Kurkdjian, Anouch Neves de Oliveira. Romance e Modernidade No Jovem Lukács

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de Sociologia
Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Anouch Neves de Oliveira Kurkdjian

Romance e modernidade no jovem Lukács

São Paulo
2014
Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Sociologia
Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Anouch Neves de Oliveira Kurkdjian

Romance e modernidade no jovem Lukács

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


do departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
sob a orientação do Prof. Dr. Ricardo Musse, como parte
dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em
Sociologia.

São Paulo, 2014


Nome: Anouch Neves de Oliveira Kurkdjian
Título: Romance e modernidade no jovem Lukács

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do


departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a
orientação do Prof. Dr. Ricardo Musse, como parte dos
requisitos para a obtenção do título de Mestre em Sociologia.

Aprovada em:

Banca Examinadora:

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___________________________

___________________________
(suplente)

___________________________
(suplente)
KURKDJIAN, Anouch Neves de Oliveira. Romance e modernidade no jovem
Lukács. 2014. Romance e modernidade no jovem Lukács. (157p.) f. Dissertação
(Mestrado em Sociologia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, 2014.

Resumo: Esta dissertação busca apresentar uma leitura do ensaio A teoria do romance,
de Georg Lukács, atentando para o nexo formulado pelo autor entre a forma romance e
a modernidade. Para este objetivo, procurou-se retraçar os momentos de diálogo que
essa obra estabelece com a teoria do romance de Friedrich Schlegel. Não se trata de uma
tentativa de rastrear as influências que por ventura estejam presentes no ensaio de
Lukács, mas de mostrar como A teoria do romance pode ser reconstituída a partir das
críticas à teoria do romance do romantismo. Pretende-se expor como a investigação da
forma romance, essa forma que como nenhuma outra expressa o “desabrigo
transcendental”, consiste para Lukács em uma via de acesso e crítica à experiência de
alienação que vigora no mundo moderno.

Palavras-chave: 1) Georg Lukács; 2) Teoria do romance; 3) Romance; 4) Modernidade


5) Teoria estética alemã; 6) Romantismo alemão.
Abstract: This dissertation aims to present a reading of the essay A theory of the novel,
by Georg Lukács, paying special attention to the link between the novel form and
modernity formulated by the author. To this end, the moments of dialogue that Lukács’
work establishes with the theory of the novel of Friedrich Schlegel were retraced. It is
not an attempt to track influences that may be present in the essay, but to show how The
theory of the novel can be reconstructed from the critiques of the romantic theory of the
novel. We intend to point out how the investigation of the novel form, the form that like
no other expresses the “transcendental homelessness”, consists for Lukács in a gateway
to and critique of the experience of alienation that takes place in the modern world.

Keywords: 1) Georg Lukács; 2) Theory of the novel; 3) Novel; 4) Modernity; 5)


German Aesthetics Theory; 6) German romanticism.
À memória de minha avó, Quitinha, que me contou
muitas histórias.
Agradecimentos

Esta dissertação é resultado de três anos de trabalho, durante os quais tive a sorte
de contar com o apoio de diversas pessoas. Nada mais justo que relembrar e agradecer
àqueles que fizeram parte desse processo e tornaram este trabalho possível:

Ao professor Ricardo Musse, pela atenção e acolhida às minhas ideias desde o


início desse trabalho; pelo apoio e interesse manifestados ao longo de todo o processo e,
por fim, pela orientação precisa e dedicada, que me concedeu também a autonomia
necessária à difícil tarefa da formação.

À professora Arlenice de Almeida, pelos cursos e palestras a respeito de Lukács


que me foram de grande valia; pela leitura atenciosa do meu texto de qualificação e
pelas instigantes observações; pela gentileza de me emprestar diversos materiais para
esta pesquisa.

Ao professor Marco Aurélio Werle, por dois cursos que se revelaram


imprescindíveis para esta dissertação; pelos comentários e sugestões ao meu texto de
qualificação; pela generosidade com que concedeu dicas e sanou dúvidas; pela abertura
para o diálogo.

Ao professor Fredric Jameson, por ter tornado possível minha visita à


Universidade de Duke; pelo interesse em me supervisionar; pelas conversas sobre meu
trabalho e pelas sugestões que ajudaram a conformar o primeiro capítulo desta
dissertação. Aproveito também para agradecer à Maria Maschauer, funcionária do
departamento de literatura de Duke, por toda ajuda prestada durante o período em que lá
estive.

Aos colegas do grupo de orientação, que em algum momento discutiram e


opinaram sobre meu trabalho e com os quais aprendo constantemente, Caio
Vasconcelos, Carlos Pissardo, Fabio Dias, Fabio Pimentel, Maysa Rodrigues, Vladimir
Puzone, Bruna Della Torre, Eduardo Altheman, Ugo Rivetti.

Aos companheiros de biblioteca e bandejão, Alexandre Otsuka, Vivian Costa e


Laís Silveira, por tornarem a rotina algo mais agradável.

Aos amigos do peito, Eduardo, Camila, Everaldo, Danilo, Vladimir, Ugo e


Fábio, por compartilhamos as agruras e as alegrias do dia-a-dia, sempre com humor. À
Bruna e à Ana Flávia, pela amizade sincera e profunda, por todo o apoio e incentivo que
sempre me deram. À Bruna agradeço ainda pela disposição incansável para a leitura e
comentários sempre instigantes ao meu texto.

Às amigas do time de futsal da FFLCH, de ontem e hoje, em especial às


queridonas Michelli Almeida e Taís Cristina Carvalho-Frota, minhas comadres.
Aos amigos da vida toda, Aline Marsicano, Camila Paglione, Carolina Jordão,
Rafael Lapinha, Cauê Carrilho e Marília Rosa.

Aos novos amigos imeanos, pela acolhida calorosa e pela descontração que me
proporcionaram na tensa reta final de escrita. Um agradecimento especial à Ariadne,
única matemática-revisora que eu conheço, e ao Gilberto pelas conversas animadas.

À minha família, especialmente à Tia Zeca e ao tio Zaven e à tia Ida, por todo o
carinho.

À vó Quitinha, que não está mais aqui, mas que com certeza ficaria feliz em
saber que a dissertação finalmente chegou ao fim.

Aos meus pais, sem os quais nada disso seria possível. Obrigada pelo amor e
apoio incondicionais, pela enorme paciência, por acreditarem em mim mais do que eu
mesma e por oferecerem diariamente o exemplo para que eu continue seguindo meus
caminhos.

Por fim, ao Bruno, que nos momentos mais difíceis sempre soube encontrar as
palavras certas para me acalmar. Agradeço pelo amor e companheirismo sem tamanho,
e por me ensinar, diariamente, que é possível levar a vida com mais leveza.
Esta pesquisa contou com o importante apoio de uma bolsa de estudos da CAPES
– PROEX no período de 01/02/2012 a 31/09/2012 e de uma bolsa de estudos da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) no período de
01/10/2012 a 31/01/2014.
Sumário

Introdução ..................................................................................................................... 11
Capítulo 1 – A teoria do romance como ensaio ......................................................... 18
Capítulo 2 – Do mito helênico à era da perfeita pecaminosidade ou os dois mundos
da épica .......................................................................................................................... 40
“Havia algo de doentio na coisa toda” ........................................................................ 50
A dialética histórico-filosófica das formas ................................................................. 62
Capítulo 3 – O romance é o mundo moderno ............................................................ 76
A segunda natureza ..................................................................................................... 84
A totalidade problemática do romance ....................................................................... 88
A ironia como índice de objetividade do romance ..................................................... 98
Capítulo 4 – Tipologia do romance ........................................................................... 113
O idealismo abstrato: Dom Quixote e Michael Kohlhaas......................................... 113
O romantismo da desilusão: Educação sentimental ................................................. 119
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como tentativa de síntese .................. 125
Tolstói, Dostoiévski e a crise do romance ................................................................ 140
Bibliografia .................................................................................................................. 149
Introdução

Tentar compreender uma obra como A teoria do romance revela-se uma tarefa
difícil, não apenas em virtude da complexidade da própria obra, mas também pelas
variadas interpretações em disputa pelo seu sentido. De fato, poucos livros estão tão
obviamente recobertos por sucessivas camadas de interpretações quanto este e, embora
isso não seja um privilégio exclusivo nem dessa obra, nem de seu autor, parece haver
nesse caso algumas peculiaridades.

Em primeiro lugar, muitas das leituras sobre esse ensaio são marcadas pela
disputa em torno da periodização e do sentido da trajetória intelectual e biográfica de
Lukács, cujo ponto nodal é sua adesão repentina ao marxismo, ocorrida em 1917. De
fato, a vida intelectual de Lukács foi marcada por inflexões bruscas e diversas recusas
de posições teóricas precedentes, o que torna difícil estabelecer uma periodização
inequívoca e conclusiva de sua obra, conforme atesta o intenso debate em torno do
tema 1. Mesmo as obras de sua fase pré-marxista variam bastante entre si, seja em sua
configuração formal, seja em sua orientação metodológica e teórica 2.

No entanto, o que singulariza ainda mais a recepção dessa obra é que o próprio
Lukács desempenhou um papel central em sua conformação. A reedição de suas obras
de juventude, na década de 60, se dá em um contexto peculiar, marcado pela profusão
de entrevistas e relatos do autor acerca de sua trajetória intelectual 3. Essas reconstruções
autobiográficas adquirem centralidade também nos prefácios que, por exigência do
autor, acompanham suas obras reeditadas. Nesses textos, Lukács repisa a apresentação

1
Jose Paulo Netto, Georg Lukacs (São Paulo (SP): Atica, 1992); Andrew Arato e Paul Breines, The
young Lukács and the origins of Western Marxism (New York: Seabury Press, 1979); Michael Löwy, A
Evolução Política de Lukacs : 1909-1929 (São Paulo: Cortez, 1998).
2
Tal fase da produção de Lukács compreende desde livros de grande fôlego como Evolução histórica do
drama moderno (escrito em 1906-1907 e publicado em 1911), passando pelos escritos para uma teoria
estética sistemática, que foram organizados posteriormente na Estética de Heidelberg e na Filosofia da
arte de Heidelberg, passando pelo conjunto de ensaios escritos entre 1908 e 1910, reunidos em A alma e
as formas (publicado em 1911), até A teoria do romance, escrita entre 1914 e 1915. Para uma visão
panorâmica desse período, conferir Ricardo Musse, “Antes de História e consciência de classe”, Estudos
Avançados 27, no 78 (janeiro de 2013): 291–300, doi:10.1590/S0103-40142013000200019.
3
Georg Lukács, Pensamento vivido autobiografia em diálogo de Georg Lukács: entrevista a Insrván
Eörsi e Erzsébet Vezér (São Paulo; Viçosa, MG: Estudos e Edições Ad Hominem Ed. da UFV, 1999);
Georg Lukács, “Meu caminho para Marx”, in Socialismo e democratização (Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2008), 37–54.

11
de sua trajetória intelectual, delineada em um texto de 19334 como um percurso
evolutivo – ainda que contraditório e não linear – em direção ao marxismo, ponto final
antecedido por um período no idealismo subjetivo (Kant) e a subsequente passagem ao
idealismo objetivo (Hegel). Nesses prefácios, Lukács afirma que em termos
metodológicos suas obras de juventude filiam-se às ciências do espírito e tem como
inspiração os trabalhos de Dilthey, Simmel e Weber. As diferenças entre elas dizem
respeito, principalmente, às mudanças em sua orientação filosófica. Assim, Evolução
histórica do drama moderno e A alma e as formas alinham-se a teoria neokantiana da
imanência da consciência, ao passo que A teoria do romance expressaria a transição
para o idealismo objetivo, evidenciado pela tentativa de aplicação dos conceitos
hegelianos às questões estéticas e pelo esforço de construção de uma dialética universal
dos gêneros literários fundada historicamente 5.

Quanto à Teoria do romance, Lukács atribui o sucesso inicial do livro


justamente à conjugação dessas duas vertentes: “é a primeira obra das ciências do
espírito em que os resultados da filosofia hegeliana foram aplicados concretamente a
problemas estéticos 6”. Se os pressupostos hegelianos informam a primeira parte do
livro, mais teórica, a metodologia das ciências do espírito faz-se se presente na segunda
parte do ensaio, na qual Lukács apresenta um esboço da tipologia da forma romance.
Em seu comentário, Lukács aponta ainda a presença de elementos de outras concepções
estéticas que complementariam o fundamento geral hegeliano, como as de Goethe, de
Schiller, de Friedrich Schlegel e de Solger.

No prefácio Lukács procura apresentar ainda, em linhas gerais, as condições de


produção dessa obra, destacando especificamente o papel da eclosão da Grande Guerra,
que de acordo com o autor, o deixara em estado de desespero frente à situação mundial.
Tal reação se expressaria por um tom, diluído ao longo do ensaio, de recusa à sociedade
burguesa do período, que não só consentia entusiasmadamente à guerra, como se
mostrava indiferente à suposta deterioração espiritual e cultural advinda do
aprofundamento do individualismo burguês e do capitalismo industrial 7.

4
Lukács, “Meu caminho para Marx”.
5
Georg Lukács, “Prefácio do autor”, in A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as
formas da grande épica, 2o ed (São Paulo: Editora 34, 2000), 13.
6
Ibidem, 11.
7
Na Europa como um todo, mas principalmente no contexto alemão, ao qual Lukács não era de modo
algum alheio, o processo de modernização era alvo de debates intensos nos quais se opunham aqueles que

12
Salta aos olhos, entretanto, a intensidade das críticas do autor às limitações
teóricas e políticas da obra - dentre elas, os problemas da metodologia das ciências do
espírito com base na qual ele erige sua “tipologia da forma romanesca”; o utopismo
ingênuo de sua crítica ao capitalismo; a conjugação problemática de uma ética de
esquerda, orientada pela revolução, a uma epistemologia de direita, convencional. A
partir dessas observações, Lukács conclui que, apesar de algumas contribuições
pontuais, tal como a descoberta da função do tempo no romance, baseada na durée
bergsoniana, em última instância o único valor do livro é ser um registro da pré-história
das ideologias dos anos vinte e trinta – nomeadamente, o anticapitalismo romântico que
na Alemanha ganhou feições conservadoras ao conjugar-se com a apologia do atraso
político-social do império Guilhermino.

Ora, tendo em vista se tratar de um prefácio escrito quase meio século após a
publicação do livro – período ao longo do qual o pensamento de Lukács sofreu
transformações teóricas e políticas decisivas - talvez não seja prudente tomá-lo como
indicação única e precisa acerca das concepções teórico-metodológicas que orientam a
obra ou como o singular depositário das chaves para sua compreensão e, sobretudo, sua
interpretação. O prefácio parece, antes, nos revelar mais sobre as posições de Lukács na
década de 60 do que propriamente esgotar as possibilidades interpretativas da obra em
questão, muito embora algumas de suas críticas sejam consistentes e toquem fundo nos
problemas de uma posição anticapitalista não mediada pelo marxismo. De todo modo,
parece restar um potencial teórico e crítico na Teoria do romance, que, apesar do
rechaço veemente, mesmo Lukács há de reconhecer, quando afirma que “A teoria do
romance não é de caráter conservador, mas subversivo”, diferenciando, assim, seu
utopismo, expresso na esperança de que uma mudança social poderia ocorrer sem uma
profunda alteração econômica, daquele que a partir dos anos vinte ganharia contornos
explicitamente reacionários. Além do mais, se é verdade que nenhum autor detém o

viam o fenômeno como um progresso incontestável e aqueles que o encaravam com certo mal-estar. Em
seu trabalho sobre os acadêmicos alemães da virada do século XIX para o XX, Ringer mostra como era
disseminada a percepção de que o país atravessava uma “crise da cultura”, tema que aparece em diversos
trabalhos do período. De modo geral, a discussão se organizava em torno do paradoxo que caracterizava
os novos tempos: o desenvolvimento técnico assombroso, que possibilitava realizações materiais nunca
antes vistas, caminhava lado a lado com o declínio da atividade cultural autêntica, com a perda de um
sentido profundo para a vida. Preocupado em realizar uma sociologia dos intelectuais, Ringer aborda de
maneira superficial a produção teórica dos autores que estuda, fato que o leva a uma leitura generalista.
Ao mesmo tempo, associa todo o debate sobre a crise da cultura aos interesses materiais do grupo dos
mandarins, descontentes com sua perda de liderança espiritual e política. Essa explicação parece não
contemplar o caso de Lukács, que estava longe de ser um “mandarim”. Fritz Ringer, O declínio dos
mandarins alemães: A comunidade acadêmica alemã, 1890-1933 (Edusp, 2000).

13
título de propriedade sobre seus pensamentos, talvez seja produtivo adotar uma postura
de insubordinação perante as conclusões que Lukács apresenta no referido prefácio:
essa dissertação nasce desse impulso de, por assim dizer, ler A teoria do romance a
contragosto de seu próprio autor.

Nesse sentido, o esforço que pautou este trabalho foi o de realizar uma leitura
orientada para o esclarecimento dos nexos estabelecidos por Lukács entre a forma
romance e a modernidade. Em vista desse objetivo, nos pareceu fundamental estudar
uma das fontes da discussão presente no livro: o debate acerca dos gêneros literários em
sua relação com a filosofia da história, presente em autores do pensamento estético
alemão do século XVIII, dentre eles Schiller, Goethe, Friedrich Schlegel e Hegel,
citados por Lukács em seu prefácio como referências para sua teorização.

Aos poucos, contudo, foi se revelando que a importância de Friedrich Schlegel


para A teoria do romance era maior do que Lukács faz supor nessa sua visada
retrospectiva. De um lado, a ambivalência com que Friedrich Schlegel e outros
membros do círculo romântico encaravam a modernidade, valorizada pela liberdade
subjetiva que proporcionava, mas, ao mesmo tempo, temida por dissolver a unidade que
sustentava vida em épocas passadas, encontra ressonância no jovem Lukács, que, se
reconhece a ampliação da autonomia individual proporcionada pela época moderna,
também percebe que essa franquia concedida aos indivíduos vem acompanhada de um
terrível senso de alienação e de desabrigo, de modo que aquela aparente liberdade
parecia paulatinamente se converter em um cárcere para as verdadeiras aspirações dos
indivíduos. De outro lado, a centralidade das reflexões de Schlegel ficava patente no
próprio percurso do ensaio de Lukács: o contraste entre mundo clássico e mundo
moderno, a mescla dos gêneros literários na modernidade, a comparação entre epopeia e
romance, a ironia como elemento estrutural do romance, todos esses temas que
estiveram no cerne das preocupações românticas reaparecem na obra de Lukács. Além
disso, o próprio vínculo entre romance e modernidade foi estabelecido de maneira
categórica e decisiva pelos românticos e isso não apenas no sentido de afirmar que o
romance era uma forma moderna, mas sim a forma moderna por excelência, o gênero
mais significativo dessa época, elevando-o a um patamar de reconhecimento até então
restrito às formas clássicas, como a epopeia e a tragédia grega.

14
A teoria do romance, no entanto, não guarda apenas uma relação unilateral com
o romantismo alemão, como se este fosse mera influência presente na obra de Lukács.
Trata-se, antes, de um diálogo, mas um diálogo profundamente crítico que Lukác
entabula com o romantismo. Em uma carta de 1910 a seu amigo Leo Popper, Lukács
assevera: “Bem, minha vida em grande parte é uma crítica aos românticos”. E em
seguida ele explica que não se pode criticar os românticos sem criticar a forma romance:
“Oh, não, não é por acidente que a palavra Roman [romance] e ‘romântico’ são
etimologicamente relacionadas” 8.

Em certo sentido, portanto, nos pareceu ser possível pensar A teoria do romance
como uma espécie de resposta à teoria do romance de Schlegel, uma resposta que se
constrói a partir da crítica à perspectiva romântica, segundo a qual o romance seria
capaz de reconciliar a cisão que caracteriza a modernidade. Lukács, ao contrário,
apreende o elemento de negatividade do romance, insistindo que ele é a afirmação da
dissonância que caracteriza a vida moderna, uma forma tem na alienação entre
indivíduo e mundo seu meio estético e que apenas formalmente consegue reconciliar
esses dois polos.

Esta dissertação de mestrado, portanto, procura investigar os meandros da


relação entre o romance e a modernidade a partir de uma leitura atenta a esse diálogo
crítico. Por um lado, então, nosso propósito não foi o de realizar uma busca que
esgotasse todas as influências presentes na obra de Lukács. Por outro, também não foi
nem poderia ser nosso objetivo reconstruir todo o pensamento estético dos autores
romantismo alemão, mas apenas retomar os momentos mais fundamentais para a
compreensão da discussão presente na Teoria do romance. Aliás, cabe explicar que por
romantismo alemão nos referimos especificamente ao primeiro romantismo enquanto
um fenômeno histórico, isto é, o conjunto de ideias geradas pelo grupo de estudiosos
que se reuniu em Jena, principalmente a partir de 1796, em torno dos irmãos August e
Friedrich Schlegel e das revistas Lyceum e Athenäum.

O primeiro capítulo busca evidenciar a importância do ensaio enquanto forma de


configuração das questões tratadas na Teoria do romance. Para tanto, é feita uma breve
retomada do contexto imediato que envolveu a produção do livro, marcado pelo

8
Judith Marcus e Zoltán Tar, Georg Lukács: selected correspondence, 1902-1920: dialogues with Weber,
Simmel, Buber, Mannheim, and others (New York: Columbia University Press, 1986), 104.

15
interesse de Lukács em se estabelecer como professor na Universidade de Heidelberg. A
partir da correspondência do período, são expostas as divergências entre Lukács e seu
mentor intelectual à época, Max Weber, a respeito da opção do jovem autor húngaro
pela escrita ensaística. Nesse sentido, procura-se mostrar como a preocupação com a
questão formal foi uma tônica desse período da produção de Lukács e já havia sido
inclusive objeto de detida reflexão por parte do autor em “Sobre a essência e a forma do
ensaio”, texto escrito em 1910. Desse modo, o fato da Teoria do romance vir à tona sob
a forma de um ensaio parece ter menos a ver com fatores circunstanciais, do que com
uma necessidade imposta por seu próprio material. A forma de exposição não
sistemática, por sua vez, aproxima Lukács da concepção romântica do fragmento, uma
forma aberta, infinita, processual.

O segundo capítulo orienta-se pelo esforço de esmiuçar a contraposição entre


mundo antigo e mundo moderno, substrato para a análise de Lukács do romance
enquanto forma épica da modernidade. Para esse objetivo, parte-se de uma recuperação
de certo debate estético alemão no século XVIII, momento no qual a busca pelos
fundamentos da arte moderna leva à formulação desse contraste entre uma cultura
orgânica e plena de sentido, localizada em uma Grécia mítica, e um mundo cindido e
fragmentado, que corresponde à época moderna. As reflexões de Friedrich Schlegel
ganham atenção especial, na medida em que tratam essa contraposição de maneira
radicalmente histórica. Em seguida, são apontadas a especificidade da abordagem de
Lukács, que giram em torno de uma apreensão mais atenta aos fundamentos histórico-
sociais que envolvem a perda de um sentido unitário para a vida na modernidade. Feita
essa caracterização de ordem mais geral, é introduzida a discussão a respeito das
transformações sofridas pelas formas literárias ao longo da história e, novamente,
procura-se examinar o diálogo crítico que Lukács empreende com a teoria da literatura
de Schlegel.

O terceiro capítulo centra-se na exposição do nexo estabelecido por Lukács entre


a forma romance e a modernidade. Tendo em vista essa questão, busca-se reconstituir a
teoria do romance do romantismo, na qual se configura pela primeira vez de maneira
aprofundada o vínculo indissolúvel entre o romance e a modernidade, patente na própria
nomenclatura adotada: o romance [der Roman] dá nome à época moderna, denominada
por Schlegel de romântica [das Romantische]. Procura-se então apontar como, partindo
desse e de outros temas colocados por Schlegel, Lukács erige sua teoria como uma

16
crítica à teoria do romance romântica. Nesse sentido, destaca-se a ênfase de Lukács no
fundamento abstrato do romance, isto é, na oposição entre indivíduo e mundo que são,
por assim dizer, o meio estético para a configuração romanesca. Desse modo, enquanto
para o romantismo o romance poderia alcançar o estatuto de poesia universal romântica
e reinstaurar o sentido na vida, o romance é para Lukács a afirmação mais profunda da
cisão que caracteriza a vida moderna.

O quarto e último capítulo apresenta a tipologia do romance construída por


Lukács na segunda parte de seu ensaio, procurando explicá-la a partir da teoria mais
geral exposta na primeira parte do livro. Nesse sentido, a tipologia se sustenta nas
diferentes possibilidades de inadequação entre indivíduo e mundo que, como discutido
no terceiro capítulo, é a problemática que o romance trata de configurar. Optou-se por
abordar principalmente os casos mais representativos de cada um dos tipos, na tentativa
de expor minimamente, de maneira concreta, as observações de ordem mais geral
levantadas por Lukács. No caso do romance de formação, cuja realização mais exemplar
é para Lukács Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, procurou-se
enfatizar que a leitura de nosso autor é construída em debate com a leitura de Schlegel e
de Novalis e, nesse sentido, é reveladora das divergências mais gerais entre Lukács e o
romantismo. Por fim, intentou-se, a partir das observações de Lukács sobre Dostoiévski
e, em menor medida, Tolstói, fazer algumas considerações sobre a chamada crise do
romance.

17
Capítulo 1 – A teoria do romance como ensaio

A teoria do romance impõe ao leitor a sensação de se estar diante de ideias


incompreensíveis. A preocupação com a expressividade das frases pontua a escrita do
livro, bastante poética para os padrões acadêmicos atuais. Os conceitos não são
definidos nem explicados, mas lançados de maneira quase telegráfica. Tais traços se
interpõem a qualquer tentativa de assimilação imediata do conteúdo, que antes exige e
testa a paciência do leitor – mesmo um intelectual do quilate de Max Weber reclamou
que o ensaio de Lukács lhe era ininteligível. Aos que se dispõem a enfrentar a obra,
contudo, logo se revela que essa obscuridade inicial não resulta de uma preferência
subjetiva pela escrita enigmática, mas é um modo de tratamento exigido pelo próprio
objeto enfocado por Lukács. Se, como afirmou Benjamin, a transformação das formas
épicas ocorreu “segundo ritmos comparáveis aos que presidiram a transformação da
crosta terrestre no decorrer dos milênios 9”, perscrutar seus caminhos impõe percorrer
um trajeto de longuíssima duração, o que, sem a condensação e profundidade
possibilitadas pelo ensaio, correria o risco de perder-se em uma acumulação
enciclopédica de informações.

É conhecida a anedota segundo a qual o filósofo neo-kantiano Emil Lask


costumava brincar a respeito de seus jovens amigos Georg Lukács e Ernst Bloch:
“Quem são os quatro apóstolos? Mateus, Marcos, Lukács e Bloch”. Apesar do tom
amigável e inofensivo, o chiste é interessante, pois revela a maneira pela qual Lukács
era visto pelos círculos dos professores universitários de Heidelberg. Mesmo que
admirado por sua inteligência, o húngaro Lukács como que personificava certa
idealização da cultura da Europa oriental, supostamente menos conformada pela

9
Walter Benjamin, “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, in Magia e técnica,
arte e política - ensaios sobre literatura e história da cultura (São Paulo: Editora Brasiliense, 1994), 202.

18
racionalidade ocidental moderna e mais aberta ao misticismo e à escatologia 10. Tal
perfil se expressaria no estilo opaco de seus escritos e na preferência pela forma do
ensaio, gênero que se coadunava cada vez menos às tendências acadêmicas da época, ao
menos dentro das instituições universitárias.

Após haver passado uma temporada de estudos em Berlim antes da conclusão de


seu doutorado pela Universidade de Budapeste em 1906, Lukács retorna à Alemanha
em 1912 e desta vez fixa residência em Heidelberg, que na época era uma espécie de
capital intelectual do país. Desde sua chegada, Lukács esteve próximo de Max Weber e
sua esposa, Marianne, em cuja residência aconteciam reuniões semanais que contavam
com os mais ilustres intelectuais da região, aos quais o inteligente jovem húngaro foi
prontamente convidado a se juntar.

Seu propósito à época era claro: estabelecer-se como acadêmico na universidade


local, tarefa na qual contaria com o importante apoio de Weber, uma das figuras mais
ilustres da instituição. No tradicional e rígido esquema alemão, tornar-se docente
significava obter a Habilitation, licença que permitia ao aprovado assumir uma cátedra
na universidade mediante a apresentação de uma tese submetida a um rigoroso exame
junto à banca de professores catedráticos.

À essa altura, Lukács já era um intelectual reconhecido na Hungria, mas suas


publicações em alemão resumiam-se aos ensaios de A alma e as formas (1911), que
embora tivessem impressionado acadêmicos e artistas alemães – dentre eles Thomas
Mann, Ernst Troeltsch, Martin Buber, além do próprio Max Weber – foram recebidos
com frieza pelos professores mais tradicionais, a quem Lukács teria que conquistar se
quisesse ter sucesso em sua empreitada. Para isso, contou com a ajuda de Georg Simmel
e Emil Lask, que o introduziram e o recomendaram aos professores mais importantes
em Heidelberg e, sobretudo, teve grande auxílio de Weber, que se pôs em ação para que
o nome de Lukács se tornasse conhecido e respeitado na Universidade.

10
Tal visão coincide com a de Marianne Weber, que relata: “Do polo oposto da Weltanschauung os
Weber também conheceram alguns filósofos da Europa oriental que estavam se tornando conhecidos à
época, particularmente o húngaro Georg Von Lukács, com quem os Weber formaram uma forte
amizade...Esses jovens filósofos eram movidos por esperanças escatológicas acerca de um novo emissário
de um Deus transcendente e eles viam a base da salvação em uma ordem social socialista, criada por uma
irmandade” apud Marcus e Tar, Selected correspondence: 1902-1920, 16.

19
Em carta de 22 de Julho de 1912, Weber relata à Lukács uma de suas primeiras
intervenções a seu favor, após ouvir de Wilhelm Windelband críticas ao caráter
assistemático dos textos de seu protegido e, em seguida, aconselha o jovem pensador a
trabalhar detidamente em uma obra:

Eu fiz alguns comentários cuidadosos, tão poucos quanto possível, acima de tudo,
principalmente concernindo a você pessoalmente: que você era essencialmente um
pensador sistemático que deixou para trás sua fase ensaística, etc. [...] Só posso
reiterar minha visão sobre o assunto: se você estiver em condições de submeter uma
obra acabada, não apenas um capítulo, mas algo que seja em si “completo”, suas
11
chances de um resultado positivo aumentariam em muito .

Seguindo as recomendações de Weber, portanto, Lukács planeja apresentar como


Habilitationsschrift sua Estética, cujos esboços iniciais tinham sido feitos enquanto
estava em Florença (1911-12). A boa consecução de uma estética sistemática seria
fundamental para provar tanto a Weber, quanto a seus colegas menos receptivos aos
juízos de Lukács, que ele havia “superado” sua fase ensaística e que era capaz de
realizar um trabalho sistemático, digno de ser conduzido dentro de uma instituição
universitária.

Durante os primeiros meses de 1913, Weber recebe positivamente os capítulos


iniciais da tese de habilitação de Lukács. Quanto à forma, Weber ressalta a claridade da
exposição e aprecia a concisão e a lógica que predomina na escrita, e no que diz respeito
ao conteúdo, se mostra bastante impressionado com a arguta formulação da
problemática estética feita por Lukács. Mesmo assim, não deixa de reforçar a delicadeza
das circunstâncias: “Uma coisa é certa: quanto mais material você tiver à mão, melhores
serão suas chances de sucesso numa situação crivada de dificuldades” 12.

Por volta de março de 1915, no entanto, Lukács relata em carta a seu amigo Paul
Ernst que havia posto de lado sua estética e passado a trabalhar no que ele chama de seu
“livro sobre Dostoiévski (...) O livro contudo irá além de Dostoiévski; conterá minha
ética metafísica e uma parte significativa de minha filosofia da história” 13. Mas logo em
agosto do mesmo ano, pressionado por uma possível convocação para a guerra no mês

11
Ibidem, 204. Na mesma carta, Weber menciona a dificuldade em saber se existem “condições
objetivas” que tornariam a candidatura de Lukács praticamente nula, a saber, a atmosfera pouco receptiva
aos judeus no círculos acadêmicos alemães na época. Quando as citações permitirem, cotejaremos a
tradução de José Marcos Mariani de Macedo, “Posfácio do tradutor”, in A teoria do romance: um ensaio
histórico-filosófico sobre as formas da grande épica (São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000).
12
Carta de 22 de março de 1913, in Marcus e Tar, Selected correspondence: 1902-1920, 223.
13
Carta de Março de 1915 Ibidem, 243.

20
seguinte, seus planos de trabalho têm de ser revistos. Quanto ao livro sobre Dostoiévski,
a extensão do projeto somada à tal conjuntura, não deixam à Lukács alternativa senão
abandoná-lo, como revela em nova carta a Ernst: “Eu já desisti de meu livro sobre
Dostoiévski, que se tornou um projeto demasiado grande. Dele resultou um longo
ensaio: A estética do romance 14”. É sob a forma desse longo ensaio dividido em duas
partes que vem à luz A teoria do romance, correspondente em linhas gerais ao capítulo
introdutório do que seria o livro sobre o escritor russo.

A troca de cartas entre Lukács e Weber nesse período dá ideia da recepção


negativa do ensaio por parte do sociólogo alemão. Em carta de dezembro de 1915,
Lukács tenta remediar a situação e reconhece o caráter inacabado da obra:

Eu esperava por seu dissabor com a minha Estética do romance. Mas estou ansioso
para saber se a elaboração subsequente conseguiu lhe conciliar a simpatia; em outras
15
palavras, se foi capaz de induzi-lo a fazer as pazes com a introdução . […] Não
fosse pelo meu serviço militar ou pelo fato de o término da guerra não se achar
absolutamente à vista, aceitaria as consequências, desistiria da ideia de publicar esse
fragmento e esperaria até que todo livro sobre Dostoiévski estivesse concluído. Mas
nessa situação, na qual não posso dizer quando retomarei um trabalho mais
substancial nem se retornaria (talvez daqui a anos) diretamente a esse mesmo
projeto, e não à Estética, acho difícil mesmo contemplar uma espera mais longa.
16
Quanto a mim, uma revisão completa está fora de cogitação .

Mesmo desagradado pelo ensaio – Weber chega a considerar a primeira parte


“ininteligível para todos exceto aqueles que o conhecem intimamente” 17, seu apoio se
mostraria incondicional e sua persuasão imprescindível para que o texto fosse publicado
integralmente na prestigiosa Zeitschrift für Äesthetik und Allgemeine Kunstwissenschaft,
de Max Dessoir 18. Para Lukács, publicar o texto havia se tornado uma tarefa inadiável,
tendo em vista que sua convocação para o serviço militar tinha se tornado uma realidade
e que, em tais condições, era impossível retomar qualquer trabalho intelectual de grande
fôlego. Se Lukács havia reconhecido o caráter inacabado da obra, ele, no entanto, não
cederia às reprimendas de Weber acerca do estilo de sua escrita, o qual defendeu com
firmeza:

Bem entendo que você tenha algumas dúvidas sobre a maneira peculiar de minha
escrita, mas, como sabe, sou incapaz de partilhá-las. Inúmeras vezes reprovo-me o

14
Carta de 2 de Agosto de 1915 Ibidem, 252.
15
Lukács se refere ao item um da primeira parte, “Culturas fechadas”.
16
Carta de dezembro de 1915 Marcus e Tar, Selected correspondence: 1902-1920, 253–4.
17
Carte de 23 de dezembro de 1915 Ibidem, 255.
18
Dessoir resistia à publicação integral, pois apenas a segunda parte do ensaio, “Esboço de uma tipologia
da forma romanesca”, lhe agradava.

21
fato de, dentro da forma que escolhi, estar produzindo uma obra desigual (a Teoria
do romance tem níveis muito diversos de intensidade e concentração) e de que ela
tenha de ser lida duas vezes. A questão de se vale a pena ou não o fazê-lo nada tem a
ver com a questão da forma. Tudo que tem algum valor há de ser lido ao menos duas
19
vezes .
Também com urgência Lukács tratava os trâmites envolvendo sua habilitação,
cuja possibilidade em meio à guerra vinha tornando-se cada vez mais remota, uma vez
que sua projetada Estética contava então com apenas dois capítulos terminados. Em
julho de 1916, já liberado do serviço militar, Lukács retorna à Heidelberg e retoma as
conversas com Weber a respeito de sua candidatura. Este lhe apresenta e analisa
possíveis estratégias para que Lukács alcançasse seu objetivo e volta a sugerir que o
jovem postulante se beneficiaria enormemente se conseguisse completar a escrita da
Estética. Mais adiante, Weber – valendo-se das palavras de Emil Lask, com as quais ele
pelo menos parcialmente concordava – insiste no que ele para ele era a fonte de
desconfiança sobre Lukács no círculo dos professores universitários e a principal
barreira para sua habilitação:

Terei de ser honesto com você e relatar-lhe o que um amigo muito próximo – Lask –
disse de você: “ele nasceu um ensaísta e não persistirá no trabalho sistemático
(profissional); ele não deveria, portanto, candidatar-se à docência”. Não é preciso
dizer, o ensaísta não é nem um pouco menos do que o acadêmico profissional,
sistemático – talvez seja o oposto! Mas ele não tem lugar algum em uma
universidade e não faria bem à instituição, nem, o que é mais importante, a ele
próprio. Com base no que você nos leu dos brilhantes capítulos introdutórios de sua
Estética, discordo veementemente dessa opinião. E como sua repentina inflexão para
Dostoiévski pareceu dar respaldo a essa opinião (de Lask), odiei e continuo a odiar
essa obra. Se você realmente toma como um fardo e uma frustração intoleráveis a
necessidade de rematar uma obra sistemática antes de começar outra, é com pesar
que o aconselho a desistir de qualquer pretensão à atividade docente. [...] Nesse
caso, sua vocação é outra 20.

Não é difícil notar que nessa carta ecoam alguns argumentos que Weber repisaria
com mais calma e profundidade meses depois na famosa palestra “Ciência como
vocação” (1917). Nela, Weber discorre sobre o papel da ciência e procura expor uma
visão realista da profissão do cientista, em contraposição às concepções idealizadas
partilhadas pelos jovens estudantes da época. Nesse sentido, o sociólogo alemão traça

19
Carta de 16 de janeiro de 1916 Marcus e Tar, Selected correspondence: 1902-1920, 258. Percorrendo
as cartas entre Lukács e outros acadêmicos, a observação de que a escrita de A teoria do romance era por
demais opaca é recorrente. Karl Jaspers sugeria que no futuro Lukács deixasse claras suas pressuposições
e, principalmente, apresentasse de antemão para o leitor seus conceitos “de forma puramente lógica, por
assim dizer, juridicamente precisa” Ibidem, 267. Ernst Troeltsch aponta para a ausência de exemplos
para as formulações abstratas de Lukács na obra: “Você mesmo deve saber que ela é difícil de ser lida
porque está cheia de abstrações, e é preciso oferecer as ilustrações para a maioria delas.
Consequentemente, fica-se sempre em dúvida se a inferência ou a conclusão está correta” Ibidem, 271.
20
Carta de 14 de agosto de 1916 Marcus e Tar, Selected correspondence: 1902-1920, 264.

22
uma linha que separa rigidamente o cientista do diletante, figura semelhante ao ensaísta
congênito que seria Lukács.

Segundo Weber, o homem de ciência, da ciência moderna, está submetido


necessariamente a mais rigorosa especialização. Apenas um especialista poderia
alcançar a glória máxima no seu campo: a produção de um conhecimento sólido e
duradouro, ainda que certamente superável, pois a lógica da pesquisa científica, na
perspectiva de Weber, é cumulativa, de modo que o destino de um trabalho científico é
ser superado. O requisto para um cientista, portanto, é ser capaz de realizar um trabalho
metódico, constante, circunscrito a uma questão bem delimitada e restrita. Justamente
estas qualidades faltam ao diletante, que por isso não tem mais lugar na ciência moderna
– e nem na instituição que a produz, a universidade – já que permanece na superfície
das coisas e não consegue domar seu interesse, por demais inconstante, disperso e
variado. Suas descobertas devem-se muito mais à inspiração do que ao trabalho
sistemático rigoroso e, nesse aspecto, ele se aproxima do artista, já que ambos operam
num campo mais afeito a inspirações subjetivas. Estas, se não estão de todo ausentes na
ciência, devem estar sempre submetidas ao rigor lógico e metodológico. Na ciência
moderna, racionalizada e profissional, o “especialista sem coração” substitui o ensaísta
selvagem:

Só a especialização estrita permitirá que o trabalhador científico experimente por


uma vez, e certamente não mais que por uma vez, a satisfação de dizer a si mesmo:
desta vez, consegui algo que permanecerá. Em nosso tempo, obra verdadeiramente
definitiva e importante é sempre obra de especialista. Consequentemente, todo
aquele que se julgue incapaz de, por assim dizer, usar antolhos ou de se apegar à
ideia de que o destino de sua alma depende de ele formular determinada conjectura e
precisamente essa, a tal altura de tal manuscrito, fará melhor em permanecer alheio
21
ao trabalho científico .

Ora, se A teoria do romance conseguiu despertar o interesse e entusiasmo de


intelectuais como Alfred Weber, Ernst Troeltsch, Ernst Bloch e Karl Mannheim, não é
de surpreender que outros leitores, cruciais para a busca de Lukács pela Habilitation,
não tenham se mostrado tão receptivos à heterodoxia da obra 22. Essa circunstância deve

21
Max Weber, Ciência e política duas vocações (São Paulo: Cultrix, 2004), 24–25. Não se trata, é claro,
de transformar Weber em algo semelhante a um positivista vulgar. Basta lembrar, por exemplo, que seu A
ética protestante e o espírito do capitalismo, acabou por ter a forma de um ensaio.
22
Embora a concepção de ciência na época não fosse unívoca, em particular das ciências humanas, tais
quais a filosofia e a sociologia, temos que pensar essa questão historicamente, ou seja, lembrar que na
Alemanha a sociologia não era ainda uma ciência legitimada, o que explica, pelo menos em parte, o rigor
de cunho sistemático imposto aos trabalhos científicos nas universidades nesse período. Sobre a relação

23
ter contribuído para que Lukács mudasse de ideia e retornasse a seu plano inicial, a
Estética, e em carta de março de 1917 ele aparenta estar bastante satisfeito com seus
esforços na escrita da tese: otimista, anuncia que pretende terminar as 900 páginas do
primeiro volume até o verão 23. Entretanto, alguns meses depois, Lukács revela em nova
missiva a seu amigo Paul Ernst que atravessava uma depressão, “de um modo que
nunca experimentei antes; estou completamente incapacitado para o trabalho” 24.

As razões para esse estado espírito, complexas como em todos os casos desse
tipo, dificilmente podem ser estabelecidas com precisão. Certamente entram em jogo aí
questões pessoais, profissionais e intelectuais. O fato é que logo em seguida Lukács
resolve retornar à Budapeste, não sem antes depositar em cofre de um banco alemão
uma mala contendo uma série de manuscritos, seu diário e cerca de 1600 cartas, que só
seriam encontrados quase 60 anos depois. Mesmo em Budapeste, Lukács não desiste da
habilitação e finalmente submete sua candidatura formal em 25 de maio de 1918. Em 7
de dezembro do mesmo ano, contudo, ele é informado pelo decano da universidade que
sua candidatura fora rejeitada, sendo a razão para tal sua origem estrangeira.
Caminhando para uma carreira na política, Lukács resolve então retirar sua inscrição e
no mesmo mês adere ao Partido Comunista.

As constantes ressalvas feitas à Lukács em virtude de sua suposta incapacidade


para o trabalho sistemático acabaram por ser um grande obstáculo à sua entrada no
mandarinato alemão 25. Podemos, é claro, ponderar que mesmo que a princípio encarasse
a interrupção da Estética como algo momentâneo, Lukács de fato inicia um novo
projeto sem antes rematá-la, dando razão às suspeitas de Lask (e Weber) a respeito de
sua “natureza ensaística”. Ora, para o caso de Lukács, parece caber perfeitamente a
observação de Adorno, feita décadas depois, de que o ensaio provocava resistência na
Alemanha – e, poderíamos acrescentar, não só na Alemanha – porque evoca uma
liberdade de espírito que não encontrou terreno para se desenvolver adequadamente.

entre sociologia, arte (para a qual tenderia o ensaio) e ciência na Alemanha cf. a terceira parte de Wolf
LEPENIES, As três culturas, trad. Maria Clara Cescato (São Paulo: USP, 1996).
23
Carta de 11 de março de 1917 ao professor Gustav Radbruch in Marcus e Tar, Selected
correspondence: 1902-1920, 272.
24
Carta de julho de 1917 Ibidem, 275.
25
Vale ressaltar aqui a semelhança com a trajetória de Simmel, de quem Lukács foi aluno, tanto no que
diz respeito à opção pela forma ensaística, quanto no que isso implicou para a inserção acadêmica de
ambos. Cf. “Ensaio” In: Leopoldo Waizbort, As aventuras de Georg Simmel (São Paulo: Editora 34:
Universidade de São Paulo, 2006).

24
A opção pelo ensaio foi, de fato, uma escolha e não o resultado de alguma
incapacidade, pois Lukács já provara que era capaz de terminar uma obra sistemática e
de grande escopo em História do desenvolvimento do drama moderno, seu primeiro
livro, cuja redação inicial se deu em sua temporada em Berlim em 1906-07 e que,
depois de vencer o concurso oferecido pela Sociedade Kisfaludy de Budapeste, foi
amplamente revisado e ampliado em 1908-09, para ser editado em dois volumes em
1911 26. Quanto à Teoria do romance, Macedo tem razão ao apontar que a forma
ensaística do livro não se deve a uma suposta aversão pessoal de Lukács ao estudo
metódico, nem a uma simples preferência estilística subjetiva, quer dizer, não se deve a
um traço acidental, mas, antes, a “uma verdadeira adaptação formal à natureza da
matéria 27”. Afinal, como perscrutar os longos caminhos percorridos pelas formas
literárias da Grécia homérica à época moderna de maneira profunda, sem recair em um
afã enciclopédico de acumulação indiscriminada de informações?

