Kurkdjian, Anouch Neves de Oliveira. Romance e Modernidade No Jovem Lukács
Kurkdjian, Anouch Neves de Oliveira. Romance e Modernidade No Jovem Lukács
Kurkdjian, Anouch Neves de Oliveira. Romance e Modernidade No Jovem Lukács
São Paulo
2014
Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Sociologia
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Aprovada em:
Banca Examinadora:
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(suplente)
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(suplente)
KURKDJIAN, Anouch Neves de Oliveira. Romance e modernidade no jovem
Lukács. 2014. Romance e modernidade no jovem Lukács. (157p.) f. Dissertação
(Mestrado em Sociologia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, 2014.
Resumo: Esta dissertação busca apresentar uma leitura do ensaio A teoria do romance,
de Georg Lukács, atentando para o nexo formulado pelo autor entre a forma romance e
a modernidade. Para este objetivo, procurou-se retraçar os momentos de diálogo que
essa obra estabelece com a teoria do romance de Friedrich Schlegel. Não se trata de uma
tentativa de rastrear as influências que por ventura estejam presentes no ensaio de
Lukács, mas de mostrar como A teoria do romance pode ser reconstituída a partir das
críticas à teoria do romance do romantismo. Pretende-se expor como a investigação da
forma romance, essa forma que como nenhuma outra expressa o “desabrigo
transcendental”, consiste para Lukács em uma via de acesso e crítica à experiência de
alienação que vigora no mundo moderno.
Esta dissertação é resultado de três anos de trabalho, durante os quais tive a sorte
de contar com o apoio de diversas pessoas. Nada mais justo que relembrar e agradecer
àqueles que fizeram parte desse processo e tornaram este trabalho possível:
Aos novos amigos imeanos, pela acolhida calorosa e pela descontração que me
proporcionaram na tensa reta final de escrita. Um agradecimento especial à Ariadne,
única matemática-revisora que eu conheço, e ao Gilberto pelas conversas animadas.
À minha família, especialmente à Tia Zeca e ao tio Zaven e à tia Ida, por todo o
carinho.
À vó Quitinha, que não está mais aqui, mas que com certeza ficaria feliz em
saber que a dissertação finalmente chegou ao fim.
Aos meus pais, sem os quais nada disso seria possível. Obrigada pelo amor e
apoio incondicionais, pela enorme paciência, por acreditarem em mim mais do que eu
mesma e por oferecerem diariamente o exemplo para que eu continue seguindo meus
caminhos.
Por fim, ao Bruno, que nos momentos mais difíceis sempre soube encontrar as
palavras certas para me acalmar. Agradeço pelo amor e companheirismo sem tamanho,
e por me ensinar, diariamente, que é possível levar a vida com mais leveza.
Esta pesquisa contou com o importante apoio de uma bolsa de estudos da CAPES
– PROEX no período de 01/02/2012 a 31/09/2012 e de uma bolsa de estudos da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) no período de
01/10/2012 a 31/01/2014.
Sumário
Introdução ..................................................................................................................... 11
Capítulo 1 – A teoria do romance como ensaio ......................................................... 18
Capítulo 2 – Do mito helênico à era da perfeita pecaminosidade ou os dois mundos
da épica .......................................................................................................................... 40
“Havia algo de doentio na coisa toda” ........................................................................ 50
A dialética histórico-filosófica das formas ................................................................. 62
Capítulo 3 – O romance é o mundo moderno ............................................................ 76
A segunda natureza ..................................................................................................... 84
A totalidade problemática do romance ....................................................................... 88
A ironia como índice de objetividade do romance ..................................................... 98
Capítulo 4 – Tipologia do romance ........................................................................... 113
O idealismo abstrato: Dom Quixote e Michael Kohlhaas......................................... 113
O romantismo da desilusão: Educação sentimental ................................................. 119
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como tentativa de síntese .................. 125
Tolstói, Dostoiévski e a crise do romance ................................................................ 140
Bibliografia .................................................................................................................. 149
Introdução
Tentar compreender uma obra como A teoria do romance revela-se uma tarefa
difícil, não apenas em virtude da complexidade da própria obra, mas também pelas
variadas interpretações em disputa pelo seu sentido. De fato, poucos livros estão tão
obviamente recobertos por sucessivas camadas de interpretações quanto este e, embora
isso não seja um privilégio exclusivo nem dessa obra, nem de seu autor, parece haver
nesse caso algumas peculiaridades.
Em primeiro lugar, muitas das leituras sobre esse ensaio são marcadas pela
disputa em torno da periodização e do sentido da trajetória intelectual e biográfica de
Lukács, cujo ponto nodal é sua adesão repentina ao marxismo, ocorrida em 1917. De
fato, a vida intelectual de Lukács foi marcada por inflexões bruscas e diversas recusas
de posições teóricas precedentes, o que torna difícil estabelecer uma periodização
inequívoca e conclusiva de sua obra, conforme atesta o intenso debate em torno do
tema 1. Mesmo as obras de sua fase pré-marxista variam bastante entre si, seja em sua
configuração formal, seja em sua orientação metodológica e teórica 2.
No entanto, o que singulariza ainda mais a recepção dessa obra é que o próprio
Lukács desempenhou um papel central em sua conformação. A reedição de suas obras
de juventude, na década de 60, se dá em um contexto peculiar, marcado pela profusão
de entrevistas e relatos do autor acerca de sua trajetória intelectual 3. Essas reconstruções
autobiográficas adquirem centralidade também nos prefácios que, por exigência do
autor, acompanham suas obras reeditadas. Nesses textos, Lukács repisa a apresentação
1
Jose Paulo Netto, Georg Lukacs (São Paulo (SP): Atica, 1992); Andrew Arato e Paul Breines, The
young Lukács and the origins of Western Marxism (New York: Seabury Press, 1979); Michael Löwy, A
Evolução Política de Lukacs : 1909-1929 (São Paulo: Cortez, 1998).
2
Tal fase da produção de Lukács compreende desde livros de grande fôlego como Evolução histórica do
drama moderno (escrito em 1906-1907 e publicado em 1911), passando pelos escritos para uma teoria
estética sistemática, que foram organizados posteriormente na Estética de Heidelberg e na Filosofia da
arte de Heidelberg, passando pelo conjunto de ensaios escritos entre 1908 e 1910, reunidos em A alma e
as formas (publicado em 1911), até A teoria do romance, escrita entre 1914 e 1915. Para uma visão
panorâmica desse período, conferir Ricardo Musse, “Antes de História e consciência de classe”, Estudos
Avançados 27, no 78 (janeiro de 2013): 291–300, doi:10.1590/S0103-40142013000200019.
3
Georg Lukács, Pensamento vivido autobiografia em diálogo de Georg Lukács: entrevista a Insrván
Eörsi e Erzsébet Vezér (São Paulo; Viçosa, MG: Estudos e Edições Ad Hominem Ed. da UFV, 1999);
Georg Lukács, “Meu caminho para Marx”, in Socialismo e democratização (Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2008), 37–54.
11
de sua trajetória intelectual, delineada em um texto de 19334 como um percurso
evolutivo – ainda que contraditório e não linear – em direção ao marxismo, ponto final
antecedido por um período no idealismo subjetivo (Kant) e a subsequente passagem ao
idealismo objetivo (Hegel). Nesses prefácios, Lukács afirma que em termos
metodológicos suas obras de juventude filiam-se às ciências do espírito e tem como
inspiração os trabalhos de Dilthey, Simmel e Weber. As diferenças entre elas dizem
respeito, principalmente, às mudanças em sua orientação filosófica. Assim, Evolução
histórica do drama moderno e A alma e as formas alinham-se a teoria neokantiana da
imanência da consciência, ao passo que A teoria do romance expressaria a transição
para o idealismo objetivo, evidenciado pela tentativa de aplicação dos conceitos
hegelianos às questões estéticas e pelo esforço de construção de uma dialética universal
dos gêneros literários fundada historicamente 5.
4
Lukács, “Meu caminho para Marx”.
5
Georg Lukács, “Prefácio do autor”, in A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as
formas da grande épica, 2o ed (São Paulo: Editora 34, 2000), 13.
6
Ibidem, 11.
7
Na Europa como um todo, mas principalmente no contexto alemão, ao qual Lukács não era de modo
algum alheio, o processo de modernização era alvo de debates intensos nos quais se opunham aqueles que
12
Salta aos olhos, entretanto, a intensidade das críticas do autor às limitações
teóricas e políticas da obra - dentre elas, os problemas da metodologia das ciências do
espírito com base na qual ele erige sua “tipologia da forma romanesca”; o utopismo
ingênuo de sua crítica ao capitalismo; a conjugação problemática de uma ética de
esquerda, orientada pela revolução, a uma epistemologia de direita, convencional. A
partir dessas observações, Lukács conclui que, apesar de algumas contribuições
pontuais, tal como a descoberta da função do tempo no romance, baseada na durée
bergsoniana, em última instância o único valor do livro é ser um registro da pré-história
das ideologias dos anos vinte e trinta – nomeadamente, o anticapitalismo romântico que
na Alemanha ganhou feições conservadoras ao conjugar-se com a apologia do atraso
político-social do império Guilhermino.
Ora, tendo em vista se tratar de um prefácio escrito quase meio século após a
publicação do livro – período ao longo do qual o pensamento de Lukács sofreu
transformações teóricas e políticas decisivas - talvez não seja prudente tomá-lo como
indicação única e precisa acerca das concepções teórico-metodológicas que orientam a
obra ou como o singular depositário das chaves para sua compreensão e, sobretudo, sua
interpretação. O prefácio parece, antes, nos revelar mais sobre as posições de Lukács na
década de 60 do que propriamente esgotar as possibilidades interpretativas da obra em
questão, muito embora algumas de suas críticas sejam consistentes e toquem fundo nos
problemas de uma posição anticapitalista não mediada pelo marxismo. De todo modo,
parece restar um potencial teórico e crítico na Teoria do romance, que, apesar do
rechaço veemente, mesmo Lukács há de reconhecer, quando afirma que “A teoria do
romance não é de caráter conservador, mas subversivo”, diferenciando, assim, seu
utopismo, expresso na esperança de que uma mudança social poderia ocorrer sem uma
profunda alteração econômica, daquele que a partir dos anos vinte ganharia contornos
explicitamente reacionários. Além do mais, se é verdade que nenhum autor detém o
viam o fenômeno como um progresso incontestável e aqueles que o encaravam com certo mal-estar. Em
seu trabalho sobre os acadêmicos alemães da virada do século XIX para o XX, Ringer mostra como era
disseminada a percepção de que o país atravessava uma “crise da cultura”, tema que aparece em diversos
trabalhos do período. De modo geral, a discussão se organizava em torno do paradoxo que caracterizava
os novos tempos: o desenvolvimento técnico assombroso, que possibilitava realizações materiais nunca
antes vistas, caminhava lado a lado com o declínio da atividade cultural autêntica, com a perda de um
sentido profundo para a vida. Preocupado em realizar uma sociologia dos intelectuais, Ringer aborda de
maneira superficial a produção teórica dos autores que estuda, fato que o leva a uma leitura generalista.
Ao mesmo tempo, associa todo o debate sobre a crise da cultura aos interesses materiais do grupo dos
mandarins, descontentes com sua perda de liderança espiritual e política. Essa explicação parece não
contemplar o caso de Lukács, que estava longe de ser um “mandarim”. Fritz Ringer, O declínio dos
mandarins alemães: A comunidade acadêmica alemã, 1890-1933 (Edusp, 2000).
13
título de propriedade sobre seus pensamentos, talvez seja produtivo adotar uma postura
de insubordinação perante as conclusões que Lukács apresenta no referido prefácio:
essa dissertação nasce desse impulso de, por assim dizer, ler A teoria do romance a
contragosto de seu próprio autor.
Nesse sentido, o esforço que pautou este trabalho foi o de realizar uma leitura
orientada para o esclarecimento dos nexos estabelecidos por Lukács entre a forma
romance e a modernidade. Em vista desse objetivo, nos pareceu fundamental estudar
uma das fontes da discussão presente no livro: o debate acerca dos gêneros literários em
sua relação com a filosofia da história, presente em autores do pensamento estético
alemão do século XVIII, dentre eles Schiller, Goethe, Friedrich Schlegel e Hegel,
citados por Lukács em seu prefácio como referências para sua teorização.
14
A teoria do romance, no entanto, não guarda apenas uma relação unilateral com
o romantismo alemão, como se este fosse mera influência presente na obra de Lukács.
Trata-se, antes, de um diálogo, mas um diálogo profundamente crítico que Lukác
entabula com o romantismo. Em uma carta de 1910 a seu amigo Leo Popper, Lukács
assevera: “Bem, minha vida em grande parte é uma crítica aos românticos”. E em
seguida ele explica que não se pode criticar os românticos sem criticar a forma romance:
“Oh, não, não é por acidente que a palavra Roman [romance] e ‘romântico’ são
etimologicamente relacionadas” 8.
Em certo sentido, portanto, nos pareceu ser possível pensar A teoria do romance
como uma espécie de resposta à teoria do romance de Schlegel, uma resposta que se
constrói a partir da crítica à perspectiva romântica, segundo a qual o romance seria
capaz de reconciliar a cisão que caracteriza a modernidade. Lukács, ao contrário,
apreende o elemento de negatividade do romance, insistindo que ele é a afirmação da
dissonância que caracteriza a vida moderna, uma forma tem na alienação entre
indivíduo e mundo seu meio estético e que apenas formalmente consegue reconciliar
esses dois polos.
8
Judith Marcus e Zoltán Tar, Georg Lukács: selected correspondence, 1902-1920: dialogues with Weber,
Simmel, Buber, Mannheim, and others (New York: Columbia University Press, 1986), 104.
15
interesse de Lukács em se estabelecer como professor na Universidade de Heidelberg. A
partir da correspondência do período, são expostas as divergências entre Lukács e seu
mentor intelectual à época, Max Weber, a respeito da opção do jovem autor húngaro
pela escrita ensaística. Nesse sentido, procura-se mostrar como a preocupação com a
questão formal foi uma tônica desse período da produção de Lukács e já havia sido
inclusive objeto de detida reflexão por parte do autor em “Sobre a essência e a forma do
ensaio”, texto escrito em 1910. Desse modo, o fato da Teoria do romance vir à tona sob
a forma de um ensaio parece ter menos a ver com fatores circunstanciais, do que com
uma necessidade imposta por seu próprio material. A forma de exposição não
sistemática, por sua vez, aproxima Lukács da concepção romântica do fragmento, uma
forma aberta, infinita, processual.
16
crítica à teoria do romance romântica. Nesse sentido, destaca-se a ênfase de Lukács no
fundamento abstrato do romance, isto é, na oposição entre indivíduo e mundo que são,
por assim dizer, o meio estético para a configuração romanesca. Desse modo, enquanto
para o romantismo o romance poderia alcançar o estatuto de poesia universal romântica
e reinstaurar o sentido na vida, o romance é para Lukács a afirmação mais profunda da
cisão que caracteriza a vida moderna.
17
Capítulo 1 – A teoria do romance como ensaio
9
Walter Benjamin, “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, in Magia e técnica,
arte e política - ensaios sobre literatura e história da cultura (São Paulo: Editora Brasiliense, 1994), 202.
18
racionalidade ocidental moderna e mais aberta ao misticismo e à escatologia 10. Tal
perfil se expressaria no estilo opaco de seus escritos e na preferência pela forma do
ensaio, gênero que se coadunava cada vez menos às tendências acadêmicas da época, ao
menos dentro das instituições universitárias.
10
Tal visão coincide com a de Marianne Weber, que relata: “Do polo oposto da Weltanschauung os
Weber também conheceram alguns filósofos da Europa oriental que estavam se tornando conhecidos à
época, particularmente o húngaro Georg Von Lukács, com quem os Weber formaram uma forte
amizade...Esses jovens filósofos eram movidos por esperanças escatológicas acerca de um novo emissário
de um Deus transcendente e eles viam a base da salvação em uma ordem social socialista, criada por uma
irmandade” apud Marcus e Tar, Selected correspondence: 1902-1920, 16.
19
Em carta de 22 de Julho de 1912, Weber relata à Lukács uma de suas primeiras
intervenções a seu favor, após ouvir de Wilhelm Windelband críticas ao caráter
assistemático dos textos de seu protegido e, em seguida, aconselha o jovem pensador a
trabalhar detidamente em uma obra:
Eu fiz alguns comentários cuidadosos, tão poucos quanto possível, acima de tudo,
principalmente concernindo a você pessoalmente: que você era essencialmente um
pensador sistemático que deixou para trás sua fase ensaística, etc. [...] Só posso
reiterar minha visão sobre o assunto: se você estiver em condições de submeter uma
obra acabada, não apenas um capítulo, mas algo que seja em si “completo”, suas
11
chances de um resultado positivo aumentariam em muito .
Por volta de março de 1915, no entanto, Lukács relata em carta a seu amigo Paul
Ernst que havia posto de lado sua estética e passado a trabalhar no que ele chama de seu
“livro sobre Dostoiévski (...) O livro contudo irá além de Dostoiévski; conterá minha
ética metafísica e uma parte significativa de minha filosofia da história” 13. Mas logo em
agosto do mesmo ano, pressionado por uma possível convocação para a guerra no mês
11
Ibidem, 204. Na mesma carta, Weber menciona a dificuldade em saber se existem “condições
objetivas” que tornariam a candidatura de Lukács praticamente nula, a saber, a atmosfera pouco receptiva
aos judeus no círculos acadêmicos alemães na época. Quando as citações permitirem, cotejaremos a
tradução de José Marcos Mariani de Macedo, “Posfácio do tradutor”, in A teoria do romance: um ensaio
histórico-filosófico sobre as formas da grande épica (São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000).
12
Carta de 22 de março de 1913, in Marcus e Tar, Selected correspondence: 1902-1920, 223.
13
Carta de Março de 1915 Ibidem, 243.
20
seguinte, seus planos de trabalho têm de ser revistos. Quanto ao livro sobre Dostoiévski,
a extensão do projeto somada à tal conjuntura, não deixam à Lukács alternativa senão
abandoná-lo, como revela em nova carta a Ernst: “Eu já desisti de meu livro sobre
Dostoiévski, que se tornou um projeto demasiado grande. Dele resultou um longo
ensaio: A estética do romance 14”. É sob a forma desse longo ensaio dividido em duas
partes que vem à luz A teoria do romance, correspondente em linhas gerais ao capítulo
introdutório do que seria o livro sobre o escritor russo.
Eu esperava por seu dissabor com a minha Estética do romance. Mas estou ansioso
para saber se a elaboração subsequente conseguiu lhe conciliar a simpatia; em outras
15
palavras, se foi capaz de induzi-lo a fazer as pazes com a introdução . […] Não
fosse pelo meu serviço militar ou pelo fato de o término da guerra não se achar
absolutamente à vista, aceitaria as consequências, desistiria da ideia de publicar esse
fragmento e esperaria até que todo livro sobre Dostoiévski estivesse concluído. Mas
nessa situação, na qual não posso dizer quando retomarei um trabalho mais
substancial nem se retornaria (talvez daqui a anos) diretamente a esse mesmo
projeto, e não à Estética, acho difícil mesmo contemplar uma espera mais longa.
16
Quanto a mim, uma revisão completa está fora de cogitação .
Bem entendo que você tenha algumas dúvidas sobre a maneira peculiar de minha
escrita, mas, como sabe, sou incapaz de partilhá-las. Inúmeras vezes reprovo-me o
14
Carta de 2 de Agosto de 1915 Ibidem, 252.
15
Lukács se refere ao item um da primeira parte, “Culturas fechadas”.
16
Carta de dezembro de 1915 Marcus e Tar, Selected correspondence: 1902-1920, 253–4.
17
Carte de 23 de dezembro de 1915 Ibidem, 255.
18
Dessoir resistia à publicação integral, pois apenas a segunda parte do ensaio, “Esboço de uma tipologia
da forma romanesca”, lhe agradava.
21
fato de, dentro da forma que escolhi, estar produzindo uma obra desigual (a Teoria
do romance tem níveis muito diversos de intensidade e concentração) e de que ela
tenha de ser lida duas vezes. A questão de se vale a pena ou não o fazê-lo nada tem a
ver com a questão da forma. Tudo que tem algum valor há de ser lido ao menos duas
19
vezes .
Também com urgência Lukács tratava os trâmites envolvendo sua habilitação,
cuja possibilidade em meio à guerra vinha tornando-se cada vez mais remota, uma vez
que sua projetada Estética contava então com apenas dois capítulos terminados. Em
julho de 1916, já liberado do serviço militar, Lukács retorna à Heidelberg e retoma as
conversas com Weber a respeito de sua candidatura. Este lhe apresenta e analisa
possíveis estratégias para que Lukács alcançasse seu objetivo e volta a sugerir que o
jovem postulante se beneficiaria enormemente se conseguisse completar a escrita da
Estética. Mais adiante, Weber – valendo-se das palavras de Emil Lask, com as quais ele
pelo menos parcialmente concordava – insiste no que ele para ele era a fonte de
desconfiança sobre Lukács no círculo dos professores universitários e a principal
barreira para sua habilitação:
Terei de ser honesto com você e relatar-lhe o que um amigo muito próximo – Lask –
disse de você: “ele nasceu um ensaísta e não persistirá no trabalho sistemático
(profissional); ele não deveria, portanto, candidatar-se à docência”. Não é preciso
dizer, o ensaísta não é nem um pouco menos do que o acadêmico profissional,
sistemático – talvez seja o oposto! Mas ele não tem lugar algum em uma
universidade e não faria bem à instituição, nem, o que é mais importante, a ele
próprio. Com base no que você nos leu dos brilhantes capítulos introdutórios de sua
Estética, discordo veementemente dessa opinião. E como sua repentina inflexão para
Dostoiévski pareceu dar respaldo a essa opinião (de Lask), odiei e continuo a odiar
essa obra. Se você realmente toma como um fardo e uma frustração intoleráveis a
necessidade de rematar uma obra sistemática antes de começar outra, é com pesar
que o aconselho a desistir de qualquer pretensão à atividade docente. [...] Nesse
caso, sua vocação é outra 20.
Não é difícil notar que nessa carta ecoam alguns argumentos que Weber repisaria
com mais calma e profundidade meses depois na famosa palestra “Ciência como
vocação” (1917). Nela, Weber discorre sobre o papel da ciência e procura expor uma
visão realista da profissão do cientista, em contraposição às concepções idealizadas
partilhadas pelos jovens estudantes da época. Nesse sentido, o sociólogo alemão traça
19
Carta de 16 de janeiro de 1916 Marcus e Tar, Selected correspondence: 1902-1920, 258. Percorrendo
as cartas entre Lukács e outros acadêmicos, a observação de que a escrita de A teoria do romance era por
demais opaca é recorrente. Karl Jaspers sugeria que no futuro Lukács deixasse claras suas pressuposições
e, principalmente, apresentasse de antemão para o leitor seus conceitos “de forma puramente lógica, por
assim dizer, juridicamente precisa” Ibidem, 267. Ernst Troeltsch aponta para a ausência de exemplos
para as formulações abstratas de Lukács na obra: “Você mesmo deve saber que ela é difícil de ser lida
porque está cheia de abstrações, e é preciso oferecer as ilustrações para a maioria delas.
Consequentemente, fica-se sempre em dúvida se a inferência ou a conclusão está correta” Ibidem, 271.
20
Carta de 14 de agosto de 1916 Marcus e Tar, Selected correspondence: 1902-1920, 264.
22
uma linha que separa rigidamente o cientista do diletante, figura semelhante ao ensaísta
congênito que seria Lukács.
21
Max Weber, Ciência e política duas vocações (São Paulo: Cultrix, 2004), 24–25. Não se trata, é claro,
de transformar Weber em algo semelhante a um positivista vulgar. Basta lembrar, por exemplo, que seu A
ética protestante e o espírito do capitalismo, acabou por ter a forma de um ensaio.
22
Embora a concepção de ciência na época não fosse unívoca, em particular das ciências humanas, tais
quais a filosofia e a sociologia, temos que pensar essa questão historicamente, ou seja, lembrar que na
Alemanha a sociologia não era ainda uma ciência legitimada, o que explica, pelo menos em parte, o rigor
de cunho sistemático imposto aos trabalhos científicos nas universidades nesse período. Sobre a relação
23
ter contribuído para que Lukács mudasse de ideia e retornasse a seu plano inicial, a
Estética, e em carta de março de 1917 ele aparenta estar bastante satisfeito com seus
esforços na escrita da tese: otimista, anuncia que pretende terminar as 900 páginas do
primeiro volume até o verão 23. Entretanto, alguns meses depois, Lukács revela em nova
missiva a seu amigo Paul Ernst que atravessava uma depressão, “de um modo que
nunca experimentei antes; estou completamente incapacitado para o trabalho” 24.
As razões para esse estado espírito, complexas como em todos os casos desse
tipo, dificilmente podem ser estabelecidas com precisão. Certamente entram em jogo aí
questões pessoais, profissionais e intelectuais. O fato é que logo em seguida Lukács
resolve retornar à Budapeste, não sem antes depositar em cofre de um banco alemão
uma mala contendo uma série de manuscritos, seu diário e cerca de 1600 cartas, que só
seriam encontrados quase 60 anos depois. Mesmo em Budapeste, Lukács não desiste da
habilitação e finalmente submete sua candidatura formal em 25 de maio de 1918. Em 7
de dezembro do mesmo ano, contudo, ele é informado pelo decano da universidade que
sua candidatura fora rejeitada, sendo a razão para tal sua origem estrangeira.
