Texto Jamais Vu Port

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Jamais Vu: Nunca Visto

De Stef Smith
Tradução: Renata Aspesi

1
“ Pensei o quanto é desagradável ser trancado do lado de fora; e
então pensei como é pior, talvez, ser trancado do lado dentro.”
Virginia Woolf

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Personagens:

Cassie – Trinta e poucos anos. Sofreu de depressão aos vinte e poucos. Está com
Jason desde a Universidade. É formada em design gráfico e recentemente perdeu o emprego devido
a cortes no orçamento. Ela é calma, inteligente e de fala suave.

Jason – Trinta e poucos anos. Trabalha no setor de treinamento de uma companhia de petróleo.
Amigável, carismático e de natureza boa.

Niobe – Trinta e poucos anos, trabalha para uma firma de seguros. Solteira sem filhos. Tem um
senso de humor duro, levemente agressivo e é a melhor amiga de Cassie há muitos anos. Atenciosa
e charmosa.

Médico – Distante e profissional.

Disque-Emergência (equipe do NHS 24)1 – Gentil mas apressado.

Enfermeira – Do tipo sabe-tudo.

Policial – Profissional e severo.

Nessa tradução optamos por manter poucas pontuações conforme fez a autora. Exceto quando isso
mudava o sentido das frases. (N.T.)

1
NHS 24 é o nome de um serviço confidencial de conselhos e informações de saúde disponível na Escócia, Inglaterra
e alguns países do Common Wealth. Permite que as pessoas que se sentem mal obtenham ajuda até que seja
possível consultar o GP (General Practioner), algo como um clínico geral de posto de saúde. (N. T.)
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CASSIE: Obrigada. Por isso. Por escutar. Dadas as circunstâncias significa muito que você...
Porque quando ninguém está te escutando ou você se sente como se ninguém estivesse escutando
você, você começa a … a … a … Você tá sentindo esse cheiro? A gasolina. Eu ainda posso sentir o
cheiro. Ainda. Depois de anos. Eu me preocupo que... E a sujeira embaixo das minhas unhas. Posso
ver. Esfregava por horas. Até meus dedos sangrarem e ficar com sangue por todo lado e vidro no
meu cabelo. Segundo por segundo as coisas mudam. Pendem para mudanças. Acho que ao invés de
derramar lágrimas estou trocando de pele.

JASON: Surpresa! Posso perguntar por que exatamente você está na banheira?

CASSIE: Estou só experimentando o tamanho.

JASON: O tamanho tá bom?

CASSIE: Perfeito.

JASON: Tem lugar pra mais um? (entra na banheira)

CASSIE: Ei! Eu nunca falei que você podia entrar.

JASON: E também nunca falou que não podia. Agora, olha só, o que é uma banheira sem uma
taça de champanhe? Nós conseguimos.

CASSIE: Sim, conseguimos.

JASON: Saúde, Sra. Paul

CASSIE: Saúde, Sr. Paul.

O beijo

CASSIE: Eu realmente amo esse lugar, me dá uma sensação muito boa

JASON: Eu gosto da forma como eles colocam o teto lá em cima e o chão aqui em baixo é
realmente ótimo.

CASSIE: Ah, cala boca

JASON: O que?

CASSIE: Você não percebe? Esse é o início de tudo, é assim que tudo começa

JASON: Acho que você vai concordar que já começou faz tempo

CASSIE: É. Mas eu não posso ser responsabilizada pelas minhas ações depois de três dias de
bebedeira.

JASON: Arrependimento súbito?

CASSIE: Agora é um pouco tarde demais pra dar as costas

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JASON: Não sei. Teria só um divórcio e a hipoteca pra romper. Acho que hoje em dia dá pra
fazer tudo pela internet.

CASSIE: Me parece trabalho demais. Talvez seja melhor a gente continuar junto mesmo

JASON: Devemos tentar?

CASSIE: É melhor. Eu não quero ter que devolver os presentes de casamento.

JASON: Não sei, alguns deles estão amassados e faltando partes

CASSIE: Eu sabia que você não tinha gostado do patchwork da minha mãe!

JASON: Eu nunca disse isso! Mas não precisamos de duas chaleiras

CASSIE: Talvez a gente precise. Podemos colocar uma no escritório.

JASON: Mas quem sabe quanto tempo aquilo vai continuar sendo escritório? Podemos precisar
de um segundo quarto

CASSIE: É mesmo?

JASON: Bem, pode ser

CASSIE: Sim, acho que poderíamos... a gente continua desempacotando?

JASON: Caixas podem esperar... (se inclina sobre ela)

CASSIE: Podemos pelo menos achar alguns talheres para jantar?

JASON: A gente pode comer com as mãos... (aperta seu corpo contra o dela)

CASSIE: E a arrumação da cama?

JASON: Vamos dormir aqui essa noite... (eles estão cara a cara, deitados um sobre o outro)

CASSIE: Mas eu não acho (ele a beija) que tenha bastante (ele a beija de novo) boa ideia.

Som de telefone tocando

DISQUE-EMERGÊNCIA: Alô Disque-Emergência pode falar seu nome e região

CASSIE: Cassandra Paul, Glasgow

DISQUE-EMERGÊNCIA: O que posso fazer por você Senhorita Paul?

CASSIE: Senhora. Estava pensando se você poderia me ajudar, por favor

DISQUE-EMERGÊNCIA: Qual é o problema?

CASSIE: Tenho tido dores de cabeça


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DISQUE-EMERGÊNCIA: Que tipo de dor a senhora está sentindo?

CASSIE: Tipo dor

DISQUE-EMERGÊNCIA: É lancinante, chata, faiscante, latejante?

CASSIE: Hã... Eu não sei, chata e latejante eu acho... às vezes lancinante

DISQUE-EMERGÊNCIA: E por quanto tempo?

CASSIE: Há uma semana mais ou menos

DISQUE-EMERGÊNCIA: Alguma ideia da causa?

CASSIE: Causa?

DISQUE-EMERGÊNCIA: A senhora ficou doente? Estressada? Sofreu algum ferimento na


cabeça?

CASSIE: Nada disso, bem talvez um pouco estressada, eu acabei de mudar de casa

DISQUE-EMERGÊNCIA: Procurou o posto de saúde?

CASSIE: Não, por isso estou ligando pra você

DISQUE-EMERGÊNCIA: Existem outros sintomas? Visão dupla? Coceiras? Músculos


arqueados?

CASSIE: Não, nenhum

DISQUE-EMERGÊNCIA: Está te impedindo de realizar tarefas diárias?

CASSIE: Não

DISQUE-EMERGÊNCIA: OK, Senhorita Paul

CASSIE: Senhora.

DISQUE- EMERGÊNCIA: Senhora Paul, eu diria que a senhora está sofrendo dores
relacionadas a stress, possivelmente devido a desidratação. Se esforce para beber bastante água
durante o dia e tome paracetamol para dor, se continuar ou a senhora tiver algum outro sintoma
repentino eu procuraria o posto de saúde.

CASSIE: Ok, tudo bem. Então não há nada para eu me preocupar.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Não pela minha avaliação, se a senhora quiser uma segunda opinião
eu sugiro que a senhora vá ao posto de saúde.

CASSIE: Entendo.

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DISQUE-EMERGÊNCIA: A senhora se importa que eu coloque essa informação no seu
prontuário para o médico saber que a senhora nos procurou?

CASSIE: Tudo bem.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Há mais alguma coisa que eu possa fazer pela senhora?

CASSIE: Não, acho que não. Obrigada pela ajuda. Obrigada pelo seu tempo. Por escutar. Por
muito tempo ninguém queria me escutar e agora todo mundo escuta. Bem, eles querem que eu
fale... eles não escutam de verdade. Todos querem saber sobre o momento em que o céu se tornou o
chão. Tudo mudou; mesmo assim não foi o fim do mundo. Nunca vai ser o fim.

JASON: Cheguei. Como foi seu dia?

CASSIE: Bom, como foi o seu?

JASON: Estressante. Chato. Se é que é possível. Como está indo o desempacotar das coisas?...
espera. Você tá ouvindo Elton John?

CASSIE: Talvez... É gostoso de ouvir... bom pra desempacotar. Já consegui fazer quase tudo da
cozinha.

JASON: Ótimo, o que temos pra jantar?

CASSIE: Massa?

JASON: Já comi no almoço.

CASSIE: Salada.

JASON: Acho que não estou a fim.

CASSIE: Curry?

JASON: Ótimo.

CASSIE: Liguei pro Disque-Emergência hoje.

JASON: É? Por que?

CASSIE: Estava com dor de cabeça.

JASON: Não tenho certeza de que seja motivo pra ligar pra disque-emergência, querida

CASSIE: Não, estou tendo há uma semana

JASON: Por que você não falou nada?

CASSIE: Não estava me incomodando muito até hoje

JASON: Você devia ter falado, o que eles disseram?


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CASSIE: Beba mais água e tome analgésicos.

JASON: Que desperdício de dinheiro de impostos, até eu poderia ter te dito isso... tá se sentindo
melhor?

CASSIE: Acho que sim

JASON: Parece um pouco demais ligar para o Disque-Emergência Cassie... na próxima vez tire
um cochilo.

Ele a beija na testa.

JASON: Não precisa fazer um drama com tudo.

CASSIE: Eu não estava fazendo drama, eu estava tentando me sentir melhor.

JASON: Ah-hã... Vou voltar tarde amanhã

CASSIE: É?

JASON: Tenho uma reunião na zona norte de manhã com novos recrutas, o petróleo não vai
fazer perfurações sozinho

CASSIE: Aparentemente não, eles são bons?

JASON: Sim, bons mas jovens. Estão mais jovens a cada ano.

CASSIE: Não, você é que está envelhecendo.

JASON: Uau.

CASSIE: Mas a cada ano mais bonito

JASON: Se você está dizendo.

CASSIE: Essa é a parte em que você fala que eu também fico melhor a cada ano.

JASON: Você fica melhor, minha maravilhosa esposa . Você está melhor do que no dia em que
eu te conheci. Até mesmo mais jovem. Mais jovem do que no dia em que te conheci.

CASSIE: Espero que não, porque isso seria ilegal.

JASON: Você parece ter exatamente a mesma idade de quando te conheci.

CASSIE: Obrigada.

JASON: O prazer é meu.

Eles se beijam.

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NIOBE: Esse lugar é um castelo!

CASSIE: Não chega aos pés do Palácio de Buckingham.

NIOBE: Mas comparado ao último buraco

CASSIE: Como?

NIOBE: Deixa disso, nós duas sabemos que vocês melhoraram muito aquele apê anos atrás.

