Cinema e Educação (Sergio Rizzo)

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 369

Copyright © 2014 por Sérgio Rizzo

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/02/1998.

É expressamente proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer meios (eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação e outros), sem prévia autorização, por escrito, da editora.

Diagramação para e-book: Schäffer Editorial (www.studioschaffer.com)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Rizzo, Sérgio
Cinema e educação [livro eletrônico] : 200 filmes sobre a escola e a vida / Sérgio Rizzo. -- São Paulo : Editora Segmento, 2014. -- (Coleção Revista Educação) 2 Mb ; ePub

ISBN 978-85-89636-16-2

1. Cinema na educação 2. Educação (Revista) 3. Filmes cinematográficos - História e crítica I. Título. II. Série.

14-02876 CDD-371.33523

Índices para catálogo sistemático:


1. Cinema e educação 371.33523

Edição revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico

Publicado no Brasil com todos os direitos reservados por:


Editora Segmento
Rua Cunha Gago, 412, 1º andar, São Paulo, SP, Brasil, CEP 05421-001
Telefone: (11) 3039-5600
www.editorasegmento.com.br
Para Juli Gonc, por me lembrar que é sempre tempo de aprender e me ensinar, aos 48 anos, a nadar
Apresentação
Em meados de 1997, o jornalista Marco Antonio Araújo — responsável
pelo projeto de Educação e seu editor por alguns anos — fez o convite para
que eu assumisse uma coluna sobre cinema na revista. Nenhum de nós
imaginava, naquele momento, que a colaboração fosse se estender por quase
17 anos e cerca de 200 edições, sob a chancela de diversos outros editores —
inclusive eu mesmo, que tive o prazer de chefiar a equipe em 2005 e 2006, e
Rubem Barros, atual diretor editorial da Editora Segmento, a quem agradeço
pela oportunidade de reunir o trabalho nesta série de e-books.
Oportunidade que me deixou, devo admitir, um tanto desconcertado. Ler
e editar textos que escrevemos há muito tempo leva a uma sensação curiosa:
o autor é uma figura familiar, a que encontramos diariamente ao olhar para o
espelho, mas às vezes parece mesmo outra pessoa — pela ênfase em certos
aspectos dos filmes, pelos comentários sobre temas educacionais, culturais e
sociopolíticos, até mesmo pela construção de frases e uso de palavras. Quero
com isso dizer que, se fosse convidado hoje a escrever novas análises para a
Educação sobre os títulos reunidos nesta coletânea, faria provavelmente
textos muito diferentes. Eles manteriam, em linhas gerais, o juízo que
expressei sobre os filmes na ocasião, mas espelhariam preocupações distintas.
A seleção de filmes para a coluna obedeceu a diversos critérios. A
coordenada mais importante, estabelecida desde o início com Araújo, foi a de
adotar um conceito amplo para delimitar o leque de filmes que poderiam
interessar ao leitor de Educação. Representações da escola, dos processos de
ensino e aprendizagem e das condições de trabalho de educadores
constituíram, evidentemente, assuntos de grande relevância. Mas outros
temas correlacionados a esses — como as representações da infância, da
adolescência e da juventude — e também aspectos do mundo em que
vivemos pautaram a escolha dos filmes, assim como idiossincrasias pessoais.
Imperativos jornalísticos, por sua vez, fizeram com que a maior parte do
material se concentrasse sobre lançamentos, nos cinemas e em vídeo
doméstico — primeiro em VHS, depois em DVD e Blu-ray. Vez por outra,
no entanto, coube também examinar filmes anteriores à década de 1990, e
não só porque eram relançados naquele momento, mas também porque
julgamos que valia a pena revisitar obras referenciais. O formato da coluna
mudou por diversas ocasiões ao longo das edições cobertas por esta
coletânea, o que explica a disparidade entre abordagens — algumas mais
extensas, outras mais sintéticas. Diversos textos aqui reunidos — os maiores,
por sinal — ultrapassaram os limites da coluna e foram publicados na forma
de artigos.
Nas fichas que acompanham cada texto, oferecemos uma informação
que foi importante por muito tempo, mas que começa a ficar obsoleta: o
nome da distribuidora que lançou os filmes em vídeo doméstico. Hoje, é
possível encontrá-los de diversas outras maneiras, na TV e na internet.
Espero apenas que obsoleta não tenha se tornado a minha reflexão (ou a
do jornalista e professor que usou o meu nome nesse período) sobre os
filmes.

Sérgio Rizzo,
dezembro de 2013
Sumário
Apresentação

187 – O Código

Acidente
Adeus, Lênin!
Alice no País das Maravilhas
Aluno, O
Amor & Cia.
Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, O
Apenas o Fim
Apóstolo, O
Aprendiz, O
Artista, O
Auto da Compadecida, O

Babel
Baile Perfumado, O
Banheiro do Papa, O
Baran
Basquete Blues
Batismo de Sangue
Bela Junie, A
Bem-vindo
Bem-vindo à Casa de Bonecas
Billy Elliot
Biutiful
Bling Ring - A Gangue de Hollywood
Brava Gente Brasileira

Caça, A
Caché
Caminho para Casa, O
Caramuru – A Invenção do Brasil
Cartas de Iwo Jima
Castelo Rá-Tim-Bum
Castro Alves - Retrato Falado do Poeta
Central do Brasil
Céu de Outubro, O
Chaves de Casa, As
Che
Cidade de Deus
Como Eu Festejei o Fim do Mundo
Como Nascem os Anjos
Concorrência Desleal
Conquista da Honra, A
Contratempo
Corrente do Bem, A
Crianças Invisíveis
Crônica da Inocência
Croods, Os
Culpa É do Fidel!, A

Deixa Ela Entrar


Depois de Maio
Dezesseis Luas
Dezesseis, Zero, Sessenta
Dia Muito Especial, Um
Diretor Contra Todos, Um
Doce Amanhã, O
12 Trabalhos, Os
Duelo de Titãs
Dúvida
200 Crianças do Dr. Korczak, As

Educação
Elefante
Elefante Branco
Eleição
Em um Mundo Melhor
Encanto das Fadas, O
Encontrando Forrester
Entre os Muros da Escola
Entreatos - Lula a 30 Dias do Poder
Erva do Rato, A
Escola de Rock
Estamos Juntos
Exílios

Fala Tu
Falsários, Os
Fama para Todos
Faroeste Caboclo
Filhos do Paraíso
Fita Branca, A

Garota Interrompida
Garoto da Bicicleta, O
Garotos Incríveis
Gênio Indomável
Gomorra
Grande Garoto, Um
Guerra de Canudos

Hans Staden
Hércules 56
Homem ao Lado, O
Homem que Virou Suco, O
Homem Sério, Um
Homens e Deuses
Hotel Ruanda

Invasor, O
Invenção de Hugo Cabret, A
Italiano para Principiantes
Invictus
Janela da Alma
Judeu, O
Juno

Kiriku e a Feiticeira
Kolya – Uma Lição de Amor

Ladrão, O
Ladrões de Bicicleta
Lances Inocentes
Leões e Cordeiros
Liam
Linéia no Jardim de Monet
Língua das Mariposas, A
Linha de Passe
Lixo Extraordinário
Lugares Comuns

Maria Antonieta
Marighella - Retrato Falado do Guerrilheiro
Melhores Coisas do Mundo, As
Memórias Póstumas
Meu Irmão É Filho Único
Microcosmos – Fantástica Aventura da Natureza
Minha Vida em Cor-de-Rosa
Minhas Tardes com Margueritte
Motoboys - Vida Loca
Mr. Holland – Adorável Professor
Música do Coração

Na Estrada
Na Natureza Selvagem
Não me Abandone Jamais
Nenhum a Menos
Neste Mundo
Netto Perde Sua Alma
Ninguém Pode Saber
Ninho Vazio
No
No Vale das Sombras
Nó na Garganta
Nosso Professor é um Herói
Novo Mundo
Noite em 67, Uma
Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos

Oleanna
Onda, A
Onde Fica a Casa do Meu Amigo?
Ônibus 174
Orange County – Correndo Atrás do Diploma
Ouro de Ulisses, O
Oz - Mágico e Poderoso

Pai Patrão
Palavra (En)cantada
Palhaço, O
Pecado de Hadewijch, O
Peões
Pequena Miss Sunshine
Pequeno Nicolau, O
Peter Pan
Pi
Pina
Poesia
Policarpo Quaresma – Herói do Brasil
Precisamos Falar Sobre o Kevin
Pro Dia Nascer Feliz
Professora de Piano, A
Professora Muito Maluquinha, Uma
Professora sem Classe
Proibido Proibir
Promessas de um Novo Mundo

Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios


Quando Tudo Começa...
Quarto do Filho, O
Que Eu mais Desejo, O
Quem Não Cola Não Sai da Escola

Raul - O Início, o Fim e o Meio


Rede Social, A
Réquiem para um Sonho
Revolução dos Bichos, A
Ruas de Casablanca, As

São Bernardo
São Paulo Sociedade Anônima
Ser e Ter
Shrek
Simplesmente Feliz
Sob a Névoa da Guerra
Somos tão Jovens

Tainá – Uma Aventura na Amazônia


Tartarugas Podem Voar
Terra Estrangeira
Terra Vermelha
Tiradentes
Todas as Coisas São Belas
Três é Demais
Tropa de Elite

Utopia e Barbárie

Verão Feliz
Verdade Inconveniente, Uma
Vermelho como o Céu
Verônica
Vida dos Outros, A
Vida em um Dia, A
Vincere
Visitante, O
Viva São João!

Xeretas, Os
Xingu

Zero em Comportamento

187 – O Código

Índices Temáticos
187 – O Código
One Eight Seven
EUA, 1997
Direção: Kevin Reynolds

Trevor Garfield era um desses professores dedicados que costumam


aparecer em filmes norte-americanos com mensagens positivas sobre
educação. Atravessava todos os dias uma das pontes que unem a ilha de
Manhattan ao bairro do Brooklyn, em Nova York, para dar aulas de ciências
em uma escola pública de ensino médio. Adorava o que fazia, embora os
alunos, barulhentos e irrequietos, não parecessem adorar o que viam e
ouviam dele.
Certo dia, Garfield chega às manchetes dos jornais: um aluno que seria
reprovado por ele (e, como punição, reconduzido ao instituto penal do qual
havia saído apenas para estudar) resolve golpeá-lo pelas costas, 12 vezes,
com um punhal feito de pregos. O professor passa um ano em hospitais e,
refeito, muda-se para Los Angeles, onde arruma um bico como professor-
substituto. Refeito coisa nenhuma: 187 – O Código mostra, aos poucos, que,
do velho Garfield, sobrou quase nada – e a parte nova é assustadora.
Interpretado por Samuel L. Jackson (o parceiro de John Travolta em
Pulp Fiction), o personagem é criação do roteirista estreante Scott
Yagemann, que trabalhou durante nove anos como professor da rede pública
de Los Angeles. O tom sombrio do filme faz crer que Yagemann não gostou
da experiência e resolveu acertar as contas com quem estaria, na sua
avaliação, tornando quase impossível dar aula em escolas públicas de bairros
pobres das grandes cidades dos EUA.
Os vilões da história constituem basicamente dois grupos: o dos alunos,
parte deles com um pé (às vezes dois) na vida bandida, e outra parte,
intimidada pela primeira, com olhos apenas para a sobrevivência; e o dos
administradores escolares, alguns dos quais nunca pisaram em sala de aula,
preocupados em evitar processos e garantir os “direitos da clientela”. Aos
professores, largados à sua própria sorte, restaria encontrar meios nem
sempre elogiáveis de suportar a pressão exercida de ambos os lados.
Em uma escola barra-pesada de San Fernando Valley, em Los Angeles,
Garfield aproxima-se de dois colegas de comportamento distinto: Childress
(John Heard, o pai de Esqueceram de Mim), um professor de história já
inteiramente desiludido, e Ellen (Kelly Rowan), uma professora de
computação que, ameaçada por um aluno, volta a morar com a mãe. Os dois
funcionam como referência para o movimento de Garfield ao longo do filme:
mais parecido no início com Ellen, cuja delicadeza e idealismo admira, ele
vai se transformando gradualmente em alguém ainda mais perturbado do que
Childress.
Apesar do exagero e do simplismo de algumas situações, 187 (código
policial nos EUA para homicídio) tem cerca de 70 minutos de suposto
realismo, férteis para a discussão do enfrentamento da violência no ensino
público em regiões de população excluída socialmente. Nos 50 minutos
finais, porém, altera o rumo e vira um suspense sobre vingança ambientado
em uma autêntica zona de combate (não por acaso, o final é inspirado na
célebre sequência da roleta-russa de O Franco-atirador, que se passa na
Guerra do Vietnã).
Ao descrever – ainda que de maneira questionável – o processo de
embrutecimento vivido pelo seu protagonista, o filme lança uma pergunta:
poderia o sistema educacional levar alguém como Garfield a fazer o que faz?
É possível responder de modo enviesado: se Yagemann adquiriu todo esse
rancor dando aula, ele está precisando de terapia – e as escolas públicas de
Los Angeles, de uma ampla reforma.
187 – O Código (One Eight Seven) – EUA, 1997, 119 min. Direção: Kevin Reynolds. Roteiro: Scott Yagemann. Com Samuel L. Jackson, John Heard, Kelly Rowan. Distribuição em DVD: Paris.

(Publicado em Educação 22, fevereiro de 1999)


Acidente
Brasil, 2007
Direção: Cao Guimarães e Pablo Lobato

Artista plástico radicado em Belo Horizonte (MG), Cao Guimarães


dedica-se há cerca de 10 anos a realizar filmes experimentais, batizados por
ele, no início, de “cinema de cozinha”. Minas Gerais e sua gente foram a
inspiração de alguns deles, como A Alma do Osso (2004), prêmio de melhor
filme do É Tudo Verdade — Festival Internacional de Documentários, e O
Andarilho (2006), exibido na recente Bienal de São Paulo.
Em Acidente, que disputou no início deste ano a mostra competitiva
internacional de documentários do Festival Sundance, em Park City (Utah,
EUA), Guimarães — em trabalho de codireção com Pablo Lobato — procura
traduzir para a linguagem audiovisual uma determinada idéia de "mineirice",
que se confunde com a de brasilidade interiorana. Aproximar-se dela requer o
esforço de capturar elementos às vezes intangíveis: um certo tempo, um certo
jeito, uma certa luz.
Um poema em três partes, construído a partir dos nomes inusitados de
20 cidades mineiras, funciona como uma espécie de roteiro. A primeira delas,
por exemplo, corresponde em forma de prosa à seguinte frase: “Heliodora,
virgem da Lapa, espera feliz Jacinto: olhos d’água”. É provável que nem
mesmo cidadãos do planeta Minas Gerais consigam identificar as cinco
cidades do estado reunidas por esse haicai.
Ferros, Vazante, Fervedouro e Pai Pedro são alguns dos nomes
sugestivos que se prestam a um jogo de associações estabelecido tanto pelo
verbo (em torno do significado imediato das palavras e de seus contrastes
com o lugar) como pelas imagens e metáforas sugeridas por diversas cidades,
como Descoberto, Planura, Passos, Tiros e Águas Vermelhas.
Guimarães privilegia a atenta observação do dia a dia, em busca do que
a câmera teria a revelar para além do olhar cotidiano e apressado que
lançamos sobre o mundo à nossa volta. É um documentário com elementos
de ficção, e às vezes um ensaio de ficção com um ponto de partida
documental, em formato híbrido adotado por uma parcela significativa da
produção audiovisual contemporânea.
Integrante do programa DocTV (do Ministério da Cultura, da TV
Cultura de São Paulo e da Associação Brasileira de Documentaristas),
Acidente integra o volume 1 da série Novos Olhares, que traz ainda os
documentários Paraíso, de Marco Antonio Ribeiro, Fernando Uehara e
Caetana Britto, e As Vilas Volantes - O Verbo Contra o Vento, de Alexandre
Veras.
Acidente - Brasil, 2007, 72 min. Direção e roteiro: Cao Guimarães e Pablo Lobato. Distribuição em DVD: Log On.

(Publicado em Educação 119, março de 2007)


Adeus, Lênin!
Good bye, Lenin!
Alemanha, 2003
Direção: Wolfgang Becker

A utilização convencional do cinema nas disciplinas de história envolve


filmes que reconstituem fatos marcantes e recriam a trajetória de personagens
célebres. Por eles, desfilam sobretudo os grandes líderes políticos, como
Napoleão, Lênin, Vargas e Kennedy. Essas figuras de almanaque são tratadas
como protagonistas de mudanças no curso da humanidade. É a “alta história”,
e não há nada de errado, claro, em examinar as versões dela produzidas não
só por cineastas, mas também por escritores de ficção, dramaturgos e artistas
plásticos.
Há outro nicho, no entanto, que constitui matéria das mais interessantes
para estudo e debate. É o dos filmes que se ambientam em circunstâncias
históricas específicas e importantes, mas que trazem como personagens
pessoas comuns, tenham elas existido ou não. Ali, os fatos atuam como pano
de fundo, e o que ganha força é o seu impacto transformador sobre atores
sociais daquele período. Um dos melhores exemplos dessa corrente é a
multifacetada releitura do Risorgimento (o processo de unificação da Itália,
no século 19) feita por Luchino Visconti em Sedução da Carne (54) e O
Leopardo (63).
Adeus, Lênin! opta por abordagem semelhante. Seus personagens vivem
na extinta República Democrática Alemã (RDA, ou Alemanha Oriental) e
acompanham, da perspectiva dos trabalhadores, a derrocada do regime
socialista, a queda do Muro de Berlim, a implantação do modelo capitalista e
o processo de reunificação da Alemanha. Alguns chefes de governo que
protagonizaram esses episódios, como Erich Honeker (que governou a RDA
de 1971 a 1989), Mikhail Gorbatchov (líder da URSS de 1985 até 1991) e
Helmut Kohl (primeiro chanceler da nova Alemanha), aparecem em fotos e
cenas de TV.
O foco, no entanto, se concentra em uma família de Berlim cujo pai
exilou-se nos anos 70. A mãe (Katrin Sass) é professora, adepta fervorosa dos
valores socialistas, pronta a combater quem tenha algo a dizer contra a
administração linha-dura de Honeker. Seus filhos, Alexander (Daniel Brühl)
e Ariane (Maria Simon), estão habituados ao cotidiano do país, mas são
sensíveis aos movimentos de reforma. E, na mesma noite em que Alexander
participa de uma passeata contra o governo, sua mãe sofre um ataque
cardíaco. Em coma, ela não vê a queda do Muro e os novos rumos da história
alemã, mas seus filhos adaptam-se rapidamente a ambos os fatos – a perda da
mãe e a mudança de regime.
O problema surge quando a professora se recupera e retorna ao
apartamento, já transformado, a essa altura, por traços ocidentais de
consumo. As ruas também espelham as alterações políticas e econômicas.
Para preservar a mãe, Alexander tenta convencê-la de que tudo continua
como antes e mantém a RDA viva nos limites do apartamento. A farsa
construída por ele tem requintes divertidos, que equilibram muito bem o
filme entre o drama e o humor, e permite que se note, entre outros aspectos,
como o estudo da história no cinema tem a lucrar quando os “figurões”
cedem espaço na tela a cidadãos comuns.
Adeus, Lênin! (Good bye, Lenin!) — Alemanha, 2003, 121 min. Direção: Wolfgang Becker. Roteiro: Bernd Lichtenberg e Wolfgang Becker. Com Daniel Brühl, Katrin Sass, Maria Simon,
Chulpan Khamatova, Florian Lukas, Alexander Beyer, Burghart Klaussner, Michael Gwisdek. Distribuição em DVD: Imagem.

(Publicado em Educação 89, setembro de 2004


Alice no País das Maravilhas
Alice in Wonderland
EUA, 2010
Direção: Tim Burton

A garota Alice, o Chapeleiro Maluco e os demais personagens da


subterrânea "Wonderland" (País das Maravilhas, nas traduções em português)
foram criados pelo inglês Lewis Carroll (1832-1898) a partir do desafio
lúdico de contar histórias para três irmãs. Uma delas, Alice Pleasance Liddell,
na ocasião com 10 anos, teria sido a inspiração para a protagonista.
Em forma de livro, Alice no País das Maravilhas foi publicado em
1865. Sete anos depois, veio a continuação, batizada em português de Alice
no País do Espelho. Essa obra do século 19 continua a repercutir com
intensidade no século 21, e ainda não perdeu a capacidade de gerar novas
leituras e adaptações, inclusive no coração da indústria cultural.
É o caso de Alice no País das Maravilhas, a versão cinematográfica
produzida pelo grupo Disney e dirigida por Tim Burton (Edward Mãos-de-
tesoura, A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça) como tentativa de revitalizar o
universo de Carroll, tanto no aspecto criativo como no econômico — que,
aliás, costumam andar juntos no cinema.
Sem deixar-se intimidar pelo original, Burton orquestrou bem-sucedida
operação de rejuvenescimento — o filme tornou-se a quinta maior bilheteria
da história, com arrecadação mundial superior a US$ 1 bilhão — que se
escorou na mudança de idade da protagonista. Interpretada por Mia
Wasikowska, ela agora tem 19 anos e está às voltas com uma perspectiva de
mudança, gerada por um pedido de casamento.
O retorno a "Wonderland" (nome equivocado, como insistem alguns
personagens que vivem ali) fará de Alice uma heroína de filmes de ação,
chamada a agir na luta pelo poder entre a perversa Rainha Vermelha (Helena
Bonham-Carter) e a doce Rainha Branca (Anne Hathaway). De olho no que
funciona na cultura de massas do século 21, Burton buscou na obra de Carroll
apenas o que lhe interessava, em exercício de releitura característico de toda
adaptação.
No cinema, Alice deu origem a dezenas de adaptações, a primeira das
quais registrada em curta-metragem silencioso de 1903. O grupo Disney já
havia lançado uma adaptação em desenho animado, também batizada de
Alice no País das Maravilhas (1951), que suaviza os traços mais
perturbadores da história.
Entre as demais versões disponíveis no Brasil, figuram os britânicos
Alice in Wonderland (1966), produzido pela rede BBC e dirigido por
Jonathan Miller, e Alice Adventures in Wonderland (1972), dirigido em
forma de musical por William Sterling, além do tcheco Alice (1988),
realizado pelo animador Jan Svankmajer.
Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland) — EUA, 2010. Direção: Tim Burton. Roteiro: Linda Woolverton, baseado em obras de Lewis Carroll. Com Johnny Depp, Mia Wasikowska,
Helena Bonham Carter, Anne Hathaway. Distribuição em DVD e Blu-ray: Disney.

(Publicado em Educação 162, outubro de 2010)


O Aluno
L´Élève
França/Polônia, 1996
Direção: Olivier Schatzky

Supõe-se que os papéis de aluno e professor estejam sempre bem claros.


Em linhas gerais, espera-se que o primeiro aprenda com o segundo, desde
conhecimentos mais objetivos (regras gramaticais, fórmulas matemáticas) até
padrões de conduta. Mas e quando os padrões se alteram, e quem “aprende”
com seu pupilo é o mestre?
O Aluno trabalha de maneira sutil e inteligente essa inversão de papéis.
O roteiro toma como base The Pupil, um dos romances menos conhecidos do
norte-americano Henry James (1843-1916), autor de Os Bostonianos, A Volta
do Parafuso e Retrato de uma Dama (também já adaptados para o cinema). O
diretor Olivier Schatzky e sua corroteirista, Eve Deboise, ambientam a
história na França, no final do século 19. Julien Barne (Vincent Cassel, de O
Ódio) é um jovem metido a intelectual, aspirante a escritor. Na falta de
emprego melhor, aceita o convite de um casal de aristocratas para dar aulas
particulares a seu filho caçula, Morgan (Caspar Salmon).
A mãe do garoto (Caroline Cellier, de Farinelli) abre o jogo logo de
cara. Seu filho “faz tudo com o coração”, por isso “nunca foi à escola”. Sua
personalidade “dá vida à casa”. “É um pequeno gênio”, resume. Arroubos de
mãe coruja? Julien descobre que não. Na primeira tentativa de “aula”,
percebe que está diante, na pior das hipóteses, de um menino prodígio.
Espantoso caso de autodidatismo, Morgan conhece literatura, filosofia,
línguas, e tem uma capacidade invejável de argumentação, que usa para
interpretar o mundo, com incrível maturidade para um adolescente.
Em um primeiro instante, Julien procura adaptar-se a essa situação
inusitada. Propõe a Morgan jogos intelectuais que o garoto aceita com prazer.
De início confrontado pelo “aluno”, conquista aos poucos sua confiança.
Entre os dois estabelece-se rapidamente um relacionamento cúmplice e
afetuoso (não errará completamente o alvo quem enxergar ali conotações
homossexuais). Quando acorda para a realidade, Julien vê-se muito ligado a
Morgan. E ligado até demais: deixa de encarar a atividade como emprego e
aceita acompanhar o garoto como um “amigo”, o único de que o geniozinho
dispõe no momento.
A oferta vem a calhar, porque a família vai revelando com o tempo viver
de um simulacro de aristocracia. Obrigada a abandonar a impressionante
mansão onde mora no início do filme (tão pretensiosa que uma placa na
entrada pede às visitas a gentileza de “não tirar o sobretudo”), passa a vagar
por residências improvisadas e a vender os bens que sobraram para se
sustentar. O primeiro corte no orçamento, obviamente, é o salário do
professor – e nada melhor do que ele próprio sujeitar-se a trabalhar sem
receber. Julien começa a desconfiar, no entanto, que o maquiavelismo do pai
(Jean-Pierre Marielle, de Os Canastrões) e da mãe vai além do que se poderia
imaginar.
O que passa pela cabeça malévola do casal, e que nas entrelinhas vai se
mostrando aos outros personagens, alimenta o repertório de surpresas do
filme. Lançado na França em setembro de 1996, O Aluno foi visto em Paris
por cerca de 34 mil espectadores em suas dez primeiras semanas em cartaz,
desempenho modesto para um filme que, entre outras coisas, traz no currículo
o prêmio de melhor direção no Festival de Montreal. Sua chegada em vídeo
ao Brasil permite conhecer uma obra cujos defeitos parecem muito pequenos
diante de suas qualidades, das quais a principal talvez seja a de levar o
público, por força de seus diálogos – alguns fascinantes – e também de seus
silêncios reveladores, a preencher as lacunas da história. E a construir, a
partir delas, sua própria leitura do filme.
O Aluno (L´Élève) — França/Polônia, 1996, 90 min. Direção: Olivier Schatzky. Roteiro: Eve Deboise e Olivier Schatzky, baseado em romance de Henry James. Com Vincent Cassel, Caroline
Cellier, Jean-Pierre Marielle, Caspar Salmon. Distribuição em VHS: United Films.

(Publicado em Educação 8, dezembro de 1997)


Amor & Cia.
Brasil/Portugal, 1998
Direção: Helvécio Ratton

O cinema brasileiro deve à literatura alguns de seus momentos mais


felizes. Graciliano Ramos possibilitou que Nelson Pereira dos Santos
realizasse duas obras-primas, Vidas Secas (1963) e Memórias do Cárcere
(1983). É de Jorge Amado o argumento da maior bilheteria brasileira da
história, Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), dirigido por Bruno Barreto.
Nelson Rodrigues também ajudou a arrastar multidões aos cinemas, com A
Dama do Lotação (1978) e Toda Nudez Será Castigada (1973). Mário de
Andrade (Macunaíma, 1969) e Dias Gomes (O Pagador de Promessas, 1962)
são outros exemplos de boa literatura traduzida em bom cinema.
A esse grupo junta-se agora Amor & Cia., do mineiro Helvécio Ratton,
diretor de A Dança dos Bonecos (1986) e Menino Maluquinho (1994). Ratton
inspirou-se em Alves & Cia., novela do português José Maria Eça de Queirós
(1845-1900) publicada postumamente em 1925. É uma joia de brilho
secundário na coroa de Eça, em que se destacam clássicos como O Primo
Basílio, A Cidade e as Serras e O Crime do Padre Amaro. Mas suas
qualidades prestaram-se sob medida, no cinema, a uma crônica de costumes
sutil, inteligente e divertida.
No início da trama, ambientada na passagem do século 19 para o 20,
Godofredo Alves (Marco Nanini) pode ser definido como um homem feliz. É
apaixonado pela mulher, Ludovina (Patrícia Pillar), com quem planeja ter um
filho depois de quatro anos tranquilos de casamento. E mantém com um sócio
e amigo de infância, Antonio Machado (Alexandre Borges), uma empresa em
franca expansão.
O que poderia ser pior, nessas circunstâncias, do que encontrar a mulher
nos braços do sócio dentro da própria casa? Essa dupla infidelidade derruba
Godofredo, que expulsa Ludovina de casa e desafia Machado para um duelo
mortal. Por mais limitadas que pareçam as possibilidades de desenvolvimento
de uma história como essa, Amor & Cia. não se cansa de surpreender de
alguma forma o espectador, seja por conduzir os personagens a atitudes
inesperadas, seja por mostrar que a excelência técnica do filme – identificável
logo de cara – sustenta-se até a última imagem, de uma ambiguidade
equivalente à da Capitu de Machado de Assis (e com um tratamento mais
irônico da possibilidade de adultério do que Dom Casmurro).
O andamento do filme, engraçado mas tocante, encontra na modinha
Quem Sabe, de Carlos Gomes e Bittencourt Sampaio, um valioso ponto de
apoio musical. Cantada na trilha sonora por Nanini e Pillar, ela resume com
sua poesia simples essa dança das paixões que funciona como registro crítico
de usos e costumes da pequena burguesia do século passado.
Pena que Amor & Cia. tenha chegado aos cinemas no mesmo ano em
que Central do Brasil quase monopolizou o espaço dedicado a filmes
brasileiros na imprensa. Seu lançamento em vídeo permite que se faça justiça
a um excelente trabalho de adaptação, capaz de manter vivo o espírito do
autor (os diálogos, em especial, são admiráveis) e, ao mesmo tempo,
acrescentar-lhe um apelo puramente cinematográfico. Se há um casamento
acima de qualquer suspeita no filme, sem dúvida é aquele entre Eça e Ratton.
Amor & Cia. – Brasil/Portugal, 1998, 100 min. Direção: Helvécio Ratton. Roteiro: Carlos Alberto Ratton, baseado na novela Alves & Cia., de Eça de Queirós. Com Marco Nanini, Patrícia Pillar,
Alexandre Borges, Claudio Mamberti. Distribuição em VHS: Filmark.

(Publicado em Educação 25, maio de 1999)


O Ano em que Meus Pais Saíram de
Férias
Brasil/Argentina, 2006
Direção: Cao Hamburger

A memória dos regimes militares latino-americanos do século 20 gerou


uma bem-sucedida família de longas-metragens que examinam o passado
ditatorial por meio do olhar infantil, como os argentinos Kamchatka (2002),
de Marcelo Piñeyro, e Ilusão de Movimento (2003), de Héctor Molina, e o
chileno Machuca (2004), de Andrés Wood.
Embora venha se dedicando a fatos verídicos (O Que é Isso,
Companheiro?, Zuzu Angel) e ficcionais (Ação Entre Amigos, Cabra-Cega)
relacionados a nossos anos de chumbo, a produção brasileira só encontrou
um similar dessa vertente já explorada pelos países vizinhos com O Ano em
que Meus Pais Saíram de Férias.
O argumento mistura elementos de Kamchatka (pais perseguidos pela
repressão precisam abandonar seus filhos) e de Ilusão de Movimento (a
euforia nacionalista durante as Copas do Mundo de 1978 e de 1986
contrastando com o enfrentamento subterrâneo do regime militar argentino e
as memórias insepultas do horror), com uma cuidadosa ambientação de
época.
O ano em questão é 1970, quando a seleção brasileira de futebol obteve
a guarda definitiva da Taça Jules Rimet (depois roubada e derretida) graças
ao título mundial obtido na Copa do Mundo realizada no México. Foi um dos
maiores feitos na história do esporte nacional, mas coincidiu com um dos
piores momentos de nossas liberdades civis, o governo do general Emílio
Garrastazu Médici.
No filme, um garoto (Michel Joelsas) é levado pelos pais de Belo
Horizonte até São Paulo, para viver um tempo sob a guarda segura do avô na
comunidade judaica do Bom Retiro. Mas um incidente atrapalha os planos e,
enquanto o garoto procura se adaptar à situação, o país que ia para a frente,
como lembrava um "jingle" da época, acompanha pela TV a impecável
campanha de Pelé e cia. nos gramados mexicanos.
O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias — Brasil/Argentina, 2006, 104 min. Direção: Cao Hamburger. Roteiro: Claudio Galperin, Cao Hamburger, Bráulio Mantovani e Anna Muylaert, com
a colaboração de Adriana Falcão. Com Michel Joelsas, Germano Haiut, Paulo Autran, Simone Spoladore, Eduardo Moreira, Caio Blat, Daniela Piepszyk. Distribuição em DVD: Disney
(Publicado em Educação 121, maio de 2007)
Apenas o Fim
Brasil, 2008
Direção: Matheus Souza

Cinema, em escala industrial, é uma atividade que mobiliza grandes


recursos. Superproduções norte-americanas custam mais de US$ 100
milhões, e mesmo as produções independentes muitas vezes atingem US$ 20
milhões. No Brasil, em que o orçamento médio situa-se em patamar bem
inferior, considera-se difícil realizar um longa por menos de R$ 2 milhões e
alguns chegam a consumir R$ 10 milhões.
Esses filmes dominam o mercado de exibição, mas às vezes deixam
livres pequenos nichos ocupados por um "cinema de guerrilha", feito com
poucos recursos, à margem da produção convencional. Justamente por esse
motivo, essa variante mais "artesanal" costuma oferecer um frescor que não
se encontra no filão industrial. É o caso da produção carioca Apenas o Fim.
Realizada no campus da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, com verba escassa e equipamento da instituição, ela teve
receptividade especial do público jovem. Não há mistério: o primeiro longa
do diretor e roteirista Matheus Souza, com 20 anos na época do lançamento, é
um raro exemplo de filme brasileiro voltado para uma faixa etária (a do
próprio cineasta) em geral só atendida pela produção estrangeira.
Pouco antes de fazer uma prova, um estudante (Gregório Duvivier) é
procurado pela namorada (Érika Mader), que traz notícia inesperada: ela vai
embora, para lugar não revelado, e o casal tem apenas uma hora para a
despedida. A partir daí, acompanhamos os dois zanzando pelo campus; flash-
backs os mostram na intimidade. O humor de Woody Allen e Domingos de
Oliveira é uma forte referência, com estrutura semelhante à de Antes do
Amanhecer (1995) e Antes do Pôr do sol (2004), de Richard Linklater, e
alusões geracionais bem específicas (sobretudo do universo pop).
Apenas o Fim — Brasil, 2008, 80 min. Direção e roteiro: Matheus Souza. Com Érika Mader, Gregório Duvivier. Distribuição em DVD: Paris.

(Publicado em Educação 157, maio de 2010)


O Apóstolo
The Apostle
EUA, 1997
Direção: Robert Duvall

Em Contato, baseado no romance homônimo de Carl Sagan sobre a


existência de vida inteligente em outros planetas, uma cientista (Jodie Foster)
diz a um pastor (Matthew McConaughey) que não crê em Deus porque só
acredita em coisas que possam ser provadas. “Você gostava do seu pai?”,
pergunta o pastor, como quem muda de assunto. “Claro, eu o amava”, diz a
cientista, que perdeu o pai na infância. “Pois então prove”, desafia o pastor.
O xeque-mate aplicado por ele resume um velho dilema: a fé não
pertence ao terreno do palpável, do sensorial. No âmbito pessoal, filosofia e
teologia à parte, acredita-se ou não em certas coisas, e ponto. Para o cinema,
essa invisibilidade sempre correspondeu a um desafio. Quem trabalha com
imagens precisa mostrar ou, ao menos, insinuar. Se o assunto é a fé, a tarefa
reveste-se de uma dificuldade ainda maior. Como traduzir em imagens e
diálogos a experiência da crença religiosa?
O ator Robert Duvall constatou que, ao tratar de pastores e figuras
semelhantes, muitos filmes percorrem o caminho fácil da caricatura. Os
personagens são divinizados ou, então, vilanizados. Daí lhe ocorreu a ideia de
O Apóstolo, que ele demorou 13 anos para viabilizar. É o seu terceiro filme
como diretor, com um ponto de partida o mais objetivo possível: examinar a
vida de um pastor pentecostal de modo que cada um possa concluir por conta
própria o que o motiva a dedicar-se de maneira tão visceral a confortar
espiritualmente outras pessoas. Ninguém antes conseguiu conduzir o
espectador até o coração dessa vivência tão bem quanto Duvall.
Seu maior trunfo é a complexidade do protagonista, Euliss “Sonny”
Dewey, um orador carismático cheio de ambiguidades, sobretudo no
relacionamento com a mulher (Farrah Fawcett), que resolve lhe aplicar um
golpe duplo: anuncia a intenção de se separar, insatisfeita com as
infidelidades do marido, e de assumir o controle da igreja comandada pelo
casal. Sonny perde repentinamente quase tudo, inclusive a cabeça: ao agredir
o pastor mais jovem com quem sua mulher passa a viver, é obrigado a se
esconder sob nova identidade no interior da Louisiana.
Ali, arruma emprego em uma oficina e começa a erguer, com a ajuda de
um pastor local e de um programa de rádio, uma nova igreja, batizada de
“Mão Única para o Céu”. Dedicado a apaziguar a alma dos outros, o inquieto
Sonny é incapaz, entretanto, de pacificar a própria. O Apóstolo o mostra
quase sempre sob essa perspectiva dupla e, de certa forma, angustiante. A
mesma energia inesgotável que usa para ajudar e construir volta-se também
contra ele, impelido às vezes a agir de maneira precipitada e agressiva,
governado por sentimentos que o envergonham.
Sóbrio e inteligente, o filme de Duvall possibilita também reflexões
sobre as múltiplas implicações de revestir atividades cotidianas e
profissionais, sejam elas quais forem, de um caráter messiânico, como o
fazem muitos professores e militantes políticos, por exemplo. Mas é como
retrato de uma jornada de redenção que O Apóstolo desperta interesse amplo
e irrestrito, ao tratar a experiência da vida como uma caminhada em direção a
um lugar cujo endereço permanece boa parte do tempo – até o fim? –
desconhecido.
O Apóstolo (The Apostle) – EUA, 1997, 133 min. Direção e roteiro: Robert Duvall. Com Robert Duvall, Farrah Fawcett, Billy Bob Thornton, Miranda Richardson. Distribuição em DVD:
Universal.

(Publicado em Educação 144, abril de 1999)


O Aprendiz
Apt Pupil
EUA, 1997
Direção: Bryan Singer

Se todo professor deseja inspirar seus alunos a ponto de levá-los por


conta própria a aprofundar os conhecimentos adquiridos na escola, ninguém
poderia reclamar do que ocorre com Todd Bowden, o protagonista de O
Aprendiz. Aos 16 anos, melhor aluno da turma, ele se impressiona de tal
maneira com uma semana de aulas sobre o holocausto que resolve pesquisar
o tema na biblioteca da cidade, na região metropolitana de Los Angeles.
Descobre pastas com recortes de jornais e revistas, fotos e documentos. No
meio da papelada, o perfil de Kurt Dussander, um oficial nazista caçado, sem
sucesso, há 40 anos.
O interesse provavelmente chegaria logo ao fim se um dia, ao tomar o
ônibus de volta para casa, Todd não cruzasse com um velhinho frágil e
discreto. Decide segui-lo e descobre que seu nome é Arthur Denker. Mas a
semelhança entre ele e Dussander faz com que Todd não descanse antes de
levantar impressões digitais e outros indícios capazes de incriminá-lo.
Quando conclui que ele é de fato o homem perseguido pelo governo de
Israel, lhe propõe um estranho jogo: permanecerá em silêncio se
Denker/Dussander contar histórias dos campos de concentração. “Tudo o que
eles têm medo de nos dizer na escola”, explica.
Começa então um estudo perturbador da natureza humana, focado nas
relações ambíguas entre um velho mestre e seu jovem aprendiz. Todd (Bred
Renfro, o garoto de O Cliente) parece inicialmente estar no comando. Resta a
Dussander (Ian McKellen, de Ricardo III e Deuses e Monstros) atender aos
seus caprichos e, a contragosto, abrir pouco a pouco o baú de recordações.
Mas o impacto dessas “memórias do Mal” sobre os dois altera as regras do
jogo. O passado que emerge, em vez de perturbar, fascina a Todd. Sem
perceber, ele cai nas mesmas e sutis garras psicológicas responsáveis pela
ascensão do nazismo.
Família e escola entram a partir daí no território de manipulações de O
Aprendiz. Há um pai omisso que não enxerga um palmo além do nariz (Bruce
Davison) e um orientador educacional que se julga esperto, mas faz papel de
bobo (David Schwimmer). São vítimas ingênuas da teia intrincada que, ao
aproximar Todd e Dussander, os transforma em cúmplices e, por tabela,
aliados. Em pauta, o perigo representado pela curiosidade juvenil em relação
ao lado escuro da humanidade. Não se encontrará no filme uma solução
confortável para lidar com o problema.
Mais conhecido por seus contos e romances de horror, o escritor norte-
americano Stephen King é o autor da novela que inspirou O Aprendiz.
Nenhuma surpresa: como já havia demonstrado no autobiográfico Conta
Comigo (1986), King consegue recriar bem os tormentos psicológicos da
adolescência.
Em sua novela, King reserva a Todd um final bem mais trágico do que
no filme. Seria mais coerente não apenas com o desenvolvimento dos
personagens, mas também com a atmosfera de violência social que tanto
incomoda a sociedade dos EUA, e da qual o massacre de Littleton, no
Colorado, é um exemplo. Nem por isso O Aprendiz deixa de ser assustador,
ao narrar uma fábula em que a maldade esconde-se nos lugares mais
insuspeitos, como a mente de um jovem de classe média com rosto angelical,
pronta para desabrochar se regada com o devido método.
O Aprendiz (Apt Pupil) – EUA, 1997, 100 min. Direção: Bryan Singer. Roteiro: Brandon Boyce, baseado em novela de Stephen King. Com Ian McKellen, Brad Renfro, Bruce Davison, Elias
Koteas, David Schwimmer. Distribuição em DVD: Sony.

(Publicado em Educação 147, julho de 1999)


O Artista
The Artist
França/Bélgica/EUA, 2011
Direção: Michel Hazanavicius

A Invenção de Hugo Cabret


Hugo
EUA, 2011
Direção: Martin Scorsese

Destaques na cerimônia de entrega do Oscar, duas das produções de


maior prestígio da temporada 2011 celebram as origens do próprio cinema: O
Artista, que recebeu o prêmio de melhor filme e outras quatro estatuetas, e A
Invenção de Hugo Cabret, vencedor em cinco categorias técnicas. Enquanto
o primeiro narra uma história inteiramente fictícia sobre um astro do período
silencioso que entra em decadência com o lançamento do cinema sonoro, o
segundo é inspirado em um personagem real, o ator, diretor e produtor
francês Georges Méliès (1861-1938).
Em O Artista, o diretor e roteirista francês Michel Hazanavicius optou
por falar do cinema silencioso sem usar diálogos. É bem verdade que
recorreu a muita música e que, no final, algumas palavras são ditas pelos
personagens, mas o efeito geral é muito próximo ao dos filmes produzidos
nas primeiras três décadas do cinema. Na trama, um astro de Hollywood
(interpretado por Jean Dujardin, Oscar de melhor ator) sai de cena por resistir
às mudanças na indústria, ao mesmo tempo em que uma de suas fãs
(Bérénice Bejo, mulher de Hazanavicius) faz carreira fulminante como atriz.
Embora seja uma produção franco-belga (com participação de capital
norte-americano), O Artista foi filmado em Los Angeles. Sua boa
receptividade nos EUA está relacionada também ao fato de que os diálogos
(escritos em cartelas e, no final, falados) são em inglês, com a presença de
diversos atores norte-americanos. Apenas sete filmes inteiramente falados em
outros idiomas que não o inglês disputaram o Oscar de melhor filme, entre
eles o sueco Gritos e Sussurros (1973) e o italiano A Vida é Bela (1998).
Nenhum deles recebeu o prêmio.
Baseado no livro homônimo de Brian Selznick, A Invenção de Hugo
Cabret traz um dos pioneiros do cinema, Méliès, já na fase final da vida.
Esquecido, ele administrava com a mulher uma loja de brinquedos em uma
estação ferroviária de Paris. Na trama fictícia do livro e do filme, um menino
órfão que mora escondido no relógio da estação (Asa Butterfield) conhece
Méliès (Ben Kinsgsley) e protagoniza uma aventura que, embora tenha como
alvo o público infanto juvenil, atinge também o espectador adulto justamente
pelo caráter afetivo da homenagem do diretor Martin Scorsese a diversos
atores e diretores das primeiras décadas do cinema.
O verdadeiro Méliès trabalhava como mágico em 1895, quando assistiu
à primeira sessão do cinematógrafo, um dos aparelhos que deram origem ao
cinema. Entusiasmado pela possibilidade de usar o truque das imagens em
movimento nos seus números de magia, tornou-se mais tarde o grande
precursor da fantasia no cinema. Apesar do sucesso de muitos de seus filmes,
como Viagem à Lua (1902), parou de trabalhar ainda na década de 1910 e
morreu no ostracismo.
O Artista (The Artist) — França/Bélgica/EUA, 2011, 100 min. Direção e roteiro: Michel Hazanavicius. Com Jean Dujardin, Bérénice Bejo, John Goodman, James Cromwell, Penolope Ann
Miller. Distribuição em DVD e Blu-ray: Paris.

A Invenção de Hugo Cabret (Hugo) — EUA, 2011, 126 min. Direção: Martin Scorsese. Roteiro: John Logan, baseado em romance de Brian Selznick. Com Asa Butterfield, Chloë Grace Moretz,
Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen. Distribuição em DVD: Paramount.

(Publicado em Educação 184, agosto de 2012)


O Auto da Compadecida
Brasil, 1999
Direção: Guel Arraes

É provável que o paraibano Ariano Suassuna não imaginasse o futuro


impressionante da peça Auto da Compadecida quando a escreveu, em 1955.
Texto de estrutura dramática simples, baseado em romances e histórias
populares do Nordeste, foi encenado pela primeira vez dois anos depois e
tornou-se um dos espetáculos mais populares na história do teatro brasileiro,
com inúmeras montagens profissionais e amadoras, e duas adaptações para
cinema, em 1969 (com Antonio Fagundes e Regina Duarte) e em 1987 (com
os Trapalhões).
Já não se pode dizer, entretanto, que o diretor Guel Arraes tenha se
surpreendido como Suassuna ao descobrir que sua adaptação do Auto foi um
dos grandes sucessos da TV brasileira em 1999. Exibida em quatro episódios,
de terça a sexta-feira, a versão tinha 160 minutos e obteve um feito
considerável: no último dia, registrou mais audiência do que no primeiro.
Com base nesse referendo do público, Arraes convenceu a Globo a lançar
também uma versão nos cinemas, com pouco menos de duas horas.
Não havia tanto problema: ele já havia preparado o roteiro com
“atalhos” que facilitariam a edição. Mesmo com a exibição prévia na TV, O
Auto da Compadecida atraiu mais de dois milhões de espectadores e
transformou-se no filme brasileiro de maior público nos últimos cinco anos.
A cópia dupla em DVD traz as duas versões.
A trama se ambienta em Taperoá, no sertão nordestino, onde os heróis
picarescos de Suassuna, João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton
Mello), vivem de pequenos bicos. O primeiro, que costuma “dar jeito” em
tudo, arruma encrenca na tentativa de convencer o padre (Rogério Cardoso) a
benzer uma cachorra desenganada. O segundo, covarde e mentiroso, segue os
passos do amigo, mas insiste que as coisas vão terminar mal – e tem razão.
A maior novidade em relação à peça é o aparecimento de Rosinha
(Virginia Cavendish), filha de um coronel. Seu romance com Chicó e o duelo
do desajeitado pretendente com os valentões da cidade são acréscimos do
roteiro, ainda que inspirados em personagens e situações de outras obras de
Suassuna. O cuidado de Arraes em manter a essência do original revela-se
inclusive nos momentos em que foi obrigado a encontrar soluções visuais não
previstas no texto, como as lorotas de Chicó traduzidas em imagens e o
purgatório ambientado em uma igreja de interior.
Pode-se interpretar o filme na mesma linha que a peça: como uma fábula
sobre a superioridade moral dos humildes diante dos poderosos, o sincretismo
religioso brasileiro e a dura sobrevivência no Nordeste, entre outras leituras.
A versão respeitosa de Arraes tem o mérito de não intervir onde não era
preciso, de não chamar a atenção para nada além da própria riqueza do texto.
Esconder-se, para um diretor, equivale muitas vezes a uma qualidade.
O Auto da Compadecida — Brasil, 1999, 104 min. Direção: Guel Arraes. Roteiro: Adriana Falcão, João Falcão e Guel Arraes, baseado na peça teatral de Ariano Suassuna. Com Fernanda
Montenegro, Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Lima Duarte, Rogério Cardoso, Denise Fraga, Diogo Vilela, Maurício Gonçalves, Marco Nanini, Luis Mello, Paulo Goulart, Virginia
Cavendish, Bruno Garcia, Enrique Díaz, Aramis Trindade. Distribuição em DVD: Columbia.