Que a questão formal era uma inquietação de Lukács fica claro na carta enviada
a Paul Ernst em abril de 1915, período em que redigia A teoria do romance:

Meu trabalho progride muito lentamente. Infelizmente, em consequência de meu


trabalho na Estética, eu perdi a capacidade de escrever concisamente; e ainda estou
em busca de um estilo narrativo-ensaístico apropriado. [...] Se alguém tem que
cobrir um vasto terreno e tem a (infeliz) tendência de retraçar todos os problemas até
suas raízes, então é absolutamente necessário alcançar um fluxo de pensamento
propriamente sinfônico, que é bastante diferente de um estilo sistemático-filosófico
28
de escrita, com sua estrutura arquitetônica .

As primeiras frases deixam entrever certo descontentamento com a dificuldade


para reencontrar a antiga aptidão para a escrita ensaística, a qual Lukács decerto já
percebia como mais adequada do que o sistema para lidar com suas questões de maneira
ao mesmo tempo profunda e multifacetada. Mais do que isso, também já era claro para

26
Inspirado por Simmel, com quem estudara em Berlim, Lukács buscou realizar um novo tipo de história
literária que conjugasse e trouxesse à tona as relações entre o plano interno e o plano externo à obra, isto
é, questões literárias e questões sociais, sem reduzir umas às outras. George Lukács, “The Sociology of
Modern Drama”, trad. Lee Baxandall, The Tulane Drama Review 9, no 4 (1 de julho de 1965): 146–70,
doi:10.2307/1125039.
Cf. “The Drama” In: Lee Congdon, The Young Lukács, 2aed ed (Chapel Hill: University of North
Carolina Press, 2009). Sobre a relação entre Lukács e Simmel conferir também “Introduction to the
translation” IN:
Georg Simmel, David Frisby, e Tom Bottomore, The philosophy of money (London: Routledge, 2004).
O apoio de Weber foi fundamental para que Lukács conseguisse, em 1914, publicar sob a forma de
ensaio o segundo capítulo de História do desenvolvimento do drama moderno, que havia saído na
Hungria em 1912.
27
Macedo, “Posfácio do tradutor”, 170.
28
Carta de 14 de abril de 1915 in Marcus e Tar, Selected correspondence: 1902-1920, 245.

25
Lukács que apenas o ensaio o permitiria fazer jus à rica variedade de aspectos de seus
objetos, sem submetê-los ao engessamento próprio ao sistema. Como afirmam Arato e
Breines sobre a afinidade de Lukács com a forma ensaística:

O ensaio e o fragmento, em sua brevidade e incompletude, são expressões


verdadeiras da realidade viva de seus objetos. Incompatíveis com sínteses
intelectuais e resoluções de antagonismos concretos, o ensaio e o fragmento são, em
um mundo antagonístico, a forma de expressão dialética por excelência. Elas
também são formas de expressão particularmente adequadas ao viajante. Elas são,
literalmente, tudo o que há tempo para escrever. Mais fundamentalmente, elas
anunciam que o pensamento de alguém permanece en route, indicando que o destino
29
não pode ser alcançado somente pelo pensamento .

A resistência de Weber e companhia, no entanto, é reveladora não apenas do staus


quo acadêmico da época, como não deixa de conter alguma verdade sobre o próprio
objeto em questão. Afinal, enquanto forma bastarda e problemática, o ensaio encontra-
se ameaçado de um lado pelo excesso de ornamento e falsa profundidade, quando é
confundido com mera questão de estilo e, de outro, pela proximidade com o trivial e
com o fútil, em virtude das afinidades que guarda, em sua manifestação mais
contemporânea ao menos, com a moda passageira, o folhetim e as revistas, - em
expansão no fim do século XVIII com o crescimento das cidades – e, posteriormente,
com a indústria cultural 30. Assim como o cientista que, com a pretensão de resguardar
uma suposta objetividade científica, ignora a relação entre forma de exposição e
conteúdo incorre no erro de acreditar que ordem das ideias é igual à ordem do real, o
ensaísta também não se vê livre dos riscos do impressionismo, quando toma o ensaio
como mero veículo de expressão subjetiva e ignora a existência do conteúdo que deve
interpretar 31.

Lukács já havia refletido sobre o caráter contraditório do ensaio no texto de


abertura de A alma e as formas 32, fato que deixa ainda mais patente o que procuramos
mostrar até aqui, qual seja, que a forma ensaística de A teoria do romance não é produto
de uma casualidade, mas está em consonância com as questões tratadas no livro. Em

29
Arato e Breines, The young Lukács and the origins of Western Marxism, 4. Os autores sublinham
também a afinidade da forma ensaística com a vida do viajante Lukács, que em juventude passou longas
temporadas não só em Heidelberg e Berlim, mas também em Florença.
30
Como bem nota Adorno em sua reflexão sobre o ensaio: Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma”,
in Notas de literatura I (Duas Cidades/Editora 34, 2003). p.19
31
“O que há de problemático na situação se exacerbou até se tornar quase que uma inevitável frivolidade
no pensamento e na expressão – e para a maioria dos críticos já se tornou uma disposição vital” Georg
Lukács, “Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”, trad. Mario Luiz Frungillo,
Revista UFG Ano X, no No4 (junho de 2008): 118.
32
Lukács, “Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”.

26
“Sobre a essência e a forma do ensaio” – não por acaso concebido como uma carta a um
amigo próximo e que, portanto, tem um caráter dialógico, aberto e pessoal – Lukács
procura pensar sobre o estatuto do ensaio, situando-o num âmbito distinto tanto da
ciência e da filosofia, quanto da arte em sentido estrito. Embora pense o ensaio como
um gênero artístico, o esforço de Lukács será precisar, a partir da consideração
detalhada da forma ensaística, sua natureza específica, que a distingue “com inapelável
rigor de lei de todas as outras formas artísticas 33”.

Informado pela crítica da filosofia vitalista ao positivismo, Lukács afirma que a


distância que separa o ensaio da ciência é clara: ensaios genuínos contém mais do que
informações, fatos e relações – os dados com os quais a ciência opera – e por isso não
tem seu valor negado quando novas análises, mais completas e atualizadas, vem à tona.
O ensaio promove um conhecimento de outra ordem e que está além daquele produzido
pela pesquisa científica: ele se endereça às questões últimas da vida, fronteira que a
ciência não se propõe a adentrar. É esta a concepção de ciência em Weber, cuja resposta
à pergunta sobre o sentido do empreendimento científico em um mundo racionalizado
busca desfazer as ilusões de que a ciência poderia oferecer o “caminho para o
verdadeiro ser” ou o “caminho para a felicidade autêntica” e, com as palavras de
Tolstói, conclui que a ciência carece de sentido, pois não tem resposta alguma para a
única questão que nos interessa – “Que devemos fazer? Como devemos viver?”34. A
ciência moderna, totalmente afastada da metafísica, pode apenas emitir juízos
científicos, alcançados mediante procedimentos lógicos; quanto aos juízos de valor, ela
nada teria a nos oferecer. Ora, o ensaio recusa essa separação, e por isso Lukács confere
centralidade ao gênero em seu projeto intelectual.

Uma das questões fundamentais para Lukács nesse período e que confere certa
unidade aos ensaios que compõem A alma e as formas – à primeira vista bastante
heterogêneos pelo menos se levarmos em conta seus objetos 35 ˗ é a dualidade entre vida
empírica e essência que caracterizaria a época moderna, ou para usar os termos de

33
Ibidem, 105.
34
Weber, Ciência e política duas vocações, 36.
35
Os ensaios abordam autores das mais variadas épocas e tendências: Rudolf Kassner, Soren
Kierkegaard, Novalis, Theodor Storm, Stefan George, Charles-Louis Phillipe, Richard Beer-Hofmann,
Laurence Sterne e Paul Ernst.

27
Lukács, entre “a vida” e “a vida” 36. Tal cisão se expressa em uma série de dicotomias
que permeiam os ensaios do livro: o imediato e o autêntico; o cotidiano e a vida plena; a
vida concreta, em sua singularidade empírica, e a vida abstrata, de valores supremos. A
mediação entre esses dois polos seria possibilitada pela forma artística, razão pela qual
esta adquire o estatuto de objeto privilegiado do ensaio.

Mas o ensaio também é uma forma e isto novamente o afasta da ciência moderna,
pois nela o que importa é tão somente o conteúdo 37. O ensaio compartilha com a obra
de arte, portanto, a qualidade de ser uma forma e por isso Lukács o define como um
gênero literário. Se o ensaio pode ser considerado uma forma artística, o esforço de
Lukács, no entanto, será esmiuçar as diferenças entre ensaio e a literatura, de modo que
as especificidades do primeiro venham à tona. A primeira dessas peculiaridades é que
enquanto o artista ou o poeta lida com a vida empírica, o ensaísta lida com as questões
fundamentais da vida, com os universais, com os sentidos últimos. Embora esses
objetos pareçam aproximar o ensaio da filosofia, a maneira pela qual o ensaio aborda
essas questões o distingue do pensamento filosófico tradicional, pois este se instala no
mundo rarefeito das essências e procede por meio de conceitos abstratos, situando-se
por isso em uma instância por demais afastada da vida empírica.

Ora, para Lukács, a literatura promove uma configuração da vida empírica, isto é,
sua forma delimita uma matéria que, do contrário, se dissolveria em um todo caótico e
indistinto, mas ela permanece no nível das coisas, pois “para ela cada coisa é algo de
sério e único e incomparável” e por isso ela não “conhece as perguntas 38”, ou seja, ela
não chega às questões fundamentais, às determinações valorativas, que permitiriam
conciliar os dois planos de oposições, o essencial e o empírico. Para cumprir esse
anseio, a obra literária deve contar com uma elaboração ulterior, cuja realização cabe ao
ensaísta, que por meio da reflexão acerca do material bruto da vida formalizado pela
literatura consegue trazer à tona essas perguntas e vislumbrar os elementos que apontem
para as respostas, isto é, consegue separar o essencial do não essencial.

36
“Existem, portanto, dois tipos de realidade da alma: a vida é uma delas, e a vida a outra; ambas são
igualmente reais, mas nunca podem ser reais simultaneamente” Lukács, “Sobre a essência e a forma do
ensaio: uma carta a Leo Popper”, 107.
37
“Na ciência são os conteúdos que agem sobre nós, na arte são as formas; a ciência nos oferece fatos e
suas conexões, a arte, por sua vez, almas e destinos”. Ibidem, 106.
38
Ibidem, 107.

28
Ensaio e literatura, portanto, estão em uma relação de necessidade mútua: se a
literatura precisa do ensaio para realizar o que nela é ainda potencialidade, o ensaio por
si só não pode falar do essencial sem passar pela mediação da forma literária, do
contrário se tornaria tão conceitual e abstrato quanto a filosofia que Lukács almejava
criticar. Por isso é que o ensaio tem que falar das formas, pois é falando das formas é
que o ensaio fala do essencial:

O crítico é aquele que vislumbra a fatalidade nas formas, cuja vivência mais intensa
é aquele conteúdo da alma que as formas indireta e inconscientemente escondem em
si mesmas. A forma é sua maior vivência, ela é, como realidade imediata, o que há
de figurativo, de verdadeiramente vivo em seus escritos. Da força dessa vivência
essa forma, originada de uma observação simbólica dos símbolos da vida, recebe
uma vida própria. Ela se torna uma visão de mundo, um ponto de vista, uma tomada
de posição diante da vida da qual ela se originou; uma possibilidade de transformá-
39
la e recriá-la .

O ensaísta, assim, libera a literatura dos limites impostos pela expressão do


sensível e como que arremata a forma, tornando possível que ela possa exprimir aqueles
valores mais profundos da vida; ele cumpre e torna explícito aquilo que estava presente
na literatura de forma indireta e inconsciente: por meio do ensaio a forma literária atinge
o estatuto de forma propriamente dita, pois concilia o singular ao universal, a vida
empírica e a vida essencial. Literatura e ensaio, portanto, colaboram para que a mais
profunda singularidade conjugue-se com a maior universalidade.

Nesse ponto, Lukács não deixa de seguir a centralidade conferida pelo primeiro
romantismo à ideia da crítica de arte como uma espécie de literatura à segunda potência,
para a qual o ensaio, enquanto gênero teórico situado entre literatura e filosofia, seria a
forma mais adequada. Um dos indícios dessa influência são as constantes menções às
figuras do crítico e do ensaísta, intercambiáveis na economia textual Lukács. O mesmo
ocorre nos textos dos primeiros românticos, nos quais, como bem nota Benjamin, “de
todas as expressões técnicas, filosóficas e estéticas, os termos ‘crítica’ e ‘crítico’ são
provavelmente os mais frequentes 40”. Mais do que isso, a própria figura do crítico é
uma invenção romântica que exprime uma nova relação com as obras de arte. Nela, o
crítico não é mais um juiz que emite sentenças a partir de leis fixadas previamente,
erigidas a partir de modelos eternos buscados na antiguidade clássica, nem recai na
tendência oposta – na qual recaiu o Sturm und Drang –, a de subscrever de modo

39
Ibidem, 110–111.
40
Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo: Iluminuras, 1993),
58.

29
absoluto aos direitos da genialidade sem nenhum critério de julgamento. Dito de
maneira breve, a ideia de crítica anuncia que as obras de arte devem contar com uma
interpretação para tornarem-se completas e, nesse sentido, a noção de crítica aproxima-
se da ideia de reflexão, isto é, de um voltar-se sobre si mesmo do pensamento, do ato de
pensar sobre o pensar. Como nota Benjamin, “a crítica é, então, como que um
experimento na obra de arte, através do qual a reflexão desta é despertada e ela é levada
à consciência e ao conhecimento de si mesma 41”.

Assim fica claro porque, para Lukács, o ponto de chegada da literatura, a forma, é
o ponto de partida do crítico: ela “é a realidade nos escritos do crítico, ela é a voz com a
qual ele faz suas perguntas à vida 42” e por isso a literatura e a arte são os típicos objetos
do ensaísta. Elas são um ponto de partida ao mesmo tempo casual e necessário: casual,
pois o verdadeiro assunto do crítico está além dos livros e das obras de arte sobre as
quais fala, mas necessário porque apenas por intermédio dessas formas artísticas é que o
ensaio pode abordar suas verdadeiras questões. Há, no ensaio, um jogo entre o que ele
exprime sobre seu objeto e o sentido mais amplo do que ele exprime; uma tensão entre
seu objeto de discussão e o verdadeiro sentido dessa discussão, sentido este que por seu
turno só se deixa formular pela mediação do objeto. É para esse jogo que Lukács busca
apontar quando sublinha o teor irônico do ensaio:

Refiro-me aqui à ironia que há no fato de que o crítico sempre fala das questões
últimas da vida, porém sempre no tom de quem falasse apenas de quadros e livros,
apenas dos ornamentos belos e não-essenciais da grande vida, e mesmo aqui não do
43
mais íntimo do íntimo, e sim tão-somente de uma bela e inútil superfície .

O caráter contraditório do ensaio vem mais uma vez à tona: ele é uma forma
menor, que trata apenas de quadros e livros, isto é, “de algo já formado, ou ao menos de
algo que já existiu”, já que é “próprio de sua essência não retirar coisas novas de um
nada vazio, e sim apenas reordenar aquelas que já foram vivas alguma vez 44”. Mas ao
mesmo tempo e justamente por isso ele é “o mais profundo trabalho mental a respeito
da vida 45”: “(...) porque ele apenas as reordena, em vez de formar algo novo do informe,

41
Ibidem, 74.
42
Lukács, “Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”, 111.
43
Ibidem, 112.
44
Ibidem, 113.
45
Ibidem, 112.

30
ele está também comprometido com elas, tem sempre de dizer ‘a verdade’ sobre elas,
encontrar expressões para sua essência 46”.

Mas como Lukács concebe esse critério de verdade? A analogia estabelecida pelo
autor com o gênero do retrato no âmbito da pintura é esclarecedora – ao mesmo tempo
em que exemplifica um modo de pensar próprio do ensaio, que permite comparar dois
particulares sem submetê-los a uma premissa ou conclusão geral, como ocorre na
dedução ou na indução. Enquanto “a literatura retira da vida (e da arte) os seus motivos,
para o ensaio a arte (e a vida) serve como modelo 47”. Assim como o retrato, o ensaio
tem que se haver com seu referencial externo, seu objeto, diante do qual se impõe
invariavelmente a questão a respeito do grau de semelhança entre retrato e retratado.
Mas essa é uma falsa questão, pois a impressão de fidelidade de um retrato não tem a
ver com a comparação concreta com o retratado, que na maior parte das vezes sequer é
conhecido pelo apreciador da obra. Na verdade, um bom retratista consegue evocar em
seus retratos uma sugestão da vida de alguém que realmente existiu; ele impõe ao
observador o sentimento de que a vida dessa pessoa foi tal como o retrato mostra. Esse
sentimento, no entanto, tem pouco a ver com a vida de fato do modelo, já que o retrato é
tão somente um momento pontual e arbitrário de uma vida incomensuravelmente grande
e multifacetada, que não pode ser apreendida em sua totalidade. Por isso, Lukács
defende que o que importa na relação entre obra e realidade não é exatamente o grau de
semelhança naturalista, mas o poder que o retrato tem de sugerir, por meio das cores e
dos traços, o mais fundamental de uma vida.

Ora, diz Lukács,

é mais ou menos assim que eu imagino “a verdade” dos ensaios. Também aqui se
trata de uma luta pela verdade, pela encarnação da vida, que alguém deduziu de uma
pessoa, uma época, uma forma, mas depende apenas da intensidade do trabalho e da
48
visão se receberemos do que está escrito uma sugestão desta vida em particular .

A concepção de verdade em jogo não é, portanto, uma verdade dos fatos, nem
uma verdade absoluta, mas tem a ver com a capacidade de um ensaio nos transmitir essa

46
Ibidem, 113. Essa percepção de Lukács será compartilhada por Adorno que, décadas depois, em seu
“Ensaio como forma” enfatiza como o aspecto não criativo do ensaio, isto é, o fato de que ele fala de
assuntos pré-formados culturalmente, torna-o especialmente apto a reparar a volatilidade do pensamento
abstrato e conferir primazia aos objetos.
47
Ibidem.
48
Ibidem, 114.

31
sugestão de vida daquilo que ele aborda. A verdade do ensaio não diz respeito a uma
representação mais fiel, a um naturalismo bruto que procura na trivialidade da vida
empírica seu critério de veracidade, mas tem a ver com a capacidade de insuflar vida na
representação. Nesse ponto, o ensaio se distingue outra vez da literatura, pois esta “nos
dá a ilusão de vida daquele que ela representa 49”, mas para ela não se coloca a questão
de se há alguém por quem o representado possa ser medido. A literatura cria de maneira
integral uma vida e um mundo autossuficientes, ao passo que o ensaio fala de épocas,
coisas e pessoas que já existiram, que não foram criados por ele e dos quais ele não
pode dispor livremente, mas deve respeitar.

No entanto, se o ensaio não cria seus objetos tal como a literatura ele, ainda assim,
cria um mundo fechado em si mesmo, que funda seus próprios critérios de validade e no
qual seu objeto está inserido:

O herói do ensaio já viveu em alguma época, sua vida tem de ser representada
assim, mas essa vida está justamente tão dentro da obra como tudo na poesia. Todos
esses pressupostos da eficácia e da validade daquilo que ele observa, o ensaio os cria
por si mesmo. Assim, não é possível que dois ensaios se contradigam um ao outro:
pois cada um deles cria um outro mundo e mesmo quando, a fim de alcançar uma
maior generalidade, ultrapassa-lhe os limites, ele permanece em tom, cor, ênfase,
sempre no mundo criado, e portanto o abandona apenas em um sentido impróprio da
palavra. Também não é verdade que haja aqui uma medida objetiva, externa da
vivacidade e da verdade, que possamos medir como o Goethe “verdadeiro” a
verdade dos Goethes de Grimm, Dilthey ou Schlegel. Não é verdade, pois muitos
Goethes – diferentes um do outro, e profundamente diferentes do nosso – já
despertaram em nós a crença segura da vida, e, decepcionados, reconhecemos nosso
próprio rosto em outros, cujo débil alento não lhes puderam insuflar uma força vital
50
autônoma .

É essa formulação de Lukács que está no cerne do debate que Adorno trava com
o autor em seu “Ensaio como forma”. Nele, Adorno retoma e desenvolve algumas das
ideias do jovem Lukács a tal ponto que o andamento do texto assemelha-se mesmo a um
diálogo com o prefácio de A alma e as formas. Embora seja claramente tributário das
observações de Lukács, é possível também notar que em certos momentos Adorno
tensiona ao limite algumas das proposições lukácsianas, chegando mesmo a invertê-las,
como ocorre com a aproximação entre o ensaio e a obra de arte. Para Adorno, Lukács
teria cometido um engano ao definir o ensaio como forma artística. Embora reconheça
que o ensaio possui em comum com a arte a preocupação constante com o modo de
exposição e sublinhe que ele se afasta da ciência tradicional, na medida em que depende

49
Ibidem.
50
Ibidem.

32
da fantasia e da espontaneidade do ensaísta, Adorno não classifica o ensaio como uma
forma artística, mas o aproxima da filosofia, como é possível depreender do trecho a
seguir:

No entanto, a pletora de significados encapsulada em cada fenômeno espiritual exige


de seu receptor, para se desvelar, justamente aquela espontaneidade da fantasia
subjetiva que é condenada em nome da disciplina objetiva. Nada se deixa extrair que
já não tenha sido, ao mesmo tempo, introduzido pela interpretação. Os critérios
desse procedimento são a compatibilidade com o texto e com a própria
interpretação, e também sua capacidade de dar voz ao conjunto de elementos do
objeto. Com esses critérios, o ensaio se aproxima de uma autonomia estética que
pode facilmente ser acusada de ter sido apenas tomada de empréstimo à arte, embora
o ensaio se diferencie da arte tanto por seu meio específico, os conceitos, quanto por
sua pretensão de verdade desprovida de aparência estética. É isso o que Lukács não
percebeu quando, na carta a Leo Popper que serve de introdução ao livro A alma e
51
as formas, definiu o ensaio como forma artística .

O ensaio oferece uma interpretação cujo critério de verdade não é o da


comprovação factual, mas depende da lealdade ao objeto de interpretação e à coerência
interna da interpretação. Mas se Lukács enfatiza a capacidade do ensaio em produzir
uma representação de uma vida, o que Adorno ressalta como sendo o traço fundamental
do ensaio é justamente o fato de seu lastro ser um objeto já criado, de modo que sua
interpretação não adquire validade por meio de algo que se aproxime à ilusão estética,
mas pela capacidade de apreender conceitualmente seu objeto. Dito de outro modo, o
ensaio para Adorno não constitui um mundo criado, autossuficiente, com uma
autonomia semelhante ao da obra de arte, mas é sempre referência a algo já criado, que
fornece um parâmetro objetivo de verdade.

De fato, o ensaio adquire uma posição ambígua no texto de Lukács dependendo


do polo com o qual é contrastado. Diante da ciência o ensaio manifesta-se com maior
grau de criação, ao passo que diante da literatura, seu grau de liberdade criativa é
menor, na medida em que fala de algo que já existe, ao passo que a literatura é pura

51
Adorno, “O ensaio como forma”, 18. Não ignoro aqui que a discussão que Adorno faz da forma ensaio
se dê em um contexto próprio, qual seja, o das consequências político-epistemológicas da crítica da razão
instrumental empreendida na Dialética do esclarecimento, enfrentadas na Dialética negativa. No entanto,
tomo a liberdade de recorrer ao texto sem adentrar nessa discussão, pois o mobilizo como um comentário
ao texto de Lukács. Além disso, esse contraste entre as ideias de Lukács e de Adorno sobre o ensaio não
visa estabelecer a correção de uma ou outra perspectiva, até porque as concordâncias entre os autores
superam em muito suas discordâncias. Mesmo quando Adorno desloca algumas das proposições de
Lukács, como quando ele aproxima o ensaio da filosofia, mais do que arte, sua abordagem permanece no
mesmo solo da de Lukács. Dito de outra maneira, Adorno persevera na trilha aberta por Lukács,
desenvolvendo-a e radicalizando-a, mas o tratamento concedido ao ensaio por ambos os autores parece
ser movido pelo mesmo espírito de reconhecer as ambiguidades constitutivas do gênero como fonte de
sua riqueza e profundidade.

33
criação, ainda que inspirada na vida. Ao invés de tentar responder definitivamente essa
questão, parece mais produtivo colocar a seguinte pergunta: não será essa uma
ambiguidade constitutiva do ensaio? O esforço fundamental no texto de Lukács não
parece ser tanto justificar a afirmação de que o ensaio é uma arte e sim desvendar a
forma própria do ensaio, sua especificidade diante de todas as outras formas literárias.
Nesse sentido, Lukács não identifica ensaio e arte, sem maiores distinções, e sim
procura pensar em seu estatuto específico, cuja peculiaridade justamente é a de
tangenciar as fronteiras da filosofia e da arte, estabelecendo uma ponte entre elas.

De todo modo, se Lukács aponta a afinidade entre a representação estética e o


ensaio, essa aproximação não implica numa anarquia da forma ensaística, como se esta
ficasse completamente submetida à livre imaginação do artista, nem está sustentada em
um critério de beleza da escrita. A valorização do aspecto criativo envolvido no ensaio
tem a ver com a intenção de criticar a ideia de uma verdade exterior e absoluta,
ressaltando não só que a verdade está contida na interpretação que um ensaio oferece, e
não em fatos, mas também que cada época tem sua própria verdade. É nesse sentido que
Lukács assevera:

Fatos sempre há e sempre tudo está contido neles, mas cada época precisa de outros
gregos, de uma outra Idade Média e uma outra Renascença. Cada época criará para
si aqueles de que necessita e apenas os que a sucedem imediatamente pensam que os
sonhos dos pais tenham sido mentiras que precisam ser combatidas com suas novas
e próprias “verdades”. [...] Assim, as diferentes “concepções” de Renascença podem
conviver pacificamente, do mesmo modo que uma nova Fedra, ou um Siegfried ou
52
um Tristão de um novo poeta sempre deixa intocados os de seus antecessores .

Assim como os heróis míticos e as lendas adquirem novas figurações e sentidos


a cada releitura, cada ensaio apresenta uma nova perspectiva sobre seu objeto, na
medida em que o reinterpreta a partir das questões suscitadas pelo seu presente. É nesse
sentido que uma interpretação não é mais ou menos verdadeira por sua correspondência
com o mero factual, mas por guardar uma verdade cuja força advém da capacidade de
revelar os desejos de sua própria época.
Embora considere que o ensaio normalmente fala de objetos já criados, Lukács
não deixa de acompanhar o desenvolvimento histórico da forma ensaística que, em sua
manifestação mais contemporânea, teria afrouxado seus vínculos com os objetos da
cultura e especialmente com o pano de fundo fornecido pela vida empírica. De certo

52
Lukács, “Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”, 115.

34
modo, essa crise do ensaio estaria dada desde seu surgimento, com Platão, pois o ensaio
nasce da ruptura da imanência da vida, cujo marco inicial é o surgimento da filosofia e a
necessidade de se perguntar sobre um sentido tornado transcendente. Nesse período da
história grega, entretanto, as perguntas podiam ser feitas para a própria vida e Platão
encontrou na vida de Sócrates o meio para perguntar à vida sobre o destino.

Na modernidade, no entanto, o caráter problemático do ensaio aprofunda-se na


medida em que se aprofunda também a distância entre a vida cotidiana e os valores
últimos. Ao libertar-se do lastro conferido pelos objetos pré-formados da cultura, o
ensaio eleva-se a uma altura demasiada, tenta articular uma infinidade de questões,
tornando-se cada vez mais intelectualizado e menos atento aos seus objetos, tomando-os
não mais como um ponto de partida necessário, mas como meros trampolins para as
grandes questões.

Essa intensificação de sua natureza problemática põe para o ensaio a necessidade


de sua salvação que, para Lukács, é composta por dois momentos, um autorreflexivo e
outro criativo: “agora o ensaísta tem de refletir sobre si mesmo, encontrar-se e construir
algo próprio com o que lhe é próprio 53”. No ensaio, caminham lado a lado, portanto, a
reflexão sobre a obra de arte e a autorreflexão do sujeito do conhecimento: ensaio é
historicamente caracterizado como uma forma mais pessoal e subjetiva de expressão, na
qual a personalidade e a fantasia de seu autor são elementos indispensáveis e a própria
subjetividade do autor torna-se objeto do conhecimento – basta pensar nas indagações
que orientavam um dos fundadores do ensaio moderno, Montaigne: “o que é o
homem?” e, em última instância, “o que sou eu, Michel Eyquem de Montaigne?”.
Assim, em uma situação histórica na qual um sentido não é mais dado, cabe à
subjetividade do ensaísta ser o suporte para criação desse sentido.

A construção autorreflexiva do ensaio também foi notada por Adorno 54, embora
ele sublinhe que a soberania da criatividade do ensaísta deve ser relativizada, na medida
em que a própria subjetividade e a experiência individual que a sustenta são socialmente
mediadas:

a relação com a experiência é uma relação com toda a história; a experiência


meramente individual, que a consciência toma como ponto de partida por sua
proximidade, é ela mesma já mediada pela experiência mais abrangente da

53
Ibidem, 118.
54
Já que ele precisa “a todo instante refletir sobre si mesmo”. Adorno, “O ensaio como forma”, 44.

35
humanidade histórica; é um mero auto-engano da sociedade e da ideologia
individualistas conceber a experiência da humanidade como sendo mediada,
55
enquanto o imediato, por sua vez, seria a experiência própria a cada um .

Por isso o ensaio, na perspectiva adorniana, resistiria à ideia de “obra-prima”,


enquanto algo criado por uma subjetividade. Antes, “a sua forma acompanha o
pensamento crítico de que o homem não é nenhum criador, de que nada humano pode
ser criação. Sempre referido a algo já criado, o ensaio jamais se apresenta como tal, nem
aspira a uma amplitude cuja totalidade fosse comparável a da criação 56”. Desse modo,
apesar de se caracterizar pela preocupação constante com o modo de exposição, o que o
aproxima da arte, o ensaio aproxima-se também da teoria, na medida em que opera a
partir de conceitos, os quais trazem consigo um rastro de significados sedimentados
historicamente, isto é, social e não individualmente 57.

Sempre equilibrado num fio tênue entre arte e ciência, entre a fantasia do sujeito
criador e a conformidade com o objeto, entre intuição e análise, o ensaio desafia as
tentativas de definição e explicação e insurge-se contra as limitações impostas pela
estrita divisão intelectual do trabalho. Situado em uma região de fronteira que o permite
superar a divisão intelectual do trabalho, pois enquanto gênero bastardo, de
autonomização tardia, o ensaio tem um pé na ciência, na moral e na arte. E, justamente
nesse seu caráter problemático, no fato de não se submeter à presunção que concebe a
divisão intelectual do trabalho em disciplinas isoladas como uma propriedade dos
objetos e não uma imposição a partir de fora, reside a força do gênero. Por não aceitar a
cisão entre conhecimento e forma, e nem o abismo entre sujeito e objeto do
conhecimento, mas justamente incorporar a tensão entre esses polos, é que, segundo
Lukács, o ensaio pode, “com tranquilidade e orgulho”, fazer frente “às pequenas
perfeições da exatidão científica e da frescura impressionista 58”. O ensaio não admite a
separação de forma e conteúdo, que Lukács equivale à separação entre arte e ciência;
ele é uma forma ambivalente e, por isso, da perspectiva da ciência e da arte, uma forma
problemática. É justamente essa natureza problemática, entretanto, que lhe permite ir

55
Ibidem, 26.
56
Ibidem, 37.
57
“A consciência da não-identidade entre modo de exposição e a coisa impõe à exposição um esforço
sem limites. Apenas nisso o ensaio é semelhante à arte; no resto, ele necessariamente se aproxima da
teoria, em razão dos conceitos que nele aparecem, trazendo de fora não só seus significados, mas também
seus referenciais teóricos”. Ibidem.
58
Lukács, “Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”, 120.

36
além da arte e da ciência, na medida em que formula questões que a obra de arte por si
só não consegue articular e que o cientista não ousa perguntar.

Mas como pensar a parcialidade e a fragmentariedade do ensaio diante da visada


totalizante do sistema? Seria o ensaio uma mera peça destacada do todo, à espera de
uma sistematização posterior que afinal lhe confira alguma relevância? Embora admita
que o ensaio possa ser por vezes apenas um precursor do sistema, diante do qual ele
seria uma formulação provisória à espera de sua realização mais bem acabada, Lukács
ressalta que o verdadeiro valor desta forma reside em outra qualidade, que independe do
sistema: o ensaio testemunha o anseio por uma orientação valorativa. Esse anseio não
deve ser simplesmente satisfeito e eliminado pelo sistema, mas deve ser configurado e
salvo como expressão de uma tomada de posição, de um julgamento original e profundo
diante da vida, da qual ele não se afasta, como o sistema, mas permanece a ela
entrelaçado. Nesse sentido, o ensaio valoriza o caminho, mais do que a chegada, o
processo do pensamento, mais do que a conclusão: “o ensaio é um julgamento, mas o
essencial nele não é (como no sistema) o veredicto e a distinção de valores, e sim o
processo de julgar 59”.

O caráter processual do ensaio afasta-o da completude e da rigidez que


caminham juntas com o empenho sistemático. Nesse sentido, é possível aproximá-lo do
fragmento, forma de expressão privilegiada pelo romantismo de Jena. É possível então
pensar o ensaio, o fragmento e o aforismo como pontos de uma mesma constelação,
cujas origens podem ser remontadas, em linhas gerais, ao paradigma do ensaio moderno
fornecido por Montaigne. Se buscarmos uma breve caracterização, percebemos que
essas formas “menores” guardam alguns traços comuns, dentre eles: sua incompletude
relativa, a ausência de um desenvolvimento linear do discurso em cada uma de suas
partes, a mistura variada de objetos que um mesmo conjunto de textos pode tratar, e a
unidade peculiar desse conjunto, que se constitui, por assim dizer fora da obra, pelo
sujeito que a produz ou pelo julgamento que profere suas conclusões nela 60. Um modo
de exposição bastante distante da exatidão e completude matemáticas propostas pelo
modelo cartesiano do tratado filosófico, por exemplo.

59
Ibidem, 121.
60
Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, The literary absolute: the theory of literature in German
romanticism, Intersections (Albany: State University of New York Press, 1988), 40.

37
Mais especificamente, o caráter descontínuo e processual do ensaio guarda
semelhanças com a concepção romântica do fragmento na medida em que este se
apresenta como uma forma essencialmente incompleta e por isso mesmo aberta e
infinita 61. Em consonância com a ideia romântica do fragmento, o ensaio não é
exatamente uma recusa da totalidade em favor da permanência no fragmentário, mas
uma maneira de levantar suspeitas quanto ao modo de acessar essa totalidade. Ou seja,
tal como a escolha do ensaio, o recurso ao fragmento se dá não exatamente por uma
inaptidão para a exposição sistemática, mas principalmente em virtude da
impossibilidade de tal tipo de exposição, fundamentada em um único princípio a partir
do qual o todo se desenvolve. Essa impossibilidade não significa para os românticos um
impedimento completo ao conhecimento, mas aponta para a necessidade de repensar a
tarefa do pensamento como uma atividade infinita, que nunca chega a seu termo. A
recusa do sistema fechado como modo de exposição resulta, portanto, do
reconhecimento de que o pensamento (e a realidade) não se manifesta de maneira linear
e livre de contradições, mas de modo sinuoso, oblíquo e contraditório. Quanto a esse
respeito, Adorno assinala a proximidade entre o ensaio e o fragmento romântico da
seguinte maneira:

A exposição continuada estaria em contradição com o caráter antagônico da coisa,


enquanto não determinasse a continuidade como sendo, ao mesmo tempo, uma
descontinuidade. No ensaio como forma, o que se anuncia de modo inconsciente e
distante da teoria é a necessidade de anular, mesmo no procedimento completo do
espírito, as pretensões de completude e continuidade, já teoricamente superadas. Ao
se rebelar esteticamente contra o método mesquinho, cuja única preocupação é não
deixar escapar nada, o ensaio obedece a um motivo da crítica epistemológica. A
concepção romântica do fragmento como uma composição não consumada, mas sim
levada através da auto-reflexão até o infinito, defende esse motivo antiidealista no
62
próprio seio do idealismo .

Nesse sentido, o fragmento aproxima-se da ideia de projeto, de uma projeção


imediata daquilo que ainda está por vir, o que torna evidente sua orientação para o
futuro 63.

61
É preciso ressaltar que não existe uma concepção ou mesmo uma prática homogênea do fragmento
dentro do movimento romântico. Novalis e Friedrich Schlegel, por exemplo, partilhavam de ideias
distintas a respeito dessa forma. Da mesma maneira, cumpre observar que nem todos os assim chamados
fragmentos produzidos pelos autores românticos foram deliberadamente concebidos para serem
publicados enquanto tais. Lacoue-Labarthe e Nancy, The literary absolute; ibidem, 41.
62
Adorno, “O ensaio como forma”, 34.
63
Ver, nesse sentido, o fragmento 22 da Athenaeum: “Um projeto é o germe subjetivo de um objeto em
devir. [...] O sentido para projetos que poderiam ser chamados de fragmentos do futuro é diferente do
sentido para projetos do passado somente pela direção, que é progressiva naquele, mas regressiva neste. O

38
Esse espírito parece impulsionar também o ensaio, que se esforça por não
hipostasiar a totalidade, nem, por outro lado, rejeitá-la, mas acessá-la a partir do parcial.
A via de acesso à verdade trilhada pelo ensaio, portanto, calca-se na recusa de esgotar
seu objeto, sustentada por sua vez na consciência de que o conhecimento é sempre
incompleto, de que a verdade constitui-se como um processo infinito e histórico. Por
isso o ensaio não é tanto a recusa da totalidade, mas o reconhecimento de que ela não
pode mais ser exposta de maneira sistemática, ou seja, a partir de uma estrutura
arquitetônica, construída a partir de um princípio ou um fundamento único. Ao
reconhecer-se a si mesmo enquanto forma menor, o ensaio, despretensioso, consegue
fazer frente ao sistema e sua pretensão de totalidade. Ao valorizar a formulação das
perguntas e os caminhos percorridos para respondê-las, mais do que algum tipo de
correção das respostas, o ensaio se revela o meio de expressão mais apto para lidar com
as contradições postas pela modernidade. Afinal, a realidade moderna não corresponde
mais à ordenação perfeita e transparente do sistema, mas está muito mais próxima da
opacidade e da contingência captadas pelo ensaio.

essencial é a capacidade de ao mesmo tempo idealizar e realizar imediatamente os objetos, de os


complementar e em parte executar em si”. Friedrich von Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo:
Iluminuras, 1997), 50.

39
Capítulo 2 – Do mito helênico à era da perfeita pecaminosidade ou os dois mundos
da épica
As pedras nas entranhas da terra e os planetas nas esferas
celestes se preocupavam ainda com o destino do homem, ao contrário
dos dias de hoje, em que tanto no céu como na terra tudo se tornou
indiferente à sorte dos seres humanos, e em que nenhuma voz, venha
de onde vier, lhes dirige a palavra ou lhes obedece. Os planetas recém-
descobertos não desempenham mais nenhum papel no horóscopo, e
existem inúmeras pedras novas, todas medidas e pesadas e com seu
peso específico e sua densidade exatamente calculados, mas elas não
nos anunciam nada e não tem nenhuma utilidade para nós. O tempo já
passou em que elas conversavam com os homens.
Nikolai Leskov, “A alexandrita” (1884)

Esse trecho do conto de Leskov, não por acaso retomado por Benjamin em seu
ensaio “O narrador”, descreve uma época na qual o homem ainda podia se sentir em
harmonia com a natureza, os céus ainda ofereciam alguma orientação para o percurso do
homem e o mundo era, em suma, uma totalidade. Na época moderna, ao contrário, os
seres humanos viveriam suas vidas separados da natureza, alheios a quaisquer desígnios
superiores ou amparos celestes. O reino natural é agora tão somente um objeto a ser
conhecido – medido, pesado, calculado –, mas ele não possui nenhum significado mais
elevado, não fornece nenhuma orientação para a vida humana.

É nesse mesmo espírito que se inicia a primeira parte de A teoria do romance, na


qual Lukács insere o romance na linhagem da grande épica, concebendo-o como o
desenvolvimento histórico da epopeia, ou, se quisermos, como “moderna epopeia
burguesa”, na clássica formulação de Hegel 64. A contraposição entre duas espécies de
épica distintas sustenta-se na diferença entre os dois estados de mundo, ou aos dois tipos
de cultura aos quais aquelas correspondem. De acordo com o argumento de Lukács, a

64
A caracterização do romance enquanto epopeia burguesa, embora tenha se celebrizado com Hegel, não
é inaugurada por ele, mas aparece já em Friedrich von Blackenburg em seu Versuch über den Roman
[Ensaio sobre o romance] (1774): “Considero o romance, o bom romance, como aquilo que, nos tempos
helênicos a epopeia era para os gregos”. Cf. Georg Lukács, A teoria do romance : um ensaio histórico-
filosófico sobre as formas da grande épica, trad. José Marcos Mariani de Macedo (São Paulo: Duas
Cidades/Editora 34, 2000), 55. (Nota do tradutor). A formulação de Hegel é a seguinte: “de uma maneira
inteiramente diferente se passam as coisas com o romance, a moderna epopeia burguesa. Aqui intervém
novamente, de um lado, de modo pleno, a riqueza e a variedade de interesses, de estados, de caracteres,
de relações de vida, o amplo pano de fundo de um mundo total, bem como a exposição épica de eventos.
O que falta, contudo, é o estado de mundo originariamente poético, do qual nasce a epopeia propriamente
dita. O romance, no moderno sentido, pressupõe uma efetividade já ordenada para a prosa, sobre cujo
terreno ele novamente recupera em seu circulo da poesia – tanto no que diz respeito à vitalidade dos
acontecimentos quanto no que se refere aos indivíduos e seu destino -, até onde é possível nesta
pressuposição, seu direito perdido”. Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Cursos de estetica: Volume IV (Sao
Paulo: EDUSP, 2004), 137.

40
epopeia corresponderia ao que ele denomina de “mundo fechado”, ao passo que o
romance seria a forma épica característica de uma “cultura problemática”, não unitária.
A primeira parte do ensaio, portanto, é em larga medida dedicada à exposição dos traços
mais determinantes desses dois universos e da relação que cada um deles mantém com a
epopeia e com o romance, respectivamente.

Ecoa no livro, nesse sentido, aquela oposição entre duas épocas: a antiguidade
harmoniosa, perfeita em si mesma e unitária, e a modernidade cindida que floresceu no
pensamento estético alemão no século XVIII. Quase um século após a Querelle des
anciens et des modernes 65, que se desenrolou na França em finais do século XVII, um
prolongamento desse debate em território germânico opôs certa ortodoxia estética
inspirada no neoclassicismo francês e os partidários de um pensamento que, se em
alguns casos ainda defendia valores clássicos para as artes, opunha-se, entretanto, à
imitação de modelos importados da França. Assim, de um lado colocavam-se os
partidários daquele neoclassicisimo de inspiração teórico-prática francesa, para o qual
Boileau 66 e Racine figuravam como as autoridades máximas, os exemplos a serem
seguidos pelos artistas alemães que, segundo essa perspectiva, não contavam com uma
tradição artística nacional digna de ser considerada canônica 67. De outro, a tentativa de
Baumgarten de fundar uma nova ciência estética (Aesthetica, 1750), o tratado de
Lessing sobre as diferenças entre as artes visuais e as poéticas (Laocoon, 1766) e os
programas de refundação do classicismo helênico de Winckelmann, Goethe e Schiller,
dão testemunho do processo de superação dessa dependência francesa e da fundação de
uma reflexão crítica alemã que, sustentada por conhecimentos históricos, busca em um

65
É no âmbito desse debate estético que surge pela primeira vez a consciência do presente como uma
época qualitativamente distinta da que o antecedeu, por oposição à ideia de um desenrolar do tempo como
continuidade homogênea. À ideia da modernidade como uma “nova época”, associa-se o problema da
fundamentação dessa época a partir de si mesma. O despontar dessa consciência histórica conduz ao
questionamento, no campo artístico, da antiga relação de dependência da modernidade frente à
antiguidade: a validez atemporal da arte clássica - antes tida como modelo a ser imitado pela arte de
épocas posteriores - é posta em xeque pela defesa da superioridade da arte moderna feita pelo partido dos
modernos, representados na Querelle por Charles Perrault. Jürgen Habermas, “A consciência de tempo da
modernidade e sua necessidade de autocertificação”, in O discurso filosófico sobre a modernidade (São
Paulo: Martins Fontes, 2002), 3–18. Sobre a Querelle cf. Marc Fumaroli, “Les abeilles et les araignées”,
in La Querelle des Anciens et des Modernes (Paris: Gallimard, 2001), 7–220; Jean-Robert Armogathe,
“Un ancienne querelle”, in La Querelle des Anciens et des Modernes (Paris: Gallimard, 2001), 801–49.
66
Na Querelle,Nicolas Boileau-Despréaux posicionava-se como defensor intransigente da arte clássica,
donde seu epíteto “legislador do Parnasso”.
67
Vale lembrar que a questão da ausência de uma tradição literária nacional estava conectada a ausência
uma unidade nacional alemã. Essa questão da “falta” estará no horizonte dos empreendimentos artísticos
alemães e afetará o curso de seu desenvolvimento. Cf. Terence James Reed e Malcolm Pasley, “The
Goethezeit and its aftermath”, in Germany, a companion to german studies, 2nd ed (New York; London:
Methuen, 1982), 499–558.

41
passado mais longínquo, isto é, na própria Grécia antiga, as bases para a arte alemã da
época.

O que importa para nós, contudo, não é tanto esse debate entre os partidários da
crítica de extração francesa e a busca pela autonomia dos artistas alemães, mas mais
especificamente o fato de ser no contexto dessa disputa que surge o interesse pelo
estudo aprofundado e, podemos mesmo dizer, propriamente histórico da arte grega. A
figura de Winckelmann aparece como um inaugurador desse processo, uma vez que ele
é uma espécie de descobridor da cultura grega. Descobridor porque, em seu Reflexões
sobre a imitação das obras gregas na pintura e na escultura (1755), procurou-se pela
primeira vez compreender a arte e a cultura gregas a partir da investigação de sua
gênese histórica, mobilizando fontes da própria cultura grega e não por intermédio da
cultura romana, como era o usual até então. Com Winckelmann, a arte grega passa a ser
remetida a seu contexto, sendo concebida como a manifestação cultural de um povo e,
nesse sentido, como expressão geográfica e historicamente situada. Mais do que isso, o
estudo de Winckelmann acaba por delinear os contornos do que viria a se tornar um
mito recorrente e de suma importância para a cultura alemã: o ideal de helenidade e da
perfeição artística clássica.