CASSIE: Bem, esse aqui precisa de trabalho

NIOBE: Mas vai ficar incrível quando vocês tiverem terminado. O Jason tá por aí?

CASSIE: Não, vai trabalhar até tarde.

NIOBE: Ótimo, eu trouxe vinho. Não podia vir de mãos vazias mas também não queria ficar
ouvindo os resmungos dele por aí toda hora.

CASSIE: Ah, espera aí ele não é tão ruim assim!

NIOBE: Ele não estava exatamente se divertindo da última vez.

CASSIE: … Eu não desembalei as taças de vinho ainda. Então vai ter que ser uma caneca de
vinho.

NIOBE: Caneca, copo, jarra, eu não ligo. Quais serão as cores da casa?

CASSIE: Estou pensando em cores suaves.

NIOBE: Pastel mesmo? Você não quer alguma coisa um pouco mais vibrante?

CASSIE: Eu quero neutro porque aí coloco cor nos acessórios, aí posso escolher o que realmente
quero.

NIOBE: Ah, sei.

CASSIE: Como vai o trabalho?

NIOBE: Devagar. Ninguém quer comprar seguros hoje em dias, idiotas.

CASSIE: Custam caro.

NIOBE: Mas são necessários.

CASSIE: Se você tá dizendo.

NIOBE: Como vai a busca por emprego?

CASSIE: Não procurei desde que nos mudamos. Jodie fala que pode ser que tenha lugar para
mim dentro de uns dois meses, tempo em que ela vai se afastar por causa da licença maternidade.
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NIOBE: Você voltaria?

CASSIE: Eu não sei se tenho muita escolha, precisamos do dinheiro se realmente quisermos
levantar esse lugar direito.

NIOBE: Os filhos-da-mãe te demitiram.

CASSIE: Eles estavam cortando gastos. Não existe mais trabalho pra designer gráfico. Se tudo
mais falhar eu vou ter que mudar de carreira

NIOBE: Voltar pra universidade?

CASSIE: Talvez. Ainda não sei. Eu gostaria de ter um recomeço, algo novo.

NIOBE: Difícil algo novo aos 32.

CASSIE: Bem eu vou tentar

NIOBE: Bem, um brinde aos começos seminovos

CASSIE: Eu tenho acordado todo dia por mais de trinta anos e cada dia é como novo. Me pego
no limite de saber como ele acaba e não saber se vai... no final das contas sou apenas uma pessoa.
Só uma pessoa. Pessoas, humanos, são tão confusos. Maravilhosamente confusos... sempre tentando
limpar uns aos outros. Limpar a bagunça, o vidro, o metal retorcido, o cascalho, o combustível.
Ainda posso sentir o cheiro. Lavado com alvejante por horas mas nem isso pôde encobrir o cheiro.
(médico interrompe)

MÉDICO: Então começou duas semanas atrás?

CASSIE: Acho que sim.

MÉDICO: Ok. Você está tendo algum problema com essa medicação?

CASSIE: … Não.

MÉDICO: Então você está tomando citalopram para ansiedade. Você vem tomando agora...

CASSIE: 5 anos. Há 5 anos.

MÉDICO: Sei. E durante esse tempo você fez terapia po um tempo?

CASSIE: Fiz. Mas foi há mais de 4 anos atrás.

MÉDICO: Entendo. E isso ajudou?

CASSIE: Ajudou... não... não tenho certeza de que eu estava pronta para falar.

MÉDICO: E você está agora?

CASSIE: Provavelmente não.


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MÉDICO: Entendo. Existem serviços de saúde psicológica que você pode usar. Terapia e tudo.
Tem uns panfletos na sala de espera, se você se interessar. Por agora é melhor apenas se manter
firme para o caso de uma eventual queda. Você não concorda?

CASSIE: Acho que sim.

MÉDICO: Também acho que sim. Você está tendo algum outro problema? Ainda tem dificuldade
pra dormir?

CASSIE: Tenho

MÉDICO: Ok, bem talvez a gente possa pensar em mudar você para mirtazapina. Agora essa dor
misteriosa que você tem mencionado. Você diria que a dor que você vem sentindo é
predominantemente por trás das orelhas e dos olhos?

CASSIE: Sim.

MÉDICO: Numa escala de 1 a 10, em que dez é o pior, como está a dor?

CASSIE: Eu não sei... no 6.

MÉDICO: Ah-hã. Você diria que a dor te impede de realizar tarefas diárias? Se vestir, comer,
andar

CASSIE: Bem... na verdade, não...

MÉDICO: Dores de cabeça prolongadas em mulheres da sua idade não costumam ser nada sério.
Vamos começar te dando mirtazapine e ver onde isso nos leva. Não há razão para ansiedade,
Cassandra. Você ficaria surpresa com a quantidade de pessoas que toma medicamentos.

CASSIE: O alvejante manchou a minha pele. Deixou a pele branca como pérola, como um
fantasma. Eles não me deixavam tomar banho depois daquilo. Não sozinha. A vida pode tirar coisas
de você... às vezes te lança coisas... de algum lugar distante. E aterrisam no seu colo, na sua cama,
no seu peito. Jogadas adiante. A dor daquele cinto se esfregando contra sua pele. Comprimida
contra o volante. Fiquei com a marca de uma carranca no machucado do meu peito por meses. Mas
de onde eu a via parecia um sorriso.

JASON: Acho que deveríamos ter um bebê.

CASSIE: (Cassie ri) ah, desculpa, você está falando sério.

JASON: Sim. Cassie. Eu estou. Você não acha que está na hora?

CASSIE: Bem, eu acho que, quer dizer...

JASON: Nós estamos casados há três anos Cassie!

CASSIE: Mas eu não... não é que eu não... quer dizer, será que temos dinheiro pra isso?

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JASON: Provavelmente não, mas podemos fazer dar certo. Todo mundo faz dar certo de algum
jeito. Eu acho que faria bem pra nós, faria bem pra você. Você é tão boa com crianças e você está
bem há bastante tempo agora. E pensa bem,você não tem nenhum compromisso no momento,
espere e procure trabalho quando o bebê estiver maior. Na verdade, é perfeito. Você está com todo
esse tempo.

CASSIE: Mas isso não quer dizer... Eu não tenho tempo na verdade, eu tenho que pintar o quarto
vago... O que eu quero dizer é como sabemos se nós podemos mesmo, quer dizer minha irmã teve
todos aqueles problemas

JASON: Bem, podemos pelo menos tentar.

CASSIE: Tentar?

JASON: Vamos tentar. Por mim.

(Som de telefone tocando)

DISQUE-EMERGÊNCIA: Alô Disque-Emergência, pode falar seu nome e região

CASSIE: Cassandra Paul, Glasgow

DISQUE-EMERGÊNCIA: O que posso fazer por você Senhorita Paul?

CASSIE: Senhora, eu estava imaginando se você poderia me ajudar por favor

DISQUE-EMERGÊNCIA: Qual é o problema?

CASSIE: Venho tendo dores de cabeça, eu liguei há algumas semanas atrás.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Senhora Paul existem centros de Disque-Emergência por todo o país,


as chances da senhora ter ligado para o mesmo centro ou a mesma pessoa são muito pequenas.

CASSIE: Ah, sei... então é como falar com uma pessoa nova a cada vez?

DISQUE-EMERGÊNCIA: Isso mesmo. Nós colocamos suas informações no seu arquivo, mas
em caso de alguma emergência não é sempre que temos tempo pra isso e algumas pessoas preferem
usar o serviço anonimamente.

CASSIE: Ah... então ninguém jamais saberia.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Você ficaria chocada se soubesse pra quê essas pessoas usam esse
serviço, Sra. Paul. Então, que tipo de dor você está sentindo?

CASSIE: Chata e latejante

DISQUE-EMERGÊNCIA: E por quanto tempo?

CASSIE: Há umas quatro semanas.

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DISQUE-EMERGÊNCIA: Alguma ideia da causa?

CASSIE: Eu não sei.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Ok, então... Tem algum outro sintoma? Visão dupla? Coceira?
Músculos arqueados?

CASSIE: Visão dupla, mas falei ao médico sobre isso.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Está te impedindo de realizar tarefas diárias?

CASSIE: Está

DISQUE-EMERGÊNCIA: Quais?

CASSIE: Eu preciso pintar o outro e não consigo.

DISQUE-SAÚDE: Devido a dor?

CASSIE: Não apenas não quero.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Ah. Senhora Paul esse serviço é pra ajuda médica, posso te perguntar
por que ligou para o Disque-Emergência hoje?

CASSIE: Eu preciso que essas dores de cabeça passem. Tudo está mudando e eu tenho muito o
que fazer. O céu está caindo. E uma hora o céu vai virar o chão. Vai ter cascalho pra todo lado e
essas dores de cabeça- elas são muito aflitivas

DISQUE-EMERGÊNCIA: Posso imaginar, Sra. Paul, mas você deve ir ao posto de saúde se
acha que está ficando pior. Outra opção é procurar o pronto-socorro se estiver piorando rápido.

CASSIE: Não, está piorando gradativamente. Como gasolina pingando de um tanque. Pinga.
Pinga. Pinga.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Eu recomendaria que a senhora tomasse algo para a dor, Sra. Paul.

CASSIE: E beber mais água?

DISQUE-EMERGÊNCIA: Sim, isso é o que eu recomendaria.

CASSIE: Provavelmente não devo beber gasolina então

DISQUE-EMERGÊNCIA: Não, eu certamente não recomendaria isso. Sra. Paul, a senhora está
em uma situação segura?

CASSIE: Perfeitamente segura. E sobre a pintura?

DISQUE-EMERGÊNCIA: Sinto muito, Sra. Paul, mas isso está fora da minha jurisdição. Mas
eu diria que se a senhora não quer fazer a pintura, então eu não me incomodaria com isso. É só uma
pintura. Tem mais alguma coisa que eu possa fazer pra te ajudar, Sra. Paul?
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CASSIE: Não. Obrigada. Você me ajudou muito.

JASON: Você está linda hoje, ainda mais linda do que ontem.

CASSIE: Obrigada. Você também está muito bonito. Teve um dia cheio hoje?

JASON: Como sempre. Reuniões direto até as 8.

CASSIE: Ah. Também tenho que sair pra fazer várias coisas, vou mandar flores e um cartão de
aniversário pra sua mãe

JASON: Do mercado?

CASSIE: É.

JASON: Ótimo. Ela não gosta de lírios.

CASSIE: Lírios são para morte. Ninguém precisa morrer antes da sua hora. Exceto quando ... eu
sei... pensei que eu iria pintar o outro quarto...

JASON: Ah é?

CASSIE: Verde. Pensei em pintar de verde.

JASON: Já é verde.

