subordinando estas a las palabras de las mujeres y sus posibilidades
de agencia.
El trabajo intelectual de Jean sobre narrativas fue una guía em
todo el proceso de investigación (cf. LANGDON, 1993, 1997b, 1999,
2001, 2013a, 2018). La narrativa es un modo de expresión fundamental
en que los seres humanos organizan y dan forma a la experiencia,
otorgándole un sentido (BRUNER, 1991). Es una actividad creativa,
imaginativa, en que la(el) narradora(or) conecta momentos distintos,
percepciones, evocaciones, sentimientos, en secuencias de eventos
temporales. Narrando, las personas recuerdan, relacionan la vida,
comunican eventos, acciones, sentimientos, presentan las estrategias
para resolver las situaciones, reflexionan sobre estas, expresando
valores, presuposiciones sociales y significados culturales. Según Ochs
y Capps (1996), más importante que la experiencia representada por
las generalizaciones, una narrativa personal nos confronta con un rico
abanico de posibilidades y experiencias en diferentes realidades y en
períodos históricos específicos. Así, nace de la experiencia y al mismo
tiempo le da forma, es un conocimiento reflexivo sobre las formas de
ser o habitar el mundo, que transforma los viajes de la vida, pasados,
presentes y posibles, en secuencias de eventos que evocan perspectivas
de cambio y permanencia (OCHS; CAPPS, 1996). En suma, examinar
las narrativas biográficas como objeto de investigación supuso
priorizarlas en sus aspectos ambiguos, sus múltiples interpretaciones,
su actualización en el presente y como lugar de invención y creación.
Dado que el significado de la narrativa como forma de
comunicación emerge en la interacción social y en el contexto de su
producción (LANGDON, 1999), es importante señalar que estas
narrativas surgieron en el contexto de la conversación etnográfica. En la
casa de ellas, en un bus, en una cafetería de la ciudad o en mi casa, nos
encontramos varias veces y conversábamos. Yo les contaba mis intereses
de investigación, mi experiencia con la gente Murui en Leticia, y luego
dejaba que la conversación tomara su propio ritmo. Ellas construían y
creaban narrativas de sus vidas a partir de los eventos que consideraban
determinantes en sus vidas. Narrando, ellas tejían historias con las
fibras de la memoria, haciendo nudos que tejían eventos críticos,
tránsitos, relaciones, lugares, distanciamientos, afectos, sentimientos
y luchas. Reflexionaban sobre estas experiencias, reinterpretándolas,
resignificándolas, dando un sentido a partir de su presente y creando
perspectivas para el futuro (BRUNER, 1991; LANGDON, 1993, 1999).
Narrativas y experiencias de mujeres indígenas en la historia colonial 323

A continuación, recontaré las historias de Alicia y Ana, dos


mujeres Murui que nacieron en el Igaraparaná, afluente del rio
Putumayo, en diferentes épocas (1940s y 1970s respectivamente). Las
dos estaban en Bogotá en el 2015, cuando hice el trabajo de campo.
Ambas migraron en los 1990s, Alicia para Leticia (pero estaba visitando
a su hija en Bogotá) y Ana para Bogotá. Como nueva narradora, escogí
estas historias, pues considero que revelan la riqueza del enfoque
narrativo para comprender y visibilizar la complejidad de la experiencia
social de las mujeres indígenas en la historia colonial. Escuchar a las
mujeres indígenas nos permitirá construir otras narrativas sobre
las mujeres indígenas, como pensadoras y creadoras de palabra, en vez
de víctimas, pobres o marginales (BEHAR, 1990; MOHANTY, 2008).

Tránsitos de las mujeres Murui

Alicia

Conocí a Alicia en el 2015, en una reunión de parteras


tradicionales, indígenas y afrocolombianas organizada por el Ministerio
de Cultura en la casa de Mutesa, en Bogotá, una fundación de mujeres
indígenas. Tenía 71 años y estaba de visita para participar del evento,
pues como muchas mujeres Murui de su edad, parió sus hijos sola. Hace
años que no visitaba Bogotá, como acostumbraba a hacerlo en años
anteriores, cuando su hija estudiaba en la ciudad y Alicia la visitaba,
aprovechando también para abastecer la tienda que tuvo por años en La
Chorrera. En el 2015, Alicia vivía em Leticia con su compañero.
Conversamos acostadas en las hamacas del segundo piso de
la casa de Mutesa, en el barrio Teusaquillo, en Bogotá. Con voz baja,
abusando de las onomatopeyas y usando su cuerpo para escenificar los
diálogos con la forma y el ritmo de quien heredó la tradición oral, Alicia
me contó historias de su vida. Comenzó hablando de su infancia, hacia
1950, em algún lugar del rio Igaraparaná (tributario al rio Putumayo),
en la maloca de su abuelo Nemerayema, del clan imeraiai. Allí vivía
con su madre y hermanos, después de quedar huérfana de padre. Al
no tener padre, ni ella ni sus hermanos recibían casabe con carne de
cacería ofrecido por los anfitriones a los hombres que cantan. “Todos
los que tienen papá, su papá canta y los dueños del baile le dan de
regalo carne envuelta en el casabe y le dejan su canasto con comida. Y a
nosotros ¿quién nos daba?” Estas son las consecuencias de la orfandad
324 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

paterna en una sociedad organizada por vínculos patrilineales, que se


reproduce gracias a una división complementaria de responsabilidades
generificadas. Gracias a su tío paterno, que asumió las tareas masculinas,
su madre tenía una chagra grande y comían carne de cacería. Alicia
recuerda a su madre como una mujer trabajadora, una “buena mujer”.
Con ella y sus hermanos bajaban por el rio hasta el poblado de La
Chorrera para vender sus gallinas, comprar jabón y aceite y confesarse
en la iglesia.
A los seis años, Alicia entró a estudiar al internado católico y
femenino de Las Lauritas, como se conocían la congregación de las
Hermanas de María Inmaculada, en La Chorrera. Alicia no aguantó los
malos tratos recibidos por las monjas y regresó al lado de su madre, con
quién aprendió las artes de la chagra, hasta que un día su madre partió
con un comerciante del interior del país:

– Usted tiene que estar bien juiciosa. Yo regreso, voy a traerle


ropa, zapatos. Me voy porque ya todos consiguieron marido y
usted no. ¿Usted no quiere?
– Yo no mami, yo no quiero.

“Yo lloré”, me cuenta Alicia con los ojos aguados. Pasó la noche
sentada al frente de la casa llorando. Su hermano la vio, y le preguntó:

– Hermanita ¿qué hace?


– Mi mamá se fue, ya se fue.
– Siéntese a mi lado. Niña de 15 años ya tiene marido y usted no
quiere, ¿qué espera?
– No, yo no voy a tener marido, yo no.

Con el deseo de que algún día su hermano la llevara a estudiar


al internado de una ciudad regional, ella regresó al internado de La
Chorrera. Tocó la puerta:

– Ya, hermana.
– ¿Tiene maleta, tiene su ropita?,
– Si, asisito, hermana.
– Venga, venga, vamos a trabajar así, porque algún día usted va
a tener marido.
– ¡Ay!, de marido estoy aburrida que me digan. ¡Consiga
marido!, mi mamá dijo, ¡consiga marido!, dice mi hermano
Narrativas y experiencias de mujeres indígenas en la historia colonial 325

mayor. […] Ese es mi pensamiento, yo no quiero sembrar, no me


quiero casar.

En el internado, las monjas eran rígidas. Si veían a las niñas


hablando Murui las castigaban, tenían que repetir una hora: “Jesús,
Jesús, Jesús, Jesús, Jesús”. Pero ella “nunca se dejó” de ellas, siempre fue
una mujer rebelde. Entre castigos y consejos de las monjas, aprendió
a cocinar como “los blancos”, a sudar, a hacer sopa y hacer café, coser,
bordar, remendar, zurcir, tejer. Mientras, aprendía a rezar, incorporaba
las técnicas femeninas del ámbito doméstico del patriarcado cristiano y
colonial, y asimilaba la modestia, el pudor y el recato.
Alicia insistía que no se quería casar. Antiguamente los matrimonios
eran acordados por los padres de los novios – tradicionalmente jefes
de linajes –, que escogían los futuros esposos de sus hijas. Con la
llegada de los internados, las monjas comenzaron a participar de esos
acuerdos, tomando decisiones o colaborando en el estabelecimiento de
las uniones. La joven permanecía interna en la escuela, y era visitada por
su pretendiente que, junto a las monjas, intentaba convencerla. Estas no
siempre respetaban los acuerdos hechos por los padres, proponiendo
otros pretendientes y muchas veces creando conflictos entre los clanes.
Muchas mujeres dicen haberse negado a casarse cuando jóvenes,
pues la vida marital era percibida como difícil y sufrida, prefiriendo ser
monjas o con la esperanza de terminar los estudios en la ciudad. Pero
las monjas solo las dejaban salir casadas. Así que cuando Alicia tenía 15
años, un domingo, después de la misa y del juego de baloncesto de las
jóvenes en el pueblo, una de las monjas le contó a Alicia que un joven
la quería:

– ¿Como se llama?
Y nombró papá de mi hijo.
– No, hermanita.
– Usted va a tener visita de él.
– Yo no quiero marido nunca.
Yo en la cocina a veces bien, trabajando, haciendo de comer:
– Visita para usted – me decían – Vaya cámbiese. Y yo me
escondía en dormitorio.

El joven insistió, la visitó durante un año, y bajo la vigilancia de la


monja, le preguntaba: “¿Usted me quiere?”, pero Alicia no respondía, ni
siquiera levantaba la mirada. Hasta que sus futuros suegros la visitaron y
326 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

le llevaron de regalo pescado, comida y ropas. La monja la aconsejó: “Hay


que decir que sí, porque esa familia le quiere”. Esta vez ella respondió:
“Sí, me voy a casar, porque ya vino con mis suegros, ya vinieron los tres”.
A las 7 de la mañana, en la iglesia de La Chorrera se casó Alicia,
vestida de blanco con un vestido que le cosió la monja amiga. También
le organizó una maleta con una hamaca y un juego de sábanas y de
regalo le dio una pareja de cerdos, otra de perros y otra de patos. Y así se
fue Alicia a vivir con los suegros. Los primeros días fueron muy tristes:

Mi suegra me decía:
– Hija, no esté triste, usted va a estar bien aquí.
Mi suegra me daba consejo, mi cuñada me daba consejo:
– Ya van a tener hijos – decía mi suegra. Ya mi pensamiento,
mucho pensamiento.
Ya vino mi hijo, ya yo miraba mi hijo, bien bonito. Mi suegro nos
quería, nos cuidaba con su velita, sentado. Nosotros vivíamos
juntos, pero teníamos nuestra casita aparte porque si viene su
bebé, uno tiene que tener su casa aparte.
Después ya los dos nos sacamos los hijos, bien bonito. Después
viene mi suegra a mirar, lava el cuerpo del niño. [Tuve a] todos
solita, [a] los seis hijos.
Ya cuando nació la niña, a medianoche ya nació y de mañanita
lloró duro, mi suegra lavó todo su cuerpito y el viejito dice:
– Este es mi hija, este es mi corazón – sí que le quería.
Ya teníamos chagra. Vivíamos bien.

Con cuidados y consejos, Alicia fue acogida por la suegra, el


suegro y las cuñadas. Con esos cuidados, el nacimiento de su primer
hijo y mucho “pensamiento”, Alicia fue acostumbrándose a la vida en el
nuevo lugar.
Alicia me contó que, para darle estudio a su hija menor, como le
aconsejaba la monja amiga, ella vendió los cerdos, las gallinas, y con su
familia, se mudó para La Chorrera, donde abrieron una panadería.

Ya después en el pueblo [La Chorrera] ya teníamos casa, yo tenía


mi panadería, yo trabajaba, tenía mi negocio en Chorrera. Mi
esposo hizo un horno grande y ya nosotros hacíamos pan, se
vendía todo.
Ahí yo venía cada dos meses a hacer compras a Bogotá a
comprar dulcería.
Narrativas y experiencias de mujeres indígenas en la historia colonial 327

[Valentina]
– ¿Quién te enseñó a hacer pan?
[Alicia]
– La monjita.
Hermana nos decía:
– A tu hija usted va a dar estudio, usted no estudió, tu hija tiene
que estudiar, su hija tiene que estudiar, le va a enseñar.

Su hija es de las pocas indígenas que terminó el bachillerato en


el interior del país gracias a una beca que le consiguió un religioso y el
trabajo de sus padres en la panadería.
En los 1990s, Alicia decidió irse a la ciudad con un joven indígena
que se enamoró de ella. Ella agradece a su exesposo el haber criado a sus
hijos juntos, y enfrentando la censura social, se va a una ciudad regional
dónde tiene la libertad de tener chagra y salir a andar al pueblo, sin que
la molesten, ni la maltraten:

Yo nunca, nunca, rechazo mi viejo, bonito, criamos los hijos, y


por qué yo voy a rechazar mi viejito.
Este con el que vivo es joven, no me maltrata. Yo lo regaño, yo
le digo de todo, él agacha la cabeza no más. Yo ya vivo 22 años
con él. Él se enamoró de mí, me quería. Yo lavo mi ropa, doy de
comer a mis perros, mi gallina, voy para el pueblo, así, yo tengo
mis amigas, hago mis artesanías, él no molesta.

Ana

Una amiga Murui de Ana que también vive en Bogotá me contactó


con ella. Era difícil encontrarla porque andaba ocupada, trabajando en
su negocio de confección de uniformes escolares, o como líder en el
concejo del barrio, donde es representante de los grupos étnicos. Me
recibió en el taller de costura en su casa, al suroccidente de Bogotá,
donde trabajaba con su esposo, un hombre no indígena con el que vive
hace diez años.
Ana nació en 1974, en La Chorrera. Cursó hasta quinto grado
en el internado, donde conoció a su primer marido, un joven Bora. En
aquella época, eran los padres los que escogían a los futuros esposos.
Así que para mantener la relación con el joven Bora y ante la oposición
del padre, Ana “se voló” a los 16 años para Leticia: “Como yo no podía
328 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

tener novio, tenía que ser el que mi papá escogiera. Yo no quería que mi
papá me casara por obligación, por eso terminé quinto de primaria y
chao, me largué”.
Llegó a Leticia a trabajar como doméstica en la casa de una
maestra que le pagaba poco, pero que le enseñó a cocinar, planchar,
lavar; quehaceres que le sirvieron para conseguir empleo en las ciudades,
primero Leticia y, años después, en Bogotá. En Leticia vivió con su
novio, a pesar de la garrotera que les dio su padre cuando los encontró:

Sabes que los indígenas te maltratan mucho. Mi vida con mi


primer marido fue un caos. No puedo decir que este fue el mejor
hombre de mi vida, en el mejor de los días me desperté con el
ojo hinchado de golpes que me dio. Mi vida fue muy triste con
el padre de mis hijas. Bebió mucho. Me golpeaba con lo que
tenía y yo no hacía nada en ese momento. Pero llegó el momento
en que me cansé.

Cansada de los malos tratos y después de una pelea, Ana se


contactó con las amigas indígenas y sus hermanas que vivían em Bogotá,
trabajando como empleadas domésticas. Una familia de la ciudad le
pagó el pasaje para que trabajara como interna cuidando sus hijos. En
esta casa, trabajaba sin límites de tiempo, sin recibir pago, y sin poder
salir. Sin avisar, se escapó un día y regresó con su esposo, con quién
vivió hasta que murió de cirrosis alcohólica.
Hace 12 años ella vive con su actual esposo, un bogotano, no
indígena. Cansada de trabajar como empleada, decidió en el 2004 hacer
un curso de lencería en el SENA. “Yo le cogí como rabia a los hombres,
con este que estoy ahora nos dábamos por igual al principio, hasta que él
entendió. Desde hace como siete u ocho años, cero peleas”, me contó. Al
darse cuenta de que podía ser un negocio rentable, el esposo le compró
la primera máquina de coser. Con las ganancias, fue comprando otras.
Hace cuatro años, ella tiene su negocio establecido. Confecciona
uniformes para cuatro colegios y emplea vecinas que trabajan para ella.
Para terminar, le pregunto si no siente falta de la chagra, y ella
rápidamente me responde: “Ah, no, que pereza”. Pero luego de una
pausa, reflexiona y continua:

Mire, yo a veces analizo y pienso, mi papá está solo, yo puedo ir


a acompañarlo y criar mis gallinas, marranos, hago mi chagra y
vendo y vivo de eso. Yo soy bien trabajadora. A veces pienso y le
digo a él [marido]:
Narrativas y experiencias de mujeres indígenas en la historia colonial 329

– Qué hacemos aquí en la ciudad, pagando arriendo, pagando


servicios, estoy cansada de eso.
Mientras allá, llego a mi casa y no tengo que pagar agua, ni
arriendo, ni luz, nada.
Tal vez algún día. La verdad, no sé.

¿Qué nos enseñan estas historias?


Más allá de sus particularidades, en ambas historias subyace un
relato más amplio sobre la experiencia de las mujeres indígenas en el
contexto de la historia colonial. Sus historias nos invitan a pensar en
las posibilidades y limitaciones de la agencia de las mujeres indígenas
en el mundo contemporáneo, en medio de diferentes configuraciones
sociales y universos culturales, atravesados por múltiples fronteras,
opresiones y explotaciones. Con sus movilidades – espaciales y
temporales – las mujeres tejen nuevas territorialidades que les permite
crear vínculos, articular lugares, recuerdos, agenciar relaciones,
conflictos, sanar las heridas y cruzar fronteras sociales y geográficas. En
términos generales, estas narrativas tomaron sentido en la adquisición
de capacidades, fortalezas, relaciones y sabiduría para vivir en los
diferentes lugares donde transitan, cuidan de los suyos y crean redes.
Muchas de estas historias terminan en consejos para sus hijas e hijos
– o para quién escucha el relato –, consejos que se sustentan en sus
experiencias y habilidades incorporadas y que expresan continuidades
y transformaciones socioculturales.
El matrimonio y la alianza, asuntos que han sido centrales
en la literatura sobre poblaciones indígenas, a partir de las reglas de
organización social, aparece central en las narrativas y memorias
de las mujeres, desde sus prácticas concretas. La literatura etnológica
describe la exogámia generalizada, la virilocalidad y la patrilinealidad
como las reglas de parentesco de los Murui. Con base en esta ideología,
las niñas crecían con la idea de que cuando se casaran, debían irse a
vivir lejos en el territorio de sus suegros, lejos de sus consanguíneos.
Sin embargo, en las narrativas de las mujeres Murui, la relación entre
matrimonio y movilidad no se reduce a las reglas de parentesco. Como
muestra Lila Abu-Lughod (2008), al enfatizar en las particularidades
de la experiencia y construir un relato del matrimonio y la movilidad
a partir de la perspectiva de las mujeres, de sus historias, recuerdos,
conflictos y acciones, podemos ver problemas teóricos más amplios.
330 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Las narrativas de Ana y Alicia traen a la luz la relación y tensión entre


las prescripciones sociales y sus contestaciones, expectativas, deseos y
posibilidades, brindando así visiones diferentes a las tipificaciones. Es
evidente que las reglas sociales y obligaciones impuestas por sus padres,
por las monjas o por sus esposos entran en tensión con los deseos y
motivaciones de las mujeres, para quienes la movilidad es un importante
recurso de resistencia. Ellas presentan una comprensión dinámica del
matrimonio, de cómo se concretiza en la experiencia cotidiana de sus
vidas, en momentos específicos de la historia. Ellas reflexionan sobre las
memorias de los matrimonios de sus madres, sobre las trasformaciones
de la conyugalidad, y del horizonte de posibilidades como mujeres,
indígenas, en contextos sociales amplios. En sus historias, se evidencia
la violencia conyugal que históricamente permea las relaciones de
género con indígenas, no indígenas, así como la experiencia que como
mujeres, indígenas y migrantes viven en las ciudades. Su subjetividad
emerge en aquello que escapa de la norma, tal vez en su rebeldía, como
muchas de ellas se autodefinen. Lo que nos muestran es que más allá
de ser pasivas, ellas ejercen resistencia, se oponen, se acostumbran con
cuidados y consejos o de lo contrario, huyen y se imponen.
Después de escucharlas, reescuchar sus historias y rescribirlas,
argumenté que “andar”, viajar, transitar, pero también recordar, narrar
y aconsejar, son modos en que las mujeres Murui tejen territorios y
relaciones, generan socialidad, para así habitar el mundo, transitar por
sus fronteras (territoriales, políticas, jurídicas, económicas, étnicas,
raciales), creando canales por donde circulan personas, bienes,
alimentos, productos y conocimientos. Sus viajes hacia nuevos lugares,
hacia las ciudades, y el retorno corresponden, en muchos casos, a
formas de resistencia frente a reiteradas tentativas de dominación y
sujeción por parte de las monjas, de los padres, de sus cónyuges o de
sus patrones. Muchas salen huyendo de formas de violencia y llegan a
enfrentar otras. Ana huyó de su padre y se fue a Leticia dónde vivió con
su esposo, de quién sufrió violencia doméstica por años. Luego huyó de
él y se fue a Bogotá a trabajar, dónde enfrentó la explotación y el engaño
por parte de sus patrones, por lo que volvió a Leticia y vivió de nuevo
con su marido hasta que logró huir de nuevo para Bogotá. “Yo le cogí
como rabia a los hombres. Al principio nos dábamos por igual, hasta
que él entendió”, me dice contándome que finalmente logró mantener
una relación pacífica con su nuevo esposo. Ana presenta los conflictos,
las inseguridades, las violencias, pero al final, así como Alicia, recupera
libertad y autodeterminación. Ana tiene su negocio y mantiene una
Narrativas y experiencias de mujeres indígenas en la historia colonial 331

relación pacífica, avisándole en varias ocasiones a su esposo, mientras


conversa conmigo, que nada la va a impedir seguir su sueño de estudiar.
Alicia termina contando que a pesar de haber sido feliz con su primer
esposo y tener pesar de dejarlo, hoy en día vive con su actual cónyuge,
que no la maltrata y con quién se siente libre para tener su chagra y salir
a andar por la ciudad.
Como nos dice Jean en el prólogo de la publicación de su libro
(LANGDON, 2014), desde los 1970s, en que ella hizo trabajo de
campo, ha ocurrido un cambio radical en el campo académico de la
antropología, sus discursos, conceptos y preocupaciones. Su artículo
sobre las mujeres Siona del 1979 abría un campo de análisis de una
realidad evidente, la migración de las mujeres indígenas a las ciudades,
y las transformaciones en las relaciones de género producidas por años
de contacto e influencia de los dispositivos, instituciones y discursos
coloniales: las economías extractivas, de la llegada de las misiones, y
de su paulatina incorporación a las sociedades nacionales. Las mujeres
indígenas hoy viven o circulan por las ciudades, las poderosas esferas
de acción de los poderes hegemónicos (ECHEVERRI, 1997), la
mayoría de ellas trabaja como empleadas del servicio en casas de
familia de clase media de las ciudades. Jean había advertido en los
1970s el crecimiento de este fenómeno, describiendo situaciones que
evidencian que, en esta forma de empleo, más que en otras, se cruzan
múltiples sistemas de subordinación – étnico-racial, de género, de
clase, migración – que ha legitimado históricamente el despojo,
enclaustramiento, sujeción, agresión y disponibilidad ilimitada de los
cuerpos de las mujeres indígenas en un trabajo mal remunerado y con
pocas o ninguna regulación legal (NIETO MORENO, en imprenta).
Este fenómeno todavía ocurre “puertas adentro” de las casas, hace parte
constitutiva de la historia de las mujeres indígenas en la colonización e
incorporación de sus pueblos a los estados y a economías nacionales.
La antropóloga Veena Das (2020 [2006]) nos invita a preguntarnos:
¿Cómo alguien vuelve un mundo, su propio mundo? Trabajar con
narrativas de experiencias de mujeres, desde sus recuerdos, discusiones,
reflexiones, conflictos e interpretaciones, es un enfoque interesante para
aproximarnos a entender cómo las mujeres indígenas habitan el mundo
de hoy, qué dilemas enfrentan en su cotidiano y que recursos tienen
para ello. En sus narrativas, las mujeres Murui presentan la movilidad y
la adaptación a las ciudades como campos que se construyen y negocian
activamente, a pesar de las contradicciones y conflictos derivados de
las relaciones de poder que las atraviesan. Además de las estructuras
332 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

de dominación, agencia, resistencias y trasformación son términos


claves para entender sus experiencias. En sus narrativas, las mujeres
Murui quiebran con los moldes de victimización que legitima una
visión de las mujeres indígenas migrantes como vulnerables, frágiles,
desconociendo la potencia de sus saberes, fortalezas, redes entre
parientes, paisanas(os), y con su territorio. Las enseñanzas de sus
madres y padres, así como las habilidades adquiridas y las relaciones
construidas, con sus experiencias de vida y movilidades, es la sabiduría
con la que sus narrativas de vida se constituyen en consejos para sus
hijas(os). Sus historias, sus palabras, recuerdos y reflexiones expresan
continuidades, tradiciones, pero también cambios, rebeldía, fortalezas
y resistencias que constituyen la sabiduría con la que aconsejan a sus
hijas(os) para que sepan vivir en un mundo permeado por múltiples
desigualdades. En esta tarea, las narrativas personales son un potencial
mecanismo para atender al dinamismo, creatividad y heterogeneidad
de perspectivas de los actores en una sociedad, que como nos recuerda
Jean Langdon, es fundamental en la tarea de incluir la perspectiva
femenina y sus implicaciones políticas para el entendimiento de la
acción social (LANGDON, 2013a).

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O calendário da resistência:
performances e mobilização
política nas assembleias e
no 20 de Maio dos índios
Xukuru do Ororubá

Rita Neves

A proposta deste texto é pensar as assembleias indígenas Xukuru


e o 20 de Maio como momentos performáticos que consolidam o
sentimento de comunidade e o modo de ser xukuru. As assembleias
ocorrem todos os anos, dos dias 16 a 19 de maio, seguidas do ritual em
homenagem ao cacique Xicão no dia 20 de maio. Tanto as assembleias
quanto o 20 de Maio se originaram após o assassinato do cacique,
em 1998. As assembleias possuem um campo performático no qual
os Xukuru ao longo dos anos atuaram na produção, na consolidação
e na organização política do grupo. Neste texto, procuro explicitar as
fronteiras e as inter-relações estabelecidas entre os Xukuru e a sociedade
envolvente. Essa rede de relações originadas a partir desses eventos ao
longo do tempo deve ser compreendida como estratégias conscientes e
inconscientes de construção de uma identidade distinta em um cenário
pluriétnico. Para finalizar, proponho discutir rapidamente a eleição para
o cargo de prefeito da cidade de Pesqueira em 2020. Esta faz fronteira
com o território xukuru, e, nesse pleito, Marcos Xukuru, filho do cacique
Xicão e atual cacique de seu povo, se elegeu.
Passaram-se 15 anos desde a conclusão de minha tese de
doutorado e mais de 22 anos desde a morte do cacique Xicão. De lá para
cá, tenho acompanhado a trajetória do povo Xukuru ao longo dos anos
– às vezes de forma mais próxima, às vezes a distância, mas sempre com
enorme respeito por esse povo que soube enfrentar as adversidades e o
processo de criminalização desde o assassinato do cacique Xicão.
O caminho que trilhei após esse longo processo que foi o meu
doutorado guiou-se através do que recebi generosamente da Jean,
338 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

quem insistia sempre comigo que nas teorias que enfocam o macro,
enfatizando o poder do Estado, o protagonismo e a perspectiva do
sujeito local são ignorados, e que a etnografia, nosso maior trunfo
teórico metodológico, é a chave de leitura privilegiada para entender
esse protagonismo. No caso presente, este artigo está apoiado nessa
bagagem etnográfica que construí com os anos junto aos Xukuru e a
outras pesquisadoras e pesquisadores que também possuem uma longa
relação junto a esse povo.1

Contexto
Referências históricas sobre os índios Xukuru podem ser
encontradas desde o século XVI. No entanto, a maior parte da
documentação disponível foi produzida por administradores coloniais,
autoridades locais, e é fundada em referenciais da invasão das terras
xukuru. Além desses documentos, temos alguns relatos de viajantes
e estudos de etnólogos como Curt Nimuendajú, apresentados em seu
tradicional Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes, e William
D. Hohenthal Jr., em artigo publicado em 1958 sobre os Xukuru
(NEVES, 2005).
Alguns trabalhos produzidos sobre a cidade de Pesqueira, em
Pernambuco, também fazem referência aos índios Xukuru. É o caso
do livro de Nelson Barbalho, Caboclos do Urubá, editado em 1977.
Nesse livro, a principal preocupação é louvar feitos protagonizados
pelos desbravadores, com conotações heroicas, em que os Xukuru apa-
recem como figurantes nesse processo de civilizar a região.
Os Xukuru também estiveram presentes em todo o processo
histórico de transformação das instituições. Na década de 1980,
tiveram ampla participação na campanha da Constituinte, ocasião em
que as populações indígenas pressionaram o Parlamento pela garantia
dos direitos constitucionais. Um importante ator, nesse processo da
Constituinte e na revalorização étnica dos Xukuru, foi Francisco de
Assis Araújo, conhecido como Cacique Xicão.

1
Muitos pesquisadores e pesquisadoras produziram textos, dissertações e teses sobre
os Xukuru, mas me refiro aqui a Vânia Fialho e Kelly Oliveira, com quem tenho
acompanhado todos esses anos de luta do povo Xukuru, desde a demarcação e
a desintrusão do território até a luta contra a criminalização de seu povo. Juntas
também temos testemunhado a consolidação do modo de vida e da organização
política desse povo.
O calendário da resistência 339

Xicão nasceu na aldeia Canabrava, em 1950, na Serra do Ororubá


(PE) – atualmente Terra Indígena (TI) Xukuru –, e se casou com
Zenilda Maria de Araújo em 1970. Emigrou para a cidade de São Paulo
e ali morou por aproximadamente 11 anos. Retornou para a aldeia
Canabrava em 1986, época em que o Conselho Indigenista Missionário
(Cimi) passou a atuar na TI Xukuru através da promoção de cursos e do
apoio jurídico sobre os direitos indígenas. Xicão, na época, assumiu o
vice-cacicado, e pouco a pouco ganhou destaque nacional por participar
ativamente da luta na Assembleia Constituinte pela inclusão de direitos
indígenas na nova Constituição.
Depois de eleito cacique, Xicão pressiona a Fundação Nacional do
Índio (Funai) para que seja instituído um grupo de trabalho (GT) a fim de
iniciar o processo de demarcação da TI Xukuru. O processo jurídico foi
iniciado em 1989 com as etapas de identificação e de delimitação da TI,
sob coordenação da antropóloga Vânia Fialho. O GT, responsável pela
identificação, cadastrou 243 imóveis rurais dentro da área delimitada,
que ao final do processo ficou estipulada em 27.555 hectares, sendo
uma grande parte deles pertencente a pessoas importantes da região:
o prefeito da cidade de Pesqueira, secretários municipais e parentes do
então senador Marco Maciel, que posteriormente viria a se tornar vice-
presidente da República. A homologação só veio a ocorrer em 2001,
mesmo com as etapas necessárias para a regulamentação concluídas em
1998 (SOUZA, 2003).
Além desse processo jurídico fundiário, como forma de pressionar
o órgão indigenista responsável, bem como forçar o próprio governo a
liberar recursos para indenização e desintrusão dos não índios da TI,
os Xukuru realizaram “retomadas” das áreas consideradas prioritárias.
Em fevereiro de 1991, ocuparam a área chamada de Pedra D’Água
(hoje aldeia Pedra D’Água), com 110 hectares que estavam em posse do
Ministério da Agricultura.
A aldeia Pedra D’Água, como afirma Oliveira (2001), foi trans-
formada no centro político xukuru, representando o lugar estratégico
onde o cacique Xicão passou a morar. É considerado um local sagrado,
e nele fica a Pedra do Rei, também chamada de Pedra do Reino, onde os
Xukuru realizam rituais e o cacique Xicão foi enterrado.2 O terreiro3 de

2
Os Xukuru afirmam que o cacique Xicão não foi enterrado, “ele foi plantado para
que dele surjam novos guerreiros”. A frase foi dita por sua esposa, dona Zenilda, no
momento de seu sepultamento.
3
Terreiro é uma clareira feita na mata, onde os Xukuru realizam rituais sagrados.
340 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

toré da Pedra D’Água é um dos mais importantes dos Xukuru. É onde se


realiza a Festa de Reis, no mês de janeiro, e onde são feitos alguns rituais
sagrados desse povo.
Em 1992, os Xukuru realizaram outra “retomada”, dessa vez na
aldeia Caípe, de propriedade de Hamilton Didier, num total de 1.450
hectares de terra. Foi uma retomada que exigiu dos Xukuru uma
organização prévia e o apoio de várias instituições externas, como
o Cimi, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Centro de Direitos
Humanos (CDH), a Universidade Federal Rural de Pernambuco
(UFRPE), entre outras. A retomada de Caípe legitimou o trabalho do
cacique Xicão e preparou o grupo para um novo modelo de organização
que seria implantado logo em seguida. Ao todo, os Xukuru realizaram
cerca de 47 retomadas do cacicado de Xicão até o de Marcos.4
A TI Xukuru se localiza na Serra do Ororubá, numa região semi-
árida entre o agreste e o sertão. Limita-se ao norte com o município
de Poção e com o estado da Paraíba; ao sul, com Mimoso; ao leste,
com Pesqueira; e a oeste, com Arcoverde. Isso faz com que a TI esteja
incrustada numa região com solo e clima variáveis, desde áreas úmidas a
áreas extremamente secas e dependentes da chuva. A Serra do Ororubá
é composta de uma cadeia de montanhas com uma altitude aproximada
de 1.125 metros. Consiste em uma região que dispõe de uma hidrografia
privilegiada, com a presença de um grande açude e de rios como Ipanema
e Ipojuca, que cortam a TI. Essa conjugação hidrográfica é responsável
pela fertilidade de parte das terras dos Xukuru, abastecendo também,
em época de seca, a cidade de Pesqueira.
Os Xukuru participaram do processo de luta pela terra e
sobreviveram aos desmandos, à venda ilegal de terras e à força do
poder público local, que, através de seus membros, negociava terras na
Serra do Ororubá mesmo após a delimitação e a publicação no Diário
Oficial dos limites da TI Xukuru. Sobreviver significou, na maioria
das vezes, estabelecer confrontos diretos, mas significou também criar
vínculos e relações com os próprios posseiros. Isso se deu através do
apadrinhamento, do trabalho nas fazendas e da relação de submissão
com o poder público local.

4
O número exato de retomadas, bem como os anos em que estas ocorreram, está publi-
cado no fascículo Xukuru do Ororubá, da Associação Indígena Xukuru do Ororubá, e
no site do Projeto Nova Cartografia Social. Disponível em: http://novacartografiasocial.
com.br/fasciculos/direitos-e-identidades/. Acesso em: 1o set. 2022.
O calendário da resistência 341

Quando se iniciou o processo de desintrusão dos não índios da


TI Xukuru, as relações conflituosas entre os Xukuru e a população
da cidade de Pesqueira se acirraram. Entre os pesqueirenses, era bastante
difundida a opinião de que os índios são preguiçosos e de que a terra nas
mãos dos Xukuru ficaria ociosa. Além disso, os grandes proprietários
que moram na cidade colocavam em dúvida a autenticidade da
identidade étnica xukuru, contaminando parte dos moradores locais,
mesmo reconhecendo que a Serra do Ororubá sempre foi morada dos
índios. Esses questionamentos enfatizaram a dúvida generalizada da
capacidade gerencial dos Xukuru quanto à terra.
No entanto, é preciso enfatizar que essa rede de relações esta-
belecidas ao longo do tempo deve ser compreendida como estratégias
às vezes conscientes, às vezes inconscientes de construção e preservação
de uma identidade distinta em um cenário pluriétnico, como já afirmado
acima. Foi na própria criação dessas sociabilidades que os Xukuru
puderam manter a sua distintividade em meio às adversidades.
Ao mesmo tempo que os Xukuru retomavam o território, fazenda
por fazenda, priorizaram a construção de uma organização social
que possibilitou gerenciar de forma participativa e com mais eficácia
a TI. Para isso, criaram as seguintes instâncias: “Pajé; Cacique e Vice
Cacique; Conselho de Representantes; Comissão Interna; Associação;
Conselho de Saúde (CISXO); Conselho de Educação (COPIXO) e a
Assembleia Anual de caráter avaliativo e de planejamento”.5 No entanto,
diferentemente de outros povos indígenas que dividem o controle do
território entre vários caciques, esse modelo enfatizado na III assembleia
afirma que os Xukuru são “um só povo, em um só território” e com um
só cacique.

20 de Maio: construção de uma tradição


Ainda na rodovia BR-232, ao viajar para a cidade de Pesqueira,
de longe se avista uma grande pedra. Ao se dirigir para a área indígena,
é a Pedra do Rei que acompanha toda a subida. Ao pisar na Serra do
Ororubá, é impossível ficar indiferente à imponência da serra e da
Pedra do Rei, com sua força física e espiritual. Constitui um símbolo
consagrado, pois nela se realizavam os rituais dos Xukuru, quando ainda
eram proibidos por lei; foi na Pedra D’Água, onde se localiza a Pedra do

5
Trecho copiado da carta final da III Assembleia do Povo Xukuru do Ororubá.
342 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Rei, que os Xukuru iniciaram a retomada de seu território. Na Pedra


do Rei, Xicão soube que se tornaria cacique, e nela Marcos também se
tornou cacique; e, finalmente, foi numa clareira na base da Pedra do Rei
que Xicão pediu para ser “plantado”. Nessa clareira se inicia o ritual do
dia 20 de maio.
Outro espaço simbólico importante para os Xukuru é a aldeia
Santana. É uma área que foi retomada pelos Xukuru em 1990, local onde
mora dona Zenilda, importante liderança e mãe do cacique Marcos. Ao
mesmo tempo que Santana é a porta de entrada para a aldeia Pedra
D’Água, todo esse território se trata de uma conquista que se efetivou aos
poucos, do “centro” para a “periferia”. Primeiro, os Xukuru retomaram
a Pedra D’Água, para, em seguida, conquistarem as demais áreas até a
entrada da aldeia Santana.
Em 20 de maio, os Xukuru fazem o caminho inverso do que fez
Xicão no dia em que foi assassinado. Xicão morreu em Pesqueira, na
frente da casa de sua irmã, foi levado para a aldeia Cimbres, importante
centro religioso, depois passou por Santana e Pedra D’Água, onde foi
enterrado. No dia 20 de maio, os Xukuru iniciam o ritual pela manhã,
na Pedra D’Água, em torno do túmulo de Xicão, e depois seguem
para Santana. À tarde, descem a pé a Serra do Ororubá e encerram as
atividades na frente da casa da irmã de Xicão, em Pesqueira.
Toda a Serra do Ororubá é território xukuru e, consequentemente,
fronteira delimitadora de identidade. Ao mesmo tempo que é espaço
residencial, de ocupação, a serra se constitui também como espaço inte-
racional e simbólico. Inclusive para aqueles índios que moram na cidade
de Pesqueira, a Serra do Ororubá é o seu lugar de origem, o local onde
viveram os seus antepassados.
Mary Douglas (1980), em Pureza e perigo, afirma que é impossível
ter relações sociais sem atos simbólicos e que, em algumas situações,
mecanismos de enfoque são acionados, enquadrando a realidade de
forma que todos a percebam e a tomem para si. Desde as primeiras
horas da manhã, os Xukuru são preparados para detectar o significado
do dia 20 de maio. É um evento político, religioso e simbólico realizado
há 22 anos, e só não aconteceu em 2020 por causa da pandemia de
covid-19. Embora outros mecanismos também sejam acionados, a
paisagem cultural anima a memória e liga o presente com o passado.
A paisagem focaliza e direciona a atenção das pessoas para o evento que
se desenrola nesse dia.
O calendário da resistência 343

Em 20 de maio de 1998, o cacique Xicão foi assassinado no bairro


Xucurus, em Pesqueira. O mandante foi um fazendeiro que possuía
terras na Serra do Ororubá.6 Desde 1999, os Xukuru realizam um ato
público no dia 20 de maio. O que se iniciou como um protesto pela
morte do cacique Xicão aos poucos adquiriu outras conotações. Os
Xukuru ressignificaram esse dia, associando a data do assassinato de
Xicão às conquistas e decisões coletivas. Em 1999, no aniversário de um
ano de morte desse cacique, o 20 de Maio teve um caráter de afirmação
étnica e de reivindicação política, aliado a um sentimento de perda,
como demonstra uma capa da época, da revista Porantim:

Figura 4 – Capa da revista Poran


Figura 4 – Capa da revista Porantim sobre o 20 de Maio

Fonte: Porantim (1999).


Fonte: Porantim (1999).

No ano seguinte, em 2000, esse evento foi antecedido por dois


dias de reuniões na aldeia Pedra D’Água, o que se chamou de “pós-
No ano seguinte, em 200
No processo de investigação do assassinato, a Polícia Federal inicialmente apresentou
na aldeia Pedra D’Água, o que se
6

os próprios Xukuru como suspeitos. Tanto o vice-cacique quanto a esposa de Xicão


foram alvo de suspeitas. Quando a verdade veio à tona, se descobriu que o mandante

a conferência nacional indígena


foi um fazendeiro que tinha terras na Serra do Ororubá, chamado Zé de Riva, que foi
preso e se suicidou na prisão, em situação pouco esclarecida.

mesmo ano. Na pós-conferência,


344 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

conferência indígena”, porque sucedeu a conferência nacional indígena


que aconteceu em Porto Seguro (BA) em abril daquele mesmo ano.
Na pós-conferência, estiveram presentes índios de vários estados do
Brasil. A pós-conferência culminou com uma pajelança no dia 20 de
maio, pela manhã, seguida de uma missa próxima ao túmulo de Xicão.
Após o almoço, os Xukuru e os demais índios e não índios presentes na
conferência desceram a Serra do Ororubá em caminhada até o local em
que Xicão foi assassinado, onde foi realizado um ato público. Para os
Xukuru, esse foi o primeiro passo para a criação das suas assembleias
anuais, e eles têm razão ao afirmar isso. Eu estive presente na pós-
conferência e observei que seu formato, com a presença de lideranças
indígenas de várias partes do país – bem como da própria população
indígena das aldeias xukuru, com homens, mulheres e crianças
transitando e falando durante toda a pós-conferência –, já demonstrava
a força que essas assembleias assumiriam interna e externamente para
os Xukuru.
Em 2001, os Xukuru realizaram oficialmente, entre os dias 18
e 19 de maio, a “Primeira Assembleia do Povo Xukuru”, cujo tema foi
“A luta é pela nossa terra e o direito de ser Xukuru”. No dia 20, por sua
vez, fizeram uma pajelança junto a uma missa em Pedra D’Água, e à
tarde desceram a Serra do Ororubá para mais um ato em homenagem
a Xicão. Dessa vez, após a descida da serra, eles pararam para discursar
em vários locais da cidade e, por fim, leram publicamente uma carta
com as decisões finais da assembleia. Esse formato perdura até os
dias atuais.
No ano de 2002, um pouco antes da realização da “Segunda
Assembleia do Povo Xukuru”, foi preso o fazendeiro José Cordeiro
de Santana (Zé de Riva), mandante do assassinato de Xicão. O tema
da assembleia desse ano foi “A nossa luta não vai parar. Em cima do
medo, coragem!”, frase de Xicão, bastante repetida todos os anos nas
assembleias. Nesse ano eu não estava presente, mas, de acordo com
Palitot (2003), a tônica foi buscar a consolidação das instituições
xukuru. A descida da serra, ainda segundo Palitot, foi tensa, pois refletia
a prisão de Zé de Riva, e os ânimos na cidade de Pesqueira estavam
bastante exaltados.
Se em 2002 a tensão se expressava pelo fato de terem prendido o
assassino de Xicão, em 2003 o evento adquiriu uma conotação peculiar,
na medida em que foi realizado apenas três meses após o atentado
ao cacique Marcos Luidson, conhecido como Marquinhos, filho do
O calendário da resistência 345

cacique Xicão e sucessor deste no cacicado. O atentado foi realizado


por um índio Xukuru pertencente a um grupo de Xukuru dissidentes
que estavam em atrito com aqueles sob o comando de Marcos. Após
o atentado, em que dois índios que estavam junto com o cacique
foram assassinados, a população, revoltada pelo ataque e pelas mortes,
expulsou da TI todo o grupo dissidente, ateando fogo nas casas e nos
objetos das pessoas. Depois dos acontecimentos, a situação ficou ainda
mais tensa, tanto na Serra do Ororubá quanto na cidade de Pesqueira,
onde passou a morar a maioria dos índios que foram expulsos da TI
Xukuru. Um misto de temor pelas ameaças e, ao mesmo tempo, de uma
força mobilizadora e de enfrentamento apontava para a necessidade
de uma maior organização, a fim de combater o intenso processo de
criminalização que se seguiu.
Não cabe aqui detalhar cada assembleia e cada 20 de Maio, mas
é preciso dizer que as assembleias nunca tiveram por objetivo apenas
considerar os problemas internos do povo Xukuru; além de cumprir
com o objetivo de pensar as estratégias e a organização interna até a
assembleia seguinte, as cartas finais sempre externaram reflexões sobre
a conjuntura nacional, o que significa que sempre adotaram um caráter
articulador com a realidade indígena nacional e com as questões de
enfrentamento político mais amplas, motivo pelo qual o evento contou
com a presença de indígenas de diversas etnias, assim como de parceiros,
pesquisadores das universidades e organizações não governamentais
(ONGs) de várias partes do país.
Para se ter ideia da sua dimensão, em 2002, a assembleia na aldeia
São José teve a participação de 300 indígenas e demais parceiros; em
2004, eram 500 participantes; em 2017, 1,5 mil pessoas; e, em 2019, 2,3
mil pessoas assistiram à assembleia xukuru, consolidando o que em
2017 a carta final já expressava: o encontro, naquele ano, deixou de ser
a assembleia do povo Xukuru e passou a ser chamado de “Assembleia
Popular Revolucionária”, nome dito e repetido durante toda a reunião e
no ato de 20 de maio de 2017.
Embora tenha participado quase todos os anos do 20 de Maio
– muitas vezes da assembleia que o antecede, e outras apenas do dia
20 –, passarei a apresentar especificamente as performances do evento de
2003, pois foi nesse ano que o cacique Marcos sofreu um atentado à sua
vida, no mês de fevereiro, e que o evento adquiriu sua maior projeção.
346 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

20 de maio de 2003: tensões em contexto de


performance
O 20 de Maio pode ser dividido em dois momentos absolutamente
diferentes. Num primeiro momento, pela manhã, são realizados rituais
em homenagem ao cacique Xicão, mais especificamente o toré e uma
missa que os Xukuru chamam de católica indígena. Trata-se de um ritual
feito pelos próprios Xukuru, para os Xukuru e seus aliados no terreiro
da Pedra D’Água, no exato local em que Xicão e outros indígenas que
morreram depois foram enterrados. No segundo momento, na cidade
de Pesqueira, o evento adquire outra conotação: é feito para os cidadãos
pesqueirenses, principalmente aqueles que são contrários ou criticam
os Xukuru.
Em 2003, além da população de Pesqueira, estavam presentes
nessa cidade os Xukuru expulsos da TI depois do atentado ao cacique
Marcos, motivo pelo qual o cortejo até o local do evento foi tenso, rápido
e pujante.

Primeiro momento: toré e missa

Na manhã do dia 20 de maio de 2003, seguimos para a Pedra


D’Água, em direção ao local onde Xicão foi sepultado, para a celebração
de uma missa. Uma chuva fina cobria a paisagem, mas isso não fez
ninguém se retirar. As pessoas tentavam se acomodar na clareira
molhada onde Xicão e mais alguns Xukuru estão “plantados”. Alguns
se apertavam nas laterais íngremes da montanha escorregadia e cheia
de árvores de galhos finos; outros subiam em uma grande pedra que
toscamente se inclina sobre a clareira. Durante toda a manhã, foi
celebrada uma missa, com canções indígenas e falas emocionadas, além
do ritual do toré, ao final da celebração e em torno do túmulo.
Após esse momento, que se estendeu até quase meio-dia,
seguimos lentamente para Santana, onde um lanche foi servido. Ficamos
aguardando a hora de descer a Serra do Ororubá em direção à cidade de
Pesqueira, para a segunda parte do 20 de Maio.

Segundo momento: descendo a Serra do Ororubá

Participei algumas vezes das homenagens do dia 20 de maio; no


entanto, em 2003, percebi que a descida da serra fora mais tensa e veloz.
O calendário da resistência 347

Nas outras ocasiões, descíamos lentamente, parando em frente a alguns


locais da cidade de Pesqueira, onde falas eram proferidas. Esse ano, além
de não pararmos em nenhum lugar, realizamos o trajeto em um ritmo
mais veloz, quase correndo. Os Xukuru desceram a serra paramentados
e com passos firmes e ritmados como num toré. Fomos todos na mesma
velocidade para o bairro Xucurus, local exato do assassinato de Xicão.
O pé direito marcava o ritmo, e todos cantavam fortemente:

Pisa ligeiro, pisa ligeiro


Quem não pode com a formiga não assanha o formigueiro.

Na medida em que o imenso cortejo tomava as ruas, os


comerciantes locais fechavam as portas das suas lojas. Ao mesmo tempo,
vi muitas pessoas paradas nas praças, olhando com curiosidade, mas
mantendo distância. Havia evidentemente uma tensão em ambos os
lados. Entretanto, nada aconteceu, e chegamos ao bairro Xucurus sem
maiores problemas. Além das 24 aldeias xukuru, muitas outras pessoas
fizeram-se presentes na caminhada, o que conferia a esta um aspecto
grandioso. Aos poucos, todos se posicionaram em frente ao caminhão
que serviu de palanque, onde as falas aconteceram. Nestas, alguns temas
foram insistentemente repetidos, fazendo com que mesmo aqueles
que não são indígenas adotassem o mesmo discurso dos indígenas.
O conjunto dessas narrativas nos revela como as pessoas enxergam esse
evento (BASSO, 1997). No momento em que os discursos são proferidos,
cada narrativa pessoal organiza, transmite e recria permanentemente a
experiência não apenas da pessoa que fala, mas também a do público
presente. Isso se dá através da ligação que se estabelece entre o sujeito
narrador e seu público, que, juntos, passam a integrar a mesma história.
Numa situação de conflito, como a vivenciada pelos Xukuru,
circunstâncias de grande reflexividade performática se apresentam em
cada ocasião em que se encontrem público e performer. Todos os que
subiram ao palanque, índios ou não índios, levaram a audiência a refletir
sobre os conflitos. Os discursos sobre determinados temas estimulam
não apenas a reflexão, mas percepções sensoriais, ou seja, experiências.
Na narrativa do cacique Marcos, percebemos claramente o
controle que ele possui sobre a audiência e a transformação que sua fala
propicia ao público presente, como evidenciado no trecho abaixo:

Primeiro de tudo, eu gostaria de pedir permissão aos Encantos,


à natureza sagrada, para eu poder falar em nome do povo
348 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Xukuru. Também gostaria de pedir aqui a todos os parentes


uma salva de palmas pra Nilson e Nilsinho [palmas], que deram
a sua vida pra que hoje eu pudesse estar aqui com vocês. E eu
gostaria de fazer um relato dos últimos acontecimentos que o
nosso povo vem sofrendo, das atrocidades que vêm acontecendo
neste país, tentando dizimar as nossas populações indígenas,
especificamente o povo Xukuru.
[...] Andam dizendo por aí, na imprensa, na mídia, por aí, o
tempo todo, que o povo Xukuru está dividido e que os índios
andam se matando entre si, uns aos outros. Isto é uma grande
mentira que está acontecendo. Isso é uma grande armação
que está acontecendo, dos políticos, dos religiosos que existem
aqui na cidade de Pesqueira, empresários que têm interesse na
exploração, no projeto de turismo religioso lá em cima.
[...] E aí é a grande armação que está acontecendo contra o povo
Xukuru, e queremos dizer pra Justiça que não é assim que eles
vão conseguir derrubar o povo Xukuru, porque nós já estamos
identificando esses agentes externos que estão tentando nos
destruir e nós vamos, sim, denunciar isso a todo custo. E aí eu
quero dizer pra vocês mais uma prova da perseguição política e
da injustiça contra a minha pessoa e contra as lideranças do povo
Xukuru; foi o que aconteceu no dia 7 de fevereiro, aqui em cima,
quando sofri um atentado, ainda tenho aqui algumas marcas
pelo corpo [...].
Então é isso que eu tenho a dizer pra vocês. Com vocês nós jamais
vamos recuar dessa luta porque o povo Xukuru está de parabéns,
tá organizado, tá unido, mostrando pra toda a sociedade que nós
sabemos o que queremos e vamos lutar por isso, vamos ou não
vamos? [O público responde: “Vamos!”.]
E pode contar com essa pessoa que vos fala. Tenho 24 anos,
nasci, fui colocado no mundo pelo guerreiro Xicão e a guerreira
Zenilda; eu nasci, eu sou o fruto dessas pessoas e estou aqui
pronto para dar a minha vida por vocês e não vou recuar dessa
luta; não há ninguém que faça eu recuar dessa luta, não há
dinheiro que possa me comprar, nenhum fazendeiro vai fazer
eu recuar dessa luta, e por vocês eu dou o meu peito à própria
morte [palmas].

Do mesmo modo que um ritual, o 20 de Maio se constitui


também como um processo reflexivo sobre sua identidade, ou seja, nele
os Xukuru falam sobre si mesmos, seu modo de vida, sua organização
social. Esse evento possui dois momentos bem demarcados: os rituais
O calendário da resistência 349

do toré e a missa na Pedra D’Água, pela manhã, e o cortejo com os


discursos, em frente à casa da irmã de Xicão, à tarde. Em ambos os
momentos, o 20 de Maio possibilita aos Xukuru sair do cotidiano e,
numa atitude reflexiva, estabelecer relações não só com os parceiros e
demais indígenas, mas com os não índios da cidade de Pesqueira.
Considerado em seu conjunto, o 20 de Maio de 2003 refletiu
profundamente os conflitos vividos pelos Xukuru nesse ano, e, mais
que isso, o atentado foi o elemento divisor do cacicado de Marcos.
Este saiu politicamente fortalecido do ataque. Não havia nessa época
mulher, criança, homem ou idoso que não olhasse para tudo aquilo com
esperança de dias melhores e com ainda mais respeito por Marcos.
Foi também um evento em que os Xukuru do Ororubá se
impuseram como um grupo coeso e organizado, principalmente diante
da pressão dos órgãos governamentais (Funai, Ministério Público),
que naquela ocasião pressionavam para que os Xukuru do Ororubá
recebessem de volta os que foram expulsos do território. Era, no
entanto, preciso reforçar as fronteiras entre os que deixaram o território
e aqueles que ficaram, mesmo sem negar a identidade indígena dos
que saíram. Essas fronteiras não eram forjadas na distinção, a partir
da identidade étnica, pois todos – os que permaneceram e os que
saíram – são índios Xukuru, mas no caráter político, nas concepções
e nas formas de organização desse povo. Era necessário demarcar as
diferenças entre os que ficaram e os que foram expulsos da TI, e o dia
20 de maio se configurou como o momento em que essa distinção
foi comunicada.
Identidades étnicas são contraditórias, ambivalentes e formadas
em torno de ideologias e poder. Dessa forma, conflitos, cujo resultado
é a cisão, podem ser vislumbrados não como movimentos de deses-
truturação, mas como elementos de relevância no processo de
emergência étnica do grupo, ou ainda como estratégias de atuação no
campo sociopolítico indígena. Isso se evidencia quando, após a morte
de Xicão, os Xukuru, inspirados pela trajetória de vida do seu cacique,
procuraram consolidar a organização social deixada por ele. Houve um
crescimento demográfico da população Xukuru, concomitantemente ao
fortalecimento de suas instituições e de suas lideranças.
Para Bauman e Briggs (1990), de modo que a autoridade do
narrador seja estabelecida, é necessário que a pessoa adquira algumas
condições: 1) ter acesso às narrativas; 2) possuir legitimidade perante a
audiência; 3) demonstrar competência comunicativa; e 4) reconhecer os
valores que possibilitam narrar as histórias de forma correta.
350 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

A partir das categorias apresentadas por Bauman e Briggs, consigo


identificar no discurso de Marcos algumas delas. Não é uma receita de
bolo, mas Marcos, como narrador, efetua um tipo especial de fala em
que o texto emerge no contexto da performance. Ou seja, a expressão, e
não a mensagem, é ressaltada nesse momento.

Acesso às narrativas

a) O acesso de Marcos a tudo o que vai expor se dá pelo fato


de ele próprio ter sofrido um atentado, o que o coloca em
situação semelhante à de Xicão e à de tantos outros “guerreiros
Xukuru” que deram a vida pelo seu povo. O atentado dá a
Marcos experiência de vida para poder narrar os dramas
sociais que os Xukuru vivenciam.

Legitimidade

a) Inicialmente, Marcos pede licença aos Encantos e às forças da


natureza para poder falar. Ao final do discurso, ele agradece
ao Pai Tupã e aos Encantos pelo fato de estar vivo. Pedir a
autorização aos Encantos no início da sua fala e agradecer
ao final desta legitima o seu discurso perante a comunidade,
especialmente os mais idosos.
b) Marcos também é legitimado pelo público ao falar sobre as
marcas que ficaram no seu corpo após o atentado. As marcas
corporais são a prova física de que, além de ele ser protagonista
da ação, recebe a proteção dos Encantos para seguir adiante
na luta.

Competência comunicativa

a) Marcos demonstra habilidade para narrar os conflitos.


Primeiramente, ele engloba os eventos em uma só categoria,
enquadrando-os como armação: “vou contar uma grande
armação” (frame). A seguir, detalha essa armação de maneira
cronológica, desde os assassinatos, culminando com o
atentado e a tentativa de criminalização das lideranças. Por
fim, ele afirma que isso não se efetivou porque os Xukuru
O calendário da resistência 351

estão protegidos e organizados. Dessa forma, realça não só os


problemas, mas também as realizações.

Reconhecimento de valores

Três aspectos importantes fazem de Marcos a pessoa que alia a


tradição à mudança:
a) Primeiramente, ele se apresenta como filho do “guerreiro
Xicão” e da “guerreira Zenilda”. Essa filiação o coloca como
herdeiro da tradição.
b) Em segundo lugar, ele afirma ter 24 anos, e, embora essa
idade o insira legalmente como adulto há muito tempo, para
os Xukuru ele será sempre o filho mais novo de Xicão, um
“menino” que não teve medo de assumir a luta do pai.
c) Finalmente, assim como seu pai, ele está disposto a “dar a
vida pelo seu povo”. É novamente herdeiro da tradição, mas,
nesse momento, inserido na comunidade dos índios Xukuru
do Ororubá.
A performance de Marcos, portanto, apresenta elementos
que o põem em relevo, havendo um reconhecimento, por parte da
comunidade, que confere credibilidade ao que foi dito. A história de
Marcos está marcada não só no corpo, como também através da sua
própria nominação: “Marquinho Xukuru” é como todos o chamam.
Trata-se de uma individuação, mas que ao mesmo tempo o liga a
uma comunidade. Ele não é Marcos Luidson apenas, é Marquinho.
O diminutivo confere a este uma identidade essencialmente “jovem”,
o filho mais novo de Xicão. Contudo, ele não é somente Marquinho,
é Xukuru, o que significa que essa identidade é também étnica, que o
insere em um grupo, em uma comunidade.
Por fim, o 20 de Maio de 2003 legitimou o cacique Marcos como
liderança, legitimou os Xukuru do Ororubá e legitimou o discurso dos
Xukuru sobre os não índios de Pesqueira. Em 2003, através do 20 de
Maio, os Xukuru refletiram sobre sua história e suas conquistas. Uma
práxis histórica, no sentido de reelaboração de uma identidade étnica
através da história recente.
2020, as eleições e a cidade de Pesqueira
352 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

As assembleias sempre foram itinerantes, mu


2020, as eleições e a cidade de Pesqueira
entanto, com o número crescente de participantes e a
resolveram
As assembleiasconstruir
sempre foram umitinerantes,
espaço mudando
onde pudessem
de aldeia fazer a
aconteceu, e em 2017 foi inaugurado o “Espaço Mand
a cada ano. No entanto, com o número crescente de participantes
e a dimensão que tomou, os Xukuru resolveram construir um espaço
Xicão.
onde pudessem Ofazer
projeto comportava,
as reuniões além
ao longo do ano. Assimdo local da asse
aconteceu,
visitantes
e em que dormem
2017 foi inaugurado o “Espaço no local,em
Mandaru”, bem como aoum amplo
homenagem
7

cacique Xicão. O projeto comportava, além do local da assembleia,


umaprepara o alimento
área para acolher dequemaneira
os visitantes dormem nogratuita para todos o
local, bem como
umassembleia
amplo ambientecontabilizou
para a cozinha, ondecerca de 2,3
se prepara mil pessoas a
o alimento
de maneira gratuita para todos os presentes. Em 2019, quando a
Marquinhos
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contabilizou quantode 2,3tempo eles almoçando
mil pessoas conseguiriam no alime
assembleia,
lugar, que se agigantou,
perguntei a Marquinhos por quanto tempoe da
eles necessidade
conseguiriam de um
alimentar essa multidão participante da assembleia, que se agigantou,
evento. A resposta dele foi rápida e direta. O probl
e da necessidade de um maior controle da área durante o evento.
controle
A resposta dele de queme direta.
foi rápida vemOpara a assembleia,
problema mas o espaç
não é a alimentação,
nemesperavam em 2020 um número bem maior
o controle de quem vem para a assembleia, mas o espaço,
ficando pequeno. Eles esperavam em 2020 um número bem maior de
que estáde partici

de que dois
participantes, ônibus
pois tiveram viriam do
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de que doônibus
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do país. somsedo
Por isso, estavam lado depara
organizando fora do local
ampliar a área ede reuniã
colocar som do lado de fora do local de reunião.

Figuras 5 e 6 – Espaço Mandaru


Figuras 5 e 6 – Espaço Mandaru

7
Mandaru foi o nome dado a Xicão em ritual pelos Encantos.
7
Mandaru foi o nome dado a Xicão em ritual pelos Encantos.
sul do país. Por isso, estavam se organizando para ampliar
e fora do local de reunião.
O calendário da resistência 353
ru

Fonte: Acervo de Kelly Oliveira (2017 e 2019, respectivamente).

Nesse ano de 2019, também surgiu a notícia, ainda muito


em ritual pelos Encantos.
incipiente, de que estava na hora de os Xukuru partirem para outras
esferas políticas e de que era possível que Marquinhos se candidatasse240
ao cargo de prefeito da cidade de Pesqueira. Isso foi bem interessante,
porque a descida da serra em 2019 se deu como todos os anos, rápida
e pujante. Entretanto, diferentemente das primeiras descidas, há alguns
anos temos percebido a população da cidade mais tranquila em relação
ao 20 de Maio. As escolas abriram as portas para seus alunos assistirem
à passagem da marcha, e os comerciantes e as demais pessoas foram ver
de perto o cortejo. Em muitas casas se tocavam canções sobre os Xukuru
produzidas por grupos musicais locais e nacionais.
Ou seja, os Xukuru, ao longo do tempo e mesmo com todo o
processo de criminalização, mortes e conflitos, conseguiram o controle
total do território e estabeleceram novas relações com as pessoas da
cidade de Pesqueira. Eles conquistaram espaço na feira orgânica da cida-
de, onde vendem frutas, legumes e artesanatos (renda de renascença e
demais acessórios indígenas), fornecem leite (através de uma cooperativa
que criaram para isso) e, em momentos de seca, abastecem a cidade de
água de um grande açude que fica na TI.
Em 2020, veio a pandemia de covid-19, e a assembleia presencial
foi cancelada. No entanto, os Xukuru, através da equipe Ororubá Filmes,
resolveram, junto com as lideranças, realizar a assembleia de maneira
virtual, com o tema “Limolaigo Toype: fica a esperança, a luta não
354 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

vai parar!”. Acompanhei a assembleia desde seu início pelo YouTube.


Além do combate à pandemia, enfatizou-se a importância da XX
assembleia como mais uma homenagem a Xicão e de como o modelo
de organização social e política dos Xukuru havia dado certo. Parcei-
ros de longa data, instituições, pesquisadores e índios de todas as partes
do país falaram durante o evento e reafirmaram a importância deste
como um espaço de luta e confluência de apoiadores da causa indígena.
Ademais, no final de 2019, os Xukuru haviam recebido indenização pela
ação impetrada por eles na Corte Interamericana de Direitos Humanos
contra o Estado brasileiro. Tudo isso levou a uma grande projeção dos
Xukuru na cidade e de certa forma lançou a candidatura de Marquinhos
ao cargo de prefeito.
Foi um ano bastante conturbado, e os Xukuru decidiram
coletivamente se dedicar a construir uma relação mais próxima com
a cidade. Em conversa com um dos organizadores da campanha, este
afirmou que dois princípios regiam o pleito. Primeiramente, enfatizar
que essa era uma candidatura indígena, do cacique Xukuru, mas que
também era a candidatura de um pesqueirense que se preocupa com sua
cidade. Nesse sentido, reforçar que os Xukuru não são contra Pesqueira,
mas parte dela. Em segundo lugar, que o “modo de vida xukuru” e a
forma de organização social participativa deu certo – e, se deu certo para
os Xukuru, funcionaria também para Pesqueira. Com essas premissas,
toda a campanha foi montada.
A Ororubá Filmes produziu pequenos filmes de cerca de 4
minutos, embalados pela música “Índio”, cantada por Caetano Veloso,
nos quais apresentava quem era Marcos Xukuru, como se tornou
cacique, em que consistia a sua missão, quem era a sua mãe, o que ele
fez para o povo Xukuru e o que constituía a sua capacidade de gerir a
cidade. Os vídeos viralizaram em Pesqueira, e aos poucos a campanha foi
atingindo áreas a que os Xukuru não tinham acesso, como as periferias,
além dos comerciantes locais etc.
O lançamento de sua candidatura na convenção do seu partido
merece uma análise detalhada no campo da performance, que não
farei neste momento, mas é importante citar que Marcos chegou para
a convenção com a “farda” indígena completa: o cocar que foi de Xicão,
sem camisa, com o rosto pintado. Logo após o lançamento, retirou o
cocar e vestiu uma camisa, reafirmando simbolicamente sua identidade
étnica, mas também sua identidade de cidadão pesqueirense. Era dessa
forma que ele desejava ser reconhecido na campanha, como índio e
como cidadão da cidade.
O calendário da resistência 355

A campanha foi tomando corpo e dimensão não imaginados


pelas elites locais. Na época, a então prefeita era candidata à reeleição e
apoiada pela elite tradicional da cidade. A campanha foi extremamente
conflituosa – muitas agressões verbais, fake news nas redes sociais, e em
alguns momentos percebemos que feridas e conflitos anteriores foram
retomados com uma nítida intenção de instaurar o medo e o pânico
pela possibilidade de Marcos ser eleito. Em meio às adversidades, à
pandemia e a ameaças, Marcos foi eleito prefeito com cerca de 52%
dos votos.
Logo em seguida, os adversários entraram com um processo na
Justiça Eleitoral pedindo a anulação da candidatura dele, utilizando
como argumento a Lei da Ficha Limpa. Marcos havia sido condenado
por danos contra o patrimônio no caso de seu próprio atentado, em
2003, quando os Xukuru queimaram as casas e expulsaram os demais
indígenas da TI – um processo que desde aquela época os Xukuru
haviam criticado como recheado de vícios: “Transformaram a vítima
em réu!”.
O fato é que os Xukuru recorreram ao Tribunal Regional Eleitoral
(TRE), também perdendo nessa instância, e em seguida ao Superior
Tribunal Eleitoral (STE). O julgamento ocorreu em 1o de agosto de
2022, com resultado desfavorável ao cacique, que ficou inelegível.
Entre a eleição e o julgamento, os Xukuru, através da Ororubá Filmes,
lançaram uma campanha: “Deixa o Xukuru governar. Nunca mais
um Brasil sem nós!”. A campanha, que começou nas redes sociais, se
ampliou e tomou uma dimensão nacional. Marcos foi entrevistado
em rádios local e nacional, além de ter matérias publicadas em jornais e
revistas de ampla circulação no país. Junto a isso, os Xukuru receberam
apoio de artistas nacionais, juristas, instituições etc. Também nesse
período, o atual presidente da Câmara Municipal assumiu interinamente
a prefeitura, em parceria com os Xukuru, a partir do plano de governo
que Marcos apresentou quando candidato, assumido pela Secretaria de
Governo do município. O STE decidiu por novas eleições municipais,
que aconteceram em outubro de 2022. Desta vez, mesmo sem Marcos
como candidato, Bal de Mimoso (atual prefeito interino) e Guila Araújo
(liderança Xukuru que é secretário de turismo na “gestão” de Marcos)
foram candidatos a prefeito e vice-prefeito da cidade – uma espécie de
mandato-“tampão” até as próximas eleições, quando Marcos poderá ser
candidato novamente.
356 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Para finalizar, quero reafirmar um pouco o que disse no início


deste artigo sobre o potencial de pensar esses eventos que saem do
cotidiano e que possibilitam análises na perspectiva da performance
cultural, como proposto por Victor Turner, Richard Bauman, Charles
Briggs, entre outros. Vivenciei apenas remotamente e através de conver-
sas com os Xukuru esse processo eleitoral e por isso não posso fazer
uma análise mais detalhada desse evento no campo da performance,
como fiz no caso do 20 de Maio de 2003, porém, ao mesmo tempo, per-
cebo nessa etnografia “do possível”, ao longe, um campo de possibilida-
des que essa perspectiva permite.
Não pretendi também construir uma história linear do povo
Xukuru. Ao contrário, objetivei mostrar como, ao longo da história
desse povo – construída em meio a tantos conflitos –, momentos de
cisão, resultado de dramas sociais, são fases muitas vezes superadas
ou transformadas em outros momentos de fortalecimento do grupo.
A relação que os Xukuru mantêm com a cidade de Pesqueira e com os
demais Xukuru que ali habitam é parte desse vai e vem de sentimentos,
disputas, conflitos, mas também de unidade e coesão.

Referências
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História Municipal, 1977. v. 2, 261 p.
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about musical ritual. Etnofoor, [S. l.], n. 1/2, p. 151-164, 1997.
BAUMAN, R.; BRIGGS, C. Poetics and performance as critical perspectives
on language and social life. Annual Review of Anthropology, Palo Alto, v. 19,
p. 59-88, 1990.
DOUGLAS, M. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1980.
GEERTZ, C. A religião como sistema cultural. In: GEERTZ, C. A interpretação
das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 101-142.
HOHENTHAL, W. Notes on the Shucurú indians of Serra de Ararobá,
Pernambuco, Brazil. Revista do Museu Paulista, São Paulo, v. VIII,
p. 93-166, 1958.
NEVES, R. de C. M. Dramas e performances: o processo de reelaboração
étnica xucuru nos rituais, festas e conflitos. 2005. Tese (Doutorado em
Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005.
O calendário da resistência 357

OLIVEIRA, K. E. de. Mandaru: uma grande reportagem sobre a história de


vida do cacique Xicão Xukuru (PE). 2001. 39 f. Monografia (Bacharelado em
Comunicação) – Departamento de Comunicação Social e Turismo, Centro
de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João
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PALITOT, E. Tamain chamou nosso cacique: a morte do cacique Xicão e a
(re)construção da identidade entre os Xukuru do Ororubá. 2003. Monografia
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SOUZA, V. R. F. de P. e. Desenvolvimento e associativismo indígena no nordeste
brasileiro: mobilizações e negociações na configuração de uma sociedade
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TURNER, V. From ritual to theatre: the human seriousness of play. 2. ed. Nova
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The University of Arizona Press, 1992b. p. 141-146.
Vozes de homens, cantos de
bichos: o que contam os Xetá
sobre o Canto do Urubu?

Carmen Lucia da Silva

Os Xetá, também conhecidos pelos etnônimos Are’, Yvaparé e


Heta’, embora se identifiquem como Nhãdereta’ – nós gente ou nossa
gente –, foram classificados por Rodrigues (1978) como pertencentes
ao tronco linguístico Tupi e à família Tupi Guarani. Último povo a
manter contato com os usurpadores de seu território tradicional no
estado, são originais da região noroeste do Paraná e estão situados na
margem esquerda do rio Ivaí e seus afluentes, desde sua foz até o Salto
do Ariranha.
Embora as notícias da presença xetá na região se iniciem
em 1948-1949, apenas em 19541 seis homens – três adultos e três
adolescentes – estabelecem contato com os moradores da Fazenda Santa
Rosa, implantada em uma parte do território de caça e coleta de um dos
grupos locais, ao qual os seis estavam ligados pelos laços de parentesco.
Essa aproximação da fazenda e das expedições de contato e de pesquisa
não os poupou do triste fim que tiveram, pois em um período de
aproximadamente dez anos o povo Xetá desapareceu do cenário
paranaense, pelas investidas dos colonizadores e, principalmente, pelas
ações das Companhias de Colonização2 sobre seu hábitat original.

1
Em 1952, antes dessa aproximação na mencionada fazenda, um menino, Tikuein
U’eió (U’eió = bugio), conhecido entre os não índios como Kaiuá, fora capturado por
agrimensores da Companhia Brasileira de Imigração e Colonização (COBRINCO).
Poucos meses depois, em 1953, outro menino – A’nhambu Guaka, ou Tuka, como
ficou conhecido – teve o mesmo destino. Ambos foram levados pelo Inspetor do
Serviço de Proteção aos Índios (SPI) para sua residência, situada em Curitiba.
O primeiro recebeu o nome de Antônio Guairá Paraná, e o segundo, de Tucanambá
José Paraná. Ambos acompanhavam as expedições de contato, porém apenas Tuka
participou de todas as expedições, tanto de contato como de pesquisa, desde o ano
de 1954.
2
Suemitsu Miyamura & Cia. Ltda. e COBRINCO.
Vozes de homens, cantos de bichos 359

Apesar do extermínio dessa sociedade, sobreviveram oito crianças


e jovens adolescentes, hoje adultos, roubados de seus pais. Desse total,
trabalhei intensamente com três deles – Kuein,3 Tuca4 e Tikuein5 – como
colaboradores das minhas pesquisas de mestrado e doutorado, por
serem mais velhos e conhecedores da cultura de seu povo.
Minha intenção é apresentar a partir da memória dos três
sobreviventes a interpretação do Canto do Urubu em suas vozes e nas
vozes de pessoas falecidas durante a realização do ritual de iniciação.
Observo que não faz parte do meu interesse o estudo musicológico
desse canto, mas sim o registro e a reflexão sobre os dados das memórias
narradas pelos três sobreviventes do sexo masculino, considerados
pelos demais como guardiões da memória Xetá. Dois deles foram
protagonistas dessa experiência, pois passaram pelo ritual quando
viviam no interior da floresta. Portanto, os dados aqui apresentados
são fruto das lembranças dos três durante minha pesquisa de campo
– ocasião na qual dois iniciados, Kuein e Tuca, junto com Tikuein,
entoaram os cantos, narrando seus significados e o que expressam.
Além da memória dos três sobreviventes, que compõe o universo
deste artigo, disponho de alguns dados dos registros do material de
pesquisa coletado por Rodrigues em 1960 e 1961.6 Este generosamente
me deu acesso aos seus registros orais e aos seus manuscritos, produzidos
durante sua estadia junto a duas famílias, Ta’hey7 e Eirakã,8 que viviam
numa pequena aldeia situada em um local que denominou Pé de
Galinha.9 Incluo nesse rol os escritos de Vladimir Kozák, cinetécnico

3
“Kuein” era o termo de tratamento dado ao menino já iniciado. Seu nome do mato era
Kuein Ma’ãnhaen Nhaguakã (Kuein + espécie de pássaro do inverno + jaguatirica).
Os não indígenas o registraram como Coen Xetá.
4
Seu nome do mato era Kuein A’nambu Guaka (inhambu + arara vermelha). O nome
dado pela família que o criou foi Tucanambá José Paraná.
5
O nome xetá de Tikuen era Nhangoray (graxaim). O nome dado pelos não indígenas
foi José Luciano da Silva, conhecido por todos como Tikuein.
6
Linguista, Prof. Dr. da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor
emérito da Universidade de Brasília (UnB), diretor do Laboratório de Línguas
Indígenas da UnB.
7
O nome do mato era Ta’hey (araponga). Também chamada de Adjatukã (pai pequeno
ou irmão mais novo do pai).
8
O nome do mato era Eirakã (irara). Também chamada pelos não índios de Aricã, Arigan.
9
O local estava situado em uma parte do hábitat Xetá, na região denominada Serra
dos Dourados (PR), no noroeste do estado. O nome “pé de galinha” deve-se à
configuração espacial semelhante a um pé de galinha.
360 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

da atual Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Desidério Aytai,


antropólogo que realizou um estudo musicológico de dois cantos do
ritual de iniciação.
Povo de caçadores e coletores, os cantos de iniciação masculina
Xetá referem-se aos diferentes contextos e conhecimentos que possuíam
dos pássaros e do ambiente natural da floresta, inclusive o Canto das
Estrelas, exceção nesse repertório.10
Os três sobreviventes Xetá relatam a existência de cinco cantos
entoados durante o ritual de iniciação masculina: o Canto da Jacutinga
(‘pinpéyn’wa) ou (‘pinpéay),11 o Canto do Surucuá (tãtay’wa), o Canto
do Urubu (péxarara’wa) ou (pexara’raw),12 o do Martin Pescador
(nhu’adju) e o Canto das Estrelas, todos eles podem ser entoados em
diferentes vozes, inclusive nas vozes de pessoas já falecidas. O primeiro
canto, o da Jacutinga, era cantado de madrugada, antes do alvorecer;
o segundo, o Canto do Surucuá, entoado durante o amanhecer; o
terceiro, o do Urubu, era cantado do nascer ao pôr do sol; o quarto
canto, o do Martin Pescador, era entoado ao anoitecer (escurecer); e
o das Estrelas, entoado durante a noite até a madrugada, quando se
inicia o Canto da Jacutinga.
O ato da perfuração labial do menino ocorre pela manhã, durante
o Canto do Urubu, quando o sol está alto. Antecede o momento do furo
labial a pintura facial, que é feita por uma mulher, e esta pode ou não
pertencer à sua parentela. Na sequência, o lábio inferior era perfurado
por um homem, que também lhe introduzia o pino de resina no local
da perfuração após preparar um pequeno suporte – confeccionado
com madeira – que vai dentro da boca para fixar o pino. Na ocasião, a
mãe incentiva o filho, falando dos benefícios que ele terá ao término do
ritual, quando tiver saído da reclusão – por exemplo, o fato de que se
diferenciará das mulheres, das crianças e de outros povos.
Durante a cerimônia, os homens ficavam no interior da casa
grande (Tapuy’adjo) cantando o Canto do Urubu, além de ingerirem
bebidas fermentadas feitas pelas mulheres com frutas silvestres, como
jabuticaba, jerivá ou guabiroba, armazenadas em cocho de madeira.