A caracterização do mundo grego feita por Lukács é claramente inspirada nesse


ideal erigido por Winckelmann 68, o que fica patente na bela passagem de abertura da
Teoria do romance:

Afortunados os tempos para os quais o céu estrelado é o mapa dos caminhos


transitáveis e a serem transitados, e cujos rumos a luz das estrelas ilumina.
Tudo lhes é novo e no entanto familiar, aventuroso e no entanto próprio. O
mundo é vasto, e no entanto é como a própria casa, pois o fogo que arde na

68
A imagem que Winckelmann constrói da Grécia a partir de seus estudos a respeito da arte antiga é de
uma cultura orgânica, coerente, um ideal não apenas estético, mas também moral, político e espiritual. A
partir da análise do conjunto estatutário do Laocoonte, Winckelmann formula a peculiaridade da arte
grega da seguinte maneira: “Enfim, o traço geral preponderante das obras-primas gregas é uma nobre
simplicidade e uma calma grandeza, tanto na postura quanto na expressão. Assim como a profundeza do
mar permanece tranquila, por mais tempestuosa que esteja a superfície, a expressão nas figuras dos gregos
mostra, em meio a todas as paixões, uma alma grande e comedida”. Johann Joachim Winckelmann,
Réflexions sur l’imitation des oeuvres grecques en peinture et en sculpture, Collection bilingue des
classiques étrangers (Paris: Aubier, 1954), 142. Essa caracterização aponta não apenas para atributos
estéticos da arte grega, mas também para um ideal de humanidade nela presente, uma vez que
Winckelmann enfatiza as qualidades morais do herói grego Laocoonte – sua compostura espiritual, sua
superioridade mesmo em face dos maiores desafios e turbulências. Além disso, há a valorização da
simplicidade como um atributo ético, mais do que simplesmente artístico: a arte grega é uma arte do
essencial, do universal, e não do ornamento e do rebuscado. Cf., nesse sentido, Hugh Barr Nisbet,
“Introduction”, in German aesthetic and literary criticism (Cambridge: Cambridge University Press,
1985); Pedro Süssekind, “A Grécia de Winckelmann”, Kriterion: Revista de Filosofia 49, no 117 (janeiro
de 2008): 67–77, doi:10.1590/S0100-512X2008000100004.

42
alma é da mesma essência que as estrelas; distinguem-se eles nitidamente, o
mundo e o eu, a luz e o fogo, porém jamais se tornarão para sempre alheios
69
um ao outro, pois o fogo é a alma de toda luz e de luz veste-se todo fogo .

A prosperidade dos tempos clássicos reside no fato de que neles eu e mundo


formam uma totalidade imediatamente dotada de sentido. Trata-se de um mundo
homogêneo, uma estrutura circular cujos contornos são bem definidos e suas partes
organicamente relacionadas; aí os homens não são uma parte autônoma da totalidade
social, mas compõe-na organicamente. Dentro desse círculo está um mundo perfeito e
acabado, pleno de sentido.

Talvez mais importante do que a apresentação positiva do mundo grego no livro


seja sua caracterização como contraponto, que já traça os contornos do que viria a ser o
mundo moderno: no mundo harmônico grego não há alheamento entre eu e mundo, nem
cisão entre interior e exterior. A orientação para a conduta dos homens lhes é dada
imediatamente – “toda ação é somente um traje bem-talhado da alma 70”. Nesse mundo
afortunado não poderia nem mesmo existir a interioridade, uma vez que não existe ainda
o exterior, o outro da alma. Os deuses controlam esse mundo, mas eles não estão
afastados dos homens, ao contrário, convivem com eles e os guiam em suas aventuras,
tal como “o pai diante do filho pequeno 71”. Anuncia-se, assim, o mundo moderno como
uma antítese da era de Homero: enquanto esta é apresentada como um universo pleno de
sentido, aquele se caracteriza pela cisão entre empiria e essência, pela perda de todo e
qualquer sentido imediatamente dado.

A percepção de uma ruptura entre época moderna e época clássica constitui


também o solo no qual se desenvolve a teoria estética do primeiro romantismo; tanto as
temáticas discutidas por seus autores, quanto os conceitos por eles mobilizados são
profundamente impactados pela consciência da diferença fundamental entre as duas
épocas. Inspirado em Winckelmann, Friedrich Schlegel procura compreender a gênese
da literatura grega a partir de suas relações com a estrutura da cultura clássica e, nesse
percurso, acaba por elaborar também uma teoria da literatura moderna no ensaio Sobre
o estudo da poesia grega, escrito em 1795. Em linhas gerais, a obra contrapõe o caráter
natural da cultura antiga ao caráter artificial da cultura moderna e sua poesia,

69
Lukács, A teoria do romance, 25.
70
Ibidem, 26.
71
Ibidem.

43
determinadas pela razão. A cultura clássica é apresentada por Schlegel, à maneira de
Winckelmann, como um momento no qual a beleza crescia sem cuidado artificial, pois
era uma qualidade inata. As artes plásticas, por exemplo, não eram atividades
proveniente de uma capacidade aprendida dos gregos, mas simplesmente a manifestação
de sua natureza originária:

Na Grécia crescia a beleza sem o cuidado artificial e quase como selvagem.


Sob esse céu feliz a arte plástica não era uma capacidade aprendida, mas
natureza originária. Sua formação não era senão o desenvolvimento mais
72
livre da índole mais afortunada .

A simplicidade da cultura grega, contudo, não é vista sob a ótica da


insuficiência, mas precisamente como um trunfo, pois atestaria o caráter incorrupto
dessa cultura, na qual nenhum princípio externo se impõe frente ao livre
desenvolvimento de sua natureza. Enquanto a formação grega é entendida como uma
natureza orgânica, a cultura moderna é um ser artificial, criado. A unidade da cultura
grega é, portanto, diferente da moderna: enquanto lá a unidade é orgânica e natural, a
cultura moderna é uma unidade criada, artificialmente composta. Na antiguidade, a
cultura desenvolvia-se naturalmente, ao passo que na modernidade ela é regida pelo
entendimento 73.

O entendimento dissociador começa separando e individualizando o todo da


natureza. Sob sua direção avança a exclusiva orientação da arte no sentido da
fiel imitação do individual. Assim, pois, em uma cultura intelectual superior,
a individualidade original e interessante se converteu na meta da literatura
74
moderna .

72
Friedrich von Schlegel, Sobre el estudio de la poesía griega (Torrejón de Ardoz: Akal, 1996), 97.
Todas as traduções são minhas, exceto quando indicado o contrario.
73
Pouco depois da redação do ensaio de Schlegel, Friedrich Schiller publica seu escrito Sobre a poesia
ingênua e sentimental, no qual a relação entre a naturalidade e a artificialidade na literatura também é um
tema central. De maneira bastante breve, poderíamos conceitualizar o “ingênuo” como a relação imediata
com a natureza, ao passo que o “sentimental” é a busca por retornar a essa condição após a entrada na
artificialidade; a atitude sentimental, portanto, também em Schiller, está pautada pela reflexão e pelo
intelecto. Embora nesse sentido as proposições de Schlegel e Schiller se aproximem, alguns comentadores
afirmam que enquanto a abordagem de Schlegel sustenta-se em um pensamento radicalmente histórico, o
mesmo não ocorreria em Schiller, cuja perspectiva se manteria em um terreno ahistórico, pois seus
conceitos de ingênuo e sentimental não diriam exatamente respeito a duas épocas históricas, antiguidade e
modernidade, mas a duas atitudes criativas. Prova disso seria o fato de que Schiller classifica alguns
poetas modernos como ingênuos; esse é o caso de Goethe, por exemplo. Paolo D’Angelo, A estética do
romantismo (Lisboa: Estampa, 1998), 45. Uma interpretação alternativa e mais matizada pode ser
encontrada em Peter Szondi, “Le naïf est le sentimental”, in Poésie et poétique de l’idéalisme allemand
(Paris: Editions de Minuit, 1975).
74
Schlegel, Sobre el estudio de la poesía griega, 77. Sobre o conceito de interessante na obra de Schlegel
ver Arlenice Almeida da Silva, “O interessante em Friedrich Schlegel”, Trans/Form/Ação 34 (2011): 75–
94.

44
Historicamente, a artificialidade da época moderna tem em Dante seu primeiro
representante. Numa análise da Divina comédia – amplamente retomada por Lukács na
Teoria do romance, vale ressaltar – Schlegel compara sua forma com a totalidade da
epopeia homérica. Mas o espírito moderno encontraria sua expressão mais cristalina na
obra de Shakespeare, especialmente em Hamlet. Nessa obra, não é o belo que determina
o todo: este antes serve ao interesse característico ou filosófico. Além disso, sua
representação não é objetiva, mas completamente maneirista. Mais importante ainda
para a caracterização do caráter cindido da cultura moderna é a figura do protagonista,
na medida em que este é o maior representante das qualidades próprias ao novo homem
da época:

Devido a uma situação maravilhosa, toda a força de sua nobre natureza é


comprimida em seu entendimento, mas sua força ativa é totalmente
aniquilada. Seu espírito se separa em direções contrárias, despedaçado como
num banco de tortura; se decompõe e sucumbe ao excesso de um
entendimento inativo que o oprime mais dolorosamente que todos os que dele
se aproximam. Não há talvez representação mais perfeita da desarmonia
insolúvel, que é o verdadeiro objeto da tragédia filosófica, que uma
desproporção tão sem limites entre a força pensante e a ativa como no caráter
de Hamlet.

A cisão entre pensamento e ação, o predomínio do entendimento sobre o ser,


enfim, o isolamento do sujeito, separado do mundo, tudo se encontra tematizado em
Hamlet, obra que não representa mais a harmonia suprema entre homem e destino,
como nas tragédias clássicas, mas tem como problema central justamente a desarmonia
entre ser e destino própria à modernidade.

No plano artístico, a diferença entre a coesão estruturante da época clássica e o


fundamento fragmentário da época moderna, determina que os valores pelos quais a
poesia moderna se orienta sejam distintos daqueles perseguidos pela poesia clássica.
Enquanto esta tem o belo como valor último, a ser atingido por meio da objetividade, a
literatura moderna se orienta pelo interessante, uma força estética subjetiva, voltada ao
interesse particular, ao assunto individual. Embora Schlegel reconheça que a poesia
moderna oferece um grande número de obras capazes de suscitar emoções poderosas, o
prazer por elas proporcionado não é completo, pois falta-lhes a plenitude que garante a
satisfação e oferecem uma quantidade de belezas isoladas, mas não a harmonia e a
perfeição.

Quase em toda parte, tacitamente pressuposto ou expressamente estabelecido,


encontrareis antes qualquer outro princípio como a mais alta meta e a

45
primeira lei da arte, como última norma do valor de suas obras; mas não o
belo. O belo é tão pouco dominante na poesia moderna, que muitas das
melhores obras desta são evidentemente representações do feio; e ao fim,
haverá de confessar, mesmo que com desgosto, que há uma representação da
confusão em seu mais alto grau, do desespero em toda sua abundância, que
exige a mesma – se não uma mais alta – força criadora e sabedoria artística
75
que a representação da plenitude e da força em perfeita harmonia .

É interessante observar como Schlegel, apesar de examinar o moderno a partir


do confronto deste com o antigo e apesar de qualificar a arte grega como a mais nobre
da história, já não atribui a ela a função de modelo para a arte moderna, como ocorria
em Winckelmann. Embora valorize o caráter natural da cultura grega, Schlegel
reconhece que a artificialidade moderna implica, por outro lado, em uma maior
liberdade frente à natureza. A história natural da antiguidade é substituída por uma
história da subjetividade, pela história da cultura moderna. A consideração detalhada da
literatura moderna e de suas peculiaridades impede que ela seja julgada pelos mesmos
critérios a partir dos quais se avaliava a literatura clássica.

Antiguidade e modernidade, portanto, não são mais concebidas como etapas de


uma mesma linha de evolução, mas como culturas de naturezas distintas. Em Schlegel,
a cultura clássica converte-se na contraimagem que, embora sirva de medida para a
avaliação da modernidade, não mais funciona como um modelo que ainda possa ser
imitado 76. A imagem mítica dos gregos cumpre a função de ser um contraponto de sua
época, servindo-lhe menos como um modelo e mais como apoio para uma crítica de seu
presente. Desse modo, é possível notar que, inspirado pelas caracterizações de
Winckelmann, Schlegel dá um passo além de seus precursores ao avançar para uma
interpretação inaugural de sua própria época: a partir do traço já evocado por outros
antes dele – o da naturalidade da cultura grega –, Schlegel confere um novo estatuto à
artificialidade da cultura moderna, radicalizando o afastamento entre modernidade e
antiguidade clássica.

Voltemos à Teoria do romance para vermos mais de perto como Lukács


mobiliza essa contraposição entre antigos e modernos. Aprofundando sua caracterização
da cultura grega, ele afirma:

75
Schlegel, Sobre el estudio de la poesía griega, 60–61.
76
É o que sustentam Peter Szondi, Poética y filosofía de la historia (Madrid: Visor, 1992), 76., e
D’Angelo, A estética do romantismo, 43.

46
Se quisermos, assim podemos abordar aqui o segredo do helenismo, sua
perfeição que nos parece impensável e a sua estranheza intransponível para
nós: o grego conhece somente respostas, mas nenhuma pergunta, somente
soluções (mesmo que enigmáticas), mas nenhum enigma, somente formas,
77
mas nenhum caos .

Em “A metafísica da tragédia”, ensaio sobre Paul Ernst que compõe o livro A


alma e as formas, encontramos uma das formulações mais claras a respeito do par
conceitual “forma” e “vida”. Nesse texto, Lukács descreve a vida como

uma anarquia de luz e escuro: nada jamais é completamente realizado na


vida, nada jamais acaba inteiramente; novas vozes confusas sempre se
misturam ao coro daqueles que foram ouvidos antes. Tudo flui, tudo se funde
em outra coisa, e a mistura é descontrolada e impura; tudo é destruído, tudo é
78
esmagado, nada jamais floresce em vida verdadeira .

Assim, põe-se a questão de como uma estrutura de sentido, uma vida verdadeira,
pode emergir desse caos que é a vida empírica. A resposta para Lukács está na forma:
“a forma é o maior juiz da vida. A formalização é uma força julgadora, uma ética; existe
um julgamento de valor em tudo a que foi dado forma. Todo tipo de formalização, toda
forma literária, é um degrau na hierarquia de possibilidades de vida 79”.

Ora, a forma, portanto, funciona como uma espécie de filtro que permite
configurar a vivência – que em si é um fluxo caótico de eventos – e conferir um sentido
a ela. Por meio da ordenação de um todo antes indistinto, o que por sua vez pressupõe
um julgamento ético do que é significativo e do que não é, a forma atribui um sentido à
desordem da vida. Mas, se o mundo da epopeia caracteriza-se pela harmonia orgânica
entre suas partes e pela presença de um sentido imanente à vida, a forma possui aí um
sentido particular: em uma situação de mundo na qual a experiência não é um todo
desordenado, a epopeia apenas traz à tona o sentido já presente no mundo; ela é somente
a expressão de um mundo já configurado previamente. No mundo homérico, portanto,
não existe uma dualidade entre vida e forma. Não por outro motivo, segundo Lukács,
nesse universo “saber é apenas alçar véus opacos; criar, apenas copiar essencialidades
visíveis e eternas; virtude, um conhecimento perfeito dos caminhos 80”. Em mundo
fechado, claramente ordenado, as formas apenas incorporam o sentido que lhes é
oferecido imediatamente, de maneira que elas mesmas possuem uma existência que

77
Lukács, A teoria do romance, 27.
78
Georg Lukács, “The metaphysics of tragedy”, in Soul and form, Columbia themes in philosophy, social
criticism, and the arts (New York: Columbia University Press, 2010), 176.
79
Ibidem, 197.
80
Lukács, A teoria do romance, 29.

47
poderíamos chamar de natural ou ao menos óbvia, sendo perfeitas e bem acabadas tal
como seu mundo.

Isso é abordado a partir da ideia de “topografia transcendental do espírito


grego”, que indica a relação entre vida e substância em cada etapa da história grega.
Lukács distingue no processo de evasão do sentido no mundo três fases que se
expressam nas três “grandes formas intemporalmente paradigmáticas da configuração
do mundo”, epopeia, tragédia e filosofia 81. No mundo da epopeia a substância ainda é
absolutamente imanente à vida, enquanto no estágio da tragédia a vida empírica perde a
imanência da essência, mas o momento trágico ainda consegue engendrar a essência na
vida empírica. Já com a filosofia a essência se torna a única realidade transcendente, e a
vida empírica é finalmente preterida. A peculiaridade desse processo é que somente a
configuração da etapa seguinte traz à consciência a pergunta da etapa anterior: assim,
somente com a tragédia respondendo à questão de “como a essência pode tornar-se
viva” é que vem à tona a perda da imanência da essência à vida empírica; e, do mesmo
modo, apenas com a ação configuradora da filosofia é que se revela que a figura do
destino na tragédia nada mais é do que uma solução arbitrária para o afastamento da
essência com relação à vida.

O herói da tragédia sucede ao homem vivo de Homero, e o explica e o


transfigura justamente pelo fato de tomar-lhe a tocha bruxuleante e inflamá-la
com brilho renovado. E o novo homem de Platão, o sábio, com seu
conhecimento ativo e sua visão criadora de essências, não só desmascara o
herói, mas ilumina o perigo sombrio por ele vencido e o transfigura na
82
medida em que o suplanta .

O caráter fechado do mundo homérico, portanto, sofre uma progressiva dissolução


até romper-se de vez na época moderna. Trata-se aqui, no fundo, de apontar a passagem
de uma situação na qual as diferentes esferas da vida compunham uma unidade –
“quando saber é virtude e a virtude, felicidade; quando a beleza põe em evidência o
sentido do mundo 83” – para uma nova situação, de relativa autonomia dessas esferas de
valor.

81
Mas, como afirma o tradutor da Teoria do romance: “Há de ficar claro que, no mundo grego, a
substância está sempre presente, não importa em qual de seus estágios, seja épica, tragédia ou filosofia; o
que se altera é a relação com essa substância – da imanência à vida até a transcendência – de Homero à
Platão” Ibidem, 33. (Nota do tradutor).
82
Ibidem.
83
Ibidem, 31.

48
É impossível não pensar, nesse ponto, na tese weberiana da modernização
cultural como progressiva diferenciação, autonomização e institucionalização das
ordens de vida [Lebensordnungen], que passam a obedecer a uma racionalidade interna.
Esse processo é exposto com bastante clareza no famoso texto “Consideração
intermediária”, a respeito do qual Pierucci comenta:

O desencantamento do mundo pelo monoteísmo ético atravessa como um


vetor o Ocidente no bojo da milenar dominância cultural de uma imagem de
mundo metafísico-religiosa crescentemente unificada e internamente
sistematizada, que terminou por se impor como fundamento legítimo da
ordem social como um todo. Com o advento da modernidade e a ruptura dos
laços tradicionais por uma série de fatores, inclusive no plano cultural e no da
personalidade, Weber diagnostica uma importante inflexão no processo de
racionalização ocidental: agora é possível conceber a esfera doméstica e a
economia, a política e o direito, a vida intelectual e a ciência, a arte e a
84
erótica, independentemente das fundamentações axiológicas religiosas .

Nesse novo contexto, a arte não é a mais a exposição sensível de um sentido


previamente existente, mas passa a ser ela mesma a criação de um sentido. É como se,
da Grécia homérica ao mundo contemporâneo, a relação entre ética e estética tivesse se
invertido. Lá, a ética está dada e a estética apenas a reproduz: “as formas não são uma
coerção, mas somente a conscientização, a vinda à tona de tudo quanto dormitava como
vaga aspiração no interior daquilo a que se devia dar forma” 85. Mas com a perda da
imanência do sentido à vida e com a derrocada da ética como parâmetro universal para a
conduta, a estética passa a anteceder a ética e deve, ela mesma, assumir a tarefa de
configurar um sentido. Trata-se, sem dúvida, de uma tarefa mais árdua do que
antigamente, pois aqui as formas “tem de produzir tudo o que até então era um dado
simplesmente aceito 86”. Nas palavras de José Marcos Mariani de Macedo,

numa totalidade ética fechada, na qual a aspiração interna anda de braços


dados com a lei externa, o papel da estética resume-se a dar em espetáculo
(representar) o universo ético; com a perda da imanência do sentido à vida,
com o colapso da ética como parâmetro de conduta unívoca, invertem-se os
papeis: a estética assume o encargo da ética e a antecede, logicamente, no
horizonte artístico. Agora cumpre a ela fundar cada um de seus conteúdos e,
pelo manejo de sua estrutura interna, pagar em moeda estética a unidade de
87
sentido cujos fragmentos éticos ela foi recolher no mundo degradado .

84
Antônio Flávio Pierucci, O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber
(São Paulo: Ed. 34, 2003), 138.
85
Lukács, A teoria do romance, 31.
86
Ibidem, 36.
87
Macedo, “Posfácio do tradutor”, 183. Grifo do autor.

49
Assim, na modernidade, as formas clássicas, perfeitas e acabadas, perdem seu
apelo inevitável e a adesão imediata a elas dá lugar à criação de novas formas pela
subjetividade do artista. A arte torna-se, assim, “independente: ela não é mais uma
cópia, pois todos os modelos desapareceram; é uma totalidade criada, pois a unidade
natural das esferas metafísicas foi rompida para sempre 88”. Isso não significa que a arte
esteja, a partir de então, completamente desvinculada da realidade, mas que ela
constitui-se como uma esfera particular da atividade humana, como uma maneira
específica de conhecer e configurar o mundo, não mais submetida a fins religiosos. A
autonomia da arte, sua constituição enquanto uma área autônoma frente à moralidade
comunitária ou à verdade religiosa, é concebida, portanto, como o resultado de um
processo histórico-social que dissolveu o antigo sentido unitário do mundo.

Esse reconhecimento de que a arte torna-se, na modernidade, uma esfera


autônoma, que obedece às suas próprias leis e não está mais vinculada a um sentido
prévio oferecido pela religião ou por valores comunitários – ou seja, um
reconhecimento que passa por uma teoria da modernização, entendida como um
processo social objetivo – parece ser um traço que distingue a abordagem de Lukács
tanto dos diagnósticos quanto, principalmente, das soluções aventadas por Friedrich
Schlegel e pelo romantismo alemão de maneira geral para a cultura moderna.

“Havia algo de doentio na coisa toda”

Para compreendermos melhor essa diferença, faz-se necessário nos voltarmos a


um outro aspecto da teoria romântica, sua filosofia da história 89. Peter Szondi chama a
atenção para o fato de que a peculiaridade da filosofia da história do romantismo, que
lhe permite inclusive ser entendida como uma filosofia moderna da história é que o

88
Lukács, A teoria do romance, 34.
89
Lacoue-Labarthe e Nancy, em seu estudo fundamental sobre o romantismo, consideram necessário
estabelecer limites históricos claros para o movimento romântico. Não se trata, por um lado, de pensar o
romantismo enquanto um tipo de sensibilidade ou um estado de ânimo, aos quais o movimento acabou
por ser associado retrospectivamente, nem, por outro de tomá-lo como um bloco indistinto, haja visto que
sua orientação teórica e política sofreria mudanças consideráveis ao longo de seu desenvolvimento.
Grande parte das interpretações sobre o romantismo teria padecido de certa negligência em localizar o
movimento de modo preciso, tornando impossível diferenciar suas primeiras formulações daquelas de
tons claramente mais conservadores que acompanham a conversão de Schlegel ao catolicismo e sua
associação com Metternich. Como já foi dito, nos referimos ao movimento que se reúniu em Jena em
torno das revistas Lyceum e Athenäum. Lacoue-Labarthe e Nancy, The literary absolute, 7.

50
presente é sempre caracterizado como um tempo intermediário, provisório, um “não
mais” e um “ainda não”. Nesse sentido, o presente é uma espécie de antítese que se
estabelece em relação a uma tese, localizada no passado, e a expectativa de uma síntese
no futuro 90. A filosofia da história de Schlegel se estruturaria, de acordo com essa visão,
em três momentos: o passado harmônico da antiguidade, o presente cindido da
modernidade e a esperança de uma reconciliação no futuro 91.

Tanto em Sobre o estudo da poesia grega, quanto nos fragmentos das revistas
Lyceum (estes também chamados de Fragmentos críticos) e Athenäum (1798-1800), é
possível perceber que Schlegel procura estabelecer não somente a gênese da poesia
moderna, como se preocupa em desvendar o futuro de sua evolução, sua meta última.
Em Sobre o estudo da poesia grega a tendência da história é exposta da seguinte
maneira:

Quantas mais vezes foi decepcionado o desejo, fundado na natureza humana,


de satisfação completa mediante o individual e o cambiante (para cuja
descrição havia estado a arte orientada exclusivamente até agora), tanto mais
veemente e incansável se fez. Só o geral, constante e necessário: o objetivo,
pode preencher esse grande vazio; só o belo pode acalmar esse ardente
anseio. [...] O excesso do individual conduz, pois, por si mesmo ao objetivo;
o interessante é a preparação do belo, e o fim último da literatura moderna
não pode ser outro que o sumo do belo, um máximo de perfeição estética
objetiva. [...] O domínio do interessante é só uma crise passageira do gosto,
92
pois ao final tem que destruir-se a si mesmo .

A situação da arte moderna não significa, portanto, um ponto final na história do


desenvolvimento da cultura, trata-se antes de um período de crise passageira, cuja
superação num futuro próximo se dá por uma inversão dialética: a exacerbação do
individual conduz por si mesma ao objetivo; o predomínio do interessante reverte-se na
sua própria destruição; em suma, a literatura moderna tem como fim último o belo, a
perfeição estética objetiva. Para Schlegel, “a poesia de Goethe é a aurora da arte
autêntica e da beleza pura 93”, pois, em sua fase weimariana, o poeta alemão estaria

90
Peter Szondi, “Friedrich Schlegel et l’ironie romantique”, in Poésie et poétique de l’idéalisme allemand
(Paris: Les editions de Minuit, 1974), 96.
91
É possível, no entanto, acompanhando a literatura sobre o tema, discutir se essa síntese vislumbrada
pelo romantismo é uma expectativa concreta ou, antes, consiste em uma ideia regulativa, como algo que
não pode de fato ser completamente realizado, mas apenas infinitamente aproximado. Quando passarmos
à análise da teoria do romance do romantismo propriamente dita, esperamos levantar alguns elementos
que possam iluminar essa questão.
92
Schlegel, Sobre el estudio de la poesía griega, 81.
93
Ibidem, 85.

51
“entre o interessante e o belo, entre o amaneirado e o objetivo94”. Goethe inauguraria,
assim, uma nova etapa da cultura estética moderna, ao sintetizar elementos modernos e
objetividade clássica. A formação moderna, portanto, tenderia em seu desenvolvimento
à recuperação da objetividade própria à arte grega – que não é atingida pela imitação
dos modernos, como em Winckelmann, mas pela mescla entre a objetividade e as
características modernas. Mais especificamente, o que Schlegel afirma é que Goethe
consegue conferir uma espécie de objetividade mesmo aos traços subjetivos, como a
maneira. No entanto, é preciso atentar para o fato de que o Goethe de Weimar não
simplesmente reedita a arte antiga, mas sua obra dá mostras do surgimento de uma nova
objetividade, entendida como a síntese do moderno e do clássico, isto é, uma
objetividade mediada pelos elementos subjetivos próprios à arte moderna.

Essa tendência do pensamento romântico pode ser observada também em textos


posteriores de Schlegel, nos fragmentos da revista Lyceum e Athenäum. A antiguidade
continua sendo caracterizada como uma cultura orgânica e sua poesia como “um
indivíduo no sentido mais rigoroso e literal da palavra 95”, pois as obras da antiguidade
compõem uma massa homogênea, indivisível, e por isso Winckelmann podia ler todos
os autores gregos como um só autor 96. Além disso, a época antiga era, paradoxalmente,
mais genial: “Tudo o que é antigo é genial. A antiguidade inteira é um gênio, único que
se pode chamar sem exagero de absolutamente grande, único e inatingível 97”. Por
constituir uma unidade indivisa, uma totalidade espiritual orgânica, a cultura grega
adquire esse status de inatingibilidade do ponto de vista da época moderna.

Isso porque a época moderna, para Schlegel, não é orgânica, mas química.
Comecemos pelo fragmento 216 da Athenäum, no qual Schlegel marca a importância
histórica de três eventos para a época moderna: “A Revolução Francesa, a doutrina-da-
ciência de Fichte e o Meister de Goethe são as maiores tendências da época 98”. A
Revolução Francesa significa para Schlegel o momento no qual a época moderna se
desvincula do passado e inicia uma nova era. De fato, o ímpeto para a revolução e
reinvenção constantes será a marca da modernidade em sua perspectiva: “O desejo
revolucionário de realizar o reino de Deus é o ponto elástico da formação progressiva e

94
Ibidem, 86.
95
Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 89. Fr.242
96
Ibidem, 71. Fr. 149.
97
Ibidem, 91. Fr. 248.
98
Ibidem, 83. Fr.216

52
o início da história moderna. Nela, o que não tem referência alguma ao reino de Deus é
apenas acessório 99”. Em um mundo no qual a ordenação divina desapareceu, permanece
ainda o desejo de tal ordem, mas esta deve ser instituída pela agência humana. Em outro
fragmento do Athenäum, Schlegel associa a Revolução Francesa ao caráter nacional
francês e a época moderna, que ele caracteriza como sendo uma época “química”;
químicos também seriam fenômenos modernos como o comércio, a crítica, a
sociabilidade, a história atual e o romance:

É natural que os franceses exerçam algum domínio nesta época. São uma nação
química, entre eles o sentido químico é ativado da maneira mais universal e, mesmo
na química moral, sempre fazem suas experiências em larga escala. Esta época é,
igualmente, uma época química. Revoluções não são movimentos universais
orgânicos, mas químicos. O grande comércio é a química da grande economia;
também há, certamente, uma alquimia do gênero. A natureza química do romance,
da crítica, do chiste [Witz], da sociabilidade, da retórica mais recente e da história até
100
hoje é por si mesma evidente .

O químico, portanto, opõe-se ao orgânico, mas, como ressalta Beda Allemann,


ele não deve ser confundido com a noção científica moderna de química, baseada em
critérios de repetibilidade em uma situação controlada, designando antes uma
capacidade para a improvisação e inventividade 101. Nesse sentido, as revoluções seriam
a marca da saída do reino das leis naturais, imutáveis, a quebra de uma linearidade que
se realiza por meio da intervenção criativa dos homens.

Mais adiante, no mesmo fragmento, Schlegel adverte que o químico é tão


somente uma noção associada ao tom fundamental da época moderna, mas que não é
possível determinar com precisão a característica fundamental da época, uma vez que
isso depende de se estabelecer claramente seus limites temporais, isto é, seu início e seu
fim. Ou seja, na medida em que para pontuar a fronteira final da época moderna é
preciso saber que tipo de cultura lhe sucede, nota-se mais uma vez o olhar para o futuro
característico da filosofia da história de Schlegel. E sua suposição é que, uma época
orgânica sucederia a química, de modo que a época moderna afigurar-se-ia tão somente
como uma etapa preparatória da humanidade:

Enquanto não se chegar a uma característica do universo e a uma divisão da


humanidade, será preciso se contentar com noções acerca do tom

99
Ibidem, 85. Fr.222
100
Ibidem, 135. Fr.426
101
Beda Allemann Ironie und Dichtung apud Rachel Lynn Schmidt, “Arabesques and the Modern Novel:
Friedrich Schlegel’s Interpretation of Don Quixote”, in Forms of modernity: Dom Quixote and modern
theories of the novel (Toronto ; Buffalo: University of Toronto Press, 2011), 53.

53
fundamental e de maneiras isoladas da época, sem poder fazer sequer a
silhueta do gigante. Pois como querer determinar, sem conhecimentos
prévios, se a época é efetivamente um indivíduo ou talvez apenas um ponto
de colisão de outras épocas: onde é que definitivamente começa e termina?
Como seria possível entender e pontuar corretamente o período atual do
mundo se não se pode ao menos antecipar o caráter geral do imediatamente
seguinte? Em analogia com esse pensamento, uma época orgânica se seguiria
à química, e então os habitantes da terra no próximo ciclo solar dificilmente
poderiam pensar tão bem de nós quanto nós mesmos, e considerariam muito
daquilo que agora é espantoso somente como exercícios úteis da juventude da
102
humanidade .

A época moderna seria, assim, uma etapa preparatória para uma época orgânica
futura, a qual em retrospecto evidenciaria os traços negativos do presente. Mas, ao
mesmo tempo, a época moderna é apreendida de maneira positiva, na medida em que
ela traz em si o germe para sua superação no futuro. Nesse sentido, o fragmento 139 da
Athenäum afirma que “do ponto de vista romântico, também as degenerações
excêntricas e monstruosas da poesia tem seu valor como materiais e exercícios
preparatórios da universalidade, desde que nelas haja alguma coisa, desde que sejam
originais 103”. E a tarefa da ciência da arte seria justamente desvendar “o ponto de vista e
as condições da identidade absoluta que existiu, existe ou existirá entre antigo e
moderno 104”.

No conjunto de textos reunidos no Conversa sobre a poesia 105, o caráter unitário


da cultura e literatura gregas e sua relação com a cultura moderna também são objetos
de discussão. No discurso “Épocas da arte poética”, apresentado por Andrea, a literatura
clássica é vista como a literatura mais original, a fonte de toda cultura europeia e “assim
como os sábios procuram na água o começo da natureza, a poesia mais antiga também
102
Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 135. Fr.426
103
Ibidem, 69. Fr.139.
104
Ibidem, 71. Fr.149
105
Conversa sobre a poesia aparece pela primeira vez nos dois últimos cadernos da revista Athenäum, em
1800. Segundo Victor-Pierre Stirnimann, o texto tem importância estratégica no que diz respeito ao
pensamento do primeiro romantismo. Em primeiro lugar, por sua forma inspirada no diálogo platônico,
modelo que para Schlegel alcançava uma síntese entre o poético e o filosófico, sendo portanto uma
semente da ideia do romance. Além disso, porque por meio da paródia o texto apresenta um retrato do
grupo romântico de Jena, já que os personagens dos ensaios correspondem à membros do grupo: assim,
“Ludoviko” é Schelling, “Lothario” é Novalis “Marcus” é Tieck, “Andrea” é August Schlegel, “Amalia”
é Caroline, “Camilla” é Dorothea Veit e “Antonio” é Friedrich Schlegel. Lacoue-Labarthe e Nancy
apontam as mesmas correlações expostas por Stirnimann, ao passo que Ernst Behler sugere que Lothario
seria na verdade Schelling, mas em todo caso defende que todos os textos devem, em última instância, ser
atribuídos à F. Schlegel, considerado uma espécie de condutor desse filosofar coletivo dos românticos.
Por essa razão, o conjunto de textos demonstra de maneira precisa a ideia da “sinfilosofia” ou a filosofia
em conjunto, em simpósio. Cf. Lacoue-Labarthe e Nancy, The literary absolute, 89. E Ernst Behler, Irony
and the discourse of modernity, apud Rachel Lynn Schmidt, Forms of modernity: Don Quixote and
modern theories of the novel, University of Toronto romance series (Toronto ; Buffalo: University of
Toronto Press, 2011), 316.

54
se mostra em fluidas feições 106”. A epopeia, a poesia e o drama helênicos constituem a
própria poesia, ao passo que “tudo o que a isto se segue, até nossos dias, é sobra,
ressonância, uma única provação, aproximação e retorno para aquele mais alto olimpo
da poesia 107”.

No “Discurso sobre a mitologia”, o personagem Ludoviko lamenta a ausência


de um centro para a poesia moderna, como a mitologia foi para os antigos. Segundo ele,
a mitologia forneceu um repertório compartilhado por todos, uma unidade cultural que
garantiria um lastro aos poetas antigos, que apenas expunham o conteúdo oferecido pela
mitologia, ao passo que na modernidade cada poeta tem de buscar sozinho e dentro de si
mesmo a fonte para suas obras. Por essa razão a poesia moderna seria uma dispersão
caótica, ao passo que a poesia antiga “é um único, completo e indivisível poema” já que
os “poemas da Antiguidade unem-se todos uns com os outros até se constituírem em
partes e membros sempre maiores do todo; um se engrena no outro e, por todas as
partes, é sempre um e o mesmo espírito diversamente expresso 108”. No entanto, em
consonância com a tendência geral da filosofia história romântica, o presente é visto
dialeticamente tanto como antítese do passado orgânico, quanto como prenúncio de uma
reunificação futura.

Tal reunificação – a nova mitologia antecipada por Ludoviko – contudo, não se


realiza exatamente como um simples retorno à organicidade dos antigos, mas seria
mediada por elementos modernos. Ela ocorreria

através do caminho inverso da de outrora, que por toda parte surgiu como a
primeira floração da fantasia juvenil, diretamente unida e formada com o
mais vivo e mais próximo do mundo dos sentidos. A nova mitologia deverá,
ao contrário, ser elaborada a partir do mais profundo do espírito; terá de ser a
mais artificial de todas as obras de arte, pois deve abarcar todo o resto, um
novo leito e recipiente para a velha e eterna fonte primordial da poesia; ao
mesmo tempo, o poema infinito, que em si oculta o embrião de todos os
outros poemas. [...] Por que não deveria acontecer de novo o que antes já
aconteceu? De uma outra maneira, bem entendido. E por que não maior, mais
109
bela? .

A nova mitologia, portanto, almeja a harmonia e a beleza da cultura antiga, mas


ela não seria uma mitologia natural, imediata, e sim artificial, já que formada a partir do

106
Friedrich von Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos (São Paulo: Iluminuras, 1994),
34.
107
Ibidem, 37.
108
Ibidem, 51.
109
Ibidem, 51–2.

55
espírito moderno, pela interioridade e pela reflexão. Nesse sentido, os antigos não são
tanto um modelo quanto uma inspiração, que não pode concretizar-se mediante a
imitação pura e simples, mas que será realizada pelo aprofundamento de traços
modernos, em um processo que culminaria inclusive no aperfeiçoamento e superação do
passado. Segundo Schlegel (que nesse texto parodia as concepções de Schelling), a
revolução realizada pelo idealismo de Fichte daria indícios do surgimento dessa nova
unidade, porque colocaria no centro de sua filosofia a autodeterminação do espírito, o
poder individual de transformar o mundo. Entretanto, a transformação revolucionária
operada pelo idealismo, paradoxalmente, não instituiria uma nova ordem, mas reviveria
a clássica no futuro: “a Antiguidade encanecida tornar-se-á de novo viva, e o futuro
mais distante já se apresenta em presságios 110”. A nova mitologia seria, assim, a
reencenação do passado no presente, por meio do empenho humano, e o presente seria,
portanto, o ponto de contato transitório entre passado e futuro. A síntese futura entre o
clássico e o moderno consiste tanto em uma conservação, quanto uma superação.
Assim, a nova unidade esperada pelos românticos comportaria elementos clássicos e
modernos sob uma nova configuração. O futuro não seria um retorno ao passado
clássico, como se a história adotasse um movimento circular, mas a renovação da
cultura moderna por meio da subsunção do clássico em uma unidade. E o romance, “o
poema infinito, que em si oculta o embrião de todos os outros poemas”, também poderia
vir a efetivar essa síntese, como veremos no próximo capítulo.

Se, como vimos, para os românticos a organicidade da cultura grega afigura-se


como uma meta a ser alcançada pela modernidade, é preciso compreender o papel que
compete à época clássica na Teoria do romance. Nela, a construção histórico-filosófica
de Lukács demora-se na caracterização da época moderna: sublinha a perda da
totalidade, marca a cisão entre mundo e sentido e denuncia a impossibilidade de se
superar essa condição e alcançar um ideal de harmonia e organicidade. A caracterização
da época grega serve muito mais como um recurso contrastivo para delinear os
contornos da modernidade e, inclusive, Lukács empenha-se por mostrar como a própria
cultura grega é completamente harmônica apenas num período preciso, o da era
homérica, pois a tragédia e a filosofia já testemunham o processo de evasão da
substância rumo à transcendência.

110
Ibidem, 52.

56
Nesse sentido, é possível perceber que aquela oposição entre a naturalidade da
cultura grega e a artificialidade da cultura moderna, presentes em Schelgel, reaparece no
argumento de Lukács em uma perspectiva mais atenta aos seus fundamentos sociais.
Além da alusão à ideia weberiana da racionalização das ordens de vida, é possível
deslindar da contraposição entre os “dois mundos da épica”, mundo clássico e mundo
moderno, uma referência ao processo econômico e social de passagem de uma
organização comunitária da vida para uma estruturação propriamente social, cuja
consequência mais interessante para a economia do argumento de nosso autor é o
surgimento de uma nova relação entre o indivíduo e seu mundo. No mundo clássico,
estruturado por laços orgânicos de pertencimento, não há nenhuma distância entre o
homem e os valores de sua comunidade, que se lhes apresentam como algo natural e
incontornável, chancelados pela durabilidade e pela tradição. Rompido o sentido de
completude e unidade entre os homens e o mundo, antes assegurado pela magia, pela
natureza, pela tradição ou pela religião, a relação entre o homem e o mundo passa a ser
marcada pelo signo da cisão: a naturalidade anterior é suplantada pela mediação
reflexiva que se interpõe não somente entre o sujeito e o mundo, mas também entre o
sujeito e seus próprios atos. Se antes estes possuíam um sentido público, e sustentavam-
se em uma moralidade comunitária, no mundo moderno eles estão baseados em uma
motivação interna, orientam-se por uma ética individual.

Lukács não deixa de reconhecer que, se esse alargamento dos horizontes do


mundo moderno implica na perda de um sentido positivo para a vida, ele ao mesmo
tempo significa uma existência mais rica, plural e, no limite, abre espaço para o
surgimento da subjetividade 111. Por isso a referência à filosofia de Kant, pois sua virada
à subjetividade, o tão famoso “giro copernicano”, seria o índice de tal transformação.
Ademais, se entendermos a filosofia kantiana como a primeira autoexposição filosófica
da modernidade, quer dizer, como expressão, no âmbito filosófico, das complexas
mudanças culturais e sociais que constituem a modernidade, então parece plausível
localizar na Revolução Francesa o marco temporal da modernidade na Teoria do
romance. No mundo pós-revolução, em que o indivíduo encontra-se desprovido de uma
relação imediata com o sentido do mundo, e nem pode acessar esse sentido por meio de

111
“O círculo em que vivem metafisicamente os gregos é menor do que o nosso: eis por que jamais
seríamos capazes de nos imaginar nele com vida; ou melhor, o círculo cuja completude constitui a
essência transcendental de suas vidas rompeu-se para nós; não podemos mais respirar num mundo
fechado”. Lukács, A teoria do romance, 30.

57
uma instância tradicional ou divina, cabe à razão humana estabelecer sua própria
validade como o terreno da busca pela verdade. Por isso, se de um lado a liberdade
frente à tradição e aos dogmas religiosos conquistada pela Revolução Francesa
significou um avanço no sentido de uma maior autonomia individual, de outro, essa
mesma liberdade é fonte de inquietação, uma vez que a busca por um sentido do mundo
passa a ser uma incumbência individual: ao homem solitário, abandonado pelos deuses,
resta apenas orientar-se por sua própria razão, para a qual no entanto é impossível
garantir que não permaneça mera projeção subjetiva, sem relação com o mundo 112.

O céu estrelado de Kant brilha agora somente na noite escura do puro


conhecimento e não ilumina mais os caminhos de nenhum dos peregrinos
solitários – e no Novo Mundo, ser homem significa ser solitário. E a luz
interna não fornece mais do que ao passo seguinte e evidência – ou a
aparência – de segurança. De dentro já não irradia mais nenhuma luz sobre o
mundo dos acontecimentos e sobre o seu emaranhado alheio à alma. E quem
poderá saber se a adequação do ato à essência do sujeito, o único ponto de
referência que restou, atinge realmente a substância, uma vez que o sujeito se
113
tornou uma aparência, um objeto para si mesmo [...] .

Trata-se, no fundo, de apontar para o processo de individuação e de surgimento


da subjetividade o que, por sua vez, desautoriza qualquer pretensão de retorno a uma
civilização fundada em um sentido unitário para a vida, como Lukács deixa evidente ao
apontar que a ruptura da unidade das esferas da vida é um processo inexorável. Apenas
por um breve período, diz ele, na baixa idade média, foi possível sonhar com uma nova
unidade, já que o cristianismo procurou fazer do mundo novamente uma totalidade
fechada, a partir de um sentido manifesto não na existência terrena, mas no mundo do
pós-vida. A referência nesse momento é a Divina comédia de Dante, que no esquema
de Lukács corresponde à transição literária da epopeia para o romance.

Após o rompimento da unidade das esferas, contudo,

qualquer ressurreição do helenismo é uma hipóstase mais ou menos


consciente da estética em pura metafísica: um violar e um desejo de aniquilar
a essência de tudo que é exterior à arte, uma tentativa de esquecer que a arte é

112
Como nota Andrew Bowie, o foco da filosofia kantiana na subjetividade está relacionado às mudanças
complexas e contraditórias trazidas pela modernidade: “a rápida expansão do capitalismo, a emergência
do individualismo moderno, o crescente sucesso do método científico em manipular a natureza para fins
humanos, o declínio das autoridades tradicional e teologicamente legitimadas, e a aparição,
conjuntamente com a estética enquanto um ramo da filosofia, da ‘autonomia estética’, a ideia de que
obras de arte envolvem regras produzidas livremente, que não se aplicam a nenhum outro objeto natural
ou produto humano”. Andrew Bowie, “Introduction”, in Aesthetics and subjectivity: from Kant to
Nietzsche (Manchester, UK ; New York: Manchester University Press, 2003), 2.
113
Lukács, A teoria do romance, 34.

58
somente uma esfera entre muitas, que ela tem, como pressupostos de sua
114
existência e conscientização, o esfacelamento e a insuficiência do mundo .