Caminhando para uma carreira na política, Lukács resolve então retirar sua inscrição e
no mesmo mês adere ao Partido Comunista.
entre sociologia, arte (para a qual tenderia o ensaio) e ciência na Alemanha cf. a terceira parte de Wolf
LEPENIES, As três culturas, trad. Maria Clara Cescato (São Paulo: USP, 1996).
23
Carta de 11 de março de 1917 ao professor Gustav Radbruch in Marcus e Tar, Selected
correspondence: 1902-1920, 272.
24
Carta de julho de 1917 Ibidem, 275.
25
Vale ressaltar aqui a semelhança com a trajetória de Simmel, de quem Lukács foi aluno, tanto no que
diz respeito à opção pela forma ensaística, quanto no que isso implicou para a inserção acadêmica de
ambos. Cf. “Ensaio” In: Leopoldo Waizbort, As aventuras de Georg Simmel (São Paulo: Editora 34:
Universidade de São Paulo, 2006).
24
A opção pelo ensaio foi, de fato, uma escolha e não o resultado de alguma
incapacidade, pois Lukács já provara que era capaz de terminar uma obra sistemática e
de grande escopo em História do desenvolvimento do drama moderno, seu primeiro
livro, cuja redação inicial se deu em sua temporada em Berlim em 1906-07 e que,
depois de vencer o concurso oferecido pela Sociedade Kisfaludy de Budapeste, foi
amplamente revisado e ampliado em 1908-09, para ser editado em dois volumes em
1911 26. Quanto à Teoria do romance, Macedo tem razão ao apontar que a forma
ensaística do livro não se deve a uma suposta aversão pessoal de Lukács ao estudo
metódico, nem a uma simples preferência estilística subjetiva, quer dizer, não se deve a
um traço acidental, mas, antes, a “uma verdadeira adaptação formal à natureza da
matéria 27”. Afinal, como perscrutar os longos caminhos percorridos pelas formas
literárias da Grécia homérica à época moderna de maneira profunda, sem recair em um
afã enciclopédico de acumulação indiscriminada de informações?
Que a questão formal era uma inquietação de Lukács fica claro na carta enviada
a Paul Ernst em abril de 1915, período em que redigia A teoria do romance:
26
Inspirado por Simmel, com quem estudara em Berlim, Lukács buscou realizar um novo tipo de história
literária que conjugasse e trouxesse à tona as relações entre o plano interno e o plano externo à obra, isto
é, questões literárias e questões sociais, sem reduzir umas às outras. George Lukács, “The Sociology of
Modern Drama”, trad. Lee Baxandall, The Tulane Drama Review 9, no 4 (1 de julho de 1965): 146–70,
doi:10.2307/1125039.
Cf. “The Drama” In: Lee Congdon, The Young Lukács, 2aed ed (Chapel Hill: University of North
Carolina Press, 2009). Sobre a relação entre Lukács e Simmel conferir também “Introduction to the
translation” IN:
Georg Simmel, David Frisby, e Tom Bottomore, The philosophy of money (London: Routledge, 2004).
O apoio de Weber foi fundamental para que Lukács conseguisse, em 1914, publicar sob a forma de
ensaio o segundo capítulo de História do desenvolvimento do drama moderno, que havia saído na
Hungria em 1912.
27
Macedo, “Posfácio do tradutor”, 170.
28
Carta de 14 de abril de 1915 in Marcus e Tar, Selected correspondence: 1902-1920, 245.
25
Lukács que apenas o ensaio o permitiria fazer jus à rica variedade de aspectos de seus
objetos, sem submetê-los ao engessamento próprio ao sistema. Como afirmam Arato e
Breines sobre a afinidade de Lukács com a forma ensaística:
29
Arato e Breines, The young Lukács and the origins of Western Marxism, 4. Os autores sublinham
também a afinidade da forma ensaística com a vida do viajante Lukács, que em juventude passou longas
temporadas não só em Heidelberg e Berlim, mas também em Florença.
30
Como bem nota Adorno em sua reflexão sobre o ensaio: Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma”,
in Notas de literatura I (Duas Cidades/Editora 34, 2003). p.19
31
“O que há de problemático na situação se exacerbou até se tornar quase que uma inevitável frivolidade
no pensamento e na expressão – e para a maioria dos críticos já se tornou uma disposição vital” Georg
Lukács, “Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”, trad. Mario Luiz Frungillo,
Revista UFG Ano X, no No4 (junho de 2008): 118.
32
Lukács, “Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”.
26
“Sobre a essência e a forma do ensaio” – não por acaso concebido como uma carta a um
amigo próximo e que, portanto, tem um caráter dialógico, aberto e pessoal – Lukács
procura pensar sobre o estatuto do ensaio, situando-o num âmbito distinto tanto da
ciência e da filosofia, quanto da arte em sentido estrito. Embora pense o ensaio como
um gênero artístico, o esforço de Lukács será precisar, a partir da consideração
detalhada da forma ensaística, sua natureza específica, que a distingue “com inapelável
rigor de lei de todas as outras formas artísticas 33”.
Uma das questões fundamentais para Lukács nesse período e que confere certa
unidade aos ensaios que compõem A alma e as formas – à primeira vista bastante
heterogêneos pelo menos se levarmos em conta seus objetos 35 ˗ é a dualidade entre vida
empírica e essência que caracterizaria a época moderna, ou para usar os termos de
33
Ibidem, 105.
34
Weber, Ciência e política duas vocações, 36.
35
Os ensaios abordam autores das mais variadas épocas e tendências: Rudolf Kassner, Soren
Kierkegaard, Novalis, Theodor Storm, Stefan George, Charles-Louis Phillipe, Richard Beer-Hofmann,
Laurence Sterne e Paul Ernst.
27
Lukács, entre “a vida” e “a vida” 36. Tal cisão se expressa em uma série de dicotomias
que permeiam os ensaios do livro: o imediato e o autêntico; o cotidiano e a vida plena; a
vida concreta, em sua singularidade empírica, e a vida abstrata, de valores supremos. A
mediação entre esses dois polos seria possibilitada pela forma artística, razão pela qual
esta adquire o estatuto de objeto privilegiado do ensaio.
Mas o ensaio também é uma forma e isto novamente o afasta da ciência moderna,
pois nela o que importa é tão somente o conteúdo 37. O ensaio compartilha com a obra
de arte, portanto, a qualidade de ser uma forma e por isso Lukács o define como um
gênero literário. Se o ensaio pode ser considerado uma forma artística, o esforço de
Lukács, no entanto, será esmiuçar as diferenças entre ensaio e a literatura, de modo que
as especificidades do primeiro venham à tona. A primeira dessas peculiaridades é que
enquanto o artista ou o poeta lida com a vida empírica, o ensaísta lida com as questões
fundamentais da vida, com os universais, com os sentidos últimos. Embora esses
objetos pareçam aproximar o ensaio da filosofia, a maneira pela qual o ensaio aborda
essas questões o distingue do pensamento filosófico tradicional, pois este se instala no
mundo rarefeito das essências e procede por meio de conceitos abstratos, situando-se
por isso em uma instância por demais afastada da vida empírica.
Ora, para Lukács, a literatura promove uma configuração da vida empírica, isto é,
sua forma delimita uma matéria que, do contrário, se dissolveria em um todo caótico e
indistinto, mas ela permanece no nível das coisas, pois “para ela cada coisa é algo de
sério e único e incomparável” e por isso ela não “conhece as perguntas 38”, ou seja, ela
não chega às questões fundamentais, às determinações valorativas, que permitiriam
conciliar os dois planos de oposições, o essencial e o empírico. Para cumprir esse
anseio, a obra literária deve contar com uma elaboração ulterior, cuja realização cabe ao
ensaísta, que por meio da reflexão acerca do material bruto da vida formalizado pela
literatura consegue trazer à tona essas perguntas e vislumbrar os elementos que apontem
para as respostas, isto é, consegue separar o essencial do não essencial.
36
“Existem, portanto, dois tipos de realidade da alma: a vida é uma delas, e a vida a outra; ambas são
igualmente reais, mas nunca podem ser reais simultaneamente” Lukács, “Sobre a essência e a forma do
ensaio: uma carta a Leo Popper”, 107.
37
“Na ciência são os conteúdos que agem sobre nós, na arte são as formas; a ciência nos oferece fatos e
suas conexões, a arte, por sua vez, almas e destinos”. Ibidem, 106.
38
Ibidem, 107.
28
Ensaio e literatura, portanto, estão em uma relação de necessidade mútua: se a
literatura precisa do ensaio para realizar o que nela é ainda potencialidade, o ensaio por
si só não pode falar do essencial sem passar pela mediação da forma literária, do
contrário se tornaria tão conceitual e abstrato quanto a filosofia que Lukács almejava
criticar. Por isso é que o ensaio tem que falar das formas, pois é falando das formas é
que o ensaio fala do essencial:
O crítico é aquele que vislumbra a fatalidade nas formas, cuja vivência mais intensa
é aquele conteúdo da alma que as formas indireta e inconscientemente escondem em
si mesmas. A forma é sua maior vivência, ela é, como realidade imediata, o que há
de figurativo, de verdadeiramente vivo em seus escritos. Da força dessa vivência
essa forma, originada de uma observação simbólica dos símbolos da vida, recebe
uma vida própria. Ela se torna uma visão de mundo, um ponto de vista, uma tomada
de posição diante da vida da qual ela se originou; uma possibilidade de transformá-
39
la e recriá-la .
Nesse ponto, Lukács não deixa de seguir a centralidade conferida pelo primeiro
romantismo à ideia da crítica de arte como uma espécie de literatura à segunda potência,
para a qual o ensaio, enquanto gênero teórico situado entre literatura e filosofia, seria a
forma mais adequada. Um dos indícios dessa influência são as constantes menções às
figuras do crítico e do ensaísta, intercambiáveis na economia textual Lukács. O mesmo
ocorre nos textos dos primeiros românticos, nos quais, como bem nota Benjamin, “de
todas as expressões técnicas, filosóficas e estéticas, os termos ‘crítica’ e ‘crítico’ são
provavelmente os mais frequentes 40”. Mais do que isso, a própria figura do crítico é
uma invenção romântica que exprime uma nova relação com as obras de arte. Nela, o
crítico não é mais um juiz que emite sentenças a partir de leis fixadas previamente,
erigidas a partir de modelos eternos buscados na antiguidade clássica, nem recai na
tendência oposta – na qual recaiu o Sturm und Drang –, a de subscrever de modo
39
Ibidem, 110–111.
40
Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo: Iluminuras, 1993),
58.
29
absoluto aos direitos da genialidade sem nenhum critério de julgamento. Dito de
maneira breve, a ideia de crítica anuncia que as obras de arte devem contar com uma
interpretação para tornarem-se completas e, nesse sentido, a noção de crítica aproxima-
se da ideia de reflexão, isto é, de um voltar-se sobre si mesmo do pensamento, do ato de
pensar sobre o pensar. Como nota Benjamin, “a crítica é, então, como que um
experimento na obra de arte, através do qual a reflexão desta é despertada e ela é levada
à consciência e ao conhecimento de si mesma 41”.
Assim fica claro porque, para Lukács, o ponto de chegada da literatura, a forma, é
o ponto de partida do crítico: ela “é a realidade nos escritos do crítico, ela é a voz com a
qual ele faz suas perguntas à vida 42” e por isso a literatura e a arte são os típicos objetos
do ensaísta. Elas são um ponto de partida ao mesmo tempo casual e necessário: casual,
pois o verdadeiro assunto do crítico está além dos livros e das obras de arte sobre as
quais fala, mas necessário porque apenas por intermédio dessas formas artísticas é que o
ensaio pode abordar suas verdadeiras questões. Há, no ensaio, um jogo entre o que ele
exprime sobre seu objeto e o sentido mais amplo do que ele exprime; uma tensão entre
seu objeto de discussão e o verdadeiro sentido dessa discussão, sentido este que por seu
turno só se deixa formular pela mediação do objeto. É para esse jogo que Lukács busca
apontar quando sublinha o teor irônico do ensaio:
Refiro-me aqui à ironia que há no fato de que o crítico sempre fala das questões
últimas da vida, porém sempre no tom de quem falasse apenas de quadros e livros,
apenas dos ornamentos belos e não-essenciais da grande vida, e mesmo aqui não do
43
mais íntimo do íntimo, e sim tão-somente de uma bela e inútil superfície .
O caráter contraditório do ensaio vem mais uma vez à tona: ele é uma forma
menor, que trata apenas de quadros e livros, isto é, “de algo já formado, ou ao menos de
algo que já existiu”, já que é “próprio de sua essência não retirar coisas novas de um
nada vazio, e sim apenas reordenar aquelas que já foram vivas alguma vez 44”. Mas ao
mesmo tempo e justamente por isso ele é “o mais profundo trabalho mental a respeito
da vida 45”: “(...) porque ele apenas as reordena, em vez de formar algo novo do informe,
41
Ibidem, 74.
42
Lukács, “Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”, 111.
43
Ibidem, 112.
44
Ibidem, 113.
45
Ibidem, 112.
30
ele está também comprometido com elas, tem sempre de dizer ‘a verdade’ sobre elas,
encontrar expressões para sua essência 46”.
Mas como Lukács concebe esse critério de verdade? A analogia estabelecida pelo
autor com o gênero do retrato no âmbito da pintura é esclarecedora – ao mesmo tempo
em que exemplifica um modo de pensar próprio do ensaio, que permite comparar dois
particulares sem submetê-los a uma premissa ou conclusão geral, como ocorre na
dedução ou na indução. Enquanto “a literatura retira da vida (e da arte) os seus motivos,
para o ensaio a arte (e a vida) serve como modelo 47”. Assim como o retrato, o ensaio
tem que se haver com seu referencial externo, seu objeto, diante do qual se impõe
invariavelmente a questão a respeito do grau de semelhança entre retrato e retratado.
Mas essa é uma falsa questão, pois a impressão de fidelidade de um retrato não tem a
ver com a comparação concreta com o retratado, que na maior parte das vezes sequer é
conhecido pelo apreciador da obra. Na verdade, um bom retratista consegue evocar em
seus retratos uma sugestão da vida de alguém que realmente existiu; ele impõe ao
observador o sentimento de que a vida dessa pessoa foi tal como o retrato mostra. Esse
sentimento, no entanto, tem pouco a ver com a vida de fato do modelo, já que o retrato é
tão somente um momento pontual e arbitrário de uma vida incomensuravelmente grande
e multifacetada, que não pode ser apreendida em sua totalidade. Por isso, Lukács
defende que o que importa na relação entre obra e realidade não é exatamente o grau de
semelhança naturalista, mas o poder que o retrato tem de sugerir, por meio das cores e
dos traços, o mais fundamental de uma vida.
é mais ou menos assim que eu imagino “a verdade” dos ensaios. Também aqui se
trata de uma luta pela verdade, pela encarnação da vida, que alguém deduziu de uma
pessoa, uma época, uma forma, mas depende apenas da intensidade do trabalho e da
48
visão se receberemos do que está escrito uma sugestão desta vida em particular .
A concepção de verdade em jogo não é, portanto, uma verdade dos fatos, nem
uma verdade absoluta, mas tem a ver com a capacidade de um ensaio nos transmitir essa
46
Ibidem, 113. Essa percepção de Lukács será compartilhada por Adorno que, décadas depois, em seu
“Ensaio como forma” enfatiza como o aspecto não criativo do ensaio, isto é, o fato de que ele fala de
assuntos pré-formados culturalmente, torna-o especialmente apto a reparar a volatilidade do pensamento
abstrato e conferir primazia aos objetos.
47
Ibidem.
48
Ibidem, 114.
31
sugestão de vida daquilo que ele aborda. A verdade do ensaio não diz respeito a uma
representação mais fiel, a um naturalismo bruto que procura na trivialidade da vida
empírica seu critério de veracidade, mas tem a ver com a capacidade de insuflar vida na
representação. Nesse ponto, o ensaio se distingue outra vez da literatura, pois esta “nos
dá a ilusão de vida daquele que ela representa 49”, mas para ela não se coloca a questão
de se há alguém por quem o representado possa ser medido. A literatura cria de maneira
integral uma vida e um mundo autossuficientes, ao passo que o ensaio fala de épocas,
coisas e pessoas que já existiram, que não foram criados por ele e dos quais ele não
pode dispor livremente, mas deve respeitar.
No entanto, se o ensaio não cria seus objetos tal como a literatura ele, ainda assim,
cria um mundo fechado em si mesmo, que funda seus próprios critérios de validade e no
qual seu objeto está inserido:
O herói do ensaio já viveu em alguma época, sua vida tem de ser representada
assim, mas essa vida está justamente tão dentro da obra como tudo na poesia. Todos
esses pressupostos da eficácia e da validade daquilo que ele observa, o ensaio os cria
por si mesmo. Assim, não é possível que dois ensaios se contradigam um ao outro:
pois cada um deles cria um outro mundo e mesmo quando, a fim de alcançar uma
maior generalidade, ultrapassa-lhe os limites, ele permanece em tom, cor, ênfase,
sempre no mundo criado, e portanto o abandona apenas em um sentido impróprio da
palavra. Também não é verdade que haja aqui uma medida objetiva, externa da
vivacidade e da verdade, que possamos medir como o Goethe “verdadeiro” a
verdade dos Goethes de Grimm, Dilthey ou Schlegel. Não é verdade, pois muitos
Goethes – diferentes um do outro, e profundamente diferentes do nosso – já
despertaram em nós a crença segura da vida, e, decepcionados, reconhecemos nosso
próprio rosto em outros, cujo débil alento não lhes puderam insuflar uma força vital
50
autônoma .
É essa formulação de Lukács que está no cerne do debate que Adorno trava com
o autor em seu “Ensaio como forma”. Nele, Adorno retoma e desenvolve algumas das
ideias do jovem Lukács a tal ponto que o andamento do texto assemelha-se mesmo a um
diálogo com o prefácio de A alma e as formas. Embora seja claramente tributário das
observações de Lukács, é possível também notar que em certos momentos Adorno
tensiona ao limite algumas das proposições lukácsianas, chegando mesmo a invertê-las,
como ocorre com a aproximação entre o ensaio e a obra de arte. Para Adorno, Lukács
teria cometido um engano ao definir o ensaio como forma artística. Embora reconheça
que o ensaio possui em comum com a arte a preocupação constante com o modo de
exposição e sublinhe que ele se afasta da ciência tradicional, na medida em que depende
49
Ibidem.
50
Ibidem.
32
da fantasia e da espontaneidade do ensaísta, Adorno não classifica o ensaio como uma
forma artística, mas o aproxima da filosofia, como é possível depreender do trecho a
seguir:
51
Adorno, “O ensaio como forma”, 18. Não ignoro aqui que a discussão que Adorno faz da forma ensaio
se dê em um contexto próprio, qual seja, o das consequências político-epistemológicas da crítica da razão
instrumental empreendida na Dialética do esclarecimento, enfrentadas na Dialética negativa. No entanto,
tomo a liberdade de recorrer ao texto sem adentrar nessa discussão, pois o mobilizo como um comentário
ao texto de Lukács. Além disso, esse contraste entre as ideias de Lukács e de Adorno sobre o ensaio não
visa estabelecer a correção de uma ou outra perspectiva, até porque as concordâncias entre os autores
superam em muito suas discordâncias. Mesmo quando Adorno desloca algumas das proposições de
Lukács, como quando ele aproxima o ensaio da filosofia, mais do que arte, sua abordagem permanece no
mesmo solo da de Lukács. Dito de outra maneira, Adorno persevera na trilha aberta por Lukács,
desenvolvendo-a e radicalizando-a, mas o tratamento concedido ao ensaio por ambos os autores parece
ser movido pelo mesmo espírito de reconhecer as ambiguidades constitutivas do gênero como fonte de
sua riqueza e profundidade.
33
criação, ainda que inspirada na vida. Ao invés de tentar responder definitivamente essa
questão, parece mais produtivo colocar a seguinte pergunta: não será essa uma
ambiguidade constitutiva do ensaio? O esforço fundamental no texto de Lukács não
parece ser tanto justificar a afirmação de que o ensaio é uma arte e sim desvendar a
forma própria do ensaio, sua especificidade diante de todas as outras formas literárias.
Nesse sentido, Lukács não identifica ensaio e arte, sem maiores distinções, e sim
procura pensar em seu estatuto específico, cuja peculiaridade justamente é a de
tangenciar as fronteiras da filosofia e da arte, estabelecendo uma ponte entre elas.
Fatos sempre há e sempre tudo está contido neles, mas cada época precisa de outros
gregos, de uma outra Idade Média e uma outra Renascença. Cada época criará para
si aqueles de que necessita e apenas os que a sucedem imediatamente pensam que os
sonhos dos pais tenham sido mentiras que precisam ser combatidas com suas novas
e próprias “verdades”. [...] Assim, as diferentes “concepções” de Renascença podem
conviver pacificamente, do mesmo modo que uma nova Fedra, ou um Siegfried ou
52
um Tristão de um novo poeta sempre deixa intocados os de seus antecessores .
52
Lukács, “Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”, 115.
34
modo, essa crise do ensaio estaria dada desde seu surgimento, com Platão, pois o ensaio
nasce da ruptura da imanência da vida, cujo marco inicial é o surgimento da filosofia e a
necessidade de se perguntar sobre um sentido tornado transcendente. Nesse período da
história grega, entretanto, as perguntas podiam ser feitas para a própria vida e Platão
encontrou na vida de Sócrates o meio para perguntar à vida sobre o destino.
A construção autorreflexiva do ensaio também foi notada por Adorno 54, embora
ele sublinhe que a soberania da criatividade do ensaísta deve ser relativizada, na medida
em que a própria subjetividade e a experiência individual que a sustenta são socialmente
mediadas:
53
Ibidem, 118.
54
Já que ele precisa “a todo instante refletir sobre si mesmo”. Adorno, “O ensaio como forma”, 44.
35
humanidade histórica; é um mero auto-engano da sociedade e da ideologia
individualistas conceber a experiência da humanidade como sendo mediada,
55
enquanto o imediato, por sua vez, seria a experiência própria a cada um .
Sempre equilibrado num fio tênue entre arte e ciência, entre a fantasia do sujeito
criador e a conformidade com o objeto, entre intuição e análise, o ensaio desafia as
tentativas de definição e explicação e insurge-se contra as limitações impostas pela
estrita divisão intelectual do trabalho. Situado em uma região de fronteira que o permite
superar a divisão intelectual do trabalho, pois enquanto gênero bastardo, de
autonomização tardia, o ensaio tem um pé na ciência, na moral e na arte. E, justamente
nesse seu caráter problemático, no fato de não se submeter à presunção que concebe a
divisão intelectual do trabalho em disciplinas isoladas como uma propriedade dos
objetos e não uma imposição a partir de fora, reside a força do gênero. Por não aceitar a
cisão entre conhecimento e forma, e nem o abismo entre sujeito e objeto do
conhecimento, mas justamente incorporar a tensão entre esses polos, é que, segundo
Lukács, o ensaio pode, “com tranquilidade e orgulho”, fazer frente “às pequenas
perfeições da exatidão científica e da frescura impressionista 58”. O ensaio não admite a
separação de forma e conteúdo, que Lukács equivale à separação entre arte e ciência;
ele é uma forma ambivalente e, por isso, da perspectiva da ciência e da arte, uma forma
problemática. É justamente essa natureza problemática, entretanto, que lhe permite ir
55
Ibidem, 26.
56
Ibidem, 37.
57
“A consciência da não-identidade entre modo de exposição e a coisa impõe à exposição um esforço
sem limites. Apenas nisso o ensaio é semelhante à arte; no resto, ele necessariamente se aproxima da
teoria, em razão dos conceitos que nele aparecem, trazendo de fora não só seus significados, mas também
seus referenciais teóricos”. Ibidem.
58
Lukács, “Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”, 120.
36
além da arte e da ciência, na medida em que formula questões que a obra de arte por si
só não consegue articular e que o cientista não ousa perguntar.
59
Ibidem, 121.
60
Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, The literary absolute: the theory of literature in German
romanticism, Intersections (Albany: State University of New York Press, 1988), 40.
37
Mais especificamente, o caráter descontínuo e processual do ensaio guarda
semelhanças com a concepção romântica do fragmento na medida em que este se
apresenta como uma forma essencialmente incompleta e por isso mesmo aberta e
infinita 61. Em consonância com a ideia romântica do fragmento, o ensaio não é
exatamente uma recusa da totalidade em favor da permanência no fragmentário, mas
uma maneira de levantar suspeitas quanto ao modo de acessar essa totalidade. Ou seja,
tal como a escolha do ensaio, o recurso ao fragmento se dá não exatamente por uma
inaptidão para a exposição sistemática, mas principalmente em virtude da
impossibilidade de tal tipo de exposição, fundamentada em um único princípio a partir
do qual o todo se desenvolve. Essa impossibilidade não significa para os românticos um
impedimento completo ao conhecimento, mas aponta para a necessidade de repensar a
tarefa do pensamento como uma atividade infinita, que nunca chega a seu termo. A
recusa do sistema fechado como modo de exposição resulta, portanto, do
reconhecimento de que o pensamento (e a realidade) não se manifesta de maneira linear
e livre de contradições, mas de modo sinuoso, oblíquo e contraditório. Quanto a esse
respeito, Adorno assinala a proximidade entre o ensaio e o fragmento romântico da
seguinte maneira:
61
É preciso ressaltar que não existe uma concepção ou mesmo uma prática homogênea do fragmento
dentro do movimento romântico. Novalis e Friedrich Schlegel, por exemplo, partilhavam de ideias
distintas a respeito dessa forma. Da mesma maneira, cumpre observar que nem todos os assim chamados
fragmentos produzidos pelos autores românticos foram deliberadamente concebidos para serem
publicados enquanto tais. Lacoue-Labarthe e Nancy, The literary absolute; ibidem, 41.