10
Os Xetá, conforme Tuca, Kuein e Tikuein, classificam os animais como aqueles do ar,
da terra e da água.
11
Os termos em Xetá têm o mesmo significado, mas com pronúncias diferentes. Para
escrevê-los, Rodrigues (1978) me auxiliou, além do fato de constarem em suas
anotações de campo.
12
Rodrigues (1978).
Vozes de homens, cantos de bichos 361

Passavam a noite bebendo e cantando até o fim do horário do Canto do


Urubu, quando era encerrada a cantoria.13
O que observei nas diversas audições do Canto do Urubu que fiz
durante as longas conversas com os três sobreviventes mais velhos foram
algumas características particulares desse canto. Por exemplo, a ausência
de palavras e de instrumentos sonoros, embora usassem sonorizadores,
como a flauta de pã, confeccionada com três pequenos tubos de bambu,
um outro tubo maior do mesmo material e um pequeno invólucro (casca
seca) da fruta de jaracatiá, todos utilizados para anunciar ao grupo a
caça de determinado animal. Soma-se a essas peculiaridades o som
glotalizado, articulado na garganta, além de uma liberdade relativa na
sua execução, que pode ser a uma, duas, três ou quatro vozes, inclusive
de pessoas mortas, o que evidencia uma polifonia.14
A breve apresentação dos cantos de iniciação masculina marca a
importância dada a eles pelos três sobreviventes. No entanto, observa-
se que o Canto do Urubu, entoado em diferentes vozes, inclusive nas
de Tuca e Kuein, possibilitou-me constatar sua relevância cosmológica
para a sociedade e como suas vozes expressavam quão performáticos
eram os sons e o ritmo da melodia. A princípio, eu não a entendia, mas
nas explicações que faziam do canto foi possível identificar as lacunas
do trabalho de Aytai (1978, 1979, 1981),15 que ao tratar da análise
musicológica produziu partituras do Canto do Urubu, porém não
abordou os aspectos etnológicos que o envolvem.16

13
Quando os homens estavam bêbados, quem servia a bebida eram as mulheres,
que usavam uma vasilha confeccionada de cabaça, também chamada de porongo
(Lagenaria siceraria), e inclusive os serviam na boca enquanto cantavam.
14
O repertório levantado durante a pesquisa aponta outros cantos além dos cantados
durante o ritual de perfuração labial, todos eles referentes a animais classificados
como aquáticos, terrestres e do ar.
15
Desidério Aytai era antropólogo e engenheiro de origem húngara. Foi professor
livre docente na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas. Fundou
o Museu de Paulínia (SP) e realizou pesquisa sobre música entre vários povos
indígenas e sobre sambaquis em SP. Disponível em: https://www.facebook.com/
notes/amigos-monte-mor/biografia-dr-desid%C3%A9rio-aytai-retirada-do-site-da-
prefeitura/319787494738209/. Acesso em: 2 nov. 2022.
16
O repertório dos cantos levantados durante a pesquisa aponta outros cantos além
dos cantados durante o ritual de perfuração labial, todos referentes a animais
classificados como aquáticos, terrestres e do ar. O leitor talvez se pergunte a razão de
eu não tratar do conjunto masculino de cantos de iniciação, mas a opção pelo Canto
do Urubu deu-se pela sua importância como um canto produzido pelos homens no
cotidiano do grupo e no ritual.
362 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

O conhecimento e a relação dos Xetá com o ambiente da floresta


são tão fortes que todos os cantos referentes às aves entoados durante
o ritual observam seus respectivos horários e movimentos no interior
da mata, marcando ainda a hora do dia e a duração do canto. Quanto
ao Canto das Estrelas, entoado por uma, duas, três e até quatro vozes,
determina o início e a duração da cantoria noturna do ritual, que é
regada a bebida fermentada de frutas silvestres existentes na floresta
e se estende até a madrugada, quando se inicia o Canto da Jacutinga,
seguido pelo do Surucuá e depois pelo do Urubu. Este dura o dia todo,
estabelecendo o início e o fim do ritual de iniciação masculina.
O Canto do Urubu apresenta outras características além daquelas
já mencionadas. Ele difere dos demais não apenas no que diz respeito
ao horário em que pode ser entoado, mas principalmente por marcar
o momento da pintura facial daquele que será iniciado. Logo após,
vêm o furo labial e a fixação do pino (tembetá) em seu lábio, que na
sequência é lavado com plantas maceradas em um recipiente de cabaça
e misturadas com água, isso quando o sol está alto. Além disso, o canto
pode ser entoado fora do ambiente ritual, no cotidiano do grupo. Cabe
registrar que, por serem caçadores, apenas os homens entoam os cantos
dos bichos, pois estes fazem parte do universo masculino.
O Canto do Urubu, na cosmologia do grupo, tem uma grande
importância. Segundo Tuca, Kuein e Tikuein, no tempo dos antigos o
urubu-de-cabeça-vermelha era o dono do fogo.17 Tikuein conta:

Após a água grande [dilúvio], morreu toda nossa gente muito


antiga, só sobrou um homem e uma mulher que era sua irmã.
O céu nesse tempo era muito baixo, de modo que o sol esquentava
muito, tanto que os antigos podiam assar a caça no calor dele.
O calor queimava a pele deles. Mas, quando o céu se afastou da
terra, o homem e a mulher não puderam mais assar a carne, pois
não tinham fogo. Quem tinha o fogo era o urubu-de-cabeça-
vermelha. A irmã disse: “Oh, meu irmão, como vamos fazer para
nos esquentar e assar carne? Nós não temos fogo para esquentar
nem para assar”. O homem então resolveu roubar o fogo do
urubu-de-cabeça-vermelha, pois era ele que tinha o fogo.
Assim, ele decidiu a se fazer-se de morto e foi com a mulher para
o mato, construiu um paiolzinho, deixou seu arco e flecha e a
mulher lá dentro, fechou bem a porta e colocou folhas em cima

17
Dos três sobreviventes, registrei três narrativas míticas a respeito do roubo do fogo,
além da registrada por Rodrigues (1960-1961).
Vozes de homens, cantos de bichos 363

para protegê-la. Fez um travesseiro de pau [apoio de cabeça],


amassou o cipó e passou no corpo todo e deitou-se no chão,
apoiou a cabeça no travesseiro e ficou imóvel para atrair o urubu.
Logo vieram as moscas varejeiras e puseram ovos nele, no couro
cabeludo, nos olhos, em todo o corpo. Dos ovos saíram uns
bichinhos, que ficaram mexendo no corpo dele, mas o homem
não se movia, parecia morto e fedia muito.
Aí, apareceu um urubu, sobrevoou o lugar, foi baixando aos
poucos e pousou numa árvore próxima. Vendo que o homem
não se mexia, ele desceu da árvore e veio voando baixinho até o
chão e foi examiná-lo de perto. Certo de que estava morto, pois
cheirava carniça, ele voou para chamar os outros urubus. Pouco
depois foi chegando uma porção deles [urubus], o da cabeça
preta, o da cabeça branca, e entre eles estava o urubu-de-cabeça-
vermelha; era ele que tinha o fogo e tinha uma espécie de broca
que fazia fogo [explica como era]. Ele, o urubu, queria assar o
homem. Para isso trouxe aquela espécie de broca. Ele pôs-se a
arrumar a fogueira e fez o fogo. Enquanto isso, o homem abriu
um olho para poder ver como o urubu-de-cabeça-vermelha
fazia fogo. Entretanto, um outro urubu viu o homem com o olho
aberto e, voando para cima de uma árvore, avisou aos demais
que o homem não estava morto, pois tinha aberto um olho.
O urubu-de-cabeça-vermelha aproximou-se então do homem
para examiná-lo bem. Pegou no seu olho e viu que este estava
cheio de bichos. Então ele disse:
– Está mesmo morto! – Nesse tempo os bichos falavam igual
nós, a nossa fala.
Aí todos os outros urubus foram chegando e já estavam
erguendo o homem para levá-lo ao fogo, quando este pegou o seu
travesseiro-de-pau e com ele espalhou os urubus, que assustados
voaram. O homem gritou para a mulher sair do esconderijo e pe-
gar o tição de fogo; ela correu rapidamente, pegou o tição e
correu para dentro do esconderijo. O homem então pegou a
caixa com a broca de fazer fogo do urubu-de-cabeça-vermelha,
e os dois fugiram dali para o mato até o rio, para o homem se
lavar e tirar os bichos do seu corpo. Nesta hora, a mulher viu
como ele estava fedido [...]. Ele tirou as varejeiras do corpo e
foi jogando no chão na margem do rio, esses bichinhos viravam
ratos de banhado à medida que caíam na beira do rio [...]. (Relato
de Tikuein, Curitiba, 1997).
364 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Após o roubo do fogo do urubu, antecedido pelo mito da “água


grande”, o dilúvio, tem-se a origem dos ratos. O casal vai para a mata, se
casa e tem filhos, que se casam e têm filhos, que se casam e têm filhos...
Assim se formam a humanidade, os bichos d’água, da terra, a sociedade
xetá e tudo que há no mundo.
A narrativa do roubo do fogo pelos Xetá aponta a grande
importância desse animal na vida desse povo, pois o fogo era utilizado
para assar a caça, para aquecer a pedra – colocada na água que ficava
dentro de um recipiente de espátula de palmeira, onde era preparado
e servido o Kukuay (erva-mate) –, além de iluminar a noite escura e
ser precursor da recriação do povo, assim como da humanidade e dos
bichos. Somam-se a todos esses feitos alguns hábitos, conhecimentos
e a terapêutica dessa ave, demonstrados quando entoaram o Canto do
Urubu. Diversos conhecimentos e histórias a respeito das diferentes
espécies foram contados – por exemplo, os Xetá não podiam matar o
urubu-de-cabeça-vermelha (ipékera’raw), pois aquele que o mata morre.
No caso do urubu-de-cabeça-branca (nhã’pini) ou (aru’ay), também não
se pode matar nem comer sua carne, quem a come morre.
Quanto ao urubu-rei, o grupo matava com um porrete de
madeira, semelhante a uma borduna. Ele era morto como matavam a
onça, considerada muito perigosa pelo grupo. Depois disso, era levado
para um local da floresta, distante da aldeia, onde abriam uma clareira.
Ali construíam com três paus uma espécie de trave de futebol com
aproximadamente 4,50 m de comprimento por 2,10 m de altura, e nela
o amarravam de asas abertas. Retiravam as penas de suas asas para
colocarem nas flechas e faziam uma espécie de pincel para borrifar a
gordura sobre a carne da caça enquanto esta era assada. Seu bico era
utilizado como terapêutica na cura dos homens embriagados com as
bebidas de frutas fermentadas.
Tuca e Kuein contam que havia muitos urubus-de-cabeça-
vermelha na mata onde moravam, mas que eles não tinham canto, e
sim um som para chamar outras espécies, enquanto o urubu-de-cabeça-
preta, quando entoava seu canto, era sinal de que havia pessoas perto do
espaço de moradia do grupo.
Vozes de homens, cantos de bichos 365

No estudo musicológico, Aytai (1981)18 registra que o Canto do


Urubu, em suas diferentes interpretações, é composto de sílabas que
não apresentam valor semântico. Remete ainda à alternância de tons
– alto, médio, baixo e lento –, com subida gradativa, num quase se-
mitom. Quanto ao som rítmico, observa sons graves, médios e agudos.
Segundo Aytai (1981), uma transcrição minuciosa de cada um
dos Cantos do Urubu exigiria mais dados do que os que estavam à
sua disposição, pois não daria mais informações do que aquelas que
conseguiu extrair das fitas magnetofônicas a que teve acesso e dos três
fonogramas que analisou. Em sua análise, o autor observa: “Os cantos
são tão similares tanto em elementos melódicos quanto rítmicos, sua
estrutura é tão pouco definida e varia tanto de ocasião em ocasião, que
seria impossível estabelecer sua forma ideal ou normativa [...]” (AYTAI,
1981, p. 131).
O esforço do autor em analisar o Canto do Urubu entoado
pelas diferentes vozes – inclusive nas vozes de pessoas mortas –, sem
informações daquelas pessoas que cantam, não possibilitou uma análise
mais aprofundada dos cantos, tampouco a coleta de dados etnográficos
junto aos cantadores. Faltou-lhe o trabalho de campo tão necessário
à compreensão do contexto no qual o canto se dá, a interpretação do
significado da melodia do ponto de vista do nativo.
Em uma das idas a campo, no ano de 1997, apresentei a Tuca,
Kuein e Tikuein uma gravação do Canto do Urubu, além de ter ouvido
os dois primeiros entoarem-no em diferentes oportunidades, tanto
em suas vozes como nas de parentes e de amigos já falecidos. Nessas
oportunidades, foi possível levantar informações preciosas a respeito
do canto em questão e principalmente da sua importância no tocante à
cosmologia do grupo.
Ao contrário do que apresenta Aytai (1981), constatei, com o
relato de Kuein e Tuca, que aquilo que o autor classifica no Canto do
Urubu como sílabas sem sentidos semânticos não procede, assim como
sua interpretação sobre a alternância de tons em alto, médio e baixo,
que, de acordo com os dois sobreviventes, são marcações do voo do
Urubu, pois tanto o urubu-de-cabeça-vermelha como o urubu-rei não

18
Aytai estudou os cantos a partir de gravações feitas por Vladimir Kozák em 1960,
e entre dois homens Eirakã e Adjatukã, quando estes moravam com suas famílias,
esposa e filhos, em uma pequena aldeia no espaço denominado pelos colonizadores
de Pé de Galinha. Rodrigues, nesse mesmo período, fazia o estudo da língua Xetá.
Tuca os acompanhou como intérprete.
366 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

cantavam. Portanto, o que é categorizado pelo autor como alternância


de tons remete ao voo e aos movimentos no ar, o planar e o pousar.
Ao ouvir as gravações do Canto do Urubu com Tuca e Kuein,
pude escutar a interpretação que faziam do canto nas diferentes vozes
e nos tons classificados por Aytai como alto, médio e baixo, bem como
o significado das sílabas consideradas por esse autor como sem sentido
semântico e a marcação das frases musicais e dos elementos rítmicos
identificados como sons agudo, grave e médio.
No que se refere aos tons, eles retratam os movimentos do urubu
voando alto, planando por grandes ou pequenas áreas sem bater as asas,
no ritmo suave, enquanto o tom mais baixo indica proximidade do
chão, que pode implicar o pouso direto ou sobre o galho de uma árvore
ao se aproximar do alvo que está no solo – no caso, animais ou pessoas
mortas. Em todas as explicações a respeito do tom do Canto do Urubu,
os Xetá tratam do movimento do corpo e das asas no pouso, na subida
gradativa, na subida rápida ou parado no ar.
Ainda hoje, o horário do Canto do Urubu é respeitado como
prescrito pelos seus antepassados,19 como lhes foi ensinado enquanto
viviam na floresta, junto aos seus parentes. Quanto à marcação dos
horários do Canto do Urubu ser apenas durante o dia, a explicação
apoia-se no fato de que essa ave possui hábitos diurnos, e por isso seu
canto só pode ser entoado nesse período e por homens, pois foi um
homem que roubou o fogo e são os homens que conhecem a floresta,
seus mistérios e os hábitos dos bichos. “[...] nossa gente era caçadora e
coletora, eles conheciam tudo no mato [...]” (Relato de Tuca e Tikuen,
Curitiba, 1997).
É importante registrar que os Xetá dispunham de um profundo
conhecimento dos hábitos dos urubus, cada um deles é diferente em
seu jeito de ser. Em seu hábitat, no tempo dos antigos, havia três tipos
deles: o urubu-preto, respeitado por seu canto de alerta; o urubu-rei, do
qual tinham medo, em razão do seu tamanho e da sua agressividade; e o
urubu-de-cabeça-vermelha, respeitado por ser aquele que tinha o fogo
que lhe fora roubado pelos ancestrais do povo.
O canto entoado hoje pelos sobreviventes do grupo aponta que a
sua execução pode ocorrer na voz do cantador ou na voz de um outro
membro do grupo, vivo ou falecido. Quando questionados sobre por

19
No período da pesquisa, essa regra ainda era obedecida, e, todas as vezes em que lhes
era solicitado um canto durante o dia, os três só entoavam esse canto, pois os demais
tinham seus horários e contextos a serem observados.
Vozes de homens, cantos de bichos 367

que a pessoa viva cantava os cantos em sua voz e nas das pessoas mortas,
Kuein e Tuca responderam que “a voz tem dono. Cantamos na nossa
própria voz e na de quem já morreu, é um jeito de não esquecer o canto
e o dono da voz de quem a gente está cantando” (Relato de Kuein e Tuca,
Guarapuava, 2002).
As sílabas consideradas como sem sentido semântico por Aytai
na verdade significam movimentos ascendentes performáticos que
os urubus fazem no ar, utilizando as asas de modo espiral, em largos
círculos, para os voos de longas distâncias em busca de alimentos, ou
as viradas e os giros do corpo de lado a lado, com suas asas a baterem
suavemente – o canto marca esses movimentos.
Entoados em sons glotais laringalizados, os cantos não são
acompanhados por instrumentos sonoros; a tonalidade e a modalidade
de voz reproduzem sons dentais, apresentando variações que denotam o
movimento corporal da espécie cantada. Observo que, além do Canto do
Urubu, os outros três entoados durante o ritual de iniciação masculina
remetem a aves que estão presentes no mito do dilúvio e no início de
outro mundo, identificado como o tempo em que os dois irmãos, o sol
e a lua, andavam pela terra. Cada uma dessas aves teve sua importância
direta no estabelecimento do novo mundo e na formação da topografia
do território xetá.
Finalmente, classifico o Canto do Urubu como uma modalidade
de narrativa, uma vez que ele apresenta um contexto, uma história
que alude a uma realidade da vida do animal cantado, relacionada
com a cosmologia da sociedade xetá. Embora feitas de sons glotais e
laringalizados ao invés de palavras, essas narrativas são uma rica fonte
de dados etnográficos sobre o conhecimento xetá a respeito dos hábitos
dos animais que são apresentados e descritos pelos cantos através da
tonalidade da voz do cantador.
No Canto do Urubu, os narradores explicaram que, pela
entonação da voz, o seu alongamento e a sua altura, se sabe qual é o
movimento do animal – se ele está flutuando, se bate asas, se sobrevoa o
centro da aldeia ou se pousa. Pelo ritmo do canto, se sabe a que espécie
de urubu está se referindo (se é o urubu-rei, se é o urubu-de-cabeça-
vermelha, por exemplo). Por outro lado, os cantos têm donos, porque as
vozes são propriedade das pessoas, embora possam ser entoados na voz
de outrem, inclusive na dos mortos. Como narrativa, o Canto do Urubu
é totalmente performático.
368 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Referências
AYTAI, D. Um microcosmo musical: cantos dos índios Xetá. Publicações do
Museu de Paulínia, Paulínia, n. 3, p. 1-5, jan. 1978.
AYTAI, D. Um microcosmo musical: cantos dos índios Xetá. Publicações do
Museu de Paulínia, Paulínia, n. 8, p. 13-15, maio 1979.
AYTAI, D. Um microcosmo musical: cantos dos índios Héta. Boletim do
Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense, Curitiba, v. XXXVIII,
p. 121-159, 1981.
RODRIGUES, A. D. [Anotações de campo]. Serra dos Dourados, 1960-1961.
RODRIGUES, A. D. A língua dos índios Xetá como dialeto Guaraní. Cadernos
de Estudos Linguísticos, São Paulo, n. 1, p. 7-11, 1978.
SILVA, C. L. da. [Diários de campo]. Curitiba, 1994-2003.
SILVA, C. L. da. Sobreviventes do extermínio: uma etnografia das narrativas e
lembranças da sociedade xetá. 1998. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1998.
SILVA, C. L. da. Em busca da sociedade perdida: o trabalho da memória
xetá. 2003. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília, Brasília, 2003.
Historia indígena, fuentes
documentales y narrativas
etnohistóricas: diálogos
con Jean Langdon

Camilo Mongua

Cuando recibí la invitación para participar en una publicación


en homenaje a la obra de Jean Langdon, evocaron en mi memoria
recuerdos de ocho años de correos electrónicos, encuentros y
conversaciones que giraron en torno a la historia del Putumayo, con
un interés en común, la historia indígena. Estas conversaciones, con el
paso de los años, se convirtieron en una importante influencia en mi
quehacer investigativo, tomando la perspectiva indígena un importante
lugar en la interpretación de las fuentes documentales y la historia del
Putumayo y de los grupos indígena, en particular, la historia de los
Tucano occidentales y sus descendientes, los actuales Sionas o Gantëya
bain o gente del río de Caña Brava.
En un primer momento, debo confesar que mi conocimiento sobre
este grupo amazónico era mínimo. Aunque llevaba años de trabajo de
archivos del siglo XIX y XX, el mundo indígena permanecía oculto en la
interpretación de estos documentos. Las fuentes narraban un sin número
de acontecimientos del Putumayo, desde pleitos fronterizos, informes
administrativos y disputas entre comerciantes, hasta la vida cotidiana
de los misioneros. Aunque lo indígena es un tema fundamental para
los funcionarios del Estado y los misioneros, en las primeras lecturas se
suele caer en una suerte de trampa en la interpretación de las fuentes.
Si bien tanto en los documentos del Estado como en los
eclesiásticos las referencias directas al mundo indígena no suelen ser
usuales al responder estos documentos a los intereses de estos actores, es
posible encontrar en las fuentes documentales rastros de la historicidad
indígena. Precisamente el diálogo entablado con Jean fue lo que me llevó
a reconsiderar la manera en que las fuentes documentales adquirieron
370 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

un nuevo sentido. Los nombres de pueblos, quebradas y lugares a


que hacen referencias los documentos se convirtieron en importantes
indicios para la reconstrucción de la historia indígena.
Este capítulo narra mi diálogo con Jean Langdon y la manera
como su obra ha influenciado mi interpretación de la historia del
Putumayo en el siglo XIX. Como se abordará en líneas posteriores,
la historia de esta región en las últimas décadas del siglo XIX y en los
albores del siglo XX no solo hizo parte de los diferentes ciclos extractivos
(quina y caucho), sino, además, de una compleja historia en donde los
Tucano occidentales (ubicados en la región fronteriza entre Colombia
y Ecuador) hicieron parte activa tanto de la extracción de gomas, los
conflictos con los misioneros y comerciantes. Sin embargo, narrar esta
historia alternativa requiere contar la manera como se llegó a establecer
una historia paralela a la hegemónica del extractivismo.

De las economías extractivas a la historia indígena


de los Tucano occidentales del río Putumayo
La historia reciente de la Amazonía colombiana se encuentra
atravesada por imaginarios de terror y violencia ocurridos en la época
del caucho. Los escándalos del Putumayo y la explotación de los grupos
indígenas por parte de la Peruvian Amazon Company se convirtieron
en los principales referentes de la historia de los grupos indígenas
amazónicos del Putumayo. Estas historias han sido predominantes en la
manera cómo se ha interpretado la historia de esta región. Mi primera
aproximación a la historia del Putumayo estuvo influenciada por esta
interpretación. En los años 2011 y 2012 realicé una búsqueda exhaustiva
en los archivos históricos de Colombia y Ecuador como parte del
proyecto de investigación de Robert Wasserstrom en la región fronteriza
del Putumayo, San Miguel y Aguarico de estos dos países. Wasserstrom
sospechaba que, en este extenso territorio fronterizo (ubicado a cientos
de kilómetros de los sucesos de la Casa Arana), los grupos Siona y Cofán
habían sufrido el impacto de la época del caucho.
Aunque estudios previos habían señalado la participación de estos
grupos, no existían investigaciones que abordaran de manera directa
esta región en la época del caucho. Gran parte de las investigaciones
se habían enfocado en una lectura del pasado reciente de los Siona y
Cofán a través de una perspectiva nacional: en Colombia, el impacto de
la colonización y la extracción de petróleo a partir de la década de 1930
Historia indígena, fuentes documentales y narrativas etnohistóricas 371

(en el lado colombiano del Putumayo), y en Ecuador, el impacto tardío


de las actividades extractivas en la segunda mitad del siglo XX (en el
caso de Siona-Secoya y Cofán).
Tras varios años de recolección y análisis documental, Robert
Wasserstrom (2014) logró establecer un importante avance en el
entendimiento de esta región de frontera y el impacto de la economía
gomífera entre los Siona y Cofán, demostrando su participaron en la
extracción de diferentes variedades de gomas (caucho negro, balata,
huansoco) a través del peonaje por deudas entre 1875-1930. A partir del
estudio de estas nuevas fuentes documentales, el Putumayo se convirtió
en una región compleja, en donde la época del caucho había terminado
por generar diferentes regímenes de explotación del trabajo indígena y
de gomas.
En el año 2013, inicié mis estudios de doctorado en historia, espacio
en el cual decidí profundizar en el estudio de esta región. La discu-
sión en este momento se centraba en la economía extractiva y el impacto
en los grupos indígenas de la región de frontera colombo ecuatoriana.
Los estudios de corte histórico y etnohistórico (DOMÍNGUEZ;
GÓMEZ, 1990, 1994; PINEDA, 2000; TAUSSIG, 2002; STANFIELD,
2009; GÓMEZ, 2010) y el estudio de las fuentes documentales me llevaron
a plantear una discusión en torno a cómo se había interpretado la historia
del Putumayo. Precisamente como había señalado Wasserstrom (2014),
las fuentes1 apuntaban a una región que difería significativamente de las
historias de terror de la Casa Arana, que se caracterizaba por ser una
región articulada a las diferentes rutas comerciales de las gomas que se
explotaron en el río Putumayo y en los ríos San Miguel y Aguarico hacia
la cuenca del río Napo.
Estos primeros indicios nos llevaron a explorar diferentes
explicaciones para comprender que había llevado al establecimiento
de dos regiones en la época del caucho. En un primer momento, la
distribución ecológica de las diferentes especies de gomas, los métodos
de extracción y la densidad de la población indígena parecían ser las

1
En el Archivo General de la Nación (Colombia), me familiaricé con los documentos
de los escándalos del Putumayo, en particular, las denuncias entabladas tras la
publicación de Roger Casement. Sin embargo, los documentos relativos a la frontera
con Ecuador eran escasos en este archivo. En Ecuador, las fuentes documentales del
archivo de la Gobernación del Napo para este periodo revelaban la preocupación de
las autoridades por el avance peruano. El archivo de la antigua Prefectura Apostólica
del Putumayo ofreció los primeros elementos para comprender una dinámica
regional que iba más allá de la Casa Arana.
372 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

explicaciones a este fenómeno. Michael Stanfield (2009) desarrolló


este argumento basado en la distribución de las gomas y los diferentes
métodos que fueron utilizados para su extracción, concluyendo que la
distribución de las diferentes especies había marcado una importante
diferencia en el desarrollo de los regímenes de explotación del trabajo:
la incisión de los árboles de Hevea de la cuenca baja del Putumayo llevó
a un sistema de estradas organizadas y la utilización de una mano de
obra extensa en comparación al método utilizado por los caucheros en
las cuencas altas de los ríos Putumayo y Caquetá, la tala de los árboles
castilla, balata o huansoco, lo que llevó a una menor presencia estacio-
nal de trabajadores y una explotación itinerante de las diferentes
variedades de gomas.
Aunque la interpretación de diferentes zonas de explotación
parecía explicar de manera más adecuada las diferencias entre el Bajo
y Alto Putumayo, y podía aplicarse para la región de frontera del
Putumayo, el mundo indígena continuaba en una interpretación de su
historia como mano de obra de los comerciantes caucheros. En el mes
de marzo de 2013, recibí un correo electrónico de Robert Wasserstrom,
en el cual narraba su participación en la reunión anual de la Society for
the Anthropology of Lowland South America (SALSA) en Nashville,
Tennessee. En esta reunión, Robert presentó su trabajo del impacto
de la época del caucho en los Siona y Cofán. En el correo, destacó su
reencuentro con la antropóloga Jean Langdon, quien había trabajado
con los Siona del río Putumayo en la década de los 1970s.
En este correo, Robert me aconsejaba que estableciera co-
municación con Jean, dada la importancia de su trabajo para el
entendimiento de los Tucano occidentales que habitaron este extenso
territorio en el siglo XIX. Después de varios correos electrónicos,
coincidimos en un encuentro en Bogotá. Por una parte, Jean planeaba
retornar al Putumayo después de años alejarse de este territorio por el
incremento de la violencia y el conflicto armado. Por otra, yo participaba
en el “I Encuentro de Investigadores Jóvenes en Estudios Amazóni-
cos”, en donde presenté un pequeño avance de investigación de esta
región de frontera. En este encuentro, recuerdo que proyecté fragmentos
de la correspondencia de los misioneros capuchinos, en donde aludían a
los pueblos de San José y San Diego (pueblos de los Tucano occidentales),
y fotografías, en donde se observaba indígenas de estos dos pueblos.
Casualmente, los documentos y las fotografías aludían a los pueblos de
los Tucano occidentales de las primeras décadas del siglo XX.
Historia indígena, fuentes documentales y narrativas etnohistóricas 373

En un primer momento, mi conocimiento de estos asentamientos


era mínimo, al igual que la interpretación de los registros fotográficos.
En la cafetería de la Universidad Nacional y en el hotel La Pinta
revisamos con mayor detenimiento este material, en donde el mundo
fue tomando mayor relevancia. Este diálogo llevó a una nueva lectura
de los documentos. Los asentamientos que aparecían en los informes
dejaron de ser simples “caseríos” de los corregimientos del Putumayo,
a convertirse en una importante referencia del poblamiento de los
Tucano occidentales en el río Putumayo. Entre el 2013 y el 2015,
continué reuniéndome con Jean en diferentes eventos académicos
(Bogotá, Pasto y Lima). En ciertos momentos, sentía una deuda en
nuestras conversaciones, y aunque lográbamos entablar discusiones
sobre el impacto del caucho en la región y la manera como estos grupos
respondieron a este ciclo extractivo, la perspectiva indígena era un tema
que aún no lograba comprender adecuadamente.
Aunque en el desarrollo de mi tesis doctoral no me fue posible
abordar en detalle la historia de los diferentes grupos indígenas en el
proceso de formación del Estado en la frontera, en la tesis se pasó de
hablar de los “indígenas del Putumayo” a un documento que incluyó
la diversidad de grupos étnicos del piedemonte y de los ríos Putumayo,
San Miguel y Aguarico. Los Sibundoye, Ingano, Mocoa, Cofán y
Tucano occidentales tomaron relevancia en la escritura y en la misma
interpretación de las fuentes documentales.
En el año 2018, volví a reunirme con Jean. En el “Congreso
Internacional de Etnohistoria”, organizamos la mesa “Estado, fronteras,
religiosos y poder regional”. En este encuentro, se discutieron dife-
rentes temáticas en torno a la relación entre los grupos indígenas,
los misioneros católicos y protestantes en las fronteras amazónicas
de Colombia, Ecuador, Venezuela y Brasil, y la serranía del Perijá
(motilones). La agencia indígena fue una de las temáticas que rondaba
en las conversaciones tanto en la época del caucho como a la llegada de
las misiones. Una de las conclusiones en este encuentro fue la necesidad
de discutir el pasado reciente de los grupos indígenas e ir más allá
de su interpretación como fuerza de trabajo: el peonaje por deudas y
la esclavitud.
Como ha planteado Jean Langdon para el caso de los Tucano
occidentales, la época del caucho no constituye el acontecimiento más
relevante en las narrativas etnohistóricas. A partir de las narrativas
etnohistóricas, cabe preguntarse: Para estos grupos, ¿los ciclos extrac-
tivos y las misiones tuvieron la misma connotación en su historicidad
374 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

a lo establecido por los estudios históricos? ¿La violencia y el engaño de


los patrones son elementos centrales en sus narrativas etnohistóricas?
Estas preguntas han guiado el trabajo que hemos realizado
con Jean en torno a la historia indígena de los Siona. A través de las
narrativas etnohistóricas siona, Jean Langdon (2018) propone que
ellos son protagonistas de su historia, siendo la extracción de caucho
un momento en medio de los conflictos entre comunidades y sus
caciques curacas. Esta perspectiva contiene un enorme potencial para
comprender el universo de la historia indígena y su confluencia en las
fuentes documentales de este periodo.
A través de las narrativas recolectadas por Jean y las fuentes
documentales de los archivos históricos que he recolectado en los
últimos años, hemos indagado en el pasado reciente de los Siona.
Aunque las narrativas y los documentos históricos narran diferentes
tiempos históricos y representan intereses y motivaciones de sus actores,
estas diferentes historias se entrecruzan.
Si bien en las etnohistorias transcurren diferentes tiempos
históricos, sus protagonistas y sus conflictos se encuentran inmersos en
lugares específicos: los pueblos de San José, San Diego o Montepa en el
río Putumayo. En los documentos, aunque lo indígena no ocupa un lugar
central, estos asentamientos se encuentran presenten en los informes
tanto de los misioneros como de los funcionarios del periodo colonial
tardío y en la segunda mitad del siglo XIX del periodo republicano.
Aunque no es posible reconstruir las “fechas” o el tiempo histórico
de Occidente, las narrativas etnohistóricas transcurren en medio de
estos lugares.
A partir de este ejercicio de equiparar los documentos y las
narrativas etnohistóricas, la historia indígena se presenta desde una
perspectiva alternativa que incorpora diferentes tiempos históricos,
pasando del tiempo histórico lineal de los historiadores, al desarrollo
de diferentes temporalidades en medio de la expansión del capitalismo
en la territorialidad indígena y el desarrollo de una historia propia
que ha sido fundamental en la sobrevivencia de los descendientes de
los Tucano occidentales, los Siona o Gantëya bain, en medio de las
reconfiguraciones del capitalismo en su territorio y que continúan
amenazando su sobrevivencia.
Por último, un agradecimiento especial a Jean por estos años
de diálogo en el que me ha llevado a conocer universos desconocidos,
tramas históricas, narrativas, y que han enriquecido mi comprensión
sobre el Putumayo y la historia indígena.
Historia indígena, fuentes documentales y narrativas etnohistóricas 375

Referencias
DOMÍNGUEZ, C.; GÓMEZ, A. La economía extractiva en la Amazonía
colombiana: 1850-1930. Bogotá: Corporación Colombiana para la
Amazonía, 1990.
DOMÍNGUEZ, C.; GÓMEZ, A. Nación y etnias: los conflictos territoriales en
la Amazonía colombiana – 1750-1933. Bogotá: Disloque Editores, 1994.
GÓMEZ, A. Putumayo, indios, misión, colonos y conflictos (1845-1970):
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amazónica y su impacto en las sociedades indígenas. Popayán: Editorial
Universidad del Cauca, 2010.
LANGDON, E. J. Dialogicalidad, conflicto y memoria en etnohistoria siona.
Boletín de Antropología, Medellín, v. 33, n. 55, p. 56-76, 2018.
PINEDA, R. Holocausto en el Amazonas: una historia social de la Casa Arana.
Bogotá: Editorial Planeta, 2000.
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Quito: Abya-Yala, 2009.
TAUSSIG, M. Chamanismo, colonialismo y el hombre salvaje: un estudio sobre
el terror y la curación. Bogotá: Grupo Editorial Norma, 2002.
WASSERSTROM, R. Surviving the rubber boom: Cofán and Siona society in
the Colombia-Ecuador borderlands (1875-1955). Ethnohistory, [S. l.], v. 61,
n. 3, p. 525-548, 2014.
Etnoterritorios y ritualidad en
Oaxaca, México

Alicia M. Barabas

Mi propósito en este artículo en homenaje a mi querida amiga y


colega Jean Langdon, que ha trabajado intensamente el chamanismo,
los sueños y la curación entre los Siona de Colombia, es acercarme, a
través de la etnografía, a la construcción simbólica de espacios propicios
para la celebración de rituales, que se realizan en lugares precisos de las
tierras de cada pueblo indígena, por lo que resulta posible demarcar los
territorios sagrados a los que siempre se recurre para ejecutar algunos
de ellos. Daré breves ejemplos de diversos rituales, entre ellos, los
terapéuticos, de curación y de daño, y de los lugares donde se realizan,
porque están cargados de significados, faustos o nefastos, que requieren
actitudes codificadas por parte de los que los frecuentan, ya sean
curadores, enfermos, solicitantes o acompañantes.

Territorios y rituales
Muchos de los rituales que practican los pueblos originarios de
Oaxaca, en México, se llevan a cabo en lugares del entorno natural,
por lo común no demasiado lejanos de la zona habitada, que la gente
considera sagrados porque los conciben habitados por entidades
extrahumanas a las que les rinden culto. Tienen características
fenoménicas peculiares, marcan orientaciones cardinales asociadas a
pronósticos climáticos y de la suerte comunitaria, o son concebidos
como lugares de origen y de herencia ancestral de la comunidad,
tal como atestiguan los mitos sobre algunas montañas, cuevas, fuentes
de agua y árboles. Son numerosos los estudios sobre las formas
simbólicas en las que los pueblos originarios representan el espacio,
y construyen territorialidad, que muestran la estrecha articulación
establecida entre los lugares sagrados de los etnoterritorios y las
diversas prácticas rituales que se realizan en ellos.
Etnoterritorios y ritualidad en Oaxaca, México 377

Por territorio entiendo el espacio culturalmente construido,


valorizado y apropiado simbólica e instrumentalmente por la sociedad
(RAFFESTIN, 1980) y, en este sentido, es un sistema de símbolos, una
manera de clasificar, cualificar y habitar el espacio que sigue pautas y
crea códigos transmisibles culturalmente. A los territorios que habitan
los grupos etnolingüísticos, los llamo etnoterritorios y los entiendo
como: el territorio físico, histórico, cultural e identitario que cada grupo
reconoce como propio, ya que en él no solo encuentra habitación y
sustento, sino también la oportunidad de reproducir cultura y prácticas
sociales a través del tiempo. Su etnoterritorio es el espacio culturalmente
construido por un pueblo originario y puede, o no, coincidir con otras
formas de delimitación territorial o de tenencia de la tierra establecidas
por el Estado.
Una característica central de la etnoterritorialidad es que
promueve la construcción de identidades étnicas, ya que el territorio
de cada grupo ha sido creado por las entidades extrahumanas, o por
los ancestros, para ese preciso pueblo. En la época prehispánica, el
altépetl, en Náhuatl, simbolizaba el territorio de cada pueblo con el glifo
montaña y agua, y esta noción era compartida por todos los pueblos
mesoamericanos que le daban nombre en sus lenguas maternas. Desde
mi perspectiva, el territorio, tanto el físico como el simbólico, de cada
grupo indígena se construye en íntima relación con el proceso de
identificación étnica y con la práctica de la cultura propia de generación
en generación, ya que están habitados por los mismos pueblos a lo largo
del tiempo profundo (BARABAS, 2003b).
La visión simbólica de los etnoterritorios que voy a presentar
no olvida la vasta y múltiple riqueza biológica que cada pueblo ha
contribuido a construir desde la época prehispánica y con la que
conviven; ni la biocultural expresada en los conocimientos, invenciones
y prácticas relacionados directamente con los diversos medioambientes
habitados por cada grupo. Pero me he orientado hacia la lectura cultural
del territorio porque es un aspecto del conocimiento de los pueblos
indígenas al que todos aluden, pero del que pocos dicen en qué consiste
o cómo se expresa.
Para los paisanos de los pueblos no hay territorios abstractos,
sino que están marcados por lugares poderosos, resultantes de las
gestas de los héroes míticos y de los rituales, que los cargan de múltiples
significados. Es la experiencia de lo sagrado vivida en cada lugar y el
conocimiento sobre el cosmos transmitido en los mitos y los rituales,
lo que crea ese campo de significados concretizado en el Lugar. Acerca
378 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

de la especificidad de cada Lugar, son claras las palabras de un médico


tradicional de la Sierra Norte zapoteca:

[...] lo que sucede depende de los Dueños de cada Lugar, nosotros


tenemos que hablar con ellos, bonito, para que el Dueño nos
hable en el sueño y nos diga qué es lo que quiere y entonces
nosotros tenemos que cumplirle y darle lo que nos está pidiendo
y el dirá si le gustó, si lo recibe. Todo es de acuerdo a cada Lugar,
hay lugares donde corre agua, húmedos, con mucho aire, o calor,
y entonces la curación será diferente de acuerdo con el Lugar.
(Entrevista realizada en 2002 en la comunidad zapoteca de San
Pedro Cajonos).

Antes de entrar en la materia específica de este texto, cabe señalar


que Oaxaca es el estado mexicano más diverso, con mayor pluralismo
cultural, en el que conviven 15 grupos etnoligüisticos nativos, además
de los hablantes de castellano, que es la lengua oficial. En los ejemplos de
ritualidad, presentaré a algunos de estos pueblos originarios.

Salud y enfermedad
En las culturas de filiación mesoamericana como las oaxaqueñas,
las concepciones sobre la salud y la enfermedad son complejas, y no
pretendo acercarme a la comprensión de la totalidad del fenómeno,
sino sólo mencionar algunas de sus características. La persona, en estas
culturas, además de un cuerpo físico, posee una coescencia o alter ego
animal o fenómeno atmosférico, conocido en Náhuatl como tonalli o
tona, también llamado ánima o espíritu, que nace con cada individuo
en determinada fecha del calendario ritual, y ambos comparten un
mismo destino. Algunos individuos, como los especialistas rituales,
poseen una o más tonas poderosas, y por ello son nahuales (nahualli
en Náhuatl) y tienen la capacidad de transformación (o de posesión) en
sus coescencias, ya sea para curar o para dañar a las tonas o ánimas de la
gente común. Con nombres propios en cada idioma, todos los pueblos
mesoamericanos comparten estas nociones culturales.
Las enfermedades son clasificadas en naturales y no naturales
y dentro de estas últimas se distinguen: el susto, el espanto, el mal de
ojo, el daño, y el incumplimiento de promesa. El susto y el espanto se
diferencian entre sí porque el segundo desencadena una enfermedad
más grave que el primero, ya que la tona es robada, o chupada, por la
Etnoterritorios y ritualidad en Oaxaca, México 379

entidad extrahumana, en tanto que el susto es el resultado de la pérdida


de la tona por responsabilidad del individuo y puede recuperarse más
fácilmente. El mal de ojo lo causan las personas con dobles poderosos,
especialmente en los niños. El incumplimiento de promesa por
pedimentos cumplidos, hecha a una entidad extrahumana, a un santo o
una santa, puede provocar enfermedades graves.
No son enfermedades casuales, sino resultado de la intencionalidad
de un ente extrahumano o de un par humano mediante la acción de
un brujo, esto es, un chamán orientado al mal, que envía un daño. En
el primer caso, la tona del enfermo queda atrapada en alguno de los
lugares donde mora y se desplaza el Dueño del Lugar, y esto sucede
porque se incursiona en lugares sagrados, que son peligrosos, sin la
debida preparación (abstinencias), actitud (respeto y sinceridad) y
dones (ofrendas). También suele suceder que durante el sueño de la
persona la tona se desplace hacia el mundo-otro sin cuidado, o tenga
una coescencia muy débil, y allí sea atrapada por el Dueño.
El daño es siempre resultado de la intencionalidad humana de
hacer mal a un semejante. Por lo común, es antecedido por la envidia
que alguien siente por otra persona debido a los bienes que posee:
riquezas, salud, prestigio, muchos hijos varones, suerte, ya que el que
envidia siente que parte de lo que el envidiado posee le tocaba a él. Para
dar cauce a este sentimiento, le pide a un brujo que le envíe un daño, que
se manifestará como enfermedad. Lo que el brujo envía suelen ser unos
paquetes conteniendo velas y plumas negras, cacao y copal para agradar
al Dueño y papeles escritos con los pedidos de enfermedad, que entierra
cerca de la casa del dañado. Ese mismo pedimento puede hacerse en el
interior de ciertas cuevas donde la tradición dice que vive el Dueño del
Cerro en su avatar de diablo.
La enfermedad no natural es concebida como una pérdida de
equilibrio en el ser humano que, de no ser restaurado, puede llevar a
la muerte. Esa pérdida de equilibrio se interpreta como ausencia de
armonía en las relaciones entre el ser humano, su sociedad, los seres que
habitan el entorno natural y el cosmos, y vuelve precaria la seguridad
del grupo, porque la enfermedad es un problema no individual, sino
familiar y hasta grupal. La ruptura de las reglas de reciprocidad, a la
que llamo ética del don (BARABAS, 2003b), entre los humanos y las
entidades extrahumanas, está en la base de la acción de éstas, que
ocasionan la enfermedad.
La salud se entiende como la restauración integral de la armonía.
Esta noción, junto con la de buena suerte, abundancia, fertilidad, están
380 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

asociadas con el oriente, que se considera el punto cardinal propicio


porque por allí sale el sol, de allí se esperan los vientos favorables, la
lluvia sin trombas y los buenos pronósticos. El occidente es el punto
nefasto de los malos vientos, remolinos, enfermedades y muerte. El sur
trae al trueno protector y la lluvia, y es ámbito de control de la serpiente
de agua concebida como nahual del Dueño del Agua o del Cerro. El
norte se identifica con las desgracias y los malos vientos causantes
de enfermedades.

Los Dueños de los Lugares


En las culturas oaxaqueñas, los personajes claves en el desempeño
de todo ritual son los llamados Dueños de los Cerros, que Eliade (1967)
habría llamado poderosas hierofanías. Los especialistas religiosos se
refieren a ellos como un principio que condensa fuerza, energía y poder.
Pueden ser definidos como entidades extrahumanas territoriales, como
nahuales de gente poderosa, como espíritus de los antepasados muertos
e incluso pueden ser consustanciados con los santos católicos, cuando
éstos son patronos y protectores del pueblo y su territorio. Se piensa que,
generalmente, tienen fisonomía humana, y la estructura del mundo que
habitan y controlan es una réplica de la sociedad humana. Los Dueños
pueden manifestarse en cualquier lugar; la milpa (parcela sembrada), la
casa, el pueblo, pero los lugares más típicos son los cerros, las cuevas, los
bosques, los manantiales y otras fuentes de agua.
Se reconocen dos grandes categorías de Dueños: de la tierra
(cerro, monte, animales) y del agua (rayo, lluvia, manantial, laguna,
río). Los Dueños de la Tierra se presentan en dos avatares: el Dueño
fausto, blanco y asociado con riquezas naturales y el Dueño nefasto
relacionado con lo oscuro, con las riquezas artificiales y mal habidas
y con el diablo de fisonomía e indumentaria mestiza. Los Dueños del
Agua pueden diferenciarse entre: los del agua que llega de arriba o de
la superficie, que son masculinos, y los del agua de abajo o subterránea,
que son femeninos.
Los Dueños son concebidos como seres ambivalentes: peligrosos,
caprichosos y exigentes, pero dadores de bienes, justos y protectores. La
gente dice que tienen un carácter “delicado”, se ofenden ante la menor
transgresión de su espacio, o al tratarlos con falta de respeto (no guardar
abstinencias, hablar fuerte), o de mala manera, o al acercarse con “mal
Etnoterritorios y ritualidad en Oaxaca, México 381

corazón” (doble intención o pensamiento), o por la falta de “pago” de


ofrenda por el uso de los lugares.
La ambivalencia (bien-mal) de la ética de las entidades
extrahumanas es una característica propia de los númenes prehispánicos,
que también se adjudica a los santos católicos. Tienen la capacidad de
curar o dañar, beneficiar o perjudicar a las personas, de acuerdo con la
naturaleza de las relaciones establecidas entre ellos y los humanos. Si las
conductas sociales y rituales y las ofrendas entregadas son adecuadas
a lo que desean los númenes, es de esperar que sean propicios a las
solicitudes de los ofrendantes. Si no, serán acreedores a sanciones o
perjuicios que pueden incluso afectar a toda la comunidad. Los siglos de
evangelización católica han acrecentado el aspecto negativo y maligno
de los Dueños, en especial porque habitan el inframundo dentro de los
cerros, identificándolos con el diablo, pero todavía es más importante
para la gente la figura del Dueño benéfico, que da los bienes y cuida a
su pueblo.
Esta misma dualidad ética se atribuye a los especialistas rituales,
que pueden ser curadores al mismo tiempo que brujos encargados de
hacer el mal. Al igual que con las entidades extrahumanas, los siglos
de evangelización católica han ido separando a unos especialistas de
los otros y en la actualidad forman parte de categorías separadas; los
curadores asociados con lo bueno y los brujos, con el mal y el demonio.
Los rituales se llevan a cabo en lugares que son concebidos como
pesados, porque en ellos están presentes las entidades extrahumanas,
como delicados, porque requieren preparación previa al acceso, como
lugares de respeto, porque en ellos no pueden realizarse acciones
inconvenientes, y pueden ser también encantados, porque se hacen
invisibles, aparecen y desaparecen. Para los que no son chamanes, ver lo
encantado equivale a enfermar de espanto. A veces se muestran ante la
gente que quieren “agarrar”, atraer, pero, por lo común, los seres, lugares
y objetos encantados sólo se dejan ver por otros seres no ordinarios,
como los nahuales de los chamanes. Un Dueño puede crear encantos
(ilusiones visuales y auditivas) para seducir a una víctima y hacerle
ver riquezas, pero los bienes así otorgados se convertirán en otra cosa,
usualmente podredumbre, ni bien la persona salga del lugar sagrado.
Las cualidades de los lugares sagrados y sus Dueños son
particulares. La entrada irrespetuosa de gente ajena a la “costumbre”
puede desacralizar el lugar, haciendo que lo sagrado se retire, y pre-
disponer al Dueño para castigar a la gente con enfermedades y desgracias
hasta ser desagraviado. Numerosos relatos indican que no les gusta la
382 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

intromisión de extraños y de servicios modernos en su territorio, como


carreteras, puentes o presas, ya que los fuereños no piden “permiso”
ni “pagan” para intervenir en él. Como respuesta al “daño” causado
a los lugares, dificulta las acciones de los trabajadores, los enferma e
incluso les ocasiona la muerte. Mediante rituales de adivinación y de
desagravio puede saberse cuántas víctimas exige el Dueño para dejar
que se realicen obras en su territorio. Los chinantecos de Ojitlán cuentan
que el Hombre del Cerro de Oro, cuyo nahual es rayo, exigió la muerte
de varios ingenieros que fueron “tragados” por él, para permitir la
construcción de la presa Cerro de Oro (BARTOLOMÉ; BARABAS,
1990). Al desplomarse el puente más alto cerca de los límites entre
Oaxaca y Puebla, durante la construcción de la supercarretera a México,
murieron 11 trabajadores y los oaxaqueños interpretaron esas muertes
como el “cobro” tomado por el Dueño del Lugar.

La ritualidad indígena
En otra ocasión (BARABAS, 2003a), he abordado el tema de la
territorialidad desde la cosmovisión y la mitología y en ésta el punto
de partida es la presentación de algunos de los rituales que construyen
territorialidad; esto es, espacios que son identificados como propicios, e
incluso emblemáticos, para la realización de rituales destinados a diver-
sos propósitos, entre ellos los terapéuticos y los de iniciación chamánica.
Bien sabemos que los rituales son sistemas de símbolos, sagrados o
cívicos, que resultan significativos en la vida de las comunidades, debido
a que contribuyen a la cohesión social o dan cauce a los conflictos intra
o interétnicos. Las tipologías sobre rituales son tan numerosas como
autores abocados al estudio del tema. Jean Maisonneuve (1991) repasa
las principales contribuciones desde Durkheim en adelante, lo que me
exime de intentar presentar un estado del arte. La que propongo aquí
es una clasificación operativa que he elaborado (BARABAS, 2006) para
nombrar la ritualidad indígena que registré en Oaxaca en relación con
la territorialidad, lo que de ningún modo agota la gama de procesos
rituales que se acostumbran en las comunidades indígenas.
Los rituales que se llevan a cabo en lugares específicos de los
etnoterritorios, ya sean privados o públicos, y dirigidos, o no, por
un especialista religioso, son: los del ciclo vital, los propiciatorios, los
adivinatorios y los conmemorativos. Un quinto tipo incluye los rituales
de umbral, sobre los que escribiré después, dentro de los que pueden
Etnoterritorios y ritualidad en Oaxaca, México 383

ubicarse los ritos protectivos (abstinencias, purificaciones) y los de


pedido de permiso de acceso y de salida, que se realizan días antes y días
después de los rituales principales.
Todos los rituales del ciclo vital se relacionan con los cerros, las
cuevas, los manantiales, algunos árboles y también con la vivienda,
que es concebida como una réplica del cosmos y del cuerpo humano,
porque la interrelación entre cada pueblo y la naturaleza circundante,
culturalmente apropiada, está presente en todos los ámbitos de la
vida individual y colectiva. En los ritos que buscan la concepción, se
le solicita fertilidad al Dueño en el cerro más alto del área, llevando
ofrendas y pedimentos que reproducen la figura de un bebé. En los de
nacimiento, pilares en la construcción social de la persona, se busca el
buen crecimiento del recién nacido “sembrando” la placenta y el cordón
umbilical en lugares de humedad y fertilidad, como los manantiales
o las ciénagas o bajo un árbol del monte o del solar casero. Seguirán
los ritos de purificación de la madre y el niño en el temascal (baño de
vapor nativo) y el rito de presentación de la tona, animal compañero
del bebé, que el especialista o el abuelo identifican entre los animales,
o sus huellas, que se observan en el solar de la casa y en la entrada del
temascal. Más tarde se harán pedimentos para la buena fortuna de la o el
joven en los cerros y manantiales, pero en estas culturas no se observan
ritos de pubertad. Por último, los ritos de la muerte, que se realizan en
la vivienda del difunto, en el lugar del monte destinado a dejar su ajuar
funerario, para que el alma inicie el camino por la geografía local hacia
la cueva por donde entrará al inframundo, y en el panteón o cementerio.
Las almas de los muertos también son territoriales, y pasan a vivir en el
inframundo, en una sociedad muy similar a la de los vivos.
Una singular ceremonia fúnebre llevada a cabo por los Mazateco
de Ayautla contribuye a desterritorializar al difunto del mundo de los
vivos para que adquiera la territorialidad del de los muertos. A los 40
días si el difunto es hombre y a los 20 si es mujer (porque sale menos de
su casa), cinco de sus padrinos, llevando agua bendita y flores amarillas
de cempaxuchitl, dibujan sobre una tabla una cruz con forma de cuerpo
humano y la numeran. El 1 corresponde a la cabeza y al oriente, el 2 a la
mano derecha y al sur, el 3 a los pies y al oeste, el 4 a la mano izquierda y
al norte, y el 5 al centro y al corazón. Cada padrino, realizando complejos
juegos con el agua, las flores y las velas, se encarga de borrar uno de
los números hasta que, al final, el difunto desaparece del territorio
de los vivos.
384 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Entre los rituales propiciatorios se encuentran los de pedimento,


que buscan obtener beneficios y suerte: lluvia, cosecha, ganado, salud,
fertilidad, buen desempeño como autoridad, conocimiento chamánico,
buen camino de migración, protección, dinero, bienes materiales y
cualquier otro tipo de pedido, que se dirige por igual a los santos de la
iglesia y a las entidades extrahumanas que habitan en el entorno natural.
El pedimento se expresa materialmente dejando en el lugar sagrado un
objeto similar a lo solicitado, confeccionado en madera, barro, papel,
piedra u otro material. Entre los ritos propiciatorios se encuentran los
terapéuticos, porque propician la recuperación de la salud del cuerpo
y de la tona, y también los ritos que propician la salud de la vivienda y
sus ocupantes, que se realizan al ocupar una nueva casa, enterrando
ofrendas de sangre de ave y comida en sus cuatro esquinas y el centro.
Mediante los rituales adivinatorios, los especialistas y las auto-
ridades comunitarias consultan a los antepasados, o a los Dueños de
Lugar, como oráculos. Pronostican el clima del año en los comienzos
de enero, desde la cima del cerro emblemático de la comunidad,
observando el cielo, las nubes, los vientos y el vuelo de las aves. También
se recurre a la adivinación de las señales que deja la sangre de las aves
sacrificadas, en los rituales de propiciatorios o de pedido de lluvias que
se realizan en las cuevas y las cimas de los cerros en abril y mayo. En los
pueblos que utilizan enteógenos, hongos u otros, como los Mazateco
o los Chatino, la ingesta le permite al chamán obtener diagnósticos
de enfermedades y terapéuticas, además de hacer augurios personales
o comunitarios.
Los rituales conmemorativos1 son los de acción de gracias por los
pedidos concedidos, como por ejemplo los dólares prendidos en la ropa
de los santos en la iglesia que dejan los migrantes que han retornado
con éxito. Otras ceremonias, como Todos Santos, Semana Santa y el
Santo Patrón o Santa Patrona, celebran periódicamente los eventos
significativos para la comunidad o el grupo.
Los que van a participar en alguno de los rituales, en especial los
terapéuticos, comenzarán a prepararse para la relación con lo sagrado
mediante ritos previos, secundarios, a los que llamo de umbral porque
marcan y permiten la entrada y salida de los lugares sagrados sin (tanto)

1
Gluckman (1980) y Turner (1980) establecen la diferencia entre dominio ritual y
ceremonial, señalando que el rito implica siempre un proceso de transformación de
la posición o condición, en tanto que la ceremonia conmemora, confirma y renueva
un estado o una situación.
Etnoterritorios y ritualidad en Oaxaca, México 385

riesgo. El umbral, como noción espacial, supone una interrupción entre


espacios con diferente cualificación, que implica cambios de estado
realizados en el tránsito de uno a otro. Los ritos que preparan para dicho
cambio cualitativo de espacio y tiempo son netamente liminales, y
tienen por objeto interrumpir la cotidianidad de la vida diaria y acercar
a los ejecutantes a la excepcionalidad y peligrosidad de lo sagrado.
En muchos casos, se trata de ritos de pedido de permiso para
realizar con éxito un ritual de importancia o para acceder sin peligro a
cualquiera de los espacios sagrados, que hacen mediante invocaciones
y ofrendas al Dueño del Lugar, que serán realizados nuevamente al final
del ritual como agradecimiento, y para que el Dueño permita la salida del
tiempo-lugar sagrado sin contratiempos. También se realizan ritos de
purificación, como los baños de temascal o en el río, pero por lo regular
son de abstinencia. Las abstinencias son rituales de umbral protectivos
y de purificación que colocan al ejecutante en una zona o estado más
cercano a lo sagrado. En todos los grupos estudiados se practican
abstinencias de cinco, siete, nueve o 13 días previos y/o posteriores al
desempeño de cualquier ritual, privado o público. El incumplimiento
puede hacer fracasar el ritual, enfermar al desatento, o llevar a la muerte
a un cazador castigado por el Dueño de los animales. En algunos casos
se les llama “guardar o cuidar los días”, y se trata de abstinencias sexuales,
alimenticias y de conducta, ya que debe evitarse toda violencia y todo
disturbio que desequilibre la relación con lo sagrado que se pretende
construir en el ritual. El mito de origen del ritual de “cuidado de los
días” que registramos entre los Chatino (BARTOLOMÉ; BARABAS,
1982) narra cómo la gran serpiente que mora en el manantial salió del
agua para devorar a un joven que había violado importantes normas
de comportamiento, y del relato surge la costumbre de guardar siete
días antes y después del contacto con lo sagrado. Cabe señalar que
entre los Mazateco se están expandiendo las prácticas neochamánicas
acomodadas para el consumo turístico de corto tiempo, por lo cual en
estos rituales no se realiza ningún tipo de abstinencia.

Rituales terapéuticos
Un rito terapéutico llevado a cabo en un específico lugar
geográfico donde la tona tuvo un susto, o en el lugar del mundo-otro
donde su tona se espantó, mientras su cuerpo dormía, puede entenderse
como un espacio de negociación entre el chamán, como representante
386 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

del enfermo, y las entidades extrahumanas que retienen su espíritu,


ya sea porque éste era muy débil y desprotegido, o porque el enfermo
cometió alguna transgresión de conducta en un espacio sagrado. Los
lugares que configuran los territorios terapéuticos de cada comunidad
o del grupo etnolingüístico, como los cerros, con sus cuevas, árboles y
fuentes de agua, no sólo son emblemas identitarios y sitios principales
de pedimentos, sino también importantes lugares de curación, de
daño y de iniciación para los terapeutas tradicionales. Pero, no todos
los cerros o todos los manantiales y cuevas de un etnoterritorio son
lugares sagrados, sino solo algunos acerca de los que existen creencias y
narrativas que muestran su sacralidad y su predisposición para ciertas
curaciones o brujerías u otras actividades rituales.
Es difícil separar los rituales terapéuticos de los otros tipos, ya
que el diagnóstico y la curación de enfermedades también implican
ritos propiciatorios de pedimento, de adivinación y augurios, ritos de
purificación y abstinencia y de acción de gracias por la salud y la suerte
restauradas. Es también difícil referirse a los rituales terapéuticos sin
contrastarlos con su contraparte, los ritos de pedido de daño, en los que
se pide a las deidades enfermedades, mala suerte e incluso la muerte a
las personas a las que se envidia por su buena suerte o por sus riquezas
o por conflictos limítrofes y religiosos. En estos ritos, el envidioso
busca un brujo, un chamán orientado hacia el mal, para que envíe el
daño al envidiado afectando su tona y su cuerpo con enfermedad, o
provocándole mala suerte o mala conducta.
Tanto los Chinanteco como los Chatino consideran que las tonas
de la gente viven dentro de los manantiales o ciénagas que son cuidadas
por una gran culebra. A esos lugares debe ir el ne ho’o, chamán Chatino,
y el tzá mi, chamán Chinanteco, para rescatar la tona atrapada y restituir
la salud del enfermo. Para los Chinanteco, esos manantiales (jimi)
albergan la esencia vital (juiñi) de las personas, que están al cuidado de
los remolinos (chiji), que son ayudantes del Dueño del manantial (dza
jimi), que vive dentro de él sentado en su silla de oro. Las enfermedades,
provocadas por la violación de las normas estipuladas por estas entidades
territoriales, se producen cuando el espíritu es expulsado del manantial;
el tzá mi intenta recuperarlo orándole al Dueño: “[...] Señor del Agua
y del Manantial, vengo a su casa, a su lugar, para pedir por el enfer-
mo [...]” (BARTOLOMÉ; BARABAS, 1990, p. 204).
Entre los Zapoteca de la Sierra Norte, Beltrán (1982) narra
cómo muchos chamanes se inician pidiendo permiso al Dueño del
Cerro (xhan ya’), o es el Dueño quien visita en sueños al escogido y
Etnoterritorios y ritualidad en Oaxaca, México 387

le revela conocimientos medicinales. Esta transmisión se realiza en


los ya’ laxhe’ o cerros planos, lugares sagrados ubicados en los cuatro
puntos cardinales, que son identificados en las cercanías del pueblo
donde el curandero transporta al iniciado. También son reconocidos
como lugares de iniciación chamánica y de pedimentos de salud, los
árboles conocidos como Cruces Verdes, porque tienen forma de cruz y
sus ramas están siempre vivas.
A la cueva cheve van los sa’an gatu, brujos adivinos para los
Cuicateco, para obtener sus artes y hacer, sobre pedido, rituales de daño,
de curación y de pedido de lluvias. Relata don Marcial, un chamán
curador, que cuando un brujo pide un daño al Dueño de Cheve, éste
retiene la tona del que será dañado y, cuando enferma, otro brujo
consultado diagnostica, mediante adivinación con piedras, o porque
en sus sueños se cruzan dos serpientes, que se trata de un daño y que
el espíritu del enfermo está en cheve. Más tarde le lleva al Dueño una
ofrenda para que lo “suelte” y el enfermo pueda sanar, consistente en
sangre de pollo en canutos de carrizo atados con hilos de colores, junto
con la cabeza, las patas y las alas.

La velada mazateca
Huautla de Jiménez, el terruño de la famosa chamán, chjota
chine, María Sabina, en la Sierra Mazateca, proporciona un significativo
ejemplo sobre el valor central de las concepciones sobre el cosmos
y la cardinalidad en los rituales de curación. Al iniciar el rito, ya sea en
la casa del enfermo o en la del chamán, éste nombra los cuatro puntos
cardinales, los cuatro Dueños de Lugar, y en especial al chikón Tokosho, el
Dueño del emblemático Cerro de la Adoración, que está en el centro, los
cuatro cerros y cuevas y los cuatro santos protectores, ya que se cree que
las enfermedades son causadas por los Dueños ofendidos por el mal uso
de sus lugares, quienes “chupan” la tona de las personas, causándoles la
enfermedad. El chikón, Dueño, tiene un avatar benigno que se presenta
como un caballero vestido de blanco con un caballo blanco, y otro
maligno, que aparece como un mestizo identificado con el diablo, que
usa sombrero de charro, monta un caballo negro y es seguido por dos
perros coyotes, con el que algunos hacen pactos dando el alma a cambio
de riquezas. Uno es convocado para curar y el otro para hacer daño,
obtener fortuna, y ver a los muertos.
388 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

El ritual terapéutico conocido como desvelo o velada se inicia a


las doce la noche con la ingestión de hongos psicoactivos (psilocibina)
que le permitirán al chamán, al enfermo y a sus familiares acompañantes
acceder a la realidad no ordinaria y visitar los lugares por donde éste
puede haberse espantado durante su sueño. Cuando encuentran el sitio
donde el enfermo ha perdido su tona, o “agarrado” el mal, el chamán lo
identifica en el cuerpo del paciente, equiparable a un mapa del cosmos.
Durante el viaje por el mundo-otro, el chamán enfrenta con fuerza y
valor al chikón, y recibe sus indicaciones sobre las características que
debe tener la ofrenda que le donen. Es sabido que cuanto más enferma
se encuentre la persona, más pide el Dueño como “pago” para “soltar” el
espíritu; ofrenda que debe enterrarse en el lugar donde ocurrió el susto
o el espanto, o en las cuatro esquinas y el centro del solar de la casa.
Es tradicional que el desvelo frente a la mesa ritual en la casa del
chamán preceda al rito terapéutico principal que se realiza después en el
cerro chikón Tokosho, pero con el avance del neochamanismo turístico,
cada vez con mayor frecuencia sólo se realiza en la mesa ritual doméstica,
que simboliza el cosmos, sin subir al cerro. Así, la cardinalidad resulta
también representada metonímicamente en la mesa del altar, mixha, que
se prepara en la vivienda del enfermo o del chamán durante los rituales
para diagnosticar y curar el espanto y el susto, y en el de fortalecimiento
o “reverdecimiento”, mixha cuax cue, que sigue a la curación principal
y la refuerza. En ambos casos se utilizan plantas enteógenas, como los
hongos llamados “niños santos”, o las hojas de “la pastora”.
La mesa ritual en torno a la que se desarrolla la velada representa
el cosmos y se orienta hacia el este, que es el punto favorable. En algunos
relatos, aparece cargada por Jchún Majé, que es la entidad femenina del
agua. Está enmarcada por dos arcos, el primero marca la entrada al
cielo y el segundo, la entrada al inframundo. Suelen amarrarse pollos o
guajolotes a las patas de la mesa, que serán sacrificados porque su sangre
es parte central en la ofrenda y vehículo para la adivinación de augurios.
Los Dueños y/o los Santos son invitados a convivir en la mixha, donde
se les pedirá por el espíritu del enfermo.
Como la concepción del cosmos y del inframundo se replican en
el cuerpo humano, una vez ubicado el espíritu perdido en esos niveles,
se ubica el mal en la parte correspondiente del cuerpo, así como a la
entidad extrahumana responsable de haberlo retenido. Durante su viaje
por el inframundo, donde se cruzan los cuatro puntos cardinales (el
centro), el chamán llama al espíritu perdido del enfermo. Esos caminos
interiores se conciben como los de la superficie, llenos de peligros
Etnoterritorios y ritualidad en Oaxaca, México 389

y obstáculos, pero también de conocimientos, al final de los cuales


los chikones entregan al especialista el diagnóstico de la enfermedad y los
medios para curarla. Durante el rito, el especialista realiza un recorrido
en torno a la mesa ritual, desplazándose del centro al oriente, al sur,
al norte, del norte al centro, de allí al poniente y de éste nuevamente al
centro para allí “amarrar” o “unir” el trayecto cósmico. En ese camino
recorre el mundo y va nombrando, ofrendado y orando a cada chikón y
a los lugares que controla. Una vez hallada la tona en peligro se ahuma
con copal, se reza nuevamente a los Dueños y a los Santos y se prepara
la ofrenda y el sacrificio de las aves que se hará más tarde, siguiendo las
indicaciones dadas por el ofendido Dueño.
Al día siguiente por la mañana, o cuando el chikón haya indicado,
el especialista y sus clientes suben al Cerro de la Adoración a pie,
llevando sus “paquetes de pedimento” envueltos en hojas y atados con
pabilo blanco, y pollos que se dejan sueltos en los dominios del chikón,
interpretando sus pasos como augurios. Durante el camino sagrado
por el cerro, se hacen ofrendas en cuatro cuevas ubicadas en los cuatro
puntos cardinales y se recita una plegaria:

Padre que estás ahí o que vives ahí, te entregamos este copal
para que te perfumes, para que nos des tu bendición, nos des
prosperidad, nos des alegría, nos colmes de tranquilidad, nos
colmes de una prosperidad, de una bendición, una plegaria para
que lo recibas junto con este copal, este cacao, dinero que tu
sembraste. (Obtenida en entrevista en Huautla de Jiménez, 2006).

La singularidad de la ofrenda – dentro de ciertos límites de


parafernalia posible –, preparada de acuerdo con el tipo de enfermedad
y con los deseos del numen, muestra una concepción en la que cada
encuentro con lo sagrado es un intercambio con características únicas,
y donde cada evento reviste una intencionalidad. No obstante, en todo
rito terapéutico se encuentran presentes elementos recurrentes como:
el humo del copal, que llama a los Dueños, el mezcal y los alimentos
preparados para el “convivio”, que es la comida y bebida conjunta con
ellos, y los cuatro paquetes o envoltorios de pedimento que se entierran
como ofrenda, que contienen número y cantidad determinados de
huevos, cacao y plumas de guacamaya, que simbolizan la riqueza que
se entrega, y el mensaje que se le hace llegar al Dueño por mediación
del ave.
390 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Durante el rito principal y después de él se practican ritos


adivinatorios, ya que por distintos medios deben buscarse señales
de respuesta a los pedimentos y de aceptación de las ofrendas. Por
lo general, se decodifican señales en los movimientos y borboteo de
la sangre de las aves sacrificadas, aunque se practican muy diversas
técnicas de adivinación, entre ellas el sueño. El periodo que media entre
la ejecución del ritual y el reconocimiento de su resultado final (eficaz
o no) constituye un tiempo de umbral que requiere actitudes pautadas,
entre ellas las consabidas abstinencias. La respuesta puede llegar a través
de los sueños unos días después: si se sueña entre el tercer y sexto día, es
señal de que la plegaria y la ofrenda fueron aceptadas por el chikón. Los
Mazateco guardan la mesa ritual sin tocar durante cinco días, así como
la basura y la comida sobrante, a las que se consideran contaminadas
por lo sagrado. Si los augurios son dudosos se realizará otra velada,
esta vez de fortalecimiento, pero de características muy similares a la
de curación.
La eficacia simbólica del ritual terapéutico mazateco radica tanto
en el fondo común de significados, valores y clasificaciones respecto de
cada enfermedad que comparten el enfermo y su familia, el chamán
y el resto de la comunidad, como en la capacidad del chamán para
articular un discurso de diagnóstico y de cura a partir de los sueños y los
relatos de todos los participantes en el ritual, y de su conocimiento de
todas las familias de la localidad, que le permiten sintetizar el contexto
situacional de la enfermedad. En otros términos, como indican Good
e Good (1981), los padecimientos son construidos dentro de redes
semánticas elaboradas en el marco de cada cultura, lo que implica
aceptar la premisa de que las enfermedades son socialmente construidas
a través de discursos locales. Es así como el discurso del enfermo acerca
de sus síntomas incorpora significados socialmente aceptados para
esa enfermedad y al mismo tiempo expresa su estado anímico, que
refleja también estructuras socioculturales construidas y recreadas en
la acción social. No obstante, la performance ritual también consigue
eficacia simbólica, independientemente de cualquier fondo de creencias
compartidas, lo cual es observable en muchos de los visitantes ajenos
que se sienten curados o cambiados después de la velada y la ingesta de
los “niños santos”.
Etnoterritorios y ritualidad en Oaxaca, México 391

Una nota final


El pensamiento simbólico de los pueblos indios concibe a los
seres y fenómenos naturales como sujetos, con voluntad e intenciones,
y con ellos construye relaciones de reciprocidad y relaciones de poder.
Cada ritual, lejos de ser una reiterada mise-en-scène se convierte en una
interacción única entre las entidades extrahumanas y los humanos,
que tiene lugar en específicos lugares sagrados, en un intercambio sólo
regulado por la ética del don. Si bien cada lugar sagrado es conocido
por tener una cualificación o “carga” previa que lo hace favorable
para determinados rituales (pedidos de lluvia, pedimentos de salud,
iniciación, encuentro con los muertos) y para las acciones benéficas
o hacia las maléficas, cada evento o cada ritual genera una unidad
significativa en la que interactúan en toda su complejidad el Dueño, el
lugar, el especialista y el usuario, creando significados únicos en cada
caso. En ese contexto de especificidad se ubican también la ofrenda
y el sacrificio, cuya composición es sugerida al especialista en cada
ocasión por la entidad ofrendada, de acuerdo con la situación. Estas
consideraciones permiten comprender mejor cuando los indígenas
enfatizan que las transacciones con los Dueños no dependen sólo de
su ambivalente carácter o de la peligrosidad de los lugares que poseen,
sino también de la preparación previa y la actitud externa e interna que
manifieste la gente en sus territorios.
Es posible proponer también que las identidades étnicas
tienen componentes territoriales centrales en su constitución y que la
cosmología y las prácticas rituales están estrechamente entretejidas con
el medioambiente moldeado por la cultura. Por otra parte, los procesos
de identificación que tienen lugar en el endogrupo se fundan en la
relación con el territorio legado por los antepasados y con su idioma
propio, como nos recuerda una de las concepciones locales: “cada tierra
entiende el idioma del pueblo que la ocupa”, por eso sólo los curadores
de la comunidad pueden “levantar” el espíritu del enfermo hablándole
a la tierra en la lengua local. Observamos también que la relación
entre la identidad étnica y la posesión de lugares emblemáticos del
etnoterritorio, conocidos por sus recursos o sus míticos tesoros (oro y
joyas), se reafirma también a través de la indumentaria de cada pueblo
que, como sabemos, es un importante diacrítico étnico. Esta relación se
advierte en un mito que narra que los nahuales chinanteco no pudieron
robarles a los Cuicateco los tesoros encantados (invisibles) en el Cerro
392 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Mujer, cerro que ambos grupos comparten y se disputan, y entonces


reivindicar para sí ese territorio, porque no portaban la indumentaria
étnica adecuada y fueron entonces desconocidos por la culebra
cuidadora del lugar.
En cada momento de la vida la gente se identifica en estrecha
vinculación con el espacio que habita y que, a través de las generaciones,
se ha ido construyendo como territorio histórico y cultural sembrado
de símbolos sagrados. Hemos visto que los rituales permiten a los
usuarios apropiarse y reproducir los etnoterritorios simbólicos a través
del tiempo. Por ello, una categoría principal en la construcción nativa
de la etnoterritorialidad es la que reúne tiempo y espacio: historia en
el lugar. Esta noción resulta ser el soporte central de la identidad y la
cultura porque integra concepciones, creencias y prácticas que vinculan
a los actores con los antepasados y con el territorio que éstos les legaron.
Así como los etnoterritorios son construidos como territorios culturales
e identitarios, también son valorizados y utilizados para la terapéutica,
toda vez que los ritos de curación y de daño que se realizan en ellos – o
en sus pares metonímicos, las mesas rituales – contribuyen a dotar de
sentidos y a labrar la historia de los lugares y de las personas.

Referencias
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Etnoterritorios y ritualidad en Oaxaca, México 393

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TURNER, V. La selva de los símbolos. México: Siglo XXI, 1980.
Ritualidad y contrahegemonía:
acción simbólica y cultura
de resistencia

Miguel Alberto Bartolomé

A mi querida amiga y colega Jean, con quien hemos


compartido ideas y más de una caipirinha.