Embora a abordagem de Lukács pareça à primeira vista um tanto idealista –seja


por seu arcabouço conceitual, seja pela preferência por formulações um tanto abstratas –
parece possível afirmar, como já o fizemos, que seu argumento sustenta-se em uma
explicação essencialmente social no que diz respeito à ruptura entre a arte grega e a arte
moderna, qual seja, a passagem de uma cultura fechada a uma cultura problemática, da
comunidade à sociedade, do homem enquanto ser organicamente integrado ao mundo,
ao indivíduo mecanicamente relacionado à sociedade. Há uma mudança social – nos
termos de Lukács, uma transformação na estrutura dos loci transcendentais, isto é, na
relação entre vida e substância – irreparável que ocasiona uma ruptura entre a arte dos
antigos e arte dos modernos, a ponto desta não poder mais recorrer às formas clássicas
na tentativa de solucionar seus problemas.

Quando se fala dos gregos, mistura-se sempre filosofia da história e estética,


filosofia e metafísica, e trama-se uma relação entre as suas formas e a nossa
era. Belas almas buscam os seus próprios instantes sublimes, instantes
fugazmente efêmeros, nunca apreensíveis, de uma sonhada tranquilidade por
trás dessas máscaras taciturnas, caladas para sempre, esquecendo que o valor
desses instantes é sua fugacidade, que aquilo de que fogem para buscar
abrigo junto aos gregos é a sua própria profundidade e grandeza. Espíritos
mais profundos, empenhados em coagular em aço purpúreo o sangue que lhes
brota e forjá-lo em couraça, para que suas feridas permaneçam eternamente
ocultas e seus gestos de heroísmo tornem-se o paradigma do verdadeiro e
futuro heroísmo, a fim de que o novo heroísmo seja por ele desperto,
comparam a fragmentareidade de sua figuração [Formung] com a harmonia
grega, e os próprios sofrimentos, de que brotaram suas formas, com os
115
sonhados martírios que precisaram da pureza grega para ser pacificados .

Ao criticar as tentativas de salvar a arte moderna seja por meio de um retorno à


arte grega, como no caso do classicismo, seja por meio da superação da cisão da cultura
moderna em uma síntese futura entre antiguidade e modernidade, como gostaria o
romantismo, Lukács atenta para o fato incontornável de que a modernidade é uma época
cindida e, como tal, oposta à organicidade que caracteriza a cultura grega, que não é
posta por ele nem como ideal a ser recuperado, nem como meta a ser alcançada. Lukács
insiste na essência problemática da modernidade já que a toma como algo objetivo, o
resultado de um processo histórico que, apesar da abordagem mais conceitual e abstrata

114
Ibidem, 36.
115
Ibidem, 28. Grifo meu.

59
do ensaio, sabemos ser no fundo o processo de consolidação da ordem burguesa e do
capitalismo.

Isso não significa que a perspectiva de Lukács seja trágica, no sentido de conceber
a fragmentação moderna como um conflito insuperável 116; antes, essa questão adquire
certa ambiguidade ao longo do livro, conforme atesta a segunda parte do ensaio, em
especial as análises sobre os romances de Goethe, Tolstoi e Dostoiévski, na qual a
possibilidade de algum tipo de nova cultura no futuro é aventada. O importante é que o
fato de sua abordagem estar ancorada na percepção de que a falta de um sentido unitário
para o mundo moderno decorre de um processo histórico-social tem como corolário a
recusa de uma solução exclusivamente estética para esse problema. O teor dessa
divergência de Lukács com o romantismo alemão é explicitado em um ensaio de A alma
e as formas intitulado “A filosofia romântica da vida”. Nesse texto, Lukács aborda o
romantismo de Iena e discute seu projeto de criar uma nova cultura, uma comunidade e
uma religião cujo centro e elemento motor seria a poesia.

Lukács compreende o romantismo como sendo dotado de um caráter paradoxal.


Por um lado, ele parece reconhecer na crítica do romantismo à nascente civilização
moderna uma primeira formulação de suas próprias inquietações, relativas à
possibilidade de se viver uma vida significativa em um mundo cada vez mais dominado
por tendências prosaicas. De fato, vivendo em um momento histórico de choque entre
os modos tradicionais de vida e as novas formas de vida burguesa, os pensadores
românticos puderam entrever as consequências nefastas que o aprofundamento do modo
de vida capitalista traria aos indivíduos, sob a forma de uma sociedade enrijecida, cada

116
Para Löwy, a especificidade do anticapitalismo romântico em sua versão dos anos 1880-1918, frente à
ideologia romântica do século XVIII era seu “espírito de resignação”. Os sociólogos alemães, dentre eles
Tönnies, Weber e Simmel, que compõem o que Löwy chama de tendência conservadora modernista (em
oposição à ortodoxia reacionária), reconheciam o desenvolvimento capitalista como um processo
inexorável. Desse modo, a oposição entre a Kultur, esfera que abrange valores éticos, estéticos e políticos,
um estilo de vida pessoal, um universo espiritual “orgânico”, “natural” e “interior”, tipicamente alemão, e
a Zivilisation, o progresso material, técnico-econômico, “exterior”, “mecânico”, “artificial”, de origem
anglo-saxã, se torna nesses autores um conflito trágico, em que pese a manutenção de certo tom
nostálgico quanto ao passado comunitário. O próprio Löwy, entretanto, chama a atenção para a posição
peculiar de Lukács quanto a essa problemática, pois sua recusa ao capitalismo seria muito mais extrema
do que a desses autores, já que estaria fundamentada menos em uma nostalgia pelo passado e mais em
uma crítica cultural do capitalismo. Segundo Márkus, em carta citada por Löwy, “Lukács nunca se
reconciliou, mesmo durante esse período (antes de 1918), com a visão trágica de mundo a que havia
chegado; a auto-satisfação e o contentamento mais ou menos cínico de Simmel nunca o caracterizaram;
ele sempre tentou – em vão – novos caminhos para abandonar esse trágico dualismo...Há uma
impossibilidade pessoal (crescente com os anos) em aceitar como definitivo o veredito non possumus”.
Löwy, A Evolução Política de Lukacs, 120–121.

60
vez mais alheia à vontade dos sujeitos. No entanto, apesar de perseverar em temas caros
à crítica cultural romântica, Lukács problematiza as soluções aventadas pelo
romantismo para superar a condição moderna. Seria mesmo possível poetizar
inteiramente o mundo, retornar a uma situação de harmonia na qual a vida e a essência
estariam completamente reconciliadas, sem que para isso fosse necessário algum grau
de renúncia, de limitação das expectativas frente à realidade?

Lukács nota como o romantismo se vale da imagem harmônica da cultura grega e


da idade média “como símbolos provisórios para esse novo anseio” de superar a
fragmentariedade e a cisão do mundo moderno, de modo que não se trata de uma
valorização literal de épocas passadas, mas de uma espécie de símbolo de uma unidade
ainda não conquistada, localizada no futuro: “É o antigo sonho de uma era dourada. Mas
sua era dourada não é um refúgio em um passado perdido para sempre, para ser apenas
vislumbrado de tempos em tempos em velhas lendas maravilhosas – é uma meta que é
dever de todos alcançar 117”. Se existe algum momento de verdade no romantismo, este
residiria, para Lukács, em seu caráter utópico contido na exposição da insuficiência do
mundo moderno e na promessa de outro mundo no qual os homens pudessem viver uma
vida verdadeira – mais do que uma força regressiva, portanto, Lukács vislumbra no
romantismo uma energia utópica.

Entretanto, “havia algo de doentio na coisa toda”, para usar citação recorrente que
funciona como uma espécie de mote do ensaio de Lukács. O problema é que a ideia de
poetizar o mundo, formulada pelos românticos, teria como contrapartida o ato de retirar-
se da vida, um refúgio na interioridade que levaria a uma passividade frente ao mundo
real. Essa postura, Lukács a reconhece como sendo um problema tipicamente alemão: a
via interior, a revolução do espírito, seria a única concebível em um país no qual as
condições objetivas não eram as mais favoráveis para que se pensasse seriamente em
uma revolução real. Em oposição à postura goetheana de ação no mundo, simbolizada
no romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, os românticos limitavam-se a
esfera do pensamento:

tudo aquilo que neles permanecia método e tendência, tornava-se ato em


Goethe; eles não podiam apresentar nada além de meditações problemáticas a
respeito da necessidade de superar sua própria problemática, enquanto ele
superava a sua; eles procuravam criar um mundo novo onde o grande

117
Georg Lukács, “On the romantic philosophy of life”, in Soul and form (New York: Columbia
University Press, 2010), 65.

61
homem, seu poeta, teria encontrado sua pátria, enquanto Goethe encontrava a
118
sua na vida presente .

Para o romantismo, tudo se passa como se a poesia fosse o centro do mundo,


pois só ela pode ultrapassar todas as contradições, realizar a síntese da universalidade e
da unidade. A realidade efetiva da vida dá lugar a uma outra realidade, poética e
puramente espiritual; eles criaram um mundo orgânico e harmonioso e o identificaram
ao mundo real e todo e qualquer acontecimento passou então a ter significado, ser
necessário. Com isso, diz Lukács, perdeu-se a tensão que existe entre poesia e vida “que
dá a uma e a outra suas forças reais e criadoras de valores 119”.

A crítica de Lukács, isso deve ficar claro, não se dirige à centralidade conferida
pelo romantismo à arte, mas à falta de clareza quanto a seus limites. É lícito afirmar que
a arte continua sendo um lugar de verdade na Teoria do romance, uma vez que Lukács
elege como objeto de estudo justamente o romance, entendido como a forma mais
representativa da época moderna e, a partir dela, procura elaborar inclusive a crítica de
seu presente histórico. No próximo capítulo veremos em maior detalhe como essa
divergência de Lukács com o romantismo se expressa também em sua análise da forma
romance.

A dialética histórico-filosófica das formas

Caracterizados e contrastados os dois tipos de formação social e expostas as


formas de configuração do mundo presentes na Grécia, Lukács passa à consideração dos
gêneros literários na modernidade. Se o primeiro assunto do ensaio de Lukács consistia
em apresentar a oposição entre a cultura grega e a cultura moderna, diferenciação
estabelecida no final do século XVIII se não exclusiva ao menos de maneira
destacadamente assertiva no ensaio e no prefácio de Sobre o estudo da poesia grega, o
segundo ponto abordado por Lukács revela uma forte presença das reflexões de
Friedrich Schlegel acerca das transformações sofridas pelos gêneros literários na época
moderna.

118
Ibidem, 64.
119
Ibidem, 67.

62
Seguindo os passos de Schlegel, a perspectiva adotada por Lukács na Teoria do
romance se distingue das abordagens empíricas dos gêneros, que partem da
consideração das obras existentes e que, a partir delas extraem determinados traços
definidores para então classificá-las. Ela se situa, antes, no plano especulativo e orienta-
se pela formulação dos conceitos de cada gênero, isto é, busca os princípios que
permitam caracterizá-los e distingui-los uns dos outros. Nesse sentido, se seguirmos o
esquema de Szondi, Lukács seria tributário daquela passagem das poéticas normativas
às especulativas, ocorrida ao longo do século XVIII. Herdeiras da Poética de
Aristóteles, da Ars Poética de Horácio e do escrito Sobre o sublime de Longino, as
estéticas do barroco e do Iluminismo alemão pregavam uma obediência estrita a
preceitos e regras eternamente válidos, coligados a partir da avaliação de obras
particulares consideradas como exemplares e, logo, tomadas como modelos atemporais.
Esse tipo de consideração sobre a arte e, em específico, sobre a literatura, parte de
questões relativas à prática artística; no caso da poesia, tem em vista a produção
literária e, nesse sentido, se detém sobre as técnicas e os procedimentos mais adequados
a serem adotados pelo autor, tendo em vista as características de cada gênero literário e
as sensações que estes devem suscitar.

A abordagem dos gêneros poéticos realizada por Lukács, portanto, pode ser
inserida naquela linhagem da poética dos gêneros que surge no bojo de um processo de
desenvolvimento, desde seu surgimento com Aristóteles e Platão até os sistemas da
identidade do idealismo alemão, em direção a uma filosofia dialética da história, que
une os sistemas formais e as transformações históricas. Por muito tempo antes disso, a
poética dos gêneros foi dominada por uma tradição que os concebia como formas
estanques e imunes à transformação histórica 120. As mudanças sociais só eram
relevantes na medida em que ofereciam novos conteúdos para os gêneros, mas estes não
eram afetados em suas formas, que permaneciam fixas 121. À poética cabia resguardar os
princípios formais de cada gênero e determinar quais conteúdos seriam adequados a
cada um dos gêneros consagrados.

120
Desde a Antiguidade tardia – na Ars grammatica de Diomedes, da segunda metade do século IV -
passando pela idade média e pelo renascimento – com Escalígero - essa vertente da poética foi
predominante. Cf. Peter Szondi, Poética y filosofía de la historia. 2 (Madrid: Visor, 2005), 30.
121
Cf. Peter Szondi, “Introdução - Estética histórica e poética dos gêneros”, in Teoria do drama moderno,
2a ed (São Paulo: Cosac Naify, 2011), 17–21.

63
A tal tradição opõe-se a poética dedutiva e histórica, linhagem consolidada pela
Estética de Hegel 122 e na qual se enquadra a poética desenvolvida por Lukács na Teoria
do romance. Nela, a história, antes fator lateral, é o fundamento constitutivo dos
gêneros, colocados em movimento. Com a reorientação rumo ao especulativo operada
pelas poéticas da “época de Goethe”, está dada também a possibilidade de
reconhecimento da dialética entre forma e conteúdo, antes concebidos dualisticamente,
pois a mudança histórica que afeta os conteúdos pode fazer com que estes entrem em
contradição com princípios de determinada forma. Assim, uma forma estabelecida é
passível de ser posta em questão pelos conteúdos os quais busca assimilar, mas que já
são incompatíveis com seus pressupostos.

Colhem-se aqui os frutos da concepção dialética da relação forma-conteúdo


de Hegel, pois a forma passa a ser concebida como uma espécie de conteúdo
‘sedimentado’, expressando a metáfora tanto o que a primeira tem de fixo e
duradouro como o poder enunciativo que lhe confere o segundo, sua esfera
de origem. [...] Com isso, porém, já está dada a possibilidade de ambos
entrarem em contradição. Se no caso da correspondência entre forma e
conteúdo, a temática do último se desenvolve como que no quadro do
enunciado formal, como um conjunto de problemas situado no interior de
algo não problemático, a contradição surge quando o enunciado fixo e não
questionado da forma passa a ser posto em questão pelo conteúdo. É essa
antinomia interna que torna historicamente problemática uma forma literária
123
[...] .

A percepção de que a forma seria o lócus privilegiado de manifestação das


questões sociais, isto é, a ideia de que a verdadeira dimensão social da obra de arte
reside não tanto em seus conteúdos, mas em sua forma, entendida como sedimento de
matéria histórica é, portanto, fundamental para a análise contida na Teoria do

122
O ápice dessa tradição é a Estética de Hegel, síntese e superação da crise das poéticas kantianas e não
históricas, mediada pelos conhecimentos do classicismo e do historicismo. Neles, fica evidente como a
história cada vez mais se impõe aos sistemas formais, dinamizando-os até que, em Hegel, sistema e
história se mesclam a tal ponto que o sistema passa a ser a exposição do próprio processo histórico.
123
Szondi, “Introdução - Estética histórica e poética dos gêneros”, 20. Para Hegel, a arte deve expressar
de maneira sensível os interesses mais íntimos do homem, portanto ela não pode ser completamente
arbitrária quanto a seu conteúdo; este não é produto da imaginação desenfreada do artista, mas está
determinado pelos interesses do espírito. A mesma determinação vale para a Forma: esta não está
entregue ao mero acaso, pois “nem toda configuração é capaz de ser a expressão e a exposição daqueles
interesses, de recebê-los e de reproduzi-los, e sim a Forma é determinada por um conteúdo determinado,
ao qual ela se adapta”. Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, Curso de estética: o sistema das artes (São
Paulo (SP): EDUSP, 1999), 37. Ou ainda, sobre a unidade dialética entre forma e conteúdo, Hegel afirma
que a obra de arte consiste “num elemento interior, num conteúdo, e num elemento exterior que significa
esse conteúdo. O interior aparece no que é exterior e se dá a conhecer através do mesmo, ao passo que o
exterior aponta por si próprio para o que é interior”. Ibidem, 43. Nesse ponto, a estética hegeliana opõe-se
radicalmente à estética romântica de Friederich Schlegel na qual o papel da imaginação individual do
artista é preponderante. Peter Szondi, “La teoria hegeliana de la poesia”, in Poética y filosofía de la
historia I (Madrid: Visor, 1992), 170.

64
romance 124. Assim, se por um lado o conceito de forma em Lukács contém uma
dimensão talvez antropológica, na medida em que a forma, em sentido forte, responde a
uma necessidade de organizar e conferir um sentido a um conjunto caótico de elementos
da vida, por outro é evidente que as formas estão sujeitas à transformações históricas, na
medida em que estas alterem a relação entre indivíduo e mundo e imponham novas
exigências às formas. Isso quer dizer que as formas não somente estão inseridas em um
processo histórico, mas também carregam em si mesmas, isto é, em seus elementos
internos, uma historicidade 125.

Vejamos como isso se dá na Teoria do romance. Aquelas formas paradigmáticas


de configuração do mundo apresentadas por Lukács sofreriam o impacto da história
com o fim da era helênica. Embora peremptório para a literatura como um todo, o
choque das formas com a história afeta de maneira distinta cada uma delas, a depender
do gênero específico ao qual pertencem. É o que Lukács afirma quando diz que a
“transmutação dos pontos de orientação transcendentais submete as formas artísticas a
uma dialética histórico-filosófica, que terá porém resultados diversos para cada forma,
de acordo com a pátria apriorística dos gêneros específicos 126”.

Szondi, ao analisar a teoria dos gêneros poéticos de Schlegel, chama atenção


para uma diferenciação, feita no quinto dos Fragmentos sobre a literatura e a poesia,
entre “gêneros válidos sem restrição” e gêneros pertencentes exclusivamente à época
clássica ou à época moderna. Isso não significa, diz Szondi, que para Schlegel alguns
gêneros sejam afetados pela história e outros não, mas sim a percepção de que a história
os afeta de maneira distinta: a alguns gêneros a historicidade traz transformações que,
contudo, os mantém dentro dos limites de seu gênero, mas a outros ela acarreta
mudanças profundas, que tornam necessário o nascimento de um novo gênero, como é o

124
Em um fragmento de seu trabalho sobre o drama moderno, Lukács aponta os limites da crítica
sociológica tradicional da literatura: “O defeito maior da crítica sociológica da arte consiste na sua busca
e análise dos conteúdos das criações artísticas com o objetivo de estabelecer uma relação direta entre eles
e determinadas condições econômicas. O verdadeiramente social da literatura é a forma”. Georg Lukács,
“Reflexões sobre a sociologia da literatura”, in Georg Lukács, org. José Paulo Netto, Sociologia 20 (São
Paulo: Ática, 1992), 174.
125
A esse respeito Judith Butler afirma: “com isso eu quero dizer apenas que a forma não está na história,
embutida lá, como se fossem duas coisas separadas, a última formando um contexto exterior para a
primeira. O contexto entra na forma e torna-se parte do próprio processo de dar forma. É isso que
significa afirmar, como eu acredito que Lukács nos ensinou a afirmar, que a forma tem uma
historicidade”. Judith Butler, “Introduction”, in Soul and form (New York: Columbia University Press,
2010), 7.
126
Lukács, A teoria do romance, 36.

65
caso da épica, na qual a epopeia dá lugar ao romance 127. Embora Lukács não tenha tido
acesso a esse fragmento em específico (publicado postumamente), tal concepção
schlegeliana informa a exposição do desenvolvimento dos gêneros na modernidade
apresentada na Teoria do romance.

A reviravolta histórica pode, então, segundo Lukács, afetar apenas o objeto que
determinado gênero trata de configurar, implicando em alterações formais importantes
que, no entanto, deixam intocado o princípio fundamental de configuração. Ou ela pode
implicar em uma mudança mais fundamental no princípio estilístico do gênero, isto é,
“na relação última da forma com sua legitimação transcendental da existência 128”. Este
é o caso da épica: em virtude da perda da imanência do sentido à vida, a epopeia teve
sua continuidade bloqueada, dando lugar a uma forma completamente nova, o romance,
ao passo que o drama, que lida com a essência, pode sobreviver sem alterações
fundamentais uma vez que “a essência afastada da vida e estranha à vida é capaz de
coroar-se com a própria existência 129”. A diferença entre romance e epopeia, portanto,
não reside em uma mudança na mentalidade criadora dos artistas, mas antes, em uma
injunção histórico-filosófica que determina que a mesma mentalidade oriente-se por um
novo objetivo. Entre as formas gregas e as modernas, portanto, tem lugar uma dialética
entre continuidade e ruptura que varia conforme o gênero considerado: a tragédia passa
por uma alteração relativa, que não fere os princípios fundamentais de seu gênero, da
qual o drama moderno é produto – ou seja, trata-se de um gênero “válido sem
restrição”, nos termos de Schlegel – ao passo que o romance é uma forma inteiramente
nova – inteiramente moderna – que, embora se inscreva na linhagem épica e tenha na
epopeia um antepassado, não coincide mais formalmente com seu arquétipo.

Mas no quê exatamente consistem essas mudanças? Quer dizer, quando se fala em
transformação dos gêneros literários ao longo da história, o que se pretende dizer? Um
aspecto fundamental do desenvolvimento histórico dos gêneros é que na modernidade
eles deixam de aparecer como gêneros puros e passam a manifestarem-se como uma
mistura. Esse tema da mistura dos gêneros na modernidade esteve no centro das
preocupações teóricas de Schlegel e teve um papel importante em suas reflexões sobre o

127
Peter Szondi, “La théorie des genres poétiques chez Friedrich Schlegel. Essai d’une reconstruction sur
la base des fragments posthumes”, in Poésie et poétique de l’idéalisme allemand (Paris: Les editions de
Minuit, 1975), 122.
128
Lukács, A teoria do romance, 36.
129
Ibidem, 39.

66
romance. Se para ele o romance é a forma mais característica da época moderna, isso se
deve ao fato de que em Schlegel ele deixa de ser concebido como a manifestação de um
gênero dentre outros, mas passa a ser o gênero que abrange os outros em si mesmo – um
gênero misto, mas também o gênero dos gêneros, o gênero único da modernidade. Para
discutir o romance, portanto, é preciso discutir a própria validade da divisão da poesia
moderna em gêneros com limites rigidamente definidos, tal qual a divisão tradicional
entre poesia épica, poesia lírica e poesia dramática. Essa mudança exige, para Schlegel,
uma nova teoria dos gêneros poéticos, fundamentada no reconhecimento de sua
historicidade. Como vimos, em Sobre o estudo da poesia grega, Schlegel já distinguia a
poesia clássica, natural, da poesia moderna, artificial, a partir da ausência de um
princípio unificador nesta última, que por isso é marcada pela artificialidade própria à
reflexão, pela presença da individualidade do artista. Por isso, segundo Schlegel a
divisão das obras literárias clássicas em gêneros faz sentido, na medida em que elas
compõem, segundo seu gênero, uma massa uniforme, ao passo que as obras modernas
apresentam-se, sobretudo, como individualidades 130.

Isso significa que Schlegel tem que ir além dos debates acerca da delimitação dos
gêneros poéticos e colocar em questão as condições de possibilidade do próprio
conceito de gênero1. O fragmento 62 do Lyceum expressa de maneira sintética essa
reorientação proposta por Schlegel: “já se tem muitas teorias dos gêneros poéticos. Por
que não se tem ainda nenhum conceito de gênero poético? Então teríamos talvez de nos
contentar com uma única teoria dos gêneros poéticos1”. Ora, se na modernidade cada
obra é uma combinação individual das formas naturais, dos antigos gêneros clássicos, a
ponto de não ser mais possível falar nem em um desenvolvimento orgânico dos gêneros,
nem em uma periodicidade filosófica claramente delimitada dos mesmos, haveria ainda
algum sentido no conceito de “gênero” nesse contexto? Em Sobre el estudio de la
poesia grega, a “mescla antinatural de gêneros puros 131” ainda era vista como uma
monstruosidade estética, mas nos fragmentos essa percepção de Schlegel se transforma
e ele passa a exigir uma teoria dos gêneros poéticos que dê conta dessa mudança que

130
Cf., entre outras passagens: “A simples homogeneidade de todo o conjunto da poesia grega contrasta
muito chamativamente com o multicolor e a mescla heterogênea da poesia moderna. [...] Essa
homogeneidade pode ser percebida não só em todo o conjunto, mas também nas classes maiores e
menores, coexistentes ou sucessivas, nas quais se divide o todo”. Schlegel, Sobre el estudio de la poesía
griega, 115–116. Sobre a mistura dos gêneros e a preponderância do individual na poesia moderna: “Mas
ainda mais desafortunados são seus experimentos alquímicos de separar e unir arbitrariamente as artes
originárias e os tipos puros de arte”. Ibidem, 75.
131
Schlegel, Sobre el estudio de la poesía griega, 75.

67
pauta o desenvolvimento da literatura moderna, pois “em sua rigorosa pureza, todos os
gêneros poéticos clássicos são agora ridículos 132”. A fluidez dos gêneros, o
reconhecimento de sua mistura na modernidade, não significa, no entanto, que eles
tenham se dissolvido em um todo indistinto. Isto é, mesmo na época moderna,
continuam a existir o gênero épico, lírico e dramático, ainda que eles não coincidam
com seus modelos gregos, como postulavam os classicistas.

A teoria dos gêneros poéticos construída por Lukács assenta-se nesse


reconhecimento de que na época pós-helênica os gêneros literários perdem a
periodicidade filosófica que possuíam na Grécia, quando a substância ainda não havia
se evadido definitivamente da vida, e “se cruzam num emaranhado inextricável, como
indício da busca autêntica ou inautêntica pelo objetivo que não é mais dado de modo
claro e evidente 133”. Assim como Schlegel, Lukács insiste na permanência de uma
espécie de núcleo que permitiria ainda distinguir os gêneros na modernidade segundo a
maneira pela qual cada um constitui-se enquanto forma, isto é, configura uma
totalidade.

Sendo assim, o próximo passo de Lukács é expor como para o gênero dramático
essa mistura, isto é, a entrada de elementos épicos e líricos ocasiona um deslocamento
do problema trágico sem, contudo, afetar seus princípios fundamentais, ao passo que
para a épica essa alteração é mais radical e implica no surgimento de uma nova forma, o
romance. Note-se que essa distinção fundamental para a compreensão do romance
enquanto forma épica moderna retoma aquela estabelecida por Schlegel entre formas
válidas atemporalmente e formas que pertencem a um determinado momento histórico.

A permanência relativa do drama e a completa alteração da épica ao longo da


história devem-se ao modo segundo o qual cada um desses gêneros opera de modo a
cristalizar uma forma, isto é, configurar uma totalidade. Épica e drama, por possuírem
princípios opostos, compõem o fundamento da teoria dos gêneros de Lukács e em torno
deles se articula todo o espectro de possibilidades da literatura moderna. A respeito da
distinção entre os dois gêneros, o autor afirma:

A grande épica dá forma à totalidade extensiva da vida, o drama à totalidade


intensiva da essencialidade. Eis por que, quando a existência perdeu sua
totalidade espontaneamente integrada e presente aos sentidos, o drama pôde

132
Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 30. Fr. 60 do Lyceum.
133
Lukács, A teoria do romance, 38.

68
não obstante encontrar em seu apriorismo formal um mundo talvez
problemático, mas ainda assim capaz de tudo conter e fechado em si mesmo.
Para a grande épica isso é impossível. Para ela o dado presente do mundo é
um princípio último; ela é empírica em seu fundamento transcendental
decisivo e que tudo determina; ela pode às vezes acelerar a vida, pode
conduzir algo oculto ou estiolado a um fim utópico que lhe é imanente, mas
jamais poderá, a partir da forma, superar a amplitude e a profundidade, a
perfeição e a sensibilidade, a riqueza e a ordem da vida historicamente
134
dada .

O conceito de essência, por meio do qual opera o drama, é relativamente


independente dos dados concretos da realidade existente, ao passo que o conceito de
vida conecta de modo indissolúvel a épica ao mundo empírico, quer dizer, a épica tem
por princípio último a realidade historicamente dada. Por isso, o drama aparece como
uma forma menos permeável à ação da história, ao passo que a épica é profundamente
alterada por ela.

Diferentemente dos poetas épicos de outrora, que podiam ser simples narradores
de acontecimentos e expor a transcendência que então era imanente à vida, na
modernidade toda épica que buscar um sentido imanente “está fadada ao fracasso, pois
terá, subjetiva ou objetivamente, de ir além da empiria, e portanto de transcender-se no
lírico ou no dramático. E essa transcendência jamais será frutífera para a épica 135”. Não
que o drama possa afastar-se da vida, pelo contrário, pois enquanto forma de
configuração deve necessariamente lidar com o real e a partir dele urdir uma totalidade
de sentido. O ponto é que as leis internas de cada gênero funcionam como uma espécie
de princípio de seleção que já informam de que maneira a realidade será incorporada e
configurada.

Nesse sentido, a forma do drama o conecta à realidade de maneira diferente da


forma épica: ele opera pela concentração, pelo aprofundamento, enquanto a épica opera
pela distensão, abarcando a vida em sua multiplicidade de elementos e mínimos
detalhes 136. É como se o drama operasse num sentido vertical, já que ele parte de um

134
Ibidem, 44.
135
Ibidem.
136
Uma passagem da Evolução histórica do drama moderno é bastante elucidativa das diferenças formais
entre o drama e a épica: “O mundo do drama significa todo o mundo da vida, mas como suas
possibilidades de conteúdo não permitem que haja mais do que algumas aventuras da vida de algumas
pessoas, sua universalidade não pode ser de conteúdo, como a da épica (epopeia, romance), que
representa seu próprio universo universalmente e não possui limites em seus meios de exprimir a
incomensurabilidade [...]. Ante a universalidade de conteúdo da épica, o drama é intensivo [...]”. Georg
Lukács, Entwicklungsgeschichte des modernen Dramas (Darmstadt/Neuwied: Hermann Luchterhand,
1981), 27. apud Macedo, “Posfácio do tradutor”, 199.

69
ponto e o aprofunda em sua essência, enquanto a épica procedesse num sentido
horizontal, pois ela busca configurar a vida em toda sua extensão, busca construir um
mosaico a partir da abundância de situações da vida. Por sua concisão, a totalidade
urdida pelo drama é formal e para que ela seja bem realizada, deve filtrar a riqueza e o
excesso de detalhes, extraindo o essencial da realidade, isto é, as correlações que a
estruturam, de modo que a realidade se apresente no encadeamento dos eventos. No
drama, os elementos básicos da realidade se apresentam de modo bem concatenado:
cada situação vincula-se estreitamente à anterior e à seguinte e cada mínima parte
relaciona-se intimamente com todas as outras, sendo absolutamente necessária para a
configuração do todo.

As manifestações dramáticas não tem outra realidade senão sua vinculação, e


nelas não se imagina outro vínculo senão o causal. Não pode subsistir outra
correlação senão a longa corrente de causas e efeitos, sendo que cada causa é
137
o efeito da causa anterior, e cada efeito a causa do efeito que lhe segue .

Nota-se nessa comparação entre a forma épica e a dramática uma clara


influência das discussões epistolares de Goethe e Schiller. Ao confrontarem as duas
formas, os autores puderam perceber que elas operavam segundo princípios opostos: a
forma dramática operaria pela concentração da atenção do leitor para um único aspecto,
ao passo que a épica caracterizar-se-ia pela dispersão desta atenção por acontecimentos
variados. Ora, tal diferença formal se exprime também em dois modos distintos de
exposição dos eventos: o drama estaria submetido à causalidade, isto é, nele cada evento
se refere ao anterior como uma consequência e ao futuro como uma causa, ao passo que
a épica apresentaria somente acontecimentos episódicos, isolados – sendo por isso uma
forma na qual vigora a lei da substancialidade, segundo a qual os momentos isolados
participam da ação por terem um valor em si mesmos 138.

Voltando à Lukács, o drama, portanto, deve restringir-se ao mínimo de


elementos, operando uma redução da qual reste apenas o mais fundamental,
característica evidenciada, de resto, pela exiguidade do tempo e do espaço próprios ao

137
Lukács, Entwicklungsgeschichte des modernen Dramas. apud Macedo, “Posfácio do tradutor”, 202.
138
De modo geral, todo o empreendimento crítico da correspondência Schiller-Goethe procura elucidar
que tipo de tratamento literário, épico ou dramático, determinada matéria exigiria, de modo a garantir a
qualidade das futuras empreitadas artísticas dos autores. A comparação formal entre o drama e a épica é
debatida principalmente nas cartas trocadas em abril e dezembro de 1797 e dá origem ao ensaio “Sobre a
literatura épica e dramática” escrito em conjunto pelos dois autores. Johann Wolfgang von Goethe,
Correspondência (1794-1803) entre Johann Wolfgang Goethe e Friedrich Schiller (São Paulo: Hedra,
2010).

70
gênero. Se em seu conteúdo o drama deve ser a apresentação da vida de uma pessoa, ele
deve proceder de modo a sintetizá-la e concentrá-la em seu conflito mais central. Esse
princípio de estilização do gênero dramático situa-o em uma instância mais rarefeita, na
medida em que não precisa se curvar às minúcias nem abarcar a realidade em toda sua
extensão, tornando-o menos suscetível à ação da história. Isso não significa que o drama
não sofra transformações ao longo da história, afinal de contas quando não tomou o
caminho do drama do classicismo, na qual a vida empírica “é banida de cena”, ele se
tornou burguês, histórico, individualista. Também do ponto de vista formal o drama se
alterou, algo que Lukács menciona ao apontar que a oposição entre vida empírica e
essencial, que antes era um a priori formativo do drama, passa a se inserir no próprio
processo dramático. Assim, por exemplo, o herói torna-se problemático, pois precisa
percorrer, dentro da ação dramática, o caminho que lhe permite vislumbrar sua essência,
isto é, descobrir-se como herói e elevar-se acima do meramente humano 139.

Note-se que, assim, a exiguidade temporal própria ao drama vai sendo solapada
e ele se aproxima da extensão característica das formas épicas e, ao mesmo tempo, o
caráter problemático do herói tem como resultado necessário uma intensificação de sua
solidão lírica: trata-se, portanto, da entrada de elementos épicos e líricos no seio do
drama. A despeito dessas transformações, reduzindo uma vida ao que ela tem de mais
essencial, restringindo os elementos com os quais trabalha, evitando qualquer apego ao
ornamental, atendo-se ao seu princípio de estilização originário, a causalidade, a forma
dramática encontra-se mais protegida da ação do tempo.

Enquanto no drama a totalidade é uma lei intrínseca à forma, a forma épica, cujo
objeto é a vida, não implica necessariamente em uma totalidade:

para o drama, existir significa ser cosmos, a apreensão da essência, a posse de


sua totalidade. O conceito de vida, contudo, não implica necessariamente sua
totalidade; a vida contém tanto a independência relativa de cada ser vivo
autônomo em relação a todo vínculo que aponta para mais além, quanto a
inevitabilidade e a imprescindibilidade igualmente relativas de tais
140
vínculos .

Por isso algumas formas épicas, como a novela e o idílio, por exemplo, tem por
objeto não a totalidade da vida, mas um recorte parcial, um fragmento da existência que
possa ter vida própria, isto é, que possa expressar algum sentido. Essa peculiaridade

139
Lukács, A teoria do romance, 42.
140
Ibidem, 47.

71
formal explicita nas formas épicas menores a presença de um sujeito configurador, isto
é, são formas narrativas, diferentemente do drama, onde tudo se passa como se os
acontecimentos estivessem ocorrendo pela primeira vez 141. Trata-se de um sujeito
configurador muito mais autossuficiente do que o da grande épica, pois nesta a
exigência de configurar a vida de maneira extensiva faz com que o narrador tenha que
se curvar à multiplicidade de acontecimentos e manifestações da vida, ao passo que o
sujeito das formas épicas menores pode selecionar apenas um fragmento que ele
considere passível de refletir a vida em sua totalidade. Essas formas épicas modernas,
portanto, trazem consigo o traço explícito da subjetividade isolada e são, por isso,
marcadamente líricas.

A completude dessas formas épicas, portanto, é subjetiva: um fragmento de


vida é transposto pelo escritor num contexto que o põe em relevo, o salienta e
o destaca da totalidade da vida; e a seleção e a delimitação trazem estampado,
na própria obra, o selo de sua origem na vontade e no conhecimento do
sujeito: elas são, em maior ou menor medida, de natureza lírica. [...] O ato
pelo qual o sujeito confere forma, configuração e limite, essa soberania na
142
criação dominante do objeto, é a lírica das formas épicas sem totalidade .

É preciso ressaltar que, para Lukács, esse elemento lírico não equivale a uma
suposta arbitrariedade de um eu absoluto que pode se desvencilhar completamente das
amarras de seu objeto ou dissolvê-lo em sensações e estados de ânimo subjetivos, como
na pura lírica, mas consiste, antes, no meio para a consecução da forma, sendo, por isso,
“a unidade épica última 143”. Diante da perda da totalidade da vida, a acomodação das
formas épicas menores se realiza por meio da exposição de um fragmento que
“cristalize a estranha e profunda experiência viva de um homem num destino
rigidamente objetivado e formado”, mas é sempre uma seleção subjetiva, que “arranca
um pedaço da imensa infinidade dos sucessos do mundo e empresta-lhe uma vida

141
Tal observação se aproxima daquelas feitas por Goethe e Schiller em sua discussão epistolar,
principalmente a distinção essencial formulada pelos dois e exposta no ensaio Sobre literatura épica e
dramática: “o autor épico expõe os acontecimentos como inteiramente passados, e o dramático os
apresenta como inteiramente presentes”. A exposição épica manifesta-se pela narração de algo já
ocorrido, ao passo que a apresentação dramática contém um esforço de suprimir-se a si mesma enquanto
ato expositivo, na medida em que não conta algo, mas apresenta um acontecimento como se este estivesse
se desenrolando pela primeira vez naquele instante. Há no drama, portanto, a tentativa de superar a
mediação estética, expressa no gênero épico pelo recurso à narração. A épica é narrada, ao passo que o
drama é, simplesmente, posto. “Sobre literatura épica e dramática” in Goethe, Correspondência (1794-
1803) entre Johann Wolfgang Goethe e Friedrich Schiller, 214.
142
Lukács, A teoria do romance, 49.
143
Ibidem. Na lírica, é como se o universo interior conquistasse o universo exterior, destruindo-o,
reordenando-o, em suma, recriando-o a partir de dentro. Já nas formas lírico-épicas os acontecimentos
exteriores são assimilados a partir de um foco subjetivo, mas a distância entre sujeito e objeto é mantida.
Macedo, “Posfácio do tradutor”, 217.

72
autônoma” 144 e que, no entanto, permite que o todo do qual esse fragmento foi retirado
esteja nele refletido, não extensivamente, mas como sensação e pensamento dos
personagens. A soberania do artista para criar, configurar e delimitar seu objeto é “a
lírica das formas épicas sem totalidade 145”. Está marcada, assim, a entrada da tendência
lírica no seio da épica, mas esta, no entanto, deve equilibrar-se entre “o sujeito que
postula e objeto por ele destacado e salientado 146”, pois do contrário a tendência seria a
caída completa no lírico e a desintegração da épica.

Esta é, no fundo, a problemática que assola o romance segundo a perspectiva de


Lukács: seria possível constituir uma totalidade a partir de um ponto de vista subjetivo?
Para responder essa questão, Lukács acerca-se primeiro de outra forma épica moderna:
a novela. Dentro do que ele chama de formas épicas menores, Lukács estabelece uma
distinção entre a elegia, o idílio e o romance lírico, de um lado, e a novela, de outro. As
três primeiras seriam formas em que o foco narrativo é mais explicitamente subjetivo e
por essa razão ele as denomina de formas lírico-épicas, ao passo que na novela a lírica
se manifesta indiretamente, na seleção e na escolha do acontecimento a ser narrado. A
especificidade da novela é que ela confere um contrapeso a essa proeminência da
subjetividade criadora ao limitar-se a uma apreensão clara e objetiva dos eventos.

Ora, se o romancista deve se contentar em expor os acontecimentos de maneira


objetiva, recusando-se a injetar neles algum sentido – por meio de comentários,
observações ou ênfases – a pergunta que se impõe é se a novela seria então uma forma
vazia de sentido (o que iria contra a própria definição lukácsiana de forma). Na verdade,
e de maneira paradoxal, diz Lukács, na medida em que a ausência de sentido é
constatada e expressa como conteúdo da configuração na novela, sem a necessidade de
nenhum disfarce, “a falta de sentido, como falta de sentido, torna-se forma: afirmada,
superada e redimida pela forma, ela passa a ser eterna 147”. Por isso a novela é, segundo
Lukács, a forma mais puramente artística, já que expõe, em seu próprio conteúdo
configurado, seja como estado de ânimo ou como desenvolvimento emocional do
personagem, o caminho percorrido para elevar a ausência de sentido à plenitude.

144
Lukács, A teoria do romance, 48.
145
Ibidem, 49.
146
Ibidem.
147
Ibidem, 50.

73
Enquanto a novela opera pela redução de uma vida ao seu conflito mais essencial,
selecionando as relações e eventos a serem expostos a partir de sua absoluta necessidade
para a configuração, o romance caracteriza-se pela extensão de seu mundo. Nele, a vida
aparece em toda sua riqueza e detalhes, pois nada é supérfluo a sua meta. Vem daí,
aliás, a capacidade de experimentalismo, a multiplicidade de pontos de vista e de
enredos secundários, a grande adaptabilidade, o espraiamento de seus limites, enfim, a
capacidade de expor, de maneira simultânea e conjunta, tanto a interioridade quanto o
mundo exterior.

A grande épica, portanto, encontra-se frente a um paradoxo na época moderna.


Pois o romance deve empenhar-se para configurar uma totalidade extensiva, e não
apenas um recorte do mundo como as formas menores, mas na modernidade a totalidade
da vida não é mais dada de modo evidente. A pergunta que se impõe, então, é como o
romance consegue alcançar uma totalidade de sentido que já não existe? Se ao romance
está vedada a possibilidade de simplesmente traduzir em palavras um sentido unívoco
presente no mundo e vivenciado coletivamente, tal qual era a condição da epopeia,
como pode seu sujeito criador transcender os limites de sua subjetividade e alcançar a
totalidade? Como conquistar o equilíbrio entre a configuração subjetiva da totalidade
posta pela experiência moderna e a exigência de objetividade épica?

A resposta de Lukács é que o romance deve desvendar e construir, pela forma, a


totalidade oculta da existência. Tal totalidade, entretanto, só pode ser construída por um
sujeito receptivo que renuncie à tentação de produzir um sentido e se contente com a
ausência de substancialidade do mundo, à maneira dos narradores na novela. Esse é,
segundo Lukács,

o paradoxo da subjetividade da grande épica, o seu ‘quem perde ganha’: toda


subjetividade criadora torna-se lírica, e apenas a meramente assimilativa, que
com humildade transforma-se em puro órgão receptivo do mundo, pode ter
148
parte na graça – na revelação do todo .

Pois, com a fragmentação do mundo objetivo, também o sujeito se torna um


fragmento e a subjetividade que procura impor suas leis ao mundo e recompô-lo

148
Ibidem, 52.

74
segundo sua visão particular só pode distanciar-se da totalidade: “essa subjetividade a
tudo quer dar forma, e justamente por isso consegue espelhar apenas um recorte 149”.

Lukács distingue, assim, dois tipos de subjetividade artística, a criadora – que


predomina nas formas lírico-épicas, como o idílio, e oferece apenas um recorte
subjetivo do mundo – e a meramente assimilativa, associada à grande épica. Essa
distinção ganha concretude na exemplificação de Lukács, segundo a qual o Os
sofrimentos do jovem Werther se organizaria em torno de uma subjetividade criadora,
evidenciada pela preponderância de elementos autobiográficos e pela manifestação
ostensiva da personalidade de Goethe, que imporia sua interpretação subjetiva aos
acontecimentos, ao passo que Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister seria
composto por uma subjetividade assimilativa, que apresentaria não o mundo limitado a
partir de uma visão de mundo individual, mas sua totalidade.

No entanto, o argumento de Lukács deixa claro que a objetividade do romance


não pode ser alcançada por meio de expedientes que visem a contornar ou dissimular o
elemento de subjetividade que o atravessa, uma vez que essa tendência lírica é
inseparável do romance e, tanto quanto ele, um fenômeno moderno, que não pode
simplesmente ser proscrito ou dissolvido, sob pena de tornar a obra literária uma
carcaça vazia, desvinculada de todo conteúdo histórico. É interessante notar que nesse
como em tantos outros pontos ao longo de seu ensaio, Lukács sugere que é justamente a
tensão e o caráter problemático do romance que o avalizam enquanto depositário de
algum saber sobre seu mundo; o afrouxamento dessa contradição, pelo contrário,
deságua naquilo que ele chama de literatura de entretenimento, com a qual o romance
foi equiparado desde suas origens.

Em suma, a pergunta colocada por Lukács é em que medida o romance


conseguiria cumprir com a exigência épica de objetividade se, por razões históricas e
sociais, ele é uma forma atravessada pela subjetividade? É isso que procuraremos
entender melhor no próximo capítulo, quando examinarmos os traços formais do
romance na perspectiva de Lukács.

149
Ibidem.

75
Capítulo 3 – O romance é o mundo moderno
Pode-se imaginar o romance sem o mundo moderno? O
romance é o mundo moderno; não apenas não poderia
existir sem este, como a onda sem o mar, mas por alguns
aspectos identifica-se com este, é a mutável expressão dele,
como o olhar e o contorno da boca são a expressão de um
rosto 150.

A comparação que Lukács estabelece entre a estrutura do drama e da épica, na


qual ao drama é atribuída uma continuidade relativa ao longo da história, ao passo que o
romance é compreendido como resultado do progressivo desaparecimento das
condições de existência da epopeia e emergência de uma nova situação histórico-
filosófica, retoma aquela distinção levantada por Schlegel entre formas válidas
atemporalmente e formas que pertencem a uma época específica. No entanto, mais do
que simplesmente compreender o romance como uma forma que tem sua gênese na
modernidade – o que para nós hoje é algo banal e que pode sem dificuldade ser
verificado empiricamente: basta pensarmos que uma forma ficcional longa e escrita em
prosa era praticamente inexistente na antiguidade 151 ˗ a diferenciação de Schlegel abre
um caminho que lhe permite pensar o romance como a forma literária mais
representativa da modernidade. Desse modo, o romance é apreendido não somente
como uma forma moderna, dentre outras, mas como a forma moderna por excelência.