62
Adorno, “O ensaio como forma”, 34.
63
Ver, nesse sentido, o fragmento 22 da Athenaeum: “Um projeto é o germe subjetivo de um objeto em
devir. [...] O sentido para projetos que poderiam ser chamados de fragmentos do futuro é diferente do
sentido para projetos do passado somente pela direção, que é progressiva naquele, mas regressiva neste. O
38
Esse espírito parece impulsionar também o ensaio, que se esforça por não
hipostasiar a totalidade, nem, por outro lado, rejeitá-la, mas acessá-la a partir do parcial.
A via de acesso à verdade trilhada pelo ensaio, portanto, calca-se na recusa de esgotar
seu objeto, sustentada por sua vez na consciência de que o conhecimento é sempre
incompleto, de que a verdade constitui-se como um processo infinito e histórico. Por
isso o ensaio não é tanto a recusa da totalidade, mas o reconhecimento de que ela não
pode mais ser exposta de maneira sistemática, ou seja, a partir de uma estrutura
arquitetônica, construída a partir de um princípio ou um fundamento único. Ao
reconhecer-se a si mesmo enquanto forma menor, o ensaio, despretensioso, consegue
fazer frente ao sistema e sua pretensão de totalidade. Ao valorizar a formulação das
perguntas e os caminhos percorridos para respondê-las, mais do que algum tipo de
correção das respostas, o ensaio se revela o meio de expressão mais apto para lidar com
as contradições postas pela modernidade. Afinal, a realidade moderna não corresponde
mais à ordenação perfeita e transparente do sistema, mas está muito mais próxima da
opacidade e da contingência captadas pelo ensaio.
39
Capítulo 2 – Do mito helênico à era da perfeita pecaminosidade ou os dois mundos
da épica
As pedras nas entranhas da terra e os planetas nas esferas
celestes se preocupavam ainda com o destino do homem, ao contrário
dos dias de hoje, em que tanto no céu como na terra tudo se tornou
indiferente à sorte dos seres humanos, e em que nenhuma voz, venha
de onde vier, lhes dirige a palavra ou lhes obedece. Os planetas recém-
descobertos não desempenham mais nenhum papel no horóscopo, e
existem inúmeras pedras novas, todas medidas e pesadas e com seu
peso específico e sua densidade exatamente calculados, mas elas não
nos anunciam nada e não tem nenhuma utilidade para nós. O tempo já
passou em que elas conversavam com os homens.
Nikolai Leskov, “A alexandrita” (1884)
Esse trecho do conto de Leskov, não por acaso retomado por Benjamin em seu
ensaio “O narrador”, descreve uma época na qual o homem ainda podia se sentir em
harmonia com a natureza, os céus ainda ofereciam alguma orientação para o percurso do
homem e o mundo era, em suma, uma totalidade. Na época moderna, ao contrário, os
seres humanos viveriam suas vidas separados da natureza, alheios a quaisquer desígnios
superiores ou amparos celestes. O reino natural é agora tão somente um objeto a ser
conhecido – medido, pesado, calculado –, mas ele não possui nenhum significado mais
elevado, não fornece nenhuma orientação para a vida humana.
64
A caracterização do romance enquanto epopeia burguesa, embora tenha se celebrizado com Hegel, não
é inaugurada por ele, mas aparece já em Friedrich von Blackenburg em seu Versuch über den Roman
[Ensaio sobre o romance] (1774): “Considero o romance, o bom romance, como aquilo que, nos tempos
helênicos a epopeia era para os gregos”. Cf. Georg Lukács, A teoria do romance : um ensaio histórico-
filosófico sobre as formas da grande épica, trad. José Marcos Mariani de Macedo (São Paulo: Duas
Cidades/Editora 34, 2000), 55. (Nota do tradutor). A formulação de Hegel é a seguinte: “de uma maneira
inteiramente diferente se passam as coisas com o romance, a moderna epopeia burguesa. Aqui intervém
novamente, de um lado, de modo pleno, a riqueza e a variedade de interesses, de estados, de caracteres,
de relações de vida, o amplo pano de fundo de um mundo total, bem como a exposição épica de eventos.
O que falta, contudo, é o estado de mundo originariamente poético, do qual nasce a epopeia propriamente
dita. O romance, no moderno sentido, pressupõe uma efetividade já ordenada para a prosa, sobre cujo
terreno ele novamente recupera em seu circulo da poesia – tanto no que diz respeito à vitalidade dos
acontecimentos quanto no que se refere aos indivíduos e seu destino -, até onde é possível nesta
pressuposição, seu direito perdido”. Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Cursos de estetica: Volume IV (Sao
Paulo: EDUSP, 2004), 137.
40
epopeia corresponderia ao que ele denomina de “mundo fechado”, ao passo que o
romance seria a forma épica característica de uma “cultura problemática”, não unitária.
A primeira parte do ensaio, portanto, é em larga medida dedicada à exposição dos traços
mais determinantes desses dois universos e da relação que cada um deles mantém com a
epopeia e com o romance, respectivamente.
Ecoa no livro, nesse sentido, aquela oposição entre duas épocas: a antiguidade
harmoniosa, perfeita em si mesma e unitária, e a modernidade cindida que floresceu no
pensamento estético alemão no século XVIII. Quase um século após a Querelle des
anciens et des modernes 65, que se desenrolou na França em finais do século XVII, um
prolongamento desse debate em território germânico opôs certa ortodoxia estética
inspirada no neoclassicismo francês e os partidários de um pensamento que, se em
alguns casos ainda defendia valores clássicos para as artes, opunha-se, entretanto, à
imitação de modelos importados da França. Assim, de um lado colocavam-se os
partidários daquele neoclassicisimo de inspiração teórico-prática francesa, para o qual
Boileau 66 e Racine figuravam como as autoridades máximas, os exemplos a serem
seguidos pelos artistas alemães que, segundo essa perspectiva, não contavam com uma
tradição artística nacional digna de ser considerada canônica 67. De outro, a tentativa de
Baumgarten de fundar uma nova ciência estética (Aesthetica, 1750), o tratado de
Lessing sobre as diferenças entre as artes visuais e as poéticas (Laocoon, 1766) e os
programas de refundação do classicismo helênico de Winckelmann, Goethe e Schiller,
dão testemunho do processo de superação dessa dependência francesa e da fundação de
uma reflexão crítica alemã que, sustentada por conhecimentos históricos, busca em um
65
É no âmbito desse debate estético que surge pela primeira vez a consciência do presente como uma
época qualitativamente distinta da que o antecedeu, por oposição à ideia de um desenrolar do tempo como
continuidade homogênea. À ideia da modernidade como uma “nova época”, associa-se o problema da
fundamentação dessa época a partir de si mesma. O despontar dessa consciência histórica conduz ao
questionamento, no campo artístico, da antiga relação de dependência da modernidade frente à
antiguidade: a validez atemporal da arte clássica - antes tida como modelo a ser imitado pela arte de
épocas posteriores - é posta em xeque pela defesa da superioridade da arte moderna feita pelo partido dos
modernos, representados na Querelle por Charles Perrault. Jürgen Habermas, “A consciência de tempo da
modernidade e sua necessidade de autocertificação”, in O discurso filosófico sobre a modernidade (São
Paulo: Martins Fontes, 2002), 3–18. Sobre a Querelle cf. Marc Fumaroli, “Les abeilles et les araignées”,
in La Querelle des Anciens et des Modernes (Paris: Gallimard, 2001), 7–220; Jean-Robert Armogathe,
“Un ancienne querelle”, in La Querelle des Anciens et des Modernes (Paris: Gallimard, 2001), 801–49.
66
Na Querelle,Nicolas Boileau-Despréaux posicionava-se como defensor intransigente da arte clássica,
donde seu epíteto “legislador do Parnasso”.
67
Vale lembrar que a questão da ausência de uma tradição literária nacional estava conectada a ausência
uma unidade nacional alemã. Essa questão da “falta” estará no horizonte dos empreendimentos artísticos
alemães e afetará o curso de seu desenvolvimento. Cf. Terence James Reed e Malcolm Pasley, “The
Goethezeit and its aftermath”, in Germany, a companion to german studies, 2nd ed (New York; London:
Methuen, 1982), 499–558.
41
passado mais longínquo, isto é, na própria Grécia antiga, as bases para a arte alemã da
época.
O que importa para nós, contudo, não é tanto esse debate entre os partidários da
crítica de extração francesa e a busca pela autonomia dos artistas alemães, mas mais
especificamente o fato de ser no contexto dessa disputa que surge o interesse pelo
estudo aprofundado e, podemos mesmo dizer, propriamente histórico da arte grega. A
figura de Winckelmann aparece como um inaugurador desse processo, uma vez que ele
é uma espécie de descobridor da cultura grega. Descobridor porque, em seu Reflexões
sobre a imitação das obras gregas na pintura e na escultura (1755), procurou-se pela
primeira vez compreender a arte e a cultura gregas a partir da investigação de sua
gênese histórica, mobilizando fontes da própria cultura grega e não por intermédio da
cultura romana, como era o usual até então. Com Winckelmann, a arte grega passa a ser
remetida a seu contexto, sendo concebida como a manifestação cultural de um povo e,
nesse sentido, como expressão geográfica e historicamente situada. Mais do que isso, o
estudo de Winckelmann acaba por delinear os contornos do que viria a se tornar um
mito recorrente e de suma importância para a cultura alemã: o ideal de helenidade e da
perfeição artística clássica.
68
A imagem que Winckelmann constrói da Grécia a partir de seus estudos a respeito da arte antiga é de
uma cultura orgânica, coerente, um ideal não apenas estético, mas também moral, político e espiritual. A
partir da análise do conjunto estatutário do Laocoonte, Winckelmann formula a peculiaridade da arte
grega da seguinte maneira: “Enfim, o traço geral preponderante das obras-primas gregas é uma nobre
simplicidade e uma calma grandeza, tanto na postura quanto na expressão. Assim como a profundeza do
mar permanece tranquila, por mais tempestuosa que esteja a superfície, a expressão nas figuras dos gregos
mostra, em meio a todas as paixões, uma alma grande e comedida”. Johann Joachim Winckelmann,
Réflexions sur l’imitation des oeuvres grecques en peinture et en sculpture, Collection bilingue des
classiques étrangers (Paris: Aubier, 1954), 142. Essa caracterização aponta não apenas para atributos
estéticos da arte grega, mas também para um ideal de humanidade nela presente, uma vez que
Winckelmann enfatiza as qualidades morais do herói grego Laocoonte – sua compostura espiritual, sua
superioridade mesmo em face dos maiores desafios e turbulências. Além disso, há a valorização da
simplicidade como um atributo ético, mais do que simplesmente artístico: a arte grega é uma arte do
essencial, do universal, e não do ornamento e do rebuscado. Cf., nesse sentido, Hugh Barr Nisbet,
“Introduction”, in German aesthetic and literary criticism (Cambridge: Cambridge University Press,
1985); Pedro Süssekind, “A Grécia de Winckelmann”, Kriterion: Revista de Filosofia 49, no 117 (janeiro
de 2008): 67–77, doi:10.1590/S0100-512X2008000100004.
42
alma é da mesma essência que as estrelas; distinguem-se eles nitidamente, o
mundo e o eu, a luz e o fogo, porém jamais se tornarão para sempre alheios
69
um ao outro, pois o fogo é a alma de toda luz e de luz veste-se todo fogo .
69
Lukács, A teoria do romance, 25.
70
Ibidem, 26.
71
Ibidem.
43
determinadas pela razão. A cultura clássica é apresentada por Schlegel, à maneira de
Winckelmann, como um momento no qual a beleza crescia sem cuidado artificial, pois
era uma qualidade inata. As artes plásticas, por exemplo, não eram atividades
proveniente de uma capacidade aprendida dos gregos, mas simplesmente a manifestação
de sua natureza originária:
72
Friedrich von Schlegel, Sobre el estudio de la poesía griega (Torrejón de Ardoz: Akal, 1996), 97.
Todas as traduções são minhas, exceto quando indicado o contrario.
73
Pouco depois da redação do ensaio de Schlegel, Friedrich Schiller publica seu escrito Sobre a poesia
ingênua e sentimental, no qual a relação entre a naturalidade e a artificialidade na literatura também é um
tema central. De maneira bastante breve, poderíamos conceitualizar o “ingênuo” como a relação imediata
com a natureza, ao passo que o “sentimental” é a busca por retornar a essa condição após a entrada na
artificialidade; a atitude sentimental, portanto, também em Schiller, está pautada pela reflexão e pelo
intelecto. Embora nesse sentido as proposições de Schlegel e Schiller se aproximem, alguns comentadores
afirmam que enquanto a abordagem de Schlegel sustenta-se em um pensamento radicalmente histórico, o
mesmo não ocorreria em Schiller, cuja perspectiva se manteria em um terreno ahistórico, pois seus
conceitos de ingênuo e sentimental não diriam exatamente respeito a duas épocas históricas, antiguidade e
modernidade, mas a duas atitudes criativas. Prova disso seria o fato de que Schiller classifica alguns
poetas modernos como ingênuos; esse é o caso de Goethe, por exemplo. Paolo D’Angelo, A estética do
romantismo (Lisboa: Estampa, 1998), 45. Uma interpretação alternativa e mais matizada pode ser
encontrada em Peter Szondi, “Le naïf est le sentimental”, in Poésie et poétique de l’idéalisme allemand
(Paris: Editions de Minuit, 1975).
74
Schlegel, Sobre el estudio de la poesía griega, 77. Sobre o conceito de interessante na obra de Schlegel
ver Arlenice Almeida da Silva, “O interessante em Friedrich Schlegel”, Trans/Form/Ação 34 (2011): 75–
94.
44
Historicamente, a artificialidade da época moderna tem em Dante seu primeiro
representante. Numa análise da Divina comédia – amplamente retomada por Lukács na
Teoria do romance, vale ressaltar – Schlegel compara sua forma com a totalidade da
epopeia homérica. Mas o espírito moderno encontraria sua expressão mais cristalina na
obra de Shakespeare, especialmente em Hamlet. Nessa obra, não é o belo que determina
o todo: este antes serve ao interesse característico ou filosófico. Além disso, sua
representação não é objetiva, mas completamente maneirista. Mais importante ainda
para a caracterização do caráter cindido da cultura moderna é a figura do protagonista,
na medida em que este é o maior representante das qualidades próprias ao novo homem
da época:
45
primeira lei da arte, como última norma do valor de suas obras; mas não o
belo. O belo é tão pouco dominante na poesia moderna, que muitas das
melhores obras desta são evidentemente representações do feio; e ao fim,
haverá de confessar, mesmo que com desgosto, que há uma representação da
confusão em seu mais alto grau, do desespero em toda sua abundância, que
exige a mesma – se não uma mais alta – força criadora e sabedoria artística
75
que a representação da plenitude e da força em perfeita harmonia .
75
Schlegel, Sobre el estudio de la poesía griega, 60–61.
76
É o que sustentam Peter Szondi, Poética y filosofía de la historia (Madrid: Visor, 1992), 76., e
D’Angelo, A estética do romantismo, 43.
46
Se quisermos, assim podemos abordar aqui o segredo do helenismo, sua
perfeição que nos parece impensável e a sua estranheza intransponível para
nós: o grego conhece somente respostas, mas nenhuma pergunta, somente
soluções (mesmo que enigmáticas), mas nenhum enigma, somente formas,
77
mas nenhum caos .
Assim, põe-se a questão de como uma estrutura de sentido, uma vida verdadeira,
pode emergir desse caos que é a vida empírica. A resposta para Lukács está na forma:
“a forma é o maior juiz da vida. A formalização é uma força julgadora, uma ética; existe
um julgamento de valor em tudo a que foi dado forma. Todo tipo de formalização, toda
forma literária, é um degrau na hierarquia de possibilidades de vida 79”.
Ora, a forma, portanto, funciona como uma espécie de filtro que permite
configurar a vivência – que em si é um fluxo caótico de eventos – e conferir um sentido
a ela. Por meio da ordenação de um todo antes indistinto, o que por sua vez pressupõe
um julgamento ético do que é significativo e do que não é, a forma atribui um sentido à
desordem da vida. Mas, se o mundo da epopeia caracteriza-se pela harmonia orgânica
entre suas partes e pela presença de um sentido imanente à vida, a forma possui aí um
sentido particular: em uma situação de mundo na qual a experiência não é um todo
desordenado, a epopeia apenas traz à tona o sentido já presente no mundo; ela é somente
a expressão de um mundo já configurado previamente. No mundo homérico, portanto,
não existe uma dualidade entre vida e forma. Não por outro motivo, segundo Lukács,
nesse universo “saber é apenas alçar véus opacos; criar, apenas copiar essencialidades
visíveis e eternas; virtude, um conhecimento perfeito dos caminhos 80”. Em mundo
fechado, claramente ordenado, as formas apenas incorporam o sentido que lhes é
oferecido imediatamente, de maneira que elas mesmas possuem uma existência que
77
Lukács, A teoria do romance, 27.
78
Georg Lukács, “The metaphysics of tragedy”, in Soul and form, Columbia themes in philosophy, social
criticism, and the arts (New York: Columbia University Press, 2010), 176.
79
Ibidem, 197.
80
Lukács, A teoria do romance, 29.
47
poderíamos chamar de natural ou ao menos óbvia, sendo perfeitas e bem acabadas tal
como seu mundo.
81
Mas, como afirma o tradutor da Teoria do romance: “Há de ficar claro que, no mundo grego, a
substância está sempre presente, não importa em qual de seus estágios, seja épica, tragédia ou filosofia; o
que se altera é a relação com essa substância – da imanência à vida até a transcendência – de Homero à
Platão” Ibidem, 33. (Nota do tradutor).
82
Ibidem.
83
Ibidem, 31.
48
É impossível não pensar, nesse ponto, na tese weberiana da modernização
cultural como progressiva diferenciação, autonomização e institucionalização das
ordens de vida [Lebensordnungen], que passam a obedecer a uma racionalidade interna.
Esse processo é exposto com bastante clareza no famoso texto “Consideração
intermediária”, a respeito do qual Pierucci comenta:
84
Antônio Flávio Pierucci, O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber
(São Paulo: Ed. 34, 2003), 138.
85
Lukács, A teoria do romance, 31.
86
Ibidem, 36.
87
Macedo, “Posfácio do tradutor”, 183. Grifo do autor.
49
Assim, na modernidade, as formas clássicas, perfeitas e acabadas, perdem seu
apelo inevitável e a adesão imediata a elas dá lugar à criação de novas formas pela
subjetividade do artista. A arte torna-se, assim, “independente: ela não é mais uma
cópia, pois todos os modelos desapareceram; é uma totalidade criada, pois a unidade
natural das esferas metafísicas foi rompida para sempre 88”. Isso não significa que a arte
esteja, a partir de então, completamente desvinculada da realidade, mas que ela
constitui-se como uma esfera particular da atividade humana, como uma maneira
específica de conhecer e configurar o mundo, não mais submetida a fins religiosos. A
autonomia da arte, sua constituição enquanto uma área autônoma frente à moralidade
comunitária ou à verdade religiosa, é concebida, portanto, como o resultado de um
processo histórico-social que dissolveu o antigo sentido unitário do mundo.
88
Lukács, A teoria do romance, 34.
89
Lacoue-Labarthe e Nancy, em seu estudo fundamental sobre o romantismo, consideram necessário
estabelecer limites históricos claros para o movimento romântico. Não se trata, por um lado, de pensar o
romantismo enquanto um tipo de sensibilidade ou um estado de ânimo, aos quais o movimento acabou
por ser associado retrospectivamente, nem, por outro de tomá-lo como um bloco indistinto, haja visto que
sua orientação teórica e política sofreria mudanças consideráveis ao longo de seu desenvolvimento.
Grande parte das interpretações sobre o romantismo teria padecido de certa negligência em localizar o
movimento de modo preciso, tornando impossível diferenciar suas primeiras formulações daquelas de
tons claramente mais conservadores que acompanham a conversão de Schlegel ao catolicismo e sua
associação com Metternich. Como já foi dito, nos referimos ao movimento que se reúniu em Jena em
torno das revistas Lyceum e Athenäum. Lacoue-Labarthe e Nancy, The literary absolute, 7.
50
presente é sempre caracterizado como um tempo intermediário, provisório, um “não
mais” e um “ainda não”. Nesse sentido, o presente é uma espécie de antítese que se
estabelece em relação a uma tese, localizada no passado, e a expectativa de uma síntese
no futuro 90. A filosofia da história de Schlegel se estruturaria, de acordo com essa visão,
em três momentos: o passado harmônico da antiguidade, o presente cindido da
modernidade e a esperança de uma reconciliação no futuro 91.
Tanto em Sobre o estudo da poesia grega, quanto nos fragmentos das revistas
Lyceum (estes também chamados de Fragmentos críticos) e Athenäum (1798-1800), é
possível perceber que Schlegel procura estabelecer não somente a gênese da poesia
moderna, como se preocupa em desvendar o futuro de sua evolução, sua meta última.
Em Sobre o estudo da poesia grega a tendência da história é exposta da seguinte
maneira:
90
Peter Szondi, “Friedrich Schlegel et l’ironie romantique”, in Poésie et poétique de l’idéalisme allemand
(Paris: Les editions de Minuit, 1974), 96.
91
É possível, no entanto, acompanhando a literatura sobre o tema, discutir se essa síntese vislumbrada
pelo romantismo é uma expectativa concreta ou, antes, consiste em uma ideia regulativa, como algo que
não pode de fato ser completamente realizado, mas apenas infinitamente aproximado. Quando passarmos
à análise da teoria do romance do romantismo propriamente dita, esperamos levantar alguns elementos
que possam iluminar essa questão.
92
Schlegel, Sobre el estudio de la poesía griega, 81.
93
Ibidem, 85.
51
“entre o interessante e o belo, entre o amaneirado e o objetivo94”. Goethe inauguraria,
assim, uma nova etapa da cultura estética moderna, ao sintetizar elementos modernos e
objetividade clássica. A formação moderna, portanto, tenderia em seu desenvolvimento
à recuperação da objetividade própria à arte grega – que não é atingida pela imitação
dos modernos, como em Winckelmann, mas pela mescla entre a objetividade e as
características modernas. Mais especificamente, o que Schlegel afirma é que Goethe
consegue conferir uma espécie de objetividade mesmo aos traços subjetivos, como a
maneira. No entanto, é preciso atentar para o fato de que o Goethe de Weimar não
simplesmente reedita a arte antiga, mas sua obra dá mostras do surgimento de uma nova
objetividade, entendida como a síntese do moderno e do clássico, isto é, uma
objetividade mediada pelos elementos subjetivos próprios à arte moderna.
Isso porque a época moderna, para Schlegel, não é orgânica, mas química.
Comecemos pelo fragmento 216 da Athenäum, no qual Schlegel marca a importância
histórica de três eventos para a época moderna: “A Revolução Francesa, a doutrina-da-
ciência de Fichte e o Meister de Goethe são as maiores tendências da época 98”. A
Revolução Francesa significa para Schlegel o momento no qual a época moderna se
desvincula do passado e inicia uma nova era. De fato, o ímpeto para a revolução e
reinvenção constantes será a marca da modernidade em sua perspectiva: “O desejo
revolucionário de realizar o reino de Deus é o ponto elástico da formação progressiva e
94
Ibidem, 86.
95
Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 89. Fr.242
96
Ibidem, 71. Fr. 149.
97
Ibidem, 91. Fr. 248.
98
Ibidem, 83. Fr.216
52
o início da história moderna. Nela, o que não tem referência alguma ao reino de Deus é
apenas acessório 99”. Em um mundo no qual a ordenação divina desapareceu, permanece
ainda o desejo de tal ordem, mas esta deve ser instituída pela agência humana. Em outro
fragmento do Athenäum, Schlegel associa a Revolução Francesa ao caráter nacional
francês e a época moderna, que ele caracteriza como sendo uma época “química”;
químicos também seriam fenômenos modernos como o comércio, a crítica, a
sociabilidade, a história atual e o romance:
É natural que os franceses exerçam algum domínio nesta época. São uma nação
química, entre eles o sentido químico é ativado da maneira mais universal e, mesmo
na química moral, sempre fazem suas experiências em larga escala. Esta época é,
igualmente, uma época química. Revoluções não são movimentos universais
orgânicos, mas químicos. O grande comércio é a química da grande economia;
também há, certamente, uma alquimia do gênero. A natureza química do romance,
da crítica, do chiste [Witz], da sociabilidade, da retórica mais recente e da história até
100
hoje é por si mesma evidente .
99
Ibidem, 85. Fr.222
100
Ibidem, 135. Fr.426
101
Beda Allemann Ironie und Dichtung apud Rachel Lynn Schmidt, “Arabesques and the Modern Novel:
Friedrich Schlegel’s Interpretation of Don Quixote”, in Forms of modernity: Dom Quixote and modern
theories of the novel (Toronto ; Buffalo: University of Toronto Press, 2011), 53.
53
fundamental e de maneiras isoladas da época, sem poder fazer sequer a
silhueta do gigante. Pois como querer determinar, sem conhecimentos
prévios, se a época é efetivamente um indivíduo ou talvez apenas um ponto
de colisão de outras épocas: onde é que definitivamente começa e termina?