Los rituales son una de las expresiones definitorias de la especie


humana. Las evidencias arqueológicas suelen asociar la presencia de
manifestaciones rituales con el mismo proceso de hominación, ya que
a través de ellos se advierte la capacidad de simbolización que definiría
a la humanidad como tal. Ahora bien, la secularización del globalizado
mundo contemporáneo ha tornado cada vez más permeables las
fronteras entre lo sagrado y lo profano. Y el campo de los rituales
indígenas no escapa a un proceso internacional de expropiación de las
tradiciones nativas, que con frecuencia son ofertadas a un mercado
mundial de consumidores de alteridades. Lo que para algunos es exótico
y para otros, sagrado, llega a constituirse como una mercancía turística
que puede satisfacer alguna fugaz ansia de otredad para quienes desean
una breve distancia de la reiterativa cotidianeidad que los involucra y
los posee. Pero también se suele recurrir a esa misma ritualidad para
intentar manipular la voluntad o la emoción de aquellos que la crearon y
la practican. Son frecuentes las acciones y propuestas institucionales que
se realizan en áreas habitadas por pueblos originarios, que pretenden
legitimarse a través de la realización de “rituales locales” más o menos
adulterados por los funcionarios o intermediarios nativos que los
preparan, destinados a buscar una adhesión de la población regional,
ya que se supone que su cultura es y será respetada. Algunas veces nos
enfrentamos a verdaderas “misas para ateos”, en las que ni los feligreses ni
los oficiantes creen en el ceremonial que observan o en el que participan.
En otras ocasiones, las falsificaciones llegan al punto de que, por falta de
asesoramiento adecuado, las autoridades estatales son inducidas a rendir
Ritualidad y contrahegemonía 395

culto a deidades inexistentes o que no se registran en la cosmología


local, a la vez que realizan prácticas que utilizan parafernalias de dudoso
origen. Ejemplos cercanos los tenemos en la misma ceremonia de
asunción del presidente de México en el 2018, que le costó su posición al
dirigente Maya quien, sin autorización comunitaria, le entregó una “vara
de mando”, o en el ritual de pedido de permiso a la “madre tierra” (¿la
Pachamama andina?, ya la noción de “madre tierra” como tal no existe
entre los Maya) para inaugurar simbólicamente el proyecto del llamado
Tren Maya en 2019. Los ejemplos podrían multiplicarse, pero lo que me
interesa destacar es el uso político de los rituales nativos como parte de
las estrategias hegemónicas del estado. Y lo que quiero resaltar en estas
páginas es precisamente lo opuesto, es decir, la acción antihegemónica y
anticolonial explícita o implícita en la ritualidad indígena del pasado
y el presente. Trataré entonces de desarrollar esta propuesta recurriendo
tanto a mi experiencia etnográfica, como a los testimonios y reflexiones
de otros colegas.
Pese a su mercantilización y manipulación, la fiesta y el ritual sigue
desarrollando un papel destacado en la configuración y reconfiguración
identitaria de muy diferentes colectividades humanas. Pero creo que el
análisis antropológico de los rituales padece en la actualidad de una de las
características propias de su objeto de estudio: el exceso de significados.
La literatura antropológica, que intenta superar las meras descripciones,
se encuentra saturada de distintas y cada vez más complejas propuestas
comprensivas. En oportunidades, esa misma complejidad nos aleja de
todo posible intento de aprehensión unitaria de estos eventos colectivos
que, como pocos, merecen el calificativo de lo que Mauss denominara
como “hecho social total”. Y es que tal vez no exista la posibilidad de
atribuir al rito, la fiesta y el ceremonial un predicado unívoco más que a
nivel clasificatorio, aunque también las taxonomías pueden estar sujetas
a críticas, ya que marcan sólo uno entre muchos significados posibles.
Así, hablar de ritos del ciclo vital, de rituales propiciatorios o de tránsito,
conmemorativos y otros, de acuerdo con las tipologías de Van Gennep o
Jean Cazeneuve, se centran en sólo uno de sus aspectos, quizás crucial,
pero que no excluye a otras significaciones que también están presentes.
De hecho, el rito comparte con la fiesta las distintas posibilidades de
acción e interpretación que ofrecen a sus protagonistas.
Ritos y fiestas son, a nivel del discurso, narrativas construidas
a partir de la posición que ocupa cada uno de sus participantes, por
lo tanto, la descripción nunca será idéntica, ya que depende de la
perspectiva del actor. Y uno de los pretendientes a actores o espectadores
396 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

más desorientados suelen ser los mismos antropólogos que tratan


de comprender como un conjunto integrado eventos que incluso
sus protagonistas pueden no entender en su totalidad, sino desde su
respectivo ámbito de participación personal. El carácter polisémico
no es patrimonio exclusivo de la manifestación ritual entendida como
un conjunto circunscrito, sino también de todos y cada uno de los
elementos, prácticas, actitudes, discursos, gestualidades y demás rasgos
que lo constituyen. Ya Martine Segalen (2002) ha demostrado que una
de las principales características de los ritos, además de su polisemia, es
su plasticidad y capacidad de adaptarse a los cambios culturales. Dicho
de otra manera, un rito – en tanto conjunto de signos – es un texto
complejo sincrónico y a la vez histórico, y como tal, admite distintos
tipos de lecturas, que pueden ser realizadas tanto de izquierda a derecha
como de arriba para abajo o viceversa, e incluso en distintos momentos
temporales. Y esto no implica que los comportamientos ceremoniales
formalizados no tengan estructuras, al contrario. Todo desempeño
ritual demuestra configuraciones estructurales que ofrecen, a la vez, la
posibilidad de acceder a distintos sistemas de significados. Tal como
lo ha propuesto Roy Rappaport (2001, p. 32), “la humanidad es una
especie que vive y sólo puede vivir en función de significados que ella
misma debe inventar”.
No quiero ni puedo exponer aquí el “estado del arte” en el
estudio de los rituales, puesto que el temprano interés antropológico
por los mismos generó una intensa descripción etnográfica mundial,
así como una centenaria y diversa reflexión a la vez que una multitud
de análisis interpretativos a veces controversiales entre sí. Me limitaré
por lo tanto a recordar algunas tipologías y conceptualizaciones ya
consideradas clásicas, a partir de las cuales podré exponer con mayor
claridad mi propia perspectiva analítica, que no se refiere a los rituales
en general, sino a un tipo de ritualidad específica, que son aquellas
vinculadas a las confrontaciones ideológicas y étnicas dentro de los
contextos interculturales. En más de una oportunidad he manifestado
mi orientación hacia un cierto eclecticismo en antropología. Creo que
de autores de distinta filiación teórica se pueden extraer reflexiones
significativas, si éstas están originadas en un sistema de argumentación
coherente o provienen de datos relevantes. Con frecuencia trato
de seleccionar a investigadores de campo, aquellos que tienen una
aproximación existencial a la realidad que han interrogado, pero esto
no puede excluir a aquellos grandes eruditos que han dedicado su
vida a organizar y teorizar con informaciones compiladas por otros,
Ritualidad y contrahegemonía 397

tales como las enciclopédicas obras de Marcel Mauss, James Frazer o


Émile Durkheim. Por ello, no puedo comenzar esta exposición sobre
rituales sin recordar a Durkheim (1968 [1903]), para quien el rito,
como reflejo de la sociedad e integrante de su religión, constituía parte
de un sistema clasificatorio que dividía el tiempo sagrado del tiempo
profano, a la vez que poseía una función cohesionadora de la vida y el
orden social, contribuyendo a la solidaridad colectiva. Más tarde, esta
vinculación con la religión fue cuestionada,1 hasta arribar a definiciones
secularizadas como la de Martine Segalen (2002), para quien el rito
es un conjunto de actos formalizados, expresivos y dotados de una
dimensión simbólica, que se caracteriza por una configuración espacio-
temporal específica, por la utilización de determinados objetos, por
lenguajes y comportamientos singulares, así como signos emblemáticos
cuyo sentido codificado constituye el patrimonio común de un grupo.
Esta conceptualización es mucho más abarcativa y comprensiva que
la sintéticamente formulada por Victor Turner (1997, p. 21) cuando
señala: “[…] Entiendo por ritual una conducta formal prescrita en
ocasiones no dominadas por la rutina tecnológica, y relacionada con la
creencia en seres o fuerzas místicas […]”, quien vuelve así a vincular
la ritualidad exclusivamente con lo sagrado y la religión. Sin embargo,
para los pueblos nativos, no opera de manera taxativa la distinción
occidental entre lo secular y lo sagrado, en la medida que el orden de la
sociedad está generalmente asociado o consubstanciado con el orden
del universo.

Colonialismo y ritualidad
Como resultado del proceso colonial y neocolonial, algunos
de los cultos indígenas más tradicionales pasaron a refugiarse en
ámbitos casi clandestinos, tales como las cuevas o los santuarios de las
montañas; otros se desarrollan en forma pública, aunque muchos de
sus núcleos de significado quedan restringidos a unos pocos oficiantes.

1
Entre otros, por Mary Douglas (1966), quien abre el campo del ritual incluyendo
dentro de él todo lo que llama “actos simbólicos”, dando cuenta de la existencia
de ritualidades que no participan de la esfera de lo religioso, sino que expresan la
división existente entre las concepciones occidentales de la realidad, que transfiere
símbolos de un plano a otro, lo que genera una conciencia fragmentada. Existe por
tanto también ritualidad secular en las mal llamadas “sociedades complejas” (¡como
si alguna sociedad fuera simple!).
398 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Algunos son performativos2 y apelan a una pedagogía cultural basada


en la reiteración de las conductas, otros (como los baños de temazcal)
son casi indistinguibles de los actos cotidianos que ritman el ciclo vital.
Muchos más se desarrollan en privado, dentro del grupo doméstico o
en pequeñas colectividades, y sus oficiantes no recurren necesariamente
a estereotipos o conductuales. Los rituales de origen cristiano coexisten
con prácticas de los pueblos originarios, que ya eran muy viejas cuando
se inició el culto al mesías de los creyentes en esa religión. Incluso los
sacrificios y propiciaciones rituales pueden incluir a cruces identificadas
con el maíz, o a Cristos que recuerdan al Sol o a las deidades uránicas
de los rayos y de las lluvias. La tradición politeísta, entendida como una
experiencia múltiple de lo sagrado, hace mucho más fácil la conciliación
de deidades o principios cosmológicos aparentemente irreconciliables
(BARTOLOMÉ, 2005). En el presente, las tradiciones indígenas
manejan distintas interpretaciones “populares” de las antiguas nociones
cosmológicas, que adquieren una manifestación peculiar en cada
cultura, ya que muchas han perdido a los principales teólogos que les
proporcionaban una cierta uniformidad. Esto no excluye el hecho que
los actuales especialistas en la manipulación de lo sagrado continúen,
más con su acción que con su prédica, refrescando la memoria sagrada
de la sociedad, en la que los ritos se comportan como pulmones de la
historia a la que insuflan su fuerza vital.
Es necesario destacar que una característica compartida por
todos los rituales indígenas contemporáneos en general radica en que
éstos se desarrollan dentro de un sistema de dominación neocolonial,
que pretende explícita e implícitamente deslegitimizar los símbolos
propios de las tradiciones locales y reemplazarlos por los provenientes
de las tradiciones seculares y religiosas occidentales, representados por
las escuelas, los medios de comunicación de masas, la iglesia católica y
la nueva evangelización realizada por numerosas iglesias protestantes.
Esta configuración neocolonial puede entonces ser caracterizada como
una “situación total”, tal como los propusiera inicialmente Georges
Balandier (1951). Es decir, una situación de dominación que no es
sólo objetiva, sino también subjetiva; no sólo económica y política,

2
El concepto de performance promovido a partir de la obra de Turner (1977) me
parece inconsistente para referirnos a las prácticas rituales, ya que también puede
adjudicarse al teatro, la danza, la música y otros géneros expresivos, con los que sólo
comparten los desempeños corporales o verbales colectivos. Sólo recurro a él debido
a su uso generalizado en la literatura al respecto.
Ritualidad y contrahegemonía 399

sino también ideológica y simbólica. Balandier destacó que un pueblo


colonizado no puede ser entendido al margen de la situación colonial,
ya que ésta influye en todos los aspectos de la vida colectiva e individual
de los miembros de la sociedad colocada en tal condición. Y en América
Latina dista mucho de haber desaparecido las estructuras políticas,
económicas e ideológicas generadas por el colonialismo seguido por el
neocolonialismo del Estado-nacional (BARTOLOMÉ, 2006). Por ello,
no nos podemos aproximar a las manifestaciones rituales de una cultura
olvidando el contexto social dentro de la cual está involucrada, ya que
hasta la vida de los símbolos está sometida a los procesos de control
cultural generados por la sociedad dominante. Control que intenta
destruir el orden propio de las sociedades alternas. El discurso del
colonizador no es sólo político y económico, sino también simbólico,
y pretende constituirse como la narrativa dominante, es decir, que la
compulsión social de la situación colonial es acompañada por una
violencia simbólica que busca la adhesión coercitiva de los coloniza-
dos como parte de la estrategia hegemónica que busca llegar a imponerse
como adhesión voluntaria (RIBEIRO, 2019).
El estudio de los procesos de control cultural y su dramática
vinculación con el poder constituye una antigua preocupación de la
antropología política, de la que, en México, Guillermo Bonfil Batalla
(1979) se manifiesta como un investigador pionero. Precisamente
la capacidad coercitiva de los símbolos del dominador está dada no
sólo por su presencia institucional, sino por su profunda internaliza-
ción por parte de los miembros de una sociedad dominada. Forman parte
de lo que Berger y Luckmann (1968) llamarían “lo real constituido”: es
decir parte de la estructura de plausibilidad de un nomos, de un orden
significativo culturalmente construido; pero que se presenta como
evidente en sí mismo y conformando una normatividad intrínseca a
la propia sociedad que lo genera. De hecho, una de las características
de los actuales contextos neocoloniales latinoamericanos radica en la
configuración de armonías coercitivas, que tienden a hacer asumir como
legítimas situaciones de dominación y subordinación política y cultural.
La internalización de esta “realidad constituida” por parte de muchos
pueblos indígenas los ha orientado hacia ese suicidio cultural inducido
que llamamos etnocidio. Los procesos de control desarrollados por
los estados multiétnicos latinoamericanos, que se asumieron como
formaciones uninacionales, buscaron instrumentalizar el poder político
para reprimir la diversidad cultural. Esta situación se está revirtiendo
en las últimas décadas, signadas por la emergencia de las demandas de
400 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

los pueblos indios. Se demuestra así que los consensos generados por la
manipulación del poder son susceptibles de ser transformados a partir
de una redefinición ideológica y la consecuente práctica política que se
deriva de ella.

El papel de los rituales en la identidad


La búsqueda por intentar mantener un orden es una de las
lecturas que permiten sugerir una aproximación político cultural de
la ritualidad indígena. El mundo secular no equivale necesariamente
al desorden, pero sí a la incertidumbre; en este sentido, las prácticas
rituales suponen una apelación al orden cósmico y social asociados, para
restaurar o impedir la aparición del desorden. Reinstaurar ritualmente
el espacio y el tiempo propios implica así reconstruir cíclicamente a la
colectividad. La sociedad no puede renunciar al anhelo por un orden
primigenio, planteado en las cosmologías, que construyó de manera
inicial y normativa el edificio cósmico y social que habita cada cultura
concreta, aunque ese orden sea en realidad dinámico y la visión de
los actores lo perciba como estático. Sin embargo, lo que realmente
importa para la pertenencia social no es tanto el conocimiento como
la práctica de la cosmología. Compartir una práctica ritual contribuye a la
identificación compartida de sus protagonistas, más que el conocimiento
de su sentido, aunque éste sea fundamental para la reproducción de la
cultura. La comunidad ritual es también una comunidad de conducta
y no sólo una colectividad teológica, si bien los comportamientos
deben transitar por los canales simbólicos preestablecidos. Incluso se
puede llegar a abandonar una tradición cosmológica y, eventualmente,
declararse ateo, sin dejar de considerarse miembro de una comunidad
indígena y participar en sus ritos (BARTOLOMÉ, 1997). En este caso,
incluso las formas “exteriores” de la cultura, quizás ya vaciadas de sus
contenidos profundos, se asumen y actúan como emblemas identitarios.
La participación ceremonial tendrá, en dichas circunstancias, el
carácter de una apelación a las conductas compartidas generadoras de
identificación, más allá del contenido que la religión propia otorgue a
esa identidad.
Todas las culturas desarrollan diferentes estrategias sociales
para actualizar y dinamizar sus mundos simbólicos. Los sistemas
religiosos están presentes en la vida cotidiana, pero en oportunidades
irrumpen con mayor intensidad en los espacios sociales, enfatizando
Ritualidad y contrahegemonía 401

la experiencia de realidad compartida. La colectividad refuerza así


los lazos que contribuyen a su identificación colectiva y expresan el
estado contemporáneo de su proceso de producción y reproducción
simbólica. Indudablemente, los rituales juegan un papel clave en estas
irrupciones de lo sagrado. No pretendo aquí referirme en demasía al
papel que los rituales cumplen dentro de la solidaridad social, tema
que desde Durkheim ha sido ampliamente explorado por la tradición
antropológica. Lo que ahora interesa es destacar su importancia en
la definición y actualización de la identidad étnica de las sociedades
que los protagonizan. Para pasar del discurso a los hechos, comenzaré
por exponer algo de mi propia experiencia al respecto. Toda mi
vida profesional como antropólogo se ha orientado por la práctica
etnográfica, y he tenido la fortuna de poder llevarla a cabo en distintos
países y culturas. Ahora ya no puedo frecuentar el campo en las
generalmente difíciles condiciones del pasado, pero nada me impide
recurrir a mis recuerdos, comenzando por la fría y ventosa Patagonia
y sus habitantes Mapuche, en estas notas que provienen de ensayos
anteriores (BARTOLOMÉ, 1968, 2002, 2007).

Los Mapuche de Argentina

Durante el año de 1966, siendo aún estudiante de antropología,


residí durante casi un año en la reserva indígena mapuche de Ruca
Choroy (Casa de los Loros), situada en la región precordillerana de la
provincia de Neuquén, en la Patagonia argentina. En aquellos años,
la situación imperante era de extrema miseria para aquellos pastores
de ovejas, aislados por las nevadas invernales y por los torrentes
veraniegos. Mis largos diálogos con interlocutores que ya eran mis
amigos me aproximaron a un mundo simbólico que desconocía y
que se manifestaba sólo a través de la palabra y quizás en los diseños
de los textiles femeninos. Pero no había demasiados rasgos que los
diferenciaran de la población rural pobre del área. Sin embargo, quizás
toda sociedad encuentra su mayor concreción a través de alguna acción
colectiva que, al expresarla, tiende a definirla. Y los Mapuche exhibieron
esa presencia cultural totalizadora a través de su ceremonia anual, la
rogativa llamada Nguillatum. Los preparativos son largos y complejos,
ya que implican reactualizar los lazos comunitarios. De manera
contradictoria, el no participar en redes preexistentes me posibilitó
contribuir a su desarrollo; tuve que solicitar prestada una trutruka,
la flauta de caña de cuatro metros de largo, al miembro de un linaje
402 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

enemistado con otro que no se animaba a solicitarla. Ayudé a preparar


la pequeña expedición que cruzó la cordillera hacia Chile, para invitar
a los parientes que habitan del otro lado de las montañas que ahora los
dividen; la gendarmería ignoraba aquel tráfico que violaba las rigurosas
y arbitrarias fronteras. Se reunieron alimentos, se sacrificaron corderos y
se prepararon litros de chaví, esa espesa (y para mí detestable) bebida
fermentada de piñones masticados y macerados. Era la primera vez que
veía a todos actuar guiados por un propósito común. Ya había llegado el
deshielo y el paisaje libre de nieve reverdecía bajo el tibio sol patagónico.
Una mañana, subimos a la alta llanura donde tendría lugar la
rogativa, de todas las laderas y cañadas brotaban pequeñas hileras de
gente. Pronto se reunió una multitud en torno al rehue – lugar puro –,
al sagrado espacio central, que había sido barrido y acondicionado, y
en el que se erigía un pequeño altar hecho con cañas y adornado por
ramas de pehuén. Junto al altar, se colocaron cántaros de ofrendas, y
sobre el conjunto flameaba la amarilla y azul bandera mapuche: éste
era su propio y tradicional territorio, en él recuperaban su avasallada
soberanía. Docenas de hombres a caballo, guiados por el Lonco (cabeza,
jefe) Amaranto Aigo, comenzaron una frenética carrera circular en
torno al rehue acompañada de alaridos. Antes un caballo había sido
sacrificado, su corazón aún caliente pasó de boca en boca de los jinetes.
Las mujeres entonaban los taïel, los cantos sagrados acompañadas por
la música de los tambores kultrun, de las trutrukas y de las pequeñas
flautas pfülcas; las escuché invocar a la serpiente primigenia, cuyas
ondulaciones habían tallado el territorio: “¡Kai Kai, Kaaai Kaaai elé, Kai
elééé!”. Los ancianos Ngenpin – Dueños de la Palabra – pronunciaban
locuciones que guiaban las distintas partes del ceremonial. Un grupo
de hombres vestidos sólo con un chiripá (taparrabo), adornados con
altas plumas y con el cuerpo pintado, simulaban ser avestruces bailando
la danza del choique purrún. Se pedían piñones, buena caza, cosecha,
buen año, buena parición de ovejas. El ritual mezclaba tradiciones de
cazadores, recolectores, pastores y agricultores; era una apelación no
sólo a las deidades, sino también a la historia de la sociedad que a través
de ella accedía a su identificación colectiva. Se habían puesto en juego los
mecanismos simbólicos que operaban en la reconstitución comunitaria.
El pueblo Mapuche se reencontraba consigo mismo.
Los pobres pastores carenciados que había conocido desapa-
recieron, reemplazados por el nuevo rostro que les permitía
comportarse de acuerdo con la historia y los símbolos de su cultura.
Sentí emociones contradictorias, entre las que no estaba ausente la
Ritualidad y contrahegemonía 403

perplejidad ante lo que contemplaba. Había podido llegar a conocer


algunas claves simbólicas que me habían narrado, pero no estaba
preparado para verlas tomar cuerpo con tanta intensidad en hombres
y mujeres, que hasta ayer parecían sujetos aparentemente pasivos del
mundo exterior. Los Hijos de la Tierra (mapu = tierra, che = hijo) no
sólo sabían recordar y nombrar, sino también actuar ante sus deidades
y ancestros. Tenían el poder de encarnarse en sus palabras. Me dominó
un extraño orgullo de tener amigos entre esa gente; sólo les podía, y
les puedo, recriminar que no me hayan enseñado a bailar como un
avestruz (choique).
Con los Mapuche, pude advertir cómo los testimonios orales de
un mundo que me había sido narrado se convertían en una compleja
performance que ni antes ni después me fue explicada o traducida en
su totalidad. Y es que más allá de compartir las conductas, para acceder
plenamente a una manifestación ritual, es necesario compartir la cultura,
es decir, participar del esquema de significaciones (GEERTZ, 1987)
derivadas de la experiencia histórica de la sociedad. De esta manera,
los ritos sólo comunican profundamente a aquellas personas capaces de
sostener una interacción simbólica equilibrada en los mismos términos
transaccionales que regulan los otros aspectos de la vida colectiva.
La participación plena en la comunidad ritual es sólo posible para
aquellos que a través de ella ejercen y reactualizan tanto su historia
cultural específica, como los nexos organizacionales e identitarios que
los configuran como grupo étnico. Tal como lo apuntara Victor Turner
(1997), un ritual puede ser considerado como una configuración de
símbolos, una especie de pentagrama del que los símbolos serían las
notas. No sería entonces aventurado proponer que, para participar en
el Nguillatun, los Mapuche recurren a la antigua música de la cultura,
cuyas notas están inscritas en la memoria colectiva.

Kunas de Panamá

En 1997, junto con mi esposa y colega Alicia Barabas, residimos


unas semanas en la isla de Ustupu en la comarca indígena de Kuna
Yala, en las costas caribe del actual Panamá. La confrontación entre los
Kuna y el estado colonial que pretende incluirlos es centenaria y está
marcada por una fuerte determinación independentista. El intento
estatal por extirpar las tradiciones nativas desembocó en la rebelión de
1925 entre cuyas causas los Kuna señalan la presencia de los policías
coloniales, inicialmente establecidos para proteger a la población de la
404 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

invasión de colonos negros haitianos, que llegaron al Darién después


de terminados los trabajos del canal de Panamá en 1914. Estos policías
“aculturadores” arrancaban las chaquiras winis de los brazos y piernas
de las mujeres, sus narigueras de oro, las molas de la indumentaria local
y pretendían enseñarles bailes no tradicionales. El Saila de Ustupu, el
Nele Kantule (Sabio Cantor), fue uno de los principales líderes de esta
rebelión que determinó la muerte de 25 policías coloniales, ultimados
por un regimiento de guerreros Kuna formado especialmente para la
ocasión. Esos improvisados combatientes bebieron sangre de jabalí
antes de los ataques y después de ellos tuvieron que ser arrancados del
estado liminar en el que los colocó haber participado en la violencia. El
último anciano guerrero que en ese año sobrevivía en la isla de Ustupu,
y que era frecuentemente visitado por los jóvenes activistas de la etnia,
recordaba que bebieron la sangre del corazón de sus enemigos; por ello,
después nadie podía mirarlos y los recluyeron durante ocho días en
una isla deshabitada, para purificarlos a través del canto de los Nele, de
los Saila dirigentes y del humo del tabaco de las pipas fumadas por los
absoged, chamanes, que dialogan con los espíritus.
Los Kuna no han olvidado aquella rebelión fracasada, que marca
un hito en su historia como pueblo confrontado con los colonizadores
panameños. Incluso para hacer aún más visible el pasado, recurren
a representaciones teatrales comunitarias. Así, en la isla de Ustupu,
durante el mes de febrero, en que se conmemora el aniversario de
la rebelión de 1925, un nutrido grupo de jóvenes vestidos como
soldados coloniales (en realidad modernos uniformes militares de
camuflaje) recorre las polvorientas calles de la aldea durante toda la
semana, marchando y simulando molestar a la gente y en especial a
las mujeres. El día del aniversario, son atacados y muertos por otro
grupo ataviado como guerreros Kuna, quienes, al agredirlos, les
recuerdan los agravios sufridos hace más de 70 años. Los adultos,
desde sus casas, y la multitud de niños que van siguiendo a los actores
acceden de esta manera a una imagen visual de los acontecimientos
históricos. También se hacen representaciones teatrales públicas, con
adecuadas escenografías y vestuarios, que relatan los momentos claves
de la historia desde la época prehispánica hasta el presente. Todo ello
bajo el amparo de la bandera kuna, similar a la española, pero con una
esvástica en el centro, antiguo símbolo de la cultura que alude a las
actividades de las deidades Paba y Nana. Un relato narra que Paba y
Nana enviaron a cuatro espíritus hacia los cuatro puntos de la tierra
para adquirir conocimientos y después volver al punto de partida. Así,
Ritualidad y contrahegemonía 405

las aspas de la cruz señalan los pasos que dieron los espíritus para
regresar al centro.
Tal como lo demuestra el caso kuna, algunos rituales enfrentan a las
colectividades con su pasado, lo actualizan en el presente y lo proyectan
hacia el futuro. Un ritual conmemorativo es una apelación al poder
liberador de la memoria. Un modo de expresión comunal destinado a
permitir la “penetración” de la historia en la vida contemporánea. La
historicidad intenta “fijar” al individuo y al grupo en el contexto de un
devenir que se hace presente cíclicamente, otorgándoles una ubicación
en el tiempo de la misma manera que el pueblo proporciona un lugar en
el espacio. Se refuerza así la conciencia de una trayectoria compartida,
la memoria histórica se expresa y actualiza a través de las conductas
rituales: hemos estado juntos en el tiempo, al igual que ahora estamos
juntos en el espacio. La identidad comunitaria se basa también en una
profundidad histórica que el ritual hace manifiesto conciliando, a través
de su mediación, el tiempo y espacio.

Guaraní del Paraguay

Entre 1968 y 1969 residí en una aldea guaraní de la selvática


región oriental del Paraguay, mis dos temporadas de campo totalizaron
casi un año,3 y de ellas extraigo algunos fragmentos de un ritual del que
fui testigo. Cabe apuntar, en primer lugar, que los Guaraní en general,
y la parcialidad de los avá katú eté (los auténticos hombres) con la que
yo conviví, son una cultura horticultora, aunque la caza y la recolección
también se practican. Están organizados en familias extensas asociadas,
lideradas por el chamán (paí) de mayor prestigio, que actúa como
curador y dirigente político a la vez que se desempeña como guía ritual.
Todos los grupos Guaraní del Paraguay, Brasil y Argentina registran
una intensa tradición migratoria, que los hace circular por los tres
países cuando alguna crisis social detona un movimiento migratorio,
generalmente dirigido por algún chamán excepcionalmente carismático,
que se desempeña entonces como líder mesiánico.
El ritual más importante que se practica es el ñemboé ka’agüy
(rezo de la selva), el que toma lugar en la Casa de Danza (jeroky rog)
ubicada en el centro de las aldeas, cuyo tamaño es mayor al de las

3
Una de sus concreciones parciales de estas investigaciones fue un libro publicado
en México en 1977 y una segunda versión corregida y aumentada que se imprimó
tardíamente en el Paraguay (1991).
406 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

viviendas comunes y uno de sus lados está abierto al este. Frente a este
espacio libre, se coloca una larga batea destinada a contener la bebida
ceremonial kagüi (una especie de cerveza de maíz). La batea no es sino
una gran canoa puesta boca abajo y está confeccionada con la sagrada
madera del cedro (ygarï). Si bien está destinada a contener la bebida, su
forma es idéntica a las canoas usadas por los Guaraní, lo que relacionaría
el rito con el tema mítico de la inundación diluvial, así como con las
pautas migratorias que caracterizaban y caracterizan las migraciones,
muchas de las cuales se realizan por vías fluvial. Delante de la batea se
colocan tres postes de cedro de 1,2 metros de altura, sobre los cuales
se insertan velas. El poste central recibe el nombre de kuruzú (cruz),
pero, aunque pueda parecer vinculada al cristianismo, es más probable
que recuerde al mito cosmogónico en el que dos grandes palos cruzados
sostenían el mundo. Junto a ella, se coloca una pequeña flecha (hu’y
miní), la que nos recuerda la subida al cielo de los gemelos Sol y Luna
por medio de una escalera de fechas, que es el mito heroico central de
la cultura. Detrás de este altar se ubica el chamán guía, sus auxiliares y
todos los hombres participantes engalanados con sus, un tanto pobres,
adornos plumarios y empuñando sus sonajeros (mbaraká). Detrás
de ellos, se colocan las mujeres con las mejillas pintadas de rojo y
golpeando el suelo con sus takuapú (bastón de ritmo de bambú). La
congregación de cantantes y oficiantes se va alternando, ya que el
ceremonial suele durar unos nueve días. Desde el primer momento
comienzan los cantos sagrados (guaú eté), hasta el octavo día, en el
que el chamán entona un canto especial, significando que las entidades
extrahumanas se han retirado, y se puede dar lugar a la parte secular de
la reunión, cantando entonces los más alegres kotihú o cantos festivos.
Uno de los fundamentos de este ritual es la posibilidad de
comunicación colectiva con las deidades, facultad que en otros mo-
mentos es sólo privativa de los chamanes. La vida comunal, laxamente
normada por la mitología, supone una adaptación al orden que regula
al universo y a la sociedad, a la vez que el culto es una demostración
colectiva de la necesidad de dicho orden y de su constante reafirmación.
Así, el ñemboé ka’agüy se manifiesta como un modo de autoconciencia
colectiva, en la que el rito logra la reconstrucción de la comunidad. Cabe
apuntar que el asentamiento donde permanecí mayor tiempo (Colonia
Fortuna) se encontraba vagamente tutelado por la entonces Dirección
de Asuntos Indígenas del Paraguay, dirigida por militares, dentro de la
totalitaria estructura dictatorial de la época. A pesar de esta presencia
colonial, la ceremonia era la más importante actividad social capaz
Ritualidad y contrahegemonía 407

de congregar a todos los avá katú eté en pos de un objetivo común.


Era la oportunidad en la cual se volvían a denominar con sus nombres
sagrados otorgados por las deidades y que normalmente ocultan bajo
nombres castellanos. Era también el momento en el que la interacción
social se volvía a encauzar dentro de los cánones del respeto religioso y
la formalidad extrema que están un tanto ausentes en la vida cotidiana.
Es un momento en que la identidad manifiesta claramente su carácter
contrastivo, los participantes somos nosotros y los que no lo hacen son
los otros. Aún aquellos individuos que por razones circunstanciales se
habían alejado de la comunidad tribal, se volvían a integrar a la misma
acudiendo a la celebración, recuperando así su identificación étnica a
la vez que su membresía con su familia extensa (BARTOLOMÉ, 1991).

Culturas de México
El estudio de los rituales realizados por los indígenas mexicanos
ha pasado por distintas etapas, tal como lo propone un pertinente ensayo
de André Oseguera (2008). De acuerdo con dicho autor, en un primer
momento primó una preocupación por el cambio cultural, entendido
como el tránsito de las sociedades “tradicionales” (folk) a las urbanas o de
lo “pagano” a lo cristiano. Ya bien entrado el siglo XX y por influencia de
la Escuela de Chicago, portadora de un funcionalismo instrumentalista,
las investigaciones se orientaron hacia el estudio de las mayordomías,
los sistemas de cargos y otros rituales en los que podía observar o inferir
una función social implícita o explícita. Así surgieron perspectivas
relacionadas con la “economía de prestigio” de los mayordomos, frente
a los que las consideraban como prácticas redistributivas etc., buscando
siempre su función social. Pero hace ya muchas décadas se postuló por
parte de estructuralistas, interpretativistas y diversas escuelas semióticas
la existencia de significados manifiestos en signos tanto verbales como
conductuales en los rituales. Nos encontramos entonces, igual que
ahora, en la búsqueda de sentidos, de desentrañar signos y significados
de los cuales la misma comunidad de participantes puede o no tener
consciencia explícita.
En México se registra una extraordinariamente amplia gama de
manifestaciones rituales. Existen fiestas exclusivamente comunitarias
que expresan el culto a los Santos Patrones o generalizadas, como la
conmemoración de los antepasados en Todos Santos o la veneración
de La Guadalupana. Durante la Semana Santa se recuerda el sacrificio
408 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

de una deidad cuya naturaleza y atributos varían de pueblo en pueblo.


Por otra parte, las misas católicas coexisten con rituales agrarios
de propiciación de lluvias, ofrecimientos de primicias y prácticas
protectivas para la caza. Los rituales terapéuticos exhiben una gran
diversidad, aunque manifiestan principios comunes basados en
concepciones mesoamericanas generalizadas, a las que confluyen
rasgos exógenos apropiados. Los “pedimentos” públicos de favores a
las deidades no excluyen la realización de rituales clandestinos, que
tienen lugar en cavernas y otros lugares ocultos, cuyos objetivos pueden
incluir la muerte de los adversarios. A su vez, todos los rituales públicos
encuentran sus réplicas privadas en los cultos oficiados ante los altares
domésticos. A los grupos nativos mexicanos he dedicado casi medio
siglo de mi vida, con eventuales regresos sabáticos a América del Sur. Por
ello, es el ámbito que creo haber interrogado con mayor profundidad,
aunque sabiendo que no he obtenido todas las respuestas que hubiera
deseado. Veamos un caso.

Nahua de Morelos

Al recordar la ritualidad nahua del estado de Morelos, con cuyas


comunidades trabajamos, con Alicia Barabas, entre 1980 y 1982, mi
interés principal radica en destacar la actualización de la memoria
colectiva de una comunidad étnica, tal como advierte en el desarrollo
de una práctica ceremonial. Memoria colectiva que manifiesta la
historicidad de la sociedad otorgando una de sus bases a la identidad
social, que puede ser conceptualizada en términos de etnicidad. La
ritualidad local no sólo celebra la siempre vigente articulación del
hombre con el medio, en razón de su coincidencia con el ciclo y la
cosmovisión agraria, sino que también se constituye en una implícita
reflexión sobre el pasado comunal; simbolización que adquiere su
representación material a través de una serie de grupos de danza que
cronologizan el pasado y el presente societal. Cumple así el ceremonial
con el papel de fortalecer la identidad étnica al confrontarla con su
historicidad. Trataré entonces de expresar la vigencia y actualización
cíclica de la etnicidad nahua, tal como se manifiesta a través del ritual
que presenciáramos en la comunidad de Tetelcingo en octubre de 1980.
Tetelcingo constituye un caso realmente atípico. No porque
lograra evadirse de la trayectoria histórica colonial sufrida por las otras
comunidades regionales, sino porque, a pesar de haber participado
intensamente en ella, continúa siendo un pueblo Nahuatl étnicamente
Ritualidad y contrahegemonía 409

vivo, testimonio solitario de un entorno pueblerino que ha olvidado


cuáles fueron sus orígenes. Este hecho resulta más notable porque no
se trata de una comunidad aislada en una región de difícil acceso o
enclavada en tierras económicamente poco atractivas. Por el contrario.
Se encuentra en medio del fértil valle de Cuautla, a solo siete kilómetros
de la ciudad del mismo nombre, y ha sido sometida a toda clase de
embates “modernizadores”, que incluyen la temprana presencia del
Instituto Lingüístico de Verano, cuyo fundador, W. C. Townsend, utilizó
a Tetelcingo como “pueblo piloto” para el desarrollo de la institución.
El ciclo ritual incluye prácticas protectivas, como ofrendas a
los Aires y ceremonias agrarias, pero el último domingo de octubre
culmina con una ceremonia performativa. Ese día, el aspecto central
de la celebración está representado por la participación de una serie de
grupos de danza, que desarrollan sus complejos coreografías en el
polvoriento atrio de la iglesia de Los Reyes. Dichos danzantes están
organizados en tres grupos: Apaches (Concheros), Santiagueros y
Gañanes, mismos que bailan simultáneamente durante toda la jornada
sin más descanso que una breve interrupción a medio día, momento en
el que son colectivamente invitados a comer por los mayordomos de la
fiesta. Aproximémonos un poco a la naturaleza de estas asociaciones
rituales de danzantes.
Los orígenes de la danza de Concheros o danza Azteca, que
en Tetelcingo se conoce como danza de los “Apaches”, se sitúa, según
Moedano Navarro (1972), en la legendaria batalla de Sangremal, que
tuvo lugar en la proximidad de los actuales límites de Querétaro. La
leyenda señala que la aparición en el cielo de una cruz acompañada por
la figura de Santiago Apóstol favoreció al triunfo de las armas españolas
en el combate que sostenían contra los Chichimeca. Ante la sorprendente
aparición, los guerreros nativos dejaron de luchar, aceptaron la religión
católica y recibieron de los españoles una cruz de piedra en torno a la
cual comenzaron a bailar, exclamando constantemente: “Él es Dios”.
A partir de estos orígenes, se generó una dramatización ritual y un culto
a Santiago Apóstol que, ya en forma de danza, se difundieron entre los
pueblos Otomí del Bajío y de allí al resto de México.
A su vez, la danza de los Santiagueros (Xantiocuote, en
Tetelcingo) constituye una de las versiones principales de la danza de
Moros y Cristianos. Warman (1972) señala que ésta se desarrolló en
México alrededor de 1524 o 1525, como un intento consciente del
grupo colonizador por difundir una tradición hispana que suponían
les facilitaría el proceso de dominación ideológica, en la medida
410 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

que ayudaría a inducir a los dominados a aceptar el culto de los


conquistadores. Aunque la danza se constituyó como un refuerzo de
la empresa hispana en medio de un mundo que le era hostil, pronto
los indígenas comenzaron a reestructurarla y reinterpretarla dentro
del código que les proporcionaban sus tradiciones anteriores, hasta
el punto de llegar a asumirla como propia.4 De esta manera y con el
paso del tiempo, la danza se convirtió – en contenido y forma – en una
expresión más de las luchas de resistencia cultural del pueblo dominado
(WARMAN, 1972).
El tercer grupo de danza que actúa en la fiesta de octubre es el
localmente conocido con el nombre de “Gañanes” (Gayonexte), cuyos
miembros, como el apelativo lo indica, bailan disfrazados de peones de
hacienda. Mediante una simple coreografía los jóvenes, niños y adultos
danzantes se retrotraen al tiempo en que sus antepasados – hasta la
generación de sus abuelos – trabajan en las haciendas. También en este
caso, los dos grupos de protagonistas históricos aparecen claramente
definidos; los bailarines, que representan a los peones, giran sobre
sí mismos envueltos en amplios sarapes y cobijas, en tanto que a su
alrededor otros hombres, con chaparreras de cuero (los capataces), los
conducen como si constituyeran un rebaño. Tanto el arribo como la
salida de este grupo del atrio de la iglesia de Los Reyes son precedidos por
una yunta de bueyes que pretende recordar el duro trabajo en los surcos.
Durante el tiempo en que se desarrolla la danza, un aguatero, portador
de una olla de barro, reparte agua entre los supuestamente cansados
trabajadores (en realidad es muy bien recibida por los agotados).
Las danzas que interpretan los grupos de Tetelcingo constituyen,
en su esencia, una apelación al poder liberador de la memoria. La
conducta ceremonial de Concheros, Santiagueros y Gañanes retrotrae
a la comunidad hasta sus orígenes a través de una representación
que conlleva la implícita reflexión de la comunidad sobre sí misma.
Reflexión en la que confluyen distintos aspectos del devenir social,
simbólicamente estructurado en torno a tres momentos cruciales:
el pasado prehispánico, la imposición de la religión del dominador y
la cruel etapa de la semiesclavitud bajo el poder de los hacendados.

4
Hace ya algunos años después de nuestro ensayo, una investigadora había observado
que “El tema de la oposición dualista que estructura la danza es, pues, reformulado
por los espectadores en términos de conflicto étnico y político, convirtiéndose
en representación de la contraposición entre el sector mestizo, que en cuanto
hegemónico y coercitivo representa un poder inicuo […]” (BURDI, 1996, p. 56).
Ritualidad y contrahegemonía 411

Y si adjudicamos a esta memoria colectiva un poder liberador, nos


basamos en el hecho de que la congregación ceremonial (incluido los
niños) accede, a través de la participación simbólica, al testimonio
de las generaciones que les precedieron. Testimonio que recoge y
expresa la tragedia de un pueblo al que la agresión colonial pretendió
deshistorizar, colocándolo en “un tiempo fuera del tiempo”, destinado
a ser sólo testigo y no protagonista de la historia. La recuperación del
pasado por medio de la dramatización ritual se evidencia de esta manera
como un importante mecanismo dinamizador de la conciencia social.
Dinamización que se proyecta hacia la actualización de la memoria
colectiva de la sociedad, en términos de un reencuentro revitalizador
con su trayectoria histórica.

Los códigos simbólicos en los ritos: el caso mixteco


Para intentar una aproximación al mundo simbólico que revelan
los rituales, y a la reproducción de los aspectos más profundos de las
culturas locales, creo necesario comenzar con el ámbito de las categorías
de entendimiento ligadas o no a la experiencia de lo sagrado, que se
manifiestan como aspectos clave en lo que atañe a la percepción de la
lógica cosmológica presente en todas las acciones rituales. De acuerdo
con la escuela sociológica francesa y a partir de la obra de Durkheim,
se ha usado la noción de categorías de entendimiento para designar a
aquellas representaciones colectivas que se constituyen como nociones
fundamentales de una sociedad, en la medida en que poseen una
presencia constante en el pensamiento colectivo. Algunas de ellas serían
las nociones de tiempo, espacio, género, número, causalidad, sustancia
etc. Cardoso de Oliveira (1988) las ha caracterizado como “universales
concretos”, en tanto categorías históricamente constituidas que
forman parte de las formas comunes de pensamiento de una sociedad
y que son producto de civilizaciones particulares. Así, los mismos
conceptos de tiempo y espacio constituyen un tema que requiere de
mayores investigaciones y reflexiones específicas, pero cuyas primeras
aproximaciones se demuestran altamente significativas. El ritual permite
a la comunidad que lo practica volver a vincularse con la temporalidad
fundamental de la cultura: con el tiempo cíclico propio de una tradición
agraria cuyo proceso productivo se reitera anualmente, y con el tiempo de
los orígenes que establecen las narraciones míticas, los relatos sagrados
que aluden al momento inaugural en el cual las deidades instauraron la
412 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

vida humana. De la misma manera, el ritual implica la construcción de


un espacio sagrado, al generar prácticas de apropiación simbólica del
territorio y vincularse con un paisaje “potente” (dotado de capacidad
de acción), lo que construye un escenario privilegiado en el cual se
inserta la comunidad y sus habitantes. Tiempo y espacio son entonces
dimensiones básicas de cualquier fenómeno social, condiciones o
categorías de la experiencia que se convierten en elementos semánticos
o en índices de significados culturales. Como ejemplo, veamos algunas
aproximaciones a las nociones espaciales y temporales mixteco, para
contribuir a entender su reproducción en el contexto de los diversos
procesos rituales.
Dentro de los sistemas clasificatorios de los actuales Mixteco,
los conceptos espaciotemporales pueden proporcionar valiosas pistas
sobre significados rituales que refieren a tradiciones milenarias, en la
medida en que la lengua guarda todavía relación con lo que alguna
vez nombrara y que todavía nombra. Así, por ejemplo, las nociones de
espacio y de tiempo que manejan los Ñuu Savi, aluden a una perspectiva
en la que el mundo y la humanidad constituyen parte de una misma esfera
conceptual. El término “y+v+” se puede traducir tanto como “mundo” o
como “gente” y el concepto de “tiempo” se expresa como “ye’e y+v+”, esto
es, “pie del mundo” o de la “gente”. Así, cuando se pregunta por la salud de
alguien, se dice “nakuu ye’e y+v+ yo’o”, “¿qué pasará pie mundo tuyo?”, es
decir ¿cómo estás? (variante de Huitepec). De la misma manera, cuando
una persona consulta a un adivino (“y+v+ tatna”, “sabio, conocedor”)
para averiguar respecto a la salud de su hijo, le dice: “veji ndi’u koto
ndeun nu najuu yee’e y+v+ ande”, literalmente, “vengo yo consultar que
va a pasar pie mundo hijo mío” (WINTER; BARTOLOMÉ, 2001). La
metáfora de pie alude entonces tanto al inicio de algo como a su base.
Nuestro colega Mixteco Ubaldo López (2001) señala que, dentro de
sus nociones de cardinalidad cultural, la metáfora de “pie” alude al sur,
pero con referencia al cuerpo, representa lo húmedo, lo inanimado, lo
no pensante, lo que carga, lo que sólo sirve para desplazar el cuerpo,
algo que no es dirigido en forma autónoma. Es decir, que sería una base
de la vida independiente de la voluntad del individuo. De esta manera,
el tiempo aparecería como una dimensión lineal que apenas puede ser
modificada por la acción humana, ya que las personas están sometidas a
sus determinaciones; sólo el tiempo del rito permite volver a vincularse
cíclicamente con el pasado de la sociedad que lo reinstaura para reafirmar
su propia existencia como tal. Así, la noción del tiempo cíclico es la
que posibilita la verdadera eficacia simbólica del ritual, al permitir la
Ritualidad y contrahegemonía 413

reinserción comunitaria en el pasado de la sociedad. En lo que respecta


al carácter cíclico que definiría a la temporalidad mesoamericana,
ya hemos señalado en otras oportunidades (BARTOLOMÉ, 1997;
WINTER; BARTOLOMÉ, 2001) que la concepción cíclica ha coexistido
siempre con la perspectiva lineal, al igual que en otras tradiciones,
como la occidental, donde las festividades están también ritmadas, es
decir, que periódicamente vuelven a participar en el presente. Entre las
tradiciones culturales mesoamericanas del México actual, se registra un
énfasis en el tiempo cíclico, lo que no excluye la existencia de la noción
de linealidad del tiempo histórico, tal como se advierte en los registros
genealógicos de las sucesiones de los linajes plasmados en los antiguos
códices mixteco, así como en las mismas nociones referidas al futuro
y al destino como ámbitos temporales lineales. La vigencia de una
temporalidad no excluye a la otra, aunque existan momentos en que
una sea predominante.
En lo que atañe al espacio, se puede proponer que para los
Mixteco, al igual que para muchas otras culturas nativas de México,
siempre es percibido como asociado a un tiempo específico. Quizás
ello se deba a que el espacio es el lugar en donde transcurre el tiempo
y por lo tanto no pueden ser separados (BARTOLOMÉ; BARABAS,
1999). Al parecer, no existen nociones de tiempo y espacio genéricos
o indiferenciados, sino que son categorías de entendimiento estre-
chamente vinculadas entre sí. Ejemplo de ello es la identificación que
muchos pueblos indígenas hacen de los cerros con los antepasados
tutelares. Dentro de una configuración con estas características, la
sociedad y el cosmos son necesariamente co-extensos, ya que forman
parte de una misma dimensión espacial y temporal. Pero ello no
significa que todas las sociedades mesoamericanas estén asociadas al
mismo cosmos, sino a una versión de la realidad construida por las
específicas relaciones ecológicas, y que las variadas y complejas formas
simbólicas definen como su propio ámbito significativo. Así, en México
no hay un solo universo cultural mesoamericano, sino una multitud
de universos culturalmente determinados por cada sociedad concreta,
aunque la raigambre mesoamericana pueda ser visible en todos ellos
(BARTOLOMÉ, 2005).
Para los Mixteco existe una definida distinción entre los espacios
humanos, construidos y habitados por las personas, tales como el pueblo
o la milpa (ñuu), y los espacios del monte que están en posesión de las
entidades que los custodian, el yuku, que es tanto cerro, como espacio
virgen. Es decir que el espacio es polimorfo, discontinuo y heterogéneo,
414 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

ya que posee diferentes tipos de calificaciones marcadas por fronteras.


Pero dichas fronteras pueden ser transitadas con seguridad si se
desempeñan las prácticas rituales adecuadas para relacionarse con
las entidades potentes que controlan el espacio y son genéricamente
definidas como los sto’o ñuú, Dueños o Señores del Lugar. A través del
comportamiento ritual, los seres humanos pueden apropiarse o convivir
con sus territorios étnicos. En el espacio definido y organizado por la
cultura, transcurre cronológicamente la vida de todo grupo humano. Por
ello, la relación de un pueblo con su territorio es también la relación con
un tiempo que le es propio. Toda sociedad agrícola acopla históricamente
el ritmo de su vida colectiva al ritmo del medioambiente circundante,
tal como lo demuestran las actividades económicas, rituales, políticas
y sociales asociadas a épocas específicas. De esta manera, la cultura
se demuestra partícipe de una noción de universo que la incluye y en
la que las conductas de los seres humanos no están separadas de las
conductas de animales, plantas, lluvias, vientos, estrellas y otros entes de
un medio ambiente humanizado. Aunque la naturaleza no sea humana
en sí misma, contradictoriamente todos los entes que la pueblan sí, lo
son. Y estas nociones espaciales y temporales proponen un principio
clasificatorio compartido que permite comprender y actuar ritualmente
respecto al orden del universo. Veamos brevemente como se manifiestan
en el ritual agrario mixteco.
Como bien lo sugirió Katz (1997), para los Mixteco es indudable
la importancia del clima y el tiempo que se le asocia, ya que su mismo
etnónimo es el de Pueblo de la Lluvia (“Ñu Savi”, “Ñu Ndavi”, “Tu’un
Davi” etc., de acuerdo con las variantes dialectales). La llamada Región
Mixteca de Oaxaca se caracteriza por una marcada división entre
la época de lluvias y la época de secas en las que se divide el año y,
por consiguiente, el ciclo agrícola. La poca certeza de la llegada de las
lluvias, así como el daño que puede producir su exceso, han propiciado
el desarrollo de un complejo ciclo de rituales cuyas características
varían a lo largo y a lo ancho de la vasta geografía mixteca. Pero un
elemento compartido es que “[…] lluvia y sequía sirven de eje simbólico
en las prácticas cotidianas, así como en la agricultura, en la cocina, en la
expresión de la reproducción de los procesos de la vida, de la fertilidad
y de la escasez o abundancia […] asociándolo con el ciclo de la vida
humana” (KATZ, 1997, p. 105). De esta manera, el tránsito de la estación
de secas a la de lluvias puede ser equiparada al paso que media entre la
vida y la muerte. El culto agrícola en sí se suele organizar en la cima
de los cerros o en torno a las llamadas “piedras de adoración”, las que
Ritualidad y contrahegemonía 415

suelen carecer de intervención humana, pero son reconocidas como


tales por alguna característica específica, sólo percibida por algunos, o
por haberle sido revelada en sueños a algún chamán (BARTOLOMÉ,
1999). Incluso los que salen de cacería suelen ofrecerles pequeños
sacrificios (mezcal, cigarros, galletas etc.) para solicitar su permiso para
la empresa cinegética, con lo que tácitamente las están reconociendo
como Dueños de los Animales, de acuerdo con la tradición cosmológica
mesoamericana. Pero en las solicitudes de lluvias, que son colectivas,
se suelen realizar sacrificios de sangre tales como gallinas, chivos
o borregos.
Como podemos apreciar, a pesar de los siglos coloniales los
Mixteco han continuado siendo una cultura básicamente agrícola,
así sus representaciones colectivas y categorías de entendimiento
básicas siguen estando ligadas a una cosmovisión agraria, en la que
las influencias cristianas no han logrado desplazar a sus principios
fundamentales. Algunos de los principales investigadores de los rituales
agrarios en México han arribado a similares conclusiones, aunque
trabajaron con diferentes grupos. Este sería el caso de Catharine Good
Eshelman (2004), destacada etnógrafa que ha dedicado muchos años al
estudio de la población Nahua del estado de Guerrero.

Interculturalidad y contrahegemonía: el caso de


los rituales
Como ya lo he señalado, mi interés principal radica en dar
cuenta del papel que los rituales desempeñan en el mantenimiento y
reproducción de las identidades étnicas de las colectividades indígenas,
en tanto componentes significativos de la que he denominado, ya en
otras ocasiones, como cultura de resistencia (BARTOLOMÉ; BARABAS,
1977; BARTOLOMÉ, 1988). Esta cultura de resistencia no debe ser
confundida con la “resistencia al cambio”, concepto acuñado por la
antropología desarrollista de mediados del siglo pasado; ni tampoco
con la noción de “resistencia india”, como acción política contestataria,
utilizada por numerosos movimientos etnopolíticos actuales. Se trata
de una especie de “acción cultural contrahegemónica”, generada por
una cultura no occidental y desarrollada a través de una multitud de
prácticas cotidianas, que trata de eludir la confrontación directa con el
sistema neocolonial, ya que está más interesada en sobrevivir que en
dominar. En este caso, la “contracultura” no pretende subvertir un orden
416 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

dominante, sino lograr reproducirse en su interior, aunque con frecuencia


constituya una de las bases ideológicas de las movilizaciones colectivas
en contra de dicho orden. La “cultura de resistencia” alude así a los
mecanismos tanto adaptativos como contrastivos que pretenden, de
manera implícita o explícita, la práctica de una herencia cultural y el
mantenimiento de una tradición codificada en los términos propios
de las culturas subordinadas (BARTOLOMÉ, 1988). Esta resistencia es
la que explica la reproducción cultural durante siglos de sociedades a
las que se trataba de “privar de sí mismas”, de acuerdo con las variadas
estrategias coloniales y neocoloniales, que intentaron desvitalizar las
culturas para evitar que se reprodujeran en cuanto tales. Las culturas
que han llegado a nuestros días no son idénticas y, tal vez, ni siquiera
muy similares a las del pasado, pero son diferentes a la del actual Estado,
lo que demuestra un cierto éxito en el mantenimiento de una alteridad
actualizada y transformada de acuerdo con los cambiantes contextos
históricos. Cabe concluir, entonces, señalando que no se trató (ni se
trata) de una sufrida adaptación pasiva, sino de un comportamiento
activo que se registra en los múltiples aspectos de la vida cotidiana y que
busca mantener y desarrollar una noción de realidad, una lógica social
y cosmológica, que posibilite la reproducción cultural aún en el marco
de las relaciones de dominación.5
Desde la perspectiva inaugurada por Durkheim, la escuela
funcionalista inglesa puso su énfasis analítico en el papel y la importancia
de la ritualidad en la solidaridad social. Sin embargo, dentro de la
misma escuela surgió la teoría del “conflicto estabilizador”, asociada a
los rituales, liderada por el africanista Max Gluckman, fundador de la
escuela de Manchester. Pero tal vez debamos buscar sus antecedentes en
la pionera obra de James Frazer (1969 [1890]), quien había advertido la
existencia de rituales en los que se producían una inversión de categorías,
es decir que las personas de estatus social más bajo se comportaban
temporalmente como si fueran los dominantes. También documentó
rituales en los cuales las mujeres desempeñaban las conductas de
hombres y los hombres de mujeres, invirtiendo el orden tradicional
de los géneros. Pero una reflexión posible es que estos rituales no

5
Es factible coincidir entonces con una colega a la que sus estudios sobre los procesos
políticos protagonizados por los grupos Maya de Chiapas la llevaron a concluir: “[…]
Podríamos decir que el sistema de dominación, desde la colonia hasta nuestros días
ha dado como resultado una resistencia permanente en las comunidades indígenas,
cuyo fin último es permanecer” (SMEKE DE ZONANA, 2000, p. 93).
Ritualidad y contrahegemonía 417

estaban destinados a subvertir el orden establecido, sino a confirmarlo.


Al igual que en los carnavales actuales de Río de Janeiro, donde
afrodescendientes pobres se visten como antiguos nobles europeos, la
subversión es temporalmente restringida y cesa el miércoles de ceniza.
Retomando a Gluckman y a su entonces innovadora propuesta, derivada
de sus estudios de campo (GLUCKMAN, 1963 [1954], 2009 [1955]),
éste propuso que “[…] el conflicto y la superación del conflicto (fisión y
fusión) son dos aspectos del mismo proceso social que están presentes
en todas las relaciones sociales ya que son inherentes a la naturaleza
de toda estructura social” (GLUCKMAN, 1954, p. 10, grifo nosso).
En este sentido, consideraba que las personas de un grupo mantienen
constantes disputas por determinados objetivos, pero se abstienen de
ejercer la violencia debido a otros lazos que los unen y que la violencia
destruiría junto con el orden social. Por ello, los rituales cumplen con
la función de exhibir la rebelión y la protesta, e incluso para exagerar
los conflictos que existen entre sus participantes, los que demuestran
así que su sentido de comunidad es más fuerte que sus disputas. Tal
sería el caso de los ritos agrícolas de los Zulu, en los cuales las mujeres,
tanto jóvenes como mayores, desempeñaban conductas obscenas en
público y se comportaban como si fueran hombres. Es decir que, de
acuerdo a Gluckman, la ritualización de los conflictos cumple con una
tarea estabilizadora del sistema social, en la medida que institucionaliza
y, de alguna manera, bendice, dicho orden, al expresar contradicciones
de las que la sociedad está consciente, pero que considera naturales
y necesarias.
Mi perspectiva es opuesta a la de la función estabilizadora, ya
que propongo una lectura en clave político cultural de los complejos
sistemas rituales que desarrollan los pueblos indígenas. Una premisa
significativa para los fines de este análisis es que dentro de los rituales,
los símbolos se hacen comprensibles y manifiestan su carga de sentido,
básicamente en relación con otros símbolos, es decir, a partir del conjun-
to o sistema del cual forman parte. En este sentido, la acción simbólica
contemporánea se inscribe dentro de los códigos que le proporciona
la tradición cosmológica de cada cultura. Tradición en la que confluye
tanto la configuración de la tradición civilizatoria de que forman parte,
como las imposiciones y apropiaciones cosmológicas coloniales y
contemporáneas. Esto ya había sido advertido hace muchos años por
Vittorio Lanternari (1959, p. 453), cuando proponía que las tradiciones
religiosas y culturales de distintos orígenes se unificaban en los rituales
de Micronesia, incluyendo elementos occidentales, configurando parte
418 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

de la resistencia religiosa a la hegemonía cultural de los colonizadores. Por


ello, no me preocupé aquí por conceptos tales como el de “sincretismo”,
ya que no le atribuyo un valor operacional intrínseco en este nivel de
análisis. Dentro de la cultura vivida de un grupo humano, los rasgos
culturales y organizacionales son aprehendidos en términos de una
totalización gestáltica, en la cual no aparece una antinomia evidente
entre elementos exógenos y endógenos. Como resultado del proceso
histórico de convivencia, las tradiciones culturales del dominador que
penetraron en el seno de las formaciones sociales nativas colonizadas
fueron traducidas y reelaboradas hasta hacerlas partícipes, como los
signos propios, del espacio semántico de las culturas afectadas. Esto no
excluye la presencia de rasgos antagónicos en dicho espacio, pero destaca
el hecho de que la tensión dialéctica existente entre ellos es sublimada
por las estrategias adaptativas que la sociedad genera. Es decir que no
trato de realizar un estudio de supervivencias o de continuidad cultural,
tratando de destacar la presencia y vigencia de los símbolos prehispá-
nicos en los rituales contemporáneos, sino referirlos al código simbólico
del cual provienen para hacerlos inteligibles en su contexto actual, donde
pueden ser leídos como ámbitos propios o refugios contestatarios de una
alteridad dentro de contextos interculturales asimétricos. Los ritos son
los pulmones de la historia, pero la presencia de rasgos sincréticos no
desvirtúa una lógica cultural singular, ya que éstos han sido apropiados,
resignificados e integrados a una estructura de sentido vivida como una
totalidad coherente e indiferenciada (BARTOLOMÉ, 2005).
Los rituales indígenas erigen el poder de los símbolos propios
frente a los símbolos dominantes del poder estatal y eclesiástico,
herederos de una todavía vigente tradición neocolonial. La confrontación
simbólica es entonces parte de la contradicción entre distintas culturas
íntimamente vinculadas por relaciones asimétricas, las que manifiestan
no sólo una articulación jerárquica, sino también la presencia
contestataria de diferentes estructuras de sentidos.6 En la medida en

6
Jean Comaroff (1985 apud KORSBAEK, 2018, s. p.), en sus estudios sobre grupos
nativos de Sudáfrica, señalaba que, en términos de relaciones de poder, los rituales no
siempre tienen un trasfondo conservador, sino que pueden expresar simbólicamente
la comprensión que tienen de sí mismos los grupos subordinados y la insatisfacción
con el sistema de normas vigente. “[…] Sostiene que es fundamental analizar el
contenido de estas prácticas de resistencia popular, para ver qué tipo de efecto tienen
en las relaciones de poder, porque dichas prácticas ritualizadas no siempre plantean
una amenaza inmediata a la estabilidad de las formas existentes de dominación
social y política, pero sí socavan y subvierten, de a poco, su lógica […]”.
Ritualidad y contrahegemonía 419

que la acción ritual se inserta dentro de la lógica que le proporciona


una específica cosmovisión, no sería aventurado recordar la antigua
formulación de Durkheim (1968 [1903]) referida a la “solidaridad
mecánica”, concebida como un estado de conciencia compartida, ni su
perspectiva respecto a los rituales entendidos como “actos de sociedad”
que posibilitan el acceso a las imágenes del mundo que maneja una
colectividad humana. Y, fundamentalmente, rescatar sus formulaciones
que enfatizaban el hecho de que la acción colectiva constituía una forma
de autoconciencia social, a través de la cual una comunidad se afirma y se
recrea de manera periódica. Quizás esa forma de solidaridad expresada
en actos y eventos comunicativos orientados a la autoconciencia nos
permitiría comprender mejor los mecanismos del poder simbólico, de la
presencia y capacidad de los símbolos culturales para encarnarse en las
estructuras de las sociedades y orientar las conductas colectivas. Ya hace
algunos años, Mary Douglas (1966) había señalado que los individuos
utilizan cotidianamente los símbolos de su cultura como reguladores
o canales de poder, por lo que ahora nos referiremos a ellos tanto en
términos de su eficacia para la acción colectiva contestataria como con
relación a las cosmologías y visiones del mundo que revelan. Esto es,
el papel de la acción simbólica dentro del ritual y el papel de éste en la
confrontación política y cultural entre las colectividades indígenas y
la sociedad nacional.
Sin pretender aquí historizar estas relaciones, cabe apuntar
que durante los siglos coloniales, todos los sacerdotes nativos fueron
perseguidos, los códices normadores de la ritualidad y de la vida,
destruidos y los cultos públicos, reprimidos, al ser todo considerado
una expresión demoníaca del “paganismo”. A partir de la consolidación
de la faz contemporánea del estado nacional a comienzos del siglo XX,
debida en lo fundamental a la Revolución Mexicana de 1910, la represión
fue reemplazada por la coerción. La búsqueda de un modelo unitario
del ser social, el mestizaje elevado a la categoría de “raza cósmica” y la
construcción de la nación como comunidad culturalmente homogénea
significaron una nueva violencia cultural y simbólica sobre los pueblos
indígenas, a los que se demandaba renunciar a sí mismos para integrarse
al ambiguo modelo cultural e identitario que proponen los aparatos
ideológicos del Estado. No sólo las lenguas nativas, sino también las
prácticas culturales alternas pasaron a ser percibidas como arcaísmos
provenientes de un pasado al que se debía renunciar activamente para
ingresar a la “modernidad” occidentalizante.
420 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Junto con otros criterios tanto culturales como lingüísticos,


territoriales, históricos o parentales (BARTOLOMÉ, 1997), ser indígena
en el México contemporáneo muchas veces alude a la participación en
las comunidades rituales. Participar en un rito supone entonces formar
parte de un “nosotros” inclusivo y exclusivo, diferenciado por lo tanto de
los “otros”: de aquellos que no comparten nuestra forma de ser y actuar
en el mundo. La pedagogía histórica del ritual, que transmite signos
y significados a través del tiempo, se conjuga con la experiencia vital
del presente. Proporciona así datos ideológicos fundamentales para la
identificación étnica, ya que su apelación al pasado sirve para definir a
la colectividad contemporánea, a pesar de las represiones y coerciones
que han tratado históricamente de anular la identidad colectiva.
Un aspecto central y poco explorado de las fiestas y de los rituales
conmemorativos, propiciatorios, de pasaje, protectivos, públicos o
privados, de acuerdo con la antigua tipología propuesta por Jean
Cazeneuve (1971), se refiere a la afectividad, a la emoción conjunta
que experimenta la comunidad congregacional y que crea lazos dura-
deros entre sus integrantes. Las características e intensidad de la
afectividad dependen del tipo de ceremonia. La fiesta patronal genera
una congregación alegre, cuyos miembros masculinos refuerzan
sus afectos (o rencores) a través de los rituales del alcohol; pero
quienes se reúnen para rendir tributo a sus antiguas deidades están
unidos por lazos afectivos más profundos desarrollados a través de la
participación mística. Las ceremonias de petición de lluvias, más allá
de sus ricos aspectos simbólicos, cumplen con la función de hacer
colectiva la angustia individual por la falta de lluvias y proporciona a
cada campesino un grupo fraternal con el cual compartir la ansiedad y
ampararse. La comunidad ritual es entonces también una comunidad
afectiva, compuesta por aquellos con los cuales nos identificamos en
forma tanto objetiva como subjetiva; estamos reunidos con nuestros
semejantes más cercanos y más significativos. Este reencuentro afectivo
con la propia identidad la actualiza al hacerla colectiva y compartirla.
La comunidad ritual, al unirnos con unos, simultáneamente nos separa
de otros y delimita nuestro ámbito social y cultural de pertenencia,
visibilizando las fronteras étnicas.
Como hemos visto, múltiples son tanto las funciones como los
sentidos y los códigos que nos revelan los mitos. En este ensayo, no he
pretendido privilegiar uno de ellos respecto a los demás, sino demostrar
uno de los contenidos manifiestos al que he podido acceder a partir
de mi propia experiencia etnográfica. En este sentido, la ritualidad
Ritualidad y contrahegemonía 421

ocupa un lugar significativo dentro de la cultura de resistencia, de esta


centenaria manifestación política y social contestataria que no se orienta
explícitamente hacia la confrontación, aunque puede darle sustento,
sino básicamente a la propia reproducción comunitaria.

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Una aproximación al arte
verbal de la Gente de Centro
(Amazonia colombiana)

Juan Alvaro Echeverri

Introducción

El poder de la palabra no está en su pronunciación, sino en las


consecuencias de ser pronunciada. Invocar la palabra es buscar y
asegurar. La palabra es acción; actualiza y transforma las cosas, de
lo nombrado a lo real, de lo nombrado a lo manifiesto. Las palabras
de Candre buscan la conducta correcta en la vida, garantizan la
conducta correcta y enseñan la conducta correcta. La importancia
de la palabra da pistas para comprender la fuente del poder de
los cantos curativos chamánicos, ya que invoca la presencia
espiritual. (LANGDON, 1997, p. 629, traducción nuestra).1

Jean Langdon escribió estas palabras en su reseña del libro Cool


tobacco, sweet coca (CANDRE-KINERAI; ECHEVERRI, 1996), en el
cual presentamos un conjunto de textos bilingües (Murui [Uitoto]2-
inglés) del anciano Ocaina-Murui Hipólito Candre-Kinerai. En ese
libro, nos inspiramos en los aportes de la etnopoética para encontrar una
forma de representación del arte verbal en lengua Murui que revelara las

1
En el original: “The power of the word is not in its utterance but in the consequences of
being uttered. To invoke the word is to search and to insure. Word is action; it actualizes
and transforms things, from the named to the real, from the named to the manifest.
Candre’s words search for the right conduct in life, ensure right conduct, and teach right
conduct. The importance of the word gives clues to understanding the source of power
of shamanic healing chants, for it invokes spiritual presence”.
2
Empleo la designación “Murui”, en lugar de “Uitoto”, “Huitoto”, “Witoto”, siguiendo la
preferencia del mismo pueblo (ver AGGA CALDERÓN; WOJTYLAK; ECHEVERRI,
2019, p. 51, para una explicación detallada).
Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro (Amazonia colombiana) 425

características formales (prosódicas y retóricas) de las narrativas, y no


solo su contenido lingüístico.
En este artículo, quiero hacer honor a una de las facetas del trabajo
intelectual de Jean Langdon en el campo de la performatividad y el arte
verbal de los grupos de las tierras bajas de Sur América (cf. LANGDON,
1995, 1999, 2013, 2016, 2018, entre otros), trabajo que inició desde sus
primeros estudios sobre los Siona, y que ha continuado a través de toda
su carrera y ha estimulado y orientado el trabajo de muchas(os) de
sus estudiantes.
“Gente de Centro” designa a un número de grupos de la
Amazonia colombo-peruana de las familias lingüísticas Witoto (Murui,
Ocaina, Nonuya), Bora (Bora-Miraña, Féeneminaa [Muinane])3,
Andoke-Urekena (Andoque)4 y Arawak (Resígaro). A pesar de su
heterogeneidad lingüística, estos grupos comparten muchos rasgos de
su organización social y ceremonial, que marcan su singularidad en el
conjunto de los pueblos vecinos de la Amazonia noroccidental (Tukano
oriental y occidental, Peba-Yagua, Yurí-Tikuna, Caribe y Quechua) (cf.
ECHEVERRI, 1997). Aquí nos enfocaremos en el pueblo Murui como
un ejemplo del arte verbal de la Gente de Centro.
Una de las características más notables de los pueblos de la Gente
de Centro es su arte verbal. Para abordarlo, me inspiro en la filosofía del
lenguaje de Wilhelm von Humboldt, que encuentro como una ráfaga de
aire fresco en comparación con las teorías del lenguaje fundadas en la
“arbitrariedad del signo”; lo que Walter Benjamin (1997, p. 65) llamó
“la teoría burguesa del lenguaje”: “el medio de comunicación es el
lenguaje, su objeto es factual, y su destinatario es humano”.
En la sección 2, abordo el arte verbal a partir del aliento (que
relaciono con el concepto humboldtiano de Geist); en la sección 3,
introduzco el concepto murui de rafue, en el contexto de la organización
social, ceremonial y lingüística del pueblo Murui y de la Gente de
Centro; en la sección 4, discuto los géneros del jagai y bakaki, que
frecuentemente son entendidos como “mitos”; en la sección 5, discuto

3
Féeneminaa (expresión que significa “Gente de Centro”) es la autodesignación
del grupo etnolingüístico conocido en la literatura como “Muinane”, que aquí
adoptamos siguiendo la decisión del mismo pueblo (ANCIANOS DEL PUEBLO
FÉÉNEMINAA, 2016).
4
Marcelo Jolkesky (2016) demostró el parentesco genético entre el Urequena y el
Andoque y propuso hablar de la familia “Andoke-Urekena”, hipótesis con la cual
concuerda Jon Landaburu (en imprenta), especialista de la lengua Andoque.
426 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

los géneros de las conjuraciones (jiira) y los consejos (yetarafue); y en la


sección 6, resumo lo discutido y presento una propuesta provisional de
organización el arte verbal murui, como una aproximación al arte vebal
de la Gente de Centro.

Jagiyi (aliento)
Comienzo explorando lo que quiero decir con aliento, a través
del concepto humboldtiano de Geist, una de las ideas fundamentales de
Wilhelm von Humboldt sobre el lenguaje, que lo aleja de la lingüística
estructural que dominó la mayor parte de los enfoques del lenguaje del
siglo XX. Para Humboldt, el lenguaje es energeia (actividad), no es una
cosa o una construcción (ergon). El lenguaje, escribe Humboldt (1907,
p. 46), es “el trabajo incesante de la mente [Geist] para hacer que el sonido
articulado sea capaz de expresar el pensamiento”. “Geist” en Humboldt
es traducido comúnmente como “mente”, aunque literalmente significa
“espíritu”. Entiendo el Geist de Humboldt como “aliento”, pero me
refiero a este aliento como la traducción del concepto murui de jagiyi
(literalmente “aliento”).
Un ejemplo puede servir para ilustrar este aliento-jagiyi. El
anciano Ocaina-Murui Kinerai, al hablar de la búsqueda del trabajo
de la chagra, se expresa así, en la versión en español de Cool tobacco,
sweet coca (ECHEVERRI; CANDRE-KINERAI, 2008, p. 36, 39; audio
en CANDRE-KINERAI, 1992b, 11s):

Ejemplo 1 Eiño jieño En la entraña


eromo ua de la Madre Trabajadora
ite jmm hay
jagiyi. jmm jmm aliento.
Fia ua jagiyina ite, jmm jii Sólo hay aliento,
farékatofe jagiyi, jmm aliento de yuca dulce,
juzítofe jagiyi, jmm aliento de yuca brava,
rozídoro jagiyi, jmm aliento de piña,
mazákari jagiyi, jmm aliento de maní,
jífikue jagiyi, jmm aliento de caimo,
jirikue jagiyi, jmm aliento de uva,
jizaiño jagiyi, jmm aliento de guama,
Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro (Amazonia colombiana) 427

mizena jagiyi, jmm aliento de maraca,


jimedo jagiyi, jmm aliento de chontaduro,
tuburi jagiyi, jmm aliento de daledale,
jakaiji jagiyi, jmm aliento de ñame,
dunaji jagiyi, jmm aliento de mafafa,
mizena jagiyi, jmm jmm aliento de maraca,
jifirai jagiyi, jmm jmm aliento de ají,
nekana jagiyi, jmm aliento de umarí verde,
goido jagiyi, jmm aliento de umarí negro,
nemona jagiyi, jmm jmm jmm
aliento de umarí amarillo
jmm jmm jmm
— nana fia jagiyina ite. jmm jmm — todo es sólo aliento.

Los cambios de línea señalan las pausas respiratorias del hablante;


la materialidad de su respiración se traduce en la página impresa como
saltos de línea. No significado, sino forma, y esta forma es de vital
importancia desde la perspectiva del aliento; es energeia que surge del
cuerpo. Las expresiones “jmm” y “jii” son las respuestas del interlocutor
(sin cursivas) y las contrarréplicas del narrador (en cursivas).
Cuando comencé a recopilar y transcribir grabaciones en lengua
Murui a finales de la década de 1980, mi instinto fue transcribirlas
en forma de oraciones y párrafos, que era, a mi entender, la forma
natural de un texto escrito. Pero eso era muy problemático; el flujo del
habla no se acomodaba bien a esta forma, y la traducción necesitaba
ser severamente editada para hacer una “buena prosa” en el idioma
traducido. Aprendí a transcribir más bien en forma “poética”, basado
en las características formales del discurso: su prosodia y retórica (esos
rasgos que los lingüistas tratan como no significativos). Me inspiré en la
etnopoética, que provenía de una tradición norteamericana heredera de
Edward Sapir y Benjamin Lee Whorf, discípulos de Franz Boas. Boas,
un alemán, fue influenciado por las ideas de Wilhelm von Humboldt
(BUNZL, 1996). Para Humboldt, las palabras no son portadoras de
significado; la forma es lo primordial. Y es lo que la etnopoética permite:
transcribir los textos sobre la página impresa, generando líneas y versos
derivados de las características prosódicas formales del discurso:
flujo respiratorio, entonación, intensidad. Esto permite representar el
discurso transcrito no como prosa, sino con una forma más cercana a la
poesía. En el centro de estos principios etnopoéticos, está el concepto de
428 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

línea: un fragmento de texto definido por las pausas respiratorias.