CASSIE: Eu quero pintar com um verde mais claro. O verde que está agora é muito escuro. Faz
o quarto ficar muito escuro. Você não sente isso? A escuridão. Acho que fica cada vez mais escuro.
A tinta depois de seca sempre fica mais escura. A tinta cheira a gasolina também. É horrível. Você
não sente o cheiro?

JASON: Não, nunca senti esse cheiro.

CASSIE: É isso que está me dando dor de cabeça. Tenho certeza.

JASON: Talvez se abríssemos umas janelas então

CASSIE: Não posso.

JASON: Por que?

CASSIE: Pintei as janelas fechadas

JASON: O que?

CASSIE: Por acidente. Esqueci de cobrí-las. Foram pintadas fechadas.

JASON: Caralho, Cassie. Que tal tomar mais cuidado!

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CASSIE: Está tudo certo. Procurei no Google como consertar. Vou arrumar removedor de tinta,
isso não vai me tomar mais do que uma tarde.

JASON: Você está planejando encher a casa com esse cheiro horrível então?

CASSIE: Não fique bravo Sr. Paul

JASON: Bem Sra. Paul... é que você... às vezes você torna difícil a coisa mais simples, pra você
mesma. Estou só pensando em você.

CASSIE: Eu te incomodo?

JASON: Não, você me preocupa.

CASSIE: Eu estou bem.

JASON: Palavra de Paul?

CASSIE: Palavra de Paul.

JASON: Então bom dia... vai ser alegre... construtivo...

CASSIE: Faz 15 anos, sabe. Foi por isso que pensei nela. Fizeram minutos de silêncio pra ela na
TV. Minuto de silêncio é uma coisa muito rara. Tudo poderia acontecer... mas claro que só pensei
nela. Minha infância foi cheia de lembranças. Tínhamos o casamento anual, a edição para
colecionadores da Hello2 e até uma pequena estátua da Princesa Di em seu vestido de casamento.
Nem tinha pensado mais nela em quinze anos. Quando eu tinha mais ou menos quinze fiquei sem
comer por uma semana antes da festa da escola minha mãe notou logo e disse: “ a Lady Di não faz
isso, faz? Lady Di não faria nada assim.” Mas ela fazia. Ela fez várias coisas que ninguém soube.
Todos nós fazemos.

NIOBE: Como se chama?

CASSIE: Verde do campo.

NIOBE: É legal, quer dizer, mas não tenho certeza se é do campo.

CASSIE: Bem, mas é assim que a chamaram.

NIOBE: Mesmo assim não faz com que seja um campo, com certeza não o transforma num
campo... como está indo o novo começo?

CASSIE: Pra mim fazer a decoração é como pavimentar uma nova estrada, começar de novo,
melhorar o que já está lá. Verde. Cor preferida da Princesa Diana.

NIOBE: Princesa Dia... o que?

CASSIE: Cor preferida da Princesa Diana.

2
Hello é um revista semanal inglesa de fofocas sobre celebridades.
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NIOBE: Ela vai vir visitar? Retornando da tumba pra morar no seu outro quarto?

CASSIE: Não. Só tava falando.

NIOBE: Ai, isso é... é esquisito, Cassie. É uma coisa esquisita de se dizer.

CASSIE: Minha mãe adorava ela. No dia que ela morreu ela simplesmente sentou no carro e
chorou. Ouvindo o rádio. Ela não queria que eu visse que ela estava chorando. Mas é claro que eu
vi. Era só olhar pela a janela da frente. Difícil não ver uma mulher chorando. Tinha lenços usados
no carro por semanas depois da morte dela.

NIOBE: Eu achava que sua mãe não gostava de nada.

CASSIE: Também achava. Mas com certeza ela amava a Princesa Di.

NIOBE: Então vai ser verde para Lady Di?

CASSIE: Não. Apenas me ocorreu que era a cor preferida dela. Só isso.

NIOBE: Sei. Mas vale o esforço? Quero dizer, eu sei que vocês querem guardar dinheiro mas o
que vocês não gastarem com ajudante vão gastar em energia.

CASSIE: Vai valer a pena, te juro.

NIOBE: Não acredito em você

CASSIE: Tudo bem não acredite então

NIOBE: Eu só acho que talvez a sua energia poderia ser gasta de uma forma melhor. Acho que
nós duas sabemos disso. Eu não quero que você trabalhe demais, compensando por estar
desempregada. Por favor pega leve.

CASSIE: Não use a palavra com 'd ' por favor.

NIOBE: Mais alguma novidade sobre isso?

CASSIE: Não. Nenhuma mesmo. Estou me concentrando em deixar a casa bacana

NIOBE: Bem isso certamente é um trabalho que está andando.

CASSIE: Meu Deus Niobe, será que a gente poderia ter um pouco menos das suas cutucadas
sarcásticas? É cansativo pra caralho

NIOBE: Eu tô tentando deixar o clima mais leve!

CASSIE: Bem mas não está deixando! Faz de você realmente uma companhia de merda.

NIOBE: Ah, me desculpe por ser uma amiga de merda.

CASSIE: Eu não falei amiga de merda. Falei companhia.


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NIOBE: Ah, qual é a diferença? Porra Cassie você ficou tão... tão... tão chata! Desde quando
você ficou obcecada com a merda pintura verde da cor favorita da Princesa Diana. Quando foi a
ultima vez que a gente saiu? Quando foi a ultima vez que a gente conversou sobre algo que não
fosse pintura!? Você costumava ser divertida. A gente se divertia.

CASSIE: Merda! (Longa pausa) Não consigo... É só... Merda.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Alô Disque-Emergência, pode falar ( interrompe )

CASSIE: Cassandra Paul, Glasgow

DISQUE-EMERGÊNCIA: Obrigada. ( interrompe )

CASSIE: Senhora. Sra. Paul.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Está tudo bem, Sra. Paul? É alguma emergência?

CASSIE: Sim

DISQUE-EMERGÊNCIA: Pode me dizer e eu passarei a senhora ao serviço de ambulância

CASSIE: Estou grávida.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Está tendo algum sangramento?

CASSIE: Não

DISQUE-EMERGÊNCIA: Está com dores?

CASSIE: Sim.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Onde?

CASSIE: Por trás dos meus olhos

DISQUE-EMERGÊNCIA: A senhora sofreu algum acidente?

CASSIE: Não

DISQUE-EMERGÊNCIA: A senhora está de quanto tempo?

CASSIE: Ah... Eu não sei, 6 semanas.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Sei. Quando a senhora descobriu que estava grávida?

CASSIE: Há cerca de 30 minutos atrás

DISQUE-EMERGÊNCIA: Senhora Paul a senhora precisa de um serviço de ambulância hoje?

CASSIE: Não
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DISQUE-EMERGÊNCIA: Entendo. E como eu posso te ajudar...?

CASSIE: Eu precisava contar pra alguém

DISQUE-EMERGÊNCIA: Bem, o posto de saúde vai ter um novo grupo de mães do qual a
senhora poderia fazer parte e também poderia visitar a enfermeira do seu bairro para
aconselhamento em como ter uma gravidez saudável.

CASSIE: Sim eu sei.

DISQUE-EMERGÊNCIA: A senhora gostaria que eu pedisse a um médico pra ligar e falar com
a senhora hoje sobre participar desses grupos?

CASSIE: Não obrigada. Desculpa. Estou em choque. Precisava falar pra alguém.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Eu agradeço Sra. Paul mas essa linha é de um serviço de emergência,


se a senhora precisar falar com alguém eu posso te dar o número dos Samaritanos ou do serviço de
terapia

CASSIE: Não. Eu não sou louca. Eu falei que não queria beber combustível.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Eu nunca disse que era Sra. Paul... e a senhora nunca disse que
tinha... existem ótimos serviços que você pode usar se você precisar falar com alguém

CASSIE: Eu só... quando aquelas duas linhazinhas ficaram azuis... meus lábios ficaram azuis e
meus olhos ficaram vidrados. Que nem vidro mesmo.

DISQUE-EMERGÊNCIA: A senhora está segura em casa Sra. Paul? Acha que está em um
ambiente seguro?

CASSIE: Sim, é claro. Meu marido é amável e apaixonado e ele vai ficar realmente feliz. Ele
quer um bebê

DISQUE-EMERGÊNCIA: E a senhora?

Pausa

CASSIE: Sim claro. Tinha vidro por todo lado. No meu cabelo, debaixo das minhas unhas, nas
dobras da minha roupa íntima. Meu pescoço espremido contra o asfalto. Pedrinhas no canto dos
meus olhos. Mas eu não ousava piscar. Não queria fechar meus olhos nem por um segundo. Pinga,
pinga, pinga.

JASON: Ai meu Deus.

CASSIE: Eu sei

JASON: Ai meu Deus.

CASSIE: Você tá feliz?

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JASON: Feliz! Eu estou encantado. Eu tô... a gente vai... ai, Cassie (ele a abraça)ai meu Deus,
senta, senta. Você deve descansar, está tudo...

CASSIE: Está tudo bem. Eu ainda não estou dando à luz.

JASON: Eu sei...é só que... Você deveria ter me ligado no trabalho!

CASSIE: Não eu quis esperar até que você chegasse em casa.

JASON: Você tá feliz?

CASSIE: Claro

JASON: Não achei que fosse acontecer tão rápido!

CASSIE: Também não

JASON: Meu Deus devo ter bons nadadores. Isso é assustador.

CASSIE: Eu sei.

JASON: Eu te amo

CASSIE: Também te amo

Se beijam

JASON: O que a gente faz agora?

CASSIE: E agora... aquelas duas linhas azuis e tudo muda. Tudo foi jogado ao ar e depois tudo
estava caindo. E ninguém acreditou em mim. Nenhum crédito às dores que eu sentia por trás dos
meus olhos, ninguém viu o que eu vi. O mundo de cabeça pra baixo e de trás pra frente. Olhando
pelo espelho retrovisor eu vi o rosto dela. A quietude e paz do seu rosto.

NIOBE: Trouxe o gim do perdão.

CASSIE: Não posso beber.

NIOBE: Por que? É coisa boa, não é aquela porcaria ...de marca de... supermercado... por que
você não pode beber?

CASSIE: Acho que você sabe.

NIOBE: Você quer dizer... não... você não está... claro... você está! Ai, meu Deus!

CASSIE: Eu sei.

NIOBE: Puta que pariu!

CASSIE: Eu sei.
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NIOBE: Você não parece feliz

CASSIE: Eu não estou. Quer dizer eu estou.

NIOBE: Não está.

CASSIE: Não, não estou. Eu não sei como lidar com isso.

NIOBE: Tudo bem, é assustador. Mas também é excitante pra cacete.