O próprio Lukács nota como essa foi uma percepção acertada e uma importante
contribuição do romantismo de Jena:

O romantismo alemão, embora nem sempre esclareça em detalhes,


estabeleceu uma estreita relação entre o conceito de romance e o de
romântico. Com toda a razão, pois a forma do romance, como nenhuma
outra, é uma expressão do desabrigo transcendental 152.
À primeira vista a relação entre “romance” e “romântico” aparenta ser quase
óbvia nos escritos de Schlegel, já que muitas vezes a utilização dos dois conceitos é
intercambiável. Em outros momentos, as tentativas de definição ganham a forma de
tautologias, como a da “Carta sobre o romance”, na qual Schlegel define o romance
como “um livro romântico 153”. Um olhar mais apurado, portanto, não deixa de notar que

150
Claudio Magris, “O romance é concebível sem o mundo moderno?”, in A cultura do romance (São
Paulo: Cosac Naify, 2009), 1016.
151
Uma exceção seria o romance bizantino, mas este era normalmente considerado inferior à épica e a
lírica em verso da Grécia e da Roma antigas. Schmidt, “Forms of modernity”, 2011, 49.
152
Lukács, A teoria do romance, 37.
153
Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, 67.

76
prevalece certa ambiguidade na utilização desses dois conceitos e também de outros que
compõem a mesma constelação, como o de “poesia romântica”, o de “romanesco”, o de
“poesia progressiva”, entre outros. De fato, em seus textos, Schlegel utiliza esses termos
de maneira variada: se em alguns momentos eles parecem se tratar quase de sinônimos,
em outros há uma escolha deliberada por um ou outro conceito, o que parece assinalar
com precisão uma diferença – sempre sutil – entre eles. Isso evidencia que o
esclarecimento preciso dos significados dos conceitos de “romance” [Roman] e de
“romântico” [Romantische], bem como da relação entre eles, está longe de ser óbvia.
Como o próprio Friedrich Schlegel certa vez afirmou em uma carta a seu irmão August,
só a ideia de poesia romântica exigiria 125 páginas para ser adequadamente exposta 154.

Esta turbidez dos conceitos, aliás, deu ensejo a uma série de interpretações a
respeito das relações e dos significados desses conceitos e pode-se mesmo dizer que a
partir dessa questão se constitui um dos debates clássicos da literatura sobre o primeiro
romantismo. De maneira simplificada, é possível dizer que o cerne da questão foi
estabelecer se por “poesia romântica” procurava-se designar o romance enquanto forma
específica, o romance em prosa moderno, portanto, ou se antes, a referência era mais
ampla e tinha como base a literatura do início da época moderna, expressa em obras tão
díspares entre si no que diz respeito ao gênero literário quanto as de Dante, Cervantes e
Shakespeare. O que essa discussão visava estabelecer era se a valorização do romance
pelo romantismo tinha como foco o romance moderno – cujo ápice seria Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe – ou se, antes, essa valorização recaia em
obras da época medieval e do início da época moderna, que não se limitavam
necessariamente à narração em prosa 155.

Pelo menos um dos sentidos do conceito de “romântico” é cronológico, já que


nos textos de Schlegel o termo frequentemente aparece associado à época moderna,

154
Carta de Friedrich a August W. Schlegel, primeiro de dezembro de 1797, KA XXIV, 53 apud
Frederick Beiser, “The meaning of ‘Romantic Poetry’”, in The romantic imperative (Cambridge, Mass.;
London: Harvard University Press, 2006), 7.
155
De um lado, Rudolf Haym em seu Die romantische Schule (1870), defendia que “poesia romântica”
era apenas maneira de se referir ao romance e o tipo de literatura que ele inaugura. Para sustentar sua
posição, Haym mostra as semelhanças entre o ideal de poesia romântica exposto no fragmento 116 da
Athenäum e as características atribuídas ao romance de Goethe na resenha que Schlegel faz ao Meister de
Goethe. De outro lado, Lovejoy, em um famoso artigo de 1916, contrapôs-se veementemente a essa
interpretação, já que considerava o termo “romântico” como sendo referido não ao romance moderno, tal
como supunha Haym, mas aos autores da transição da época medieval para a época moderna, tais como
Dante, Cervantes e Shakespeare, autores que não escreviam romances no sentido moderno do termo.
Cf.Hans Eichner, “Friedrich Schlegel’s Theory of Romantic Poetry”, PMLA 71, no 5 (1 de dezembro de
1956): 1018–41, doi:10.2307/460525.

77
quando é mobilizado para caracterizar a arte da época moderna em contraposição à arte
da época clássica. No entanto, embora o romântico esteja largamente associado à
modernidade, em alguns momentos sua utilização aponta para o fato de que o romântico
e o moderno não são equivalentes 156. Na “Carta sobre o romance”, Schlegel estabelece
essa distinção por meio do confronto entre Emilia Galotti, drama burguês de Lessing,
que seria extremamente moderno, mas nada romântico, e a obra de Shakespeare, esta
sim verdadeiramente romântica. Se o simples fato de uma obra ter sido produzida na
época moderna não garante que ela seja romântica, “romântico”, portanto, não é apenas
uma designação cronológica, mas diz respeito a certo ideal artístico, cujas primeiras
manifestações Schlegel localiza, de fato, no início da era moderna:

É aí que procuro e encontro o romântico, nos velhos modernos, em


Shakespeare, em Cervantes, na poesia italiana, naquela era do cavaleiro
andante, do amor e da fábula, de onde provém as coisas e mesmo a palavra.
Até o momento, é só isto que pode fornecer uma oposição às poesias
clássicas da Antiguidade; apenas estas inflorescências da fantasia, de eterno
frescor, são dignas de ser utilizadas para coroar as antigas imagens da
divindade. E decerto tudo o que há de melhor na poesia moderna tende para
lá, segundo o espírito e mesmo segundo a modalidade; seria preciso,
portanto, que houvesse um retorno aos antigos. Assim como nossa arte
poética começa no romance, a dos gregos começou na épica e nela de novo
se dissolveu 157.

O verdadeiramente romântico, portanto, é encontrado nos “velhos modernos”:


nas obras do Renascimento italiano, na época da cavalaria e nas primeiras
manifestações do romance na Itália e na Espanha; resumidamente, naquela tríade
composta por Dante, Shakespeare e Cervantes. Schlegel caracteriza as obras desse
período como sendo atravessadas por uma tensão entre o fantástico e o sentimental,
além de um predomínio da liberdade da fantasia e da imaginação, aliadas à presença de
elementos mágicos e maravilhosos 158.

Em outra obra, na verdade em um conjunto de cadernos contendo as ideias e


anotações incipientes de Schlegel sobre literatura que ficaram conhecidos como
Fragmentos sobre poesia e literatura, é possível encontrar uma série de comentários
sobre outros autores dessa mesma época: além de Dante, Cervantes e Shakespeare,

156
“Estabeleci um parâmetro preciso da oposição entre antigos e românticos. Peço a você, entretanto, que
não suponha daí que o romântico e o moderno me sejam completamente equivalentes”. Schlegel,
Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, 66.
157
Ibidem, 67.
158
Ibidem, 65.

78
figuram também Ariosto, Boccaccio, Boiardo, Guarini, Petrarca, Pulci e Tasso 159, cujas
obras Schlegel denomina “poesia romântica”. Por esta ideia, Schlegel procura marcar a
combinação entre diferentes elementos presentes nas obras: o elemento fantástico, o
elemento mímico e o elemento sentimental. O fantástico diz respeito à fantasia, ao voo
livre da imaginação, uma característica que já no Sobre o estudo da poesia grega,
Schlegel via como predominante na poesia moderna. O mímico associa-se à propriedade
de representar o mundo, de ser um “espelho” da vida 160. Já o conceito de sentimental,
conforme exposto na Conversa sobre a poesia é “o que nos agrada, onde o sentimento
domina, mas aquele sentimento espiritual, não o que provém dos sentidos. A fonte e
alma de todas as emoções é o amor, e na poesia romântica é preciso que esteja pairando,
quase invisível e por toda parte, o espírito do amor 161”. Toda a poesia, portanto, deveria
representar a realidade, mas também criá-la por meio do uso livre da imaginação, a
partir do sentimento.

Voltando à “Carta sobre o romance”, nela Schlegel pondera que após esse feliz
período, no qual a literatura do início da época moderna teria se aproximado da beleza
da antiga, a literatura teria atravessado uma fase de decadência. Nesse sentido, Schlegel
critica uma série de obras do século XVIII em diante, “de Fielding a La Fontaine 162”
que seriam obras puramente sentimentais – sentimental entendido aí de maneira
pejorativa e corriqueira como o que comove de maneira trivial, sem profundidade. A
crítica de Schlegel aos romances modernos se dirige, ademais, à ausência de fantasia e
ao prosaísmo que neles predomina; essa preponderância de um realismo bruto e sem
fantasia faz dos romances de Jonathan Swift, Fielding e Richardson obras dominadas
pela trivialidade e por um humor tolo, pouco espirituoso, em nada parecido com a sátira
de Cervantes, que Schlegel tanto valoriza. Por isso, ele propõe que a literatura moderna
torne a beber de sua fonte original, das obras dos “verdadeiramente românticos”, ou
seja, dos “velhos modernos”.

159
Eichner, “Friedrich Schlegel’s Theory of Romantic Poetry”, 1022.
160
Esse termo, usado pelo próprio Schlegel, não deve ser confundido com o sentido a ele atribuído
posteriormente no âmbito da teoria literária, como uma representação fiel e realista do mundo, na medida
em que para Schlegel o mímico sempre deve ser combinado ao elemento fantástico, sendo este último um
órgão fundamental da poesia. Na “Carta sobre o romance”, Schlegel explica como a poesia romântica está
assentada sobre bases históricas e frequentemente toma como seu ponto de partida histórias ou eventos
verdadeiros, mas estes são sempre remodelados e reconfigurados pela invenção do autor.
161
Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, 65.
162
Ibidem, 62.

79
Apesar da concordância a respeito do vínculo indissolúvel entre romance e
modernidade, parece haver, no entanto, uma diferença sutil, embora plena de
consequências entre a abordagem de Lukács e a de Schlegel. Pelo que vimos até aqui é
possível afirmar que por “romântico” Schlegel não compreende o romance enquanto
forma específica, mas antes considera românticas as obras dramáticas, líricas e épicas
do início da era moderna. E, de fato, quando na “Carta sobre o romance” Schlegel
oferece um esclarecimento sobre seu conceito de romance, ele afirma de maneira
peremptória que ele não deve ser entendido tanto como um gênero, quanto como um
elemento de toda poesia, que se faz presente em menor ou maior grau, mas nunca pode
faltar completamente a uma obra. Com isso, sua exigência de que toda a poesia deva ser
romântica pode ser compatibilizada com o rechaço veemente “ao romance, na medida
em que ele se pretenda um gênero específico 163”. Se associarmos essa distinção à crítica
dirigida por Schlegel aos romances modernos, temos que o problema destes é
justamente limitarem-se a um gênero específico, restrito à representação realista do
mundo, dominado por tendências prosaicas, sem qualquer espaço para a fantasia e para
a poesia. Na concepção de Schlegel o verdadeiro romance não se restringe a uma
manifestação moderna do gênero épico, mas distingue-se por ser uma mistura entre
“narrativa, canção e outras formas 164”, isto é, seu traço característico é que ele deve ser
uma mistura, não ficando restrito aos elementos épicos. Se para o autor o romance é a
forma privilegiada de expressão da época moderna, isso se deve ao fato de que ele não é
apenas uma manifestação de um gênero dentre outros, mas porque ele é um gênero que
abrange os outros em si mesmo – um gênero misto, mas também o gênero dos gêneros,
o gênero único da modernidade.

Essa capacidade de representar seu mundo, de ser como que o espelho “de todo
o mundo circundante, uma imagem da época 165”, é um traço que o romance guarda em
comum com a epopeia, forma literária representativa do mundo grego. Mas se ambas as
formas tem em comum o fato de serem, cada uma à sua maneira, uma exposição
extensiva do mundo que as circunda, há, no entanto, uma diferença crucial entre elas, já
que “nada é mais oposto ao estilo épico do que as influências da própria disposição
pessoal que se tornam, de algum modo, visíveis; para não falar do abandono ao próprio

163
Ibidem, 67.
164
Ibidem, 68.
165
Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 64. Fr. 116.

80
humor, do jogar com ele, como acontece nos melhores romances 166”. Ao contrário da
epopeia, uma exposição objetiva de um mundo que se apresenta imediatamente tal qual
ele é, o romance é atravessado pela subjetividade de seu autor, cuja personalidade,
experiências e visão de mundo informam a seleção do material a ser exposto e se fazem
presentes na composição da obra. Assim, não é possível para o romance ter uma relação
imediata com o material a ser exposto, que é sempre alterado e modificado pela
subjetividade do autor: “o de melhor nos melhores romances é apenas uma
autoconfissão mais ou menos encoberta do autor, o produto de sua experiência, a
quintessência de sua singularidade 167”.

Para Schlegel, portanto, o romance se distingue da epopeia por não ser uma
exposição objetiva do mundo, baseada na distância entre o narrador e o objeto a ser
narrado, mas por ser uma forma na qual a subjetividade se sobressai. Isso não significa
que a criação do autor reine absoluta e que o elemento mimético esteja ausente do
romance, mas aponta para o fato de que no mundo moderno a realidade não pode ser
mimetizada de maneira direta, mas depende da reflexão do sujeito criador sobre seu
objeto. O que distingue a atividade artística moderna da antiga é que aquela envolve
uma atividade reflexiva, enquanto esta era feira de maneira mais espontânea e intuitiva.
Schlegel atribui à arte moderna a marca da atividade reflexionante, na medida em que
ela não se faz de modo natural, mas opera a partir do entendimento e da imaginação,
instâncias eminentemente subjetivas, que carregam a marca da individualidade de seu
portador.

Embora Lukács concorde com Schlegel a respeito da mistura dos gêneros e


julgue este um fato incontornável para a compreensão das formas literárias na
modernidade, que produz modificações formais importantes para o romance, ainda
assim ele considera o romance como uma forma fundamentalmente épica, isto é, como
o desenvolvimento moderno da epopeia. Por isso, uma vez estabelecido o lugar da épica
frente ao drama, Lukács acerca-se de seu problema central procurando estabelecer um
contraste entre as duas grandes objetivações da “grande épica” [die grosse Epik], a
epopeia [Epopöe] e o romance.

166
Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, 68.
167
Ibidem, 69.

81
Epopeia e romance não se distinguem em suas intenções configuradoras – pois
enquanto formas épicas ambas procuram dar forma à “totalidade extensiva da vida” –; a
diferença reside, na verdade, no mundo que cada uma delas tem que configurar, ou para
usar os termos de Lukács, nos “dados histórico-filosóficos” com o qual elas se deparam:

O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida


não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida
tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade 168.

Vimos que, para Lukács, a forma do romance é expressão do desabrigo


transcendental. Com isso ele sublinha o fato de que os próprios elementos formais do
romance carregam consigo sua historicidade, ou seja, mais do que afirmar que as formas
estão inseridas em um processo histórico, trata-se de apontar que os próprios elementos
internos das formas são históricos.

Assim, o autor passa expor as continuidades e descontinuidades formais entre as


duas objetivações de grande épica. Se partirmos de uma distinção puramente didática
entre os três momentos que conformam um gênero literário, sua forma externa, seu
conteúdo e sua forma interna, é possível afirmar que para Lukács a substância do gênero
reside em sua forma interna, isto é, no modo de organização e construção da obra,
segundo determinado princípio. Por isso, aquela que seria a diferença mais visível
quando se compara epopeia e romance, isto é, o fato de que a primeira é constituída por
versos, ao passo que o segundo é escrito em prosa, Lukács considera mais um sintoma
do que a verdadeira problemática que os distingue. Segundo ele, seria superficial e
formalista definir gêneros literários única e decisivamente com base na característica de
serem escritos em verso ou prosa, uma vez que existiram romances escritos em verso 169.

Apesar dessa ressalva, Lukács sublinha que a escrita em verso da epopeia


desempenha um papel fundamental para a manutenção da harmonia dessa forma. A
compreensão pré-literária do mundo cristalizada no mito purificou-o de qualquer carga
trivial, carga esta que começa timidamente a se fazer presente no mundo homérico, mas
que é aí plenamente contornável pelo verso, na medida em que ele mantém coesos e

168
Lukács, A teoria do romance, 55.
169
“Fenômeno que alguns qualificam como uma transição da epopeia tardia até a prosificação total a
partir do século XVIII”, segundo Kurt Spang, mas também romances modernos que foram escritos em
verso, como o exemplo citado por Lukács, Oniéguin de Pushkin (1831) e Dom Juan de Byron (1818-24).
Cf. Kurt Spang, Géneros literarios, Teoría de la literatura y literatura comparada, no. 14 (Madrid:
Editorial Síntesis, 1993), 122.

82
dotados de sentido os elementos que poderiam vir a desprender-se do todo e tornarem-
se triviais. No mundo vazio de sentido do romance, porém, essa coesão não pode ser
conquistada pelo verso, sob o risco de transformar o romance em um idílio ou um jogo
lírico. Avesso à matéria moderna, portanto, o verso é banido da grande épica e dá lugar
à prosa, um meio mais maleável já que livre das obrigações do ritmo e da rima e,
portanto, mais capaz de construir algum sentido oculto contido nas fraturas dessa
situação de mundo:

No mundo da distância todo verso épico torna-se lírica – os versos de Don


Juan e Oniéguin pertencem à companhia dos grandes humoristas – pois, no
verso, tudo o que está oculto torna-se manifesto, e a distância, que o passo
cauteloso da prosa transpõe com arte por meio do sentido que se insinua
pouco a pouco, vem a lume em toda sua nudez, escarnecida, espezinhada ou
como sonho esquecido na rápida carreira dos versos 170.

Se a diferença essencial entre a epopeia e o romance não reside na construção


externa de ambos, o que Lukács assevera como a diferença fundamental entre as duas
formas é o fato de que “a epopeia dá forma a uma totalidade de vida fechada a partir de
si mesma, o romance busca descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da
vida 171”. Uma vez que nem a totalidade objetiva da vida, nem sua relação com os
sujeitos é espontaneamente harmoniosa, o romance não possui mais aquela relação dada
com a totalidade e o sentido, como a epopeia, mas necessita descobrir e construir essa
totalidade. Há no romance, portanto, a presença de uma intenção configuradora
fundamental que Lukács expressa por meio da ideia de “busca”. Essa ideia revela que,
diferente do que ocorria no mundo da epopeia, no mundo moderno os caminhos não
estão dados, o sentido não emerge de modo imediato e a existência aparece como algo
estranho ao indivíduo.

Essa determinação do romance, isto é, a presença de uma intenção que conduz a


configuração no lugar de uma harmonia previamente estabelecida, exprime-se
objetivamente na psicologia dos heróis do romance: são heróis em busca de algo [ein
Suchender] e, pode-se mesmo dizer, em busca de si mesmos, na medida em que a
narrativa do romance consiste na exposição processo de formação, sempre
problemática, desses heróis. No centro do romance, portanto, está um personagem que
busca compreender o mundo e sua própria vida, de modo o romance se organiza como

170
Lukács, A teoria do romance, 58.
171
Ibidem, 60.

83
sua trajetória rumo ao autoconhecimento e ao desvelamento do sentido oculto do
mundo. Essa ideia da busca revela que diferentemente do que ocorria na epopeia, no
romance o sentido e os caminhos não estão dados imediatamente ou, mesmo se forem
dados ao herói, isso não significa uma correspondência necessária com o mundo de fato,
mas apenas um dado psicológico, individual: daí porque o romance possa tratar de
heróis loucos ou criminosos, isto é, indivíduos que agem a partir de valores
incompatíveis com as normas sociais ou éticas e que, por isso, entram em conflito com
o mundo.

Conflito de uma ordem tal que não tinha lugar na epopeia, uma vez que lá o
mundo e suas normais jamais poderiam constituir-se enquanto algo estranho ao
indivíduo. É claro que crime e loucura por vezes aparecem nos relatos épicos, mas com
um significado totalmente distinto do que no romance. Na epopeia, o crime é
imediatamente punido com vingança, isto é, não há lugar para uma vida inteira
criminosa, nem para uma desorientação moral profunda como no romance: os homens
conhecem as normas e sabem o que configura um crime, e sabem também que o crime
acarreta uma vingança seja por parte de outro homem, seja uma vingança divina. No
romance, ao contrário, loucura e crime aparecem como objetivações do “desterro
transcendental”, isto é, a própria psicologia do herói romanesco dá testemunho da
dissociação entre ação individual e mundo social, entre alma e valores sociais, uma vez
que não existe um fundamento imanente, um valor central e fundante que forneça
sentido e unidade ao caos e à fragmentariedade da vida. E justamente pela ausência de
um conjunto de normas imediatamente aceitas e de valores compartilhados por todos, as
próprias fronteiras entre a loucura e a sabedoria, entre o crime e o heroísmo são
instáveis e, no limite, meramente psicológicas, subjetivas.

A segunda natureza

A atenção dedicada por Lukács ao fundamento sócio-histórico do contraste entre


o mundo da epopeia e o mundo do romance, bem como sua preocupação em sublinhar a
negatividade de seu presente, ficam patentes em um de seus conceitos mais frutíferos, o
conceito de “segunda natureza”. Por meio dele, nosso autor procura caracterizar a
sociedade moderna enquanto uma estrutura que se impõe ao indivíduo e suas aspirações

84
como algo estranho. Se no mundo grego, como procuramos descrever, as aspirações do
indivíduo coincidiam com a realidade objetiva do mundo, na modernidade, interioridade
e mundo empírico são incongruentes e este se apresenta como um mundo inautêntico e
convencional, desprovido de sentido:

Quando objetivo algum é dado de modo imediato, as estruturas com que a


alma se defronta no processo de sua humanização como cenário e substrato
de sua atividade entre os homens perdem seu enraizamento evidente em
necessidades suprapessoais do dever-ser; elas simplesmente existem, talvez
poderosas, talvez carcomidas, mas não portam em si a consagração do
absoluto nem são os recipientes naturais da interioridade transbordante da
alma. Constituem elas o mundo da convenção, um mundo de cuja
onipotência esquiva-se apenas o mais recôndito da alma; um mundo presente
por toda parte em sua opaca multiplicidade e cuja estrita legalidade, tanto no
devir quanto no ser, impõe-se como evidência necessária ao sujeito cognitivo,
mas que, a despeito de toda essa regularidade não se oferece como sentido
para o sujeito em busca de objetivo nem como matéria imediatamente
sensível para o sujeito que age. Ele é uma segunda natureza; assim como a
primeira, só é definível como a síntese das necessidades conhecidas e alheias
aos sentidos, sendo portanto impenetrável e inapreensível em sua verdadeira
substância 172.
A oposição entre eu e mundo, enfocada a partir de diversos prismas ao longo de
todo o ensaio de Lukács – como perda da unidade dos homens entre si, perda da
unidade com a natureza e com os deuses – encontra no conceito de segunda natureza
sua formulação mais contundente.

Alguns comentadores – e mesmo o próprio Lukács em seu referido prefácio –


enfatizam que esse posicionamento crítico frente às estruturas sociais evidencia um
afastamento, pelo menos no que diz respeito às questões de “natureza social” (e não,
como defende Lukács, nas de natureza “estético-filosóficas”) entre o autor de A teoria
do romance e seu “guia metodológico universal”, Hegel. Em seu Princípios da filosofia
do direito, Hegel associa a ideia de segunda natureza, grosso modo, ao mundo do
espírito:

§ 4 - O domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu


ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a
sua substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da
liberdade realizada, o mundo do espírito produzido como uma segunda
natureza a partir de si mesmo 173.
Mais adiante, no parágrafo 151, Hegel especifica essa caracterização e descreve
a segunda natureza como a cristalização dos costumes e das instituições de um povo,
como a eticidade humana:

172
Ibidem, 62.
173
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Princípios da filosofia do direito, trad. Orlando Vitorino (São Paulo:
Martins Fontes, 1997), 12.

85
Na simples identidade com a realidade dos indivíduos, a moralidade objetiva
aparece como o seu comportamento geral, como costume. O hábito que se
adquire é como que uma segunda natureza colocada no lugar da vontade
primitiva puramente natural, e que é a alma, a significação e a realidade da
sua existência. É o espírito dado como um mundo cuja substância assim
ascende pela primeira vez ao plano do espírito 174.

A segunda natureza é, portanto, vista positivamente como a saída do reino da


necessidade e a entrada no reino da liberdade, onde o homem pode atuar e desenvolver-
se livremente. As instituições sociais, tais como o Estado, a família, a sociedade, criadas
pela atividade consciente do homem ao transformar seu mundo, são para Hegel vias
para a realização plena da liberdade, na medida em que conciliam interesses individuais
e coletivos.
Ao expor o percurso do desenvolvimento do espírito e sua objetivação, Hegel
distingue uma primeira esfera do direito, a do direito abstrato, na qual o espírito busca
dar a si um domínio exterior, dado na propriedade. Mas trata-se de uma liberdade ainda
formal, na medida em que esse direito pode ser violado por outra pessoa. A segunda
esfera dos direitos seria a moralidade subjetiva, na qual o espírito se concretiza na figura
do sujeito que busca ser livre na medida em que busca realizar o Bem. Mas nessa esfera
a liberdade ainda não está plenamente realizada, pois o sujeito pode colocar seu bem-
estar individual acima do Bem Universal. Por isso, para Hegel é necessário que o
conteúdo moral adquira existência nas instituições, pois elas são capazes de mediar os
interesses particulares e universais em uma síntese que efetiva a liberdade: essa é a
esfera da eticidade, na qual operam as instituições da família, da sociedade civil e do
Estado. Em Hegel, portanto, vigora a ideia de que as instituições estão em consonância
com a vontade individual, ou ainda, que a própria vontade individual as põe.

Em Lukács, ao contrário, a segunda natureza aparece como índice da cisão entre


vida e sentido, entre alma e mundo. As estruturas sociais são vistas sob um prisma
negativo, na medida em que se apresentam como algo estranho aos homens, um mundo
da convenção impenetrável para a interioridade. Assim como a separação do homem em
relação à natureza (a primeira natureza), relação que se caracteriza pela subordinação
desta ao puro conhecimento dos homens, isto é, por um distanciamento reflexivo do
homem em relação tanto à natureza exterior quanto a sua própria condição natural, o
mundo das estruturas sociais só é compreensível sob a forma de leis sobre seu
funcionamento, que adquirem um caráter eterno, “imutável e fora do alcance
174
Ibidem, 147.

86
humano 175”. O conceito de segunda natureza, portanto, surge para dar conta daquilo que
tendo sido historicamente produzido, aparece, no entanto, como natural. Nesse mundo
de coisas criadas pelos homens, mas estranhas a eles, o indivíduo se posta como diante
de enigmas que não pode decifrar. Tudo se passa como se aquilo que é produzido pelos
homens e, portanto, histórico, transformasse-se em natureza imutável, a história se
tornasse natureza 176:

Enquanto as estruturas construídas pelo homem para o homem lhe são


verdadeiramente adequadas, são elas a sua pátria inata e necessária; nenhuma
aspiração pode nele surgir que ponha e experimente a natureza como objeto
de busca e descoberta. A primeira natureza, a natureza como conformidade a
leis para o puro conhecimento e a natureza como o que traz consolo para o
puro sentimento, não é outra coisa senão a objetivação histórico-filosófica da
alienação do homem em relação às suas estruturas 177.

Isso foi bem notado por Adorno, em cujas reflexões sobre a sociedade capitalista
é possível notar a presença e o desenvolvimento dessa ideia de Lukács segundo a qual
se procura designar a interversão na qual o mundo social, ele mesmo um produto da
atividade humana, adquire perante o indivíduo isolado um teor convencional, torna-se
um mundo petrificado e estranho, nas palavras de Lukács, não mais um “lar paterno,
mas um cárcere 178”.

A cisão entre a interioridade do indivíduo e o mundo circundante é o centro em


torno do qual se move a trama romanesca e objetiva-se na problemática do herói do
romance, que nasce justamente desse alheamento em face do mundo exterior. E o
conflito entre o herói do romance e seu mundo é, por sua vez, o fundamento da
tipologia romanesca esboçada por Lukács na segunda parte de seu ensaio 179, que
discutiremos mais adiante.

175
Lukács, A teoria do romance, 65.
176
Cf. Theodor W. Adorno, “La idea de historia natural”, in Escritos filosóficos tempranos (Madrid:
Ediciones Akal, 2010), 315–34.
177
Lukács, A teoria do romance, 65.
178
Ibidem.
179
Uma análise mais substantiva do conceito de segunda natureza de Lukács deve levar em conta a
influência das teorias de autores da chamada sociologia clássica alemã no que diz respeito à ênfase dada
ao caráter alienante da sociedade moderna e suas consequências para a subjetividade, contribuição
suscitada pela leitura e confronto desses autores com a teoria do fetichismo de Marx exposta em O
capital. Ainda que na Teoria do romance esse tema apareça de maneira mais abstrata e menos
sociológica, é importante apontar que em sua primeira obra, Evolução histórica do drama moderno, o
diagnóstico de Lukács para a modernidade é feito a partir da chave da alienação e da objetificação da vida
em uma sociedade burguesa, conforme os desenvolvimentos de Simmel na Filosofia do dinheiro. Vale
lembrar que nessa obra Simmel discute temas presentes n’O capital, como por exemplo a teoria do valor-
trabalho e as consequências da divisão do trabalho para a subjetividade. Sobre essa relação, Arato e

87
A totalidade problemática do romance

O caráter orgânico da cultura grega, a ausência de qualquer cisão, seja entre vida
e sentido, seja entre homem e mundo, ou entre interior e exterior, e o fato de que ela se
constitui enquanto uma totalidade fechada a partir de si mesma e que se apresenta de
maneira imediata, se expressa na própria estrutura e no conteúdo da epopeia. Em
primeiro lugar, a inexistência de uma separação entre homem e comunidade, implica
que não se possa falar de uma individualidade criadora nas narrativas homéricas. Se o
sentido está dado no mundo e é imediatamente reconhecível por todos os membros de
uma comunidade, a ela organicamente ligados, não existe a possibilidade de uma visão
individual e idiossincrática acerca dos acontecimentos narrados 180. Não apenas a
questão da autoria em seu sentido moderno não se coloca nas narrativas homéricas, uma
vez que se trata de uma coligação de histórias comunitárias, mas, além disso, na épica
grega o mundo é narrado tal como ele é, sem a interposição da subjetividade do autor.

Segundo Lukács, essa ausência de uma subjetividade criadora na epopeia


exprime-se, analogamente, na figura de seus heróis: “o herói da epopeia nunca é, a
rigor, um indivíduo. Desde sempre considerou-se traço essencial da epopeia que seu
objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade 181”. O caráter orgânico da
comunidade e os fortes laços que conectam seus membros a um mesmo sistema de
valores que engloba a todos implica que nenhuma de suas partes pode se desconectar
tanto do todo social a ponto de distinguir-se enquanto individualidade e nem voltar-se
sobre si mesmo, isoladamente, de maneira a constituir uma interioridade. O equilíbrio
entre a parte e o todo, isto é, entre o indivíduo e a comunidade, determina que o
interesse da aventura narrada não resida propriamente no herói, mas na importância que
este tem para sua comunidade. Explica-se assim a necessidade de que o herói da
epopeia sempre seja um rei, pois a vida do herói deve cristalizar o destino de sua
comunidade. Desse modo, o retorno de Ulisses à Ítaca e a importância do sucesso ou

Breines afirmam: “É evidente que a compreensão inicial de Lukács sobre a reificação e sua visão sobre as
tarefas de uma sociologia da cultura foram enfaticamente moldadas por Georg Simmel, especialmente por
seu Filosofia do dinheiro”Arato e Breines, The young Lukács and the origins of Western Marxism, 15.
180
“Para o mundo grego da era homérica a conexão entre autoria e autoridade ainda não estava colocada,
porque não era necessária; não era necessária porque não havia lugar ou necessidade para que uma visão
idiossincrática se destacasse do interesse comunitário”.J. M. Bernstein, The philosophy of the novel:
Lukács, Marxism, and the dialectics of form (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984), 51.
181
Lukács, A teoria do romance, 67.

88
insucesso do herói não deriva tanto das possíveis consequências para ele, seu filho
Telêmaco ou sua esposa Penélope, mas, sobretudo, para o destino de seu reino, que
desprovido de seu líder, corre o risco de ser destruído pelos vorazes pretendentes que
cobiçam seu trono e suas riquezas.

Se a vida comunitária apresenta-se como uma totalidade concreta e significativa


em si mesma, formalmente o princípio que rege a epopeia também é o da organicidade.
A epopeia é uma totalidade orgânica, o que significa que suas partes possuem vida
própria, quer dizer, são unidades, mas integram-se imediatamente ao todo a partir de sua
própria relevância interna. Além disso, o conjunto das aventuras de uma epopeia,
embora seja articulado, não é de maneira alguma fechado, pois pode sempre incluir
novos elementos, já que “o mero contato de fatos concretos entre si faz surgir relações
concretas 182”. Chama atenção, portanto, o fato da epopeia não possuir uma estruturação
estritamente lógica como a tragédia, que contém um início, um meio e um fim
claramente determinados, mas poder começar in media res, sem orientar-se para um
desfecho.

Uma vez que na modernidade a totalidade não é imanente à vida, tentou-se por
meio de expedientes puramente artísticos contornar esse problema. Este seria o caso de
Goethe em Afinidades eletivas e de Hebbel no Canto dos nibelungos, onde o tratamento
dramático de materiais em si épicos funcionaria como meio para criar uma unidade em
um contexto no qual a totalidade espontânea da vida já se desintegrara. Por situar-se na
esfera da essência e não da vida, o drama pode estruturar-se a partir de um problema
central, diante do qual cada parte ganha existência na medida em que se fizer necessária
para esse centro. Mas, segundo Lukács, tais soluções não seriam bem-sucedidas, uma
vez que haveria descompasso entre a matéria épica e a estrutura dramática que
desequilibraria a obra – seus personagens não se sustentariam enquanto indivíduos
empíricos, a ação não constituiria uma totalidade – e, mesmo que tudo isso ocorresse, a
questão fundamental é que o caráter composto da totalidade ficaria evidente demais, por
ser determinado por um problema abstrato 183:

A arte elevada de Goethe nas Afinidades eletivas, com razão


chamada por Hebbel de “dramática”, é perfeitamente capaz de tudo matizar e

182
Ibidem, 68.
183
No caso do “romance dramático” de Goethe, o problema central são os relacionamentos, abordados a
partir da metáfora fornecida pela teoria química a respeito das afinidades entre certos compostos
químicos.

89
ponderar em função do problema central, mas mesmo as almas, guiadas de
antemão para os estreitos canais do problema, não podem gozar aqui de uma
verdadeira existência; mesmo a ação não se integra numa totalidade; a fim de
preencher o casulo graciosamente delgado desse pequeno mundo, o escritor
se vê forçado a inserir elementos estranhos, e ainda que isso sempre fosse tão
bem-sucedido quanto em momentos esparsos de extremo tato no arranjo,
disso jamais resultaria uma totalidade 184.

Lukács estabelece, assim, uma distinção entre dois tipos de configuração, a


totalidade extensiva, própria à épica, e uma unidade composta, característica do drama
Como na épica a totalidade não pode ser apenas formal, como no drama, mas deve levar
em conta uma multiplicidade de detalhes de modo a organizar a realidade extensiva da
vida, isto é, de modo a dar uma ideia concreta do todo e como, na modernidade, essa
totalidade não é mais dada de modo evidente, a configuração de uma verdadeira
totalidade encontra-se ameaçada. Uma vez que a totalidade se fragmentou e não é mais
dada de modo evidente, não é possível buscá-la através de meios artísticos, pois por
esse caminho pode-se ascender a uma unidade, “mas nunca uma verdadeira
totalidade 185”.

Ou seja, a configuração realizada pela forma não pode se dar de maneira


abstrata, desconsiderando os dados fundamentais da realidade em prol de uma solução
puramente artística, isto é, por meio da imposição de uma estrutura composicional
estabelecida previamente, pois desse modo a obra de arte não se sustentaria enquanto
tal, na medida em que a forma permaneceria externa ao conteúdo, ou dito de outra
maneira, na medida em que o conteúdo seria mero suporte para uma estrutura composta
de modo visivelmente arbitrário. De um mundo fragmentado não pode, portanto,
emergir uma verdadeira totalidade e toda tentativa de suplantar essa condição por meios
composicionais permanece uma solução artificial, puramente abstrata, e revela o
fracasso da obra enquanto forma, na medida em que ignora o traço mais essencial do
mundo que deveria configurar.

A condição paradoxal do romance se expressa no fato de que ele surge em um


contexto marcado pela perda de imanência do sentido à vida, pela ausência de uma
totalidade claramente discernível, mas deve ainda assim configurar uma totalidade, sem,
no entanto, recorrer a atalhos puramente composicionais. É aí que Lukács lança mão de
uma ideia radical: diante disso, a única alternativa que resta ao romance é justamente

184
Lukács, A teoria do romance, 54.
185
Ibidem.

90
incorporar essa ausência de sentido como fio condutor, curvar-se ao contrassenso e,
dele, procurar extrair alguma nesga de sentido:

Toda forma é a resolução de uma dissonância fundamental da existência, um


mundo onde o contrassenso parece reconduzido a seu lugar correto, como
portador, como condição necessária do sentido. Se portanto numa forma o
cúmulo do contrassenso, o desaguar no vazio de profundos e autênticos
anseios humanos ou a possibilidade de uma nulidade última do homem, tem
de ser acolhido como fato condutor, se aquilo que é em si um contrassenso
tem de se explicado e analisado, e em decorrência inapelavelmente
reconhecido como existente, então é possível que nessa forma certas
correntes desemboquem no mar da satisfação [Erfüllung], embora o
desaparecimento dos objetivos evidentes e a desorientação decisiva de toda a
vida tenham de ser postos como fundamento do edifício, como a priori
constitutivo de todos os personagens e acontecimentos 186.

Na filosofia da história das formas exposta por Lukács, a Divina Comédia de


Dante ocupa o lugar de transição histórico-filosófica da pura epopeia para o romance e,
por isso, aparece como a síntese de elementos de uma e outra forma épica. Tanto do
ponto de vista da teoria dos gêneros literários, quanto da história da cultura ocidental a
obra escrita por Dante realiza, segundo Lukács, a mediação entre a Idade Média e a
modernidade nascente. Desse modo, se poderia dizer que a obra de Dante é ainda
epopeia, mas também já é romance, mas também seria possível dizer que ela já não é
mais epopeia e ainda não é romance.

Súmula suprema de toda cultura medieval cristã, a Divina Comédia é o produto


mais bem acabado da única época que se aproximou do caráter unitário da cultura
grega. O caráter fechado do mundo medieval, entretanto, advinha não de um sentido
manifesto da vida empírica, mas de uma imanência localizada no mundo do pós-vida,
conferida pelo Juízo Final, conforme os preceitos da teologia cristã. Nas palavras de
Lukács, “a imanência do sentido à vida é, para o mundo de Dante, atual e presente, mas
no além: ela é a perfeita imanência do transcendente 187”. No mundo terreno, vida e
sentido estão separados; este último só pode ser encontrado na vida após a morte, na
qual é dado a cada indivíduo reconhecer o lugar que ocupa na hierarquia divina 188. Em

186
Ibidem, 61–62.
187
Ibidem, 59.
188
Erich Auerbach torna isso bem claro quando afirma: “A ordem unitária do mais além que Dante nos
apresenta a captamos diretamente no sistema moral, na distribuição das almas entre os três reinos e suas
subdivisões: o sistema segue, em conjunto, a ética aristotélica-tomista. Distribui os pecadores no Inferno,
primeiro, segundo o grau de sua má vontade e, dentro dessa classificação, segundo a gravidade de seus
atos; os penitentes do Purgatório segundo a malignidade de seus impulsos, dos quais hão de purificar-se;
e os bem aventurados do Paraíso, segundo o grau de contemplação divina que se lhes atribui”. Erich

91
Dante, a totalidade não é ainda pura criação estética, como o será no romance, mas é
uma figuração artística da teologia cristã, que por sua vez é o que garante o acabamento
da forma 189.

Alguns traços, no entanto, distinguem o poema épico de Dante da epopeia


clássica. A primeira diferença explícita é o fato da obra de Dante ser narrada em
primeira pessoa. Em lugar da narração em terceira pessoa, distanciada e objetiva,
característica da epopeia, a Divina comédia é narrada na voz do próprio poeta
florentino, que se apresenta como um homem em meio a uma crise moral e religiosa em
busca dos caminhos que o levem à vida correta. A profunda desorientação de Dante só é
superada por meio da jornada milagrosa que o leva a percorrer as três esferas do reino
dos mortos – inferno, purgatório e paraíso – até encontrar sua salvação junto a Deus.
Nesse percurso, Dante encontra diversas personalidades históricas e personagens da
história da literatura, destinadas a uma das três esferas de acordo com o tipo de vida que
levaram na Terra. No que diz respeito ao conteúdo, portanto, a Divina Comédia é a
primeira obra épica a representar individualidades, um traço que a aproxima do
romance:

Ele [Dante] possui ainda a completude e a ausência de distância


perfeitas e imanentes da verdadeira epopeia, mas seus personagens já são
indivíduos que resistem consciente e energicamente a uma realidade que a
eles se fecha e, nessa oposição, tornam-se verdadeiras personalidades [...] Tal
individualidade, sem dúvida, é encontrada mais nos personagens secundários
do que no herói, e a intensidade dessa tendência aumenta à medida que se
afasta do centro rumo à periferia; cada unidade parcial conserva sua própria
vida lírica, uma categoria que a antiga epopeia não conheceu nem podia
conhecer 190.

A parcialidade do destino de cada personagem, no entanto, é progressivamente


integrada ao todo à medida que se revela a totalidade do universo criado, delimitado e
dominado pela instância divina. Revela-se, assim, a grandiosidade de Dante, que
consegue representar a interioridade e a subjetividade de seus personagens ao mesmo

Auerbach, “Farinata y Cavalcante”, in Mimesis: la representacion de la realidad en la literatura


occidental (Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1950), 180.(p.180).
189
Nesse sentido, Auerbach comenta que a unidade do poema de Dante repousa no tema geral da vida
após a morte, “o qual, enquanto juízo definitivo de Deus, deve constituir uma unidade perfeitamente
ordenada, como sistema teórico, como realidade prática e também como figuração estética”. Ibidem.
190
Lukács, A teoria do romance, 69.

92
tempo em que os insere em uma ordem universal, pois ele “transforma o individual em
parte integrante do todo, as baladas em cantos de uma epopeia 191”.

O ponto mais importante para o argumento de Lukács, contudo, é que a obra de


Dante antecipa com clareza certas novidades da estrutura formal do romance. E nisso
ele não deixa de concordar com Schlegel, que em uma passagem de Sobre o estudo da
poesia grega, localiza na obra de Dante os primeiros indícios do caráter artificial da
literatura moderna. Segundo Schlegel, ainda que a força e a matéria dantescas fossem
dadas pela natureza, a cultura moderna em seus primórdios não era mais orientada por
um princípio organizador natural, quase instintivo, mas por certos “conceitos
dominantes 192”, provenientes do intelecto. A obra de Dante situa-se na passagem entre
cultura natural e cultura artificial e, por isso, realizaria uma síntese entre elementos de
ambas:

Em detalhe, ninguém deixará de reconhecer os grandes traços presentes em


toda parte que só podem ter brotado daquela força originária que não pode
ser ensinada nem aprendida. Mas a caprichosa ordenação do conjunto, a
estrutura altamente estranha de toda a gigantesca obra não se deve nem ao
divino bardo nem ao sábio artista, mas aos conceitos góticos do bárbaro 193.

Ao contrário da obra de arte clássica, um organismo produzido naturalmente, a


obra de arte moderna é dominada pela organização conceitual de suas partes, de modo
que sua coesão formal é ao mesmo tempo menos imediata e mais rígida do que a da
obra clássica. Isso quer dizer que a obra de arte romântica é, assim como a clássica, um
todo orgânico, no entanto essa organicidade é alcançada por vias distintas em cada uma
delas.

Na perspectiva de Schlegel, a unidade da obra de arte moderna é fruto da


subjetividade do autor, que se faz presente em cada uma de suas partes e no todo: se a
obra de arte clássica se caracterizava pela absoluta coesão formal de suas partes, uma
unidade gerada naturalmente, a obra de arte moderna possui uma coesão formal relativa,
191
Ibidem, 59.
192
Em uma nota Schlegel esclarece esse ponto: “Por muito obscuros e confusos que sejam esses conceitos
dominantes, não podem nem devem ser confundidos com o instinto como princípio diretor da cultura.
Ambos se diferenciam um do outro não por graus, mas segundo a espécie. É certo que os conceitos
dominantes motivam inclinações semelhantes e vice-versa. No entanto, a força diretora é inconfundível
porque a direção de ambos [conceitos dominantes e instinto] é oposta. A tendência de todo o instinto
orienta-se para uma meta indeterminada; a tendência do intelecto isolador orienta-se para um objetivo
determinado. O ponto decisivo é se a ordenação de todo o conjunto, a direção de todas as forças, está
determinada pela tendência de toda a capacidade de esforço e de sentimento ainda não dividida, ou se por
um único conceito e intenção”. Schlegel, Sobre el estudio de la poesía griega, 163.
193
Ibidem, 71. Bárbaro é como Schlegel denomina a época de transição entre cultura antiga e moderna.

93
na medida em que sua unidade depende de uma relação “da composição toda com uma
unidade superior àquela unidade da letra”, através da “sequência das ideias, através de
um centro espiritual 194”. Ou seja, a unidade do romance não é um produto natural, como
na epopeia, mas depende de uma organização intelectual de suas partes, depende
portanto da intenção organizadora de seu autor para se realizar 195.

Lukács aprofunda essas observações de Schlegel demonstrando como a obra de


Dante é a transição histórico-filosófica da pura epopeia para o romance, o que se
evidencia pela mudança no princípio constitutivo de sua totalidade: a organicidade
própria à epopeia e suplantada pela arquitetônica que transforma a antiga
“independência épica das unidades orgânicas parciais em verdadeiras partes
hierarquicamente ordenadas 196”. A totalidade dantesca é sistemática e, portanto,
conceitual, fundamentada em na ética tomista, que informa toda a construção do poema.
Assim, cada uma das três esferas está organizada a partir de princípios religiosos: a
estrutura do inferno e do purgatório está assentada em diferentes classificações do
pecado, ao passo que a arquitetura do paraíso baseia-se nas quatro virtudes cardeais
(força, justiça, prudência e temperança) e nas três virtudes teologais (fé, esperança e
caridade), as únicas que conduzem a Deus.