El siguiente ejemplo es del trabajo que realizamos con el anciano
Murui nipodimaki Oscar Román-Jitdutjaaño sobre las sales de origen
vegetal. Las sales vegetales se procesan quemando material vegetal
(cogollos, cortezas, flores etc.) de especies vegetales seleccionadas; luego
filtrando las cenizas para lixiviar las sales solubles, y finalmente hirviendo
la salmuera resultante para obtener la sal desecada (ECHEVERRI;
ROMÁN-JITDUTJAAÑO; ROMÁN, 2001; ECHEVERRI; ROMÁN-
JITDUTJAAÑO, 2011, 2013). El rafue de la sal – que es como Oscar
denomina su narración, en registro ceremonial, sobre esta sustancia –
no explica estos procesos técnicos, sino que los actúa por medio del
lenguaje. El filtrado, por ejemplo, se expresa mediante la daibiriya uai,
“palabra de goteo”, pronunciando las palabras como si fueran gotas
(ROMÁN-JITDUTJAAÑO; ROMÁN; ECHEVERRI, 2020, p. 568-569;
audio en ROMÁN-JITDUTJAAÑO, 1997, 1h4min19s):

Ejemplo 2 […]
ikurimo En el seno
fuia después
nii ese mismo
muitaye va a gotear,
daitaye va a asperjar.
nii Ese mismo
daiye goteo,
dainano por así decir,
kairi lo dejó
fieka para nosotros
daakurimo en el mismo seno.
aiyi Ahora
yezika en ese momento
ikuri el seno
jaae ya
yezika en ese momento
nenairi se empezó a mover,
yezika en ese momento
imerufi en forma de larva,
Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro (Amazonia colombiana) 429

yezika en ese momento


aiyi ahora
nirairi en forma de oruga,
yezika en ese momento
eeiño nació
mameki el nombre
komuide de la Madre

Cada cambio de línea es una pausa. El discurso es una réplica


del filtrado de la sal. No está hablando de filtrar sal, está filtrando. Y este
filtrado también ocurre en el cuerpo: los testículos son filtros, la piel es
un filtro, los intestinos son filtros, los riñones son filtros. He cambiado
la traducción de algunas líneas para intentar acercarme a la sintaxis en
español, pero el punto no es interpretar un texto a través de la sintaxis.
La forma es más fuerte que el texto. Se filtra a través de los sentidos, no
haciendo un “discurso”, sino una conjuración.
El advenimiento de la tecnología de la escritura y la unificación
y estandarización de las lenguas nacionales sin duda han contribuido a
sentar las bases de una “teoría tan burguesa del lenguaje” (BENJAMIN,
1997, p. 65), que proviene de la tradición aristotélica que afirma que
el pensamiento es universal y las palabras son los signos arbitrarios
para comunicar estos pensamientos. Es con estas herramientas que me
acerqué inicialmente a las lenguas de la Gente de Centro, entendiéndolas
como un sistema codificado de transmisión de información, que se
refiere a cosas, y que puedo traducir y comprender. Lo que encontré
es que, para estos indígenas, lo que llamamos “lenguaje” es mucho más
que una capacidad humana, y que la capacidad humana del lenguaje es
mucho más que una herramienta para transmitir información.
Esbozo aquí algunos principios básicos de la comunicación
(más que del lenguaje) que he aprendido sobre la lengua Murui (y
que también se aplican para las lenguas vecinas). El primero y más
fundamental es que el lenguaje es un armamento y un poder; con
el lenguaje se puede matar o se puede curar. Un segundo principio
fundamental es que la expresión clara e inequívoca (refiriéndose
a una persona, un clan o un animal por su nombre completo) es
extremadamente peligrosa y expone a esa persona o clan, o atrae el
poder del animal de maneras no deseadas. Las conversaciones serias
siempre se entremezclan con bromas e interrupciones de todo tipo. El
430 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

discurso más profundo y formalizado puede combinarse perfectamente


con groserías, conversaciones casuales, llamadas de celular… No
es necesario “entender” (en el sentido que le damos en español) un
discurso para entenderlo (kakade); “kakade” es como oler con la nariz
o sentir con el corazón. Pero tal vez el principio más importante es que
todo “habla” (uurite): la atmósfera, los animales, la comida hablan.
Y los seres humanos no solo hablan a través del lenguaje articulado,
sino también a través de sus productos (alimentos, hijos, chagras).
Todo esto es uai, “palabra”. “Uai” se traduce comúnmente como
“idioma” (komini uai, “la palabra de la gente”, es decir, el idioma
Murui). Las sustancias hablan a través de uno o por medio de uno – lo
que Londoño Sulkin (2012, p. 31) llama “pensamientos/emociones”.
El uai de las plantas cultivadas se incorpora a la persona a través de su
consumo, y ellas hablan a través de las palabras, acciones y productos
de uno (y recordemos que esas plantas cultivadas son el aliento en
el vientre de la Madre Trabajadora, como vimos arriba). Asimismo,
cuando uno produce alimentos o sustancias rituales y las ofrece, estas
sustancias son su uai y el uai de la planta. Cuando una mujer ofrece
la bebida que ha preparado con su esfuerzo y trabajo (su aliento), la
ofrece diciendo: “be kue uai”, “aquí está mi palabra”.
Esta variedad de rasgos atraviesa los dos registros lingüísticos
principales comunes a todas las lenguas de la región: el lenguaje
cotidiano (“irai fue uai”, “palabra al pie del fogón”, o “io ana uai”, “palabra
en medio del camino”), empleado por hombres y mujeres en los asuntos
de la vida cotidiana, y el registro ceremonial (rafue, o también “jiibibiri
uai”, “palabra del patio de coca”),5 que es un lenguaje exclusivamente
masculino, que tiene lugar en la realización de los rituales y en diálogo
del mambeadero.

5
Sobre el registro ceremonial (o “palabra ritual”), escribe Jorge Gasché (2003,
p. 9-10, traducción nuestra): “[…] una peculiaridad discursiva que caracteriza,
exclusivamente en los hombres, la manera de hablar de los asuntos relacionados con
la realización de una carrera ceremonial, la cual es distinta a la que las personas,
hombres o mujeres, adoptan cuando se comunican e interactúan en sus asuntos
cotidianos. La diferencia se marca tanto en el léxico, como en las formas gramaticales,
la forma de los enunciados, el ritmo y la entonación (hablada o cantada)”. En el
original: “[…] une particularité discursive qui caractérise, exclusivement chez les
hommes, la façon de parler des affaires liées à la réalisation d’une carrière cérémonielle
qui est distincte de celle que les personnes, hommes ou femmes, empruntent quand elles
communiquent et interagissent dans leurs affaires courantes de la vie quotidienne. La
différence est marquée autant dans le lexique, que dans les formes grammaticales, la
forme des énoncés, le rythme et l’intonation (parlée ou chantée)”.
Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro (Amazonia colombiana) 431

En general, se puede afirmar que el registro cotidiano del


habla corresponde a los intercambios en el interior de las unidades
residenciales, y el registro ceremonial, el que corresponde a los
intercambios ceremoniales que ligan diferentes unidades residenciales
alrededor de la celebración de los rituales. Sin embargo, al interior
de las unidades residenciales, existe el espacio del mambeadero, sitio de
reunión nocturna de los hombres alrededor del consumo del tabaco
(“yera”, en Murui, “ambil”, en español local) y la coca en polvo (“jiibie”,
en Murui, “mambe”, en español local). Si bien en este espacio se
puede emplear el registro cotidiano para hablar de la preparación de
trabajos del día siguiente, discutir problemas etc., el mambeadero es
principalmente el sitio donde el hombre “se sienta” (raiide) y “habla”
(uurite) con los espíritus y con otros seres humanos para, por lo menos,
tres asuntos: proteger la familia y el grupo y dar cacería a los males y
enfermedades; enfriar el cuerpo y curar las plantas, las personas y los
niños; y dar de mambear a otros hombres para establecer diálogos (sobre
el mambeadero y el significado de la coca en el diálogo ceremonial, ver
ECHEVERRI; PEREIRA, 2005, 2010). En estas tres funciones interviene
también el registro ceremonial de la lengua.

Rafue (palabra ceremonial)


En el ámbito de la vida ceremonial, los grupos de la Gente de
Centro tienen un gran número de fiestas o bailes. A pesar de la diver-
sidad interna, existe una gran coherencia que permite que diferentes
pueblos de la Gente de Centro puedan realizar intercambios ceremo-
niales. Los intercambios ceremoniales interétnicos han sido un factor
central en la construcción de una sociedad regional. Un aspecto central
de las fiestas de la Gente de Centro es el intercambio de sustancias entre
los yainani o fuerani (“aliados ceremoniales o contendores, en español
local”), quienes aportan cacería y frutas silvestres, y los rafue naani,
“dueños de la fiesta”, quienes “pagan” esos productos silvestres con
comida cultivada y sus derivados (prominentemente ambil de tabaco,
jugo de yuca dulce, coca en polvo, casabe de yuca brava, cahuana de
almidón, y diversos tubérculos cultivados).
Los bailes rituales (rafue) tienen lugar en una maloca o casa
comunal. Cada maloca es el centro de una unidad residencial, y
es el lugar para una rafue, “carrera ceremonial”. Usualmente, cada
maloca tiene una o más malocas aliadas, cuyos miembros lideran a
432 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

los otros grupos invitados en el canto y en los intercambios rituales.


La relación entre dueños de baile y aliados ceremoniales no está
basada sobre criterios de parentesco ni de alianza. La norma es que los
aliados de un dueño no deben ser ni consanguíneos ni afines reales.
Esto quiere decir que el sistema de intercambios ceremoniales genera
una red de relaciones que extiende aún más las ya extensas redes de
consanguineidad y afinidad real. Debido al declive de la población de
todos estos pueblos, las malocas aliadas, con frecuencia, pertenecen a
pueblos distintos. De esta manera, el ritual cumple un papel importante
en la redefinición de un sentido multiétnico de comunidad, contenido
en la expresión “Gente de Centro”.
Los bailes rituales son un tema de alta complejidad, y aquí no
tenemos espacio para hacer justicia a tal complejidad. En la preparación
y ejecución de un baile ritual se despliegan diversas formas de arte
verbal: bakaki (diálogo ceremonial), yorai (discurso monológico
de invitación de tabaco), zomarafue (discurso de bendición de los
alimentos y las bebidas) – por mencionar algunos –, además de los
diversos repertorios de cantos (ruaki) de las por lo menos diez carreras
ceremoniales de las que hay documentación.6 De estas diez, las cuatro
principales que se siguen practicando son: yadiko, la carrera más
prestigiosa que se baila sobre un tablón y que tiene que ver con el manejo
del territorio; zikii, carrera de cacería que se baila con palos y que tiene
que ver con el manejo de las especies animales del monte firme; menizai,
carrera de tortuga charapa (Podocnemis expansa), que también se baila
con palos y tiene que ver con el manejo de las especies acuáticas; y
yuaki, carrera de frutas, la cual tiene cuatro variantes (muruiki, muinaki,
jaioki, jimoki), cada una con diferentes pasos y accesorios, las cuales
tienen que ver con el manejo de las especies vegetales cultivadas y del
monte firme. Cada uno de estos bailes tiene sus formas de discurso y
repertorios de cantos, que cambian según el momento del ritual y según

6
Las diez carreras ceremoniales de las que hay documentación son: yadiko, “tablón”
(neediko “yadiko de asaí”); zikii, “baile de cacería”; menizai, tureño, “charapa”; yuaki,
yuai, “frutas” (muruiki, “cantos de cabecera”, muinaki, “cantos de bocana”, jaioki,
“cantos de culebra”, jimoki, “cantos de guerrero o de gente jimoma”, uiki, “juego de
la pelota”); erai rua, “cantos del principio (inauguración de maloca)”; marai, “fiesta
de nombramiento de recién nacido”; ziyiko, “fiesta de nuevo manguaré”; ifonako,
“fiesta de fin del duelo”; riai rua, “cantos de carijona (en otra lengua)”; bai, “fiesta
de antropofagia” (CALLE; CROOKE, 1969; LÓPEZ, 1989; PREUSS, 1994 [1921,
1923]; GRIFFITHS, 1998; TESSMANN, 1999 [1930]; GASCHÉ, 2009; AREIZA
SERNA, 2016).
Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro (Amazonia colombiana) 433

el tipo de paso. Los ruaki, “cantos”, se cantan en grupo (hombres y


mujeres) encabezados por un cantor principal. Existen, además, cantos
que se cantan en parejas (hombre y mujer). Los más importantes son
los buiñua (“cantos de repartición de cahuana”, bebida no fermentada a
base de almidón de yuca), que se celebran en la víspera de los bailes más
prestigiosos.7 Existen también los uuriya, “hablas”, o fakariya, “pruebas”,
que son interpretados individualmente antes de o durante el ritual, sin
importar la coocurrencia de otros cantos. Todo este repertorio puede
tener la intención, o bien de bendición y protección, o bien de maldición
y agresión.
Esto es lo que se llama “rafue”, en lengua Murui. Rafue, en su
sentido más público y genérico, significa una sucesión ordenada de
rituales realizados por un dueño de baile, que es traducido en el español
local como “carrera ceremonial”. El concepto de rafue abarca desde
esos discursos altamente formalizados de un dueño de maloca en la
preparación y ejecución de un ritual, hasta el diálogo de un hombre
de hogar sentado en su casa, velando por su familia en la noche en
el mambeadero. Lo que tienen en común todos estos géneros y que
permite denominarlos a todos como rafue es que no son discursos sobre
las cosas, sino discursos que devienen cosas – discursos de poder, como
lo indican los dos morfemas que constituyen el término “rafue”: “ra”,
“cosa, poder”; “fue”, “voz discurso”.
“Rafue” es “palabra” que se actualiza; sin embargo, por “palabra”
no debemos entender solo el lenguaje articulado. Como ya lo señalamos
arriba, la atmósfera, las plantas, los animales, los alimentos también
tienen uai, “palabra, lenguaje”. Cuando se dice que la palabra se manifiesta
como rafue, se quiere decir que el discurso, la palabra del lenguaje
articulado, está ligada a la acción. O mejor, usando una expresión de la
lengua Murui, rafue monaide, “la palabra amanece (monaide)”, es decir,
se vuelve cosas. Los actos de habla o discursos que podemos registrar

7
Un excelente trabajo sobre los buiñua es la tesis del estudiante indígena Ever Kuiru
Naforo, Noinui Jitoma: “Existen varias clases de buiñua […]: el buiñua que habla
de las energías de vida, el buiñua que hace una crítica diplomática y el buiñua que
cuestiona fuertemente a la comunidad” (KUIRU NAFORO, 2019a, p. 11, énfasis del
autor). Los buiñua de crítica son los que Gasché (2003, p. 16, traducción nuestra,
énfasis del autor) denomina juniko buiñua – “juniko se refiere a los desperdicios de
yuca que son parte del escenario de trabajo en progreso. A través de estos cantos
es lícito formular directamente […] los agravios y críticas, que queremos informar
[…]” – que contrastan con los ua buiñua, “buiñua verdaderos”, “cuyas palabras
celebran la maloca, el dueño de la fiesta y su familia” (GASCHÉ, 2003, p. 16).
434 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

no abarcan el concepto de rafue. Rafue significa “palabra, discurso”,


pero también significa trabajos, ocupaciones, preocupaciones, fatigas,
esfuerzos; son éstos los que hacen amanecer la palabra. Y el amanecer
la palabra como obra efectúa una curación. Cuando la palabra no
amanece, se vuelve enfermedad.
Si bien la traducción más corriente de rafue puede ser “ritual”, su
semántica la desborda ampliamente. Rafue puede ser entendido como
“Palabra” (con “P” mayúscula, como hemos optado por traducirla en
Tabaco frío, coca dulce), o para emplear la formulación de Fernando
Urbina (2010, p. 18): “palabra cargada de fuerza, eficiente”. El ritual
es posible concebirlo como rafue, porque es palabra que deviene en
acciones que se entretejen y demuestran su eficiencia al convertirse
en alimentos (las sustancias del ritual), en canciones, en narrativas y
en curación. El rafue, dice Vivas Hurtado (2012, p. 235), “es el kirigai
[canasto] mayor de la cultura [murui] minika”, y este canasto contiene
otros canastos: los ruaki, “cantos”, los eiki, “adivinanzas”, los jagai,
“mitos, historias”.
Rafue es el camino del Creador y de la humanidad. Sobre el
concepto de rafue, me permito transcribir las palabras del indígena
Murui, Eudocio Becerra “Bigidima”:

Con estas palabras se enseña a los niños y a los adultos. Estas


son las palabras que dan larga vida y fuerza para trabajar.
Estas palabras son como la macana. Anteriormente bajo estas
palabras eran protegidos los hombres para que se multiplicaran.
[…] A través del manejo de las palabras el hombre busca la
protección. El uso de este lenguaje como enseñanza recibe en
nuestra cultura el nombre de rafue, tradición que nos sirve para
corregir a los hombres para que respeten a los demás y al medio
en que viven. (BECERRA, 1998, p. 17, énfasis del autor).

El asunto central de todo rafue, su preocupación fundamental,


la fuente de toda su energía expresiva se funda en los proceses de
fecundidad y reproducción de los seres vivientes, en particular de las
plantas cultivadas y de los seres humanos (ver por ejemplo ROMÁN-
JITDUTJAAÑO; ROMÁN; ECHEVERRI, 2020). La verdad del discurso
del rafue no radica en lo que las palabras dicen, sino en lo que esos
gestos verbales hacen amanecer en el mundo, en la forma de obras y
seres, es decir, en su capacidad de mantener y aumentar la vida.
Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro (Amazonia colombiana) 435

Jagai y bakaki (¿“mitos”?)


Rafue no consiste en la narración de historias “tradicionales”.
Rafue se distingue de los “mitos” (bakaki, iigai, jagai, jagagi, ikaki)
que sí son narraciones tradicionales, pero no son “palabra de vida”
(komuiyafue) como sí lo es rafue. La principal función de los mitos es
servir de imágenes para ser empleadas en las conjuraciones para hacer
daño; por eso, algunos ancianos, como Kinerai, dicen que los mitos “son
pura brujería”. Los “mitos” son las historias de los seres que fracasaron,
de aquellos que por su comportamiento inmoral quedaron “encantados”
o convertidos en animales.
Es necesaria una aclaración sobre los diversos términos
empleados en Murui para nombrar lo que solemos denominar “mitos”.
Fernando Urbina (2010, p. 17-18, énfasis del autor) escribe: “los hablantes
del dialecto búe y mïka [de la lengua Murui] utilizan la forma bakakï
para referirse a los mitos; los del dialecto nïpode dicen ïïgaï y los del
mïnïka dicen jagaï”; se trataría, según este autor, de palabras sinónimas
en los diversos dialectos. Sin embargo, esto no parece ser exacto. Si
consultamos los diccionarios de los cuatro dialectos, encontramos
que el término “bakaki” (Urbina escribe “ï” para representar la “i”) se
encuentra en todos los dialectos:
■ Minika – “los mitos de la creación” (MINOR; MINOR, 1987,
p. 6).
■ Bue – “leyenda que los ancianos narran de noche en preparación
para una fiesta, historia, mito” (BURTCH, 1983, p. I:31).
■ Nipode – “mitos de la creación” (MINOR; MINOR, 1971, p. 6).
■ Mika – “tradición oral que toca los temas más sagrados de la
cultura” (PREUSS, 1994, p. 802).
El término “iigai” solo aparece en los dialectos Bue – “cuento,
mito” (BURTCH, 1983, p. I:257) – y Mika – “mito” (PREUSS, 1994,
p. 834). Por su parte, el término “jagai” aparece solamente en Minika
– “un cuento antiguo, la fábula” (MINOR; MINOR, 1987, p. 51) – y
Nipode – “los mitos, cuentos antiguos” (GRIFFITHS; COLEMAN;
MORALES, 2000); “cuento, fábula” (MINOR; MINOR, 1971, p. 26).8

8
Vivas Hurtado (2012) y Kuiru Naforo (2019b) emplean el término “jagagi” como
equivalente de “jagai”. Hipólito Candre-Kinerai (2015), Echeverri y Candre-Kinerai
(2008), Anastasia Candre (2011), Miguel Guzmán y Juan Kuiru (GUZMÁN, 2016;
KUIRU NAFORO, 2016) emplean la expresión “ikaki” como un equivalente a “jagai”.
436 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Este conjunto de términos de hecho designa dos tipos de dis-


curso diferente; por una parte, “bakaki”, que es una forma de diálogo
ceremonial ritmado que hace parte del registro ceremonial;9 por otra
parte, los términos “jagai” (Minika, Nipode) y “iikai” (Bue, Mika,
Binika) son equivalentes y se refieren a la narración de historias
mitológicas, que generalmente no tienen lugar en el mambeadero y no
tienen características formales especiales.10
En términos de eventos de habla, el rafue se revela como discursos.
La forma más compleja y formalizada de rafue tiene lugar durante
la preparación y ejecución de los bailes rituales. Allí es donde se va a
emplear el bakaki, “diálogo ceremonial”, que algunos glosan como
“mitos” (cf. MINOR; MINOR, 1971, 1987; BURTCH, 1983; PREUSS,
1994; GRIFFITHS; COLEMAN; MORALES, 2000; URBINA, 2010). En la
ejecución de un bakaki, el hablante produce un discurso – que puede estar
basado en un jagai “mito”, pero que no es una narración – en la que va
nombrando, en oraciones sucintas, espacios naturales, especies, acciones,
personajes… El ritmo de enunciación del bakaki puede ser bastante
rápido, y cada oración va seguida de asentimientos del interlocutor.
Por ejemplo, un bakaki que Benjamín Yépez grabó a finales de los
años 1970 es un diálogo de preparación para sacar sal de monte, la cual
va a ser mezclada con el ambil (pasta de tabaco) de invitación para el

García Rodríguez (2018, p. 71) menciona las “narraciones” como un tipo de discurso
“entre las cuales los igai, los kominaigai, y los jaiagai son los más importantes”;
“igai” (iigai) sería el término general (que como vimos corresponde a los dialectos
Bue y Mika); “jaiagai,” “ancestros”, serían narraciones de personajes prehumanos, y
“kominaigai” (de “komini” “gente humana”), los iigai de la generación humana (cf.
GARCÍA RODRÍGUEZ, 2018, p. 72). García Rodríguez trabajó en La Chorrera, zona
donde predomina el dialecto Minika (que emplea en término “jagai”), pero con un
hombre del clan Ekiraiai, originalmente hablantes del dialecto Binika (un quinto
dialecto del Murui); esto nos indicaría que en ese dialecto se emplea también “iigai”
para las narraciones míticas.
9
Una grabación de un diálogo de bakaki se puede encontrar en Yépez (MÚSICA…,
1981, pista 1, 30s-4min45s). García Rodríguez (2018, p. 71) clasifica el bakaki como
uno de los géneros “ritmados aplanados” (rythmés-aplatis).
10
La colección bilingüe (Mika-alemán, Mika-español) más extensa de narrativas
míticas es la de Preuss (1921, 1923, 1994). Otras publicaciones bilingües son:
Román-Jitdutjaaño (2010), la historia de la coca (Minika); Candre-Kinerai (2015),
la historia de los huérfanos del Sol (Minika); Areiza Serna (2016), Minika; Kuiru
Naforo (2019b), Mika y Minika; Agga Calderón, Wojtylak e Echeverri (2019), Bue.
No tengo información de narrativas Nipode-español. En solo traducción existen
muchas, particularmente las recogidas por Fernando Urbina (JITOMA SAFIAMA;
URBINA, 1973; URBINA, 1982, 2004, 2010; URBINA et al., 2000).
Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro (Amazonia colombiana) 437

baile. Aunque esta grabación está pobremente documentada, sabemos


que fue hecha en la quebrada Isué, en el río Igaraparaná cerca de
la localidad de La Chorrera. El hablante principal es Luciano Martínez,
mayor del clan Jeiai, “chucha”, y el interlocutor es su hijo Víctor
Martínez (recientemente fallecido). Este bakaki es uno de los discursos
que hace parte de la preparación del ritual denominado zikii, “baile de
cacería o guadua”. He transcrito las primeras líneas del diálogo, cuya
grabación puede ser escuchada en Yépez (MÚSICA…, 1981, 20s):11

Ejemplo 3 Luciano Víctor Traducción


[…]
jaa iraimo kue bita ya en la candela lo arrojo
bita arroja
beno izoi jaa iraimo aquí mismo en la candela lo
kue bitaka arrojo
bita arroja
beno yukurio jaa ya el bejuco yukurio lo arrojo en
iraimo kue bitaka la candela
bita arroja
iya die todo lo que existe
die todo
jmm jmm
jmm jmm
jmm jmm
jmm jmm
jmm jmm
jmm jmm
atide lo trae
atide trae

Este bakaki está nombrando especies vegetales (como en este caso


el bejuco yukurio, “bejuco escalera”)12 de sacar sal, como una manera

11
Yépez (1987, p. 200-201) coloca estas “definiciones” de “bakaki” y “rafue” que de
manera muy sencilla identifican claramente el sentido de estos dos términos (“ë”
equivale a “i”): “bakakë es en términos generales la teoría que orienta un trabajo
práctico” y “rafue es el trabajo práctico que se hace acuerdo con el bakakë”.
12
En el jagai de los huérfanos del Sol, yukurio es el bejuco que la madre de los huérfanos
sacudía para anunciarse a su amante Gaimoi (CANDRE-KINERAI, 2015). María
Cecilia López (1989, s. p.) lo relaciona al mismo jagai, pero como el bejuco que los
438 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

de referirse a especies de cacería, que se evita nombrar directamente


porque esas especies representan enfermedades y problemas. El
bakaki está haciendo, en otras palabras, “cacería espiritual”, y al otro
día deberá amanecerse como la cacería de esas plantas-enfermedades
en la forma de material vegetal del monte para extraer sal. Esa sal se
va a mezclar luego con el ambil de invitación para ser enviado a los
aliados ceremoniales, quienes lo harán amanecer en forma de cacería de
animales-enfermedades. Esto es rafue. Y esto es también conjuración.

Conjuraciones (jiira) y consejo (yetarafue)


Toda la palabra del baile (rafue) podría caber bajo la categoría
de jiira, “conjuración”. Sin embargo, el concepto más habitual de jiira se
refiere a los conjuros u oraciones para proteger y curar, para maldecir
y dañar, para ejercer acción mágica sobre las cosas y las personas, en
forma de palabras cantadas (jiika) y sopladas (fuunoga) por medio de
jagiyi, “aliento”. Los jiira son privados. A diferencia de los discursos y
cantos de los rituales que son públicos, la transmisión de los jiira es
personal, entre parientes – por línea masculina y línea femenina. Las
mujeres tienen jiira para los trabajos de la chagra, para que las plantas
nazcan bien y den frutos, para el cuidado de los niños, para la salud
sexual, para el trabajo de alfarería, para la seducción… Los hombres
tienen jiira para la cacería, para procesar la coca, el tabaco y la sal, para
cuidar las enfermedades de las criaturas, para la seducción… Todo
tiene jiira.
Los jiira, en general, no se pronuncian en voz alta, sino que son
silbados sobre un elemento mediador: agua, leche de seno, infusiones
de plantas, ortiga, tabaco – cualquier cosa. El poder está en el jagiyi,
“aliento”, del jiira, no en el elemento mediador. El jiira nombra cualidades
y atributos sensibles de elementos y especies naturales, eventos de los
jagai, “mitos” etc., y se los atribuye al elemento mediador para que estos
atributos pasen al cuerpo del paciente.
La fuerza de una conjuración (jiira) se concibe como jagiyi
(aliento). Es a través de ese aliento que el poder de curación se transmite a
la sustancia mediadora, acompañada del soplo físico. Así explica Kinerai
(ECHEVERRI; CANDRE-KINERAI, 2008, p. 194, 197-198; audio en

huérfanos utilizaron “para subir al cielo a robar el poder del rayo para destruir un
gran mal que en ese tiempo aquejaba a la gente”.
Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro (Amazonia colombiana) 439

CANDRE-KINERAI, 1992a, 6min13s; ver también ECHEVERRI, 2015,


p. 126):

Ejemplo 4
Diona mananaitaja uai jiibina El aliento de hacer enfriar el
mananaitaja jagiyi tabaco y la coca
ja jiirafuena ja ua yiinoga jmm
uno lo recibe como oración
jmm
komekimo en el corazón,
diona jagiyi jiibina jagiyi jmm aliento de tabaco y aliento
jmm de coca.
[…] […]
aki diona Eso quedó
ja finodimie en el corazón
komekimo ja ua del hacedor de tabaco
jiirana ja fiebikaide jmm jii como oración
mananaiya jiira jmm Oración de enfriamiento,
kai komuiya jiira jmm oración de nuestra vida.

Este es un fragmento de la explicación de la conjuración para


curar a una criatura con fiebre. La experiencia de procesar pasta de
tabaco, preparar coca en polvo y extraer sales vegetales, que pasan por
procesos alternativos de calentamiento y enfriamiento, se incorpora al
cuerpo del hacedor de tabaco como aliento. Este aliento es un poder
curativo que se expresa con las palabras de la conjuración. El poder de
las palabras proviene del aliento del curandero, que a su vez proviene
de su experiencia corporal: Geist (no mente).
El siguiente es un ejemplo de un jiira entonado por Kinerai
(ECHEVERRI; CANDRE-KINERAI, 2008, p. 199-205). Este es un jiira
para una criatura que está teniendo inquietud y no duerme bien. El
elemento mediador es un agua con hojitas de la planta medicinal dirima
(Eupatorium triplinerve), una de las “plantas de la madre”, plantas
cultivadas que son empleadas especialmente para curación de niños
pequeños. Este es el texto del jiira, seguido de su transcripción musical
(Figura 7), cuya grabación puede ser escuchada en Candre-Kinerai
(1992c, 2min31s).
440 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Ejemplo 5
Eiño komuiya ikurimo En el seno de la madre
eiño ribei moziñokaiyanona Después de formarse en el útero
En ese momento la madre sostiene
iekoni eiño dirimai ibena
la hoja de dirima
fairibina ibina mozikaide Que flota en el agüita
eiño jaibikiiño jagiyina Aliento de la madre de albahaca
kue mameridoiga Estoy nombrando
eiño riero buinaiño jagiyina Aliento de la madre del rocío fresco
kue mameridoiga Estoy nombrando
bibimo kue mameridoiga En esta agüita estoy nombrando
naimekii jagiyi Aliento de agüita dulce
farekai jagiyina Aliento de caldo de yuca dulce
kue mameridoiga Estoy nombrando
eiño nozeko buinaiño jagiyina Aliento de la madre de nozeko
kue mameridoiga Estoy nombrando
eiño jirueiño jagiyina Aliento de la madre de frescura
kue mameridoiga Estoy nombrando
eiño zuuiyaiño jagiyina Aliento de la madre del alivio
kue mameridoiga Estoy nombrando
eiño nozeko buinaiño jagiyina Aliento de la madre de nozeko
kue mameridoiga Estoy nombrando
Aliento de la madre de
eiño jifaiya buinaiño jagiyina
embriaguez
kue mameridoiga Estoy nombrando
eiño nozeko buinaiño jagiyina Aliento de la madre de nozeko
kue mameridoiga Estoy nombrando
kue zuitaridoiga Estoy soltando
eiño fareka buinaiño jagiyina Aliento de la madre de yuca dulce
kue mameridoiga Estoy nombrando
naimere kue mameridoiga Dulcemente estoy nombrando
eiño mazakaiño jagiyina Aliento de la madre de maní
kue mameridoiga Estoy nombrando
Con el aliento de la madre de
eiño naimekiiño jagiyido
naimeki
kue mameridoiga Estoy nombrando
manai kue fuuridoiga Pacíficamente estoy soplando
manai kue naimeridoiga Pacíficamente estoy endulzando
[fuude] [soplo]
Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro (Amazonia colombiana) 441

Figura 7 – Transcripción musical de “Urue aruizifuenaiya jiira”. Esta transcrip-


ción solo provee un esbozo general del canto y no tiene la intención de ser un
documento etnomusicológico. La escala es mi mayor. El compás es libre y los
valores de las notas son solo aproximados. No se marcan los silencios. Un espacio
mayor entre notas señala la separación de las frases musicales, que corresponden
a las líneas de la transcripción y la traducción. (Agradecemos a Camilo Echeverri,
quien hizo la transcripción de los valores tonales, y a Olga L. Jiménez y Juan D.
Gómez, quienes hicieron la transcripción de los valores de duración.)
de los valores de duración.)

Fuente: Echeverri y Candre-Kɨneraɨ (2008, p. 201-202).


Fuente: Echeverri y Candre-Kinerai (2008, p. 201-202).

Este ejemplo nos permite identificar los elementos característicos de todo jɨɨra. El
movimiento melódico es limitado (ver Figura 7) – pareciéndose en buena medida a la
442 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Este ejemplo nos permite identificar los elementos característicos


de todo jiira. El movimiento melódico es limitado (ver Figura 7)
– pareciéndose en buena medida a la salmodia y al canto llano de la
música gregoriana, géneros también monódicos – y muy diferente a los
ruaki del baile, que tienen mucha más variación melódica. El ritmo es
libre, y las duraciones de las notas solo cambian entre negra y corchea.
Pero es sobre todo el uso del lenguaje lo que es más característico. El
jiira alterna entre nombrar un atributo de la Madre, como “aliento
de”, intercalado con la fórmula kue mameridoiga, “estoy nombrando”
(u otras similares).13 Esta expresión no es del registro cotidiano, sino que
es específica de los jiira. Los nombres de la Madre son también parte
de un conjunto estándar que aparece frecuentemente en los jiira para
niños pequeños (y también para llamar el alma de una persona que
está muriendo): jaibikiiño (madre de albahaca), riero buinaiño (madre
del rocío fresco), nozeko buinaiño (madre de la hierba nozeko), jirueiño
(madre de frescura), zuuiyaiño (madre de alivio), jifaiya buinaiño (madre
de embriaguez), fareka buinaiño (madre de yuca dulce), mazakaiño
(madre de maní), naimekiiño (madre de la hierba naimeki). Aquí se
nombran tres de las seis “plantas de la madre” (jaibiki, nozeko, naimeki)
y dos especies cultivadas que son icónicas del sexo femenino: fareka,
“yuca dulce” (una variedad de yuca brava de donde se obtiene una
bebida ritual), y mazaka (maní, un producto altamente valorado como
pago ritual de mujer).
Un segundo ejemplo de jiira es de Anastasia Candre, hermana
menor de Kinerai. Este ejemplo es notable: el texto evolucionó a partir
de la dedicatoria a su madre en un informe de una beca de investigación
que ganó en el 2007 (la historia completa se encuentra publicada en
ECHEVERRI, 2016). Anastasia murió en 2014. Después de su muerte,
revisando los textos en sus archivos, me di cuenta de que ella tenía
ese texto en lengua Murui, originalmente parte de la dedicatoria, ya
presentado como un poema, titulado “La dulzura”, con 15 estrofas de
cinco versos cada una, y una estructura perfecta de conjuración. Fue
solo entonces que me di cuenta del sentido que tenía esa dedicatoria.
Lo que comenzó como un texto en español dedicando palabras
amorosas para su madre Ofelia, había concluido con una conjuración
de la Madre (con mayúscula). Ahí sí estaba apuntando ella a la raíz

13
El verbo “mame-de” significa “nombrar, representar”; “mame-ri-te” significa “apuntar
(como una escopeta)”, y el verbo “mame-ri-doi-ga” (en forma pasiva) le agrega la
marca de aspecto -doi, que tiene la semántica de “aproximadamente”.
Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro (Amazonia colombiana) 443

y al espíritu de todo el asunto. De ese texto, transcribo aquí las dos


primeras estrofas:

Ejemplo 6 Texto murui Traducción de Anastasia


Eiño fareka buinaiño Madre de yuca dulce
Anaba eiño fareka
Allá abajo madre de la yuca dulce
buinaiño
Komeki farekairena
Corazón plantío de yucal dulce
nayiaina
Kue jizaingodi komeki Hija, su corazón
Ari kaimayitayi Se sentirá con energía
Eiño manaide buinaiño Madre de la frescura
Anaba eiño manaidi
Allá abajo la madre de la frescura
buinaiño
Komeki manaidiire
Corazón, lleno de frescura
nayiaina
Ari kue jizaingodi komeki Arriba, hija mía su corazón
Nimomona ari manaiyitayi De dónde, arriba está la frescura

El lenguaje empleado por Anastasia en este texto se basa en


fórmulas tradicionales empleadas frecuentemente en las conjuraciones.
En los términos empleados para nombrar a la Madre, ella comienza
con fórmulas que son frecuentes (Eiño fareka buinaiño, Eiño manaide
buinaiño, Eiño naimeki buinaiño, Eiño komuiya buinaiño, Eiño jaibiki
buinaiño, Eiño dirima buinaiño, Eiño chapeyi buinaiño, Eiño nozeko
buinaiño, Eiño jirue buinaiño, Eiño zuiriya buinaiño), y luego va
avanzando a términos menos frecuentes (Eiño onaira buinaiño, Eiño
jafira buinaiño, Eiño kaziya buinaiño, Eiño erokaiya buinaiño, Eiño
rainara buinaiño). Parecería como si Anastasia hubiera partido de los
atributos más comunes y convencionales de la Madre, y paulatinamente
hubiera comenzado a buscar nuevos nombres a partir de un proceso
innovador. En este sentido, no se trata de una repetición de fórmulas
tradicionales, sino de una elaboración a partir de ellas, en las cuales
busca formular creativamente su relación con ese espacio espiritual que
está en la base de los rituales y de su relación con los alimentos y con
su madre.
Hay que destacar que el lugar de la enunciación de este texto es
la mamá, no Anastasia. Es la madre quien dice “mi hija”, y a la vez habla
444 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

de una Madre universal que tiene muchos nombres. El texto señala tres
figuras femeninas: (1) la Madre universal que tiene muchos nombres;
(2) la madre de Anastasia que está enunciando la conjuración; y (3) la
hija que sería Anastasia misma. En este sentido, el texto de Anastasia
es totalmente original en el contexto de los jiira, donde, por lo general,
el lugar de la enunciación es el del conjurador que nombra atributos de
entidades naturales o poderes espirituales, y los atribuye a quien está
siendo curado por intermedio de un elemento mediador. Anastasia le
da la voz de la conjuración a su madre, y se coloca ella misma en la
posición de conjurada.
Estos dos ejemplos nos dan una idea de la forma y el contenido
de los jiira. Estos son ejemplos de conjuraciones benéficas. Los jiira más
“fuertes” frecuentemente nombran elementos derivados de eventos y
personajes mitológicos.14
Los jiira no corresponden en efecto al registro ceremonial, aunque
los discursos ceremoniales comparten el mismo carácter performativo
de los jiira – “son oraciones”, como acostumbran a decir los conoce-
dores – y los jiira emplean también un lenguaje especializado y una
estructura formal característica.
Lo que se denomina yetarafue, “palabra de consejo”, en cambio,
no tiene una estructura formal propia y no hace uso de un lenguaje
especializado como en los jiira. En cierta medida, la jiibibiri uai,
“palabra de mambeadero”, y la la palabra de yetarafue son discursos
complementarios. El primero – la palabra de mambeadero – se centra
en el ámbito masculino del mambeadero (que comparte elementos
del registro ceremonial), y el segundo – el yetarafue – se centra en el
ámbito femenino del fogón, los alimentos y el espacio del baño, y se
expresa mayormente en el registro cotidiano de la lengua: irai fue uai,
“palabra al pie del fogón”, io ana uai, “palabra en medio del camino”.
El yetarafue sirve de fuente de imágenes para los jiira, y también los
consejos del yetarafue son reinterpretados y reelaborados en el discurso
más formalizado de la palabra de mambeadero. Por ejemplo, un consejo
del yetarafue dice, “hay que bañarse temprano para que después a usted
no lo vaya a vencer un palo pesado”. En la palabra de mambeadero esta

14
La tesis de Tommaso Fanciotti (2015), la cual trabajó con José Estrella Candre
“Ukudu”, hermano de Anastasia y Kinerai, es un excelente ejemplo de este tipo de
jiira. Ukudu, un hombre que, como su hermano Hipólito, es curandero, le dio a
Fanciotti las bases de componer jiira a partir de los jagai, y a también a partir de los
textos bíblicos.
Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro (Amazonia colombiana) 445

es una imagen para referirse a soportar las críticas de la gente (un palo
pesado que lo puede vencer), y así en el mambeadero se podrá aludir a
esto diciendo simplemente “no se bañó temprano”.15
Así como hay jiira para todo, también hay yetarafue para todo.
Los jiira son para actuar, el yetarafue es para prevenir. Los consejos se
enfocan alrededor del consumo de alimentos, las actitudes corporales y
el baño; los consejos del yetarafue señalan, por medio de admoniciones
muy sencillas en el registro cotidiano, cómo comer, qué hacer y qué no
hacer, cómo hacerlo, siempre dirigidos a formar cuerpos masculinos y
femeninos fértiles y que correspondan a gente verdadera ua komini.
El siguiente es un ejemplo de consejo de yetarafue elaborado en
forma de palabra de mambeadero, de Kinerai (ECHEVERRI; CANDRE-
KINERAI, 2008, p. 70; audio en CANDRE-KINERAI, 1992d, 54s):

Ejemplo 7 O miringo. jmm [Esta es] su hermana.


O iio jmm [Este es] su hermano
dainano. jmm jmm jmm i así se dice.
Ja nii abina Para que ellos vayan
onoikana jaaiyena. jmm jmm aprendiendo a comportarse.
Bie o ii, jmm jmm Esta es su tía,
ii jmm la hija
de la tía es hermana del
jiza o miringo, jmm jmm
joven
ii jiza ringozaniadi o ebuño. la hija de la tía es hermana
jmm jmm de la joven.
Abina onoitioza, jmm jmm Hay que saber comportarse,
no hay que hablar
ebena uuriñeitioza. jmm jmm
necedades.
Ja mei raiyano. jmm jmm jmm
Ya entonces se dice.
jmm
Izo jito jmm El hijo del tío paterno
o aama, jmm jmm es hermano del joven,
la hija del tío paterno es su
izo jiza o miringo. jmm jmm
hermana.
Akie izoikana ja De esta manera
ua yokana uiga. jmm jmm se va avisando.

15
Una muy completa compilación de palabra de consejo entre los Féeneminaa es la de
Londoño Sulkin (1995).
446 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Este es un consejo sobre prevención del incesto, formulado con


gran economía de lenguaje. Al indicar que sus “primos” son “hermanos”
(para hombre y mujer), se está advirtiendo que esos no son parejas
posibles (ver una discusión detallada en ECHEVERRI; CANDRE-
KINERAI, 2008, p. 97-110).

Conclusiones
Un arte verbal se define por criterios prosódicos, retóricos y
sociolingüísticos. En nuestro caso, lo que llamamos prosodia proviene
del jagiyi, “aliento”, que tiene una expresión física – la respiración y el
soplo – y una expresión metafísica – el espíritu y el hálito. Todo procede
del jagiyi. En la transcripción de los textos, recogemos algo de ese ese
aliento, al adoptar las pausas respiratorias como el criterio que define las
líneas del texto. La longitud de las líneas puede servir de indicación de
otro rasgo prosódico, el tempo: líneas cortas, tempo lento; líneas largas,
tempo más rápido.16 La melodía y el ritmo, solo es posible representarlos
mediante una partitura, como en el jiira del ejemplo 5 (cf. Figura 7).
Los tres géneros oratorios de la retórica clásica – el deliberativo
(exhortar y disuadir), el judicial (acusar y defender) y el demostrativo
o epidíctico (alabar y denostar) (ARISTOTLE, 1886) – no parecen
corresponder a ninguno de los discursos que hemos discutido arriba.17
Lo que podemos llamar retórica es de otro orden, siguiendo a Dell
Hymes (1965, 1977, 1981), como la ocurrencia de partículas y fórmulas
lingüísticas que permiten reconocer una estructura narrativa: una
retórica. Hymes lo estudió principalmente en narrativas míticas, pero
podemos perfectamente extender esta aproximación a los otros géneros
que hemos discutido. El jiira, por ejemplo, se reconoce por el uso de
fórmulas y ciertos morfemas verbales. La estructura de un jiira está
dada por líneas que nombran un atributo de entidades de cualquier
tipo (como en los ejemplos 4 y 5, los nombres y atributos de la Madre),
frecuentemente marcados por un fenómeno de paralelismo – como

16
Esto es válido cuando se trata de comparar diferentes textos del mismo género de
un mismo hablante. Los ejemplos que hemos presentado (cf. los audios) son de tres
hablantes: Hipólito Candre (quien habla con un tempo muy lento), Oscar Román
(quien habla en un tempo normal) y Luciano y Víctor Martínez (quienes hablan en
un tempo muy rápido).
17
Jorge Gasché (2003) demuestra esto brillantemente en su manuscrito inédito “Pas de
rhétorique sans musique”.
Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro (Amazonia colombiana) 447

en los ejemplos, la presencia del término jagiyi, “aliento” (es decir todos
los atributos son marcados como “aliento de”) –, y una línea con un
verbo de acción (nombrar, soplar, endulzar, sostener), frecuentemente
marcada con un morfema de aspecto (-doi, en el ejemplo 4, -yi, en el
ejemplo 5), que los distancia del registro cotidiano. El bakaki, el yorai
y el zomarafue, todos ellos del registro ceremonial, tienen conjuntos
de fórmulas bien definidas y reconocibles y patrones constantes de
paralelismo. En el bakaki que presentamos en el ejemplo 3, tenemos unas
líneas que hablan de sacar y quemar una planta específica, empleando
fórmulas como iraimo kue bita/bita (“lo arrojo en la candela”/“arroja”) y
terminando con atide/atide (“lo trae”/“trae”); este mismo esquema, con
ligeras variaciones, se va a seguir empleando para cada una de un gran
conjunto de plantas (esto es lo que llamamos paralelismo). Lo mismo
puede decirse del yorai y el zomarafue.18 La palabra de mambeadero
(jiibibiri uai), de la cual el libro Cool tobacco, sweet coca (CANDRE-
KINERAI; ECHEVERRI, 1996) es un buen ejemplo, tiene su estructura
retórica como allí lo demostramos abundantemente. El yetarafue se
acerca al habla cotidiana, pero también tiene una estructura retórica,
combinando una advertencia (en la forma de evitar algo o hacer algo de
cierta manera, por ejemplo “hay que bañarse temprano en la mañana”)
y su posible consecuencia (“para que después un palo pesado no
lo venza”).
En criterios sociolingüísticos, los géneros que hemos discutido
se organizan en términos de los dos registros ceremoniales que
corresponden a situaciones sociolingüísticas contrastantes: la cele-
bración de los rituales, en los cuales participan unidades residenciales
diversas, donde se despliega el registro ceremonial, y el espacio de la vida
cotidiana en el contexto de una unidad residencial, donde tiene lugar el
registro cotidiano de la lengua. Una situación sociolingüística adicional
que comparte de ambos ámbitos es el jiibibiri, “mambeadero”, que tiene
lugar de manera cotidiana en el ámbito de una unidad residencial,
pero adopta – en medida variable – la prosodia y retórica del registro
ceremonial (como en el ejemplo 7).
Todos los ruaki, “cantos”, corresponden al ritual, pero se
pueden distinguir al menos tres tipos, de acuerdo a la situación y a los

18
De yorai no tenemos registros grabados y transcritos; en diciembre de 2019, sin
embargo, tuvimos la oportunidad de escuchar un yorai de invitación a un ritual de
zikii en Leticia. Del zomarafue, puede escucharse un registro obtenido por Benjamín
Yépez (1981, 3min50s) en La Chorrera en los años 1970.
448 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

participantes: los fakariya, entonados por un solo hombre, concomi-


tantes con la ejecución del ritual; los buiñua, entonados en pareja
(hombre y mujer), previo al ritual, en una celebración de los nakoyai,
“grupo de ayudantes de los dueños” (su parentela y sus afines reales);
y los ruaki, “cantos propios”, que son entonados y danzados en grupo y
constituyen el elemento central el ritual.
Lo anterior nos permite sintetizar todo lo dicho en un esquema
provisional organizado, en el eje horizontal, por los dos registros de habla
principales – ceremonial y cotidiano – y en medio, el mambeadero; y
en el eje vertical, por cuatro series de géneros, que van desde los más
sencillos a los más complejos formalmente.
Cuadro 1 – Esquema provisional de los tipos de discurso del arte verbal murui

Registro ceremonial Registro cotidiano


(naguiraiko, “maloca”) (jiibibiri, “mambeadero”) (irai fue, “hogar”)
jiibibiri uai, “palabra de mambeadero” yetarafue, “consejo”
bakaki, “diálogo
jagai, “narraciones mitológicas”
ceremonial”
zomarafue, “bendición”
yorai, “invitación de jiira, “conjuraciones”
ambil”
fakariya (individual) initaja rua, “arrullos”
buiñua (pareja)
juido rua, “seducción”
ruaki (grupo)
Fuente: Elaborado por el autor (2022).

El mambeadero de hogar y el mambeadero de maloca


(naguiraiko)19 comparten la jiibibiri uai, “palabra de mambeadero”, la
cual despliega formas reelaboradas del yetarafue que se imparte en el
hogar. Por otra parte, el jagai y el jiira pertenecen al ámbito del hogar
y el mambeadero, y contrastan con el bakaki, zomarafue y yorai de
los rituales. El zomarafue tiene estructura de jiira, pero tiene lugar en
forma pública, mientras que los jiira son privados. El bakaki es la forma
ritualizada de contar – o de referirse a – los jagai “mitos”.

19
Empleamos aquí a expresión “naguiraiko”, “casa de cuatro estantillos”, para referirnos
a “la maloca”, en lugar del término “ananeko”, “casa en el suelo”, que es usado
comunmente, por indicación del sabedor Oscar Román-Jitdutjaaño “Enokakuiodo”.
Una aproximación al arte verbal de la Gente de Centro (Amazonia colombiana) 449

Los cantos pertenecen al ámbito ritual, pero el mambeadero es


también el espacio donde se transmiten y se practican. En contraste, en
el ámbito del hogar, las formas de canto son menos visibles, aparte de los
cantos de arrullo (initaja rua) y los cantos de seducción que se ejecutan
con las ocarinas juido (obtenidas de las semillas del fruto de Pouteria
ucuqui, “yugo”).
El término rafue, al que dedicamos toda una sección, no aparece
en este esquema. Rafue está más allá, porque rafue no consiste en
un discurso, en las palabras, sino en la culminación en la obra. Sin
embargo, si rafue es entendido como el ritual y su discurso ceremonial,
las celdas sombreadas en gris lo representarían más claramente, como
komuiyafue, “palabra de vida”. El jagai y el jiira, que están en las celdas
no sombreadas, son géneros que pueden ser empleados para acción
mágica agresiva o individualista – por algo Kinerai decía que los jagai
“son pura brujería”.
Para concluir, quiero traer a cuento el último libro de Selnich Vivas
Hurtado (2019, p. 25), en el cual él representa la cultura verbal murui
como una kleine Literatur, “literatura pequeña”, una expresión de Franz
Kafka. Son literaturas “pequeñas” no porque sean menos importantes,
sino porque tienen pocas obras publicadas y un ámbito más restringido
de circulación, pero son inmensamente ricas en recursos y plantean otra
organización del espacio discursivo, como lo demuestra el arte verbal de
los pueblos del centro.

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GESTOs da Jean: jeangando
por um texto em processo, com
muitas mãos, memórias,
flechas e pegadas

Evelyn Schuler Zea


John Dawsey
Luciana Hartmann
Paulo Raposo
Scott Head
Vânia Zikán Cardoso
Viviane Vedana
Transcrição: Emily Wanzeller da Silva1

Este texto é como um palimpsesto que foi escrito para a Jean a


partir de vários lugares, vários momentos, várias inspirações – muitas
destas foram se sobrepondo, mas deixaram rastros. Talvez pudéssemos
pensar nele como um brinde a ela, por meio de pequenas e grandes
coisas que nos tocam, ecos de nossos encontros. Fizemos uma reunião
virtual para falar sobre o que e como escreveríamos sobre a Jean e o
Grupo de Estudos em Oralidade e Performance (GESTO), ligado ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC), sobre estarmos juntas(os)
nesses muitos gestos que reverberaram a partir da atuação dela. Nada
parecia mais distante da comensalidade dos vários encontros na casa da
Jean do que um encontro virtual, mas era o que a pandemia nos permitia
no momento. A comensalidade da comida e da bebida era ali substituída
pela palavra trocada, pelas histórias contadas – depois pensamos que
talvez ela também tivesse se divertido conosco no encontro. Trocar
histórias, afinal, tem tudo a ver com a antropologia que a Jean faz!

1
Mantemos o crédito da excelente transcrição da Emily, ainda que devêssemos
mesmo chamar esta carta de “reescrita” – mas essa discussão fica como rodapé para
outro texto!
GESTOs da Jean 457

O GESTO foi criado pela Jean e pela Luciana em 2005, trazendo


ao longo do tempo outras pessoas, e, passados mais de 15 anos, pensa-
mos no que fazemos agora como desdobramentos de coisas que a Jean
lançou – John falava desses desdobramentos como flechas lançadas por
ela. O grupo tem uma vida que se espraia nessas relações com o John
em São Paulo, com o Paulo em Portugal, com a Luciana em Brasília,
com muitos colegas pelo mundo afora que um dia foram alunos do
grupo, com Evelyn, Scott, Vânia, Viviane – e Jean – em Florianópolis,
juntos com uma nova geração de alunos. Estamos todas a jeangar
– imagem que Scott ofereceu, da capoeira, para esse movimento de
articulação e de criação que se desdobra desde as perguntas e as escutas,
das provocações de Jean à antropologia que fazemos.
Depois de duas horas de conversa, ficou a questão de como
transcrever nosso encontro. Paulo e John tinham curtos textos já
escritos, todas tínhamos intermináveis histórias. Como conectar as
flechas, como fazer do texto uma palavragesto (uma das imagens
trazidas pelo Paulo)? Scott relembra que a transcrição é sempre uma
questão para a performance. Decidimos então assumir a oralidade
que emerge de nossa conversa virtual, jeangando entre a transcrição
(quase) literal desta, os textos produzidos pelos colegas e suas diversas
temporalidades. Tomamos assim a transcrição da nossa conversa sobre
um texto coletivo ainda a ser composto e a transformamos no próprio
corpo do nosso texto.

Abrem-se as telas. Estão ouvindo?


Vânia Cardoso: Obrigada por estarem aqui para esta conversa.
Eu vou começar recuperando como a gente chegou aqui. Há um
livro sendo organizado em homenagem a Jean. Convidaram a gente
para escrever um capítulo. Depois de várias conversas, pensamos em
escrever algo coletivo, a muitas mãos, falando do GESTO, por isso esta
brincadeira: os gestos da Jean. O grupo fez 15 anos este ano [2020].
Conseguimos ver o que fazemos hoje em dia como desdobramentos de
coisas que a Jean lançou. E pensamos que isso é algo muito característico
da Jean, essa generosidade na articulação entre as pessoas. E a partir
disso as pessoas desenvolvem as suas próprias relações, às vezes até à
revelia dela [risos]. Não são necessariamente apresentados pela Jean,
mas com encontros viabilizados por ela. Não se trata de “linhagem”
– essa coisa que as pessoas adoram fazer, falar das linhagens e das
458 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

possessões das suas crias. Então, era um pouco disso que a gente queria
conversar, pensar com vocês.
Luciana Hartmann: Antes de criarmos o GESTO, eu e a Jean
fizemos uma pesquisa sobre a antropologia da performance no Brasil,
e ela observava que esse campo se constituía a partir, basicamente, dos
eventos, de práticas etnográficas, da observação de uma festa, de um
ritual, o que é fundamental, mas que não havia muito debate teórico.
Ela se ressentia um pouco dessa falta de discussão mais teórica e
metodológica, inclusive, que enriquecesse a análise do que era observa-
do. Era muito etnográfico, descreviam-se o movimento, o gesto, o corpo,
o som – o que, claro, sabemos, tem seu mérito –, mas eu acho que no
GESTO nós de alguma forma avançamos nessa discussão. Então me
parece que hoje em dia nossas pesquisas já não têm mais essa coisa: “Ah,
vamos olhar para um evento de performance”. São muito mais amplas, é o
que temos chamado de antropologias em performance – inclusive é esse
o título que vem sendo dado aos seminários que organizamos, de três
em três anos, desde 2008.
Então, queridos, começando... Se eu não me engano, o John me
corrija se estiver errada, eu acho que você conheceu a Jean na minha
banca de doutorado, não foi, John?
John Dawsey: Em 2004, não é? Exatamente, foi na sua banca.
Luciana: Porque eu tinha te assistido em uma banca, do Gustavo
Blasques, no Museu Nacional. E aí eu pensei: “Nossa, que cara bacana!
Quero ele na minha banca”. Você veio para minha banca, e, enfim, vocês
se conheceram. Depois a Jean esteve na sua banca de livre docência, eu
acho que tem uns cruzamentos aí. E o Paulo também participou dos
eventos do NAPEDRA,2 do pessoal do GESTO com o NAPEDRA. Uma
coisa que eu estava falando, que eu acho bem bacana nessa rede que nós
temos, é que eu não vejo muita disputa no campo de antropologia da
performance no Brasil, eu vejo alianças. A gente se junta, se alia. E eu
acho que a Jean contribui muito nessa relação de não competitividade.
Eu acho isso bonito. E por isso pensamos em fazer um texto coletivo,
a muitas mãos, muitas vozes, a partir desta conversa com vocês e com
Viviane, Evelyn e Scott. Todo mundo comentando um pouco dessa
presença da Jean, menos como a nossa maga mestra e muito mais como
essa pessoa que impulsiona, que empurra a gente às vezes pro abismo, e

2
O NAPEDRA é o Núcleo de Performance e Drama ligado ao Departamento de
Antropologia da Universidade de São Paulo (USP).
GESTOs da Jean 459

você vai e descobre que pode voar. A Vânia sugeriu de a gente perguntar
qual é a primeira lembrança que vocês têm da Jean.
John: Vou aproveitar então. Luciana lembrou, e eu pensei: “Foi
mesmo, a banca da Luciana, em 2004”. No NAPEDRA, a gente estava
conversando, discutindo, tinha surgido esse interesse por antropologia
da performance. Então reunimos um grupo e já sabíamos da Jean, mas
ainda não tínhamos feito contato. A Luciana convidou para essa banca,
e foi o primeiro contato. Foi muito legal, foi uma defesa muito bonita.
Daí no ano seguinte teve a defesa do Rubens,3 que era meu orientando;
a Jean participou, e fomos nos entrosando. A partir disso, fomos
organizando juntos alguns GTs na ANPOCS [Grupos de Trabalho
da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências
Sociais], a gente foi conhecendo... Acho que a Vânia apresentou em um
desses GTs, depois o Scott, adiante o Paulo, e depois houve os eventos
de vocês.4 Participei da banca da Viviane também, conheci a Evelyn nos
eventos que vocês organizaram. Eu sentia muito isso, essa relação entre
o NAPEDRA e o GESTO. Também teve aqueles eventos que o Paulo
organizou em Lisboa,5 aquilo foi dando força e foi criando uma energia
muito legal, gostosa. Essa energia realmente tem muito a ver com a
Jean, o jeito dela, a simplicidade dela, pequenos gestos. Eu lembro uma
vez, no NAPEDRA, a gente convidou a Jean. Era 2006, o NAPEDRA
organizou um evento especial: uma apresentação da Jean sobre
performances narrativas. Chamou a atenção o brilho nos seus olhos ao
falar de viagens pelo rio Putumayo e de pesquisas com os Siona. As suas
palavras eram precisas e certeiras como flechas de Oxóssi, imaginei.
Após a palestra, houve um tempo para perguntas. E o evento realmente
se tornou especial. Impressionante a capacidade de escuta da Jean. Ela
mesma fazia as perguntas querendo conhecer as pesquisas das pessoas
presentes. Assim como fazia com ameríndios Siona, agia com colegas
do NAPEDRA: ouvia as suas histórias. Num gesto de escuta, produzia
conhecimento. E iluminava. Foi muito legal a simplicidade dela falando.
E essa coisa do “gesto”, eu senti as palavras muito precisas. Eu gostava
muito de olhar esse brilho nos olhos da Jean, que de vez em quando

3
“Performance congadeira e a atualização das tradições afro-brasileiras em Minas
Gerais” (SILVA, 2005).
4
O “Colóquio Antropologias em Performance”, realizado em 2009, 2012, 2015 e 2018,
e o quinto, que esperamos realizar em 2021, na UFSC.
5
Boa parte das produções bibliográficas e dos eventos citados no texto consta do artigo
publicado recentemente por Luciana e Jean (HARTMANN; LANGDON, 2020).
460 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

você vê, tem um senso de aventura. Eu via quando ela falava dos Siona,
compartilhando a experiência dela. Me parece que ela gosta do silêncio,
mas valoriza a palavra e principalmente a audição. Essa capacidade de
dialogar partindo do que cada um estava falando, então ela ajudou muito
os colegas do NAPEDRA também, e não só os do GESTO. Realmente,
nos momentos em que estivemos presentes, tem muitas recordações,
pequenos gestos realmente de que poderia lembrar.
Paulo Raposo: Vou falar um pouco também. Eu recebi esse
convite pensando que nós já iríamos partir para a construção do texto.
Então eu já escrevi um texto. Eu estava pensando justamente nessa ideia
do encontro, do encontro com a Jean. E do que é o encontro, que foi
mais do que transmissão de conhecimento ou de aprendizagens. É isso
também, mas é sobretudo uma coisa que para mim foi muito impor-
tante: autonomia, ou essa palavra estúpida do presente, “empodera-
mento”. Foi ganhar algum poder e crescer. E vocês podem achar isso
tudo muito estranho, porque eu já sou velhinho, tenho cabelo branco
e tal [risos], mas não sou tão velho assim. A Jean apareceu na minha
vida em um momento em que, academicamente, eu estava verde,
absolutamente verde. Ela entrou assim, de repente, sem se impor – nunca
se impôs, nunca houve nenhuma relação de poder. Aliás, fui eu sempre
que convidei. A primeira vez que eu vi a Jean foi aqui em um corredor
do ISCTE.6 Eu estava em trabalho de campo para o meu doutorado.
Eu acabei o meu doutorado em 2003, e em 2001 ela estava aqui como
professora visitante, em um pós-doc. Então eu vejo ela no corredor, e
havia uma amiga em comum nossa, que é Maria Manuel Quintela. Ela
trabalhava sobre águas termais e questões de saúde, e trabalhou com a
Jean em uma altura prévia. A Maria Manuel disse-me assim: “Paulo, tem
aqui uma amiga do Brasil, e ela tá com essas coisas também do Estudo
da Performance, ela está aborrecida. Vai atrás dela, pelo amor de Deus”.
E eu já era conhecido como uma boa companhia, basicamente [risos].
Então eu fui, e o primeiro impacto que eu tive dela foi: achei que era
uma mulher muito alta. Eu não sei, hoje estava pensando, eu tenho
ideia de que a Jean é altíssima: uma mulher esguia e alta. E perdida no
corredor do ISCTE. Eu fui ter com ela. Fomos tomar um café, nada
de especial, uma conversa banal. Nós ficamos combinados para um
jantar na casa da Maria Manuel. Então foi o vinho que selou o nosso

6
ISCTE, ou Instituto Universitário de Lisboa, ao qual estão vinculados Paulo Raposo
e Felipe Reis.
GESTOs da Jean 461

encontro. E ficamos em uma conversa longa. De repente, para mim, foi


um empoderamento, porque foi o primeiro diálogo que eu tive sobre
performance. Eu não tinha diálogos em Portugal sobre performance,
nem narrativas, quanto mais... De repente, eu falava nomes de autores
que ela reconhecia imediatamente, ela falava outros. Tudo aquilo passou
a ser uma floresta de encantos, de muitas árvores que a gente conhecia.
Foi daí que surgiu meu texto. Pensei em juntar isso no que eu chamei
de palavragesto. Tudo junto: palavragesto. Porque tem muito a ver com
o GESTO, o grupo vosso. É um grupo em que o gesto e a palavra são
absolutamente fundidos, importantes. O trabalho da Jean nesse sentido
é, como sabem, absolutamente central. Palavragesto porque eu queria
falar de cada ciclo de encontros – eu isolei três ciclos de encontros com
a Jean. E no primeiro ciclo eu quis lhe dar uma palavragesto particular,
eu dei-lhe a palavragesto “árvore”. Utilizei a palavragesto do yoga. Fala
sobre o enraizamento, o equilíbrio, o foco, a concentração. Isso foi vital
para mim, precisamente na questão da tese, da banca. Esse primeiro
encontro é o encontro da banca e os primeiros encontros com ela.
As trocas da floresta de livros, de autores da performance. Era uma
árvore que eu podia agarrar. A segunda gestopalavra que eu tenho é
“ginga”. A ginga porque foi o resultado daquilo que foi o desafio que
ela me fez ao convidar-me para o Brasil em 2009 – coisa que mudou
radicalmente a minha vida, como pessoa, como investigador, como
tudo. E onde eu vos conheci a todos. Eu vos conheço porque conheci
a Jean e porque a Jean me convidou a vir dar um curso com ela na
UFSC. Nesses três meses que estive com o Filipe Reis, eu viajei o
Brasil todo. Conheci mais gente no Rio, o Zeca Ligiéro, a Maria Laura
Cavalcanti, a Renata Gonçalves, o Nilton Santos e o Daniel Bitter,
depois em Manaus a Deise Lucy Montardo. E o pessoal do NAPEDRA
em São Paulo, claro. Conheci todo mundo que acabei por trazer para
Portugal naquele evento de que o John e a Vânia estavam falando,
o “No Performance’s Land”, que aconteceu em 2011. A ginga tem a
ver com isso. No texto tem outra coisa, não é só a malandragem, é
também esse jogo híbrido entre a arte e a antropologia. Esse espaço
do movimento que é escondido, mas não é, que é desafio, é luta, é
dança. Então todo esse movimento é também o meu movimento, foi o
meu movimento de crescimento. Eu desafiar-me, eu procurar raízes,
diálogos, essas coisas. E o último ciclo é que eu chamo “o ato imóvel”,
baseado no André Lepecki. Lembram-se daquela história do cara na
Praça Taksim, na Turquia, que ficou parado, e a polícia não sabia o que
462 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

fazer com ele?7 A manifestação dele era ficar parado. Tinha havido
muita pancada nos manifestantes por causa daquele parque que ia ser
transformado, no processo de gentrificação da cidade. O cara ficou
parado, e aquilo impulsionou uma série de pessoas a se imobilizarem
pelo mundo afora da mesma maneira. Tem também os die-in, quando
o pessoal se deita, como mortos – há inúmeras performances. Essa
questão da dança, da imobilidade, do ato imóvel, da dança exausta...
Pego isso para falar que para mim a Jean é presença invisível, legado.
É o mesmo microgesto, o mesmo micromovimento que o ato imóvel
tem. O ato imóvel é o ato que parece que não está se mexendo,
mas está: há respiração, há circulação sanguínea, há movimentos
corporais. O cara tá parado, mas na verdade há movimento, há vida.
O Lepecki fala de essa coisa ser contra... no debate da dança moderna...
ser contra a circulação do capitalismo. Então eu imagino aqui esse
movimento imóvel da Jean, que ela ocupa em nós todos, não como
um lugar teórico, como vocês falavam no início. Isso não tem interesse
nenhum, nem é isso que é importante, mas ela ter deixado coisas.
E uma das coisas que ela deixou, Scott, foi tu e o Alan8 naquele ciclo
de cinema que eu organizei em 2018/2019, o “Cidades Rebeldes”,9
lembras? Tu e o Alan estavam como debatedores, e a Jean, no público.
Então é como se tivesse o fio ao contrário: ela na minha banca, depois
ela me convidando, e finalmente ela no público, assistindo ao filho,
com os legados, com o Scott, que é uma ligação da Jean com o GESTO
e com o Departamento de Antropologia. Foi essa a brincadeira que eu
procurei fazer, esses três gestos, e de alguma forma falar de três ciclos
dos meus encontros com a Jean. Eu disse para a Vânia: “Cara, vou
fazer uma coisa muito afetiva, muito de aguçar o pieguinhas” [risos].

7
Erdem Günduz, em 17 de junho de 2013, permaneceu parado por horas, em silêncio,
na Praça Taskim, um gesto em contraponto à violenta repressão do governo de Recep
Tayyip Erdogan aos protestos no Parque Gezi.
8
Alan Langdon, filho de Jean. Alguns de seus trabalhos audiovisuais podem ser
visualizados em seu canal na plataforma Vimeo. Disponível em: https://vimeo.com/
alanlangdon. Acesso em: 8 jul. 2022.
9
“Ciclo de Cinema Cidades Rebeldes”, do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da UFSC. Disponível em: https://www.facebook.com/pages/
category/Community/Cidades-Rebeldes-Ciclo-de-Cinema-863396083831571/.
Acesso em: 8 jul. 2022.
GESTOs da Jean 463

Os gestos da Jean
Paulo Raposo

O meu encontro com Jean se fez numa junção de gestos e de


palavras. Mistura, afinal, de que ela tanto gosta e explora nos
seus textos e reflexões e que são a agenda científica deste coletivo
– o GESTO.
Seu percurso no campo dos Estudos da Performance e da narrativa
abriu-se a partir dessa confluência entre gestualidade e palavras;
seus protagonistas foram também personalidades relevantes para
a carreira e para o fluxo de pensamento de Jean – John Austin,
Richard Bauman ou Charles Briggs, entre muitos outros. E esse
fluxo chegou a mim lá pela virada do século. Meu primeiro ciclo
de encontros se deu lá atrás, pouco depois da virada do milénio,
algures em 2001 ou 2002. Eu estava finalizando minha pesquisa
de doutoramento, e nossos caminhos se cruzaram por conta de
uma amiga em comum e porque Jean estava lecionando uma
disciplina na nossa universidade – antropologia da saúde e da
doença –, no âmbito de uma estadia de pós-doutoramento em
Lisboa. Recordo, nesses encontros que tivemos – ora em jantares
de conversa fiada, ora em trocas de conversas nos corredores –,
especialmente dois momentos: um primeiro, bem animado, em
que ela me acompanhou num dos espetáculos-performances que
eu estava analisando para o doutorado (Bonecos ou Marionetas
de Santo Aleixo); e um segundo, bastante inquietante mas curioso,
em que ela se perguntava por que seus alunos portugueses eram tão
positivistas e racionais sempre que se falava de transe, xamanismo
e alterações de consciência, procurando sempre saber se “aquilo” era
verdadeiro ou “teatro”. O primeiro momento acabou por conduzir
Jean à minha banca de doutorado como principal arguente, o
que me deixou muito confortável e tranquilo na época, porque
eu estava sem grandes interlocutores na academia portuguesa
no que dizia respeito aos Estudos da Performance. O segundo
momento permitiu-me perceber como a prática antropológica
pode (ou não) dinamitar mentalidades, abalar estruturas de
pensamento instaladas, criar fissuras no pensamento hegemônico e
dominante. E, de certa forma, Jean surgia como que um “trickster”
turneriano perturbador nesse jogo entre as convicções racionais e
morais dos meus estudantes e as etnografias das “florestas”, dos
lugares sombrios, das sombras, das trevas. Jean, tal como os seus
xamãs Siona, parecia trazer para a velha urbe colonial imperial
o imaginário liminal da floresta. Jean era, por assim dizer,
uma árvore.
464 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Mas era também essa árvore num outro sentido. Na floresta


imensa de referências em que eu andava vivendo/lendo nos
Estudos da Performance, nos estudos teatrais, na antropologia do
corpo e do ritual... ufff... uma floresta imensa e desconcertante, ali
no meio da floresta eis que me deparo com uma árvore que me
olha e escuta – uma interlocutora. Essa foi, portanto, a primeira
palavragesto (como as palavrasimagens de Paulo Freire, que neste
momento povoam a tese de um orientando meu – brasileiro – em
Lisboa, sobre outras florestas tropicais, africanas, sãotomenses)
que se formou no meu imaginário sobre a Jean. E é talvez a forma
como a recordo hoje.

#palavragesto1 – A árvore

A árvore, na arte corporal espiritual do yoga, significa o poder do


enraizamento, a capacidade de equilíbrio, o foco e a concentração.
E, tal como as árvores ao sabor da brisa ondulam e se agitam sem
se desenraizarem, Jean surgiu (não apenas por ser uma mulher alta
e esguia), mas esse gesto de corpo, um equilibrado balanço que eu
precisava no meu percurso inicial de formação como antropólogo,
no meu contacto com o mundo da antropologia da performance.
Uma árvore com suas raízes longamente distendidas, oriundas
de uma distante região norte-americana e firmadas na ponta sul
desse continente, que atravessando o oceano me contaminou e
me fez mais tarde atravessar esse mesmo oceano. Mas essa será a
palavragesto seguinte.

Por volta de 2009, depois de sucessivos desafios, Jean me convidou


a atravessar o oceano para oferecer junto com ela um curso na
UFSC, para os estudantes da pós-graduação em antropologia.
O curso se chamou “Antropologia e performance”. E foi claramen-
te o momento de empoderamento, crescimento e autonomia no meu
percurso acadêmico, como pesquisador e como pessoa. Vencendo
a zona de conforto que era o reduto europeu (e em particular o
meu país), decidi, a seu impulso, me envolver na aventura mais
prazerosa e frutuosa que minha vida profissional alguma vez
me deu. Encontrar o Brasil, e aqui sim “descobrir” se aplica com
propriedade e sem dolo, descobri-lo para ser totalmente afetado
por ele. Minha vida acadêmica e meu diálogo na antropologia não
mais deixaram cessar – com os colegas, as colegas, os alunos e as
alunas – as partilhas com pessoas desse verdadeiro Novo Mundo
para mim. E tantas metáforas coloniais me levam obviamente a
pensar numa outra palavragesto que poderá desenhar um pouco
do que esse segundo ciclo de encontros significou para mim.
GESTOs da Jean 465

#palavragesto2 – A ginga

A ginga é o movimento básico da capoeira, arte corporal de


resistência e de expressão, de raízes africanas, associada ao
processo de escravização colonial decorrente do movimento forçado
de pessoas do continente africano para a Europa – e, neste caso
concreto, para as Américas. A ginga é frequentemente associada ao
movimento que as pessoas escravizadas configuravam subtilmente
e clandestinamente como um gesto de resistência, de afirmação e
de luta, matizado assim pelo componente de “dança” que compõe
essa gestualidade na capoeira. Esse movimento subterrâneo, mas
que se tornou indelével, para sublinhar o enfrentamento de um
desafio enorme que se colocou, tornou-se em mim um modo
de existência, um continuado retorno, uma partilha renovada
constantemente que me liga hoje de forma intensa ao Brasil e aos
colegas e às colegas – que viraram amigos e amigas – num afeto de
ideias, projetos e colaborações.
Mas é comum esconder na ginga também a malandragem do
capoeirista para enganar o seu adversário. Essa é talvez uma outra
das componentes artísticas e políticas curiosas desse movimento
e da capoeira em si. E essa revelação da sua classificação como
gênero performativo híbrido, entre a luta, o jogo e a dança, me leva
a propor uma analogia com um outro impacto que ocorreu nesse
segundo ciclo de encontro com Jean. Resultado da minha estadia
no Brasil, em 2009, onde pude conhecer e viajar de lés a lés nesse
“continente”, somei dezenas de contactos com colegas que foram
afinal somando-se numa rede de antropólogos, artistas, ativistas
ligados em algum momento pelo mundo da performance. E isso me
motivou a devolver o convite a todos e todas, no ano de 2011, para
um encontro – o primeiro, aliás, em Portugal – de antropologia
da performance, congregando antropólogos e antropólogas em
diálogo com artistas e com apresentações performativas. O en-
contro jogava justamente como a malandragem da capoeira, com
a dimensão liminar da performance no campo artístico e com o
estatuto híbrido da antropologia da performance na academia, e
recebeu o título interrogativo de “No Performance’s Land?”, que nos
levava a pensar em múltiplas outras interrogações: em que medida
existiria ou não espaço para a antropologia da performance e para
a performance-arte? De que forma esse espaço seria uma ocupação
de uma terra de ninguém? Um lugar onde as regras, os critérios e
os diálogos seriam baseados na liminaridade dos seus territórios.

Esse momento de partilha entre todos e todas nós estava ancorado,


afinal, percebo hoje claramente, no impulso inicial que Jean
466 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

me deu para atravessar o oceano, na rede de colegas que me foi


apresentando, muitos e muitas aqui presentes neste webinar,
e que culminou na cereja em cima do bolo, como se costuma
dizer: na publicação em livro das comunicações e das reflexões de
acadêmicos e artistas presentes no evento, pela editora universitária
EdUFSC, com o apoio decisivo do Instituto Brasil Plural, que a
Jean dirigia na época. O título do livro acabou virando uma ginga
mandigueira também (mas isso é uma piada entre mim e Vânia,
que não vou aqui revelar, como impõe a regra do segredo em tantos
rituais) e resultou se chamar A terra do não-lugar: diálogos entre
antropologia e performance, com organização de John Dawsey,
Teresa Fradique, eu próprio e a inestimável colaboração da Vânia
Cardoso em todo o processo negocial editorial, de traduções e de
revisões. Nesse segundo ciclo de encontros e cruzamentos com Jean,
ressalta-se por fim uma certa maturidade reflexiva das margens
da antropologia, maturidade reflexiva que encontro na capoeira
enquanto prática corporal nas margens da dança e da resistência,
como imagens-espelho nesse jogo metafórico de comparações
entre palavrasgesto.

#palavragesto3 – Ato imóvel

Chego, por fim, ao último ciclo de encontros nesta viagem entre


afetos, biografias e percursos acadêmicos. Esse é o ciclo que eu
imagino associado aos legados e a certas invisibilidades perenes.
Em meados de 2017, Vânia me informa que vai abrir concurso para
professor visitante na UFSC, no departamento de antropologia,
e me desafia a concorrer. Eu sou apanhado de surpresa e
espanto, e minha primeira reação é: “Mas eu não vou conseguir
nunca esse lugar”. Mas decido aceitar o desafio. Acabei ficando
e vivendo por um ano em Floripa – de agosto de 2017 a agosto
de 2018 – para participar na atividade letiva do departamento,
em dois cursos. No âmbito de um deles, organizei um ciclo de
cinema com rodas de fala chamado “Cidades Rebeldes”. E esse
ciclo teve justamente numa das sessões iniciais a participação de
um cineasta que eu havia conhecido pela mão de Jean, e que é
aliás seu filho, Alan Langdon, junto com um dos membros mais
ativos do GESTO e colega com grande afinidade teórica e pessoal
com Jean, o Scott Head. O filme em debate foi o de Tony Gatlif,
Os indignados, mistura de documentário e ficção que fazia um
relato dos acontecimentos políticos e dos movimentos sociais na
Europa, em particular no Estado espanhol, vistos pelos olhos de
uma jovem imigrante africana. Esse ciclo de debates e conversas
deu também origem a uma proposta de livro, que fiz junto com
GESTOs da Jean 467

Scott e com Allende Renck, parceiro de viagens encontrado nessa


segunda estadia em Florianópolis. Dessa vez, não apenas a Jean,
já aposentada, acolheu positivamente o projeto, como as restantes
colegas que estavam agora colaborando na direção do IBP,10 e uma
vez mais também Vânia Cardoso fez aqui a ponte entre mim, a
editora e a coleção Brasil Plural. E curiosamente o projeto fica
também ligado a uma proposta resultante desse grupo de pesquisa,
o GESTO, e à rede de pesquisa do IBP em “Arte, performance
e sociabilidades”.