Como seria possível entender e pontuar corretamente o período atual do
mundo se não se pode ao menos antecipar o caráter geral do imediatamente
seguinte? Em analogia com esse pensamento, uma época orgânica se seguiria
à química, e então os habitantes da terra no próximo ciclo solar dificilmente
poderiam pensar tão bem de nós quanto nós mesmos, e considerariam muito
daquilo que agora é espantoso somente como exercícios úteis da juventude da
102
humanidade .
A época moderna seria, assim, uma etapa preparatória para uma época orgânica
futura, a qual em retrospecto evidenciaria os traços negativos do presente. Mas, ao
mesmo tempo, a época moderna é apreendida de maneira positiva, na medida em que
ela traz em si o germe para sua superação no futuro. Nesse sentido, o fragmento 139 da
Athenäum afirma que “do ponto de vista romântico, também as degenerações
excêntricas e monstruosas da poesia tem seu valor como materiais e exercícios
preparatórios da universalidade, desde que nelas haja alguma coisa, desde que sejam
originais 103”. E a tarefa da ciência da arte seria justamente desvendar “o ponto de vista e
as condições da identidade absoluta que existiu, existe ou existirá entre antigo e
moderno 104”.
54
se mostra em fluidas feições 106”. A epopeia, a poesia e o drama helênicos constituem a
própria poesia, ao passo que “tudo o que a isto se segue, até nossos dias, é sobra,
ressonância, uma única provação, aproximação e retorno para aquele mais alto olimpo
da poesia 107”.
através do caminho inverso da de outrora, que por toda parte surgiu como a
primeira floração da fantasia juvenil, diretamente unida e formada com o
mais vivo e mais próximo do mundo dos sentidos. A nova mitologia deverá,
ao contrário, ser elaborada a partir do mais profundo do espírito; terá de ser a
mais artificial de todas as obras de arte, pois deve abarcar todo o resto, um
novo leito e recipiente para a velha e eterna fonte primordial da poesia; ao
mesmo tempo, o poema infinito, que em si oculta o embrião de todos os
outros poemas. [...] Por que não deveria acontecer de novo o que antes já
aconteceu? De uma outra maneira, bem entendido. E por que não maior, mais
109
bela? .
106
Friedrich von Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos (São Paulo: Iluminuras, 1994),
34.
107
Ibidem, 37.
108
Ibidem, 51.
109
Ibidem, 51–2.
55
espírito moderno, pela interioridade e pela reflexão. Nesse sentido, os antigos não são
tanto um modelo quanto uma inspiração, que não pode concretizar-se mediante a
imitação pura e simples, mas que será realizada pelo aprofundamento de traços
modernos, em um processo que culminaria inclusive no aperfeiçoamento e superação do
passado. Segundo Schlegel (que nesse texto parodia as concepções de Schelling), a
revolução realizada pelo idealismo de Fichte daria indícios do surgimento dessa nova
unidade, porque colocaria no centro de sua filosofia a autodeterminação do espírito, o
poder individual de transformar o mundo. Entretanto, a transformação revolucionária
operada pelo idealismo, paradoxalmente, não instituiria uma nova ordem, mas reviveria
a clássica no futuro: “a Antiguidade encanecida tornar-se-á de novo viva, e o futuro
mais distante já se apresenta em presságios 110”. A nova mitologia seria, assim, a
reencenação do passado no presente, por meio do empenho humano, e o presente seria,
portanto, o ponto de contato transitório entre passado e futuro. A síntese futura entre o
clássico e o moderno consiste tanto em uma conservação, quanto uma superação.
Assim, a nova unidade esperada pelos românticos comportaria elementos clássicos e
modernos sob uma nova configuração. O futuro não seria um retorno ao passado
clássico, como se a história adotasse um movimento circular, mas a renovação da
cultura moderna por meio da subsunção do clássico em uma unidade. E o romance, “o
poema infinito, que em si oculta o embrião de todos os outros poemas”, também poderia
vir a efetivar essa síntese, como veremos no próximo capítulo.
110
Ibidem, 52.
56
Nesse sentido, é possível perceber que aquela oposição entre a naturalidade da
cultura grega e a artificialidade da cultura moderna, presentes em Schelgel, reaparece no
argumento de Lukács em uma perspectiva mais atenta aos seus fundamentos sociais.
Além da alusão à ideia weberiana da racionalização das ordens de vida, é possível
deslindar da contraposição entre os “dois mundos da épica”, mundo clássico e mundo
moderno, uma referência ao processo econômico e social de passagem de uma
organização comunitária da vida para uma estruturação propriamente social, cuja
consequência mais interessante para a economia do argumento de nosso autor é o
surgimento de uma nova relação entre o indivíduo e seu mundo. No mundo clássico,
estruturado por laços orgânicos de pertencimento, não há nenhuma distância entre o
homem e os valores de sua comunidade, que se lhes apresentam como algo natural e
incontornável, chancelados pela durabilidade e pela tradição. Rompido o sentido de
completude e unidade entre os homens e o mundo, antes assegurado pela magia, pela
natureza, pela tradição ou pela religião, a relação entre o homem e o mundo passa a ser
marcada pelo signo da cisão: a naturalidade anterior é suplantada pela mediação
reflexiva que se interpõe não somente entre o sujeito e o mundo, mas também entre o
sujeito e seus próprios atos. Se antes estes possuíam um sentido público, e sustentavam-
se em uma moralidade comunitária, no mundo moderno eles estão baseados em uma
motivação interna, orientam-se por uma ética individual.
111
“O círculo em que vivem metafisicamente os gregos é menor do que o nosso: eis por que jamais
seríamos capazes de nos imaginar nele com vida; ou melhor, o círculo cuja completude constitui a
essência transcendental de suas vidas rompeu-se para nós; não podemos mais respirar num mundo
fechado”. Lukács, A teoria do romance, 30.
57
uma instância tradicional ou divina, cabe à razão humana estabelecer sua própria
validade como o terreno da busca pela verdade. Por isso, se de um lado a liberdade
frente à tradição e aos dogmas religiosos conquistada pela Revolução Francesa
significou um avanço no sentido de uma maior autonomia individual, de outro, essa
mesma liberdade é fonte de inquietação, uma vez que a busca por um sentido do mundo
passa a ser uma incumbência individual: ao homem solitário, abandonado pelos deuses,
resta apenas orientar-se por sua própria razão, para a qual no entanto é impossível
garantir que não permaneça mera projeção subjetiva, sem relação com o mundo 112.
112
Como nota Andrew Bowie, o foco da filosofia kantiana na subjetividade está relacionado às mudanças
complexas e contraditórias trazidas pela modernidade: “a rápida expansão do capitalismo, a emergência
do individualismo moderno, o crescente sucesso do método científico em manipular a natureza para fins
humanos, o declínio das autoridades tradicional e teologicamente legitimadas, e a aparição,
conjuntamente com a estética enquanto um ramo da filosofia, da ‘autonomia estética’, a ideia de que
obras de arte envolvem regras produzidas livremente, que não se aplicam a nenhum outro objeto natural
ou produto humano”. Andrew Bowie, “Introduction”, in Aesthetics and subjectivity: from Kant to
Nietzsche (Manchester, UK ; New York: Manchester University Press, 2003), 2.
113
Lukács, A teoria do romance, 34.
58
somente uma esfera entre muitas, que ela tem, como pressupostos de sua
114
existência e conscientização, o esfacelamento e a insuficiência do mundo .
114
Ibidem, 36.
115
Ibidem, 28. Grifo meu.
59
do ensaio, sabemos ser no fundo o processo de consolidação da ordem burguesa e do
capitalismo.
Isso não significa que a perspectiva de Lukács seja trágica, no sentido de conceber
a fragmentação moderna como um conflito insuperável 116; antes, essa questão adquire
certa ambiguidade ao longo do livro, conforme atesta a segunda parte do ensaio, em
especial as análises sobre os romances de Goethe, Tolstoi e Dostoiévski, na qual a
possibilidade de algum tipo de nova cultura no futuro é aventada. O importante é que o
fato de sua abordagem estar ancorada na percepção de que a falta de um sentido unitário
para o mundo moderno decorre de um processo histórico-social tem como corolário a
recusa de uma solução exclusivamente estética para esse problema. O teor dessa
divergência de Lukács com o romantismo alemão é explicitado em um ensaio de A alma
e as formas intitulado “A filosofia romântica da vida”. Nesse texto, Lukács aborda o
romantismo de Iena e discute seu projeto de criar uma nova cultura, uma comunidade e
uma religião cujo centro e elemento motor seria a poesia.
116
Para Löwy, a especificidade do anticapitalismo romântico em sua versão dos anos 1880-1918, frente à
ideologia romântica do século XVIII era seu “espírito de resignação”. Os sociólogos alemães, dentre eles
Tönnies, Weber e Simmel, que compõem o que Löwy chama de tendência conservadora modernista (em
oposição à ortodoxia reacionária), reconheciam o desenvolvimento capitalista como um processo
inexorável. Desse modo, a oposição entre a Kultur, esfera que abrange valores éticos, estéticos e políticos,
um estilo de vida pessoal, um universo espiritual “orgânico”, “natural” e “interior”, tipicamente alemão, e
a Zivilisation, o progresso material, técnico-econômico, “exterior”, “mecânico”, “artificial”, de origem
anglo-saxã, se torna nesses autores um conflito trágico, em que pese a manutenção de certo tom
nostálgico quanto ao passado comunitário. O próprio Löwy, entretanto, chama a atenção para a posição
peculiar de Lukács quanto a essa problemática, pois sua recusa ao capitalismo seria muito mais extrema
do que a desses autores, já que estaria fundamentada menos em uma nostalgia pelo passado e mais em
uma crítica cultural do capitalismo. Segundo Márkus, em carta citada por Löwy, “Lukács nunca se
reconciliou, mesmo durante esse período (antes de 1918), com a visão trágica de mundo a que havia
chegado; a auto-satisfação e o contentamento mais ou menos cínico de Simmel nunca o caracterizaram;
ele sempre tentou – em vão – novos caminhos para abandonar esse trágico dualismo...Há uma
impossibilidade pessoal (crescente com os anos) em aceitar como definitivo o veredito non possumus”.
Löwy, A Evolução Política de Lukacs, 120–121.
60
vez mais alheia à vontade dos sujeitos. No entanto, apesar de perseverar em temas caros
à crítica cultural romântica, Lukács problematiza as soluções aventadas pelo
romantismo para superar a condição moderna. Seria mesmo possível poetizar
inteiramente o mundo, retornar a uma situação de harmonia na qual a vida e a essência
estariam completamente reconciliadas, sem que para isso fosse necessário algum grau
de renúncia, de limitação das expectativas frente à realidade?
Entretanto, “havia algo de doentio na coisa toda”, para usar citação recorrente que
funciona como uma espécie de mote do ensaio de Lukács. O problema é que a ideia de
poetizar o mundo, formulada pelos românticos, teria como contrapartida o ato de retirar-
se da vida, um refúgio na interioridade que levaria a uma passividade frente ao mundo
real. Essa postura, Lukács a reconhece como sendo um problema tipicamente alemão: a
via interior, a revolução do espírito, seria a única concebível em um país no qual as
condições objetivas não eram as mais favoráveis para que se pensasse seriamente em
uma revolução real. Em oposição à postura goetheana de ação no mundo, simbolizada
no romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, os românticos limitavam-se a
esfera do pensamento:
117
Georg Lukács, “On the romantic philosophy of life”, in Soul and form (New York: Columbia
University Press, 2010), 65.
61
homem, seu poeta, teria encontrado sua pátria, enquanto Goethe encontrava a
118
sua na vida presente .
A crítica de Lukács, isso deve ficar claro, não se dirige à centralidade conferida
pelo romantismo à arte, mas à falta de clareza quanto a seus limites. É lícito afirmar que
a arte continua sendo um lugar de verdade na Teoria do romance, uma vez que Lukács
elege como objeto de estudo justamente o romance, entendido como a forma mais
representativa da época moderna e, a partir dela, procura elaborar inclusive a crítica de
seu presente histórico. No próximo capítulo veremos em maior detalhe como essa
divergência de Lukács com o romantismo se expressa também em sua análise da forma
romance.
118
Ibidem, 64.
119
Ibidem, 67.
62
Seguindo os passos de Schlegel, a perspectiva adotada por Lukács na Teoria do
romance se distingue das abordagens empíricas dos gêneros, que partem da
consideração das obras existentes e que, a partir delas extraem determinados traços
definidores para então classificá-las. Ela se situa, antes, no plano especulativo e orienta-
se pela formulação dos conceitos de cada gênero, isto é, busca os princípios que
permitam caracterizá-los e distingui-los uns dos outros. Nesse sentido, se seguirmos o
esquema de Szondi, Lukács seria tributário daquela passagem das poéticas normativas
às especulativas, ocorrida ao longo do século XVIII. Herdeiras da Poética de
Aristóteles, da Ars Poética de Horácio e do escrito Sobre o sublime de Longino, as
estéticas do barroco e do Iluminismo alemão pregavam uma obediência estrita a
preceitos e regras eternamente válidos, coligados a partir da avaliação de obras
particulares consideradas como exemplares e, logo, tomadas como modelos atemporais.
Esse tipo de consideração sobre a arte e, em específico, sobre a literatura, parte de
questões relativas à prática artística; no caso da poesia, tem em vista a produção
literária e, nesse sentido, se detém sobre as técnicas e os procedimentos mais adequados
a serem adotados pelo autor, tendo em vista as características de cada gênero literário e
as sensações que estes devem suscitar.
A abordagem dos gêneros poéticos realizada por Lukács, portanto, pode ser
inserida naquela linhagem da poética dos gêneros que surge no bojo de um processo de
desenvolvimento, desde seu surgimento com Aristóteles e Platão até os sistemas da
identidade do idealismo alemão, em direção a uma filosofia dialética da história, que
une os sistemas formais e as transformações históricas. Por muito tempo antes disso, a
poética dos gêneros foi dominada por uma tradição que os concebia como formas
estanques e imunes à transformação histórica 120. As mudanças sociais só eram
relevantes na medida em que ofereciam novos conteúdos para os gêneros, mas estes não
eram afetados em suas formas, que permaneciam fixas 121. À poética cabia resguardar os
princípios formais de cada gênero e determinar quais conteúdos seriam adequados a
cada um dos gêneros consagrados.
120
Desde a Antiguidade tardia – na Ars grammatica de Diomedes, da segunda metade do século IV -
passando pela idade média e pelo renascimento – com Escalígero - essa vertente da poética foi
predominante. Cf. Peter Szondi, Poética y filosofía de la historia. 2 (Madrid: Visor, 2005), 30.
121
Cf. Peter Szondi, “Introdução - Estética histórica e poética dos gêneros”, in Teoria do drama moderno,
2a ed (São Paulo: Cosac Naify, 2011), 17–21.
63
A tal tradição opõe-se a poética dedutiva e histórica, linhagem consolidada pela
Estética de Hegel 122 e na qual se enquadra a poética desenvolvida por Lukács na Teoria
do romance. Nela, a história, antes fator lateral, é o fundamento constitutivo dos
gêneros, colocados em movimento. Com a reorientação rumo ao especulativo operada
pelas poéticas da “época de Goethe”, está dada também a possibilidade de
reconhecimento da dialética entre forma e conteúdo, antes concebidos dualisticamente,
pois a mudança histórica que afeta os conteúdos pode fazer com que estes entrem em
contradição com princípios de determinada forma. Assim, uma forma estabelecida é
passível de ser posta em questão pelos conteúdos os quais busca assimilar, mas que já
são incompatíveis com seus pressupostos.
122
O ápice dessa tradição é a Estética de Hegel, síntese e superação da crise das poéticas kantianas e não
históricas, mediada pelos conhecimentos do classicismo e do historicismo. Neles, fica evidente como a
história cada vez mais se impõe aos sistemas formais, dinamizando-os até que, em Hegel, sistema e
história se mesclam a tal ponto que o sistema passa a ser a exposição do próprio processo histórico.
123
Szondi, “Introdução - Estética histórica e poética dos gêneros”, 20. Para Hegel, a arte deve expressar
de maneira sensível os interesses mais íntimos do homem, portanto ela não pode ser completamente
arbitrária quanto a seu conteúdo; este não é produto da imaginação desenfreada do artista, mas está
determinado pelos interesses do espírito. A mesma determinação vale para a Forma: esta não está
entregue ao mero acaso, pois “nem toda configuração é capaz de ser a expressão e a exposição daqueles
interesses, de recebê-los e de reproduzi-los, e sim a Forma é determinada por um conteúdo determinado,
ao qual ela se adapta”. Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, Curso de estética: o sistema das artes (São
Paulo (SP): EDUSP, 1999), 37. Ou ainda, sobre a unidade dialética entre forma e conteúdo, Hegel afirma
que a obra de arte consiste “num elemento interior, num conteúdo, e num elemento exterior que significa
esse conteúdo. O interior aparece no que é exterior e se dá a conhecer através do mesmo, ao passo que o
exterior aponta por si próprio para o que é interior”. Ibidem, 43. Nesse ponto, a estética hegeliana opõe-se
radicalmente à estética romântica de Friederich Schlegel na qual o papel da imaginação individual do
artista é preponderante. Peter Szondi, “La teoria hegeliana de la poesia”, in Poética y filosofía de la
historia I (Madrid: Visor, 1992), 170.
64
romance 124. Assim, se por um lado o conceito de forma em Lukács contém uma
dimensão talvez antropológica, na medida em que a forma, em sentido forte, responde a
uma necessidade de organizar e conferir um sentido a um conjunto caótico de elementos
da vida, por outro é evidente que as formas estão sujeitas à transformações históricas, na
medida em que estas alterem a relação entre indivíduo e mundo e imponham novas
exigências às formas. Isso quer dizer que as formas não somente estão inseridas em um
processo histórico, mas também carregam em si mesmas, isto é, em seus elementos
internos, uma historicidade 125.
124
Em um fragmento de seu trabalho sobre o drama moderno, Lukács aponta os limites da crítica
sociológica tradicional da literatura: “O defeito maior da crítica sociológica da arte consiste na sua busca
e análise dos conteúdos das criações artísticas com o objetivo de estabelecer uma relação direta entre eles
e determinadas condições econômicas. O verdadeiramente social da literatura é a forma”. Georg Lukács,
“Reflexões sobre a sociologia da literatura”, in Georg Lukács, org. José Paulo Netto, Sociologia 20 (São
Paulo: Ática, 1992), 174.
125
A esse respeito Judith Butler afirma: “com isso eu quero dizer apenas que a forma não está na história,
embutida lá, como se fossem duas coisas separadas, a última formando um contexto exterior para a
primeira. O contexto entra na forma e torna-se parte do próprio processo de dar forma. É isso que
significa afirmar, como eu acredito que Lukács nos ensinou a afirmar, que a forma tem uma
historicidade”. Judith Butler, “Introduction”, in Soul and form (New York: Columbia University Press,
2010), 7.
126
Lukács, A teoria do romance, 36.
65
caso da épica, na qual a epopeia dá lugar ao romance 127. Embora Lukács não tenha tido
acesso a esse fragmento em específico (publicado postumamente), tal concepção
schlegeliana informa a exposição do desenvolvimento dos gêneros na modernidade
apresentada na Teoria do romance.
A reviravolta histórica pode, então, segundo Lukács, afetar apenas o objeto que
determinado gênero trata de configurar, implicando em alterações formais importantes
que, no entanto, deixam intocado o princípio fundamental de configuração. Ou ela pode
implicar em uma mudança mais fundamental no princípio estilístico do gênero, isto é,
“na relação última da forma com sua legitimação transcendental da existência 128”. Este
é o caso da épica: em virtude da perda da imanência do sentido à vida, a epopeia teve
sua continuidade bloqueada, dando lugar a uma forma completamente nova, o romance,
ao passo que o drama, que lida com a essência, pode sobreviver sem alterações
fundamentais uma vez que “a essência afastada da vida e estranha à vida é capaz de
coroar-se com a própria existência 129”. A diferença entre romance e epopeia, portanto,
não reside em uma mudança na mentalidade criadora dos artistas, mas antes, em uma
injunção histórico-filosófica que determina que a mesma mentalidade oriente-se por um
novo objetivo. Entre as formas gregas e as modernas, portanto, tem lugar uma dialética
entre continuidade e ruptura que varia conforme o gênero considerado: a tragédia passa
por uma alteração relativa, que não fere os princípios fundamentais de seu gênero, da
qual o drama moderno é produto – ou seja, trata-se de um gênero “válido sem
restrição”, nos termos de Schlegel – ao passo que o romance é uma forma inteiramente
nova – inteiramente moderna – que, embora se inscreva na linhagem épica e tenha na
epopeia um antepassado, não coincide mais formalmente com seu arquétipo.
Mas no quê exatamente consistem essas mudanças? Quer dizer, quando se fala em
transformação dos gêneros literários ao longo da história, o que se pretende dizer? Um
aspecto fundamental do desenvolvimento histórico dos gêneros é que na modernidade
eles deixam de aparecer como gêneros puros e passam a manifestarem-se como uma
mistura. Esse tema da mistura dos gêneros na modernidade esteve no centro das
preocupações teóricas de Schlegel e teve um papel importante em suas reflexões sobre o
127
Peter Szondi, “La théorie des genres poétiques chez Friedrich Schlegel. Essai d’une reconstruction sur
la base des fragments posthumes”, in Poésie et poétique de l’idéalisme allemand (Paris: Les editions de
Minuit, 1975), 122.
128
Lukács, A teoria do romance, 36.
129
Ibidem, 39.
66
romance. Se para ele o romance é a forma mais característica da época moderna, isso se
deve ao fato de que em Schlegel ele deixa de ser concebido como a manifestação de um
gênero dentre outros, mas passa a ser o gênero que abrange os outros em si mesmo – um
gênero misto, mas também o gênero dos gêneros, o gênero único da modernidade. Para
discutir o romance, portanto, é preciso discutir a própria validade da divisão da poesia
moderna em gêneros com limites rigidamente definidos, tal qual a divisão tradicional
entre poesia épica, poesia lírica e poesia dramática. Essa mudança exige, para Schlegel,
uma nova teoria dos gêneros poéticos, fundamentada no reconhecimento de sua
historicidade. Como vimos, em Sobre o estudo da poesia grega, Schlegel já distinguia a
poesia clássica, natural, da poesia moderna, artificial, a partir da ausência de um
princípio unificador nesta última, que por isso é marcada pela artificialidade própria à
reflexão, pela presença da individualidade do artista. Por isso, segundo Schlegel a
divisão das obras literárias clássicas em gêneros faz sentido, na medida em que elas
compõem, segundo seu gênero, uma massa uniforme, ao passo que as obras modernas
apresentam-se, sobretudo, como individualidades 130.
Isso significa que Schlegel tem que ir além dos debates acerca da delimitação dos
gêneros poéticos e colocar em questão as condições de possibilidade do próprio
conceito de gênero1. O fragmento 62 do Lyceum expressa de maneira sintética essa
reorientação proposta por Schlegel: “já se tem muitas teorias dos gêneros poéticos. Por
que não se tem ainda nenhum conceito de gênero poético? Então teríamos talvez de nos
contentar com uma única teoria dos gêneros poéticos1”. Ora, se na modernidade cada
obra é uma combinação individual das formas naturais, dos antigos gêneros clássicos, a
ponto de não ser mais possível falar nem em um desenvolvimento orgânico dos gêneros,
nem em uma periodicidade filosófica claramente delimitada dos mesmos, haveria ainda
algum sentido no conceito de “gênero” nesse contexto? Em Sobre el estudio de la
poesia grega, a “mescla antinatural de gêneros puros 131” ainda era vista como uma
monstruosidade estética, mas nos fragmentos essa percepção de Schlegel se transforma
e ele passa a exigir uma teoria dos gêneros poéticos que dê conta dessa mudança que
130
Cf., entre outras passagens: “A simples homogeneidade de todo o conjunto da poesia grega contrasta
muito chamativamente com o multicolor e a mescla heterogênea da poesia moderna. [...] Essa
homogeneidade pode ser percebida não só em todo o conjunto, mas também nas classes maiores e
menores, coexistentes ou sucessivas, nas quais se divide o todo”. Schlegel, Sobre el estudio de la poesía
griega, 115–116. Sobre a mistura dos gêneros e a preponderância do individual na poesia moderna: “Mas
ainda mais desafortunados são seus experimentos alquímicos de separar e unir arbitrariamente as artes
originárias e os tipos puros de arte”. Ibidem, 75.
131
Schlegel, Sobre el estudio de la poesía griega, 75.
67
pauta o desenvolvimento da literatura moderna, pois “em sua rigorosa pureza, todos os
gêneros poéticos clássicos são agora ridículos 132”. A fluidez dos gêneros, o
reconhecimento de sua mistura na modernidade, não significa, no entanto, que eles
tenham se dissolvido em um todo indistinto. Isto é, mesmo na época moderna,
continuam a existir o gênero épico, lírico e dramático, ainda que eles não coincidam
com seus modelos gregos, como postulavam os classicistas.
Sendo assim, o próximo passo de Lukács é expor como para o gênero dramático
essa mistura, isto é, a entrada de elementos épicos e líricos ocasiona um deslocamento
do problema trágico sem, contudo, afetar seus princípios fundamentais, ao passo que
para a épica essa alteração é mais radical e implica no surgimento de uma nova forma, o
romance. Note-se que essa distinção fundamental para a compreensão do romance
enquanto forma épica moderna retoma aquela estabelecida por Schlegel entre formas
válidas atemporalmente e formas que pertencem a um determinado momento histórico.
132
Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 30. Fr. 60 do Lyceum.
133
Lukács, A teoria do romance, 38.