CASSIE: Sinto enjôo.

NIOBE: Enjôo de manhã?

CASSIE; Não, enjôo. Tenho dores por trás dos olhos.

NIOBE: Deve ser apenas nervoso.

CASSIE: Não, sinto como se algo terrível fosse acontecer

NIOBE: É normal toda mãe sente pressão

CASSIE: Não sou uma mãe

NIOBE: Bem você vai ser

CASSIE: Não vou não

NIOBE: Cassie, você foi feita pra ser mãe. Você vai fazer isso super bem.

CASSIE: Você acha que eu consigo?

NIOBE: Claro. Totalmente. Estou um pouquinho triste por perder minha companheira de bebida
por 9 meses mas isso provavelmente vai me fazer bem. Você ainda está chocada. Notícias como
essas, demoram um tempo pra serem absorvidas. Você vai repintar o outro quarto?

ENFERMEIRA: Pode deitar por favor. Não se preocupe, as batas cobrem tudo, não há motivo
pra ficar envergonhada. Obrigada.

CASSIE: Vai demorar?

ENFERMEIRA: Deve levar apenas alguns minutos. Vamos escanear seu lobo frontal onde você
está sentindo dor.

CASSIE: Mas e o resto? E se o problema não estiver lá?

ENFERMEIRA: Bem nós teremos que ver o que é necessário.

CASSIE: Mas e se for algo por trás da minha cabeça que está causando a dor. Ou no meu
pescoço. Ou na porra dos meus calcanhares! Como você sabe de onde está vindo minha dor?
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ENFERMEIRA: Esses exames podem deixar as pessoas muito nervosas. Então Senhorita Paul.

CASSIE: SENHORA!

ENFERMEIRA: Sra. Paul. Se você puder apenas relaxar então nós veremos o que é preciso. Eu
seguirei as observações dos médicos até que eu ache que algo mais minucioso é necessário. Eu faço
tomografia em cerca de 20 pessoas por dia. Faço isso há dez anos. Não sou médica mas sei o que
estou fazendo. Se o médico achasse necessário escanear você em outros lugares ele teria declarado
isso. Tudo bem?

CASSIE: Tudo bem.

ENFERMEIRA: Só mais uma coisa, você está grávida? Vai precisar de um colete de chumbo?

CASSIE: Não. Não, eu não estou grávida.

ENFERMEIRA: Ótimo vamos começar.

CASSIE: As pessoas continuam a me perguntar. Como é. O que é. O que aconteceu. O que está
acontecendo... eu estive lendo sobre isso. Sobre tudo isso. Eu encontrei uma palavra, uma
expressão. Jamais vu. Nunca visto. A sensação de estranheza em relação a algo muito familiar. O
contrário de Déjà Vu. Como quando você escreve uma palavra de novo e de novo e de novo e ela
perde o seu significado. Palavras como combustível, palavras como desculpe, palavras como filha.

JASON: Andrea. O que você acha do nome Andrea? Ou então Susan, sempre gostei, como a
minha avó.

CASSIE: Que tal Polly?

JASON: É bonito. Fofo. Estou feliz por você ter pensado nisso também!

CASSIE: É claro que pensei. Ela está no meu útero.

JASON: Eu sei mas você nunca falou nada a respeito. Nem uma vez.

CASSIE: Estou ocupada.

JASON: Eu também estou ocupado! Mas isso ainda é minha prioridade!

CASSIE: Prioridade! Você quer saber por que você nunca me ouviu falar sobre isso? Porque
você nunca está aqui! Você está SEMPRE fora.

JASON: Sabe por que estou sempre fora? Porque você não trabalha!

CASSIE: Eu estou grávida! E eu procurei emprego depois que eles me dispensaram. Mas não
achei nada! Como você se atreve a jogar isso na minha cara?

JASON: Ah, por favor! Você mal procurou! Você ficou toda triste e doente e parou de tentar! Era
um trabalho de tempo integral tomar conta de você!

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CASSIE: Ah, dá um tempo Jason você gostava pra caralho de brincar de enfermeiro. Tá
querendo enganar a quem, entre nós dois você tem mais jeito do que eu!

JASON: Tudo o que eu quero é que a gente seja feliz!

CASSIE: Tudo o que eu quero é que você esteja aqui. Não apenas em pessoa. Não apenas um
corpo na cama eu quero que você esteja aqui por nós. Eu quero ajuda.

JASON: Então me deixe entrar!

CASSIE: Estou tentando!

JASON: Bem tente mais!

CASSIE: A pintura nunca secou. Nenhuma vez naquela parede do quarto. Continuei fazendo
camadas e camadas de tinta. Até que o quarto realmente se tornou menor. Apenas por milímetros
mas ainda assim menor. E meu mundo se tornou menor. Se tornou o bebê e eu. Mas era invisível.
Essa pequena larva dentro de mim. Invisível mas mudou tudo. São sempre as coisas que as pessoas
não podem ver as que mais te transformam.

DOUTOR: Então esses exames vieram limpos Sra. Paul o que é uma boa notícia. Não há nada ali
que possa colaborar para a dor. Quando muito eu diria que os seus lóbulos frontais são menores do
que eu imaginava. Seu hipocampo também. Me diga, com exceção dessa dor física. Como você está
se sentindo?

CASSIE: Bem

DOUTOR: Você notou alguma alteração de humor? Você está tomando mirtazapine?

CASSIE: Sim estou... Acho que tenho estado mais cansada ultimamente, estressada.

DOUTOR: Alguma razão pra isso acontecer?

CASSIE: Bem, eu e meu marido vamos ter um bebê.

DOUTOR: Parabéns. É o primeiro?

CASSIE: É.

DOUTOR: Bem, então Sra. Paul eu diria que a dor que você está sentindo pode estar relacionada
a stress. E o seu corpo estará mudando para se acomodar ao bebê. Diminuição nessas áreas do
cérebro estão ligadas a mudanças na química do cérebro. Por exemplo aqueles que têm dores
crônicas, depressão, stress, tudo pode levar a isso.

CASSIE: Eu tenho dor crônica.

DOUTOR: Eu percebi isso mas eu não acho que isso seja uma causa direta eu acho que é um
sintoma de outras circunstâncias.

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CASSIE: Circunstâncias? Ter um bebê não é uma circunstância. Quer dizer, quantos bebês você
já teve?

DOUTOR: Tenho dois filhos.

CASSIE: Não isso não foi o que eu perguntei, eu perguntei quantos bebês você TEVE.

DOUTOR: Posso arrumar uma médica mulher se você preferir.

NIOBE: Então, encomendou o berço?

CASSIE: Hã?

NIOBE: O berço. Para o bebê.

CASSIE: Sim. É de pinho. Eu vou pintá-lo.

NIOBE: Verde do campo?

CASSIE: Qualquer coisa assim.

NIOBE: Você tá bem?

CASSIE: São só essas dores de cabeça.

NIOBE: Você devia procurar um médico.

CASSIE: Eu fui, fui pra fazer uma tomografia.

NIOBE: Uma tomografia? Você devia ter dito.

CASSIE: Eu não queria fazer um drama.

NIOBE: Deus do céu! Fazer um drama? Que porra de fazer um drama? Você vai ter um bebê.
Essa é a única vez na vida que você está autorizada a fazer drama e se dar bem! Eu estou
preocupada com você Cassie.

CASSIE: Não precisa se preocupar Niobe. Eu só quero fazer isso direito.

NIOBE: Preciso ficar por perto.

CASSIE: Você está perto suficiente. Eu só sinto que não estou tendo a chance de curtir nada
disso.

NIOBE: Bem talvez você precise tentar e curtir mais isso...

CASSIE: E se eu não for boa pra isso, e se eu for uma mãe terrível e o bebê me odiar ou pior
ainda seja tirado de mim.

NIOBE: Isso não vai acontecer.

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CASSIE: Mas e se acontecer?

NIOBE: E se? Você vai começar a enlouquecer se jogar esse jogo.

CASSIE: Stress pode acontecer a qualquer um, até mesmo àqueles que não deveriam... eu ainda
posso lembrar as palavras daquela entrevista estranha para a Horizon quando ela falou: ' quando
ninguém te escuta, ou você se sente como se ninguém tivesse escutando, todo tipo de coisas
começam a acontecer como por exemplo se você sente muita dor por dentro você começa a querer
machucar o que está por fora porque você quer ajuda. Então hmmm sim, eu causei isso a mim
mesma, eu não gostava de mim eu estava envergonhada porque eu não conseguia lidar com as
pressões ´ pobre Lady Diana. Eles a chamavam de instável. As pessoas parecem gostar desse rótulo.
Parece fazer com que se sintam seguros. Melhor assim, antes ela do que eles.

JASON: Sinto muito. Por ter gritado na outra noite. Aquilo não foi justo.

CASSIE: Bem eu também não estava exatamente no meu direito.

JASON: Sim mas acho que você tem uma vantagem nessa. Me desculpa?

CASSIE: Você não precisa ser desculpado.

JASON: Eu acho que preciso me lembrar do stress que você está passando. Eu sinto muito. Vou
tentar ao máximo estar mais por perto.

CASSIE: Você tem 9 horas do dia pra não pensar nisso. Eu não tenho isso. Eu não tenho nada
disso.

JASON: Sinto muito

CASSIE: Não sinta. Fique perto.

JASON: É difícil

CASSIE: Não venha me dizer o que é difícil

JASON: Você não acha que é difícil estar prestes a ser pai? Esperam que eu esteja preparado, não
posso ser forte por nós 3. Tenho minhas próprias questões pra lidar.

CASSIE: Então fale comigo. Fale comigo sobre isso, me fale o que faz você ficar acordado de
noite, me fale o que faz você não conseguir comer, me fale!

JASON: Você.

CASSIE: Eu?

JASON: Estou preocupado com você. Não quero que você fique doente de novo.

CASSIE: Eu não estava doente Jason, estava deprimida.

JASON: E a última coisa que quero fazer é ter que cuidar de duas garotinhas.
24
Pausa.

CASSIE: Não acredito que você disse isso.

JASON: Eu não quis dizer isso. Sinto muito. É que isso tem passado pela minha cabeça e
simplesmente saiu. Você queria que eu falasse.

CASSIE: E aí você falou... Eu prometo não ficar deprimida. Eu posso impedir dessa vez.

JASON: Como você sabe?

CASSIE: Você precisa confiar em mim. Você precisa não se preocupar comigo.

JASON: Eu sempre vou me preocupar com você. É assim que funciona. Sinto muito.

CASSIE: Sinto muito também... Eu fiz um ultrassom.

JASON: Um ultrassom?

CASSIE: É. Olha.