No entanto, a fundamentação religiosa do sistema lhe confere a legitimidade de


uma realidade dada, tornando-o algo substancial e não meramente conceitual. Isso se
evidencia, por exemplo, no fato de que a existência eterna de cada indivíduo é por assim
dizer a figuração e a consumação de seu conceito e, ao mesmo tempo, a posição
conferida a cada indivíduo na eternidade torna-se o símbolo e a realização total de sua
personalidade terrena. Por isso Lukács afirma:

A totalidade do mundo dantesco é a do sistema visível de conceitos.


Justamente essa aderência sensível às coisas, essa substancialidade tanto dos
próprios conceitos como de sua ordem hierárquica no sistema, é que permite
à completude e à totalidade tornarem-se categorias estruturais constitutivas, e
não regulativas; que faz com que a marcha através do todo, embora rica em
emoções seja, uma viagem bem guiada e sem perigos; que possibilita a
epopeia numa situação histórico-filosófica que já impele os problemas às
raias do romance 197.

194
Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, 67.
195
A subjetividade do autor, contudo, não pode proceder de maneira completamente arbitrária, mas só
constitui uma obra de arte na medida em que aja de maneira autoconsciente, por meio da autorreflexão e
da ironia, conforme veremos mais adiante.
196
Lukács, A teoria do romance, 69.
197
Ibidem, 70.

94
Desaparecidas as condições sociais que sustentavam a organicidade própria à
epopeia, a forma possível de totalidade fechada pode ser apenas “um sistema de
conceitos deduzidos e que, portanto, em seu caráter imediato, não entra em apreço na
configuração estética 198”. Ou seja, a criação artística na modernidade tem como
fundamento último uma ideia, um sistema de conceitos, o que equivale a dizer que a
obra de arte moderna e o romance especificamente possuem um ponto de partida
extraestético, da ordem da reflexão.

A primeira determinação formal do romance analisada por Lukács é a de que sua


totalidade “só se deixa sistematizar abstratamente 199”. Não se trata mais de uma
totalidade orgânica, embora na aparência deva se aproximar o máximo possível disso,
mas sim de uma totalidade criada, conceitualmente composta. A relação entre as partes
e o todo no romance, “embora tão próxima quanto possível do orgânico, não é uma
legítima organicidade, mas uma relação conceitual reiteradamente superada 200”, uma
pseudo-organicidade, nas palavras de Lukács. A diferença entre a estrutura da epopeia e
do romance, portanto, “é aquela entre uma continuidade homogêneo-orgânica e uma
descontinuidade heterogêneo-contingente 201”.

Assim, a organicidade da relação entre as partes da epopeia, a ausência de


qualquer subordinação entre os diversos episódios – basta lembrar que complexas
descrições de objetos aparentemente desimportantes como os vasos, artefatos
guerreiros, vestimentas, possuem o mesmo estatuto narrativo de acontecimentos
importantes, introdução de personagens centrais, etc. – são substituídas pela construção
arquitetônica do romance, na qual as partes são ordenadas hierarquicamente de acordo
com a relação que guardam com o problema central a ser narrado e só adquirem seu
significado dentro da estrutura total da obra. O que Lukács procura destacar é que, em
última instância, a totalidade do romance é fragmentária. O romance deve buscar o
equilíbrio entre a descontinuidade de suas partes e sua amarração conceitual; nem um,
nem outro, devem vir à tona de maneira acintosa, pois se assim o fosse ou o romance
não alcançaria a totalidade exigida pela forma ou a preocupação excessiva com a
composição implicaria em artificialidade.

198
Ibidem.
199
Ibidem.
200
Ibidem, 76.
201
Ibidem.

95
Se Lukács e Schlegel partilham do diagnóstico da fragmentação da realidade, da
cisão entre sujeito e mundo exterior que caracteriza a época moderna, aos poucos vai
ficando evidente que ambos divergem quanto à posição do romance diante dessa cisão.
Em primeiro lugar, Lukács insiste no fundamento abstrato do romance, que só
aparentemente é superado pela configuração.

Ao contrário do herói da epopeia, cujo caráter firmemente estabelecido era a


manifestação de elementos da moralidade comunitária, a subjetividade do herói
romanesco é casual, resultado de um desenrolar arbitrário de circunstâncias. Assim
como a casualidade e a abstração definem a subjetividade, o mundo exterior também
possui as mesmas características. Essa correspondência entre o mundo interior e o
mundo exterior não é casual, mas tem a ver com a alienação entre sujeito e objeto que
caracteriza a época moderna: por essa razão tanto o subjetivo quanto o objetivo ficam
presos à particularidade e ao acidental. Essa dualidade entre o mundo exterior e a
interioridade Lukács considera como sendo constitutiva do romance, não podendo ser
superada pela configuração:

Sem dúvida, esse fundamento abstrato é justamente o fundamento último


sobre o qual tudo se constrói, mas na realidade dada e configurada vê-se
apenas sua distância em relação à vida concreta, como convencionalidade do
mundo objetivo e como exagerada interioridade do mundo subjetivo. Assim,
na acepção hegeliana, os elementos do romance são inteiramente abstratos:
abstrata é a aspiração dos homens imbuída da perfeição utópica, que só sente
a si mesma e a seus desejos como realidade verdadeira; abstrata é a existência
de estruturas que repousam somente na efetividade e na força do que existe; e
abstrata é a intenção configuradora que permite subsistir, sem ser superada, a
distância entre os dois grupos abstratos de elementos de configuração, que a
torna sensível, sem superá-la, como experiência do homem romanesco, que
dela se vale para unir ambos os grupos e portanto a transforma no veículo da
composição 202.

O problema fundamental que envolve o romance, para Lukács, é que, enquanto


manifestação do gênero épico, ele tem que dar forma à totalidade extensiva da vida e,
no entanto, ele é fruto de uma época em que a imanência do sentido à vida desvaneceu-
se. Como então elevar-se a algum sentido? Como constituir-se enquanto forma sem
contradizer sua realidade? Ou como aderir fielmente à realidade sem romper com a
forma? O romance é premido por duas ameaças: de um lado, há um perigo que a
fragmentariedade do mundo venha à luz de modo que não se atinja a imanência do
sentido exigida pela forma; de outro, que o anseio pela resolução da dissonância entre

202
Ibidem, 70.

96
vida e sentido ignore a fragmentariedade do mundo e leve a uma resolução precoce e
artificial, transformando-o em uma forma vazia, desprovida daquilo que mais tarde
Benjamin (e Adorno) denominariam “teor de verdade” das obras, um conhecimento
sobre o mundo.

O único caminho possível para o romance superar essas ameaças é fazer da


ausência de sentido o sentido: “a conversão em forma do fundamento abstrato do
romance é a consequência do autorreconhecimento da abstração; a imanência do sentido
exigida pela forma nasce justamente de ir-se implacavelmente até o fim no
desvelamento de sua ausência 203”. Se o mundo no qual nasce o romance já não pode ser
apreendido em sua totalidade; se a vida perdeu seu sentido imediato e natural e nada
mais nela é evidente, a não ser seu vazio; se o mundo que não é mais a casa de seus
habitantes, mas um lugar que lhes é estranho, que impõe uma vida que não é sentida
como própria e verdadeira, mas alienada; se ele carece de um fundamento que o
organize e lhe dê algum sentido; se, em suma, entre o sujeito e sua vida abre-se uma
distância insuperável, a ponto dele inclusive perder-se de si mesmo, resta ao romance
fazer dessa distância entre mundo subjetivo e mundo objetivo o fundamento de sua
composição. A abstração inerente ao mundo moderno não pode ser superada pela
vontade do sujeito criador; este, ao contrário, deve curvar-se a ela, adotando-a como o
ponto de partida da configuração. O romance não supera essa distância entre mundo
subjetivo e mundo objetivo, mas torna-a sensível, ao expor a experiência do herói
romanesco.

Ora, o que distingue então o romance das outras formas literárias é que a
existência da dissonância entre vida e sentido era nestas um dado anterior à figuração,
ao passo que no romance a afirmação da dissonância é a própria forma. Nas outras
formas, a ética era um pressuposto exclusivamente formal que orientava a fatura da obra
de acordo com os princípios formais do gênero – o aprofundamento da essência, no
drama, a extensão que expõe a totalidade, na epopeia. Já no romance, a intenção
configuradora “é visível na configuração de cada detalhe e constitui portanto, em seu
conteúdo mais concreto, um elemento estrutural eficaz da própria composição
literária 204”. Ao contrário do drama e da epopeia, que possuem uma forma consumada e
firmemente estabelecida de acordo com pressupostos claros e determinados antes de

203
Ibidem, 72.
204
Ibidem.

97
cada configuração, o romance não possui uma forma prévia, já que esta depende de cada
escolha a respeito do conteúdo específico a ser configurado, de modo que qualquer lei
formal só pode se constituir no próprio processo de criação: cada romance deve
encontrar sua própria chave de composição, uma solução que será sempre exclusiva e
intransferível, posto que atrelada à eleição por parte do autor de cada um dos conteúdos,
conflitos e acontecimentos abordados.

Com a dissolução do sentido unívoco que sustentava a existência nas formas


comunitárias, com a emergência do sujeito isolado testemunhada pela lírica, a pergunta
que se coloca é como pode uma forma épica continuar a existir. Como pode um sujeito
isolado, fragmentado, falar mais do que de si mesmo, mas comunicar uma experiência
que transmite de fato um conhecimento a respeito do mundo? Isto é, se o princípio que
orienta o romance é subjetividade do autor, árbitro da configuração em todos os seus
mínimos detalhes, como alcançar a intenção de objetividade exigida pela grande épica?
Tentar contornar esse problema, seja tentando calar a voz da subjetividade, seja
buscando apresentá-la como algo objetivo, é inviável segundo Lukács, pois acarretaria
um subjetivismo ainda maior. A única maneira de superar a subjetividade é a partir de
dentro, solução que Lukács vislumbra no procedimento da ironia teorizado pelos
primeiros românticos: “o autorreconhecimento, ou seja, a autossuperação da
subjetividade, foi chamado de ironia pelos primeiros teóricos do romance, os estetas do
primeiro Romantismo 205”.

A ironia como índice de objetividade do romance

Embora a ironia seja um termo de longa data na tradição retórica, é possível


afirmar que Schlegel cunhou um novo conceito de ironia, uma vez que ele operou um
deslocamento considerável no sentido normalmente atribuído a ela. Essa noção que
antes designava uma forma de discurso que poderia ser resumido na ideia de “pretender
expressar o oposto daquilo que se diz”, ganha um sentido mais amplo e passa a ser
entendida como um elemento que determina toda a arte moderna e, em última instância,
uma nova forma de consciência, uma nova relação entre sujeito e mundo.

205
Ibidem, 74.

98
Fundamentalmente, a ironia esteve associada a uma disjunção proposital entre a
intenção do falante e aquilo que ele diz e sua utilização esteve limitada à retórica; ela
era uma figura de linguagem e, como tal, podia ser localizada em momentos e frases
específicos de um discurso. Autores importantes da tradição da retórica, como
Quintiliano e Cícero, entre outros, percebiam que a ironia poderia transpor os limites do
discurso, e converter-se em um elemento mais geral, dando o tom a toda existência de
uma pessoa. Assim, por exemplo, a vida de Sócrates teria uma tonalidade irônica, uma
vez que sua conduta de vida consistia em desempenhar o papel de uma pessoa
ignorante, que se maravilhava com a sabedoria dos outros. Platão, então, seria um dos
primeiros mestres da ironia, pois apresentava Sócrates como um interlocutor irônico
“que, atenuando seus talentos em sua famosa pose de ignorância, envergonhava seu
parceiro e simultaneamente o levava a adentrar o terreno do verdadeiro
conhecimento 206”.

Em Schlegel, a ironia deixa de se limitar à retórica e encontra sua gênese na


filosofia, sua “verdadeira pátria”. A matriz da ironia, portanto, seria o procedimento
adotado por Platão nos diálogos socráticos, nos quais o pensamento está em constante
desenvolvimento, pois a uma consideração sempre se contrapõe outra, sucessivamente.
Este movimento deveria ser deslocado para a poesia, de modo que esta pudesse se
“elevar à altura da filosofia”, conforme a exigência de que a poesia romântica deva
conter em si a filosofia. Assim, a ironia é desvinculada do campo no qual normalmente
era situada, ao lado de tropos como a dissimulação e a mentira, e passa a ser uma forma
de pensamento que adota a contradição como seu fio condutor.

A desestabilização do sentido é, portanto, um dos fundamentos do procedimento


irônico. Por meio dele, o sujeito expõe sua ambiguidade frente às verdades absolutas de
seu mundo e relativiza aquilo que é apresentado na obra sem, no entanto, fixar uma
nova verdade. Na verdadeira ironia, o sentido permanece sempre em suspensão, uma
vez que ela preza pela exposição de uma multiplicidade de perspectivas, sem se prender
a uma verdade estabelecida abstratamente. No contexto literário, assim, o método

206
Ernst Behler, German romantic literary theory (Cambridge ; New York: Cambridge University Press,
1993), 144. No entanto, mesmo nos diálogos de Platão, nos quais em alguns momentos a ironia começa a
se desvincular do teor negativo e burlesco que normalmente lhe era atribuído, e aparece como um traço
nobre, uma autodepreciação bem humorada que conduzia à verdade, sua recepção permanecia sendo
negativa, como se a ironia fosse um expediente escapista, mobilizado por Sócrates para distração de seu
interlocutor.

99
distingue-se da simples sátira ou das obras moralistas, na qual o narrador vale-se de uma
postura aparentemente irônica para ridicularizar e eliminar uma verdade, substituindo-a
por outra claramente definida.

A grande diferença do conceito de ironia forjado pelo romantismo é que ele


passa a designar algo mais amplo, um espírito que anima toda a obra, podendo estar
presente nas estruturas básicas, nas frases, mas principalmente no modo de apresentação
que informa toda a narrativa. Assim, Schlegel estende a ideia de ironia para além de seu
uso pontual conforme a tradição retórica e a atribui à obras inteiras de autores como
Boccaccio, Cervantes, Sterne e Goethe 207.

Extraída de seu contexto retórico e ampliada em seu significado, a ironia ganha


um sentido mais profundo na obra de Schlegel, quando ela passa a designar o modo de
funcionamento da criação artística na modernidade, pela qual se associa a ideia de
reflexão poética pela qual Schlegel caracteriza a poesia romântica. O romance – e a
poesia romântica em um sentido mais abrangente –, embora atravessado pela
subjetividade de seu autor, não são inteiramente subjetivos, mas devem equilibrar-se
entre receptividade e criação, mediante a reflexão. Como notou Benjamin, a reflexão, ou
“a relação consigo mesmo do pensamento 208” é um elemento fundamental para a teoria
da arte do primeiro romantismo. O tema da reflexão evidencia a importância da teoria
do conhecimento de Fichte para a teoria da arte do primeiro romantismo. De maneira
sintética, o ponto que interessa aos românticos é o Eu do conhecimento fichteano,
“dotado de enorme força criativa, a ponto de fazer do mundo exterior um derivado da
imaginação produtora do homem 209”. Por reflexão, Schlegel procura designar essa
tomada de consciência de si próprio, uma relação do eu consigo mesmo, que seria a
marca de toda a atividade artística moderna:

Para poder escrever bem sobre um objeto, é preciso já não se interessar por
ele; o pensamento que deve se exprimir com lucidez já tem e estar totalmente
afastado, já não ocupar propriamente alguém. Enquanto o artista inventa e

207
“Há poemas antigos e modernos que respiram, do início ao fim, no todo e nas partes, o divino sopro da
ironia” Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 26. Fragmento 42 da Lyceum.
208
Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, 29.
209
Gerd Bornheim, “Filosofia do romantismo”, in O romantismo (São Paulo: Perspectiva, 2008), 92. Para
uma exposição detalhada da influência da teoria do conhecimento de Fichte na teoria da arte primeiro
romântica o leitor pode se referir, além do texto bastante didático de Gerd Bornheim, à interpretação de
Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Além da relação com Fichte, Szondi
também ressalta a atitude critica da filosofia kantiana frente a ela mesma como uma influência importante
para a concepção de reflexão de Schlegel. Szondi, “Friedrich Schlegel et l’ironie romantique”, 101.

100
está entusiasmado, se acha, ao menos para a comunicação, num estado
iliberal. Pretenderá dizer tudo, o que é uma falsa tendência de gênios jovens
ou um justo preconceito de escrevinhadores antigos. Com isso, desconhecerá
o valor e a dignidade da autolimitação, que é porém, tanto para o artista
quanto para o homem, aquilo que há de primeiro e último, o mais necessário
e o mais elevado. O mais necessário: pois em toda parte em que alguém não
se limita a si mesmo, é o mundo que o limita, tornando-se, com isso, um
escravo. O mais elevado: pois só se pode limitar a si próprio nos pontos e
lados em que se tem força infinita, autocriação e autoaniquilamento 210.

Essa atitude crítica que o sujeito adota frente a si mesmo, esse questionar sobre
sua própria atividade, Schlegel aplica a toda a poesia moderna, que deve ser ao mesmo
tempo poesia e teoria poética da poesia:

Há uma poesia cujo um e tudo é a proporção entre ideal e real e que,


portanto, por analogia com a linguagem técnica e filosófica teria de se
chamar poesia transcendental. Começa como sátira, com a diferença absoluta
entre ideal e real, oscila no meio como elegia e termina como idílio, com a
identidade absoluta de ambos. Mas assim como se daria pouco valor a uma
filosofia transcendental que não fosse crítica, não expusesse também o
producente com o produto e contivesse ao mesmo tempo, no sistema dos
pensamentos transcendentais, uma caracterização do pensamento
transcendental: assim também aquela poesia deveria unir, aos materiais
transcendentes e aos exercícios preliminares para uma teoria poética da
faculdade criadora, uns e outros não raros nos poetas modernos, a reflexão
artística e o belo autoespelhamento que se encontram em Píndaro, nos
fragmentos líricos dos gregos e na elegia antiga, mas, entre os modernos, em
Goethe, e expor também a si mesma em cada uma de suas exposições e em
toda parte ser, ao mesmo tempo, poesia e poesia da poesia 211.

Schlegel faz referência expressa à ideia de filosofia transcendental de Kant,


como sendo um modo de pensar que se preocupa menos com o conhecimento dos
objetos e mais com a maneira pela qual se conhecem os objetos. A essência da poesia
moderna é incluir tanto o produtor quanto o produto, isto é, o poeta e seu poema, ou
seja, poesia que tenha por objeto tanto seu tema, seu assunto, quanto ela própria, que
seja tanto criação, quanto reflexão sobre essa atividade criativa, que se torne,
simultaneamente, poesia e poesia da poesia. Com isso, Schlegel dissolve as fronteiras da
filosofia e da poesia, pois clama por uma poesia que seja ao mesmo tempo teoria da
poesia.

Se a ironia socrática procedia por meio do diálogo entre Sócrates e seu


interlocutor, a ironia romântica caracteriza-se por ser um diálogo do artista consigo
próprio no interior da obra de arte. A ironia, que em outro fragmento é associada à ideia

210
Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 25. Fragmento 37 da Lyceum.
211
Ibidem, 88. Fragmento 238 da Athenäum.

101
de reflexão sobre si mesmo, é um elevar-se sobre si mesmo do autor – uma “disposição
que tudo supervisiona e se eleva infinitamente acima de todo condicionado, inclusive a
própria arte, virtude ou genialidade” – e aparece no fragmento citado acima de maneira
mais explícita como a limitação de si que deve ser buscada pelo autor. Isso porque,
deixadas completamente livres, a invenção e o entusiasmo do artista convertem-se em
limites à comunicação. Portanto, embora o romantismo procure desvincular-se do
princípio de imitação da natureza e da submissão do artista a modelos e regras
preestabelecidas, e confira maior importância ao aspecto criativo da atividade artística, a
fantasia e a liberdade do autor são limitadas por meio da introdução de um expediente
autocrítico, pelo qual o próprio autor controla sua atividade criativa.

Nesse procedimento de autolimitação, o autor distancia-se de suas ideias de


modo a contemplá-las com mais lucidez. Essa atitude reflexiva e autocrítica por parte do
sujeito criador, que reflete sobre a obra e sobre seu próprio fazer, deve, no entanto, ser
dosada, do contrário acarretaria um autoaniquilamento do sujeito. Ou seja, a
autolimitação deve deixar um espaço para a autocriação, a invenção e o entusiasmo,
sem os quais a obra de arte deixaria de existir. A ironia, essa autolimitação de si por
parte do sujeito criador, é a busca incessante por um equilíbrio instável entre
autocriação e autoaniquilamento, que se alternam constantemente 212. Ou seja, a
autocriação se configura como o momento da criação artística espontânea, ao passo que
autoaniquilação designa a posição crítica que o artista adota frente a sua obra. A
autolimitação, por sua vez, indica o distanciamento que o criador necessita para poder
desenvolver artisticamente aquilo que foi capaz de compreender no momento da
autolimitação 213.

O romantismo atribuiu à poesia romântica como um todo a preponderância do


elemento reflexivo, mas em nenhuma outra forma artística ele se faz tão presente quanto
no romance. Segundo Benjamin, no romance os românticos encontraram “tanto a
autolimitação reflexiva como a auto-expansão, desenvolvidas do modo mais decisivo e,
neste cume, penetrando indistinguivelmente uma na outra 214”. Por não estar submetido
às rígidas regras das demais formas – pensemos na limitação bem determinada imposta

212
Ibidem, 24. Fragmento 28 da Lyceum: “Sentido (para uma arte, ciência, um homem particular, etc.) é
espírito dividido; autolimitação, resultado, portanto, de autocriação e autoaniquilamento”.
213
Constantino Luz de MEDEIROS, “A Forma do Paradoxo: Friedrich Schlegel e a ironia Romântica”,
TRANS/FORM/AÇÃO 37, no 1 (2014): 59, http://200.145.171.5/ojs-
2.2.3/index.php/transformacao/article/view/3624.
214
Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, 104.

102
pela rima no campo da lírica, ou pelo encadeamento causal da ação do drama, por
exemplo – o romance é mais livre e nele a autorreflexão pode se desenvolver
infinitamente. Isso se expressa na prevalência da digressão, na atenção aos detalhes, nas
idas e vindas da narrativa, enfim, em toda uma série de elementos retardadores que,
como bem apontaram Goethe e Schiller, são próprios ao gênero épico 215.

Embora a ironia contenha um momento de valorização da liberdade do sujeito


criador, é importante distinguir a noção romântica de ironia da sátira, procedimento com
o qual ela foi muitas vezes confundida. Essa confusão foi objeto de um texto de A alma
e as formas, no qual Lukács escreve um diálogo entre dois personagens: Vincent,
descrito como um jovem belo, cujas opiniões sustentam-se em uma assimilação um
tanto superficial de algumas das ideias românticas, e Joachim, um rapaz sóbrio e
simples, que não cessa de apontar o caráter caótico e eticamente vazio das proposições
de seu interlocutor. Esse texto tem como objeto específico a obra de Lawrence Sterne,
diante da qual Vincent se porta de maneira reverencial, admirado com o estilo
fragmentário e digressivo do Tristram Shandy, ao passo que Joachim acusa a obra de ser
fundamentalmente desordenada e inessencial, um mero recorte subjetivo das
vicissitudes da vida empírica.

Assim, enquanto Vincent associa o foco subjetivo e a completa liberdade do


autor na condução da narrativa à ironia romântica, entendendo-a como a concepção de
mundo segundo a qual a subjetividade do artista domina e reflete o mundo, Joachim
questiona se, no caso de Sterne, a subjetividade do autor, em vez de comunicar “os
conteúdos reais da vida 216” não se interpõe como um obstáculo entre o eu e o mundo,
por julgar-se como um interesse em si mesmo. Escritores como Sterne, ele afirma,

acreditam que, porque há em suas almas alguma coisa de importante e de


interessante por sua força mediadora a respeito do mundo, toda
exteriorização contingente e desinteressante de seu ser contingente e
desinteressante é, igualmente, considerável e digna de interesse 217.

Nesse sentido, a obra de Sterne se associaria mais exatamente à sátira, uma


conduta eminentemente subjetiva (e não autorreflexiva), que contrapõe uma verdade
subjetiva ao que considera reprovável no mundo. Essa sobrevalorização da

215
Goethe, Correspondência (1794-1803) entre Johann Wolfgang Goethe e Friedrich Schiller.
216
Georg Lukács, “Richness, caos, and form”, in Soul and form (New York: Columbia University Press,
2010), 164.
217
Ibidem.

103
subjetividade, sua colocação em primeiro plano na obra, acarretaria um problema de
ordem formal, já que o romance não se concretizaria enquanto totalidade plena de
sentido, sendo apenas um conjunto inorgânico de fragmentos vazios, apresentados sem
qualquer preocupação de deslindar o essencial do inessencial.

É assim que outro conceito caro aos românticos, o arabesco, vem à tona na
discussão. Se para Vincent os volteios infinitos do arabesco exprimem uma afirmação
sentimental da vida em toda sua multiplicidade, Joachim responde defendendo que o
próprio Schlegel não valorizava esse recurso, que simplesmente representaria a
confusão dos sentimentos e do pensamento. Em suma a posição de Joachim (que pode
ser equiparada a posição do próprio Lukács) é que Sterne não compôs suas obras, “pois
a condição prévia mais elementar de toda concepção, a escolha – e a capacidade de
avaliar – lhe era ausente 218”.

Saindo dos limites “puramente” estéticos da ironia e adentrando um complexo


debate filosófico ao qual é necessário que ao menos se faça menção, cabe apontar que a
ironia romântica frequentemente foi apreendida como o lócus no qual se explicitaria um
subjetivismo ilimitado característico do romantismo. Tal é, por exemplo, o conteúdo da
crítica ferrenha de Hegel à concepção schlegeliana de ironia. Embora a ironia e a
dialética sejam o testemunho do surgimento de uma modernidade disposta a
problematizar tudo o que até então era tomada como verdadeiro, e embora ambas sejam
animadas por um desenvolvimento constante de contradições, a anarquia e a infinitude
do processo reflexivo que sustenta a ironia fazem com que Hegel considere a ironia
como uma dialética bloqueada e sem síntese, um mero jogo negativo de aparências, que
a aproximaria do niilismo 219. Mais especificamente, a capacidade de autorreflexão
própria ao sujeito moderno para a qual a ironia aponta é apreendida por Hegel como um
movimento puramente subjetivo, abstrato, no qual o sujeito assume-se como fonte de
todo saber e transcende qualquer contexto determinado, dissolvendo qualquer referência
ao mundo objetivo 220.

218
Ibidem, 165.
219
A ironia, como Schlegel afirma no fragmento 121 da Athenäum, é “uma síntese absoluta de antíteses
absolutas, alternância de dois pensamentos conflitantes que engendra continuamente a si mesma”.
Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 66. Sobre a relação entre ironia e dialética conferir o primeiro
capítulo de: Vladimir. Safatle, Cinismo e falência da crítica (São Paulo: Boitempo, 2008).
220
Cf, nesse sentido, o item “Ironia” na Introdução do primeiro volume da Estética de Hegel. HEGEL,
Curso de estética.

104
No campo artístico, essa tendência se revela, de acordo com Hegel, no fato de
que é a “pura subjetividade do artista mesmo que tenciona mostrar-se” na obra de arte,
com o que esta deixa de ser a exposição de um conteúdo objetivo e passa a ser apenas
um jogo com esses objetos, “um deslocamento e inversão da matéria assim como um
vaguear para lá e para cá, um ziguezaguear de exteriorizações subjetivas, de visões e de
procedimentos, por meio dos quais o autor abandona a si mesmo assim como seus
objetos 221”.

Por esse caminho, então, a crítica de Hegel apreende a ironia como um


procedimento de evasão da realidade, um refúgio no reino da imaginação, ou ainda, uma
atitude puramente resignada e contemplativa por parte do sujeito diante do mundo. Se
esse não parece ser exatamente o sentido conferido à ironia nos textos de Schlegel, a
posição de Hegel não deixa de conter um fundamento de verdade, uma vez que existem
diversos exemplos de obras literárias que, estruturadas pela tentativa de desestabilizar o
sentido das verdades de seu tempo e expor uma multiplicidade de perspectivas acerca
dele, de fato padecem de uma sobrevalorização do aspecto imaginativo ou, se
quisermos, lírico, a ponto de desvincularem-se de qualquer referencial objetivo, do
mundo exterior.

Para entender a posição de Lukács quanto a esse debate, parece ser produtivo
retomar uma distinção feita por Walter Benjamin em sua tese de doutorado O conceito
de crítica de arte no romantismo alemão, escrita entre 1917 e 1919. Nela, Benjamin
afasta-se das interpretações tradicionais sobre a ironia romântica e procura demonstrar a
tese de que a ironia consiste em um momento de objetividade do pensamento de
Friedrich Schlegel. Mais precisamente, Benjamin distingue dois sentidos do conceito de
ironia no âmbito da teoria da arte romântica. O primeiro deles e o mais considerado pela
literatura sobre romantismo é, de fato, expressão de um puro subjetivismo e tem a ver
com a autonomia absoluta do artista frente a qualquer lei exterior à sua atividade. Esta
soberania da fantasia e da reflexividade do artista, contudo, limita-se à matéria a ser
expressa, uma vez que, como observa Benjamin, a forma da obra de arte possui uma
legalidade objetiva, isto é, ela impõe uma limitação à atividade do artista, uma limitação
objetiva que escapa à vontade de seu criador. Tal limitação não está baseada em regras

221
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Cursos de estética: Volume II, vol. 2 (São Paulo: Edusp, 2000), 336.

105
exteriores à obra, mas lhe é imanente, pois é “expressão objetiva da reflexão própria à
obra 222”.

A legalidade objetiva à qual a obra está submetida através da arte consiste,


como já foi colocado, em sua forma. O arbítrio do verdadeiro artista possui,
portanto, seu âmbito de ação restrito à matéria e, na medida em que ele reine
consciente e ludicamente, torna-se ironia. Esta é a ironia subjetivista. Seu
espírito é a do autor que se eleva sobre a materialidade da obra na medida em
que a despreza 223.

No entanto, diz Benjamin, uma análise da produção literária do primeiro


romantismo permite notar que existe “uma ironia que não só afeta a matéria, como
também não se importa com a unidade da forma poética 224” e esta ironia não depende
da conduta do sujeito, mas indica um momento objetivo na obra:

A ironização da forma consiste em sua destruição voluntária, como é


demonstrado em sua forma mais extrema, entre as produções românticas e
também em toda literatura em geral, pelas comédias de Tieck. A forma
dramática deixa-se ironizar em maior medida que as demais e de modo mais
marcante, porque ela abarca em maior medida a força ilusória e, deste modo,
pode suportar a ironia em maior escala sem se dissolver por completo 225.

Esse tipo de ironia não diz respeito a um jogo livre e subjetivista do artista, mas
antes à completa objetivação da obra, cujo caráter estético, de criação artística é
ressaltado. A ironização da forma vai além de uma disposição pessoal do artista e
expõe-se de maneira autônoma na própria obra; ela não é uma atitude intencional do
autor, mas representa a tentativa paradoxal de construir uma conformação artística
através de sua destruição.

Compreende-se assim porque Schlegel caracteriza a ironia como uma parabasis


permanente. Assim como na tragédia grega a estrutura da peça era abalada quando o
poeta se endereçava ao público por meio do coro, na obra literária essa disrupção
acontece quando o narrador, projetando-se como um comentarista da obra, ou referindo-

222
Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, 81.
223
Ibidem.
224
Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, 90.
225
Ibidem, 91. O caráter reflexivo da ironização da forma torna-se patente nas comédias de Tieck. A
estrutura das peças baseia-se em uma explicitação do caráter de criação artística, isto é, a obra mesma se
expõe enquanto obra. Isso pode se dar de diversas maneiras: um personagem pode ter consciência de que
é um personagem, a própria estrutura dramática pode ser tematizada dentro da peça. Szondi analisa
brevemente as comédias de Tieck no apêndice de seu ensaio sobre a ironia romântica. Cf. Szondi,
“Friedrich Schlegel et l’ironie romantique”.

106
se diretamente ao leitor como um personagem, quebra a ilusão artística e evidencia o
caráter fictício daquilo que se lê. Essa quebra, entretanto, não implica em uma
dissolução da experiência artística, mas antes sua intensificação, na medida em que a
desvincula de mera imitação da realidade e afirma a arte como tal, como criação.

O que Lukács faz na Teoria do romance é desenvolver uma consequência que


era implícita em Schlegel, qual seja, atribuir ao narrador o espaço de reflexão irônica
por excelência do romance. A ironia, enquanto constituinte formal da forma romanesca,
significa uma cisão interna do sujeito criador em uma subjetividade como interioridade
que se contrapõe ao mundo e busca impregná-lo de seus ideais e uma subjetividade que
desvela a abstração e o alheamento intransponível entre o mundo subjetivo e o mundo
objetivo, mas que, mediante essa consciência da dualidade, configura um mundo
unitário a partir da interação recíproca desses dois mundos. Ou seja, a reflexão do autor
sobre sua própria visão a respeito do mundo, que é expressa na narrativa, torna-se o
objeto de um novo nível de reflexão na instância do narrador, que reflete acerca da
própria história narrada. A interação entre esses dois complexos que compõem a
configuração, a ética da subjetividade criadora, que é lírica, e a ética normativa da
objetividade, que é épica, consiste para Lukács no conteúdo da ironia:

A composição do romance é uma fusão paradoxal de componentes


heterogêneos e descontínuos em uma organicidade constantemente revogada.
As relações que mantém a coesão dos componentes abstratos são, em pureza
abstrata, formais; eis por que o princípio unificador último tem de ser a ética
da subjetividade criadora que se torna nítida no conteúdo. Mas como esta tem
de superar-se a si própria, a fim de que se realize a objetividade normativa do
criador épico, e como nunca ela é capaz de penetrar inteiramente os objetos
de sua configuração, nem portanto de despojar-se completamente de sua
subjetividade e aparecer como o sentido imanente do mundo objetivo, ela
própria necessita de uma nova autocorreção ética, mais uma vez determinada
pelo conteúdo, a fim de alcançar o tato criador de equilíbrio. Essa interação
entre dois complexos éticos, a sua dualidade no formar e sua unidade na
figuração, é o conteúdo da ironia, a intenção normativa do romance,
condenada, pela estrutura de seus dados, a uma extrema complexidade 226.

Para Lukács, a ironia é justamente o reconhecimento dessa distância como um


dado real e necessário e, como o próprio sujeito que reconhece essa oposição entre
mundo interior e mundo exterior tem consciência de que, também ele, é parte desse
mundo contingente e, portanto, está confinado a sua interioridade, quer dizer, não pode
ser o detentor exclusivo de um sentido para o mundo, isso permite ao autor tomar-se a si
mesmo e a sua criação literária como objetos de sua reflexão. Assim, a ironia não seria
226
Lukács, A teoria do romance, 85.

107
um procedimento subjetivista, mas justamente a autoconsciência da limitação subjetiva.
A ironia funciona, portanto, como a normatividade do romance, pois viabiliza a
expressão tanto da aspiração dos indivíduos por um sentido, quanto dos limites
impostos a essa aspiração pelo mundo objetivo, evitando que a obra converta-se em
uma falsificação do real. Ela oferece, assim, o caminho para a objetividade do
romance 227:

Pois a reflexão do indivíduo criador, a ética do escritor no tocante ao


conteúdo, possui um caráter duplo: refere-se sobretudo à configuração
reflexiva do destino do ideal na vida, à efetividade dessa relação com o
destino e à consideração valorativa de sua realidade. Essa reflexão torna-se
novamente, contudo, objeto de reflexão: ela própria é meramente um ideal,
algo subjetivo, meramente postulativo; também ela se defronta com um
destino numa realidade que lhe é estranha, destino este que, dessa vez
puramente refletido e restrito ao narrador, tem de ser configurado 228.

Em que pese a dívida de Lukács para com o conceito de ironia romântica, faz-se
necessário, contudo, precisar alguns pontos de sua divergência frente às posições de
Schlegel. Em primeiro lugar, é importante ressaltar que para Lukács a oposição entre
indivíduo e mundo exterior, que é da ordem do real e, portanto, constitutiva do
romance, permanece inalterada pelo procedimento irônico, sendo superada apenas
formalmente. Assim, embora o romance deva aproximar-se o máximo possível de uma
aparência de organicidade, sob pena de recair em um artificialismo, a relação entre as
partes que o compõem não é orgânica, conceitualmente composta.

No que diz respeito ao tratamento do conteúdo, portanto, o romance se


caracteriza pela perda da ingenuidade característica da épica, ou mais especificamente,
pelo advento do que Lukács chama de “segunda ingenuidade”, que ele define como
sendo uma inversão da primeira ingenuidade em seu contrário: para contrabalancear a
proeminência da subjetividade no romance é necessário refletir constante e
sucessivamente sobre o tratamento do conteúdo sendo exposto. A objetividade do

227
Embora Lukács não se aprofunde na análise de procedimentos literários irônicos, ele menciona
brevemente seu sentido geral: “[...] as relações inadequadas podem transformar-se numa ciranda
fantástica e bem-ordenada de mal-entendidos e desencontros mútuos, na qual tudo é visto sob vários
prismas: como isolado e vinculado, como suporte do valor e como nulidade, como abstração abstrata e
como concretíssima vida própria, como estiolamento e como floração, como sofrimento infligido e como
sofrimento sentido”. Ibidem, 76. Por aí se percebe que ele busca frisar a pluralidade de pontos de vista
que promove a relativização do sentido dos acontecimentos e deixa irresolvidas as ambiguidades que eles
despertam.
228
Ibidem, 86.

108
romance, portanto, é sempre normativa, no sentido de que deve sempre ser buscada,
mas nunca é alcançada de maneira completa e cabal.

Além do tato irônico que deve orientar a composição, o que confere a aparência
de organicidade ao romance e viabiliza a conquista do equilíbrio é sua forma biográfica.
Nela, “a aspiração sentimental e inalcançável tanto pela unidade imediata da vida
quanto pela arquitetônica que tudo integra no sistema é equilibrada e posta em repouso
– é transformada em ser 229”. O centro do romance, portanto, é a exposição da trajetória
de um indivíduo, que permite realizar a mediação entre o mundo da vida empírica e o
mundo dos ideais. Isso porque o indivíduo mantém uma relação com os ideais, mas ao
mesmo tempo esses ideais só se realizam por meio da atuação desse indivíduo no
mundo, no decorrer de sua experiência. Ou seja, é por meio da trajetória do indivíduo
em combate com o mundo que o romance consegue converter o ideal em ser e, assim,
expor de maneira sensível a luta entre ideal e mundo. Mas não se trata de qualquer
indivíduo, e sim daquele indivíduo problemático, cujos objetivos não lhe são dados de
maneira evidente e para quem o mundo exterior aparece como algo vazio, desvinculado
de qualquer ideia. Na verdade, “mundo contingente e indivíduo problemático são
realidades mutuamente condicionantes”, pois é quando o mundo exterior não possui
mais relação com as ideias que estas se convertem em fatos psicológicos subjetivos, isto
é, em ideais, no homem.

Ao mesmo tempo, a irrepresentabilidade do mundo exterior, o fato de que o


mundo não se apresenta como uma totalidade concreta, mas é uma profusão de
elementos caóticos, que só são passíveis de serem representados por meio da relação
que os sujeitos guardam com eles, é para Lukács um dado incontornável da época
moderna. Desse modo, longe de ser um recurso estilístico ou mera preferência subjetiva,
o tratamento reflexivo ou lírico das diversas situações em um romance revela a base que
sustenta a configuração da totalidade romanesca: é apenas um sistema de ideias
abstratas o que permite unir os diversos elementos heterogêneos da realidade 230.

A impossibilidade de realização dos ideais na contingência que caracteriza o


mundo moderno estilhaça a própria unidade individual; o indivíduo torna-se agora um
fim em si mesmo, é dentro de si que ele pode encontrar o essencial, não como algo

229
Ibidem, 78.
230
Ibidem, 81.

109
simplesmente oferecido, mas como algo a ser buscado. A existência do indivíduo
problemático é, então, a busca de si mesmo, e o romance afigura-se como a
peregrinação do indivíduo problemático rumo ao autoconhecimento. Isso não significa,
contudo, que encontrado o autoconhecimento o indivíduo esteja agora em completa
harmonia com seu mundo, nem que este se torne novamente pleno de sentido:

Depois da conquista desse autoconhecimento o ideal irradia-se como sentido


vital na imanência da vida, mas a discrepância entre ser e dever-ser não é
superada, e tampouco poderá sê-lo na esfera em que tal se desenrola, a esfera
vital do romance; só é possível alcançar um máximo de aproximação, uma
profunda e intensa iluminação do homem pelo sentido de sua vida. A
imanência do sentido exigida pela forma é realizada pela sua experiência de
que esse mero vislumbre do sentido é o máximo que essa vida tem para dar, a
única coisa digna do investimento de toda uma vida, a única coisa pela qual
essa luta vale a pena 231.

É nesse ponto que a crítica de Lukács à visão de mundo romântica vem à tona
com mais clareza. Enquanto Lukács sublinha que, de acordo com o mundo que busca
formalizar, o romance é fundamentalmente abstrato e fragmentário, Schlegel vislumbra
nessa forma a reconciliação entre subjetividade e objetividade e, mais do que isso, a
síntese de todos os contrários. Assim, no famoso fragmento 116 da Athenäum, ele
assevera:

A poesia romântica é uma poesia universal progressiva. Sua destinação não é


apenas reunificar todos os gêneros separados da poesia e pôr a poesia em
contato com a filosofia e retórica. Quer e também deve ora mesclar, ora
fundir poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia-de-arte e poesia-de-
natureza, tornar viva e sociável a poesia, e poéticas a vida e a sociedade,
poetizar o chiste, preencher e saturar as formas de arte com toda espécie de
sólida matéria para cultivo, e animar pelas pulsações do humor. Abrange tudo
que seja poético, desde o sistema supremo da arte, que por sua vez contém
em si muitos sistemas, até o suspiro, o beijo que a criança poetizante exala
em canção sem artifício. Pode se perder de tal maneira naquilo que expõe,
que se poderia crer que caracterizar indivíduos de toda espécie é um e tudo
para ela; e no entanto ainda não há uma forma tão feita para exprimir
completamente o espírito do autor: foi assim que muitos artistas, que também
só queriam escrever um romance, expuseram por acaso a si mesmos.
Somente ela pode se tornar, como a epopeia, um espelho de todo o mundo
circundante, uma imagem de época. E, no entanto, é também a que mais pode
oscilar, livre de todo o interesse real e ideal, no meio entre o exposto e aquele
que expõe, nas asas da reflexão poética, sempre de novo potenciando e
multiplicando essa reflexão, como numa série infinita de espelhos. É capaz
da formação mais alta e universal, não apenas de dentro para fora, mas
também de fora para dentro, uma vez que organiza todas as partes
semelhantemente a tudo aquilo que deve ser um todo em seus produtos, com
o que se lhe abre a perspectiva de um classicismo crescendo sem limites 232.

231
Ibidem, 82.
232
Schlegel, O dialeto dos fragmentos, 64. Fragmento 116 da Athenäum.

110
A tarefa da poesia romântica (e da arte romântica como um todo), portanto, seria
recuperar a unidade entre arte e filosofia, criação subjetiva e representação objetiva,
ideal e real, em suma, fundar a partir da arte uma nova mitologia que superasse a
realidade fragmentada da modernidade. O que os românticos almejavam era devolver
poesia à prosaica vida moderna, infundi-la com um novo sentido, torná-la novamente
plena de mistério e magia. Para os românticos a arte não poderia ser apenas uma esfera
dentre outras, mas deveria ter como meta a superação das barreiras que a separavam das
outras esferas da vida de modo a ser capaz de repoetizar o mundo.

A crítica de Lukács ao romantismo centra-se na percepção de que o sistema de


ideias que informa a configuração de cada romance é meramente regulativo, isto é, é
incapaz de penetrar a realidade e alterá-la; esta permanece descontínua e cindida e
jamais será reunificada em um todo harmonioso mediante um toque artístico. As formas
épicas estão intimamente ligadas à situação empírica de seu momento histórico e por
isso o romance não pode simplesmente criar um mundo de beleza e ordem a partir do
caos. O máximo que o romance pode oferecer é um vislumbre de sentido, um
aprendizado, mas ele não transforma mundo.

Analisada enquanto princípio formal do romance, a ironia é também abordada


por Lukács a partir de seu significado mais amplo como meio de configuração do
problema essencial de sua época, “a era da perfeita pecaminosidade”, como, enfim, via
de acesso à verdade de seu momento histórico.

Se de um lado a necessidade formal da reflexão consiste na “mais profunda


melancolia de todo o grande e autêntico romance 233”, pois implica na perda da
ingenuidade épica, de outro ela revela a maturidade própria a essa forma, pois o
romancista ultrapassa a crença romântica de que o mundo pode ser injetado de sentido e
recuperar sua harmonia a partir da criação poética. Tal reconhecimento é, sem dúvida,
doloroso, mas vem acompanhado da consciência acerca da verdadeira potência do
romance: se ele é incapaz de devolver qualquer espécie de magia ao mundo, se ele não é
capaz de transformar efetivamente a realidade, ele pode, no entanto, denunciar a
insuficiência desse mesmo mundo e, desse modo, impor-se como uma exigência contra
essa vida desprovida de sentido:

233
Lukács, A teoria do romance, 86.

111
O romance é a forma da virilidade madura: seu escritor perdeu a radiante
crença juvenil de toda a poesia, de que “destino e ânimo são nomes de um
mesmo conceito” (Novalis); e quanto mais dolorosa e profundamente nele se
enraíza a necessidade de opor essa essencialíssima profissão de fé de toda a
composição literária como exigência contra a vida, tanto mais dolorosa e
profundamente ele terá de compreender que se trata apenas de uma exigência,
não de uma realidade efetiva 234.