68
não obstante encontrar em seu apriorismo formal um mundo talvez
problemático, mas ainda assim capaz de tudo conter e fechado em si mesmo.
Para a grande épica isso é impossível. Para ela o dado presente do mundo é
um princípio último; ela é empírica em seu fundamento transcendental
decisivo e que tudo determina; ela pode às vezes acelerar a vida, pode
conduzir algo oculto ou estiolado a um fim utópico que lhe é imanente, mas
jamais poderá, a partir da forma, superar a amplitude e a profundidade, a
perfeição e a sensibilidade, a riqueza e a ordem da vida historicamente
134
dada .
Diferentemente dos poetas épicos de outrora, que podiam ser simples narradores
de acontecimentos e expor a transcendência que então era imanente à vida, na
modernidade toda épica que buscar um sentido imanente “está fadada ao fracasso, pois
terá, subjetiva ou objetivamente, de ir além da empiria, e portanto de transcender-se no
lírico ou no dramático. E essa transcendência jamais será frutífera para a épica 135”. Não
que o drama possa afastar-se da vida, pelo contrário, pois enquanto forma de
configuração deve necessariamente lidar com o real e a partir dele urdir uma totalidade
de sentido. O ponto é que as leis internas de cada gênero funcionam como uma espécie
de princípio de seleção que já informam de que maneira a realidade será incorporada e
configurada.
134
Ibidem, 44.
135
Ibidem.
136
Uma passagem da Evolução histórica do drama moderno é bastante elucidativa das diferenças formais
entre o drama e a épica: “O mundo do drama significa todo o mundo da vida, mas como suas
possibilidades de conteúdo não permitem que haja mais do que algumas aventuras da vida de algumas
pessoas, sua universalidade não pode ser de conteúdo, como a da épica (epopeia, romance), que
representa seu próprio universo universalmente e não possui limites em seus meios de exprimir a
incomensurabilidade [...]. Ante a universalidade de conteúdo da épica, o drama é intensivo [...]”. Georg
Lukács, Entwicklungsgeschichte des modernen Dramas (Darmstadt/Neuwied: Hermann Luchterhand,
1981), 27. apud Macedo, “Posfácio do tradutor”, 199.
69
ponto e o aprofunda em sua essência, enquanto a épica procedesse num sentido
horizontal, pois ela busca configurar a vida em toda sua extensão, busca construir um
mosaico a partir da abundância de situações da vida. Por sua concisão, a totalidade
urdida pelo drama é formal e para que ela seja bem realizada, deve filtrar a riqueza e o
excesso de detalhes, extraindo o essencial da realidade, isto é, as correlações que a
estruturam, de modo que a realidade se apresente no encadeamento dos eventos. No
drama, os elementos básicos da realidade se apresentam de modo bem concatenado:
cada situação vincula-se estreitamente à anterior e à seguinte e cada mínima parte
relaciona-se intimamente com todas as outras, sendo absolutamente necessária para a
configuração do todo.
137
Lukács, Entwicklungsgeschichte des modernen Dramas. apud Macedo, “Posfácio do tradutor”, 202.
138
De modo geral, todo o empreendimento crítico da correspondência Schiller-Goethe procura elucidar
que tipo de tratamento literário, épico ou dramático, determinada matéria exigiria, de modo a garantir a
qualidade das futuras empreitadas artísticas dos autores. A comparação formal entre o drama e a épica é
debatida principalmente nas cartas trocadas em abril e dezembro de 1797 e dá origem ao ensaio “Sobre a
literatura épica e dramática” escrito em conjunto pelos dois autores. Johann Wolfgang von Goethe,
Correspondência (1794-1803) entre Johann Wolfgang Goethe e Friedrich Schiller (São Paulo: Hedra,
2010).
70
gênero. Se em seu conteúdo o drama deve ser a apresentação da vida de uma pessoa, ele
deve proceder de modo a sintetizá-la e concentrá-la em seu conflito mais central. Esse
princípio de estilização do gênero dramático situa-o em uma instância mais rarefeita, na
medida em que não precisa se curvar às minúcias nem abarcar a realidade em toda sua
extensão, tornando-o menos suscetível à ação da história. Isso não significa que o drama
não sofra transformações ao longo da história, afinal de contas quando não tomou o
caminho do drama do classicismo, na qual a vida empírica “é banida de cena”, ele se
tornou burguês, histórico, individualista. Também do ponto de vista formal o drama se
alterou, algo que Lukács menciona ao apontar que a oposição entre vida empírica e
essencial, que antes era um a priori formativo do drama, passa a se inserir no próprio
processo dramático. Assim, por exemplo, o herói torna-se problemático, pois precisa
percorrer, dentro da ação dramática, o caminho que lhe permite vislumbrar sua essência,
isto é, descobrir-se como herói e elevar-se acima do meramente humano 139.
Note-se que, assim, a exiguidade temporal própria ao drama vai sendo solapada
e ele se aproxima da extensão característica das formas épicas e, ao mesmo tempo, o
caráter problemático do herói tem como resultado necessário uma intensificação de sua
solidão lírica: trata-se, portanto, da entrada de elementos épicos e líricos no seio do
drama. A despeito dessas transformações, reduzindo uma vida ao que ela tem de mais
essencial, restringindo os elementos com os quais trabalha, evitando qualquer apego ao
ornamental, atendo-se ao seu princípio de estilização originário, a causalidade, a forma
dramática encontra-se mais protegida da ação do tempo.
Enquanto no drama a totalidade é uma lei intrínseca à forma, a forma épica, cujo
objeto é a vida, não implica necessariamente em uma totalidade:
Por isso algumas formas épicas, como a novela e o idílio, por exemplo, tem por
objeto não a totalidade da vida, mas um recorte parcial, um fragmento da existência que
possa ter vida própria, isto é, que possa expressar algum sentido. Essa peculiaridade
139
Lukács, A teoria do romance, 42.
140
Ibidem, 47.
71
formal explicita nas formas épicas menores a presença de um sujeito configurador, isto
é, são formas narrativas, diferentemente do drama, onde tudo se passa como se os
acontecimentos estivessem ocorrendo pela primeira vez 141. Trata-se de um sujeito
configurador muito mais autossuficiente do que o da grande épica, pois nesta a
exigência de configurar a vida de maneira extensiva faz com que o narrador tenha que
se curvar à multiplicidade de acontecimentos e manifestações da vida, ao passo que o
sujeito das formas épicas menores pode selecionar apenas um fragmento que ele
considere passível de refletir a vida em sua totalidade. Essas formas épicas modernas,
portanto, trazem consigo o traço explícito da subjetividade isolada e são, por isso,
marcadamente líricas.
É preciso ressaltar que, para Lukács, esse elemento lírico não equivale a uma
suposta arbitrariedade de um eu absoluto que pode se desvencilhar completamente das
amarras de seu objeto ou dissolvê-lo em sensações e estados de ânimo subjetivos, como
na pura lírica, mas consiste, antes, no meio para a consecução da forma, sendo, por isso,
“a unidade épica última 143”. Diante da perda da totalidade da vida, a acomodação das
formas épicas menores se realiza por meio da exposição de um fragmento que
“cristalize a estranha e profunda experiência viva de um homem num destino
rigidamente objetivado e formado”, mas é sempre uma seleção subjetiva, que “arranca
um pedaço da imensa infinidade dos sucessos do mundo e empresta-lhe uma vida
141
Tal observação se aproxima daquelas feitas por Goethe e Schiller em sua discussão epistolar,
principalmente a distinção essencial formulada pelos dois e exposta no ensaio Sobre literatura épica e
dramática: “o autor épico expõe os acontecimentos como inteiramente passados, e o dramático os
apresenta como inteiramente presentes”. A exposição épica manifesta-se pela narração de algo já
ocorrido, ao passo que a apresentação dramática contém um esforço de suprimir-se a si mesma enquanto
ato expositivo, na medida em que não conta algo, mas apresenta um acontecimento como se este estivesse
se desenrolando pela primeira vez naquele instante. Há no drama, portanto, a tentativa de superar a
mediação estética, expressa no gênero épico pelo recurso à narração. A épica é narrada, ao passo que o
drama é, simplesmente, posto. “Sobre literatura épica e dramática” in Goethe, Correspondência (1794-
1803) entre Johann Wolfgang Goethe e Friedrich Schiller, 214.
142
Lukács, A teoria do romance, 49.
143
Ibidem. Na lírica, é como se o universo interior conquistasse o universo exterior, destruindo-o,
reordenando-o, em suma, recriando-o a partir de dentro. Já nas formas lírico-épicas os acontecimentos
exteriores são assimilados a partir de um foco subjetivo, mas a distância entre sujeito e objeto é mantida.
Macedo, “Posfácio do tradutor”, 217.
72
autônoma” 144 e que, no entanto, permite que o todo do qual esse fragmento foi retirado
esteja nele refletido, não extensivamente, mas como sensação e pensamento dos
personagens. A soberania do artista para criar, configurar e delimitar seu objeto é “a
lírica das formas épicas sem totalidade 145”. Está marcada, assim, a entrada da tendência
lírica no seio da épica, mas esta, no entanto, deve equilibrar-se entre “o sujeito que
postula e objeto por ele destacado e salientado 146”, pois do contrário a tendência seria a
caída completa no lírico e a desintegração da épica.
144
Lukács, A teoria do romance, 48.
145
Ibidem, 49.
146
Ibidem.
147
Ibidem, 50.
73
Enquanto a novela opera pela redução de uma vida ao seu conflito mais essencial,
selecionando as relações e eventos a serem expostos a partir de sua absoluta necessidade
para a configuração, o romance caracteriza-se pela extensão de seu mundo. Nele, a vida
aparece em toda sua riqueza e detalhes, pois nada é supérfluo a sua meta. Vem daí,
aliás, a capacidade de experimentalismo, a multiplicidade de pontos de vista e de
enredos secundários, a grande adaptabilidade, o espraiamento de seus limites, enfim, a
capacidade de expor, de maneira simultânea e conjunta, tanto a interioridade quanto o
mundo exterior.
148
Ibidem, 52.
74
segundo sua visão particular só pode distanciar-se da totalidade: “essa subjetividade a
tudo quer dar forma, e justamente por isso consegue espelhar apenas um recorte 149”.
149
Ibidem.
75
Capítulo 3 – O romance é o mundo moderno
Pode-se imaginar o romance sem o mundo moderno? O
romance é o mundo moderno; não apenas não poderia
existir sem este, como a onda sem o mar, mas por alguns
aspectos identifica-se com este, é a mutável expressão dele,
como o olhar e o contorno da boca são a expressão de um
rosto 150.
O próprio Lukács nota como essa foi uma percepção acertada e uma importante
contribuição do romantismo de Jena:
150
Claudio Magris, “O romance é concebível sem o mundo moderno?”, in A cultura do romance (São
Paulo: Cosac Naify, 2009), 1016.
151
Uma exceção seria o romance bizantino, mas este era normalmente considerado inferior à épica e a
lírica em verso da Grécia e da Roma antigas. Schmidt, “Forms of modernity”, 2011, 49.
152
Lukács, A teoria do romance, 37.
153
Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, 67.
76
prevalece certa ambiguidade na utilização desses dois conceitos e também de outros que
compõem a mesma constelação, como o de “poesia romântica”, o de “romanesco”, o de
“poesia progressiva”, entre outros. De fato, em seus textos, Schlegel utiliza esses termos
de maneira variada: se em alguns momentos eles parecem se tratar quase de sinônimos,
em outros há uma escolha deliberada por um ou outro conceito, o que parece assinalar
com precisão uma diferença – sempre sutil – entre eles. Isso evidencia que o
esclarecimento preciso dos significados dos conceitos de “romance” [Roman] e de
“romântico” [Romantische], bem como da relação entre eles, está longe de ser óbvia.
Como o próprio Friedrich Schlegel certa vez afirmou em uma carta a seu irmão August,
só a ideia de poesia romântica exigiria 125 páginas para ser adequadamente exposta 154.
Esta turbidez dos conceitos, aliás, deu ensejo a uma série de interpretações a
respeito das relações e dos significados desses conceitos e pode-se mesmo dizer que a
partir dessa questão se constitui um dos debates clássicos da literatura sobre o primeiro
romantismo. De maneira simplificada, é possível dizer que o cerne da questão foi
estabelecer se por “poesia romântica” procurava-se designar o romance enquanto forma
específica, o romance em prosa moderno, portanto, ou se antes, a referência era mais
ampla e tinha como base a literatura do início da época moderna, expressa em obras tão
díspares entre si no que diz respeito ao gênero literário quanto as de Dante, Cervantes e
Shakespeare. O que essa discussão visava estabelecer era se a valorização do romance
pelo romantismo tinha como foco o romance moderno – cujo ápice seria Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe – ou se, antes, essa valorização recaia em
obras da época medieval e do início da época moderna, que não se limitavam
necessariamente à narração em prosa 155.
154
Carta de Friedrich a August W. Schlegel, primeiro de dezembro de 1797, KA XXIV, 53 apud
Frederick Beiser, “The meaning of ‘Romantic Poetry’”, in The romantic imperative (Cambridge, Mass.;
London: Harvard University Press, 2006), 7.
155
De um lado, Rudolf Haym em seu Die romantische Schule (1870), defendia que “poesia romântica”
era apenas maneira de se referir ao romance e o tipo de literatura que ele inaugura. Para sustentar sua
posição, Haym mostra as semelhanças entre o ideal de poesia romântica exposto no fragmento 116 da
Athenäum e as características atribuídas ao romance de Goethe na resenha que Schlegel faz ao Meister de
Goethe. De outro lado, Lovejoy, em um famoso artigo de 1916, contrapôs-se veementemente a essa
interpretação, já que considerava o termo “romântico” como sendo referido não ao romance moderno, tal
como supunha Haym, mas aos autores da transição da época medieval para a época moderna, tais como
Dante, Cervantes e Shakespeare, autores que não escreviam romances no sentido moderno do termo.
Cf.Hans Eichner, “Friedrich Schlegel’s Theory of Romantic Poetry”, PMLA 71, no 5 (1 de dezembro de
1956): 1018–41, doi:10.2307/460525.
77
quando é mobilizado para caracterizar a arte da época moderna em contraposição à arte
da época clássica. No entanto, embora o romântico esteja largamente associado à
modernidade, em alguns momentos sua utilização aponta para o fato de que o romântico
e o moderno não são equivalentes 156. Na “Carta sobre o romance”, Schlegel estabelece
essa distinção por meio do confronto entre Emilia Galotti, drama burguês de Lessing,
que seria extremamente moderno, mas nada romântico, e a obra de Shakespeare, esta
sim verdadeiramente romântica. Se o simples fato de uma obra ter sido produzida na
época moderna não garante que ela seja romântica, “romântico”, portanto, não é apenas
uma designação cronológica, mas diz respeito a certo ideal artístico, cujas primeiras
manifestações Schlegel localiza, de fato, no início da era moderna:
156
“Estabeleci um parâmetro preciso da oposição entre antigos e românticos. Peço a você, entretanto, que
não suponha daí que o romântico e o moderno me sejam completamente equivalentes”. Schlegel,
Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, 66.
157
Ibidem, 67.
158
Ibidem, 65.
78
figuram também Ariosto, Boccaccio, Boiardo, Guarini, Petrarca, Pulci e Tasso 159, cujas
obras Schlegel denomina “poesia romântica”. Por esta ideia, Schlegel procura marcar a
combinação entre diferentes elementos presentes nas obras: o elemento fantástico, o
elemento mímico e o elemento sentimental. O fantástico diz respeito à fantasia, ao voo
livre da imaginação, uma característica que já no Sobre o estudo da poesia grega,
Schlegel via como predominante na poesia moderna. O mímico associa-se à propriedade
de representar o mundo, de ser um “espelho” da vida 160. Já o conceito de sentimental,
conforme exposto na Conversa sobre a poesia é “o que nos agrada, onde o sentimento
domina, mas aquele sentimento espiritual, não o que provém dos sentidos. A fonte e
alma de todas as emoções é o amor, e na poesia romântica é preciso que esteja pairando,
quase invisível e por toda parte, o espírito do amor 161”. Toda a poesia, portanto, deveria
representar a realidade, mas também criá-la por meio do uso livre da imaginação, a
partir do sentimento.
Voltando à “Carta sobre o romance”, nela Schlegel pondera que após esse feliz
período, no qual a literatura do início da época moderna teria se aproximado da beleza
da antiga, a literatura teria atravessado uma fase de decadência. Nesse sentido, Schlegel
critica uma série de obras do século XVIII em diante, “de Fielding a La Fontaine 162”
que seriam obras puramente sentimentais – sentimental entendido aí de maneira
pejorativa e corriqueira como o que comove de maneira trivial, sem profundidade. A
crítica de Schlegel aos romances modernos se dirige, ademais, à ausência de fantasia e
ao prosaísmo que neles predomina; essa preponderância de um realismo bruto e sem
fantasia faz dos romances de Jonathan Swift, Fielding e Richardson obras dominadas
pela trivialidade e por um humor tolo, pouco espirituoso, em nada parecido com a sátira
de Cervantes, que Schlegel tanto valoriza. Por isso, ele propõe que a literatura moderna
torne a beber de sua fonte original, das obras dos “verdadeiramente românticos”, ou
seja, dos “velhos modernos”.
159
Eichner, “Friedrich Schlegel’s Theory of Romantic Poetry”, 1022.
160
Esse termo, usado pelo próprio Schlegel, não deve ser confundido com o sentido a ele atribuído
posteriormente no âmbito da teoria literária, como uma representação fiel e realista do mundo, na medida
em que para Schlegel o mímico sempre deve ser combinado ao elemento fantástico, sendo este último um
órgão fundamental da poesia. Na “Carta sobre o romance”, Schlegel explica como a poesia romântica está
assentada sobre bases históricas e frequentemente toma como seu ponto de partida histórias ou eventos
verdadeiros, mas estes são sempre remodelados e reconfigurados pela invenção do autor.
161
Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, 65.
162
Ibidem, 62.
79
Apesar da concordância a respeito do vínculo indissolúvel entre romance e
modernidade, parece haver, no entanto, uma diferença sutil, embora plena de
consequências entre a abordagem de Lukács e a de Schlegel. Pelo que vimos até aqui é
possível afirmar que por “romântico” Schlegel não compreende o romance enquanto
forma específica, mas antes considera românticas as obras dramáticas, líricas e épicas
do início da era moderna. E, de fato, quando na “Carta sobre o romance” Schlegel
oferece um esclarecimento sobre seu conceito de romance, ele afirma de maneira
peremptória que ele não deve ser entendido tanto como um gênero, quanto como um
elemento de toda poesia, que se faz presente em menor ou maior grau, mas nunca pode
faltar completamente a uma obra. Com isso, sua exigência de que toda a poesia deva ser
romântica pode ser compatibilizada com o rechaço veemente “ao romance, na medida
em que ele se pretenda um gênero específico 163”. Se associarmos essa distinção à crítica
dirigida por Schlegel aos romances modernos, temos que o problema destes é
justamente limitarem-se a um gênero específico, restrito à representação realista do
mundo, dominado por tendências prosaicas, sem qualquer espaço para a fantasia e para
a poesia. Na concepção de Schlegel o verdadeiro romance não se restringe a uma
manifestação moderna do gênero épico, mas distingue-se por ser uma mistura entre
“narrativa, canção e outras formas 164”, isto é, seu traço característico é que ele deve ser
uma mistura, não ficando restrito aos elementos épicos. Se para o autor o romance é a
forma privilegiada de expressão da época moderna, isso se deve ao fato de que ele não é
apenas uma manifestação de um gênero dentre outros, mas porque ele é um gênero que
abrange os outros em si mesmo – um gênero misto, mas também o gênero dos gêneros,
o gênero único da modernidade.
Essa capacidade de representar seu mundo, de ser como que o espelho “de todo
o mundo circundante, uma imagem da época 165”, é um traço que o romance guarda em
comum com a epopeia, forma literária representativa do mundo grego. Mas se ambas as
formas tem em comum o fato de serem, cada uma à sua maneira, uma exposição
extensiva do mundo que as circunda, há, no entanto, uma diferença crucial entre elas, já
que “nada é mais oposto ao estilo épico do que as influências da própria disposição
pessoal que se tornam, de algum modo, visíveis; para não falar do abandono ao próprio
163
Ibidem, 67.
164
Ibidem, 68.
165
Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 64. Fr. 116.
80
humor, do jogar com ele, como acontece nos melhores romances 166”. Ao contrário da
epopeia, uma exposição objetiva de um mundo que se apresenta imediatamente tal qual
ele é, o romance é atravessado pela subjetividade de seu autor, cuja personalidade,
experiências e visão de mundo informam a seleção do material a ser exposto e se fazem
presentes na composição da obra. Assim, não é possível para o romance ter uma relação
imediata com o material a ser exposto, que é sempre alterado e modificado pela
subjetividade do autor: “o de melhor nos melhores romances é apenas uma
autoconfissão mais ou menos encoberta do autor, o produto de sua experiência, a
quintessência de sua singularidade 167”.
Para Schlegel, portanto, o romance se distingue da epopeia por não ser uma
exposição objetiva do mundo, baseada na distância entre o narrador e o objeto a ser
narrado, mas por ser uma forma na qual a subjetividade se sobressai. Isso não significa
que a criação do autor reine absoluta e que o elemento mimético esteja ausente do
romance, mas aponta para o fato de que no mundo moderno a realidade não pode ser
mimetizada de maneira direta, mas depende da reflexão do sujeito criador sobre seu
objeto. O que distingue a atividade artística moderna da antiga é que aquela envolve
uma atividade reflexiva, enquanto esta era feira de maneira mais espontânea e intuitiva.
Schlegel atribui à arte moderna a marca da atividade reflexionante, na medida em que
ela não se faz de modo natural, mas opera a partir do entendimento e da imaginação,
instâncias eminentemente subjetivas, que carregam a marca da individualidade de seu
portador.
166
Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, 68.
167
Ibidem, 69.
81
Epopeia e romance não se distinguem em suas intenções configuradoras – pois
enquanto formas épicas ambas procuram dar forma à “totalidade extensiva da vida” –; a
diferença reside, na verdade, no mundo que cada uma delas tem que configurar, ou para
usar os termos de Lukács, nos “dados histórico-filosóficos” com o qual elas se deparam:
168
Lukács, A teoria do romance, 55.
169
“Fenômeno que alguns qualificam como uma transição da epopeia tardia até a prosificação total a
partir do século XVIII”, segundo Kurt Spang, mas também romances modernos que foram escritos em
verso, como o exemplo citado por Lukács, Oniéguin de Pushkin (1831) e Dom Juan de Byron (1818-24).
Cf. Kurt Spang, Géneros literarios, Teoría de la literatura y literatura comparada, no. 14 (Madrid:
Editorial Síntesis, 1993), 122.
82
dotados de sentido os elementos que poderiam vir a desprender-se do todo e tornarem-
se triviais. No mundo vazio de sentido do romance, porém, essa coesão não pode ser
conquistada pelo verso, sob o risco de transformar o romance em um idílio ou um jogo
lírico. Avesso à matéria moderna, portanto, o verso é banido da grande épica e dá lugar
à prosa, um meio mais maleável já que livre das obrigações do ritmo e da rima e,
portanto, mais capaz de construir algum sentido oculto contido nas fraturas dessa
situação de mundo:
170
Lukács, A teoria do romance, 58.
171
Ibidem, 60.
83
sua trajetória rumo ao autoconhecimento e ao desvelamento do sentido oculto do
mundo. Essa ideia da busca revela que diferentemente do que ocorria na epopeia, no
romance o sentido e os caminhos não estão dados imediatamente ou, mesmo se forem
dados ao herói, isso não significa uma correspondência necessária com o mundo de fato,
mas apenas um dado psicológico, individual: daí porque o romance possa tratar de
heróis loucos ou criminosos, isto é, indivíduos que agem a partir de valores
incompatíveis com as normas sociais ou éticas e que, por isso, entram em conflito com
o mundo.
Conflito de uma ordem tal que não tinha lugar na epopeia, uma vez que lá o
mundo e suas normais jamais poderiam constituir-se enquanto algo estranho ao
indivíduo. É claro que crime e loucura por vezes aparecem nos relatos épicos, mas com
um significado totalmente distinto do que no romance. Na epopeia, o crime é
imediatamente punido com vingança, isto é, não há lugar para uma vida inteira
criminosa, nem para uma desorientação moral profunda como no romance: os homens
conhecem as normas e sabem o que configura um crime, e sabem também que o crime
acarreta uma vingança seja por parte de outro homem, seja uma vingança divina. No
romance, ao contrário, loucura e crime aparecem como objetivações do “desterro
transcendental”, isto é, a própria psicologia do herói romanesco dá testemunho da
dissociação entre ação individual e mundo social, entre alma e valores sociais, uma vez
que não existe um fundamento imanente, um valor central e fundante que forneça
sentido e unidade ao caos e à fragmentariedade da vida. E justamente pela ausência de
um conjunto de normas imediatamente aceitas e de valores compartilhados por todos, as
próprias fronteiras entre a loucura e a sabedoria, entre o crime e o heroísmo são
instáveis e, no limite, meramente psicológicas, subjetivas.
A segunda natureza
84
como algo estranho. Se no mundo grego, como procuramos descrever, as aspirações do
indivíduo coincidiam com a realidade objetiva do mundo, na modernidade, interioridade
e mundo empírico são incongruentes e este se apresenta como um mundo inautêntico e
convencional, desprovido de sentido:
172
Ibidem, 62.
173
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Princípios da filosofia do direito, trad. Orlando Vitorino (São Paulo:
Martins Fontes, 1997), 12.