JASON: Caramba. É tão real.

CASSIE: É mesmo.

JASON: E está tudo?...

CASSIE: Saudável? Totalmente. Nada de errado com ele... com o bebê, quero dizer.

JASON: Posso ver os pezinhos.

CASSIE: O quê? Onde... não consegui ver nada

JASON: Não, olha, ali, pés, mãos, a cabeça.

CASSIE: (mentindo) ah é...

JASON: Parece tão perfeito. Agora vou preparar a banheira pra você. Hora de relaxar.

CASSIE: Eu não consegui ver o bebê. Em nenhum dos exames. Parece estática de televisão. Não
consegui ver a minha própria criança dentro de mim. Foi como se eu estivesse cega ao que o resto
do mundo estava vendo. E agora a única coisa que eu posso ver são seus olhos emoldurados pelo
espelho retrovisor. Como vidro. Pérolas congeladas.

Som de um telefone tocando

DISQUE-EMERGÊNCIA: Alô Disque-Emergência, pode falar seu nome e região

CASSIE: Estava imaginando se você poderia me ajudar, por favor

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DISQUE-EMERGÊNCIA: Qual é o problema?

CASSIE: Acho que as coisas estão mudando. Não tenho muita certeza do que fazer (deixa
escapar) quando é muito tarde pra fazer um aborto?

DISQUE-EMERGÊNCIA: Um aborto?

CASSIE: Só pra saber... pra uma amiga.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Bem. É com 24 semanas.

CASSIE: Eu estou... Ah, é mais tarde do que eu pensava.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Quanto mais tardio mais invasivo o aborto pode ser. Nas semanas
finais a mãe tem que dar à luz ao bebê abortado. Tenho certeza de que a senhora compreende que
pode ser uma experiência muito traumática.

CASSIE: Sim, é claro... então você tem que dar à luz de qualquer jeito? … Eu vou falar pra ela.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Bem, tem mais alguma coisa que eu possa fazer pela senhora?

CASSIE: As dores de cabeça. Estão piorando.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Elas estão te impedindo de realizar tarefas diárias?

CASSIE: Sim

DISQUE-EMERGÊNCIA: Quais ?

CASSIE: Viver

DISQUE-EMERGÊNCIA: Ok... pode me dar mais detalhes

CASSIE: Eu estou tendo dificuldades em acordar de manhã e às vezes durante o almoço meus
olhos estão tão cegos que eu tenho que ir me deitar e à noite isso está tão intenso que eu tenho que
me sentar no banheiro.

DISQUE-EMERGÊNCIA: No banheiro?

CASSIE: Sim é o cômodo mais escuro da casa, sem janelas. Então quando eu me sento na
banheira com as luzes apagadas é escuridão total.

DISQUE-EMERGÊNCIA: É enxaqueca?

CASSIE: Não.

DISQUE-EMERGÊNCIA: A senhora consultou o seu médico?

CASSIE: Sim, ele me disse que eram os hormônios ou stress ou stress com hormônios. Fiz uma
tomografia. Fui bem escaneada.

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DISQUE-EMERGÊNCIA: Se os seus sintomas estiverem piorando eu acho que seria melhor a
senhora voltar ao médico e se não ficou satisfeita com seus aconselhamentos a senhora sempre pode
ver outro médico no posto de saúde, possivelmente uma médica mulher? Mas primeiro a senhora
precisa me dar mais detalhes.

CASSIE: Por que as pessoas ficam me falando pra procurar uma médica mulher!

Som de linha de telefone que caiu

JASON: Não acredito que só temos mais uma semana até lá

NIOBE: Não acredito que você só tem mais uma semana até lá.

JASON: Você acha que está na hora

NIOBE: Você se acha pronta?

JASON: Você quer que seja menina ou menino?

NIOBE: Você quer que seja menina ou menino?

JASON: Eu acho que vai ser um menino

NIOBE: Eu acho que vai ser uma menina

JASON: Eu aposto que eles serão lindos. Será que nós temos tudo? Precisamos de alguma coisa?

NIOBE: Você precisa de alguma coisa? Posso fazer alguma coisa por você? Qual é a sensação
quando ele chuta?

JASON: Eu posso sentir o bebê chutar

NIOBE: Como você está dormindo?

JASON: Não consigo dormir estou tão excitado

NIOBE: Como você está se sentindo?

JASON: Estou tão feliz que suas dores de cabeça estejam sumindo

NIOBE: Eu não acho que você deva continuar com a decoração, qual é isso é ridículo.

JASON: Você me deixa pintar? Por favor, só fique deitada, passe o dia descansando.

CASSIE: Eu não podia acreditar no quanto o mundo já a amava e ela nem mesmo existia ainda.
Eu estava estourando. Queria meu corpo de volta. Queria minha vida de volta. Estou cansada de ser
nós. Eu só quero que isso acabe. Deixar que seja feito. Caminhar pra frente. Mais rápido. Empurrar
pra frente.

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TODOS: EMPURRE! Continue empurrando, continue empurrando, garota! Vamos lá. Você
consegue. Você consegue. EMPURRE! EMPURRE!

JASON: Não acredito em como é perfeito.

CASSIE: Está feliz?

JASON: Sim, claro – você não está?

CASSIE: Sim, claro que sim, é esmagador.

JASON: Isso vai passar, você vai estar bem amanhã, e você fez tudo tão maravilhosamente. Eu te
amo.

CASSIE: Eu te amo também.

JASON: Eu te amo pra eternidade.

NIOBE: Eles confiscaram minhas uvas e se eles não providenciarem vasos para as plantas... Eu
vou te trazer uma Hello na próxima visita.

CASSIE: Oi Niobe.

NIOBE: Oi querida. Não posso acreditar, você pode?

CASSIE: É muito inacreditável.

NIOBE: Eu quero dizer, não me entenda mal, isso é maravilhoso. Você sabe disso, né? Eu quero
dizer, isso é simplesmente perfeito. E isso funcionou exatamente como deveria. Lindo, estou
surpresa que pétalas de rosa não estejam caindo pelo céu enquanto conversamos. Quer dizer, é
assim que me sinto...

CASSIE: Acho que sinto mais ou menos o mesmo

NIOBE: Com uma pitada dessa merda que é o medo?

CASSIE: Com certeza.

NIOBE: Bem acho que isso é normal.

CASSIE: Você acha?

NIOBE: Eu não sei. Mas não vamos nos focar muito nisso. Você quer uvas, deixei um pouco na
minha bolsa.

CASSIE: Não obrigada.

NIOBE: Cadê a pequenina?

CASSIE: Jason está com ela na ala de bebês.


28
NIOBE: Uma menina.

CASSIE: Polly

NIOBE: Muito fofo, ela está bem?

CASSIE: 10 dedos nos pés, 10 dedos nas mãos.

NIOBE: Que maravilha. E você está bem?

CASSIE: Ainda não tenho certeza.

NIOBE: Você vai ficar bem. Já carregou a neném?

CASSIE: Carreguei. Ela é tão pequena que pensei que poderia quebrá-la. Ela é linda. Tão linda
que é assombroso. Estou tão cheia de amor por ela que me assusta. Nunca me senti assim antes

NIOBE: Acho que isso se chama maternidade.

CASSIE: Espero que sim.

NIOBE: Quando você sai?

CASSIE: Falaram que a Princesa Diana estava grávida quando morreu. Mas isso nunca foi
confirmado. Uma vez ela se jogou escada abaixo. Ficou meses sem comer. Ela teve inúmeros casos
amorosos mas todos parecem se esquecer. Esqueceram que pessoa cheia de falhas ela era em sua
morte. A morte a fez perfeita. Porque ninguém teve que imaginar como terminaria pra ela.

CASSIE: Você acha que estamos alimentando ela demais?

JASON: Não claro que não. É o tanto certo, não é! Você é uma boa mãe. É como uma segunda
natureza para você.

CASSIE: Obrigada. Significa muito pra mim.

JASON: Ela parece tão feliz quando está dormindo. Como você (ele a beija na testa) Sou
abençoado por viver com duas mulheres tão lindas.

CASSIE: Ela é linda não é. Ela é completamente perfeita. Fico assombrada com sua perfeição.

JASON: Você estará bem amanhã?

CASSIE: Ah sim... estarei bem. Quando você volta?

JASON: Vou tentar sair mais cedo. 5? Pode ser?

CASSIE: Pode ser.

JASON: Você vai ficar bem. E você é a única fazendo todo trabalho!

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CASSIE: Não acredito que você estava dentro de mim. Não acredito que fui eu que te fiz você.
Você é uma pessoinha. Uma pessoinha que tem uma parte de mim e tudo de mim. Posso sentir o
temor passando pela minha cabeça. Minhas têmporas queimam com o medo do que poderia
acontecer. Essas dores de cabeça que não vão embora e eu não tenho muita certeza de que sei o que
estou fazendo. Não tenho mais certeza do que fazer.

NIOBE: Não acredito que já faz um mês, ela está ficando tão grande

CASSIE: Eu sei, posso jurar que ela cresce uns dois centímetros por dia

NIOBE: Não vai demorar muito pra você ter com ela 'a conversa'

CASSIE: Niobe! Ela tem um mês de idade. Não consigo nem imaginar ela com um ano imagine
com 16.

NIOBE:16? Crianças são sexualmente ativas desde os 12

CASSIE: 12?

NIOBE: É 12.

CASSIE: Deus do céu eu nem tenho certeza se eu notava a diferença entre meninos e meninas
nessa idade

NIOBE: Eu acho que já notava os meninos quando saí das fraldas

CASSIE: Como faço pra garantir que ela não seja assim?

NIOBE: Não sei... não deixe que ela escute Britney Spears?

CASSIE: Ai meu Deus.

NIOBE: Ai, Cassie, querida. Faça o melhor que puder. É isso o que todas as mães fazem. É tudo
o que podem fazer.

CASSIE: Não tenho tanta certeza

NIOBE: Acho que você se preocupa demais

CASSIE: Acho que me preocupo o bastante

JASON: Estou preparando a banheira pra você

CASSIE: Você não tem que fazer isso

JASON: Bem mas eu fiz. Venha, vá relaxar, vou servir uma taça de vinho também

CASSIE: Mas

JASON: Ela dormiu e eu estou aqui, vá tirar um tempo pra você.


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CASSIE: Eu já tomei banho mais cedo

JASON: Tudo bem,vá dar um passeio, vá ver Niobe. Apenas faça um intervalo.

CASSIE: Não preciso de um intervalo

JASON: Quando foi a última vez que você saiu de casa?

CASSIE: Saí pra comprar fraldas.

JASON: Quando?

CASSIE: Semana passada.