Evidentemente, o que me resulta inegável nesse ciclo último de


encontros são sobretudo os impactos mais invisíveis e os legados
relacionais e de influência acadêmica que Jean foi deixando
indelevelmente assinalados, seja no Departamento de Antropologia
da UFSC, seja no Instituto Brasil Plural, seja aqui no GESTO.

Por essa razão, me veio à lembrança uma ideia debatida por um


parceiro de todos e todas nós, André Lepecki, investigador luso-
brasileiro que esteve presente em muitos dos acontecimentos aqui
recordados e que passou também pelas atividades do GESTO e da
UFSC. Falo do conceito de imobilidade e dos micromovimentos
envolvidos nesse ato imóvel (respiração, circulação sanguínea,
presença) como gesto de resistência política no quadro da
dança contemporânea. Lepecki procura pensar a recusa do
movimento como caminho de ruptura com a modernidade e
com determinada noção de coreografia. Ele apresenta a ideia de
que há uma associação direta entre a constituição da noção
de coreografia na modernidade e o projeto de um sujeito cinético
e de uma ontologia do movimento, projeto que seria o fundamento
central da modernidade em geral, ligada à circulação de capital,
de mercadorias e de pessoas, tão marcante e constituinte do capi-
talismo moderno. De alguma forma, no projeto de dança moderna
no Ocidente, há a articulação entre uma incessante motilidade e
a exibição de um corpo e de uma subjetividade cinéticos. Lepecki
recorre à noção de ato imóvel, proposta pela antropóloga Nadia
Seremetakis, como um conceito que descreve “[...] momentos em
que um sujeito interrompe o fluxo histórico e pratica a interrogação
histórica” (LEPECKI, 2008, p. 36). O mesmo gesto de imobilidade
se espalhou por diversas praças, diversos protestos, nos últimos
anos, face ao agressivo movimento de processos de gentrificação, de

10
O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural (INCT-IBP) é um dos
poucos INCTs da área da antropologia, coordenado por Jean. Para mais informações,
ver: https://brasilplural.paginas.ufsc.br/.
468 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

dominação económica, de exclusão imobiliária, de discriminação


de grupos e minorias dissidentes etc. Atos imóveis de protesto (desde
o clássico ato de desobediência na praça Taksim até o Parque Gezi,
na Turquia, dos standing still aos die-in), que são afinal a última
palavragesto que aqui evoco e que metaforicamente sugerem no
encontro com Jean o que invisivelmente é transmitido ou o legado
que foi criando.

Scott Head: Posso só comentar? Talvez a gente pudesse pensar


um pouco nessa palavragesto enquanto modo de construir o texto e
contribuindo com outras palavrasgesto. Eu não tinha pensado nesse
sentido, mas acho que seria bem legal expandir isso para o texto como
um todo.
Vânia: Em algum momento a Evelyn tinha sugerido, ou a Lu, de
falarmos em pegadas da Jean. Sempre com essa ideia de algo que vai
deixando traços. É muito bacana te ouvir, Paulo, a maneira como você foi
colocando essa ideia, de que são esses traços que permitem que a gente
esteja aqui, de uma certa maneira, essa roda que a gente vai criando.
Você usou o exemplo do Scott falando com o Alan no público, e eu
estou me lembrando do Scott na defesa da Marcela.11 Ela é uma terceira
geração do GESTO, e o John e a Viviane estavam na banca. Tem essas
novas conexões que são feitas nesses atos de produção, como você estava
fazendo aqui também. A gente trouxe o Rubens, que foi orientando
do John um tempo atrás, para vir conversar sobre performance com
os alunos da graduação. Então, esses movimentos que se espraiam em
múltiplas gerações, é bem bacana de pensar.
Luciana: Eu fiquei pensando, Paulo, gostei muito de te ouvir.
Fiquei me lembrando de quando a Jean voltou de Portugal, em 2002, ela
estava me orientando no doutorado. E aí ela falou assim: “Você tem que
conhecer o Paulo”. Você vê, faz quase 20 anos. E aí ano passado eu fui
fazer um pós-doc com você em Portugal – esses encontros, reverbe-
rações e articulações são muito ricos. Quando eu recebi o convite
para participar do livro em homenagem à Jean, eu pensei: “Eu vou
escrever uma carta para ela”. Pensando nisso que você falou, acho que
tem relação.

11
Marcela Maria Soares defendeu a tese de doutorado “Haja vida”: teatro à deriva em
São Paulo, em março de 2020.
GESTOs da Jean 469

Brasília, 26 de janeiro de 2021.

Querida Jean,

Faz um tempo que não escrevo cartas, mas resolvi recorrer a esse
formato porque nesses árduos tempos de isolamento social me
parece que a carta restaura a possibilidade da intimidade pela
palavra – tão cara a nós, que nos especializamos em ouvi-la, em
performance, nos mais diferentes contextos.
Recuperei um texto que havia escrito, a pedido do John, para fazer
sua apresentação na ANPOCS, em 2016, e a partir dele fui me
lembrando de nossa história em comum.
Vou contando histórias, porque as histórias marcam minha
trajetória de pesquisa e meu encontro contigo.
As palavras, os gestos e as poéticas de quem conta sempre me
encantaram. Eu era uma estudante recém-formada em teatro,
apaixonada por antropologia, nos idos da década de 1990,
quando te conheci. Tentava ingressar no mestrado, ainda com
referências incipientes na área, e tu acreditaste no projeto
daquela desconhecida que pretendia investigar as performances
de contadores de causos gaúchos, nas pampeanas fronteiras entre
Brasil, Argentina e Uruguai.
Foi contigo que passei a compreender com maior profundidade
as diferentes artes de combinar as palavras. E que, para entender as
palavras e seus múltiplos significados, temos de exercitar a escuta.
Muita escuta. Até hoje, quando me dizem que sou uma contadora,
eu corrijo: sou uma escutadora de histórias.
Aprendi isso contigo, Doña Juanita – sei que os Siona, com quem
passaste boa parte dos últimos 40 anos, escutando e anotando
mitos, sonhos e projetos, te chamam assim. E para mim a
lindeza disso tudo é saber que transformaste a escuta em ação,
contribuindo com o programa de etnoeducação da Asociación
de Cabildos Indígenas de los Pueblos Siona (ACIPS), reforçando
a necessidade de revitalização da língua Bain Coca. Indico a
todos que queiram conhecer melhor teu trabalho que assistam ao
belo documentário Taller de Bain Coca con el pueblo Siona del
Putumayo, de 2015, dirigido por ti e pelo Alan, pois conta/mostra
em detalhes esse processo.
Esse comprometimento da antropologia com a vida social ganhou
novas dimensões e reverberações com a criação do Instituto
Brasil Plural, que lideras há muitos anos. No IBP se entrelaçam
as contribuições da antropologia para a elaboração de políticas
470 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

públicas com a formação de profissionais que atuam tanto


no âmbito acadêmico quanto junto às comunidades parceiras. No
instituto, escuta e ação necessariamente encontram-se juntas.
Nos teus inúmeros livros, artigos, projetos, tens nos mostrado
que as narrativas orais ocupam um lugar central na vida em
sociedade e que possuem o poder de agir na cura, na organização
das experiências, na expressão das sensibilidades, nas relações de
poder, na comunicação em diferentes instâncias. Em tua trajetória,
os conceitos de etnografia, contextualização, xamanismo, perfor-
mance e dialogicidade se juntam a uma profunda ética de respeito,
humildade e generosidade no trabalho antropológico e nas relações
pessoais. Nos mais de 30 anos no Brasil, tens formado uma
considerável geração de pesquisadoras(es) e professoras(es) que
atuam nos campos da saúde indígena, dos Estudos da Performance,
da arte verbal. Todos nós, creio, aprendemos a importância de
estar junto, ouvir, trocar, respeitar nossos interlocutores, assim
como fizeste com o taita Felinto ou Aurelio Maniguaje. Nossos
parceiros de pesquisa têm nomes, sobrenomes, autorias, vozes e
participações efetivas em nossos trabalhos e em nossas vidas.
Trago um exemplo disso: recentemente, no final de 2020, comecei a
sentir alguns sintomas, como febre e dor de garganta, e corri para o
hospital, para fazer o teste de covid-19. Enquanto esperava ansiosa
pelo atendimento, numa sala sombria, ouvindo a equipe médica
comentar sobre um óbito recente, recebi uma mensagem de Luís
Samite, um interlocutor da província de Corrientes, Argentina,
que conheço há mais de 20 anos, me contando empolgado que
o chamamé havia sido declarado Patrimônio da Humanidade.
Contei onde estava e o que estava passando, e, antes de qualquer
outra pessoa, foi ele que disse, com a cadência de sua voz de
payador, as palavras de apoio que eu estava precisando ouvir. Eu
contei, ele escutou.
Estou tentando não ser piegas, até porque sei que tu odiarias
isso, mas para mim foste e és uma mestra em diversos sentidos.
No seminário em tua homenagem, que houve na UFSC quando
te aposentaste, falei que evitaria “rasgar seda”. Fui pesquisar e
descobri que a expressão teria sido criada por Martins Pena, um
dramaturgo do século XIX, famoso pelas mordazes e espirituosas
críticas à realidade do Brasil Império de então. Temos que cuidar
para não rasgar seda, pois ela pode se esfiapar... Prometo tentar
evitar, mas a verdade é que, além de professora exemplar, que
leva para suas aulas páginas e páginas de anotações, críticas e
questionamentos, tu és uma orientadora que respeita a autonomia
intelectual e criativa dos alunos e lhes fornece suporte em
GESTOs da Jean 471

diferentes níveis, que excedem em muito o campo acadêmico. No


final do meu primeiro ano de doutorado, às vésperas de qualificar,
perdi meu avô; quando estava próxima a data de defender a
tese, perdi minha avó. Partiram meus primeiros narradores, e, por
uma dessas artimanhas dos espíritos que escrevem o roteiro de
nossas vidas, logo em seguida engravidei. Respeitaste meus lutos e
meus partos. E, quando tive aquele momento de banzo pós-defesa
e andava com um bebê pelos eventos e corredores de universidades,
aceitaste encarar comigo uma pesquisa sobre o estado da arte da
antropologia da performance no Brasil – que até hoje nos rende
frutos e reflexões. Criamos juntas o GESTO, em 2005, e é bonito
perceber como o grupo prossegue fomentando debates entre alunos
e pesquisadores e promovendo intercâmbios com colegas de
diferentes instituições. Acho que fomos felizes no nome – os gestos
nos definem, nos marcam, nos movem.
Queria poder cantar em homenagem à Doña Juanita como as
mulheres Siona fizeram no final do filme sobre o taller de Bain
Coca, então peço emprestada uma cantiga do cacuriá, que
deve ser devidamente dançada quando pudermos nos reunir
presencialmente de novo:

Eu vou dar a despedida


Como deu a Jaçanã
Ah, eu não canto tudo hoje
Deixo o resto pra amanhã

Luciana: Retomando: talvez a gente pudesse brincar com o texto


meio híbrido. Eu morei na casa da Jean, cuidei dos cachorros dela, dirigi
o fusquinha dela, bebi cachaça com ela, comendo ostra lá na Ponta
do Sambaqui... Ela tem uns atos de generosidade que não são, assim,
sentimentais, eles são muito objetivos. Eu e ela participamos do primeiro
encontro de etnocenologia, que aconteceu em 1998, acho, na Bahia,
organizado pelo Armindo Bião, da UFBA [Universidade Federal da
Bahia], e pelo João Gabriel Teixeira, da UnB [Universidade de Brasília].
Eu como ouvinte, ela como convidada. Na época eu fazia mestrado, era
estudante, dura. Fiquei na casa de um amigo de uma amiga, superlonge
da UFBA. Aí no segundo dia do evento a Jean me falou assim: “Você
não quer vir para o hotel comigo?”. Um hotel cinco estrelas, num lugar
supernobre, pertinho do evento. E eu dividi o quarto com a minha
orientadora. Eu acho que essas coisas são importantes de a gente falar.
Hoje em dia, eu, como professora, como orientadora, me inspiro muito
472 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

nessa maneira de ela ser. Tem uma generosidade que ao mesmo tempo
é focada, é objetiva: “Olha, está sobrando uma cama no meu quarto, e
você tá pegando um ônibus durante duas horas para chegar ao evento”.
E tem essa coisa que você fala, que é de um certo empoderamento, de
uma autonomia, de “vai buscar o teu caminho”. Eu, por exemplo, ia fazer
o meu doutorado-sanduíche em Nova Iorque. O projeto era esse, com o
[Richard] Schechner, no “Performance Studies” da NYU [Universidade
de Nova Iorque]. E aí acontece o [atentado de] 11 de setembro [de 2001].
Eu fiquei apavorada: “Eu não quero ir para Nova Iorque!”. Mudei tudo
em seis meses. Eu fui para a França, e quem me ajudou foi a Soninha
Maluf [Sônia Weidner Maluf], que era minha coorientadora, porque a
Jean não tem relação com a França. Fui estudar antropologia visual com
o Marc[-Henri] Piault, mas ela sempre me apoiou: “Vai. Vai. Você que
sabe. Faça o que você entende que é melhor”. É bacana isso. É por isso que
gosto muito da ideia dos gestos da Jean.
Scott: Só compartilhando, eu pensaria em seguir essa pegada,
mas neste caso seguindo um gesto que se estende para além do
universo acadêmico, dos variados campos de pesquisa em que a Jean
deixou pegadas. No caso, penso no “Sopão de Cinema” – um evento
recorrente que nem foi realizado por Jean, mas pelo Alan, filho dela.
Mesmo assim, para mim, foi em parte pela amizade com Alan que
acabei me aproximando da Jean – foi um pouco por aí que tecemos
esse lado afetivo; mais que isso, acho que tem uma potência metafórica
e material, ao mesmo tempo, para dar conta desses lados da Jean.
O “Sopão de Cinema” foi um evento que o Alan fez durante alguns
anos. Quando a gente veio para cá [Florianópolis], em 2007, se não me
engano, já estava rolando. Ele chamava todo mês o pessoal que quisesse
participar, tinha muita gente, não da academia, não tinha uma ligação
direta com o GESTO; a Jean nem costumava ir. O que acontecia era
que Alan fazia um sopão, literalmente, e mostrava um filme. Podia ser
filme mais experimental, documentário ou de ficção – de curta, longa
ou média-metragem –, realizado por conhecidos ou não, ou por ele
mesmo. O que mais importava era que vinha sempre acompanhado por
aquele sopão – o olfato estimulando a fome enquanto assistíamos ao
filme. Vejo a conexão como emblemática dessa dualidade da Jean que
vocês vinham apontando: tem um lado objetivo, contar alguma coisa,
mostrar uma coisa, construir uma narrativa, apresentar etc. E tem esse
lado de que não vai ser só aquilo, tem que colocar a mão na massa, tem
que ter uma coisa para compartilhar. Evidentemente, o sopão sempre
GESTOs da Jean 473

vinha acompanhado por uma garrafa de cachaça, com gengibre dentro.


Era só para a gente poder falar bem depois de ver o filme, para ninguém
ficar com dor de garganta [risos]. Eu estou precisando um pouco agora!
Então pensei em uma coisa assim. Eu sei que eu vou ganhar pontos se eu
faço referência ao Alan no texto, é pura estratégia [risos].
Paulo: Aliás, eu conheci a Jean com o filho aqui em Portugal.
Scott: Isso já dava para fazer uma análise, Paulo. De que você
imagina a Jean como uma pessoa superalta. Eu achei ótimo.
Paulo: E a Micol12 me dizia: “Mas ela é baixa”. E eu: “Não é, cara.
Ela é alta, eu estou vendo que ela é muito alta”. Eu não sei se eu era baixo
nessa altura, talvez. É que são as imagens que tu tens, imagens que
Paulo: E a Micola37questão
trazem me dizia:da“Mas esguioE da
ela édobaixa”.
árvore, eu: figura
“Não é,dela,
cara.daquela
Ela é alta, eu estou
figura
vendo queque tu olhas: é uma pessoa para quem se olha. A Jean tem qualquersão as
ela é muito alta”. Eu não sei se eu era baixo nessa altura, talvez. É que
imagens que tu tens, imagens que trazem a questão da árvore, do esguio da figura dela,
coisa que nos leva a olhar. E, depois, tem aquela coisa que o John falava,
daquela figura que tu olhas: é uma pessoa para quem se olha. A Jean tem qualquer coisa
que nosquelevaéa uma
olhar.pessoa atenta,
E, depois, está escutando,
tem aquela coisa que oescuta com muita
John falava, facili-
que é uma pessoa
dade. E isso não é muito comum, as pessoas dificilmente nos escutam.
atenta, está escutando, escuta com muita facilidade. E isso não é muito comum, as pessoas
E, quando
dificilmente você éE,jovem
nos escutam. quandoinvestigador,
você é jovemisso é central.isso
investigador, Acho que foi
é central. aí que
Acho
que
foi aí que elaela
meme ganhou.
ganhou.

Imagem:Imagem:
Alan Stone Langdon.
Alan Stone Langdon.

John: Eu adorei tudo que vocês estão falando. Paulo, Luciana, Scott, muito legal. Estava
lembrando as coisas das imagens, lembro uma conversa com a Jean falando do avô dela.
Era um pintor conhecido, que pintava os índios Sioux dos Estados Unidos. Eu achei
12
sempre legalMicol
isso,Brazzabeni,
porque eleantropóloga, autora de diversos
era meio aventureiro. Ele era umtrabalhos sobre que
aventureiro economias
pintava os
ciganas
índios Sioux. Ela efoi
escola, esteve em
dos Sioux Florianópolis
para os Siona, eentre 2016 efoi
também 2017.
uma aventureira. Ela deve ter
feito a pesquisa de campo dela nos anos 1970. Eu me lembro dela falando isso, ela botou
na cabeça que ia para a Colômbia. Ela falou da experiência dela descendo o rio de canoa.
De repente, ela, como se entrando em transe, viu que estava fazendo tudo aquilo que
474 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

John: Eu adorei tudo que vocês estão falando. Paulo, Luciana,


Scott, muito legal. Estava lembrando as coisas das imagens, lembro
uma conversa com a Jean falando do avô dela. Era um pintor conhe-
cido, que pintava os índios Sioux dos Estados Unidos. Eu achei sempre
legal isso, porque ele era meio aventureiro. Ele era um aventureiro que
pintava os índios Sioux. Ela foi dos Sioux para os Siona, e também
foi uma aventureira. Ela deve ter feito a pesquisa de campo dela nos
anos 1970. Eu me lembro dela falando isso, ela botou na cabeça que
ia para a Colômbia. Ela falou da experiência dela descendo o rio de
canoa. De repente, ela, como se entrando em transe, viu que estava
fazendo tudo aquilo que queria na vida. Eu achei muito legal isso. Ela
é uma pessoa que respeita silêncios, que valoriza silêncios e palavras.
Então foi ouvir os Siona. Tem essa coisa da coragem dela, que eu
admiro muito. Coragem sem sentimentalismos. Tem sentimentos,
mas não é sentimentalismo. Isso realmente chama muito a atenção.
Eu lembro que no início eu falei: “Nossa, acho que essa mulher é meio
fria”. Achava ela distante. O impacto foi muito grande quando eu vi
essa Jean que é generosa. São sentimentos muito verdadeiros, muita
simplicidade também. Ela é uma pessoa que gosta de festa. Isso é
muito legal. Eu lembro um momento, totalmente anedótico. Eu tenho
uma afinidade com a Jean, e com o Scott também, por essa coisa de ser
de família americana, mas que fez a opção pelo Brasil. A gente sempre
falou em português, eu e a Jean, normalmente, sem nenhum esforço
– era natural. Eu nasci no Brasil, mas de família americana também.
Eu lembro um dia, no intervalo de um encontro em São Paulo, ela
falou: “Vamos tomar um café com leite?”. Falei: “Vamos”. A gente foi à
padaria Estrela, do Butantã. A gente tomando café com leite – pinga-
do –, e acho que era pão na chapa, talvez um queijo branco. A gente
conversando, de repente ela falou: “Hoje é Thanksgiving”. Thanksgiving
nos Estados Unidos é uma grande festa. Fazia muitos anos que eu nem
pensava em Thanksgiving, mas nos Estados Unidos é uma grande
festa, de agradecimento, pelas dádivas recebidas. Daí ela falou: “Hoje o
meu Thanksgiving é com você, John”. E aquilo me tocou muito, porque
era uma lembrança que eu tinha de infância. Minha mãe gostava de
Thanksgiving. Não estou pensando nela como mãe, lógico, ela é minha
colega. Mas ela falou: “Hoje meu Thanksgiving é com você, John”.
E aquilo me marcou muito, um gesto tão simples. E a gente comendo
pão. Lá nos Estados Unidos, é peru e muitas coisas, muita abundância.
Claro que tem um lado colonialista dessa festa também, na relação
com os índios. Mas ela só falou isso, muito simples assim: “Hoje o
GESTOs da Jean 475

meu Thanksgiving é com você, John”. Eu falei: “Caramba, acho que é o


melhor Thanksgiving que eu já tive, na verdade”. E ela é uma pessoa da
dádiva. Ela te coloca em relações de dádiva, realmente. São pequenos
gestos que dizem muito, na verdade.

[Eis o texto que John havia escrito como apresentação da


trajetória da Jean, no contexto da “Conversa com os autores”, no
“40o Encontro Anual da ANPOCS”, em 25 de outubro de 2016.]

I. Origens: Colorado e John Dare Howland

Esther Jean Matteson Langdon.


Jean nasceu no estado do Colorado, nos Estados Unidos, na região
das Montanhas Rochosas e também de um dos maiores rios dos
Estados Unidos: o rio Colorado. O seu bisavô, John Dare Howland
(1843-1914), foi um aventureiro. Saiu de casa aos 14 anos de
idade. Navegou o rio Missouri, fazendo comércio com peles
de animais. Fez amizade com os índios, pintando os seus retratos e
os seus costumes. Dedicou-se à arte. Virou frontier artist, artista de
fronteira. Foi morar com os índios Sioux (Sioux indians). Morou
com eles durante seis anos. E se vestia de buck skin, uma roupa
feita com peles de animais. Por meio de suas pinturas, ele fez um
retrato vivo dos Sioux indians no momento em que corriam riscos
de desaparecimento.

Jean cresceu numa casa com muitas pinturas do povo indígena


retratado por seu bisavô. Desde a adolescência ela queria morar
com os índios. Não para ensinar. Ela queria aprender com eles.

II. Antropóloga de verdade

Os dados estão no Lattes: 102 artigos, 9 livros, 61 capítulos de livros


[...]; pesquisadora CNPq 1B [...]; 191 apresentações em eventos
acadêmicos [...]. Orientou 27 teses de doutorado e 53 dissertações
de mestrado.13

Os números impressionam. Mas ainda dizem pouco.

Caso o bisavô de Jean Langdon, o pintor de fronteira, fizesse um


retrato da bisneta, o título do retrato poderia ser: Jean Langdon,

13
Estes são números atualizados em 3 de setembro de 2020. Em 2016, os dados
eram: 81 artigos, 8 livros, 57 capítulos de livros; pesquisadora CNPq 1B; inúmeras
apresentações em eventos acadêmicos. Orientou 23 teses de doutorado e 52
dissertações de mestrado.
476 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

uma antropóloga de verdade. Com os movimentos do pincel,


procuraria captar os traços da antropóloga:

1. Primeiro, em cores avermelhadas, coloradas: os traços de uma


antropóloga em movimento, em meio a uma viagem de descoberta,
possivelmente descendo o rio Putumayo.
2. Segundo, em cores marrons e azuis, as cores do Putumayo, os
traços da antropóloga ouvindo as histórias que fluem das nascentes
do tempo como as águas dos rios.

Na verdade, esse retrato da antropóloga o bisavô não precisaria


pintar. Ao longo da vida de Jean, marcada pela aventura
antropológica e pela etnografia da audição, o retrato foi surgindo
e se pintando.

III. Graduação: Carleton College e posseiros em Costa Rica


(1962-1966)

Nos anos de 1962 a 1966, Jean realizou o seu curso de graduação


em antropologia e sociologia na Carleton College, Northfield,
Minnesotta. Nesse período, com uma bolsa da Fundação Nacional
de Ciência (National Science Foundation), Jean passou um ano
morando e estudando com posseiros (squatters) de áreas rurais na
Costa Rica.

IV. Mestrado: University of Washington e acampamentos de


protesto (1966-1968)

De 1966 a 1968, o seu mestrado em antropologia na Universidade


de Washington. Nesses anos de manifestações contra a Guerra do
Vietnã e contra o racismo, Jean participou de movimentos sociais,
morando em acampamentos de protesto em Washington – em ruas
e praças. Em 1968, ela passou três meses no México, morando com
trabalhadores temporários, boias-frias.

V. Doutorado: Tulane University e experiência no Putumayo


(1968-1974)

De 1968 a 1974, o seu doutorado em antropologia na Tulane


University, EUA. Nessa época a antropologia médica era um
campo emergente. Recebeu proposta para ir à Colômbia. Um
convênio entre a Tulane University e a Universidad del Cauca, na
Colômbia, possibilitou a sua ida.

Jean, que havia nascido no Colorado, o estado das Montanhas


Rochosas, queria fazer pesquisa nos Andes. Ela realizou pesquisa
GESTOs da Jean 477

com os índios Siona. Morou com eles no rio Putumayo, que


nasce nos Andes e desemboca no Amazonas. Ali morou durante
três anos.

Entre os Siona, adotou inicialmente a metodologia da etnociência.


Mas os índios não tinham paciência com esse tipo de metodologia.
Eles queriam contar histórias. Por meio de narrativas, falavam das
doenças, dos males, das curas, dos sonhos e dos acontecimentos do
dia a dia. Vem daí o interesse de Jean por performances narrativas.

Os Siona, ela aprendeu, são um povo gentil e amoroso. Apreciam o


silêncio. Assim marcaram a vida de Jean.

Certa vez, descendo o rio Putumayo, ao pôr do sol, no início da


noite, Jean teve uma experiência mística que veio com a força de
uma revelação: aos 26 anos de idade, descendo o Putumayo, ela
teve a percepção de que havia realizado o sonho de sua vida.

Na redação de sua tese, Jean seguiu padrões consagrados no campo


da antropologia e produziu uma tese num estilo clássico. Mas não
deixou de surpreender os membros da banca. Um deles comentou:
“Sabe, quando comecei a ler… fiquei cativado… Você nos
dizendo que os índios têm um conhecimento do universo que nós
não temos”.

VI. CUNY: enviando estudantes para pesquisar nos bairros


(1974-1976)

De 1974 a 1976, Jean foi professora da City University of New York


(Universidade da Cidade de Nova York), CUNY, EUA. Muitos
dos alunos eram descendentes de italianos, e já eram ou estavam
se preparando para serem policiais. Jean, que havia participado
de manifestações contra a Guerra do Vietnã e contra o racismo,
agora estava dando aula para futuros policiais. Ela os enviou para
fazerem pesquisas nos bairros onde moravam.

VII. Cedar Crest College: questões de gênero (1976-1981)

Em 1976, Jean foi contratada como professora para lecionar na


Cedar Crest College, em Allentown, Pensilvânia – uma college
(faculdade) para mulheres. A Cedar Crest College fez com que
a Jean se engajasse em questões de gênero, ou, como se dizia na
época, papéis sexuais. Escreveu artigos sobre mulheres Siona,
sobre migração de mulheres e sobre o status de mulheres em
diferentes sociedades. Esse conjunto de artigos constitui uma de
suas importantes contribuições ao campo da antropologia.
478 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Ela permaneceu em Cedar Crest por oito anos. Ganhou tenure,


estabilidade. Mas logo sentiu que a estabilidade poderia ser
uma ilusão. Perguntou a si mesma: “Será que eu realmente vou
querer ficar aqui, andando pelos mesmos corredores, durante
os próximos 20 anos?”. A resposta veio de dentro na forma
de um sonoro e estrondoso “NÃO!”. Jean queria voltar para a
América Latina.

VIII. UFSC (1983-atual)


1. Silvio Coelho dos Santos

Em 1982, Jean recebeu uma carta de Silvio Coelho dos Santos, da


Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC. A carta havia
sido enviada para muitos lugares. Silvio Coelho perguntou: “Você
gostaria de ser uma professora visitante na Universidade Federal
de Santa Catarina?”. Jean logo respondeu: “Sim!”. E enviou alguns
dos seus artigos. Sete meses depois, chegou uma nova carta: “Você
ainda está interessada?”. Ela tinha dois filhos e havia se separado
do marido. Jean veio ao Brasil.

2. “O Brasil não é para principiantes”

Mas não foi fácil.


“O Brasil não é para principiantes” – é uma das frases prediletas de
Jean (e de Tom Jobim).

3. Movimento dos alunos e professores (1987)

Em 1986, na hora de assinar o seu segundo contrato de professora


visitante, Jean recebeu uma má notícia: “Novos contratos estão
proibidos!”. Ela foi demitida. Mas deram um jeito para que ela
continuasse por mais um tempo.

No ano seguinte, dessa vez... um decreto presidencial: “Novos


contratos estão proibidos!”. Ela pensou: “Está tudo acabado!”.
Começou a fazer as malas. Mas os seus alunos e colegas professores
fizeram uma manifestação. Levaram cartazes, levantaram
bandeiras. Entraram em greve para que ela não fosse mandada
embora. Silvio Coelho deu um jeito. Em 1988, Jean assinou um
novo contrato.

Ela estava feliz com a sua mudança para o Brasil. Os seus filhos
também. Ela agora poderia fazer pesquisa no país onde morava.
Não era mais uma norte-americana fazendo pesquisa em outro
país. Ela morava e fazia pesquisa no Brasil.
GESTOs da Jean 479

4. Núcleo de Estudos de Saberes e Saúde Indígena14

Jean foi uma pioneira em estudos de antropologia médica e saúde


indígena no Brasil. Em artigo recente, “Anthropology of health in
Brazil: a border discourse” (“Antropologia da saúde no Brasil: um
discurso de fronteira”), ela discute as pesquisas desenvolvidas nesse
campo que ela mesma ajudou a formar. Chama a atenção o diálogo
entre norte e sul, o questionamento de paradigmas elaborados
em países do norte e a demonstração da força de paradigmas
emergentes elaborados pelas antropologias brasileira e latino-
americana. Em pesquisas desenvolvidas por seu grupo de estudos
de Santa Catarina, ela logo descobriu que as questões levantadas
pela antropologia norte-americana não eram relevantes. Ela estava
aprendendo com os seus colegas do Brasil e da América Latina.

Nos anos 1980, na UFSC, com o estímulo dos seus alunos, um


grupo de estudos se formou. Era um grupo interdisciplinar,
incluindo, entre outras pessoas, um médico, uma farmacologista
e dois antropólogos, Alberto Groisman e Els Lagrou. Num clima
descontraído e de amizade, discutiam xamanismos e concepções
e práticas de saúde entre povos indígenas. O grupo se ampliou.
Nos anos 1990, transformou-se no Núcleo de Estudos de Saberes e
Saúde Indígena. Um grupo pioneiro.

5. GESTO

Jean Langdon também foi uma das precursoras de estudos de


antropologia da performance no Brasil. O seu interesse nesses
estudos ganhou impulso nos anos de 1993 e 1994, quando realizou
um pós-doutorado com Richard Bauman na Universidade de
Indiana, EUA. Com Bauman, ela se aprofundou nos estudos de per-
formances narrativas. Em 1996, Jean participou do “Encontro
Internacional de Performance”, em Brasília. Entre os seus artigos,
se encontram as primeiras publicações sobre antropologia da
performance no Brasil.

Em 2005, Jean Langdon e sua orientanda Luciana Hartmann


(hoje professora da Universidade de Brasília) criaram o GESTO
– o Grupo de Estudos em Oralidade e Performance. Em 2009, o
GESTO organizou o “I Colóquio Antropologia em Performance”,
que contou com a presença de Richard Bauman. Os colóquios

14
O nome registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de
Desenvolvimento científico e tecnológico (CNPq) é Núcleo de Estudos sobre Saúde
e Saberes Indígenas (NESSI).
480 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

organizados pelo GESTO despertaram as atenções para uma


antropologia em performance.

O nome é propício. Acompanhando a cultura em movimento, a


própria antropologia entra em estado de performance. Acima de
tudo, a antropologia desenvolvida por Jean Langdon ao longo
dos anos procura acompanhar os movimentos surpreendentes da
vida social.

6. Brasil Plural: trabalho em grupo

Parece que os grupos de pesquisa dos quais a Jean participa vêm


aumentando de tamanho com a passagem do tempo. Desde
2009, ela coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
Brasil Plural. Há apenas três Institutos Nacionais de Ciência
e Tecnologia em antropologia no Brasil. Um deles é este: uma
rede de pesquisadores de Santa Catarina, Brasília, Mato Grosso
e Amazônia. Dessa rede participam 200 pesquisadores sob a
coordenação da Jean.

Uma coisa a Jean sempre deixou clara: ela gosta de trabalhar


em grupo.

7. “Última coisa da minha vida”

O seu grupo de referência – o grupo com o qual ela mais gosta de


trabalhar – é também aquele com o qual mais tem aprendido ao
longo dos últimos 50 anos: os índios Siona. Entre os Siona, Jean é
conhecida como Doña Juanita. Aos Siona, ela sempre retorna.

O seu novo projeto – e talvez o último, ela diz – é devolver o


material etnográfico aos índios Siona. Isso para que possam
fazer uso dele do jeito que acharem melhor. Com esse propósito,
Jean organizou workshops com eles, mostrando o que existe no
material etnográfico. A sua tese de doutorado – que ela traduziu
para o espanhol – agora pode ser lida pelos Siona. Numa parceria
com o seu filho, Alan Stone Langdon, produziu dois filmes.

A hora é esta. Os Siona se encontram num momento histórico


de proporções míticas, de revitalização cultural. Grande parte do
material etnográfico de Jean se encontra em mãos dos Siona.

Dom e contradom: o material que a Jean Langdon colheu e recebeu


como um dom dos Siona volta ao lugar de onde veio – pelas mãos
e com os traços de Doña Juanita.
GESTOs da Jean 481

8. Dom e contradom

Dom e contradom: hoje a Esther Jean Langdon recebe um


reconhecimento das ciências sociais e da antropologia, para as
quais ela tanto contribuiu.

Uma antropóloga de verdade.


Os seus principais traços:
1. O senso de aventura.
2. A sensibilidade de quem sabe ouvir.

Dos índios Sioux do seu bisavô aos índios Siona de Jean, ou Doña
Juanita. Com certeza, o seu bisavô aventureiro, um frontier artist,
ou artista de fronteira, chamado John Dare Howland – cujo nome
do meio quer dizer “desafiar”, “ousar” –, ficaria orgulhoso de
sua bisneta.

Assim também ficamos pelo privilégio de conhecê-la.

Scott: Já podia escrever o livro todo, não é, John? [risos].


Paulo: Ela tem umas loucuras com as imagens. Eu lembro para o
“No Performance’s Land”, quando eu pedi a imagem dela, ela mandou
uma imagem louca.

Imagem: Alan Langdon.


Imagem: Alan Langdon.

Vânia: Essas imagens que ela escolhe de si são ótimas. Eu morri de rir q
imagem para um evento da Abrasco: é a Jean, perfeita.
Figura 8 – Cartaz de divulgação do painel “Diálogos emergentes sobre cu
482 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Vânia: Essas imagens que ela escolhe de si são ótimas. Eu


morri de
Fonte: Abrasco rir quando
(2020). 40 vi essa imagem para um evento da Abrasco: é a
Jean, perfeita.
Scott: OsFigura
óculos
8 –escuros junto
Cartaz de com aquele
divulgação sorriso
do painel irônico,
“Diálogos blasé. sobre cuida-
emergentes
do e povos indígenas”

Fonte: Abrasco (2020).15

Vânia: E para um contexto de mais uma live, sobre mais uma coisa. A cara dela é ótima
Scott: Os óculos escuros junto com aquele sorriso irônico, blasé.
[risos].
Vânia: E para um contexto de mais uma live, sobre mais uma
coisa.
Paulo: Ela temAum cara dela é ótima
episódio... [risos].
No meu texto eu falo desse episódio. Me marcou bastante,
é outra coisa, Paulo:
não é anedótico. A Jean
Ela tem um episódio... às vezesNotemmeu uma forma
texto eu de
faloexpressar
desse o seu
desacertoepisódio.
com o mundoMe marcou bastante, é outra coisa, não é anedótico. A Jean às assim.
que é muito peculiar. Tu não consegues encontrar pessoas
Ela estava
vezes tem umaaqui
a dar aulas forma dedeantropologia
expressar o da
seusaúde e da com
desacerto doença, trabalhava
o mundo que é muito as
questõesmuito
do xamanismo, do não
peculiar. Tu transe. Ela saía encontrar
consegues das aulas, pessoas
dos nossos alunos
assim. Ela portugueses,
estava da
antropologia, e dizia: “Paulo, é muito estranho, esses vossos
a dar aulas aqui de antropologia da saúde e da doença, trabalhavaalunos são todos racionais,
muito, são
muitotodos muito racionais.
as questões O que édoque
do xamanismo, tem aqui
transe. neste
Ela saía daspaís?
aulas,Estão
dos sempre
questionando o transe: ‘Mas é verdade ou é mentira?’. Caramba, mas que conversa é
essa?”. E aquilo me deu uma noção, foi engraçado, porque de fato os nossos alunos –
europeus,15 de um status
Disponível em:dehttps://www.abrasco.org.br/site/noticias/sensibilidade-e-urgencia-
classe média – tinham muita dificuldade em aderir a qualquer
marcam-cuidados-com-povos-indigenas-destaca-painel/53170/.
tipo de linguagem. Ainda que fossem alunos de antropologia, tinham Acessomuita
em: dificuldade
20
set. 2022.
em alcançar esse patamar da floresta, de entrar na floresta. Por isso eu usei a imagem da
árvore para ela, também dessa floresta do xamã, de onde ela vai e de onde ela volta.
Portanto, nas aulas, era uma espécie de luta que ela fazia, silenciosa, contra esse
GESTOs da Jean 483

nossos alunos portugueses, da antropologia, e dizia: “Paulo, é muito


estranho, esses vossos alunos são todos racionais, muito, são todos muito
racionais. O que é que tem aqui neste país? Estão sempre questionando
o transe: ‘Mas é verdade ou é mentira?’. Caramba, mas que conversa
é essa?”. E aquilo me deu uma noção, foi engraçado, porque de fato
os nossos alunos – europeus, de um status de classe média – tinham
muita dificuldade em aderir a qualquer tipo de linguagem. Ainda
que fossem alunos de antropologia, tinham muita dificuldade em
alcançar esse patamar da floresta, de entrar na floresta. Por isso eu
usei a imagem da árvore para ela, também dessa floresta do xamã, de
onde ela vai e de onde ela volta. Portanto, nas aulas, era uma espécie
de luta que ela fazia, silenciosa, contra esse racionalismo instalado que
não tinha capacidade de ultrapassar aquela ideia, a única possibilidade
que concebiam era que fosse teatro: “Ah, é teatro, é ilusão, é fingir,
é fake, e então tudo bem”. Mas não havia essa possibilidade. Ali eu
percebi uma coisa engraçada com ela, que é essa capacidade de
estranhamento que ela faz e que visibiliza. Ela torna isso visível no seu
rosto, nas caretas, no comentário. Podíamos dizer assim: “Não tem
filtros”. Mas não é isso, porque ela tem filtros. É uma capacidade de ir
ao osso, direto, sem mediação, sem contemplação, mas também sem
violência. Ela não queria dizer mal dos alunos, ela queria dizer: “O que
se passa nessa cabeça? Ninguém chacoalha a cabeça desses meninos?”.
É engraçado isso.
Scott: Se eu fosse imaginar um gestopalavra para ela, eu acho
que seria muito mais “samurai” do que “capoeira”. Porque ela vai assim
[faz o movimento, com as mãos, de um corte no ar]. Ela é sincera, ela
não foge pelos lados [faz o movimento de esquiva com as mãos].
Viviane Vedana: Ela é sincera em um nível preciso e profundo.
É uma sinceridade muito objetiva.
Scott: É aquela sinceridade que mais mata.
Paulo: E ela também era a principal da minha banca. E eu
sobrevivi [risos].
Vânia: É interessante isso, porque tem uma frase que ela
usa, principalmente quando está de mau humor. Não é mau humor
exatamente, mas quando sente que as coisas estão pesadas. Ela sempre
fala que está cansada da teoria. [Ouve-se um estrondo de trovão] Olha,
vocês foram falar da Jean samurai, e deu uma trovoada aqui, sacudiu o
mundo inteiro.
484 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Evelyn Schuler Zea: Aqui também, os vidros todos estão


tremendo. Gente, ela estaria muito feliz se estivesse aqui agora – estava
pensando nisso.
Vânia: Ela estaria contradizendo a gente, dizendo que está tudo
errado [risos].
Scott: “Isso é mentira” [imita a forma de falar da Jean].
Vânia: Mas é essa questão de ela dizer que está cansada da teoria
– a primeira reação, se você não a conhece, é que parece uma licença
para você não ler mais, o que não é. Eu acho que tem uma outra
insistência nessa antropologia. O John estava dando esse exemplo dela
na canoa. Eu entendo o que você quer dizer com aventura; não é uma
antropologia aventureira, mas é uma antropologia que é uma aventura
de vida. E eu acho que esse é o cansaço dela com a teoria. Porque, se você
olha os programas de curso dela, ela tem uma insistência na leitura,
ela é super-rígida com os alunos na cobrança de um engajamento
intelectual de ler, de refletir, de comentar. Ela tem uma impaciência.
Às vezes tinha essa impaciência com o GESTO: “Ah, é só teoria, não
quero mais o GESTO”. E a gente: “Não, não é isso. A gente também está
conversando sobre nossos trabalhos, a gente está fazendo antropologia”.
Às vezes ela se incomoda com um certo recorte. Não exatamente um
recorte teórico, mas uma certa conversa teórica em que desaparecem
as pessoas, de uma certa maneira. Eu acho que é legal essa coisa que
ela faz, essa insistência em uma etnografia séria. Eu tenho participado
de muitas bancas de alunos da Jean, e, surpreendentemente, são
alunos e alunas da [área da] saúde. “Não é o meu campo, eu não sou
da saúde”. Eu brinco que eu aprendi antropologia da saúde ouvindo a
Jean e participando de bancas das alunas dela. É legal porque é uma
interlocução a partir de uma certa leitura, são uma certa escuta e
uma certa palavra que aparecem no fazer dos campos desses alunos
e alunas. Tem tudo a ver com performance, apesar de a temática não
ser performance. Eu acho que é essa pegada que ela tem, que a gente
tem no GESTO, que ilumina, que dá vida. Dá vida aos trabalhos que
as pessoas estão fazendo em diferentes campos. Eu estive na banca de
uma aluna dela que trabalhou em uma instituição de saúde mental. Ela
não estava trabalhando com narrativa, nem com biografia, nada disso.
E eu perguntei: “Por que eu estou aqui, Jean?”. E ela: “Ah, porque você lê
bem a etnografia”. Não me lembro se ela falou nesses termos, mas era
nesse sentido. Eu acho que esse ler bem é o ler da performance, não é
meu como indivíduo, é um olhar.
GESTOs da Jean 485

Viviane: Uma das coisas que eu estou pensando enquanto a


gente conversa é que talvez eu seja a pessoa mais distante da Jean, desta
sala, em certa medida. Eu tenho uma conexão mais com o que ela foi
produzindo. Eu cheguei ao GESTO a convite da Vânia em razão de
algumas coisas que têm a ver com a Jean, mas indiretamente. Eu conheci
a Jean lendo os textos dela e da Lu, principalmente em razão da minha
pesquisa de mestrado, da etnografia sonora e das discussões sobre a fala
dos feirantes. Eu chego ao GESTO em razão dessa trajetória de pesquisa
sobre/com corpos e falas, e fui conhecer a Jean pessoalmente algum
tempo depois. Eu já era professora aqui quando a gente se conheceu
pessoalmente. Eu entrei para o departamento no mesmo mês em que
ela se aposentou. Mas ouvindo o que vocês estão falando lembro que
comecei a ler esses textos para poder fazer a minha dissertação, e
uma das coisas que estava conversando com a minha orientadora, na
época, tinha a ver justamente com o que a Vânia está comentando a
respeito da etnografia. E de como fazer essa etnografia conversar com
uma discussão teórica que não sufoque as coisas que você está vendo,
produzindo em campo. Com esses textos, eu consegui me aproximar
da Lu e da Jean, e dos estudos da oralidade e da fala. Da fala não no
sentido só do conteúdo, mas da forma, da poesia, dos ritmos. Eu entrei
no GESTO por causa disso. Os vários momentos em que eu estive junto
com a Jean foram bem formais. Teve a banca de projeto de tese do
Felipe Neis e a banca de mestrado da Marcela, dois momentos em que
aprendi sobre essa atenção etnográfica com a Jean, escutando a leitura
que ela fez desses trabalhos. Outros momentos no IBP, de reuniões e
debates. Uma das coisas que me chama muito a atenção, na seriedade
e na objetividade da Jean, é justamente esse olhar etnográfico, esse
apreço por uma etnografia bem-feita e por uma preocupação com a
dimensão empírica. Ela observa com atenção a etnografia dos outros,
qualquer etnografia, não importa se era com os Siona, se era com
hospital ou se era com os pescadores que a gente estava pesquisando.
Ela tem um olhar atento a respeito da etnografia e preza as etnografias
bem-feitas, com boas descrições e análises. Acho que tem uma coisa no
GESTO, que a gente vem tentando fazer permanecer, que é esse vínculo
da discussão teórica com a pesquisa de campo – não só com o que as
pessoas dizem, mas também com o que elas fazem, com o que elas não
fazem, com os efeitos que isso produz no trabalho, na pesquisa, na
pessoa. O que eu estou aproveitando disso tudo é esse espaço saudável
de discussão que a Jean construiu junto com vocês. Ou seja, eu pego isso
já meio elaborado. Eu estava lembrando que as primeiras coisas estão lá,
486 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

naqueles textos da revista Horizontes Antropológicos: o da Jean, de 1999,


e o da Lu, de 2005. Dois mil e cinco, que é quando eu estou começando a
minha tese de doutorado. E depois o John vai participar da minha banca
de doutorado, em 2008, com as mesmas questões, de som e de poética,
fixação da narrativa etc. E agora eu e o John estávamos juntos na banca
de doutorado da Marcela, que era orientanda do Scott, em março. Tem
várias pequenas costuras que vão sendo elaboradas a partir de interesses
de pesquisa muito diversos. Me parece que o gesto da Jean na produção
do GESTO tem esse caráter aberto e acolhedor que permanece. Como
a Vânia comentou antes, não se trata de uma escola ou linhagem, ou de
um legado que coloca limites teóricos para a pesquisa; pelo contrário,
tem talvez uma recusa de fechamento de um campo. Acho que isso tem
a ver com essa condição de um olhar etnográfico que a Jean acaba nos
ensinando a ter.
Vânia: Isso que você está falando, Viviane, tem a ver com a
proposta do Paulo do nome do evento, de “No Man’s Land”, “No
Performance’s Land”. É um pouco essa terra de ninguém, não porque ela
não é ocupada, mas porque não é propriedade de nenhum paradigma,
de ninguém. Acho bem bacana.
Evelyn: Estava aqui em silêncio, e tudo isso que escuto tem
muitas reverberações nas coisas que eu estava lembrando da Jean, como
se as lembranças dialogassem entre si ou como se o diálogo circulasse
através das passagens que as conectam, criando novas sequências na
memória. No início de uma delas, aparece uma imagem que, sem ser
para mim a mais antiga, é sim uma das mais marcantes: ela remete a
um momento no qual aparece a Jean junto com o seu filho, Alan,
durante a apresentação de um filme16 feito por ele sobre o trabalho dela
com o povo Siona da região do Putumayo. Essa é a imagem de uma
constelação em que, entre outras luzes, dá para ver o orgulho que ela
sente por ele. E imagino que um dos motivos para isso é também o fato
de o Alan ser artista, pois essa conjunção entre arte e ciência é algo que
acompanha faz muito tempo a Jean, que está muito no horizonte de sua
vida. Aliás, é notório que as dedicações da Jean são de longa duração.
Pode-se dizer de toda uma vida, como mostra sua relação com os Siona.

16
Filme Oficina do idioma Bain Coca com o povo Siona do Putumayo. O filme foi desen-
volvido pela Jean junto com seu filho, o cineasta Alan Stone Langdon, e documenta
a oficina de revitalização da língua Bain Coca, realizada com a participação
dos anciões e das anciãs Siona. A produção está disponível no YouTube, no canal
LangdonFilmes: https://www.youtube.com/watch?v=vzCOA7WoTK8.&feature=
youtu.be. Acesso em: 29 jul. 2022.
GESTOs da Jean 487

E também de inabalável fôlego, como mostram os últimos trabalhos


que ela está fazendo, visando à revitalização linguística.17 Todos esses
são sinais de uma paixão ou, mais ainda, de uma convicção, ou seja, do
convencimento do que precisa ser feito. E, como no poema de Brecht,
do que precisa ser feito não uma, mas muitas vezes, toda uma vida.
Essa convicção também foi sempre notória no contexto do curso
de licenciatura intercultural indígena da UFSC, na relação da Jean com
os estudantes indígenas. Pois ela foi alguém que sempre esteve apoiando
a licenciatura indígena, estava junto desde o início, interagindo com os
estudantes indígenas e atendendo aos desafios do curso. Essas lembran-
ças das múltiplas intervenções e ações da Jean fazem para mim ainda
mais evidente que, se eu fosse eleger um gestopalavra que seja assim
muito Jean, eu acho que essa distinção pessoal dela seria, contudo, a
escuta. Ou seja, essa capacidade de escutar o outro, mesmo não estando
de acordo com ele, ou especialmente nesse caso, ou mesmo fazendo
explícito esse desacordo. Jean mostra que o momento da escuta é o que
nos permite interagir. E é lá, nesse instante prévio, em que eu encontro
a estima e o estímulo da Jean para a circulação das palavras e dos gestos.
Luciana: Evelyn, eu fiquei pensando em uma coisa que você falou
agora. Eu acho que tem a ver com a relação com o Alan artista, cineasta,
com a relação mútua de admiração que ela foi nutrindo com cada um
de nós, com o John, com o Paulo... Eu me lembro dessa admiração dela
pela nossa capacidade de produção estética, artística, fora da caixinha.
Nos eventos, eu não me lembro da Jean comentando: “Nossa, olha como
fulano argumentou bem ou levantou determinado conceito”. Mas algo do
tipo: “Olha o que foi aquela performance. Viu quando o John levantou e
fez tal coisa? Olha o que o Paulo trouxe para a gente”. Tudo bem, talvez
seja minha memória, mas ela é muito sensível a isso, como você diz. Esses
cruzamentos com a relação artística, com a antropologia e a etnografia.
Eu acho que tudo isso passa também, no caso dela, pela narrativa. A gente
conta histórias, e ela valoriza muito isso. Nós contamos histórias a partir
de nossas experiências antropológicas, com nossos interlocutores, como
uma forma de nos comunicar com nossos leitores. Eu fiquei pensando

17
Trata-se de trabalhos (como, entre outros, a oficina documentada no filme)
vinculados ao projeto desenvolvido junto com as comunidades siona, no qual se
destaca a necessidade de revitalizar a língua original Bain Coca com a participação
ativa dos avôs e das avós Siona e de suas narrativas como fortalecedores de memória,
história e cultura. O projeto faz parte do programa de etnoeducação da Asociación
de Cabildos Indígenas de los Pueblos Siona, programa vinculado ao Plano de Vida
elaborado pelas comunidades.
488 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

que talvez o nosso texto pudesse ser um grande brinde à Jean. Algo com
o qual cada um de nós, neste momento, do seu cantinho, da sua janela
(física ou virtual), pudesse estar brindando com ela.
Scott: Acho que esse é bom para ser o primeiro e último gesto,
de brinde. Já que todas essas falas envolvem, de alguma forma, as
inebriações líquidas. Mas uma outra coisinha que eu acho que tinha
que entrar de algum modo, que a Evelyn me fez lembrar, é o fato de que
nessas festas ela combina – acho que é bem representativo dessa
combinação da Jean brasileira e americana –, ela combina esse estilo
de fazer uma festa e pedir às pessoas para trazerem suas comidas. Ela
não faz o que muitos de lá de cima, do Hemisfério Norte, fazem, que é
basicamente fazer disso um modo de não ter que cozinhar em casa. Ela
faz para abundância, ela sempre tinha vários pratos, alguma coisa no
forno, e ainda convidando as pessoas para trazer comida. Era festança,
com comilança mesmo. Eu acho legal essa combinação.
Luciana: Tim-tim.
Viviane: Daria para mudar para Jean-Jean [risos].
John: Posso contar mais uma anedota? Só para dizer um aspecto
da Jean. Ela é modesta também. Eu estava em Nova Iorque, eu tinha ido
participar de um seminário do Michael Taussig, na Columbia University,
e falei para ele: “Então, eu sou amigo da Jean Langdon”. Os olhos dele se
iluminaram, e ele falou: “Eu vou te pagar uma cerveja”. A gente foi para
um pub, e eu ganhei uma cerveja por causa da Jean. Ele falou que ela foi
uma pessoa importante para o trabalho dele.
Vânia: Naquele livro, Shamanism, colonialism, and the wild man,
ele agradece a Jean, no início do livro, como uma das primeiras a lhe
falar sobre como era o Putumayo no início dos anos 1970.18
Paulo: Eu acho que foi você, Vânia, que me mostrou uma
fotografia dela nos anos 70... Ou terá sido ela mesma? Já não sei. Eu
há pouco tempo vi uma fotografia dela: a Jean, de jeans n[a aldeia]
siona, nos primeiros tempos, no primeiro ano em que ela lá estava. Uma
fotografia dela muito jovem, só homens, indígenas, em volta dela, e ela
conversando com alguém. Era uma fotografia da pesquisa de campo,
não sei se foi publicada. Achei muito bonita. Porque, quando eu nasci,
a Jean formou-se em antropologia. Graduou-se em 1962/1964, alguma
coisa assim. Eu pensei: nos anos 1960, uma mulher americana estava no
meio da floresta. É mesmo aventura, no real sentido do termo.

18
Taussig (1987, p. xvii).
GESTOs da Jean 489

Scott: Já teve altas aventuras diferentes.


John: Muitas aventuras no sentido de correr risco, ela corre risco,
tem coragem.
Paulo: Na última vez que falei com ela, quando estava aí convos-
co, em 2017, ela me disse que já não conseguia ir à aldeia siona porque,
da última vez que tinha ido, quando saiu do barco, estavam uns caras
com armas de fogo. Ela olhou e disse: “Já não vai dar, daqui eu já não
consigo superar”. Então ela começou essa sua pesquisa com a linguística,
com a tradução. Mas sempre voltou, sempre voltou a eles. Eu, durante
alguns anos, fiz pesquisa no mesmo local. Eu voltava, e regressava, e
regressava. Essa ideia de uma longa duração do terreno tem muito a ver
com certo tipo de antropólogo, em particular norte-americano – mas
também tem uns ingleses que fizeram isso. Essa escola anglo-saxônica
da perenidade, do terreno que nunca se esgota, do regresso por ter um
compromisso com o grupo. É uma forma de engajamento antropológico,
uma forma de manter a presença, manter o contato, manter a ligação.
Acho isso muito bonito da parte dela. Na última conferência que vi dela,
com os Siona, em uma banca enorme, eles homenageavam a Jean: “Essa
aí é a gringa que está sempre conosco aqui”. Eram os velhos e os novos
falando dela. Genial.
John: Pensando aqui no que o Paulo falou, ela falou que está
voltando para os Siona para devolver para eles tudo que eles deram.
Então ela ouviu as coisas deles, ela elaborou, criou um material, criou
um acervo, e agora ela está fazendo o contradom.
Luciana: É isso mesmo. O filme que o Alan produziu mostra isso,
essa recuperação, inclusive, do idioma, de palavras.
Paulo: E como fazemos? Vamos dialogar por e-mail?
Scott: Você que está gravando, Vânia? A gente podia pegar
alguns trechos e fazer uso daquilo que a gente vem falando. Por que
não? Já que é um texto sobre performance, a questão da transcrição19
da performance: a gente pode transcrever uma parte da nossa conversa,
com direito a editar, a censurar [risos]. Eu acho que podia ser também.

19
Seguindo o jogo de referências, Scott relembra um dos possíveis enquadres
dessa discussão. Edward Schieffelin (2005, p. 92), no final de um artigo sobre a
problemática de como transcrever uma performance, sugere que transcrições são
mais úteis quando acompanhadas pela gravação da performance transcrita: “é no
jogo emergente entre a transcrição e a gravação usados em conjunto que o trabalho
com transcrições de performance se torna mais útil e revelador”. Na ausência da
gravação, fica a nota de rodapé como índice de outras possibilidades.
490 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Vânia: Raiz.
Luciana: Tem as raízes e tem também os pássaros que saem
voando da árvore...
Vânia: As flechas do John.
Luciana: Cada um vai ocupar um lugar nessa árvore do texto
do Paulo.
Vânia: A gente pode usar essas imagens: tem a árvore e tem a
ginga também. A gente pode gingar com o Paulo.
Luciana: Eu gosto de gingar com os textos da gente.
Scott: Jeangar...
Paulo: Tem que ver. Ninguém vai falar sobre essa estranha forma
de falar da Jean? Essa outra língua que ela inventou? Há uma língua, um
país linguístico, que se chama Jean Langdon.
John: O país é Jean Langdon.
Paulo: Então posso ir dormir?
Luciana: Pode ir dormir!

[FIM]
Florianópolis, Lisboa, Brasília, São Paulo,
conectados na web em novembro de 2020.

Referências
HARTMANN, L. Performance e experiência nas narrativas orais da fronteira
entre Argentina, Brasil e Uruguai. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre,
ano 11, n. 24, p. 125-153, 2005.
HARTMANN, L.; LANGDON, E. J. Tem um corpo nessa alma: encruzilhadas
da antropologia da performance no Brasil. BIB: Revista Brasileira de
Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, São Paulo, v. 91, p. 1-31, 2020.
INDIGNADOS. Direção: Tony Gatlif. França: Princes Films, 2012. (88 min),
son., color.
LANGDON, E. J. A fixação da narrativa: do mito para a poética da literatura
oral. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 13-36, 1999.
LEPECKI, A. Agotar la danza: performance y política del movimiento.
Barcelona: Centro Coreográfico Galego; Mercat de les Flors; Universidad de
Alcalá, 2008.
GESTOs da Jean 491

RAPOSO, P.; CARDOSO, V. Z.; DAWSEY, J. C.; FRADIQUE, T. (org.). A terra


do não-lugar: diálogos entre antropologia e performance. Florianópolis, SC:
EdUFSC, 2013. (Coleção Brasil Plural).
RAPOSO, P.; RENCK, A.; HEAD, S. (org.). Cidades rebeldes: invisibilidades,
silenciamentos, resistências e potências. Florianópolis, SC: EdUFSC, 2019.
(Coleção Brasil Plural).
SCHIEFFELIN, E. Moving performance to text: can performance be
transcribed?. Oral Tradition, [S. l.], v. 20, n. 1, p. 80-92, 2005.
SOARES, M. M. “Haja vida”: teatro à deriva em São Paulo. 2020. Tese
(Doutorado em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020.
TALLER de Bain Coca con el pueblo Siona del Putumayo. Direção: Alan
Langdon. Florianópolis: INCT-IBP, 2015. (30 min), son., color.
TAUSSIG, M. Shamanism, colonialism, and the wild man: a study in terror and
healing. Chicago: University of Chicago, 1987.
PARTE IV

Histórias, memórias
e afetos
Ode a Jean Langdon:
a antropologia como escuta,
encontro e cuidado

Marcos Antonio Pellegrini


Eliana Elisabeth Diehl
Fernando José Ciello

Viver a antropologia
Este texto foi produzido a três corações afetados, entre outros
tantos, por ter como mentora nossa professora e amiga, homenageada
neste livro. Cada uma(um) de nós foi tocada(o) de modo especial pelos
diversos dons que Jean Langdon distribuiu ao longo de sua carreira
acadêmica.
Em primeiro lugar, buscamos destacar a importância e o impacto
da “escuta” como uma qualidade intrínseca da relação com Jean: escutar
atentamente e com respeito aos sujeitos e dedicar tempo a, de fato,
perseguir o que pensam, dizem e fazem as pessoas, como um ponto de
partida, e não como um aspecto acessório na reflexão antropológica.
Mais do que isso, essa disponibilidade para a escuta sempre colocou
Jean em condições privilegiadas para opinar, pensar, criticar, contribuir
em momentos decisivos de nossas vidas, pessoal ou academicamente.
Essa capacidade de escuta atenta também é um dos elementos que
certamente permitiram que Jean pudesse “atravessar o rio”, como
testemunhamos, ao estabelecer diálogos cruciais entre ciências sociais/
antropologia e saúde, com a comunidade de profissionais dentro e fora
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), iniciando diferentes
sujeitos que hoje atuam e podem também testemunhar a inovação de
Jean em diversos momentos de sua carreira.
Em segundo lugar, gostaríamos de evidenciar como a ideia de
“encontro” parece, da mesma forma, ser uma categoria que bem des-
creve as relações com Jean. Nesta autoria conjunta, resgatamos interes-
santes percursos e linhagens nos quais diferentes encontros e momentos
494 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

transformativos só se tornaram possíveis pela iniciativa ou pelo estímulo


de Jean: seja em outros caminhos, do sul ao norte do país, seja nas costu-
meiras festas que tão magistralmente organiza nas terras do Sambaqui.1
Em suma, em um certo sentido, como Jean nos ensinou, subjaz a essas
relações de encontros e escutas algo forte e misterioso que inicia e indica
caminhos, e que também comunica, transforma e faz refletir.
Por fim, um terceiro elemento, que reflete ainda uma outra faceta
da vida de Jean Langdon, preocupada que é com suas(seus) alunas(os),
com a devolução de sua pesquisa e de sua coleção etnográfica, com seu
trabalho como antropóloga: a própria antropologia como uma forma
de cuidar. Ao longo de nossas diferentes experiências – temporais,
geracionais, espaciais etc. – com Jean, sentimos a certeza de que, por
meio de sua antropologia, fomos não somente lidas(os) e pensadas(os)
por ela, mas também cuidadas(os) e olhadas(os). Criticadas(os),
certamente, mas acolhidas(os) e respeitadas(os). A antropologia que
defende, interessada no engajamento e igualmente na prática e na
reflexão sobre a prática, fica evidente nos muitos modos como Jean é
capaz de envolver, captar, comunicar, resolver e acolher.

Escutar é fazer
Falar é uma necessidade, escutar é uma arte.
Johann Goethe
E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por
aqueles que não podiam escutar a música.
Friedrich Nietzsche

Se, conforme Peirano (2018, s. p.), a etnografia é a teoria vivida


– “não apenas um método, mas uma forma de ver e ouvir, uma maneira
de interpretar, uma perspectiva analítica, a própria teoria em ação” –,
Jean Langdon viveu a teoria e fez uma boa etnografia, que, ainda
conforme Peirano (2018), deve ser realizada com base:
(i) Na habilidade de considerar a comunicação no “contexto da
situação” – a expressão e a ideia são de Malinowski.
(ii) Na difícil transformação, para a linguagem referencial escrita,
do que foi indéxico e pragmático na pesquisa de campo.

1
Sambaqui é um dos bairros na Ilha de Florianópolis, localizado na região norte, de
frente para o Continente.
Ode a Jean Langdon 495

(iii) E, finalmente, na possibilidade de detectar, de forma analítica,


a eficácia social das ações das pessoas.
Como estudiosa das narrativas, Jean foi desvendando, ao longo
de sua vida acadêmica, os diferentes níveis de abstrações, usos e funções
da linguagem. Ao mesmo tempo, foi se tornando exímia narradora, de
que podemos fruir, por exemplo, na leitura de “La visita a la casa de los
tigres” (LANGDON, 2013), em que analisa uma narrativa de iniciação
xamânica entre os Siona, recolhida quando ainda era uma jovem
pesquisadora, na década de 1970, no rio Putumayo, na Colômbia. Aqui,
ela dá ênfase às estratégias de contextualização que ligam os eventos
da narrativa a outros que os precedem ou sucedem, à intertextualidade
dialógica que os ligam entre si e à potência da narrativa de transformar
a experiência e criar expectativas e significados compartilhados para
eventos futuros. As narrativas, ela concorda com Peter Burke (1957
apud LANGDON, 2013, p. 195), seriam “equipamentos para a vida”, e
a interação entre a(o) narradora(or) e suas(seus) ouvintes construiria
a realidade vivida. Mas, ao mesmo tempo que ensinou sobre o poder
ilocucionário da performance narrativa, ela praticou o poder da escuta,
demonstrando que esta também tem a potência de transformar a
experiência e de criar expectativas e significados compartilhados para
eventos futuros. Talvez dessa maneira tenhamos sido afetadas(os).
No final dos anos 1980, eu, Marcos Pellegrini, era um médico
recém-formado que passava por uma primeira experiência profissional
entre os Yanomami, quando encontrei Jean pela primeira vez em um
seminário sobre a implantação do Projeto Calha Norte,2 promovido
pelo Museu Universitário da UFSC.3 Eu fazia parte de uma equipe de
saúde que testemunhava os primeiros efeitos mortais das epidemias
de gripe e de malária, introduzidas pela invasão garimpeira e pela pró-
pria movimentação de pessoas envolvidas na construção da infraestru-
tura dos pelotões de fronteira do projeto. Essas epidemias os dizimariam
nos anos seguintes, tornando catastróficas as expectativas sobre a saúde
e a sobrevivência de muitas comunidades. Naquele período, a equipe

2
O Projeto Calha Norte foi um programa de desenvolvimento civil e militar na região
Norte do Brasil, cujos objetivos fundamentais envolviam tanto a proteção quanto
o povoamento das fronteiras ao norte da calha dos rios Solimões e Amazonas.
O projeto incluía a instalação de quatro pelotões de fronteira na Terra Indí-
gena Yanomami.
3
O Museu Universitário da UFSC passou a chamar-se, em 2012, Museu de Arqueologia
e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral (MArquE).
496 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

de saúde, parte de um projeto de proteção à saúde desenvolvido pela


Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), fora afastada
juntamente com outras organizações e pessoas que apoiavam as(os)
Yanomami. Creio que foi nesse momento que o sentimento de revolta,
angústia e impotência começou a ser transformado pela possibilidade
de ser narrado: eu tinha encontrado uma ouvinte que, de certa
forma, transformou meu olhar. Essa possibilidade narrativa veio a ser
concretizada na publicação de um testemunho (PELLEGRINI, 1991),
um recurso para suportar a dor.
Tivemos outras oportunidades de nos encontrar em eventos
promovidos pelo Departamento de Medicina Preventiva da Escola
Paulista de Medicina (EPM),4 coordenados pelo professor Roberto
Baruzzi5 (outro professor que afetou minha vida). Nesses eventos, com
uma plateia de profissionais de saúde, ao escutá-las(os) geralmente
expressando suas ideias e opiniões com base na formação e na
experiência biomédica, Jean falava sobre a saúde como um processo
sociocultural, que a doença acontece na vida das pessoas, não apenas
nos organismos individuais. Enfatizava que o processo saúde-doença-
atenção é constituído de crises, conflitos e negociações de sentidos,
aspectos que ficavam tão evidentes nos exemplos que trazia de seu
trabalho entre as(os) Siona da Colômbia.
Jean fazia um convite à reflexão sobre o papel das políticas, dos
serviços e das(os) profissionais de saúde em relação aos povos indígenas,
e com ele atraiu e acolheu diversas(os) dessas(es) profissionais em seus
projetos de pesquisa. Fui incluído no seu grupo em 1995, como seu aluno
de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
da UFSC (PPGAS/UFSC), para uma pesquisa sobre as percepções e os
usos dos serviços de saúde pelas(os) Yanomami do Alto Parima, onde
permaneci até 2008, quando concluí o doutorado. Somos testemunhas
de sua paciência em digerir nossas anotações e comentários baseados
no senso comum e na lógica biológica, em tensionar nosso olhar e nos
oferecer um referencial que nos ajudasse a pensar. Assim, ela contribuía

4
Atualmente Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
5
O professor Baruzzi, do Departamento de Medicina Preventiva da EPM/Unifesp,
tem papel de destaque na área de saúde indígena, pois foi o criador, em 1965, das
ações de saúde no Parque Indígena do Xingu, referência nacional e internacional em
ensino, pesquisa e intervenções de saúde para povos indígenas. Pelo Projeto Xingu,
muitas(os) pesquisadoras(es), estudantes e profissionais de saúde tiveram (e têm) a
oportunidade de vivenciar e se especializar na área.
Ode a Jean Langdon 497

para a construção de novos sentidos conferidos às nossas experiências e


em nós criava novas expectativas: Jean se tornou para nós uma espécie
de xamã que tentou nos ensinar a escutar, ver e pensar (habilidades
que permitiriam ao xamã Siona perceber o que está para além do
mundo aparente).
E ela o fez escutando, observando, pensando, oferecendo possi-
bilidades, encontrando, cuidando... Mas isso é o que a gente pensa que
ela faz sem saber que faz, parafraseando suas próprias palavras, ditas no
evento de homenagem a ela – “Uma antropologia da práxis”. Não à toa, a
imagem de divulgação dessa homenagem é Jean em um gesto de escuta.

Encontrar é dialogar
Ir do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) para o
Centro de Ciências da Saúde (CCS) do campus Trindade da UFSC
é mais do que cruzar o Rio do Meio6 por uma de suas pontes. Aqui,
representa o encontro da antropóloga Jean Langdon com colegas da
saúde, construindo outras pontes e estabelecendo elos de/para diálogos,
conformando uma rede de pesquisadoras(es) das áreas da antropologia
e da saúde engajadas(os) criticamente no desenvolvimento de “pesquisas
e modelos analíticos adequados para avaliar as políticas públicas e os
serviços, reconhecendo a diversidade cultural e de práticas de saúde”
(LANGDON; DIEHL, 2020, p. 20). Nessa rede, quero destacar como
um dos lugares de encontros o Núcleo de Estudos sobre Saúde e Saberes
Indígenas (NESSI),7 criado por Jean em 1987, junto ao PPGAS.
Fazia pouco mais de um ano que eu, Eliana Diehl, havia assumido
como professora do Departamento de Ciências Farmacêuticas quando,
em 1992, conheci Jean. Fizemos uma reunião no CCS, com a presen-
ça do professor Lúcio Botelho, à época diretor do centro, e de estudantes
do PPGAS/UFSC, tratando da rearticulação do NESSI. Nosso objetivo
central foi não só o de promover pesquisas e formação em etnologia e
antropologia da saúde, mas também de atuar politicamente na saúde

6
O Rio do Meio é o principal curso de água no campus Trindade da UFSC, tendo
como principais afluentes os córregos da Serrinha, do Reservatório, do Pantanal,
do Bosque e da Arquitetura, que compõem a Bacia Hidrográfica do Rio do Meio
(UFSC, 2020).
7
Até o início dos anos 2000, era denominado Núcleo de Estudos da Saúde Indígena
(NESI). Neste texto, simplificando, usarei somente NESSI, ainda que o texto traga
memórias anteriores a 2000.
498 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

indígena. Essa articulação entre pesquisa e política faz-se presente


desde então em minha vida e no núcleo, tendo Jean como inspiradora
e mentora.
Como não podia deixar de ser, passei a atravessar as pontes do Rio
do Meio, indo ao encontro de Jean e de suas(seus) colegas do PPGAS/
UFSC, cursando algumas disciplinas, como “Antropologia simbólica”
e “Antropologia da saúde”, ambas tendo Jean como professora. Em
1994, fizemos as primeiras viagens à Terra Indígena Xapecó, no oeste
de Santa Catarina, como membros do projeto de pesquisa do professor
visitante na UFSC Robert Crépeau, do Departamento de Antropologia
da Université de Montréal, do Canadá. As viagens continuaram em
1995, e o projeto registrou em vídeo e em fotografias o ritual do Kiki, um
culto kaingáng às(aos) mortas(os), cujo material gerou o documentário
Ritual do Kiki: imagens antropológicas. Nessas viagens, sempre me
deslocava para a “Enfermaria”, como as(os) Kaingáng chamavam o
posto de saúde da aldeia Sede, buscando compreender a sua dinâmica
de funcionamento e anotando os medicamentos disponíveis para
as(os) indígenas – as incursões iniciais foram fundamentais para meu
doutorado alguns anos depois.
No início dos anos 1990, o movimento indígena no Brasil,
seguindo as lutas empreendidas na década de 1980 e as tendências de
outros países da América Latina (JACKSON; WARREN, 2005) para
uma “política da diferença”, reforçou a reivindicação pelo direito a
um modelo diferenciado de ações e serviços de saúde. Esse contexto
reverberou em inúmeros eventos a partir de então, e nós, do NESSI,
também promovemos os debates e participamos do movimento. Trago
alguns deles.
Previamente à “II Conferência Nacional de Saúde para os Povos
Indígenas”, o professor Roberto Baruzzi,8 já citado acima por Marcos,
nos convidou para o seminário “A Universidade e a Atenção à Saúde do
Índio”, realizado em São Paulo entre os dias 5 e 7 de outubro de 1993.9
O objetivo do seminário foi “aprofundar a discussão sobre o papel da
universidade na atenção à saúde do índio”, nas palavras do professor
no convite oficial, tendo em vista a participação de representantes de
universidades nas várias iniciativas direcionadas à formulação da

8
Não cabe aqui detalhar o papel do professor Baruzzi ao longo de tantos anos, mas
salientar que o NESSI teve uma boa aproximação com ele e seu grupo.
9
A “II Conferência Nacional de Saúde para os Povos Indígenas” aconteceu entre 25 e
27 de outubro de 1993, em Luziânia, Goiás.
Ode a Jean Langdon 499

Política Nacional de Saúde para os Povos Indígenas. Minha participação


nesse seminário como uma das representantes do NESSI fortaleceu o
desejo de aprofundar os estudos na temática.
Em abril de 1995, o NESSI organizou na UFSC o “Seminário
sobre Pesquisa Transdisciplinar em Saúde Indígena”, com o objetivo de
fornecer uma base para o conhecimento da relação saúde-cultura e da
situação das(os) indígenas de Santa Catarina, bem como de suscitar a
discussão sobre pesquisa transdisciplinar entre povos do estado. Entre
outros, participaram os professores Francisco Salzano, da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), referência nos estudos de
genética indígena, Ulisses Confalonieri e Carlos Coimbra Jr., ambos da
Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/
Fiocruz). Marcos Pellegrini falou de suas experiências como médico
entre as(os) Yanomami.
Em março de 1996, em parceria com a ENSP/Fiocruz e o
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
o NESSI organizou na UFSC o curso de extensão “Saúde de populações
indígenas”, visando a estimular pesquisas em saúde indígena, enfocan-
do aspectos ecológicos, demográficos, epidemiológicos e culturais.
Estava direcionado para professoras(es), estudantes de graduação e
pós-graduação e profissionais interessadas(os) ou trabalhando com a
temática da saúde indígena. Mais uma vez contamos com a presença de
Carlos Coimbra Jr., além das do professor Ricardo Ventura Santos – da
ENSP/Fiocruz e do Museu Nacional – e da professora Nancy Flowers
– do Hunter College, da City University of New York –, que juntos
vinham pesquisando saúde, sociodemografia e ecologia humana entre
as(os) Xavante de Mato Grosso.
Motivada pelas atividades do núcleo e pela aproximação com
a antropologia, em março de 1997 ingressei no doutorado da ENSP/
Fiocruz, com Ricardo V. Santos como orientador principal, Jean
Langdon como segunda orientadora e Carlos Coimbra Jr. como terceiro
orientador, uma prática aceita à época. Meu campo foi com as(os)
Kaingáng da Terra Indígena Xapecó, e a tese defendida em 2001 buscou
articular a saúde pública/saúde coletiva, a antropologia e as ciências
farmacêuticas, abordando os usos que as(os) Kaingáng faziam dos
medicamentos, ou “remédios da farmácia”, segundo a categoria nativa.
Jean foi fundamental com seu olhar interdisciplinar, enfatizando os
aspectos políticos que meus dados etnográficos traziam, entre outros.
Nos anos 1990, ao mesmo tempo que Jean fomentava as
atividades do NESSI e incluía orientandas(os) de mestrado e doutorado,
500 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

formadas(os) em diferentes áreas do conhecimento,10 atuava na


Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (CISI) – um órgão consultivo
do Conselho Nacional de Saúde, instalado em 1992 –, representando
a Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Na CISI, onde
permaneceu até 2006, sempre buscou construir o diálogo com as(os)
representantes indígenas, mostrando a importância e a necessidade de
realizar pesquisas em saúde indígena, salientando como elas podem
contribuir para as políticas públicas e a implantação de ações e serviços
de saúde sensíveis à diversidade sociocultural desses povos.
Em dezembro de 2000, como consequência de seu engajamento
e compromisso com a saúde indígena, Jean atravessou as águas dos rios
Negro e Solimões, em Manaus, indo ao encontro do rio Amazonas. Ela
e Carlos Coimbra coordenaram a “Oficina de Trabalho sobre Pesquisa
em Saúde dos Povos Indígenas no Brasil”, realizada no Instituto Leônidas
e Maria Deane (ILMD), da Fiocruz-Amazonas. Essa oficina teve como
objetivos: a) consolidar o fórum criado em abril de 2000, a partir de
convocação da CISI; b) discutir o estado atual das pesquisas sobre saúde
indígena, nas áreas de epidemiologia e antropologia; c) identificar lacu-
nas do conhecimento, propor linhas de investigação e formas de arti-
culação das instituições de pesquisa e ensino com os serviços de
saúde. Contando com a presença de algumas(uns) pesquisadoras(es) já
mencionadas(os) aqui, ainda participaram a médica-antropóloga Luiza
Garnelo (ILMD/Fiocruz-AM), a médica-sanitarista Ana Lúcia Escobar
(Universidade Federal de Rondônia), o antropólogo Renato Athias (Uni-
versidade Federal de Pernambuco) e profissionais atuantes nos recém-
implantados Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). Poucos
meses depois, em maio de 2001, na ENSP/Fiocruz, foi criado o Grupo
Temático Saúde Indígena, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(GTSI/Abrasco), do qual passaram a fazer parte Jean e outras(os) nove
professoras(es) (algumas(uns) citadas(os) aqui), de diferentes instituições
de norte a sul do país, com larga experiência de trabalho sobre variados
aspectos relacionados à saúde das populações indígenas no Brasil.
Desde então, membros do NESSI têm feito parte do GTSI/
Abrasco,11 e essa parceria vem gerando pesquisas e publicações e

10
Como medicina, biologia, enfermagem, nutrição, farmácia, só para citar algumas.
A diversidade de formação de suas(seus) orientandas(os), especialmente da saúde,
é característica da trajetória acadêmica de Jean, demonstrando o fascínio que ela
exerce sobre quem a escuta e a encontra.
11
Para saber mais, ver em: https://www.abrasco.org.br/site/gtsaudeindigena/.
Ode a Jean Langdon 501

promovendo inúmeras atividades, principalmente em congressos,


como conferências, palestras, fóruns, mesas-redondas e oficinas. Cito
uma oficina em especial, que Jean e eu coordenamos no “III Congresso
Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde” (esse é um dos
eventos da Abrasco), realizado em julho de 2005 na UFSC. A oficina
de trabalho “A Antropologia e os Desafios da Saúde Indígena no Brasil”
refletiu sobre algumas temáticas frequentes nos discursos oficiais e
não oficiais, bem como na agenda política para os povos indígenas,
como “atenção diferenciada”, “interculturalidade”, “medicinas tradi-
cionais”, “controle social” e “ética e pesquisa”. Com um público de
aproximadamente 80 pessoas de todo o país, pela primeira vez em uma
atividade do GTSI participaram convidados indígenas: Wilson Jesus
de Souza (Pataxó da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste/
Minas Gerais/Espírito Santo) e Ary Paliano (Kaingáng representante
das organizações indígenas no Conselho Nacional de Saúde). Além
de indígenas, estiveram presentes pesquisadoras(es) (convidadas(os)
internacionais: James Trostle, do Trinity College, EUA; e María Rossi,
da Fundación Etnollano, Colômbia), professoras(es), estudantes de
pós-graduação, profissionais de saúde e gestoras(es) – da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Programa Nacional de
DST/Aids, da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), da organização
não governamental (ONG) Projeto Rondon, de Secretarias Estaduais de
Saúde. Vale dizer que foi a quarta oficina ligada ao GTSI (a primeira
ocorreu em 2002).
Em 2009, Jean assumiu a coordenação do recém-criado Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural (INCT-IBP), que visa a
“desenvolver um sólido programa de pesquisas, ações educacionais e de
intervenção, no âmbito de vários segmentos da população brasileira”
(IBP, [2021], s. p.), a partir da cooperação interinstitucional e tendo a
antropologia como base das investigações. No IBP, o NESSI, como parte
da ampla rede “Saúde: práticas locais, experiências e políticas públicas”,
estendeu as colaborações com pesquisadoras(es) de outros países da
América Latina, particularmente México e Colômbia,

[...] participando de debates teóricos e metodológicos rela-


cionados com o desenvolvimento de conceitos adequados para
compreender o pluralismo médico característico da América
Latina. Seus pesquisadores reafirmam o valor do método
etnográfico para examinar as relações micropolíticas e a agência
indígena e autonomia, como manifestado nas interações entre
502 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

os profissionais de saúde e as populações que eles atendem.