(Publicado em Educação 47, março de 2001)


Babel
Babel
EUA, 2006
Direção: Alejandro González Iñárritu

Com Amores Brutos (2000) e 21 Gramas (2003), seus dois primeiros e


bem-sucedidos longas-metragens, o diretor mexicano Alejandro González
Iñárritu exercitou narrativas complexas que contam histórias paralelas, com
idas e vindas no tempo. Babel recorre ao mesmo expediente, mas é bem mais
ambicioso do que os filmes anteriores, em sua tentativa de promover leitura
multifacetada de alguns efeitos do processo de globalização a partir de roteiro
original do também escritor Guillermo Arriaga.
A ideia principal é a de que existem conexões entre fatos distantes que
passam despercebidas até mesmo pelos seus protagonistas, em relação de
causa e efeito que muitas vezes provoca sofrimento e altera vidas. São três
núcleos de personagens que se comunicam, em maior ou menor grau: um
casal de turistas norte-americanos que excursiona pelo norte da África; a babá
mexicana de seus filhos que, nos EUA, atravessa a fronteira para ir a uma
festa; e, no Japão, pai e filha que mantêm relacionamento difícil após a morte
da mãe.
Esse olhar sobre o presente conturbado lança dúvidas amargas,
expressas no próprio título, sobre as dificuldades de entendimento e o futuro
do planeta. Presença constante em listas de premiados da última temporada,
Babel é uma produção norte-americana, mas a participação de mexicanos à
frente e atrás das câmeras contribuiu para aumentar a visibilidade
internacional do cinema do país, que teve recentemente outro prestigioso
cartão de visita em O Labirinto do Fauno (2006).
Aqui, o olhar é sobre uma chaga do passado, a Guerra Civil Espanhola,
já abordada em filmes distintos como Terra e Liberdade (1995) e A Língua
das Mariposas (1999). A variação encontrada pelo diretor e roteirista
Guillermo del Toro foi adotar o ponto de vista de uma menina que, de
mudança para a casa onde a mãe viverá com o padrasto, um autoritário
militar franquista, passa a misturar o duro cotidiano sob conflito com um
universo de fantasia que se abre para ela como válvula de escape.
Babel (Babel) — EUA, 2006, 143 min. Direção: Alejandro González Iñárritu. Roteiro: Guillermo Arriaga, baseado em argumento dele e de Alejandro González Iñárritu. Com Brad Pitt, Cate
Blanchett, Mohamed Akhzam, Peter Wight, Harriet Walter. Distribuição em DVD: Paramount.
(Publicado em Educação 124, agosto de 2007)
O Baile Perfumado
Brasil, 1997
Direção: Paulo Caldas e Lírio Ferreira

Autoproclamado “governador do sertão”, Virgulino Ferreira da Silva


(1900-1938) teve seu período de estrela do cinema. Graças à ousadia de
Benjamin Abrahão, um ambicioso fotógrafo libanês que desembarcou no
Brasil disposto a “mudar o mundo”, Lampião e seu bando protagonizaram
nos anos 1930 um documentário polêmico, censurado pelo governo Vargas
por “atentar aos créditos da nacionalidade”. As cenas do filme, hoje
depositado na Cinemateca Brasileira, constituem o principal registro em
imagens de nosso mais famoso cangaceiro.
A aventura que levou às filmagens é reconstituída em O Baile
Perfumado, um dos mais criativos e premiados filmes brasileiros dos últimos
anos. Benjamin (Duda Mamberti) se apresentava como o “braço direito” de
Padre Cícero (Jofre Soares), graças a quem já havia conhecido Lampião (Luís
Carlos Vasconcelos), em 1926, quando o cangaceiro discutiu com o padre a
proposta do governo para combater a Coluna Prestes em troca de anistia –
acordo que não chegou a cumprir, usando as armas entregues a ele para novas
pilhagens. Com a morte de Padre Cícero, em 1934, Benjamin abandonou
Juazeiro do Norte e foi a Recife em busca de recursos para o projeto de filmar
Lampião.
Esperto, ruim de português mas bom de lábia, ele não apenas localizou e
alcançou o procurado bando de cangaceiros, coisa que as Volantes (equipes
de policiais especializadas no combate ao cangaço) não conseguiam, como
também convenceu Lampião a se deixar filmar, com o argumento de que
ganharia dinheiro e fama. Benjamin chegou às manchetes como “o árabe que
filmou Lampião”, mas a censura ao documentário começou a transformar o
sonho de fortuna em pesadelo.
Além das sequências prosaicas como “Lampião lendo”, “paisagem do
sertão ao amanhecer” e “grupo pega água para abastecer”, Benjamin rodou
também imagens mais curiosas, como as do bando, supostamente
embriagado, dançando à noite ao som da canção que empresta seu título ao
filme de Lírio Ferreira e Paulo Caldas. Mas O Baile Perfumado apresenta
outros personagens marcantes, como o tenente Lindalvo Rosas (Aramis
Trindade, prêmio de melhor ator coadjuvante no Festival de Brasília),
obcecado pela perseguição a Lampião, e dois coronéis que mantêm relações
perigosas com o cangaceiro – Zé de Zito (Chico Diaz) e João Libório
(Claudio Mamberti).
Habilidoso ao costurar a reconstituição ficcional da aventura de
Benjamin com as cenas reais dos anos 1930, o filme também se vale do
impacto positivo da escolha de locações, em diversas cidades de Alagoas,
Bahia, Pernambuco e Sergipe, incluindo Piranhas (AL), onde Lampião e
bando estariam refugiados quando a câmera do fotógrafo libanês os
encontrou. A trilha sonora, em que se destaca a participação do falecido
Chico Science, também contribui para que O Baile Perfumado consiga
funcionar como um polêmico mas eficiente ponto de partida para novas
discussões sobre o Nordeste, enquadrado aqui de maneira distinta da que lhe
reserva a história “oficial”. Se filmes tivessem cheiro, este exalaria um forte e
convincente aroma de caatinga.
O Baile Perfumado – Brasil, 1997, 93 min. Direção: Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Roteiro: Hilton Lacerda, Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Com Duda Mamberti, Luís Carlos Vasconcelos, Aramis
Trindade, Chico Diaz, Claudio Mamberti, Giovanna Gold. Distribuição em VHS: Sagres.

(Publicado em Educação 17, setembro de 1998)


O Banheiro do Papa
El Baño del Papa
Uruguai/França/Brasil, 2007
Direção: César Charlone e Enrique Fernández

Nossos vizinhos sul-americanos estão geograficamente perto, mas


culturalmente parecem ficar muito mais longe do que os EUA ou a Europa.
Da produção contemporânea do Uruguai, por exemplo, quase nada chega ao
Brasil – no cinema, na literatura ou na música. Cerca de quatro anos atrás,
estreou por aqui, impulsionado por uma boa carreira internacional em
festivais, o longa-metragem Whisky (2004), de Juan Pablo Rebella e Pablo
Stoll, que surpreendeu muita gente por explorar, com um humor muito
particular, o envelhecimento da população do país.
Depois dele, só O Banheiro do Papa rompeu novamente o cerco da
distribuição, beneficiado pelo fato de ser uma coprodução que reúne
profissionais uruguaios e brasileiros, e de ter recebido o prêmio do júri na
Mostra Internacional de São Paulo em 2007. Mas, sintoma do pouco interesse
pela cultura latino-americana entre nós, foi visto nos cinemas do Brasil por
70 mil pessoas (18 mil em Porto Alegre), público equivalente ao que
prestigiou o filme na França.
Representante do Uruguai na disputa por uma indicação ao Oscar de
filme estrangeiro em 2008, O Banheiro do Papa é o primeiro longa do
fotógrafo César Charlone — que trabalhou com Fernando Meirelles,
coprodutor do filme, em Cidade de Deus (2002), O Jardineiro Fiel (2005) e
Ensaio sobre a Cegueira (2008) – e do roteirista Enrique Fernández, que
dividem os créditos, como diretores. O cenário é a pobre e minúscula Melo,
na fronteira com o Brasil, pouco antes da visita à cidade feita pelo Papa João
Paulo II, em 1988.
Para alguns moradores, incluindo os “sacoleiros” que cruzam
diariamente a fronteira, a multidão que supostamente será atraída pela missa
campal poderá representar a oportunidade comercial de suas vidas. Charlone
e Fernández registram esse momento de sonho com imensa simpatia pelos
personagens, humildes e ainda esperançosos de que as coisas um dia
melhorem, como tanta gente no Brasil. O humor criado a partir de situações
cotidianas, no entanto, adquire sabor um tanto melancólico: nota-se
rapidamente que as ambições de Melo não parecem escoradas na realidade.
O Banheiro do Papa (El Baño del Papa) — Uruguai/França/Brasil, 2007, 97 min. Direção e roteiro: César Charlone e Enrique Fernández. Com César Troncoso, Virginia Méndez, Mario Silva,
Virginia Ruiz. Distribuição em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 141, janeiro de 2009)


Baran
Baran
Irã, 2002
Direção: Majid Majidi

Uma das ambiguidades do processo de globalização é a de que, embora


as distâncias físicas pareçam cada vez menores, continuamos a desconhecer
como vivem nossos companheiros de Hemisfério Sul. Não deveria ser assim;
as condições materiais e os desafios para o desenvolvimento são muito
semelhantes na América do Sul, na África ou na Ásia. O cinema, ainda bem,
funciona como uma das raras pontes para nos aproximar desses povos e
culturas.
A possibilidade de fazer uma longa viagem sem sair da poltrona é o que
torna ainda mais atraente um filme como Baran. Entre outros méritos, ele nos
revela o cotidiano de trabalhadores em Teerã, a capital do Irã, usando como
gancho uma história de amor entre adolescentes. No primeiro caso, uma
situação local ganha aspecto universal; descobrimos que um canteiro de obras
num país islâmico tem, guardadas as diferenças culturais, aspecto parecido ao
de uma cidade como São Paulo. No segundo caso, uma situação universal é
temperada por características locais; todos conhecemos o amor juvenil, mas
ele é diferente quando envolve refugiados afegãos.
Poucos países sofrem um drama tão intenso quanto o do Afeganistão.
De 1979 a 1989, o país viveu a batalha contra a invasão soviética. Em
seguida, a milícia Taliban conseguiu se impor sobre as demais e comandou
um mergulho em direção ao obscurantismo. Só perdeu o poder no final de
2001, devido a mais uma invasão, pelas tropas norte-americanas, em
represália contra o abrigo dado pelo governo ao terrorista Osama bin Laden.
A persistência do quadro caótico levou centenas de milhares de habitantes a
tentar a sorte nos países vizinhos. Mas, como imigrantes ilegais, muitos deles
sobrevivem de maneira precária.
Em Baran, os refugiados convivem, em situação de inferioridade, com
operários iranianos que trabalham na construção de um prédio. Os
trabalhadores locais, por sua vez, se dividem em castas que se envolvem em
rusgas diárias: há os azeris (que representam a maioria ali), os curdos e os
lures. Cada grupo fala uma língua, embora todos se expressem também em
persa, o idioma oficial. Durante a primeira parte, o diretor e roteirista Majid
Majidi (Os Filhos do Paraíso) descreve a rotina no canteiro da perspectiva de
um jovem azeri, Latif (Hossein Abedini). Ele é o responsável pela
alimentação dos trabalhadores.
A situação muda quando um afegão acidentado envia, para substituí-lo
no trabalho pesado, um de seus filhos, Rahmat (Zahra Bahrami), adolescente
frágil que o mestre de obras resolve transferir para o lugar de Latif. Ofendido,
Latif começa a se indispor com Rahmat, até descobrir algo que mexe
profundamente com seus sentimentos. É o que o fará aproximar-se, no
sentido que a globalização raramente permite, do drama afegão.
Baran (Baran) — Irã, 2002, 97 min. Direção e roteiro: Majid Majidi. Com Hossein Abedini, Zahra Bahrami, Mohammad Amir Naji, Hossein Mahjoub, Abbas Rahimi, Gholam Ali Bakhshi.
Distribuição em DVD: Imagem/Lk-Tel.

(Publicado em Educação 85, maio de 2004)


Basquete Blues
Hoop Dreams
EUA, 1994
Direção: Steve James

Michael Jordan, o rei da liga norte-americana de basquete profissional, a


NBA, ganha, apenas em salários, mais de US$ 30 milhões por ano. Um
jogador mediano pode faturar, com a ajuda de um bom empresário, entre US$
5 e 10 milhões. As benesses da atividade incluem fama internacional e uma
inebriante sensação de poder – ao menos enquanto a carreira durar.
Não é difícil imaginar o fascínio exercido por essa possibilidade de
redenção sobre jovens de famílias excluídas, em especial negros que vivem
em guetos nas grandes cidades dos EUA. Chegar à NBA significa para eles
dar adeus a uma vida de dificuldades, em que sobreviver já é um feito.
Poucos têm a percepção de que, para cada Michael Jordan, milhares de
anônimos ficam pelo caminho.
Produzido originalmente para a PBS, a rede pública de TV norte-
americana, Basquete Blues registra um período de cinco anos na vida de dois
jovens negros que embarcaram no sonho de alcançar a NBA. Quando o filme
começa, em 1987, Arthur Agee e William Gates têm 14 anos e preparam-se
para ingressar no ensino secundário. O talento para o basquete os leva a uma
escola de prestígio, a St. Joseph High School, primeiro estágio rumo a uma
boa universidade e, depois, quem sabe, ao basquete profissional.
A estrada para a fortuna, porém, está cheia de pedregulhos. Arthur logo
se vê em maus lençóis, obrigado a transferir-se, ao final do primeiro ano, para
uma escola pública perto de casa, a Marshall. Embora seja a estrela do novo
time, deixa que a frustração da mudança o abata e, para piorar, os pais não
têm dinheiro para saldar a dívida com a St. Joseph, fazendo com que ele corra
o risco de perder todos os créditos.
“Adotado” por uma empresária que banca suas despesas escolares,
William torna-se rapidamente o astro do time da St. Joseph, mas uma
contusão no joelho atrapalha seus planos. Quando chega o momento de
pensar no passo seguinte, outro problema: suas notas estão abaixo do mínimo
exigido pelas universidades que lhe oferecem uma bolsa de estudos. Um filho
não planejado torna as coisas ainda mais confusas.
Se fosse uma obra de ficção, Basquete Blues não teria provavelmente
tanta força e carga emocional. Enquanto o drama de Arthur e William se
desenvolve, alternando momentos felizes com outros amargos, o
documentário acompanha os efeitos dessa gangorra sobre as respectivas
famílias. Dois personagens secundários despertam maior interesse: o pai de
Arthur, que abandona a mulher e some de cena por um período (esteve preso,
descobre-se depois); e o irmão mais velho de William, um ex-jogador
talentoso que não vingou nas quadras e deposita no caçula seus próprios
sonhos frustrados.
“Conheço muitos rapazes inteligentes o bastante para tentar qualquer
coisa, mas que só pensaram no basquetebol. E, quando o basquete falhou, não
lhes restava mais nada”, diz o jogador Charles Barkley no prefácio do livro
Basquete Blues – Talento e Triunfo nos Guetos de Chicago, do jornalista Ben
Joravsky, que reconstitui a trajetória de Arthur e William. Com os dois
jovens, o desejo de fazer carreira no esporte foi canalizado de maneira
positiva.
Para poder jogar, Arthur e William precisaram estudar. A exemplo de
milhares de jovens norte-americanos, trocaram as ruas pelas salas de aula
graças a programas de incentivo ligados à prática esportiva. Basquete Blues
expõe alguns dos aspectos positivos dessa política, mas também permite
observar que o sistema tem seus problemas – ainda que o filme imponha-se
como um notável exemplo de triunfo sobre a adversidade.
Basquete Blues (Hoop Dreams) – EUA, 1994, 127 min. Direção: Steve James. Produção: Frederick Marx, Peter Gilbert e Steve James. Distribuição em VHS: Europa.

(Publicado em Educação 18, outubro de 1998)


Batismo de Sangue
Brasil, 2006 Direção: Helvécio Ratton

Roma, Cidade Aberta (1945), do italiano Roberto Rossellini, e o


conjunto de filmes políticos realizados pelo grego Constantin Costa-Gavras,
como Estado de Sítio (1972) e Desaparecido – Um Grande Mistério (1982),
se tornaram referenciais para o debate sobre cenas de tortura no cinema.
Nesses casos, o desconforto provocado no espectador se justificaria pelo
propósito da denúncia; a crueza das imagens procuraria sublinhar o horror da
situação.
Batismo de Sangue trouxe de volta essa discussão, ao optar pela
recriação explícita de sessões de tortura, durante o regime militar de 1964, de
frades dominicanos acusados de “subversão”. Seria necessário mostrá-las?
Para o diretor e corroteirista Helvécio Ratton, bem como para o escritor Frei
Betto, autor do livro homônimo que deu origem ao filme, a resposta é “sim”.
De acordo com eles, não se entenderiam o drama dos personagens e o
contexto político do período sem esse mergulho – relativamente breve, mas
de forte impacto – no porão dos órgãos de repressão da ditadura.
Frei Tito (Caio Blat) é o protagonista da história contada por Frei Betto
(interpretado por Daniel de Oliveira). Sem jamais ter conseguido se livrar dos
fantasmas que passaram a assombrá-lo na prisão, ele condensa a dor de
inúmeros outros personagens do período e de suas famílias. Batismo de
Sangue sugere que não há estatística capaz de contabilizar, em capital
humano, as perdas e danos do confronto entre um regime de exceção e
cidadãos de seu próprio país, transformados em inimigos de Estado.
À época do lançamento nos cinemas, no primeiro semestre de 2007,
Ratton disse que jovens espectadores se mostravam surpresos diante dos fatos
recriados pelo filme. Acreditavam, segundo ele, que certas práticas da
repressão, como a tortura, eram exclusividade das ditaduras militares da
Argentina e do Chile. Não eram.
Batismo de Sangue — Brasil, 2006, 103 min. Direção: Helvécio Ratton. Roteiro: Dani Patarra e Helvécio Ratton, baseado no livro de Frei Betto. Com Caio Blat, Daniel de Oliveira, Léo Quintão,
Odilon Esteves, Ângelo Antonio, Cássio Gabus Mendes. Distribuição em DVD: Videofilmes.

(Publicado em Educação 127, novembro de 2007)


A Bela Junie
La Belle Personne
França, 2008
Direção: Christophe Honoré

“Quanto dura o amor?”, pergunta o título de recente produção brasileira


sobre uma jovem do interior que larga o namorado na cidade onde vive, tenta
a sorte como atriz em São Paulo e, ao sofrer decepções, começa a
amadurecer. Se os também jovens personagens de outro filme, o drama A
Bela Junie, fossem convidados a responder aquela pergunta, diriam
provavelmente – e com imenso pesar — que o amor dura pouco.
Realizado pelo diretor, romancista e dramaturgo Christophe Honoré (Em
Paris, Canções de Amor), um dos destaques da nova geração de cineastas
franceses, o filme se inspira no mais famoso romance de Madame de La
Fayette (1634-1693), publicado anonimamente em 1678: A Princesa de
Clèves. A protagonista do livro, casada por conveniência, se apaixona por
outro homem e paga caro por revelar seus sentimentos ao marido.
A ação é transportada para a atualidade, em Paris. O ator predileto de
Honoré, Louis Garrel (Os Sonhadores, A Fronteira da Alvorada), interpreta
um professor de escola secundária em Paris, envolvido com outra professora
e também com uma aluna. A chegada de uma nova estudante, Junie (Léa
Seydoux), movimenta a ciranda sentimental do lugar e, além de mexer com o
protagonista, tira o equilíbrio de um aluno (Grégoire Leprince-Ringuet, que
fazia um jovem apaixonado pelo personagem de Garrel em Canções de
Amor).
As paixões intensas vividas nessa escola mobilizam jovens que ainda
estão aprendendo a lidar com os próprios sentimentos, inclusive com a dor da
rejeição. Em sua visão poética dos caminhos tortuosos percorridos pelo amor
em sua variante romântica e trágica, A Bela Junie sugere que há muito mais
coisa acontecendo em uma escola repleta de jovens do que supõem os
registros nos diários de classe.
A Bela Junie (La Belle Personne) — França, 2008, 97 min. Direção: Christophe Honoré. Roteiro: Gilles Taurand e Christophe Honoré, baseado em livro de Madame de La Fayette. Com Louis
Garrel, Léa Seydoux, Grégoire Leprince-Ringuet. Distribuição em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 151, novembro de 2009)


Bem-vindo
Welcome
França, 2009
Direção: Philippe Lioret

Deslocamentos fazem parte da história da humanidade desde que as


primeiras tribos nômades saíram à procura de melhores condições de
sobrevivência. O tempo em que vivemos, no entanto, gera fluxos migratórios
de características peculiares. Na Europa, por exemplo, o atual processo de
integração política e econômica gerou dois status de cidadania: o dos
comunitários, com passaporte dos países que integram a União Europeia, e o
dos extra-comunitários, cidadãos do restante do planeta.
Esse cenário tem sido abordado por diversos filmes contemporâneos,
como Do Outro Lado (2007), do alemão de origem turca Fatih Akin, e O
Silêncio de Lorna (2008), dos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne. Neles,
contempla-se a perspectiva de quem acredita que, nos países europeus mais
ricos, haverá trabalho e assistência social, não encontrados (ou oferecidos
precariamente) em seus países de origem. A crença leva ao deslocamento,
mesmo que sem "papéis" — documentos que tornariam legal sua presença
ali.
O drama dos imigrantes ilegais é ilustrado de maneira ampla por Bem-
vindo. Dirigido e coescrito pelo francês Philippe Lioret (de Não se Preocupe,
Estou Bem), essa recriação dos percalços vividos por curdos e afegãos (entre
outras origens) na região norte da França provocou intensa polêmica no país
por registrar a perseguição do governo a cidadãos franceses que colaborem de
alguma maneira com os "alienígenas", o que inclui lhes dar abrigo, comida ou
mesmo um pouco de atenção.
Na trama de Lioret, que fez pesquisas na cidade portuária de Calais
antes de escrever o roteiro, um professor de natação (Vincent Lindon) sente-
se moralmente obrigado a ajudar um jovem curdo (Firat Ayverdi) que planeja
encontrar a namorada na Inglaterra, mas que não consegue sair da França. De
um lado, acompanhamos as dificuldades do rapaz e sua fé inabalável na
capacidade de completar a jornada. De outro, vemos o cerco ao professor.
Como um bom filme-denúncia, Bem-vindo dificulta a vida do espectador que
não queira se posicionar em relação ao tema.
Bem-vindo (Welcome) — França, 2009, 110 min. Direção: Philippe Lioret. Roteiro: Emmanuel Courcol, Olivier Adam e Philippe Lioret, com a colaboração de Serge Frydman. Com Vincent
Lindon, Firat Ayverdi, Audrey Dana, Derya Ayverdi, Thierry Godard. Distribuição em DVD: Imovision.
(Publicado em Educação 156, abril de 2010)
Bem-vindo à Casa de Bonecas
Welcome to the Dollhouse
EUA, 1995
Direção: Todd Solondz

Filmes sobre a passagem da infância para a adolescência tendem a


adotar a ótica risonha dos “anos incríveis”, ou “como eram bons os tempos de
ginásio e a gente não percebeu”. Bem-vindo à Casa de Bonecas vira do
avesso o clichê ao lembrar, com impiedoso humor negro, que pré-
adolescentes são terrivelmente cruéis uns com os outros – e que o espaço
preferencial para a execução de suas pequenas (às vezes grandes)
perversidades costuma ser a escola.
Dawn Wiener (Heather Matarazzo), a protagonista do filme, é o
protótipo da garota fora de sintonia com seu grupo social. A primeira cena já
estabelece o grau de exclusão da coitada, estudante da sétima série (a
primeira das três que compõem, nos EUA, a “junior high school”). Em pé no
refeitório, com a bandeja na mão, ela procura angustiada um lugar para sentar
entre os colegas. Quando se instala em uma mesa quase vazia, é maltratada
pela menina da frente e, em seguida, ridicularizada por um grupo que a
chama, em coro, de “estrábica”.
Que ninguém se assuste com isso. Ao longo do filme, Dawn será
chamada também, pelos corredores, banheiros e salas de aula, de “jaburu”,
“mocreia” e “piranha”. “Por que você não gosta de mim?”, pergunta a uma
colega de classe. “Porque você é feia”, responde ela. Na verdade, o “defeito”
de Dawn é o de ser diferente das outras meninas de sua idade. Dos óculos ao
penteado, passando pela maneira de se vestir e de caminhar, ela deixa
transparecer sua imensa dificuldade em lidar com ritos de passagem. Já não é
criança, mas ainda não virou adolescente, embora acredite, em suas fantasias,
ser mulher. A fragilidade emocional a transforma em presa fácil para os
predadores ginasiais. Um deles, o rebelde da classe, chega a ameaçá-la de
estupro.
Todos os rituais de crueldade infantojuvenil descritos pelo filme não
surpreendem tanto quanto a constatação de que as autoridades do sistema
escolar nada fazem para impedi-los. Pior do que isso: em alguns episódios,
diretor e professores são os principais responsáveis pela exposição de Dawn a
situações constrangedoras e injustas. Se Bem-vindo à Casa de Bonecas fosse
uma comédia hollywoodiana, é bem provável que a protagonista desse a volta
por cima e terminasse como a garota mais bonita, inteligente e charmosa da
vizinhança. O diretor e roteirista Todd Solondz evita essa demagogia
dramática e deixa por conta do público as especulações sobre o futuro da
vítima e de seus agressores.
Solondz também caracteriza com muita eficiência a família de Dawn,
que qualquer especialista chamaria de “disfuncional”. Quem dá as cartas em
casa é a mãe, empenhada, na segunda metade do filme, em organizar no
quintal uma festa cafona em comemoração aos 20 anos de casamento. Dawn
tem dois irmãos: o mais velho, cdf assumido, preocupa-se apenas em
terminar a “high school” (equivalente ao nosso ensino médio) com um bom
currículo para ingressar em uma universidade de prestígio; a caçula, bailarina,
passa o filme dançando com seu tutu cor-de-rosa e brincando com suas
bonecas Barbie. Essa fedelha insuportável tem a óbvia preferência afetiva da
mãe, para desespero de Dawn. E o pai? Bem, o pai é uma figura omissa que
assiste aos conflitos domésticos sem esboçar reação. Seu papel, cumprido
exemplarmente, é apenas o de trazer o “pão de cada dia” para o lar. Qualquer
psicanalista amador veria ali, nessa figura paterna ausente, o fio da meada
capaz de explicar a carência e os tormentos de Dawn.
Bem-vindo à Casa de Bonecas (Welcome to the Dollhouse) — EUA, 1995, 87 min. Direção e roteiro: Todd Solondz. Com Heather Matarazzo, Brendan Sexton Jr., Eric Mabius, Matthew Faber.
Distribuição em VHS: Lume.

(Publicado em Educação 11, março de 1998)


Billy Elliot
Billy Elliot
Inglaterra/França, 2000
Direção: Stephen Daldry

“Já saí dançando do ventre”, diz a canção que abre Billy Elliot. “É
estranho dançar tão cedo”, prossegue a letra. Para o protagonista do filme, a
situação também parece esquisita. Estamos em 1984, que alguns historiadores
consideram o ano mais movimentado na Inglaterra desde o final da II Guerra
Mundial. Motivo: a greve dos trabalhadores que decidiram protestar contra as
políticas neoliberais da então primeira-ministra conservadora Margaret
Thatcher, responsáveis pelo fechamento de minas em todo o país e por uma
onda de desemprego até hoje não superada.
Foram meses de confrontos não só verbais, mas físicos, entre os
trabalhadores que aderiram ao movimento, os “fura-greves” e a polícia.
Thatcher recusou-se a negociar com os sindicatos e consolidou no episódio,
que se estendeu até 1985, o apelido de “Dama de Ferro”. Billy, 11 anos, vive
em Durham, pequena cidade da região norte, cuja economia girava em torno
da extração de carvão. Pois bem: enquanto seu pai e seu irmão mais velho —
ambos mineiros — participam de manifestações, os policiais dos pelotões de
choque confundem-se na rua com os habitantes da cidade e 50 centavos
fazem diferença no orçamento doméstico, o garoto abandona as aulas
extracurriculares de boxe para integrar-se à turma de balé da escola.
Em casa, tem início então outro confronto, paralelo ao dos mineiros com
Thatcher, entre a força do “chamado” que atrai Billy (o estreante Jamie Bell,
escolhido depois de testes com 2 mil atores) para a dança, de um lado, e a
resistência de pai (Gary Lewis) e irmão (Jamie Draven) à ideia, de outro. A
mãe, que poderia fazer a balança pender para o lado do garoto, morreu há
algum tempo. A única mulher da família, uma avó já esclerosada (Jean
Heywood), puxa da memória a informação de que sonhava ser bailarina na
infância para acrescentar humor à discussão. Apoio mesmo, Billy só obtém
da professora de dança (Julie Walters), que o estimula a tentar uma vaga na
Academia Real de Balé, em Londres.
O tema da vocação é desenvolvido como em um conto de fadas, para o
bem e para o mal. Há quem enxergue no roteiro algum preconceito (os
mineiros seriam retratados como gente bruta, incapacitada para a fruição da
arte), além de um forte apelo a fórmulas dramáticas que, a pretexto de
facilitar a comunicação com a plateia, simplificariam em demasia algumas
questões. Já a bem-sucedida carreira do filme nos cinemas atesta seu elevado
potencial de catarse. Quem se identifica com o protagonista (inspirado, em
parte, na trajetória do bailarino inglês Philip Marsden) tende a vibrar com ele
a cada obstáculo vencido, o que explica os aplausos registrados em algumas
sessões, no final, quando o Billy Elliot adulto reencontra o garoto de Durham.
Como em relação a Thatcher, a diferença de opinião talvez dependa de ser ou
não “de ferro”, ao menos no que diz respeito ao comportamento como
espectador.
Billy Elliot (Billy Elliot) — Inglaterra/França, 2000, 110 min. Direção: Stephen Daldry. Roteiro: Lee Hall. Com Jamie Bell, Julie Walters, Jamie Draven, Gary Lewis, Jean Heywood, Stuart
Wells, Mike Elliot, Janine Birkett. Distribuição em DVD: Universal.

(Publicado em Educação 56, dezembro de 2001)


Bling Ring - A Gangue de Hollywood
The Bling Ring
EUA/Inglaterra/França/Alemanha/Japão, 2013
Direção: Sofia Coppola

Entre 2008 e 2009, mansões de celebridades na região metropolitana de


Los Angeles foram invadidas por ladrões. Roupas, joias e objetos pessoais
diversos, como tapetes e quadros, desapareceram. A partir de uma denúncia,
a polícia chegou à quadrilha, formada por jovens de classe média alta que
escolhiam as vítimas porque as admiravam pelo "estilo de vida" e as
acompanhavam pelas redes sociais da internet. Sabiam, inclusive, quando
essas celebridades não estavam em casa.
Atraída por essa história incrível ao ler uma reportagem da revista
Vanity Fair publicada em 2010, a diretora e roteirista Sofia Coppola decidiu
recriar o episódio, com algumas liberdades dramáticas, em Bling Ring - A
Gangue de Hollywood. Junto com o filme, agora disponível em DVD, foi
lançado também no Brasil o livro de mesmo título que a autora daquela
reportagem, Nancy Jo Sales, escreveu para tratar em detalhe dos principais
personagens. As duas obras possibilitam compreender melhor algumas das
características-chave da era das celebridades e suas conexões com a internet.
Parte dos jovens que formaram a gangue se conheceu na escola, onde as
aulas eram oportunidade para desfiles de roupas e de aparelhos eletrônicos.
Quanto mais "antenado" com as tendências e grifes, maior era o prestígio do
aluno. Da aluna, na verdade: embora o líder fosse um rapaz, a quadrilha era
formada majoritariamente por moças. Educadores que mantêm contato diário
com adolescentes sabem muito bem como a sociedade de consumo age sobre
eles. Bling Ring faz uma leitura perturbadora do atual comportamento jovem,
impactado pela circulação de informações na internet, por uma cultura do
narcisismo e por um difuso sentimento de rebeldia — também ele,
paradoxalmente, um tanto consumista.
Sofia Coppola nasceu dentro do universo das celebridades. Filha do
diretor, roteirista e produtor Francis Coppola, ela fez uma ponta como um
bebê em O Poderoso Chefão (1971) e cresceu cercada por parentes e amigos
que trabalhavam no show business. O pai se tornaria produtor de seus filmes,
que abordam, em maior ou menor grau, efeitos sociais da era das
celebridades, como As Virgens Suicidas (1999) e Encontros e Desencontros
(2003).
Na reportagem Os suspeitos usavam Louboutin, Sales reconstituiu a
ação dos jovens da Bling Ring na mesma linha descritiva adotada pelo filme.
Já o livro posteriormente escrito por Sales não se limita a explorar em
profundidade os fatos e personagens, com impressionante riqueza de
detalhes. Faz também uma análise da cultura do narcisismo gerada pela era
das celebridades e, para isso, examina o comportamento de algumas das
vítimas da quadriha, como Paris Hilton e Lindsay Lohan.
Ainda que parte dos objetos roubados em casas de celebridades tenha
sido vendida, o principal objetivo dos integrantes da Bling Ring era obter
produtos que pudessem usar — roupas de grifes, especialmente.
Despreocupados com a possibilidade de serem identificados e presos, eles se
fotografavam usando essas roupas e postavam as imagens em redes sociais.
Às vezes, se vangloriavam por exibir produtos que eram utilizados por
celebridades.
Bling Ring - A Gangue de Hollywood (The Bling Ring) — EUA/Inglaterra/França/Alemanha/Japão, 2013, 90 min. Direção: Sofia Coppola. Roteiro: Sofia Coppola, baseado em reportagem de
Nancy Jo Sales. Com Katie Chang, Israel Broussard, Emma Watson, Claire Julien, Taissa Farmiga. Distribuição em DVD e Blu-ray: Paris.

(Publicado em Educação 199, novembro de 2013)


Brava Gente Brasileira
Brasil, 2001
Direção: Lúcia Murat

A colonização do território brasileiro foi bem mais sangrenta do que os


livros didáticos costumam admitir. Alguns episódios ilustrativos da nossa
“conquista do Oeste”, por exemplo, chegaram a ser registrados e
documentados, mas receberam pouco (ou nenhum) estudo e divulgação. A
jornalista e cineasta Lúcia Murat “descobriu” um deles ao receber cópia de
um relatório militar que descrevia um ataque dos índios Guaicuru ao Forte
Coimbra, na região do Pantanal, em 1778. Supunha-se que ela se interessaria
em rodar um documentário sobre o caso. A diretora de Que Bom te Ver Viva
(89) e Doces Poderes (97) viu ali, no entanto, dramaticidade para um longa
de ficção.
Nasceu assim o projeto de Brava Gente Brasileira. É uma
reconstituição, com personagens fictícios, do massacre executado por índios
cavaleiros, assim chamados porque haviam aprendido a lidar com os cavalos
trazidos à América pelos espanhóis. A estratégia usada pelos Guaicuru para
invadir o Forte Coimbra — construído três anos antes, às margens do Rio
Paraguai, para assegurar o domínio português sobre a região — lembra a do
“Cavalo de Tróia”, que possibilitou aos gregos furar um cerco de dez anos à
capital troiana, por volta de 1250 a.C. Além de surpreender pelo grau de
sofisticação militar, o episódio no Pantanal vira pelo avesso a imagem de
submissão em geral atribuída aos índios que habitavam o Brasil. Entre eles,
havia também bravos e guerreiros.
Mesmo assim, foram dizimados. Os únicos descendentes dos Guaicuru a
sobreviver são cerca de mil índios Kadiwéu, em reserva no Mato Grosso do
Sul. Alguns deles participaram de um laboratório de interpretação,
coordenado pelo ator Murilo Grossi, para atuar no filme. O personagem
principal é um cartógrafo português (Diogo Infante) enviado pela Coroa
Portuguesa para fazer um levantamento topográfico da região do Médio-
Paraguai, então constantemente invadida pelos espanhóis. A coluna
encarregada de acompanhá-lo inclui um ex-bandeirante que encara os índios
com desprezo (Floriano Peixoto) e um português com um mapa que conduz a
minas de prata (Buza Ferraz). No caminho, raptam uma índia (Luciana
Rigueira) e cometem atrocidades que irritam o comandante do Forte
(Leonardo Villar), preocupado em estabelecer a paz com os Guaicuru.
Em Portugal, já se consagrou o uso do termo “encontro” para definir as
relações dos colonizadores com os povos que encontraram durante a era dos
descobrimentos. Pode-se considerar a palavra suave para definir o que de fato
houve, mas é inegável que ela se aplica à discussão maior proposta por Brava
Gente Brasileira – a de “opor duas lógicas”, a branca e a indígena, mostrando
as dificuldades de relacionamento de uma cultura com a outra, como define
Lúcia Murat no making-of inserido no DVD. Gostemos ou não, devemos
alguns de nossos principais traços culturais às características desse encontro.
Brava Gente Brasileira — Brasil, 2001, 103 min. Direção e roteiro: Lúcia Murat. Com Diogo Infante, Floriano Peixoto, Luciana Rigueira, Leonardo Villar, Murilo Grossi, Buza Ferraz, Sérgio
Mamberti, Adeilson Silva, comunidade Kadiwéu. Distribuição em DVD: Europa.

(Publicado em Educação 59, março de 2002)


A Caça
Jagten
Dinamarca, 2012
Direção: Thomas Vinterberg

Nos filmes do diretor e roteirista Thomas Vinterberg (Festa de Família,


Querida Wendy), coautor (com Lars von Trier) do manifesto que deu origem
ao movimento Dogma 95, o espectador costuma ser convidado a se
posicionar moralmente em relação aos dramas vividos pelos personagens,
como se alguém lhe perguntasse "o que você faria na mesma situação?". A
resposta nunca é simples, em virtude dos laços delicados que sustentam as
tramas e as conduzem a um ponto em que não há mais retorno possível, como
demonstra a incômoda história de dor e injustiça protagonizada por um
professor em seu mais recente longa-metragem, A Caça.
O cenário é uma pequena cidade dinamarquesa, onde todos se conhecem
— e, portanto, vigiam uns aos outros. Um de seus moradores, Lucas (Mads
Mikkelsen), dá aulas na escola local e parece sofrer porque perdeu a guarda
do filho adolescente, que está morando com a mãe em outra cidade. Os
amigos se preocupam com a sua solidão, mas não têm muito o que fazer, e a
vida segue, pacata. Repentinamente, no entanto, a comunidade é abalada por
uma denúncia que faz de Lucas um monstro aos olhos de quase todos. Só ele
e o espectador têm certeza de sua inocência, e prová-la se torna uma tarefa
quase impossível.
Ao descrever o turbilhão em que se transforma uma escola quando uma
de suas crianças acende a chama da dúvida e aponta o dedo para um
professor, A Caça propõe um exercício de reflexão estimulante (e também
angustiante) sobretudo para educadores, na linha de diversos outros filmes
em que denúncias (fundadas ou não) contra professores ou gestores criam
situações eticamente delicadas, como Infâmia (1961), Oleanna (1994),
Eleição (1999), Má Educação (2004), Notas sobre um Escândalo (2006) e
Dúvida (2008).
O alcance da fábula contemporânea proposta por Vinterberg e pelo
corroteirista Tobias Lindholm vai muito além, contudo, dos muros da escola.
Os mecanismos institucionais voltados para vigiar e punir, a hipocrisia social
e a maldade inerente ao ser humano envolvem Lucas (e, com ele, o público)
em uma cadeia emocionalmente explosiva.
A Caça (Jagten) — Dinamarca, 2012, 115 min. Direção: Thomas Vinterberg. Roteiro: Tobias Lindholm e Thomas Vinterberg. Com Mads Mikkelsen, Thomas Bo Larsen, Annika Wedderkopp.
Distribuição em DVD e Blu-ray: California.

(Publicado em Educação 197, setembro de 2013)


Caché
Caché
França/Áustria/Alemanha/Itália/EUA, 2005
Direção: Michael Haneke

Há uma intriga de mistério policial na história contada por Caché. Um


bem-sucedido apresentador de um programa literário na TV francesa (Daniel
Auteuil), casado com uma editora de livros (Juliette Binoche), começa a
receber pacotes com fitas de vídeo que mostram imagens de seu dia a dia
captadas em lugares públicos. Só isso, sem nenhuma explicação.
À medida que o conteúdo das fitas se torna mais pessoal, sugerindo que
o autor dos vídeos conhece o apresentador e talvez queira chantageá-lo, a
estabilidade emocional da família (que inclui um filho adolescente) começa a
ruir. A única pista sobre o responsável pelos pacotes anônimos conduz a um
episódio da infância do apresentador, relacionado a imigrantes argelinos.
Como em outros filmes do diretor e roteirista austríaco Michael Haneke
(Violência Gratuita, A Professora de Piano), a rotina cotidiana é subitamente
alterada por elementos que desequilibram psicologicamente os personagens e,
assim, os levam a situações-limite. “Caché”, por sinal, significa “escondido”,
como se o título já adiantasse a busca pelo que o protagonista escondeu dos
outros (e, o que mais importa, dele mesmo) por tanto tempo.
Aberto a diversas leituras, esse incômodo mergulho na má consciência
da classe média intectualizada tem evidente sentido político, ao tratar do
preconceito em relação a estrangeiros e a minorias, e lembra que o elemento
definidor de cidadania são as oportunidades oferecidas a cada um. Muito
coerente, portanto, que a imagem de uma escola frequentada pelos filhos da
elite seja usada no final.
Caché (Caché) — França/Áustria/Alemanha/Itália/EUA, 2005, 117 min. Direção e roteiro: Michael Haneke. Com Daniel Auteuil, Juliette Binoche, Maurice Bénichou, Annie Girardot.
Distribuição em DVD: California.

(Publicado em Educação 115, novembro de 2006)


O Caminho para Casa
Wo de fu qin mu qin/The Road Home
China, 1999
Direção: Zhang Yimou

Pelo jeito, o cineasta Zhang Yimou quer ganhar um busto em cada


sindicato de professores. Primeiro, fez Nenhum a Menos, drama
semidocumental sobre a evasão escolar, problema de dimensões colossais
devido ao gigantismo do sistema educacional chinês (leia texto sobre ele
nesta coletânea). Em seguida, dirigiu O Caminho para Casa, que reconstitui
a trajetória fictícia de um jovem da cidade grande que se muda para um
vilarejo do qual se torna, durante meio século, o único professor.
Brincadeira à parte, as escolhas não parecem ter sido casuais. Em ambos
os filmes, professores do interior do país foram eleitos por Yimou como
exemplo de profissionais abnegados que, a despeito das sofríveis condições
de trabalho, arrumam um jeito de tocar o barco e impõem-se, para seus
alunos e para a comunidade, como referência positiva de comportamento.
Há uma pequena diferença entre os dois: enquanto o mestre de O
Caminho para Casa encontra um tapete vermelho estendido quando chega à
aldeia onde escolheu trabalhar, a professora adolescente de Nenhum a Menos
é obrigada a lutar contra uma certa indiferença de seu vilarejo em relação à
importância do ensino formal, uma vez que as crianças precisam trabalhar
cedo para ajudar no orçamento doméstico.
Cerca de 50 anos separam uma cena da outra. Não estará enganado
quem observar aí um comentário amargo do cineasta sobre a maneira de ver e
tratar a educação (e os educadores) em seu país. Em O Caminho para Casa, a
crítica sutil ao novo estado de coisas na China transcende o ambiente escolar.
O tema principal é o efeito perverso causado na sociedade pela perda das
tradições.
Yimou parece argumentar que, sem elas, as referências culturais de um
país — que congregam e dão identidade às pessoas — são substituídas
lentamente por um novo código que desprezaria o significado das
experiências vividas pelas gerações mais velhas. O problema que batiza o
filme resume bem a questão. O filho do professor (Sun Honglei) retorna à
cidade para o enterro do pai, que morreu a quilômetros de distância, e reluta
em obedecer à vontade de sua mãe, segundo a qual o corpo do marido precisa
ser transportado a pé para que a alma dele se lembre do caminho.
Nem é preciso ser ou ter sido professor para encher um balde de
lágrimas em duas etapas, no final – quando o problema do féretro é resolvido
de forma inesperada e, depois, quando o filho cumpre finalmente um antigo
desejo do pai. Esse tempo da trama, ambientado hoje, é fotografado em preto-
e-branco. Os flashbacks, nos quais se conta a história de amor entre o mestre
(Zheng Hao) e uma jovem da aldeia (Zhang Ziyi, de O Tigre e o Dragão),
são mostrados em cores deslumbrantes. O contraste torna evidente a ideia de
contrapor um passado radiante a um presente cinzento em que se corre o risco
de perder o caminho para casa simplesmente porque já não se saberia mais
onde fica, no sentido de raiz, o próprio lar.
O Caminho para Casa (Wo de fu qin mu qin/The Road Home). China, 1999, 90 min. Direção: Zhang Yimou. Roteiro: Bao Shi, baseado em romance de sua autoria. Com Zhang Ziyi, Sun
Honglei, Zheng Hao, Zhao Yuelin, Li Bin, Chang Guifa. Distribuição em vídeo: Sony.

(Publicado em Educação 51, julho de 2001)


Caramuru – A Invenção do Brasil
Brasil, 2001
Direção: Guel Arraes

O diretor pernambucano Guel Arraes, na Rede Globo desde 1981, é


personagem importante na história recente da televisão brasileira, ao reciclar
para o veículo técnicas e conceitos do cinema, em programas que marcaram
época como Armação Ilimitada, TV Pirata e as novelas Guerra dos Sexos e
Vereda Tropical. Agora, o filho do ex-governador Miguel Arraes percorre
caminho inverso, da televisão para o cinema, e nesse trajeto começa também
a erguer carreira peculiar.
Seu primeiro longa-metragem foi Auto da Compadecida (2000), versão
de minissérie baseada na peça de Ariano Suassuna, que se tornou um dos
maiores êxitos de bilheteria dos últimos dez anos no Brasil, com mais de dois
milhões de espectadores. Caramuru – A Invenção do Brasil, o segundo longa,
usa tecnologia de ponta (as imagens foram captadas em HDTV, vídeo de alta
definição, e depois transferidas para película de 35 mm) para fazer uma
divertida releitura de fatos históricos.
Essa tendência “revisionista” (ou, para alguns historiadores,
irresponsável, pelas distorções que gera em relação a fatos e personagens) foi
reaberta no cinema brasileiro com o inesperado sucesso de Carlota Joaquina
– Princesa do Brazil (1994), de Carla Camurati. Aqui, o tratamento
irreverente é digno de nota sobretudo porque o projeto nasceu de uma
encomenda “oficial”: a Globo queria uma obra que misturasse ficção com
documentário para comemorar os 500 anos do Descobrimento.
Em busca de um argumento exemplar para falar da “fundação” do país,
Arraes e o roteirista Jorge Furtado (diretor do curta-metragem Ilha das
Flores) debruçaram-se sobre a trajetória do náufrago português Diogo
Álvares Correia, batizado pelos índios com o nome de um peixe, Caramuru.
Sua lenda propagou-se graças principalmente ao poema épico que o mineiro
Santa Rita Durão (1720-1784) publicou em sua homenagem, em 1781, mais
de dois séculos depois de sua morte, em 1557, na Bahia.
Condensada na versão para cinema, a minissérie traz Selton Mello no
papel de um Caramuru juvenil e inconsequente, encantado com a terra recém-
descoberta e os costumes de sua população. Adotado pelos índios, forma um
triângulo amoroso com Paraguaçu (Camila Pitanga) e sua irmã, Moema
(Deborah Secco). Casa-se com a primeira e a leva para viver entre
aristocratas em Paris, onde reencontra uma francesa (Débora Bloch) que
conheceu na Corte Portuguesa, quando ilustrava os mapas que orientariam a
expedição de Pedro Álvares Cabral.
É no Brasil, porém, que esse casal representativo de nossas origens vai
se reestabelecer e gerar quatro filhos que dariam origem aos Torres, uma das
famílias mais célebres da Colônia. Caramuru ilustra esse período de
“invenção” do país com a desenvoltura de quem conta uma boa história,
repleta de detalhes pitorescos, e com um descompromisso em relação à
“história oficial”. Pode ser menos preciso do que um livro didático, mas é
incomparavelmente mais sedutor.
Caramuru – A Invenção do Brasil — Brasil, 2001, 88 min. Direção: Guel Arraes. Roteiro: Jorge Furtado e Guel Arraes. Com Selton Mello, Camila Pitanga, Deborah Secco, Débora Bloch,
Tonico Pereira, Luís Melo, Diogo Vilela, Pedro Paulo Rangel. Distribuição em DVD: Sony.

(Publicado em Educação 62, junho de 2002)


Castelo Rá-Tim-Bum
Brasil, 1999
Direção: Cao Hamburger

A família Stradivarius já é bem conhecida por milhares de crianças e


adolescentes que a acompanham desde 1993, primeiro na televisão, depois
em livros e revistas, e finalmente no teatro. Seu núcleo é formado por
Morgana, de seis mil anos de idade, e Dr. Victor, de três mil, feiticeiros que
vivem com o sobrinho Antonino, de 300 anos, em um castelo milenar repleto
de magia – o que explica inclusive como teria resistido à especulação
imobiliária, localizado na região central de uma metrópole brasileira (com as
feições de São Paulo).
Quem identificou rapidamente os personagens e o cenário terá surpresas
ao ver Castelo Rá-Tim-Bum – O Filme. É provável que os adultos reajam
melhor às novidades do que as crianças alimentadas pela expectativa de
reencontrar no cinema as figuras e circunstâncias que já dominam. Mas o
espanto tende a se resumir ao impacto inicial: bastam pouco mais de 20
minutos para que a adaptação construa sua própria identidade e faça o
espectador esquecer-se das outras referências.
Não há dúvida de que o filme pertence à “família” Rá-Tim-Bum.
Transportados diretamente do programa de TV, estão ali o castelo, ainda que
remodelado, e os atores Sérgio Mamberti e Rosi Campos nos papéis de
Victor e Morgana, além de Pascoal da Conceição como o vilão Abobrinha.
Permanece vivo também o conceito de que, naquele mundo, a pedra de toque
é o conhecimento. Nada cai inexplicavelmente do céu ou surge de repente por
geração espontânea. Viver, nesse contexto, é aprender e fazer (ou, o que dá
quase na mesma, primeiro fazer e com isso aprender).
A mudança mais drástica ocorre com Nino, interpretado pelo ator Cássio
Scapin nos 90 programas produzidos pela TV Cultura de São Paulo e na
montagem teatral. Seus traços foram usados também nas versões impressas
do personagem. Mas é um adulto fingindo-se de criança, e aproveitar essa
ideia em um longa-metragem seria no mínimo uma temeridade: talvez
salientasse, como na TV, uma certa espécie de humor de chanchada, difícil de
sustentar por quase duas horas, sobretudo porque o roteiro era de aventura, e
não de comédia.
O diretor, produtor e roteirista Cao Hamburger optou então por
selecionar um ator infantil. Chegou, depois de uma bateria de testes, ao
paranaense Diegho Kozievitch, uma grata revelação. Por tabela, definiu
também o tom de todo o filme. Adorável com seu ar de menino inquieto e ao
mesmo tempo desprotegido, Diegho conquista facilmente a cumplicidade das
crianças e o olhar paternal dos adultos. É inevitável torcer para que seu
sorriso triunfe no final. E, contrapondo-se à sua doçura, outro golpe de mestre
do elenco: Marieta Severo como a bruxa Losângela, uma ovelha negra da
família Stradivarius, a vilã cuja desgraça, sabemos de antemão, será
deliciosamente apoteótica.
Losângela aproxima-se da família para surrupiar-lhe o castelo e erguer
no lugar um grande edifício. Nino tem a ajuda de seus primeiros amigos, três
crianças do bairro, no combate à bruxa, que precisa ser derrotada antes do
alinhamento dos planetas, fenômeno cósmico de importância fundamental
para a família de feiticeiros. É uma trama simples costurada com habilidade
narrativa e padrão técnico-artístico impecável, principalmente em detalhes
quase “invisíveis” para o público, como direção de arte e figurinos. Um dos
criadores do programa de TV, Hamburger inventou no cinema outro castelo.
Revelou-se um mestre nessa difícil arte, a arquitetura da reconstrução.
Castelo Rá-Tim-Bum – O Filme — Brasil, 1999, 108 min. Direção: Cao Hamburger. Roteiro: Cao Hamburger, baseado nos personagens criados por ele e por Flávio de Souza para o programa da
TV Cultura de São Paulo. Com Marieta Severo, Sérgio Mamberti, Rosi Campos, Diegho Kozievitch, Pascoal da Conceição, Matheus Nachtergaele, Leandro Léo, Mayara Constantino, Oscar
Neto. Distribuição em DVD: Sony.

(Publicado em Educação 34, fevereiro de 2000)


Castro Alves - Retrato Falado do Poeta
Brasil, 1999
Direção: Silvio Tendler

Marighella - Retrato Falado do


Guerrilheiro
Brasil, 2001
Direção: Silvio Tendler

Utopia e Barbárie
Brasil, 2010
Direção: Silvio Tendler

Objetos de intenso debate no período de redemocratização do país, Os


Anos JK (1980) e Jango (1984) exerceram naquela ocasião um papel
importante na apresentação de fatos e personagens da história brasileira às
novas gerações. Ambos consolidaram o cineasta carioca Silvio Tendler como
um dos principais nomes do documentário nacional, sempre empenhado em
realizar filmes que possam contribuir para o debate sociopolítico ao se
debruçar sobre a nossa memória.
Uma pequena amostra do trabalho mais recente de Tendler foi reunida
em pacote de três filmes lançados em DVD: Castro Alves - Retrato Falado
do Poeta (1999), Marighella - Retrato Falado do Guerrilheiro (2001) e
Utopia e Barbárie (2010). O primeiro é atípico na carreira do cineasta, ao
trazer os atores Bruno Garcia e Dira Paes em reconstituição dramática de
episódios que envolveram o autor de O Navio Negreiro na luta pela
proclamação da República e pelo fim da escravidão.
Documentários de formato mais convencional, os outros dois filmes
examinam, respectivamente, a trajetória do ex-deputado constituinte Carlos
Marighella (1911-1969), ex-dirigente do Partido Comunista e um dos
principais alvos da ditadura civil-militar de 1964 ao criar na clandestinidade a
Aliança Libertadora Nacional, e o risco de as utopias do pós-II Guerra
Mundial sucumbirem às coordenadas "bárbaras" do cenário global no início
do século 21.
Os filmes de Tendler produzem "afetos, não convencimentos nem
discursos persuasivos", afirma o crítico e professor Miguel Pereira no
prefácio do livro História e Utopia - O Cinema de Silvio Tendler
(Multifoco/Luminária), em que Marcia Paterman Brookey analisa a obra do
cineasta. De acordo com Pereira, ele "diz sim o que pensa, mas não de forma
imposta", ao tratar de personagens que "nos interpelam e nos reconstroem
intelectual e afetivamente no espaço público".
Além dos filmes de Silvio Tendler, lançamentos recentes em DVD
incluem outros exemplares da produção documental brasileira de caráter
sociopolítico. Em Condor (2007), o diretor Roberto Mader colheu
depoimentos na América Latina e na Europa para investigar o funcionamento
da aliança político-militar entre ditaduras sul-americanas durante os anos
1970 — a Operação Condor — e fazer um balanço dos esforços da Justiça
para punir os responsáveis por seus crimes.
Esse Homem Vai Morrer - Um Faroeste Caboclo (2008), de Emilio
Gallo, ajuda a entender melhor o conflito pela posse de terras na região Norte
do país, quase uma terra sem lei, ao acompanhar o que aconteceu a dois
grupos de pessoas ameaçadas publicamente de morte — por meio de cartazes
fixados em postes — em cidades no interior do Pará, o primeiro nos anos
1980 e 1990, e o segundo, já nos anos 2000.
Em Garapa (2010), o cineasta José Padilha — diretor e roteirista de
Ônibus 174 (2002) e Tropa de Elite (2007 & 2010) — procura mostrar o que
representa concretamente a fome, partindo de dados sobre a miséria no
planeta para chegar até três famílias do interior do Ceará, cujas rotinas são
registradas pela equipe de filmagem, com detalhismo antropológico, durante
cerca de um mês.
Castro Alves - Retrato Falado do Poeta — Brasil, 1999, 70 min. Direção e roteiro: Silvio Tendler. Com Bruno Garcia, Dira Paes, Tereza Freire. Distribuição em DVD: Caliban.