JASON: Uma semana? Já faz uma semana Cassie

CASSIE: Eu não quero sair

JASON: Por que?

CASSIE: Porque estou com medo. Eu não quero que ela se machuque.

JASON: Ela vai estar no bebê conforto

CASSIE: Não quero que as pessoas pensem que eu não devia sair

JASON: Mas você tem que sair

CASSIE: Por que você diz isso?

JASON: Por que? Isso é loucura Cassie.

CASSIE: Você não vai falar isso quando algo der errado

JASON: Nada vai dar errado, apenas deixe rolar! Pare de assistir programas de crime. Pare de ler
aqueles guias de como-ser-uma-boa-mãe e pelo amor de Deus pare de procurar meningite no
Google, sim eu olho suas buscas

CASSIE: Tá bem vou dar um passeio!

JASON: Bom. Isso é uma boa ideia. Realmente tudo está bem.

ENFERMEIRA: Então Cassie. Você ficará feliz em ouvir que ela está no peso exato e parece
estar se desenvolvendo bem. Você está amamentando?

CASSIE: Não, não estou

ENFERMEIRA: Ah.

CASSIE: Isso é ruim?


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ENFERMEIRA: Bem nós realmente estamos tentando encorajar as mães a amamentarem seus
filhos, isso pode, por exemplo, reduzir as chances da criança contrair meningite

CASSIE: Ah, entendo

ENFERMEIRA: Você não foi informada sobre isso antes?

CASSIE: Talvez, não tenho certeza. Tive muitas informações despejadas sobre mim.

ENFERMEIRA: Eu sei. Bem é provavelmente muito tarde pra começar agora, então apenas
certifique-se de estar sempre em dia com o leite e as vacinas dela.

CASSIE: Vou fazer isso. Você quer uma xícara de chá...

ENFERMEIRA: Quero, por favor. Mas sem leite, a menos que seja de soja.

CASSIE: Não tenho de soja.

ENFERMEIRA: Ah.

CASSIE: Isso é ruim?

ENFERMEIRA: Não, é só que não gosto da ideia de todos aqueles aditivos no leite de vaca.
Chá puro obrigada.

CASSIE: Ok, na próxima vez vou ter leite de soja.

ENFERMEIRA: E você está conseguindo descansar?

CASSIE: Dormir quando o bebê dorme?

ENFERMEIRA: Isso

CASSIE: Às vezes. Mas é difícil. Eu não tenho dormido muito

ENFERMEIRA: Mas você precisa dormir! Maternidade é cansativo.

CASSIE: Ah, bem vou tentar

ENFERMEIRA: É importante. Pra você e para o bebê. Como vão as aulas para novas mães?

CASSIE: Eu ainda não comecei a freqüentar. Acho que por enquanto estamos nos adaptando a
nossa nova rotina.

ENFERMEIRA: Bem... quando você sentir que está pronta eu acho que seria bom pra você e
para o bebê se socializarem com outras mães e bebês. É bom para todos.

CASSIE: Sim. Acho que sim.

ENFERMEIRA: Você parece um pouco relutante?


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CASSIE: Bom é muita coisa , não é?

ENFERMEIRA: O que você quer dizer?

CASSIE: É só que é interação demais e muita conversa sobre bebês. Eu já passei tempo demais
falando sobre bebês.

ENFERMEIRA: Há mais alguma coisa sobre a qual você queira conversar?

CASSIE: Eu... Quer dizer eu sendo mãe.

ENFERMEIRA: Bem, lá você pode fazer isso também. É pra isso que eles estão lá. Confie em
mim, eu faço isso há muito tempo.

CASSIE: Tem uma escuridão muito profunda instaurada em mim. Isso eu não posso lavar para
apagar. Eu não consigo resolver direito. Às vezes tenho compulsão de quebrar coisas, pegar uma
tesoura e cortar fora as solas das minhas meias e pisar em pregos, desfazer minha colcha de retalhos
com vidro quebrado, fazer cada quadro se espremer pelo seu buraco na parede, polir os espelhos
com minhas juntas, deitar numa banheira com alvejante ou enfiar mãos cheias de sabão em pó na
minha boca... mas isso passa rapidamente e não dura muito tempo. E daí que penso em ossos
quebrados e peles arrancadas... o que é que tem.

CASSIE: Você está quieto.

JASON: Estou cansado.

CASSIE: Ah.

JASON: Como foi o seu dia?

CASSIE: Ótimo. Ótimo mesmo. Fomos dar um passeio.

JASON: Ah, isso é ótimo! No parque?

CASSIE: Foi.

JASON: Espero que todo mundo tenha se comportado bem!

CASSIE: Claro. Fomos no balanço.

JASON: Parece que você se divertiu...

CASSIE: 10 dedos nas mãos. 10 dedos nos pés. O nascimento foi a parte fácil e o calor era
incrível eu achei que minha pele ia derreter que nem plástico. O plástico do volante espremido na
minha cara. E o pinga, pinga, pinga da gasolina e o bip bip bip do monitor de coração. Hospitais
para nascer e para morrer. O gosto de ferro, o cheiro de anticéptico. Mas a cada vez você fica
perfeita.

NIOBE: Deixa ela pra lá.

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CASSIE: Fica difícil quando ela praticamente compilou uma lista de motivos pelos quais eu
devo ter o segundo. Toda criança precisa de um semelhante. É melhor enfrentar outra maternidade
logo. O relógio está andando. Você é mais fértil agora.

NIOBE: Credo. Eu detestaria imaginar o que ela pensaria de mim...

CASSIE: Ah, isso não foi direcionado a você Niobe. Desculpe se fui insensível. São essas dores
de cabeça eu ainda não consegui melhorar. Quando eu pisco é como fechar minha cabeça na porta
do carro. Não posso piscar. Nancy a agente de saúde diz que não estou dormindo o suficiente.

NIOBE: Vaca. Você não pode falar pra ela não vir mais?

CASSIE: Meu Deus, não. Tenho quase certeza de que você deve entrar em algum tipo de banco
de dados se não deixar o agente de saúde vir a sua porta!

NIOBE: É. E os sogros têm vindo visitar?

CASSIE: Não, por sorte eles estão muito frágeis. Aquela vaca mestiça pode ficar longe.

NIOBE: Está bem certo.

CASSIE: Acho que minha mãe vai vir pra ficar uns dias no mês que vem.

NIOBE: Isso vai ser bom.

CASSIE: Talvez. Eu já tive que ouvir comentários no telefone sobre o que ela fazia quando
éramos crianças. Ela acha que as mulheres modernas não podem ser mães e terem suas carreiras.
Diz que não dá tempo e blá blá blá

NIOBE: Caramba. Cassie. Será que você pode parar pra pensar um segundo no que você está
falando. Você sabe como é difícil pra mim vir aqui e te apoiar te apoiar te apoiar e você me
agradece jogando na minha cara esses comentários, que eu sei que são irresponsáveis. Será que
você pode pensar por um segundo em outra pessoa que não seja você mesma?

CASSIE: Sinto muito não ter ficado muito animada ao telefone.

JASON: Era o mínimo que você poderia ter feito! Eu dirigi por 40 minutos pra buscar a merda
de um trocador de fraldas que combina com seu querido verde do campo! Depois de ter trabalhado
10 horas. E o que você fez? A casa é só o começo! E esse cheiro de tinta por toda parte!

CASSIE: É só que eu estive ocupada.

JASON: Com quê? O que te manteve tão ocupada?

CASSIE: Dei outra mão de tinta.

JASON: É mesmo? Não sei como não adivinhei.

CASSIE: Ainda posso ver o brilho da outra tinta por baixo.

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JASON: Só você pode ver Cassie! Só você pode ver isso... não me diga que você tem assistido
esses documentários estúpidos sobre a Princesa Diana de novo. Eu vou parar de pagar por esses
canais de documentários eu juro.
CASSIE: Não são estúpidos.

JASON: O que você acha que ainda pode aprender sobre ela que você já não saiba, você está
obcecada! Esse era sobre o que? Amantes? Os filhos? O mais famoso acidente de carro do mundo?
Qualquer um pode morrer em um acidente de carro Cassie, não é exclusividade dela.

CASSIE: Você está certo não é.

Som de telefone tocando

DISQUE-EMERGÊNCIA: Alô Disque-Emergência posso anotar seu nome e região por favor?

CASSIE: Cassandra Paul, Glasgow.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Como posso te ajudar Sra. Paul?

CASSIE: Sim... Sra...Sra. Paul

DISQUE-EMERGÊNCIA: Como posso te ajudar?

CASSIE: Eu preciso saber em que momento você pode engravidar depois de ter tido uma
criança.

DISQUE-EMERGÊNCIA: A senhora acha que pode estar grávida Sra. Paul?

CASSIE: Bem... Tenho tido todos os sintomas disso, sinto enjôo, não consigo comer, meu humor
está mudando.

DISQUE-EMERGÊNCIA: A senhora fez um teste de gravidez?

CASSIE: Não. Ainda não consegui.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Bem, tecnicamente a senhora já está pronta para engravidar assim


que tiver sua primeira menstruação depois do nascimento do bebê. A senhora está amamentando?

CASSIE: Não. Por que? Por que todos se preocupam se estou ou não?

DISQUE-EMERGÊNCIA: Amamentação pode diminuir as chances de uma nova gravidez.

CASSIE: Ah, merda.

DISQUE-EMERGÊNCIA: A senhora está tentando ter um novo bebê Sra. Paul?

CASSIE: Não.

DISQUE-EMERGÊNCIA: ...E o seu parceiro?

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CASSIE: Ele mataria pra ter outra criança. Pausa

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DISQUE-EMERGÊNCIA: E o que a senhora quer?

CASSIE: O que eu quero?

DISQUE-EMERGÊNCIA: Sim

CASSIE: Eu me esqueci como se responde a essa pergunta há muito tempo... Eu quero saber
como termina.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Bem ninguém pode saber isso. Ninguém pode controlar o próprio
futuro.

CASSIE: E esse é o problema aqui.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Sra. Paul a senhora gostaria que eu te indicasse outro serviço?

CASSIE: Não, estou na lista de espera para aconselhamento. Eu não quero participar de um
grupo para jovens mães e aparentemente eu estou experimentando dores psicossomáticas e não há
nada que água e analgésicos não possam curar. Então no que diz respeito a ser usuária de um
serviço, eu estou sossegada.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Usamos o termo cliente ao invés de usuária de serviço agora.

CASSIE: Ah, que bom. Torna tudo muito mais humano.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Por que a senhora ligou Sra. Paul?

CASSIE: Porque estou sozinha. Porque estou assustada. Porque estou começando a imaginar
como isso vai terminar.