85
Na simples identidade com a realidade dos indivíduos, a moralidade objetiva
aparece como o seu comportamento geral, como costume. O hábito que se
adquire é como que uma segunda natureza colocada no lugar da vontade
primitiva puramente natural, e que é a alma, a significação e a realidade da
sua existência. É o espírito dado como um mundo cuja substância assim
ascende pela primeira vez ao plano do espírito 174.
86
humano 175”. O conceito de segunda natureza, portanto, surge para dar conta daquilo que
tendo sido historicamente produzido, aparece, no entanto, como natural. Nesse mundo
de coisas criadas pelos homens, mas estranhas a eles, o indivíduo se posta como diante
de enigmas que não pode decifrar. Tudo se passa como se aquilo que é produzido pelos
homens e, portanto, histórico, transformasse-se em natureza imutável, a história se
tornasse natureza 176:
Isso foi bem notado por Adorno, em cujas reflexões sobre a sociedade capitalista
é possível notar a presença e o desenvolvimento dessa ideia de Lukács segundo a qual
se procura designar a interversão na qual o mundo social, ele mesmo um produto da
atividade humana, adquire perante o indivíduo isolado um teor convencional, torna-se
um mundo petrificado e estranho, nas palavras de Lukács, não mais um “lar paterno,
mas um cárcere 178”.
175
Lukács, A teoria do romance, 65.
176
Cf. Theodor W. Adorno, “La idea de historia natural”, in Escritos filosóficos tempranos (Madrid:
Ediciones Akal, 2010), 315–34.
177
Lukács, A teoria do romance, 65.
178
Ibidem.
179
Uma análise mais substantiva do conceito de segunda natureza de Lukács deve levar em conta a
influência das teorias de autores da chamada sociologia clássica alemã no que diz respeito à ênfase dada
ao caráter alienante da sociedade moderna e suas consequências para a subjetividade, contribuição
suscitada pela leitura e confronto desses autores com a teoria do fetichismo de Marx exposta em O
capital. Ainda que na Teoria do romance esse tema apareça de maneira mais abstrata e menos
sociológica, é importante apontar que em sua primeira obra, Evolução histórica do drama moderno, o
diagnóstico de Lukács para a modernidade é feito a partir da chave da alienação e da objetificação da vida
em uma sociedade burguesa, conforme os desenvolvimentos de Simmel na Filosofia do dinheiro. Vale
lembrar que nessa obra Simmel discute temas presentes n’O capital, como por exemplo a teoria do valor-
trabalho e as consequências da divisão do trabalho para a subjetividade. Sobre essa relação, Arato e
87
A totalidade problemática do romance
O caráter orgânico da cultura grega, a ausência de qualquer cisão, seja entre vida
e sentido, seja entre homem e mundo, ou entre interior e exterior, e o fato de que ela se
constitui enquanto uma totalidade fechada a partir de si mesma e que se apresenta de
maneira imediata, se expressa na própria estrutura e no conteúdo da epopeia. Em
primeiro lugar, a inexistência de uma separação entre homem e comunidade, implica
que não se possa falar de uma individualidade criadora nas narrativas homéricas. Se o
sentido está dado no mundo e é imediatamente reconhecível por todos os membros de
uma comunidade, a ela organicamente ligados, não existe a possibilidade de uma visão
individual e idiossincrática acerca dos acontecimentos narrados 180. Não apenas a
questão da autoria em seu sentido moderno não se coloca nas narrativas homéricas, uma
vez que se trata de uma coligação de histórias comunitárias, mas, além disso, na épica
grega o mundo é narrado tal como ele é, sem a interposição da subjetividade do autor.
Breines afirmam: “É evidente que a compreensão inicial de Lukács sobre a reificação e sua visão sobre as
tarefas de uma sociologia da cultura foram enfaticamente moldadas por Georg Simmel, especialmente por
seu Filosofia do dinheiro”Arato e Breines, The young Lukács and the origins of Western Marxism, 15.
180
“Para o mundo grego da era homérica a conexão entre autoria e autoridade ainda não estava colocada,
porque não era necessária; não era necessária porque não havia lugar ou necessidade para que uma visão
idiossincrática se destacasse do interesse comunitário”.J. M. Bernstein, The philosophy of the novel:
Lukács, Marxism, and the dialectics of form (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984), 51.
181
Lukács, A teoria do romance, 67.
88
insucesso do herói não deriva tanto das possíveis consequências para ele, seu filho
Telêmaco ou sua esposa Penélope, mas, sobretudo, para o destino de seu reino, que
desprovido de seu líder, corre o risco de ser destruído pelos vorazes pretendentes que
cobiçam seu trono e suas riquezas.
Uma vez que na modernidade a totalidade não é imanente à vida, tentou-se por
meio de expedientes puramente artísticos contornar esse problema. Este seria o caso de
Goethe em Afinidades eletivas e de Hebbel no Canto dos nibelungos, onde o tratamento
dramático de materiais em si épicos funcionaria como meio para criar uma unidade em
um contexto no qual a totalidade espontânea da vida já se desintegrara. Por situar-se na
esfera da essência e não da vida, o drama pode estruturar-se a partir de um problema
central, diante do qual cada parte ganha existência na medida em que se fizer necessária
para esse centro. Mas, segundo Lukács, tais soluções não seriam bem-sucedidas, uma
vez que haveria descompasso entre a matéria épica e a estrutura dramática que
desequilibraria a obra – seus personagens não se sustentariam enquanto indivíduos
empíricos, a ação não constituiria uma totalidade – e, mesmo que tudo isso ocorresse, a
questão fundamental é que o caráter composto da totalidade ficaria evidente demais, por
ser determinado por um problema abstrato 183:
182
Ibidem, 68.
183
No caso do “romance dramático” de Goethe, o problema central são os relacionamentos, abordados a
partir da metáfora fornecida pela teoria química a respeito das afinidades entre certos compostos
químicos.
89
ponderar em função do problema central, mas mesmo as almas, guiadas de
antemão para os estreitos canais do problema, não podem gozar aqui de uma
verdadeira existência; mesmo a ação não se integra numa totalidade; a fim de
preencher o casulo graciosamente delgado desse pequeno mundo, o escritor
se vê forçado a inserir elementos estranhos, e ainda que isso sempre fosse tão
bem-sucedido quanto em momentos esparsos de extremo tato no arranjo,
disso jamais resultaria uma totalidade 184.
184
Lukács, A teoria do romance, 54.
185
Ibidem.
90
incorporar essa ausência de sentido como fio condutor, curvar-se ao contrassenso e,
dele, procurar extrair alguma nesga de sentido:
186
Ibidem, 61–62.
187
Ibidem, 59.
188
Erich Auerbach torna isso bem claro quando afirma: “A ordem unitária do mais além que Dante nos
apresenta a captamos diretamente no sistema moral, na distribuição das almas entre os três reinos e suas
subdivisões: o sistema segue, em conjunto, a ética aristotélica-tomista. Distribui os pecadores no Inferno,
primeiro, segundo o grau de sua má vontade e, dentro dessa classificação, segundo a gravidade de seus
atos; os penitentes do Purgatório segundo a malignidade de seus impulsos, dos quais hão de purificar-se;
e os bem aventurados do Paraíso, segundo o grau de contemplação divina que se lhes atribui”. Erich
91
Dante, a totalidade não é ainda pura criação estética, como o será no romance, mas é
uma figuração artística da teologia cristã, que por sua vez é o que garante o acabamento
da forma 189.
92
tempo em que os insere em uma ordem universal, pois ele “transforma o individual em
parte integrante do todo, as baladas em cantos de uma epopeia 191”.
93
na medida em que sua unidade depende de uma relação “da composição toda com uma
unidade superior àquela unidade da letra”, através da “sequência das ideias, através de
um centro espiritual 194”. Ou seja, a unidade do romance não é um produto natural, como
na epopeia, mas depende de uma organização intelectual de suas partes, depende
portanto da intenção organizadora de seu autor para se realizar 195.
194
Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, 67.
195
A subjetividade do autor, contudo, não pode proceder de maneira completamente arbitrária, mas só
constitui uma obra de arte na medida em que aja de maneira autoconsciente, por meio da autorreflexão e
da ironia, conforme veremos mais adiante.
196
Lukács, A teoria do romance, 69.
197
Ibidem, 70.
94
Desaparecidas as condições sociais que sustentavam a organicidade própria à
epopeia, a forma possível de totalidade fechada pode ser apenas “um sistema de
conceitos deduzidos e que, portanto, em seu caráter imediato, não entra em apreço na
configuração estética 198”. Ou seja, a criação artística na modernidade tem como
fundamento último uma ideia, um sistema de conceitos, o que equivale a dizer que a
obra de arte moderna e o romance especificamente possuem um ponto de partida
extraestético, da ordem da reflexão.
198
Ibidem.
199
Ibidem.
200
Ibidem, 76.
201
Ibidem.
95
Se Lukács e Schlegel partilham do diagnóstico da fragmentação da realidade, da
cisão entre sujeito e mundo exterior que caracteriza a época moderna, aos poucos vai
ficando evidente que ambos divergem quanto à posição do romance diante dessa cisão.
Em primeiro lugar, Lukács insiste no fundamento abstrato do romance, que só
aparentemente é superado pela configuração.
202
Ibidem, 70.
96
vida e sentido ignore a fragmentariedade do mundo e leve a uma resolução precoce e
artificial, transformando-o em uma forma vazia, desprovida daquilo que mais tarde
Benjamin (e Adorno) denominariam “teor de verdade” das obras, um conhecimento
sobre o mundo.
Ora, o que distingue então o romance das outras formas literárias é que a
existência da dissonância entre vida e sentido era nestas um dado anterior à figuração,
ao passo que no romance a afirmação da dissonância é a própria forma. Nas outras
formas, a ética era um pressuposto exclusivamente formal que orientava a fatura da obra
de acordo com os princípios formais do gênero – o aprofundamento da essência, no
drama, a extensão que expõe a totalidade, na epopeia. Já no romance, a intenção
configuradora “é visível na configuração de cada detalhe e constitui portanto, em seu
conteúdo mais concreto, um elemento estrutural eficaz da própria composição
literária 204”. Ao contrário do drama e da epopeia, que possuem uma forma consumada e
firmemente estabelecida de acordo com pressupostos claros e determinados antes de
203
Ibidem, 72.
204
Ibidem.
97
cada configuração, o romance não possui uma forma prévia, já que esta depende de cada
escolha a respeito do conteúdo específico a ser configurado, de modo que qualquer lei
formal só pode se constituir no próprio processo de criação: cada romance deve
encontrar sua própria chave de composição, uma solução que será sempre exclusiva e
intransferível, posto que atrelada à eleição por parte do autor de cada um dos conteúdos,
conflitos e acontecimentos abordados.
205
Ibidem, 74.
98
Fundamentalmente, a ironia esteve associada a uma disjunção proposital entre a
intenção do falante e aquilo que ele diz e sua utilização esteve limitada à retórica; ela
era uma figura de linguagem e, como tal, podia ser localizada em momentos e frases
específicos de um discurso. Autores importantes da tradição da retórica, como
Quintiliano e Cícero, entre outros, percebiam que a ironia poderia transpor os limites do
discurso, e converter-se em um elemento mais geral, dando o tom a toda existência de
uma pessoa. Assim, por exemplo, a vida de Sócrates teria uma tonalidade irônica, uma
vez que sua conduta de vida consistia em desempenhar o papel de uma pessoa
ignorante, que se maravilhava com a sabedoria dos outros. Platão, então, seria um dos
primeiros mestres da ironia, pois apresentava Sócrates como um interlocutor irônico
“que, atenuando seus talentos em sua famosa pose de ignorância, envergonhava seu
parceiro e simultaneamente o levava a adentrar o terreno do verdadeiro
conhecimento 206”.
206
Ernst Behler, German romantic literary theory (Cambridge ; New York: Cambridge University Press,
1993), 144. No entanto, mesmo nos diálogos de Platão, nos quais em alguns momentos a ironia começa a
se desvincular do teor negativo e burlesco que normalmente lhe era atribuído, e aparece como um traço
nobre, uma autodepreciação bem humorada que conduzia à verdade, sua recepção permanecia sendo
negativa, como se a ironia fosse um expediente escapista, mobilizado por Sócrates para distração de seu
interlocutor.
99
distingue-se da simples sátira ou das obras moralistas, na qual o narrador vale-se de uma
postura aparentemente irônica para ridicularizar e eliminar uma verdade, substituindo-a
por outra claramente definida.
Para poder escrever bem sobre um objeto, é preciso já não se interessar por
ele; o pensamento que deve se exprimir com lucidez já tem e estar totalmente
afastado, já não ocupar propriamente alguém. Enquanto o artista inventa e
207
“Há poemas antigos e modernos que respiram, do início ao fim, no todo e nas partes, o divino sopro da
ironia” Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 26. Fragmento 42 da Lyceum.
208
Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, 29.
209
Gerd Bornheim, “Filosofia do romantismo”, in O romantismo (São Paulo: Perspectiva, 2008), 92. Para
uma exposição detalhada da influência da teoria do conhecimento de Fichte na teoria da arte primeiro
romântica o leitor pode se referir, além do texto bastante didático de Gerd Bornheim, à interpretação de
Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Além da relação com Fichte, Szondi
também ressalta a atitude critica da filosofia kantiana frente a ela mesma como uma influência importante
para a concepção de reflexão de Schlegel. Szondi, “Friedrich Schlegel et l’ironie romantique”, 101.
100
está entusiasmado, se acha, ao menos para a comunicação, num estado
iliberal. Pretenderá dizer tudo, o que é uma falsa tendência de gênios jovens
ou um justo preconceito de escrevinhadores antigos. Com isso, desconhecerá
o valor e a dignidade da autolimitação, que é porém, tanto para o artista
quanto para o homem, aquilo que há de primeiro e último, o mais necessário
e o mais elevado. O mais necessário: pois em toda parte em que alguém não
se limita a si mesmo, é o mundo que o limita, tornando-se, com isso, um
escravo. O mais elevado: pois só se pode limitar a si próprio nos pontos e
lados em que se tem força infinita, autocriação e autoaniquilamento 210.
Essa atitude crítica que o sujeito adota frente a si mesmo, esse questionar sobre
sua própria atividade, Schlegel aplica a toda a poesia moderna, que deve ser ao mesmo
tempo poesia e teoria poética da poesia:
210
Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 25. Fragmento 37 da Lyceum.
211
Ibidem, 88. Fragmento 238 da Athenäum.
101
de reflexão sobre si mesmo, é um elevar-se sobre si mesmo do autor – uma “disposição
que tudo supervisiona e se eleva infinitamente acima de todo condicionado, inclusive a
própria arte, virtude ou genialidade” – e aparece no fragmento citado acima de maneira
mais explícita como a limitação de si que deve ser buscada pelo autor. Isso porque,
deixadas completamente livres, a invenção e o entusiasmo do artista convertem-se em
limites à comunicação. Portanto, embora o romantismo procure desvincular-se do
princípio de imitação da natureza e da submissão do artista a modelos e regras
preestabelecidas, e confira maior importância ao aspecto criativo da atividade artística, a
fantasia e a liberdade do autor são limitadas por meio da introdução de um expediente
autocrítico, pelo qual o próprio autor controla sua atividade criativa.
212
Ibidem, 24. Fragmento 28 da Lyceum: “Sentido (para uma arte, ciência, um homem particular, etc.) é
espírito dividido; autolimitação, resultado, portanto, de autocriação e autoaniquilamento”.
213
Constantino Luz de MEDEIROS, “A Forma do Paradoxo: Friedrich Schlegel e a ironia Romântica”,
TRANS/FORM/AÇÃO 37, no 1 (2014): 59, http://200.145.171.5/ojs-
2.2.3/index.php/transformacao/article/view/3624.
214
Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, 104.
102
pela rima no campo da lírica, ou pelo encadeamento causal da ação do drama, por
exemplo – o romance é mais livre e nele a autorreflexão pode se desenvolver
infinitamente. Isso se expressa na prevalência da digressão, na atenção aos detalhes, nas
idas e vindas da narrativa, enfim, em toda uma série de elementos retardadores que,
como bem apontaram Goethe e Schiller, são próprios ao gênero épico 215.
215
Goethe, Correspondência (1794-1803) entre Johann Wolfgang Goethe e Friedrich Schiller.
216
Georg Lukács, “Richness, caos, and form”, in Soul and form (New York: Columbia University Press,
2010), 164.
217
Ibidem.
103
subjetividade, sua colocação em primeiro plano na obra, acarretaria um problema de
ordem formal, já que o romance não se concretizaria enquanto totalidade plena de
sentido, sendo apenas um conjunto inorgânico de fragmentos vazios, apresentados sem
qualquer preocupação de deslindar o essencial do inessencial.
É assim que outro conceito caro aos românticos, o arabesco, vem à tona na
discussão. Se para Vincent os volteios infinitos do arabesco exprimem uma afirmação
sentimental da vida em toda sua multiplicidade, Joachim responde defendendo que o
próprio Schlegel não valorizava esse recurso, que simplesmente representaria a
confusão dos sentimentos e do pensamento. Em suma a posição de Joachim (que pode
ser equiparada a posição do próprio Lukács) é que Sterne não compôs suas obras, “pois
a condição prévia mais elementar de toda concepção, a escolha – e a capacidade de
avaliar – lhe era ausente 218”.
218
Ibidem, 165.
219
A ironia, como Schlegel afirma no fragmento 121 da Athenäum, é “uma síntese absoluta de antíteses
absolutas, alternância de dois pensamentos conflitantes que engendra continuamente a si mesma”.
Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 66. Sobre a relação entre ironia e dialética conferir o primeiro
capítulo de: Vladimir. Safatle, Cinismo e falência da crítica (São Paulo: Boitempo, 2008).
220
Cf, nesse sentido, o item “Ironia” na Introdução do primeiro volume da Estética de Hegel. HEGEL,
Curso de estética.
104
No campo artístico, essa tendência se revela, de acordo com Hegel, no fato de
que é a “pura subjetividade do artista mesmo que tenciona mostrar-se” na obra de arte,
com o que esta deixa de ser a exposição de um conteúdo objetivo e passa a ser apenas
um jogo com esses objetos, “um deslocamento e inversão da matéria assim como um
vaguear para lá e para cá, um ziguezaguear de exteriorizações subjetivas, de visões e de
procedimentos, por meio dos quais o autor abandona a si mesmo assim como seus
objetos 221”.
Para entender a posição de Lukács quanto a esse debate, parece ser produtivo
retomar uma distinção feita por Walter Benjamin em sua tese de doutorado O conceito
de crítica de arte no romantismo alemão, escrita entre 1917 e 1919. Nela, Benjamin
afasta-se das interpretações tradicionais sobre a ironia romântica e procura demonstrar a
tese de que a ironia consiste em um momento de objetividade do pensamento de
Friedrich Schlegel. Mais precisamente, Benjamin distingue dois sentidos do conceito de
ironia no âmbito da teoria da arte romântica. O primeiro deles e o mais considerado pela
literatura sobre romantismo é, de fato, expressão de um puro subjetivismo e tem a ver
com a autonomia absoluta do artista frente a qualquer lei exterior à sua atividade. Esta
soberania da fantasia e da reflexividade do artista, contudo, limita-se à matéria a ser
expressa, uma vez que, como observa Benjamin, a forma da obra de arte possui uma
legalidade objetiva, isto é, ela impõe uma limitação à atividade do artista, uma limitação
objetiva que escapa à vontade de seu criador. Tal limitação não está baseada em regras
221
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Cursos de estética: Volume II, vol. 2 (São Paulo: Edusp, 2000), 336.
105
exteriores à obra, mas lhe é imanente, pois é “expressão objetiva da reflexão própria à
obra 222”.
Esse tipo de ironia não diz respeito a um jogo livre e subjetivista do artista, mas
antes à completa objetivação da obra, cujo caráter estético, de criação artística é
ressaltado. A ironização da forma vai além de uma disposição pessoal do artista e
expõe-se de maneira autônoma na própria obra; ela não é uma atitude intencional do
autor, mas representa a tentativa paradoxal de construir uma conformação artística
através de sua destruição.
222
Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, 81.
223
Ibidem.
224
Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, 90.
225
Ibidem, 91. O caráter reflexivo da ironização da forma torna-se patente nas comédias de Tieck. A
estrutura das peças baseia-se em uma explicitação do caráter de criação artística, isto é, a obra mesma se
expõe enquanto obra. Isso pode se dar de diversas maneiras: um personagem pode ter consciência de que
é um personagem, a própria estrutura dramática pode ser tematizada dentro da peça. Szondi analisa
brevemente as comédias de Tieck no apêndice de seu ensaio sobre a ironia romântica. Cf. Szondi,
“Friedrich Schlegel et l’ironie romantique”.
106
se diretamente ao leitor como um personagem, quebra a ilusão artística e evidencia o
caráter fictício daquilo que se lê. Essa quebra, entretanto, não implica em uma
dissolução da experiência artística, mas antes sua intensificação, na medida em que a
desvincula de mera imitação da realidade e afirma a arte como tal, como criação.
107
um procedimento subjetivista, mas justamente a autoconsciência da limitação subjetiva.
A ironia funciona, portanto, como a normatividade do romance, pois viabiliza a
expressão tanto da aspiração dos indivíduos por um sentido, quanto dos limites
impostos a essa aspiração pelo mundo objetivo, evitando que a obra converta-se em
uma falsificação do real. Ela oferece, assim, o caminho para a objetividade do
romance 227:
Em que pese a dívida de Lukács para com o conceito de ironia romântica, faz-se
necessário, contudo, precisar alguns pontos de sua divergência frente às posições de
Schlegel. Em primeiro lugar, é importante ressaltar que para Lukács a oposição entre
indivíduo e mundo exterior, que é da ordem do real e, portanto, constitutiva do
romance, permanece inalterada pelo procedimento irônico, sendo superada apenas
formalmente. Assim, embora o romance deva aproximar-se o máximo possível de uma
aparência de organicidade, sob pena de recair em um artificialismo, a relação entre as
partes que o compõem não é orgânica, conceitualmente composta.
227
Embora Lukács não se aprofunde na análise de procedimentos literários irônicos, ele menciona
brevemente seu sentido geral: “[...] as relações inadequadas podem transformar-se numa ciranda
fantástica e bem-ordenada de mal-entendidos e desencontros mútuos, na qual tudo é visto sob vários
prismas: como isolado e vinculado, como suporte do valor e como nulidade, como abstração abstrata e
como concretíssima vida própria, como estiolamento e como floração, como sofrimento infligido e como
sofrimento sentido”. Ibidem, 76. Por aí se percebe que ele busca frisar a pluralidade de pontos de vista
que promove a relativização do sentido dos acontecimentos e deixa irresolvidas as ambiguidades que eles
despertam.
228
Ibidem, 86.
108
romance, portanto, é sempre normativa, no sentido de que deve sempre ser buscada,
mas nunca é alcançada de maneira completa e cabal.
Além do tato irônico que deve orientar a composição, o que confere a aparência
de organicidade ao romance e viabiliza a conquista do equilíbrio é sua forma biográfica.
Nela, “a aspiração sentimental e inalcançável tanto pela unidade imediata da vida
quanto pela arquitetônica que tudo integra no sistema é equilibrada e posta em repouso
– é transformada em ser 229”. O centro do romance, portanto, é a exposição da trajetória
de um indivíduo, que permite realizar a mediação entre o mundo da vida empírica e o
mundo dos ideais. Isso porque o indivíduo mantém uma relação com os ideais, mas ao
mesmo tempo esses ideais só se realizam por meio da atuação desse indivíduo no
mundo, no decorrer de sua experiência. Ou seja, é por meio da trajetória do indivíduo
em combate com o mundo que o romance consegue converter o ideal em ser e, assim,
expor de maneira sensível a luta entre ideal e mundo. Mas não se trata de qualquer
indivíduo, e sim daquele indivíduo problemático, cujos objetivos não lhe são dados de
maneira evidente e para quem o mundo exterior aparece como algo vazio, desvinculado
de qualquer ideia. Na verdade, “mundo contingente e indivíduo problemático são
realidades mutuamente condicionantes”, pois é quando o mundo exterior não possui
mais relação com as ideias que estas se convertem em fatos psicológicos subjetivos, isto
é, em ideais, no homem.
229
Ibidem, 78.
230
Ibidem, 81.
109
simplesmente oferecido, mas como algo a ser buscado. A existência do indivíduo
problemático é, então, a busca de si mesmo, e o romance afigura-se como a
peregrinação do indivíduo problemático rumo ao autoconhecimento. Isso não significa,
contudo, que encontrado o autoconhecimento o indivíduo esteja agora em completa
harmonia com seu mundo, nem que este se torne novamente pleno de sentido:
É nesse ponto que a crítica de Lukács à visão de mundo romântica vem à tona
com mais clareza. Enquanto Lukács sublinha que, de acordo com o mundo que busca
formalizar, o romance é fundamentalmente abstrato e fragmentário, Schlegel vislumbra
nessa forma a reconciliação entre subjetividade e objetividade e, mais do que isso, a
síntese de todos os contrários. Assim, no famoso fragmento 116 da Athenäum, ele
assevera:
231
Ibidem, 82.
232
Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 64. Fragmento 116 da Athenäum.
110
A tarefa da poesia romântica (e da arte romântica como um todo), portanto, seria
recuperar a unidade entre arte e filosofia, criação subjetiva e representação objetiva,
ideal e real, em suma, fundar a partir da arte uma nova mitologia que superasse a
realidade fragmentada da modernidade. O que os românticos almejavam era devolver
poesia à prosaica vida moderna, infundi-la com um novo sentido, torná-la novamente
plena de mistério e magia. Para os românticos a arte não poderia ser apenas uma esfera
dentre outras, mas deveria ter como meta a superação das barreiras que a separavam das
outras esferas da vida de modo a ser capaz de repoetizar o mundo.