Marighella - Retrato Falado do Guerrilheiro — Brasil, 2001, 55 min. Direção e roteiro: Silvio Tendler. Distribuição em DVD: Caliban.

Utopia e Barbárie — Brasil, 2010, 120 min. Direção e roteiro: Silvio Tendler. Distribuição em DVD: Caliban.

(Publicado em Educação 171, julho de 2011)


Central do Brasil
Brasil, 1998
Direção: Walter Salles

Nem Fernanda Montenegro, nem Marília Pêra. É de uma cidadã comum,


Maria do Socorro Nobre, o primeiro rosto a aparecer em Central do Brasil.
Baiana, 45 anos, mãe de três filhos, ex-presidiária, ela é gente de carne, osso,
cédula de identidade e contas a pagar no final do mês. Em seguida ao dela,
outros rostos se revezam diante da câmera. Alguns pertencem a atores que
interpretam personagens; outros são de cidadãos comuns, recrutados para a
sequência ali mesmo, na hora da filmagem, falando de suas vidas.
Técnica de documentário em cinema de ficção, a serviço da emoção e da
verossimilhança. A própria Maria do Socorro não está ali por acaso:
protagonista de um documentário de curta-metragem que inspirou ao diretor
Walter Salles o argumento de Central do Brasil, ela conecta o filme à
realidade social que se procura registrar. “Partimos da Central, síntese da
nossa ideia de Brasil, em busca da compaixão e da inocência que o país não
conhece mais”, afirma Salles. Na impossibilidade de falar das 300 mil
pessoas que circulam diariamente pela estação, no Rio de Janeiro, e de suas
histórias de miséria, solidão e desespero, o roteiro concentra-se em apenas
uma.
Na verdade, duas histórias. A primeira é a de Dora (Fernanda
Montenegro), professora aposentada que engrossa o orçamento escrevendo
cartas para analfabetos. Instalada nos corredores da Central, ela cobra R$ 1
pela redação e envio de correspondências simples. Parece uma senhora de
confiança, mas não é. À noite, em casa, pede ajuda à vizinha, Irene (Marília
Pêra), para selecionar as cartas que “merecem” ser encaminhadas ao
destinatário. As que não passam pelo filtro vão direto para o lixo ou, o que dá
quase na mesma, para o “purgatório”, uma gaveta na cômoda da sala, à
espera de um segundo julgamento que nunca ocorre.
Como o dinheiro não volta para o bolso dos pobres coitados que
acreditaram na “escrevinhadora”, trata-se de estelionato. No exterior, o
público e a crítica tendem a encarar Dora como “bandida”; o fenômeno
ocorreu inclusive no Festival de Berlim, no qual obteve os prêmios de melhor
filme e atriz (Fernanda). No Brasil, é de se supor maior tolerância em relação
a suas falhas de caráter. Afinal, quem por aqui não precisa “se virar”?
A segunda história é a de Josué (Vinícius de Oliveira), 8 anos, filho de
Ana (Soia Lira), que abandonou o restante da família em Pernambuco para
tentar a sorte no Rio com o caçula. Ana recorre a Dora para enviar ao marido
uma carta em que amor e mágoa se confundem. Promete voltar ao Nordeste
para que Josué conheça o pai. Um acidente a impede, no entanto, de seguir os
planos. Sozinho na cidade grande, Josué acampa na Central do Brasil. Não
demora muito para que sua história e a de Dora se misturem.
Ir além na descrição da trama implicaria roubar do espectador o prazer
da surpresa. Basta dizer que Central do Brasil transforma-se, a partir do
encontro entre seus dois protagonistas, em autêntico filme-de-estrada, com
baldeações no coração do Nordeste. Como todo bom exemplar do gênero,
seus personagens vão se transformando durante a jornada e chegam ao fim
mais experientes e maduros, ainda que isso não represente necessariamente
felicidade.
“É um filme sobre a importância de perceber o outro”, diz Salles. Ou,
ferramenta indispensável para essa percepção, sobre a importância do olhar.
São as cartas – enviadas ou não – que governam o andamento da trama, mas
cabe às fotografias um papel especialmente simbólico, sobretudo no final.
Tolerância e generosidade associam-se no filme à ideia de que não se
conhece ninguém sem antes dedicar-lhe um olhar “puro”, desprovido de
preconceito. Parece fácil identificar, nessa proposta humanista, o legado do
neorrealismo italiano.
Assim como o olhar neorrealista voltava-se para uma paisagem social
devastada, mas cheia de esperança, Central do Brasil também estende sua
perspectiva para um país “proscrito”, que raramente chega ao cinema e à TV
– e, quando consegue a proeza de romper essa barreira, a leitura do quadro
sai comprometida pelo sentimentalismo e pela consciência burguesa de culpa.
O filme de Salles alcança um registro sem mocinhos ou vilões, com
personagens ambíguos envolvidos em situações que fogem ao seu controle e
até mesmo à sua compreensão.
Central do Brasil vem provocando nos cinemas reações de empatia que
não eram vistas desde Pixote (1981), de Hector Babenco, e Memórias do
Cárcere (1984), de Nelson Pereira dos Santos, os dois últimos filmes
brasileiros com status de obra de arte a provocar filas nas bilheterias. Por
coincidência, eram filmes que também se debruçavam sobre uma porção
incômoda da nossa realidade. É possível enxergar nisso um interesse
insuspeito em ver refletido na tela um país diferente do que se vê nas
telenovelas da Globo?
“Emana da análise de um mau filme brasileiro uma alegria de
entendimento que o consumo da arte de um [Ingmar] Bergman, por exemplo,
não proporciona a um espectador brasileiro”, disse o ensaísta, escritor e
professor Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977). Defensor intransigente de
nosso cinema, referia-se à incomparável sensação de familiaridade que a pior
produção brasileira pode oferecer. É essa “alegria de entendimento” que
transforma Central do Brasil em uma espécie de celebração aos novos
tempos em que já se tornou possível outra vez ir ao cinema para conhecer o
país.
Central do Brasil — Brasil, 1998, 112 min. Direção: Walter Salles. Roteiro: João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein, baseado em argumento de Walter Salles. Com Fernanda Montenegro,
Vinicius de Oliveira, Soia Lira, Matheus Nachtergaele, Othon Bastos, Otávio Augusto, Caio Junqueira, Stella Freitas. Distribuição em DVD: Videofilmes.

(Publicado em Educação 13, maio de 1998)


O Céu de Outubro
October Sky
EUA, 1999
Direção: Joe Johnston

No cinema, o primeiro satélite artificial lançado pela extinta União


Soviética já deu origem a uma chanchada brasileira (O Homem do Sputnik,
1959) e a uma comédia dramática sueca sobre os dissabores e as descobertas
da infância (Minha Vida de Cachorro, 1985). Em O Céu de Outubro, ele
reaparece em uma história verídica que glorifica a ciência, o caminho para o
conhecimento e a derrubada de obstáculos sociais.
O Sputnik I foi lançado em 4 de outubro de 1957, o segundo em 3 de
novembro do mesmo ano e o terceiro em 15 maio de 1958. Como vivia-se
então a chamada “guerra fria”, a proeza soviética – um marco da corrida
espacial – foi vista pelos americanos com um misto de medo e desprezo.
Temia-se que os satélites fossem usados para fotografar bases militares, e
muita gente não entendia o motivo de ir para o alto.
Homer Hickam (Jake Gyllenhaal) tinha 17 anos quando observou o
Sputnik passar sobre Coalwood, a pequena cidade onde morava, no Estado de
Virgínia. Foi amor à primeira vista: fascinado pela constatação de que o
homem dispunha de tecnologia para fabricar artefatos que permanecessem na
órbita da Terra, ele põe na cabeça a ideia de também construir um foguete.
Aluno sofrível, ele tem dificuldades para compreender o bê-a-bá
científico e decide recorrer a Quentin Wilson (Chris Owen), o CDF da turma,
marginalizado pelos colegas. Outros dois estudantes, Roy Cook (William Lee
Scott) e Sherman O’Dell (Chad Lindberg), completam o grupo, que a cidade
apelida de “rocket boys”, os “fogueteiros”. A srta. Riley (Laura Dern), jovem
professora da escola, decide apoiá-los.
Homer chega a trocar correspondência com Wernher von Braun (1912-
1977), engenheiro alemão que projetou para os nazistas a bomba V2 e, com o
final da II Guerra, naturalizou-se americano e tornou-se um dos principais
personagens da corrida espacial. Mas há uma pedra gigantesca no caminho
dos “fogueteiros”: Coalwood vive em torno de uma mina de carvão e todos
os rapazes da cidade estão fadados a trabalhar ali.
Para azar de Homer, seu pai (Chris Cooper) é o chefe da mina e acredita
que tudo, inclusive estudar, significa perda de tempo diante do futuro
inevitável sob o solo. A única saída admitida por ele, que o seu tacanho filho
mais velho aproveita, é ganhar uma bolsa de estudos como jogador de futebol
americano.
Por outro lado, a srta. Riley incentiva os “fogueteiros” a participar de
uma feira nacional de ciências. Se é uma história verídica sobre a qual
escreveram um livro e fizeram um filme, o leitor pode deduzir para onde as
coisas caminham. Intuir o desfecho nem de longe estraga, porém, o prazer de
acompanhar a jornada. No final, aparecem os personagens reais. Então se
notará como o céu de outubro, visto de Coalwood, mudou-lhes radicalmente
a vida.
O Céu de Outubro (October Sky) — EUA, 1999, 107 min. Direção: Joe Johnston. Roteiro: Lewis Colick, baseado no romance Rocket Boys, de Homer H. Hickam Jr. Com Jake Gyllenhaal, Chris
Cooper, Chris Owen, Laura Dern, William Lee Scott, Chad Lindberg, Natalie Canerday, Elya Baskin, Chris Ellis, Scott Miles. Distribuição em DVD: Universal.

(Publicado em Educação 39, julho de 2000)


As Chaves de Casa
Le Chiavi di Casa
Itália/Alemanha/França, 2005
Direção: Gianni Amelio

As relações entre pai e filho já renderam obras notáveis na literatura e no


cinema, mas poucas vezes seus autores se dedicaram a elas com a poesia
dolorosa de As Chaves de Casa (2005). O tema percorre absolutamente todo
o filme, da primeira à última imagem, sem que haja espaço para nenhuma
intromissão – e sem que o espectador consiga escapar de encará-lo de frente,
a exemplo do que ocorre com os personagens.
Durante quase duas horas, um pai (Kim Rossi Stuart, de Além das
Nuvens e Estamos Bem Mesmo sem Você, outro filme da mesma tradição) e
seu filho mais velho (o estreante Andrea Rossi) ficam juntos o tempo todo.
Ambos são italianos de Roma completamente deslocados em Berlim,
sobretudo porque nenhum deles fala alemão. Assim, eles têm apenas um ao
outro, exceto por uma simbólica presença maternal (protagonizada pela
inglesa Charlotte Rampling, de O Porteiro da Noite e Swimming Pool) que se
insere de modo discreto na história.
O que fazem os dois na Alemanha? O menino nasceu com lesão cerebral
e, embora seja adolescente, se comporta como criança. Foi criado pela avó e
por um casal de tios; a mãe morreu no parto, aos 19 anos, e o pai, desde
então, nunca mais quis vê-lo. O reencontro ocorre por indicação médica: se o
menino for acompanhado pelo pai ao moderno hospital alemão que cuida de
seu caso, talvez o processo de recuperação possa ser acelerado.
Baseado em romance de Giuseppe Pontiggia, o argumento tem potencial
para encher galões de lágrimas por sessão, mas o diretor Gianni Amelio (de
As Portas da Justiça, América - O Sonho de Chegar e A Estrela Imaginária)
o conduz com notável sobriedade. Ambientar esse período de convivência
compulsória em terra estranha aos dois é um dos diversos achados do filme,
ao nivelar os personagens e, com isso, ampliar o alcance das reflexões que
propõe. Na trilha sonora, exerce papel importante a canção Deus do Fogo e
da Justiça, de Geraldo Lima e Osvaldo Almeida, interpretada por Virginia
Rodrigues.
As Chaves de Casa (Le Chiavi di Casa) — Itália/Alemanha/França, 2005, 106 min. Direção: Gianni Amelio. Roteiro: Sandro Petraglia, Stefano Rulli e Gianni Amelio, baseado no romance Nati
Due Volte, de Giuseppe Pontiggia. Distribuição em DVD: Dreamland.
(Publicado em Educação 139, novembro de 2008)
Che
Che
EUA/França/Espanha, 2008
Direção: Steven Soderbergh

Poucas biografias de personagens do século 20 oferecem matéria-prima


para cinema tão rica – e, ao mesmo tempo, tão sujeita a polêmica – quanto a
de Ernesto Guevara (1928-1967). Repleto de armadilhas, o desafio de adaptá-
la com pompa e circunstância foi bancado pelo ator Benicio Del Toro (21
Gramas) e pelo diretor Steven Soderbergh (Erin Brokovich) — que já haviam
trabalhado juntos em Traffic (2000) — na realização de dois longas-
metragens interligados sobre a trajetória política do médico argentino que se
tornou, depois de Fidel Castro, o maior ícone da Revolução Cubana.
Che corresponde à primeira parte do projeto, que acompanha Guevara
(interpretado por Del Toro) a partir de 1955, quando conhece Fidel (Demián
Bichir) e Raúl Castro (Rodrigo Santoro), até sua histórica visita à ONU, em
1964. Esse período é reconstituído por meio de idas e vindas no tempo; a
última imagem do filme, irônica e esperançosa, mostra Guevara a caminho de
Havana, já consolidada a vitória dos revolucionários sobre as tropas do
ditador Fulgencio Batista.
Descontada a diferença física entre Del Toro e Gael García Bernal, Che
se assemelha a Diários de Motocicleta (2004) – que recria a viagem do jovem
Guevara pela América Latina – na visão positiva do personagem, e se afasta
muito de A Cidade Perdida (2005), que o pinta como um demônio traiçoeiro.
Aqui, a principal fonte para o roteiro foram as memórias de Guevara sobre a
Revolução Cubana, somadas a documentos e registros jornalísticos, como o
de uma entrevista concedida a uma repórter norte-americana por ocasião da
visita à ONU.
No tratamento dessa figura mitológica, prevalece o esforço de torná-la
mais humana por meio do célebre conceito de “endurecer sem perder a
ternura”. O Che recriado por Del Toro e Soderbergh parece frágil durante
seus ataques de asma e se revela encantado com a inocência de camponeses,
mas está sempre na linha de frente em combates e, ao decidir pela execução
de um homem, o faz com a serenidade de um juiz. As coisas mudam de
figura na segunda parte do projeto, Che - A Guerrilha, baseado em O Diário
do Che na Bolívia.
Che (Che) — EUA/França/Espanha, 2008, 134 min. Direção: Steven Soderbergh. Roteiro: Peter Buchman, baseado nas memórias de Ernesto Guevara. Com Benicio Del Toro, Julia Ormond,
Demian Bichir, Rodrigo Santoro. Distribuição em DVD: Europa.

(Publicado em Educação 150, outubro de 2009)


Cidade de Deus
Brasil, 2002
Direção: Fernando Meirelles

Mais polêmico longa-metragem brasileiro em muitos anos, Cidade de


Deus entra agora em uma espécie de segunda temporada. Na primeira, com o
lançamento nos cinemas, cerca de 3,5 milhões de espectadores foram atrás do
que a imprensa cobriu de forma intensa. Como o atual circuito exibidor
brasileiro é muito restrito, alcançando somente a classe média, supõe-se que o
filme tenha atingido apenas uma pequena parcela dos potenciais interessados
em seu tema.
Com o lançamento em vídeo, amplia-se consideravelmente o público.
Nesta segunda etapa, em que a imprensa sai de cena e deixa de encaminhar o
debate, Cidade de Deus passa a andar sozinho. Por outro lado, aumenta a
responsabilidade de quem, em escolas e outros locais, quiser exibi-lo para
fomentar discussões. É bem verdade que qualquer filme pede um trabalho de
preparação para atividades interativas, mas este é um caso especial, pela sua
elevada carga polêmica.
O principal lembrete talvez seja o de que se trata de um longa-metragem
de ficção, e não de um documentário ou de uma tese acadêmica sobre a
desigualdade social brasileira. Não se deve encará-lo, portanto, como registro
fidedigno de certa realidade ou como tentativa de compreender toda sua
complexidade. É recriação (muito bem feita) de situações com as quais
grande parcela da população se identifica com extrema facilidade. Afinal, as
“cidades de Deus” espalham-se pelo país, sobretudo na periferia das grandes
e médias cidades.
A cópia lançada em DVD traz um valioso instrumento para orientar
professores e demais mediadores de debates: a opção de assistir a todo o
filme ouvindo os comentários do diretor Fernando Meirelles, do roteirista
Bráulio Mantovani e do fotógrafo César Charlone. São mais de duas horas de
explicações dadas pelo trio que exerceu papel expressivo na concepção da
obra. O cenário é o conjunto habitacional Cidade de Deus, construído no Rio
de Janeiro no final dos anos 1960, transformado em favela nos anos 1970 e
palco de uma lendária guerra entre gangues de traficantes na passagem para
os anos 1980.
O antropólogo, professor e poeta carioca Paulo Lins recolheu histórias
ocorridas ali nesse período e as transformou em romance homônimo
publicado em 1997, com 550 páginas e mais de 300 personagens. Apesar da
riqueza literária, o livro não trazia estrutura dramática linear que servisse
como espinha dorsal de uma adaptação para cinema. Mantovani “pescou” o
argumento do longa nesse emaranhado de personagens e situações,
transformando Buscapé (Alexandre Rodrigues), garoto que aparece em cerca
de 60 páginas, no equivalente a Paulo Lins do filme – testemunha das
histórias que se desenrolam diante dele, envolvendo familiares, amigos,
vizinhos e conhecidos. Nossos olhos são os dele, e provavelmente não
gostem do que veem.
Cidade de Deus — Brasil, 2002, 130 min. Direção: Fernando Meirelles. Roteiro: Bráulio Mantovani, baseado no romance homônimo de Paulo Lins. Com Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino
da Hora, Douglas Silva, Matheus Nachtergaele, Daniel Zeitel, Seu Jorge, Jonathan Haagensen, Phellipe Haagensen. Distribuição em DVD: Imagem.

(Publicado em Educação 77, setembro de 2003)


Como Eu Festejei o Fim do Mundo
Cum mi-am petrecut sfarsitul lumii
Romênia/França, 2006
Direção: Catalin Mitulescu

Uma das principais novidades do cinema europeu dos últimos anos foi a
produção jovem da Romênia, feita com recursos limitados, mas com muita
inventividade e a disposição de retomar em perspectiva crítica a história
recente do país. Ainda inédito no Brasil, A Morte do Sr. Lazarescu (2005)
chamou a atenção para a nova onda, confirmada por filmes como A Leste de
Bucareste (2006), 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (2007), que obteve a Palma
de Ouro no Festival de Cannes, e Polícia, Adjetivo (2009).
A boa safra inclui Como Eu Festejei o Fim do Mundo (2006). Primeiro
longa-metragem do diretor e roteirista Catalin Mitulescu, ele recebeu uma
chancela de qualidade de dois dos mais expressivos cineastas em atividade, o
norte-americano Martin Scorsese e o alemão Wim Wenders, que aparecem
nos créditos como produtores executivos — modo de facilitar a viabilização e
circulação de um filme.
Assim como a maioria de seus compatriotas revelados nos últimos anos,
Mitulescu também se dedica a um pequeno inventário da Romênia sob a
ditadura de Nicolae Ceausescu (1918-1989). O diferencial vem do ponto de
vista infantojuvenil, como fazem, também em relação a ditaduras, o argentino
Kamchatka (2002), o chileno Machuca (2004) e o brasileiro O Ano em que
Meus Pais Saíram de Férias (2006).
A história se ambienta nos últimos momentos do período de terror de
Ceausescu. A perspectiva é de um menino (Timotei Duma) e de sua irmã
mais velha (Doroteea Petre), que estudam em escola onde o patrulhamento
político ainda faz suas vítimas. Enquanto ele acompanha ao lado de amigos a
derrocada do regime, com inocência e bom humor, ela sofre na pele os
derradeiros — mas ainda incômodos — suspiros de uma era autoritária.
Como Eu Festejei o Fim do Mundo (Cum mi-am petrecut sfarsitul lumii) — Romênia/França, 2006, 101 min. Direção: Catalin Mitulescu. Roteiro: Andreea Valean e Catalin Mitulescu. Com
Dorotheea Petre, Timotei Duma. Distribuição em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 158, junho de 2010)


Como Nascem os Anjos
Brasil, 1996
Direção: Murilo Salles

Dezesseis, Zero, Sessenta


Brasil/EUA, 1995
Direção: Vinicius Mainardi

Diz um velho chavão que o cinema abre janelas para o mundo. Às vezes,
porém, tais janelas voltam-se para o que se passa entre quatro paredes, sem
que essa opção por espaços interiores impeça enxergar o mundo exterior. É o
que fazem, de maneira reveladora, dois filmes nacionais que chegaram quase
simultaneamente ao mercado de vídeo. Como Nascem os Anjos recebeu os
principais prêmios de melhor filme brasileiro em 1996, enquanto Dezesseis,
Zero, Sessenta foi exibido apenas em festivais. Em ambos, ricos e pobres são
forçados a conviver durante algum tempo nas mansões dos primeiros. Os
motivos dessa coabitação forçada variam de um filme para outro, mas a
tensão e o desconforto provocados por ela conduzem à mesma sensação: a de
que a desigualdade social brasileira é problema complexo demais para caber
em simplificações demagógicas que coloquem “mocinhos” de um lado e
“vilões” do outro.
Como Nascem os Anjos inspira-se em O Anjo Nasceu (1969), de Julio
Bressane, em que dois bandidos (Hugo Carvana e Milton Gonçalves)
invadem a casa de uma família rica e mantêm um jogo de poder com a dona e
a empregada. O filme de Murilo Salles (diretor de Nunca Fomos Tão Felizes
e Faca de Dois Gumes) substitui os bandidos por dois adolescentes,
moradores de morro no Rio de Janeiro, que se envolvem com um traficante
pé de chinelo perseguido pela própria quadrilha. A improvisada rota de fuga
leva o trio à mansão de um executivo norte-americano, onde a aventura
adquire proporções inesperadas. Longe de ceder à tentação fácil de separar os
“bons” dos “maus”, Como Nascem os Anjos aproxima personagens situadas
em pontos extremos da pirâmide social – gente que não se conheceria em
circunstâncias comuns – para lembrar que a distância entre elas criou um nó
tão difícil de desatar quanto de compreender.
Bem mais cínico em sua visão da realidade brasileira, Dezesseis, Zero,
Sessenta é a estreia no cinema do publicitário Vinicius Mainardi, com roteiro
do irmão, o escritor Diogo Mainardi. O título do filme refere-se ao número
aproximado de dias (16.060, ou 44 anos) vividos pelo protagonista, Vittorio,
milionário temeroso de que o ladrão preso ao assaltar sua casa cumpra a
promessa de, ao sair da cadeia, matar sua família. Planejando acabar com o
mal pela raiz, ele encomenda a morte do bandido – mas, por um acidente
tipicamente brasileiro, o coitado assassinado na prisão é um trabalhador que
deixa viúva e três filhos. O remorso faz com que Vittorio procure uma
maneira de reparar o engano, atitude humanitária que lhes custa a ocupação
de sua casa pela família sem-teto do morto. Comédia de humor negro
apropriadamente filmada em preto-e-branco, Dezesseis, Zero, Sessenta trata
privilegiados e excluídos sem um pingo da demagogia barata presente em
discursos vazios e análises simplistas sobre a desigualdade social no Brasil.
Ainda fáceis de ouvir, mas cada vez mais difíceis de engolir, como
demonstram os filmes de Salles e Mainardi.
Como Nascem os Anjos — Brasil, 1996, 96 min. Direção: Murilo Salles. Roteiro: Jorge Duran, Aguinaldo Silva, Nelson Nadotti e Murilo Salles. Com Larry Pine, Priscila Assum, Silvio
Guindane. Distribuição em DVD: Cinema Brasil Digital.

Dezesseis, Zero, Sessenta — Brasil/EUA, 1995, 86 min. Direção: Vinicius Mainardi. Roteiro: Diogo Mainardi. Com Antonio Calloni, Maitê Proença, Marcélia Cartaxo. Distribuição em VHS:
Flashstar.

(Publicado em Educação 3, julho de 1997)


Concorrência Desleal
Concorrenza Sleale
Itália/França, 2001
Direção: Ettore Scola

Pietro e Lele são amigos inseparáveis. Moram no mesmo prédio, em


Roma, no final da década de 1930. Brincam e vão à escola juntos. Quem os
vê não enxerga nenhuma diferença. Certo dia, no entanto, eles transformam-
se em cidadãos muito distintos um do outro. Como o primeiro é católico e o
segundo pertence a uma família judaica, passam a viver realidades díspares.
Já não frequentam a mesma escola, não circulam pelos mesmos ambientes
sociais. E, em breve, não mais serão vizinhos. Lele precisará pôr as roupas,
os livros e os brinquedos na mala para acompanhar os pais em direção a outro
endereço, distante dali.
O motivo para a mudança repentina? A legislação social de 1938,
baixada pelo ditador Benito Mussolini (1883-1945) em um de seus
movimentos para aproximar-se da Alemanha nazista, ao lado da qual entraria
na II Guerra Mundial, em junho de 1940. As normas tinham o objetivo de
expulsar os judeus de seus empregos, tirá-los das escolas e cercear-lhes a vida
pública. A escalada separatista culminou com a transferência compulsória de
milhares de famílias para guetos e campos de internamento. A Vida é Bela
(1997), do ator e diretor Roberto Benigni, recria esse período vergonhoso na
história italiana. Concorrência Desleal faz nova abordagem do tema, mais
politizada, e filtrada pelos olhos de duas crianças para as quais o preconceito
torna-se violência incompreensível.
As anotações de Pietro em seu diário amarram a trama, iniciada em 2 de
fevereiro de 1938, o “16º ano da era fascista”, referência à nomeação de
Mussolini como primeiro-ministro pelo rei Vítor Emanuel III. Os pais das
crianças são os protagonistas de uma pequena desavença comercial. O de
Pietro, alfaiate veterano, mantém no térreo do prédio uma loja ao velho estilo,
cujos fregueses são políticos e homens de negócios que encomendam peças
sob medida. O de Lele abre ao lado um armarinho de roupas prontas,
“roubando” clientes do vizinho. Um preza a qualidade do que faz, e cobra por
ela; o outro prefere trabalhar com preços mais atraentes.
Essa pequena aula de economia varejista incorpora dramaticidade social
à medida que o comerciante judeu sofre represálias das autoridades, e seu
concorrente católico, de início despolitizado, compreende o alcance da
injustiça que se desenha no país a partir do que ocorre naquele quarteirão
romano. Mestre em sair da parte para chegar ao todo, o diretor Ettore Scola
permite-se aqui reconstituir outra vez a visita do chanceler alemão Adolf
Hitler (1889-1945) a Roma, que já havia sido o pano de fundo de outro de
seus grandes filmes, Um Dia Muito Especial (1977). Ativo militante de
esquerda, ele usa a Itália fascista para lembrar o que nos cerca hoje: no
mundo globalizado em que alguns dão as cartas e os demais obedecem, e em
que a exclusão social integrou-se à paisagem, o separatismo já não precisa
mais escorar-se em leis.
Concorrência Desleal (Concorrenza Sleale) — Itália/França, 2001, 110 min. Direção: Ettore Scola. Roteiro: Furio Scarpelli, Giacomo Scarpelli, Ettore Scola e Silvia Scola. Com Diego
Abatantuono, Sergio Castellito, Gérard Depardieu, Walter Dragonetti, Simone Ascani, Jean-Claude Brialy, Claude Rich, Claudio Bigagli, Anita Zagaria. Distribuição em DVD: Warner.

(Publicado em Educação 60, abril de 2002)


A Conquista da Honra
Flags of Our Fathers
EUA, 2006
Direção: Clint Eastwood

Cartas de Iwo Jima


Letters from Iwo Jima
EUA, 2006
Direção: Clint Eastwood

Filmes como Sobre Meninos e Lobos (2003) e Menina de Ouro (2004)


demonstram que o diretor Clint Eastwood deixou para trás a imagem de astro
de aventuras e de policiais, e se tornou um dos mais poderosos cronistas da
sociedade norte-americana contemporânea, rigoroso – ainda que poético e, às
vezes, sentimental mesmo – na identificação de alguns de seus dilemas e
contrastes.
Nenhum de seus projetos havia sido tão ambicioso, no entanto, quanto a
dupla de longas-metragens complementares A Conquista da Honra (2006) e
Cartas de Iwo Jima (2006). Cada um deles tem existência autônoma: não se
exige do espectador que conheça um para apreciar o outro. Mas, vistos em
sequência, propiciam experiência singular.
O episódio central de ambos é a batalha, nos estertores da II Guerra
Mundial, entre norte-americanos e japoneses na ilha de Iwo Jima. O
confronto durou de 19 de fevereiro a 20 de março de 1945, e terminou com a
vitória dos EUA, simbolizada por uma fotografia célebre em que soldados
erguem a bandeira do país no alto de uma colina. As circunstâncias desse
flagrante alimentam A Conquista da Honra.
Baseado em livro homônimo de James Bradley, o filme reconstitui o
episódio com base em depoimentos dos sobreviventes e acompanha a
maratona de três soldados, de volta aos EUA, na campanha de arrecadação de
fundos. Ao revelar a mistificação produzida a partir da imagem, examina a
manipulação de informações por governo e imprensa, e os mecanismos de
fabricação de heróis, entre outros temas.
Em Cartas de Iwo Jima, o foco se volta para os 23 mil soldados
japoneses que buscaram resistir à invasão norte-americana. Mesmo sabendo
que a vitória seria impossível, o comandante das tropas (Ken Watanabe, de O
Último Samurai e Memórias de uma Gueixa) precisa mantê-las em condições
de combate. Seu drama e o de mais alguns protagonistas do episódio
ensinam, como raros filmes norte-americanos são capazes de fazer, a
importância (e a complexidade) de entender o outro.
A Conquista da Honra (Flags of Our Fathers) — EUA, 2006, 132 min. Direção: Clint Eastwood. Roteiro: William Broyles Jr. e Paul Haggis, baseado em livro de James Bradley e Ron Powers.
Com Ryan Phillippe, Jesse Bradford, Adam Beach, John Benjamin Hickey. Distribuição em DVD: Warner.

Cartas de Iwo Jima (Letters from Iwo Jima) — EUA, 2006, 141 min. Direção: Clint Eastwood. Roteiro: Iris Yamashita, baseado em argumento de Paul Haggis e Iris Yamashita, por sua vez
inspirado em livro de Tadamichi Kuribayashi e Tsuyoko Yoshido. Com Ken Watanabe, Kazunari Ninomiya, Tsuyoshi Ihara, Ryô Kase. Distribuição em DVD: Warner.

(Publicado em Educação 125, setembro de 2007)


A Corrente do Bem
Pay it Forward
EUA, 2000
Direção: Mimi Leder

Duas instituições norte-americanas sem fins lucrativos – o Caring


Institute e a Pay It Forward Foundation – criaram um prêmio para pessoas e
escolas que tenham se destacado por apresentar uma ideia capaz de mudar a
sociedade, ainda que no varejo – ou seja, no âmbito de uma pequena
comunidade. O prêmio foi batizado com o título original de A Corrente do
Bem.
É a segunda vez nos últimos anos que um filme de ficção inspira
atitudes concretas em defesa de idéias promovidas por ele. O caso anterior foi
o de Mr. Holland – Adorável Professor (1995), que deu origem a uma
fundação para a defesa do ensino de música em escolas públicas dos EUA,
usando um personagem fictício (interpretado por Richard Dreyfuss) como
emblema de um drama vivido por milhares de professores e alunos de todo o
país.
Em A Corrente do Bem, a ação também é desencadeada por um
professor, Eugene Simonet (Kevin Spacey, de Beleza Americana). Recém-
contratado para dar aulas de Estudos Sociais em uma escola pública de Las
Vegas, ele propõe a seus alunos de 7ª série, no primeiro dia de aula, que
passem o semestre bolando uma ideia capaz de mudar o mundo – e, se
possível, que tentem executá-la.
Simonet não é muito simpático e, para piorar, tem o rosto desfigurado
por uma razão que mantém em segredo. A deformação lhe garante
estabilidade no emprego, graças ao sistema de cotas que assegura postos de
trabalho para minorias nos EUA, e funciona como escudo para manter as
pessoas distantes. Dá certo com todos, exceto Trevor (Haley Joel Osment, o
garoto de O Sexto Sentido e A.I. – Inteligência Artificial), um aluno de 11
anos, especialmente sensível, que leva a sério a lição de casa exigida pelo
professor.
Trevor batiza sua ideia de “passe para a frente” (“pague adiante”, em
tradução literal). É coisa de relativa simplicidade: uma “corrente” que tem
início quando alguém faz “algo importante” para três pessoas, conhecidas ou
não. Em vez de retribuir a ajuda ao seu benfeitor, elas devem repetir o gesto
com outras três pessoas, e assim por diante. Bondade em progressão
geométrica, administrada pelo destino.
É um ponto de partida no mínimo curioso, mas do qual o filme não
consegue dar conta, culminando com uma resolução altamente polêmica,
destinada a extrair lágrimas do espectador à base de força. Apelos
melodramáticos à parte, A Corrente do Bem lança temas interessantes para o
debate sobre o papel da escola e de seus profissionais. “Quero forçá-los a
pensar, não a fazer milagres”, explica Simonet a seus alunos.
“Para que pensar no mundo? O que o mundo espera de vocês? Onde fica
o reino das possibilidades?”, pergunta a pré-adolescentes de olhar estatelado
pela complexidade aparente do que lhes apresenta. Louco ou visionário?
Irresponsável ou inspirador? Você decide se o sujeito, afinal, é mesmo do
bem.
A Corrente do Bem (Pay it Forward) — EUA, 2000, 123 min. Direção: Mimi Leder. Roteiro: Leslie Dixon, baseado no romance Tributo ao Amor, de Catherine Ryan Hyde. Com Kevin Spacey,
Helen Hunt, Haley Joel Osment, Jay Mohr, James Caviezel, Jon Bon Jovi, Angie Dickinson, David Ramsey, Gary Werntz, Colleen Flynn. Distribuição em DVD: Warner.

(Publicado em Educação 54, outubro de 2001)


Crianças Invisíveis
All the Invisible Children
Itália/França, 2005
Direção: Kátia Lund e outros

São raríssimos os casos em que assistir a um filme, desde que o


espectador compre ingresso ou adquira cópia em DVD, representa pequena
contribuição financeira para o combate aos problemas apresentados por ele.
Crianças Invisíveis (2005) é um deles.
Concebido pelos produtores italianos Chiara Tilesi e Stefano Veneruso,
esse longa-metragem em episódios tem sua renda revertida para o Fundo das
Nações Unidas para a Infância e Juventude (Unicef) e para a Organização das
Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO). O objetivo do
projeto era chamar a atenção para “os problemas da infância em todo o
mundo” e as “dificuldades da condição infantil nas mais diversas regiões”.
O título trabalha com a ideia das crianças que existem, mas que ninguém
parece ver (e com elas se importar). As sete histórias contadas pelo filme
exploram esse conceito, a começar pelo episódio brasileiro, Bilu e João,
realizado pela cineasta paulista Kátia Lund (codiretora do documentário
Notícias de uma Guerra Particular, com João Moreira Salles, e de Cidade de
Deus, com Fernando Meirelles).
As personagens (interpretadas por Vera Fernandes e Francisco Anawake
de Freitas) são crianças que perambulam por São Paulo atrás de caixas de
papelão, latas vazias, pregos e outros materiais que possam vender. O
dinheiro vai para a família, mas Bilu e João arrumam também um jeito de
realizar um pequeno sonho. Embora a realidade seja dura, Kátia usa uma
abordagem que mescla realismo, humor e poesia.
Entre os demais cineastas convidados pelos produtores, o bósnio Emir
Kusturica (Underground – Mentiras de Guerra) fala de crianças ciganas, o
norte-americano Spike Lee (Faça a Coisa Certa) trata do drama da Aids, o
inglês Ridley Scott (Blade Runner, Gladiador) denuncia o envolvimento
infantil em guerras e o chinês John Woo (Missão Impossível 2) lembra as
diferenças de classe.
Crianças Invisíveis (All the Invisible Children) — Itália/França, 2005, 116 min. Direção: Kátia Lund, Emir Kusturica, Spike Lee, Ridley e Jordan Scott, John Woo, Mehdi Charef e Stefano
Veneruso. Distribuição em DVD: Paris.

(Publicado em Educação 116, dezembro de 2006)


Crônica da Inocência
Comédie de l’Innocence
França, 2000
Direção: Raoul Ruiz

No dia em que completa 9 anos, Camille brinca em um parque próximo


à sua casa, sob os cuidados da babá, como faz habitualmente. Ariane, sua
mãe, vai buscá-lo. Aproxima-se do filho por trás e, quando começa a cobrir-
lhe os olhos, ele vira-se e pergunta, invertendo a brincadeira planejada pela
mulher: “adivinhe quem é”. Ora, é Camille. Certo? Em termos. “Você se
enganou de criança. Você não é minha mãe”, dispara o menino. Logo, ele
dirá que na verdade seu nome é Paul, tem um amigo chamado Alexandre
(que ninguém jamais viu) e mora em uma região de Paris onde supostamente
nunca esteve.
Esse é o ponto de partida perturbador de Crônica da Inocência, que o
diretor e roteirista Raoul Ruiz – radicado na França desde que se exilou do
Chile, em 1974 – adaptou de um romance de título sugestivo, Il Figlio di Due
Madri (o filho de duas mães), escrito pelo italiano Massimo Bontempelli. O
mistério que paira sobre a insólita situação parece, no início, de ordem
meramente psicológica. De acordo com essa hipótese, o menino seria vítima
de alguma espécie de surto. Imagina-se também que esteja apenas
arquitetando uma complexa “pegadinha” em seus pais.
À medida que o filme avança e as informações tornam-se mais
inquietantes, abre-se ainda uma janela para o sobrenatural. O requinte com
que Ruiz posiciona sua câmera e conduz o trabalho dos atores contribui para
alimentar a suspeita de que, como nos melhores filmes de Alfred Hitchcock,
há algo mais na trama do que podemos supor. De qualquer forma, não é
preciso ser mãe para imaginar o que começa a passar pela cabeça de Ariane
(Isabelle Huppert, de A Professora de Piano) quando Camille (Nils Hugon)
começa a lhe dizer coisas do tipo “você estava lá (no hospital) quando eu
nasci?” ou “esse senhor (seu pai) é seu marido?”. O medo de ter o filho
trocado no berçário, comum em inúmeras mulheres, adquire aqui dimensão
concreta e estranha.
Pouco a pouco as peças do mistério começam a se encaixar, mas nem
por isso a força da história diminui. Ao contrário: no centro de relações
adultas nem sempre claras, Camille torna-se um espelho que projeta imagens
não muito agradáveis das pessoas que o rodeiam. Seu papel é um pouco o de
tornar reais as fantasias (e também os fantasmas) que se abrigam nos
corações e mentes de suas duas famílias. “É uma ‘infância Don Juan’: não
tenho uma mãe, tenho várias”, afirma Ruiz no material extra que acompanha
a cópia do filme em DVD. Segundo ele, Crônica da Inocência pergunta-se
não só “quem é a criança”, mas também, e mais importante, “como se pode
crescer?”.
Altamente recomendável para todos os interessados em estudar a
psicologia infantil, o filme de Ruiz envolve o espectador em seu pequeno
labirinto com a habilidade de quem narra uma fábula cuja moral é aberta e,
por isso mesmo, ainda mais fascinante.
Crônica da Inocência (Comédie de l’Innocence) — França, 2000, 98 min. Direção: Raoul Ruiz. Roteiro: Françoise Dumas e Raoul Ruiz, baseado no romance Il Figlio di Due Madri, de Massimo
Bontempelli. Com Isabelle Huppert, Jeanne Balibar, Charles Berling, Nils Hugon, Edith Scob, Laure de Clermont-Tonnerre, Denis Podalydès, Chantal Bronner. Distribuição em DVD: Europa.

(Publicado em Educação 71, março de 2003)


Os Croods
The Croods
EUA, 2013
Direção: Kirk De Micco, Chris Sanders

O animador e produtor norte-americano Walt Disney (1901-1966) foi


um dos principais responsáveis pela formatação do conceito de diversão para
a família. Inúmeros filmes produzidos pelo império que construiu se dirigem
principalmente a crianças, mas trazem elementos que agradam também a
adolescentes e adultos. Assim, todos ficam satisfeitos com o passeio. Esse
público-alvo corresponde hoje a um dos maiores filões da indústria
cinematográfica, inclusive no Brasil, e costuma ter apreço especial por
longas-metragens de animação em 3D, como Os Croods (2013).
Produzido pelo estúdio DreamWorks, que também segue a cartilha
criada por Disney, essa bem-humorada recriação de uma pré-história
fantasiosa — em que elementos de diversas épocas convivem de maneira
anacrônica, ao lado de outros que foram inventados para o filme — conversa
diretamente com as atuais famílias de classe média. A história poderia muito
bem se passar em um dos condomínios fechados que se tornaram comuns em
diversos países nas últimas décadas. São lugares em que os moradores estão
"protegidos" do mundo que os cerca, em um movimento voluntário de
exclusão.
Grug, o pai brutamontes da trama, mantém a família dentro de uma
caverna porque acredita que "o novo é sempre ruim" e que eles nunca devem
perder o medo. Sua autoridade sobre o grupo começa a ruir quando a filha
adolescente decide contrariá-lo. Ainda bem que ela o faz: graças à sua
curiosidade e ao seu destemor, todos vão sobreviver melhor à necessidade
que logo se apresenta — correr pelo mundo em busca de um novo lar. Ruim
mesmo, descobrirá o zeloso Grug ao final, é renunciar às descobertas que a
vida proporciona o tempo todo — o que, em última instância, significa
renunciar a viver.
Por falar em condomínios fechados, eles aparecem como um símbolo de
exclusão em países de profundas desigualdades sociais em dois filmes latino-
americanos recentes: o mexicano Zona do Crime (2007), em que uma
frustrada tentativa de assalto desencadeia a ação (e os preconceitos dos
moradores), e o brasileiro O Som ao Redor (2012), que parte do processo de
verticalização de um bairro em Recife para tratar de idiossincrasias e de
temores da classe média.
Os Croods (The Croods) — EUA, 2013, 98 min. Direção: Kirk De Micco, Chris Sanders. Distribuição em DVd e Blu-ray: Fox.

(Publicado em Educação 200, dezembro de 2013)


A Culpa É do Fidel!
La Faute à Fidel!
França, 2007
Direção: Julie Gavras

França, início dos anos 1970. Para a menina Anna, de 9 anos, homens
barbudos e de expressão enérgica são “comunistas que querem a guerra
nuclear”. Ativos militantes de esquerda, seus pais apelidam a única
conservadora da família de “pequena múmia”, em referência aos adversários
de Salvador Allende, então presidente do Chile, cujas reformas o casal apoia
a distância.
As conexões entre a situação política do planeta e seus reflexos no
cotidiano embaralham a percepção de Anna (Nina Kervel-Bey) e de seu
irmão caçula (Benjamin Feuillet) em A Culpa É do Fidel! (2007), espirituosa
estreia na ficção da documentarista Julie Gavras, filha do diretor Costa-
Gavras (de quem foi assistente no controvertido Amém, que denuncia aliança
entre o Vaticano e os nazistas).
Uma das principais referências do cinema político contemporâneo,
diretor também de filmes como Z (1969), A Confissão (1970) e Estado de
Sítio (1972), Costa-Gavras explorou o golpe militar que derrubou Allende em
Desaparecido, um Grande Mistério (1982). O tom adotado por Julie a
aproxima mais, no entanto, de outra representação do mesmo período, o
longa-metragem chileno Machuca (2004), de Andrés Wood, em que o
conturbado cenário político do período também é visto da perspectiva
infantil.
Em A Culpa É do Fidel!, pai (Stefano Accorsi, de Capitães de Abril, que
reconstitui a queda da ditadura de Antonio Salazar em Portugal) e mãe (Julie
Depardieu, filha do também ator Gérard Depardieu) vivem diante dos filhos
os dilemas de quem se preocupava, naquele momento, em intervir de alguma
forma na sociedade. Baseada em romance de Domitilla Calamai, a história
contada por Julie sugere que esse espírito de solidariedade e de mobilização
talvez seja o maior legado que se possa transmitir.
A Culpa É do Fidel! (La Faute à Fidel!) — França, 2007, 99 min. Direção: Julie Gavras. Roteiro: Julie Gavras, com a colaboração de Arnaud Cathrine, baseado no romance Tutta Colpa di Fidel,
de Domitilla Calamai. Com Nina Kervel-Bey, Julie Depardieu, Stefano Accorsi, Benjamin Feuillet, Martine Chevallier. Distribuição em DVD: Videofilmes.

(Publicado em Educação 154, fevereiro de 2010)


Deixa Ela Entrar
Lat den rätte komma in
Suécia, 2008
Direção: Tomas Alfredson

Inúmeros filmes já se empenharam em recriar as características


psicológicas muito peculiares do universo infantojuvenil. Ao fazer isso,
enfrentaram dificuldades naturais para construir personagens que pareçam
verdadeiros ao espectador, bem como para encontrar atores jovens que
fossem capazes de interpretar esses personagens de acordo com as
complexidades do roteiro. Alguns desses filmes se ocuparam, como assunto
principal ou secundário, da presença do bullying nas relações entre pré-
adolescentes.
A Princesinha (1995), baseado em romance de Frances Hodgson Burnett
(a mesma autora de O Jardim Secreto), Ponte para Terabítia (2007), Sedução
(2009) e a série Diário de um Banana (2010/2012) estão entre os diversos
exemplos de filmes que tratam, com drama ou humor, do bullying escolar.
Em Infâmia (1961), baseado em peça de Lillian Hellman, temos uma
variação provocante: as vítimas do bullying são professoras.
Nenhum deles, contudo, foi capaz de uma abordagem tão original de
meninos, de meninas e dos tormentos do bullying escolar quanto a de Deixa
Ela Entrar (2008). Pena que muitos pais e educadores tenham deixado de
conhecê-lo por preconceito cinematográfico, ao descobrir que é um filme de
terror e julgar que se trata de um gênero "menor". Embora seja um drama
com muito sangue, esse elemento está plenamente justificado pela trama. Não
há gratuidade ou espetacularização da violência. Mas atenção: não confunda
com a versão norte-americana do mesmo romance, Deixe-me Entrar (2010).
O diretor Tomas Alfredson (O Espião que Sabia Demais) e o roteirista
John Ajvide Lindqvist (que adaptou o romance homônimo de sua autoria, já
publicado no Brasil) investem no lirismo das situações — sempre debaixo de
muito frio, com neve fotogênica — e no tratamento poético da solidão ao
contar a história de amor e amizade entre um frágil menino de 12 anos,
aterrorizado por colegas de escola, e uma nova vizinha da mesma idade, um
tanto misteriosa. A relação entre os dois pode lembrar inicialmente a de
outros filmes, mas se revela, com o andamento da trama, muito original. E
verdadeira, mesmo com os ingredientes de fantasia.
Deixa Ela Entrar (Lat den rätte komma in) — Suécia, 2008, 115 min. Direção: Tomas Alfredson. Roteiro: John Ajvide Lindqvist, baseado em romance de sua autoria. Com Kare Hedebrant, Lina
Leandersson, Per Ragnar, Henrik Dahl. Distribuição em DVD: Livraria Cultura/Filmes da Mostra.

(Publicado em Educação 191, março de 2013)


Depois de Maio
Après Mai
França, 2012
Direção: Olivier Assayas

Na Dinamarca, na Noruega e na Suécia, a produção francesa Depois de


Maio (2012) recebeu o título "Depois da revolução". Nos EUA e na Itália, foi
batizada como "Algo no ar". Essas duas variações são próximas à essência do
filme, ainda que tomem as liberdades traidoras de toda tradução. De fato, um
espírito revolucionário — o das revoltas estudantis de 1968 — insiste em
contaminar (no melhor sentido do termo) a atmosfera que envolve os
personagens da trama, ambientada em 1971, em uma pequena cidade da
França.
Estudantes secundaristas que militam em organizações de esquerda, eles
participam de protestos fortemente reprimidos pelas autoridades e mantêm a
escola — a rigor, toda a cidade — em um estado de tensão permanente, como
se a batalha decisiva de suas vidas fosse travada naquele momento. Batalha
que, descobrem eles, tem duas frentes: a mais aparente, na arena pública,
envolve o exercício da política; a outra, de fórum íntimo, envolve um
aprendizado talvez mais difícil e delicado, o dos sentimentos, que conduz à
vida adulta.
O diretor e roteirista Olivier Assayas tinha 16 anos em 1971. Filho de
pai francês — um roteirista de cinema e TV — e mãe húngara, Olivier
Assayas nasceu em Paris e exerceu a crítica de cinema em paralelo à carreira
como cineasta. Dirigiu episódios dos longas coletivos Paris, Eu te Amo
(2006) e Cada Um com seu Cinema (2007) antes da consagração
internacional com o drama familiar Horas de Verão (2008) e com a
minissérie de TV Carlos (2010), sobre o terrorista venezuelano conhecido
como "O Chacal".
Depois de Maio trabalha elementos autobiográficos em uma cuidadosa
reconstituição de época. Não se deixa levar, contudo, pela frieza da busca a
detalhes que lhe atribuam "verdade" histórica. Ao contrário: sua afetuosa
construção dos jovens personagens — e dos pequenos dramas que
protagonizam — procura capturar subjetivamente os contornos afetivos de
uma geração para a qual a revolução esteve muito perto e, ao mesmo tempo,
tão distante.
Depois de Maio (Après Mai) — França, 2012, 122 min. Direção e roteiro: Olivier Assayas. Com Clément Métayer, Lola Créton, Felix Armand, Carole Combes. Distribuição em DVD:
Imovision.