A ironia recai tanto sobre a ingenuidade dos heróis em sua busca infrutífera para
realizar seus ideais no mundo, quanto sobre a própria sabedoria do escritor, obrigado a
admitir o beco sem saída dessa batalha entre o homem e seu mundo e a vitória
incontornável da realidade. Segundo Lukács, a ironia própria ao romance reconhece, no
entanto, que tão inútil quanto lutar pela realização de seu ideal no mundo é abandonar
de antemão essa luta e procurar adaptar-se de antemão ao mundo tal como ele é,
ignorando a hostilidade entre o mundo e sua interioridade. Assim, a realidade é
configurada como vencedora no romance, mas isso significa no máximo certa
resignação e nunca a completa adaptação do indivíduo. Ao final de seu percurso
solitário, o herói do romance poderá reconhecer a impossibilidade de realizar seu ideal,
terá a consciência de que a distância entre ideal e real não pode ser superada, mas
sempre restará um fundo de insatisfação com o mundo.

Na epopeia, não havia propriamente a aventura nesse sentido romanesco, pois


sobre ela pairava uma atmosfera de segurança: é certo que os heróis enfrentavam
diversos perigos e dificuldades, mas, guiados pelos deuses, a possibilidade do fracasso
não se colocava verdadeiramente ou era apenas temporária. Já no mundo sem deus do
romance, não existem caminhos conhecidos, nem qualquer auxílio divino no caminhar.
“A psicologia do herói romanesco”, por isso, “é o campo de ação do demoníaco 235”. Por
esse termo, tomado de empréstimo de Goethe, Lukács quer designar uma força interior
misteriosa e inexplicável que impulsiona a ação dos indivíduos e os impele às aventuras
em busca da essência de si mesmo e do mundo, quando a tendência seria apegar-se a
essa vida corroída 236. Uma força que vem à tona com o surgimento do indivíduo
moderno que, não mais inscrito em um cosmo previamente ordenado no qual ação e
sentido estão integrados, passa a ter de descobrir e pôr para si mesmo seus próprios
objetivos, restando-lhe buscar apenas dentro de si mesmo a medida de sua vida.

234
Ibidem, 86–87.
235
Ibidem, 92.
236
“A vida biológica e sociológica está profundamente inclinada a apegar-se a sua própria imanência: os
homens desejam meramente viver, e as estruturas, manter-se intactas [...]” Ibidem.

112
Capítulo 4 – Tipologia do romance

Como tentamos mostrar, para Lukács as categorias constitutivas do romance


coincidem com a situação histórico-filosófica de seu mundo. Sendo assim, é possível
pensar que cada grande obra cristaliza, em sua estrutura e seus personagens, um
momento da experiência moderna. Em certo sentido, portanto, a tipologia do romance
delineada por Lukács na segunda parte de seu ensaio é também uma história do
romance; não uma história sociológica, política ou econômica, mas uma história
filosófica, que revela as diversas configurações assumidas pelo embate entre ideal e
realidade ao longo da sociedade burguesa. Como assinala Rainer Rochlitz:

Dos romances de cavalaria, onde pela primeira vez aparece uma busca
propriamente dita, de Cervantes, na qual essa busca se torna consciente, até
Flaubert e Tolstói e para além de Dostoiévski, os grandes romances traçam o
destino dos ideais sucessivos que, em nome de seus suportes sociológicos,
tentaram se impor no mundo ocidental. A história do romance se revela ser, em
Lukács, a verdadeira historiografia das aventuras do sentido em sua luta
heroica, a uma só vez desesperada e cômica, contra o “não-sentido” do mundo,
até a tomada de consciência da interdependência entre o ideal e seu fracasso
necessário 237.

No original em francês, Rochlitz se vale da palavra non-sense, pela qual ele


pretende designar tanto a ausência de sentido do mundo, quanto seu caráter irracional e
contrário aos desejos dos indivíduos. Essa duplicidade de significado, segundo nos
parece, torna-se mais evidente nas análises que Lukács tece sobre cada romance. Nelas
se revela que o romance é a história de um indivíduo em busca de um sentido que não
existe no mundo, mas é, cada vez mais, também a história de um indivíduo ameaçado e
tolhido por esse mundo, a história de uma promessa de vida que, neste mundo, nunca
chega a se cumprir.

O idealismo abstrato: Dom Quixote e Michael Kohlhaas

A incongruência entre interioridade e mundo exterior, que substitui a evidência


de sentido própria ao mundo antigo e é constitutiva da forma romance caracteriza-se no
romance do idealismo abstrato pela estreiteza da consciência do herói em relação à

237
Rainer Rochlitz, Le jeune Lukács (1911 - 1916): theorie de la forme et philosophie de l’histoire (Paris:
Payot, 1983), 295.

113
complexidade mundo. O modelo maior desse tipo de romance é para Lukács o Dom
Quixote de Cervantes, que corresponde ao momento de passagem daquela certeza
afiançada pela religiosidade na Idade Média para o demonismo subjetivo do mundo do
romance.

No romance do idealismo abstrato, o caráter demoníaco do herói problemático


manifesta-se com muita clareza nas diversas aventuras que ele se propõe a realizar, pois
sua mentalidade procura a qualquer custo realizar seu ideal no mundo, desconsiderando
a distância existente entre mundo real e mundo idealizado ou tomando-a como o
resultado de um “feitiço operado por maus demônios 238” e não de um equívoco na sua
compreensão. A obsessão pela leitura dos romances de cavalaria que fez um homem de
meia idade da região de La Mancha crer que era verdadeiramente um cavaleiro vivendo
em um mundo de aventuras, onde existem gigantes e dragões a serem enfrentados e
donzelas à perigo para serem salvas:

Enfim, acabado seu juízo, foi dar no mais estranho pensamento que jamais caiu
louco algum: pareceu-lhe conveniente e necessário, tanto para o
engrandecimento de sua honra como para o proveito de sua pátria, se fazer
cavaleiro andante e ir pelo mundo com suas armas e cavalo em busca de
aventuras e para se exercitar em tudo aquilo que havia lido que os cavaleiros
andantes se exercitavam, desfazendo todo tipo de afrontas e se pondo em
situações e perigos pelos quais, superando-os, ganhasse nome eterno e fama 239.

Essa crença inabalável no seu ideal tem como consequência a total falta de
problemática interna do herói, que é incapaz de refletir sobre seus próprios
pressupostos. Sua alma repousa em uma instância transcendente, inteiramente
aproblemática, o que veda qualquer progresso ou evolução da personagem no sentido de
uma maior compreensão do mundo a seu redor. Aliás, a maneira distorcida pela qual o
mundo é interpretado implica que as ações levadas a cabo pelo herói sejam dissonantes
da realidade e, ao mesmo tempo, as barreiras com as quais ele se depara no mundo
nunca sejam por ele compreendidas em sua verdadeira natureza.

Desse modo, a ação desse tipo de romance consiste menos em uma batalha entre
eu e mundo e mais em um “desencontro recíproco ou um embate igualmente grotesco,
condicionado por mútuos mal-entendidos 240” – pensemos em Dom Quixote diante dos
moinhos de vento que ele crê serem gigantes – o que por sua vez barra a possibilidade

238
Lukács, A teoria do romance, 100.
239
Miguel de Cervantes, Dom Quixote, vol. 1 (São Paulo: Penguin - Companhia das Letras, 2012), 64.
240
Lukács, A teoria do romance, 101.

114
da ação converter-se em uma experiência com aprendizado. Essa contradição grotesca
entre realidade efetiva e realidade imaginada impulsiona a ação do romance e revela que
a natureza descontínuo-heterogênea do romance atinge nesse tipo seu ponto culminante:
almas e atos, psicologia e ação, não possuem mais nada em comum.

A ausência de uma problemática interna, isto é, de qualquer tipo de


contemplação ou reflexão voltada para o interior faz da vida do indivíduo pura
atividade, uma série ininterrupta de aventuras escolhidas por ele próprio. O palco dessas
aventuras tem que ser um mundo ambíguo, que se preste objetivamente ao mal-
entendido, ou seja, uma mistura de “organicidade florescente, alheia a ideias e de
convenção petrificada das mesmas ideias que, em sua alma, desfrutam de uma vida
puramente transcendental 241” tal qual o mundo feudal à época de Cervantes 242. Por isso
a ação do herói é ao mesmo tempo sincera e equivocada. A cada aventura, entretanto, a
miragem da ideia realizada no mundo desvanece, revelando a loucura da visão de
mundo do herói, e a verdadeira essência do mundo existente vem à tona em todo seu
poder. Para Lukács, nesse ponto se revela com mais nitidez o caráter demoníaco,
subjetivo, da obsessão do herói do idealismo abstrato, mas ao mesmo tempo sua
semelhança e aproximação ao essencial. Apenas o enclausuramento maníaco em si
mesmo explica o fato dessas derrotas não abalarem em absoluto as concepções do herói,
pois elas repousam, fechadas e perfeitas em si mesmas, em uma esfera protegida não
apenas da realidade, como do próprio raciocínio do herói, que permanece afiado,
conferindo a ele uma aparência de inteligência e racionalidade em todas as outras
questões, a despeito de sua obsessão.

Isso pode ser percebido no episódio em que, depois de Dom Quixote ter se
machucado enfrentando os “gigantes”, Sancho Pança reitera que eles não passavam de
moinhos de vento, ao que o cavaleiro andante prontamente racionaliza o ocorrido e
explica que tudo não passava de um feitiço, que os gigantes foram transformados em
moinhos de vento pelo mesmo mago que havia roubado seus romances de cavalaria e
que não queria vê-lo alcançar a glória. Como não pode haver um embate de fato entre

241
Ibidem, 102.
242
A respeito do romance do idealismo abstrato, Rainer Rochlitz afirma: “Certas constelações históricas
presidem o nascimento desse tipo de romance: ele supõe um encontro entre o antigo e o novo; entre os
revolucionários burgueses e a Europa da Restauração em Stendhal, ou entre os cidadãos do Estado
constitucional e a administração total em Kafka”. Rochlitz, Le jeune Lukács (1911 - 1916): theorie de la
forme et philosophie de l’histoire, 298.

115
interioridade e mundo, a rigidez do ideal do herói vai ganhando contornos de loucura e
monomania, tanto mais quanto mais firmemente ele as tome por verdade.

No que diz respeito à estrutura formal do romance do idealismo abstrato, a


rigidez da psicologia do herói e o caráter da ação, atomizado em aventuras isoladas,
condicionam-se mutuamente e revelam o perigo desse tipo de romance segundo Lukács:
a má infinitude e a abstração. No caso da obra de Cervantes é bastante evidente que ela
não é estruturada de maneira rigorosa, mas tem um caráter episódico, na medida em que
se organiza como uma sucessão de encontros fortuitos e sem conexão mútua, a não ser
por aquelas estabelecidas pela loucura do protagonista. Lukács nota que Cervantes
soube superar esse perigo não apenas em virtude de sua sensibilidade artística, que
conseguiu mostrar como a loucura e a sabedoria estavam profundamente entrelaçadas
na figura de Dom Quixote, mas principalmente porque esta possibilidade era oferecida
pelo momento histórico em que o romance foi criado.

A vida feudal com seus emblemas fundamentais, tais como os guerreiros


senhoriais, o cavaleiro com sua armadura, o escudeiro fiel, a dama desejada, não eram
mais os modos de vida dominantes, mas também não eram uma nostalgia romântica
puramente interior (como seriam posteriormente, em Novalis por exemplo). O sistema
de valores do cristianismo apenas começava a deixar o mundo, mas já dava lugar a uma
experiência de opacidade. Dom Quixote é para Lukács “o primeiro grande romance da
literatura mundial 243”, pois está situado

no início da época em que o deus do cristianismo começa a deixar o mundo;


em que o homem torna-se solitário e é capaz de encontrar o sentido e a
substância apenas em sua alma, nunca aclimatada em pátria alguma; em que o
mundo, liberto de suas amarras paradoxais no além presente, é abandonado a
sua falta de sentido imanente; em que o poder do que subsiste – reforçado por
laços utópicos, agora degradados à mera existência – assume proporções
inauditas e move uma guerra encarniçada e aparentemente sem propósito
contra as forças insurgentes, ainda inapreensíveis, incapazes de se
autodesvelarem e de penetrarem o mundo. Cervantes vive no período do
último, grande e desesperado misticismo, da tentativa fanática de renovar a
religião agonizante a partir de si mesma; no período da nova visão de mundo
emergente em formas místicas; no derradeiro período das aspirações
verdadeiramente vividas, mas já desorientadas e ocultas, tateantes e
tentadoras 244.

E por isso não é casual que Dom Quixote seja uma paródia aos romances de
cavalaria. Se Dante pôde configurar uma totalidade a partir de um sentido ofertado pelo
243
Lukács, A teoria do romance, 106.
244
Ibidem, 106–7.

116
cristianismo, mantendo-se nos limites da epopeia, essa imanência de sentido só pode ser
encontrada na vida além da morte. Já o romance de cavalaria da Idade Média restringe-
se à vida terrena e por isso sua totalidade é apenas sentimental, buscada, ressentindo-se
da imanência existente de um sentido 245. Há, no entanto, uma atmosfera onírica e
encantada nesses romances, uma aparência aproblemática que se deve à presença difusa
desse sentido transcendente que, embora não seja configurado e tornado imanente,
continua a derramar sua sombra sobre o mundo, preenchendo as fissuras da vida terrena.
Ao longo da história, contudo, essa relação com a transcendência foi se desfazendo e o
mistério e a fantasia do romance de cavalaria da época de Cervantes converte-se em
algo vazio e superficial, sem um enraizamento em sua situação histórica, mera literatura
de entretenimento, nos termos de Lukács.

Em um mundo crescentemente dominado pelos interesses prosaicos, o código


moral da cavalaria aparece como algo absurdo. É a investida polêmica e paródica de
Cervantes contra esse tipo de romance que pôde revelar a verdadeira situação da época
em que os valores da cavalaria deixam de ser uma objetividade e passam a existir
somente como ideal subjetivo de seu herói. O mérito de Cervantes é ter revelado a
problemática essencial de sua época: “que o mais puro heroísmo tem de tornar-se
grotesco e que a fé mais arraigada tem de tornar-se loucura quando os caminhos para
uma pátria transcendental tornam-se intransitáveis; que a mais autêntica e heroica
evidência subjetiva não corresponde obrigatoriamente à realidade 246”. Dom Quixote
expõe, assim, “a primeira grande batalha da interioridade contra a infâmia prosaica da
vida exterior 247” e seu valor reside no fato de que, pela primeira e última vez, o herói é
vencido, porém não vergado em seus ideais, que ele consegue inclusive derramar na
própria realidade vitoriosa, mesmo que com um tom autoirônico.

Nesse sentido, a interpretação de Lukács segue a trilha interpretativa inaugurada


pelos românticos, que questionavam a interpretação corrente do romance de
Cervantes 248. Enquanto a leitura iluminista apreendia a loucura do herói de maneira
unilateral, considerando-a um mero engano a respeito da realidade, o que produzia o
efeito cômico do livro, Schlegel, ao contrário, enfatiza o momento de sabedoria contido

245
Ibidem, 104.
246
Ibidem, 107.
247
Ibidem.
248
Para uma visada geral da interpretação de Dom Quixote construída por Schlegel cf. Schmidt, “Forms
of modernity”, 2011.

117
na loucura de Dom Quixote, valorizando a imaginação e a fantasia do personagem como
instâncias que revelam, ironicamente, uma verdade sobre o mundo.

É pela chave de leitura aberta pelo romantismo que se desenham tópicos que
pautam a recepção do romance de Cervantes até os dias atuais: representaria Dom
Quixote uma loucura risível e sem sentido ou um idealismo heroico que, mesmo sem
conseguir realizar-se plenamente, deve ser cultivado? Seria o romance de Cervantes
apenas uma sátira dos romances de cavalaria ou um livro que em sua espirituosidade e
ironia, elementos destacados pela interpretação do romantismo alemão, configura um
questionamento profundo da realidade?

Se Lukács enxerga nesse romance uma mescla perfeita de poesia e ironia,


sublime e grotesco, divindade e monomania, ele sublinha, no entanto, que tal mistura só
foi possível em virtude da época de surgimento da obra, na qual ainda havia um
resquício da mentalidade supersticiosa da idade média, de modo que a loucura de Dom
Quixote não era um mero capricho, mas sustentava-se em uma condição objetiva de seu
mundo. Com o desenvolvimento da sociedade burguesa, contudo, à medida que o
mundo torna-se mais prosaico, surge um problema para a continuidade do idealismo
abstrato, pois a atitude de seus heróis tende a se tornar cada vez menos assentada em um
valor próprio de seu momento histórico, convertendo-se em uma posição arbitrária,
caprichosa e individualista.

Em virtude da radical dissociação entre interioridade e mundo, a configuração de


uma totalidade extensiva da vida ficou vedada a esse tipo de romance, e uma das
soluções para esse problema foi se aproximar da forma dramática para conseguir
compor uma unidade. O exemplo citado por Lukács é o da novela Michael Kohlhaas de
Heinrich Von Kleist 249. Assim como Dom Quixote, o herói de Kleist caracteriza-se pelo
impulso da ação, pelo esforço de formar o mundo segundo seus ideais. No entanto,
nessa novela de 1810 a ambiguidade que envolve o objetivo do herói é muito mais
severa do que em Dom Quixote. Diante de uma injustiça cometida contra seu
patrimônio, o herói busca, primeiro por vias legais, depois por meios violentos, o
reconhecimento do dolo e o ressarcimento de seus prejuízos. Apesar de ter sua origem
em um problema de ordem privada, a princípio o objetivo de Kohlhaas guarda ainda

249
Vale lembrar que a novela, em virtude de sua concentração em um número limitado de personagens e
conflitos aproxima-se do drama na poética dos gêneros erigida por Lukács na primeira parte da Teoria do
romance.

118
alguma nobreza, qual seja, o reestabelecimento da ordem e da justiça, mas aos poucos
seu fundamento egoísta vai se tornando cada vez mais pronunciado. Ou melhor, aos
poucos vemos como a sede de justiça do protagonista converte-se em injustiça, quanto
mais o herói empenha-se em sua realização. Assim é que, por dois cavalos injustamente
retidos e mal-tratados, Michael Kohlhaas mata vários inocentes, perde sua mulher
Lisbeth e seu fiel escudeiro Herse, separa-se dos filhos e ao final da novela morre, mas
nunca se questiona sobre seus atos e sobre a maneira como acaba instrumentalizando
todos à sua volta para realizar seu desejo íntimo de justiça 250.

Assim, se para Lukács Dom Quixote expunha o problema de um mundo em que


o heroísmo se convertia em loucura, a novela de Kleist expõe de modo cristalino o
problema de uma sociedade na qual a plena adesão a valores em si mesmos nobres,
como a justiça, transveste-se em seu oposto e recai na barbárie. Elucida-se desse modo a
descrição de Michael Kohlhaas feita pelo narrador, logo início do livro, como um
homem que “foi ao mesmo tempo uma das pessoas mais íntegras e mais assustadoras de
sua época 251”.

O romantismo da desilusão: Educação sentimental

O segundo tipo de romance apresentado por Lukács é o do romantismo da


desilusão, no qual prevalece um novo tipo de inadequação entre interioridade e mundo,
predominante no século XIX: aqui “a alma é mais ampla e mais vasta do que os
destinos que a vida lhe é capaz de oferecer 252”, o herói deseja mais do que o mundo é
capaz de lhe oferecer. A diferença fundamental com relação ao idealismo abstrato é que
no romantismo da desilusão a interioridade não busca realizar-se efetivamente por meio
da ação e do embate com o mundo exterior, mas converte-se em uma realidade fechada
em si mesma, repleta de conteúdo, que faz frente à realidade exterior. Tal estrutura
psíquica significa que o descompasso entre o indivíduo e o mundo é ainda mais
profundo, mas ao contrário do idealismo abstrato o herói do romantismo da desilusão

250
Uma interessante análise das contradições apresentadas na novela de Kleist pode ser encontrada em
Rodrigo Campos de Paiva Castro, “‘Michael Kohlhaas’ - a vitória da derrota: uma interpretação da novela
‘Michael Kohlhaas’, de Heinrich von Kleist” (Universidade de São Paulo, 2006),
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8144/tde-09112007-141030/.
251
Heinrich von Kleist, Michael Kohlhaas (São Paulo: Editora Grua, 2014), 11.
252
Lukács, A teoria do romance, 117.

119
tende a adotar uma postura passiva frente à realidade, preferindo refugiar-se no mundo
perfeito sua própria interioridade do que enfrentar a realidade em busca de sua
transformação, já que tem consciência da distância entre valor e mundo.

O romantismo da desilusão é, assim, o tipo que condensa de maneira mais clara


a estrutura formal do romance apresentada na primeira parte do ensaio de Lukács. Nesse
caso, a distância entre vida empírica e essência, fundamento da forma romanesca, torna-
se o tema central e explícito da configuração literária. Justamente por isso o perigo
desse tipo de romance é a dissolução completa do simbolismo épico e da configuração
sensível dos problemas em uma série de estados de ânimo e de reflexão, limitando o
romance à exposição da psicologia dos heróis. Se ambos, estado de ânimo e reflexão,
são elementos estruturais constitutivos da forma romance, na medida em que revelam o
sistema regulativo de ideias que fundamenta a totalidade romanesca, no romantismo da
desilusão eles convertem-se em fins em si mesmo e seu caráter não literário vem à tona
de maneira evidente. A perda do simbolismo épico verifica-se, ademais, no fato de que
o mundo configurado por esse tipo de romance é absolutamente convencional e
desprovido de qualquer sentido para o indivíduo; a realidade já está ordenada de
maneira rígida, sendo por isso a realização mais perfeita do conceito de segunda
natureza. Isso significa que todas as mediações sociais, como a profissão, o casamento,
a família e a classe social não tem importância alguma para o destino do indivíduo e de
suas relações e não são nem mesmo o palco das ações e das experiências vividas pelo
herói:

Ora, aqui cada uma dessas relações está desde o início interrompida. Isso
porque a elevação da interioridade a um mundo totalmente independente não é
um mero fato psicológico, mas um juízo de valor decisivo sobre a realidade:
essa autossuficiência da subjetividade é o seu mais desesperado gesto de
defesa, a renúncia de toda luta por sua realização no mundo exterior – uma luta
encarada já a priori como inútil e somente como humilhação 253.

O perigo da dissolução do caráter épico nesse tipo de romance tem como


fundamento um problema ético: o problema da utopia. Por um lado, a aspiração utópica
do indivíduo só será verdadeira se for absolutamente incapaz de ser satisfeita no mundo
presente, ou em alguma outra realidade imaginável no presente, seja no passado, seja no
mito, pois do contrário, fica evidente que o descontentamento com o presente era
superficial e a utopia mero capricho. Por outro lado, a fuga do presente mediante a

253
Ibidem, 119.

120
criação puramente artística de um novo mundo seria uma falsa solução, na medida em
que desconsidera a situação de mundo corrente. Para uma obra literária épica, portanto,
a questão é saber em que medida essa correção ética do mundo pode converter-se em
ações épicas. A exigência de Lukács, portanto, é que a utopia tenha um fundamento
objetivo e uma legitimidade histórica cuja prova seria a configuração de uma totalidade
épica, exigência que já fora anunciada em outros momentos do ensaio, ao longo do qual
Lukács enfatiza o caráter empírico do romance, avesso ao puro dever-ser, em virtude de
sua filiação ao gênero épico.

O problema estético que envolve o romantismo da desilusão, qual seja, a


possibilidade de transformar estados de ânimo e reflexão, subjetivismo e psicologia em
autênticos meios de expressão épicos, gira em torno desse problema ético, de encontrar
um modo de ação possível para a interioridade passiva a autossuficiente do romantismo:

O tipo humano dessa estrutura anímica é em sua essência mais contemplativo


que ativo: sua configuração épica, portanto, depara-se com o problema de
como esse recolhimento-em-si ou essa ação hesitante e rapsódica é capaz de
converter-se em atos; a sua tarefa é descobrir, pela configuração, o ponto de
contato da existência, do modo de ser necessários desse tipo, e do seu
necessário fracasso 254.

À passividade estrutural desse tipo de herói, que o distingue do herói épico,


portanto, soma-se outra dificuldade para a configuração: a predeterminação de seu
fracasso, que favorece uma postura lírico-subjetiva diante dos acontecimentos, em
detrimento de uma receptividade épico-normativa. Segundo Lukács,

é o estado de ânimo do romantismo da desilusão que porta e alimenta esse


lirismo. Uma sofreguidão excessiva e exorbitante pelo dever-ser em oposição à
vida e uma percepção desesperada da inutilidade dessa aspiração; uma utopia
que, desde o início, sofre de consciência pesada e tem certeza da derrota 255.

Enquanto no romance do idealismo abstrato o herói ignorava a distância entre


seu ideal e a realidade efetiva, no romantismo da desilusão esse caráter problemático da
utopia torna-se inteiramente consciente ao protagonista e a consciência do fracasso
necessário de suas aspirações incapacita o herói a traduzi-las em atos. Paralelamente a
isso, o indivíduo ganha no momento do romantismo da desilusão uma importância
inaudita. Se no período do idealismo abstrato a relevância do indivíduo advinha do fato
dele ser portador de mundos transcendentes, no romantismo desilusão ele é dotado de

254
Ibidem, 122.
255
Ibidem.

121
uma importância intrínseca: os valores que defende não se justificam pela relevância
geral de seu conteúdo como denúncia do prosaísmo do mundo, mas pela mera validade
a partir da vivência subjetiva, por seu significado para o indivíduo.

Essa elevação desmedida do indivíduo, contudo, tem como preço e pressuposto,


diz Lukács, “a renúncia a todo papel na configuração do mundo exterior 256”. A
conversão da postura ativa do herói em refúgio na interioridade expressa-se também na
estrutura narrativa desse tipo de romance, na qual a representação do mundo exterior
cede espaço para o mergulho na subjetividade. A composição irônica atinge importância
máxima nesse tipo de romance, pois ele não pode afirmar a superioridade do mundo,
nem valorizar descomedidamente a interioridade romântica, restando apenas o caminho
da negação simultânea de ambos para a configuração. O problema é que assim surge
novamente o perigo desse tipo de romance na perspectiva de Lukács, a saber, a
dissolução da forma em pura negatividade.

Pois para Lukács uma forma só pode existir se for dotada em alguma medida de
positividade, isto é, de um sentido, mesmo que ele seja a afirmação da ausência de
sentido. Mas, para o romantismo da desilusão, a consciência da indiferença do mundo
perante as aspirações individuais torna a composição fragmentada, composta por uma
sucessão de imagens e aspectos parciais que não se coadunam em uma configuração da
totalidade da vida. O caráter problemático do romance mostra-se aqui com toda clareza:
a situação do mundo e o tipo humano que correspondem de maneira mais perfeita ao
romance impõem uma tarefa quase insolúvel para a sua configuração.

É aqui que Lukács explicita a relação essencial do romance com o tempo, uma
traço que o distingue das outras formas literárias, seja o drama, seja a epopeia. Apenas
no romance, forma do desterro transcendental, momento em que sentido e vida, e
essencial e temporal se distinguem, é que o decurso do tempo como duração torna-se
constitutivo. Nos romances, o tempo funciona como um princípio destruidor, já que sua
passagem inexorável é responsável pela progressiva decomposição dos ideais do herói
na busca infrutífera, mas necessária, por realizá-los. Mas Lukács chama a atenção para o
fato de que nos romances de desilusão o tempo possui também uma dimensão positiva e
épica: é a incorporação da passagem do tempo que permite ao romance unificar os

256
Ibidem, 123.

122
fragmentos da experiência do herói e unificar a dissonância entre herói e mundo em
uma narrativa. Como assinalou Jameson a respeito desse duplo caráter do tempo:

Para ambos [o herói que rememora e o romancista] o tempo é, em sua natureza,


profundamente ambíguo, uma força ao mesmo tempo doadora de vida e
destruidora de vida. Na vida do herói, ele é a fonte de toda dor, toda perda, o
exato elemento no qual ele se depara com a futilidade da existência humana.
No entanto, o tempo é também o tecido da própria vida, para o leitor e para o
herói ele é a própria substância da vida; ele é, portanto, ao mesmo tempo
duração e fluxo, e estabelece a densidade da narrativa ao mesmo momento em
que o último testemunha a trágica passagem e a efemeridade de todas as
coisas 257.

Niels Lhyne de Jacobsen e Oblomov de Goncharov são mencionados por Lukács


como grandes exemplos do romantismo da desilusão, mas é A educação sentimental que
ele considera o mais bem acabado romance dessa linhagem. Essa posição de destaque
do romance de Flaubert se deve principalmente ao fato do romance dele incorporar a
experiência do tempo também em sua dimensão positiva e, assim, conseguir superar o
perigo da dissolução da forma épica em pura negatividade. O caráter fragmentário da
série de acontecimentos narrados e dos estados de ânimo de Fréderic Moreau é
reforçado pela narração distanciada e impassível que não pretende superar essa
característica artisticamente. O único contrapeso possível é o recurso ao tempo, sua
reconstituição pela narrativa, que consegue unificar esses elementos heterogêneos,
apresentando personagens, eventos e relações como algo vivo e dinâmico, isto é, em seu
desenrolar histórico:

A totalidade da vida que a todos sustenta torna-se desse modo algo vivo e
dinâmico: o grande lapso de tempo abarcado por esse romance, que divide os
homens em gerações e integra-lhes os atos num contexto histórico-social, não
é um conceito abstrato ou uma unidade mentalmente pós-construída, como o
do todo da Comédia humana, mas algo efetivamente existente, um continuum
concreto e orgânico 258.

O romance de Flaubert mobiliza uma nova consciência do tempo própria da


modernidade; não o tempo como uma medida objetiva exterior, mas como algo
vivenciado subjetivamente, que permite converter em ação a tendência à passividade
própria ao herói do romantismo desiludido. Ganham destaque, aqui, duas maneiras de
reflexão sobre a passagem do tempo: a recordação da experiência passada, a memória, e
a perspectiva do futuro, a esperança, que propiciam ao herói organizar e conferir algum

257
Frederic Jameson, “The case for Georg Lukács”, in Marxism and form: twentieth-century dialectical
theories of literature (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1974), 132–133.
258
Lukács, A teoria do romance, 132–133.

123
sentido a sua experiência. Todos os eventos, as derrotas e as desilusões de uma vida, em
si mesmos esvaziados de sentido, quando irradiados pela esperança e pela recordação –
procedimento ainda incipiente em Flaubert, mas que viria a ser radicalizado por Proust e
pelo romance modernista de maneira geral – tornam-se, em sua insignificância,
significativos:

E a esperança não é um artifício abstrato e isolado da vida, profanado e


enxovalhado por sua derrota diante da vida; ela própria é parte da vida que
ela, esperança, aconchegando-se a ela e ornando-a, busca vencer, mas da qual
terá sempre de resvalar. E na recordação essa luta perpétua transforma-se
num caminho interessante e incompreensível, mas que está preso com laços
indissolúveis ao instante vivo e presente. E esse instante é tão rico da duração
que flui e reflui, e de cujo estancamento ele oferece um momento de
contemplação consciente, que essa riqueza comunica-se também ao passado e
ao perdido, e chega mesmo a adornar com valor de vivência o que então
passou despercebido. Em curioso e melancólico paradoxo, o fracasso é
portanto o momento do valor; o pensamento e a vivência daquilo que a vida
recusou é a fonte da qual parece jorrar a plenitude da vida. Configura-se a
absoluta ausência de toda a satisfação do sentido, mas a configuração alça-se
à realização rica e integrada de uma verdadeira totalidade de vida 259.

O romance de Flaubert não é apenas a obra mais bem acabada do romantismo da


desilusão, como também a realização mais pura da forma romance, já que a
temporalidade da obra a afasta radicalmente de qualquer transcendência rumo à epopeia.
Somente no romance o tempo tem essa função criativa: a recordação afeta seu objeto e o
transforma. O caráter épico da memória reside em sua “afirmação viva do processo da
vida 260”, isto é, a dualidade entre interioridade e mundo exterior é superada para o
sujeito quando ele vislumbra retrospectivamente sua vida como um processo. Isso não
significa que seja devolvido o sentido à vida, que o ideal tenha se realizado no mundo,
já que isso é impossível em um mundo “abandonado por deus”, mas que a dualidade
entre eu e mundo seja superada pela experiência iluminada pela recordação.

O capítulo final da Educação sentimental é o momento privilegiado do


procedimento da rememoração no romance de Flaubert. Nessa cena, Frédéric e seu
amigo Deslauriers se reencontram depois de alguns anos separados, atualizam-se sobre
os amigos em comum e travam uma conversa nostálgica sobre o passado, já que nem a
um nem a outro o presente se apresenta de maneira tão auspiciosa quanto gostariam. O
balanço geral é que ambos tinham falhado: tanto Fréderic, que sonhava com o amor,
quanto Deslauriers, que sonhava com o poder. No primeiro caso, a falha “talvez fosse

259
Ibidem, 133.
260
Ibidem, 134.

124
de uma linha de conduta”, como aventa o próprio Frédéric, sem se dar conta das
verdadeiras razões pelas quais seu desejo oscilante se dissipa sempre que ele consegue
conquistar a mulher desejada; sem perceber que pela inatingível Madame Arnoux, ele
sacrificou todas as possibilidades de um relacionamento satisfatório ou da realização de
suas ambições profissionais. Deslauriers, por sua vez, julga que pecou pelo apego
excessivo a uma linha de conduta lógica, tendo desconsiderado o papel do acaso. Ao
fim, os dois amigos acabam culpando as circunstâncias e a época em que tinham
nascido pelo fracasso em conquistar tudo o que sonhavam. A conversa termina com os
dois relembrando um evento quase insignificante da adolescência, quando juntos
empreenderam uma visita a um prostíbulo, mas Frédéric, confuso e assustado, sai
correndo do lugar, não restando a Deslauriers outra alternativa senão acompanhar o
amigo que tinha o dinheiro: “Afinal, foi o que tivemos de melhor”, conclui Frédéric.
Sua aventura mais memorável é também uma frustração.

Contrariamente ao que sugere o título, no romance de Flaubert não ocorre


propriamente uma aprendizagem, um desenvolvimento educativo que promova
transformações no personagem. Pode-se mesmo dizer que a história narrada no livro é a
busca de Frederic para tornar-se sujeito, ser capaz de agir. Mas a passagem do tempo
arrasta consigo suas aspirações, sejam elas amorosas ou financeiras, e só permite uma
educação peculiar, às avessas, que ocorre pela desilusão e pelo fracasso. E a recordação
revela a necessidade da frustração, a impotência dos ideais em um mundo que, cada vez
mais, se fecha aos verdadeiros anseios dos homens como uma muralha intransponível.
“As últimas palavras desse romance”, observa Benjamin, “mostram como o sentido do
período burguês no início de seu declínio se depositou como um sedimento no copo da
vida 261”.

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como tentativa de síntese

No que diz respeito à Teoria do romance, Os anos de aprendizado de Wilhelm


Meister romance de Goethe ocupa um lugar central na tipologia da forma romanesca

261
Walter Benjamin, « O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov », in Magia e técnica,
arte e política - ensaios sobre literatura e história da cultura, São Paulo, Editora Brasiliense, 1994,
p. 197‑221, p. 212.

125
esboçada por Lukács. Se na sua concepção a forma romance tem como seu fundamento
constitutivo a cisão entre indivíduo e mundo exterior, isto é, a dualidade entre a alma e
suas obras, entre a interioridade e a aventura, para usar os termos do autor, o Meister
afigura-se como um tipo intermediário entre o romance do idealismo abstrato e o do
romantismo da desilusão, tanto em termos histórico-filosóficos quanto em termos
estéticos. Seu tema é “a reconciliação do indivíduo problemático, guiado pelo ideal
vivenciado, com a realidade social concreta 262” e, nesse sentido, o livro apresenta uma
tentativa de síntese entre ideal utópico e realidade.

A importância do livro de Goethe para o debate estético alemão e, em especial,


para a teoria do romance do romantismo torna necessária uma abordagem mais detida
desse livro nesta dissertação, uma vez que a recepção do volume pelos românticos
evidencia diversos pontos de contato e também de tensão se comparada à leitura de
Lukács. Assim, como em outros momentos deste trabalho, parece pertinente recorrer às
reflexões de Schlegel e, em menor medida, de Novalis, uma vez que elas oferecem
alguma luz acerca das posições de Lukács.

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe pode ser lido como uma
espécie de súmula literária das questões postas pela ascensão da sociedade burguesa na
Alemanha do século XVIII e enfrentadas, de uma maneira ou de outra, por todos os
autores relevantes do pensamento alemão à época. Por essa razão não surpreende que o
livro tenha sido objeto de discussão acalorada quando de sua publicação, entre os anos
de 1795 e 1796. A importância do livro pode ser aferida pelo volume de reações e pelo
quilate de artistas e filósofos que se puseram a refletir sobre ele: Schiller, Friedrich
Schlegel, Novalis, Schelling e Hegel, entre outros, não puderam passar ao largo do livro
que inaugurou o que viria a ser o gênero do Bildungsroman 263 e, mais do que isso,
representa a primeira manifestação significativa do romance social burguês em solo
alemão.

262
Lukács, A teoria do romance, 138.
263
O termo Bildungsroman foi cunhado por Karl Morgenstern em 1810 para designar o tipo de romance
que “representa a formação do protagonista em seu início e trajetória até alcançar um determinado grau
de perfectibilidade” e cuja maior representação era também para ele Os anos de aprendizado de Wilhelm
Meister de Goethe. Morgenstern apud Wilma Patricia Marzari Dinardo Maas, O cânone mínimo: o
Bildungsroman na história da literatura (São Paulo: Editora UNESP, 2000), 19. A definição de
Morgenstern é ampliada e divulgada por Dilthey em A vivência e a poesia e a partir daí a noção de
Bildung passa a se associar estreitamente à identidade nacional alemã.

126
A publicação da obra significou não apenas um momento alto da produção
literária de Goethe, mas também foi um marco incontornável para o romance enquanto
gênero literário, que a partir de então alcançava novo patamar dentro da história
literária, pela qual até então era considerado uma forma menor e vulgar. Não poucos
foram os autores que buscaram compreender suas inovações formais e seu significado
para a época moderna. Assim, o livro foi também foco de atenção especial para os
autores que pensavam o romance enquanto gênero representativo da modernidade.

Vale lembrar que o romance era um gênero desvalorizado à época, considerado


uma forma não poética por seus detratores. Do ponto de vista da teoria da literatura
classicista, uma obra em prosa como o romance não poderia pertencer ao universo da
poesia. No pensamento romântico, entretanto, o gênero é alçado a um novo estatuto:
trata-se sim de uma forma poética, o que significa dizer que também a prosa pode ser
poética. Isso fica claro na primeira resenha de Schlegel ao romance de Goethe, “Sobre o
Meister de Goethe”, na qual ele enfatiza o caráter poético da obra.

O reconhecimento da importância do livro de Goethe pelos românticos é


inegável e bastaria citar o famoso fragmento de Schlegel em que ele enquadra o Meister
como uma das três tendências fundamentais de sua época para aquilatar sua centralidade
dentro da teoria romântica. Em diversos fragmentos, bem como na resenha que faz ao
livro, é possível perceber que para Schlegel o ideal da poesia romântica como síntese
entre universalidade e individualidade, conhecimento e imaginação, objetividade e
subjetividade, realismo e idealismo, mimese e autorreflexão em suma, entre prosa e
poesia, encontraria sua primeira manifestação – de modo algum perfeita, mas ainda
como uma tendência – no romance de Goethe.

Sobre o Meister de Goethe, recensão publicada em 1798, enfatiza a liberdade


absoluta frente às regras que caracteriza essa obra de Goethe, sua maleabilidade
incomparável, que a torna capaz de integrar os elementos mais heterogêneos em si,
dissolvendo os limites dos gêneros literários. Assim, o romance de Goethe, muito mais
do que os outros romances de sua época, que na visão de Schlegel eram dominados por
tendências iluministas e prosaicas, representaria um elemento progressivo na medida em
que une a prosa mais cristalina à poesia mais elevada – pensemos nos belos poemas e
canções cantadas pelo harpista inseridas ao longo do livro –; conjuga representação
detalhada de seu mundo com a autorreflexão mais profunda sobre a poesia – como no

127
sétimo capítulo do livro quinto, onde há uma grande passagem dedicada à comparação
entre o drama e o romance -; sintetiza a narração de uma história e a profunda reflexão
filosófica sobre o que é narrado, enfim, aponta para a abolição progressiva entre a vida e
a poesia, um imperativo que orientava a revolução estética almejada pelos românticos.

No entanto, esse reconhecimento das qualidades poéticas do Meister de Goethe


vem acompanhado de algumas críticas ao livro. Se a resenha traz uma análise complexa
e profunda acerca do romance goethiano e um elogio especial de sua estrutura, é
possível perceber que seu tom por vezes oscila entre a estima e a censura, esta última
dirigida principalmente ao conteúdo representado na obra.

Uma das linhas argumentativas que conduzem a resenha de Schlegel é o


reconhecimento de que o livro consegue tratar poeticamente de assuntos banais:

Tal como a formação de um espírito rico em aspirações que se cumpre


discretamente e tal como o mundo que lentamente se eleva de suas
profundezas, a história límpida começa sem pretensão e sem alarde. Os
primeiros personagens que se adiantam não são nem magníficos, nem
excepcionais: uma velha esperta, que em todas as circunstâncias pesa as
vantagens e se faz porta-voz do pretendente mais rico; uma jovem que, nem
bem se livra das tramas de sua perigosa conselheira e já se entrega
apaixonadamente ao amante; um rapaz puro que oferece a bela chama de seu
primeiro amor a uma atriz. E, no entanto, tudo ganha vida diante de nossos
olhos, nos seduz e nos fala 264.

A discussão entre Wilhelm e Werner a respeito do valor da arte e do comércio


logo no início do livro é uma verdadeira poesia, diz Schlegel, a qual nem todos se dão
conta apenas por que lhe falta a métrica. É uma prosa maravilhosa que, no entanto, é
poética e Goethe consegue poetizar mesmo aquelas atividades e âmbitos que parecem
mais alheios à poesia.

Schlegel salienta também a presença da ironia em face do que é narrado como


um traço fundamental que paira sobre toda a obra. Ela aparece, por exemplo, ao longo
do terceiro livro, no qual são contrastados o charme da atividade teatral e a vida real
prosaica dos atores, a nobreza e os atores, a esperança e o sucesso, a imaginação e a
realidade 265. Essa ironia se manifesta também estilisticamente no ar de grandeza de
frases que riem de si mesmo, na aparente negligência, nas tautologias, no elemento
prosaico que surge em meio à atmosfera poética do sujeito representado ou posto em

264
Friedrich von Schlegel, Sur le Meister de Goethe (Paris: Hoëbeke, 1999), 31.
265
Ibidem, 51.

128
cena de maneira cômica, todos esses traços dependendo de uma só palavra que os
acentue 266.

Quanto ao conteúdo do romance, Schlegel nota que nos últimos dois livros do
romance ocorre uma ampliação da problemática do romance e a obra “deixa para trás a
adolescência para se tornar adulta e madura”. Aí se torna claro que sua proposta não é
abarcar tão somente o mundo da arte e do teatro, mas também “o espetáculo grandioso
da própria humanidade e a arte de todas as artes, a saber, a arte de viver 267”. Schlegel se
refere ao movimento de conclusão do romance, no qual Meister abandona o teatro como
meio para sua formação e, sob a influência da Sociedade da Torre, desenvolve uma
nova concepção de formação voltada para a vida prática na sociedade. No entanto,
Schlegel aponta para certa impossibilidade de Meister se formar plenamente: esses anos
de aprendizado não puderam fazer dele nem um artista, nem um homem de ação.

Também no texto “Ensaio sobre as diferenças de estilo entre as obras juvenis e


tardias de Goethe”, Schlegel considera que a obra de Goethe gira em torno de dois
centros: a arte e a vida. A primeira delas tem destaque no primeiro momento do livro,
no qual o teatro e as discussões sobre a arte são o móbil do romance, aproximando-o
nesse sentido do romance de artista, o Kunstlerroman, um subgênero do romance de
formação, que expõe o percurso de formação de um jovem artista em conflito com os
valores da sociedade de seu tempo. Num segundo momento, entretanto, descortina-se
outro aspecto do romance, no qual este se mostra mais preocupado em explorar “a
doutrina do cultivo da arte de viver 268”, tendência esta que passa a dominar o livro como
um todo. Segundo o raciocínio de Schlegel, uma duplicidade tão acentuada quanto esta
só era encontrada em duas outras obras maiores –intelectualmente e artisticamente – da
arte romântica, Hamlet e Dom Quixote, que não tiveram, contudo, força suficiente para
encaminhar a literatura que as sucederam. Desse modo, Goethe aparece como promessa
do alvorecer de uma nova poesia, tal como fora Dante para a Idade Média.

Voltando à resenha, ao tratar dos dois livros finais, nos quais o romance se
debruça mais sobre a realidade concreta e abandona o mundo poético do teatro, Schlegel
se mostra bastante reticente e considera que esse movimento da obra no sentido de uma
limitação dos anseios de Meister desabona tudo o que lhe antecedeu:

266
Ibidem, 52–53.
267
Ibidem, 63.
268
Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, 76.

129
É como se tudo que ocorreu até então fosse somente um jogo espirituoso e
interessante e que agora o romance entrasse no domínio do que é sério. Na
verdade, os últimos livros são a obra verdadeira; as partes anteriores são
somente uma preparação. É aqui que a cortina se eleva sobre o santo dos
santos: de repente nós nos encontramos transportados às alturas onde tudo é
divino, sereno e puro; vistas a partir desse lugar as exéquias de Mignon
parecem tão importantes e plenas de significado quanto sua morte é
inelutável 269.

A resenha de Schlegel termina abruptamente nesse ponto, o que parece indicar


certa ressalva com relação à conclusão do romance. Desse modo, embora elogie as
qualidades poéticas da obra de Goethe, a resenha de Schlegel já aponta para o fato de
que o livro de Goethe não satisfazia o ideal de romance romântico, o que ficaria mais
claro nos cadernos de anotação de Schlegel, onde ele chama o romance de “moderno”,
isto é, determinado pela reflexão, e de “poético”, produzido pela imaginação, mas não
“romântico”, quer dizer, não orientado para o infinito e articulado de maneira livre e
lúdica 270.

Um romance perfeito deveria ser uma obra muito mais romântica que o
Wilhelm Meister; mais moderno e mais antigo, mais filosófico e mais ético e
mais poético, mais político, mais liberal, mais universal, mais social.

O Meister por isso mesmo incompleto, porque não é totalmente místico 271.