DISQUE-EMERGÊNCIA: E como termina?

O som da linha caindo

JASON: Estou indo pro trabalho querida, te vejo logo. Vou tentar não chegar muito tarde. Você
ainda está escutando Elton John? Isso é Candle in the Wind?

CASSIE: (finge ignorá-lo) Vai ter um dia cheio?

JASON: Reuniões, o de sempre. Nada fora do comum.

CASSIE: Bem nunca se sabe.

JASON: Verdade. O que você vai fazer hoje?

CASSIE: Pensei que podíamos ir ao supermercado. Precisamos de sal.

JASON: Posso pegar no caminho de volta pra casa se você quiser?

CASSIE: Não, tudo bem. Preciso sair um pouco de casa.


37
JASON: Bem isso é verdade. Vai trazer algo gostoso pra jantar?

CASSIE: Vou fazer o melhor que puder, mas não posso prometer.

JASON: Tudo bem.

Ele a beija. Vai indo embora, ela o puxa de volta pra ela e o beija apaixonadamente,
segurando-o estranhamente por muito tempo.

JASON: Ufa. Fazia tempo que você não me beijava desse jeito. O que aconteceu?

CASSIE: (Cassie dá de ombros) Eu te amo.

JASON: Eu também te amo. E guarda um pouco disso pra quando eu voltar pra casa.

CASSIE; Não posso te prometer nada...

JASON: Acho que vou cancelar as minhas reuniões desta tarde, talvez eu chegue mais cedo.

CASSIE: Talvez seja melhor.

Eles se beijam, ele vai embora.

CASSIE: Eu pensava que iríamos comprar comida. Pegar coisas essenciais. Pegar coisas que
você realmente precisa. Ela estava linda naquele vestidinho branco, os babados, as fitas. Ela estava
perfeita. Queria fixar você nessa sua imagem perfeita. Antes que alguma coisa saia errada. Antes
que alguma coisa mude. Eu te amo. Eu te amo tanto que é insustentável. Faz com que minhas
recaídas sejam insustentáveis. Eu sei como isso termina agora. Preferia saber como deveria
terminar. O tempo de uma vida é simplesmente longo demais. Quero salvar a nós duas. /

JASON: Querida. Querida. Olhe pra mim. Ok. Aqui está você. Aqui está você. Eles já vão
remover seu tubo de respiração.

CASSIE: Os olhos dele estão vermelhos. Delineados em carne viva.

JASON: Você só precisa tossir quando eles mandarem, ok?

CASSIE: O rosto dele está completamente diferente... sorrindo mas encharcado de tristeza.

JASON: Você está pronta, olhe pra mim amor, no três

CASSIE: O que foi que eu fiz?

JASON: Um

CASSIE: Não era pra ser desse jeito.

JASON: Dois

CASSIE: Nós deveríamos ter


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JASON: Três

Cassie começa a tossir

JASON: Está tudo bem querida. Está tudo bem. Vamos lá. Está tudo bem. Você vai ficar bem.

Cassie pára. Subitamente percebe que ela sobreviveu. Olha para o marido e vê morte em seus
olhos

JASON: Você está bem. Você me deixou preocupado. Você quebrou o braço, viu. Machucou feio
as costelas mas fora isso e alguns pontos você está bem...

CASSIE: … Polly...

Um longo silêncio. Jason esconde a cabeça. Cassie continua assustadoramente sem reação.

JASON: Ela não... ela não está bem. Aconteceu rápido. Foi com o impacto.

Pausa

JASON: Estou feliz por não ter perdido você também.

Pausa

JASON: Nós vamos conseguir passar por isso, eu prometo.

CASSIE: A batida... foi...

JASON: Foi um acidente eu sei querida. Não estou bravo com você... eu só... eu estou feliz por
você estar bem.

Ele a beija no rosto suavemente.

JASON: Eles não queriam que eu te contasse. Sobre... sobre... mas eu quis que você soubesse.
Não poderia esconder de você. Eu não queria mentir.

CASSIE: Obrigada por me contar.

JASON: Você está em choque. Vai dar tudo certo, eu prometo. Eu vou cuidar de você.

Ela o afasta, eles se sentam em silêncio.

NIOBE: Toc, toc, olá meu coração.

CASSIE: Olá querida...

NIOBE: Meu Deus como é bom ouvir sua voz... eu não trouxe uvas dessa vez, mas trouxe Hello!
Acontece que o Jake Gyllenhaal deve ser gay e a Kathleen Turner está... Então como você está se
sentindo?

39
CASSIE: Com dor

Pausa desconfortável

NIOBE: Sinto muito, Cassie. Não sei nem o que …

CASSIE: (interrompendo) Então não... Não diga nada.

NIOBE: Foi um acidente, todos nós sabemos disso. Por favor, não se culpe.

CASSIE: Eu não tenho escolha.

NIOBE: Sim, você tem.

CASSIE: Não, não tenho. E tudo o que eu consigo pensar é em que cor eu devo pintar o quarto
dela. Vou ter que tirar todas as coisas de dentro do quarto dela e pintá-lo. Me livrar daquele verde
horroroso que pra começar eu nem gostava. Você estava certa, o que é que eu tinha na cabeça? Tom
pastel? Pensei que eu gostava. Pensei que deveria ser a escolha certa mas não era. Eu detesto essa
porra de verde.

NIOBE: Posso organizar isso se você quiser.

CASSIE: NÃO. Eu quero fazer isso.

NIOBE: Cassie, por favor. POR FAVOR. Não faça nada além do que você tem que fazer. Não se
coloque nessa situação.

CASSIE: Estou cansada de ser informada sobre o que é melhor pra mim. Pra começar foi assim
que viemos parar aqui.

NIOBE: Cassie, você vai parar de se culpar? Ninguém está te culpando.

CASSIE: E a polícia? Foi homicídio?

NIOBE: ...eles estão fazendo uma investigação. Eles não estão tratando como nada suspeito
Cassie, ninguém trataria. Eles estão apenas seguindo formalidades. Não se preocupe.

MÉDICO: Eu acho que será melhor considerarmos um aumento na sua medicação. Até que você
supere isso. Como você pode imaginar luto o luto é difícil especialmente quando se leva em conta
seu prévio histórico de depressão. Você também receberá aconselhamento de luto se quiser. Eu lhe
recomendaria. A perda de uma criança é uma dor incrível. Me desculpe se é inapropriado dizer
isso... É importante que você continue a lidar com seus sentimentos mas também precisamos nos
assegurar de que você estará segura Cassie.

NIOBE: Você parece bem querida. Realmente bem. Quero dizer considerando... você sabe você
está ótima. Todos estão comentando como você está indo bem. Jennifer te mandou uma torta, você
recebeu? Eu vou voltar mais tarde e te dou uma ajuda com as caixas se você quiser. Sei que a
empresa Oxfam pode vir buscar. Sem pressa pra isso é claro. Talvez seja melhor esperar um
pouquinho. Deixar as coisas se assentarem. Talvez pudéssemos fazer alguma coisa nós duas? Ir ao
cinema ou sei lá? Acho que seria bom pra você.
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JASON: Eu só tenho algumas palavras pra dizer hoje. Quero agradecer a todos que vieram.
Quero agradecer a todos pelo apoio nesse momento difícil. Eu e minha mulher estamos
verdadeiramente agradecidos. Essas duas semanas foram incrivelmente difíceis pra nós. Polly
iluminou nossas vidas por um segundo apenas mas a luz dela estará com a gente pra sempre.
Podemos procurar razões pra isso ter acontecido mas eu escolhi me focar nas coisas boas que ela
nos deu, sua risada, seu sorriso e seu amor. Sua mãe e eu iremos te amar pra sempre.

Som de um telefone tocando

DISQUE-EMERGÊNCIA: Alô Disque-Emergência pode falar seu nome e seu bairro

CASSIE: Cassandra Andrea Maria Paul, Shawlands, Glasgow

DISQUE-EMERGÊNCIA: Obrigada Sra. Paul, como eu posso te ajudar hoje?... Sra. Paul? Você
ainda está aí? Sra. Paul?

CASSIE: Sim. Estou aqui.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Está tudo bem Sra. Paul? A senhora tem alguma emergência? Eu
posso te passar ao serviço de ambulância se a senhora precisar.

CASSIE: Não, não. Isso não será necessário. Eu fiz uma coisa ruim

DISQUE-EMERGÊNCIA: Pode me explicar por favor Sra. Paul?

CASSIE: Apenas me chame de Cassie. Não. Não tenho certeza de que eu possa explicar coisa
alguma.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Você está machucada Cassie?

CASSIE: Não.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Alguém mais está machucado?

CASSIE: Não... bem sim... foi semanas atrás. Machuquei alguém em um acidente.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Você gostaria de informações sobre o serviço de aconselhamento de


luto?

CASSIE: Não. Não foi um acidente... todo mundo fica falando pra mim que foi mas não foi. Eu
continuei com o pé no acelerador e atravessei o sinal vermelho. Mas o ônibus que eu bati estava
correndo e parece que o motorista estava bêbado então ele é o vilão... e ninguém suspeita que uma
mãe amorosa...

DISQUE-EMERGÊNCIA: Mãe?

CASSIE: Eu matei minha filha numa batida de carro, ela tinha 9 meses. Eu fiz de propósito.

DISQUE-EMERGÊNCIA: A polícia sabe disso?

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CASSIE: Não. Não eles não sabem.

DISQUE-EMERGÊNCIA: … Por que você está me contando...

CASSIE: Porque eu precisava contar pra alguém. Porque estava queimando um buraco na minha
garganta. Porque eu acabei de terminar de encaixotar as coisas dela e isso foi a última coisa que
restava fazer. É tão mais fácil contar pra alguém que você nunca encontrou que você nunca vai ver.
Eu nem sei como é sua cara... eu simplesmente não conseguia lidar. Quando ninguém te escuta, ou
você se sente como se ninguém estivesse te escutando, todos os tipos de coisa começam a acontecer
por exemplo você tem tanta dor dentro de você que você tem que ferir o que está por fora... Princesa
Diana disse isso... ninguém a escutava também. E por mais que eu lave não consigo tirar o cheiro de
combustível do meu cabelo. E não consigo retirar o cascalho debaixo das minhas unhas. Ninguém
acreditou em mim quando eu dizia que algo ruim aconteceria. Ninguém acreditou no que eu mesmo
poderia fazer. E agora minha dor se foi. Meus olhos não doem mais. Mas era pra matar as duas. A
batida. E não matou. Só ela morreu.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Eu tenho seus dados Cassie, eu vou ter que ligar pra polícia.

CASSIE: Você tem filhos?

DISQUE-EMERGÊNCIA: Tenho dois.