(Publicado em Educação 198, outubro de 2013)


Dezesseis Luas
Beautiful Creatures
EUA, 2013
Direção: Richard LaGravenese

A franquia Crepúsculo, baseada em série de romances para "jovens


adultos" da norte-americana Stephenie Meyer, apontou no cinema para o
potencial representado hoje por histórias que combinam elementos
românticos e sobrenaturais — atraentes, em especial, para o público feminino
na faixa dos 15 aos 30 anos. Lançados de 2008 a 2012, os cinco longas-
metragens sobre a jovem Bella e o vampiro Edward, às voltas com inúmeras
dificuldades para ficarem juntos, arrecadaram US$ 3,34 bilhões apenas nos
cinemas.
Os produtores de Dezesseis Luas (2013) tinham a esperança de atingir o
mesmo público-alvo, mas não foram felizes. Em todo o mundo, o filme não
chegou a US$ 60 milhões de bilheteria. É possível que, entre os diversos
fatores para o relativo fracasso, esteja uma pequena dose de ousadia: os
personagens adolescentes são tratados com respeito e os dois protagonistas da
história consideram a literatura uma parte importante das suas vidas — há
vários diálogos, por exemplo, sobre os escritores Kurt Vonnegut Jr.
(Matadouro 5) e Charles Bukowski (O Amor É um Cão dos Diabos).
Na escola onde estudam os personagens, a comunidade impõe aos
professores uma lista de livros proibidos. São obras que, na avaliação dos
pais, podem levar seus filhos a pensar o que não devem. Um dos títulos
mencionados é um clássico já adaptado para o cinema: O Sol é para Todos,
romance de Harper Lee. Segundo uma professora, que indica esse livro (para
surpresa dos alunos), ele acabou de sair da "lista negra".
Como ocorre também em Crespúsculo, os protagonistas de Dezesseis
Luas se conhecem no ensino médio, fornecendo divertidas (e ácidas)
representações da escola pela visão de adolescentes. Ethan (Alden
Ehrenreich) vive desde que nasceu em uma pequena cidade ultraconservadora
dos EUA. Lena (Alice Englert) é uma forasteira que pertence a uma família
temida pelos moradores. Os dois encarnam o espírito de rebeldia jovem que é
sufocado em ambientes repressores, assim mantidos por pais e... professores.
Para o casal, a saída está na arte, simbolizada pela literatura, que abre portas
para a liberdade — ainda que esse talvez não seja um discurso muito popular
entre adolescentes conformistas.
Ethan e Lena, os personagens-leitores de Dezesseis Luas, nasceram... na
literatura. Eles são os protagonistas da série Beautiful Creatures, com quatro
romances para "jovens adultos" que foram grande sucesso nos EUA (e
traduzidos em cerca de 50 países). As autoras são as norte-americanas Kami
Garcia e Margaret Stohl, que não participaram da adaptação para cinema,
escrita e dirigida por Richard LaGravenese (Escritores da Liberdade).
Dezesseis Luas (Beautiful Creatures) — EUA, 2013, 124 min. Direção: Richard LaGravenese. Roteiro: Richard LaGravenese, baseado em romance de Kami Garcia e Margaret Stohl. Com Alden
Ehrenreich, Alice Englert, Jeremy Irons, Viola Davis, Emmy Rossum, Emma Thompson. Distribuição em DVD e Blu-ray: Paris.

(Publicado em Educação 193, maio de 2013)


Um Dia Muito Especial
Una Giornata Particolare
Itália/Canadá, 1977
Direção: Ettore Scola

O cinema italiano nem mesmo aguardou o final da II Guerra para


examinar até onde o fascismo conduziu o país. Roma, Cidade Aberta (1945),
de Roberto Rossellini, um dos maiores clássicos do movimento neorrealista,
começou a ser produzido ainda com tropas alemãs em solo italiano e foi
lançado poucos meses depois do final do conflito, com imenso sucesso
internacional.
Sempre alinhado ao pensamento de esquerda, o diretor e roteirista Ettore
Scola voltou recentemente ao período fascista em Concorrência Desleal
(2001), sobre a perseguição aos judeus no país. Seu filme mais notável sobre
o tema, no entanto, é Um Dia Muito Especial (1977), cuja trama se ambienta
em 6 de maio de 1938, em Roma.
Na ocasião, o primeiro-ministro Benito Mussolini recebeu a visita do
chanceler alemão Adolf Hitler. O evento consolidou a aliança que, a partir de
1940, com a declaração de guerra da Itália à França e ao Reino Unido,
pareceu durante os dois anos seguintes em condições de dominar a Europa e
o Norte da África. Eram tempos em que os sonhos de conquista territorial
conviviam com a intolerância política e comportamental.
Scola não se detém, contudo, nas grandes figuras da política. Toda a
ação se passa em um apartamento de Roma, onde uma dona de casa (Sophia
Loren) cujo marido é um militante fascista convive por algumas horas com
um de seus vizinhos, um radialista homossexual (Marcello Mastroianni).
Embora suas vidas sejam muito diferentes, eles se esforçam para entender os
dramas um do outro.
Um Dia Muito Especial funciona como exemplo, no cinema, do
conceito de história da vida privada: enquanto os destinos de diversos países
e de seus habitantes eram traçados nos gabinetes do poder, a vida do cidadão
comum seguia, à margem dos grandes acontecimentos, mas também
impactada por eles. Raras vezes um período histórico coube tão bem dentro
de um apartamento.
Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare) — Itália/Canadá, 1977, 105 min. Direção: Ettore Scola. Roteiro: Ruggero Maccari e Ettore Scola, com a colaboração de Maurizio Constanzo.
Com Sophia Loren, Marcello Mastroianni, John Vernon, Françoise Berd, Patrizia Basso. Distribuição em DVD: Flashstar/Focus.
(Publicado em Educação 140, dezembro de 2008)
Um Diretor Contra Todos
The Principal
EUA, 1987
Direção: Christopher Cain

“Basta!”. Esse é o lema de Rick Latimer (James Belushi), o novo diretor


de Brandel, uma das mais problemáticas escolas públicas de Oakland, cidade
de 400 mil habitantes na região metropolitana da Baía de São Francisco, na
Califórnia (EUA), com sete milhões de habitantes espalhados por 10
municípios. Estão ali todos os problemas dos grandes centros urbanos, que se
refletem também nas condições de ensino: as boas escolas, cobiçadas por
professores e demais funcionários, ficam nos bairros nobres, “brancos”; nas
regiões mais pobres, com alta concentração de negros e hispânicos,
localizam-se as “escolas-inferno”.
Brandel é uma delas. O “basta!” de Latimer, personagem de Um Diretor
Contra Todos, volta-se contra uma extensa lista de delitos praticados pelos
alunos com a certeza da impunidade. Começa-se por cabular aulas e termina-
se com roubos, estupros, venda e consumo de drogas. Como nenhuma
autoridade até então teve a coragem de tomar alguma atitude, os alunos
infratores sentem-se donos da escola. Aos demais, resta o silêncio. Os
professores lavam as mãos. Latimer tem duas opções: integrar-se ao cenário,
apenas fingindo exercer o cargo de diretor, ou arregaçar as mangas e
enfrentar a situação.
Ao escolher a segunda alternativa, ele implanta um projeto de
“tolerância zero”, muito semelhante ao desenvolvido em Nova York pelo ex-
prefeito republicano Rudolph Giuliani. A ideia-base era a de que todos os
crimes e infrações, grandes ou pequenos, devem ser igualmente reprimidos
com o uso da força e da intimidação policial. É a filosofia de “acabar com o
mal pela raiz”, na suposição de que ninguém começa no crime praticando
assassinatos, e sim batendo carteiras ou furtando produtos de uma loja. Algo
na linha do “prenda um trombadinha hoje e evite o surgimento de um
assassino amanhã”.
A estratégia de Latimer começa justamente pelo aumento da equipe de
segurança da escola e pela repressão a práticas mais inocentes, como fugir da
sala de aula (e mesmo assim ser aprovado) e fumar nos corredores. E atinge,
no fim da linha, o controle exercido ali dentro por um aluno-traficante
(Michael Wright). A maioria dos professores omite-se, o que leva o diretor a
agir quase solitariamente. Um dos poucos a vestir a camisa das reformas é
um ex-aluno que, depois de uma carreira frustrada como jogador de futebol,
trabalha agora como segurança (Louis Gossett Jr.).
Relançado oportunamente em DVD, Um Diretor Contra Todos tem os
cacoetes da cultura individualista americana. Latimer começa o filme como
um beberrão que ainda não superou o divórcio e termina como herói porque
decidiu sozinho, com base em questões meramente pessoais, fazer o caminho
da purificação. Apesar disso, o filme reúne material suficiente para o debate
em torno dos caminhos de enfrentamento da violência nas escolas, desafio
que os EUA, embora em escala muito diferente, compartilha com o Brasil.
Um Diretor Contra Todos (The Principal) — EUA, 1987, 109 min. Direção: Christopher Cain. Roteiro: Frank Deese. Com James Belushi, Louis Gossett Jr., Rae Dawn Chong, Michael Wright,
J.J. Cohen, Kelly Jo Minter, Esai Morales, Troy Winbush. Distribuição em DVD: Sony.

(Publicado em Educação 70, fevereiro de 2003)


O Doce Amanhã
The Sweet Hereafter
Canadá, 1997
Direção: Atom Egoyan

Saudade é “arrumar o quarto do filho que já morreu”, diz a letra de


Pedaço de Mim, canção composta por Chico Buarque para a peça Ópera do
Malandro. Multiplique por 14 essa saudade e você estará em Sam Dent,
pequena cidade na fronteira dos EUA com o Canadá. Ali, um acidente com
um ônibus escolar provoca a morte de 14 crianças. O efeito sobre a
comunidade é devastador. Sobrevive-se a uma tragédia como essa?
Em termos. Essa parece ser a resposta embutida em O Doce Amanhã,
que valeu ao cineasta canadense Atom Egoyan o Grande Prêmio do Júri e os
prêmios da crítica internacional e do júri ecumênico no Festival de Cannes de
1997, além de uma indicação ao Oscar de melhor direção. Os personagens do
filme aprendem que a sobrevivência espiritual tem um pré-requisito: aceitar
em paz as perdas impostas pelo destino. Quem ultrapassa essa etapa está apto
a encarar a próxima – despertar em um mundo novo, necessariamente
governado por outras regras.
O romance homônimo de Russell Banks, que inspirou o filme, teve
como ponto de partida um caso verídico, ocorrido no estado do Texas (EUA),
no final dos anos 1980. No livro, o acidente e suas consequências são
reconstituídos de acordo com a ótica de quatro personagens, cujos relatos se
sucedem. Elogiada pelo autor, a adaptação de Egoyan vai e volta no tempo, e
tem a ação conduzida por um advogado, Mitchell Stephens (Ian Holm), que
viaja à cidade para tentar convencer as famílias das vítimas a responsabilizar
alguém pela tragédia – as autoridades locais, o fabricante do veículo, seja
quem for.
Ainda mergulhados na dor, alguns pais reagem mal à proposta. Mas há
quem ceda aos bons argumentos de Stephens, e os motivos incluem tanto o
desejo inconsciente de reaver as crianças quanto a ambição, bem consciente,
de embolsar o dinheiro de uma possível indenização. O sinal verde dado por
essas famílias para a investigação do caso permite que a ferida permaneça
aberta por mais algum tempo, criando pequenas surpresas.
Uma tragédia familiar também atormenta o advogado: sua filha, que na
infância sobreviveu a um envenenamento, enfrenta há muitos anos problemas
com drogas. O empenho do personagem na cruzada pela justiça em relação
ao acidente parece alimentar-se de sua indisfarçável dor pessoal. A imagem
suave que abre o filme – um casal dormindo com uma criança em uma
cabana – ganha significado à medida que se compreende de onde vem tanta
amargura.
Os diálogos econômicos reforçam a ambiguidade de muitas situações,
deixando por conta do espectador a tarefa de interpretá-las e, em alguns
casos, de associá-las. Visto como espécie de quebra-cabeça psicológico, O
Doce Amanhã pode agradar até quem busque nele o prazer de acompanhar
apenas a elucidação de um bom mistério – quem, afinal, é o culpado pelo
acidente com o ônibus escolar?
É evidente que o filme se presta a leituras mais ricas, perto das quais é
absolutamente secundária a questão sobre quem deve pagar pela tragédia, se é
possível falar nesses termos. De certa forma, o preço já foi repartido por toda
a comunidade, dividida basicamente em dois grupos: os que ainda não se
conformaram com a perda, e os que lutam serenamente para superá-la, já
voltados para o doloroso processo de reerguimento emocional, sem o qual
não há como – nem por que – enxergar amanhã.
O Doce Amanhã (The Sweet Hereafter) – Canadá, 1997, 112 min. Direção e roteiro: Atom Egoyan, baseado em romance de Russell Banks. Com Ian Holm, Sarah Polley, Arsinée Khanjian,
Caerthan Banks. Distribuição em DVD: Versátil.

(Publicado em Educação 20, dezembro de 1998)


Duelo de Titãs
Remember the Titans
EUA, 2000
Direção: Boaz Yakin

Nos EUA, costuma-se aplicar o termo feel good movie (filme para
sentir-se bem) a obras engrandecedoras destinadas a provar que os obstáculos
sempre podem ser superados e que a vida, apesar de tudo, vale a pena. A
Disney especializou-se nessa fórmula, que fornece a base para uma de suas
produções mais recentes, Duelo de Titãs. Pode-se argumentar, neste caso, que
as mensagens edificantes foram extraídas da vida real: o filme baseia-se em
história verídica ocorrida em Alexandria, pequena cidade da Virgínia, no
início dos anos 1970.
O cenário é uma escola secundária que, pela primeira vez, abre as portas
para alunos negros. Como se a atitude já não bastasse para incomodar o
conservadorismo local, deixando a maioria de pais e alunos brancos com os
nervos à flor da pele, um outro ato, de forte caráter simbólico, desencadeia
enorme resistência, ainda que em parte dissimulada: o treinador-chefe da
equipe de futebol americano do colégio, Bill Yoast, admirado por todos, é
substituído por um negro, Herman Boone, de quem se torna um mero
auxiliar. Diante da tradição esportiva nas escolas americanas, a mudança
equivale a mexer em vespeiro.
Boone (Denzel Washington, de Um Grito de Liberdade, Malcolm X e
Hurricane) muda-se com a família para a cidade, mas é tratado como
alienígena e, no auge da hostilidade, chega a ser ameaçado em sua própria
casa. Apesar disso, o filme não o trata como mártir. Yoast (Will Patton), por
sua vez, também não transforma em vilania o antagonismo criado
naturalmente em relação a seu substituto. São homens comuns que
prefeririam não viver aquelas situações, mas que são obrigados a se virar para
ultrapassá-las e levar adiante um objetivo comum, tornar vencedor os Titãs, o
time da escola.
Tema caro à sociedade norte-americana, sobretudo no período recriado
pelo filme, o racismo aparece aqui simplificado. Seus efeitos perniciosos
sobre o tecido social e sobre o amadurecimento psicológico dos estudantes
estão suavizados, e a maneira encontrada para que a comunidade atinja o
equilíbrio da convivência pacífica lembra a facilidade com que as coisas se
ajeitam em certas fábulas infantojuvenis. O problema, todos sabem, tende a
ser mais complexo no mundo real, mas ainda assim Duelo de Titãs pode usar
em sua defesa o fato de que se propõe a ser um feel good movie – sua
prioridade é fazer com que o espectador sinta-se bem ao final.
As simplificações também não impedem que se olhe para a história
como mais um exemplo de inserção, no ambiente estudantil, de questões
sociopolíticas. A escola não é uma ilha isolada e, especialmente em períodos
de ruptura ou enfrentamento, costuma reproduzir em salas de aula, corredores
e quadras as coordenadas que organizam a vida fora dali. Mas nem sempre, é
obrigatório lembrar, o destino dá a sua mãozinha valiosa em direção ao final
feliz como em Duelo de Titãs.
Duelo de Titãs (Remember the Titans) — EUA, 2000, 113 min. Direção: Boaz Yakin. Roteiro: Gregory Allen Howard. Com Denzel Washington, Will Patton, Wood Harris, Ryan Hurst, Donald
Adeosun Faison, Craig Kirkwood, Ethan Suplee, Kip Pardue. Distribuição em DVD: Disney.

(Publicado em Educação 53, setembro de 2001)


Dúvida
Doubt
EUA, 2008
Direção: John Patrick Shanley

Obcecada por controlar a tudo e a todos, a irmã Aloysius Beauvier dirige


um colégio católico no Bronx, bairro de Nova York, nos anos 1960. Embora
não tenha visto nada que confirme sua tese ou disponha de alguma prova
conclusiva, ela está convicta de que o padre Brendan Flynn, responsável pela
paróquia à qual a escola está ligada, cometeu assédio contra um aluno, o
primeiro negro aceito pela instituição.
As suspeitas, que ela encara como certezas, vão além desse episódio; na
sua avaliação, o currículo limpo do padre esconde outros pecados, e ela o
pressiona para admiti-los. Dúvida (2008) explora as consequências desse
embate, que funciona como ilustração da dificuldade em perseguir a
“verdade” (mesmo aquela mais palpável, a factual) e dos riscos de viver com
muitas certezas.
Escrito e dirigido pelo dramaturgo John Patrick Shanley (Feitiço da
Lua) com base em peça de sua autoria, o filme traz Meryl Streep no papel da
irmã Beauvier e Philip Seymour Hoffman (Capote) como o padre Flynn, mas
a personagem mais importante para a trama talvez seja a jovem irmã James
(interpretada por Amy Adams), professora que assiste a essa luta intestina e
silenciosa no colégio sem saber em quem acreditar.
A diretora estaria certa, lutando em nome da justiça, ou equivocada,
provocando danos irreparáveis a diversas pessoas, inclusive ao aluno
envolvido no episódio? A sombra da dúvida acompanha todo o filme, com o
espectador em posição semelhante à da irmã James, convidado a refletir o
tempo todo sobre os riscos e desafios que o exercício do poder escolar (e não
só ele, claro) oferece cotidianamente.
Dúvida (Doubt) — EUA, 2008, 104 min. Direção e roteiro: John Patrick Shanley. Com Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Viola Davis, Alice Drummond. Distribuição em
DVD e Blu-ray: Disney

(Publicado em Educação 147, julho de 2009)


As 200 Crianças do Dr. Korczak
Korczak
Polônia, 1990
Direção: Andrzej Wajda

Personalidades com vidas intensas costumam representar um abacaxi


para quem se dispõe a biografá-las no cinema. Duas horas, para falar de gente
assim, é quase nada. Nessas situações, opta-se muitas vezes por recortes
deformantes: conta-se apenas isso ou aquilo do personagem, de modo que
resta ao espectador contemplar um retrato três por quatro, em geral fora de
foco. Mas essa regra tem suas exceções. As 200 Crianças do Dr. Korczak é
uma delas.
Escrita em 1981 pela polonesa Agnieszka Holland (diretora de Europa,
Europa e O Jardim Secreto), a primeira versão do roteiro já duelava com a
dificuldade de resumir a história de Korczak, que havia sido levada à tela em
1973 pelo também polonês Aleksander Ford em O Mártir. Filmado na
íntegra, o roteiro original de Holland levaria a uma produção de três ou
quatro horas. Ficou na gaveta por quase dez anos e de lá saiu graças ao
empenho de Andrzej Wajda, o cineasta polonês de maior prestígio em todo o
mundo, autor de clássicos como Cinzas e Diamantes (1958) e O Homem de
Ferro (1981).
Wajda optou por rodar o trabalho em preto-e-branco, com a mesma
simplicidade narrativa de seus primeiros filmes, e por se concentrar somente
nos últimos seis anos de vida de Korczak. Começa em 1936, quando ele
recebe o comunicado de que seu programa de rádio, O Velho Doutor, fora
suspenso. Termina em 1942, com o embarque no trem que o conduziu à
morte na câmara de gás em Treblinka, ao lado de assistentes e de 200
crianças. Entre um episódio e outro, vemos Korczak desdobrando-se para
manter em pé seu orfanato, no gueto de Varsóvia.
Mesmo sem mostrar o que o médico fizera nos quase 60 anos vividos
antes de 1936, o filme pinta um retrato de traços fortes, inconfundíveis. Na
situação-limite enfrentada por Korczak no gueto, revelam-se o caráter, as
convicções e os medos do personagem. “Já pensou em se suicidar?”,
pergunta-lhe alguém, num momento de angústia. “Sim, muitas vezes”,
responde, com a sinceridade habitual. No Korczak daqueles seis anos é
possível condensar, portanto, o homem de uma vida inteira.
Além de utilizar com eficiência esse recurso dramático, o filme vale-se
ainda dos serviços de um ator excepcional, Wojciech Pszoniak (o
Robespierre de Danton – O Processo da Revolução, também de Wajda).
Pszoniak tinha dúvidas sobre o apelo cinematográfico da história de Korczak,
cuja obra conhecia desde a infância. Ao final do trabalho, agradecido pela
oportunidade, diz ter identificado dois Korczak distintos: o do mundo adulto,
difícil e exigente, e o das crianças, dono de um “amor metafísico”.
Essa compreensão do personagem contribuiu para que a interpretação
fosse humana e convincente. O cuidado no tratamento contido da emoção é
exemplar, e reflete-se também no uso discreto da música, composta por
Wojciech Kilar, que só entra em cena para valer na sequência final.
“Alguns gostam de pôquer, outros de mulheres e turfe, e eu gosto de
crianças”, diz Korczak logo no início. “Não faço isso por elas, mas por mim.”
E, ao explicar por que ele e seus assistentes podiam ser julgados no “tribunal”
do orfanato, saiu-se com essa: “O educador é o maior tirano, e assim as
crianças aprendem a se defender do autoritarismo”. A derrota em sua
derradeira batalha, contra a barbárie nazista, rendeu-lhe no fundo sua maior
vitória, a da permanência de seu exemplo e de seus ideais, que o filme de
Wajda ajuda a celebrar.
As 200 Crianças do Dr. Korczak (Korczak) – Polônia, 1990, 118 min. Direção: Andrzej Wajda. Roteiro: Agnieszka Holland. Com Wojciech Pszoniak, Ewa Dalkowska, Teresa Budzisz-
Krzyzanowska. Distribuição em VHS: F. J. Lucas.

(Publicado em Educação 21, janeiro de 1999)


Educação
An Education
Inglaterra, 2009
Direção: Lone Scherfig

Desde que se tornou astro do mercado literário internacional, o inglês


Nick Hornby habituou-se a ver seus livros adaptados para o cinema. Febre de
Bola deu origem a duas versões — a britânica em 1997, com roteiro assinado
pelo próprio escritor, e a norte-americana em 2005 (com o título brasileiro de
Amor em Jogo). Alta Fidelidade e Um Grande Garoto tiveram melhor sorte,
dando origem a filmes de sucesso comercial lançados, respectivamente, em
2000 e 2002.
Hornby viu-se diante de desafio inédito em Educação (2009): adaptar
para cinema um texto alheio, o relato autobiográfico da jornalista inglesa
Lynn Barber, publicado originalmente na revista literária Granta. Ao contar
seu relacionamento com um homem mais velho, no início dos anos 1960,
Barber lembrava como quase abandonou os estudos e o sonho de fazer
universidade para se casar.
"Havia ali personagens memoráveis, uma noção vívida de tempo e
espaço — uma Inglaterra bem à beira de mudanças radicais —, uma
incomum mistura de extremo humor e profunda tristeza, e — o que é
interessante — coisas originais para dizer sobre classe social, ambição e
relacionamento entre pais e filhos", explica Hornby em um dos textos que
acompanham o volume Educação - O Roteiro (Rocco).
A adaptação expõe os motivos pelos quais uma jovem inteligente (Carey
Mulligan, indicada ao Oscar de melhor atriz pela atuação) se sente atraída por
um homem (Peter Sarsgaard) que lhe acena com prazeres adultos. O fascínio
por ele é tamanho que a deixa cega para seus planos de futuro e,
principalmente, para a possibilidade de emancipação por meio do estudo —
algo que continua a valer, na Inglaterra ou no Brasil, e que o filme defende
com vigor.
Educação (An Education) — Inglaterra, 2009, 100 min. Direção: Lone Scherfig. Roteiro: Nick Hornby, baseado em memórias de Lynn Barber. Com Carey Mulligan, Peter Sarsgaard, Alfred
Molina, Olivia Williams. Distribuição em DVD e Blu-ray: Sony.

(Publicado em Educação 160, agosto de 2010)


Elefante
Elephant
EUA, 2003
Direção: Gus Van Sant

O massacre da Columbine High School, em Littleton (Colorado), foi um


dos oito incidentes com vítimas fatais registrados em escolas norte-
americanas entre 1997 e 1999. A intensa discussão em torno dos motivos que
levaram crianças e adolescentes a matar colegas, professores e funcionários
mobilizou o país e deu origem ao documentário Tiros em Columbine (2002),
de Michael Moore, que busca explicações para a violência nos EUA ao
investigar a “cultura do medo” e o acesso facilitado a armas.
Elefante é a contrapartida ficcional a essa tentativa de compreender
fenômeno cujas responsabilidades são divididas entre família, Estado,
sistema educacional e meios de comunicação de massa, entre outros agentes.
Diferentemente do que se propõe a fazer Moore, polemista que se tornou
popular por sua feroz oposição ao então presidente George W. Bush, o diretor
e roteirista Gus Van Sant oferece visão “interna” do problema e recria, com
espírito contemplativo, um dia comum na vida de estudantes de ensino
médio.
Ambientes e circunstâncias educacionais já haviam sido tema de Van
Sant em Gênio Indomável (97), sobre um jovem com talento extraordinário
para a matemática, e Encontrando Forrester (2000), sobre um escritor
recluso que ajuda um adolescente a superar a transferência de escola e de
meio social. Em Elefante, não há apenas um ou dois protagonistas; uma
dezena de adolescentes é apresentada ao público, com importância dramática
equivalente, em longos planos-sequência (tomadas sem cortes) que exploram
corredores, salas de aula, laboratórios, refeitório e banheiros (as filmagens
utilizaram escola recém-desativada em Portland, Oregon).
O mosaico inclui o filho de um alcoólatra (John Robinson), um
aficionado por fotografia (Elias McConnell), um esportista (Nathan Tyson),
sua namorada (Carrie Finklea) e dois amigos que planejam transformar o dia
em ocasião especial (Alex Frost e Eric Deulen) — os únicos mostrados
também em casa. As imagens são belas, mas frias, sugerindo distância
(sobretudo entre os adolescentes e os adultos, sejam eles pais ou professores)
e um certo vazio; escola e sociedade são palco de pequenas, mas reiteradas,
manifestações de indiferença e incompreensão.
O título foi emprestado de um documentário inglês sobre os conflitos
entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte, tensão que equivaleria a
um elefante “invisível” na sala de estar. Van Sant diz que foi atraído também
pela ideia de uma parábola budista em que um grupo de cegos conhece
apenas as partes do animal. Um deles acredita se tratar de uma árvore (a
pata), outro reconhece uma cobra (a tromba) e assim sucessivamente. O
conjunto escapa a todos. Elefante convida à experiência de observar
atentamente os jovens para ao menos identificar as variantes que interferem
na sua compreensão e expectativa do mundo.
Elefante (Elephant) — EUA, 2003, 81 min. Direção e roteiro: Gus Van Sant. Com John Robinson, Alex Frost, Elias McConnell, Eric Deulen, Nathan Tyson, Carrie Finklea, Kristen Hicks, Alicia
Miles, Jordan Taylor. Distribuição em DVD: Warner.

(Publicado em Educação 93, janeiro de 2005)


Elefante Branco
Elefante Blanco
Argentina/Espanha/França, 2012
Direção: Pablo Trapero

A trama da produção argentina Elefante Branco (2012) é ambientada na


região metropolitana de Buenos Aires, mas poderia se passar também nas
manchas urbanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador ou Recife. Aqui e lá,
a expressão usada no título tem o mesmo significado: uma obra pública que
consumiu pesados investimentos do Estado sem trazer benefícios para a
população, seja porque não havia demanda que a justificasse ou,
simplesmente, porque ela teima em não chegar ao fim.
No filme, o "elefante branco" é um hospital inacabado na periferia de
Buenos Aires, no coração de um assentamento popular que lembra as favelas
brasileiras. Em um cenário de descaso do Estado que lembra Cidade de Deus
(2002), boa parte do amparo aos moradores vem de padres católicos cuja
presença é apenas tolerada pelas milícias locais — que, por sua vez, vivem
em permanente conflito. Os padres se esforçam nos bastidores para que
cheguem os recursos necessários à conclusão do hospital, mas a tarefa é
inglória.
O papel de Julián, o padre que lidera a ação social no assentamento, é
interpretado por Ricardo Darín, que se tornou o rosto mais conhecido do
cinema argentino contemporâneo no exterior por sua presença em filmes
como Nove Rainhas (2000) e O Segredo dos seus Olhos (2009). O belga
Jérémie Renier (A Criança, O Silêncio de Lorna) faz o padre estrangeiro que
Julián quer ver como o seu sucessor.
O diretor e corroteirista Pablo Trapero procura combinar a preocupação
política, traduzida em uma cuidadosa exposição dos fatores que afetam a
população do assentamento, com uma dose de humanismo de fundo cristão,
transparente na atuação dos padres e de seus colaboradores. Em alguns
momentos, Elefante Branco chega perto de transformar esses personagens em
heróis. Mas, ao fim, escapa da armadilha ao apresentá-los como figuras
imperfeitas, que enfrentam angústias e dúvidas.
Um dos mais importantes diretores do cinema argentino contemporâneo,
Trapero privilegia temas sociais em seus filmes. A corrupção da polícia de
Buenos Aires, por exemplo, foi o tema de Do Outro Lado da Lei (2002).
Mundo Grua (1999) e Família Rodante (2004) são crônicas da classe
trabalhadora, enquanto Leonera (2008) denuncia a condição nas prisões e as
injustiças do sistema penal.
Elefante Branco (Elefante Blanco) — Argentina/Espanha/França, 2012, 105 min. Direção: Pablo Trapero. Roteiro: Alejandro Fadel, Martín Mauregui, Santiago Mitre e Pablo Trapero.
Distribuição em DVD e Blu-ray: Paris.

(Publicado em Educação 192, abril de 2013)


Eleição
Election
EUA, 1999
Direção: Alexander Payne

O ator Matthew Broderick virou um astro juvenil graças principalmente


ao sucesso de Curtindo a Vida Adoidado (1986), no qual interpreta um aluno
especializado em matar aulas. Por ironia, agora que a idade já lhe permite,
Broderick passou para o outro lado do balcão: é Jim McAllister, dedicado
professor de civismo, história e atualidades da George Washington Carver
High School, em Omaha (Estado de Nebraska). Ele vive maus bocados na
mão de seus alunos em Eleição.
Os problemas de McAllister – ou sr. M., como o chamam – não têm a
ver com a sala de aula, onde ele reina tranquilo, ensinando com visível
prazer. Fora dali, também alimenta uma boa imagem por causa de suas
atividades extracurriculares. “Era mais do que um trabalho”, explica ele. “Eu
fazia diferença. Integrava-me na vida dos alunos durante o período difícil da
puberdade. Preparava-os para as difíceis decisões morais e éticas da vida
adulta.”
O contraste entre essa maneira de encarar a profissão e o que virá em
seguida produz uma ironia terrível. No papel de coordenador do conselho
estudantil (o grêmio das escolas secundárias americanas), ele conduz uma
nova eleição. De início, apresenta-se uma única candidata a presidente, Tracy
Flick (Reese Witherspoon). A garota parece ter nascido para o cargo: é aluna
exemplar, dedica-se a várias atividades na escola e leva a sério o processo
eleitoral. Seu slogan é “vote hoje pelo amanhã”.
Ocorre que Tracy, justamente por tudo isso, é insuportável. Nada do que
faz, desde um simples “bom dia”, deixa de servir ao seu maior propósito, o de
“vencer na vida”, na melhor tradição norte-americana de que, não havendo
glórias para todos, só as conquista quem chega primeiro. É falsa, competitiva,
megalomaníaca. McAllister passa a ter enjoos só de pensar em vê-la como
presidente do conselho. Decide, então, interferir no processo e incentiva um
aluno popular (Chris Klein) a também sair candidato.
A partir daí, Eleição surpreende pelo modo inusitado e sarcástico de
tratar alguns temas vistos por lentes cor-de-rosa em filmes como Ao Mestre,
com Carinho (67) e Sociedade dos Poetas Mortos (89). Nesse aspecto,
lembra a comédia Três é Demais. A Carver High School não é um ambiente
idílico em que experiências enriquecedoras formam o caráter de seus alunos.
É uma reprodução in vitro do mundo selvagem que a cerca. McAllister paga
o preço de ser paternalista em uma sociedade pouco afeita a gentilezas e
abnegações.
Aqui, os valores do “sonho americano” estão a serviço de um pesadelo
que passa pelo sistema educacional. Tracy os personifica, fazendo a
caricatura de uma geração de monstros sociais. O filme tende a ficar ao lado
de McAllister – que erra, sim, mas a serviço do “bem” – na contenda. Toma o
cuidado, no entanto, de não declarar vencedores ou vencidos. A batalha que
mais importa, descobre no final o sr. M., é disputada dentro de nós.
Eleição (Election) — EUA, 1999, 102 min. Direção: Alexander Payne. Roteiro: Alexander Payne e Jim Taylor, baseado em romance de Tom Perrotta. Com Matthew Broderick, Reese
Witherspoon, Chris Klein, Jessica Campbell, Mark Harelik, Phil Reeves, Molly Hagan, Delany Driscoll. Distribuição em DVD: Paramount.

(Publicado em Educação 43, novembro de 2000)


Em um Mundo Melhor
Haevnen
Dinamarca/Suécia, 2010
Direção: Susanne Bier

Biutiful
Biutiful
México/Espanha, 2010
Direção: Alejandro González Iñárritu

Dona de menor prestígio no cenário internacional do que seu


conterrâneo Lars von Trier (o diretor de Dançando no Escuro, Dogville e
Melancolia), a dinamarquesa Susanne Bier vem se especializando em
melodramas que discutem temas delicados, como relações familiares
conflituosas, a matéria-prima para Brothers (2004) — refilmado nos EUA
como Entre Irmãos (2009) —, Depois do Casamento (2006) e Coisas que
Perdemos pelo Caminho (2007).
A família volta a ser o núcleo a partir do qual se desenvolvem os dramas
do longa-metragem mais bem-sucedido de Bier, vencedor do Oscar de filme
estrangeiro: Em um Mundo Melhor (2010), que conta histórias paralelas, na
Dinamarca e em um campo de refugidos na África, para examinar a
brutalização das relações no mundo contemporâneo.
Escrita por Anders Thomas Jensen (que assinou também o roteiro de
Brothers e Depois do Casamento), a história acompanha pai (interpretado por
Mikael Persbrandt) e filho adolescente (Markus Rygaard) envolvidos em
situações-limite. O primeiro, médico, trabalha durante parte do ano cuidando
das vítimas de uma região da África controlada por uma milícia; o segundo,
que vive na Dinamarca, sofre bullying na escola e se aproxima de um novo
aluno.
O ponto de partida é a ideia, corrente na Europa, de que a barbárie fica
muito longe. De fato, a parte africana da trama envolve um grau de
brutalidade chocante. O que o médico descobre ao voltar para casa, no
entanto, expressa uma indiferença pelo outro igualmente brutal, mesmo que
talvez menos sangrenta. O êxito internacional de Em um Mundo Melhor tem
a ver com a percepção de que, na sociedade de consumo, a desumanização
apenas adquire outra face.
Diversos outros filmes realizados nos anos 2000 tratam de um certo mal-
estar europeu contemporâneo, relacionado à distância entre a utopia do
continente unido, solidário e sem fronteiras, e a realidade que insiste muitas
vezes em dar mostras do contrário. A extensa relação inclui O Silêncio de
Lorna (2008), dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, e Bem-vindo (2009),
do francês Philippe Lioret, que abordam o duro tratamento aos imigrantes.
Um exemplar recente desse olhar mais rigoroso é Biutiful (2010).
Dirigido pelo mexicano Alejandro González Iñárritu (de Amores Brutos, 21
Gramas e Babel), o filme traz o espanhol Javier Bardem (indicado ao Oscar
por esse trabalho) no papel de um morador de Barcelona que sobrevive
graças a atividades ilícitas — e que carrega também o dom de se comunicar
com os mortos.
No âmbito familiar, o personagem precisa resolver uma série de
problemas — com os filhos, com a ex-mulher, com o irmão. As dificuldades
pessoais são amplificadas, contudo, por sua saúde debilitada e por razões de
ordem social, que envolvem imigrantes clandestinos submetidos a um
trabalho semiescravo. A trama de Biutiful lida com os subterrâneos de uma
Europa em crise econômica e moral.
Em um Mundo Melhor (Haevnen) — Dinamarca/Suécia, 2010, 113 min. Direção: Susanne Bier. Roteiro: Anders Thomas Jensen, baseado em argumento dele e de Susanne Bier, com a
colaboração de Per Nielsen. Com Mikael Persbrandt, Wil Johnson, Eddy Kimani, Emily Mulaya, Gabriel Muli. Distribuição em DVD e Blu-ray: California.

Biutiful (Biutiful) — México/Espanha, 2010, 148 min. Direção: Alejandro González Iñárritu. Roteiro: Nicolás Giacobone, Armando Bo e Alejandro González Iñárritu. Com Javier Bardem,
Maricel Álvarez, Hanaa Bouchaib, Guillermo Estrella. Distribuição em DVD e Blu-ray: Paris.

(Publicado em Educação 174, outubro de 2011)


O Encanto das Fadas
Fairy Tale: A True Story
Inglaterra, 1997
Direção: Charles Sturridge

Criador de Sherlock Holmes e do Dr. Watson, a mais famosa dupla de


investigadores na história da literatura, o escocês Arthur Conan Doyle já era
um escritor consagrado em 1920, quando lhe caíram nas mãos duas fotos
tiradas pelas primas Frances Griffiths e Elsie Wright. Pré-adolescentes, elas
moravam juntas em Yorkshire, na agradável casa dos pais de Elsie, próxima a
um riacho. Ali, as duas juravam ter visto fadas. Como “prova”, tomaram
emprestada uma máquina fotográfica e registraram a presença das pequenas
visitas – a Rainha Mabe, o Príncipe Malekin, Shaliko, Sib e sua turma.
Impressionado com as fotos, Conan Doyle emprestou seu prestígio à
divulgação da proeza. Frances e Elsie foram recebidas em Londres como as
responsáveis pela primeira “evidência científica” da existência de fadas.
Enquanto buscavam sinais de fraude, os jornais aproveitavam o apelo da
história para aumentar as vendas. Curiosamente, uma outra personalidade, de
quem Conan Doyle começaria a se aproximar por meio de cartas em 1920,
manteve um elegante ceticismo diante das fotos. Era o ilusionista Harry
Houdini, o mestre das fugas espetaculares.
O leitor inclinado a acreditar em Frances e Elsie, como o ex-médico
Conan Doyle, talvez preferisse não saber que, anos mais tarde, as primas
reconheceram ter forjado as “provas”. Esse epílogo torna o episódio ainda
mais rico e curioso, capaz de resumir um pouco do espírito de uma época em
que o conhecimento sobre o mundo alterava-se com uma velocidade difícil de
ser acompanhada pelo cidadão comum, e a ciência começava a demolir
antigas crenças, embora ainda não conseguisse preencher certas lacunas na
compreensão da realidade. O Encanto das Fadas procura recriar essa
atmosfera de mudança.
Adaptação dessa história verídica com traços extraordinários, o filme
mantém seus protagonistas, mas toma algumas liberdades. Além de Elsie
(Florence Hoath) e Frances (Elizabeth Earl), estão ali Conan Doyle (Peter
O’Toole, de Lawrence da Arábia), Houdini (Harvey Keitel, o Judas de A
Última Tentação de Cristo) e o filósofo Edward Gardner (Bill Nighy), da
Sociedade Teosófica, o primeiro a receber cópias das fotos. E também a
Rainha Mabe, o Príncipe Malekin, Shaliko... Ou seja: em vez de reconstituir a
fraude de maneira detetivesca, no que seria provavelmente um exercício de
vilanização das primas, optou-se por transformá-la em um conto de fadas.
A saída tem o evidente objetivo de aproximar a história do público
infantil, carregando de fantasia uma trama de tons realistas. O resultado, no
entanto, parece mais atraente para adultos. “Não há maior religião do que a
verdade”, pregava a Sociedade Teosófica, cujo nome deriva da busca de uma
“sabedoria divina”. Com seus seres diminutos que de vez em quando cruzam
silenciosamente a tela, O Encanto das Fadas propõe uma reflexão sobre qual
verdade está em jogo.
A de Elsie e Frances, por exemplo, é a de acreditar tanto em algo que
juram ver. Como essa crença não resiste à objetividade científica, as meninas
foram buscar ajuda na fotografia, considerada no início do século um valioso
instrumento da ciência. Muitos julgavam que ela pudesse revelar o que o
olhar humano era incapaz de perceber. Fadas, por que não? É uma ironia
deste final de século que a fotografia já não possa mais ser usada como prova
de quase nada, tamanhas as possibilidades de manipulação da imagem
oferecidas pelas novas tecnologias. Perde-se de vez a ingenuidade que O
Encanto das Fadas tenta reconstituir.
O Encanto das Fadas (Fairy Tale: A True Story) – Inglaterra, 1997, 97 min. Direção: Charles Sturridge. Roteiro: Ernie Contreras, baseado em argumento de Albert Ash, Tom McLoughlin e
Ernie Contreras. Com Florence Hoath, Elizabeth Earl, Paul McGann, Phoebe Nicholls, Bill Nighy, Bob Peck, Harvey Keitel, Peter O’Toole. Distribuição em DVD: Paris.

(Publicado em Educação 28, agosto de 1999)


Encontrando Forrester
Finding Forrester
EUA, 2000
Direção: Gus Van Sant

Na era das celebridades, em que o valor social de alguém é muitas vezes


medido pela sua projeção nos meios de comunicação e a atenção das
multidões concentra-se nas vidas de ricos e famosos, causa estranheza o
comportamento de alguns escritores norte-americanos que preferem
esconder-se, sem falar à imprensa ou fazer aparições públicas. O exemplo
mais célebre é o de Jerome David Salinger, autor de O Apanhador no Campo
de Centeio, um dos maiores best-sellers dos EUA no século 20.
Salinger isolou-se em um chalé de New Hampshire, na década de 1960,
e não publicou livros ou concedeu entrevistas até sua morte em 2010. Certa
vez, recebeu um repórter bisbilhoteiro com tiros de espingarda. Foi apelidado
de “a Greta Garbo da literatura” – referência à atriz sueca que abandonou
Hollywood no auge da carreira e preferiu viver incógnita em Nova York. O
personagem de James Earl Jones em O Campo dos Sonhos inspirou-se nele,
assim como o de Sean Connery em Encontrando Forrester.
No início do filme, ele é apenas o “homem da janela”, como os rapazes
da vizinhança o chamam. Mora em um apartamento no Bronx, bairro popular
de Nova York, e de lá não sai para nada, dedicando boa parte do tempo a
observar pássaros. Jamal (Rob Brown), um adolescente que concilia
pretensões literárias com um talento excepcional para o basquete, é o único a
romper o cordão de isolamento e aproximar-se do ermitão, para descobrir que
se trata de William Forrester, autor do “maior romance americano do século”.
A amizade peculiar que se desenvolve entre os dois coincide com uma
ruptura na vida de Jamal. Graças à sua habilidade nas quadras, ele ganha uma
bolsa de estudos em um colégio frequentado por filhos de milionários e de
famílias tradicionais. Ali, é recebido com desdém, menos por ser negro e
mais porque não o levam a sério como estudante. Um veterano professor de
literatura (F. Murray Abraham, o Salieri de Amadeus) é a maior pedra no seu
sapato, enquanto uma colega de classe (Anna Paquin, a menina de O Piano)
tenta ajudá-lo na travessia social.
Jamal oscila então entre o convívio com Forrester — que se transforma
em uma espécie de mentor e o incentiva não só a escrever, mas a adotar
certos valores na vida – e as adversidades enfrentadas na escola. Para reforçar
as diferenças entre os dois universos, o diretor Gus Van Sant (Gênio
Indomável) exagera na caracterização do professor como vilão. Arrogante e
inseguro, melindrado pela própria falta de talento, ele se torna uma caricatura
do mestre que todo estudante lamenta ter encontrado pela frente. Mesmo
assim, seu comportamento serve para que se discuta, entre outros temas, a
capacidade limitada que todo professor tem de compreender quem são e de
onde vêm seus alunos, bem como de antever o que o destino lhes reserva. Em
oposição à sua frieza profissional, é a atitude “amadora” e cúmplice de
Forrester que triunfa, inspiradora.
Encontrando Forrester (Finding Forrester) — EUA, 2000, 136 min. Direção: Gus Van Sant. Roteiro: Mike Rich. Com Sean Connery, Rob Brown, F. Murray Abraham, Anna Paquin, Busta
Rhymes, April Grace, Michael Pit, Michael Nouri. Distribuição em DVD: Sony.

(Publicado em Educação 55, novembro de 2001)


Entreatos - Lula a 30 Dias do Poder
Brasil, 2004
Direção: João Moreira Salles

Peões
Brasil, 2004
Direção: Eduardo Coutinho

Na eleição presidencial de 2002, o cineasta João Moreira Salles


(Notícias de uma Guerra Particular, Nelson Freire) desenvolveu
inicialmente o projeto de rodar dois filmes-irmãos, um sobre a campanha de
Lula e outro sobre a de José Serra. Dificuldades de diversas ordens levaram a
outra formatação para esses longas-metragens complementares: enquanto
Salles acompanharia Lula na reta final, o diretor Eduardo Coutinho (Santo
Forte, O Fim e o Princípio) investigaria por onde andavam metalúrgicos
próximos ao candidato do PT nos anos 1970 e 1980, mas que jamais entraram
na política.
A reunião dos dois principais documentaristas brasileiros em atividade
só poderia mesmo dar origem a um conjunto valioso de filmes que o tempo já
vem se encarregando de tornar ainda mais importante. Entreatos – Lula a 30
Dias do Poder (2004) terminou por registrar momentos privados de Lula e
equipe nas últimas semanas da campanha. Simultaneamente, os personagens
anônimos de Peões (2004) assistem de longe, na região do ABC e também no
Nordeste, ao ex-companheiro finalmente se aproximar do Palácio do
Planalto, em sua quarta tentativa.
Salles e seu experiente diretor de fotografia, Walter Carvalho
(correalizador de Cazuza), captaram mais de 200 horas de imagens. A
montagem final descarta cenas públicas, como discursos e carreatas, para se
concentrar apenas nos bastidores. Entre os destaques, reuniões com
assessores que se envolveriam mais tarde em escândalos e cenas do momento
em que Lula e a futura primeira-dama Marisa receberam a notícia da vitória.
O DVD traz, entre os extras, uma nova compilação de imagens, Atos – A
Campanha Pública de Lula.
Coutinho, por sua vez, executa mais um movimento integrado à sua obra
recente, voltada a ouvir o cidadão comum, muitas vezes dentro de casa (como
em Edifício Master). Primeiro, ele conta como funcionou a busca pelos
metalúrgicos que participaram das greves responsáveis por apresentar Lula ao
país. Ao encontrá-los, trata-os com a generosidade de quem os reconhece
como personagens da nossa história recente. Os depoimentos ajudam a
compreender melhor uma circunstância específica, a mobilização operária no
ABC ainda sob o regime militar, mas também contribuem para iluminar o
cenário social brasileiro das últimas três décadas.
Entreatos – Lula a 30 Dias do Poder — Brasil, 2004, 117 min. Direção: João Moreira Salles. Distribuição em DVD: Videofilmes.

Peões – Brasil, 2004, 85 min. Direção: Eduardo Coutinho. Distribuição em DVD: Videofilmes.

(Publicado em Educação 118, fevereiro de 2007)


A Erva do Rato
Brasil, 2008
Direção: Julio Bressane

Pergunte a um espectador habituado a ver filmes brasileiros quais


seriam, hoje, os nossos principais diretores. É provável que Fernando
Meirelles (Cidade de Deus), Walter Salles (Central do Brasil) e José Padilha
(Tropa de Elite) sejam lembrados rapidamente, e que apenas um ou outro
mencione Julio Bressane, cuja obra talvez seja a mais extensa e consistente
entre os cineastas em atividade no país, com 24 longas-metragens em 45 anos
de carreira.
Não se deve estranhar, contudo, que ele seja pouco conhecido. Hoje com
68 anos, Bressane tem se caracterizado por um cinema de invenção, que se
recusa a trabalhar sobre fórmulas consagradas e que busca sempre algum
risco. A experimentação lhe custa espaços reduzidos para o lançamento de
seus filmes, como o mais recente, A Erva do Rato (2008), que estreou em
apenas uma sala em São Paulo.
Em mais um exercício autoral, o diretor de Matou a Família e Foi ao
Cinema (1969) volta a estabelecer relações com a literatura, como em
Sermões - A História de Antonio Vieira (1989) e Miramar (1997), inspirado
em Oswald de Andrade. Desta vez, ele retorna a Machado de Assis, que já
havia sido a referência em Brás Cubas (1985), para capturar imagens-chave
nos contos Um Esqueleto (1875), em que uma roda de amigos ouve a história
de um homem que continuava a conviver com a mulher morta, e A Causa
Secreta (1885), no qual um integrante de um triângulo amoroso revela
perversidades.
Do primeiro, Bressane aproveita a ideia da mulher que sobrevive como
esqueleto para o marido arrependido por matá-la. Do segundo, a de um
homem cuja patologia é sugerida pelo requinte sádico com que mata um rato.
Selton Mello e Alessandra Negrini protagonizam o jogo, que começa em um
cemitério e se aprofunda na casa onde os personagens passam a viver. Em
exemplo substancial de apropriação de material alheio, o filme é
genuinamente de Bressane, embora também seja, na atmosfera, um bocado
machadiano.
O que o cineasta promove com situações de dois contos de Machado em
A Erva do Rato se aproxima de um dos três modos apontados pelo professor
norte-americano Geoffrey Wagner, autor do livro The Novel and the Cinema
(o romance e o cinema), para caracterizar adaptações: o da analogia, em que
o cineasta adapta livremente o original, com intervenções às vezes drásticas
em relação a tempo e espaço.
Os outros modos, na abordagem de Wagner, são o comentário, com
menos elementos "intrusos" do que na analogia, e a transposição, marcada
pelo esforço em obedecer coordenadas da trama e dos personagens do livro.
Um dos contos de Machado que estão na origem de A Erva do Rato foi
matéria-prima para outra analogia no cinema brasileiro, no longa-metragem A
Causa Secreta (1994), de Sérgio Bianchi.
No filme, um diretor de teatro leva o seu elenco a fazer pesquisa de
campo sobre o sofrimento humano. Embora a trama esteja distante daquela
narrada pelo escritor, a atmosfera e os temas são machadianos. Pode-se
enxergar um pouco desse espírito no mais recente longa de Bianchi, Os
Inquilinos (2010), ambientado na periferia de São Paulo durante os ataques
do PCC, em 2006. Machado não tem a ver, diretamente, com o argumento,
mas é fácil se lembrar dele.
A Erva do Rato — Brasil, 2008, 82 min. Direção: Julio Bressane. Roteiro: Julio Bressane, baseado em contos de Machado de Assis. Com Alessandra Negrini, Selton Mello. Distribuição em
DVD: Microservice.

(Publicado em Educação 167, março de 2011)


Escola de Rock
School of Rock
EUA, 2003
Direção: Richard Linklater

Mr. Holland – Adorável Professor (1995), com Richard Dreyfuss, e


Música do Coração (1999), com Meryl Streep, foram bem-sucedidos na
defesa do ensino de música, constantemente ameaçado por cortes de verbas
nos EUA. O primeiro deu origem a uma fundação, destinada a preservar a
disciplina em escolas públicas, e o segundo se baseia na história verídica de
uma professora que, enfrentando condições adversas, obteve resultados
extraordinários com seus alunos. Ambos trabalham com uma concepção
clássica de educação musical, que passa pelo aprendizado de instrumentos
como piano e violão, e pela execução de peças eruditas ou de canções
populares assimiladas pelo repertório de classe média.
Escola de Rock proporciona um curioso contraponto a essas abordagens.
Em tom de comédia, ele propõe a inserção do velho e bom rock’n roll na sala
de aula. Parece uma ideia extravagante, reforçada pelo humor
descompromissado do filme. Será mesmo? Um exame mais atento revela, em
primeiro lugar, que não há nada de estapafúrdio em atribuir status de tema
escolar à cultura pop. Ou a trajetória dos Beatles e dos Rolling Stones não
ajudaria os jovens de hoje a entender, de maneira mais vívida do que muitos
livros didáticos, o que representaram os anos 60? Não há novidade em
relação a isso: como ferramenta de ensino, a música popular já foi descoberta
por muitos professores, em especial os de história e literatura.
Além disso, o filme também faz, com seu apelo à rebeldia traduzida pelo
rock, uma divertida caricatura de escolas de elite. Exageros à parte, seu
espírito zombeteiro permite também alguma espécie de reflexão sobre
estruturas ortodoxas de ensino. O personagem responsável pela situação
insólita que desencadeia a trama é Dewey (Jack Black), um roqueiro
fracassado, expulso da banda que criou. Pressionado por Ned (Mike White,
também autor do roteiro), velho amigo com quem divide apartamento, e que
costuma trabalhar como professor substituto, ele decide arrumar emprego.
Mas, antes que encontre coragem para sair à rua, toca o telefone: é a diretora
de uma tradicional escola particular (Joan Cusack) que procura Ned para
substituir durante alguns meses, por 650 dólares semanais, a professora da
quarta série do ensino fundamental.
Seduzido pelo salário, Dewey se faz passar por Ned, comparece à escola
e, graças à situação de emergência, assume imediatamente a turma – sem ter
o que dizer a crianças de 10 anos. A farsa adquire novos contornos quando,
ao descobrir que os alunos (cuja anuidade é de 15 mil dólares, elevada até
para os padrões dos EUA) têm aulas de música clássica, Dewey os induz,
como se fosse uma atividade prevista no planejamento escolar, a formar uma
banda de rock para participar de um concurso. Assim, dá início a uma
aventura que inclui diversas lições além-partitura — sobre sociabilização de
crianças e jovens, organização e motivação de equipes. E, principalmente,
sobre o esforço necessário para se aprender qualquer coisa, inclusive rock.
Escola de Rock (School of Rock) — EUA, 2003, 108 min. Direção: Richard Linklater. Roteiro: Mike White. Com Jack Black, Joan Cusack, Mike White, Adam Pascal, Lucas Papaelias, Chris
Stack, Sarah Silverman, Lucas Babin, Jordan-Claire Green, Veronica Afflerbach. Distribuição em DVD: Paramount.