Nesse sentido, não é o Meister, mas sim Dom Quixote de Cervantes a referência
maior para o romance romântico, pois nele há a predominância da fantasia e do
maravilhoso, a abertura para o jogo infinito da vida, em detrimento da organização
lógica e coerente do todo. A ideia de uma poesia universal progressiva, um ideal que só
pode ser perseguido mas nunca alcançado, pois está sempre em devir, tal qual exposta
no fragmento 116 da Athenäum, parece se adequar à compreensão que Schlegel tem da
formação de Meister como algo que permanece como um ideal, como uma
perfectibilidade infinita.

A análise de Lukács, em consonância com o espírito que permeia toda sua


tipologia, concentra-se mais no conteúdo do livro de Goethe, apreendendo-o em termos
daquela oposição entre indivíduo e realidade que caracteriza o mundo do romance.

269
Schlegel, Sur le Meister de Goethe, 68.
270
Behler, German romantic literary theory, 176.
271
Hans Eichner apud Maas, O cânone mínimo, 126.

130
Desse modo, a questão central do livro é a da formação [Bildung 272] do indivíduo, isto
é, o desenvolvimento de suas potencialidades, sob determinadas condições histórico-
sociais, de modo tornar possível uma integração harmônica entre o indivíduo e a
realidade. Note-se que essa reconciliação não pode estar dada de antemão, mas deve ser
posta como um problema, cuja “solução”, digamos assim, se dá no próprio percurso
exposto pelo romance. Por isso, tanto o herói, quanto a ação narrada são condicionados
pela necessidade formal de que a reconciliação entre eu e mundo seja problemática, mas
possível; custosa, mas realizável. O percurso do protagonista Wilhelm Meister,
portanto, não se faz tranquilamente, mas é cheio de idas e vindas, fatalidades e
descaminhos, acertos e erros.

Essa abertura para uma reconciliação possível implica que também o herói
goethiano consista, segundo Lukács, em um tipo intermediário entre a dos outros dois
tipos de romance. No que tange aos seus ideais, o jovem Meister é ainda reticente e
tateante tanto subjetiva quanto objetivamente. Seu desejo de formação é de início
formulado de maneira ampla e sem um conteúdo claramente definido, mais por
oposição à estreita vida burguesa que seria seu caminho natural, ao assumir os negócios
do pai: trata-se, como observa Lukács, de “um ideal pouco claro no que aceita,
inequívoco na rejeição 273”. Por causa disso, a interioridade de Meister é mais flexível e
mais concreta do que a dos personagens do idealismo abstrato, como Dom Quixote por
exemplo, mas ao mesmo tempo mantém viva a esperança de realizar-se no mundo,
recusando a atitude contemplativa própria ao romantismo. A interioridade de Meister,
seus desejos e ideais, não se constituem em uma realidade absoluta que ignora a
realidade externa, mas suas aspirações também não são abandonadas em favor de uma
simples adesão à realidade tal como ela é. Antes, Wilhelm persegue ativamente seus
ideais, isto é, guiado por suas aspirações ele procura agir no mundo, mesmo que de
maneira errática. Pouco a pouco, o próprio enfrentamento com a realidade exterior lhe
proporciona maior conhecimento de si e do mundo, o que lhe permite dar contornos
mais nítidos a seu projeto inicial e buscar caminhos concretos para realizá-lo.

272
Sobre esse termo de tradução complexa Mazzari afirma: “Bildung tem uma longa história atrás de si,
começando com sua identificação com o sentido primeiro de Bild (‘imagem’, imago) e desdobrando-se na
ideia de reprodução por semelhança, Nachbildung (imitatio): nessa acepção original, o arquétipo de Bild
(‘imagem’) e da forma verbal bilden (‘formar’) estaria relacionado com o próprio Criador, que ‘formou o
homem à sua imagem e semelhança”. Marcus Vinicius Mazzari, “Apresentação”, in Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo: Editora 34, 2006), 11.
273
Lukács, A teoria do romance, 139.

131
Em um primeiro momento, o protagonista vislumbra na atividade artística uma
possibilidade de concretizar seu projeto e assim decide engajar-se em uma companhia
teatral, resolução que comunica a sua família na famosa carta a seu cunhado Werner,
homem prático que tenta convencer o jovem a trabalhar nos negócios da família. Assim
escreve Meister em resposta:

De que me serve fabricar um bom ferro, se meu próprio interior está cheio de
escórias? E de que me serve também colocar em ordem uma propriedade rural
se comigo mesmo me desavim?
Para dizer-te em uma palavra: instruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem
sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a infância. Ainda
conservo essa disposição, com a diferença de que agora vislumbro com mais
clareza os meios que me permitirão realizá-los 274.

Essa possibilidade, posta pelo tema do livro, de agir no mundo, significa que as
mediações entre interioridade e mundo exterior sejam fundamentais para esse tipo de
romance. Por isso a relevância das estruturas sociais e das questões relativas à profissão,
à classe, ao casamento, pois se trata de encontrar meios de penetrar a realidade e
encontrar algum grau de satisfação dos anseios interiores na vida social. Isso fica
bastante claro na importância da escolha da profissão para a trajetória de Meister, haja
vista sua condição de membro da burguesia e não da aristocracia, a quem era facultada
pelo nascimento a possibilidade de se formar livre e plenamente. O próprio Meister
reconhece isso na continuação da carta:

Fosse eu um nobre e bem depressa estaria suprimida nossa desavença; mas,


como nada mais sou do que um burguês, devo seguir um caminho próprio, e
espero que venhas a me compreender. Ignoro o que se passa nos países
estrangeiros, mas sei que na Alemanha só a um nobre é possível certa formação
geral, e pessoal, se me permite dizer. Um burguês pode adquirir méritos e
desenvolver seu espírito a mais não poder, mas sua personalidade se perde,
apresente-se ele como quiser. [...] Se, na vida corrente, o nobre não conhece
limites, se é possível fazer-se dele um rei ou uma figura real, pode portanto
apresentar-se onde quer que seja com uma consciência tranquila diante dos
seus iguais, pode seguir adiante, para onde quer que seja, ao passo que ao
burguês nada se ajusta melhor que o puro e plácido sentimento do limite que
lhe está traçado[...] Pois bem, tenho justamente uma inclinação irresistível por
essa formação harmônica de minha natureza, negada a mim mesmo por meu
nascimento 275.

Há de se notar, entretanto, como a escolha inicial pelo teatro como o lugar de


aperfeiçoamento interior permanece confinada aos limites de uma solução individual,

274
Johann Wolfgang von Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (Sao Paulo: Ed. 34, 2006),
284.
275
Ibidem, 284–286.

132
uma vez que a realidade exterior – as desigualdades de classe decorrentes da
constituição social alemã no período – é considerada nesse ponto do desenvolvimento
do protagonista como um dado pouco penetrável pela ação humana.

Em todo caso, segundo Lukács, a própria centralidade das estruturas sociais


implica que deva existir, ao menos virtualmente nesse tipo de romance, uma
comunidade de pessoas relativamente próximas que, em sua ação no mundo, travem
relações, modifiquem-se, lapidem-se, habituem-se umas às outras, ou seja, nessa
convivência auxiliam no processo de formação e, no limite, formam-se reciprocamente
pelas trocas que caracterizam a vida social. No romance de Goethe, é fundamental para
o processo educativo de Meister, por exemplo, as conversas que ele trava com os mais
variados personagens sobre temas como a arte, o destino, o acaso e a felicidade, entre
outros.

Lukács sublinha nesse processo educativo um aspecto fundamental que afasta a


concepção ética de Goethe daquela sustentada pelo romantismo. Ao superarem o
isolamento e o confinamento em si mesmo e travarem relações umas com as outras, a
constituírem essa comunidade social, as individualidades caminham no sentido de
conquistarem uma maturidade que necessariamente passa por uma resignação parcial,
uma espécie de modulação e determinação de seus desejos e opiniões. Ao contrário da
visão romântica, contudo, Lukács enxerga isso não como perda pura e simples, mas
como uma “resignação rica e enriquecedora 276”. Se aos românticos uma limitação dos
ideais é percebida como uma concessão indevida à realidade, sendo preferível manter-se
imaculado, mesmo que isso signifique uma retirada de si do mundo e o refúgio na
interioridade, a resignação em Goethe não é vista como uma derrota, mas um sinal de
amadurecimento e uma condição para que se encontre um caminho que possibilita a
ação efetiva no mundo, entendida como um passo necessário para aproximar-se de
alguma satisfação, ainda que relativa, de suas aspirações:

O heroísmo do idealismo abstrato e a pura interioridade do Romantismo são


admitidos, pois, como tendências relativamente justificadas, mas a serem
superadas e inseridas na ordem interiorizada; de fato, eles parecem tão
reprováveis e condenados à perdição quanto o filisteísmo – a acomodação a
qualquer ordem exterior, por mais vazia de ideias que ela seja, apenas porque é
a ordem dada 277.

276
Lukács, A teoria do romance, 140. Para designar esse aprendizado que se dá pela experiência, Hegel
se vale de uma expressão que ficou famosa: com o aprendizado, o indivíduo “apara seus chifres”.
277
Ibidem, 141.

133
Ora, nesse tipo de romance há um desenvolvimento do herói que estava ausente
nos outros dois tipos, por isso a denominação romance de formação, ou de educação. O
foco do romance de formação no desenvolvimento das qualidades humanas exige que
essa forma equilibre-se “entre atividade e contemplação, entre vontade de intervir no
mundo e capacidade receptiva em relação a ele 278”, o que se expressa claramente na
narrativa, pois Meister parte para uma série de aventuras, obtém sucessos e fracassos,
mas em momento algum sua problemática interna é deixada de lado; vemos a todo o
momento ele refletir sobre suas escolhas e sobre os caminhos adotados, por vezes
colocando-os em xeque. É isso que permite que Lukács reconheça nesse romance um
caminho intermediário entre a ação demoníaca no mundo própria do idealismo abstrato
e a pura contemplação do romantismo da desilusão.

Nessa caminhada exposta no romance, Meister adquire uma compreensão cada


vez mais aprofundada do mundo social e de si mesmo, o que tem por consequência a
relativização de seu projeto inicial de formação. Se até o final do livro V, o ideal de
formação perseguido pelo herói é indissociável do teatro, após a encenação do Hamlet
pela companhia, o que seria o ponto alto da carreira de Meister, ele se dá conta de que o
teatro por si só não seria suficiente para realizar seu ideal, que agora aparece
transformado, não mais entendido exclusivamente em termos de um desenvolvimento
de potencialidades e inclinações do indivíduo, mas, sobretudo, “enquanto processo de
socialização, de interação dinâmica entre o ‘eu’ e o mundo, entre o indivíduo particular
e a sociedade 279”.

É interessante apontar que no romance de formação a centralidade do herói tem


algo de casual. O que define que uma trajetória seja alçada à condição de protagonismo
é apenas sua capacidade de revelar com máxima nitidez a totalidade do mundo. Mas,
por colocar em cena uma comunidade de pessoas com destinos paralelos, aparentando-
se nesse sentido à narrativa épica, o romance de formação relativiza em certa medida o
protagonismo do herói, ao contrário do romance do idealismo abstrato, no qual a
absoluta centralidade do herói solitário é uma necessidade formal, dada pela rígida
oposição entre eu e mundo. Se no romantismo da desilusão a centralidade do
personagem principal também tem algo de casual, isso se deve a razões distintas do

278
Ibidem.
279
Mazzari, “Apresentação”, 15.

134
romance de formação: lá a multiplicidade de destinos individuais partilha somente do
fracasso necessário nesse tipo, mas esse fracasso não se constitui em fundamento para a
criação de uma comunidade solidária, só aumenta ainda mais a solidão de cada
indivíduo. No romance de formação, ao contrário, a possibilidade do êxito dos ideais no
mundo está fundada na crença “da possibilidade de destinos e configurações
comuns 280”.

Essa situação se transforma tão logo a comunidade deixe de ser um destino e se


torne mero meio para a realização solitária de si. Nesse caso, o romance de formação
avizinha-se da desilusão romântica, com a diferença sutil de que a consciência da
impossibilidade de realizar o âmago de sua interioridade no mundo social não significa
para o herói um “colapso total ou a conspurcação de todos os ideais, mas sim a
percepção da discrepância entre interioridade e mundo: a adaptação à sociedade na
resignada aceitação de suas formas de vida e o encerrar-se em si e guardar-se para si da
interioridade apenas realizável na alma 281”.

No que tange à ação no romance de Goethe, uma vez que ela é definida pelo
objetivo da formação, seu grau de segurança e tranquilidade aparenta ser bem maior do
que no romantismo da desilusão, pois apesar de não se ter clareza quanto aos caminhos
para se realizar o ideal, ao menos a vontade de formação é formulada com propriedade.
Isso não significa, contudo, que o mundo configurado nesse tipo de romance seja
aproblemático: ao longo do romance diversos personagens sucumbem por não serem
capazes de se adaptar (isso ocorre com as figuras mais românticas do livro, Mignon e o
harpista, bem como Aurelie e Mariane, que morrem tragicamente), e outros tantos
murcham e se abatem, por terem capitulado prematura e incondicionalmente frente à

280
Lukács, A teoria do romance, 142.
281
Ibidem, 143. A referência de romance de formação pós-goethiano para Lukács é O verde Henrique de
Gottfried Keller. Segundo Lukács, a aproximação do romance de formação com o romantismo da
desilusão é uma tendência que se aprofunda no século XIX e XX e que traz em si o perigo de que se adote
uma subjetividade não convertida em símbolo, isto é, uma trajetória meramente pessoal e sem nenhum
significado universal, dissolvendo assim a forma épica: “[...] tanto herói quanto destino podem ser algo
meramente pessoal, e o todo torna-se um destino privado que narra memorialisticamente como um
determinado homem logrou entrar em acordo com seu mundo circundante[...]. E essa subjetividade é mais
insuperável que a de tom narrativo: ela confere a todo o representado – mesmo que a configuração técnica
esteja objetivada à perfeição – o caráter fatal, insignificante e mesquinho do meramente privado; resta um
aspecto, que de modo tanto mais desagradável faz dar pela falta de totalidade, pois a cada instante
declara-se com a pretensão de configurá-la. A maioria esmagadora dos romances de educação modernos
sucumbiu inapelavelmente a esse perigo”. Ibidem, 144.

135
realidade (Werner, burguês bem sucedido, é descrito ao final do livro como um homem
de aspecto deteriorado, muito em razão de sua dedicação excessiva ao trabalho 282).

Ao fim e ao cabo, contudo, continua sendo possível um caminho de salvação


para o herói e seus convivas, mas este só pode se dar após um embate com o mundo, e
nunca de maneira apriorística. Desse modo, a realidade não pode ser configurada nem
como um mundo harmônico e em absoluta sintonia com os anseios dos indivíduos, pois
nesse caso estaríamos em um terreno avesso ao romance, nem como um mundo
absolutamente impenetrável e ossificado, que os subjuga de maneira total e barra desde
o início qualquer possibilidade de ação. O mundo social deve, assim, ser construído
como “um mundo da convenção parcialmente aberto à penetração do sentido vivo 283”.

O mundo exterior é apresentado como uma multiplicidade de estruturas sociais e


se estabelece entre elas uma hierarquia de acordo com o grau de penetrabilidade ao
sentido de cada uma. Isso significa que do ponto de vista da configuração, a ironia do
narrador adquire uma importância decisiva, pois não se pode atribuir nem negar sentido
de antemão a nenhuma estrutura ou instituição social; essa positividade ou negatividade
só deve se tornar manifesta no processo de interação entre o indivíduo e determinado
aspecto da realidade exposto ao longo da narrativa. As estruturas sociais são, assim,
reconhecidas como objetivamente necessárias, mas ao mesmo tempo tomadas como
fonte de conhecimento importante para o processo educativo do herói. Esse
reconhecimento irônico não se dá apenas por parte do narrador romanesco, mas dos
próprios personagens, que adotam uma atitude ao mesmo tempo solidária e distante
perante as convenções sociais.

Quanto a esse ponto, Lukács chama atenção para o fato de que essa afirmação
irônica da realidade ao longo do romance deve culminar, ao final da narrativa, na
idealização e romantização de determinados aspectos da realidade e no desprezo de
outras, consideradas prosaicas e vazias de sentido. No entanto, diz Lukács, o mundo
encontrado ao final da busca pela realização do ideal deve ser configurado de maneira
irônica, para que o romance não recaia em uma afirmação incondicional da realidade,
um simples “final feliz”. A perda desse “equilíbrio ironicamente flutuante 284” entre
subjetividade e objetividade, interioridade do personagem e mundo exterior, ideal e real,

282
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, 476.
283
Lukács, A teoria do romance, 144.
284
Ibidem, 147.

136
poesia e vida acarretaria em um dos grandes perigos dessa forma romanesca: “o perigo
de romantizar a realidade até uma região de total transcendência à realidade ou, o que
demonstra com máxima clareza o verdadeiro perigo artístico, até uma esfera
completamente livre e além dos problemas, para a qual não bastam mais as formas
configuradoras do romance 285”.

O próprio Lukács adverte que este teria sido um problema evitado apenas em
parte por Goethe, o que se expressa principalmente na valorização do mundo da nobreza
como símbolo do domínio ativo da vida em oposição ao mundo maravilhoso do teatro,
uma atribuição de substancialidade que tinge o estamento nobre com a coloração
aproblemática da epopeia. Sua descoberta, ao final do livro, de uma realidade
significativa, que não é uma resistência aos desejos do indivíduo, mas oferece
possibilidades para que ele realize seu potencial, embora não se faça de maneira
abstrata, mas esteja configurada de maneira sensível nos casamentos entre burgueses e
nobres que concluem o livro, ainda assim é uma solução idealizada para o problema da
formação.

De acordo com Lukács, é precisamente aí que reside o centro da divergência


entre Goethe e os românticos, representados especialmente pela posição de Novalis 286.
Em Sobre o ‘Wilhelm Meister’ de Goethe, [Zu Goethes ‘Wilhelm Meister’], Novalis
analisa o espírito de Goethe e o considera “um poeta de grande senso prático”, um
espírito inglês, cujo gosto estético seria mercantil e intelectual. É esse o fundamento que
opera também nas críticas que Novalis dirige ao romance de Goethe, nas quais, em que
pese o reconhecimento de que o livro apresenta certos elementos românticos, como o
tratamento irônico dos acontecimentos, o tom é claramente crítico e se dirige
especialmente ao caráter prosaico do Meister. O trecho de Novalis retomado por Lukács
na Teoria do romance é o seguinte:

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister são de certo modo inteiramente


prosaicos e modernos. Nele o elemento romântico cai por terra, e assim
também a poesia da natureza, o maravilhoso. Ocupa-se ele meramente de
coisas corriqueiras, humanas, a natureza e o misticismo são de todo esquecidos.

285
Ibidem, 145.
286
Paolo D’Angelo chama atenção para o fato de que o romance-teoria de Novalis é bastante diferente do
Lucinde de Schlegel. Este último não se orientava pelo elemento fabuloso, como o Ofterdingen de
Novalis, mas pela radical experimentação formal. Nesse sentido, ele ressalta que embora as teorias do
romance de Novalis e de Schlegel tenham sido escritas em estreito contato, de modo que apresentam
muitas características comuns, por vezes o sentido das formulações dos autores difere radicalmente,
mesmo quando as formulações e os termos utilizados coincidem. D’Angelo, A estética do romantismo,
157.

137
É uma história burguesa e doméstica poetizada. O maravilhoso é tratado
expressamente como poesia e exaltação. Ateísmo artístico é o espírito do livro.
[...] No fundo, [...] ele é apoético no mais alto grau, por mais poética que seja a
exposição 287.

A crítica de Novalis ao prosaísmo e ao caráter antipoético do Meister de Goethe


encontra sua formalização artística em Heinrich Von Ofterdingen, uma obra
inteiramente poética, na qual o assunto exclusivo é a poesia (Heinrich realiza um
aprendizado artístico e torna-se um poeta, diferentemente de Meister que abandona a
vida artística) e cuja atmosfera é inteiramente sonhadora e simbólica. Ou seja, em vez
do equilíbrio irônico, Novalis defendia uma aproximação intensa do romance com o
conto de fadas, entendido como um modo de fazer poesia caracterizado pela liberdade
de associação entre os diversos elementos, pela a preponderância do maravilhoso e do
onírico, mas isso não no sentido de uma evasão do mundo e sim de sua criação pela
poesia 288.

Ora, é em virtude desse traço que Novalis constitui para Lukács o exemplo mais
claro de transgressão da forma épica pela romantização da realidade até sua completa
transcendência rumo a uma esfera aproblemática. Se Goethe pecaria por romantizar um
aspecto da realidade a tal ponto que ela transcende a realidade e se torna aproblemática,
Novalis incorre no erro ainda maior de pretender, em sua configuração, apresentar o
transcendente na realidade. A obra de Novalis perderia a tensão que, no fim das contas,
sustenta a forma romance, qual seja, a tensão entre poesia e prosa, entre o maravilhoso e
o desencantado, entre a plenitude de sentido e sua ausência. Em sua oposição inflexível
ao prosaísmo do mundo moderno, Novalis acabaria por desequilibrar a balança da
forma em favor de uma “transcendência realizada no real”, ao estilo do conto de fadas.
Ao contrário de seu modelo, a épica de cavalaria da Idade Média, cuja situação
histórico-filosófica permitia a transfiguração da realidade em fantasia, pois a
mentalidade ingênua de seus autores de fato encontrava na transcendência um mundo
fantástico que iluminava a vida terrena – o tema da busca pelo Santo Graal representa
justamente isso -, em Novalis a unidade entre realidade e transcendência é um objetivo

287
Novalis apud Lukács, A teoria do romance, 146. Vale lembrar que Goethe publica Os anos de
peregrinação de Wilhelm Meister, uma continuação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, e
nesse segundo livro Meister torna-se médico. Nesse sentido, o desejo de tornar-se artista dá lugar ao
projeto de agir ativamente no mundo, pela escolha de um trabalho, o qual por sua vez exige uma
formação especializada e não mais a formação ampla e harmônica que Meister formula no primeiro
romance. Sobre isso conferir o livro de Wilma Patricia Maas, O cânone mínimo – o Bildungsroman na
história da literatura.
288
D’Angelo, A estética do romantismo, 158–159.

138
consciente da configuração. Por isso, o descompasso entre situação histórica e o desejo
de Novalis implicará no fracasso retumbante da forma épica. Diz Lukács:

A realidade está por demais carregada e onerada pelo fardo terreno de seu
abandono das ideias, e o mundo transcendente, em virtude de sua filiação
demasiado direta à esfera filosófico-postulativa da pura abstração, é por demais
etéreo e sem conteúdo para que ambos possam reunir-se organicamente na
configuração de uma totalidade viva. Assim, a fissura artística que Novalis
detecta com argúcia em Goethe torna-se ainda maior e absolutamente
intransponível em sua obra: a vitória da poesia, o seu domínio transfigurador e
redentor sobre todo o universo, não possui a força constitutiva para arrastar
consigo a esse paraíso tudo o que, de resto, é mundano e prosaico; a
romantização da realidade apenas a reveste de uma aparência lírica de poesia
que não se deixa converter em acontecimentos, em épica, de maneira que a real
configuração épica ou apresenta a problemática goethiana, só que mais
agravada, ou é eludida por reflexões líricas e imagens de estados de ânimo. Por
isso a estilização de Novalis permanece puramente reflexiva; embora recubra
na superfície o perigo, na essência apenas o agrava. [...] não lhe restou outra
saída senão poetizar liricamente as estruturas em sua essência objetiva e criar
assim um mundo belo e harmonioso, mas que permanece em si sem relações,
que se prende apenas reflexivamente, apenas por estados de ânimo, mas não
epicamente, tanto à definitiva transcendência torna real quanto à interioridade
problemática, e portanto não pode tornar-se uma verdadeira totalidade 289.

Trata-se, como se pode perceber, de uma crítica próxima àquela feita por Lukács
no ensaio sobre Novalis em A alma e as formas. A plenitude de sentido desejada pelos
românticos não pode ser alcançada no mundo moderno e a força da poesia é insuficiente
para transfigurar o prosaísmo da época. A utopia de um mundo reencantado, de uma
realidade novamente substancial, bela e harmônica permanece uma utopia, totalmente
descolada da realidade da época e, desse modo, não pode configurar uma totalidade
épica.

Novalis ignora a realidade de sua época em favor de uma utopia abstrata, ao


passo que Goethe busca configurar concretamente sua utopia, mas só o pode fazê-lo por
meio de uma solução puramente artística. O fato é que, dentro da sociedade burguesa
que se consolidava, a possibilidade de uma formação harmônica e totalizante, a
conciliação entre o indivíduo e o mundo por um processo de aprendizado, já não podia
ser alcançada de maneira plena e é por isso que Goethe tem de lançar mão de
expedientes artificiais para solucionar a questão central de seu romance. A crítica de
Lukács se dirige aqui ao mecanismo da Sociedade da Torre, a ideia de um grupo
onisciente de pessoas, que descobrimos ter intervindo em toda trajetória de Meister. As
aventuras e os encontros do herói ao longo do romance são revelados então como testes

289
Lukács, A teoria do romance, 147.

139
e lições deliberadas, planejados pelos membros da Sociedade, a qual ele se junta ao final
do livro. Lukács critica, portanto, uma espécie de deus ex machina adotado por Goethe:
esse mecanismo “se torna um segredinho sem sentido oculto mais profundo, um tema
narrativo de acentuado destaque sem verdadeira importância, um ornato lúdico sem
encanto decorativo 290”. Apenas por meio desse artificialismo é que Goethe teria
conseguido resolver o problema da formação de Meister e, nesse sentido, sua solução
significa uma deformação idealizadora da realidade 291.

É como se Goethe visse mais substancialidade em seu mundo do que havia de


fato e, assim, acabasse tornando as coisas mais fáceis do que elas eram realmente: a
tarefa que Meister propõe a si mesmo é impossível em um mundo desumanizado, de
instituições alienantes, por isso em seu romance a tarefa da formação só pode se
cumprir com o auxílio quase divino da Sociedade da Torre, cujos membros
desempenham para a trajetória de Meister uma função semelhante aos deuses que
guiavam Ulisses em suas aventuras. Em suma, para Lukács, a mentalidade utópica de
Goethe configurou uma forma menos problemática do que sua época autorizava,
transcendendo os limites do romance e aproximando-se da epopeia.

Tolstói, Dostoiévski e a crise do romance

No capítulo que encerra A teoria do romance, “Tolstói e a extrapolação das


formas sociais de vida”, Lukács volta seu olhar para a literatura russa e vislumbra nela
uma tendência que se contrapõe ao desenvolvimento do romance na Europa ocidental.
Este teria seguido e aprofundado a senda do romantismo da desilusão, o que se expressa
no crescente foco na interioridade dos personagens em detrimento da representação do
mundo exterior, a substituição da aventura pela passividade, a preponderância da
reflexão frente à configuração sensível dos acontecimentos, entre outros.

Para Lukács, a literatura de Tolstói sustenta-se, tal qual o romance de desilusão,


na rejeição do mundo convencional. Mas enquanto na Europa ocidental a oposição ao

290
Ibidem, 149.
291
Como assinala Jameson, a utopia “não é conquistada concretamente linha por linha, mas é estabelecida
por um fiat ao final do livro, que alcança e transforma seu início”. Jameson, “The case for Georg
Lukács”, 178.

140
mundo convencional resultava necessariamente em uma atitude puramente interior, uma
vez que a segunda natureza das convenções já estava aí consolidada, na Rússia essa
rejeição encontrava algum respaldo na realidade, uma vez que esta, segundo Lukács,
ainda mantinha certa proximidade com estados naturais e orgânicos. A diferença entre
os romances de Tolstói e os do romantismo europeu, portanto, seria que a rejeição do
mundo convencional no autor russo não acarretaria no processo de dissolução da forma
épica em manifestações líricas e psicológicas, mas encontraria na aspiração por uma
vida fundada em valores comunitários, pautada por ciclos naturais, uma alternativa
àquele tipo de solução formal. Nesse sentido, pelo menos à primeira vista os romances
de Tolstói se distanciariam dos elementos que estruturam o romance e se aproximariam
da organicidade da epopeia.

No entanto, a análise de Lukács mostra como em Tolstói esse mundo natural


consiste em uma idealização. Em que pese ter entrevisto na vida camponesa uma
proximidade aos ritmos naturais da vida e de tê-la configurado de maneira concreta em
seus romancs, Tolstói esbarra no fato de que “esse mundo permanece apenas um
elemento da configuração épica, mas não é a realidade épica ela própria 292”. Enquanto
na epopeia grega, o mundo orgânico era o mundo da cultura grega, uma cultura que
tinha como traço fundamental essa organicidade, em Tolstói a natureza só pode ser
imaginada como uma esfera dentre outras e, como tal, oposta à cultura:

Que uma tal oposição seja necessária é a problemática insolúvel dos romances
de Tolstói. Em resumo, sua intenção épica teve de desembocar numa forma
romanesca problemática não porque ele não tenha realmente superado em si a
cultura, ou porque sua relação com o que experimentou e configurou como
natureza seja meramente sentimental, não por causas psicológicas, mas por
razões de forma e da relação dela com o seu substrato histórico-filosófico 293.

Essa problemática e necessária oposição entre natureza e cultura acaba por trair
as intenções de Tolstói e revela, de acordo com Lukács, como o romance ainda é a
forma necessária de sua época, pois embora o autor russo pretenda fazer do mundo
natural o centro de sua configuração, a realidade épica tem que ser erigida sobre o
mundo da cultura, onde vivem os indivíduos e onde se desenrolam os acontecimentos
significativos. A relação entre essas duas esferas heterogêneas da realidade, natureza e
cultura, que tem um sentido bem determinado em Tolstói, qual seja, o caminho

292
Lukács, A teoria do romance, 153.
293
Ibidem, 154.

141
percorrido nos romances vai da recusa do mundo convencional à busca pela natureza
essencial, revela que o centro das obras torna-se a busca sentimental e romântica pela
natureza, contrariando a intenção de seu autor. A tentativa de superação do mundo
convencional, portanto, permanece sendo uma tentativa, já que o decisivo em seus
romances pertence sempre ao universo da cultura.

Lukács chama a atenção para a posição peculiar que Tolstói confere ao amor e
ao casamento, situados entre a esfera da natureza e a da cultura. O amor em sua pureza
natural, como paixão, não é inserido por Tolstói no universo da natureza, por ser muito
preso à relação de indivíduo para indivíduo, isolando-os dos demais e sendo por isso
considerado demasiadamente cultural. Antes, o autor confere centralidade ao amor
como casamento, o amor como união e como meio de procriação; a instituição do
casamento e da família são, assim, os verdadeiros motores da continuidade natural da
vida nas obras de Tolstói. Entretanto, quanto mais autenticamente o casamento e a
família são configurados, mais se revela o contrário do que o autor intencionava
demonstrar, pois ambos acabam sendo conspurcados pela necessidade de adaptação à
convenção mais vazia e sem substância.

A única exceção são os momentos próximos à morte, nos quais se abre aos
personagens uma perspectiva que lhes permite enxergar a inessencialidade de todos os
conflitos, sofrimentos e erros pregressos, abrindo caminho para o verdadeiro sentido de
suas vidas. Em Anna Kariênina, a reconciliação entre Kariênin e Vrónski junto ao leito
de morte de Ana, quando o marido traído perdoa o rival, é um desses momentos, mas
ele é logo superado: Ana se recupera e apesar do perdão do marido, não consegue
continuar a viver no casamento e decide voltar para Vronski. Entretanto, a reunião de
Ana com Vrónksi, que parecia ser a promessa de felicidade para o casal, logo se
converte em desilusão, novamente uma vida limitada pelas convenções e vazia de
sentido, que culmina no final trágico da heroína 294.

Por essas razões, Lukács considera que a literatura de Tolstói ocupa uma posição
ambígua no desenvolvimento histórico do romance. Por um lado, ele é o fecho do
Romantismo europeu, um “barroco da forma de Flaubert 295”, que transcende a forma

294
O percurso mais redentor de Lévin, que no final da narrativa aproxima-se do cristianismo e de uma
vida mais plena, é considerado por Lukács como uma solução arbitrária de Tolstói, informada por seus
ideais filosóficos, mas sem consistência artística. Ibidem, 157.
295
Ibidem, 158.

142
romanesca sem aproximar-se da realidade aproblemática da epopeia, já que o anseio por
um mundo da natureza essencial permanece subjetivo e reflexivo. Por outro lado, em
alguns momentos da obra de Tolstói é possível entrever uma nova realidade, concreta e
existente, que se pudesse expandir-se em uma totalidade certamente exigiria uma nova
forma de configuração: “a forma renovada da epopeia 296”. Tolstói seria assim o
prenúncio de uma nova época, mas como a arte nunca pode ultrapassar seu momento
histórico, esse prenúncio tem de permanecer como utopia:

(...) a grande épica é uma forma ligada à empiria do momento histórico, e toda
tentativa de configurar o utópico como existente acaba apenas por destruir a
forma sem criar realidade. O romance é a forma da época da perfeita
pecaminosidade, nas palavras de Fichte, e terá de permanecer a forma
dominante enquanto o mundo permanecer sob o jugo dessa constelação. Em
Tolstói eram visíveis os vislumbres de uma ruptura para uma nova época
mundial: eles permaneceram, contudo, polêmicos, nostálgicos e abstratos 297.

Se a análise de Lukács a respeito dos romances de desilusão tem o mérito de ter


apontado para os rumos tomados pela forma romanesca no século vinte – basta pensar
na nova concepção do tempo descoberta já n’ A educação sentimental, mas que só se
consumaria nos romances da década de vinte – o autor, no entanto, adota uma posição
bastante pessimista quanto ao futuro do romance europeu:

A evolução histórica não foi além do tipo do romance da desilusão, e a mais


recente literatura não revela nenhuma possibilidade essencialmente criativa,
plasmadora de novos tipos: há um epigonismo eclético de antigas espécies de
configuração, que apenas no formalmente inessencial – no lírico e no
psicológico – parece ter forças produtivas 298.

Hans Robert Jauss sugere que a posição cética de Lukács pode ser explicada pela
voga da literatura naturalista à época 299 e, nesse sentido, é bom lembrar que quando da
redação do ensaio, entre 1914 e 1915, o primeiro volume do ciclo proustiano mal
acabava de ser publicado, Ulisses de Joyce e mesmo a Montanha mágica de Thomas
Mann ainda estavam sendo escritos e a pujança e diversidade do modernismo ainda
estava por se realizar. Pressionados pelo aprofundamento da cisão entre indivíduo e
mundo e pelo estranhamento do indivíduo de si mesmo, certos procedimentos literários
do romance do século dezenove foram levados às últimas consequências para que o

296
Ibidem, 159.
297
Ibidem, 160.
298
Ibidem, 159.
299
Hans Robert Jauss, Zeit und Erinnerung in Marcel Prousts À la recherché du temps perdu: ein Beitrag
zur Theorie des Romans, apud Notao d tradutor Ibidem.

143
romance pudesse cumprir a cada vez mais difícil tarefa de recriar, na e pela forma,
algum sentido para a vida e para o mundo. Essa radicalização, no entanto, longe de se
limitar a um epigonismo, como pensava Lukács, acabou por produzir novos frutos, de
fato tão novos que pareciam revogar os próprios pressupostos do gênero.

Nesse sentido, a formulação de Anatol Rosenfeld sobre o romance moderno não


deixa dúvidas a respeito do acerto da análise e do erro do julgamento de Lukács sobre o
futuro da evolução do romance europeu. Segundo Rosenfeld, vemos nos romances do
século vinte uma radicalização dos procedimentos do romance psicológico e realista do
século dezenove, mas essa intensificação levou a consequências que inverteriam por
inteiro a forma do romance tradicional. Assim,

a enfocação microscópica aplicada à vida psíquica teve efeitos semelhantes à


visão de um inseto debaixo da lente do microscópio. Não o reconhecemos mais
como tal, pois, eliminada a distância, focalizamos apenas uma parcela dele,
imensamente ampliada. Da mesma forma se desfaz a personagem nítida, de
contornos firmes e claros, tão típica do romance convencional. Devido à
focalização ampliada de certos mecanismos psíquicos perde-se a noção da
personalidade total e do seu “caráter” que já não pode ser elaborado de modo
plástico, ao longo de um enredo em sequência causal, através de um tempo de
cronologia coerente. Há, portanto, plena interdependência entre a dissolução da
cronologia, da motivação causal, do enredo e da personalidade 300”.

Se a limitação histórica explica em parte o diagnóstico sombrio de Lukács, por


outro lado ele também se deve à profunda oposição do autor, que move o
empreendimento crítico da Teoria do romance como um todo, ao vazio ético da
civilização ocidental. Se, na visão de Lukács, quanto mais problemática a modernidade
burguesa se tornava, mais o romance se afirmava como sua objetivação literária
necessária, a perspectiva desoladora com a qual ele encarava o futuro da sociedade
burguesa, alimentada pelo horror da Primeira Guerra Mundial – um evento que
cristalizava o sentimento de crise então vigente –, explica porque ele tem de olhar para
uma sociedade completamente diferente, a russa, em busca de algum alento para a
encruzilhada na qual se encontrava a civilização ocidental. Pois para ele já estava claro
que a transformação do romance em epopeia não seria o resultado da vontade do
romancista, mas dependia da transformação efetiva da realidade ao seu redor.

Desse modo, ele vislumbra na obra de Tolstói o arremate da forma romance e


em Dostoiévksi a dissolução e a superação da forma épica burguesa:

300
Anatol Rosenfeld, “Reflexões sobre o romance moderno”, in Texto/Contexto I (São Paulo: Perspectiva,
1996), 84–85.

144
Dostoiévski não escreveu romances, e a intenção configuradora que se
evidencia em suas obras nada tem a ver, seja como afirmação, seja como
negação, com o romantismo europeu do século XIX e com as múltiplas reações
igualmente românticas contra ele. Ele pertence ao novo mundo. Se ele já é o
Homero ou o Dante desse mundo ou se apenas fornece as canções que artistas
posteriores, juntamente com outros precursores, urdirão numa grande unidade,
se ele é apenas um começo ou já um cumprimento – isso apenas a análise
formal de suas obras pode mostrar. E só então poderá ser tarefa de uma
exegese histórico-filosófica proferir se estamos, de fato, prestes a deixar o
estado de absoluta pecaminosidade ou se meras esperanças proclamam a
chegada do novo – indícios de um porvir ainda tão fraco que pode ser
esmagado, com o mínimo de esforço, pelo poder estéril do meramente
existente 301.

Para Jameson, esse comentário de Lukács deve ser interpretado mais como uma
utopia social de Lukács, do que como uma análise formal efetiva da obra de
Dostoiévski 302. De fato, de acordo com Arato e Breines, a leitura de textos como
“Cultura estética” (1910) e “Sobre a pobreza do espírito” (1911) revela que o interesse
de Lukács pela Rússia nutria-se da esperança por uma nova forma de vida, “uma
comunidade de indivíduos completamente livres de grilhões psicológicos e sociais,
capazes de ler a alma uns dos outros como a de si próprios 303”, transcendendo assim a
dualidade entre sujeito e objeto e, portanto, entre sujeito e mundo. O que estruturaria a
visão de Lukács seria uma utopia da história como uma oposição entre o espírito
objetivo (o Estado, a Igreja, a Lei, a ética formal, consolidados na civilização ocidental)
e a alma (a comunidade, a religião, a moralidade, a ética substantiva, visionados na
Rússia), na qual a segunda suplantaria o primeiro. Nessa perspectiva, qualquer tentativa
de ultrapassar o mundo do espírito objetivo por novas vias institucionais acarretaria a
mera substituição de um tipo de alienação por outro 304.
Sem dúvida, seria interessante examinar com mais vagar o conteúdo dessa
utopia social de Lukács, mas isso implicaria ir além de nosso tema e adentrar um novo
universo de pesquisa. Para o propósito desta dissertação, parece mais interessante tentar
compreender as observações de Lukács a partir das indicações oferecidas na própria
Teoria do romance. Dito isso, gostaria apenas de levantar um dos sentidos possíveis
para seus apontamentos a respeito de Dostoiévski, tendo em vista, sobretudo, seu
significado para a forma romance.

301
Lukács, A teoria do romance, 161.
302
Jameson, “The case for Georg Lukács”.
303
Arato e Breines, The young Lukács and the origins of Western Marxism, 70. Grifo dos autores.
304
Ibidem.

145
Nesse sentido, apesar do que recomenda Jameson, é possível perceber que o
argumento de que as obras de Dostoiévski não seriam romances possui também uma
acepção formal: o fato delas não se erigirem como uma oposição polêmica ao mundo
das convenções, isto é, de não procurarem resolver formalmente a cisão própria da
modernidade, preservando, no entanto, a dualidade do mundo em sua própria estrutura.
Segundo Lukács, o que aparece de maneira incipiente nos grandes momentos de
revelação dos romances de Tolstói, “a esfera de uma realidade puramente anímica, na
qual o homem aparece como homem – e não como ser social, mas tampouco como
interioridade isolada e incomparável, pura e portanto abstrata 305” consiste em toda a
realidade dos romances de Dostoiévski. Esta não apareceria em uma disputa com o
mundo convencional, mas “esse novo mundo, longe de toda a luta contra o existente, é
esboçado como realidade simplesmente contemplada 306” sendo, assim, o ponto de
partida da configuração.

De acordo com intérpretes como Carlos Eduardo Jordão Machado e Rainer


Rochlitz, que se dedicaram ao estudo das anotações do que seria o livro sobre
Dostoiévski, os apontamentos de Lukács sustentavam que o escritor russo colocaria em
cena em suas obras um novo tipo de homem, que ia além das características dos heróis
dos romances burgueses. Seus personagens vivem em um plano além do mundo das
convenções, afastados de qualquer luta contra o existente 307. Nesse sentido, os
indivíduos do universo de Dostoiévski recusam o mundo do que Lukács denomina de
“primeira ética”, a ética do dever kantiano, imposta de fora para os homens, seja pelo
Estado, pela lei ou pelas convenções sociais e agem a partir de uma ética fundada em
suas almas.

O desprezo com que os personagens encaram as instituições sociais, vistas em


toda sua insignificância no que diz respeito às verdadeiras necessidades dos indivíduos,
permite que eles ajam a partir do reconhecimento do vazio valorativo vigente no mundo,
a ausência de distinção substancial entre o que é bom e o que é mal. Isso, entretanto, não
é vivenciado como uma ampliação da liberdade individual, mas é principalmente fonte
de angústia frente à impossibilidade de se viver uma vida significativa. Isso explica a
importância das ideias em suas obras, nas quais as situações-limite em que se encontram

305
Lukács, A teoria do romance, 161.
306
Ibidem, 160.
307
Carlos Eduardo Jordão Machado, As formas e a vida: estética e ética no jovem Lukács (1910 - 1918)
(São Paulo: Editora Unesp, 2003), 107.

146
os personagens os impelem a questionamentos a respeito da existência de Deus, da
moralidade, do livre arbítrio, da razão e da culpa que deixam de ser abstratas e, pela
intensidade dramática e ficcional conquistada pelo autor, tornam-se algo vivo, são
vivenciadas pelos personagens e pelo leitor 308. Ademais, por terem como ponto de
partida de sua configuração esse vazio de sentido do mundo, as obras de Dostoiévski
põem em cena heróis que são a mais perfeita realização do anti-heroísmo, pois a loucura
e o crime, objetivações da cisão entre indivíduo e mundo, alcançam em seus
personagens uma profundidade inaudita: seus heróis não procuram integrar-se ao
mundo, mas voltam-se contra ele.

A especificidade desse conteúdo, por sua vez, impõe uma série de modificações
formais às obras do escritor russo. Apenas a título de ilustração do problema, o
momento destacado aqui será o da reflexão. No romance tradicional do XIX,
representado à perfeição por Flaubert, a reflexão se fazia presente nos comentários do
narrador a respeito dos acontecimentos ou nas análises dos estados de ânimo dos
personagens. Em Dostoiévski, ela é a tal ponto radicalizada que se torna a própria ação
narrada. Isso se evidencia na função central dos diálogos e monólogos para a narrativa.
Essa centralidade, por sua vez, torna patente a mudança de lugar do narrador, que perde
o antigo posto de organizador da narrativa, que ainda detinha em Flaubert. Em
Dostoiévski, o narrador não paira acima dos eventos, julgando-os sob um ponto de vista
distanciado, mas passa a ser apresentado como mais um ponto de vista dentre outros na
obra.

Desse modo, o predomínio da reflexão nas obras do escritor russo já aponta para
o papel que ela desempenharia de maneira plena nos romances do século vinte, nos
quais a reflexão não é mais uma tomada de partido do narrador frente aos personagens,
mas um ataque à própria pretensão do narrador de apresentar o mundo “tal como ele é”.
Adorno uma vez afirmou que a psicologia que se faz presente na obra de Dostoiévski
não é a dos seres empíricos, dos homens que andam por aí, mas a do caráter inteligível,
da essência 309. Esse traço de sua obra prenunciaria a virada metafísica do romance

308
Como afirma Sergio Givone a respeito do homem do subsolo, personagem de Dostoiévski: “seu lúcido
delírio é fruto daquela força que leva o homem a criar e a destruir, sem outra razão além da gratuidade, da
liberdade (a liberdade de quem não se importa com lei alguma, nem mesmo com o ‘dois mais dois são
quatro’). Assim ele “verifica” a irredutível falta de fundamento da experiência”. Sergio Givone, “Dizer as
emoções”, in A cultura do romance (São Paulo: Cosac Naify, 2009), 470.
309
Theodor W. Adorno, “Posição do narrador no romance contemporâneo”, in Notas de literatura I (São
Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003), 57.

147
moderno que, diante do aprofundamento da reificação, não poderia mais contentar-se
em reproduzir a superfície da vida se quisesse se manter fiel à sua herança realista 310.

Muito ainda poderia ser dito acerca das inovações de Dostoiévski, mas o que foi
exposto até aqui evidencia que, ao curvarem-se à irracionalidade do mundo, sem
procurar apresentá-lo como um todo coerente na configuração, ao relativizarem a
posição do narrador, ao exporem a dilaceração da individualidade de seus heróis, as
obras de Dostoiévski de fato abalaram os pressupostos do romance realista burguês,
como Lukács sugerira. Entretanto, o fato de que hoje continuemos a chamá-las de
romances indica a capacidade que essa forma tem de abrir-se a uma nova realidade e se
transformar, sem, no entanto, tornar-se outra coisa. A permanência do romance, mesmo
que em ruínas, indica também, contudo, que a promessa de um novo mundo continua
barrada pelo “poder estéril do meramente existente”.

310
Ibidem, 58.

148
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