(LANGDON; DIEHL, 2020, p. 26).

Os exemplos que trago, parte pequena das memórias, revelam a


incrível capacidade que Jean tem de promover encontros, produzindo
diálogos que navegam córregos e pequenos e caudalosos rios, que
desembocam em mares e oceanos.
Jean impactou (e continua impactando) minha trajetória de
vida, não só acadêmico-profissional, mas pessoal. Há alguns anos nos
tornamos vizinhas, e a proximidade reforçou nossos laços de amizade,
com muitos encontros para beber e comer, dançar e cantar, conversar
e escutar. Excelente cozinheira, entende de ingredientes e misturas,
transformando o alimento e dando um toque secreto, que imprime no
preparado um algo a mais, misterioso, que sinto como parte do mundo
dos espíritos. Outra particularidade, que muitas(os) de nós vivenciamos,
é o quanto nos faz sentir bem em sua casa, tanto que festas e encontros
continuam tarde e noite adentro, mesmo Jean tendo ido discretamente
recolher-se em seu quarto.
Desses encontros memoráveis em sua casa junto ao “mar de
dentro”, nas terras do Sambaqui, eu não poderia deixar de mencionar
a festa que marcou os 25 anos de Jean na Ilha do Desterro. Com a casa
cheia, na presença do filho, Alan, e da filha, Elena, na noite de 16 de
janeiro de 2009, o amigo Luís12 discursa: “Bodas de prata! Que coisa
maravilhosa! A cidade agradece a você, a cidade oculta, o poder oculto
da cidade. A sua presença é fundamental!”. Jean responde: “E os filhos!”.
Segue então a entrega da “chave da cidade” para Jean, que a aceita
sorrindo muito, visivelmente emocionada. Evocando esse ato solene,
simbolicamente exaltamos sua generosidade e o cuidado para com
a(o) outra(o), seja quando compartilha seus saberes, marcados por sua
aptidão de conectar o local, o regional, o nacional e o global e de ligar
conceitos e teorias à práxis, seja quando nos recebe em sua casa.

Cuidar é práxis
Entre as(os) que assinamos este ensaio, eu, Fernando Ciello, sou
o que mais recentemente conheceu Jean Langdon. Fui seu orientando

12
Esposo de Marisol (Maria Soledad Etcheverry Orchard, que também escreve nesta
coletânea em homenagem à Jean).
Ode a Jean Langdon 503

de doutorado, em uma tese (CIELLO, 2019) em que exploramos a vida


cotidiana de uma clínica-dia psiquiátrica, e tive também o privilégio de
ocupar um dos quartos da casa do Sambaqui por praticamente todo o
período da pós-graduação em Florianópolis. Neste ensaio, apostamos
nas diferentes experiências temporais e geracionais que tivemos com
Jean como uma forma de demonstrar a potência dos encontros com ela.
O que conto reforça parcialmente aspectos que já foram
anteriormente comentados por Marcos Pellegrini e Eliana Diehl.
O próprio ensaio que ora escrevemos testemunha um encontro que
foi tornado possível por meio de Jean Langdon, cuja generosidade
sempre oferece meios para que as pessoas se reúnam, se encontrem e
construam novas relações. Ao mesmo tempo, no entanto, o que conto
tenta ressaltar traços talvez pouco enfatizados sobre Jean Langdon e
que foram especiais em meu encontro com ela: o respeito por minhas
escolhas e opiniões, o interesse em minha vida, o cuidado com meu
bem-estar e com a vida cotidiana.
Com frequência, a sinceridade com que Jean se comunica é
enunciada por outras(os), reafirmando aquilo que é mais candente em
sua personalidade: sua sagacidade, sua inteligência, sua comunicação
sempre direta e honesta. Mas há também nela, junto à crítica e ao estilo
questionador, uma preocupação genuína por compreender outras(os),
suas dificuldades, suas ideias, envolver-se. Em meu entendimento, esse
modo de “estar atenta à(ao) outra(o)” representa – além de um de seus
grandes legados como antropóloga e professora – também um modo de
cuidar, uma prática alimentada cotidianamente pelo jeito perspicaz com
que se move no mundo.
Conheci Jean em 2015, quando preparava minha ida para
Florianópolis, em razão da aprovação para o doutorado em antropologia
social do PPGAS/UFSC. Na época, como professor recém-admitido na
Secretaria de Estado da Educação e do Esporte do Paraná (SEED-PR),
minha condição para o início do doutorado era a possibilidade de bolsa
de estudos, uma vez que não poderia ter afastamento nem auxílio de
outras fontes caso deixasse o cargo de professor de sociologia em Curi-
tiba (PR). Com o afastamento negado no Paraná e as poucas condições
de que dispunha, a bolsa era a única forma de cursar o doutorado em
outra cidade. Vinha de uma trajetória de estudos iniciada em Toledo
(PR), na graduação em ciências sociais, e do mestrado em antropologia
na Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde havia sido coorientado
por Laura Pérez Gil, também orientanda de Jean Langdon de
anos anteriores.
504 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Meu primeiro contato com Jean foi, assim, motivado pela


necessidade de ter um lugar para morar em Florianópolis nos primeiros
meses, quando ainda havia alguma insegurança sobre a bolsa. Laura
havia repassado minha demanda para Jean, que indicara a possibilidade
de que eu ficasse em sua casa enquanto ela viajava por alguns períodos
no primeiro semestre de 2015. Eu teria como principal trabalho cuidar
de Billie e Willie, os cachorros fujões de Jean. Como “compensação”,
não precisaria pagar aluguel naquele momento e poderia aproveitar a
casa, recheada de livros e histórias antropológicas que, como me disse
certa vez, poderiam adicionar em minha formação. Permaneci na casa
até o fim do curso de doutorado, em 2019, com alguns intervalos para
pesquisa de campo e para o doutorado-sanduíche.
Da convivência que tive com Jean, guardo com muito carinho
uma variedade de momentos. Um de que me lembrei algum tempo
depois, e do qual já falei em outras oportunidades, é o de sua premonição
poucos dias antes de uma de suas primeiras viagens, durante a qual eu
ficaria cuidando da casa. Naquele dia, Jean já havia saído para viajar,
mas, voltando subitamente, enunciou do vão aberto da porta que ali eu
“aprenderia muito”. Se despediu então, depois do enigmático enunciado,
me desejando boa estadia e fechando a porta, caminhando rapidamente
para fora das terras do Sambaqui. De fato, concluí, em anos mais
recentes, que o período do doutorado foi de grandes transformações
e de aprendizados, principalmente porque pude ser ouvido e pensado
por Jean. Interessado academicamente no mundo da saúde mental,
mas também assolado por sombras relativas à minha sexualidade, a
experiências familiares e afetivas, pude começar a compartilhar algumas
narrativas que, por convenção, até então não eram contadas por mim.
Subitamente, eu, criado no interior do Paraná, com muitas experiências
entre “o dito e o não-dito” (LANGDON, 1993), me via num interessante
contexto de conversas diárias sobre um emaranhado que envolvia
saúde, antropologia, saúde mental, família, depressão, experiência,
espiritualidade, sexualidade, entre muitos outros temas.
A temática da saúde mental foi, assim, inevitável durante os anos
que convivi com Jean na casa do Sambaqui. A experiência de ouvi-la
contar sobre suas próprias experiências, de compartilhar vivências, foi
aos poucos construindo uma preocupação com a vida cotidiana das
pessoas que estavam em tratamento psiquiátrico. Uma parte significativa
do que conversávamos, e uma grande crítica de Jean aos estudos relativos
a contextos institucionais, relacionava-se à importância de ir além do
sofrimento em si e de inquirir sobre os contextos que permitiam que
aquelas ideias e sensações surgissem. Ao indicar, portanto, a dificuldade
Ode a Jean Langdon 505

de trabalhar com as narrativas de pessoas tomadas como “portado-


ras de transtornos psíquicos” (como era meu contexto de pesquisa), Jean
apontava também a necessidade de considerar tais falas e experiências
para além dos signos específicos da “doença” e do “sofrimento”. Assim,
aos poucos, produto de uma convivência atenta e generosa, minha tese
se transformou em um estudo preocupado com o que acontecia no
cotidiano da clínica-dia, com a reflexão sobre como categorias tais quais
a de depressão e a de “pessoas que não aderiam ao tratamento” emergiam
dentro dos quadros experienciais da instituição (CIELLO, 2019).
Reassistir às filmagens do evento “Uma antropologia da práxis”,13
que dá origem a muitos dos debates nesta coletânea (e que também é
uma ideia importante nesta seção), é uma oportunidade de compreender
o impacto que Jean teve na vida de tantas pessoas e como questões
relacionadas ao universo da prática são sempre lembradas.
Volta e meia, quando eu retornava para Florianópolis depois de
períodos de campo no Paraná, Jean perguntava “como andava minha
cabeça”. Algumas vezes, minha resposta vinha acompanhada do choro e
do sofrimento que ela mesma me lembrava de olhar sob a luz de diferen-
tes enquadres – como tentava fazer na clínica-dia. Frequentemente,
também, à luz e à sombra da pequena luminária da cozinha, despontavam
receitas naturais – para que eu evitasse tomar tantos remédios – que
ajudariam a aliviar diferentes dores; medicamentos homeopáticos,
antroposóficos. Receitas que, ressaltava sempre, assim como também
falava sobre fatos dos universos dos povos originários: não se tratava
de crenças, nem de folclore – havia aí uma importância a ser conferida
à(ao) outra(o) e aos diferentes modos de conceber e praticar saúde, e
uma vocação intrínseca a ser atribuída à antropologia, um compromisso
político, de reconhecimento, de leitura do mundo, de prática.
O fato curioso, que relato com a certeza de que ela concordará
com a ressalva, é de que na grande maioria das vezes Jean fazia tais
coisas indicando que não era um modo de responsabilizar-se por minha
vida. Muito honesta sobre suas qualidades e o que pensa serem seus
defeitos, Jean nos lembra sempre sobre seus “abraços americanos” e sobre
suas ressalvas com sentimentos e choradeiras. “Eu sou norte-americana”
– acho que ouvimos todas(os), eventualmente. Ainda assim, lembrando
o que ela mesma falou no “Uma antropologia da práxis”, talvez tenhamos

13
Como muitas outras filmagens e materiais audiovisuais da trajetória intelectual de
Jean, também o “Uma antropologia da práxis” foi filmado por Alan Langdon, seu
filho, e está disponível no YouTube.
506 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

sido todas(os) cuidadas(os) por Jean, sem que ela soubesse que o estava
fazendo, e sem também pretender ser encaixada em qualquer condi-
ção rígida ou inescapável de cuidadora, resistindo a qualquer explicação
rápida sobre si, e ao mesmo tempo dispondo de si e de suas muitas
qualidades para melhorar a vida daquelas(es) ao seu redor: talvez sua
própria teoria praxiológica do cuidado e do cuidar.

Jean Langdon: sobre como promover saúde


fazendo antropologia
Talvez uma das impressões mais permanentes das várias
experiências com Jean é a de compreender as limitações da antropologia
em suas leituras do mundo e das pessoas; a de duvidar do efeito
totalizante das interpretações das(os) antropólogas(os) e a de reabitar a
vida cotidiana com o inesperado, com o mistério, com o inacreditável.
Herdeira que é de um importante momento sócio-histórico-teórico da
antropologia, que produziu reflexões sobre simbolismo e sobre teorias
da prática (ORTNER, 2007, 2011), Jean parece ter sempre enfatizado a
importância de pensar como as práticas dos sujeitos emergem dentro de
enquadramentos mais amplos de significados. Algumas das principais
contribuições de Jean, e pontuamos aqui duas, em momentos bem
diferentes, apontam para dois aspectos relevantes nesse sentido.
Em primeiro lugar, sua clássica e central contribuição sobre
representações de doença e itinerários terapêuticos entre as(os) Siona
(LANGDON, 1994), em que Jean empresta da sociolinguística a no-
ção de registro para indicar o nível “de causalidade que está sendo
comunicado em um dado contexto” (LANGDON, 1994, p. 130). Ao
fazer esse empréstimo, a antropóloga lembra uma série de situações
que são centrais para a reflexão antropológica e que foram, ao longo
de sua trajetória, essenciais para tornar a antropologia uma disciplina
compreensível para profissionais de diferentes campos: olhar para o
contexto, as intencionalidades, as lógicas da ação.
Essa preocupação com a lógica da ação, com o contexto, aparece
de modo central também em suas elaborações sobre narrativa. Para
Langdon, as narrativas têm “começo, meio e fim” (LANGDON, 1993,
p. 155). Contrapondo-se a esse sentido talvez mais restrito e esquemático
da narrativa, encontra-se, no entanto, também o reconhecimento de
um dinamismo referente ao que “as pessoas selecionam como sendo
importante para expressar suas histórias e expressar seus valores”
Ode a Jean Langdon 507

(LANGDON, 1993, p. 155). Mais do que uma concepção específica sobre


a ação humana – a qual é sempre vista por Jean como essencialmente
dinâmica e multidirecional, assim nos parece –, a narrativa aparece
como uma ferramenta para compreender como se estrutura a ação.
Ainda assim, no entanto, Jean também não deixa de resgatar o papel
performativo inerente às narrativas, como forma de atribuir significados
a eventos específicos e como artefatos culturais empregados em
contextos especiais e de determinadas formas (LANGDON, 2001).
Queremos sugerir, portanto, com tudo que temos dito aqui, que
existe uma qualidade intrínseca de engajamento com a(o) outra(o) e
com outras realidades que extrapola nossas representações usuais sobre
“cuidado” nas práticas de Jean. Como antropóloga médica/da saúde,
Jean tem sido atenta ao longo de sua trajetória intelectual aos diferentes
sistemas de cuidado e de cura, e crítica dos modelos biomédicos, que
centralizam a individualidade e o médico em detrimento de outras
formas de cuidar. Assim, a escuta, o encontro, a crítica, dentro dessa
história particular que estamos contando, também sinalizam modos de
cuidar e de promover saúde.
A ode, ainda que de modo “barroco” – como diz Jean, lembrando-
nos da frequência com que antropólogas(os) se comunicam com
floreios e rebuscamento –, é uma forma singela de recordarmos uma
qualidade simultaneamente meticulosa e poética que habita a vida de
Jean. Dolorosamente honesta e direta, mas também enigmática. Não
é exagero compararmos a imagem de Jean com a do xamã: aquela
que negocia com o mundo dos espíritos (aqueles das florestas, das
comunidades, aqueles que habitam a UFSC, o PPGAS e as terras do
Sambaqui, os mundos-outros que não conhecemos); aquela que permite
comunicação; aquela que viaja; por fim, aquela que traz bem-estar.

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uma clínica-dia. 2019. 346 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) –
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De escuchar, ser gente y
de antropologías liminales:
consideraciones y afectos para
Jean Langdon y su antropología

Sandra Carolina Portela G.

En 2008 salí de Colombia para cursar mi maestría en antropolo-


gía social en la Universidad Federal de Santa Catarina. Me acompañaba
como equipaje una maleta con mis pertenencias y un manojo de
sueños que se regocijaban en la posibilidad de continuar mi formación
académica. Mi proceso para llegar al Brasil fue largo, y desembarqué
imaginando que en esa maestría realizaría una tesis que hablaría sobre
las consecuencias de la construcción de la hidroeléctrica de la Salvajina,
en el suroccidente colombiano, para el pueblo Nasa y comunidades
afrodescendientes de mi país, y que en ese caminar me acompañaría el
profesor Silvio Coelho dos Santos. Mal sabía yo que el destino, o como
quieran ustedes llamarlo, traería caminos diferentes para mí. Silvio nos
dejó algunas semanas después de mi llegada, sin que nunca tuviéramos
oportunidad de vernos ni de concretar los planes que habíamos hecho
vía e-mail y por teléfono con anterioridad.
La primera persona en acogerme y advertirme de que el camino
estaba a punto de tomar otros rumbos fue la profesora Jean. Los jueves
en la mañana, cuando teníamos clase de antropología simbólica, ella
pasaba en su carro y estacionaba en una orilla de la calle Gilson da Costa
Xavier, donde tuve mi primera residencia en la isla, que estaba en el
camino de su casa a la universidad, y me recogía. A mí me alegraba
profundamente que llegaran los jueves, porque, recién llegada, no
tenía mucho con quien conversar, primero, porque a nadie conocía, y
segundo, porque aparentemente cuando hablaba, no todas las cosas que
pronunciaba con mi “portuñol” recién estrenado se entendían.
En esos pequeños viajes, nuestro portugués lleno de acentos,
gramáticas y fonéticas foráneas fluía libremente. Conversábamos de
510 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

muchas cosas. Y a mí me gustaba escuchar a Jean, quien siempre tiene


cosas interesantes para contar, cargadas de indignación, de sensatez y
también de su humor desparpajado. Pero, sobre todo, me gustaba tener
con quien hablar de la transición tan difícil que estaba viviendo, porque
sí, Jean me preguntaba todas las semanas por mi hija que estaba lejos,
por mi familia, por mi país, por las clases, por la vida que me rodeaba.
Y me escuchaba. Y luego me daba consejos y me hacía reír o me dejaba
desarmada con sus comentarios a mi situación, siempre transparentes,
directos, sin filtros.
Fue en una de esas mañanas que le conté con preocupación que
no había podido contactarme con Silvio desde mi llegada y que eso
me preocupaba, y en una delicadeza inusual en ella, en un tono de
voz también afectado, me dijo que era muy probable que tuviera que
habituarme a la idea de seguir adelante con mis planes sin él. Fue ella
la única que se atrevió a decir lo que nadie quería contarme. Jean tenía
razón, y semanas después, me vi con la tristeza en el corazón de nunca
haber conocido a mi primer orientador, el hombre gentil que siempre
alentó mi llegada al Brasil y mi trabajo de investigación, pero también
con la angustia de encontrar una nueva orientación. Me pareció lo
más natural pedirle a Jean que me ayudara con ese asunto, porque al
fin y al cabo ella conocía Colombia, porque ella también trabajaba
con comunidades indígenas, y al proponérselo, me dijo que sí, aunque
después de varios “peros”. Al final me dejó muy claro que ella no sabía
muy bien del tema que yo quería tratar, pero que sí, que le hiciéramos,
que dábamos un “jeito”.
Ese “jeitinho” nos alcanzó para compartir ocho años de nuestras
vidas como orientadora y orientada de maestría, doctorado y hasta
de una estancia posdoctoral. Pero compartimos no sólo en ese papel,
sino también como mujeres que se acompañan y comparten la vida
que las atraviesa, en una relación que mucho me ha enseñado sobre
la antropología, pero también sobre la tenacidad y la fuerza, sobre la
sensatez y la generosidad, sobre la vida.
Volví a Colombia nuevamente con una maleta en mano. Lo
que había en la maleta se tornó minúsculo, pues entre muchas otras
cosas, venía con la familia crecida, con una brasileñita de corazón y un
brasileñito de nacimiento, con otro manojo de sueños y esperanzas para
un país en el que soplaban vientos de paz, aunque pronto dejaron de
soplar. Llegué con la tristeza de dejar una familia del corazón y la alegría
de abrazar la de la sangre. Llegué a Colombia con la aprobación de mi
maestra, que le apostó al futuro que me esperaba. Que fortuna tener una
De escuchar, ser gente y de antropologías liminales 511

maestra, cuyas enseñanzas para la antropología y para la vida aún me


habitan, a pesar del tiempo y la distancia, y se replican en mi quehacer
como antropóloga y en mi cotidiano vivir.
Este texto es entonces un pequeño homenaje que busca compartir
con ustedes de manera breve algunas de esas cosas que he aprendido
a su lado, siempre en la expectativa inacabada de intentar agradecerle
por tanta vida compartida. Aunque para ello las palabras no basten o se
queden cortas.

Escuchar
Probablemente el dossier ya dé cuenta de esto, pero creo que uno
de los grandes aprendizajes que se puede tener con Jean viene de su
capacidad de escuchar. Tal vez su formación antropológica dentro del
llamado culturalismo americano, tal vez su trabajo académico en el que
ha pasado largas horas de su vida trabajando con las narrativas de los
Siona, tal vez toda una vida navegando entre el “sio bain”, el inglés, el
español y el portugués la hayan entrenado en esta capacidad que para
mí es admirable. En los salones de clase, pero también en los congresos,
en los cafés y en la mesa del comedor y en la calle, siempre está dispuesta
a escuchar lo que las personas tienen para decir. Procura y crea los
espacios para que quien se manifiesta pueda llevar sus ideas hasta el
final, aunque a ella las palabras proferidas la incomoden, aunque su
lenguaje corporal y sus ojos se vean angustiados frente a una idea que le
angustie o le indigne. Por supuesto, como Jean no querrá ser santificada
en este texto, diré que como el ser humano que es, también hay días en
que estalla, “mete la cucharada”, opina bruscamente sobre las ideas que
la inquietan. Sin embargo, y a pesar de estos momentos, la escucha en
Jean es una constante.
Y esa escucha, creo yo, permite particularidades muy importantes
en la antropología que aprendí con ella. Si otros autores me habían
enseñado que había que hacer observación participante, o que caminar
era una clave fundamental para comprender los mundos a los que nos
aproximamos, Jean sumó a ese repertorio la necesidad de escuchar.1

1
Por supuesto, además de exacerbar los sentidos más allá de la mera observación.
La(el) antropóloga(o) que escucha, prontamente podrá en campo saber que otros
saberes y experticias serán importantes para disponerse epistemológicamente al
campo: desde pelar gallinas, hasta jugar fútbol, pasando por quedarse horas sentado
en silencio o disponiéndose a ser la(el) maestra(o) de la escuela, no es posible
512 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Entiendo que en Jean, el escuchar es una disposición epistemológica


para el ejercicio etnográfico, pero también para estar en el mundo, y a
partir de ello, considero que el(la) investigador(a) debe permitirse abrir
sus oídos para escuchar respuestas que no quiere escuchar, aunque ellas
cuestionen las propias certezas, las a veces pretensiosas preguntas que
nos hacemos como investigadores, y el arsenal teórico previo con el
que queremos “atrapar” la vida a la que nos aproximamos. Y que ese
ejercicio necesitaría urgentemente replicarse en la docencia, en la aca-
demia, en lo cotidiano de la vida, en todas(os) nosotras(os).
Escuchar nos permite otra forma de diálogo – aunque este
siempre sea imperfecto – en el que es posible tomar en serio lo que
las(os) “otras(os)” nos quieren decir. Es una aproximación que busca
permitir florecer la vida en sus propios términos, y no ahogarlos con
aquellos que trajimos escritos en el cuaderno, o que aprendimos en
el salón de clases. Es abrir camino para buscar esa horizontalidad de
las relaciones sobre la que tanto teorizamos, porque nos encontramos
primero como sujetos, y no como investigadoras(es)/investigadas(os),
profesoras(es)/estudiante(s), jefas(es)/subordinadas(os).
Pienso, por ejemplo, en la llegada de Jean a Brasil. Formada en
una escuela antropológica de “centro” y aterrizando en la “periferia”, ella
habría podido simplemente ponerse en el lugar autorizado para enseñar
la teoría y los métodos que traía consigo, considerándolos como el
lugar “adecuado” para hacer antropología. Y si bien, por supuesto, en
su ejercicio docente e investigativo, esos recursos han venido a la mesa,
o mejor, al salón de clase, Jean decidió dedicarse a leer y a escuchar la
antropología como se hacía en Brasil. A comprender las preguntas que
se hacían las(os) investigadoras(es), a conocer a través de esos textos
las posibilidades de mundo que pulsan en ese país continental, que son
múltiples y llenas de vitalidad. Esto en la intención de escuchar para
poder dialogar y proponer, para escuchar los propios tonos de esas
antropologías y pensar y contribuir con y a partir de ellas.
Su ejercicio, que había podido ser colonizante, se tornó dialógico,
y con ello ha alentado, pienso yo, una antropología que busca su propio
pensamiento, sus propias preguntas, algo tan difícil de hacer en un
mundo donde las llamadas “modas teóricas” y los conceptos del “centro”
se usan indiscriminadamente para hablar de la “periferia”, robándoles

reducir a una acción, a un hecho, a un solo sentido la vivencia de la experiencia


etnográfica. Los repertorios deben ser amplios y atender a la especificidad de la vida
que habitamos y que nos habita.
De escuchar, ser gente y de antropologías liminales 513

precisamente la capacidad de florecer, uniformándolas, reificando


fronteras e imaginarios en donde todas(os) son más de lo mismo.

Ser gente
A Jean la conocía ya hacía un par de años, había sido su alumna
en el salón de clases, había leído sus textos, habíamos compartido varias
experiencias. En ese punto, conocía de su generosidad y de su rigor,
de su humor y su sentido de la justicia, y me sentía realmente feliz de
tenerla como mentora. Lo que no sabía era que aún me faltaba conocer
a Juanita. Si, aquella joven que en los setenta fue la primera maestra de
la escuela construida en la comunidad siona del Putumayo durante el
trabajo de campo que realizó para concluir su doctorado.
Yo pensaba en Juanita como un momento de la vida de Jean que
se había quedado capturado en el tiempo y que vivía sobre todo en sus
etnografías, pero claramente estaba equivocada. Caí en cuenta de mi
equivocación, si la memoria no me falla, en 2010, o tal vez en 2011,
cuando Jean volvió al Putumayo a encontrarse con el pueblo Siona. En
esa época, mi padre, también antropólogo, fue con ella a campo, y él me
contó sin quererlo que Juanita no había sido capturada por texto alguno,
que estaba allí en la reunión con el pueblo Siona.
Después de varias décadas, y a pesar de los retornos intermitentes
de Jean a Colombia, ella sigue siendo la profesora Juanita. Y Juanita
estuvo en reuniones y conversó, y volvió al Brasil con experiencias
agridulces (lo agrio, sobre todo, por el exceso burocrático para hacer
cualquier cosa en Colombia), y se veía radiante y feliz, y conmovida,
y movilizada, y angustiada por lo que había vivido en esos pocos días
en la comunidad. Desde ese tiempo, Jean volvió con mayor frecuencia
a Colombia y al pueblo Siona, y sólo una pandemia mundial la ha
obligado a un receso del que, seguro, pronto saldrá.
Conocer a Juanita para mí fue al principio algo bonito, emo-
cionante. Algo que me resonaba, pero que no sabía muy bien como
elaborar. Entendí con el tiempo, y a partir de mis propias experiencias,
que Jean con los Siona se hizo gente, y que, en cuanto gente, está de
diferentes maneras en su memoria y en su presente, y por eso, a pesar
del tiempo, continúa Juanita. Jean no es un(a) investigador(a) más que
hizo su campo, escribió su tesis y jamás volvió, Jean sigue apostando
a una relación que, me atrevo a decir, es académica pero también
comprometida, afectada y por qué no afectiva, en la que sigue siendo
514 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

posible construir y proponer, lo que nos pone en el papel de reconocer


la importancia de hacernos sujetos también para las personas con las
que trabajamos, de construir sentido colectivamente en la labor etno-
gráfica de la(del) antropóloga(o), que no debería quedarse solamente
en la academia y que debería producir más que artículos, vínculos,
relaciones comprometidas que se materialicen en el hacer y no en
la teoría.
Como ya me referí a la cuestión de la escucha, diré brevemente
que considero que el tornarse sujeto de Jean para los Siona debió pasar
precisamente por su capacidad de escuchar, de preguntar, de corregir y
cuestionar sus propias interpretaciones sobre los mundos que le fueron
narrados, pero también por la disposición de ser y estar con los y las
Siona. De acompañar su cotidianidad, sus dolores y alegrías, de recono-
cer sus posibilidades como mujer e investigadora, de tomar en serio
sus elaboraciones de mundo, de disponerse a contribuir desde lugares
a priori inusitados como el tornarse “la profe”, sin necesariamente saber
qué iría enseñar, ni de qué manera a las(os) niñas(os) de la comunidad
– tal cual ella misma suele contar –, pero siempre en disposición de ser
gente y no solamente investigadora, de recibir de la generosidad de las
personas, pero también de poder reciprocar.
Este reciprocar se ha tornado un empeño importante en los
últimos tiempos para Jean, quien busca articularse y discutir la mejor
manera de hacer la devolución al pueblo Siona del material que dio
vida a su tesis y a sus reflexiones académicas, y que debe volver a ellos
en la medida que son testimonio y saber de su pueblo, que reorganiza
experiencias a la luz de los cambios históricos y la situación socio
política que actualmente viven en Colombia. Si antes había mencionado
que Jean podría haber tenido una postura impositiva y colonializante
en su recorrido por el Brasil, su recorrido por Colombia nos muestra
que su quehacer se niega también al extractivismo epistemológico. Sí, la
antropología que Jean hace escucha, también dialoga, no sólo en el acto
comunicativo, sino también en el hacer. Lo que se da se devuelve, y se
reconoce que lo que se ha dado y lo que se ha vivido es de las partes que
la han construido.

Antropologías liminales
Aunque el término de lo liminal pueda cargar un poco de
pesadumbre, me pareció un lugar interesante para pensar en la
De escuchar, ser gente y de antropologías liminales 515

antropología que pude aprender a partir de mi experiencia con Jean.


“Nacida por accidente” en Estados Unidos y siempre interesada por el
lado opuesto del continente donde nació; formada en una antropología
central, pero trabajando en una que podríamos llamar de “periférica”;
deshaciendo el centro para buscar antropologías en sus propios
términos a través del trabajo etnográfico, la aproximación de Jean a la
antropología es muy interesante y particular por su liminalidad, esto
es, porque transita entre posibilidades diversas, porque trae ideas y
reflexiones de lugares (no en el sentido geográfico solamente) diferentes,
porque la obliga a poner en diálogo cosas que solamente han estado
juntas a partir de su propia existencia.
Y en esa antropología liminal, Jean no se encuentra nunca
sola. Sus orientaciones a personas que vienen de otras trayectorias
académicas son frecuentes, así como de estudiantes extranjeras(os)
como yo. Y en esa “juntanza”, en ese pensar colectivo, semillas se
han ido regando a otros programas académicos, a otros países, y
liminales nosotras(os) también, vamos buscando esas antropologías
que se entretejen entre los centros y las periferias de la academia, vamos
descartando esos conceptos que no obedecen a la vida, nos vamos per-
mitiendo sospechar de las modas teóricas y seguir avanzando en la
necesidad de seguir proponiendo desde la vida misma, desde el ejercicio
etnográfico, usando los conceptos a veces como muletas, a veces como
posibilidades que florecen en la propia vida, porque de otra manera no
tendrían sentido.
Maurice Maeterlinck (2018), en su bello libro La inteligencia de
las flores, nos dice que las plantas, en todo su saber, buscan siempre
estrategias para desperdigar su semilla, buscan que puedan crecer en
otros lugares distintos a su propia sombra. Nos dice también que en ese
tránsito puede ser que la semilla no encuentre la tierra, y que cuando la
encuentra, esta tiene mucho que hacer para poder germinar en el nuevo
lugar que habita.
De alguna manera me gusta creer que Jean es la planta mayor,
y que muchos de los que hemos pasado por sus salones de clase y
nos hemos asomado a su vida somos semillas desperdigadas por el
Brasil entero, en Chile, Colombia, Ecuador, en Centroamérica, en
el sur del mundo, y que hemos sido contaminados por la liminalidad
de Jean, que también es la nuestra. Estamos en vuelo o empezamos
a caer en tierra buscando germinar. Otras semillas ya han reventado
y otras más hace rato ya son cosecha. Si bien estos tiempos que nos
han tocado nos enseñan que tener certeza es un verdadero acto de fe,
516 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

auguro más germinaciones, más plantíos y más abundantes cosechas,


en las que, espero, podamos hacer honor al trabajo juicioso, sensato,
crítico y propositivo, siempre inquieto y liminal, que hemos podido
aprehender con y a través de Jean.

Referencia
MAETERLINK, M. La inteligencia de las flores. Bogotá: Taller Edición Roca;
Bolsillo de Duende, 2018 [1910].
Engajamento e empatia:
Jean Langdon como
colega e amiga

Diana Brown e Mario Bick

Jean tem sido um pilar em nossa vida social e intelectual


em Florianópolis, tal como no Departamento de Antropologia da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e é uma honra sermos
convidados para participar neste volume que celebra seu trabalho e
sua vida. Ela foi um dos primeiros membros do Departamento de
Antropologia da UFSC a fazer amizade conosco, depois de nossa
chegada a Florianópolis, em 2003, para fazer pesquisas, com a esperan-
ça de nos associarmos ao departamento na universidade. Eu, Diana,1
já tinha lido vários artigos sobre o xamanismo siona e estava encan-
tada por saber que sua autora, Jean Langdon, lecionava na UFSC.
Quando nos estabelecemos em Jurerê, Jean se tornou uma vizinha
próxima, no Sambaqui, e foi uma das pessoas que mais se prontificaram
a nos ajudar. Ela facilitou nossa pesquisa, encorajou nossa participa-
ção no Departamento de Antropologia e arrebatou um lugar central na
nossa vida social. Mario e eu, dois antropólogos americanos com um
longo engajamento com o Brasil, tínhamos vindo para Florianópolis
para explorar uma nova região, depois de muitos anos de pesquisa e
docência no Brasil – eu no Rio, e nós dois na Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp). Ao visitar a UFSC, descobrimos um
Departamento de Antropologia vivaz e com trabalhos em muitas áreas
de interesse para nós.
Nos meses iniciais, depois de nossa chegada, começamos a visitar
Jean em sua casa, e ela, a nos visitar em Jurerê, e sua generosidade, tanto
na UFSC como em casa, tem caracterizado sua amizade conosco por
todos os quase 20 anos que a conhecemos. Visitar a casa de Jean para

1
“Eu”, Diana, sou a principal voz aqui, devido às limitações na coautoria em tempos
de covid-19. Ver nota abaixo.
518 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

festas nos fins de semana sempre foi uma aventura. O trânsito para
Santo Antônio, seus populares restaurantes de frutos do mar cheios de
clientes, as entradas de garagens em rampas íngremes, tudo isso fazia
com que a mera ideia de percorrer esse caminho nos deixasse tontos.
Os sulcos e a lama na estrada não pavimentada até Sambaqui, pipocada
de buracos e pedras salientes, são especialmente desafiadores na chuva.
Mas tudo isso é acompanhado por vistas maravilhosas da água e da
cidade, a distância, e, mais perto da praia, das boias de cultivo de ostras.
E tem sempre valido muito a pena a viagem pela companhia,
por sermos recebidos pelos seus cachorros, alegres e cheios de
energia, pulando para escapar quando abrimos o portão e descemos
cuidadosamente até a casa, pregada na lateral de uma colina íngreme,
que parece estar pendurada sobre o mar. Uma casa adorável e muito
“Jean”, um espaço confortável e acolhedor para socializar, bem como
para discutir assuntos mais sérios. Um alpendre com vista espetacular
sobre a água, para o clima mais quente; uma lareira na sala, que nos
aquece em dias mais frios. Nos apinhamos ao redor do bar, entre a sala
e a cozinha, bebericando caipirinhas feitas com a cachaça especial da
Jean, envelhecida e saborizada, roendo salgadinhos, saudando pessoas
e batendo papo com Jean, no permeio de apresentações, conversas,
fofocas, enquanto ela prepara refeições deliciosas – feijoadas, frangos
assados, assados de porco à portuguesa e saladas, guarnecidas pelo seu
próprio molho especial. Um conjunto de velhos amigos, novos amigos,
visitantes de outros países e outras partes do Brasil, principalmente
antropólogos, mas incluindo outros acadêmicos, colegas do passado
e do presente, estudantes, alguns dos quais alugam domicílio com ela,
seus próprios estudantes e seus filhos – especialmente Alan, que vive
em Florianópolis e cujas pinturas cobrem as paredes da casa, é um
frequentador constante que compartilha conosco os detalhes de sua
carreira como cineasta de documentários. Ele acompanhou Jean em
uma recente visita aos Siona e fez fotografias maravilhosas. Através
desses encontros, podemos ver um pouco do mundo de Jean: sua
amizade com pessoas diversas, sua habilidade de promover a amizade
entre elas e, reforçada por comida e bebida, a criação de uma atmos-
fera ao mesmo tempo animada, descontraída e convidativa a uma
boa conversa.
Na UFSC, Jean sempre tratou de nos fazer sentir bem-vindos e
parte do departamento. Com grande generosidade, deu-nos a chave
de sua sala para que a usássemos quando estivéssemos no campus e
precisássemos de um lugar para trabalhar ou nos reunir com alunos.
Engajamento e empatia 519

Apresentou-nos para os colegas de departamento e para os estudantes,


garantiu que estivéssemos informados de eventos da antropologia e
de outros de nosso interesse, na cidade e na região, e frequentemente
íamos a esses eventos juntos. Uma viagem memorável foi feita a uma
cidade próxima, São Bonifácio, para assistir a uma conferência em
honra a Egon Schaden, um dos fundadores da antropologia brasileira
e filho dessa comunidade, de ascendência em grande parte germânica.
Aprendemos sobre a carreira de Schaden na Universidade de São Paulo
(USP), como fundador da Revista de Antropologia, e sobre seu trabalho
com vários grupos indígenas do Brasil central, em estudos de aculturação.
Encontramos membros de sua família e ouvimos uma fascinante
apresentação de Ellen Woortmann sobre as influências sociais e políticas
nas escolhas dos primeiros nomes nas famílias das comunidades
germânicas do sul do Brasil no período posterior à Segunda Guerra
Mundial. Também exploramos essa bela cidade da serra.
Com paciência infinita, Jean me ajudou através dos processos
labirínticos de escrever um projeto para uma bolsa do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o que
me possibilitou passar o ano inteiro de 2006/2007 em Florianópolis, na
UFSC, fazendo pesquisa sobre envelhecimento e beleza e dando aulas, o
que incluiu uma disciplina que ministramos juntas sobre antropologia
da saúde. Ela, bem como outros, convidou tanto Mario como eu para
palestras no Departamento de Antropologia e nas suas aulas, e foi de
muita ajuda com seus comentários, revelando-se uma crítica dura
e honesta, que não adoça palavras. Ela nos convidou também para
participar de bancas de doutorado e mestrado e nos encaminhou alunos
para discutir suas pesquisas e seus escritos. E, por muitos anos, quando
estamos nos Estados Unidos, ela generosamente tem se encarregado
de nossas finanças relativas ao apartamento de Jurerê. Jean ainda nos
visitou em Rhinebeck, Nova Iorque, e a convite de Mario deu uma
palestra sobre o xamanismo siona no Bard College, onde nós dois
ensinávamos, palestra que foi muito admirada pelos alunos. Ao longo
dos anos, enviamos, de lado a lado, livros e referências, tanto acadêmicas
como literárias.
Há uma coerência entre a vida privada e a vida profissional de
Jean. Ela tem interesses de amplo espectro, é intelectualmente curiosa e
alguém que persegue com tenacidade suas ideias, o que contribui para
as longas e intensas discussões que temos com ela. Essas discussões
também acontecem durante refeições, em nossas casas ou expe-
rimentando restaurantes locais, e abraçam um escopo largo de temas
520 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

antropológicos. Jean está muito atualizada tanto com a antropologia


americana quanto com a brasileira, e, nos parece, ela conseguiu capturar,
na sua própria pesquisa, algumas das melhores partes de ambas as
tradições. Sua pesquisa e sua escrita etnográfica nos impactam por
se valerem de duas tradições antropológicas: parecem singularmente
boasianas no seu interesse por coletar textos xamanísticos siona,
baseadas, em parte, na premissa de que, mesmo quando de compreensão
difícil, é importante guardar tais textos, pois estes são valiosos artefatos
culturais, tal como era o caso de Boas ao coletar muitos materiais
indígenas da costa noroeste dos Estados Unidos, de mitos a receitas.
Boas reconheceu que esses textos constituíam documentos preciosos,
que precisavam ser conservados, tanto como fontes para análises futuras
quanto como parte da cultura kwakiutl do século XIX e do começo do
século XX.
Esse mesmo propósito explica parcialmente os retornos regulares
de Jean ao campo e seu interesse em registrar textos que poderiam
ser devolvidos e que, de outra forma, teriam sido perdidos. Os textos
que ela coletou e preservou durante muitos anos e que ofereceu aos
Siona tornaram possível que eles, em anos recentes, os usassem na
recuperação de sua tradição xamânica, ameaçada de se perder. O papel
dela nesse processo, como antropóloga e alguém de fora, foi difícil,
envolvendo negociações extremamente delicadas e uma rejeição inicial.
Mas Jean valoriza muito o reconhecimento gradual dos Siona de seu
afeto profundo e de seu respeito por eles, bem como o apreço crescente
deles pela contribuição dela, uma transformação das suas relações, que
ela tem contado para nós, ao longo dos anos, durante longos jantares.
Sua associação longeva com os Siona açambarcou muitas mudanças na
sociedade deles, incluindo a revitalização de suas práticas xamânicas
depois da quase total extinção destas. Jean não só documentou essa
revitalização, como teve um papel nela.
Ao valorizar materiais frequentemente ignorados por outros
pesquisadores, Jean serviu aos interesses dos Siona. E esse sucesso reflete
um outro âmbito da pesquisa de Jean, a segunda tradição antropológica,
o que os brasileiros chamam de “antropologia engajada”, isto é, uma
antropologia politicamente ativista, desenvolvida no interesse dos povos
estudados, uma abordagem que tem marcado a antropologia brasileira,
como Alcida Ramos e outros salientam, e que tem sido importante na
própria pesquisa de Jean, não só com os Siona, mas também na área de
saúde indígena, na qual ela tem trabalhado junto com outros envolvidos
Engajamento e empatia 521

em saúde coletiva para desafiar e melhorar a contribuição do governo


aos serviços de saúde indígena.
Através de toda a sua pesquisa, Jean também esteve profun-
damente ciente da tensão entre a ciência e o conhecimento indígena e
da resistência mútua de um e outro. Ela tem recusado tanto ver a ciência
acriticamente quanto permitir que esta desacredite o valor potencial-
mente científico do conhecimento indígena. Isso é muito evidente no seu
longo estudo dos rituais de ayahuasca, na sua coleta diligente de mitos e
de visões da ayahuasca, na sua insistência sobre o valor do conhecimento
siona quanto às capacidades curativas desses rituais e em sua recusa de
rejeitar esse conhecimento diante do desprezo científico. Ela tem desa-
fiado a ciência e a negação científica da eficácia dos rituais de ayahuasca
e tem dado crédito ao conhecimento e à compreensão dos próprios
Siona, em termos da eficácia de seus resultados. Recentemente, Mario
ficou encantado ao descobrir e enviar para Jean um artigo do jornal
The New York Times (31 de agosto de 2020) que registrava a crescente
aprovação científica da ayahuasca como uma “terapia de ponta” no
tratamento de problemas de saúde mental, especialmente aqueles
associados aos veteranos de guerra com transtorno de estresse pós-
traumático de longa duração.
Resumindo, damos grande valor à amizade de Jean, tanto
intelectual como social, à sua generosidade em compartilhar conheci-
mento, à sua vida social e à sua cozinha, bem como à sua lealdade
às causas e aos povos que ela valoriza. Ela ensina respeito, tanto na
insistência de que pesquisadores e estudantes respeitem seus sujeitos
etnográficos nos termos destes quanto em reconhecer a particularidade
e o valor do conhecimento e dos costumes de tais sujeitos. Da mesma
forma, através de sua vida social, ela oferece um espaço de conhecimento
e de respeito para o nosso mundo. Seu engajamento social lhe dá
amigos com alguma compreensão dos significados e da natureza de
nossos próprios mundos, através de nossos rituais no espaço de nossas
refeições compartilhadas, no ambiente familiar de sua casa e na partilha
de comida, bebida e conversas chez Jean.

Nota
Este texto foi escrito sob circunstâncias difíceis, criadas pelo vírus
causador da covid-19. Mario, que tem mal de Parkinson, caiu e quebrou
o fêmur em 24 de outubro de 2020, e desde então, por quase cinco
522 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

meses, esteve isolado em instituição de reabilitação, e devido às


restrições da covid-19 teve as visitas proibidas. Nos mudamos de Nova
Iorque para Lexington, no estado da Virgínia, para ficarmos mais
próximos da família. Mario subsequentemente contraiu covid-19, e,
ainda que tenha se recuperado, isso retardou seu processo e piorou
os sintomas do mal de Parkinson. Só nas últimas três semanas me
foi permitido vê-lo por uma hora semanal. Como ele não usa o
computador, nossa colaboração neste artigo foi manual e verbal: ele
escreveu suas partes à mão e as leu para mim no telefone; eu as digitei,
imprimi e devolvi a ele junto com as partes que eu havia escrito. E ele
respondeu, de novo por telefone.
Carta à mestra

Alicia Castells

Florianópolis, 10 de dezembro de 2020


Querida Jean,
Ano de 1983, tu recém-chegada a Florianópolis, e eu recém-
chegada à antropologia, iniciando meu mestrado, sentadas junto a outros
ouvintes, numa pequena sala do Centro de Filosofia e Ciências Humanas
(CFH), escutando o Prof. Dr. Silvio Coelho dos Santos palestrar. Eras
uma mulher branca, magra, vestida com um blazer e que falava uma
mistura de espanhol e português (o espanhol, por ter morado por um
ano num país latino-americano de fala castelhana). Nossas tentativas
de comunicação – dada minha condição também de imigrante e minha
dificuldade eterna com outros idiomas, além do que consegui apreender
no berço – resultaria para os outros em comunicações patéticas. Tempos
depois, eu mesma as conceberia como franca cena antropológica.
Cabe relembrar que, no início de nossa amizade, tu eras a “antro-
póloga”, e eu, uma leiga em antropologia com vontade de pertencer
a esse campo. Foi assim que fui uma de tuas primeiras orientandas
de mestrado. Desse tempo, ficou na minha memória, numa de tuas
orientações (em teu gabinete de trabalho), eu mostrando minhas
primeiras entrevistas com orgulho, e tu terrivelmente irritada com os
resultados. Mas consegui seguir teus ensinamentos, e a dissertação
chegou a bom porto, e até me sugeriste que a publicasse, mas eu ainda
tinha problemas com as duplicidades de formações, nacionalidades,
identidades, escritas e vai saber quantas coisas mais.
Foste durante vários anos meu modelo na academia. Eu analisava
como fazias teus currículos, teus projetos, como davas tuas aulas; eras
meu referencial. E tratava de seguir-te, dentro de minhas possibilidades.
Tu me impulsionaste para que eu me apresentasse a concursos públicos
para professora. Mas nunca poupaste dizer o que pensavas de cada
situação, como quando me apresentei ao concurso público para
professora de antropologia na UFSC, em 1992. Depois da apresentação
de minha aula, me disseste: “Você, na sua apresentação, parecia uma
524 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

professora inglesa louca”. Tradução: o que mais se apreciava de minhas


qualidades docentes como substituta no departamento era minha fama
didática, e nesse dia fiquei muito ansiosa com a imagem caricaturesca
que me mostraste. Como vês, tudo o que alguma vez me falaste ficou
gravado em minha memória.
As duas éramos duas jovens mães, tu de dois, e eu de quatro
filhos. Todos frequentaram a mesma escola, e os vínculos iniciais de
tipo acadêmico se transformaram depois em vínculos familiares: visitas,
comidas, fofocas. Inclusive a amizade que fizeste com Eduardo, meu
companheiro, que depois junto contigo idealizou a casa que hoje é a
tua morada.
As imagens na minha memória são infinitas, algumas até hoje
me fazem rir, como esta, por exemplo, dos nossos primeiros encontros:
fomos convidados a um churrasco que preparaste no terraço do prédio
onde moravas, na Carvoeira, um churrasco de carne moída na grelha;
e eu, como argentina da terra do churrasco, não conseguia parar de rir.
Que tempos únicos que hoje revivem em minhas memórias.
Jean, amiga, continuas a ser um referencial hoje para muitos
de nós, e, em nível institucional, levas sobre teus ombros a pesada
responsabilidade, mas com sabedoria e honra, de coordenar o Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural (INCT-IBP), ao qual
pertenço como pesquisadora.
Obrigada ao universo por ter me apresentado a você nesta vida.
Abraços da Alicia.
Minha amiga Jean

Maria Soledad Etcheverry Orchard (Marisol)

Um dia contei para Jean que nunca tinha visto uma árvore tão
magnífica como a samaúma. É curioso que você não fala que conheceu
uma árvore para qualquer pessoa, mas para ela você conta. Eu recém
tinha conhecido uma dessa espécie em uma visita ao Jardim Botânico
do Rio de Janeiro.
Assim como eu, nenhuma das pessoas presentes nessa ocasião
junto à árvore tinha ficado imune à sua força, era um lugar de reverência.
Umas dez pessoas, ou mais, juntaram as mãos para tentar abraçar seu
tronco e não conseguiram. O tronco era uma imensa coluna de madeira
que se abria em direção às raízes, ampliando seu perímetro, e necessitaria
de muito mais gente para poder circundá-lo. Sua sombra generosa e
gigantesca dava a sensação de estar dentro de uma cidade vegetal que
abrigava a todos. Minha impressão tinha sido tão intensa que falei
sobre isso alguns dias depois para Jean, prevendo que com certeza ela
teria alguma boa história para contar. Foi assim que fiquei sabendo que
nenhum índio entrava sozinho embaixo dessa árvore, porque na sua
sombra habitavam espíritos de poder. Pensei: “Ainda bem que eu estava
acompanhada por várias pessoas nesse dia!”.
As histórias que Jean conta costumam ser cativantes. Muitas
vezes são relatos sobre seus estudos antropológicos e suas experiências
vividas durante as estadias entre os povos indígenas que habitam
aldeias em terras distantes da América do Sul. Outras vezes podem ser
narrativas antigas sobre sua própria terra e sobre sua família, quando
seu primeiro parente desembarcou em Massachusetts no século
XVII; ou quando relata que, nos séculos seguintes, as disputas severas
e violentas pelo território dessas colônias do norte, entre católicos e
protestantes, marcaram a subjetividade das gerações seguintes, inclusive
a da sua família. Eu poderia registrar aqui muitos dos relatos que me
vêm à lembrança. Basta pegar um objeto que não parece habitual e que
está descansando em alguma prateleira de algum móvel da casa dela,
e lá tem história. São ensinamentos que prendem nossa imaginação,
aproximando esse mundo distante, que ela sempre soube trazer para
526 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

perto de nós. Ela tem essa qualidade, sabe contar histórias, seja numa
sala de aula, seja ao redor de uma mesa, ao sabor de um bom vinho
em noites de inverno. Ou sentados na sua varanda, olhando o mar em
alguma tarde de verão.
Sua casa é sempre acolhedora, e ela se esmera em receber amigas
e amigos com o que tem de melhor. Os encontros seguem tarde e noite
adentro, e as pessoas demoram em ir embora; o ambiente é agradável
– o cheiro da mata, que emana do seu jardim, a vista convidativa das
luzes que se distinguem a distância através do mar, a boa música,
a comida, a bebida sempre de qualidade e as conversas animadas e
interessantes estimulam as pessoas, e elas vão ficando. Não foram
poucas as vezes que presenciei Jean, já cansada, dar boa noite e subir ao
seu quarto para dormir, e as pessoas continuarem na sua sala de estar,
como quem se sente em sua própria casa e a cuida, sempre atentas e
agradecidas por sua hospitalidade e amizade. Ela consegue criar esse
sentimento nos seus convidados, gosta de gente ao seu redor para
conversar, e as pessoas gostam dela, a procuram e a celebram. Nós a
queremos bem e a celebramos.
Foi assim que um dia, quando completou 25 anos em Florianó-
polis, em um ritual de comemoração, lhe entregamos a chave da cidade,
bem grande, de papelão e papel prateado. Foi uma data que festejamos
em um encontro animado com seus amigos de todos esses anos. Nós
combinamos que era ela quem merecia ganhar essa chave, não obstante
a maioria dos presentes também tivesse chegado de distintos lugares e
criado vínculos fortes com a cidade, alguns vindos na mesma época ou
até antes dela. Jean recebeu alegremente essa chave em sua homenagem
e solenemente prometeu manter a cidade aberta. Não tenho certeza se a
chave de papelão sobreviveu até o fim da festa, mas a porta da sua casa
permaneceu sempre aberta a seus amigos.
Registrar essas recordações e expressar meus sentimentos de
amizade e admiração por Jean é um prazer. Tenho um grande afeto
cultivado por essa amiga de longa data, em reconhecimento às vivências
compartilhadas, ao carinho, à generosidade e à inspiração intelectual
com os quais ela sempre me brindou.
Agora já se passaram quase 40 anos desde que ela chegou a
Florianópolis, quando veio com seus dois filhos pequenos, Elena e
Alan, disposta a encarar sua nova vida nesta pequena cidade ao sul do
mundo. Essa jovem professora norte-americana, corajosa e muito bem-
preparada, já trazia um lastro significativo e reconhecido de estudos
na área da antropologia, com experiências importantes de pesquisas
Minha amiga Jean 527

entre comunidades indígenas, que a fizeram merecedora do convite de


professores do que era então o Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina.
Nessa época, não existia ainda a divisão por áreas das ciências
sociais na UFSC; a antropologia, a ciência política e a sociologia
conviviam no mesmo departamento na graduação e compartilhavam
a mesma pós-graduação. O mestrado em ciências sociais propiciava
naqueles anos duas habilitações: em sociologia e em antropologia.
Foi nesse curso que Jean ficou responsável por ministrar a disciplina
“Antropologia simbólica” para nossa turma de mestrado.
Fui sua aluna nessa que foi a primeira turma para a qual ela
lecionou junto a esse programa de pós-graduação, nos idos de 1982.
Recém-chegada à cidade e à universidade, ainda arranhando o
português, Jean ministrava suas aulas basicamente em espanhol. Ela
nos explicava que tinha aprendido essa língua durante suas pesquisas
de campo, sobretudo na Colômbia, mas também em outros países da
América Latina onde tinha permanecido por um tempo. Ela já nessa
época conquistava nossa admiração com relatos das suas experiências
e com os ensinamentos que trazia para o espaço da sala de aula.
Imagino que tenha sido um grande desafio vencer o obstáculo da língua
e compreender os códigos locais, mas essa mesma dificuldade nos
aproximou da professora. Percebíamos o seu valor pessoal e o empenho
que fazia para traduzir com qualidade e tornar atrativos esses conteú-
dos que certamente eram complexos.
Traduzir a complexidade com simplicidade e sem alardes. Esse
foi outro atributo que verifiquei ao longo dos anos em Jean. Basta
acompanhar suas palestras que até hoje gosto de ouvir pela simplicidade
com que expõe assuntos por vezes muito complexos, reconhecendo no
seu público interlocutores inteligentes e fazendo deles ouvintes gratos
e atentos. Atributo esse que consiste em uma virtude para quem, como
ela, se engaja em uma ciência que tem como dever tornar-se pública e
acessível para todos.
Mas, voltando a seu esforço junto a essa turma, posso afirmar que
ele foi bem-sucedido. Quatro dessas alunas, eu entre elas, solicitamos
posteriormente sua orientação para desenvolver nossas pesquisas,
visando à elaboração da dissertação. Ela nos estimulava a segui-la nas
suas reflexões, o que para nós também era um belo desafio. Não era
nada fácil ingressar nesses textos complexos, muitos deles em inglês.
Cabe lembrar que nessa época nós dependíamos exclusivamente
dos livros disponíveis na biblioteca da universidade e das cópias que
528 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

conseguíamos dos textos mais atualizados, trazidos pelos professores


ou por algum conhecido que tinha estado em um centro de produção
acadêmica mais importante do país ou do exterior. A literatura atuali-
zada que a jovem professora Jean nos oportunizava era um refresco.
Foram estimulantes as leituras e as discussões que ela nos propiciou,
mas também foi desafiador ter que depois produzir trabalhos para essa
exigente professora. Até hoje me lembro de mergulhar em alguns dos
textos que ela indicou, que foram referências intelectuais importantes,
de autores como Arnold Van Gennep, Clifford Geertz, Edmund Leach,
James Frazer, Lévi-Strauss, Marcel Mauss, Mary Douglas, Mircea
Eliade, Sherry B. Ortner, Sigmund Freud, Victor Turner, entre outros.
Tenho claro que esse processo formativo marcou minha trajetória
intelectual e contribuiu com uma postura aberta para enxergar a
diversidade de perspectivas e a possibilidade de tecer laços entre elas.
Afinal, nossa formação era nas três áreas, e, apesar de eu ter escolhido
a antropologia no mestrado, a sociologia e a ciência política também
estavam na base desse currículo da pós-graduação em ciências sociais.
Jean teve esse cuidado de alimentar, a partir dos textos específicos da
sua área, o diálogo abrangente com as outras ciências sociais. De fato,
durante a minha pesquisa para a dissertação, ela me orientou para que
houvesse um diálogo entre as literaturas dessas três áreas, de forma a
levar adiante minha investigação, cujo tema exigia essa conversação.
Estávamos na década de 1980, e nessa época se acentuavam
as críticas ao positivismo e ganhavam legitimidade visões críticas
teórico-metodológicas e políticas sobre as perspectivas que impunham
determinismos, economicismos e dogmatismos. Nas reflexões que
surgiam em torno dos movimentos sociais emergentes, em que eu
precisava me aprofundar para os estudos da minha dissertação,
sobretudo no contexto urbano, despontava uma visão ressignificada
da política. Nas aulas de sociologia, discutiam-se o “retorno do ator”
(TOURAINE, 1984) e os movimentos sociais (TOURAINE, 1977).
Enquanto isso, nas suas aulas de antropologia, a professora Jean
destacava a emergência do “ponto de vista do ator e dos significados”
(GEERTZ, 1973), quando nas asas da antropologia simbólica norte-
americana o autor argumentava que todas as interpretações culturais
eram interpretações de interpretações. Ambas as perspectivas, com as
suas especificidades, traziam também implicações em termos da abertura
para metodologias nas quais a presença ativa dos sujeitos investigados
despontava como uma novidade, e os investigadores questionavam a
própria posição no processo de pesquisa. Abria-se passagem, dessa
Minha amiga Jean 529

forma, para uma perspectiva mais pluralística, interpretativa e aberta,


que a minha orientadora sustentava e que me apoiava a seguir na
minha dissertação.
Em 15 de julho de 1987, defendi a dissertação intitulada Cole-
tivismo no bairro: uma análise sobre o fenômeno da participação
(GOMES, 1987), tendo como orientadora e presidenta da banca a Prof.a
Dra. Esther Jean Langdon, e como membros da banca o antropólogo
Prof. Dr. Dennis Wayne Werner e a socióloga Prof.a Dra. Ilse Scherer-
Warren. Destaco mais uma vez que Jean exerceu grande influência na
minha formação, e posteriormente essa relação de compartilhamento
intelectual dos seus saberes sempre se manteve. Ela foi uma excelente
consultora, a quem solicitei ajuda em momentos cruciais. Isso ocorreu,
inclusive, em estudos posteriores, durante o doutorado, realizado na
área da sociologia em outra instituição, defendido no ano de 2002.
Sua influência foi inspiradora em parte dessa pesquisa para a
tese de doutorado, dada a minha opção por trabalhar com narrativas.
A tese abordava as transformações no mundo do trabalho que
ocorriam na esteira do processo de privatização das estatais do setor
elétrico brasileiro durante a década de 1990. Eu precisava desenhar
o cenário de transformações vivenciado por ex-empregados dessas
empresas que tinham passado por um processo massivo de demissões.
O propósito era registrar seus testemunhos sobre a perda do emprego, a
transição nas suas trajetórias laborais e suas projeções de reinserção em
atividades de trabalho remuneradas.
O recurso das narrativas me permitia ganhar acesso à hete-
rogeneidade dos percursos individuais, muitos dos quais se perdiam
em bases de dados estatísticos, quando esses percursos desapareciam
no universo das relações de trabalho informal ou de outras ocupações
não passíveis de registro nessas bases de dados. Tal escolha pareceu
ser bastante oportuna por levar em consideração o argumento de que,
cada vez mais, os destinos dos indivíduos se tornavam heterogêneos,
diferentemente das posições sociais que anteriormente lhes conferiam
maior homogeneidade. Muitos dos entrevistados se dispersavam
em situações de trabalho diversas, mas, baseada nas versões desses
protagonistas da história de perda e de restabelecimento dos seus
vínculos de trabalho, eu podia recriar um drama que antes de ser
individual era coletivo. Eram histórias em que se atribuíam distintos
sentidos ao próprio trabalho, mas muitas entre elas também conver-
giam. As indicações e os conselhos dessa amiga e consultora de longa
data mais uma vez foram profícuos, o recurso da narrativa foi uma
530 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

chave que abriu uma porta, e a pesquisa fluiu. Foi um suporte generoso,
na hora certa, com os recursos certos.
Se a cada dia eu tentasse iniciar este texto, provavelmente
lembraria muitas outras facetas de Jean e da amizade que cultivo por
ela. Aprendi que não há um contar correto sobre os eventos e sobre cada
história, como luz que incide em um cristal e reflete uma perspectiva
diferente. Olhar sob outros ângulos do prisma traria novas histórias;
por enquanto segue esta que é breve mas afetuosa. Gratidão por
essa amizade.
(Texto escrito durante o verão da pandemia, em 25 de janeiro
de 2021.)

Referências
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1973.
GOMES, M. S. E. de A. Coletivismo no bairro: uma análise sobre o fenômeno
da participação. 1987. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)
– Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 1987.
TOURAINE, A. Movimentos sociais. In: MARTINS, J. de S.; FORACCHI, M.
M. Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro: LTC, 1977.
TOURAINE, A. O retorno do ator: ensaio sobre sociologia. Lisboa: Instituto
Piaget, 1984. (Coleção Economia e Política).
Jean Langdon, uma antropóloga
norte-americana em terras
catarinenses

Ilka Boaventura Leite

As organizadoras da homenagem me convidaram para enviar


o meu depoimento sobre a nossa colega Jean Langdon. Vasculhei os
recantos da memória, e muitas coisas apareceram. Lá pelos idos de
1983, vivendo entre São Paulo e Florianópolis desde o ano anterior,
decidi retomar o contato com o Silvio Coelho dos Santos, amizade
iniciada através de nosso orientador em comum na Universidade de São
Paulo (USP), João Baptista Borges Pereira. Ao comunicar ao João minha
mudança para a Ilha – para acompanhar meu marido, que reassumia
aulas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) –, ele me
estimulou a frequentar a universidade e a procurar o Silvio, que naquele
momento exercia o cargo de pró-reitor de pós-graduação.
Já no primeiro encontro, Silvio me contou sobre algumas(uns)
professoras(es) norte-americanas(os) que havia convidado com o pro-
pósito de fortalecer o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais:
Paul Aspelim, Jean Langdon e, em seguida, Robert Crépeau. Aspelim
chegou bem antes de todas(os) e realizou pesquisas com Silvio Coelho.
Em 1978, juntos apresentaram o primeiro relatório de impactos de
barragens em terras indígenas em Santa Catarina, inaugurando uma
linha de pesquisa de ponta sobre as consequências de grandes obras, que
por longo tempo foi bastante ativa no programa (ASPELIM; SANTOS,
1978; ASPELIM, 1986), somadas as contribuições posteriores e não
menos relevantes de Crépeau.
Jean Langdon chegou em 1983, como professora visitante, para
fortalecer a área de etnologia indígena e posteriormente os estudos de
saúde indígena, xamanismo e performance. Seu trabalho começou a
ganhar destaque entre o corpo docente e o discente através de palestras
e aulas abertas aos públicos internos e externos à UFSC.
532 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Em 1983, para vencer a “solidão da escrita” da tese, decidi assistir,


a convite do Silvio, a uma aula inaugural do curso ministrado pela Jean,
sobre “Antropologia simbólica”. Eu a conheci nesse dia. Nessa excelente
aula inaugural, ela falou um pouco de sua trajetória, suas pesquisas de
campo e suas bagagens teóricas. Com um portunhol bem acentuado,
mas a maioria das palavras pronunciadas em espanhol, fruto de suas
vivências na Colômbia entre as(os) índias(os) Siona, ela discorreu
com conhecimento e firmeza sobre a antropologia simbólica, com
ênfase em Clifford Geertz, sobre os conceitos de cultura, simbolismo e
linguagem. Naquele momento, causou uma ótima impressão na plateia
de alunas(os) e professoras(es). Lembro que saí daquela aula muito
animada, iluminada pelas ideias esboçadas por ela, sobretudo porque
conhecia pouco Geertz – apenas um texto lido no curso com o mesmo
nome, ministrado pelo professor Ruy Coelho, paradigma uspiano no
campo dos estudos sobre imaginário e simbolismo. Daquela ocasião
em diante, Geertz passou a fazer parte do meu arsenal de leituras e
referências, especialmente para pensar sobre a textualização da cultura
e seus aspectos literários e de representação social.
Posso dizer que o encontro com a Jean marcou minha trajetória
acadêmica e tenho certeza de que também a de muitas outras pessoas.
Meu testemunho pode trazer elementos inusitados para iniciantes e
estudantes em geral. Em tempos de pandemia e isolamento social, em
que dispomos de tantas opções na internet, é preciso saber escolher
onde e o que ouvir, pois certos encontros se mostram decisivos nos
rumos de nossas vidas. Pouco a pouco, e a convite do programa, passei
a assistir a defesas de teses, palestras, e fui percebendo que a presença da
Jean se tornava mais e mais imprescindível para o curso. Suas atitudes
pragmáticas, de investimento na carreira e em sua própria permanência
no Brasil, foram ampliando o consenso sobre a importância da sua
incorporação efetiva ao quadro de docentes da universidade.
Nós nos aproximamos não somente pelos interesses antropo-
lógicos, mas, no meu caso, como outra estrangeira na Ilha, como
alguém se sentindo uma ave fora do seu ninho, alguém em busca de
afinidades eletivas, afetivas e intelectuais para compartir certo mal-
estar de se sentir, por vezes, pouco acolhida na sociedade local em
transição. Foi um tempo de mudanças importantes na cidade e no
mundo, uma velocidade que pouco a pouco foi se implantando, sem
que percebêssemos com clareza onde tudo isso iria parar. Imaginem,
naquela época, Florianópolis era uma capital com largos espaços de
ruralidade à beira-mar, com pouquíssimos equipamentos públicos
Jean Langdon, uma antropóloga norte-americana em terras catarinenses 533

de socialização e de cultura urbana, de hábitos provincianos. E nesse


ambiente éramos e falávamos com certa cumplicidade de sermos
duas estrangeiras vivendo na Ilha. A Jean, ainda mais do que eu, que
me encontrava casada e com uma vida sedimentada em uma família
catarinense, estava recém-divorciada e com duas crianças, enfrentava
ainda certos estigmas que hoje já não operam com tanta nitidez. Nossas
identificações passavam por essa condição de mulheres deslocadas,
tentando se adaptar em outra sociedade, bem mais provinciana do que
aquelas em que tínhamos vivido até então.
Para vencer o isolamento social próprio de nossa condição, a
Jean aglutinou várias pessoas através de reuniões festivas realizadas em
sua casa, com diversas(os) colegas, estudantes, todas(os) com um certo
perfil, algo que soaria hoje como gente alternativa ou engajada. Eram
festas muito animadas em que ela, ao mesmo tempo, tornava-se o elo de
uma antropologia crescente na UFSC.
Seu ar descontraído passava um tom jovial que deixava todas(os)
bem à vontade. Seu jeito divertido era um aspecto-chave naquele
momento: ela usava cabelos longos com cachos de permanente, bem
cheios e descontraídos, saias coloridas e sandálias birkenstock, em um
visual muito moderno, descolado, associado à cultura hippie norte-
americana. As festas realizadas à moda “americana”, como eram
chamadas, aconte-ciam com os comes e bebes que cada uma(um)
levava, dando um ar comunitário, descontraído e muito à vontade. Lá
conheci várias pessoas que depois se tornaram colegas de profissão:
Maria Amélia Dickie, Regina Lisboa, Cleidi Albuquerque, Julia Guivant,
Ari Sell, Carmen Rial e tantas outras. Ela conseguia aglutinar pessoas,
em geral, interessadas em estabelecer elos profissionais e de amizade. A
casa dela ficava no bairro do Pantanal, em um lugar íngreme e com uma
descida para alcançar a entrada e o interior da residência. Era uma
casinha pequena mas muito acolhedora. E com sua filha e seu filho,
Elena e Alan, criava um ambiente afetuoso, familiar e descontraído em
que todas(os) se identificavam e se sentiam bem acolhidas(os).
Em julho de 1986, quando concluí o doutorado e, recém-doutora,
me candidatei a uma bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), criada para agregar novas(os) dou-
toras(es) e fortalecer os programas de pós-graduação recém-criados, a
Jean foi não somente uma voz a meu favor no colegiado do curso, mas
junto com o Silvio apreciou favoravelmente o meu plano de trabalho, que
versava sobre territórios negros em Santa Catarina. Assim que iniciei as
atividades no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, minis-
534 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

trei o curso relacionado e inspirado em minha área de especialidade na


USP, “Temas e problemas da população negra no Brasil” (1986). No ano
seguinte, Jean me propôs ministrar uma das disciplinas que estavam
sob seu encargo, cujo nome era “Papéis sexuais na antropologia” (1987),
em seguida “Antropologia das minorias” (1988). Assumi esse desafio
com grande honra, entendendo que era também uma oportunidade de
ampliar o espectro dos meus conhecimentos na antropologia.
Embora meu interesse anterior em estudos de gênero, leituras
e participação em grupos de pesquisa sobre literatura de mulheres e
literatura feminista, quando ainda vivia em Belo Horizonte, não tinha
um grande acúmulo nessa área, e foi através da Jean e com o seu apoio
que pude assumir essa disciplina. Ela não somente me ajudou a fazer
o plano do curso, mas também me sugeriu e emprestou livros e textos
relevantes que foram fundamentais nessa primeira fase de minha
docência. Esse tipo de coleguismo e parceria foi ficando cada vez mais
raro na academia, a cada ano mais competitiva. O curso incluiu os
debates relevantes sobre família, casamento, parentesco, relações de
poder e gênero, chegando a abordar aspectos sobre violência contra
a mulher. Era um programa introdutório e panorâmico que abrangia
os principais debates e autoras(es) renomadas(os). Dois anos depois,
Miriam Grossi voltou de seu doutorado e recebeu também uma bolsa
de recém-doutora, vindo, portanto, a assumir essa área de estudos,
o que foi para mim muito bom, pois pude me dedicar a partir dali,
exclusivamente, a estudos e pesquisas sobre questões e temas dos
estudos afro-brasileiros e das diásporas africanas.
Muitos e outros aprendizados fizeram parte do nosso convívio
no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais, no Laboratório de Antropologia, criado pelo Silvio Coelho
dos Santos. Em seguida, participamos da criação do Departamento
de Antropologia e do curso de pós-graduação. Muitas batalhas nos
uniram: a da sua contratação como professora estrangeira e, alguns anos
depois, o concurso para minha efetivação, de que ela foi banca, fazendo
parte diretamente do ritual de minha entrada nos quadros permanentes
da UFSC.
Quanto ao Laboratório de Antropologia, também testemunhei, já
como coordenadora, sua decisão de criar o NESSI, o Núcleo de Estudos
sobre Saúde e Saberes Indígenas, com o antropólogo espanhol Oscar
Calavia Sáez, demarcando assim um caminho distinto do NEPI, o
Núcleo de Povos Indígenas, criado pioneiramente pelo Silvio para reunir
as pesquisas sobre povos indígenas produzidas na UFSC. Desde o início
Jean Langdon, uma antropóloga norte-americana em terras catarinenses 535

dos anos 2000, a diversificação dos núcleos de pesquisa prenunciava


uma tendência à fragmentação do Laboratório de Antropologia e o seu
paulatino enfraquecimento, sobretudo a partir da perspectiva de criação
de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) pelos governos
do Partido dos Trabalhadores (PT). Essa capacidade pragmática de
lidar com as oportunidades e as mudanças institucionais sempre foi
uma característica da trajetória acadêmica de Jean Langdon. Seu
longo e coerente currículo de publicações nas áreas de saúde indígena,
xamanismo e performance, além de um número representativo de
monografias, dissertações e teses, denota um investimento em sua
atuação acadêmica e um forte profissionalismo.
Os trabalhos de Jean Langdon sobre etnologia indígena, xama-
nismo, saúde e performance – e, sobretudo, em antropologia simbólica,
como campo teórico de fundo – têm seus frutos evidentes na ampliação
teórica da produção acadêmica da antropologia na UFSC, pelo grande
número de alunas(os) que formou, por uma produção qualificada e de
vanguarda, pelo empenho na consolidação desse campo de estudos
na UFSC. Entre as inúmeras iniciativas e publicações que organizou,
destaco aqui o dossiê em homenagem a Silvio Coelho dos Santos, que
organizamos juntas na revista Ilha (2008). Nesse dossiê, encontra-se
uma aprofundada análise sobre a obra do saudoso colega Silvio, feita
por suas(seus) principais colaboradoras(es), colegas e alunas(os).
Não somente em Santa Catarina, mas no Brasil, podemos iden-
tificar seus laços profundos com a ciência, com colegas, estudantes,
comunidades indígenas e instituições, pouco a pouco se tornando uma
brasileira no sentido mais profundo do termo, como um exemplo a ser
seguido: alguém que conduziu seu trabalho e sua vida na direção de
sedimentar avanços pioneiros na pesquisa, da docência com excelência
acadêmica e, principalmente, de teor fortemente humanístico.
Nossa história na UFSC é, portanto, uma história de colabo-
ração, parceria e afinidades nas lutas departamentais pelo estabele-
cimento de novos campos e áreas de estudos na antropologia e pela
institucionalização das pesquisas em nossa carreira acadêmica. É impor-
tante registrar que Jean Langdon esteve presente de forma ativa nas mais
diversas etapas de consolidação da pós-graduação. Lembro também
que o seu próprio ingresso no corpo docente foi uma árdua batalha que
tivemos que travar para a sua contratação pela UFSC, se não me engano
já nos anos 1990, em um período de completo fechamento de vagas nas
instituições federais.
536 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Por fim, não sem importância, nossos laços de conhecimento e


convivência passaram e ainda passam por momentos de trabalho, mas
também de lazer e sociabilidade, nesta Ilha onde os largos espaços entre
bairros e praias produzem certo isolamento e até solidão. Sambaqui foi
um dos nossos pontos de encontro, no bar da dona Silvia (in memoriam),
comendo um peixinho com pirão tão bem-feito e saboroso, com as
caipirinhas caprichadas feitas pelo senhor José (in memoriam), esposo
de dona Silvia. Também as(os) amigas(os) nova-iorquinas(os), Diana
Brown e Mario Bick, têm sido os nossos novos elos, através de encontros
agradáveis em Jurerê, tomando deliciosas cachaças mineiras e vinho
chileno. Já passadas mais de três décadas de trocas e convívio, estamos
hoje ambas aposentadas, redimensionando nossos projetos e atividades
no presente para um futuro sempre esperançoso, cheio de sonhos e
desejos. Provavelmente novos interesses e pretextos nos levarão a novas
e futuras etapas da vida. Sem perder a ternura, jamais!