(Publicado em Educação 88, agosto de 2004)


Estamos Juntos
Brasil, 2011
Direção: Toni Venturi

Seja como documentarista ou como realizador de longas de ficção, o


diretor e roteirista paulistano Toni Venturi vem se pautando por fazer do
cinema um instrumento de releitura de eventos e personagens históricos (O
Velho – A História de Luiz Carlos Prestes, Cabra-cega, Vocacional, uma
Aventura Humana), e de reflexão sobre o tempo em que vivemos (Latitude
Zero).
Seu mais recente longa, Estamos Juntos (2011), mantém a fidelidade a
esse comprometimento sociopolítico, ao mesmo tempo que procura envolver
o espectador, de acordo com os procedimentos tradicionais da narrativa
cinematográfica, por meio de uma história intimista centrada nos dramas de
sua personagem principal.
Carmen (Leandra Leal) saiu de uma cidade no interior do Rio de Janeiro
para morar em São Paulo, onde faz residência em um hospital público. Uma
enfermeira (Debora Duboc) a convida a desenvolver uma ação educativa
voluntária em um prédio ocupado pelo movimento dos sem-teto. Um amigo
(Cauã Reymond) a acompanha nos momentos de diversão. E um rapaz
misterioso (Lee Taylor) parece funcionar como seu confidente.
Enquanto nos aproximamos de Carmen e nos identificamos com ela,
notando suas fragilidades e a profunda solidão em que vive na metrópole, vai
se construindo uma trama que interliga diversos cenários sociais e que tem
como eixo a ideia de solidariedade, ou o conforto e apoio que ela pode nos
dar quando agimos como se estivéssemos todos juntos.
A médica interpretada por Leandra Leal em Estamos Juntos condensa
alguns dos dilemas de parcela da população jovem brasileira, principalmente
a de quem vive em grandes centros urbanos. Estar cercado de muita gente, e
estabelecer vínculos por meio de tecnologia ou de encontros efêmeros, não
significa necessariamente manter laços efetivos (e afetivos) com essas
pessoas, sugere o filme.
A mesma atriz já protagonizou outro filme especificamente voltado para
a distância, no universo jovem, entre vida digital e realidade concreta: Nome
Próprio (2008), de Murilo Salles, em que interpreta uma blogueira (inspirada
em Clarah Averbuck) com dificuldades para manter o equilíbrio emocional,
alimentando existências paralelas. Antes, Leandra havia representado outra
face do mundo jovem em O Homem que Copiava (2003), de Jorge Furtado.
Diversos longas-metragens brasileiros recentes também são
protagonizados por jovens, tanto no âmbito da classe média (como Apenas o
Fim, de Matheus Souza, e Os Famosos e os Duendes da Morte, de Esmir
Filho) como em situações de pobreza (como Sonhos Roubados, de Sandra
Werneck, e Cinco Vezes Favela – Agora por Nós Mesmos, realizado por
jovens de favelas cariocas).
Estamos Juntos — Brasil, 2011, 95 min. Direção: Toni Venturi. Roteiro: Hilton Lacerda, com a colaboração de Bruno Della Latta e Toni Venturi. Com Cauã Reymond, Leandra Leal, Luisa
Micheletti, Nathalia Rodrigues, Nazareno Casero, Sidney Santiago. Distribuição em DVD e Blu-ray: Imagem.

(Publicado em Educação 178, fevereiro de 2012)


Fala Tu
Brasil, 2003
Direção: Guilherme Coelho

“Se é música que fala de quem não tem nada, então o rap é nosso”, diz
Macarrão, 33 anos, sobre a popularidade desse gênero, surgido nos EUA,
entre a população de subúrbios e favelas do Rio de Janeiro. Ele mora em um
morro na Zona Norte da cidade e trabalha como apontador de jogo do bicho,
mas sonha ganhar a vida como compositor e intérprete. Toghum, 32 anos, e
Combatente, 21, vivem situação parecida: o primeiro é representante de
vendas e a segunda, operadora de telemarketing, mas ambos querem
abandonar essas atividades para se dedicar profissionalmente ao rap.
O documentário Fala Tu acompanha os três durante alguns meses, em
2002 e 2003. O objetivo inicial do diretor Guilherme Coelho e do roteirista
Nathaniel Leclery era mostrar como a cultura hip hop se disseminou
fortemente, nos últimos 20 anos, entre a população carioca de baixa renda. O
primeiro título do projeto, condizente com essa intenção, era “Rap no Rio”.
Ao fazer a pesquisa de campo, eles desistiram de promover uma análise
histórica e panorâmica do fenômeno, preferindo se concentrar no cotidiano de
alguns de seus anônimos protagonistas.
A abordagem, sustentada por um modo respeitoso de filmar e ouvir os
personagens, deu a Fala Tu um caráter muito superior ao de um
documentário que se propusesse exclusivamente a falar de música na favela
sob a ótica de cineastas de classe média. Produto também de um trabalho de
montagem que alinhava essas histórias de vida sem a preocupação de explicá-
las, o filme se impõe como crônica sobre a exclusão social, ao mostrar como
se dá a luta pela sobrevivência nos andares de baixo da sociedade brasileira,
sem intermediações.
Não estamos no terreno da ficção, cujas representações da pobreza
costumam gerar polêmica — basta lembrar, por exemplo, o intenso debate
em torno de Cidade de Deus. Macarrão, Toghum e Combatente existem
mesmo, o que confere a Fala Tu uma autenticidade desconcertante. É
compreensível, portanto, que professores de escolas públicas na periferia do
Rio e de São Paulo já estejam trabalhando esse documentário com seus
alunos adolescentes: como o que se vê na tela é muito próximo da realidade
vivida por eles, são inúmeras as possibilidades de reflexão proporcionadas
por esse espelhamento.
Nenhum dos personagens estuda ou conseguiu estudar muito, o que
permite outra série de inferências sobre as relações entre ensino formal e
cidadania. Todos eles, no entanto, reconhecem de alguma forma a
importância da educação. Toghum, por exemplo, revela seu planejamento
para o futuro: estudar Jornalismo e ao mesmo tempo “uma outra faculdade”,
trabalhar na área de comunicação da Polícia Federal e se tornar o primeiro
porta-voz negro da Presidência da República. “Nessa vida cheia de perigo,
tira a cara das drogas, ponha a cara nos livros”, diz um de seus raps. A rima é
pobre, mas o recado, claro.
Fala Tu — Brasil, 2003, 75 min. Direção: Guilherme Coelho. Argumento: Nathaniel Leclery. Distribuição em DVD: Videofilmes.

(Publicado em Educação 95, março de 2005)


Os Falsários
Die Fälscher
Alemanha/Áustria, 2007
Direção: Stefan Ruzowitzky

Mais de 60 anos depois da derrocada alemã na II Guerra Mundial, o


nazismo continua a protagonizar longas-metragens de diferentes origens e
abordagens. Apenas nos últimos dois anos, a safra inclui reconstituições
como O Menino do Pijama Listrado, Um Homem Bom, O Leitor, Operação
Valkíria, Um Ato de Liberdade e, mais recentemente, a fantasia de humor
negro Bastardos Inglórios.
Ligeiramente anterior a essa leva, Os Falsários recebeu o Oscar de filme
estrangeiro ao contar história verídica até então pouco conhecida, a do
Projeto Bernhard, que consistia na produção de libras e dólares falsos pelos
nazistas com o auxílio determinante de presos dos campos de concentração.
Escrito pelo próprio diretor, o austríaco Stefan Ruzowitzky, o roteiro se
baseia no livro de memórias Des Teufels Werkstatt (“a oficina do diabo”), do
eslovaco Adolf Burger, um dos presos recrutados para trabalhar no projeto.
No filme, contudo, Burger (interpretado pelo alemão August Diehl, que faz
um major nazista em Bastardos Inglórios) se torna personagem secundário; a
narrativa é conduzida em torno do russo Salomon “Sally” Sorowitsch,
livremente inspirado em figura real, Salomon Smolianoff.
Preso em 1936 por falsificação de dinheiro e documentos em Berlim,
“Sally” (ótima atuação do austríaco Karl Markovics) é transferido, com o
início da guerra, para um campo de concentração. O mesmo policial que o
deteve, agora trabalhando como oficial nazista, o leva a integrar-se ao Projeto
Bernhard, como coordenador da equipe de falsários. A partir daí, ele e os
demais presos são obrigados a lidar com um dilema moral: colaborar com
seus algozes ou sabotar a iniciativa?
Os Falsários (Die Fälscher) — Alemanha/Áustria, 2007, 98 min. Direção e roteiro: Stefan Ruzowitzky, baseado em livro de Adolf Burger. Com Karl Markovics, August Diehl, Devid Striesow.
Distribuição em DVD e Blu-ray: Europa.

(Publicado em Educação 152, dezembro de 2009)


Fama para Todos
Iedereen Beroemd!
Bélgica/Holanda/França, 2000
Direção: Dominique Deruddere

Operário, Jean sempre depositou na filha a esperança de um futuro


melhor. Mais do que isso: acreditava que ela pudesse tornar-se uma
celebridade e, consequentemente, milionária. “Você será a número 1, Marva.
Será muito famosa”, dizia à garota – que batizou com o nome de uma antiga
cantora — quando ainda a embalava no colo. Pois Marva chegou à
adolescência sem nada a indicar que os sonhos do pai seriam realizados. Mal-
sucedida em concursos de “calouros”, tímida na escola, desconfortável com a
obesidade. Pouco, entretanto, para convencer Jean a desistir da ideia.
Fama para Todos narra a maneira peculiar utilizada por ele para fazer a
filha ingressar no mundo das celebridades. Maneira desesperada, na verdade:
Jean (Josse De Pauw) enxerga em Marva (a estreante Eva van der Gucht) a
última possibilidade de redenção depois que a indústria onde trabalha vai à
falência. São dois os temas que se entrelaçam: o da procura pela fama, na
ordem do dia em virtude da telenovela Celebridade, e o do desemprego,
problema grave tanto na Europa quanto por aqui, e que motivou o recente
Segunda-Feira ao Sol, principal êxito da última temporada na Espanha.
O diretor belga Dominique Deruddere (que já havia adaptado para
cinema o romance Espere a Primavera, Bandini, do americano John Fante)
trata ambos os temas com leveza nessa comédia musical que, embora pareça
descompromissada, usa o humor para refletir sobre a sociedade
contemporânea, governada pela televisão. Se o filme parece cínico, é porque
desmonta, na base da brincadeira, a engrenagem que movimenta os meios de
comunicação de massa – e, para o espectador mais ingênuo, isso talvez soe
como revelação.
O mais cínico de todos os personagens, um produtor de TV (Victor
Löw), pode ser acusado de tudo, menos de falta de transparência. Seu
comportamento ao longo da trama é típico dos profissionais que fazem girar a
roda da sociedade de consumo. Manipular o público, para ele, não tem a
gravidade que se costuma atribuir a essa atitude. Se perguntado a respeito, ele
provavelmente diria, como diversos de seus pares na vida real, que o público
quer ser manipulado, comprar fantasias e entregar-se a passatempos
letárgicos, e que a indústria do entretenimento trabalha apenas para satisfazer
essas demandas.
Fama para Todos aborda também os perigos gerados quando os pais
transferem seus desejos não realizados para os filhos. Quem gostaria de ser
celebridade, aqui, é Jean. Por arte do destino, ele terá enfim seus 15 minutos
de fama, para citar a frase de efeito do artista plástico Andy Warhol, segundo
a qual todos ganhariam essa cota de exposição pública em algum momento
do futuro. Depois, adeus. Não custa lembrar que os holofotes da mídia, entre
outras coisas, iluminam pouca gente. Dedicar a vida a buscá-los pode se
tornar aposta quase certa na frustração.
Fama para Todos (Iedereen Beroemd!) — Bélgica/Holanda/França, 2000, 95 min. Direção e roteiro: Dominique Deruddere. Com Josse De Pauw, Eva van der Gucht, Werner De Smedt, Thekla
Reuten, Victor Löw, Gert Portael. Distribuição em DVD: Warner.

(Publicado em Educação 81, janeiro 2004)


Filhos do Paraíso
Children of Heaven
Irã, 1998
Direção: Majid Majidi

As primeiras imagens de Filhos do Paraíso mostram as mãos rústicas


mas habilidosas de um artesão consertando um par de sapatos cor-de-rosa. A
sequência acompanha a operação do começo ao fim, e chama a atenção por
alguns detalhes: a destreza do sapateiro, a delicadeza do seu objeto de
trabalho. No início, os sapatos parecem imprestáveis. Depois, estão prontos
para mais algum tempo de desgaste. A essa altura, a pergunta já martela a
cabeça do espectador: de quem são os pés que vão calçá-los?
Parece pouco, mas é o bastante para desencadear a trama do filme, cujo
impacto é inversamente proporcional à sua econômica estrutura dramática.
Os sapatos pertencem a Zahra Mandegar, uma criança iraniana que precisa
deles para ir à escola. Quem os leva ao conserto é Ali, irmão mais velho de
Zahra – que, na volta para casa, perde-os. Instala-se então a desgraça: Ali não
pode contar aos pais o que fez, sob o risco de apanhar, e a família, miserável,
não tem dinheiro para comprar outro par. Contar como os dois irmãos
procuram resolver o problema seria roubar do leitor um dos grandes prazeres
de Filhos do Paraíso.
Pode-se adiantar apenas que a busca da solução mistura criatividade e
angústia, como em boa parte dos filmes iranianos que, na década de 1990,
romperam as fronteiras políticas da indústria cultural e chegaram aos cinemas
do Ocidente. Seus personagens lutam invariavelmente contra adversidades
cotidianas que assumem dimensões gigantescas. Em O Balão Branco (1995),
por exemplo, acompanha-se o desespero de uma criança que perde o suado
dinheiro com o qual compraria um peixinho dourado. Resta ao público,
desesperado por tabela, torcer para que a coitada reencontre o dinheiro e com
ele o sonhado presente.
Peixinhos dourados também aparecem em Filhos do Paraíso, usados
como símbolo de beleza e redenção. No filme, “abençoam” os pés heroicos
de Ali. Ele e Zahra correm literalmente contra o destino implacável que a
vida lhes reservou, movidos pelo impulso de sobrevivência. O recado parece
claro: vence a guerra quem transforma todo dia em batalha. Para sublinhar a
mensagem, o diretor Majid Majidi recrutou atores infantis incrivelmente
expressivos. O rosto do garoto que interpreta Ali, em especial, é um poço de
sofrimento, com olhos esbugalhados e jeito de que a qualquer momento
começará a chorar.
O uso de tamanha dor poderia até merecer reparos se o filme usasse
expedientes melodramáticos de telenovela mexicana. Não é, ainda bem, o que
se vê. Difícil não lembrar a herança neorrealista italiana, sobretudo de
clássicos como Roma, Cidade Aberta (1945) e Ladrões de Bicicleta (1947),
enquanto Ali e Zahra perambulam pelas ruas. De qualquer forma, Filhos do
Paraíso oferece diversas portas de entrada: é um belo estudo da infância em
condições adversas, mas também uma fábula sobre as ironias do destino, um
retrato da vida cotidiana em uma república islâmica e, de olho no detalhe que
interessa principalmente ao educador, um elogio (com pequenas críticas) ao
papel da escola na formação das pessoas.
Uma das inúmeras maneiras de dividir filmes separa aqueles que nos
fazem acreditar que saiu algo de muito errado com a humanidade, como
Laranja Mecânica (1971) e Assassinos por Natureza (1994), dos que
procuram nos restaurar a crença de que ainda podemos dar certo, se é que já
não demos e não percebemos. Representativo do segundo grupo, Filhos do
Paraíso é um emocionante discurso sobre como aspectos banais da existência
constituem no fundo a riqueza da aventura humana.
Filhos do Paraíso (Children of Heaven) – Irã, 1998, 88 min. Direção e roteiro: Majid Majidi. Com Mohammad Amir Naji, Farrokh Hashemian, Bahare Sadighi, Nafise Mohammadi. Distribuição
em DVD: Imagem.

(Publicado em Educação 31, novembro de 1999)


A Fita Branca
Das weisse Band - Eine deutsche Kindergeschichte
Áustria/Alemanha/França/Itália, 2009
Direção: Michael Haneke

Formado em psicologia, filosofia e artes cênicas, o diretor austríaco


Michael Haneke trabalhou no teatro e na TV antes de estrear no cinema, aos
47 anos, com O Sétimo Continente (1989). Desde então, ele vem
desenvolvendo obra peculiar, que encontra admiradores e detratores. O
princípio que o orienta é o incômodo — tanto o vivido pelos personagens
quanto o que se estende ao público, retirado da "zona de conforto" na qual
costuma ser protegido pelo cinema para diversão de massas.
Até o momento, o ponto mais alto de sua carreira, ao menos em relação
a prestígio internacional, foi alcançado por A Fita Branca, que recebeu a
Palma de Ouro no Festival de Cannes — onde Haneke já havia sido premiado
em outras três ocasiões, por Código Desconhecido (2000), A Professora de
Piano (2001) e Caché (2005) — e que disputou o Oscar de filme estrangeiro,
perdido para o argentino O Segredo dos seus Olhos.
Ambíguas, as tramas de Haneke deixam lacunas para que o espectador
as preencha, atribuindo sentido a ações. Em A Fita Branca, fotografado em
expressivo preto-e-branco, esse procedimento é realçado por um detalhe de
bastidores: planejado para dar origem a uma minissérie de TV em quatro
episódios, o roteiro original foi compactado em forma de longa-metragem. A
opção de cortar blocos inteiros da história contribuiu para deixá-la ainda mais
fragmentada e enigmática.
O narrador é um professor que recorda fatos estranhos, sem conexão
aparente, ocorridos na pequena cidade onde vivia no norte da Alemanha, na
década de 1910, no período que antecede a I Guerra Mundial. Seus jovens
alunos e diversos outros personagens protagonizam dramas sobre crueldade,
violência e desespero. Algo soturno parece esconder-se por trás da atmosfera
de inocência campestre do lugar, em cenário sob medida para leituras
políticas e psicanalíticas.
Não estará enganado quem associar a atmosfera de incerteza, aflição e
perversão criada pela obra de Haneke com o universo do escritor tcheco
Franz Kafka (1883-1924). Para reforçar o parentesco, está saindo em DVD
no Brasil o telefilme O Castelo (1997), realizado por Haneke com base no
romance de Kafka. Assim como no livro, o filme começa com a chegada do
agrimensor K. (o falecido Ulrich Mühe, que interpretaria depois um agente da
Stasi em A Vida dos Outros) a um vilarejo nas montanhas. Contratado pelo
governo local, cuja sede fica em castelo no alto de uma colina, ele é
envolvido por burocratas em teia de pesadelo que costuma ser definida como
"kafkiana", mas que pode também ser chamada de "hanekiana".
Ao recriar no cinema o registro particular (e muito contemporâneo) de
Kafka, Haneke se junta a outro grande cineasta que também encarou o
desafio, o norte-americano Orson Welles (diretor de Cidadão Kane), em O
Processo (1962), com Anthony Perkins. Esse romance deu origem a outra
adaptação, em 1993, dirigida pelo inglês David Jones, com Kyle
MacLachlan. O diretor norte-americano Steven Soderbergh (Onze Homens e
um Segredo) procurou um equivalente cinematográfico para essa obra-chave
do século 20 em Kafka (1991), que imagina um episódio fictício na vida do
escritor (interpretado por Jeremy Irons). Curiosamente, o autor de O Castelo
e O Processo era um apreciador de filmes, como demonstra o livro Kafka Vai
ao Cinema (Jorge Zahar).
A Fita Branca (Das weisse Band - Eine deutsche Kindergeschichte) — Áustria/Alemanha/França/Itália, 2009, 144 min. Direção e roteiro: Michael Haneke. Com Christian Friedel, Ernst Jacobi,
Leonie Benesch. Distribuição em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 163, novembro de 2010)


Garota Interrompida
Girl, Interrupted
EUA, 1999
Direção: James Mangold

Susanna, 18 anos, é a única formanda de sua escola que não irá à


faculdade. Nem mesmo chegou a pensar no assunto, apesar das boas notas. É
uma figura estranha, distante, capaz de dormir na cerimônia de formatura e
não ouvir o próprio nome sendo chamado ao palco, para vergonha dos pais.
“Talvez eu fosse louca, talvez fossem os anos 60, e talvez eu fosse uma
garota interrompida”, diz. Seu quadro deixa de ser exótico e adquire o status
de problema grave quando ela ingere um vidro de aspirinas com um litro de
vodca.
A tentativa de suicídio lhe vale uma temporada em uma clínica
psiquiátrica, onde a diagnosticam como portadora do distúrbio de
personalidade “borderline”. Enquanto se submete a um tratamento duvidoso,
ela estabelece relações com outras jovens internadas ali e com médicos,
enfermeiras e assistentes. Garota Interrompida acompanha a sua longa
jornada em busca do “eixo” e alterna seqüências do presente com cenas em
flashback que ajudam a entender as origens da crise. Quem viu Um Estranho
no Ninho (75) reconhecerá aqui uma espécie de versão juvenil do clássico
dirigido pelo tcheco Milos Forman e estrelado por Jack Nicholson.
Mais comum do que se imagina, a “doença” de Susanna (Winona
Ryder) é uma resposta “gritada” do organismo a situações intensas que
jovens (e às vezes adultos) nem sempre estão preparados para suportar. Hoje,
ela talvez recebesse outro tipo de cuidados. Em 1967, no entanto, foi parar
onde não devia, embora uma enfermeira veterana (Whoopi Goldberg) lembre
que a clínica equivale a um “hotel cinco estrelas” perto do que ocorria em
hospitais públicos. Não por acaso, um dos raros casos de censura nos EUA
impediu por 15 anos a circulação do documentário Titicut Follies (1967), de
Frederick Wiseman, sobre um manicômio judiciário em Massachusetts.
Garota Interrompida baseia-se na experiência verídica de Susanna
Kaysen, hoje uma senhora “sem interrupções” que dá uma entrevista em um
dos extras da versão lançada em DVD. Ela passou dois anos em um instituto
psiquiátrico e fez registros em diários que, 25 anos depois, lhe forneceram a
base para o livro de memórias que leva o mesmo nome do filme. Um dos
trunfos de seu relato é a lucidez que lhe permite fazer observações incisivas
sobre as demais internas (em especial Lisa, a jovem autodestrutiva que valeu
o Oscar de melhor atriz coadjuvante a Angelina Jolie), sobre os
procedimentos “técnicos” da clínica e, por tabela, à fronteira discutível que
separa o comportamento “normal” do “anormal”, a sanidade da loucura, a
adequação da rebeldia.
Durante os anos 1960, esses conceitos foram embaralhados. Não há
dúvida de que a sociedade ocidental tornou-se mais atenta às sutilezas do rito
de passagem para a vida adulta e mais tolerante às diferenças
sociocomportamentais, mas também é preciso admitir que ainda há muita
gente por aí raciocinando, inclusive no sistema educacional, como os
implacáveis agentes da ordem burguesa que ajudaram a “interromper”
Susanna Kaysen.
Garota Interrompida (Girl, Interrupted) — EUA, 1999, 127 minutos. Direção: James Mangold. Roteiro: James Mangold, Lisa Loomer e Anna Hamilton Phelan, baseado em livro de Susanna
Kaysen. Com Winona Ryder, Angelina Jolie, Clea DuVall, Brittany Murphy, Elisabeth Moss, Jared Leto, Jeffrey Tambor, Vanessa Redgrave, Whoopi Goldberg, Angela Bettis. Distribuição em
DVD: Sony.

(Publicado em Educação 50, junho 2001)


O Garoto da Bicicleta
Le Gamin au Vélo
França/Bélgica/Itália, 2011
Direção: Luc e Jean-Pierre Dardenne

Engana-se quem pensa que a infância em situação de risco é um


problema exclusivo de sociedades como a nossa, em que crianças vivendo
nas ruas ou pedindo dinheiro em semáforos já se tornaram cenas incorporadas
ao cotidiano das grandes cidades. O problema se apresenta, ainda que em
outras proporções, também nos países mais ricos da Europa, onde está
associado, em geral, à irresponsabilidade paterna: tem-se o filho, mas não se
toma conta dele.
Boa parte da obra dos cineastas belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, por
exemplo, se ocupa dos problemas provocados em crianças e adolescentes
pela ausência, efetiva ou simbólica, dos pais. Eles fazem cinema de ficção
com um registro próximo ao do documentário, a que se dedicaram no início
de carreira. Seus longas A Promessa (1996), Rosetta (1999), O Filho (2002) e
A Criança (2005) abordam também diversos aspectos da paternidade
irresponsável.
Sua mais recente exploração desse terreno, que tem reverberações
psicológicas, educacionais e sociopolíticas, é O Garoto da Bicicleta. O
personagem do título é Cyril (Thomas Doret), 11 anos. O pai (Jérémie
Renier) o deixou em uma casa para menores abandonados, dizendo que
voltaria em breve para levá-lo. Como notamos logo de início, a história é
outra, mas ninguém, exceto o próprio pai, teria o direito (e também a
coragem) de dizer a verdade a Cyril. E o pai, infelizmente, não quer saber de
nada, muito menos de explicar ao filho que não o quer.
A entrada em cena de uma cabeleireira (Cécile De France), disposta a
assumir a responsabilidade (ou, ao menos, parte dela) por Cyril, leva o filme
a um contraste significativo: de um lado, a falta absoluta de amor e
compreensão; de outro, a compaixão e o compromisso social. No meio, a dor
de um menino que ainda não tem como entender o que o cerca. Já o
espectador adulto, conduzido pelo detalhado realismo com que os irmãos
Dardenne encenam a situação, entende tudo muito bem. Dessa forma,
vislumbra o que representa a dor do abandono — mesmo que nunca a tenha
experimentado.
O Garoto da Bicicleta (Le Gamin au Vélo) — França/Bélgica/Itália, 2011, 87 min. Direção e roteiro: Luc e Jean-Pierre Dardenne. Com Thomas Doret, Cécile De France, Jérémie Renier.
Distribuição em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 183, julho de 2012)


Garotos Incríveis
Wonder Boys
EUA, 2000
Direção: Curtis Hanson

As coisas mudaram para o professor Grady Tripp, diz a letra da canção


Things Have Changed, que o já sessentão Bob Dylan compôs especialmente
para a trilha sonora de Garotos Incríveis. Sete anos atrás, ele se tornou um
menino prodígio da literatura americana ao escrever um romance recebido
pela crítica como obra-prima e desde então adotado em escolas de todo o
país. Mas o tempo foi passando e nada de Tripp publicar o segundo livro.
“Escondido” em Pittsburgh (Pensilvânia, EUA), onde ministra um curso de
redação literária em uma universidade, ele vive uma crise cujos vértices são a
suposta esterilidade criativa, a mulher mais jovem que o abandonou e a
mulher mais velha, casada com seu chefe, por quem está apaixonado.
A chave para a compreensão do que ocorre no final de semana
acompanhado pelo filme, em que a cidade promove um evento literário, está
mesmo no título. Quase todos os personagens masculinos são “garotos
incríveis”. Tiveram seu talento reconhecido muito cedo, o que lhes criou o
desafio de amadurecer e provar que não eram um “alarme falso”,
confirmando com novos trabalhos a imagem positiva criada em torno deles. É
o caso de Tripp (Michael Douglas) e também de seu editor (Robert Downey
Jr.), que vai de Nova York a Pittsburgh para pressioná-lo a finalizar o
segundo livro, do qual depende seu próprio emprego.
O contraponto a esses homens maduros (não muito, a bem da verdade)
que já foram incríveis quando mais jovens é James Leer (Tobey Maguire),
um aluno excêntrico com talento para se tornar em breve outro menino
prodígio do mundo literário. Tripp identifica-se com ele e, de certa forma, o
transforma no filho que não teve. Leer, por sua vez, alimenta evidente
admiração pelo professor, que acredita ser o único capaz de entendê-lo e de
julgar se o que escreve tem mesmo qualidade. Como o nascimento de um
filho às vezes transforma a vida de um homem, a proximidade entre os dois
também contribuirá decisivamente para que Tripp encontre afinal a luz no
fim do túnel.
Embora o foco da trama seja o talento literário, é fácil notar que o filme
expõe aspectos cotidianos do meio acadêmico. Todo professor universitário,
seja escritor ou não, é um pouco “garoto incrível”. Afinal, aprendeu tanta
coisa, e tão rápido, que já começou a ensinar. É referência de comportamento
para os alunos, alguns dos quais o têm na conta de herói. Leer não é o único a
construir essa imagem de Tripp. Hannah (Katie Holmes), outra aluna do
curso, também se aproxima dele por conta do fascínio que sua figura
desperta. Mas registre-se que, mesmo no epicentro de uma crise, o professor
dá uma lição de comportamento ao tratar a ambos como seres humanos, não
fazer vista grossa aos sentimentos que provoca neles e, ainda assim, manter
estendida a linha que separa mestres de pupilos.
Garotos Incríveis (Wonder Boys) — EUA, 2000, 111 min. Direção: Curtis Hanson. Roteiro: Steven Kloves, baseado em romance de Michael Chabon. Com Michael Douglas, Tobey Maguire,
Frances McDormand, Robert Downey Jr., Katie Holmes, Rip Torn, Richard Knox, Jane Adams, Michael Cavadias. Distribuição em DVD: Warner.

(Publicado em Educação 52, agosto de 2001)


Gênio Indomável
Good Will Hunting
EUA, 1997
Direção: Gus Van Sant

Will Hunting trabalha no Instituto de Tecnologia de Massachusetts


(MIT), um dos centros de pesquisa de maior prestígio em todo o mundo. Seus
conhecimentos vão da matemática combinatória à química orgânica. O
raciocínio extremamente ágil lhe permite resolver em minutos problemas que
os principais especialistas da área demoram dias, às vezes anos, para elucidar.
Um fenômeno. Só há um problema: Hunting integra a equipe de faxineiros do
MIT.
Gênio Indomável faz um estudo psicológico desse personagem
inusitado, um jovem autodidata que prefere ir direto aos livros, sem a
intermediação da escola e dos professores. Mas, apesar da inteligência
privilegiada, só arruma subempregos e passa o tempo livre participando de
arruaças e pequenos crimes na periferia de Boston. Um desperdício.
Convencido de que o rapaz é de fato muito especial, um professor do
MIT resolve apadrinhá-lo. Consegue libertá-lo da cadeia, onde Will foi parar
depois de espancar um ex-colega de infância que o maltratava, desde que o
jovem concorde em estudar problemas complexos de matemática, em sessões
reservadas com o tal professor, e em submeter-se a uma terapia.
Nenhum problema em relação à primeira parte do acordo. Já a segunda
parece complicada: Will afugenta, com uma agressividade incomum, todos os
terapeutas que lhe aparecem pela frente. Até que um ex-estudante do próprio
MIT, agora um pacato professor de psicologia, mata a charada e encontra o
atalho que ajuda a explicar seu comportamento. Gênio Indomável consegue a
proeza de traduzir para leigos o que se passa naquela mente perturbada sem,
no entanto, banalizar em demasia o trabalho terapêutico.
Coescrito pelos atores Matt Damon (que interpreta Will) e Ben Affleck
(que faz seu melhor amigo), o roteiro – premiado com o Oscar deste ano — é
habilidoso na construção dos detalhes de personalidade que ajudam a tornar
verossímeis os protagonistas. Há um toque inegavelmente hollywoodiano na
caracterização da genialidade, mas existe também um ar de simpatia cativante
envolvendo os personagens e, com isso, aproximando-os do público.
A figura-chave nessa equação é a do terapeuta (Robin Williams). Ainda
abalado pela morte da mulher, quatro anos antes, ele traz das memórias do
casamento e do sofrimento posterior a maioria das imagens capazes de gerar
um processo de mudança em Will. E, ao menos no filme, a relação
terapêutica tem mão dupla – o psicólogo também extrai algo especial dela.
A psicologia é a principal estrela do espetáculo, mas Gênio Indomável
oferece ainda a chance de refletir sobre alguns aspectos de outro processo, o
educacional. Sobram alfinetadas na vaidade que alimenta certa parcela do
meio acadêmico, e na prepotência de alunos e professores ligados a
instituições consideradas de ponta.
O próprio sentido da educação formal é questionado, sobretudo por meio
do professor do MIT (Stellan Skarsgard), que “adota” Will e parece invejar o
brilho natural do pupilo – revelador, por contraste, da vida em certo sentido
medíocre à qual o premiado mestre se sente confinado. Perto da genialidade
rebelde de Will, o professor reconhece seus próprios limites, maiores do que
imaginava, e já não se fala mais aqui apenas em inteligência para a
matemática. Atire a primeira pedra quem nunca sonhou ser indomável.
Gênio Indomável (Good Will Hunting) – EUA, 1997, 126 min. Direção: Gus Van Sant. Roteiro: Matt Damon e Ben Affleck, baseado em argumento de Damon. Com Robin Williams, Matt
Damon, Ben Affleck, Minnie Driver, Stellan Skarsgard, Casey Affleck. Distribuição em DVD: Imagem.

(Publicado em Educação 19, novembro de 1998)


Um Grande Garoto
About a Boy
EUA/Reino Unido/França/Alemanha, 2002
Direção: Chris Weitz e Paul Weitz

Ir à escola, para Marcus, é um ritual de pesadelo. Para começar, sua mãe


faz questão de levá-lo até o portão e se despede, às vistas de todos, com um
“eu te amo, filho” – demonstração de afeto intolerável no reino da
adolescência. Depois, os alunos mais velhos o ridicularizam por causa de sua
maneira de se vestir — duas ou três décadas atrasadas em relação à moda
atual em Londres – e, genericamente, de se comportar. Para piorar as coisas,
às vezes ele canta em voz alta durante a aula, sem perceber. A ficha só cai
quando o restante da turma, inicialmente perplexa com o show involuntário,
começa a gargalhar.
Marcus, vê-se logo, tem problemas. Filho de pais separados, ele é
obrigado a lidar diariamente com a depressão da mãe, uma hippie anacrônica
e infeliz que, em um de seus surtos, tenta suicidar-se. É nessa altura da
história que entra em cena Will, um mulherengo de 38 anos que nunca teve
um emprego (vive dos direitos autorais de uma canção de sucesso composta
pelo pai) ou um relacionamento que durasse mais de dois meses. Um Grande
Garoto mostra o encontro improvável entre esses dois personagens como um
processo de aprendizado mútuo: ambos ensinam e aprendem enquanto
crescem.
Sim, porque crescer, no sentido de amadurecer, é algo que ainda não
ocorreu a Will (Hugh Grant). “Na minha opinião, todos os homens são uma
ilha, e esta é a era das ilhas”, argumenta, na abertura do filme, para justificar
sua postura individualista e solitária. “Cem anos atrás, você dependia de
outras pessoas. Não havia TV, CDs ou DVDs, nem vídeos ou máquinas
domésticas de café expresso. Hoje, você pode se tornar uma ilha paradisíaca.”
Marcus (Nicholas Hoult), por sua vez, também abre o jogo na apresentação:
“Existem pessoas que se divertem por aí na vida, e eu estava começando a
perceber que não era uma delas. Eu não me ajustava, na minha escola antiga e
muito menos na nova”.
Todo o filme será pontuado por esse recurso narrativo quase vulgarizado
no cinema atual, o “voice over”, em que os pensamentos dos personagens
funcionam como fio condutor. O procedimento contribui para a estratégia de
“suavização” de Will e Marcus, vistos com menos simpatia e mais distância
no romance do inglês Nick Hornby (o mesmo autor de Alta Fidelidade e
Como Ser Legal) que deu origem ao roteiro. Além disso, a última meia hora
não pertence ao livro: foi criada pelos diretores e roteiristas para vender a
ideia de que, ao amadurecer, trocamos a noção de “ilhas” pela de
“arquipélagos” – precisamos estar ligados de alguma forma aos outros para
não afundar ou perder-se no oceano.
Ao conduzir habilidosamente a troca de experiências entre suas duas
“crianças”, Um Grande Garoto acerta também ao pintar a escola como um
palco de perversidades infantojuvenis que vitimam, quase sempre, quem foge
ao padrão e, por isso, é considerado “estranho”. Não dá trabalho identificar-
se com Marcus: ou já fomos como ele, ou já dirigimos nossa maldade a
alguém como ele.
Um Grande Garoto (About a Boy) — EUA/Reino Unido/França/Alemanha, 2002, 101 min. Direção: Chris Weitz e Paul Weitz. Roteiro: Peter Hedges, Chris Weitz e Paul Weitz, baseado no
romance homônimo de Nick Hornby. Com Hugh Grant, Toni Collette, Nicholas Hoult, Rachel Weisz, Sharon Small, Nicholas Hutchison. Distribuição em DVD: Universal.

(Publicado em Educação 72, abril de 2003)


Guerra de Canudos
Brasil, 1997
Direção: Sergio Rezende

Em 7 de outubro de 1897, Euclides da Cunha enviava ao jornal O


Estado de S. Paulo o último de uma série de 48 telegramas. Nele, dizia que
“ontem, após forte bombardeio, a terceira brigada e a sexta tomaram novas
posições ao inimigo, sendo conquistada a igreja nova, na qual entre as
aclamações de todo o exército foi hasteada a bandeira da República”.
Terminava assim, na região noroeste da Bahia, a Guerra de Canudos, que
tivera início em novembro de 1896.
Como enviado especial de O Estado, Euclides participou apenas da
quarta e última fase do conflito, acompanhando a expedição comandada pelo
general Carlos Bittencourt, ministro da Guerra. Seus telegramas e cartas ao
jornal, porém, deram origem a Os Sertões (1902), registro do conflito que
opôs os soldados do presidente Prudente de Morais aos beatos reunidos em
torno de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro.
Exatos 100 anos depois, chega aos cinemas a mais ambiciosa produção
já rodada no Brasil. Guerra de Canudos consumiu R$ 6 milhões e quase
quatro anos de trabalho, do primeiro esboço do roteiro – concluído em
dezembro de 1995, depois de dois anos de discussões – à estreia do filme. O
diretor Sergio Rezende já se interessava desde 1991 pela ideia de adaptar o
episódio.
“Muitas teses científicas de Euclides foram superadas”, afirma Rezende
no livro Guerra de Canudos – O Filme, de Nilza Rezende. “Mas a grandeza
literária de Os Sertões, a grandeza daquele momento da história, da vida no
sertão, do sertanejo, permanecem.” O cineasta e sua mulher, a produtora
Mariza Leão, preferiram um recuo tático no início dos anos 1990. Recriaram
primeiro a trajetória de um personagem marcante na história recente do país,
o militar e líder guerrilheiro interpretado por Paulo Betti em Lamarca (1994),
projeto relativamente mais simples, e só então passaram a se dedicar
inteiramente a Canudos.
A estratégia deu certo, sobretudo porque o lançamento do filme
coincidiu com o centenário da queda de Canudos. A circunstância favorável
lembra a de que se aproveitou outra superprodução do cinema brasileiro,
Independência ou Morte (1972), épico de Carlos Coimbra produzido por
Oswaldo Massaini no embalo das comemorações do sesquicentenário da
independência promovidas pelo governo Médici. É apenas na bem-sucedida
visão de marketing, porém, que ambos guardam alguma semelhança.
Enquanto Independência ou Morte embarcava na versão oficialesca dos
acontecimentos de 1822, sem qualquer disposição para discutir sequer os
detalhes altamente discutíveis do processo de independência, Guerra de
Canudos segue na contramão do que as “autoridades” apregoavam no final
do século 19, na tentativa de caracterizar a rebelião liderada por Antonio
Conselheiro apenas como um movimento monarquista e, portanto, de
inspiração antirrepublicana. Essa visão limitada dos fatos prevaleceu durante
muitos anos e, inicialmente, chegou a convencer também Euclides da Cunha.
Mais tarde, com a publicação de Os Sertões, o escritor e jornalista rendeu-se
à tese de que a miséria no interior do país explicava com muito mais
propriedade o messianismo de Conselheiro e seus efeitos sobre a população
carente da região.
O filme de Rezende começa um pouco antes da fundação, em 1892, do
Império do Belo Monte. Conselheiro havia percorrido o sertão nordestino
durante duas décadas, pregando a palavra de Deus e, a partir de 1889,
atribuindo os males do país à República. Ao chegar a Canudos, achou que era
o momento de interromper a peregrinação e instalar ali um governo
autônomo. O povoado chegou a abrigar 20 mil pessoas. As duas primeiras
expedições enviadas pelo governo federal para prender Conselheiro e destruir
Belo Monte, encarado oficialmente como um risco à estabilidade republicana,
foram derrotadas antes mesmo de alcançar Canudos. A terceira sucumbiu ao
profundo conhecimento do território pelos beatos e às táticas de guerrilha
usadas por eles. Na quarta expedição, foi preciso recorrer a um contingente
total de 10 mil soldados para dizimar Canudos – que, segundo Euclides, “não
se rendeu”. “Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento
completo”, escreveu.
Conselheiro morreu em 22 de setembro, dias antes da queda. O filme
não investiga o passado do personagem em busca de explicações. Limita-se a
reconstituir o carisma exercido por ele sobre o povo nordestino, com a ajuda
inestimável da interpretação de José Wilker, econômico mas impressionante
nos gestos e nas falas – entre elas, a célebre previsão de que “o sertão vai
virar praia (ou mar), e a praia (o mar) virar sertão”. É o “motor da história”,
um “personagem público”, segundo o diretor.
Dois blocos de protagonistas dividem as atenções: de um lado, uma
família nordestina (Paulo Betti, Marieta Severo, Claudia Abreu, Dandara
Ohana Guerra e Jorge Neves) cindida quando a filha mais velha (Claudia)
recusa-se a engrossar as fileiras de Conselheiro e foge, tornando-se prostituta;
de outro, os soldados federais que, expedição após expedição, enfrentam a
resistência da “guarda católica” de Belo Monte. Uns não compreendem as
razões dos outros, talvez sequer as próprias. Um jornalista (Roberto
Bomtempo) é usado no filme como observador equidistante, imparcial – o
que não o impede de condenar a atitude genocida das tropas federais.
Guerra de Canudos resiste à tentação de oferecer explicações simplistas
para a compreensão do contexto. Em suas quase três horas de duração, evita
na medida do possível a emoção barata e, embora use dramaticamente o
conceito de “mocinhos” e “bandidos”, solta pistas suficientes para estimular –
em sala de aula, principalmente – o debate sobre o significado do episódio e
sua importância na história do país. “O sertanejo é antes de tudo um forte”,
escreveu Euclides em Os Sertões. O filme de Rezende ilustra a teoria.
Guerra de Canudos — Brasil, 1997, 165 min. Direção: Sergio Rezende. Roteiro: Paulo Halm e Sergio Rezende. Com José Wilker, Claudia Abreu, Paulo Betti, Marieta Severo, Selton Mello,
Roberto Bomtempo, José de Abreu, Tonico Pereira, Tuca Andrada. Distribuição em DVD: Sony.

(Publicado em Educação 6, outubro de 1997)


Hans Staden
Brasil/Portugal, 1999
Direção: Luiz Alberto Pereira

“Estou chegando eu, sua comida”, grita o homem branco, tremendo de


medo. “Vamos comer o português”, respondem os índios, animados. A troca
de frases corresponde a um ritual de uma tribo tupinambá de Ubatuba, em
1554, e o tal “português” – na verdade, um alemão – foi obrigado a se
anunciar como alimento pelos índios que o capturaram. Começava ali a
aventura de Hans Staden, o viajante que conviveu nove meses e meio entre
“selvagens nus, ferozes e canibais”, como ele os chamaria no célebre relato
publicado na Alemanha em 1557 e depois traduzido em várias línguas.
Staden veio duas vezes ao Brasil. Na primeira, em 1548, desembarcou
no Nordeste. Na segunda, em 1550, seu barco naufragou em Santa Catarina.
Dois anos depois, chegou a São Vicente. Os portugueses lhe arrumaram então
um emprego como artilheiro no Forte de Bertioga. Em janeiro de 1554,
quando se preparava para voltar à Europa, onde teria “reconhecimento e
ouro” do rei de Portugal, foi atrás de um escravo índio desaparecido e caiu
em uma armadilha dos tupinambás, inimigos dos tupiniquins, que eram
aliados dos portugueses.
Interpretado no filme por Carlos Evelyn, o personagem consagrou em
seu relato um olhar tipicamente europeu sobre o “novo mundo da América”.
Em Hans Staden, o diretor e roteirista Luiz Alberto Pereira (que fez o
documentário Jânio a 24 Quadros e o longa de ficção Efeito Ilha) usa trechos
de seu relato como narração em off, mas não adota a perspectiva do viajante
alemão. A cuidadosa reconstituição de época funciona como se um
antropólogo estivesse presente na ocasião dos acontecimentos, com um
equipamento de filmagem no lugar do bloco de anotações, e registrasse de
modo supostamente neutro e objetivo o deslocamento cultural de Staden
entre os tupinambás.
Esse procedimento é diferente, por exemplo, do empregado por Nélson
Pereira dos Santos em Como Era Gostoso o Meu Francês (1970), que adota o
ponto de vista do índio em relação ao colonizador. Hans Staden prefere
deixar implícitas, mas perceptíveis, as consequências do “encontro” entre as
duas culturas, como agora se referem os portugueses ao descobrimento do
Brasil. Mas informa ao público o que se deu após o retorno de seu
protagonista à Europa, em uma caravela que o levou à França. Mais de 30 mil
tupinambás foram mortos em virtude de uma epidemia de varíola trazida
pelos europeus. Até o século 17, todos estariam mortos, em decorrência de
combates contra os colonizadores e doenças.
“Infeliz do homem que conta com o homem”, pragueja Staden quando
um francês amigo dos tupinambás hesita em ajudá-lo. Temia que fosse virar
comida e, naquele momento, culpava a falta de solidariedade entre os
brancos. Mas a frase caberia muito melhor na boca dos índios. O massacre de
que foram posteriormente vítimas torna-se ainda mais doloroso diante da
recriação detalhada de seus costumes em Hans Staden.
Hans Staden — Brasil/Portugal, 1999, 91 min. Direção e roteiro: Luiz Alberto Pereira. Com Carlos Evelyn, Ariana Messias, Darci Figueiredo, Beto Simas, Milton de Almeida, Reynaldo Puebla,
Jefferson Primo, Sérgio Mamberti, Stênio Garcia, Cláudia Liz, Valdir Ramos, Carol Li, Macsuara Kadwell, Jurandir Siridiwê, Valdir Raimundo. Distribuição em DVD: Versátil.

(Publicado em Educação 49, maio de 2001)


Hércules 56
Brasil, 2006
Direção: Silvio Da-Rin

Um dos episódios mais lembrados da ditadura militar, o sequestro do


embaixador norte-americano Charles Elbrick pela Dissidência da Guanabara
(depois Movimento Revolucionário Oito de Outubro, o MR-8) e pela Ação
Libertadora Nacional (ALN), em 1969, já havia sido recriado pelo cinema, de
modo ficcional, em O Que é Isso, Companheiro? (1997), de Bruno Barreto,
baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira – um dos maiores best-
sellers do período de redemocratização, a já distante “abertura” do governo
João Figueiredo.
Chegou a vez de retornar aos mesmos fatos em versão documental, com
Hércules 56. O primeiro longa-metragem dirigido pelo técnico de som Silvio
Da-Rin – autor do livro Espelho Partido: Tradição e Transformação do
Documentário (Azougue Editorial) e atual secretário do Audiovisual do
Ministério da Cultura — reconstitui o sequestro a partir dos depoimentos de
seus principais personagens e de imagens de arquivo.
Os nove sobreviventes do grupo de 15 presos políticos libertados em
troca do embaixador (entre eles, o ex-ministro José Dirceu e o ex-deputado
federal Vladimir Palmeira, ambos hoje no PT) dão seus depoimentos em
separado, em situação de isolamento semelhante àquela em que se
encontravam quando foram reunidos no avião Hércules 56 da Força Aérea
Brasileira que os levou para a liberdade no México.
Na ocasião, muitos não se conheciam, não tinham ideia dos grupos
clandestinos aos quais os demais pertenciam e não entendiam direito o que
estava acontecendo. Os seis presos políticos que morreram aparecem em
depoimentos antigos. Entre os responsáveis pelo sequestro, os remanescentes
(como o atual ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da
Presidência, Franklin Martins) se reúnem em torno de uma mesa para lembrar
como a operação foi executada e avaliar o significado da luta armada contra o
regime militar.
Hércules 56 — Brasil, 2006, 94 min. Direção e roteiro: Silvio Da-Rin. Distribuição em DVD: Videofilmes.