233
Lukács, A teoria do romance, 86.
111
O romance é a forma da virilidade madura: seu escritor perdeu a radiante
crença juvenil de toda a poesia, de que “destino e ânimo são nomes de um
mesmo conceito” (Novalis); e quanto mais dolorosa e profundamente nele se
enraíza a necessidade de opor essa essencialíssima profissão de fé de toda a
composição literária como exigência contra a vida, tanto mais dolorosa e
profundamente ele terá de compreender que se trata apenas de uma exigência,
não de uma realidade efetiva 234.
A ironia recai tanto sobre a ingenuidade dos heróis em sua busca infrutífera para
realizar seus ideais no mundo, quanto sobre a própria sabedoria do escritor, obrigado a
admitir o beco sem saída dessa batalha entre o homem e seu mundo e a vitória
incontornável da realidade. Segundo Lukács, a ironia própria ao romance reconhece, no
entanto, que tão inútil quanto lutar pela realização de seu ideal no mundo é abandonar
de antemão essa luta e procurar adaptar-se de antemão ao mundo tal como ele é,
ignorando a hostilidade entre o mundo e sua interioridade. Assim, a realidade é
configurada como vencedora no romance, mas isso significa no máximo certa
resignação e nunca a completa adaptação do indivíduo. Ao final de seu percurso
solitário, o herói do romance poderá reconhecer a impossibilidade de realizar seu ideal,
terá a consciência de que a distância entre ideal e real não pode ser superada, mas
sempre restará um fundo de insatisfação com o mundo.
234
Ibidem, 86–87.
235
Ibidem, 92.
236
“A vida biológica e sociológica está profundamente inclinada a apegar-se a sua própria imanência: os
homens desejam meramente viver, e as estruturas, manter-se intactas [...]” Ibidem.
112
Capítulo 4 – Tipologia do romance
Dos romances de cavalaria, onde pela primeira vez aparece uma busca
propriamente dita, de Cervantes, na qual essa busca se torna consciente, até
Flaubert e Tolstói e para além de Dostoiévski, os grandes romances traçam o
destino dos ideais sucessivos que, em nome de seus suportes sociológicos,
tentaram se impor no mundo ocidental. A história do romance se revela ser, em
Lukács, a verdadeira historiografia das aventuras do sentido em sua luta
heroica, a uma só vez desesperada e cômica, contra o “não-sentido” do mundo,
até a tomada de consciência da interdependência entre o ideal e seu fracasso
necessário 237.
237
Rainer Rochlitz, Le jeune Lukács (1911 - 1916): theorie de la forme et philosophie de l’histoire (Paris:
Payot, 1983), 295.
113
complexidade mundo. O modelo maior desse tipo de romance é para Lukács o Dom
Quixote de Cervantes, que corresponde ao momento de passagem daquela certeza
afiançada pela religiosidade na Idade Média para o demonismo subjetivo do mundo do
romance.
Enfim, acabado seu juízo, foi dar no mais estranho pensamento que jamais caiu
louco algum: pareceu-lhe conveniente e necessário, tanto para o
engrandecimento de sua honra como para o proveito de sua pátria, se fazer
cavaleiro andante e ir pelo mundo com suas armas e cavalo em busca de
aventuras e para se exercitar em tudo aquilo que havia lido que os cavaleiros
andantes se exercitavam, desfazendo todo tipo de afrontas e se pondo em
situações e perigos pelos quais, superando-os, ganhasse nome eterno e fama 239.
Essa crença inabalável no seu ideal tem como consequência a total falta de
problemática interna do herói, que é incapaz de refletir sobre seus próprios
pressupostos. Sua alma repousa em uma instância transcendente, inteiramente
aproblemática, o que veda qualquer progresso ou evolução da personagem no sentido de
uma maior compreensão do mundo a seu redor. Aliás, a maneira distorcida pela qual o
mundo é interpretado implica que as ações levadas a cabo pelo herói sejam dissonantes
da realidade e, ao mesmo tempo, as barreiras com as quais ele se depara no mundo
nunca sejam por ele compreendidas em sua verdadeira natureza.
Desse modo, a ação desse tipo de romance consiste menos em uma batalha entre
eu e mundo e mais em um “desencontro recíproco ou um embate igualmente grotesco,
condicionado por mútuos mal-entendidos 240” – pensemos em Dom Quixote diante dos
moinhos de vento que ele crê serem gigantes – o que por sua vez barra a possibilidade
238
Lukács, A teoria do romance, 100.
239
Miguel de Cervantes, Dom Quixote, vol. 1 (São Paulo: Penguin - Companhia das Letras, 2012), 64.
240
Lukács, A teoria do romance, 101.
114
da ação converter-se em uma experiência com aprendizado. Essa contradição grotesca
entre realidade efetiva e realidade imaginada impulsiona a ação do romance e revela que
a natureza descontínuo-heterogênea do romance atinge nesse tipo seu ponto culminante:
almas e atos, psicologia e ação, não possuem mais nada em comum.
Isso pode ser percebido no episódio em que, depois de Dom Quixote ter se
machucado enfrentando os “gigantes”, Sancho Pança reitera que eles não passavam de
moinhos de vento, ao que o cavaleiro andante prontamente racionaliza o ocorrido e
explica que tudo não passava de um feitiço, que os gigantes foram transformados em
moinhos de vento pelo mesmo mago que havia roubado seus romances de cavalaria e
que não queria vê-lo alcançar a glória. Como não pode haver um embate de fato entre
241
Ibidem, 102.
242
A respeito do romance do idealismo abstrato, Rainer Rochlitz afirma: “Certas constelações históricas
presidem o nascimento desse tipo de romance: ele supõe um encontro entre o antigo e o novo; entre os
revolucionários burgueses e a Europa da Restauração em Stendhal, ou entre os cidadãos do Estado
constitucional e a administração total em Kafka”. Rochlitz, Le jeune Lukács (1911 - 1916): theorie de la
forme et philosophie de l’histoire, 298.
115
interioridade e mundo, a rigidez do ideal do herói vai ganhando contornos de loucura e
monomania, tanto mais quanto mais firmemente ele as tome por verdade.
E por isso não é casual que Dom Quixote seja uma paródia aos romances de
cavalaria. Se Dante pôde configurar uma totalidade a partir de um sentido ofertado pelo
243
Lukács, A teoria do romance, 106.
244
Ibidem, 106–7.
116
cristianismo, mantendo-se nos limites da epopeia, essa imanência de sentido só pode ser
encontrada na vida além da morte. Já o romance de cavalaria da Idade Média restringe-
se à vida terrena e por isso sua totalidade é apenas sentimental, buscada, ressentindo-se
da imanência existente de um sentido 245. Há, no entanto, uma atmosfera onírica e
encantada nesses romances, uma aparência aproblemática que se deve à presença difusa
desse sentido transcendente que, embora não seja configurado e tornado imanente,
continua a derramar sua sombra sobre o mundo, preenchendo as fissuras da vida terrena.
Ao longo da história, contudo, essa relação com a transcendência foi se desfazendo e o
mistério e a fantasia do romance de cavalaria da época de Cervantes converte-se em
algo vazio e superficial, sem um enraizamento em sua situação histórica, mera literatura
de entretenimento, nos termos de Lukács.
245
Ibidem, 104.
246
Ibidem, 107.
247
Ibidem.
248
Para uma visada geral da interpretação de Dom Quixote construída por Schlegel cf. Schmidt, “Forms
of modernity”, 2011.
117
na loucura de Dom Quixote, valorizando a imaginação e a fantasia do personagem como
instâncias que revelam, ironicamente, uma verdade sobre o mundo.
É pela chave de leitura aberta pelo romantismo que se desenham tópicos que
pautam a recepção do romance de Cervantes até os dias atuais: representaria Dom
Quixote uma loucura risível e sem sentido ou um idealismo heroico que, mesmo sem
conseguir realizar-se plenamente, deve ser cultivado? Seria o romance de Cervantes
apenas uma sátira dos romances de cavalaria ou um livro que em sua espirituosidade e
ironia, elementos destacados pela interpretação do romantismo alemão, configura um
questionamento profundo da realidade?
249
Vale lembrar que a novela, em virtude de sua concentração em um número limitado de personagens e
conflitos aproxima-se do drama na poética dos gêneros erigida por Lukács na primeira parte da Teoria do
romance.
118
alguma nobreza, qual seja, o reestabelecimento da ordem e da justiça, mas aos poucos
seu fundamento egoísta vai se tornando cada vez mais pronunciado. Ou melhor, aos
poucos vemos como a sede de justiça do protagonista converte-se em injustiça, quanto
mais o herói empenha-se em sua realização. Assim é que, por dois cavalos injustamente
retidos e mal-tratados, Michael Kohlhaas mata vários inocentes, perde sua mulher
Lisbeth e seu fiel escudeiro Herse, separa-se dos filhos e ao final da novela morre, mas
nunca se questiona sobre seus atos e sobre a maneira como acaba instrumentalizando
todos à sua volta para realizar seu desejo íntimo de justiça 250.
250
Uma interessante análise das contradições apresentadas na novela de Kleist pode ser encontrada em
Rodrigo Campos de Paiva Castro, “‘Michael Kohlhaas’ - a vitória da derrota: uma interpretação da novela
‘Michael Kohlhaas’, de Heinrich von Kleist” (Universidade de São Paulo, 2006),
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8144/tde-09112007-141030/.
251
Heinrich von Kleist, Michael Kohlhaas (São Paulo: Editora Grua, 2014), 11.
252
Lukács, A teoria do romance, 117.
119
tende a adotar uma postura passiva frente à realidade, preferindo refugiar-se no mundo
perfeito sua própria interioridade do que enfrentar a realidade em busca de sua
transformação, já que tem consciência da distância entre valor e mundo.
Ora, aqui cada uma dessas relações está desde o início interrompida. Isso
porque a elevação da interioridade a um mundo totalmente independente não é
um mero fato psicológico, mas um juízo de valor decisivo sobre a realidade:
essa autossuficiência da subjetividade é o seu mais desesperado gesto de
defesa, a renúncia de toda luta por sua realização no mundo exterior – uma luta
encarada já a priori como inútil e somente como humilhação 253.
253
Ibidem, 119.
120
criação puramente artística de um novo mundo seria uma falsa solução, na medida em
que desconsidera a situação de mundo corrente. Para uma obra literária épica, portanto,
a questão é saber em que medida essa correção ética do mundo pode converter-se em
ações épicas. A exigência de Lukács, portanto, é que a utopia tenha um fundamento
objetivo e uma legitimidade histórica cuja prova seria a configuração de uma totalidade
épica, exigência que já fora anunciada em outros momentos do ensaio, ao longo do qual
Lukács enfatiza o caráter empírico do romance, avesso ao puro dever-ser, em virtude de
sua filiação ao gênero épico.
254
Ibidem, 122.
255
Ibidem.
121
uma importância intrínseca: os valores que defende não se justificam pela relevância
geral de seu conteúdo como denúncia do prosaísmo do mundo, mas pela mera validade
a partir da vivência subjetiva, por seu significado para o indivíduo.
Pois para Lukács uma forma só pode existir se for dotada em alguma medida de
positividade, isto é, de um sentido, mesmo que ele seja a afirmação da ausência de
sentido. Mas, para o romantismo da desilusão, a consciência da indiferença do mundo
perante as aspirações individuais torna a composição fragmentada, composta por uma
sucessão de imagens e aspectos parciais que não se coadunam em uma configuração da
totalidade da vida. O caráter problemático do romance mostra-se aqui com toda clareza:
a situação do mundo e o tipo humano que correspondem de maneira mais perfeita ao
romance impõem uma tarefa quase insolúvel para a sua configuração.
É aqui que Lukács explicita a relação essencial do romance com o tempo, uma
traço que o distingue das outras formas literárias, seja o drama, seja a epopeia. Apenas
no romance, forma do desterro transcendental, momento em que sentido e vida, e
essencial e temporal se distinguem, é que o decurso do tempo como duração torna-se
constitutivo. Nos romances, o tempo funciona como um princípio destruidor, já que sua
passagem inexorável é responsável pela progressiva decomposição dos ideais do herói
na busca infrutífera, mas necessária, por realizá-los. Mas Lukács chama a atenção para o
fato de que nos romances de desilusão o tempo possui também uma dimensão positiva e
épica: é a incorporação da passagem do tempo que permite ao romance unificar os
256
Ibidem, 123.
122
fragmentos da experiência do herói e unificar a dissonância entre herói e mundo em
uma narrativa. Como assinalou Jameson a respeito desse duplo caráter do tempo:
A totalidade da vida que a todos sustenta torna-se desse modo algo vivo e
dinâmico: o grande lapso de tempo abarcado por esse romance, que divide os
homens em gerações e integra-lhes os atos num contexto histórico-social, não
é um conceito abstrato ou uma unidade mentalmente pós-construída, como o
do todo da Comédia humana, mas algo efetivamente existente, um continuum
concreto e orgânico 258.
257
Frederic Jameson, “The case for Georg Lukács”, in Marxism and form: twentieth-century dialectical
theories of literature (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1974), 132–133.
258
Lukács, A teoria do romance, 132–133.
123
sentido a sua experiência. Todos os eventos, as derrotas e as desilusões de uma vida, em
si mesmos esvaziados de sentido, quando irradiados pela esperança e pela recordação –
procedimento ainda incipiente em Flaubert, mas que viria a ser radicalizado por Proust e
pelo romance modernista de maneira geral – tornam-se, em sua insignificância,
significativos:
259
Ibidem, 133.
260
Ibidem, 134.
124
de uma linha de conduta”, como aventa o próprio Frédéric, sem se dar conta das
verdadeiras razões pelas quais seu desejo oscilante se dissipa sempre que ele consegue
conquistar a mulher desejada; sem perceber que pela inatingível Madame Arnoux, ele
sacrificou todas as possibilidades de um relacionamento satisfatório ou da realização de
suas ambições profissionais. Deslauriers, por sua vez, julga que pecou pelo apego
excessivo a uma linha de conduta lógica, tendo desconsiderado o papel do acaso. Ao
fim, os dois amigos acabam culpando as circunstâncias e a época em que tinham
nascido pelo fracasso em conquistar tudo o que sonhavam. A conversa termina com os
dois relembrando um evento quase insignificante da adolescência, quando juntos
empreenderam uma visita a um prostíbulo, mas Frédéric, confuso e assustado, sai
correndo do lugar, não restando a Deslauriers outra alternativa senão acompanhar o
amigo que tinha o dinheiro: “Afinal, foi o que tivemos de melhor”, conclui Frédéric.
Sua aventura mais memorável é também uma frustração.
261
Walter Benjamin, « O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov », in Magia e técnica,
arte e política - ensaios sobre literatura e história da cultura, São Paulo, Editora Brasiliense, 1994,
p. 197‑221, p. 212.
125
esboçada por Lukács. Se na sua concepção a forma romance tem como seu fundamento
constitutivo a cisão entre indivíduo e mundo exterior, isto é, a dualidade entre a alma e
suas obras, entre a interioridade e a aventura, para usar os termos do autor, o Meister
afigura-se como um tipo intermediário entre o romance do idealismo abstrato e o do
romantismo da desilusão, tanto em termos histórico-filosóficos quanto em termos
estéticos. Seu tema é “a reconciliação do indivíduo problemático, guiado pelo ideal
vivenciado, com a realidade social concreta 262” e, nesse sentido, o livro apresenta uma
tentativa de síntese entre ideal utópico e realidade.
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe pode ser lido como uma
espécie de súmula literária das questões postas pela ascensão da sociedade burguesa na
Alemanha do século XVIII e enfrentadas, de uma maneira ou de outra, por todos os
autores relevantes do pensamento alemão à época. Por essa razão não surpreende que o
livro tenha sido objeto de discussão acalorada quando de sua publicação, entre os anos
de 1795 e 1796. A importância do livro pode ser aferida pelo volume de reações e pelo
quilate de artistas e filósofos que se puseram a refletir sobre ele: Schiller, Friedrich
Schlegel, Novalis, Schelling e Hegel, entre outros, não puderam passar ao largo do livro
que inaugurou o que viria a ser o gênero do Bildungsroman 263 e, mais do que isso,
representa a primeira manifestação significativa do romance social burguês em solo
alemão.
262
Lukács, A teoria do romance, 138.
263
O termo Bildungsroman foi cunhado por Karl Morgenstern em 1810 para designar o tipo de romance
que “representa a formação do protagonista em seu início e trajetória até alcançar um determinado grau
de perfectibilidade” e cuja maior representação era também para ele Os anos de aprendizado de Wilhelm
Meister de Goethe. Morgenstern apud Wilma Patricia Marzari Dinardo Maas, O cânone mínimo: o
Bildungsroman na história da literatura (São Paulo: Editora UNESP, 2000), 19. A definição de
Morgenstern é ampliada e divulgada por Dilthey em A vivência e a poesia e a partir daí a noção de
Bildung passa a se associar estreitamente à identidade nacional alemã.
126
A publicação da obra significou não apenas um momento alto da produção
literária de Goethe, mas também foi um marco incontornável para o romance enquanto
gênero literário, que a partir de então alcançava novo patamar dentro da história
literária, pela qual até então era considerado uma forma menor e vulgar. Não poucos
foram os autores que buscaram compreender suas inovações formais e seu significado
para a época moderna. Assim, o livro foi também foco de atenção especial para os
autores que pensavam o romance enquanto gênero representativo da modernidade.
127
sétimo capítulo do livro quinto, onde há uma grande passagem dedicada à comparação
entre o drama e o romance -; sintetiza a narração de uma história e a profunda reflexão
filosófica sobre o que é narrado, enfim, aponta para a abolição progressiva entre a vida e
a poesia, um imperativo que orientava a revolução estética almejada pelos românticos.
264
Friedrich von Schlegel, Sur le Meister de Goethe (Paris: Hoëbeke, 1999), 31.
265
Ibidem, 51.
128
cena de maneira cômica, todos esses traços dependendo de uma só palavra que os
acentue 266.
Quanto ao conteúdo do romance, Schlegel nota que nos últimos dois livros do
romance ocorre uma ampliação da problemática do romance e a obra “deixa para trás a
adolescência para se tornar adulta e madura”. Aí se torna claro que sua proposta não é
abarcar tão somente o mundo da arte e do teatro, mas também “o espetáculo grandioso
da própria humanidade e a arte de todas as artes, a saber, a arte de viver 267”. Schlegel se
refere ao movimento de conclusão do romance, no qual Meister abandona o teatro como
meio para sua formação e, sob a influência da Sociedade da Torre, desenvolve uma
nova concepção de formação voltada para a vida prática na sociedade. No entanto,
Schlegel aponta para certa impossibilidade de Meister se formar plenamente: esses anos
de aprendizado não puderam fazer dele nem um artista, nem um homem de ação.
Voltando à resenha, ao tratar dos dois livros finais, nos quais o romance se
debruça mais sobre a realidade concreta e abandona o mundo poético do teatro, Schlegel
se mostra bastante reticente e considera que esse movimento da obra no sentido de uma
limitação dos anseios de Meister desabona tudo o que lhe antecedeu:
266
Ibidem, 52–53.
267
Ibidem, 63.
268
Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, 76.
129
É como se tudo que ocorreu até então fosse somente um jogo espirituoso e
interessante e que agora o romance entrasse no domínio do que é sério. Na
verdade, os últimos livros são a obra verdadeira; as partes anteriores são
somente uma preparação. É aqui que a cortina se eleva sobre o santo dos
santos: de repente nós nos encontramos transportados às alturas onde tudo é
divino, sereno e puro; vistas a partir desse lugar as exéquias de Mignon
parecem tão importantes e plenas de significado quanto sua morte é
inelutável 269.
Um romance perfeito deveria ser uma obra muito mais romântica que o
Wilhelm Meister; mais moderno e mais antigo, mais filosófico e mais ético e
mais poético, mais político, mais liberal, mais universal, mais social.
O Meister por isso mesmo incompleto, porque não é totalmente místico 271.
Nesse sentido, não é o Meister, mas sim Dom Quixote de Cervantes a referência
maior para o romance romântico, pois nele há a predominância da fantasia e do
maravilhoso, a abertura para o jogo infinito da vida, em detrimento da organização
lógica e coerente do todo. A ideia de uma poesia universal progressiva, um ideal que só
pode ser perseguido mas nunca alcançado, pois está sempre em devir, tal qual exposta
no fragmento 116 da Athenäum, parece se adequar à compreensão que Schlegel tem da
formação de Meister como algo que permanece como um ideal, como uma
perfectibilidade infinita.
269
Schlegel, Sur le Meister de Goethe, 68.
270
Behler, German romantic literary theory, 176.
271
Hans Eichner apud Maas, O cânone mínimo, 126.
130
Desse modo, a questão central do livro é a da formação [Bildung 272] do indivíduo, isto
é, o desenvolvimento de suas potencialidades, sob determinadas condições histórico-
sociais, de modo tornar possível uma integração harmônica entre o indivíduo e a
realidade. Note-se que essa reconciliação não pode estar dada de antemão, mas deve ser
posta como um problema, cuja “solução”, digamos assim, se dá no próprio percurso
exposto pelo romance. Por isso, tanto o herói, quanto a ação narrada são condicionados
pela necessidade formal de que a reconciliação entre eu e mundo seja problemática, mas
possível; custosa, mas realizável. O percurso do protagonista Wilhelm Meister,
portanto, não se faz tranquilamente, mas é cheio de idas e vindas, fatalidades e
descaminhos, acertos e erros.
Essa abertura para uma reconciliação possível implica que também o herói
goethiano consista, segundo Lukács, em um tipo intermediário entre a dos outros dois
tipos de romance. No que tange aos seus ideais, o jovem Meister é ainda reticente e
tateante tanto subjetiva quanto objetivamente. Seu desejo de formação é de início
formulado de maneira ampla e sem um conteúdo claramente definido, mais por
oposição à estreita vida burguesa que seria seu caminho natural, ao assumir os negócios
do pai: trata-se, como observa Lukács, de “um ideal pouco claro no que aceita,
inequívoco na rejeição 273”. Por causa disso, a interioridade de Meister é mais flexível e
mais concreta do que a dos personagens do idealismo abstrato, como Dom Quixote por
exemplo, mas ao mesmo tempo mantém viva a esperança de realizar-se no mundo,
recusando a atitude contemplativa própria ao romantismo. A interioridade de Meister,
seus desejos e ideais, não se constituem em uma realidade absoluta que ignora a
realidade externa, mas suas aspirações também não são abandonadas em favor de uma
simples adesão à realidade tal como ela é. Antes, Wilhelm persegue ativamente seus
ideais, isto é, guiado por suas aspirações ele procura agir no mundo, mesmo que de
maneira errática. Pouco a pouco, o próprio enfrentamento com a realidade exterior lhe
proporciona maior conhecimento de si e do mundo, o que lhe permite dar contornos
mais nítidos a seu projeto inicial e buscar caminhos concretos para realizá-lo.
272
Sobre esse termo de tradução complexa Mazzari afirma: “Bildung tem uma longa história atrás de si,
começando com sua identificação com o sentido primeiro de Bild (‘imagem’, imago) e desdobrando-se na
ideia de reprodução por semelhança, Nachbildung (imitatio): nessa acepção original, o arquétipo de Bild
(‘imagem’) e da forma verbal bilden (‘formar’) estaria relacionado com o próprio Criador, que ‘formou o
homem à sua imagem e semelhança”. Marcus Vinicius Mazzari, “Apresentação”, in Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo: Editora 34, 2006), 11.
273
Lukács, A teoria do romance, 139.
131
Em um primeiro momento, o protagonista vislumbra na atividade artística uma
possibilidade de concretizar seu projeto e assim decide engajar-se em uma companhia
teatral, resolução que comunica a sua família na famosa carta a seu cunhado Werner,
homem prático que tenta convencer o jovem a trabalhar nos negócios da família. Assim
escreve Meister em resposta:
De que me serve fabricar um bom ferro, se meu próprio interior está cheio de
escórias? E de que me serve também colocar em ordem uma propriedade rural
se comigo mesmo me desavim?
Para dizer-te em uma palavra: instruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem
sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a infância. Ainda
conservo essa disposição, com a diferença de que agora vislumbro com mais
clareza os meios que me permitirão realizá-los 274.
Essa possibilidade, posta pelo tema do livro, de agir no mundo, significa que as
mediações entre interioridade e mundo exterior sejam fundamentais para esse tipo de
romance. Por isso a relevância das estruturas sociais e das questões relativas à profissão,
à classe, ao casamento, pois se trata de encontrar meios de penetrar a realidade e
encontrar algum grau de satisfação dos anseios interiores na vida social. Isso fica
bastante claro na importância da escolha da profissão para a trajetória de Meister, haja
vista sua condição de membro da burguesia e não da aristocracia, a quem era facultada
pelo nascimento a possibilidade de se formar livre e plenamente. O próprio Meister
reconhece isso na continuação da carta:
274
Johann Wolfgang von Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (Sao Paulo: Ed. 34, 2006),
284.
275
Ibidem, 284–286.
132
uma vez que a realidade exterior – as desigualdades de classe decorrentes da
constituição social alemã no período – é considerada nesse ponto do desenvolvimento
do protagonista como um dado pouco penetrável pela ação humana.
276
Lukács, A teoria do romance, 140. Para designar esse aprendizado que se dá pela experiência, Hegel
se vale de uma expressão que ficou famosa: com o aprendizado, o indivíduo “apara seus chifres”.