Florianópolis, 27 de janeiro de 2021

Referências
ASPELIM, P. L. “Para que colocar barragens em áreas indígenas?”. In:
SANTOS, S, C. dos (org.). O índio perante o direito. Florianópolis: EdUFSC,
1986. p. 99-110.
ASPELIM, P. L.; SANTOS, S. C. dos. A implantação das barragens na bacia do
Rio Uruguai e suas implicações sociais. Florianópolis: Eletrosul; LTSC, 1978.
ILHA – REVISTA DE ANTROPOLOGIA. Florianópolis: PPGAS/UFSC, v. 10,
n. 1, 16 ago. 2008. 376 p.
Da conversão à antropologia e de
outros afetos: Jean Langdon

Flávio Braune Wiik

Introito
Em fins de fevereiro de 2020, retornei à nossa casa de Flo-
rianópolis para dar início ao estágio pós-doutoral junto ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal
de Santa Catarina (PPGAS/UFSC). Cumprindo uma série de ritos
inerentes ao deslocamento entre os mesmos espaços compartilhados,
porém apartados pela ação do tempo, resolvi, logo ao chegar, arrumar
documentos e artigos acadêmicos que estavam há muito em um antigo
arquivo de aço. Triar e destinar para a reciclagem as evidências de um
conjunto material que o constituiu e do qual você se distanciou por
múltiplas razões, sem perceber até deparar-se novamente com ele –
somado à galopante digitalização de nossas bibliotecas –, justifica e
potencializa a necessidade de transformar a relação estabelecida com
esse material – por exemplo, descartá-lo. Entretanto, por ainda nos
figurar, tal como unhas e cabelos crescidos antes de serem desligados
de nós, lidar com esse material demanda cuidado e atenção, posto que
também está entranhado em nossa memória por ele atiçada. Seu descarte
deve cumprir etapas cautelosas, envolve movimentos e procedimentos
que remetem à sua suspensão, separação e reagregação alhures. Sem
cumprir esses estratagemas, o que está por ser apartado não terá destino
ou conclusão adequada, fazendo da sua reciclagem um ato arriscado,
pois pode-se acidentalmente desfazer-se de algo de que não deveria ter-
se desfeito, ou do qual se arrependerá de tê-lo feito no futuro. Enfim,
a ação incide no risco de não obter êxito em instaurar o novo status
pretendido, tanto para o objeto quanto para o autor da própria ação,
posto que estão em relação.
Movido por esse espírito e através de ação cautelosa e ritualizada,
de repente me deparei com o plano de ensino de uma disciplina,
“Antropologia simbólica”, do mestrado que cursei como aluno espe-
538 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

cial, ministrada pela Jean no primeiro semestre de 1991. Ele estava


escondido dentro de uma pasta suspensa em uma das gavetas de um
arquivo de aço todo enferrujado, que mantenho só para que, em caso
de incêndio, sobre algo para contar história. Ao vê-lo, fui invadido por
uma profusão de sentimentos, visualizei eventos, senti pessoas, revivi
passagens experimentadas ao longo daquele semestre, o encantamento
que vivenciei, as contingências enfrentadas a partir dali... Em realidade,
fiquei atônito. Passados quase 30 anos, tocando aquele documento
amarelado pelo tempo, paralisei: uma ab-reação!
Da conversão à antropologia e de outros afetos 539

Hoje, ao partilhar essa experiência, neste exato momento em


que digito o presente texto, olho novamente para o plano de ensino,
sob o olhar recalibrado não somente pela simples constatação da
passagem e da ação do tempo sobre nós – intrinsecamente articuladas
ao fenômeno da memória –, mas principalmente sob o mirar da
profunda transformação provocada em mim por aquele encontro que
tive com a antropologia simbólica ministrada pela Jean. Imediatamente,
e continuando no presente do indicativo, vem à minha mente uma sen-
sação que pode ser exemplificada por uma livre associação com uma
ocorrência etnográfica trazida por Lévi-Strauss e a mim apresentada
pela primeira vez naquela disciplina. Aquela mesma disciplina cursada
há três décadas, materializada pelo plano de ensino amarelado, e seu
impacto sobre a minha trajetória de vida parecem em algum grau se
justapor ao ocorrido com o pretenso feiticeiro Zuni ao encontrar
a pluma mágica nos escombros de uma parede desesperadamente
esburacada pelo sujeito; ali estava a prova material de sua nova persona:
feiticeiro est. Dessa maneira somos constituídos, tal qual na conversão
religiosa, na feitura de santo e de tantos outros procedimentos inerentes
às transformações cíclicas que se dão no mundo social. Todas elas
mediadas pelo fenômeno da cultura, mais especificamente operadas
pelo rito, replicador do mito, e pela manipulação de símbolos como
centro operacional de todo o processo.
Me deparei com um objeto provido de alto poder simbólico,
evocativo e comunicador da relação entre o indivíduo e o coletivo, da
legitimação das alternâncias de status, das identidades, da experiência
da transitoriedade, dos tipos e conteúdos inerentes à significação do
mundo, dados a partir de conjuntos e tipos de linguagens compartilhadas
e legitimadoras do fenômeno do poder per se. Evocativo da memória, da
ação do tempo sobre nós, da história das nossas relações e dos nossos
afetos. Enfim, trata-se de um marco físico cuja existência comunica e,
portanto, cumpre o seu papel de transcender a sua materialidade. Trata-
se de um objeto-coisa divisor entre um estado e outro, de um antes e um
depois. No caso específico a ser narrado, o da iniciação-feitura, um tanto
fortuita, de um antropólogo por uma mestre antropóloga-xamã.
Rapidamente guardei o plano de ensino-pluma mágica bem
acomodado dentro de um saco plástico transparente antes de retorná-
lo à pasta suspensa no arquivo de aço. Para garantir a sua perpetuação
e tê-lo como prova, para além da oralidade que se esvai e da grafia em
papel neste clima que tudo consome, até mesmo os ossos, segundo os
arqueólogos, fiz uso das tecnologias disponíveis produzindo uma cópia
540 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

impressa e outra digital. Separei a cópia impressa para entregar à Jean


em mãos e podermos apreciar juntos um marco de uma trajetória de
vida compartilhada à qual dera início, sem sabermos à época, naquele
começo de ano de 1991.
Não falei nada com a “dona Jean” sobre o achado, pois queria
lhe fazer uma surpresa. Às vésperas do nosso encontro marcado, a ser
regado por algumas cervejas em um happy hour numa quinta-feira de
março, fomos pegos pelas restrições impostas pela pandemia de covid-19.
Desde então nos isolamos. A celebração inerente ao encontro mediado
pelo achado continua suspensa, aguardando que ares condizentes com
o festejar voltem a pairar sobre o breu das múltiplas distopias que se
abatem sobre nós. A cópia do objeto da minha feitura, que atiça a
memória, repousa, empoeirada pelo tempo abduzido pela pandemia,
sobre uma pilha de papéis que fica do lado esquerdo da minha mesa
de trabalho.
Sinto que o conteúdo deste ensaio-homenagem expressa um
retrato emoldurado pelos seguintes filetes: i) um conjunto parcial da
memória represada desde o achado; ii) o que pensava contar durante
o encontro pendente; iii) o que aqui escolhi e me permiti grafar; e,
finalmente, iv) o espaço limitado temporalmente pelas diretrizes
da coletânea.
Como o que apresento não é fruto de um diálogo com a Jean,
fato que adensaria fragmentos da memória, provendo-os de completude
e contornos inerentes ao ato de (re)lembrar conjuntamente, o meu
relato é, portanto, marcado por várias lacunas e parcialidades. Ele
traz a Jean como centro, mas os afetamentos são meus. Claro que
esse “meus” inclui um tanto de “nossos”, pois, embora o conteúdo
partilhado apresente singularidades pessoais segundo posições
ocupadas contrastiva e complementarmente (e que estas determinem
as experiências e significações sobre o vivido), esse “nossos” inclui, além
da Jean, várias outras pessoas que, assim como eu, foram iniciadas e
afetadas pela sua convivência. Portanto, parte de nós é perpassada por
uma experiência compartilhada, constituidora de intersubjetividades
afinizadas (ou seja: tornadas “afins”, se me permitirem o emprego de um
neologismo inspirado em categoria presente na teoria de parentesco)
pela mesma pluma-mágica; só que aqui não se trata mais daquelas
plumas pertencentes aos iniciados como eu, mas sim àquela pertencente
à iniciadora. Para materializarmos a influência da Jean sobre este eu
coletivizado, temos, portanto, que nos mover do caso do feiticeiro Zuni
para o do Quesalid, haja vista que experimentamos a sua presença
Da conversão à antropologia e de outros afetos 541

essencial em nossa formação intelectual de forma consensual, azeitada


pela eficácia encarnada: um fenômeno sociocultural par excellence!
Finalmente, gostaria de indicar que a breve narrativa de alguns
eventos a seguir tem como foco a mediação exercida pela Jean em minha
formação profissional, a qual, por se tratar de antropológica, emana das
profundas entranhas do sujeito. Fazer antropologia, em especial à la
Jean, é um ato de conversão encarnada. Consequentemente, descrever
alguns desses eventos não significa a adoção de uma linguagem
acadêmica ou sisuda. Demanda, sim, uma narrativa alicerçada no
sentido, na acolhida e nas peculiaridades reveladoras de como a Jean
entrou e se fez presente ao abrir caminhos para o meu pensar, agir e
viver o campo antropológico nessas últimas três décadas. Trata-se da
escolha narrativa que segue o caminho do meio – acompanhando a
trilha filosófica dos Javaé, que se autodenominam como “o povo do
meio” –, onde não se deseja narrar uma sucessão de eventos tal como
se constrói um memorial acadêmico, para isso bastaria observar a longa
parceria espelhada em nossos respectivos currículos Lattes. Tampouco
propõe-se a ater-se à descrição de situações pitorescas, engraçadas e
até bizarras que partilhamos. Apesar de nada ser mais antropológico
do que a “fofoca”, essa dimensão de nossa convivência, que poderia
aqui gerá-la ou aguçá-la, permanecerá restrita a nós, nós mesmos, para
ser relembrada in vino veritas. Intenta-se dar lastro para curiosidade e
especulações, posto que, não grafadas ou gravadas em pedra, seguirão
tais como os famosos objetos de natureza etérea que singularizam a
aventura antropológica!

Caminhos cruzados: um encontro um tanto


fortuito
Caminhos que se interpõem no fluxo da vida sem delineamento
exordial, porém muito antes, aqueles soprados pelo afeto, me levaram
a Florianópolis no primeiro semestre de 1991; mais precisamente, na
primeira semana de janeiro daquele ano. Atraquei em vários portos,
em especial no do PPGAS/UFSC, naquela então provinciana e pacata
Floripa, especialmente para quem vinha do Rio de Janeiro e foi morar no
Canto da Lagoa ainda parcialmente pavimentado. Lá e pelas redondezas
conheci e me aproximei de vários de seus professores-vizinhos-tornados-
amigos e, mais tarde, tornados colegas. A Jean não estava entre esses
que conheci, mas por indicação deles fui estimulado a procurá-la para
542 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

falar sobre os meus interesses de pesquisa e pleitear uma vaga como


aluno especial da disciplina que ela ministraria no mestrado naquele
semestre. Foi então somente no início do semestre letivo que consegui
marcar um encontro formal com a Jean, em sua sala de permanência no
Departamento de Ciências Sociais, para me apresentar.
Meio sem graça, entrei na sala que ela dividia com outros dois
ou três colegas. Já havia sido avisado de que as aulas da Jean eram
concorridas e muito puxadas em termos de quantidade de leituras e
trabalhos. Também comentavam que, por ser norte-americana, não
ficava ali “agradando as pessoas pela frente e metendo o pau por trás”,
como reza a etiqueta de convivência brasileira. De cara, a Jean me deu
um “hard time”, pois a sua primeira pergunta, feita em tom provocativo
e desconstrutivo, era um questionamento na lata sobre por que cursar
a disciplina, se ela de fato tinha algo a ver com os meus interesses
acadêmicos. Tive dificuldade em responder, confesso. Ao final do breve
encontro, ela solicitou a escrita de um pequeno texto em que expressasse
meu interesse pela disciplina para então poder avaliar o meu pleito.
Hoje vejo que o primeiro encontro com a Jean foi um encontro radical,
encantador e desafiante com a alteridade. Lê-la naquele momento, assim
como a antropologia, era objeto de estranhamento.
Quebrei a cabeça por uma semana para produzir aquele
microtexto convincente o suficiente para que a professora me aceitasse
na disciplina. A antropologia era mais do que uma abstração, uma
viagem; era, antes, um objeto de resistência. Graduado em ciências
sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e treinado
como pesquisador social no Instituto Brasileiro de Análises Sociais
e Econômicas (Ibase) e na Associação Brasileira Interdisciplinar de
Aids (ABIA) – ambos dirigidos pelo Herbert de Souza, o Betinho –,
desde o primeiro semestre da graduação tive uma formação quase
exclusivamente voltada à sociologia e à ciência política. No Ibase, fiquei
anos trabalhando com análises estatísticas, elaborando instrumentos
de pesquisas quantitativas socioeconômicas, envolvido na assessoria
a movimentos sociais e sindicatos. Já na ABIA, atuei pesquisando,
formulando indicadores e elaborando material informativo de
prevenção às ISTs/HIV/aids dirigido às populações mais vulneráveis.
Nosso grupo de discentes sentia um certo constrangimento por “gostar
e engolir a antropologia”; afinal, entrávamos em nossos 20 anos de
idade e estávamos mergulhados no processo de redemocratização
do Brasil pós-anistia política, Constituinte de 1988; professores de
sociologia e políticos retornando do exílio, efervescência do movimento
Da conversão à antropologia e de outros afetos 543

estudantil pelas Diretas Já, fundação do Partido dos Trabalhadores (PT),


e, enquanto isso, adivinhem: o Roberto DaMatta – formador da maior
parte dos nossos, então jovens, professores de antropologia na UFF –
em sua campanha pela volta da monarquia no Brasil. Tudo isso, seja por
rejeição estética, seja por preconceito ideológico, gerou um vácuo em
nossa formação em antropologia.
Me sentei, escrevi e entreguei o texto-apresentação para a Jean,
já me preparando para a provável negativa. Porém, acho que ela se
interessou pelas pesquisas que eu havia feito sobre HIV/aids e o projeto
que tinha de abordar mais profundamente os impactos da pandemia
entre as religiões afro-brasileiras, fazendo deste, penso eu e para minha
sorte, elemento decisivo para que aceitasse o meu pleito.
Sem ter muito claro à época, a procura pela Jean já refletia um
descontentamento cumulativo para com as pesquisas quantitativas de
aporte sociológico com as quais me ocupara. Mergulhar no universo
do HIV/aids visando à produção de material informativo e preventivo
voltado para jovens em situação de rua mostrou um distanciamento
imenso entre os instrumentos teórico-metodológicos de que dispunha
para me aproximar da vida cotidiana dessa população, junto à qual
necessitava construir pontes para estabelecer comunicação entre
linguagens, noções particulares de espaço e de tempo e vulnerabilidades.
Sem isso, o conteúdo e a produção dos “dados” de que necessitava para
elaborar a pesquisa e os seus resultados não refletiriam e/ou atingiriam
esses jovens; acabaria produzindo um conteúdo voltado quase
exclusivamente para os meus pares acadêmicos. Em outras palavras, e
sem saber do que se tratava à época, estava discorrendo sobre as bases
epistemológicas da etnografia, assim como ansiava por produzir um
tipo de dado que espelhasse o encontro etnográfico per se.
A antropologia simbólica ministrada pela Jean viria a se acoplar
a esse portal rudimentarmente aberto. Hoje vejo que se tratou de um
evento singular e múltiplo, perpassando: i) o meu encontro com a
antropologia, que havia passado quase em branco durante a graduação;
ii) a apresentação à dimensão simbólica vis-à-vis ao fenômeno da
cultura em seu papel formador da vida em sociedade e de mediação
exercida sobre os atos de compreender e de agir significativamente
entre os indivíduos; iii) o encontro com a etnografia enquanto método,
porém articulado e indissociável do campo sensorial, e a abertura do
pesquisador para o outro; e iv) last but not least, o conhecimento, o
carisma e o protagonismo performático da Jean à frente do evento e
a sua impecável condução daqueles seminários tiveram caráter mister,
544 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

dotados de eficácia simbólica, ou seja, em linguagem popular hoje


démodé pelo avanço tecnológico, fez “cair a ficha”.
Entretanto, esta síntese sobre a relevância e a dimensão
totalizante daquela disciplina, a cargo da Jean, para a minha trajetória
de vida consiste em uma construção a posteriori. Enquanto vive-se e
experiencia-se algo novo, mesmo apreciando o que se experimenta, o
transcorrer cotidiano do evento no qual se está envolvido é salpicado
por elementos difusos e fragmentários. A sua junção e a consciência
acerca de sua consistência, qualificação e tipificação estão subjugadas ao
complexo espaço-temporal que lhes imprime forma e forra a memória,
ao menos para nós orientados pelo gatilho cronológico.
É na casa das dezenas, ou melhor, das centenas, para os que
trilham os caminhos acadêmicos, o número de professores, disciplinas
cursadas, eventos atendidos, pessoas presentes em cada um destes.
Mas são poucos os quais se recordam. Normalmente lembra-se das
experiências extremas, sejam elas proveitosas e prazerosas, sejam
elas, quando não as recalcamos, traumáticas. Aquele encontro, no
sentido lato do termo, que tive com a Jean à época foi marcado pela
fortuidade. Facilmente, as trocas (simbólicas) vivenciadas ao longo
daquele semestre, embora intensas, acabariam sendo tragadas pelo
distanciamento espaço-temporal. Inicio em 1991, concomitantemente
à disciplina, um plano extremo oposto: o de retornar à Noruega para
cursar o mestrado em antropologia social na Universidade de Oslo. Em
setembro daquele mesmo ano, após o término do semestre letivo do
PPGAS/UFSC e de ter sido aprovado com conceito “A” pela professora,
estava instalado no outro extremo do mundo.
O que eu não sabia quando deixei o Brasil naquele ano era que
havia sido “feito”, convertido à antropologia, pela Jean. Dali em diante,
somam-se décadas quando em vários períodos exerceu coorientação
acadêmica, mostrou-se uma formadora impecável e crítica incansável
dos meus trabalhos, interlocutora sensível nas minhas escolhas de ob-
jetos de pesquisa durante o mestrado e o doutorado. Tudo isso somado
a um acolhimento difícil de ser expressado em palavras e do qual estou
muito distante de alcançar quanto aos meus (ex)alunos-orientandos
feitos amigos e hoje já colegas. A essa dedicação e aprendizagem,
acrescentam-se parcerias e cooperações em publicações e pesquisas.
Logicamente, ao longo do tempo, criei maior autonomia em campos
e perspectivas acadêmicos, posto que é intrínseco à maturidade.
Como ocorre em todas as duráveis relações, ao longo do ciclo de vida,
Da conversão à antropologia e de outros afetos 545

observadas em uma mesma instituição ou campo do conhecimento, a


ruptura e o decorrente reagregamento (porém ocupando novos status e
relações) não somente são esperados como desejados; afinal, crescemos!
Como os afins nos domicílios formados por famílias extensas Jê (porém
aqui neste exemplo não levando em conta as prescrições e distinções
atreladas às construções de gênero, descendência ou residência pós-
marital), a Jean e eu continuamos engajados na nossa economia de
trocas simbólicas e de consubstancialização corpórea; carinhosamente
cuidando da manutenção de nossa personhood através de um processo
infindável, ancorado no pensamento ameríndio, segundo o qual a
“humanidade” não é dada a priori, nem se trata de um projeto findo,
antes sim de algo inacabado, a ser (des)construído perenemente.
Essa história comum está parcialmente documentada em nossos
respectivos currículos Lattes, compartilhada pela nossa também
comum comunidade de substância, assim como, e logicamente comum,
o emaranhado que dá forma e transpassa nossas vidas desenhadas por
fios, padrões, telas e tessituras afins.
Me resta pouco espaço para atingir o limite máximo de páginas
permitido para este tipo de contribuição que trago à obra. Destarte,
elencarei somente algumas poucas passagens que vivi naquele
semestre na disciplina ministrada pela Jean. Trata-se de episódios que
estranhei (no sentido antropológico do termo), e imagino que devam
ter contribuído para a minha feitura em antropologia. Eles consistem
em fragmentos trazidos pela memória: memória mesmo, como
popularmente a empregamos e pedimos aos nossos interlocutores
para fazerem uso em nossas pesquisas de campo, portanto plenas
de subjetividade e de lapsos. Aqui, principalmente por não ter
podido reavivar esses eventos com a Jean, como planejara antes do
confinamento provocado pela pandemia de covid-19. Talvez esta seja
a parte mais “etnográfica” da minha narrativa, em que eu me coloco
como nativo e, em seguida, por ter me transformado em antropólogo,
coisifico a nossa própria formação à luz dos instrumentos conceituais
e de linguagem providos pela antropologia, colocando-nos, ela e nós,
feitos antropólogos, no campo da “cultura”, ou seja: no campo do
sagrado. Devem, portanto, ser (e sermos) tratados como unidades e
objetos da análise antropológica.
546 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

O setting, o símbolo no rito e no mito e a


antropologia como expressão do sagrado: da
feitura de antropólogos
Entrar e permanecer naquela calorenta e diminuta sala de aula
do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) da UFSC em pleno
março, com o causticante sol vespertino atravessando janelas adentro,
amainado por cortinas rasgadas e desbotadas, além de barulhentos
ventiladores, não era para qualquer um, somente para dedicados ou
desavisados neófitos. E com aquele sol maravilhoso de março, com a Ilha
já vazia pós-temporada, paraíso para quem vinha do Rio e para quem
praia com água limpa era sinônimo de trânsito e lonjura, ou as da Zona
Sul, sinônimo de aglomeração, arrastão... Não era mole permanecer ali
naquele espaço enclausurado, não, só com muita resignação!
As aulas começaram em 6 de março, quarta-feira, e seguiram
até o dia 19 de junho. Não se tratava somente de “perder” uma tarde
da semana com a aula, não. Além de trabalhar dando aulas de inglês
em duas escolas e aulas particulares para poder me manter (aliás, fui
professor de inglês da Ilka (Boaventura Leite) e do Alberto (Groisman),
acreditam?), tinha que dar conta de um montão de leituras, o que
“tomava” incontáveis horas de muita dedicação ao longo de toda a
semana. O plano de curso distribuído pela Jean tinha quatro páginas
e ainda vinha naquele “tamanho ofício”, maior do que o padrão atual,
o “A4”. Cabia muita coisa ali... Em média, tínhamos que ler de três a
quatro textos por semana, vários deles em inglês.
A nossa turma de alunos era reduzida, algo em torno de 12 ou
15 pessoas, não lembro bem. Aliás, não queria citar nomes dos colegas
à época, pois posso me esquecer de alguns hoje ainda bem próximos e
com quem mantive amizade e cooperação em pesquisas, mas vou me
arriscar. Por alto, me lembro do Leko (Ledson Kurtz de Almeida), da
Conceição (Maria Conceição de Oliveira), do José Ronaldo (Fassheber),
da Ângela (Souza), da Margarete (Fagundes Nunes). Tinha um hippie
que morava na Armação e uma moça que estudava pandorga, dos quais
não lembro os nomes. O passar do tempo – como tudo que diz respeito
à Jean foi se misturando com a minha vida, e o tempo cronológico
foi esmaecendo, hoje transformado em tempo mítico, ou mesmo em
memórias sincrônicas ao longo desses 30 anos – fez com que pessoas
como o Alberto, a Eliana (Diehl), a Cristina (Florentino) e o Cid (Ricardo
Cid Fernandes) fossem incógnitas para a minha memória, se faziam
Da conversão à antropologia e de outros afetos 547

parte dessa turma ou foram se amalgamando, se consubstancializando,


como entre os Jê, ao longo do caminho.
As aulas tinham formato de seminário. Como éramos poucos,
acho que nos responsabilizávamos por, ao menos, um seminário ao
longo do semestre. Acho que eu apresentei dois. E não era só apresentar
os textos, não. Tínhamos que formular questões sobre o tema, comparar
e contrastar cada tema com os diferentes campos conceituais e escolas
do pensamento, vis-à-vis a definições e asserções sobre papel do
símbolo em teoria social. Além do seminário, tivemos que escrever três
ensaios ao longo do semestre. Claro, à época o mestrado era tal qual um
doutorado atual, e as exigências eram maiores, inclusive o prazo médio
de quatro anos para a sua conclusão.
Diferentemente do que observo através dos meus alunos da
pós-graduação, que poucos leem a bibliografia obrigatória e ficam
“fazendo cara de paisagem” durante as aulas e os seminários (como
se diz sarcasticamente na atualidade, o professor se tornou a barreira
entre o aluno e o diploma!), para os nossos seminários semanais líamos
praticamente tudo. Estarmos ali nos obrigava a ler não por mera
formalidade, mas por nos sentirmos corresponsáveis pelo andamento
da disciplina e por considerarmos uma oportunidade única. Queríamos,
sobretudo, conhecer e entender o objeto apresentado. Ademais,
as leituras tinham grande apelo e despertavam aquela sensação de
estranhamento; aquela “mágica” operada pela antropologia e sua
proposta única de alteridade deslocada e enviesada de (des)ordem das
coisas e do mundo. Claro, naquele cenário e contexto, o protagonismo
e a performance da Jean eram fundamentais para a sinergia alcançada,
assim como a eficácia “simbólica” observada no processo de conversão
à antropologia.
Não penso ser a avaliação que faço, acerca da seriedade com que
encarávamos a disciplina, idiossincrática ou isolada; lembro-me ainda
de fazermos discussões conjuntas da bibliografia em encontros físicos,
além das performadas em sala de aula. As trocas eram intensas, e olha
que não havia internet. Tampouco meu pensamento refletiria um sau-
dosismo que desvaloriza o tempo presente. Havia, para além das
cobranças, uma relação de cuidado e afeto com o que estávamos fazendo,
e assim, como afirmado acima, o reconhecimento da capacidade
intelectual da Jean, seu desejo de nos (in)formar e de (com)partilhar
o seu conhecimento conosco. Não se tratava de doutrinação, mas de
paixão da professora pelo que fazia e ainda faz.
548 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Como quanto menor é a turma, maior é a vergonha de falar


bobagem diante dos outros, bobagens que se diluem nas turmas
maiores, a Jean criticava a gente “na lata”, não tinha “mi-mi-mi”, não.
Claro, nunca teve uma postura arrogante ou se colocou na situação do
tipo “eu sei e você não sabe”, porém sempre falava: “Não estou segura,
mas acho que não é isso, não”... Por outro lado, quando dávamos uma
dentro, não saía elogio da boca da professora. Havia somente um singelo
aceno indicando acerto, um sorriso tímido, meio que de lado. A Jean
tinha uma postura dura para nossos padrões brasileiros, com os quais
eu estava acostumado a viver em universidade pública, relativamente
aos professores. Mas essa dureza era amainada através de vários de seus
comportamentos de quebra de hierarquia e proximidade para conosco;
postura pouco usual para mim, mas que impactava positivamente e
provia de aura o início de nossa relação para com a mestra. Tampouco
a rigidez indicava qualquer traço de perversidade, como observamos
de quando em vez na relação de professores com seus alunos em sala
de aula. Muito pelo contrário, a Jean sempre foi extremamente demo-
crática, como boa estado-unidense de esquerda. Hierarquia e igualdade
não se opunham de forma simétrica e/ou antagônica, mas uma era
encapsulada pela outra em movimento circular e complementar.
A forma circular com que as carteiras eram dispostas na sala de
aula durante os seminários, pouco praticada à época, causava estranheza.
Se por um lado a proximidade gerava receio de “dar umas fora” olhando
de perto e de frente o coletivo, e principalmente a Jean, por outro
deflagrava uma aproximação recém-experimentada por muitos de nós.
No círculo, era compartilhada uma bela e diminuta cuia de chimarrão
que a Jean trazia de quando em vez nas tardes frias de outono e inverno.
Ainda fumávamos em sala e filávamos um cigarro aqui e outro acolá.
A Jean, em especial, que era uma fumante, mas que por evitar fumar
quase nunca tinha cigarros com ela, era campeã em filar. E ai de quem
não tivesse ou de quem negasse um pedido seu; a entidade, afinal, pedia
tabaco para se fazer presente! Eu era um que sempre tinha a preocupação
de trazer uns cigarros extras comigo, just in case.
Lembro também que, durante uma greve ou paralisação, tivemos
alguns encontros em sua casa, no Pantanal. Foi a primeira vez que
eu entrei na casa de um professor. Nunca ouvira falar sobre esse tipo
de aproximação durante a minha graduação. O mais próximo disso
havia sido entregar trabalhos na porta ou na portaria das casas de
alguns professores. Essa abertura nos aconchegava e nos empoderava,
quero dizer, aumentava a admiração que tínhamos pela Jean. Os dons
Da conversão à antropologia e de outros afetos 549

circulavam, e a nossa ligação se consubstancializava em um crescendum.


Havia uma atmosfera de relativa communitas vivenciada ao longo
daquele semestre a partir das interações deflagradas pela participação na
disciplina. Para mim, e imagino que para muitos de nós, a possibilidade
de tamanha aproximação e de convivência com um professor se deu
pela primeira vez.
Sobre tudo isso que narro acima, soma-se a característica da Jean
de falar bastante sobre ela, sobre o seu campo na Colômbia, entre os
Siona, sobre seu ex-marido, Tom, também etnólogo em campo com
ela, sobre seu seminário com Mary Douglas e seu conhecimento mais
próximo do Victor Turner. Até mesmo sobre passagens pitorescas,
como a sua ida ao Festival de Woodstock, sua vida de jovem nos EUA,
trabalhando como telefonista, entre outras. Interagíamos com seus
filhos, que estavam entre a adolescência e o início da vida adulta.
Na apresentação do plano de curso distribuído no primeiro
dia de aula, lê-se no primeiro parágrafo: “A disciplina visa explorar a
antropologia simbólica [...]. O enfoque central é o papel do símbolo em
[sic] rito, mito, religião e ‘magia’”.
Infelizmente não há espaço, nem é a minha intenção, fazer uma
análise ou intepretação da disciplina e de tudo o que vivemos com a Jean
e a partir dela ao longo daquele semestre, à luz da antropologia simbólica.
Ademais, a antropologia da antropologia passou a ser um campo fértil
com os estudos de crítica cultural, decolonidade, entre outros. Somente
gostaria de provocar, ou melhor, suscitar que o que aconteceu comigo,
e quiçá também com alguns dos meus colegas daquela turma, foi um
processo bem-sucedido de conversão – ou, se preferirem, de abração;
ou, mais ainda, de eficácia simbólica – experienciado diante de um
evento cujo objetivo original-e-final era iniciar neófitos na antropologia
simbólica, o que se deu através de instrumentos e meios “mágicos”
comuns ao campo de conhecimento antropológico, esses mediados por
uma sacerdotisa.
Se assim procedermos, a sala de aula pode ser tomada como
um setting – tal qual um terreiro, ou uma praça central jê, uma casa
de reza guarani, ou um templo sagrado – onde estão dispostos e
participam do jogo vários símbolos sujeitos à manipulação. Observam-
se ações ritualizadas, textos clássicos quasi-míticos presentes na
bibliografia, narrados e discutidos, técnicas e procedimentos de
leitura performatizados a partir de determinada estética tida como
apropriada para o evento, transmissão de formas de leitura consideradas
adequadas, execução da análise e da interpretação dos textos, suspensão
550 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

das regras diárias e mundanas respeitadas, papéis sociais e hierarquias


invertidos e trocados temporariamente, mestre de cerimônia e neófitos
vivem intensamente e de forma dramatizada novas experiências, ora
em silêncio, ora verbalizadas, as avaliações de grande relevância no
processo de feitura “at stage”... Enfim, vivia-se naqueles seminários a
síntese da vida social mediada pela parafernália cultural. As passagens,
transições ou transformações dos indivíduos eram dramatizadas, como
em um ritual de iniciação, cujo resultado foi a formação de (alguns)
novos antropólogos.
Afinal, de que matéria se constituem a antropologia e a sua
replicação por nós, seus iniciados e protagonistas? De algo que surge
de uma experiência profundamente pessoal de passar a (tentar, ao
menos) ver o mundo a partir de uma perspectiva inversa. Mesmo que
o native point of view esteja démodé e seja um projeto – visto hoje como
– no mínimo naïf e acrítico do ethos ocidental sobre o “resto”, à la The
West and the Rest, e que a etnografia não seja um método per se, assim
como a própria antropologia não seja provida de universalidade, como
se pregava e acreditava, mas sim uma criação espaço-temporalmente
circunstanciada para responder ao fenômeno da alteridade (esta sim,
creio, universal) culturalmente significante e mediada por símbolos
de mesma natureza. Sacar a/de antropologia e o poder de transmiti-
la exige essa mudança de perspectiva introjetada, uma mudança que
não se dá na mente, de forma etérea, distante, formal, como, perdoem-
me, na sociologia ainda muito formal e positiva, mas sim a partir das
nossas entranhas! A antropologia engendra e é gerada na replicação
cultural por sujeitos sociais através de ação informada, ou também
replicada de forma inconsciente, ser por ela atropelada, como se deu
no meu caso, ao conhecer a antropologia veiculada pela professora. Fui
afetado pela Jean para ser tocado pela antropologia. Claro que não se
pode falar em autonomia ontológica radical entre esses afetamentos e
agências, posto que se autonutrem para formar a fábrica social; porém, o
protagonismo, a criação, a linguagem e a comunicação são compostos de
códigos e procedimentos compartilhados entre humanos (mesmo que
extensivos a não humanoides). O que quero dizer é que não existe uma
entidade autônoma, provida de vida própria, sem gente a ela atrelada,
chamada antropologia.
Ademais, a experiência antropológica consiste em uma via-
gem à la Weber, sem volta, e cujos limites da desconstrução, da
proximidade e da novidade em torno do estranhamento, inerente a
esse campo de conhecimento, renovam-se constantemente. Tombam-se
Da conversão à antropologia e de outros afetos 551

constantemente diante dela. É uma entidade viva, sagrada, muitas vezes


reificada, da qual não nos damos conta enquanto ela se desenha conosco.
A bem da verdade, o lugar da antropologia move-se periodicamente,
fazendo com que essa experiência inicial que nos fez antropólogos nos
surpreenda de tempos em tempos, mantendo a essência original, quiçá
um dom. Há, logicamente, um poder do qual se desfruta ao ser iniciado,
legitimado entre os pares, no métier, assim como institucionalizado:
entra-se na escola, torna-se antropólogo, ensina-se antropologia,
legislam-se e desenham-se políticas públicas alicerçadas nesse campo
de conhecimento. A Jean foi e é uma mestra desse campo. Aquele
setting que compunha os seminários de antropologia simbólica era um
lócus iniciático, por ela protagonizado, detentora e transmissora desse
conhecimento e de seus instrumentos transformados e adaptados em-e-
através-de sua persona e de sua pena mágica!
A antropologia como produto e produtora de cultura – e por isso
transitamos sobre e nos seus emaranhados e teias ao mesmo tempo que
a tecemos – nos coloca em múltiplas posições em relação a si mesma.
A gente a vê e a experimenta de longe e de perto, de fora e de dentro,
com e sem aspas (parafraseando a Manuela Carneiro da Cunha, que for-
jou e popularizou essa expressão entre os pares). Realiza-se em movi-
mento pendular constante entre consciência objetificada e experiência
pura, entre racionalismo científico e metafísico e empirismo. Esse
movimento é próprio da e operado pela “cultura”, aqui tida como um
conceito (um aglomerado abstrato) inventado no Ocidente moderno, o
qual responde por uma forma específica de significação e ordenamento
do mundo, propulsora da ação informada, assim como das diferentes
formas de expressão dos regimes de alteridade/identidade. Ou seja,
essa dimensão (re)liga e dá sentido ao que estava ou era desconexo nos
diferentes contextos e campos. Paradoxalmente, um processo comum
aos humanos (e quiçá extensivo a demais criaturas) e singular (ao menos
até a presença hegemônica do ethos ocidental) ao mesmo tempo. Nesses
termos, a antropologia, culturalmente construída, ocupa a qualidade e
o campo do sagrado, provida de poder e de eficácia simbólica, assim
como provocadora de mudança profunda e totalizante, mental e afetiva
sobre as perspectivas do viver, do sentir e do interpretar o mundo: uma
esquisitice do Ocidente moderno, tal qual a feitiçaria entre os Azande
é para “nós”, como bem articulou Evans-Pritchard acerca do processo
reverso de estranhamento, como reza a cartilha antropológica moderna
para significarmos a alteridade.
552 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Assim se dá a feitura de um antropólogo em termos socioculturais,


articulada por um certo tipo de conhecimento, instituições, poderes
estabelecidos, conjunto moral, normativo e estético, que regulam e
instituem um socius único: o antropólogo enquanto uma construção
“nativa” do corpus antropológico; nem xamã, nem feiticeiro, nem
psicanalista, mas antropólogo.

A vida é um sopro (da mestra)


Num piscar de olhos, que não deve ser confundido com uma
piscadela, 30 anos se passaram sem que eu me desse conta até encontrar
o plano de ensino amarelado guardado no armário de aço.
Espero, Jean, que possa te entregar em mãos essa pena mágica,
ou ao menos um fragmento dos seus muitos e poderosos instrumentos
“mágicos”, e que essa entrega seja comme il faut, ou seja: com bastante
comemoração, proximidade física e sem hora para terminar. Espero
que nosso encontro se dê antes que você leia este singelo relato, quando
as suspensões das interações já tenham cessado e algumas das muitas
distopias que enfrentamos hoje tenham sido substituídas por realidades
utópicas realizáveis.
Por fim, para além da linguagem abstrata e objetificada que
aprendi na academia e da qual fiz uso aqui para relatar a minha
experiência de vida junto a você e agradecer-lhe por isso, utilizei ins-
trumentos de linguagem, truques e mágicas poderosas que você me
transmitiu, comunicou e partilhou a partir daquela disciplina, em 1991.
No cômputo geral, esse conhecimento tornara-se um mero istmo diante
do aglomerado multissensorial que nos liga e não conseguimos expli-
car, mas antes, e simplesmente, vivê-lo intensamente: um dominant
symbol, em termos turnerianos. Obrigado, Jean, pela mediação e
pela manipulação desses poderosos símbolos que nos fazem viver e
nos gostarmos!
Itinerários académicos, lúdicos e
terapêuticos: memórias e diálogos
com Jean Langdon em Portugal e
Brasil entre águas e vinhos

Maria Manuel Quintela

Memórias de um encontro
Escrever um texto numa coletânea de homenagem a Jean
Langdon não é fácil, tantas são as dimensões que se cruzam entre
a antropóloga, a professora e a amiga. Porém, essas dimensões são
indissociáveis. Organizei este texto a partir de memórias que cruzam
trajetórias académicas, pessoais e afetivas, destacando alguns episódios
que caracterizam a Jean e a importância que teve na minha vida.
Ao pensar no desafio feito pelas organizadoras desta coletânea,
de imediato surgiram em catapulta palavras (vida, bebidas/líquidos,
comida), momentos (encontros académicos e lúdicos), lugares (em
Portugal e no Brasil), textos (da sua autoria e de outros autores),
temas (antropologia, etnografia, ensino, saúde) e conceitos (itinerário
terapêutico, narrativa, processo terapêutico, autoatenção, saberes locais/
biomedicina) que se entrecruzaram nos últimos 20 anos.
O primeiro encontro aconteceu por razões de natureza académica
e deu-se quando da minha primeira viagem ao Brasil, especificamente
a Florianópolis, onde fui explorar a possibilidade de realizar o dou-
toramento na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no
recém-criado Programa de Pós-Graduação em Antropologia. A área
em que pretendia fazer o doutoramento, no seguimento da minha
experiência anterior, era o campo da antropologia da saúde. E aí a Jean
Langdon era a pessoa de referência na UFSC. O nosso primeiro encontro
ocorreu em Santo Antônio de Lisboa, onde o colega e amigo João Leal
nos apresentou num final de tarde em que ocorria a Festa do Divino.
Junto ao mar, nos encontramos, tomamos uma bebida, talvez caipirinha,
554 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

e comemos uns pastéis e/ou uns camarões. A primeira imagem que tive
foi de uma mulher reservada, de “poucas palavras”, mas com um olhar
atento de quem está a observar quem é esse “outro”. Recordo que me
impressionou pela sua curiosidade, sendo ela uma sénior, pelo interesse
demonstrado por minha dupla formação (enfermagem e antropologia),
pelo facto de querer conhecer o que eu fazia, enquanto profissional
(docente num curso de enfermagem), e quais eram os meus interesses
académicos, enquanto antropóloga e potencial doutoranda. De ime-
diato se criou uma empatia e se abriu um espaço de diálogo sobre a
relação entre a antropologia e a saúde, e em particular sobre o ensino
da antropologia em cursos de saúde, que tendo tido o seu início nesse
primeiro encontro se desenvolveu e permanece até hoje.
No ano seguinte, foi organizado um “Colóquio de Antropologia
da Saúde” no Centro de Estudos de Antropologia Social (CEAS),
organizado por Cristiana Bastos, por Luís Silva Pereira e por mim, e
para o qual convidámos a Jean Langdon. Nessa sua deslocação a Lisboa,
intensificamos a interlocução sobre experiências relativas ao ensino da
antropologia nos cursos de saúde, e tive a oportunidade de expressar
minhas dúvidas e meus dilemas sobre a prática. Jean respondia
às minhas questões, sempre atenta, colocando novas questões que
constituíram um desafio de pensar a “praxis” e de formular questões
teóricas. Senti na época um incentivo na forma como tentava me
mostrar o potencial e o valor da experiência adquirida na prática. Essa
é uma das facetas que a caracterizam, a da professora e da interlocutora
que não dá “receitas”, mas que coloca os alunos e/ou interlocutores a
pensar e a potencializar o conhecimento adquirido na experiência da
prática. Aliás, atitude que é transposta para a realização do seu trabalho
etnográfico de conhecimento do “outro”, particularmente no campo da
saúde, sobre a diversidade de saberes e o “sistema cultural” (de acordo
com Clifford Geertz).
Nesse ano de 2001, tive também a ocasião de voltar a Floria-
nópolis e, por convite seu e de Oscar Calavia Sáez, então coordenador
do Departamento de Antropologia da UFSC, fazer uma conferência,
conjuntamente com o Departamento de Enfermagem da mesma
universidade, sobre a importância da antropologia para a enfermagem.
Entretanto, tinha decidido já me candidatar ao programa de dou-
toramento do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa,
para ser orientada pela Cristiana Bastos e fazer trabalho de campo
em Santa Catarina, tendo escolhido como coorientadora no Brasil a
Jean Langdon.
Itinerários académicos, lúdicos e terapêuticos 555

Foi em 2001 que fiz a minha primeira incursão exploratória


ao terreno (Caldas da Imperatriz – Santa Catarina). A generosidade
da Jean, outra das suas características, traduziu-se na oferta de sua
casa na Trindade para eu permanecer nesse período. Nessa casa, onde
vivia sua filha, Elena, fiquei durante a minha estadia. Ali, em 11 de
setembro, assisti em directo pela TV ao ataque às Torres Gémeas,
em Nova Iorque. Tive também nesse período a chance de conhecer
a sua casa em Sambaqui, um paraíso, e usufruir de boas refeições
por ela preparadas, revelando os seus dotes de ótima cozinheira,
acompanhadas de bons vinhos. Nesses momentos gastronómicos,
bem regados por preciosos líquidos, continuamos o diálogo encetado
no ano anterior, então com mais um tema a debater – o trabalho de
campo, que eu estava a iniciar, e a etnografia que pretendia realizar
sobre práticas terapêuticas associadas a um outro líquido: a água, e já
não o vinho. Introduziu-me a alguns textos para que eu conhecesse
e pudesse contextualizar a realidade do campo da saúde no Brasil e
particularmente em Santa Catarina.
Foi então no período de 2002-2003, com a minha estadia em
Santa Catarina e o trabalho de campo em Caldas da Imperatriz, que
se intensificou meu conhecimento da Jean enquanto professora,
orientadora e amiga. Foi ela, também, que me encontrou uma casa para
alugar em Sambaqui durante esse período. A proximidade geográfica
e o novo papel de coorientadora da tese de doutorado foram criando
laços afetivos e construindo um diálogo académico que permanece até
hoje. As reuniões de orientação eram feitas em sua casa e sempre em
torno da cozinha, o que tornava esses momentos prazenteiros sob o
ponto de vista sensorial – gustativo e olfativo – e sob o ponto de vista
intelectual, um desafio permanente de pensar as questões trazidas por
mim do terreno, a forma como poderia pensá-las teoricamente.

Do Brasil para Portugal


A Jean Langdon veio um semestre como professora visitante
para o Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). Foi um inverno muito
chuvoso em Lisboa, e a Jean telefonava-me algumas vezes aos fins de
semana para “refilar”, acentuando seu sotaque, que se manifesta em
situações de desagrado: “Manel, está outra vez a chover!”. E eu respondia
brincando: “Jean, não consigo aceder junto de São Pedro para parar de
chover”. Tivemos então oportunidade de viajar um pouco pelo país,
556 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

quando em algumas dessas viagens conheceu a minha família, a casa e


a “adega”.
Recordo a sua estranheza ao observar “muitas mulheres velhas de
muletas” e perguntar-me por que isso acontecia. A partir daí estabelecia-
se um diálogo sobre as mulheres e a relação com a saúde, em comparação
com o contexto brasileiro. Dos vários episódios soltos que relembro, um
deles é o seu aguçado espírito etnográfico sobre o “café” em Portugal
– ou, neste caso, em Lisboa –, expressado tanto pelas nomeações dadas
ao “café” como pela importância de “ir ao café”. A sua surpresa advinha
de compreender o significado dos tipos de café (bebida) pedidos nesses
estabelecimentos, de que são exemplos: “carioca”, “bica”, “café cheio”,
“café curto”, “italiano”, “abatanado”. Atenta também aos sons da rua, que
se podiam ouvir quando a janela da minha sala estava aberta, reconhecia
o barulho de chávenas de café e de colheres, vindo da padaria. E tomava
uma expressão aparentemente grave, dizendo: “É preciso fazer uma
etnografia do café”. Outra estranheza que verbalizava era sobre a água
(bebida) e suas nomeações, estando eu a pesquisar tal tema, entre o
que significava pedir numa pastelaria ou num restaurante uma água
“natural”, “lisa”, “mineral” ou “das pedras”.
A propósito de águas, acompanhou-me em uma visita explora-
tória a Caldas de Monchique – onde eu tinha considerado realizar o estudo
de caso em Portugal, no âmbito do estudo comparativo da pesquisa do
doutorado. Essa estância termal estava em reforma, e os estabelecimentos
hoteleiros iriam fechar brevemente, temporariamente. Na véspera de um
desses fechamentos, decidimos ir jantar no seu restaurante, situado num
espaço ao ar livre. Como bebida para acompanhar a refeição, o “garçon”
sugeriu um vinho “velho” de uma colheita especial, “as últimas garrafas e a
bom preço”, e em uníssono aceitamos de imediato tão tentadora proposta.
As expectativas não foram goradas. Apreciamos bem o precioso líquido,
em sabor e quantidade. No dia seguinte, levantei-me cedo para ir fazer
as minhas incursões exploratórias ao “terreno das águas”. Quando
cheguei, na hora do almoço, resmunguei: “Estive a provar e beber a
água mineral daqui e fiquei enjoada”; ao que a Jean, com uma ironia que
a caracteriza, respondeu: “Já vi ficar maldisposta por causa do vinho.
Agora, da água… Nunca ouvi!”.
Esses são alguns episódios que relembro e que aqui relato como
ilustração da dimensão lúdica que esteve sempre associada aos momen-
tos e lugares de encontros e debates nos diversos itinerários percorridos.
Mas, se até aqui relatei sobremaneira essa faceta, não significa que
não coexistissem conversas sobre assuntos mais sérios nesses muitos
Itinerários académicos, lúdicos e terapêuticos 557

encontros, ocorridos em diversos lugares entre Brasil e Portugal. Digamos


que eles eram também o pretexto para o “diálogo” sobre antropologia
e saúde: “narrativas”, “disciplinas”, “interdisciplinaridade”, “interfaces”,
“praxis”, “sistemas médicos”, “sistemas culturais”, “práticas terapêuticas”,
“experiência”, “mediações”, noções centrais que encontramos nos
textos da Jean Langdon, sobretudo aqueles que são relativos ao campo
da saúde.

Diálogos e itinerários académicos


No seguimento de algumas dessas conversas, surgiu a ideia de
planejarmos uma actividade conjunta no “IV Congresso da Associação
Portuguesa de Antropologia – Classificar o Mundo”, realizado em
Lisboa. Foi assim que organizámos nesse âmbito, em 2009, um grupo de
trabalho (GT), que intitulámos “Terapias: dos contextos etnográficos à
construção de categorias analíticas”. Na preparação desse GT, os nossos
diálogos académicos intensificaram-se via Skype.
Se a preocupação da existência de diálogo, por parte da Jean
Langdon, se faz no campo das relações professor-aluno e orientador-
orientando, também essa noção (diálogo) está presente em todos os
seus textos relativos à saúde. E aqui noto, sobretudo, aqueles que dizem
respeito à forma de se comunicar entre disciplinas e sistemas médicos,
identificando narrativas próprias de cada um dos atores no campo
da saúde, sejam profissionais, doentes ou académicos. Nesses textos,
a comparação é feita entre as várias disciplinas (ciências da saúde e
ciências sociais), os sistemas médicos (biomedicina e outros que não a
biomedicina) e a necessidade do trabalho do antropólogo, do etnógrafo,
como “mediador” nesses processos.
Será nesses conceitos que vou me centrar agora neste texto, para
constatar quais são aqueles que na praxis do ensino da antropologia
em cursos de enfermagem se tornaram fulcrais no desenvolvimento
e na organização da ementa das unidades curriculares nesses cursos.
Tentarei ainda reflectir sobre as estratégias de ensino e aprendizagem
utilizadas na seleção dos textos e explicar as razões de escolha para
operacionalizar a praxis a partir do diálogo com os estudantes e com os
textos naquilo que aprendi com a Jean Langdon.
Há dois textos em que fui reconhecendo ao longo da experiência
de ensino com estudantes de enfermagem um cariz predominantemente
pedagógico, tanto para os estudantes de graduação como para os de pós-
558 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

graduação. São eles: “Antropologia, saúde e doença: uma introdução


ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde” (LANGDON;
WIIK, 2010) e “Cultura e os processos de saúde e doença” (LANGDON,
2003). São, na minha perspectiva e experiência docente, dois textos
pedagógicos muito eficazes com estudantes de cursos de saúde que não
são antropólogos, tanto em nível de graduação como de pós-gradua-
ção (mestrado).
O primeiro, pelo seu cariz introdutório e de sensibilização a um
olhar sobre as dimensões da cultura para pensar o campo da saúde
sem a essencializar e ainda pela ilustração dessas dimensões através de
situações da vida quotidiana, como são os casos da alimentação e da
higiene – e que os estudantes compreendem, porque encontram um
sentido prático e instrumental.
O segundo, pelos conceitos analíticos enunciados e desenvolvidos
de uma forma sistematizada, que constituem um ponto de partida
para a compreensão da vivência dos processos de saúde e doença,
identificando em que consiste esse processo, suas etapas comuns a todos
os grupos e sociedades e a forma diversa como na prática tais processos
se organizam e se manifestam. Destacam-se aqui noções que podem
ser compreendidas pelos estudantes a partir de uma lógica biomédica,
aquela em que esses estudantes são socializados na escola e na vida
quotidiana. Reconhecer o mal-estar, fazer um diagnóstico e procurar
uma cura e/ou um tratamento permite entender os conceitos de prática
e de itinerário terapêutico, assim como as lógicas das opções desses
itinerários na linha dos “sistemas médicos” como “sistemas culturais”
(GEERTZ, 1978).
Nesse sentido, é possível os estudantes reconhecerem a im-
portância da antropologia nos cursos de saúde, pois, como afirma
Jean Langdon (2003, p. 103), “Antropologia, antes de mais nada, é um
método de conhecer o outro, e não um acúmulo de dados etnográficos
exóticos”. A questão está então em saber quem é o “outro”. É esse
exercício reflexivo que tem sido feito com os estudantes de enfermagem.
Quem é o “outro”? O doente de quem cuidam? Os colegas de profissão?
Os outros profissionais de saúde? As famílias? As comunidades?
Vou ressaltar, sinteticamente, no todo desses conceitos aqueles
que os estudantes de pós-graduação mais valorizam, que lhes fazem mais
sentido no contexto da sua prática de enfermagem, e por que escolhem
certos textos, entre os vários sugeridos na bibliografia da ementa, para
realizar os seus trabalhos de avaliação da unidade curricular. São eles
a “narrativa” e a “doença como experiência”. A partir desses conceitos
Itinerários académicos, lúdicos e terapêuticos 559

analíticos, desenvolvidos nos textos acima referidos, é estabelecida a


ponte para a compreensão e a discussão com outros autores no campo
da antropologia da saúde/antropologia médica, como são exemplos
Arthur Kleinman e Byron Good.
Mas, se até aqui me referi aos conceitos trabalhados com os
estudantes, vou agora mencionar um outro conceito de um outro
antropólogo num outro texto, que foi para mim objecto de discussão
com Jean Langdon e que me levou a reflectir sobre outros conceitos: o
de autoatenção, proposto por Menéndez em 2003 no artigo “Modelos de
atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones
prácticas”. Quando esse texto foi publicado, a Jean me desafiou a pensar
os dados que eu tinha, da etnografia que estava a desenvolver. Na época,
eu não consegui entender esse conceito, por dificuldade de o distinguir
do conceito de “autocuidado”, tão utilizado pela enfermagem e cujo
valor heurístico eu nesse período tanto questionava. Interpretei-o
nesse momento apenas como um seu sinónimo, como uma questão de
tradução linguística entre português de Portugal e português do Brasil.
A Jean tentava explicar-me que eram distintos. Refiro aqui esse
episódio para reforçar que nas nossas conversas surgiam com
frequência as questões linguísticas, num exercício permanente
de tradução simultânea entre três línguas que reconhecíamos –
o português de Portugal, o português do Brasil e o inglês. Mas
esse exercício constituiu um desafio para pensar e refletir sobre a
importância do rigor conceptual e epistemológico, particularmente
quando estamos em contextos de ensino no campo da saúde, no
diálogo entre a antropologia e a enfermagem, para não cairmos
facilmente na naturalização de categorias analíticas.
Embora não vá explorar a discussão sobre esse tópico, apenas
quero notar que só compreendi a distinção entre os dois conceitos acima
referidos mais recentemente, após a leitura do artigo da Jean Langdon
(2014), “Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições para
as políticas públicas”, bem como a relação que poderia ser estabelecida
com os “itinerários terapêuticos”.

Epílogo
No final deste relato de memórias, no qual tentei através da
descrição de vinhetas assinalar episódios que ocorreram nos itinerários
de diversa natureza, desde os académicos aos lúdicos e aos terapêuticos,
560 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

entre Portugal e Brasil, sobressai que o que permitiu conhecer a Jean


e com ela estabelecer uma relação profissional, académica e afetiva foi
um tema de interesse em comum – a saúde. A partir disso, foi possível
iniciar um diálogo que se desdobrou e se cruzou em diversas dimensões
da vida, tendo como pano de fundo a experiência da praxis para pensar
a antropologia, e que se refletiu também nos encontros lúdicos.
Esses encontros e diálogos com a Jean tiveram, como ante-
riormente referi, repercussões na prática da minha atividade docente,
particularmente sobre a seleção de conteúdos das ementas curriculares
para não antropólogos no campo da saúde. Aprendi a fazê-lo de uma
forma pragmática, partindo da praxis dos estudantes (enfermeiros) para
refletir e transmitir conceitos e teorias.
E, nesse sentido, termino com mais uma vinheta. A primeira
vez que a Jean entrou no meu quintal, de imediato olhou para uma das
árvores aí existentes na época e, referindo-se às suas flores, exclamou:
“Manel, cuidado! Só xamã poderoso pode utilizar estas plantas!”. Eu
fiquei espantada, não sabia a que se referia, e respondi: “Mas para mim
é apenas uma árvore que acho bonita e que gosto muito do cheiro de
suas flores”. Explicou-me que se tratava de uma planta que no Brasil
chamavam de “tromba de anjo”, cujas flores, tomadas sob a forma de
infusão, eram alucinogénias. Aí brinquei: “Ah, agora compreendo
por que gosto tanto de vir cheirar este odor perfumado”. Jantamos
tranquilamente no quintal, e a propósito desse episódio pude ouvir as
suas narrativas sobre a sua experiência de trabalho de campo entre os
Siona e o xamanismo.
A actual pandemia fez com que uma visita dela a Lisboa,
programada para 2020, não tenha ocorrido. Assim, a última vez que
nos encontrámos foi em Sambaqui, em 2018, por ocasião do “18o
Congresso da International Union of Anthropological and Ethnological
Sciences (IUAES)”, realizado em Florianópolis. Há muitos anos que não
ia a Florianópolis, e há alguns que não via a Jean. A Jean convidou-
me para almoçar num dos meus restaurantes preferidos, situado em
frente à minha antiga casa – o Pitangueiras. Diante do mar, no trapiche,
comemos uma saborosa refeição de frutos do mar. O diálogo fluiu
como se ontem nos tivéssemos encontrado. Como sempre o triângulo
dos temas da conversa foi: a antropologia, a pesquisa e o ensino. E mais
uma vez as conversas em clima lúdico, que têm como cimento desse
triângulo viver e conhecer como se vive.
Itinerários académicos, lúdicos e terapêuticos 561

Referências
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
LANGDON, E. J. Cultura e os processos de saúde e doença. In: JEOLÁS,
L.; OLIVEIRA, M. de (org.). Anais do seminário “Cultura, saúde e doença”.
Londrina: Ministério da Saúde, 2003. p. 91-107.
LANGDON, E. J. Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições
para as políticas públicas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4,
p. 1019-1029, 2014.
LANGDON, E. J.; WIIK, F. B. Antropologia, saúde e doença: uma introdução
ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Revista Latino-
Americana de Enfermagem, [S. l.], v. 18, n. 3, p. 459-466, 2010.
MENÉNDEZ, Eduardo. Modelos de atención de los padecimientos: de
exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio
de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 185-208, 2003.
Texto de homenagem à professora
Jean Langdon

Philippe Hanna

Ainda me recordo de minha primeira aula de “Introdução à


antropologia”, em 2002. A turma estava chocada com o professor que
nos deu um trote, dizendo que teríamos que ler textos em várias línguas,
incluindo o alemão! Na verdade, não era nada disso, e nossa turma teve
o privilégio de ser dividida entre duas excelentes professoras, Sônia
Maluf e Jean Langdon. Por ordem alfabética, fiquei na turma de Jean.
Esse semestre foi realmente “chapante”, grande parte da turma
debatia fervorosamente sobre os sistemas simbólicos que constroem
nossa visão de mundo, o relativismo cultural e o xamanismo. Ao final
do período, apesar de muito esforço de minha parte, minha nota era
relativamente baixa. Jean deu uma chance a todos os alunos que tinham
nota baixa, para que pudéssemos escrever um ensaio a fim de aumentá-
la. Em uma comparação com o conceito de cultura de Geertz (1989),
usei um texto de Aldous Huxley publicado numa edição de 1963 da
revista Playboy, chamado “Culture and the individual” (HUXLEY,
1963). Nesse artigo, o místico defende o uso de psicoativos como uma
forma de colocar abaixo nossos construtos culturais e permitir que
os indivíduos selecionem os aspectos culturais inconscientemente
herdados que lhe pareçam adequados, descartando preconceitos e
convencionalismos arcaicos. A professora Jean, cabeça aberta como
é, revisou minha inusitada peça acadêmica e me concedeu o aumento
de nota depois de algum debate sobre o conteúdo. Ainda me lembro de
como a possibilidade de discutir tal assunto tabu aumentou meu
interesse pela pesquisa antropológica.
Dali a um ano, ouvi falar nos corredores sobre a oferta de uma
bolsa de pesquisa com a professora Jean Langdon, para ser assistente em
uma pesquisa em saúde com a etnia Kaingang. Não pensei duas vezes
e me dirigi ao escritório de Jean, que me perguntou diretamente: “Você
sabe operar uma câmera?”, “Você lê inglês?” – duas coisas que eu sabia
relativamente bem, e por isso consegui o meu primeiro emprego, como
Texto de homenagem à professora Jean Langdon 563

bolsista no projeto de pesquisa O subsistema de atenção à saúde do índio


em Santa Catarina (Distrito Sanitário Especial Indígena Interior Sul): o
papel do agente indígena de saúde e a articulação entre as práticas de
medicina tradicional e a biomedicina.
Em um almoço com os Kaingang durante a pesquisa de campo,
na qual eu era encarregado de filmar as entrevistas e os grupos focais,
Jean me viu conversando com um colaborador Kaingang (Ferro) sobre
a possibilidade de iniciar uma rádio comunitária na Terra Indígena
Xapecó. Apesar de a temática em nada ser relacionada com o tema
da pesquisa ou mesmo da linha de pesquisa dela, Jean me apoiou e
orientou o meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), basicamente
uma pesquisa-ação sobre a implementação da Rádio Kahnru na
T. I. Xapecó.
Durante as reuniões de orientação do TCC, Jean me fez uma
pergunta inusitada, da qual meus amigos riem ainda hoje: “Philippe,
você está fumando maconha para escrever a sua tese?”, para a qual a
resposta era infelizmente positiva. Como crítica, Jean disse que minha
escrita estava muito “telegráfica” e que eu deveria parar de fumar para
estudar e escrever – sábia recomendação que levei para toda a vida!
Professores que possuem essa abertura, essa sinceridade e esse contato
direto com os alunos são raros, mas são os que conseguem realmente
influenciar toda a trajetória acadêmica de um estudante interessado.
Após a conclusão do bacharelado, eu tinha interesse em pesquisar
o crescimento do fenômeno do neoxamanismo no Brasil. Após duas
tentativas, consegui uma vaga no mestrado em antropologia pela
UFSC, novamente sob orientação de Jean devido à afinidade temática.
Entretanto, dessa vez, o enfoque de Jean em saúde indígena alteraria
minha percepção sobre a relevância de pesquisar neoxamanismo.
Após algumas discussões com Jean no primeiro semestre, decidi que,
ao invés de enfocar minha dissertação em uma temática relevante para
a classe média-alta dos grandes centros urbanos, em sua maior parte
preocupada com sua evolução pessoal e espiritual na era de Aquário,
preferi dedicar meus esforços a melhorar e tornar culturalmente
adequado o atendimento à saúde indígena. Meu enfoque era a comida,
ou a “antropologia da alimentação”, para a qual devorei diversos textos
indicados por Jean. A pesquisa de campo foi intensa, e após diversas
reuniões de orientação concluí uma dissertação de mestrado um tanto
quanto interdisciplinar – em diálogo com as ciências da saúde, através
da professora Eliana Diehl, e com a nutrição, pelo professor Maurício
Soares Leite.
564 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Mesmo muito grato à Jean por todo o aprendizado durante


o bacharelado e o mestrado, achei que não mais colaboraria com ela
ao longo de minha carreira profissional; mero engano! Após alguns
anos, ingressei em um programa de doutorado em geografia cultural,
na Universidade de Groningen, no norte da Holanda. Devido ao meu
tema de pesquisa (o impacto social causado por grandes projetos
em povos indígenas), busquei uma coorientadora que conhecesse a
realidade indígena brasileira melhor do que meu orientador australiano.
Novamente me vi trabalhando com Jean, agora com o enfoque em
performance em vez de saúde (HANNA; LANGDON; VANCLAY,
2016; HANNA et al., 2016).
Baseados na abordagem de Victor Turner (2018), procuramos
entender os protestos indígenas contra grandes projetos como um
drama social e consequentemente como performance. A abordagem
performática e de narrativa de Jean foi muito útil para os estudos em
avaliação de impacto social, tema que eu estava pesquisando. Uma
combinação quase improvável, mas que hoje se tornou crucial para as
novas pesquisas nessa temática (e.g. BOUTILIER, 2020).
Tive o privilégio de hospedar Jean algumas vezes em suas
visitas acadêmicas para reuniões de orientação e a defesa da tese.
Hoje considero Jean muito mais que uma professora ou orientadora.
Conforme a cosmologia de muitos povos indígenas, a convivência e o
compartilhamento de bebidas e de alimentos constroem o parentesco
e a afinidade. Após diversos almoços, drinques e tabaco, Jean, para
mim, é como família, ou pelo menos uma grande aliada de vida além
da academia.
Apesar de sua abordagem simbólica, e a princípio “neutra-
descritiva”, Jean ensina a seus alunos e parceiros de pesquisa a impor-
tância de compreendermos a realidade do outro antes de tentarmos
“fazer o bem” para ajudá-los – mas nunca esquecendo o objetivo de
melhorar as condições de vida dos mais vulneráveis na sociedade. As
pesquisas fomentadas por Jean nunca foram, portanto, meramente
descritivas, muito pelo contrário. Seguindo uma tradição boasiana,
seja através de uma crítica das ciências da saúde, seja através de uma
descrição de sistemas de atenção à saúde indígena, as várias frentes
de pesquisa de Jean contribuem enormemente para uma antropologia
da prática. Seus textos influenciam profissionais das mais diversas
áreas do saber a realizarem uma reflexão sobre como veem o mundo
e como operam nele – o que leva a um aprimoramento da qualidade
Texto de homenagem à professora Jean Langdon 565

de vida daqueles afetados pelas políticas públicas fomentadas por tais


profissionais.
De uma perspectiva prática e acadêmica, acredito que essa
combinação é crucial para balizar tanto antropologias focadas
exclusivamente nos aspectos simbólicos (ou os “folcloristas”) quanto
intervenções por parte de atores privados ou estatais que venham a
influenciar na vida de outros grupos culturalmente diferentes. Por uma
atenção diferenciada, em seus mais diversos níveis!

Referências
BOUTILIER, R. G. Narratives and networks model of the social licence.
Resources Policy, [S. l.], v. 69, p. 1-11, 2020.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
HANNA, P.; LANGDON, E. J.; VANCLAY, F. Indigenous rights,
performativity and protest. Land Use Policy, [S. l.], v. 50, p. 490-506, 2016.
HANNA, P.; VANCLAY, F.; LANGDON, E. J.; ARTS, J. Conceptualizing social
protest and the significance of protest actions to large projects. The Extractive
Industries and Society, [S. l.], v. 3, n. 1, p. 217-239, 2016.
HUXLEY, A. Culture and the individual. Playboy, [S. l.], v. 10, n. 11, p. 84-88,
nov. 1963.
TURNER, V. Dramas, fields, and metaphors: symbolic action in human
society. Ithaca: Cornell University Press, 2018.
“Observei a vida através dessa
lente...”: os caminhos da
antropóloga Jean Langdon

Ana Lucia de M. Pontes


Ricardo Ventura Santos
Vanessa Hacon
Vilma Reis

Meu bisavô fugiu de casa com 14 anos para viver com os Sioux,
e, por causa disso, cresci num lugar cheio de referências indígenas:
fotografias, pinturas, objetos. Observei a vida através dessa lente, e
isso mudou tudo em mim. Entendi que a vida não é o que parece,
ou seja, não necessariamente é como as pessoas dizem ser. Me
lembro da minha fascinação quando comecei a estudar os Astecas
e seus rituais, em 1955, quando tinha apenas 11 anos, e falei para
minha mãe: “Quero pesquisar, estudar, viver e aprender com os
indígenas. Quero viajar para o rio Amazonas”. Nos anos 70, já como
antropóloga e no meio de uma pesquisa de campo na Colômbia,
estava numa canoa descendo o Putumayo [afluente do Amazonas],
apenas eu e um indígena, quando no fim da tarde o sol começou
a mergulhar naquele rio, e recordei aquele meu fascínio infantil.
Pensei: “Consegui! Estou aqui, estou finalmente aqui”.

Preâmbulo
O episódio mencionado na epígrafe é parte da longa e matizada
trajetória da antropóloga norte-americana Esther Jean Matteson
Langdon, pesquisadora que vive no Brasil desde 1983 e é uma das
principais referências no campo da antropologia da saúde por seu
pioneirismo e seus inúmeros trabalhos, particularmente sobre os povos
indígenas, além da formação de pesquisadores na pós-graduação.
Destaca-se também pelo seu interesse no ensino e na cooperação com
profissionais de saúde. Ao longo do denso depoimento, fica nítido que
os caminhos percorridos por Jean – como é conhecida por amigos e
colegas – têm se pautado por uma enorme e obstinada curiosidade pela
“Observei a vida através dessa lente...” 567

antropologia da saúde indígena, no que ela tem de mais abrangente


e específico.
Quando chegou ao Brasil, a antropóloga se exigiu, como resposta
à mudança que vivia, uma atitude de interrogação permanente, uma
abertura e, em consequência, uma recusa de permanecer em uma zo-
na de conforto intelectual predelineada. Sua contínua curiosidade não
somente a colocou em interação com pesquisas e pesquisadores de outras
áreas do conhecimento, como também em uma posição de constante
alerta e contestação quanto a narrativas oficiais que têm contribuído
para percepções enviesadas do mundo indígena, em particular no
campo da saúde.
A autora se destaca pela forma como encarou o conhecimento
dos povos indígenas, buscando compreendê-lo nos termos deles e
rompendo, desde sempre, com lógicas binárias e etnocêntricas. Dotada
de uma sensibilidade e de uma tolerância particulares, Jean construiu,
como poucos, redes de pesquisa com reflexos na sua produção
acadêmica e com impacto no campo da antropologia da saúde, mas
também no tocante às políticas públicas. Pontuou e segue pontuando
a sua trajetória com o exercício da tradução ao mergulhar no universo
indígena e, a partir daí, interligar diferentes epistemologias. Do ponto
de vista político, direcionou os seus esforços para subsidiar a constru-
ção de uma política de saúde indígena, entendendo que esse era o seu
compromisso com os povos indígenas. Importante ressaltar que fez
parte do coletivo que criou o Grupo de Trabalho em Saúde Indígena
na Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em 2000, do qual
participa até hoje.
O texto que se segue, narrado em primeira pessoa, se baseia
em entrevista concedida por Jean em 5 de junho de 2018. A entrevista
aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, no âmbito de um projeto de pes-
quisa conduzido na Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação
Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), coordenado por Ricardo Ventura
Santos. Essa entrevista fez parte de um componente do referido
projeto, coordenado por Ana Lucia de M. Pontes e Ricardo Ventura
Santos, que investiga a trajetória de atores envolvidos na formulação
e na implementação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena
(SasiSUS). A entrevista, que teve duração de 2 horas e 40 minutos,
foi gravada em áudio e transcrita na íntegra.1 A partir desse material,

1
Trata-se de projeto financiado pelo Wellcome Trust/UK (no 203486/Z/16/Z), aprovado
pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CAAE 61230416.6.0000.5240). Além
568 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Vilma Reis, Vanessa Hacon, Ana Lucia M. Pontes e Ricardo Ventura


Santos realizaram uma extensa edição, elegendo trechos considerados
mais significativos para fins de publicação na forma do presente
capítulo, aglutinando as falas a partir dos temas abordados, suprimindo
as perguntas e adaptando o conteúdo oral para um formato textual.
Incluíram ainda informações adicionais e referências bibliográficas.
Em fevereiro de 2021, esse material editado foi apresentado a Jean, que,
por sua vez, procedeu a uma leitura e uma revisão, quando fez ajustes e
acréscimos de informações. Desse modo, o texto que se segue, dividido
em blocos com recortes cronológicos e/ou temáticos, tem por base
a entrevista de 2018, mas se trata de um conteúdo que foi ampla-
mente reconfigurado.
Passemos então a “ouvir” as palavras de Jean.

Início da carreira, nos anos 1970


A minha primeira experiência de pesquisa em saúde se deu na
Colômbia durante os anos 1970. Também realizei pesquisas nos EUA,
no México e na Costa Rica, mas foi na Colômbia que comecei a trabalhar
com o que era chamado, naquela época, de antropologia médica. Fui
atrás da práxis dos indígenas, gravitei em torno das doenças, observando
o que diziam sobre elas, o que pensavam sobre as suas causas e quais
tratamentos elegiam no itinerário terapêutico. Morei quase três anos na
região de Putumayo, no coração da selva colombiana.
Quando entrei no doutorado, na Universidade de Tulane [Loui-
siana, EUA], minha ideia inicial era trabalhar com populações indígenas
da América Central. Na época, a etnociência estava na moda na
antropologia, e em Tulane tive vários professores trabalhando nessa linha.
Estudei etnociência com o professor Stephen Tyler e, a partir das suas
disciplinas e de outras, fiquei fascinada com a ênfase na linguagem e com
a relação entre etnoclassificações, pensamento e percepção. Entretanto,
queria ir além das classificações ou dos nomes das coisas. Me incomodava
a perspectiva da etnociência, no sentido de que os pesquisadores busca-
vam identificar como as pessoas classificam e percebem o seu mundo
sem, contudo, olhar como agem frente a esse mundo.

de gravada, a entrevista foi registrada em vídeo por Paulo Lara, do Instituto de


Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT/Fiocruz).
Adiante, o material será depositado para acesso ao público na Casa de Oswaldo Cruz.
Agradecemos a Bruno Nogueira Guimarães, que participou da entrevista realizada
em junho de 2018, e a Hélio Silva e Carla Alves, da secretaria do projeto.
“Observei a vida através dessa lente...” 569

Meu problema não era com a metodologia da etnociência, que


ainda acho muito útil, mas com o enfoque limitado de como se classifica
o mundo, sem levar em conta a prática, ou seja, sem observar como
as pessoas agem. O que eu queria, de fato, era ver essa relação entre
classificação e ação. Na época, dizia-se que as doenças entre os indígenas
tinham causas sobrenaturais e mágicas, e eu queria investigar a relação
entre classificação de doenças e suas causas, e como estas determinavam
– se é que determinavam – a busca por um tratamento. Naquele período,
as poucas pessoas que trabalhavam com o que alguns chamavam de
“medicina primitiva” afirmavam que, se a causa era mágica, o tratamento
escolhido também seria mágico, numa lógica binária.
Porém, antes de definir o meu projeto de doutorado e o local
específico para realizar a pesquisa de campo, me convidaram para
cooperar com o Centro Internacional de Pesquisa Médica [ICMR,
na sigla em inglês], que tinha um projeto em Cáli, na Colômbia. Esse
convite mudou a minha região geográfica de atuação e redirecionou
o tema do meu projeto para a saúde. Além disso, no último ano de
disciplinas do doutorado, conheci a pesquisadora venezuelana Haydée
Seijas, que estava de volta da Colômbia e escrevendo o seu doutorado
sobre etnomedicina entre os indígenas Sibundoy, conhecidos pelo
estudo de um aluno de Richard Evans Schultes,2 chamado Melvin L.
Bristol, sobre o uso da ayahuasca. Após defender a sua tese, Haydée
elaborou um projeto com o médico Robert MacLennan, também do
ICMR, objetivando comparar diagnósticos indígenas e médicos. Porém,
ela acabou desistindo do projeto e me indicou para fazer a parte da
antropologia nessa pesquisa interdisciplinar.
Então, viajei para a Colômbia para realizar a pesquisa entre
os Sibundoy durante três meses,3 enquanto buscava um local para a
realização de minha pesquisa de campo. Minha expectativa era trabalhar
com um povo indígena nas terras altas dos Andes, mas quando me
aproximei dos xamãs Sibundoy meus interesses tomaram outro rumo.
Embora eu não estivesse trabalhando diretamente com esses curacas
ou taitas [como hoje denominam os xamãs], acabei conversando muito
com eles. Suas práticas me fascinaram, e aprendi que adquiriam seus

2
Botânico norte-americano considerado um dos precursores da etnobotânica.
3
LANGDON, E. J.; MACLENNAN, R. Western biomedical and sibundoy diagnosis:
an interdisciplinary comparison. Social Science & Medicine, [S. l.], v. 13, n. 3, p. 211-
220, 1979.
570 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

conhecimentos sobre o consumo da ayahuasca junto dos xamãs das


terras baixas. Foi nesse momento que pensei: “Vou para a selva”.
Foi o antropólogo Scott Robinson, que tinha trabalhado com
os Cofán nas terras baixas do Equador, que me sugeriu trabalhar
com os Siona que viviam nas terras baixas do atual Departamento de
Putumayo. Na época, a pesquisa com esse povo era escassa, e, por conta
da descoberta recente de petróleo nas suas terras, estavam vivendo
muitas transformações. Daí fui conhecer os indígenas que viviam na
comunidade de Buenavista, localizada no rio Putumayo, na divisa entre
a Colômbia e o Equador, e fiquei encantada com eles.
Na antropologia, aprendemos a partir das pessoas. Com os Siona,
comecei com aquela metodologia da etnociência, perguntando os
nomes das doenças para descobrir as classificações, mas os indígenas
não tinham paciência para esse tema. Isso porque, fui constatando, o
nome da doença não era a questão central no processo da doença, no
sentido de que não havia grandes elaborações em termos de classificação.
Simultaneamente, ficou muito claro que eu precisava aprender o idioma
nativo. Então, além de ir viver entre eles, utilizei duas metodologias
principais. A primeira foi gravar narrativas dos anciões, inicialmente
com a intenção de aprender o idioma, o que resultou no registro de
diversas narrativas xamânicas, muitas delas sobre doenças e cosmologia.
Algo que não foi a princípio intencional se tornou, do meu ponto de
vista, muito interessante.
A segunda linha que segui – com certo ineditismo metodológico –
foi visitar sistematicamente todas as casas da aldeia rio acima e abaixo,
perguntando sobre a saúde da família. Não era propriamente uma
entrevista, mas eu mantinha uma sistematização das doenças e acabei
acompanhando, em particular, casos de doenças crônicas nas famílias
Siona, que não eram curadas após o tratamento nativo. Num certo
sentido, passei a acompanhar a sua práxis ao registrar o cotidiano
das doenças e suas respectivas causas, registrando as narrativas sobre
cosmologia e xamanismo. Foi muito interessante, pois as duas dimensões
se complementavam bastante. Foi com base nesses dados e nessa
abordagem que enfatizava a observação da práxis que, em parceria com
alguns colegas, publicamos vários trabalhos a partir das investigações
conduzidas nesse período.4

4
Ver, entre outros:
LANGDON, E. J. A doença como experiência: o papel da narrativa na construção
sociocultural da doença. Etnográfica, [S. l.], v. V, n. 2, p. 241-260, 2001.
“Observei a vida através dessa lente...” 571

Xamanismo
Os xamãs não tratam todas, mas somente certas doenças.
O xamanismo é um campo muito mais amplo, que abrange questões
do significado da existência, se quisermos usar Clifford Geertz. O xamã
trata do bem-estar coletivo. Ou seja, a sua atuação não se reduz a um
tratamento individual. Esse é, inclusive, o argumento que desenvolvo na
minha tese de doutorado.5 Nos dias de hoje, poderíamos traduzir isso
através da noção de buen-vivir. Doença é um assunto dos ritos – bem
como a caça, a pesca, o clima –, e abordá-la inclui contatar outros níveis
do universo. Uma das minhas preocupações iniciais na pesquisa com os
Siona foi justamente investigar a lógica do itinerário terapêutico, sem
fazer uma distinção entre sobrenatural e natural. Por meio da atenção
à práxis, ao longo da minha carreira, tenho buscado compreender as
relações entre perceber a doença, entendê-la e escolher o que fazer.
O meu envolvimento com o tema do xamanismo, iniciado no
doutorado, resultou na publicação, em 1992, do livro editado por mim e
por Gerhard Baer, Portals of power.6 A gênese desse livro teve início dez
anos antes, quando fui convidada pela antropóloga Joanna Overing para
um seminário sobre xamanismo durante o “Congresso Internacional de
Americanistas”. Lá conheci Baer, e, em 1983, durante um congresso no
Canadá, no qual organizamos um simpósio sobre xamanismo, decidi-
mos organizar esse livro. Além de textos preparados por participantes
do Congresso de Americanistas, convidamos outros pesquisadores, entre
eles o argentino Pablo Wright e a francesa Dominique Buchillet. Conheci
Dominique e seu trabalho quando cheguei ao Brasil, em 1983, e Pablo,
quando participamos de uma mesa em um congresso na Colômbia, em
1985. Através dessas interações, fomos estruturando a publicação.