(Publicado em Educação 130, fevereiro de 2008)


O Homem ao Lado
El Hombre de al Lado
Argentina, 2009
Direcão: Mariano Cohn e Gastón Duprat

As primeiras imagens de O Homem ao Lado usam a tela dividida. Na


metade direita, vemos surgir um buraco provocado por marretadas em uma
parede interna, da perspectiva de quem faz o estrago. No lado esquerdo, um
buraco nasce em uma parede externa imaculada, graças às mesmas
marretadas. O efeito do contraste, simples e eficaz, resume bem o drama do
filme: uma crise entre vizinhos, que trata de valores e preconceitos.
Estamos quase o tempo todo junto a um bem-sucedido designer (Rafael
Spregelburd), casado e com uma filha adolescente. A família vive em uma
ampla casa que é também ponto turístico, em virtude do seu ousado conceito
arquitetônico (a produção recorreu a um projeto do franco-suíço Le Corbusier
construído em La Plata no final dos anos 1940). Certa manhã, eles descobrem
que o vizinho está abrindo uma janela no prédio ao lado. Além de constituir
uma aberração, a obra tornará devassável a intimidade da família.
Quem é o responsável pela afronta? O "homem ao lado" (Daniel Aráoz),
menos escolarizado e sofisticado do que seu ilustre vizinho. A janela tem o
objetivo de acabar com a escuridão em um dos cômodos de sua casa. Não
adianta lhe dizer que a resolução do seu problema vai criar outro, como
insiste o designer. Cria-se então um impasse entre os dois, que os diretores
Mariano Cohn e Gastón Duprat tratam, com a ajuda do roteirista Andrés
Duprat, como uma dor de cabeça do cotidiano que adquire proporções
intoleráveis.
À semelhança do que têm feito diversos filmes argentinos produzidos
nos últimos 15 anos, O Homem ao Lado ambienta em um cenário de classe
média — que o espectador reconhece facilmente, e com o qual tende a se
identificar — uma situação-limite que vai muito além dos personagens,
condensando temas que perpassam toda a sociedade. Neste caso, a
intolerância baseada em preconceito de classe e a dificuldade de entender as
razões do outro estão longe de pertencer exclusivamente ao embate entre
vizinhos por causa de uma janela.
O Homem ao Lado — Argentina, 2009, 100 min. Direção: Mariano Cohn e Gastón Duprat. Roteiro: Andrés Duprat. Com Rafael Spregelburd, Daniel Aráoz, Eugenia Alonso. Distribuição em
DVD: Imovision.
(Publicado em Educação 177, janeiro de 2012)
O Homem que Virou Suco
Brasil, 1980
Direção: João Batista de Andrade

A presença de nordestinos no eixo Rio-São Paulo foi um tema


incorporado com regularidade pelo cinema brasileiro a partir dos anos 1960,
tanto no documentário — como o clássico Viramundo (1968), de Geraldo
Sarno, pioneiro ao examinar com objetividade os fluxos migratórios no
período imediatamente posterior ao golpe militar de 1964 — quanto na
ficção, em que um dos exemplos mais recentes é Estômago (2007), de
Marcos Jorge, sobre um migrante (João Miguel) que ganha a vida como
cozinheiro na capital paulista.
Um dos marcos dessa filmografia é O Homem que Virou Suco, que
recebeu o prêmio de melhor filme no Festival de Moscou em 1981.
Especialmente simbólica nos tempos de “guerra fria” entre os EUA e a
URSS, a distinção bastaria para caracterizar o longa-metragem de João
Batista de Andrade (Doramundo, A Próxima Vítima) como uma visão do
tema sintonizada com o ideário político de esquerda, ao lado dos
trabalhadores e contra o capital (e o poder político patrocinado por ele).
No papel que o revelou, José Dumont faz Deraldo, ingênuo poeta
nordestino que procura sobreviver em São Paulo vendendo seus poemas.
Confundido com um operário de multinacional (também interpretado por
Dumont) que matou o patrão, ele é perseguido pela polícia — que o
considera culpado sem que tenha a chance de provar sua inocência — e passa
a viver na clandestinidade. Vítima da perda da própria identidade e dos
direitos civis, Deraldo traduz os percalços de tantos outros nordestinos em
condição semelhante que “viram suco” na metrópole.
Filmado em locações, com uso de câmera que lembra o documentário e
o próprio telejornalismo (nos quais Andrade também fez carreira), O Homem
que Virou Suco se tornou, quase 30 anos depois de seu lançamento, registro
audiovisual de seu tempo, permitindo que suas imagens se transformem em
objeto de análise das transformações no cenário paulistano durante as últimas
décadas e, por extensão, do processo de instalação da classe trabalhadora nas
regiões periféricas das grandes cidades brasileiras.
O Homem que Virou Suco — Brasil, 1980, 94 min. Direção e roteiro: João Batista de Andrade. Com José Dumont, Ruth Escobar, Ruthinéa de Moraes, Dominguinhos, Denoy de Oliveira.
Distribuição em DVD: Original.
(Publicado em Educação 149, setembro de 2009)
Um Homem Sério
A Serious Man
EUA, 2009
Direção: Joel e Ethan Coen

Em quase 30 anos de carreira, os irmãos Joel e Ethan Coen se


estabeleceram entre os principais diretores norte-americanos com longas que
retomam a tradição de gêneros, como o policial (Gosto de Sangue), a
comédia maluca (Arizona Nunca Mais) e o filme de gângster (Ajuste Final),
além de obras híbridas que combinam diversas referências, como Fargo,
Onde os Fracos Não Têm Vez (vencedor de quatro Oscar, incluindo os de
melhor filme e direção) e Queime Antes de Ler.
As raízes judaicas dos irmãos, contudo, não haviam sido tão expostas
quanto em Um Homem Sério, que acentua as referências biográficas ao se
ambientar no espaço (Bloomington, Minnesota) e tempo (final dos anos
1960) de sua adolescência. Pontuada pelo humor negro que caracteriza a obra
de ambos (Ethan é também dramaturgo), a trama observa com sarcasmo o
comportamento dos moradores de classe média de um subúrbio.
O personagem do título é o professor universitário Larry Gopnik
(Michael Stuhlbarg), que acompanhamos durante um período-chave de sua
vida. De uma perspectiva espiritual, os acontecimentos inesperados e
incontroláveis que o envolvem simbolizam uma espécie de provação, como
se Deus quisesse se certificar de sua índole. Mas, como sugere o prólogo do
filme, eles podem apenas representar o caráter aleatório e injusto que rege o
fluxo da existência.
Um dos dilemas enfrentados por Gopnik é profissional. Ao mesmo
tempo em que um aluno procura suborná-lo (e depois chantageá-lo) para
obter uma nota melhor, seu nome é considerado pelo conselho universitário
para uma promoção. Ele teme, com alguma razão, que a eventual repercussão
do primeiro episódio acabe por prejudicá-lo no segundo. O tratamento dado a
esse núcleo dramático transforma a escola em espaço de angústia para o
pobre Gopnik.
Um Homem Sério (A Serious Man) — EUA, 2009, 106 min. Direção e roteiro: Joel e Ethan Coen. Com Michael Stuhlbarg, Richard Kind, Sari Lennick. Distribuição em DVD: Universal.

(Publicado em Educação 159, julho de 2010)


Homens e Deuses
Des Hommes et des Dieux
França, 2010
Direção: Xavier Beauvois

A palavra "missão" pertence hoje ao vocabulário corporativo, apontando


para aquilo que uma empresa e seus "colaboradores" (empregados, em
português corrente) devem buscar o tempo todo. Há algumas décadas, no
entanto, o conceito de "ter uma missão" ainda servia exclusivamente para
enobrecer profissionais ou ativistas que dedicavam a existência a uma boa
causa. Em alguns casos, chegavam a morrer por ela. Muitos deles, na imagem
da carta-testamento de Getúlio Vargas, saíram da vida para entrar na história.
Com o esvaziamento do termo, entender "missão" como um dever de
ordem moral que se sobrepõe a qualquer outra circunstância talvez seja algo
circunscrito ao terreno da religião. Homens e Deuses vai buscar justamente na
entrega monástica o caso extremo que lhe permite discutir, de forma adulta e
serena, o significado de integridade e como a existência cotidiana dificulta
(mas não impossibilita) alcançá-la.
O diretor Xavier Beauvois e o roteirista Etienne Comar adaptaram um
episódio verídico ocorrido durante a guerra civil na Argélia, em 1996. Um
grupo de monges trapistas instalados em um monastério vivia em harmonia
com a população muçulmana de uma vila. Eles prestavam ajuda nas mais
variadas formas, mantinham laços de amizade com muitos dos habitantes e
eram respeitados, ao invés de serem vistos como "invasores franceses",
representantes dos antigos colonizadores.
O conflito altera esse equilíbrio, com a ação violenta de milícias
obrigando os monges a um doloroso processo de tomada de decisões. Parte
da grandeza de Homens e Deuses — título emprestado de uma citação bíblica
— está em fazer do espectador uma testemunha privilegiada dos dilemas,
debates e ações que envolvem os monges nessa situação em que ter uma
missão, e procurar se manter fiel a ela, adquire sentido exemplar.
O espírito pragmático que orienta a vida contemporânea, traduzido às
vezes por uma espécie de "vale tudo" em nome do êxito, cria dificuldades
naturais para todos os que procuram apresentar a crianças e jovens o
significado de integridade moral, de dever e de missão. Filmes como Homens
e Deuses auxiliam a ilustrar esse debate filosófico com diversas situações.
Épicos de fantasia como Star Wars, Matrix e O Senhor dos Anéis lidam
de modo lúdico com a ideia de "chamado" e com uma de suas decorrências
naturais nas narrativas de ficção, a "jornada do herói" — o percurso de um
protagonista em direção a um objetivo que diz respeito não só a ele, mas a
toda uma comunidade, e que exige fidelidade absoluta a certos princípios.
Em um registro realista, cinebiografias costumam ilustrar, de maneira
mais próxima da vida contemporânea, percursos semelhantes. Dramas como
Gandhi, Um Grito de Liberdade, Hotel Ruanda e o brasileiro Memórias do
Cárcere, baseado no livro de Graciliano Ramos, trazem homens que,
expostos a circunstâncias extraordinárias, mantêm a firmeza de caráter. Custe
o que custar — e o preço pode ser a própria vida.
Homens e Deuses (Des Hommes et des Dieux) — França, 2010, 122 min. Direção: Xavier Beauvois. Roteiro: Etienne Comar. Com Lambert Wilson, Michael Lonsdale, Olivier Rabourdin.
Distribuição em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 179, março de 2012)


Hotel Ruanda
Hotel Rwanda
EUA/Inglaterra/Itália/África do Sul, 2004
Direção: Terry George

Em 1994, o presidente de Ruanda, Juvenal Habyarimana, morreu em


atentado ao avião no qual viajava. Foi a senha para que o governo de maioria
hutu desse início a um massacre que até hoje incomoda a consciência do
Ocidente. Nenhum governo se empenhou para evitá-lo, embora houvesse
notícias do que ocorria. Saldo final, depois de três meses de sangue nas ruas:
cerca de 1 milhão de mortos, a maior parte de origem tutsi, o equivalente a
13% da população do país.
Seria como se 23 milhões de brasileiros fossem barbaramente
assassinados num período de janeiro a março. As vítimas morreram
sobretudo em virtude de suas origens; muita gente, no entanto, representava
apenas oposição à ação das milícias. Mais 1.268 pessoas teriam engrossado
as estatísticas se um herói anônimo, desses que só as circunstâncias revelam,
não houvesse entrado em cena para protegê-las com uma coragem insana.
Santa irresponsabilidade.
A história extraordinária de Paul Rusesabagina é recriada em Hotel
Ruanda. Quando o avião com o presidente Habyarimana caiu, ele era gerente
de um hotel em Kigali, a capital do país. E, vendo o agravamento do quadro,
pôs em risco a própria vida ao começar a esconder potenciais vítimas, até
chegar àquele número expressivo. Pouco a pouco, elas foram saindo do país.
Rusesabagina e sua mulher também.
O episódio lembra a atuação, durante a II Guerra Mundial, do
empresário Oskar Schindler, que evitou a morte de milhares de judeus ao
empregá-los, graças a seus bons contatos com os nazistas. Steven Spielberg
celebrou sua figura controvertida em A Lista de Schindler (1993).
Rusesabagina ganhou um filme menos épico, mas também voltado para a
emoção, ainda que seu papel seja interpretado com sobriedade por Don
Cheadle (que recebeu uma indicação ao Oscar de melhor ator).
O diretor e roteirista irlandês Terry George (roteirista de Em Nome do
Pai) concentra-se na ideia de que é possível manter a frieza e a integridade
moral mesmo nas condições mais adversas. Ao eleger o drama humano,
relega a segundo plano o cenário político. Não se deve esperar do filme
nenhuma explicação mais detalhada sobre os conflitos étnicos africanos que,
de vez em quando, explodem como no genocídio de Ruanda.
Continente sempre esquecido, a África tem sido objeto recente de
produções internacionais, como A Intérprete e O Jardineiro Fiel, ambos de
2005. O primeiro cria trama política ambientada em país fictício, enquanto o
segundo, embora se inspire em episódio verídico registrado na Nigéria, situa
no Quênia sua crítica à ação da indústria farmacêutica em países pobres. Um
pouco antes, Falcão Negro em Perigo (2001) reconstituiu mal-sucedida
operação militar norte-americana na Somália, em 1993.
Hotel Ruanda (Hotel Rwanda) — EUA/Inglaterra/Itália/África do Sul, 2004, 121 min. Direção: Terry George. Roteiro: Keir Pearson e Terry George. Com Don Cheadle, Sophie Okonedo,
Joaquin Phoenix. Distribuição em DVD: Imagem.

(Publicado em Educação 105, janeiro de 2006)


O Invasor
Brasil, 2002
Direção: Beto Brant

O sucesso de Cidade de Deus trouxe uma questão bem pontual ao


debate sobre a desigualdade social brasileira: estaríamos, sobretudo nos
grandes centros urbanos, diante de cidades “partidas”, como sugere o título
de livro escrito por Zuenir Ventura sobre o Rio de Janeiro, ou de
comunidades “cerzidas”? Na primeira hipótese, as parcelas da sociedade
viveriam apartadas umas das outras, em mundos distintos. Já a segunda
hipótese sustenta que esses mundos se comunicam, pois a empregada da
madame e os empacotadores do supermercado do bairro luxuoso vêm da
favela ou da periferia, fontes de abastecimento de mão de obra para as classes
privilegiadas. Sem a base da montanha, o topo não funcionaria.
A ideia da “partição” tem ótima tradução cinematográfica em Cidade de
Deus, que o diretor Fernando Meirelles adaptou do romance de Paulo Lins. A
do “cerzimento” é muito bem demonstrada por O Invasor, realizado pelo
diretor Beto Brant a partir da novela homônima de Marçal Aquino, autor dos
contos que inspiraram também os dois primeiros longas do cineasta, Os
Matadores (1997) e Ação entre Amigos (1998). A dupla chega aqui a seu
ponto de maturidade, não só pela leitura social que a trama proporciona, mas
também pela consistência (incomum no cinema brasileiro) que ela empresta
ao gênero policial.
“Bem-vindo ao pesadelo da realidade”, diz a letra da canção que
acompanha uma das cenas mais fortes. É um bom resumo do que se vê na
tela. Estão ali, condensados em meia dúzia de personagens, os principais
atores da peça sobre desigualdade social e violência que São Paulo e outros
centros urbanos protagonizam diariamente. “Incluídos” e “excluídos”
alinham-se em campo, com um elemento perturbador a atravessá-los: Anísio,
o matador de aluguel interpretado por Paulo Miklos, músico dos Titãs, em
sua impressionante estreia no cinema. O invasor, em carne e osso – o que
aparece sem ser chamado, e onde menos se espera, quando querem mais é
que desapareça em seu próprio mundo.
Na reveladora sequência de abertura, dois bem-sucedidos empresários
da construção civil (Alexandre Borges e Marco Ricca) deslocam-se até a
periferia para contratar esse sujeito. O desconforto flagrado ali é apenas um
preâmbulo do que se desenvolverá a partir daquele contrato firmado, em
última instância, com uma variante do diabo. Vende-se então a alma para
alguém que não se esquecerá da fatura. A posterior cobrança, ou “invasão”,
rompe um equilíbrio fantasioso que só existe na desinformação de quem se
julga acima da lei da selva. Uma jovem burguesa e ingênua (Mariana
Ximenes) esconde-se na trama como se fosse personagem secundária, mas,
ao final, revela-se o eixo. Cabem às imagens soturnas e à trilha musical (que
desdobra e comenta a ação) reforçar a impressão de pesadelo do qual se teme
não acordar jamais, nesse filme que, mesmo ao terminar, prolonga o mal-
estar social que recria.
O Invasor — Brasil, 2002, 97 min. Direção: Beto Brant. Roteiro: Marçal Aquino, Beto Brant e Renato Ciasca, baseado em novela de Marçal Aquino. Com Marco Ricca, Alexandre Borges, Paulo
Miklos, Mariana Ximenes, Malu Mader, Chris Couto, George Freire, Jayme Del Cueto, Tanah Correa. Distribuição em DVD: Europa.

(Publicado em Educação 68, dezembro de 2002)


Italiano para Principiantes
Italiensk for Begyndere
Dinamarca, 2000
Direção: Lone Scherfig

A Prefeitura de Hvidovre, pequena cidade dinamarquesa, oferece


gratuitamente a seus moradores cursos noturnos em diversas áreas, de
trabalhos manuais a línguas estrangeiras. Todas as salas estão lotadas, exceto
a de italiano. Apenas sete abnegados dedicam-se, uma vez por semana, a
manter um vínculo com a Itália por meio de seu idioma. Nenhum deles
conhece o país, mas todos sonham com ele. Se palavras tão sonoras e
expressões tão musicais servem para que as pessoas se comuniquem, o lugar
em que elas vivem só pode mesmo ter uma certa magia, acreditam os alunos.
A fria Dinamarca, com seu áspero dinamarquês, entra em contato com a
quente cultura latina em Italiano para Principiantes. É uma comédia
romântica agridoce, em que a leveza de algumas situações convive com o
pesar de outras. Boa parte dos personagens, por exemplo, lida com mortes
recentes. Andreas (Anders W. Berthelsen), o pastor recém-chegado à cidade,
ficou viúvo há pouco. Olympia (Anette Stovelbeck), atendente de uma
doceria, perdeu o pai. E Karen (Ann Eleonora Jorgensen), a cabeleireira do
bairro, perdeu a mãe. Estudar italiano, para eles, é também uma forma de
ocupar o tempo e preencher um pouco do vazio que os incomoda. Em uma
palavra, sociabilização.
Motivo idêntico leva às aulas o solteirão Jorgen (Peter Gantzler),
recepcionista de um hotel. Seu melhor amigo, Hal-Finn (Lars Kaalund),
também acompanha o curso, embora fale italiano fluentemente desde que
conheceu os jogadores da Juventus de Turim, o mais tradicional clube de
futebol da Itália, em uma excursão à cidade. Os destinos de todos esses
personagens, e de mais alguns moradores da pacata Hvidovre, misturam-se
graças sobretudo à ideia de que aprender um idioma estrangeiro é também
assimilar uma nova cultura. E, ao expor-se a esse novo código de valores e
costumes, eles veem suas vidas transformar-se.
Italiano para Principiantes é o 12º projeto com a chancela do
movimento Dogma 95, e o quinto a ser filmado (em seguida a Festa de
Família, Os Idiotas, Mifune e O Rei Está Morto). Essa proposta estética (que
muitos julgam ser apenas uma jogada promocional) surgiu em Copenhague,
na primavera de 1995, quando os cineastas Lars von Trier e Thomas
Vinterberg divulgaram “O Voto de Castidade”, manifesto que estabelece 10
regras a serem obedecidas pelos interessados em partilhar as ideias do grupo.
Filmagens em locações, com a câmera na mão, são obrigatórias (Hvidovre,
não por acaso, é a cidade-sede da Zentropa, a produtora de Von Trier e de
Italiano para Principiantes).
O Dogma 95 também proíbe o uso de música (exceto se vier da própria
ação), de iluminação artificial, de lentes e de efeitos visuais. Defende,
portanto, um cinema minimalista cujo formato parece bem adequado a
crônicas intimistas como a destes adultos que reorientam seus caminhos ao
voltar para a rotina escolar.
Italiano para Principiantes (Italiensk for Begyndere) — Dinamarca, 2000, 97 min. Direção e roteiro: Lone Scherfig. Com Anders W. Berthelsen, Anette Stovelbeck, Peter Gantzler, Ann
Eleonora Jorgensen, Lars Kaalund, Sara Indrio Jensen, Karen-Lise Mynster, Rikke Wolck. Distribuição em DVD: Imagem.

(Publicado em Educação 73, maio de 2003)


Invictus
Invictus
EUA, 2009
Direção: Clint Eastwood

Mesmo tendo aparecido pouco em público durante a recém-encerrada


Copa do Mundo, o ex-presidente sul-africano Nelson Mandela reinou como a
personalidade extrafutebolística mais homenageada naquele período. Não só
porque um dos estádios levava seu nome, em Porto Elizabeth, mas porque
sua participação no processo pacífico que levou ao fim do regime de
apartheid foi lembrada como evento crucial na história do país e um dos mais
celebrados em todo o planeta no final do século 20.
Por coincidência, a consolidação da liderança nacional de Mandela
passou por outro campeonato mundial de seleções, o de rúgbi, disputado em
1995 na África do Sul. Os bastidores da competição e também seus melhores
momentos nos gramados foram recriados em Invictus, que o diretor Clint
Eastwood e o roteirista Anthony Peckham extraíram do livro-reportagem
Conquistando o Inimigo, do jornalista inglês John Carlin (Sextante).
Autor também de Anjos Brancos - Entre o Céu e o Inferno, sobre o Real
Madrid, um dos principais clubes de futebol do mundo, Carlin juntou no livro
seu apreço pelo esporte com a admiração a Mandela, que conheceu como
correspondente do jornal britânico The Independent na África do Sul. Atraído
pela inteligência política do ex-presidente, que vislumbrou na Copa de 1995 a
oportunidade de reduzir o preconceito racial de ambas as partes, ele fez um
rico apanhado de personagens e episódios pré e pós-apartheid antes de
reconstituir o torneio.
Já a ênfase de Invictus está no período da competição, com Mandela
(Morgan Freeman) se indispondo com muitos de seus fiéis apoiadores ao
adotar com entusiasmo a seleção sul-africana de rúgbi, os Springboks —
paixão da população branca e, por sua associação com o apartheid, alvo
natural de ódio dos negros. Um de seus aliados nessa arriscada operação de
relações públicas é o capitão da equipe (Matt Damon), que vence o descrédito
dominante para se afirmar como representante simbólica de todos os sul-
africanos.
Embora o livro de Carlin fale sobre a vida de Mandela na prisão,
Invictus não se ocupa desse longo período. Outro filme recente, no entanto,
opta pelo recorte da reclusão: Mandela - Luta pela Liberdade (2007), dirigido
pelo dinamarquês Bille August (Pelle, o Conquistador) e baseado nas
memórias do agente penintenciário James Gregory, que conviveu por 22 anos
com o mais ilustre prisioneiro da África do Sul.
A história entre os dois teve início em 1968, quando Gregory (Joseph
Fiennes, de Shakespeare Apaixonado) assumiu novo posto na prisão da ilha
Robben. Responsável pela censura às correspondências e às visitas, ele
recebeu a missão de vigiar Mandela (Dennis Haysbert, o presidente dos EUA
nas cinco primeiras temporadas do seriado 24 Horas) e abastecer o serviço de
inteligência com informações estratégicas.
O cinema também dramatizou diversos episódios ocorridos durante o
regime de apartheid, em filmes como Um Grito de Liberdade (1987), sobre a
ligação entre o jornalista branco Donald Woods (Kevin Kline) e o ativista
negro Steve Biko (Denzel Washington); Um Mundo à Parte (1988), sobre
uma família de militantes brancos de esquerda perseguidos pelo governo; e
Assassinato sob Custódia (1989), sobre a conscientização de um branco
(Donald Sutherland) após a morte brutal do filho de seu jardineiro, de 11
anos.
Representações da sociedade sul-africana pós-apartheid podem ser vistas
em Infância Roubada (2005), que obteve o Oscar de filme estrangeiro ao
contar a história de uma gangue infantojuvenil, em espécie de cruzamento
entre os brasileiros Pixote e Cidade de Deus, e também no provocador
Distrito 9 (2009), ficção científica sobre uma nave alienígena que "quebra"
sobre Johanesburgo e obriga o governo a criar um campo de refugiados onde
passam a viver os indesejáveis extraterrestres.
Invictus (Invictus) — EUA, 2009, 133 min. Direção: Clint Eastwood. Roteiro: Anthony Peckham, baseado no livro-reportagem Conquistando o Inimigo, de John Carlin. Com Morgan Freeman,
Matt Damon, Tony Kgoroge. Distribuição em DVD e Blu-ray: Warner.

(Publicado em Educação 161, setembro de 2010)


Janela da Alma
Brasil, 2002
Direção: João Jardim
Codireção: Walter Carvalho

A excepcional safra de documentários brasileiros lançada em 2002


incluiu ao menos uma surpresa de bilheteria: mais de 100 mil pessoas foram
aos cinemas para ver Janela da Alma. Número que se torna ainda mais
expressivo diante da pequena quantidade de cópias distribuídas, do
investimento restrito em publicidade e da suposta aridez do tema – o filme
consiste em depoimentos sobre o olhar. Eis, portanto, um êxito de
“propaganda boca a boca”. Quem vê e gosta recomenda aos amigos,
alimentando a corrente.
Essa tarefa aparentemente inglória, a de usar palavras para referir-se ao
mundo das imagens, é levada a bom termo pelos diretores João Jardim e
Walter Carvalho. Míopes, eles ouviram personagens com deficiências de
visão, bem como quem tivesse contribuição interessante a dar sobre o
assunto. Recolheram observações ricas e diversificadas sobre o
funcionamento do olhar e suas relações complexas com os outros sentidos, o
cérebro e a emoção.
O escritor português José Saramago, por exemplo, adota o raciocínio de
que vemos na medida certa. Nem mais, nem menos. “Se o Romeu da história
tivesse os olhos de um falcão, provavelmente não se apaixonaria pela Julieta,
porque os olhos dele veriam uma pele que não seria agradável de ver, porque
a acuidade visual do falcão não mostraria a pele humana tal como a vemos”,
lembra. Saramago é também o autor de uma frase-síntese de múltipla
aplicação: “Para conhecer as coisas há que dar-lhes a volta”.
O neurologista americano Oliver Sacks, autor de best-sellers como
Tempo de Despertar (adaptado para o cinema, com Robin Williams) e O
Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu, acrescenta outros
elementos à discussão. “O reconhecimento, a memória visual e toda forma de
percepção devem estar inseparavelmente ligados à emoção. Quando a
memória visual é desconectada da emoção que lhe corresponde, uma grave
crise nervosa pode ocorrer”, alerta. Mais ou menos como resume o cineasta
alemão Wim Wenders: “Creio que vemos em parte com os olhos, mas não
exclusivamente”.
Já o poeta Manoel de Barros inverte a equação: “Não acho que seja pelo
olho que entram as coisas minhas, elas não entram, elas vêm, aparecem de
dentro, de dentro de mim”. Entre os demais entrevistados, cabe um papel
especial a dois cegos: Arnaldo Godoy, vereador em Belo Horizonte, e o
fotógrafo franco-esloveno Evgen Bavcar, autor de obra espantosa e, de certa
maneira, perturbadora (foi ele o inspirador do longa australiano A Prova).
Janela da Alma insere imagens variadas entre os depoimentos, desde
paisagens urbanas até detalhes do corpo humano, sob a trilha musical de José
Miguel Wisnik, cuja missão é criar ambientação sonora para um mosaico ora
filosófico, ora anedótico, no qual é muito fácil e prazeroso embarcar.
Janela da Alma — Brasil, 2002, 73 min. Direção e argumento: João Jardim. Codireção e roteiro: Walter Carvalho. Com José Saramago, Hermeto Pascoal, Oliver Sacks, Wim Wenders, Evgen
Bavcar, Arnaldo Godoy, Paulo Cezar Lopes, Agnès Varda, Manoel de Barros, Marieta Severo, Antonio Cícero, Marjut Rimminen, Carmela Gross, Walter Lima Jr., João Ubaldo Ribeiro.
Distribuição em DVD: Europa.

(Publicado em Educação 78, outubro de 2003)


O Judeu
Brasil/Portugal, 1995
Direção: Jom Tob Azulay

“Desvios graves na prática e no respeito à fé cristã”: já houve tempo em


que essa acusação poderia levar o réu a ser queimado em praça pública.
Durante o reinado de terror promovido pela Inquisição, cabia ao Tribunal do
Santo Ofício julgar os responsáveis por tais heresias e atribuir-lhes as penas
cabíveis. A mais grave delas era a execução. Um dos casos mais célebres na
história luso-brasileira foi a de Antonio José da Silva, dramaturgo conhecido
como “O Judeu”. Nascido no Brasil, ele mudou-se com a família do Rio de
Janeiro para Lisboa em 1713, durante o reinado de D. João V. Mais de 100
famílias de cristãos-novos fizeram a mesma viagem para serem julgadas, em
Portugal, pelo crime (!) de judaísmo.
Antonio José da Silva morreu na fogueira, em 19 de outubro de 1739, na
presença do rei e da corte. O Judeu lança algumas luzes sobre o processo que
levou à sua execução, e permite compreender alguns dos mecanismos
hediondos da Inquisição – reflexão oportuna diante do recente crescimento,
em várias regiões do mundo, de conflitos gerados por intolerância religiosa.
O filme de Jom Tob Azulay preocupa-se mais com a detalhada reconstituição
dos acontecimentos – as filmagens foram realizadas em Lisboa, Óbidos e
Mafra – do que em traçar paralelos com questões contemporâneas. Seu
evidente recado, porém, é o de que uma civilização digna desse nome jamais
poderia aceitar outra vez a existência dessa espécie de perseguição. Nada
autoriza, infelizmente, a acreditar que episódios semelhantes não continuem
sujando de sangue a história da humanidade.
Foi o cineasta Alberto Cavalcanti, brasileiro radicado na Europa, quem
primeiro teve a ideia de transformar em filme a vida de Antonio José da
Silva. Morreu sem tocar o projeto, abraçado nos anos 1980 por Azulay. Uma
série de percalços, entre eles a morte dos atores Felipe Pinheiro e Dina Sfat
antes dos trabalhos de finalização, fez com que O Judeu fosse concluído
apenas em 1995, quando recebeu o prêmio de melhor filme no Festival de
Brasília. Mais algum tempo se passou até a estreia nos cinemas, e outro tanto
até a chegada do filme às locadoras. Assistir a ele, independente de sua
importância histórica e de suas qualidades, é também uma maneira de
reconhecer e premiar a heroica persistência de Azulay.
Antonio chegou a Portugal ainda criança. Estudou Direito na
Universidade de Coimbra e, aos 18 anos, viu sua família, convertida ao
cristianismo para sobreviver à Inquisição, ser novamente acusada. Ele, a mãe
e os irmãos foram torturados e, posteriormente, soltos por falta de provas.
Poderiam seguir o exemplo de outras famílias de judeus que, depois de se
converterem, fugiram de Portugal para escapar da perseguição, fixando-se na
Inglaterra e na Holanda. Preferiram, no entanto, permanecer em Lisboa. Anos
depois, quando Antonio já estava casado com uma antiga namorada, Leonor
Carvalho, a Inquisição voltou à carga, ainda sem provas concretas de heresia,
mas disposta a condená-los. Até a expressão “céu da boca”, usada pelo
dramaturgo, serviu de pretexto.
Autor de comédias como História do Grande D. Quixote de la Mancha
e do Gordo Sancho Pança (1733), Esopalda (1734) e O Anfitrião (1736),
Antonio era o “escritor do Bairro Alto”, referência ao local onde suas peças
eram apresentadas em Lisboa, e apontado como o maior nome do teatro
português do século 18. Na noite em que foi queimado, o Teatro do Bairro
Alto fez uma sessão de seu último texto, O Precipício de Faetonte. Os
aplausos do público foram insuficientes para apagar, perto dali, o fogo
criminoso da Inquisição.
O Judeu — Brasil/Portugal, 1995, 90 min. Direção: Jom Tob Azulay. Roteiro: Geraldo Carneiro, Millor Fernandes e Gilvan Pereira. Com Felipe Pinheiro, Dina Sfat, Mário Viegas, José Lewgoy,
Fernanda Torres. Distribuição em VHS: RioFilme.

(Publicado em Educação 10, fevereiro de 1998)


Juno
Juno
EUA, 2007
Direção: Jason Reitman

A atuação de Ellen Page no papel-título de Juno transforma


naturalmente a atriz – que trabalha desde os 10 anos – em alvo de todos os
holofotes dirigidos ao filme, mas há uma outra moça com grande
responsabilidade por esse surpreendente êxito de bilheteria nos EUA e
também no Brasil: a escritora Brooke Busey, que adotou o pseudônimo de
Diablo Cody.
Premiada com o Oscar pelo roteiro, Diablo teve uma vida agitada para
quem alcançou a notoriedade com menos de 30 anos. Ela se mudou de cidade
para se casar com um namorado que conheceu pela internet, largou um bom
emprego em agência de publicidade para trabalhar como stripper em casas
noturnas, foi atendente de telessexo e publicou um livro (Candy Girl, ainda
inédito no Brasil) baseado nessas experiências.
Sua caminhada parece tão característica dos novos tempos quanto a de
sua personagem, uma adolescente que engravida do namorado e adota
maneira inusitada de lidar com a situação. Não é um papel fácil, mas Ellen
Page investe toda a simpatia que seu rosto e expressão despertam para tornar
Juno verossímil aos olhos do público. Para quem está na mesma faixa etária,
ela se parece com uma colega extravagante de escola; as gerações à frente
vão aceitá-la como a filha espivetada... do vizinho, claro.
A gravidez não planejada de Juno aponta para uma sociedade em que
adolescentes são apresentados precocemente a problemas adultos. E, em
mundo de estímulos múltiplos e constantes aos quais é difícil resistir, a busca
de paz e liberdade de ação parece não caber diante de valores como sucesso,
posse e status. O apelo do filme se estrutura no modo feliz de condensar, da
perspectiva juvenil, o incômodo com esses modelos de comportamento e a
crença de que cada um deve tocar a sua vida como achar melhor, desde que
respeite as opções do outro.
Juno (Juno) — EUA, 2007, 92 min. Direção: Jason Reitman. Roteiro: Diablo Cody. Com Ellen Page, Michael Cera, Jennifer Garner, Jason Bateman, J. K. Simmons. Distribuição em DVD e Blu-
ray: Paris.

(Publicado em Educação 138, outubro de 2008)


Kiriku e a Feiticeira
Kirikou et la Sorcière
França/Bélgica/Luxemburgo, 1998
Direção: Michel Ocelot

Tamanha é a hegemonia dos grandes estúdios norte-americanos de


animação (Disney, Warner e DreamWorks) no mercado cinematográfico
mundial que todo filme independente, ou ao menos alheio a esse circuito
dominante, já é saudado com simpatia e interesse, como A Viagem de Chihiro
(2002), do mestre japonês Hayao Miyazaki, vencedor do Oscar da categoria
nesse ano. Além da transmissão de valores associados à sociedade norte-
americana, os desenhos produzidos por Hollywood – especialmente os que
utilizam tecnologia digital — tendem a recriar formas e texturas da realidade
com perfeccionismo cada vez maior, e são elogiados por isso.
Há outras possibilidades, no entanto, como demonstram os filmes quase
artesanais do francês Michel Ocelot, que foi presidente da Associação
Internacional do Cinema de Animação de 1994 a 2000. Nada mau para um
diretor que fará 40 anos em 2004 e que tem um currículo relativamente
pequeno, com quatro curtas-metragens e apenas dois longas, Kiriku e a
Feiticeira (1998) e Príncipes e Princesas (2000), ambos já exibidos nos
cinemas brasileiros. O primeiro foi lançado em vídeo há alguns anos, mas
andava desaparecido das locadoras, e retorna agora também em DVD, o que
permite assistir a ele na versão original em francês (com legendas em
português) ou na dublagem nacional.
Kiriku é um ótimo cartão de visita para o trabalho de Ocelot, de grande
apelo tanto para crianças quanto para jovens e adultos. Suas técnicas de
animação seriam provavelmente criticadas em Hollywood pela simplicidade
dos traços e das cores. É justamente essa opção por um visual mais “limpo”,
porém, que atribui a seus filmes um charme especial: eles são desenhos que
se afirmam como desenhos mesmo, sem nenhum complexo, em vez de querer
“enganar” o espectador como se fossem protagonizados por personagens de
carne e osso, a exemplo de Toy Story (95), Shrek (2001) ou Monstros S.A.
(2002). Fãs da animação no cinema reconhecerão com prazer o uso de
técnicas clássicas feito por Ocelot.
Além disso, seus filmes têm a preocupação de resgatar lendas e contos
populares em uma releitura espirituosa, capaz de agradar aos espectadores de
hoje. Kiriku inspira-se em uma história da África Ocidental sobre uma
criança que já nasce falando e andando. Sua maior preocupação, ao entender
o que ocorre à sua volta, é salvar a aldeia onde mora do jugo imposto a ela
pela feiticeira Karabá. Faz isso com inteligência, firmeza e bom humor.
Ocelot encomendou a trilha sonora ao músico Youssou N’Dour e exigiu que
fossem empregados apenas instrumentos tradicionais para produzir música de
raiz, com ótimo resultado. E recriou, graças a esse tratamento audiovisual,
um continente africano de sonho, habitado por personagens míticos que
ajudam a entender a cultura de seus povos.
Kiriku e a Feiticeira (Kirikou et la Sorcière) — França/Bélgica/Luxemburgo, 1998, 74 min. Direção e roteiro: Michel Ocelot. Com as vozes de Antoinette Kellermann (Karabá), Fezele Mpeka
(Tio), Kombisile Sangweni (Mãe), Theo Sebeko (Kiriku), Mabutho Sithole (Velho). Distribuição em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 80, dezembro de 2003)


Kolya – Uma Lição de Amor
Kolya
República Tcheca/França/Inglaterra, 1996
Direção: Jan Sverák

Contam-se nos dedos, hoje, os filmes capazes de entreter e ao mesmo


tempo de ensinar, de emocionar e de fazer refletir, de sair do particular para
chegar ao universal sem que o espectador note as sutis escalas da viagem. O
inglês Ken Loach, de Agenda Secreta (1990) e Terra e Liberdade (1995), é
um dos poucos mestres nessa arte a permanecer em atividade. Para a sorte de
quem ainda acredita no cinema como manifestação cultural de alguma
importância, Loach ganhou recentemente a companhia do tcheco Jan Sverák,
nome a acompanhar com atenção nos próximos anos.
Sverák estreou na direção com Lições de Infância (1991), crônica
ambientada em uma escola tcheca interiorana, no final da II Guerra Mundial,
e que lhe valeu uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro. Sem grandes
pretensões, o filme já antecipava a matéria-prima de Kolya, ao reconstituir
um momento preciso na história do país por meio da vida cotidiana de
personagens anônimos, muito distantes da roupagem de heróis. É o caso de
Frantisek Louka, o protagonista de Kolya, um violoncelista cinquentão
expulso da orquestra pública em que trabalhava, na Tchecoslováquia dos
anos 1980, ainda sob controle soviético, acusado de ser “dissidente”.
Boa-vida convicto, Louka não tem vergonha de admitir que ganhou o
rótulo de “dissidente” apenas porque, ao retornar de uma excursão à Europa
Ocidental, disse às autoridades ter se encontrado com dissidentes e falado
com eles a respeito da “m... de sempre”. Nada menos parecido com um herói
da resistência a Moscou do que um músico solteirão punido por soltar um
palavrão num interrogatório policial... E, no entanto, são personagens como
Louka que permitem compreender como se vivia no dia a dia tcheco
enquanto ruíam as colunas do império soviético.
Essa discreta aula de história contemporânea convive com uma fábula
de dimensão universal. Para poder comprar um carro, Louka aceita a proposta
feita por um amigo, de levar alguns trocados para casar-se com uma russa
que precisa de documentos tchecos. A confusão tem início quando a moça
foge para a Alemanha, onde vai encontrar o amante, acionando o
desconfiômetro das autoridades locais, para as quais o tal casamento cheira a
farsa. E, como se as coisas já não estivessem complicadas, a “esposa” deixa
em Praga seu filho, Kolya, que não fala uma palavra de tcheco.
Cabe a Louka, muito a contragosto, interpretar o papel de padrasto e
levar para casa uma criança com quem mal consegue se comunicar, pois não
fala russo. Músico em uma orquestra que toca em funerais, ele arrasta Kolya
para as cerimônias. Não demora muito para que o garoto, fanático por lápis e
papel, comece a especializar-se em desenhar caixões e defuntos. Percebe-se
desde o início que Louka não é o único a sentir-se constrangido pela situação.
Kolya transmite, com uma intensidade rara de encontrar em crianças-atores, a
quase insuportável sensação de viver em um mundo ao qual não se pertence,
completamente desligado das pessoas e coisas com que aprendeu a conviver.
Kolya foi escrito pelo pai do diretor, o ator teatral Zdenek Sverák, que
interpreta Louka. O papel da criança cabe a Andrej Chalimon, descoberto em
um teste. Ambos formam na tela uma dupla memorável. Na última cerimônia
de entrega do Oscar, subiram todos ao palco para receber, junto com Jan
Sverák, o prêmio de melhor filme estrangeiro. Bem-humorado, o diretor
apresentou a estatueta à sua “nova família”, com a qual viajaria para seu novo
lar, em um país distante. De alguém capaz de uma brincadeira ingênua e
adorável como essa, em circunstância habitualmente dominada pelo mais
cafona dos rigores, só se poderia esperar um filme em que a vida pública e a
privada confundem-se de tal modo que, como no mundo real, ganha um
prêmio quem disser onde começa uma e termina a outra.
Kolya – Uma Lição de Amor (Kolya) — República Tcheca/França/Inglaterra, 1996, 110 min. Direção: Jan Sverák. Roteiro: Zdenek Sverák. Com Zdenek Sverák, Andrej Chalimon, Libuse
Satrankova. Distribuição em DVD: Versátil.

(Publicado em Educação 7, novembro de 1997)


O Ladrão
Vor
Rússia, 1997
Direção e roteiro: Pavel Chukhrai

Filmes que adotam a perspectiva infantil lidam com o desafio de


reconstruir satisfatoriamente algo de que todo espectador ainda se lembra: o
gigantismo do mundo adulto quando visto por uma criança. Os pais, em
especial, tornam-se “maiores” e mais fortes do que na realidade. Além disso,
há também uma aura de mistério cercando alguns diálogos e ações,
incompreensíveis em toda a sua extensão por quem mal sabe ler e apenas
começou a montar o quebra-cabeça da vida em sociedade.
Essas sensações difusas são muito bem recriadas pelo diretor russo
Pavel Chukhrai em O Ladrão. Ganhador de três prêmios secundários no
Festival de Veneza, ele recebeu o mesmo aval de qualidade de outras obras
recentes sobre a infância, como o tcheco Kolya (1996), o iraniano Filhos do
Paraíso (1997), Central do Brasil (1998) e o italiano A Vida é Bela (1998):
uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro, que só o primeiro e último deles
obtiveram. Além disso, Chukhrai concorreu também ao European Film
Award, espécie de “Oscar europeu”.
Sanya (Mikhail Filipchuk), o protagonista de O Ladrão, nasceu em 1946
e jamais conheceu o pai, soldado que teria morrido alguns meses antes. O
prólogo do filme apresenta as circunstâncias insólitas de seu parto, quase um
aviso das dificuldades e do sofrimento que viriam mais tarde. A narrativa
salta então para 1952, quando ele e a mãe, Katya (Yekaterina Rednikova),
viajam em busca de um novo lugar para fixar residência. No trem, conhecem
um oficial do exército soviético, Tolyan (Vladimir Mashkov).
A carência de Katya e o charme de Tolyan formam uma mistura
explosiva e rapidamente dão origem a uma “família”. Do ponto de vista de
Sanya, as coisas não ficam muito claras. O estranho que passa a viver com
eles é tratado, primeiro, como um “tio”. Simpático, é bom que se diga:
permite que a criança brinque com sua arma e a defende em brigas com
garotos maiores da vizinhança. Ao comportar-se assim, o “tio” transforma-se
sutilmente em “pai”. Mas há um problema: Sanya já havia criado um “pai”
imaginário e agora não sabe o que fazer com o novo.
O tema da imagem paterna ganha também um desdobramento político.
Chukhrai insinua nas entrelinhas que o ditador Iossif Stálin (1879-1953) era
de certa forma o “pai” que os ingênuos cidadãos russos das classes populares
idealizavam, sem qualquer noção do que realmente ocorria no centro do
poder soviético. Os problemas que Sanya enfrentará por causa de Tolya, ou
da imagem equivocada que formou dele, lembram os que a extinta União
Soviética viveria na era pós-Stálin.
O Ladrão caminha o tempo todo para um desfecho amargo que o
espectador vislumbra bem antes do que Katya e Sanya. O problema das
imagens idealizadas é que, para quem observa de fora, tudo parece muito
claro. Mas, da ótica de quem idealiza, só mesmo um trauma profundo para
reajustar, da pior maneira possível, a percepção da realidade.
O Ladrão (Vor) — Rússia, 1997, 97 min. Direção e roteiro: Pavel Chukhrai. Com Vladimir Mashkov, Yekaterina Rednikova, Mikhail Filipchuk, Amaliya Mordvinova, Lidiya Savchenko, Anna
Shtukaturova, Olga Peshkova, Anatoli Koshcheyev, Lyudmila Selyanskaya, Viktor Bunakov. Distribuição em VHS: Europa.

(Publicado em Educação 46, fevereiro de 2001)


Ladrões de Bicicleta
Ladri di Biciclette
Itália, 1948
Direção: Vittorio De Sica

Com o final da II Guerra, foi apresentada a diversos estúdios norte-


americanos a proposta de coproduzir um drama italiano sobre um pai de
família que, desempregado há anos, finalmente arruma ocupação, como
colador de cartazes para a Prefeitura de Roma. Ele precisa de sua própria
bicicleta para trabalhar – e, logo no primeiro dia, o instrumento de trabalho é
roubado.
Os estúdios se recusaram a participar do projeto, sob o argumento de
que ninguém se interessaria em ver drama tão corriqueiro, sem o caráter
extraordinário das produções hollywoodianas. Apenas um deles se mostrou
interessado, desde que fosse contratado para o papel principal o ator Cary
Grant – um dos grandes ícones de sofisticação do cinema norte-americano.
Viabilizou-se o filme apenas com recursos italianos. Um ex-
desempregado interpretou o protagonista, outros atores não profissionais se
espalharam pelo elenco, as cenas foram rodadas nas ruas e apartamentos de
trabalhadores da capital italiana. Um sentido de poesia social transformou
Ladrões de Bicicleta (1948) em um dos maiores clássicos do neorrealismo.
Todo o cinema do pós-guerra deve muito a esse movimento que ensinou
a olhar para os dramas do homem comum e a se solidarizar com ele.
Descobriu-se então o que hoje parece óbvio: o espectador pode, sim,
interessar-se por filmes que tratem de problemas semelhantes aos seus,
criando identificação ainda maior do que nas situações em que os
personagens vivem em mundos inalcançáveis.
Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette) — Itália, 1948, 90 min. Direção: Vittorio De Sica. Roteiro: Cesare Zavattini, Suso Cecchi D'Amico, Vittorio De Sica, Oreste Biancoli, Adolfo Franci e
Gerardo Guerrieri, baseado em romance de Luigi Bartolini. Distribuição em DVD: Versátil.

(Publicado em Educação 109, maio de 2006)


Lances Inocentes
Searching for Bobby Fischer/Innocent Moves
EUA, 1993
Direção: Steven Zaillian

E se na calada da noite o Ronaldinho preparasse as malas e, sem avisar


ninguém, sumisse do mapa? Pois um dia Bobby Fischer, o Ronaldinho do
xadrez, fez isso. Desapareceu sem deixar rastro. Teria optado pelo
isolamento, enlouquecido ou morrido? Nenhum de seus admiradores, a
exemplo da imprensa, tinha a resposta. Nos círculos de enxadristas norte-
americanos, deu-se então início a uma busca obsessiva pelo “novo Bobby
Fischer”, alguém capaz de igualar os feitos do mito, que se tornou Grande
Mestre aos 15 anos e em 1972, aos 29, derrotou o russo Boris Spassky,
tornando-se o primeiro norte-americano a ganhar o campeonato mundial de
xadrez. O título foi cassado em 1975, quando Fischer, brilhante e
temperamental, recusou-se a enfrentar um desafiante.
A imagem mitológica deixada por essa figura complexa é o ponto de
partida para Lances Inocentes, estreia na direção de Steven Zaillian, o
roteirista de A Lista de Schindler (1993) e Missão Impossível (1996).
Baseado em história verídica e exibido discretamente nos cinemas, o filme é
uma dessas joias escondidas nas prateleiras das videolocadoras. Antes que
alguém se assuste, ele dispensa inteiramente conhecimentos prévios de
xadrez para ser admirado. É evidente que a experiência de já ter procurado
imobilizar o rei do adversário ajuda a captar as sutilezas da história, como
também ocorre em Fresh (1994), outro belo filme sobre xadrez. Mas não se
trata de pré-requisito: basta saber que os duelos, nesse jogo de memória,
raciocínio e concentração, têm sempre um vencedor e um perdedor.
Por meio do xadrez, Lances Inocentes descreve a exposição de uma
criança de sete anos aos conceitos de vitória e derrota que governam o mundo
adulto. Precoce, dirão alguns. Pedagógico, defenderão outros. Josh Waitzkin,
o garoto da história, é sensível, espirituoso e carinhoso. Por acidente, a mãe
descobre que ele aprendeu sozinho a jogar xadrez e é capaz de enfrentar
adultos de igual para igual em tabuleiros instalados sob árvores em praças de
Nova York. O pai, jornalista esportivo, primeiro tenta compreender o
mistério do aprendizado. Depois, deixa-se seduzir pela hipótese de ter em
casa um “novo Bobby Fischer”. Transfere para Josh seus próprios sonhos
frustrados de “vitória”, e direciona a vida do menino para a disputa de
competições.
Incapaz de compreender os meandros do esporte e de contribuir para o
aperfeiçoamento do filho, ele solicita os serviços de um experiente professor
de xadrez. Surpreso com a inteligência de Josh, o velho mestre aceita a
incumbência de preparar o garoto, também de olho na descoberta do “novo
Bobby Fischer”. Como se fosse pouco, nosso pequeno fenômeno passa a ter
outro adulto a encará-lo como oportunidade de redenção. Rigor e disciplina
incorporam-se ao seu dia a dia e, embora ele não possa compreender o
significado das lições existenciais que o professor procura lhe transmitir,
passa a ser cobrado por elas.
Dois outros adultos servem de contrapeso para evitar o colapso de Josh:
sua mãe, determinada a protegê-lo e a preservar-lhe a inocência, e um
enxadrista de rua, cujo estilo irresponsável (ou seria corajoso?) de jogo irrita
o professor. Fábula sobre os riscos e as recompensas do aprendizado e do
ensino, Lances Inocentes é também uma perturbadora demonstração de como
adultos – humanos, demasiado humanos – se apropriam do talento de
crianças para dar vazão a seus próprios desejos, muitas vezes sem perceber
que os projetam na vida de seus filhos (e, por que não, alunos). Ensina-me a
viver, mas por mim, não por você.
Lances Inocentes (Searching for Bobby Fischer/Innocent Moves) – EUA, 1993, 110 min. Direção e roteiro: Steven Zaillian, baseado em livro de Fred Waitzkin. Com Max Pomeranc, Joe
Mantegna, Joan Allen, Ben Kingsley, Laurence Fishburne, William H. Macy, David Paymer. Distribuição em VHS: CIC/Paramount.

(Publicado em Educação 16, agosto de 1998)


Liam
Liam
Reino Unido/França/Alemanha, 2000
Direção: Stephen Frears

Embora seja muito criticado dentro de seu próprio país, o cinema


britânico tem ao menos um exemplo a dar: o de como manter viva a chama
“trabalhista”, ou a preocupação com as causas sociais e a classe operária. O
tema fornece matéria-prima, por exemplo, para boa parte dos filmes dirigidos
por Ken Loach, como Ladybird, Ladybird – Sombras de um Passado (1993)
e Meu Nome é Joe (1998). E, ainda que não constitua o foco principal, o
cotidiano em subúrbios habitados por trabalhadores empresta o pano de
fundo para obras mais populares como Billy Elliot (2000). O operariado
britânico pode até não gostar da representação que o cinema faz dele, mas ao
menos é representado com regularidade na tela.
Liam associa essa tradição proletária a outra fórmula bem-sucedida, a do
drama social protagonizado por crianças. O personagem do título
(interpretado pelo estreante Anthony Borrows) tem 7 anos e é o caçula de três
irmãos. O mais velho, Con (David Hart), já é um adulto, enquanto a do meio,
Teresa (Megan Burns), 13 anos, começou a trabalhar como empregada
doméstica para encorpar o orçamento da família. Quem sustenta a casa é o
pai (Ian Hart, de Terra e Liberdade), operário de um estaleiro. E à mãe
(Claire Hackett) cabe tomar conta dessa turma. Não sobra dinheiro, mas não
faltam afeto e alegria. O problema é que estamos em Liverpool, uma das
maiores cidades operárias da Inglaterra, na década de 1930, bem no epicentro
de uma depressão econômica.
Basta que o estaleiro onde o pai trabalha feche, como resultado da crise,
para que a rotina da família seja duramente afetada. Em primeiro lugar, pelo
desemprego, ou a perspectiva cada vez mais difícil para que chefes de família
obtenham novamente um salário, por menor que seja. Depois, pela xenofobia:
parte dos empregos restantes é ocupada por irlandeses, que se sujeitam a
ganhar menos e a trabalhar em piores condições, gerando revolta nos
trabalhadores ingleses que, acreditam eles, têm seus empregos “roubados”
por “estrangeiros”. O fascismo planta ali sua semente. O cenário é
conturbado ainda pela tensão religiosa entre católicos e protestantes; o
roteirista Jimmy McGovern, que escreveu também o polêmico O Padre
(1994), explora o assunto com desenvoltura. Não por acaso, o filme recebeu o
prêmio do júri católico no Festival de Veneza, em 2000.
Adultos são capazes de assimilar tudo isso, mesmo que a duras penas,
mas a vida repentinamente conturbada traz areia demais para o
caminhãozinho de uma criança como Liam. Seu olhar expressivo, de quem vê
mais do que gostaria ou do que entende, e uma dificuldade em falar,
traduzida em gagueira, criam uma aparência de fragilidade que cede lugar,
em momentos-chave da história, a uma bravura insuspeita, que o diretor
Stephen Frears (Ligações Perigosas, A Grande Família) procura equilibrar
entre a rudeza da situação e a delicadeza da alma.
Liam (Liam) — Reino Unido/França/Alemanha, 2000, 90 min. Direção: Stephen Frears. Roteiro: Jimmy McGovern. Com Ian Hart, Claire Hackett, Anthony Borrows, David Hart, Megan Burns,
Anne Reid, Russell Dixon. Distribuição em DVD: Imagem.