277
Ibidem, 141.
133
Ora, nesse tipo de romance há um desenvolvimento do herói que estava ausente
nos outros dois tipos, por isso a denominação romance de formação, ou de educação. O
foco do romance de formação no desenvolvimento das qualidades humanas exige que
essa forma equilibre-se “entre atividade e contemplação, entre vontade de intervir no
mundo e capacidade receptiva em relação a ele 278”, o que se expressa claramente na
narrativa, pois Meister parte para uma série de aventuras, obtém sucessos e fracassos,
mas em momento algum sua problemática interna é deixada de lado; vemos a todo o
momento ele refletir sobre suas escolhas e sobre os caminhos adotados, por vezes
colocando-os em xeque. É isso que permite que Lukács reconheça nesse romance um
caminho intermediário entre a ação demoníaca no mundo própria do idealismo abstrato
e a pura contemplação do romantismo da desilusão.
278
Ibidem.
279
Mazzari, “Apresentação”, 15.
134
romance de formação: lá a multiplicidade de destinos individuais partilha somente do
fracasso necessário nesse tipo, mas esse fracasso não se constitui em fundamento para a
criação de uma comunidade solidária, só aumenta ainda mais a solidão de cada
indivíduo. No romance de formação, ao contrário, a possibilidade do êxito dos ideais no
mundo está fundada na crença “da possibilidade de destinos e configurações
comuns 280”.
No que tange à ação no romance de Goethe, uma vez que ela é definida pelo
objetivo da formação, seu grau de segurança e tranquilidade aparenta ser bem maior do
que no romantismo da desilusão, pois apesar de não se ter clareza quanto aos caminhos
para se realizar o ideal, ao menos a vontade de formação é formulada com propriedade.
Isso não significa, contudo, que o mundo configurado nesse tipo de romance seja
aproblemático: ao longo do romance diversos personagens sucumbem por não serem
capazes de se adaptar (isso ocorre com as figuras mais românticas do livro, Mignon e o
harpista, bem como Aurelie e Mariane, que morrem tragicamente), e outros tantos
murcham e se abatem, por terem capitulado prematura e incondicionalmente frente à
280
Lukács, A teoria do romance, 142.
281
Ibidem, 143. A referência de romance de formação pós-goethiano para Lukács é O verde Henrique de
Gottfried Keller. Segundo Lukács, a aproximação do romance de formação com o romantismo da
desilusão é uma tendência que se aprofunda no século XIX e XX e que traz em si o perigo de que se adote
uma subjetividade não convertida em símbolo, isto é, uma trajetória meramente pessoal e sem nenhum
significado universal, dissolvendo assim a forma épica: “[...] tanto herói quanto destino podem ser algo
meramente pessoal, e o todo torna-se um destino privado que narra memorialisticamente como um
determinado homem logrou entrar em acordo com seu mundo circundante[...]. E essa subjetividade é mais
insuperável que a de tom narrativo: ela confere a todo o representado – mesmo que a configuração técnica
esteja objetivada à perfeição – o caráter fatal, insignificante e mesquinho do meramente privado; resta um
aspecto, que de modo tanto mais desagradável faz dar pela falta de totalidade, pois a cada instante
declara-se com a pretensão de configurá-la. A maioria esmagadora dos romances de educação modernos
sucumbiu inapelavelmente a esse perigo”. Ibidem, 144.
135
realidade (Werner, burguês bem sucedido, é descrito ao final do livro como um homem
de aspecto deteriorado, muito em razão de sua dedicação excessiva ao trabalho 282).
Quanto a esse ponto, Lukács chama atenção para o fato de que essa afirmação
irônica da realidade ao longo do romance deve culminar, ao final da narrativa, na
idealização e romantização de determinados aspectos da realidade e no desprezo de
outras, consideradas prosaicas e vazias de sentido. No entanto, diz Lukács, o mundo
encontrado ao final da busca pela realização do ideal deve ser configurado de maneira
irônica, para que o romance não recaia em uma afirmação incondicional da realidade,
um simples “final feliz”. A perda desse “equilíbrio ironicamente flutuante 284” entre
subjetividade e objetividade, interioridade do personagem e mundo exterior, ideal e real,
282
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, 476.
283
Lukács, A teoria do romance, 144.
284
Ibidem, 147.
136
poesia e vida acarretaria em um dos grandes perigos dessa forma romanesca: “o perigo
de romantizar a realidade até uma região de total transcendência à realidade ou, o que
demonstra com máxima clareza o verdadeiro perigo artístico, até uma esfera
completamente livre e além dos problemas, para a qual não bastam mais as formas
configuradoras do romance 285”.
O próprio Lukács adverte que este teria sido um problema evitado apenas em
parte por Goethe, o que se expressa principalmente na valorização do mundo da nobreza
como símbolo do domínio ativo da vida em oposição ao mundo maravilhoso do teatro,
uma atribuição de substancialidade que tinge o estamento nobre com a coloração
aproblemática da epopeia. Sua descoberta, ao final do livro, de uma realidade
significativa, que não é uma resistência aos desejos do indivíduo, mas oferece
possibilidades para que ele realize seu potencial, embora não se faça de maneira
abstrata, mas esteja configurada de maneira sensível nos casamentos entre burgueses e
nobres que concluem o livro, ainda assim é uma solução idealizada para o problema da
formação.
285
Ibidem, 145.
286
Paolo D’Angelo chama atenção para o fato de que o romance-teoria de Novalis é bastante diferente do
Lucinde de Schlegel. Este último não se orientava pelo elemento fabuloso, como o Ofterdingen de
Novalis, mas pela radical experimentação formal. Nesse sentido, ele ressalta que embora as teorias do
romance de Novalis e de Schlegel tenham sido escritas em estreito contato, de modo que apresentam
muitas características comuns, por vezes o sentido das formulações dos autores difere radicalmente,
mesmo quando as formulações e os termos utilizados coincidem. D’Angelo, A estética do romantismo,
157.
137
É uma história burguesa e doméstica poetizada. O maravilhoso é tratado
expressamente como poesia e exaltação. Ateísmo artístico é o espírito do livro.
[...] No fundo, [...] ele é apoético no mais alto grau, por mais poética que seja a
exposição 287.
Ora, é em virtude desse traço que Novalis constitui para Lukács o exemplo mais
claro de transgressão da forma épica pela romantização da realidade até sua completa
transcendência rumo a uma esfera aproblemática. Se Goethe pecaria por romantizar um
aspecto da realidade a tal ponto que ela transcende a realidade e se torna aproblemática,
Novalis incorre no erro ainda maior de pretender, em sua configuração, apresentar o
transcendente na realidade. A obra de Novalis perderia a tensão que, no fim das contas,
sustenta a forma romance, qual seja, a tensão entre poesia e prosa, entre o maravilhoso e
o desencantado, entre a plenitude de sentido e sua ausência. Em sua oposição inflexível
ao prosaísmo do mundo moderno, Novalis acabaria por desequilibrar a balança da
forma em favor de uma “transcendência realizada no real”, ao estilo do conto de fadas.
Ao contrário de seu modelo, a épica de cavalaria da Idade Média, cuja situação
histórico-filosófica permitia a transfiguração da realidade em fantasia, pois a
mentalidade ingênua de seus autores de fato encontrava na transcendência um mundo
fantástico que iluminava a vida terrena – o tema da busca pelo Santo Graal representa
justamente isso -, em Novalis a unidade entre realidade e transcendência é um objetivo
287
Novalis apud Lukács, A teoria do romance, 146. Vale lembrar que Goethe publica Os anos de
peregrinação de Wilhelm Meister, uma continuação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, e
nesse segundo livro Meister torna-se médico. Nesse sentido, o desejo de tornar-se artista dá lugar ao
projeto de agir ativamente no mundo, pela escolha de um trabalho, o qual por sua vez exige uma
formação especializada e não mais a formação ampla e harmônica que Meister formula no primeiro
romance. Sobre isso conferir o livro de Wilma Patricia Maas, O cânone mínimo – o Bildungsroman na
história da literatura.
288
D’Angelo, A estética do romantismo, 158–159.
138
consciente da configuração. Por isso, o descompasso entre situação histórica e o desejo
de Novalis implicará no fracasso retumbante da forma épica. Diz Lukács:
A realidade está por demais carregada e onerada pelo fardo terreno de seu
abandono das ideias, e o mundo transcendente, em virtude de sua filiação
demasiado direta à esfera filosófico-postulativa da pura abstração, é por demais
etéreo e sem conteúdo para que ambos possam reunir-se organicamente na
configuração de uma totalidade viva. Assim, a fissura artística que Novalis
detecta com argúcia em Goethe torna-se ainda maior e absolutamente
intransponível em sua obra: a vitória da poesia, o seu domínio transfigurador e
redentor sobre todo o universo, não possui a força constitutiva para arrastar
consigo a esse paraíso tudo o que, de resto, é mundano e prosaico; a
romantização da realidade apenas a reveste de uma aparência lírica de poesia
que não se deixa converter em acontecimentos, em épica, de maneira que a real
configuração épica ou apresenta a problemática goethiana, só que mais
agravada, ou é eludida por reflexões líricas e imagens de estados de ânimo. Por
isso a estilização de Novalis permanece puramente reflexiva; embora recubra
na superfície o perigo, na essência apenas o agrava. [...] não lhe restou outra
saída senão poetizar liricamente as estruturas em sua essência objetiva e criar
assim um mundo belo e harmonioso, mas que permanece em si sem relações,
que se prende apenas reflexivamente, apenas por estados de ânimo, mas não
epicamente, tanto à definitiva transcendência torna real quanto à interioridade
problemática, e portanto não pode tornar-se uma verdadeira totalidade 289.
Trata-se, como se pode perceber, de uma crítica próxima àquela feita por Lukács
no ensaio sobre Novalis em A alma e as formas. A plenitude de sentido desejada pelos
românticos não pode ser alcançada no mundo moderno e a força da poesia é insuficiente
para transfigurar o prosaísmo da época. A utopia de um mundo reencantado, de uma
realidade novamente substancial, bela e harmônica permanece uma utopia, totalmente
descolada da realidade da época e, desse modo, não pode configurar uma totalidade
épica.
289
Lukács, A teoria do romance, 147.
139
e lições deliberadas, planejados pelos membros da Sociedade, a qual ele se junta ao final
do livro. Lukács critica, portanto, uma espécie de deus ex machina adotado por Goethe:
esse mecanismo “se torna um segredinho sem sentido oculto mais profundo, um tema
narrativo de acentuado destaque sem verdadeira importância, um ornato lúdico sem
encanto decorativo 290”. Apenas por meio desse artificialismo é que Goethe teria
conseguido resolver o problema da formação de Meister e, nesse sentido, sua solução
significa uma deformação idealizadora da realidade 291.
290
Ibidem, 149.
291
Como assinala Jameson, a utopia “não é conquistada concretamente linha por linha, mas é estabelecida
por um fiat ao final do livro, que alcança e transforma seu início”. Jameson, “The case for Georg
Lukács”, 178.
140
mundo convencional resultava necessariamente em uma atitude puramente interior, uma
vez que a segunda natureza das convenções já estava aí consolidada, na Rússia essa
rejeição encontrava algum respaldo na realidade, uma vez que esta, segundo Lukács,
ainda mantinha certa proximidade com estados naturais e orgânicos. A diferença entre
os romances de Tolstói e os do romantismo europeu, portanto, seria que a rejeição do
mundo convencional no autor russo não acarretaria no processo de dissolução da forma
épica em manifestações líricas e psicológicas, mas encontraria na aspiração por uma
vida fundada em valores comunitários, pautada por ciclos naturais, uma alternativa
àquele tipo de solução formal. Nesse sentido, pelo menos à primeira vista os romances
de Tolstói se distanciariam dos elementos que estruturam o romance e se aproximariam
da organicidade da epopeia.
Que uma tal oposição seja necessária é a problemática insolúvel dos romances
de Tolstói. Em resumo, sua intenção épica teve de desembocar numa forma
romanesca problemática não porque ele não tenha realmente superado em si a
cultura, ou porque sua relação com o que experimentou e configurou como
natureza seja meramente sentimental, não por causas psicológicas, mas por
razões de forma e da relação dela com o seu substrato histórico-filosófico 293.
Essa problemática e necessária oposição entre natureza e cultura acaba por trair
as intenções de Tolstói e revela, de acordo com Lukács, como o romance ainda é a
forma necessária de sua época, pois embora o autor russo pretenda fazer do mundo
natural o centro de sua configuração, a realidade épica tem que ser erigida sobre o
mundo da cultura, onde vivem os indivíduos e onde se desenrolam os acontecimentos
significativos. A relação entre essas duas esferas heterogêneas da realidade, natureza e
cultura, que tem um sentido bem determinado em Tolstói, qual seja, o caminho
292
Lukács, A teoria do romance, 153.
293
Ibidem, 154.
141
percorrido nos romances vai da recusa do mundo convencional à busca pela natureza
essencial, revela que o centro das obras torna-se a busca sentimental e romântica pela
natureza, contrariando a intenção de seu autor. A tentativa de superação do mundo
convencional, portanto, permanece sendo uma tentativa, já que o decisivo em seus
romances pertence sempre ao universo da cultura.
Lukács chama a atenção para a posição peculiar que Tolstói confere ao amor e
ao casamento, situados entre a esfera da natureza e a da cultura. O amor em sua pureza
natural, como paixão, não é inserido por Tolstói no universo da natureza, por ser muito
preso à relação de indivíduo para indivíduo, isolando-os dos demais e sendo por isso
considerado demasiadamente cultural. Antes, o autor confere centralidade ao amor
como casamento, o amor como união e como meio de procriação; a instituição do
casamento e da família são, assim, os verdadeiros motores da continuidade natural da
vida nas obras de Tolstói. Entretanto, quanto mais autenticamente o casamento e a
família são configurados, mais se revela o contrário do que o autor intencionava
demonstrar, pois ambos acabam sendo conspurcados pela necessidade de adaptação à
convenção mais vazia e sem substância.
A única exceção são os momentos próximos à morte, nos quais se abre aos
personagens uma perspectiva que lhes permite enxergar a inessencialidade de todos os
conflitos, sofrimentos e erros pregressos, abrindo caminho para o verdadeiro sentido de
suas vidas. Em Anna Kariênina, a reconciliação entre Kariênin e Vrónski junto ao leito
de morte de Ana, quando o marido traído perdoa o rival, é um desses momentos, mas
ele é logo superado: Ana se recupera e apesar do perdão do marido, não consegue
continuar a viver no casamento e decide voltar para Vronski. Entretanto, a reunião de
Ana com Vrónksi, que parecia ser a promessa de felicidade para o casal, logo se
converte em desilusão, novamente uma vida limitada pelas convenções e vazia de
sentido, que culmina no final trágico da heroína 294.
Por essas razões, Lukács considera que a literatura de Tolstói ocupa uma posição
ambígua no desenvolvimento histórico do romance. Por um lado, ele é o fecho do
Romantismo europeu, um “barroco da forma de Flaubert 295”, que transcende a forma
294
O percurso mais redentor de Lévin, que no final da narrativa aproxima-se do cristianismo e de uma
vida mais plena, é considerado por Lukács como uma solução arbitrária de Tolstói, informada por seus
ideais filosóficos, mas sem consistência artística. Ibidem, 157.
295
Ibidem, 158.
142
romanesca sem aproximar-se da realidade aproblemática da epopeia, já que o anseio por
um mundo da natureza essencial permanece subjetivo e reflexivo. Por outro lado, em
alguns momentos da obra de Tolstói é possível entrever uma nova realidade, concreta e
existente, que se pudesse expandir-se em uma totalidade certamente exigiria uma nova
forma de configuração: “a forma renovada da epopeia 296”. Tolstói seria assim o
prenúncio de uma nova época, mas como a arte nunca pode ultrapassar seu momento
histórico, esse prenúncio tem de permanecer como utopia:
(...) a grande épica é uma forma ligada à empiria do momento histórico, e toda
tentativa de configurar o utópico como existente acaba apenas por destruir a
forma sem criar realidade. O romance é a forma da época da perfeita
pecaminosidade, nas palavras de Fichte, e terá de permanecer a forma
dominante enquanto o mundo permanecer sob o jugo dessa constelação. Em
Tolstói eram visíveis os vislumbres de uma ruptura para uma nova época
mundial: eles permaneceram, contudo, polêmicos, nostálgicos e abstratos 297.
Hans Robert Jauss sugere que a posição cética de Lukács pode ser explicada pela
voga da literatura naturalista à época 299 e, nesse sentido, é bom lembrar que quando da
redação do ensaio, entre 1914 e 1915, o primeiro volume do ciclo proustiano mal
acabava de ser publicado, Ulisses de Joyce e mesmo a Montanha mágica de Thomas
Mann ainda estavam sendo escritos e a pujança e diversidade do modernismo ainda
estava por se realizar. Pressionados pelo aprofundamento da cisão entre indivíduo e
mundo e pelo estranhamento do indivíduo de si mesmo, certos procedimentos literários
do romance do século dezenove foram levados às últimas consequências para que o
296
Ibidem, 159.
297
Ibidem, 160.
298
Ibidem, 159.
299
Hans Robert Jauss, Zeit und Erinnerung in Marcel Prousts À la recherché du temps perdu: ein Beitrag
zur Theorie des Romans, apud Notao d tradutor Ibidem.
143
romance pudesse cumprir a cada vez mais difícil tarefa de recriar, na e pela forma,
algum sentido para a vida e para o mundo. Essa radicalização, no entanto, longe de se
limitar a um epigonismo, como pensava Lukács, acabou por produzir novos frutos, de
fato tão novos que pareciam revogar os próprios pressupostos do gênero.
300
Anatol Rosenfeld, “Reflexões sobre o romance moderno”, in Texto/Contexto I (São Paulo: Perspectiva,
1996), 84–85.
144
Dostoiévski não escreveu romances, e a intenção configuradora que se
evidencia em suas obras nada tem a ver, seja como afirmação, seja como
negação, com o romantismo europeu do século XIX e com as múltiplas reações
igualmente românticas contra ele. Ele pertence ao novo mundo. Se ele já é o
Homero ou o Dante desse mundo ou se apenas fornece as canções que artistas
posteriores, juntamente com outros precursores, urdirão numa grande unidade,
se ele é apenas um começo ou já um cumprimento – isso apenas a análise
formal de suas obras pode mostrar. E só então poderá ser tarefa de uma
exegese histórico-filosófica proferir se estamos, de fato, prestes a deixar o
estado de absoluta pecaminosidade ou se meras esperanças proclamam a
chegada do novo – indícios de um porvir ainda tão fraco que pode ser
esmagado, com o mínimo de esforço, pelo poder estéril do meramente
existente 301.
Para Jameson, esse comentário de Lukács deve ser interpretado mais como uma
utopia social de Lukács, do que como uma análise formal efetiva da obra de
Dostoiévski 302. De fato, de acordo com Arato e Breines, a leitura de textos como
“Cultura estética” (1910) e “Sobre a pobreza do espírito” (1911) revela que o interesse
de Lukács pela Rússia nutria-se da esperança por uma nova forma de vida, “uma
comunidade de indivíduos completamente livres de grilhões psicológicos e sociais,
capazes de ler a alma uns dos outros como a de si próprios 303”, transcendendo assim a
dualidade entre sujeito e objeto e, portanto, entre sujeito e mundo. O que estruturaria a
visão de Lukács seria uma utopia da história como uma oposição entre o espírito
objetivo (o Estado, a Igreja, a Lei, a ética formal, consolidados na civilização ocidental)
e a alma (a comunidade, a religião, a moralidade, a ética substantiva, visionados na
Rússia), na qual a segunda suplantaria o primeiro. Nessa perspectiva, qualquer tentativa
de ultrapassar o mundo do espírito objetivo por novas vias institucionais acarretaria a
mera substituição de um tipo de alienação por outro 304.
Sem dúvida, seria interessante examinar com mais vagar o conteúdo dessa
utopia social de Lukács, mas isso implicaria ir além de nosso tema e adentrar um novo
universo de pesquisa. Para o propósito desta dissertação, parece mais interessante tentar
compreender as observações de Lukács a partir das indicações oferecidas na própria
Teoria do romance. Dito isso, gostaria apenas de levantar um dos sentidos possíveis
para seus apontamentos a respeito de Dostoiévski, tendo em vista, sobretudo, seu
significado para a forma romance.
301
Lukács, A teoria do romance, 161.
302
Jameson, “The case for Georg Lukács”.
303
Arato e Breines, The young Lukács and the origins of Western Marxism, 70. Grifo dos autores.
304
Ibidem.
145
Nesse sentido, apesar do que recomenda Jameson, é possível perceber que o
argumento de que as obras de Dostoiévski não seriam romances possui também uma
acepção formal: o fato delas não se erigirem como uma oposição polêmica ao mundo
das convenções, isto é, de não procurarem resolver formalmente a cisão própria da
modernidade, preservando, no entanto, a dualidade do mundo em sua própria estrutura.
Segundo Lukács, o que aparece de maneira incipiente nos grandes momentos de
revelação dos romances de Tolstói, “a esfera de uma realidade puramente anímica, na
qual o homem aparece como homem – e não como ser social, mas tampouco como
interioridade isolada e incomparável, pura e portanto abstrata 305” consiste em toda a
realidade dos romances de Dostoiévski. Esta não apareceria em uma disputa com o
mundo convencional, mas “esse novo mundo, longe de toda a luta contra o existente, é
esboçado como realidade simplesmente contemplada 306” sendo, assim, o ponto de
partida da configuração.
305
Lukács, A teoria do romance, 161.
306
Ibidem, 160.
307
Carlos Eduardo Jordão Machado, As formas e a vida: estética e ética no jovem Lukács (1910 - 1918)
(São Paulo: Editora Unesp, 2003), 107.
146
os personagens os impelem a questionamentos a respeito da existência de Deus, da
moralidade, do livre arbítrio, da razão e da culpa que deixam de ser abstratas e, pela
intensidade dramática e ficcional conquistada pelo autor, tornam-se algo vivo, são
vivenciadas pelos personagens e pelo leitor 308. Ademais, por terem como ponto de
partida de sua configuração esse vazio de sentido do mundo, as obras de Dostoiévski
põem em cena heróis que são a mais perfeita realização do anti-heroísmo, pois a loucura
e o crime, objetivações da cisão entre indivíduo e mundo, alcançam em seus
personagens uma profundidade inaudita: seus heróis não procuram integrar-se ao
mundo, mas voltam-se contra ele.
A especificidade desse conteúdo, por sua vez, impõe uma série de modificações
formais às obras do escritor russo. Apenas a título de ilustração do problema, o
momento destacado aqui será o da reflexão. No romance tradicional do XIX,
representado à perfeição por Flaubert, a reflexão se fazia presente nos comentários do
narrador a respeito dos acontecimentos ou nas análises dos estados de ânimo dos
personagens. Em Dostoiévski, ela é a tal ponto radicalizada que se torna a própria ação
narrada. Isso se evidencia na função central dos diálogos e monólogos para a narrativa.
Essa centralidade, por sua vez, torna patente a mudança de lugar do narrador, que perde
o antigo posto de organizador da narrativa, que ainda detinha em Flaubert. Em
Dostoiévski, o narrador não paira acima dos eventos, julgando-os sob um ponto de vista
distanciado, mas passa a ser apresentado como mais um ponto de vista dentre outros na
obra.
Desse modo, o predomínio da reflexão nas obras do escritor russo já aponta para
o papel que ela desempenharia de maneira plena nos romances do século vinte, nos
quais a reflexão não é mais uma tomada de partido do narrador frente aos personagens,
mas um ataque à própria pretensão do narrador de apresentar o mundo “tal como ele é”.
Adorno uma vez afirmou que a psicologia que se faz presente na obra de Dostoiévski
não é a dos seres empíricos, dos homens que andam por aí, mas a do caráter inteligível,
da essência 309. Esse traço de sua obra prenunciaria a virada metafísica do romance
308
Como afirma Sergio Givone a respeito do homem do subsolo, personagem de Dostoiévski: “seu lúcido
delírio é fruto daquela força que leva o homem a criar e a destruir, sem outra razão além da gratuidade, da
liberdade (a liberdade de quem não se importa com lei alguma, nem mesmo com o ‘dois mais dois são
quatro’). Assim ele “verifica” a irredutível falta de fundamento da experiência”. Sergio Givone, “Dizer as
emoções”, in A cultura do romance (São Paulo: Cosac Naify, 2009), 470.
309
Theodor W. Adorno, “Posição do narrador no romance contemporâneo”, in Notas de literatura I (São
Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003), 57.
147
moderno que, diante do aprofundamento da reificação, não poderia mais contentar-se
em reproduzir a superfície da vida se quisesse se manter fiel à sua herança realista 310.
Muito ainda poderia ser dito acerca das inovações de Dostoiévski, mas o que foi
exposto até aqui evidencia que, ao curvarem-se à irracionalidade do mundo, sem
procurar apresentá-lo como um todo coerente na configuração, ao relativizarem a
posição do narrador, ao exporem a dilaceração da individualidade de seus heróis, as
obras de Dostoiévski de fato abalaram os pressupostos do romance realista burguês,
como Lukács sugerira. Entretanto, o fato de que hoje continuemos a chamá-las de
romances indica a capacidade que essa forma tem de abrir-se a uma nova realidade e se
transformar, sem, no entanto, tornar-se outra coisa. A permanência do romance, mesmo
que em ruínas, indica também, contudo, que a promessa de um novo mundo continua
barrada pelo “poder estéril do meramente existente”.
310
Ibidem, 58.
148
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