CASSIE: Como eles se chamam?

DISQUE-EMERGÊNCIA: Eu não vou falar.

CASSIE: Você acha que eu sou um monstro?

DISQUE-EMERGÊNCIA: Sim. Eu acho.

Pausa.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Mas você também não está bem e precisa de ajuda

Pausa.

CASSIE: Você pode me passar ao serviço de polícia de Strathclyde por favor?

DISQUE-EMERGÊNCIA: Sim vou fazer isso agora mesmo.

CASSIE: Obrigada.

DISQUE-EMERGÊNCIA: … boa sorte Cassie.

CASSIE: A última vez em que a vi foi pelo espelho retrovisor. Ela estava logo acima mas
estávamos as duas de cabeça pra baixo. Tinha só um fio de sangue que escorria do seu nariz pela
testa como uma lágrima de cabeça pra baixo. Manchou de rosa seus pequenos cabelos loiros. Eu
sentia gosto de ferro. Eu podia sentir o cheiro de gasolina. Podia sentir o vidro nas dobras da minha
lingerie e eu não queria piscar. Eu apenas olhava para o corpinho perfeito e sem vida dela. E aquele
pinga, pinga, pinga da gasolina na pista. O rosnar lento do motor. O calor era incrível. Aí eu pisquei
e tudo mudou.
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MÉDICO: Como você se convenceu a fazer isso?

CASSIE: Eu só resolvi que tinha que ser feito.

MÉDICO: Você sabe quando você tomou essa decisão?

CASSIE: Na noite anterior.

MÉDICO: Na noite anterior foi quando você teve certeza?

CASSIE: Foi.

MÉDICO: Cassie você sabe a diferença de quando uma coisa é planejada ou é espontânea?

CASSIE: Claro que sei

MÉDICO: Há uma grande diferença entre as duas. A diferença entre premeditado e impulsivo. A
diferença que pode fazer diferença.

CASSIE: Eu pareço ser instável. Parece mais fácil desse jeito. Faz com que tudo faça sentido pra
todo mundo. Melhor que seja eu do que eles. Me interrogaram por dez horas. Tiveram que trocar a
fita 4 vezes. Me fizeram um monte de perguntas. Um monte de perguntas pessoais.

POLICIAL: A senhora odiava sua filha?

CASSIE: Não eu a amava

POLICIAL: Mas a senhora queria matá-la

CASSIE: Para protegê-la

POLICIAL: E como a senhora a estaria protegendo?

CASSIE: Eu a estava protegendo de mim sendo uma péssima mãe, de mim estragando ela

POLICIAL: Em algum momento a senhora pensou em dar a custódia ao seu marido ou à


adoção?

CASSIE: Sim. É claro, mas desse jeito teve um fim.

POLICIAL: A senhora acha que o que fez foi errado?

CASSIE: Naquele momento eu não tive escolha.

POLICIAL: Mas foi errado?

CASSIE: Já não sei mais.

POLICIAL: A senhora queria acabar com a sua própria vida também?

CASSIE: Queria
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POLICIAL: A senhora ainda tem pensamentos suicidas?

CASSIE: ...Tenho. Morrer seria tão fácil. Eu vou pra cadeia?... é isso que vai acontecer?

POLICIAL: Não sou eu quem decide Sra. Paul.

CASSIE: O que você acha que vai acontecer?

POLICIAL: Eu acho que a senhora será colocada numa unidade de segurança. Eu não acho que a
senhora seja um perigo pra ninguém mais. E acredito que poucas pessoas vão acreditar que você
estava raciocinando na hora do acidente.

CASSIE: Oi

JASON: Oi. Como você está?

CASSIE: Estou bem. Como você está?

JASON: Como é que você acha?

CASSIE: Como

JASON: (interrompe) Eu não consigo ficar com essa conversinha sobre amenidades. É
impossível pra mim ficar com essa porra de conversinha. Eu vim aqui pra falar com você... Eu
escutei suas fitas. Escutei cada segundo da sua voz. Toda aquela merda sobre a Princesa Diana e o
cheiro de gasolina e o que você viu... tudo... e... e...

CASSIE: E?

JASON: Me senti como se estivesse ouvindo pensamentos de estranhos com a sua voz, como se
você estivesse contando a história de outra pessoa, você não é nem mesmo a sombra da pessoa que
eu pensei que você fosse... Como eu posso começar a racionalizar o que você fez.

CASSIE: Não foi pra que você pudesse racionalizar foi...

JASON: (interrompe) Fiz uma lista... só pra ter certeza de que eu falaria tudo. Eu escutei você.
Agora você vai me escutar. É minha vez. Eu queria te falar que não odeio você. Não poderia nunca
te odiar. Mas o que você fez é mais cruel do que qualquer outra ação que eu possa sequer imaginar.
Você tirou uma coisa que não era sua pra tirar e nenhum de nós vai passar por cima disso. Queria te
falar que estou com raiva de você, por não pedir ajuda.

CASSIE: Mas eu...

JASON: (interrompe) Não. É minha vez. Por favor só escute. Tenho raiva por que isso podia ter
sido evitado. Não precisava terminar do jeito que terminou. Você nunca soube o quanto é amada. E
é uma pena que você não veja isso. Queria te falar que a sua mãe quer te visitar mas está esperando
a pressão baixar. No momento você está em todos os jornais como a mulher que confessou ao
Disque- Emergência ao invés de ao marido... Tenho certeza de que até mesmo você consegue
entender que isso me machuca. Niobe vem visitar semana que vem.

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CASSIE: Então você...

JASON: (interrompe) Não tenho certeza se vou voltar, até você... até você... melhorar.

CASSIE: Melhorar?

JASON: Foi por isso que te colocaram aqui! Pra melhorar!

CASSIE: E o que é que isso quer dizer?

JASON: Quer dizer que você está mentalmente perturbada pra caralho Cassie e precisa ser
trancafiada antes que você machuque mais alguém! Você já machucou gente demais!

Silêncio

CASSIE: Bem você vai ficar feliz em saber que eu realmente me sinto 'trancafiada'

JASON: Eles te tratam bem aqui?

CASSIE: Fico brigando com o tempo aqui. Eles ficam trocando minha medicação. Sou como
uma experiência. Sinto como se tivesse indo de um purgatório pra outro.

JASON: Era isso que a vida era comigo, purgatório?

CASSIE: Não, não por favor Jason. Eu te amava. Eu te amo. Sinto muito... sinto muito. Eu
poderia falar isso um milhão de vezes até perder o significado e eu nunca seria capaz de te dizer o
tanto que ue sinto.

JASON: Tem mais uma coisa na minha lista. Que eu queria falar.

CASSIE: (hesitante) … o que é?

JASON: Queria te pedir que você me perdoasse?

CASSIE: O quê?

JASON: Eu preciso saber se você me perdoa por isso... Você não é a única pessoa culpada aqui.
Você podia estar dirigindo o carro mas eu nunca impedi você. Porque nunca vi você... eu nunca vi a
pessoa que estava naquelas fitas

CASSIE: Eu perdôo você. O melhor que você tem a fazer é ir embora e fazer o melhor que puder
pra me esquecer.

JASON: Não posso

CASSIE: Eu sei. Mas você tem que tentar. Não vou te pedir pra me perdoar, vou pedir pra você
me esquecer.

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JASON: Eu... Eu perdôo você. Não posso dizer que sempre vou me sentir assim. Tem momentos
em que te odeio. Ódio sólido e real. Porque você levou minha filha. Você despedaçou minha vida
sem pedir. Tenho várias razões pra te odiar mas sabe o quê? Na maior parte do tempo Cassie eu
apenas sinto sua falta. Escutaria aquelas fitas na cama. Deitaria sozinho pensando em você,
cheirando seu lado da cama, sentindo como está frio. É incrivelmente solitário lá fora. Sinto sua
falta.

CASSIE: Eu sei

JASON: Você se lembra logo que nos mudamos para a casa e dormimos na banheira?

CASSIE: Sim. O que é uma banheira sem champanhe...

Eles riem suavemente

CASSIE: Eu não acho que você deva vir me visitar. Vou ficar aqui algum tempo Jason, e eu
simplesmente não tenho certeza se isso vai se tornar mais fácil pra nenhum de nós.

JASON: Eu precisava vir hoje, acho que vou querer vir de novo.

CASSIE: Eu sei. Mas acho que não há mais nada a ser dito.

JASON: Vou telefonar

CASSIE: Não.

JASON: Eu... te vejo em breve.

CASSIE: Talvez.

JASON: Vai me mandar mais fitas?

Ele a beija suavemente na face.

CASSIE: Quando a Princesa Diana morreu construíram uma fonte ridícula pra ela pra que as
pessoas não se esquecessem. Custou uma fortuna, causou um caos e agora os vagabundos mijam
nela. A morte não a tornou perfeita apenas nos fez de idiotas. Ela era apenas uma pessoa. Só uma
pessoa. Estou ajudando a decorar a enfermaria pra o aniversário de uma das garotas. Fizemos umas
correntes de papel ordinárias com jornal e decorações de decanso de copos pintados. Ficou uma
merda mas acredito tenha algum sentido por trás disso. Foi uma surpresa pra ela. Ela não sabia que
iria acontecer, isso foi bom. Eu não sei como coisa alguma vai acabar agora. Um lugar como esse
faz você sentir que não pode mais tomar decisões... mas eu posso e tomo. Decidi não esquecer
nunca. Esquecimento não é uma dádiva que eu vou me conceder. Que bagunças incríveis nós todos
somos. Essa será minha última fita Jason.

Som de telefone tocando

DISQUE-EMERGÊNCIA: Alô Disque-Emergência pode falar seu nome e bairro, por favor

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CASSIE: Só preciso falar rapidamente. Estou no telefone público.

DISQUE-EMERGÊNCIA: É alguma emergência senhorita porque eu posso te ligar de volta se


necessário.

CASSIE: Só preciso falar rapidamente. Usei seu serviço há seis anos atrás e isso salvou minha
vida. E por seis anos fiquei pensando sobre o que fazer. Então só pensei em ligar e dizer obrigada.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Ah, bem em nome de toda a equipe do Disque-Emergência eu


agradeço muito, você é bem-vinda para deixar qualquer comentário no nosso escritório central
posso te dar o endereço se quiser.

CASSIE: Não, tudo bem. Só queria ligar e agradecer. Você escutou quando niguém mais
escutaria. Me ajudou a me sentir menos sozinha. Obrigado por escutar.

DISQUE-EMERGÊNCIA: Obrigado senhorita, agora você quer que te transfira pra outro
serviço...

Som de telefone desligando e de toque de discar.

FIM.

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