(Publicado em Educação 67, novembro de 2002)


Lineia no Jardim de Monet
Linnea i målarens trädgård
Suécia, 1992
Direção: Lena Anderson e Christina Björk

São poucos os filmes de ficção sobre artes plásticas, e mais raros ainda
os que se destinam a crianças na passagem da pré-escola para o ensino
fundamental. Bastaria esse motivo para que já se comemorasse o lançamento
em vídeo do curta-metragem sueco Lineia no Jardim de Monet, adaptação
para cinema do best-seller internacional de Lena Anderson e Christina Björk,
publicado no Brasil pela Editora Salamandra. O caráter pedagógico do livro
ganha, na tela, ótima tradução: é difícil, mesmo no caso de crianças maiores,
resistir ao apelo da pequena Lineia em sua viagem de descoberta aos locais
onde viveu o pintor francês Claude Monet (1840-1926).
No filme, a menina conta em flashback sua aventura. Fascinada pelas
pinturas de Monet, em especial pelas visões da natureza realizadas na última
fase de sua carreira, ela é convidada pelo vizinho, o Sr. Blomkvist (ou apenas
o Sr. Blom, na dublagem em português), um jardineiro aposentado, a viajar
até a França para que ambos conheçam melhor a vida e a obra do artista. Em
Paris, os dois veem uma série de quadros no Museu Marmottan – e Lineia
descobre, de perto, os “pontos e riscos” da linguagem impressionista. Depois,
vão de trem a Giverny, onde passeiam pela casa do pintor, adquirida por ele
em 1890 e hoje transformada em museu, e pelo jardim aquático criado ali,
cenário da série de obras que já visitou o Brasil.
Plantas, flores, a ponte japonesa, o banco de jardim, o barco: tudo o que
conheciam apenas por meio das reproduções de um livro do Sr. Blom revela-
se, em sua dimensão real, diante de seus olhos, tornando ainda mais
fascinante as obras-primas originadas daquela paisagem, como a série
Ninfeias. A viagem é narrada com extrema simplicidade, misturando desenho
animado, pinturas, fotografias e imagens em movimento dos locais. Paciente
e professoral, o ex-jardineiro explica a Linéia quem foi Monet e por que seu
estilo é marcante. Lembra que, para ele, a luz determinava “a aparência das
coisas”. Arte e natureza, muito bem integradas na obra do pintor, se
combinam também no filme.
Um exemplo de como a história de Lineia pode se prestar a uso escolar
vem de Planaltina (DF). A estudante Francineia Gomes Soares, aluna de
Artes Plásticas da Universidade de Brasília e professora da Escola Classe
Paraná, usou o livro de Lena Anderson e Christina Björk em seu projeto
“Arte e Cultura na Educação Infantil”, que recebeu o Prêmio Qualidade na
Educação Infantil do Distrito Federal em 2003. As crianças ilustraram a
história com pinturas em papel canson, fizeram piquenique e cuidaram do
jardim da escola. Artistas plásticos da região ministraram oficinas e
conversaram com os alunos, que desenvolveram uma relação afetiva com as
artes plásticas – objetivo que, agora, pode ser alcançado com a ajuda do
filme.
Lineia no Jardim de Monet (Linnea i målarens trädgård) — Suécia, 1992, 30 min.

Direção e roteiro: Lena Anderson e Christina Björk. Animação: Jonas


Adner e Jan Gustavsson. Distribuição em DVD: Projeto Escola no Cinema.
(Publicado em Educação 82, fevereiro 2004)
A Língua das Mariposas
La Lengua de las Mariposas
Espanha, 1999
Direção: José Luis Cuerda

Boa parte dos filmes que trazem crianças e adolescentes como


protagonistas dedica-se, em maior ou menor grau, a examinar a psicologia
dos ritos de passagem. O francês Adeus, Meninos (1987), o inglês Esperança
e Glória (1987), o sueco Todas as Coisas São Belas (1995) e o russo O
Ladrão (1997) figuram entre os inúmeros exemplos de dramas que, no fundo,
debruçam-se sobre variações do mesmo tema: a perda da inocência. De tão
recorrente, essa abordagem mostra-se às vezes desgastada, dando a impressão
de que não há mais nada de novo a dizer a respeito da infância e da
adolescência.
A Língua das Mariposas demonstra que o caminho para a novidade pode
incluir as associações, os paralelos e as metáforas fornecidas pela
ambientação. Retirado de seu tempo e espaço, o argumento – baseado em três
contos do escritor galego Manuel Rivas – é semelhante a muito do que já se
viu por aí. Moncho (Manuel Lozano), 8 anos, tem medo de ir à escola por
acreditar que o professor, Don Gregorio (Fernando Fernán Gomez), bate nos
alunos. De fato, o primeiro dia de aula confirma suas piores expectativas, mas
o trauma vem da perversidade dos colegas.
Ao ser apresentado à turma, Moncho é ridicularizado por causa de seu
apelido (Pardal), faz xixi nas calças em plena classe e corre desesperado para
esconder-se na mata que circunda a cidade, da qual sai apenas quando uma
expedição vai procurá-lo. Gentil, Don Gregorio visita a família do menino
para levá-lo de volta à escola. Desfeito o mito do professor-carrasco, o velho
mestre torna-se uma das pessoas mais próximas a Moncho, especialmente
devido ao interesse de ambos pelas maravilhas da natureza — como a
“tromba espiral” das mariposas, que dá nome ao filme — e pelos livros.
Essa história de amizade é narrada com fluência e poesia pelo diretor
José Luis Cuerda, mas o trunfo reside em ambientá-la na região de La
Coruña, na Galícia, em 1936, um pouco antes da eclosão da Guerra Civil
Espanhola. O pai de Moncho é republicano e apoia a Frente Popular (FP), a
aliança com socialistas e comunistas que sai vencedora das eleições, cinco
anos depois da deposição do rei Alfonso XIII. Já a mãe do menino, católica
fervorosa, não vê com bons olhos a militância do marido, procura converter o
filho à religião e, por conseqüência, vê com simpatia o movimento militar
liderado pelo general Francisco Franco, e apoiado pela Igreja Católica, para
derrubar a FP.
A crise político-institucional reverbera por toda a cidade, rachando em
dois blocos a população. Don Gregorio pertence a um deles. O
posicionamento político do professor e o do pai transportam Moncho, de
chofre, ao mundo adulto. Pior: a circunstância exige dele, ainda cheirando a
fraldas, que tome uma atitude. É o momento em que ele perde a inocência,
ainda que não perceba, e diz adeus ao menino que começa a deixar de ser.
A Língua das Mariposas (La Lengua de las Mariposas) — Espanha, 1999, 96 min. Direção: José Luis Cuerda. Roteiro: Rafael Azcona, José Luis Cuerda e Manuel Rivas, baseado em contos do
livro ¿Qué me quieres, amor?, de Manuel Rivas. Com Fernando Fernán Gómez, Manuel Lozano, Uxía Blanco, Gonzalo Uriarte, Alexis de los Santos, Jesús Castejón, Guillermo Toledo, Elena
Mar Fernández. Distribuição em DVD: Warner.

(Publicado em Educação 64, agosto de 2002)


Linha de Passe
Brasil/França, 2008
Direção: Walter Salles e Daniela Thomas

Alguns dos grandes filmes brasileiros, reveladores de características


fundamentais de nossa sociedade, foram ambientados em São Paulo — que
concentra, em sua diversidade de tipos e dramas, um apanhado do que o país
exibe de notável e também de condenável. Esse acervo inclui marcos como
São Paulo S.A. (1965), de Luiz Sergio Person, O Bandido da Luz Vermelha
(1968), de Rogério Sganzerla, e O Invasor (2002), de Beto Brant, todos já
disponíveis em DVD.
De matriz mais poética e humanista, Linha de Passe vem enriquecer
essa galeria. Parceiros também na realização de Terra Estrangeira (1995) e O
Último Dia (1999), os diretores Walter Salles e Daniela Thomas observam de
maneira carinhosa a São Paulo dos anos 2000, que deixa de ser apenas
cenário e se impõe, tamanha a força sobre os destinos de todos os seus
habitantes, como a principal personagem do filme.
Acompanhamos durante alguns meses, antes e depois do aniversário de
18 anos de Dario (Vinícius de Oliveira, o menino de Central do Brasil e que
tem participação em Abril Despedaçado, ambos também dirigidos por
Salles), o cotidiano de sua família. Além do aspecto simbólico da
“maioridade”, a data é importante para o rapaz porque estabelece o fim do
sonho de ser selecionado em alguma “peneira” de um clube de futebol
profissional — o que, acredita ele, significaria um passaporte para melhores
condições de vida.
Enquanto Dario se prende aos últimos fios de esperança, Linha de Passe
mostra também, em paralelo, os dramas de sua mãe (Sandra Corveloni,
prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes de 2008), que trabalha como
empregada doméstica, e de seus irmãos (João Baldasserini, José Geraldo
Rodrigues e Kaique de Jesus Santos). A figura ausente do pai (ou dos pais) e
a natureza “invisível” de certos personagens da metrópole são alguns dos
elementos que se combinam nesse estudo das difíceis relações humanas em
espaço de intensa e diária brutalização.
Linha de Passe — Brasil/França, 2008, 113 min. Direção: Walter Salles e Daniela Thomas. Roteiro: George Moura e Daniela Thomas, com a colaboração de Bráulio Mantovani. Com Sandra
Corveloni, Vinícius de Oliveira, João Baldasserini, José Geraldo Rodrigues, Kaique de Jesus Santos. Distribuição em DVD: Universal.

(Publicado em Educação 143, março de 2009)


Lixo Extraordinário
Inglaterra/Brasil, 2010
Direção: Lucy Walker
Codirecão: Karen Harley e João Jardim

A maior parte dos documentários está voltada para a investigação de


fatos e personagens do passado, ou de aspectos já consolidados do presente.
Nesses casos, a tarefa dos realizadores se aproxima da atividade de
pesquisadores. Uma vertente significativa da produção documental prefere se
ocupar, no entanto, de "temas em movimento", acompanhando desde o início
projetos ou jornadas cujo final é imprevisível. Nesses casos, os realizadores
se assemelham a testemunhas (ou mesmo coadjuvantes) do que "nasce" em
frente às câmeras.
Bom exemplo dessa aposta de risco no desconhecido é Lixo
Extraordinário, realizado ao longo de três anos pela diretora Lucy Walker e
pelos codiretores Karen Harley e João Jardim (Janela da alma, Pro Dia
Nascer Feliz). O ponto de partida foi o desejo do artista plástico brasileiro
Vik Muniz, radicado nos Estados Unidos, de "mudar a vida de pessoas"
usando o mesmo material com o qual elas lidam no cotidiano para sobreviver.
Muniz propôs essa ideia a catadores de lixo do Jardim Gramacho, em
Duque de Caxias (RJ). No projeto, transformou alguns deles — homens e
mulheres de diversas faixas etárias — em coautores de painéis fotográficos
que combinavam suas imagens com materiais recolhidos no aterro sanitário
onde trabalham, um dos maiores do mundo. Concluídas após intenso
processo colaborativo, as obras ingressaram no circuito convencional das
artes visuais, participando de exposições e de leilões.
Lixo Extraordinário acompanha essa história incomum até o final
imprevisível, que calhou de ser feliz. Além de colecionar prêmios do público
em festivais internacionais, como os de Berlim (Alemanha) e Sundance
(EUA), e de disputar o Oscar de melhor documentário, o filme contribuiu, de
fato, para o que desejava Muniz no início: mudou a vida dos participantes do
projeto recorrendo ao material que lhes cercava no dia a dia, e que adquiriu
novo sentido por meio da arte e de uma empreitada coletiva.
Lixo Extraordinário perdeu o Oscar de melhor documentário deste ano
para Trabalho Interno (2010), de Charles Ferguson, que representa a vertente
investigativa desse formato, ao iluminar, por meio de extensa pesquisa e de
entrevistas, as razões da crise econômica de 2008 nos Estados Unidos e os
meandros da corrupção no país. Outro forte candidato derrotado na disputa
pelo Oscar da categoria foi Restrepo (2010), de Tim Hetherington e Sebastian
Junger. Aqui, o termo "documentário de risco" tem dois sentidos: o de um
filme que caminha para lugar incerto, ao acompanhar seu "tema em
movimento", e o de representar perigo concreto para seus realizadores.
Um grupo de soldados norte-americanos no Afeganistão é seguido de
perto pela equipe de Restrepo, em retrato cru das experiências vividas ali. A
coragem de Hetherington acabaria lhe custando caro: ele morreu em abril
deste ano, cobrindo o conflito na Líbia para uma revista. Em homenagem a
seu trabalho, a Academia de Hollywood o indicou postumamente para
integrá-la.
Lixo Extraordinário — Inglaterra/Brasil, 2010, 99 min. Direção: Lucy Walker. Codireção: Karen Harley e João Jardim. Distribuição em DVD e Blu-ray: Paris.

(Publicado em Educação 173, setembro de 2011)


Lugares Comuns
Lugares Comunes
Argentina/Espanha, 2002
Direção: Adolfo Aristarain

O drama da aposentadoria forçada atinge profissionais de todas as áreas,


até mesmo em países cujo sistema social possibilita vida digna a quem se
retira do mercado (ou é dele alijado). Nesses casos, ainda que exista amparo
financeiro, a situação representa para muita gente um duro golpe psicológico.
Como o sistema capitalista só ensina a trabalhar, o que fazer quando a
atividade produtiva já não é mais desejada? Superar a ideia de que o
aposentado é um “inútil” consome muito esforço. Poucos conseguem se
preparar de maneira adequada para essa fase e lidam com ela de maneira
minimamente saudável.
Sociedades e profissões que atravessem conjunturas desfavoráveis
contribuem para agravar o quadro, como demonstra Lugares Comuns. A
sociedade em questão é a argentina, no auge da crise política e econômica
que estourou em 1999, no final do governo Carlos Menem, e se aprofundou
nos anos seguintes, fornecendo o pano de fundo para filmes como Nove
Rainhas (2000), O Filho da Noiva (2001) e O Pântano (2001). A profissão é
a de professor. Fernando (Federico Luppi), o protagonista, tem 60 anos e dá
aulas de literatura em uma escola pública, com a entrega dos que acreditam
na função humanista do magistério. Suas convicções políticas, de esquerda,
contemplam a criação de uma sociedade mais justa, em que haja respeito do
Estado em relação aos cidadãos. Não por acaso, sente-se deslocado no mundo
atual.
A recessão e o colapso das contas públicas levam o diretor da escola a
pedir sua aposentadoria, embora alguns detalhes sugiram que antigas
diferenças entre os dois interferiram na decisão. Paralelamente, a mulher de
Fernando (Mercedes Sampietro), que trabalha como assistente social na
periferia de Buenos Aires, também perde o emprego. O casal precisa então
reorganizar a vida, ou quase recomeçá-la. A situação econômica é difícil, mas
contornável, desde que eles aceitem se desfazer do amplo apartamento onde
vivem, em região nobre da capital. O maior problema, no entanto, é o de
encarar o que parece, a Fernando, uma sucessão de derrotas e traições.
Seu filho (Carlos Santamaría) fornece um doloroso contraponto.
Desistiu do que gostava (a literatura, também) e do país para fazer carreira
como executivo na Espanha, onde estabelece uma rotina pequeno-burguesa
inserida na sociedade de consumo. Representa, em linhas gerais, tudo o que o
pai sempre combateu. E diz que agiu assim para “dar um futuro aos filhos”,
insinuação que atinge o alvo paterno. Desenham-se, assim, alguns dilemas
paralelos para Fernando: a frustração com os destinos do país, a mágoa com o
filho, a melancolia profissional. O modo que encontra para lidar com esses
pontos de dor tem muito a ver com o apoio da mulher, mas sobretudo, na
visão romântica do diretor Adolfo Aristarain, com a crença inabalável em
certos ideais.
Lugares Comuns (Lugares Comunes) — Argentina/Espanha, 2002, 110 min. Direção: Adolfo Aristarain. Roteiro: Adolfo Aristarain e Kathy Saavedra, baseado no romance El Renacimiento, de
Lorenzo F. Aristarain. Com Federico Luppi, Mercedes Sampietro, Arturo Puig, Carlos Santamaría, Valentina Bassi, María Fiorentino, Claudio Rissi, Osvaldo Santoro. Distribuição em DVD:
Europa.

(Publicado em Educação 94, fevereiro de 2005)


Maria Antonieta
Marie Antoinette
EUA/França/Japão, 2006
Direção: Sofia Coppola

Ferramenta das mais valiosas para fomentar debates em aulas de


história, filmes de ficção sobre episódios verídicos oferecem também um
enorme risco: o de serem vistos como espécie de registro fidedigno do que
ocorreu. Cinema é representação e recriação de fatos e de personagens, e diz
mais a respeito de quem o fez, da sociedade e do momento que o gerou, do
que do período retratado pela trama.
Alguns filmes buscam, no preciosismo da reconstituição histórica,
indícios que acentuem a “veracidade” do que apresentam. Para espectadores
ingênuos, esses são os mais perigosos: a riqueza de detalhes sugere uma
autêntica expedição ao passado. Outros, no entanto, procuram deixar
transparente a opção que fizeram por determinada leitura. Diante deles, é
mais fácil notar e discutir os procedimentos de representação.
A esse grupo, o da ficção assumida como tal, pertence Maria Antonieta,
que a diretora e roteirista norte-americana Sofia Coppola – filha de Francis
Ford Coppola, o cineasta da trilogia O Poderoso Chefão e de Apocalypse
Now – rodou com base em registros documentais sobre o cotidiano da
nobreza francesa no período que antecede a Revolução de 1789.
O cuidado, transposto para a cenografia e os figurinos, tenderia a gerar
no público a percepção de verossimilhança. Para evitá-la, ou ao menos
reduzi-la, Sofia usa música contemporânea na trilha sonora e espalha ao
longo do filme outros elementos anacrônicos. O mais célebre deles, que
provocou polêmica na internet, é um tênis do século 21 incluído entre os
sapatos de Maria Antonieta (Kirsten Dunst, de Homem-Aranha) em imagem
que dura poucos segundos na tela.
Ao adotar esses procedimentos, o filme assinala as características de sua
leitura – a de examinar a protagonista como uma adolescente subitamente
exposta a um mundo novo e, sem muita noção do que ocorria, envolvida no
olho de um dos furacões mais influentes na história ocidental. Com isso,
facilita também o trabalho de quem o utilizar, em sala de aula, não como
prova documental, mas como provocação.
Maria Antonieta (Marie Antoinette) — EUA/França/Japão, 2006, 122 min. Direção e roteiro: Sofia Coppola. Com Kirsten Dunst, Jason Schwartzman, Judy Davis, Rip Torn, Danny Huston, Asia
Argento. Distribuição em DVD: Sony.
(Publicado em Educação 126, outubro 2007)
As Melhores Coisas do Mundo
Brasil, 2010, 107 min.
Direção: Laís Bodanzky

Costuma-se apontar o reduzido número de longas-metragens para (e


sobre) crianças e jovens como uma das principais lacunas do cinema
brasileiro. A importância de ter produção regular voltada a essas faixas está
relacionada à formação de público, entre outros aspectos. Quem cresce vendo
filmes nacionais tem maior probabilidade, como adulto, de manter esse
hábito. Em países como Dinamarca, França e EUA, o tema recebe tratamento
estratégico.
É preciso registrar, no entanto, que o cenário brasileiro começou a se
alterar — ainda que de maneira discreta — nos últimos anos, sobretudo em
relação à adolescência. E, entre os diversos longas produzidos recentemente
sobre o universo jovem, As Melhores Coisas do Mundo destaca-se pelo
amplo trabalho de pesquisa empreendido pela diretora Laís Bodanzky e pelo
roteirista Luiz Bolognesi, que realizaram Bicho de Sete Cabeças (2001) e
Chega de Saudade (2007).
Originalmente, o projeto mantinha o nome da série de livros de Gilberto
Dimenstein e Heloísa Prieto na qual se inspira, Mano. O título definitivo foi
escolhido em concurso que integrou os esforços da equipe para se aproximar
do público jovem, com o envolvimento de adolescentes, antes mesmo das
filmagens, em ações ligadas aos personagens e à história. Com o filme
concluído, a estratégia para atrair espectadores no lançamento incluiu o uso
intenso de redes sociais e de projeto educativo.
Filho de professores universitários de classe média, Hermano (Francisco
Miguez) tem 15 anos e, como deveria ocorrer com todos os jovens de sua
faixa etária, cursa o ensino médio. Tocar guitarra, andar de bicicleta e
encontrar os amigos em festas são atividades que lhe dão prazer. Certo dia,
uma notícia mexe com toda a família. Mano precisará lidar com ela, e com o
episódio de bullying que provoca, em paralelo aos dramas naturais de quem
deixou de ser criança, mas ainda não virou adulto.
É provável que nunca antes na história do cinema brasileiro tenha
existido empenho semelhante ao de As Melhores Coisas do Mundo em
relação à busca de um registro plausível do universo adolescente. Sessões
acompanhadas de debates com jovens, pais e educadores demonstraram que
os personagens e dramas do filme são facilmente reconhecidos por todos no
universo familiar e escolar.
Essa reação positiva não blinda o longa de críticas, evidentemente, mas
aponta para uma abordagem que estabelece diálogo com os interesses de seu
público-alvo, em projeto que desde o início foi pautado por uma tentativa de
encontrar acolhida no mercado. O lançamento em DVD será estratégico para
ampliar sensivelmente seu número de espectadores, que ficou muito aquém
do esperado nos cinemas.
Outros dois longas recentes sobre jovens, ambos rodados no Rio Grande
do Sul, lembram que as possibilidades de representação desse universo são
múltiplas. Em Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), o diretor Esmir
Filho (do curta Tapa na Pantera, que fez sucesso na internet) adapta romance
homônimo de Ismael Caneppele.
O protagonista (Henrique Larré) tem 16 anos, vive com a mãe em cidade
do interior e se mantém conectado ao mundo pela internet. Sua rotina em
casa, na escola e com os amigos combina registro mais realista a passagens
oníricas, associadas a lembranças, desejos e fantasias. Já Antes que o Mundo
Acabe (2009), de Ana Luiza Azevedo, opta por tratar de maneira mais leve
pequenos dramas vividos por adolescentes.
As Melhores Coisas do Mundo — Brasil, 2010, 107 min. Direção: Laís Bodanzky. Roteiro: Luiz Bolognesi, baseado em livros de Gilberto Dimenstein e Heloísa Prieto. Com Francisco Miguez,
Danise Fraga, Fiuk, José Carlos Machado, Gustavo Machado, Caio Blat. Distribuição em DVD: Warner.

(Publicado em Educação 164, dezembro de 2010)


Memórias Póstumas
Brasil/Portugal, 2001
Direção: André Klotzel

Brás Cubas morreu às duas da tarde de uma sexta-feira de agosto de


1869. Tinha quase 64 anos, algum dinheiro e nenhum descendente. Seu
enterro foi acompanhado por 11 amigos. Como sabem todos os leitores de
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), quem nos conta esses
detalhes é o próprio Brás Cubas, o “defunto autor” (e não “autor defunto”, já
que reencarnou como fantasma para contar sua própria história) mais famoso
da literatura brasileira.
Dedicadas ao “verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”,
as Memórias Póstumas de Brás Cubas foram publicadas em 1881, dez anos
antes de Quincas Borba e quase vinte antes de Dom Casmurro. Dos três, em
geral apontados como a tríade de obras-primas de Machado, é o que mais se
vale de procedimentos narrativos originais para a época, e que ainda hoje
conservam atualidade impressionante. Encontrar sua equivalência em
imagens constitui um desafio que o cineasta Julio Bressane já havia
experimentado (em Brás Cubas, de 1985). O diretor, produtor, roteirista e
montador André Klotzel (A Marvada Carne, Capitalismo Selvagem) também
resolveu enfrentá-lo.
Mexer nesse vespeiro – o das adaptações literárias para o cinema — é
tarefa sempre arriscada, pela dificuldade em contentar ao mesmo tempo os
que leram o livro, e os que nunca chegaram perto dele. Os primeiros criaram
na cabeça o seu Brás Cubas e podem não gostar de vê-lo diferente do que
haviam imaginado. Além disso, a duração de um longa-metragem obriga a
condensar certas situações e a jogar fora outras. Os critérios para selecioná-
las oferecem mais regiões de atrito.
Quem não conhece o romance, por sua vez, pode sentir falta de
passagens mais esclarecedoras entre um e outro episódio, ou do
aprofundamento de certos personagens. Pois o maior elogio que se pode fazer
à adaptação de Klotzel talvez seja dizer que funciona bem tanto para os
admiradores de Machado quanto para os que ainda não o conhecem. Sua
postura em relação ao texto é respeitosa, mas também inventiva. Não se
comete nenhuma transgressão que “machadistas” pudessem considerar
polêmica.
O fluxo da narrativa é obedecido, respeitando-se início (a morte de Brás,
interpretado na velhice e como fantasma por Reginaldo Faria), meio (os
flash-backs que o mostram na infância, feito pelo garoto Alfredo Silva, e na
juventude, interpretado por Petrônio Gontijo) e fim (quando, no célebre
balanço, considera como saldo positivo o fato de não haver transmitido a
ninguém “o legado de nossa miséria”).
Para recriar na tela o espírito do original, Klotzel foi cuidadoso ao
inserir humor sem transformar a história em chanchada e coordenou um
esforço de recriação de época que incluiu figurinos vindos da Europa
especialmente para as filmagens, feitas em Salvador, Rio e São Paulo. Se o
dilema vivido por todo adaptador situa-se no meio do caminho entre a
tradução e a traição, Memórias Póstumas mantém-se muito mais próximo do
primeiro conceito.
Memórias Póstumas — Brasil/Portugal, 2001, 102 min. Direção: André Klotzel. Roteiro: André Klotzel e José Roberto Torero, baseado no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis. Com Reginaldo Faria, Petrônio Gontijo, Viétia Rocha, Sonia Braga, Otávio Muller, Marcos Caruso, Stepan Nercessian, Alfredo Silva, Débora Duboc, Walmor Chagas, Nilda
Spencer. Distribuição em DVD: Europa.

(Publicado em Educação 66, outubro de 2002)


Meu Irmão É Filho Único
Mio Fratello È Figlio Unico
Itália/França, 2007
Direção: Daniele Luchetti

Gomorra
Gomorra
Itália, 2008
Direção: Matteo Garrone

O cinema italiano estabeleceu forte tradição política nos anos 1960 e


1970, mas pareceu se esquecer dela nas décadas seguintes. A produção
recente demonstra, no entanto, um revigorado compromisso com a reflexão
sociopolítica. Dois ótimos exemplos são Meu Irmão é Filho Único (2007) e
Gomorra (2008).
Escrito e dirigido por Daniele Luchetti (O Senhor Ministro), o primeiro
evoca justamente as décadas de 1960 e 1970, período conturbado na vida do
país. O foco está voltado para a militância política, a partir das relações entre
dois irmãos da pequena Latina (próxima a Roma, na região do Lazio) que,
como o título sugere, parecem diferentes em tudo — e, sobretudo, na maneira
de compreender a sociedade italiana e de lutar pelo que lhes parece a solução
para torná-la mais justa.
Baseado no romance Il Fasciocomunista, do ex-operário Antonio
Pennacchi (nascido em Latina e ex-militante de diversas organizações de
esquerda), Luchetti arranca do lento processo de amadurecimento dos irmãos
o que o cinema italiano, por ao menos três décadas no pós-guerra, soube fazer
bem: impregnar de humanismo um registro da sociedade que, ao examiná-la
pelo microcosmo das relações familiares, se torna vívido e envolvente.
Não se deve esperar o mesmo de Gomorra, que recebeu o Grande
Prêmio no último Festival de Cannes, cinco prêmios da Academia Europeia
de Cinema (inclusive os de melhor filme e diretor) e representou a Itália na
última corrida ao Oscar de produção estrangeira. O mundo do crime e seu
impacto sobre a rotina de cidadãos comuns aparecem em estado bruto, com
base em “romance de não ficção” homônimo do jornalista napolitano Roberto
Saviano, que desde 2006 tem proteção policial e que teria sido jurado de
morte pela Camorra, a organização criminosa sediada na região Sul da Itália.
O diretor romano Matteo Garrone apresenta diversos núcleos
dramáticos, a maior parte em torno de um conjunto habitacional que parece
viver sob guerra civil, com a ausência do Estado e ação de milícias. O estado
de tensão envolve também traficantes colombianos, imigrantes chineses que
fornecem roupas a grifes de moda e grandes corporações envolvidas em
negociatas. A máfia de Gomorra se insere na lógica da economia globalizada,
tanto para se beneficiar dela quanto para atender a algumas de suas
necessidades.
Meu Irmão É Filho Único (Mio Fratello È Figlio Unico) — Itália/França, 2007, 99 min. Direção: Daniele Luchetti. Roteiro: Sandro Petraglia, Stefano Rulli e Daniele Luchetti, baseado em
romance de Antonio Pennacchi. Com Elio Germano, Riccardo Scamarcio, Angela Finocchiaro, Massimo Popolizio. Distribuição em DVD: Playarte.

Gomorra (Gomorra) — Itália, 2008, 137 min. Direção: Matteo Garrone. Roteiro: Maurizio Braucci, Ugo Chiti, Gianni Di Gregorio, Massimo Gaudioso, Matteo Garrone e Roberto Saviano,
baseado em livro de Saviano. Com Salvatore Abruzzese, Simone Sacchettino, Salvatore Ruocco, Vincenzo Fabricino. Distribuição em DVD e Blu-ray: Paris.

(Publicado em Educação 144, abril de 2009)


Microcosmos – Fantástica Aventura da
Natureza
Microcosmos – Le Peuple de l´Herbe
França/Suíça/Itália, 1996
Direção: Claude Nuridsany e Marie Pérennou

Um besouro esforça-se para arrastar pela relva uma bolinha de esterco.


No meio do caminho, a carga espeta em um pequeno graveto. O besouro não
se dá por vencido: cava uma valeta para se apoiar, experimenta todas as
posições possíveis até que, finalmente, retira a bolinha do lugar. Como se
nada houvesse ocorrido, prossegue impávido a jornada. A sequência dura
alguns minutos e, nas exibições de Microcosmos pelos cinemas de todo o
mundo, costumava provocar aplausos.
Não se deve confundir um filme como esse com os documentários
aborrecidos sobre insetos ainda hoje utilizados em algumas salas de aula e
reprisados em emissoras educativas de TV. Resultado de 15 anos de pesquisa,
dois anos de desenvolvimento de equipamentos e mais três de filmagens,
Microcosmos é um fascinante retrato de um mundo no qual só prestamos
atenção (quando prestramos) durante a infância. Sábias as crianças que se
debruçam no quintal para observar (e molestar) formigas, minhocas e
taturanas: aprendem que a vida no planeta não pode ser narrada sem fazer
referência às espécies “nanicas”.
Elas chegaram muito antes dos seres humanos, e tudo indica que
continuarão por aqui mesmo depois de nossa eventual extinção. Sua bem-
sucedida história adquire em Microcosmos uma natureza épica, como se o
filme acompanhasse um período de 24 horas nas vidas que se escondem na
relva da região francesa de Bourgogne. Para elas, lembra a narradora, uma
hora equivale a um dia; um dia, a uma estação; e uma estação, a toda uma
existência. Nesse universo, uma gota de chuva pode representar uma tromba
d´água, e um pássaro em busca de alimento transforma-se em imenso
predador.
A luta pela sobrevivência joga os insetos uns contra os outros; muitas
vezes, exemplares da mesma espécie se engalfinham até a morte
simplesmente porque um entrou no caminho do outro. São as cenas de
“guerra” do filme, tão impressionantes quanto as cenas de “amor” ou de
cooperação. Nesse último item, como toda criança esperta está careca de
saber, as formigas são imbatíveis.
A diversidade biológica revelada pelo filme permite apreciar as formas e
texturas incríveis de muitos insetos, nas quais os criadores de monstros da
ficção científica podem permanentemente buscar inspiração. Um jornalista
norte-americano resumiu o filme como “Jurassic Park em seu próprio
quintal”, lembrando também o caráter lúdico de Microcosmos: é um raro
documentário científico que pode ser visto com o mesmo prazer dedicado a
um filme de ação. Na França, teve bilheteria de superprodução
hollywoodiana, com mais de três milhões de espectadores (público superior
ao de qualquer filme exibido no Brasil em 1997).
Os diretores Claude Nuridsany e Marie Pérennou saíram do Festival de
Cannes de 1996 com o Grande Prêmio Técnico, e levaram também o César –
o principal prêmio do cinema francês – de melhor produção, fotografia,
montagem, som e música original. Ainda que a excelência técnica se estenda
a todas as etapas, o trabalho sonoro merece destaque, ao mesclar ruídos
captados na relva com efeitos de estúdio. Gratos a seus “astros”, Nuridsany e
Pérennou listam, nos créditos de encerramento, o “elenco”. Por ordem de
aparição, surgem os nomes de todas as espécies que desfilam no filme. Não
haveria cachê capaz de pagar o desempenho dessa turma nanica empenhada
apenas – como se isso já não fosse o bastante – em viver.
Microcosmos – Fantástica Aventura da Natureza (Microcosmos – Le Peuple de l´Herbe) —França/Suíça/Itália, 1996, 72 min. Direção: Claude Nuridsany e Marie Pérennou. Distribuição em
DVD e Blu-ray: Versátil.

(Publicado em Educação 12, abril de 1998)


Minha Vida em Cor-de-Rosa
Ma Vie en Rose
França/Bélgica/Inglaterra, 1997
Direção: Alain Berliner

Pense rápido e seja o mais sincero possível: o que você faria se, no
churrasco para integrar a família à nova vizinhança, seu filho de sete anos
aparecesse no quintal de batom e vestido cor-de-rosa? E se, depois de ouvir a
irmã mais velha falar dos cromossomos que determinam o sexo, ele viesse
com a história de que, na verdade, é um “menino-menina”? Caso tenha ficado
em dúvida, sinta-se em companhia dos adultos de Minha Vida em Cor-de-
Rosa. Desorientados diante desse comportamento nada convencional, eles
não sabem como enfrentar a situação. Alguém aí saberia?
O nome dele é Ludovic (interpretado por Georges Du Fresne). Caçula de
quatro irmãos, adora brincar de casinha. Sua boneca favorita é Pam, um clone
de Barbie, cujo mundo de fantasia se confunde, para ele, com a realidade.
Ludo, como todos o chamam, vive dançando a canção-tema da boneca e
prefere obviamente o rosa ao azul. Seu melhor amigo, Jérôme, assume em
seus planos o papel de Ben, o namorado de Pam. “Vamos nos casar quando
eu não for mais menino”, diz para a avó.
Recém-instalada num subúrbio de Paris, a alegre família de Ludo tem
reações distintas. O pai, Pierre (Jean-Philippe Écoffey), parece temer que o
filho seja homossexual e fica possesso quando descobre que um vizinho
chamou o menino de “veado”. A mãe, Hanna (Michèle Laroque), continua
cercando a criança de carinho, ainda que não entenda suas atitudes. “Até os
sete anos isso é normal. Li na Marie Claire”, afirma para as vizinhas. Depois,
começa a duvidar de tal normalidade. Os três irmãos observam o caçula como
quem não acredita no que vê. E a terapeuta do menino também não ajuda
muito.
Para fechar ainda mais o tempo, Jérôme é filho do chefe de Pierre, um
brutamontes conservador já traumatizado pela morte de uma filha. “Deus não
vai me tirar outro”, diz, como se o “casamento” anunciado por Ludo fosse
uma ameaça real vinda do inferno – no que, aliás, o pobre Jérôme,
convencido pelo pai, acredita. Temeroso de colocar o emprego em jogo por
causa do episódio, Pierre encara ainda o olhar preconceituoso do restante da
vizinhança, logo traduzido em pichações. Ludo assiste a tudo sem
compreender nada: é sobretudo das diferenças entre a realidade vista pelos
adultos e a vista pelas crianças que fala Minha Vida em Cor-de-Rosa.
“Crianças vivem em um mundo de possibilidades, poético, onde a
fronteira entre sonho e realidade não existe. Já a visão adulta é dominada por
aparências, códigos sociais e ideias sobre o que é e o que não é normal”, diz o
diretor e corroteirista, o belga Alain Berliner.
A exemplo de outros filmes em que a intolerência é tema-chave, a escola
entra em Minha Vida em Cor-de-Rosa com o papel sujo da omissão. É bem
verdade que a jovem professora de Ludo faz um belo discurso sobre aceitar
as diferenças dos outros, mas em seguida o diretor chama Pierre e Hanna à
sua sala – no cinema, gabinetes de diretores de escola são invariavelmente
palco de injustiças e atos imorais – para comunicar-lhes a necessidade de
transferir o menino, exigida pelos pais de outros alunos. Um pouco de
covardia, outro tanto de obscurantismo – e o sujeito nem mesmo transforma o
rosa da questão em vermelho. De vergonha.
Minha Vida em Cor-de-Rosa (Ma Vie en Rose) — França/Bélgica/Inglaterra, 1997, 85 min. Direção: Alain Berliner. Roteiro: Chris van der Stappen e Alain Berliner. Com Michèle Laroque, Jean-
Philippe Écoffey, Hélène Vincent, Georges Du Fresne. Distribuição em VHS: Alpha.

(Publicado em Educação 14, junho de 1998)


Minhas Tardes com Margueritte
La Tête en Friche
França, 2010
Direção: Jean Becker

Especializada em obras de ficção para o público infantojuvenil, a


escritora francesa Marie-Sabine Roger é também autora de romances para
adultos. Um dos mais recentes, La Tête en Friche (em tradução livre, "a
cabeça inculta"), publicado em 2009, combina a abordagem de temas adultos
a um espírito de fábula engrandecedora com sentido humanista.
Coube ao veterano Jean Becker a tarefa de dirigir a adaptação do livro,
lançada no Brasil com o título Minhas Tardes com Marguerite. O material
não lhe era estranho: em Conversas com Meu Jardineiro (2007), ele já havia
tratado da aproximação entre pessoas de universos culturais muito distintos –
um artista plástico que vive em Paris (Daniel Auteuil) e o jardineiro de sua
casa de campo (Jean-Pierre Darroussin).
Desta vez, uma conversa casual no parque apresenta uma senhora
solitária apaixonada por literatura (Gisèle Casadesus) a um brucutu com
idade para ser seu filho, mas iletrado (Gérard Depardieu). Com uma
habilidade que faria inveja a professores, ela o convence, lentamente, a
conhecer o que se esconde nos livros. A cumplicidade que nasce entre eles
vai além do universo literário, criando um espírito de solidariedade
fundamental para ambos.
De um lado, a história celebra o poder de transformação da leitura. De
outro, aborda valores humanitários que seguem na contracorrente da
competitividade e do isolamento contemporâneos. Além disso, trata a velhice
com imenso respeito. Somados, esse três fatores dão origem a uma história
muito simples, sem grandes peripécias ou reviravoltas, mas sedutora por sua
compreensão da natureza humana.
O elogio à literatura feito por Minhas Tardes com Marguerite encontra
paralelo em outros filmes também voltados para a transformação provocada
em personagens pelo hábito de se dedicar a livros. Um exemplo recente é O
Leitor (2008), baseado em romance homônimo do alemão Bernhard Schlink,
sobre o relacionamento entre uma mulher (Kate Winslet) e um estudante mais
jovem (David Kross) que se dedica a ler em voz alta para ela.
Em Uma Leitora Bem Particular (1988), baseado em romance do
francês Raymond Jean publicado dois anos antes, uma jovem (Miou-Miou),
habituada a ler na cama para o amante, tem a ideia de "profissionalizar-se",
com base na história de uma mulher que presta serviços como leitora. Ficção
e realidade passam então a se confundir nessa trama impregnada por trechos
de clássicos da literatura.
O sentido mágico e libertador da leitura para uma criança está no centro
de História Sem Fim (1984), baseado no romance de mesmo título do alemão
Michael Ende. Graças a um livro muito especial, um menino que enfrenta
problemas no cotidiano (Barret Oliver) vai parar em um mundo de fantasia e
se torna o protagonista de aventuras extraordinárias.
Minhas Tardes com Margueritte (La Tête en Friche) — França, 2010, 78 min. Direção: Jean Becker. Roteiro: Jean-Loup Dabadie e Jean Becker, baseado em romance de Marie-Sabine Roger.
Com Gérard Depardieu, Gisèle Casadesus, Maurana. Distribuição em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 176, dezembro de 2011)


Motoboys - Vida Loca
Brasil, 2004
Direção: Caito Ortiz

Os 12 Trabalhos
Brasil, 2006
Direção: Ricardo Elias

Quem mora em São Paulo ou visitou a cidade nos últimos anos sabe
como já pertencem à paisagem os milhares de motociclistas que tumultuam o
trânsito e aumentam a tensão de motoristas e pedestres. Eles contribuem, por
outro lado, para que a cidade funcione, graças às retiradas e entregas que
aceleram processos (de ordem tanto profissional quanto pessoal) e evitam um
número ainda maior de deslocamentos — que seriam, em boa parte,
realizados com o uso de automóveis.
Esses personagens foram objeto do documentário Motoboys – Vida
Loca, de Caito Ortiz, que entrevista muitos deles, além de ouvir outros
personagens da cidade, como o arquiteto Paulo Mendes da Rocha e a ex-
prefeita Marta Suplicy, na tentativa de compreender o fenômeno e suas
implicações sobre o cotidiano. Ao final, resta a sensação de “mal necessário”,
acompanhada da denúncia das péssimas condições de trabalho, que provocam
centenas de mortes por ano.
Em Os 12 Trabalhos, o diretor Ricardo Elias e o roteirista Cláudio
Yosida — que já haviam trabalhado juntos em De Passagem (2003), sobre
jovens da periferia de São Paulo — buscam a dimensão humana dos
“motoboys”, ou o que se esconde por trás das estatísticas. Sua recriação
ficcional do trabalho nas ruas da cidade se inspira nos mitológicos 12
trabalhos executados por Hércules, herói da Grécia Antiga.
Assim, o jovem Heracles (Sidney Santiago, da série de TV Turma do
Gueto) precisa dar conta de uma dúzia de tarefas em seu primeiro dia como
funcionário de uma pequena empresa de entregas. Nessa jornada, encontra
outros “motoboys” e interage com os clientes, em mosaico de personagens
que procura espelhar o diversificado cotidiano da metrópole. Suas andanças e
contatos sublinham também outro fenômeno bem brasileiro, o da
“invisibilidade social”: parcela da população, apesar de tudo o que fazem e
representam esses motociclistas, age como se não existissem.
Motoboys - Vida Loca — Brasil, 2004, 52 min. Direção: Caito Ortiz. Distribuição em DVD: Paramount.

Os 12 Trabalhos — Brasil, 2006, 90 min. Direção: Ricardo Elias. Roteiro: Cláudio Yosida. Com Sidney Santiago, Flavio Bauraqui, Vera Mancini, Vanessa Giácomo. Distribuição em DVD:
Imovision.

(Publicado em Educação 131, março de 2008)


Mr. Holland – Adorável Professor
Mr. Holland´s Opus
EUA, 1995
Direção: Stephen Herek

Existe ao menos uma dezena de filmes, de Primavera de uma Solteirona


(1968) a Sociedade dos Poetas Mortos (1984), cujos ecos são facilmente
identificáveis em Mr. Holland. É preciso destacar, porém, um deles: Adeus
Mr. Chips (1939), de Sam Wood, baseado em romance de James Hilton (o
mesmo autor de Horizonte Perdido), com Robert Donat no papel-título (pelo
qual recebeu o Oscar de melhor ator).
Professor de uma escola inglesa marcado por uma tragédia pessoal, Mr.
Chips entrega-se totalmente à missão de inspirar seus alunos. Mr. Holland
vive também esses dois momentos – o da tragédia e o da entrega à missão.
Além dessas semelhanças, o filme estrelado por Richard Dreyfuss remete ao
clássico dos anos 1930 sobretudo pela capacidade de comover o público,
mesmo recorrendo a fórmulas sentimentais muito conhecidas, graças a uma
qualidade difícil de definir mas fácil de reconhecer: a sinceridade do relato.
Dez anos atrás, Dreyfuss teria arruinado Mr. Holland, com seu estilo
exagerado. O tempo lhe trouxe a maturidade para interpretar o personagem,
músico cujo maior sonho é fazer carreira como compositor. Para guardar
dinheiro durante alguns anos e então se dedicar a esse projeto de vida, ele
arruma emprego como professor em uma escola secundária no Oregon, pouco
depois do assassinato de John Kennedy. A partir daí, e a exemplo de Forrest
Gump (1995), o filme acompanha três décadas na vida de Holland e da
sociedade norte-americana.
Inicialmente, a gravidez da mulher (Glenne Headly, a namorada de
Warren Beatty em Dick Tracy) força Holland a alterar os planos. Pouco a
pouco, a carreira musical fica mais distante, enquanto o trabalho como
professor, no começo frustrante, adquire algum significado, em parte devido
ao apoio e incentivo dados pela diretora (Olympia Dukakis, ganhadora do
Oscar por Feitiço da Lua) e pelo professor de educação física (Jay Thomas)
da escola. A guerra do Vietnã, Woodstock e Watergate passam pela janela de
Holland durante o período em que aprende a canalizar a dor de sua tragédia
pessoal – a surdez do filho – para o trabalho com os alunos.
O assassinato de John Lennon, em 1980, marca também a derrocada das
ilusões de Holland, sepultadas de vez quando o novo diretor da escola
(William H. Macy, o marido trapalhão de Fargo), administrador burocrático,
sugere a eliminação das disciplinas artísticas para reduzir custos. Diante da
perspectiva de aposentadoria forçada, a obra de Mr. Holland – sua carreira
musical não desenvolvida e seu trabalho como professor de adolescentes nem
sempre talentosos ou interessados – parece subitamente pequena, quase
desprezível. O final-surpresa se encarrega de pôr as coisas em seus devidos
lugares.
Professores norte-americanos de música adotaram o filme como
bandeira na luta contra os cortes feitos durante os últimos anos no orçamento
de escolas públicas, frequentemente dirigidos a disciplinas de artes. Nasceu
desse movimento a The Mr. Holland’s Foundation, que arrecada recursos
junto a grandes empresas (entre elas Apple, Sony e Polygram) para comprar e
consertar instrumentos, com o objetivo de “manter a música viva nas
escolas”.
“Se existe algo de que este país vai precisar nos próximos 40 anos, é um
grande senso de imaginação que pode ser adquirido somente por meio das
artes”, afirma Richard Dreyfuss na carta de apoio levada ao ar no web site da
fundação. O compositor Michael Kamen, autor da trilha sonora do filme,
lembra que foi conquistado pela música graças a um programa de ensino
então aplicado pela rede pública de Nova York. “Quero assegurar que as
futuras gerações gozem dos mesmos benefícios”, diz ele. Como raras vezes
ocorre no cinema, a história de Mr. Holland continuou depois que as luzes do
cinema se acenderam.
Mr. Holland – Adorável Professor (Mr. Holland´s Opus) — EUA, 1995, 142 min. Direção: Stephen Herek. Roteiro: Patrick Sheane Duncan. Com Richard Dreyfuss, Glenne Headly, Jay Thomas,
W. H. Macy, Olympia Dukakis. Distribuição em DVD: Flashstar/Focus.

(Publicado em Educação 4, agosto de 1997)


Música do Coração
Music of the Heart
EUA, 1999
Direção: Wes Craven

Cortes no orçamento costumam vitimar os itens considerados


“supérfluos”. Funciona assim com a família que reduz as atividades de lazer
quando o pai ou a mãe perde o emprego, e com a empresa que, durante uma
crise, elimina gastos em setores não diretamente ligados à geração de
receitas. Mas como eleger o “supérfluo”, ou estabelecer um ranking de
prioridades para determinar o que será sacrificado, no sistema educacional?
As escolas públicas dos EUA assistem, nos últimos dez anos, a uma
batalha cujo pano de fundo envolve o favorecimento de algumas disciplinas
em detrimento de outras. Ninguém deveria ficar surpreso ao saber que, por lá,
a corda também estoura do lado mais fraco, o do ensino de artes. Música do
Coração reconstitui a história verídica de um programa bem-sucedido que
por pouco não vai para o espaço em virtude de um corte de verbas.
Roberta Guaspari chegou a uma escola do East Harlem, região barra-
pesada de Nova York, atrás de qualquer coisa que lhe rendesse alguns dólares
por mês. Recém-separada, com dois filhos pequenos, ela jamais havia dado
aulas, mas era uma boa violinista. Por sorte, havia na ocasião uma vaga para
professor de música. Roberta encarou o desafio e desenvolveu um projeto,
mais tarde batizado de Opus 118 East Harlem Violin Program, que se tornou
referência em todo o país.
Mesmo assim, entrou na linha de tiro quando a escola foi obrigada a
reduzir despesas. Mas Roberta não jogou a toalha. Violinistas consagrados
como Itzhak Perlman, Isaac Stern e Arnold Steinhardt souberam do seu
trabalho e dispuseram-se a acompanhar seus alunos em um célebre concerto
beneficente no Carnegie Hall. Essa heroica jornada foi registrada no
documentário Small Wonders (“pequenas maravilhas”), que disputou o Oscar
da categoria em 1996 e chamou a atenção do produtor Harvey Weinstein.
Nascia ali, com a aprovação de Roberta, o projeto de Música do Coração.
Coube a Meryl Streep o papel da professora que luta simultaneamente
em duas frentes. A primeira é de âmbito doméstico: destruída por um
casamento que a anulava, precisou reerguer a autoestima enquanto educava
os filhos. A segunda vai um pouco além da mera questão profissional, pois o
sucesso do programa não se concentrava apenas em ensinar música a quem
parecia pouco inclinado a aprendê-la, mas também em tornar melhor o
cotidiano de alunos que viviam em condições sociais precárias.
Mais da metade das 150 crianças que aparecem no filme foram mesmo
alunos de Roberta. A bandeira de Música do Coração é parecida com a de
Mr. Holland – Adorável Professor (1995), que inspirou professores
americanos a criar uma fundação com o nome do personagem para defender
o ensino de música em escolas públicas. A diferença é que Roberta existe, e
até hoje trabalha na mesma escola. Felizes os alunos que têm o privilégio de
passar pelo seu programa.
Música do Coração (Music of the Heart). EUA, 1999, 124 min. Direção: Wes Craven. Roteiro: Pamela Gray. Com Meryl Streep, Aidan Quinn, Angela Bassett, Cloris Leachman, Gloria Estefan,
Henry Dinhofer, Michael Angarano, Robert Ari. Distribuição em DVD: Paris.