LANGDON, E. J. Representações do poder xamanístico nas narrativas dos sonhos


siona. Ilha: Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 1, n. 1-2, p. 35-56, 1999.
LANGDON, E. J. Shamanism, narratives and the structuring of illness. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, v. 3, n. 6, p. 187-215, 1997.
LANGDON, E. J. Narrativa y shamanismo entre los Siona. Mopa Mopa: Revista del
Instituto de Artes Populares, [S. l.], v. 9-10, p. 14-27, 1996.
LANGDON, E. J. A morte e corpo dos xamãs nas narrativas siona. Revista
Antropologia da USP, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 107-149, 1995.
5
LANGDON, E. J. The siona medical system: beliefs and behavior. 1974. Tese
(Doutorado em Antropologia) – Tulane University, Nova Orleans, 1974.
6
LANGDON, E. J.; BAER, G. (org.). Portals of power: shamanism in South America.
Albuquerque: University of New Mexico Press, 1992.
572 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

A chegada e os primeiros anos no Brasil


Depois de quatro anos na Colômbia, voltei aos Estados Uni-
dos e comecei a lecionar disciplinas sobre antropologia médica,
particularmente interessada em ensinar antropologia para profissionais
de saúde. Mas eu queria muito sair dos Estados Unidos. Em 1982,
ganhei estabilidade (tenure) na pequena universidade onde trabalhava
e direito a um ano sabático. Foi nessa época que recebi uma carta de
Dennis Werner, antropólogo norte-americano que lecionava no Brasil,
perguntando se eu tinha interesse em ser professora-visitante no país.
Como eu queria voltar para a América Latina, aceitei e, em 1983, vim
para a Universidade Federal de Santa Catarina [UFSC]. Inicialmente
planejava permanecer por um período de dois anos, mas acabei ficando
e aqui estou até hoje. Já se vão quase quatro décadas.
No Brasil, eu era mais conhecida pelo meu trabalho sobre
xamanismo. Esclareci desde o início que gostaria de ensinar antropologia
médica porque era o que eu fazia na universidade norte-americana
onde trabalhava. Num primeiro momento, me responderam que, no
Brasil, naquela época, a antropologia tinha pouca interlocução com o
campo da saúde. Mas segui com a ideia e comecei lecionando sobre esse
tema. Discuti medicina indígena, e, embora não conhecesse muito bem
a produção brasileira sobre o tema, o contexto era muito interessante.
Também foi nesse período que aprendi a falar o português.
Nessa fase, eu não tinha muitos colegas para conversar sobre essas
questões, porém isso mudou depois da minha primeira participação
em uma reunião da Associação Brasileira de Antropologia [ABA], que
aconteceu em 1984, em Brasília. Ali encontrei um grupo de trabalho
voltado para o tema da antropologia da saúde – que, na época, eles
chamavam de antropologia médica –, com várias pessoas debatendo,
entre outros pontos, o ensino da antropologia nas escolas de medicina.
Conheci o Martín Ibáñez-Novión, argentino que vivia no Brasil desde
1971 e que estava muito atualizado com a literatura internacional.7
A partir daí passei a ter crescente contato com a bibliografia brasileira
sobre esse campo, além de conhecer pessoal e academicamente
pesquisadores como Carlos Coimbra Jr., Ari Ott, Marcos de Souza
Queiroz, Maria Andréa Loyola, Luiz Fernando Dias Duarte, entre outros.

7
FLEISCHER, S.; SAUTCHUK, C. E. Anatomias populares: a antropologia médica de
Martín Alberto Ibáñez-Novión. Brasília: Editora da UnB, 2012.
“Observei a vida através dessa lente...” 573

No início de 1985, fui convidada para trabalhar no grupo do


Silvio Coelho dos Santos, professor da UFSC, sobre a questão das
barragens em terras indígenas, o que me levou a fazer pesquisa entre
os Xokleng [SC]. Era uma situação bastante complicada. A barragem
havia sido iniciada, mas, por causa dos inúmeros problemas, levaria
ainda muitos anos para ser terminada. Minha pesquisa era voltada
para os impactos sociais da construção do empreendimento, mas meu
olhar logo se voltou para questões ligadas à saúde. Passei a observar
os serviços de saúde aos quais os Xokleng tinham acesso. Na época,
contavam com um técnico de enfermagem indígena, que mantinha o
postinho de saúde, recém-construído mas absolutamente vazio. Havia
também uma outra indígena da área de enfermagem atuando em
uma outra aldeia. Em princípio, havia também as equipes volantes da
Funai [Fundação Nacional do Índio], que prestavam atendimento nas
aldeias, mas basicamente o que eu via e ouvia eram notícias pedindo
que não mandassem os indígenas para a Casa do Índio, localizada em
Curitiba. Evidentemente, a demanda era enorme. Os Guarani, que
viviam numa área de periferia da terra indígena, queixavam-se de
que não eram tratados pelos enfermeiros por serem considerados
“cidadãos de segunda categoria”.
Eu fiz o que havia sido planejado na investigação sobre barragens,
mas fiquei observando como os Xokleng lidavam com o tema da saúde,
comprando seus próprios remédios, procurando médicos particulares
e praticando bastante a automedicação [alopática]. Os Xokleng foram
o primeiro grupo indígena com registro de casos de aids no Brasil, e
a notícia foi um verdadeiro escândalo. Identifiquei também o uso de
medicamentos pelos políticos, que os estocavam e usavam como moeda
de troca para votos em eleições. Como resultado, escrevi um texto sobre
a falta de serviços de saúde, em parceria com Blanca Rojas, que foi
publicado no dossiê que Silvio Coelho dos Santos organizou sobre a
situação na Terra Indígena Ibirama, dos Xokleng.8
Naquela época, como a questão da saúde indígena não era um
assunto com muita visibilidade política, os serviços de saúde eram
associados basicamente ao campo da biomedicina. A preocupação
dos indígenas estava voltada para a questão da barragem, dos direitos,

8
LANGDON, E. J.; ROJAS, B. G. Saúde: um fator ignorado numa situação de mudança
rápida – a situação da Área Indígena Ibirama (SC). In: SANTOS, S. C. dos (org.).
A barragem de Ibirama e as populações atingidas na área indígena: documento-
denúncia. Boletim de Ciências Sociais, Florianópolis, v. 51, p. 65-89, 1991.
574 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

da destruição da floresta e outros problemas que estavam sofrendo.


Percebi algo semelhante quando fui participar de uma consultoria com
o médico Roberto Geraldo Baruzzi,9 anos depois, na organização não
governamental [ONG] Saúde Sem Limites, em um projeto então em
andamento na região do Alto Rio Negro, no estado do Amazonas. Como
não havia envolvimento das comunidades indígenas, elas percebiam
os serviços de saúde como responsabilidade dos brancos e não viam
conflito entre esses serviços e suas práticas.
Nesse período também se ampliavam as discussões sobre a
chamada “Reforma Sanitária”, que levaria à criação do Sistema Único
de Saúde (SUS) e, anos depois, teria impactos importantes no campo da
saúde dos povos indígenas.

Dois eventos particularmente significativos na


saúde indígena nos anos 1980
Quando fui a Brasília para participar da “1a Conferência Nacional
de Proteção à Saúde do Índio”, em 1986,10 pouco ou nada sabia acerca do
movimento da Reforma Sanitária, mas para mim era claro que o clima
político se associava ao fato de o Brasil estar saindo de uma ditadura.
Fiquei num quarto de hotel com Regina Müller e Maria Rosário
Gonçalves de Carvalho, além de duas outras antropólogas. O que me
lembro muito bem da conferência é que tinha um grupo grande de
indígenas participando. Havia também pessoas ligadas à Funai, a ONGs
que trabalhavam com saúde indígena, e alguns poucos antropólogos.
O formato foi de conferências e grupos de trabalho para formulação e
apresentação de propostas. Fui convidada a apresentar um trabalho no
qual abordei questões ligadas a itinerários terapêuticos.11 Na minha fala,

9
Médico responsável pela criação do Projeto Xingu, da Escola Paulista de Medicina,
Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp). Ver BARUZZI, R. G.;
JUNQUEIRA, C. (org.). Parque Indígena do Xingu: saúde, cultura e história. São
Paulo: Terra Virgem, 2005.
10
Essa conferência de saúde indígena foi um evento temático da “8a Conferência
Nacional de Saúde” e contou com a participação do médico sanitarista e político
Sergio Arouca na sua mesa de abertura. Arouca teve um papel importante na
relatoria, na tramitação e na aprovação da legislação federal (Lei no 9.836/1999,
conhecida como Lei Arouca) relativa à criação do Subsistema de Atenção à Saúde
Indígena, promulgada em 1999.
11
As contribuições de Jean Langdon para essa conferência foram publicadas em
LANGDON, E. J. Saúde indígena: a lógica do processo de tratamento. Saúde em
“Observei a vida através dessa lente...” 575

tentei romper com alguns estereótipos sobre como os indígenas pensam


a doença e o que fazem quando estão doentes. Lembro-me de outros
participantes, como o João Paulo Botelho Vieira Filho, além de médicos
apresentando trabalhos realizados junto aos indígenas. Tinha ainda
jovens indígenas, como o eloquente Ailton Krenak. Também estava
lá Raoni, falando inicialmente no seu idioma, e ao fim em português,
sobre a situação do seu povo e a necessidade de serviços.
Outro ponto que recordo é como as noções de saúde e direito
à saúde eram colocadas de forma articulada à garantia do território.
Inclusive isso se refletiu nas declarações finais produzidas durante a
conferência, como aquelas apresentadas pelo Conselho Indigenista
Missionário [Cimi] e pela União das Nações Indígenas [UNI]. Nesse
sentido, a 1a Conferência não foi somente sobre atenção à saúde,
no sentido mais estrito do termo. Lamentavelmente, acho que, no
processo de implementação do subsistema de saúde indígena, acabou
prevalecendo uma perspectiva baseada na biomedicina. Assim, a
questão da intersetorialidade na atenção à saúde indígena, que pautou
aqueles debates nos anos 1980, nunca chegou a ser uma realidade.
Em 1989, participei do “Encontro de Medicinas Tradicionais
e Política de Saúde na Amazônia”, que aconteceu no Museu [Emílio]
Goeldi, em Belém, no Pará. Fiz uma apresentação sobre a percepção e
a utilização da medicina ocidental entre os índios Sibundoy e Siona no
sul da Colômbia.12 O evento teve como eixo a relação entre medicina
tradicional e biomedicina. Ali conheci muitas pessoas, entre elas a
antropóloga Maria Andrea Loyola, que escreveu sobre as benzedeiras
populares, e Cláudio Paciornik, filho do conhecido médico Moysés
Paciornik, que estudou partos indígenas13 e tornou-se um defensor do
“parto de cócoras”. Dominique Gallois, que também estava lá, fez uma
discussão sobre antropologia da saúde, mas o que estava em pauta era a
questão da política de saúde indígena e a falta de informações necessá-

Debate: Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, n. esp. “A saúde do


índio”, p. 12-15, jan. 1988. Disponível em: https://www.academia.edu/20233740/
Sa%C3%BAde_ind%C3%ADgena_a_l%C3%B3gica_do_processo_de_tratamento.
Acesso em: 3 mar. 2021.
12
LANGDON, E. J. Percepção e utilização da medicina ocidental entre os índios
Sibundoy e Siona no sul da Colômbia. In: BUCHILLET, D. (org.). Medicinas
tradicionais e medicina ocidental na Amazônia. Belém: MPEG/CNPq/SCT/PR/
CEJUP/UEP, 1991. p. 207-227.
13
PACIORNIK, M. Aprenda a viver com os índios: parto de cócoras, desempenho
sexual, ginástica índia, comer e descomer. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987.
576 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

rias para a sua construção. Foi um momento importante para refletir


sobre a minha inserção e perspectivas futuras. Eu estava trabalhando
academicamente com xamanismo, mas a partir desses debates formulei
minha argumentação sobre os indígenas de Santa Catarina, comumente
taxados de “aculturados”. Argumentei que os indígenas que se vestiam
como “brancos” e viviam na periferia também eram indígenas e
mereciam uma atenção diferenciada à saúde. Ali entendemos que era
preciso direcionar nossas pesquisas para subsidiar a implantação de
serviços de saúde para os povos indígenas.
Nesse encontro, no qual também estava Luiza Garnelo, acordamos
que formaríamos uma rede para que cada um investigasse as condições
de saúde na sua região e depois trocássemos informações. Era um
grupo bastante diversificado. Meu interesse era muito mais na pesquisa
antropológica, enquanto outras pessoas estavam pensando nas questões
médicas e nos dados epidemiológicos.
Esse encontro teve a presença ainda de Xochitl Herrera e Miguel
Lobo-Guerrero, pesquisadores colombianos da Fundação Etnollano
que tinham um projeto muito interessante e participavam dos cursos de
antropologia médica da Escola Paulista de Medicina. O livro resultante
desse encontro14 retrata muito bem a variedade de interesses dos locais
e das pessoas presentes, bem como essa estruturação em curso de uma
rede de pesquisa e cooperação amazônica.

Sobre algumas das minhas interlocuções com a


saúde indígena nos anos 1990
Em 1991, em decorrência de um decreto assinado pelo então
presidente Collor, a Coordenação de Saúde do Índio [COSAI], da
Fundação Nacional de Saúde [FNS], ficou responsável pela saúde
indígena. Era um grupo pequeno coordenado pela médica Maria Gorete
Gonçalves Selau e pelo sociólogo István Varga. Como definiu-se, na
época, que os serviços de saúde indígena seriam fornecidos através da
colaboração entre governo, universidades e ONGs, fui convidada para
uma reunião em Brasília para discutir os serviços de saúde nas terras
indígenas kaingang, junto do médico e da enfermeira da coordenação
regional da Funai, em Chapecó. Iniciamos com uma reunião com os

14
BUCHILLET, D. (org.). Medicinas tradicionais e medicina ocidental na Amazônia.
Belém: MPEG/CNPq/SCT/PR/CEJUP/UEP, 1991.
“Observei a vida através dessa lente...” 577

membros da COSAI, e depois nós três nos encontramos para fazer


o planejamento. Porém, o médico e a enfermeira não demonstraram
qualquer interesse em trabalhar comigo. Ficaram conversando entre si,
calculando orçamentos. Minha presença foi ignorada, e fiquei sentada,
observando. Apesar da minha disposição em contribuir, ficou óbvio que
não havia abertura para colaboração.
Quando finalmente implementaram os Distritos Sanitários
Especiais Indígenas [DSEIs], o Projeto Rondon foi contratado, e fui
chamada para uma reunião com o grupo responsável pela contratação
de serviços no Distrito Interior Sul. Contudo, novamente, as pessoas
encarregadas da saúde indígena em Santa Catarina tiveram pouco
interesse numa colaboração ou não compreenderam as possibilidades
de contribuição da antropologia. A partir dessas experiências,
entendi que seria necessário criar alianças com os profissionais de
saúde interessados que tinham uma compreensão da necessidade
de uma abordagem interdisciplinar para prestar serviços de saúde
adequados para os povos indígenas. Mesmo assim, no sul, tem sido
difícil. Já desenvolvemos projetos de pesquisa para o DSEI Interior
Sul, já tentamos estabelecer uma comunicação, com pouca resposta
ou interesse por parte dos profissionais de saúde. Isso tem sido
muito frustrante, mas aprendi. Infelizmente, os administradores do
subsistema de saúde indígena, em Brasília, não orientam os seus
profissionais sobre o sentido da “atenção diferenciada” ou os preparam
para trabalhar com povos indígenas.
Em 1993, fui nomeada para integrar a Comissão Intersetorial de
Saúde Indígena [CISI]. Naquela época, os convites para participar das
reuniões e as passagens aéreas para viajar chegavam na última hora,
normalmente na véspera. A frequência de encontros não era muito
regular, e eu mesma não consegui ir a vários por causa da brevidade
dos convites.
Nesse mesmo ano [1993], saí para fazer um pós-doutorado nos
EUA, e Ana Maria Costa assumiu no meu lugar. Quatro anos depois,
retornei à CISI e retomei a minha participação. Esse retorno foi frustrante
diante da impressão de que a CISI não tinha impacto. Não havia sequer
participação indígena no Conselho Nacional de Saúde [CNS]. Até que
a médica Zilda Arns [da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a
CNBB], que tinha muitas articulações políticas, assumiu a coordenação
da CISI, em 1999. Um dos desdobramentos dessa mudança foi que um
indígena ingressou no CNS, com repercussões importantes.
578 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Minha grande questão na época foi a falta de comunicação entre


a CISI e as comunidades indígenas em Santa Catarina no que tange
aos debates, às atividades e às propostas da comissão. Tampouco havia
comunicação entre a CISI e os conselhos distritais. Quando finalmente
um indígena assumiu a CISI, aí sim vimos mais desdobramentos a
partir das discussões que travávamos em Brasília.
Em 1997, fui convidada para participar da “1a Oficina de Es-
tratégias de Prevenção das DST15/Aids entre Povos Indígenas do Sul,
Sudeste e Mato Grosso do Sul”, organizada pelo Ministério da Saúde.
Participaram também muitos indígenas e pessoas da Funasa [Fundação
Nacional de Saúde] e da Funai, médicos e alguns poucos antropólogos
e psicólogos. Foi uma reunião enorme, durante a qual se discutiu a
atuação do Ministério na estruturação de projetos de educação sobre
a aids. O médico e antropólogo Marcos Pellegrini ofereceu uma palestra
sobre a biologia da aids e as formas de contágio. Eu falei sobre o perigo
de uma epidemia e tracei um panorama histórico do impacto das
epidemias sobre os povos indígenas. Já Kimiye Tommasino apresentou
uma importante palestra sobre a perda de território dos Kaingang.16
A plateia ficou em silêncio, ouvindo, mas pouco engajada com
o assunto.
A situação mudou quando um indígena começou a narrar
o episódio de uma prima, adulta e bonita, que, após retornar à terra
indígena com sua mãe, então ficou doente, com sintomas desconhe-
cidos. Na ocasião, foi levada para o hospital, e, quando foram visitá-la,
já morrendo, observaram que estava com a barba crescendo! Logo, ela
faleceu de aids. Após esse depoimento, narrado em estilo performático,
a plateia começou a reagir, finalmente preocupada e expressando a
necessidade de saber mais sobre a nova doença.
Foi nessa época que realizamos um trabalho em Santa Catarina
com o pessoal da Funasa e uma ONG chamada Arco-Íris, financiada

15
A sigla DST se refere a doenças sexualmente transmissíveis. O nome do evento
citado é “Oficina Macrorregional de Estratégia, Prevenção e Controle das DST/AIDS
para as Populações Indígenas das Regiões Sul e Sudeste, e do Mato Grosso do Sul”.
16
TOMMASINO, K. A experiência histórica dos índios do sul do Brasil: expropriação
e violência na situação de contato. In: OFICINA MACRORREGIONAL DE
ESTRATÉGIA, PREVENÇÃO E CONTROLE DAS DST/AIDS PARA AS PO-
PULAÇÕES INDÍGENAS DAS REGIÕES SUL E SUDESTE, E DO MATO
GROSSO DO SUL, 1., 1997, Londrina. Anais [...]. Londrina: Ministério da Saúde;
Coordenação Nacional de DST/AIDS/Programa Municipal para DST/AIDS/ALIA,
1997. p. 41-52.
“Observei a vida através dessa lente...” 579

pelo Programa Nacional de DST/Aids.17 Nesse contexto, realizamos


uma série de oficinas com os indígenas sobre o tema da aids, com o
objetivo de criar “multiplicadores” de informação. Na minha opinião,
muito mais do que “educar” sobre a aids, o potencial daquele projeto
foi o de politizar os grupos indígenas acerca da questão dos direitos à
saúde. Era um programa participativo que, como comentado na época,
por ter recebido recursos financeiros internacionais, tinha mais verba
que o próprio Ministério da Saúde.
Na minha leitura, após esse período, a agenda de saúde global
começou a ter maior impacto no Brasil. Acredito que isso aconteceu por
conta dos empréstimos internacionais que demandavam a abordagem
de determinados temas que, por sua vez, levaram muitos antropólogos
para a antropologia da saúde. Nesse sentido, os anos 1990 são para mim
a década de consolidação da antropologia da saúde no Brasil.
Por sua vez, os indígenas começaram a dar mais atenção para a
questão da saúde quando foram estabelecidos os DSEIs, em 1999.18 Na
época, várias organizações indígenas, em diferentes regiões do país, se
envolveram no gerenciamento da prestação de serviços nos territórios.
A administração desses serviços nunca foi uma plataforma política para
essas organizações, mas, na minha opinião, a saúde indígena se tornou
importante para elas porque havia muito recurso financeiro envolvido.
Infelizmente, esses convênios estabelecidos entre a Funasa e ONGs
indígenas tiveram algumas consequências bastante adversas.19
Na região Sul do Brasil, não se viu o mesmo entusiasmo observado
na região Norte, mas um grupo de indígenas foi igualmente acionado

17
MONTEIRO, A. L.; VILLELA, W. V. A criação do Programa Nacional de DST e aids
como marco para a inclusão da ideia de direitos cidadãos na agenda governamental
brasileira. Psicologia Política, São Paulo, v. 9, n. 17, p. 25-45, 2009.
18
Através da já referida Lei no 9.836/1999, conhecida como Lei Arouca, que instituiu
no âmbito do SUS o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena.
BRASIL. Ministério da Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei no 9.836,
de 23 de setembro de 1999. Acrescenta dispositivos à Lei no 8.080, de 19 de setembro
de 1990, que “dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação
da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá
outras providências”, instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena.
Brasília: Presidência da República, 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l9836.htm. Acesso em: 7 ago. 2022.
19
Sobre essa questão, ver, entre outros estudos, GARNELO, L.; SAMPAIO, S.
Organizações indígenas e distritalização sanitária: os riscos de “fazer ver” e “fazer
crer” nas políticas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4,
p. 1217-1223, 2005.
580 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

pela Funasa para montar uma ONG para assumir os serviços de saúde.
A ideia é que essa fosse uma organização-modelo para o Brasil. Isso
aconteceu depois que acusaram a FOIRN [Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro] de corrupção. Escrevi um artigo com Eliana
Diehl sobre essa situação no Sul, depois das denúncias das organizações
indígenas no Norte.20
Sobre essa experiência, o presidente da ONG então criada – de-
nominada Associação Indígena Kanhru [AIKA] – relata que os
indígenas não tinham autonomia e ficavam sob o controle e a pressão
da Funasa, que queria determinar como os recursos seriam gastos e
como as ações seriam feitas. Foi triste. Acho que a questão da saúde
indígena acabou muito concentrada e baseada em uma noção de
saúde da biomedicina, ignorando-se a intersetorialidade que fez parte
da sua gênese quando a CISI teve início.
No final dos anos 1990, acompanhei a implantação do Conselho
Distrital de Saúde Indígena [CONDISI] Interior Sul como representante
da UFSC. Foi frustrante ver os indígenas confundindo os seus distintos
papéis dentro do conselho por serem tanto empregados da Funai ou
da Funasa quanto representantes das comunidades. Além disso, o
Projeto Rondon controlava as reuniões, e não havia participação dos
indígenas na avaliação, aprovação e execução das ações. O assunto lhes
era apresentado, muitas vezes os indígenas não entendiam, e a seguir
tinham que votar.21
Ocorre que indígenas como os Kaingang ou Xokleng operam por
meio de outros tipos de alianças. Eles não têm essa noção da representa-
ção numa perspectiva que chamamos de democracia representativa,
na qual supostamente elegem pessoas para representá-los. Tive um
aluno indígena na licenciatura que queria entender melhor essa questão
dos conselhos e acabou concluindo ao final do seu trabalho que existe
um conflito geracional entre os jovens, que querem um processo
mais “democrático”, versus lideranças mais antigas, que possuem uma

20
DIEHL, E. E.; LANGDON, E. J. Transformações na atenção à saúde indígena: tensões
e negociações em um contexto indígena brasileiro. Universitas Humanística, [S. l.],
n. 80, p. 213-236, 2015.
21
LANGDON, E. J.; DIEHL, E. E. Participação e autonomia nos espaços interculturais
de saúde indígena: reflexões a partir do sul do Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo,
v. 16, n. 2, p. 19-36, 2007.
DIEHL, E. E.; LANGDON, E. J. Indigenous participation in primary care services
in Brazil: autonomy or bureaucratization?. Regions and Cohesion, [S. l.], v. 8, n. 1,
p. 56-78, 2018.
“Observei a vida através dessa lente...” 581

maneira mais “tradicional” de operar, baseada na nomeação a partir de


um cacique e de seus parentes.
Nesse sentido, concordo com István Varga quando diz que
a Funasa centralizou demais a organização dos DSEIs. Isso não
ocorreu em todos os locais do país, mas no Sul sim. Os DSEIs foram
organizados e implantados, mas uma pergunta permaneceu “no ar”:
o que os indígenas esperavam do próprio serviço de atenção à saúde?
Nossas pesquisas com os agentes indígenas de saúde mostraram que os
indígenas queriam mais gasolina, motorista, medicamentos e ultrassons
[entre outras reivindicações], que são demandas difíceis de serem
supridas pelos profissionais de saúde.22
Gostaria de mencionar um ponto adicional, relativo aos anos
1990, que se relaciona à constituição de nosso grupo de pesquisa na
UFSC e também a um tema de longo interesse para mim, que é o
xamanismo. Quando cheguei ao Brasil, nos anos 1980, e iniciei as
atividades de um grupo de pesquisa, os primeiros alunos que se
aproximaram de mim queriam trabalhar com xamanismo, mas não
necessariamente na articulação com a saúde indígena. Entre eles
estavam Elsje Lagrou, Alberto Groisman [que depois estudou o Santo
Daime] e o médico Ari Sell, que trabalhava com neurologia na interface
com a antropologia. Foi a partir desse contexto que desenvolvemos as
discussões que deram origem ao livro Xamanismo no Brasil, publicado
em 1996.23 Depois, quando comecei a trabalhar de forma cada vez mais
intensa com pessoas da área da saúde em Santa Catarina, a equipe se
reconfigurou, tornando-se o Núcleo de Estudos sobre Saúde e Saberes
Indígenas [NESSI], oficialmente criado em 1994, com Eliana E. Diehl,
Lúcio Botelho e outros. Assim, o NESSI constituiu-se por pesquisadores
tanto da área da saúde quanto da antropologia.

22
LANGDON, E. J. et al. A participação dos agentes indígenas de saúde nos serviços de
atenção à saúde: a experiência em Santa Catarina, Brasil. Cadernos de Saúde Pública,
Rio de Janeiro, v. 22, n. 12, p. 2637-2646, 2006.
DIEHL, E. E.; LANGDON, E. J.; DIAS-SCOPEL, R. P. Contribuição dos agentes
indígenas de saúde na atenção diferenciada à saúde dos povos indígenas brasileiros.
Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 28, n. 5, p. 819-831, 2012.
LANGDON, E. J.; DIEHL, E. E.; DIAS-SCOPEL, R. P. O papel e a formação dos
agentes indígenas de saúde na atenção diferenciada à saúde aos povos indígenas
brasileiros. In: TEIXEIRA, C.; GARNELO, L. (org.). Saúde indígena em perspectiva:
explorando suas matrizes históricas e ideológicas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014.
p. 213-239.
23
LANGDON, E. J. (org.). Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. Florianópolis:
EdUFSC, 1996.
582 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Impressões sobre a saúde indígena nos anos 2000


Acompanhei o componente de saúde indígena do Projeto
VIGISUS II, que, na minha opinião, reflete muito a maneira como a
Funasa funcionava. O projeto começou pequeno, através do Centro
de Monitoramento em Pesquisa e Intervenção Sobre o Uso de Álcool/
Alcoolismo e Saúde Mental para a População Indígena, sediado em
Londrina e coordenado por Marlene de Oliveira (prefeitura) e Carlos
Coloma (VIGISUS, Brasília), visando ao desenvolvimento de estratégias
e projetos para lidar com alcoolismo e suicídio entre os indígenas.
Tivemos reuniões constantes, durante um período de quase dois
anos, com uma série de pesquisadores, como a Luciane Ouriques
Ferreira, que estava fazendo um trabalho entre os Guarani, e a Elaine
Moreira, que trabalhou com os Ye’kwana.24
Nesse grupo, discutíamos as especificidades dos grupos com
esses problemas de saúde e tentávamos pensar que tipo de pesquisa seria
necessário para desenvolver as estratégias necessárias ao seu combate e
à sua prevenção. Mas, depois de mais ou menos dois anos de projeto, a
Funasa definiu que precisava de um programa muito mais amplo, com
incidência em cada aldeia.
Logo depois que o financiamento desse projeto terminou,
Luciane Ferreira assumiu a coordenação do projeto de medicina
tradicional como parte do VIGISUS II e conseguiu articular ainda
um outro projeto similar a esse, mas com mais recursos financeiros e
colaboração dos indígenas, que, ao fim e ao cabo, fizeram suas próprias
pesquisas.25 Esse projeto ressaltava as contradições nas políticas sobre

24
Ver, entre outros trabalhos, os seguintes:
LANGDON, E. J. Considerações antropológicas sobre programas de prevenção do
abuso de álcool e outras substâncias. Londrina: Centro de Monitoramento em
Pesquisa e Intervenção em Saúde Indígena, 2003. p. 1-19.
LANGDON, E. J. O que beber, como beber e quando beber: o contexto sociocultural
no alcoolismo entre as populações. In: SEMINÁRIO SOBRE ALCOOLISMO
E VULNERABILIDADE ÀS DST/AIDS ENTRE OS POVOS INDÍGENAS DA
MACRORREGIÃO SUL, SUDESTE E MATO GROSSO DO SUL, 2001, Brasília.
Anais [...]. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. p. 83-97.
LANGDON, E. J.; GARNELLO, L. (org.). Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre
antropologia participativa. Rio de Janeiro: Contracapa, 2004.
25
FERREIRA, L. O.; OSÓRIO, P. S. (org.). Medicina tradicional indígena em contextos:
anais da 1a reunião de monitoramento. Projeto VIGISUS II/Funasa. Brasília:
Fundação Nacional de Saúde, 2007.
“Observei a vida através dessa lente...” 583

medicina tradicional e suas práticas. Uma das pesquisas desenvolvidas


envolvia uma comunidade cuja demanda era fazer alguns remédios
(“garrafadas”) para vender. Contudo, essa iniciativa foi contestada
por uma profissional de farmácia que alegou a necessidade de provas
científicas acerca da eficácia desses remédios, em consonância com a
Política Nacional de Medicamentos. Eu achava aquele projeto muito
interessante, mas senti reprovação por parte do sistema oficial para com
essas medicinas complementares ou alternativas.
Sobre essa relação entre medicina tradicional e sistema biomé-
dico, minha linha de atuação tem sido a de questionar a medicalização
da medicina tradicional pela biomedicina. Nessa vertente crítica,
trabalho com as ideias de Eduardo Menéndez26 como base do meu
enfoque metodológico para pesquisa e interpretação. Minha perspectiva
é a de que os indígenas devem ter o direito de fazer como pensam, pois,
desse modo, manterão o que funciona para eles. Entendo que a questão
do itinerário terapêutico envolve várias escolhas, e não apenas uma
escolha entre biomedicina e medicina tradicional.
Já a iniciativa Brasil Plural27 surgiu em 2009, na época do
lançamento de uma nova política do governo para a ciência, que deu
origem a uma chamada específica para o Amazonas. Nós já tínhamos
consolidado um estreito contato com a Luiza Garnelo e sabíamos que
a Universidade Federal do Amazonas [UFAM] havia criado um novo
departamento de antropologia, que contava com alguns egressos da
UFSC. Então, Deise Montardo, Sônia Maluf, Oscar Calavia Sáez e
outros montaram o primeiro projeto denominado “Amazônia Plural”
e me pediram para coordená-lo. Adiante, o CNPq [Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] decidiu ampliar o projeto
para outros estados por meio de novos editais e nos incluiu como um
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia [INCT], através da Fundação
de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina [FAPESC].
E assim foi criado o INCT Brasil Plural.
Gosto do Brasil Plural em razão dos seus objetivos, da nossa
dedicação, do uso e da aplicação da antropologia, da metodologia que
desenvolvemos para políticas públicas e da questão da diversidade, não
só em termos de serviços de governo, mas também na relação com
as comunidades.

26
Ver ENTREVISTA: Eduardo Luis Menéndez Spina. Trabalho, Educação e Saúde, Rio
de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 335-345, 2012.
27
Disponível em: https://brasilplural.paginas.ufsc.br/. Acesso em: 3 mar. 2021.
584 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Algumas reflexões finais


Essas várias experiências, ao longo de tantos anos, me levaram
a refletir sobre as interfaces entre a antropologia e as políticas de
saúde indígena.
Antes de mais nada, desde que comecei a trabalhar com saúde
indígena, me pergunto qual é o papel do antropólogo e como estabelecer
um diálogo intercultural e fazer a diferença politicamente, para além dos
nossos interesses acadêmicos. Foi daí que surgiram o meu engajamento e
a minha contribuição para a estruturação de uma rede de pesquisadores
em saúde indígena no Brasil, que começou com médicos e antropólogos
e foi se acumulando e se consolidando ao longo dos anos. Nesse sentido,
sigo buscando instigar mais pessoas a pensar sobre o nosso papel
enquanto pesquisadores e atores políticos. Contudo, no que tange às
pesquisas em saúde indígena na antropologia, frequentemente bastante
críticas, é importante ter em mente que devemos apontar limitações e
fraquezas do sistema de saúde indígena, mas não a ponto de derrubá-lo,
pois, infelizmente, entendo que a sua tendência é acabar.
Já sobre a articulação entre a produção acadêmica e a política de
saúde indígena, penso que, por vezes, nos falta mais diálogo. Existem
muitas pesquisas sendo feitas na antropologia por pessoas que não
se identificam necessariamente como pesquisadores em saúde, mas
que estão trabalhando com plantas, território, ecologia, cosmologia e
cosmopolítica. Tudo isso, de fato, é saúde indígena. Há uma divisão
grande entre esses acadêmicos e aqueles que se identificam formalmente
com a saúde indígena e a entendem como um campo igualmente
relevante para pensar a ação. Sei que antropólogos, ocasionalmente,
assumem posturas presunçosas. Sei também que a antropologia tem
muitos escritos que, por serem muito densos, afastam o profissional de
saúde. Ainda temos um problema maior, que é o fato de uma concepção
ampliada de saúde indígena não corresponder diretamente ao campo da
saúde na nossa cultura.
A tensão entre profissionais de saúde e pesquisadores em geral
– que para mim já é uma característica do campo de interações – tem
muito a ver também com o receio dos profissionais de saúde de ter o seu
trabalho avaliado sabendo que o seu desempenho, por vezes, é falho. Já
fui ingênua ao achar que todos os profissionais de saúde envolvidos com
a saúde indígena queriam pensar efetivamente a problemática de como
servir uma população diferenciada. Não acho que a visão dos médicos
“Observei a vida através dessa lente...” 585

e dos antropólogos sobre esse atendimento diferenciado seja a mesma,


mas acredito em diálogo e em aprendizagem. E onde existem pessoas
com boa vontade é possível haver colaboração. Nesse sentido, entendo
que a saúde indígena pode e deve assumir as preocupações com o bem-
estar coletivo, conjugando, ademais, questões relacionadas à ecologia e
ao território.

Esther Jean Matteson Langdon


(Rio de Janeiro, junho de 2018,
e Florianópolis, fevereiro de 2021).
Mãe é Juanita

Alan Stone Langdon

Entre 2014 e 2017, tive a sorte de fazer algumas viagens para a


Colômbia com minha mãe, e nessas incursões aconteceu uma coisa
inédita, que alargou minha perspectiva de quem ela é. Até então, ela era
“apenas” minha mãe, e eu tinha uma ideia bem periférica de sua carreira
como antropóloga. O divisor de águas foi que, pela primeira vez, ela não
ameaçou quebrar minha câmera, nem mostrou o dedo médio, como
costuma fazer quando a filmo. O motivo da trégua: ela me recrutou para
produzir um documentário sobre uma oficina que ela conduziria no
Putumayo, região onde fez pesquisa de campo nos anos 1970. Um portal
se abriu, por meio do qual minha mãe me levou à Colômbia profunda
e até cooperou com a câmera. Ela também participou da montagem,
para que o curta-metragem tivesse coerência acadêmica e etnográfica,
até porque não sou antropólogo, mas documentarista e artista. Mas vejo
algumas semelhanças na forma como lidamos com nossas profissões:
preferimos ir ao encontro do mundo, esquivando-nos do academicismo
e da teoria para lidar diretamente com o “observado” de forma prática e
horizontal, sem hierarquizar essa relação.
Foi um período desafiador e bonito para mim, quando aprendi
muito sobre quem ela é fora do círculo familiar e vivenciei situações
que guardo no meu coração. Uma delas foi durante a participação
em um encontro de culturas andinas em Pasto, no alto dos Andes
colombianos. Ela lançou um livro, e muitos dos indígenas Siona com
quem tem se relacionado desde a década de 1970 vieram participar.
Foi bonito conhecer essas pessoas queridas por minha mãe e ver a
reciprocidade delas. Numa noite do encontro, participamos de um ritual
de ayahuasca oferecido pelo evento, guiado por xamãs Siona. O frio era
penetrante naquela noite andina, e a casa onde aconteceu o ritual estava
praticamente sem móveis, com apenas cadeiras de plástico para todos
nos sentarmos e viajarmos. Minha mãe e eu passamos a madrugada
adentro intercalando doses da medicina, idas ao jardim para vomitar
e longos abraços para nos aquecer, compartilhando um cobertor de lã
emprestado. Fazia anos que eu não ficava tão próximo fisicamente da
Mãe é Juanita 587

minha mãe, e serei eternamente grato por aquela noite, décadas após o
desmame. Essa experiência maternal-psicotrópica se repetiu em 2017,
quando voltamos para a inauguração de uma grande maloca siona na
beira do rio Putumayo, com 200 convidados dormindo em redes por três
noites seguidas. Lembro um homem que, na escuridão da madrugada e
sob o efeito do chá, choramingava pela mamacita dele enquanto xamãs
o rodeavam, tocando gaita de boca para acalmá-lo.
Agora, em 2021, finalizo um outro documentário que tenta dar
conta dessas experiências com minha mãe entre o povo Siona: se inti-
tula Juanita, nome pelo qual eles carinhosamente a chamam desde
os anos 1970, quando ela foi a primeira professora da comunidade
Buena Vista, à beira do rio Putumayo. Com esse documentário,
espero compartilhar um pouco do portal que atravessei, já que agora
novamente ele se fechou. Mesmo nas visitas de almoço dominical e às
vistas inocentes do netinho de dois anos, Juanita voltou a me mostrar
o dedo médio quando ligo a câmera, ameaçando quebrá-la se eu não
parar de filmar. Afinal, Juanita é mãe.

Assista a Juanita: https://www.youtube.com/@juanitadocumentario


Memória fotográfica
Memória fotográfica 589

Jean aos 20 anos.

Jean aos 20 anos.


Jean aosna20Costa
Pesquisa de campo anos. Rica, 1964.

Pesquisa de campo na Costa Rica, 1964.

Pesquisa de campo na Costa Rica, 1964.


590 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Pesquisa de campo na Costa Rica, 1964.

Pesquisa de campo na Costa Rica, 1964.


Memória fotográfica 591

Costa Rica, 1966.

Costa
Costa Rica,
Rica, 1966.
1966.
Pesquisa de campo na Colômbia, 1971.

Pesquisa
Pesquisa de
de campo
campo na
na Colômbia,
Colômbia, 1971.
1971.
592 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Casa de Jean, Colômbia, 1971.

Casa de Jean, Colômbia, 1971.


Casa de Jean, Colômbia, 1971.
Casa de Jean, Colômbia, 1971.
Ricardo e Jean na selva colombiana, 1971.

Ricardo e Jean na selva colombiana, 1971.


Ricardo e Jean na selva colombiana, 1971.
Jean, Isolina e Pachoe Piaguaje,
Ricardo Colômbia,
Jean na selva 1971. 1971.
colombiana,

Jean, Isolina e Pacho Piaguaje, Colômbia, 1971.


Jean, Isolina e Pacho Piaguaje, Colômbia, 1971.
Jean, Isolina e Pacho Piaguaje, Colômbia, 1971.
Memória fotográfica 593

Na casa de Pacheco Piaguaje, Puerto Asís, Colômbia, 2013.

Na casa de Pacheco Piaguaje, Puerto Asís, Colômbia, 2013.


Na casa de Pacheco Piaguaje, Puerto Asís, Colômbia, 2013.
Felinto Piaguaje e Jean, Buenavista, Colômbia, 2018.

Felinto Piaguaje e Jean, Buenavista, Colômbia, 2018.


Felinto Piaguaje e Jean, Buenavista, Colômbia, 2018.
594 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Convite para a festa de 20 anos na Ilha de Florianópolis, 2003.

Convite
Convite
Colóquio para
para
“Uma
Convite apara
a festafesta
dea 20de
antropologia
festa 20na
anos
de anos
da
20 Ilha
anos na
de Ilha deFlorianópolis,
Florianópolis,
naFlorianópolis,
práxis – homenagem
Ilha de 2003.
a Jean 2003. UFSC,
Langdon”,
2003.
Florianópolis, abril de 2015.

ColóquioColóquio
“Uma antropologia da práxis
“Uma antropologia da –práxis
homenagem a Jean aLangdon”,
– homenagem UFSC, UFSC,
Jean Langdon”,
Florianópolis, abril de
Evento Florianópolis,
“Diálogos 2015.
com Stephen
abril de 2015.e Christine Hugh-Jones: reflexões antropológi-
cas sobre conhecimentos indígenas”, UFSC, Florianópolis, março de 2016.
Colóquio “Uma antropologia da práxis – homenagem a Jean Langdon”, UF
Florianópolis, abril de 2015.

Evento “Diálogos com Stephen


Evento “Diálogos e Christine
com Stephen Hugh-Jones:
e Christine reflexõesreflexões
Hugh-Jones: antropológicas sobre sobre
antropológicas
conhecimentos indígenas”,
conhecimentos UFSC, Florianópolis,
indígenas”, março demarço
UFSC, Florianópolis, 2016.de 2016.
Memória fotográfica 595

Lançamento do livro Saúde indígena: políticas comparadas na América Lati-


na, de Esther Jean Langdon e Marina Cardoso (Coleção Brasil Plural), UFSC,
Florianópolis, setembro de 2016.

Lançamento do livro Saúde indígena: políticas comparadas na América Latina, d


Jean Langdon e Marina Cardoso (Coleção Brasil Plural), UFSC, Florianópolis, s
Lançamento
de 2016. do livro Saúde indígena: políticas comparadas na América Latina, d
Jean Langdon e Marina
Reunião geral das(os) Cardoso (Coleção
pesquisadoras(es) BrasilBrasil
do INCT Plural), UFSC,
Plural, UFSC, Florianópolis,
Floria- s
de 2016.
nópolis, abril de 2017.

Reunião geral das(os) pesquisadoras(es) do INCT Brasil Plural, UFSC, Floria


abril de 2017.
Reunião geral das(os) pesquisadoras(es) do INCT Brasil Plural, UFSC, Floria
596 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Simpósio “Pesquisa antropológica e políticas de saúde: perspectivas na Colôm-


bia e no Brasil”, do “XVII Congreso de Antropología en Colombia”, junho de
2019, Cáli, Colômbia.

Simpósio “Pesquisa antropológica e políticas de saúde: perspectivas na


Brasil”, do “XVII Congreso de Antropología en Colombia”, junho 2019, C
Simpósio “Pesquisa antropológica e políticas de saúde: perspectivas na Colôm
Brasil”, do “XVII
Comunidade Congreso
Siona, rio deEquador,
Cuyabeno, Antropología ende
setembro Colombia”,
2022. junho 2019, Cali, Co

Comunidade Siona,riorio
Comunidade Siona, Cuyabeno,
Cuyabeno, Equador,
Equador, setembro
setembro 2022.2022.
Memória fotográfica 597

Jean e Scott S. Robinson, comunidade Kofan de Sinangue, rio Aguarico, Equa-


dor, setembro de 2022.

Jean e Scott S. Robinson, comunidade Kofan de Sinangue, rio


setembro de 2022.
598 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon
Jean e Scott S. Robinson, comunidade Kofan de Sinangue,
setembro
Jean recebe ode 2022.
Prêmio ANPOCS de Excelência Acadêmica Gilberto Velho em
Antropologia, durante o “46o Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS)”, outubro de 2022.

Jean recebe o Prêmio ANPOCS de Excelência Acadêm


Antropologia, durante o “46o Encontro Anual da Associação Na
e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS)”, outubro de 2022.
Sobre as autoras
e os autores
600 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Alan Stone Langdon


Bacharel em belas artes – cinema, vídeo e animação pela Rhode Island School of
Design (Providence, Rhode Island, EUA, 2000), é artista visual e documentarista.
Mesclando os gêneros de documentário pessoal e experimental, suas obras
frequentemente são buscas que nascem de sentimentos para desenvolver um
diálogo entre o subjetivo e a experiência coletiva. Além de curtas-metragens
como Em busca da saleira perdida (2000), Betóva – o ano da cachorra (2010)
e O retrato de Doriana extracremosa com sal (2007), é codiretor de dois
documentários em longa-metragem: o premiado Sistema de animação (2009) e
Nada precisou ser refeito (2018), ambos com o músico Toucinho Batera.

Alicia Castells
Graduada em arquitetura e urbanismo pela Universidad Nacional de La Plata
(UNLP – Argentina), mestra em antropologia pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), possui doutorado interdisciplinar em ciências huma-
nas pela UFSC e pós-doutorado na Facultad de Filosofía y Letras da Universidad
de Buenos Aires (UBA). Professora titular da UFSC. Professora do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social e da Pós-Graduação em Arquitetura
e Urbanismo da UFSC. Coordenadora do NAUI – Dinâmicas Urbanas e
Patrimônio Cultural (www.naui.ufsc.br). Associada da Associação Brasileira
de Antropologia (ABA). Pesquisadora do Instituto Brasil Plural (INCT-IBP).
Editora dos Cadernos Naui (https://naui.ufsc.br/cadernos-naui/).

Alicia M. Barabas
Alicia M. Barabas é antropóloga formada pela Universidad de Buenos
Aires, com mestrado e doutorado em sociologia pela Facultad de Ciencias
Políticas y Sociales da Universidad Nacional Autónoma de México. Desde
1973, é pesquisadora titular do Instituto Nacional de Antropología e Historia
(INAH), e professora pesquisadora emérita desde 2014. É membro do
Sistema Nacional de Investigadores (SNI) do Consejo Nacional de Ciencia y
Tecnología (CONACYT/México) desde 1986 e Nível III desde 2007. Professora
em diferentes países da América Latina e da Europa. Entre os últimos livros
publicados, estão: Diálogos con el territorio: simbolizaciones sobre el espacio en
las culturas indígenas de México (INAH, 2003); Dones, Dueños y Santos: ensayo
sobre religiones en Oaxaca (Porrúa; INAH, 2006, 2017); Multiculturalismo e
interculturalidad en América Latina (INAH, 2016); e, com Miguel Bartolomé,
Viviendo la interculturalidad: relaciones políticas, territoriales y simbólicas en
Oaxaca (INAH, 2016).

Ana Lucia de M. Pontes


Médica sanitarista, com mestrado e doutorado em saúde pública pela Escola
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/
Fiocruz), onde atualmente é pesquisadora do grupo “Saúde, epidemiologia e
Sobre as autoras e os autores 601

antropologia dos povos indígenas”. Atua em pesquisas, ensino e cooperação


técnica na área de saúde indígena, com ênfase em políticas de saúde indígena,
qualificação profissional, agentes indígenas de saúde e atenção diferenciada.
Coordena o Grupo Temático de Saúde Indígena, da Associação Brasileira de
Saúde Coletiva (GTSI/Abrasco).

Anne-Marie Losonczy
Antropóloga, diretora de estudos religiosos na École Pratique des Hautes
Études (EPHE/Sorbonne – França) e professora da Université Libre de Bruxelles
(ULB – Bélgica). Membra do laboratório Mondes Américains, vinculado ao
Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e à École des Hautes
Études en Sciences Sociales (EHESS), e do Laboratoire d’Anthropologie des
Mondes Contemporains (LAMC), da ULB. Philosophiae Doctor (Ph.D.) em
antropologia pela ULB (1992). Lecionou cursos nas seguintes instituições:
Universitat de Barcelona (Espanha), Université Paris-Nanterre (França) e Eötvös
Lorand University (Hungria). Dirigiu o Instituto de Etnologia da Université
de Neuchâtel (Suíça). Foi professora visitante na Universidad Nacional de Co-
lombia, na University of Pécs (Hungria, pelo Programa Marie Curie, vinculado
à União Europeia) e recentemente na Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC – Brasil) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ – Brasil).
Seu trabalho etnográfico se concentra na Colômbia, em especial nos seguintes
temas: grupos afrodescendentes e comunidades locais multiétnicas do Caribe
colombiano (continental e insular); xamanismo e sociedade dos índios
Emberá do Chocó; e rituais populares emergentes das zonas urbanas de Cuba.
Desde 1990, pesquisa sobre a reconstrução da linguagem ritual da identidade
nacional húngara no pós-comunismo, realizando trabalho de campo e
consultas a arquivos em Budapeste (Hungria), Transilvânia (Romênia) e, mais
recentemente, Transcarpátia (Ucrânia).

Ari Ghiggi Jr.


Graduado em ciências sociais, mestre e doutor em antropologia social – todas
as formações pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Realizou
estágio pós-doutoral na mesma instituição nos períodos de 2017-2018 e 2019-
2021. É pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil
Plural (INCT-IBP) desde 2009. Possui experiência de ensino e pesquisa nas
áreas de antropologia da saúde e saúde indígena, tendo realizado trabalhos
etnográficos na temática da atenção à saúde entre os Kaingang de Santa
Catarina desde 2003.

Camilo Mongua
Doutor em história dos Andes pela Faculdade Latino-Americana de Ciências
Sociais (Flacso – Equador) e professor do bacharelado em ciências sociais da
Universidade da Amazônia (UNAMA – Colômbia). Tem interesses de pesquisa
602 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

em história e etno-história do “piedemonte” amazônico da Colômbia e do


Equador, assim como na formação do Estado em contextos fronteiriços nos
séculos XIX e XX.

Carlos Alberto Uribe


Licenciatura em antropologia pela Universidad de los Andes (1974). Mestrado
em antropologia pela University of Pittsburgh (1977). Possui certificado de
pós-graduação em estudos latino-americanos pela University of Pittsburgh
(1977). Realizou estudos para Master of Philosophy (M.Phil) em antropo-
logia pela London School of Economics (1984-1985). Doutorado em
antropologia pela University of Pittsburgh (1989).

Carmen Lucia da Silva


Graduada em serviço social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Especialista em antropologia social pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Mestra em antropologia social pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). Doutora em antropologia social pela Universidade de
Brasília (UnB). Recebeu prêmio de melhor dissertação de mestrado, no ano
de 1988, do concurso FORD/ANPOCS. Professora associada do Departamento
de Antropologia do Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade
Federal de Mato Grosso (ICHS/UFMT), no qual orienta monografias e bolsistas
de Iniciação Científica do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(PIBIC/CNPq). Pesquisadora colaboradora do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia Brasil Plural (INCT-IBP). Tutora do Grupo de Educação Tutorial
Indígena da UFMT e do Ministério da Educação e Cultura (MEC).

Daniel Scopel
Antropólogo, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
Brasil Plural (INCT-IBP). Tem experiência de pesquisa etnográfica entre os
povos Mura e Munduruku no Amazonas. Coordenou pesquisas na área da
antropologia da saúde relacionadas às práticas de autoatenção, ao pluralismo
médico e ao saneamento ambiental.

Diana Brown
Possui graduação em literatura inglesa pela Smith College (1960) e doutorado
em antropologia pela Columbia University (1974). É professora associada
da Bard College e funcionária da Columbia University. Tem experiência na
área de antropologia, com ênfase em antropologia da saúde e do corpo. Atua
principalmente nos seguintes temas: religiões afro-brasileiras, umbanda,
antropologia da medicina, antropologia urbana, antropologia de gênero e
sexualidade e antropologia do corpo.
Sobre as autoras e os autores 603

Eliana Elisabeth Diehl


Graduada em farmácia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), mestra em ciências farmacêuticas pela UFRGS (1992) e doutora
em saúde pública (2001) pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), com estágio sênior
(bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
pela Universitat Rovira i Virgili (URV), na Espanha (2013). Professora titular
aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atualmente é
voluntária na mesma universidade. Docente permanente do Programa de Pós-
Graduação em Assistência Farmacêutica-Associação de Instituições de Ensino
Superior na UFSC. É membra do comitê gestor do Instituto Nacional de Ciência
e Tecnologia Brasil Plural (INCT-IBP) e pesquisadora da rede “Saúde: práticas
locais, experiências e políticas públicas” do mesmo instituto (brasilplural.
paginas.ufsc.br). Desenvolve pesquisas sob uma perspectiva interdisciplinar,
com a saúde coletiva/saúde pública, a antropologia da saúde e as ciências
farmacêuticas, nos seguintes temas: saúde indígena, política de atenção à saúde
indígena, qualidade dos serviços farmacêuticos e assistência farmacêutica.

Elsje Lagrou
Professora titular de antropologia no Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/IFCS/UFRJ). Publicou
os livros A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade
amazônica (Topbooks, 2007) e Arte indígena no Brasil (ComArte, 2009, 2015).
Organizou com Carlo Severi a obra Quimeras em diálogo: grafismo e figuração
na arte indígena (7Letras, 2014) e editou o catálogo No caminho da miçanga:
um mundo que se faz de contas (Museu do Índio, 2017), da exposição da qual
foi curadora.

Evelyn Schuler Zea


Professora no Departamento de Antropologia da Universidade Federal de
Santa Catarina, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
(PPGAS/UFSC) e no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução
(PGET/UFSC). Atualmente, faz parte da equipe de coordenação da licenciatura
intercultural indígena do sul da Mata Atlântica (UFSC), do advisory board
do International Research Center “Interweaving Performance Cultures”,
da Universidade Livre de Berlim, do Grupo de Estudos em Oralidade e
Performance (GESTO) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil
Plural (INCT-IBP).

Fernando José Ciello


Doutor em antropologia social pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), com período-sanduíche na Universidade da Califórnia, San Diego.
604 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Desenvolve pesquisas em antropologia da saúde, com foco em saúde mental,


práticas terapêuticas, diagnóstico e etnografia em instituições. Professor
adjunto na Universidade Federal de Roraima (UFRR) – no curso de licenciatura
intercultural indígena do Instituto Insikiran de Ensino Superior e no Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGANTS/UFRR).

Flávio Braune Wiik


Doutor em antropologia pela University of Chicago. Professor associado de
antropologia junto ao Departamento e ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná.
Dedica-se a estudos e pesquisas voltados aos indígenas Xokleng e Kaingang há
mais de duas décadas.

Ilka Boaventura Leite


Historiadora, poeta e antropóloga. Concluiu sua formação em história
e antropologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e na
Universidade de São Paulo (USP). Fez carreira docente no Departamento
de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde
se aposentou em 2020 como professora titular. Atualmente, é professora do
doutorado interdisciplinar em ciências humanas da UFSC. Fundou o Núcleo
de Estudos de Identidades e Relações Interétnicas (NUER/UFSC), que integra
o diretório de grupos de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) desde 1998 e cujo tema central são os estudos
afrodiaspóricos, tendo recebido por esse trabalho o Prêmio Antonieta
de Barros, a Medalha Cruz e Sousa e o Prêmio Camélia da Liberdade. Foi
pesquisadora I do CNPq entre 1998 e 2017. Realizou pesquisas de campo
em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Moçambique, Angola
e Buenos Aires. Fez estágios pós-doutorais nos Estados Unidos (1997), em
Portugal (2007) e em Buenos Aires (2015).

Isabel Santana de Rose


Tem graduação em ciências sociais (2002) pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), mestrado (2005) e doutorado (2010) em antropologia
social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Cursou pós-
doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/
UFSC) – vinculado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil
Plural (INCT-IBP) – de 2010 a 2012, pelo Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGAN/UFMG)
de 2014 a 2016, e pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
da UFMG (PPGCOM/UFMG) em 2017. Foi orientanda de Esther Jean
Langdon durante o doutorado e supervisionada por ela ao longo do pós-
doutorado realizado na UFSC. Em coautoria, publicaram uma série de artigos
em livros e periódicos nacionais e internacionais, principalmente ligados ao
Sobre as autoras e os autores 605

tema do xamanismo e das redes xamânicas contemporâneas. Atualmente,


é professora visitante no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Tem experiência principalmente nas
áreas de antropologia da saúde, antropologia da religião, ritual e simbolismo,
xamanismo, fazeres e saberes tradicionais.

John Dawsey
Professor de antropologia na Universidade de São Paulo (USP) desde 1991.
Tornou-se professor titular da mesma universidade em 2007 e obteve o título
de livre-docência em 1999. Philosophiae Doctor (Ph.D.) em antropologia (1989)
e mestre em teologia (1977) pela Emory University. Bacharel em história (1973)
pela Florida Southern College. Professor visitante na New York University
(NYU) em 2019. Coordenador do Núcleo de Antropologia, Performance e
Drama (NAPEDRA) desde 2001. Nas interfaces entre teatro e antropologia,
procura explorar configurações do campo da antropologia suscitadas pelos
estudos de Walter Benjamin e pensadores de teatro e performance (Artaud,
Brecht, Schechner e outros). Um conjunto de conceitos resulta dessas pesquisas:
descrição tensa (tension-thick description), f(r)icção, sismologia da performance,
extraordinário ou espantoso cotidiano, margens das margens, circuito mimético
benjaminiano, subterrâneos dos símbolos, entranhas dos sonhos, histórias
de esquecimento, inconsciente sonoro, índice de corporalidade, corpoiesis,
montagens carregadas de tensões, deslocamento do lugar sentido ou vivido das
coisas. Desenvolve pesquisas em antropologia da performance, antropologia da
experiência e antropologia benjaminiana.

Juan Alvaro Echeverri


Doutor em antropologia. Professor da Universidad Nacional de Colombia (sede
Amazônia). Especialista em populações indígenas amazônicas, com experiência
de trabalho e pesquisa em antropologia social, etno-história, conhecimentos
tradicionais, documentação e revitalização linguística, educação indígena,
territorialidade indígena e etnobotânica. Vencedor dos Premios Nacionales
Alejandro Ángel Escobar (Colômbia) em Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável (2020), junto com o acadêmico indígena Oscar Román-Jitdutjaaño.

Juana Valentina Nieto Moreno


Doutora em antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Mestra em estudos amazônicos pela Universidad Nacional de Colombia.
Realiza estágio pós-doutoral no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
Brasil Plural (INCT-IBP) e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da UFSC (PPGAS/UFSC). Integrante do Núcleo de Estudos sobre Saúde
e Saberes Indígenas, da UFSC (NESSI/UFSC), e do Grupo de Investigación
História, Ambiente y Política (HIAMPOL), da Universidad Nacional de
606 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Colombia. Pesquisa temas relacionados com etnologia indígena, Amazônia,


gênero e interculturalidade, mobilidade, migração e narrativas de mulhe-
res indígenas.

Laura Pérez Gil


Doutora em antropologia social pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Atualmente, é professora no Departamento de Antropologia
(DEAN) e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia
(PPGAA) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do
Museu de Arqueologia e Etnologia da mesma universidade. A maior parte da
sua produção é baseada em trabalho de campo entre povos indígenas Pano,
principalmente os Yaminawa (Amazônia peruana), abordando temas sobre
xamanismo e organização social, e nos últimos anos vem trabalhando
sobre ações colaborativas em museus.

Luciana Hartmann
Luciana Hartmann é professora do Departamento de Artes Cênicas da Univer-
sidade de Brasília (UnB). Formada em interpretação teatral pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), fez mestrado e doutorado em
antropologia social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob
orientação de Jean Langdon. Na Université Paris Nanterre (2014-2015) e na
Universidade de Lisboa (2019-2020), realizou pesquisas de pós-doutorado
sobre performances de crianças imigrantes. É bolsista de produtividade em
pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) e mãe de duas meninas.

Luciane Ouriques Ferreira


Doutora em antropologia social, pós-doutora em saúde pública e em
antropologia. Pesquisadora associada ao Grupo de Pesquisa Saúde Coletiva
Epistemologias do Sul e Interculturalidades, da Universidade Federal do
Sul da Bahia (UFSB). Consultora do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD).

Luisa Elvira Belaunde


Doutora em antropologia pela University of London e especialista em povos
amazônicos. Atualmente, é professora titular do Departamento de Antropologia
da Universidad Nacional Mayor de San Marcos (Lima). Foi também professora
do Programa de Pós-Graduação em Antropologia do Museu Nacional
– Universidade Federal do Rio de Janeiro –, da Pontifícia Universidade Católica
do Peru e da Universidade de Durham (Inglaterra). Sua pesquisa aborda as
relações de gênero ameríndias, interligando-as às dinâmicas cosmossociais
de produção da diferença, à corporalidade, ao ensino/aprendizagem, às artes
gráficas, às transformações atuais da migração urbana e à luta pelo território.
Sobre as autoras e os autores 607

É autora de El recuerdo de Luna: género, sangre y memoria entre los pueblos


amazónicos (2019, 3. ed. ampl. e rev.), Sexualidades amazónicas: géneros, deseos
y alteridades (2018), Kené: arte, ciencia y tradición en diseño (2009) y Viviendo
bien: género y fertilidad entre los Airo-Pai de la Amazonía peruana (2001).

Marcos Antonio Pellegrini


Graduação em medicina pela Universidade Federal de São Paulo (1986),
mestrado (1998) e doutorado (2008) em antropologia social pela Universidade
Federal de Santa Catarina. Tem experiência profissional na área de planejamento
e organização de serviços de saúde entre povos indígenas. É professor do
Instituto de Antropologia, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Saúde e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, todos
pertencentes à Universidade Federal de Roraima. Tem interesses de pesquisa
nas áreas de antropologia da saúde, etnologia, saúde indígena, memória
e performance.

Maria Manuel Quintela


Antropóloga, doutora em antropologia social e cultural pelo Instituto de
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL). Professora coordenadora
no Departamento de Enfermagem de Saúde Comunitária da Escola Superior
de Enfermagem de Lisboa desde 1988. É investigadora no Centro em Rede de
Investigação em Antropologia (polo Instituto Universitário de Lisboa-UL),
onde coordena desde 2014 a linha temática de antropologia da saúde. Tem
desenvolvido a sua atividade de pesquisa na área da antropologia da saúde,
sobre termalismo, água, práticas terapêuticas, dor, cuidado em saúde e história
social da enfermagem e saúde pública em Portugal/Brasil.

Maria Soledad Etcheverry Orchard


Doutora em sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ).
Professora titular do Departamento de Sociologia e Ciência Política (SCP) e
do Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Ciência Política (PPGSP) da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Mario Bick
Tem doutorado pela Columbia University (1974). É professor emérito de
antropologia do Bard College, em Annandale-on-Hudson, Nova Iorque, onde
lecionou desde 1970. Conduziu pesquisas antropológicas na Libéria e no Brasil,
principalmente em questões de etnia e classe.

Miguel Alberto Bartolomé


Possui graduação em ciências antropológicas pela Universidad de Buenos
Aires, mestrado e doutorado em sociologia pela Universidad Nacional Autó-
noma de México. Professor pesquisador emérito do Instituto Nacional de
608 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Antropología e Historia (INAH – México) e membro emérito do Sistema


Nacional de Pesquisadores, do Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología (SEP-
CONACYT). Membro da Academia Mexicana de Ciencias. Tem realizado
pesquisas entre Mapuche, Wichí e Guaraní (Argentina), entre Avá-Guaraní,
Mbya, Guaná e Ayoreo (Paraguai), entre Chinanteco, Maia, Chatino, Nahua,
Chocho, Ixcateco, Mixteco, Zoque e Chontal (México), bem como com os
Kuna do Panamá. Foi professor visitante no México, na Argentina, no Brasil, no
Paraguai, na Holanda e na Espanha. Foi responsável pelo CONACYT e membro
do Conselho Coordenador Acadêmico do Projeto Nacional de Etnografia dos
Povos Indígenas do México (1999-2009), desenvolvido pelo INAH. Atualmente
é professor pesquisador responsável por projetos sobre etnicidade e pluralismo
cultural do Centro Oaxaca do INAH.

Nádia Heusi
Doutora em antropologia social pela Universidade Federal de Santa Catarina,
com a tese Imagens de abundância e escassez: comida guarani e transformações
na contemporaneidade. Graduada em nutrição, tem trabalhado com temáticas
que articulam antropologia e saúde. Pesquisadora associada ao Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural (INCT-IBP).

Paulo Raposo
Doutor em antropologia e professor no Departamento de Antropologia
do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). Foi professor visitante da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no Brasil, em 2009 e 2017-
2018, e da Universidade Federal Fluminense (UFF-Niterói) em 2014. É vice-
presidente do Centro em Rede de Investigação em Antropologia. Realizou
várias investigações em Portugal, Espanha e Brasil, trabalhando sobre
temáticas como corpo, ritual, patrimônio, turismo e, sobretudo, na área
de performances culturais, práticas artísticas e ativismo político. Trabalha
e colabora com diversas estruturas teatrais e eventos culturais. É autor de
vários livros e artigos, destacando-se, em coautoria, os editados no Brasil,
sobre a relação entre antropologia, arte e política: A terra do não-lugar:
diálogos entre antropologia e performance (RAPOSO et al., 2013) e Cidades
rebeldes: invisibilidades, silenciamentos, resistências e potências (RAPOSO;
HEAD, RENCK, 2019).

Philippe Hanna
Bacharel em ciências sociais e mestre em antropologia social pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutor em geografia cultural pela University
of Groningen (Holanda). Com foco em antropologia simbólica, relações
interétnicas e movimentos sociais, Philippe Hanna atualmente é pesquisador
e consultor sobre avaliação de impacto social e adequação de projetos a grupos
culturalmente diferenciados.
Sobre as autoras e os autores 609

Raquel Paiva Dias-Scopel


Antropóloga, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, com experiência em
pesquisa etnográfica entre povos indígenas nas regiões Norte, Sul e Centro-
Oeste do Brasil. Coordenou pesquisas, na área da antropologia da saúde,
relacionadas às políticas públicas de saúde indígena. Coordena pesquisa em
andamento sobre sustentabilidade, conselhos de saúde indígena e participação
social no Mato Grosso do Sul.

Renato Athias
Possui graduação em filosofia pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências
e Letras (1975), mestrado em etnologia pela Université Paris-Nanterre (1982),
doutorado em etnologia pela mesma universidade (1995). Realizou estudos na
University of Southampton (Reino Unido), na área de mídia e televisão, com
bolsas de estudos do Conselho Britânico. É coordenador do Núcleo de Estudos
e Pesquisas sobre Etnicidade (NEPE) da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE) e professor associado II do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da UFPE. É professor do Máster Universitário en Antropología
de Iberoamérica, da Universidad de Salamanca, na Espanha. Tem experiência
na área de antropologia, com ênfase em etnologia indígena, atuando nas
seguintes temáticas: saúde indígena, antropologia visual, com pesquisas entre
os índios de Pernambuco e no Alto Rio Negro, Amazonas. É membro do
Laboratório de Antropologia Visual do Núcleo de Imagem e Som & Ciências
Humanas, da UFPE. É vice-coordenador da Comissão de Museus e Patrimônio
Cultural (COMACH), da União Internacional das Ciências Antropológicas e
Etnológicas (IUAES).

Ricardo Ventura Santos


Ricardo Ventura Santos é Philosophiae Doctor (Ph.D.) em antropologia pela
Indiana University (EUA). É pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz, e professor do Departamento de
Antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Rita Neves
Possui mestrado em antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGA/UFPE) e
doutorado em antropologia social pelo Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC).
Atualmente, é professora associada da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN), no Departamento de Antropologia (DAN), e docente do
quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
(PPGAS/UFRN). Tem experiência na área de antropologia, com ênfase em
etnologia indígena, atuando principalmente nos seguintes temas: etnicidade,
identidade, antropologia da saúde e performance.
610 Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon

Robert R. Crépeau
Professor de antropologia da Université de Montréal, no Canadá. Realizou
pesquisas no Quebec (Canadá) e na América do Sul, em colaboração com
os Achuar, da Amazônia peruana, e os Kaingang, do Brasil. Está interessado
na expressão político-religiosa das reivindicações indígenas territoriais,
identitárias e legais.

Sandra Carolina Portela G.


Antropóloga pela Universidad del Cauca, mestre e doutora em antropologia
social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora pesquisadora
do programa de antropologia e da área de cultura e sociedade da Universidad
Externado de Colombia e pesquisadora associada do Instituto Nacional
de Ciência e Tecnologia Brasil Plural (INCT-IBP). Possui experiência em
antropologia da saúde, etnologia indígena e estudos de políticas públicas, e
mais recentemente em meio ambiente, mulheres e maternidades.

Scott Head
Nasceu estadunidense e cresceu carioca. Atualmente, é professor adjunto da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), cocoordenador do Grupo de
Estudos em Oralidade e Performance (GESTO) e da sub-rede de pesquisa “Arte,
performance e sociabilidades”, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
Brasil Plural (INCT-IBP), desenvolvendo pesquisas nos campos da performance,
da imagem e da etnografia e de suas articulações poético-políticas.

Sônia Weidner Maluf


É professora titular aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Antro-
pologia Social (PPGAS/UFSC), atuante junto ao Programa de Pós-Graduação
em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (PPGA/UFPB), e
pesquisadora 1C do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico (CNPq). É formada em jornalismo (1984) pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em antropologia social (1989) pela
UFSC, possui diploma de estudos avançados (1991) e doutorado (1996) em
antropologia social e etnologia pela École des Hautes Études en Sciences
Sociales (EHESS – França). Fez pós-doutorado na Nottingham Trent
University e na London School of Economics (2004-2005) e na EHESS (2011-
2012). Atua nas áreas de antropologia urbana e antropologia do contemporâ-
neo, nos seguintes temas: pessoa, indivíduo e sujeitos contemporâneos,
antropologia da saúde e saúde mental, antropologia política, Estado e políticas
públicas, gênero e teorias feministas, religiosidades brasileiras. Coordena o
Núcleo de Antropologia do Contemporâneo (http://transes.paginas.ufsc.br/) e
é coordenadora executiva do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil
Plural (INCT-IBP/CNPq) (brasilplural.paginas.ufsc.br).
Sobre as autoras e os autores 611

Vanessa Hacon
Pesquisadora do Projeto Wellcome, coordenado por Ricardo Ventura Santos,
no âmbito da Fundação Oswaldo Cruz, e pós-doutoranda no Departamento
de Antropologia da Universidade de Brasília. Doutora em ciências sociais
pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Vanessa se dedica à pesquisa nos campos de ecologia política, antropologia
política e saúde indígena.

Vânia Zikán Cardoso


Professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Doutora e mestra em antropologia pela University of Texas (Austin, EUA).
É uma das coordenadoras do Grupo de Estudos em Oralidade e Performance
(GESTO) na UFSC. Seus interesses de pesquisa são as religiosidades e formas
expressivas na diáspora africana, trabalhando sobre temáticas como narrativa,
corporalidade e linguagem.

Vilma Reis
Nasceu em Belém, estudou em Portugal, trabalhou no Rio de Janeiro. Começou
como repórter da Rádio Universidade de Coimbra, o que a levou para a
Rádio Central Brasileira de Notícias (CBN), pioneira brasileira no modelo all
news. Saiu de uma redação na Amazônia e foi estudar divulgação científica
na Fundação Oswaldo Cruz, para entender melhor a relação entre ciência,
comunicação e sociedade. Enquanto jornalista científica, procura ser um
elemento moderador entre o conhecimento e o público, para a consolidação da
cidadania e da democracia.

Viviane Vedana
Professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Doutora em antropologia social pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Na UFSC, atua como pesquisadora no Coletivo
de Estudos em Ambientes, Percepções e Práticas (CANOA) e no Grupo de
Estudos em Oralidade e Performance (GESTO). Participa como affiliate scholar
do SEACoast Center, na University of Califórnia, Santa Cruz (UCSC). Seus
interesses de pesquisa são os sistemas técnicos de produção e comercialização
e as perturbações do capitalismo nas práticas e paisagens. Também pesquisa
sobre sonoridades e antropologia visual.
Este livro foi editorado com as fontes
Minion Pro e Humnst777 Bt. Publicado
on-line em: editora.ufsc.br/estante-aberta
A Coleção Brasil Plural tem como objetivo dar visibilidade
às pesquisas realizadas pelo Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia Brasil Plural (INCT-IBP/CNPq). Busca retratar
as diferentes realidades brasileiras em toda a sua comple-
xidade e contribuir para a elaboração de políticas sociais
que levem em consideração as perspectivas das populações
e comunidades estudadas. Além disso, visa formar pesqui-
sadores e profissionais que atuem com essas populações.

Instituto
Instituto Nacional
Nacional
Instituto
Instituto Nacionaldede
de Pesquisa
Pesquisa
Nacional de Pesquisa
Pesquisa
BRASIL
BRASIL PLURAL
PLURAL
BRASIL
BRASIL PLURAL
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MCTI
MCTI CIÊNCIA,
Tecnologia MCTI
MINISTÉRIO DA
Ministério da Ciência,
TECNOLOGIA
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Tecnologia
E INOVAÇÕES
Inovação
e Inovação Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovação Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico
fapesc
Fundação de Amparo à
Pesquisa e Inovação do
Estado de Santa Catarina

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