(Publicado em Educação 45, janeiro de 2001)


Na Estrada
On the Road
EUA/Inglaterra/França/Brasil, 2012
Direção: Walter Salles

Romance que se tornou ícone da geração beat e exerceu grande


influência sobre a cultura pop a partir de sua publicação em 1957, On the
Road - Pé na Estrada teve seus direitos de adaptação adquiridos pelo cineasta
norte-americano Francis Ford Coppola (O Poderoso Chefão, Apocalypse
Now). Acreditou-se, durante muitos anos, que o próprio Coppola dirigiria um
longa a partir do livro de Jack Kerouac. O também norte-americano Gus van
Sant (Elefante, Paranoid Park) teve seu nome ligado ao projeto. Mas, graças
ao êxito internacional de Diários de Motocicleta (2004), sobre a juventude de
Che Guevara, o diretor brasileiro Walter Salles e o roteirista porto-riquenho
José Rivera assumiram o desafio de traduzir em imagens a torrente verbal de
Kerouac.
Coppola apadrinhou a escolha da dupla e limitou-se ao papel de
produtor executivo de Na Estrada, que estreou na mostra competitiva do
Festival de Cannes, em maio do ano passado. Desde então, o longa-metragem
fez uma carreira internacional de prestígio, embora muito discreta em
números de bilheteria (cerca de US$ 6 milhões em todo o mundo, para um
custo estimado de US$ 25 milhões). A imprensa de diversos países foi
generosa com a adaptação, mas o público — inclusive no Brasil, onde obteve
seu melhor desempenho depois da França — ficou muito aquém do esperado.
A aventura existencial de Kerouac já não exerceria apelo sobre os jovens de
hoje ou os jovens de hoje, público preferencial das salas de cinema, não
consideraram que o filme também lhes dizia respeito?
Em Na Estrada, um jovem escritor (Sam Riley) e um de seus melhores
amigos (Garrett Hedlund) viajam pelos EUA dos anos 1950. O primeiro
admira a liberdade do segundo, cujo comportamento desrespeita os padrões
conservadores da época. Mas, com o tempo, a relação entre os dois se torna
mais complexa e envolve também outros personagens. Por fim, o escritor usa
o amigo como inspiração para um romance. Salles (que realizou um
documentário sobre o livro antes de rodar o filme) e Rivera procuram recriar
o estado de espírito da geração norte-americana do pós-II Guerra Mundial —
e, a exemplo da obra de Kerouac, fazem uma espécie de inventário poético
dos desejos e incertezas da juventude em qualquer lugar ou período.
Na Estrada (On the Road) — EUA/Inglaterra/França/Brasil, 2012, 137 min. Direção: Walter Salles. Roteiro: José Rivera, baseado no romance de Jack Kerouac. Com Sam Riley, Garrett
Hedlund, Kristen Stewart, Amy Adams, Kirsten Dunst, Alice Braga, Viggo Mortensen. Distribuição em DVD e Blu-ray: Playarte.

(Publicado em Educação 190, fevereiro de 2013)


Na Natureza Selvagem
Into the Wild
EUA, 2007
Direção: Sean Penn

Jovem de família estável e recém-formado em boa universidade,


Christopher McCandless tinha provavelmente um futuro cheio de
possibilidades. Preferiu renunciar a elas, no entanto, e abandonou tudo o que
a sociedade já havia lhe proporcionado. Com o nome de Alex, decidiu
começar outra vida. Durante cerca de dois anos, perambulou como
mochileiro pelos EUA até chegar à sua última parada, um ônibus abandonado
em região inóspita do Alaska, onde morreu isolado, em 1992.
No livro-reportagem Na Natureza Selvagem (Companhia das Letras), o
jornalista norte-americano Jon Krakauer – autor também de outros livros
sobre aventureiros e suas jornadas perigosas, como No Ar Rarefeito e Sobre
Homens e Montanhas — oferece respostas para a atitude radical de
McClandess a partir dos depoimentos da família, de amigos e pessoas que o
encontraram durante a jornada.
O que o moveu foi uma negação radical da sociedade de consumo,
acompanhada de um fascínio pela vida na natureza e pela biografia de poetas
errantes. Esses elementos são trabalhados pelo ator, roteirista e diretor Sean
Penn (Sobre Meninos e Lobos, 21 Gramas) como espécie de manifesto neo-
hippie em pleno século 21 no filme Na Natureza Selvagem, um dos mais
premiados da última temporada nos EUA.
Em seu quarto longa-metragem na direção (os anteriores são Unidos
pelo Sangue, Acerto Final e A Promessa), sem contar o episódio que realizou
para o longa coletivo 11 de Setembro, Penn demonstra sentir, a exemplo de
Krakauer, enorme simpatia por McClandess (interpretado por Emile Hirsch,
de Alpha Dog e Speed Racer). Muitos tratariam o personagem como um
maluco, mas o filme reconstitui com poesia e romantismo sua história
incomum.
Na Natureza Selvagem (Into the Wild) — EUA, 2007, 148 min. Direção e roteiro: Sean Penn, baseado no livro de Jon Krakauer. Com Emile Hirsch, Vince Vaughn, Catherine Keener, Marcia
Gay Harden, William Hurt. Distribuição em DVD: Paramount.

(Publicado em Educação 136, agosto de 2008)


Não me Abandone Jamais
Never Let me Go
EUA/Inglaterra, 2010
Direção: Mark Romanek

O cinema contribuiu para tornar mais conhecida a obra do escritor inglês


de origem japonesa Kazuo Ishiguro, graças principalmente ao drama
Vestígios do Dia (1993), baseado no romance de mesmo nome, com Anthony
Hopkins no papel de um mordomo de fidelidade canina aos patrões na
Inglaterra do pós-II Guerra Mundial. Vai enganar-se, no entanto, quem
buscar material semelhante a esse na mais recente adaptação da obra de
Ishiguro, Não me Abandone Jamais.
A primeira parte do filme, ambientada em um internato britânico na
década de 1970, leva o espectador a uma ambientação ligeiramente
semelhante, reconstituindo em flashback as relações entre uma aluna (Carey
Mulligan, a adolescente que se envolve com um homem mais velho em
Educação) e dois colegas de turma (Keira Knightley, a estrela de Desejo e
Reparação, e Andrew Garfield, que interpreta o brasileiro Eduardo Saverin,
cofundador do Facebook, em A Rede Social).
Dirigida com mão de ferro, essa escola idílica ambientada em uma zona
rural parece corresponder a outras representações do mesmo universo já
realizadas pelo cinema, com a disciplina rigorosa orientando a formação de
crianças em tempo integral. Há algo ali muito incomum, no entanto, como
sugerem os letreiros iniciais, que situam a história em uma realidade paralela,
na qual a expectativa de vida média, graças a avanços científicos
desenvolvidos ainda na década de 1950, já alcançaria os 100 anos.
Quais avanços científicos? Quando Não me Abandone Jamais fornecer a
resposta, mudará brutalmente a ideia que se faz da tal escola interna na trama
— e, por extensão, será afetado também o conceito de escolas como aquela
na nossa realidade bem concreta e nada paralela. O romance de Ishiguro e a
adaptação do diretor Mark Romanek (realizador de vídeos musicais e do
longa Retratos de uma Obsessão) e do roteirista Alex Garland avançam em
direção a outros temas, mas o incômodo provocado pela concepção
(con)formadora da educação persiste, como um eco poderoso, até o final.
Internatos como o de Não me Abandone Jamais, com crianças e jovens
submetidos em tempo integral a uma política rigorosa de formação, já foram
representados em diversos outros longas-metragens de ficção. A escola
Hogwarts da série de filmes sobre o bruxo Harry Potter (2001-2011), por
exemplo, foi inspirada nas tradicionais instituições privadas da Inglaterra que
seguem esse modelo.
Alguns filmes são críticos em relação aos valores adotados por essas
supostas ilhas de excelência educacional, como o clássico Se... (1968), de
Lindsay Anderson, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes. O
então jovem Malcolm McDowell (protagonista de Laranja Mecânica)
interpreta um estudante que lidera uma revolta contra as autoridades de sua
escola, em leitura contundente do cenário sociopolítico no final dos anos
1960.
Outro clássico britânico ambientado em um internato é Primavera de
uma Solteirona (1969), com Maggie Smith no papel de uma professora dos
anos 1930 que prefere desrespeitar as regras da escola onde trabalha.
Representações de internatos podem ser vistas também no australiano Picnic
na Montanha Misteriosa (1975) e no norte-americano Sociedade dos Poetas
Mortos (1989), ambos dirigidos por Peter Weir, e nos franceses Adeus,
Meninos (1987) e A Voz do Coração (2004).
Não me Abandone Jamais (Never Let me Go) — EUA/Inglaterra, 2010, 103 min. Direção: Mark Romanek. Roteiro: Alex Garland, baseado em romance de Kazuo Ishiguro. Com Carey Mulligan,
Keira Knightley, Andrew Garfield. Distribuição em DVD e Blu-ray: Fox.

(Publicado em Educação 175, novembro de 2011)


Nenhum a Menos
Yi Ge Dou Bu Neng Shao/Not One Less
China, 1999
Direção: Zhang Yimou

Quanto maior o tamanho do paciente, maior também é a doença. Cerca


de um milhão de alunos abandonam todos os anos o ensino básico na China
em virtude exclusivamente da pobreza. São obrigados a trabalhar nas
pequenas propriedades rurais da própria família ou então como empregados,
recebendo salários miseráveis que, no entanto, ajudam a engrossar o
orçamento doméstico. Nenhum a Menos reconstituiu uma história verídica
que resume de forma dramática a extensão desse problema.
Autor de sucessos internacionais como Amor e Sedução (1990) e
Lanternas Vermelhas (1991), o diretor chinês Zhang Yimou optou por usar
como atores as pessoas que protagonizaram o episódio. Assim, renovou o
compromisso do filme – obra de ficção construída com algumas ferramentas
do documentário – em retratar sem muitos retoques o problema mais grave
do gigantesco sistema educacional público da China.
A epopeia começa quando Wei Minzhi, 13 anos, chega à escola primária
de Shu Ixian, vilarejo no interior do país, para substituir o veterano professor
Gao, que precisa fazer companhia à mãe doente. A “escola” é uma construção
rústica de dois cômodos – uma sala com lousa e carteiras, e um escritório-
alojamento para o mestre e os alunos-monitores. Gao chegou a ter 40 pupilos,
mas restaram apenas 28, de pré-escola à 3ª série.
Como Wei quer receber adiantado o salário de 50 iuans (equivalente a
17 refrigerantes), Gao promete lhe dar mais 10 iuans na volta se todas as
crianças permanecerem na escola. Começa então a dupla cruzada da
adolescente. Como nova professora, precisa impor sua autoridade a alunos
um pouco mais jovens do que ela e ensinar-lhes o pouco que sabe. Além
disso, dedica-se a impedir, como um cão pastor, que alguma ovelha fuja do
rebanho.
Tudo sairia razoavelmente bem se um estudante rebelde não a obrigasse
a uma jornada heroica para manter o compromisso assumido com Gao.
Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza e do prêmio do público na
Mostra Internacional de São Paulo em 1999, Nenhum a Menos pertence à
nobre categoria dos filmes engrandecedores: além de levar os mais sensíveis
às lágrimas, reabastece o ânimo do espectador para enfrentar as agruras da
vida.
Se Wei e seus alunos agiram assim, por que não podemos fazer a nossa
parte? O aparente otimismo não significa, porém, que o filme escamoteie
aspectos duros da realidade chinesa. Lá, cerca de 15% dos estudantes que
saem da escola em virtude da pobreza conseguem retornar, mais tarde, graças
a doações. Yimou demonstra, no entanto, que o assistencialismo não é
solução para o problema, que tem muito a ver com o que o país quer para seu
futuro. Ninguém abandona os estudos só porque preferiu jogar bola na rua ou
brincar de boneca. Carteiras vazias são também uma consequência de bolsos
vazios, e de projetos sociopolíticos ineficazes na erradicação das
desigualdades sociais.
Nenhum a Menos (Yi Ge Dou Bu Neng Shao/Not One Less) — China, 1999, 106 min. Direção: Zhang Yimou. Roteiro: Shi Xiang Sheng, baseado em seu livro Existe um Sol no Céu. Com Wei
Minzhi, Zhang Huike, Tian Zhenda, Gao Enman, Sun Zhimei. Distribuição em DVD: Columbia.

(Publicado em Educação 40, agosto de 2000)


Neste Mundo
In This World
Reino Unido, 2002
Direção: Michael Winterbottom

Mesmo quem acompanha o noticiário internacional — geralmente


concentrado na “grande” política, aquela protagonizada por chefes de
governo e suas ações — costuma ficar sem a dimensão humana dos conflitos
e dramas que interferem no cotidiano de povos. O cinema tende a ajudar na
tarefa de compreendê-la, como bem demonstra Neste Mundo.
É um longa-metragem de ficção, mas lembra muito um documentário,
mais ou menos como O Jardineiro Fiel, o recém-lançado filme de Fernando
Meirelles (diretor de Cidade de Deus), trata da atuação da indústria
farmacêutica na África com ares que às vezes parecem de reportagem.
Ambos usam técnicas documentais – câmera na mão, por exemplo – para
acentuar o realismo e aproximar o espectador da trama.
Os personagens principais de Neste Mundo são dois exilados afegãos
que vivem em um campo de refugiados em Peshawar, no Paquistão. Seu
plano é cruzar o Oriente Médio, a Europa e chegar a Londres (Inglaterra).
Não têm, claro, dinheiro e documentos para bancar a viagem de modo
“oficial”. Mas têm, a exemplo de tantos outros em situação semelhante, fé em
pessoas que não inspiram a menor confiança. Acreditam um uma jornada
segura pelos atalhos duvidosos da clandestinidade.
O diretor inglês Michael Winterbottom (que realizou recentemente o
polêmico Nove Canções) recrutou refugiados afegãos para interpretar os
papéis e fez com sua equipe a mesma rota percorrida por milhares de
asiáticos que, sem ter como viver em seus países, fruto de perseguições
étnicas e de cenários políticos conturbados, tentam a sorte no Primeiro
Mundo. Muitos deles nem mesmo o alcançam. Neste Mundo permite saber
onde vão parar os seus sonhos.
Neste Mundo (In This World) — Inglaterra, 2002, 88 min. Direção: Michael Winterbottom. Roteiro: Tony Grisoni. Com Jamal Udin Torabi, Enayatullah, Imran Paracha. Distribuição em DVD:
Videofilmes.

(Publicado em Educação 103, novembro de 2005)


Netto Perde Sua Alma
Brasil, 2001
Direção: Beto Souza e Tabajara Ruas

Não há personagem ou fato relevante na história dos EUA que já não


tenha sido adaptado para o cinema. A tradição começou com Nascimento de
uma Nação (1915), clássico de D. W. Griffith, e prossegue até hoje. Dessa
forma, Hollywood projetou ao longo do século 20 um conceito de identidade
nacional, muito bem analisado pelo professor Robert Burgoyne nos ensaios
de A Nação do Filme (Ed. UnB). Seu livro debruça-se sobre produções
recentes – como Templo de Glória (1989) e Forrest Gump (1994) — nas
quais “as narrativas de pessoas excluídas dos relatos tradicionais começaram
a ser articuladas num diálogo complexo com a tradição dominante”, e cujos
argumentos exploram o sentido de nação “de baixo”.
Netto Perde Sua Alma emprega procedimento semelhante para recriar
dois eventos de crucial importância para a história do Brasil no século 19, a
Guerra dos Farrapos (1835-1945) e a Guerra do Paraguai (1861-1866). Os
diretores estreantes Beto Souza e Tabajara Ruas (autor também do romance
que serviu de base para o roteiro) evitaram aqui a visão “oficial” relatada a
partir “de cima”. Preferiram reconstituir a trajetória de um herói pouco
conhecido fora do Rio Grande do Sul, o general Antonio de Souza Netto
(1803-1866). Ele liderou a Revolução Rio-grandense, proclamou em 1835 a
independência da província e, derrotado ao final do conflito, liderou mais
tarde a cavalaria gaúcha que participou da Guerra do Paraguai.
Parte desses eventos forneceu recentemente matéria-prima para a
minissérie A Casa das Sete Mulheres, produzida pela Rede Globo com base
em romance de Leticia Wierzchowski e estrelada por Werner Schünemann,
que também interpreta o protagonista de Netto Perde Sua Alma. Não é apenas
em sua figura de caudilho, no entanto, que o filme se concentra. Em
depoimento que acompanha a versão em DVD, Beto Souza compara o elenco
a uma “banda de jazz”; diversos atores têm a oportunidade de fazer um
“solo” quando seus personagens aproximam-se de Netto. Esse recurso, que
reforça a ideia de “nação de baixo” analisada por Burgoyne, tem seu melhor
exemplo na presença do sargento Caldeira (Sirmar Antunes), braço direito do
general que comandou os lanceiros negros de sua cavalaria.
“Não vamos sonhar”, diz Netto a seus liderados, em momento de
incerteza durante a Guerra dos Farrapos. “Ao contrário: vamos sonhar, sim”,
retruca um soldado. Netto não fará outra coisa, exceto sonhar com dias
melhores, durante todo o filme, que começa em 1866, com sua chegada ao
Hospital Militar de Corrientes, gravemente ferido, e retorna ao passado em
flashbacks. Dividido em prólogo e cinco atos, ganha força justamente quando
se esquece um pouco dos supostos tormentos existenciais de Netto para
dedicar-se aos fatos históricos e suas implicações cotidianas, quase sempre
esquecidas pela historiografia oficial.
Netto Perde Sua Alma — Brasil, 2001, 103 min. Direção: Beto Souza e Tabajara Ruas. Roteiro: Tabajara Ruas, Beto Souza, Ligia Walper, Fernando Mares de Souza e Rogério Brasil Ferrari,
baseado em romance de Tabajara Ruas. Com Werner Schünemann, Laura Schneider, Sirmar Antunes, Márcia do Canto, Arines Ibias, Lisa Becker, João França, Fábio Neto. Distribuição em
DVD: Europa.

(Publicado em Educação 74, junho de 2003)


Ninho Vazio
El Nido Vacío
Argentina/Espanha/França/Itália, 2008
Direção: Daniel Burman

Em Esperando o Messias (2000), O Abraço Partido (2004) e As Leis de


Família (2006), os longas-metragens anteriores do argentino Daniel Burman
já lançados no Brasil, as tradições da cultura judaica e a perspectiva juvenil
diante do mundo adulto impregnavam a caracterização de personagens e seus
dramas. Ainda presente, essa referência-chave se desloca para o pano de
fundo em seu mais recente filme, Ninho Vazio.
Como ocorre habitualmente em sua obra, um núcleo familiar também
orienta o desenvolvimento da ação e a própria natureza psicológica dos
protagonistas. A imagem do título se refere ao apartamento de uma família de
Buenos Aires, a partir do momento em que os pais se veem sozinhos, às
voltas apenas um com o outro, depois que os três filhos, já adultos, saem de
casa para morar em outros países e mantêm com o antigo “ninho” um contato
esporádico.
O pai (Oscar Martínez) é um escritor de prestígio; sua mulher (Cecilia
Roth, de Tudo Sobre Minha Mãe) abandonou a universidade na juventude e
parece ter alimentado, desde então, a sensação incômoda de ser um apêndice
do marido bem-sucedido. A história se constrói, com habilidade e sedução,
em torno do que se passa com o escritor a partir dos acontecimentos banais
de uma noite, quando o casal sai para jantar e tem uma discussão; ele se
interessa por uma moça da mesa ao lado e, ao chegar em casa, descobre que a
filha (nesse momento, ainda vivendo com os pais, assim como os irmãos)
passa a noite com o namorado.
O fio condutor explora, de maneira intimista, a dificuldade do escritor
em lidar com o tempo que corre, com a decadência física e com a ideia de
que a morte, sorrateira, se aproxima, reduzindo o campo de manobras, os
sonhos e os desejos – que continuam muito vivos. Autor de diálogos
espirituosos e de cenas compostas com grande investimento nos detalhes,
Burman tem a valiosa contribuição dos atores principais para fazer uma
pequena joia a ser apreciada com a atenção que dedicamos à música de
câmara ou às peças de Tchékhov.
Ninho Vazio (El Nido Vacío) — Argentina/Espanha/França/Itália, 2008, 91 min. Direção e roteiro: Daniel Burman. Com Oscar Martínez, Cecilia Roth, Inés Efron, Arturo Goetz. Distribuição em
DVD: Imovision.
(Publicado em Educação 146, junho de 2009)
No
No
Chile, 2012, 118 min
Direção: Pablo Larraín

Em 1988, um referendo foi convocado no Chile para decidir se os


eleitores aprovavam um novo mandato de oito anos para o então presidente, o
general Augusto Pinochet, no poder desde o golpe militar que havia
derrubado, em 11 de setembro de 1973, o presidente Salvador Allende. Para a
ala mais radical do governo, seus apoiadores na sociedade civil e o próprio
Pinochet, tratava-se apenas de uma formalidade para aplacar as críticas
internacionais à ditadura, que se intensificavam. A oposição, inicialmente,
pensava da mesma forma e estava dividida: alguns propunham o boicote ao
plebiscito, enquanto outros defendiam que a participação era importante para
denunciar a farsa e, como se diz no jargão da política, "ocupar espaços".
Nenhuma das partes envolvidas, no governo ou na oposição, imaginaria
que o processo escaparia ao controle. O Chile ganharia, com essa ida às
urnas, um marco histórico inequívoco para celebrar, de maneira pacífica e
festiva, a passagem da ditadura à democracia (diferentemente do que ocorreu
com a lenta transição brasileira). No recria, em forma de suspense político, os
bastidores das campanhas. A trama criada por Pablo Larraín acompanha a
equipe de propaganda do "não", sob responsabilidade da "Concertación", a
coalizão oposicionista, mas faz também breves e significativas incursões às
fileiras dos adversários, que lutavam pelo "sim" a Pinochet (ou, como
argumentavam, a um Chile progressista e livre da "ameaça" esquerdista).
Repleto de temas para debate no campo da história latino-americana
contemporânea, No oferece também uma boa oportunidade para falar a
respeito de discursos — verbais e visuais. No primeiro caso, graças às
discussões sobre como transformar o "não" em algo afirmativo e
esperançoso, dando ao "sim" um caráter negativo. As imagens usadas por
Larraín, por sua vez, combinam material de época (em vídeo, com qualidade
deficiente) a uma reconstituição dos eventos que imita a mesma textura
visual. Assim, o espectador tem a sensação de assistir a um filme que parece
ter sido feito nos anos 1980, e pode compreender melhor como o marketing
político (e a própria linguagem publicitária) ainda engatinhava em relação a
procedimentos hoje consagrados — e dos quais é preciso aprender a se
defender.
Larraín tem se empenhado em representar diferentes aspectos da
sociedade chilena nas décadas de 1970 e 1980. Em Tony Manero (2008),
ambientado durante o regime militar, o protagonista é um homem solitário e
violento que imita as coreografias de John Travolta em Os Embalos de
Sábado à Noite (1977). Já a trama de Post Mortem (2010), sobre o trabalho
dos legistas de um necrotério, se passa nos últimos dias do governo Allende.
No (No) — Chile, 2012, 118 min. Direção: Pablo Larraín. Roteiro: Pedro Peirano, baseado em peça de Antonio Skármeta. Com Gael García Bernal, Alfredo Castro, Antonia Zegers. Distribuição
em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 194, junho de 2013)


No Vale das Sombras
In the Valley of Elah
EUA, 2007
Direção: Paul Haggis

Leões e Cordeiros
Lions for Lambs
EUA, 2007, 91 min
Direção: Robert Redford

A relativa demora na realização de um longa-metragem em condições


industriais — que varia, nos EUA, de dois a quatro anos — ajuda a explicar
por que o cinema norte-americano só recentemente começou a explorar de
maneira sistemática tramas envolvendo a ação militar no Oriente Médio e
suas implicações, tanto internas quanto externas.
Sentimentos e avaliações que a imprensa do país e a internet já
registravam desde 2004, por ocasião da campanha que levou à reeleição do
presidente George W. Bush, podem ser vistos agora no argumento de
diversos filmes, com destaque para os que examinam de forma crítica a
intervenção dos EUA no Afeganistão e no Iraque, bem como o desrespeito a
acordos internacionais de direitos humanos.
Essa linhagem mais liberal é exemplificada por No Vale das Sombras e
Leões e Cordeiros. O primeiro, dirigido por Paul Haggis (Crash – No Limite),
se baseia na história verídica de um militar aposentado (Tommy Lee Jones)
que investiga nos EUA o desaparecimento do filho, recém-chegado do
Iraque.
No segundo, dirigido pelo ator Robert Redford, três histórias paralelas
se interligam em torno do combate no Afeganistão: a de um político (Tom
Cruise) que oferece história sigilosa a uma jornalista (Meryl Streep), a de um
professor (Redford) que procura convencer um aluno talentoso a agir e a de
soldados no front, em operação especialmente perigosa.
As repercussões do conflito no Oriente Médio também aparecem em O
Preço da Coragem (2007), que reconstitui o sequestro do jornalista norte-
americano Daniel Pearl no Paquistão e os esforços para resgatá-lo. Já em O
Reino (2007) a ficção e o conservadorismo voltam a imperar, com uma
preconceituosa visão do mundo árabe em filme de ação sobre uma equipe do
FBI que age clandestinamente na Arábia Saudita depois de um atentado.
No Vale das Sombras (In the Valley of Elah) — EUA, 2007, 122 min. Direção e roteiro: Paul Haggis, baseado em argumento de Mark Boal e Haggis. Com Tommy Lee Jones, Charlize Theron,
Jason Patric, Susan Sarandon, James Franco. Distribuição em DVD: Paris.

Leões e Cordeiros (Lions for Lambs) — EUA, 2007, 91 min. Direção: Robert Redford. Roteiro: Matthew Michael Carnahan. Com Tom Cruise, Meryl Streep, Robert Redford. Distribuição em
DVD: Fox.

(Publicado em Educação 133, maio de 2008)


Nó na Garganta
The Butcher Boy
Irlanda, 1997
Direção: Neil Jordan

Aos 12 anos, Francie Brady (Eamonn Owens) parece levar uma vida
normal. Vai à escola pela manhã e gasta as tardes em companhia de seu
melhor amigo, Joe Purcell (Alan Boyle), perambulando pelo campo e pelas
ruas da pequena cidade onde moram. A dupla apronta traquinagens e sonha
com heróis da televisão, do cinema e das histórias em quadrinhos. De vez em
quando, os meninos exageram, e a culpa invariavelmente recai sobre Francie.
Basta conhecer-lhe a intimidade para entender de onde vem tanta rebeldia.
O processo de desintegração psicológica dessa criança admirável
constitui o eixo de Nó na Garganta. O roteiro baseia-se no romance
homônimo do irlandês Patrick McCabe, ambientado no início da década de
1960. A tradução brasileira do livro e do filme tenta suavizar o título original
(“o garoto açougueiro”), mas não há como disfarçar a contundência desse
relato inusitado sobre a hostilidade do mundo adulto vista da perspectiva de
uma criança desajustada.
Os problemas de Francie começam em casa. Sua mãe, Annie (Aisling O’
Sullivan, de Michael Collins), é carinhosa, mas também insegura e
depressiva. Quando sofre colapsos nervosos, vai para a “oficina” –
eufemismo para clínicas psiquiátricas cujo principal método de tratamento, na
época, eram os choques elétricos. A cada retorno para casa, roubam-lhe um
pouco da sanidade mental. E o pai de Francie, Benny (Stephen Rea, de
Traídos pelo Desejo), é um músico alcoólatra incapaz de compreender o que
ocorre à sua volta, principalmente a solidão, a amargura e depois a ira de seu
filho.
Na cidade, o garoto é estigmatizado. Quase todos o veem como um
pequeno marginal sem futuro que ameaça as outras crianças apenas pela
convivência. A porta-voz desse movimento anti-Francie é a rabugenta sra.
Nugent (Fiona Shaw, de Meu Pé Esquerdo), que não quer vê-lo perto de seu
filho, o comportado Philip (Andrew Fullerton). De tanto ser encarado como
um perigo, Francie acaba mesmo tornando-se uma bomba-relógio. Nem
mesmo as aparições de um anjo a quem chama de Nossa Senhora
(interpretada pela cantora Sinéad O’Connor) impedem que as desgraças
cotidianas o façam entrar em parafuso.
Há uma garantia aparente de que o garoto sobreviveu àqueles maus
pedaços: a história é narrada pelo próprio Francie já adulto (Stephen Rea,
outra vez). Sua maneira peculiar de recordar e ao mesmo tempo comentar os
episódios, semelhante à do protagonista do seriado de TV Anos Incríveis,
responde em boa parte pela força de Nó na Garganta. São raros os filmes
sobre a infância dotados de um olhar e de um discurso assim identificados
com uma determinada compreensão da realidade. Seu protagonista, tanto nas
horas doces quanto nas violentas, é um espanto – para o bem e para o mal,
um personagem antológico.
Descoberto em uma escola irlandesa, o estreante Owens recebeu
diversos prêmios de ator revelação, inclusive no Festival de Berlim de 1998,
do qual o cineasta Neil Jordan saiu com o prêmio de melhor diretor. Owens
pode até encerrar sua carreira no cinema com esse primeiro filme que já terá
lugar assegurado na galeria dos maiores atores infantis. Sem menosprezar o
trabalho impecável de Jordan, o excelente cineasta de Traídos pelo Desejo
(1992) e Michael Collins (1996), é ao garoto que o espectador deve agradecer
a experiência incomum proporcionada por Nó na Garganta, uma travessia
ora trágica, ora cômica pela corda frágil estendida sobre o picadeiro da vida.
Nó na Garganta (The Butcher Boy) – Irlanda, 1997, 110 min. Direção: Neil Jordan. Roteiro: Patrick McCabe e Neil Jordan, baseado em romance homônimo de McCabe. Com Stephen Rea, Fiona
Shaw, Eamonn Owens, Alan Boyle, Sinéad O’Connor. Distribuição em VHS: Warner.

(Publicado em Educação 33, janeiro de 2000)


Nosso Professor é um Herói
Le Plus Beau Métier du Monde
França, 1996
Direção: Gérard Lauzier

Interessados em conhecer as principais características do sistema


educacional norte-americano podem começar a lição de casa pelo cinema.
Centenas de filmes ambientam-se em escolas, que vão do ensino básico ao
universitário. Embora boa parte deles seja porcaria, há também muita coisa
boa que funciona perfeitamente como ponto de partida para reflexões e
comparações. Bem mais rara, no entanto, é a oportunidade de tomar contato
com a educação francesa pelo cinema, em virtude da escassez de títulos sobre
o assunto lançados no Brasil.
Já haveria aí um bom motivo para assistir a Nosso Professor é um Herói
com especial interesse. É uma comédia dramática que enaltece o ofício de
educar, como se percebe pelo título em português e principalmente pelo
original francês (“a mais bela profissão do mundo”). Mas é provável que um
espectador comum considere absurda, depois de ver o filme, a ideia de que
não há coisa a melhor a fazer do que dar aulas. E só enxergará no professor
um “herói” quem prefira um significado restrito para o termo – algo entre o
espírito de abnegação e um parafuso solto na cabeça.
Laurent Monier (Gérard Depardieu) é um pacato professor de história
em um bom colégio no interior da França. Mas, na festa surpresa que
organiza para o 40º. aniversário do marido, sua mulher Helene (Michèle
Laroque) descobre que ele é infiel. Quando o divórcio sai, ela se muda com o
casal de filhos para a casa da mãe em Paris, onde dará aulas de francês. Para
viver mais perto das crianças, Laurent solicita transferência, e só arruma vaga
em um desconhecido Colégio Gainsbourg (homenagem do diretor e roteirista
Gérard Lauzier ao músico, ator e cineasta Serge Gainsbourg, autor de Je
T’Aime, Moi Non Plus, filme e canção escandalosos dos anos 1970).
A escola fica em St. Denis, na região metropolitana de Paris. Não é a
solução perfeita, mas quebra o galho. Ocorre que o município, um subúrbio
operário, tradicional reduto de esquerda, é hoje conhecido pelo expressivo
contingente de imigrantes, muitos deles ilegais, e por índices de violência
superiores aos da capital. Laurent descobrirá um pouco dessa realidade social
ao participar da primeira reunião de professores do Gainsbourg e ao despejar
sua mudança em um deteriorado conjunto habitacional.
Como novato no colégio, cabe a ele uma turma de oitava série que
afugenta os demais colegas pela alta concentração de alunos-problema. E,
como novo morador da região, recebe as boas-vindas da gangue que domina
o pedaço, liderada por um delinquente cujo irmão mais novo estuda naquela
mesma classe-bomba. Adicionam-se ao pacote outros ingredientes – um
diretor estressado, um vizinho neofascista, uma professora argelina que não
permite a Laurent avançar o sinal – e está pronto o cenário para o mais
infernal dos anos letivos de Laurent.
O humor evita que Nosso Professor é um Herói se torne sombrio, mas
não impede que ele mexa em feridas sérias do ensino público francês –
parecidas, por incrível que muitos possam achar, com as do brasileiro.
Salários baixos, infraestrutura precária, falta de empenho das autoridades,
alunos rebeldes e desinteressados: até parece que o Colégio Gainsbourg fica
aqui, na periferia de alguma metrópole. Alguém acredita mesmo que a grama
do vizinho é sempre mais verde do que a nossa?
Nosso Professor é um Herói (Le Plus Beau Métier du Monde) – França, 1996, 100 min. Direção e roteiro: Gérard Lauzier. Com Gérard Depardieu, Michèle Laroque, Souad Amidou, Ticky
Holgado. Distribuição em VHS: Versátil.

(Publicado em Educação 32, dezembro de 1999)


Novo Mundo
Nuovomondo
Itália, 2006, 83 min
Direção: Emanuele Crialese

Filmes como O Poderoso Chefão (1972), de Francis Coppola, Gaijin –


Os Caminhos da Liberdade (1980), de Tizuka Yamazaki, Lamerica – O
Sonho de Chegar (1994), de Gianni Amelio, e Neste Mundo (2002), de
Michael Winterbottom, pertencem à extensa galeria dos dramas sobre
imigrantes. Alguns se detêm sobre a jornada rumo a um novo país, enquanto
outros preferem se concentrar nas dificuldades de adaptação a uma cultura
em que muitas vezes o próprio idioma é totalmente desconhecido.
Em Novo Mundo, o diretor e roteirista italiano Emanuele Crialese (que
realizou também Respiro) procura combinar as duas tradições. Na primeira
parte do filme, acompanhamos o que leva uma família pobre do sul da Itália,
no início do século 20, a julgar que o melhor a fazer é sair dali e seguir os
passos dos parentes que emigraram para os EUA. Uma demorada e perigosa
viagem de navio configura a única alternativa para materializar o sonho.
A segunda parte se ambienta na ilha Ellis, em Nova York, centro de
triagem (hoje transformado em memorial) dos milhões de imigrantes que
desembarcaram na Costa Leste do país em busca de oportunidades. Ali, mãe
e filhos passam por testes que ilustram a distância que os separa do mundo no
qual desejam ingressar. O “novo mundo” é apenas entrevisto pelas janelas do
prédio onde estão instalados, espécie de miragem que ainda se confunde com
a ideia vaga dos EUA formada por eles.
Crialese baseou a história em pesquisas sobre a chegada de imigrantes
italianos a Nova York. Esse cuidado atribui ao filme um caráter documental
incomum. Apesar disso, a poesia termina por se impor ao realismo nessa
extraordinária homenagem aos povos em movimento de ontem que, além da
importância representada pela detalhada reconstituição de época, ajuda a
lembrar os dramas e apuros dos povos em movimento de hoje, também
esperançosamente atrás de novos mundos.
Novo Mundo (Nuovomondo) — Itália, 2006, 83 min. Direção e roteiro: Emanuele Crialese. Com Charlotte Gainsbourg, Vincenzo Amato, Aurora Quattrocchi. Distribuição em DVD: Imagem.

(Publicado em Educação 134, junho de 2008)


Uma Noite em 67
Brasil, 2010, 85 min
Direção: Renato Terra e Ricardo Calil

Em 21 de outubro de 1967, a TV Record — em sua primeira


encarnação, que não deve ser confundida com a atual — promoveu no teatro
Paramount, em São Paulo, o encerramento do seu III Festival de Música
Popular Brasileira. Uma plateia ruidosa, que se dividia em blocos de fãs
como se fossem torcidas de times de futebol, viu de perto as apresentações
dos 12 finalistas. Centenas de milhares de espectadores acompanharam a
disputa ao vivo pela televisão. Muitos deles não se cansaram de contar às
gerações seguintes o que aconteceu então.
No documentário Uma Noite em 67, imagens de arquivo combinam-se
com entrevistas realizadas nos últimos anos para reconstituir o que teria sido
a mais acirrada finalíssima na história dos festivais de música brasileira.
Dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, o filme tem formato conservador,
semelhante ao de um programa especial para TV. O trunfo reside na força do
episódio, emblemático de seu tempo, e na tentativa, por alguns de seus
protagonistas, de lhe reduzir a importância.
Os finalistas eram, majoritariamente, jovens na faixa dos 20 e poucos
anos, alguns já conhecidos do público graças a edições anteriores do festival:
Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, Roberto Carlos e
Edu Lobo, entre outros. Ponteio, Roda viva, Domingo no Parque e Alegria,
Alegria, as canções favoritas do público, galvanizaram as atenções e se
estabeleceram, com o tempo, em clássicos da MPB — sigla que também se
consolidou naquele período, graças sobretudo aos festivais da Record.
Uma Noite em 67 investiga o caráter lendário daquela final, como se
houvesse ali algo de mágico sobre o Brasil de então e sobre a importância
que seus participantes exerceriam no cenário cultural nas décadas seguintes.
A tese é sedutora e parece consensual, principalmente se a nostalgia entra em
cena, mas Terra e Calil encontraram vozes dissonantes: para alguns dos
participantes, como Chico e Caetano, aquilo foi apenas um rio que passou em
suas vidas, há muito tempo, e eles dizem que nem mesmo lembram direito.
Nos cinemas, Uma Noite em 67 teve mais de 80 mil espectadores —
número altamente expressivo para documentários, que costumam ocupar
poucas salas e disputam o interesse do espectador, em ampla desvantagem,
com os filmes de ficção. Ele também se integra à safra recente de longas-
metragens voltados para a cultura musical brasileira.
A extensa lista, que inclui diversas produções em parceria com a TV,
traz os documentários Cantoras do Rádio, Contratempo, Herbert de Perto,
Loki - Arnaldo Baptista, O Milagre de Santa Luzia, Osvaldinho da Cuíca -
Cidadão Samba, Palavra (En)Cantada, Simonal - Ninguém Sabe o Duro que
Dei, Titãs - A Vida até Parece uma Festa e Versificando, entre outros.
O recém-lançado Dzi Croquettes (2009), de Tatiana Issa e Raphael
Alvarez, faz ainda boa e premiada carreira internacional, reconstituindo a
trajetória do grupo carioca que atuou na década de 1970. Assim como Uma
Noite em 67, ele contribui para que as novas gerações entendam um pouco
melhor como era o país durante o regime civil-militar de 1964-1985.
Nesse aspecto, ambos se aproximam de Panair do Brasil (2007), de
Marco Altberg, que apresenta a criação, a ascensão e a queda da empresa
pioneira da aviação comercial brasileira. Suas linhas foram cassadas em 1965
e seu patrimônio, tomado pelo Estado, em decisão que herdeiros e ex-
funcionários atribuem a retaliação política.
Uma Noite em 67 — Brasil, 2010, 85 min. Direção: Renato Terra e Ricardo Calil. Distribuição em DVD: Videofilmes.

(Publicado em Educação 165, janeiro de 2011)


Nós que Aqui Estamos por Vós
Esperamos
Brasil, 1999
Direção e roteiro: Marcelo Masagão

Peça a alguém que lembre os principais eventos do século 20, ou os de


qualquer outro período, e a resposta provavelmente resumirá fatos e seus
“protagonistas”: a Revolução Russa e Lênin, Trótsky e Stálin; a II Guerra
Mundial e Hitler, Mussolini, Roosevelt, Churchill e de novo Stálin; o Golpe
de 1964 no Brasil e Jango, Lacerda e Castelo Branco. Perde-se de vista, com
o raciocínio de que a história tem seus grandes personagens, a dimensão
humana dos “coadjuvantes” ou “figurantes”, as pessoas comuns, anônimas,
que fizeram o mundo caminhar.
Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos opta por concentrar-se em
um punhado dessas figuras – operários, soldados, donas de casa – na tentativa
de identificar de que maneira suas vidas foram afetadas pelo turbilhão de
eventos da “história”. Não é, porém, um documentário convencional. Em
primeiro lugar, não usa narrador. “Ele geralmente ocupa o papel de ator
principal na maioria dos documentários, como se a realidade sempre
necessitasse do aval da palavra para ter legitimidade”, explica o diretor
Marcelo Masagão. “O locutor parece querer sistematizar o buraco do não
compreendido.”
O filme também não traz estatísticas ou depoimentos. Em pouco mais de
uma hora, a montagem – que consumiu duas mil horas, ou 250 dias de
trabalho em horário comercial – encadeia e funde centenas de fotos, pinturas
e imagens em movimento, quase todas retiradas de arquivos. Alguns
comentários – muitas vezes irônicos – e breves informações são dados em
letreiros. A trilha sonora reúne temas compostos anteriormente por Wim
Mertens (autor da trilha de A Barriga de um Arquiteto, de Peter Greenaway),
além de música e efeitos sonoros criados para o filme por André Abujamra.
A forma integra-se perfeitamente ao conteúdo, uma leitura muito
particular do século 20, guiada pela historiografia tradicional e pela
psicanálise. Masagão cita o historiador Eric J. Hobsbawn, autor de Era dos
Extremos, e o médico Sigmund Freud (1856-1939), fundador da psicanálise,
como “consultores espirituais”. O desfile de homens notáveis começa com o
bailarino russo Nijinski (1890-1950), cuja apresentação em Paris do balé
L’Après-Midi d’un Faune, em maio de 1912, funciona como marco simbólico
do início de um novo tempo. Seguem-se rapidamente outras figuras célebres,
como o físico Albert Einstein (1879-1955) e o artista plástico Pablo Picasso
(1881-1973), antes que a atenção seja desviada para o bloco dos “pequenos
personagens, grandes histórias”.
Picasso, aliás, é o personagem em torno do qual o cineasta Orson Welles
(de Cidadão Kane) construiu um antológico “filme-truque” sobre
falsificação, Verdades e Mentiras (74). Masagão usa um expediente parecido
ao de Welles na reconstituição da trajetória de pessoas anônimas de várias
partes do mundo, e só revela o procedimento nos créditos finais. Foi acusado
por isso de “enganar” o público. Pede-se ao espectador, no encerramento, que
julgue se foi ou não iludido. Por mais que a informação possa surpreender a
alguns, Nós que Aqui Estamos parece deixar claro o tempo todo em que
terreno estamos pisando.
Outra pequena surpresa reservada para o final tem a ver com a origem e
o significado da frase que batiza o filme. Os indícios estavam espalhados
desde o início, mas ainda assim a revelação tem um impacto perturbador. No
fundo, Masagão termina por onde sua pesquisa começou. Documentário
incomum sobre a “banalização da morte e por correspondência direta a
banalização da vida”, Nós que Aqui Estamos navega pelo mais inesgotável de
todos os séculos com a sabedoria de quem não pretende em momento algum
esgotá-lo.
Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos — Brasil, 1999, 73 min. Direção e roteiro: Marcelo Masagão. Distribuição em DVD: Observatório.

(Publicado em Educação 35, março de 2000)


Oleanna
Oleanna
EUA, 1994
Direção: David Mamet

A situação tem aparência corriqueira: encerradas as aulas e divulgadas


as notas, uma aluna procura o professor para saber por que foi reprovada em
sua disciplina. As variantes do caso também não parecem especiais. A
estudante, insegura, revela um certo despreparo para acompanhar as aulas. O
mestre, arrogante, destila presunção intelectual. O cenário é uma prestigiada
universidade norte-americana. À medida que os dois personagens começam a
discutir, no entanto, o quadro adquire cores mais fortes e inusitadas. Um
encontro supostamente rotineiro transforma-se então em debate sobre o
próprio significado da educação formal.
Como tema principal de um filme, já bastaria. Mas Oleanna vai além
disso: é também um intrigante quebra-cabeça sobre como homens e mulheres
veem o mundo de maneira muito distinta, uma crítica feroz à ideologia do
“politicamente correto” (que, nos EUA, tropeça com frequência no ridículo) e
um fascinante exercício sobre como o universo das ideias muitas vezes
guarda pouca (ou nenhuma) relação com a realidade concreta. Para embarcar
nessas leituras, o filme exige do espectador um ouvido atento e descansado.
São quase 90 minutos de diálogo ininterrupto, travado como um duelo entre
pistoleiros do Velho Oeste. Como frases substituem balas, não há mortos,
apenas feridos.
Acertou quem viu nessa estrutura dramática um cheiro de origem teatral.
Oleanna é a adaptação de uma peça montada pela primeira vez em 1992. Seu
autor, David Mamet, despontou no final dos anos 1970 como um dos
principais nomes do moderno teatro norte-americano. Fiel à tradição de que
bons escritores cedo ou tarde desembarcam em Hollywood, começou a
assinar roteiros – como os de O Destino Bate à sua Porta (1981), O
Veredicto (1982), Os Intocáveis (1987) e Tio Vânia em Nova York (1994) – e
adaptações de suas peças, entre elas Perversidade Sexual em Chicago (Sobre
Ontem à Noite, 1986) e Glengarry Glenn Ross (O Sucesso a Qualquer Preço,
1992).
Mamet estreou como diretor com Jogo de Emoções (1987) e confirmou
o talento com As Coisas Mudam (1988) e Homicídio (1991), todos inspirados
em argumentos originais. Oleanna é o primeiro dos filmes que dirige baseado
em peça de sua autoria. Não por acaso, é o que menos explora as
possibilidades de espaço e tempo proporcionadas pelo cinema. No teatro,
aceita-se sem nenhum problema a convenção de os personagens
permanecerem o tempo todo no mesmo cenário. No filme, professor e aluna
às vezes dirigem-se para a porta do gabinete, dispostos a ir embora, mas uma
frase ou uma lembrança – em geral, frágeis – seguram os dois ali. Esse
artificialismo teatral é o maior problema do filme, e o preço pago por Mamet
para manter virtualmente intacta a estrutura original do texto.
Assista-se ao filme, portanto, como quem se vê diante de um palco. No
primeiro ato, a bola está com o professor. Preocupado com a efetivação na
universidade, que depende da aprovação do conselho acadêmico, e com a
compra de uma casa para a família, ele não dá muita atenção à estudante,
embora termine fazendo um acordo com ela: revê sua nota, dando-lhe um
“A”, desde que ela concorde em voltar ao gabinete em outras ocasiões para
discutir os pontos que não compreendeu no raciocínio do professor.
No segundo ato, o jogo se inverte. Para não comprometer o fator
surpresa, pode-se dizer apenas que a interpretação das palavras do professor
pela estudante gera uma situação tensa e inesperada. Um crítico norte-
americano lembrou que, no primeiro ato, a peça irrita às mulheres; no
segundo, aos homens. De Oleanna, o filme, o mínimo a dizer é que ninguém
ligado à educação permanecerá indiferente às provocações do texto de
Mamet.
Oleanna (Oleanna) — EUA, 1994, 89 min. Direção: David Mamet. Roteiro: David Mamet, baseado em peça de sua autoria. Com William H. Macy, Debra Elsenstadt. Distribuição em VHS:
Alpha.

(Publicado em Educação 9, janeiro de 1998)


A Onda
Die Welle
Alemanha, 2008
Direção: Dennis Gansel

O ensino de história na Alemanha caminha sobre terreno delicado


quando aborda o período nazista e a participação do país na II Guerra
Mundial. O fenômeno é compreensível, mas gera tabus que se reproduzem há
gerações, fruto da combinação entre um difuso complexo de culpa e um
receio de que eventuais manifestações de caráter totalitário sejam capazes de
reviver fantasmas do passado.
A fábula de ordem política e comportamental apresentada por A Onda
mexe nesse vespeiro de forma direta e contundente, ambientando em escola
de ensino médio uma adaptação de episódio verídico, mas registrado em Palo
Alto, na Califórnia (EUA), em 1967, com o professor Ron Jones, então com
menos de 30 anos.
O escritor Todd Strasser reconstituiu o caso em forma de romance, que
já havia dado origem a um telefilme norte-americano de 1981. Determinado a
mostrar aos seus alunos os mecanismos de funcionamento de um regime
autoritário, Jones se insinuou a eles como líder messiânico. Com isso,
angariou seguidores fiéis, dispostos a se entregar pela causa. O problema é
que o “exercício”, realista demais, fugiu ao controle do professor.
Em A Onda, a transposição da circunstância para a Alemanha de hoje
torna o ponto de partida altamente duvidoso, mas provocador: e se um
professor de história, diante de alunos céticos a respeito da possibilidade de
cidadãos comuns serem seduzidos por líderes fascistas, resolvesse demonstrar
a eles, na “prática”, como foi que a geração de seus bisavós viveu, há quase
70 anos, a aventura sombria do nazismo?
O diretor e roteirista alemão Dennis Gansel – que tratou da academia de
formação da elite nazista em seu longa anterior, NaPolA (2004) – termina por
cometer uma espécie de ato falho: ao responsabilizar o perfil psicológico dos
personagens pela adesão à causa fascista, seu filme sugere como ainda é
difícil, na Alemanha unificada, lidar em termos políticos com o entendimento
da barbárie e a sua possibilidade de ressurreição.
A Onda (Die Welle) — Alemanha, 2008, 106 min. Direção: Dennis Gansel. Roteiro: Peter Thorwart e Dennis Gansel, baseado em roteiro de Johnny Dawkins e Ron Birnbach, por sua vez
inspirado em conto de Ron Jones. Com Jürgen Vogel, Frederick Lau, Max Riemelt, Jennifer Ulrich. Distribuição em DVD: Paramount.
(Publicado em Educação 153, janeiro de 2010)
Onde Fica a Casa do Meu Amigo?
Khane-ye Doust Kodjast?
Irã, 1987
Direção: Abbas Kiarostami

Boa parcela dos poucos filmes iranianos já lançados no Brasil (não mais
do que 30) fala de situações difíceis vividas por crianças. O Balão Branco
(1995) e Filhos do Paraíso (1997) são ótimos exemplos. No primeiro, uma
garota deixa cair no esgoto a nota de dinheiro que usaria para comprar um
peixinho dourado e procura recuperá-la. No segundo, dois irmãos são
obrigados a usar o mesmo par de tênis para ir à escola, em turnos diferentes,
sem que os pais saibam.
Pequenos dramas que, para essas crianças, assumem a dimensão de
grandes desafios. Uma das primeiras produções iranianas com esse tipo de
argumento a ser exibida no Ocidente foi Onde Fica a Casa do Meu Amigo?
(87), que obteve o Leopardo de Bronze e o prêmio do júri ecumênico no
Festival de Locarno (Suíça) em 1989. Seu diretor, Abbas Kiarostami, se
tornaria nos anos seguintes o maior nome do cinema de seu país, ganhador da
Palma de Ouro no Festival de Cannes com Gosto de Cereja (1997) e da
Medalha Fellini da Unesco, concedida a cineastas que se destacam “por seus
serviços à arte, à liberdade e à paz”.
Os filmes de Kiarostami lembram o neorrealismo italiano: são feitos
com poucos recursos, empregando atores amadores nos locais onde eles
vivem, sem iluminação ou cenários artificiais. Todo o esforço concentra-se
em costurar o fio da narrativa de tal forma que, primeiro, o espectador
identifique-se com os personagens e, depois, passe a torcer por eles. Onde
Fica a Casa do Meu Amigo? é uma pequena aula sobre como reduzir a arte
de contar histórias ao essencial, sem perder de vista a dimensão do que está
por trás delas.
A pequena fábula começa e termina na precária escola de um vilarejo.
No início, os alunos fazem bagunça enquanto o professor não chega. Basta
que ele entre na sala, entretanto, para que se perceba a força de sua autoridade
sobre as crianças. O mestre é especialmente implacável com a lição de casa,
que deve ser feita no caderno apropriado, e ai de quem não o obedece. É o
caso de um coitado que apresenta a tarefa em folhas avulsas porque diz ter
esquecido o caderno na casa de um primo. Tome bronca.
Naquela tarde, ao chegar em casa, um garoto percebe que pegou por
engano o caderno do colega relapso. Temendo que o professor cumpra a
ameaça de expulsá-lo da escola caso ele não faça novamente a lição no lugar
apropriado, o aluno solidário impõe-se o dever moral de encontrar a casa do
amigo para lhe devolver o caderno. Começam então a surgir os empecilhos: a
mãe não acredita na história e exige que ele a ajude nas tarefas domésticas, o
avô o flagra na rua e, para complicar, o dono do caderno mora em outro
vilarejo.
Voltamos à sala de aula para o desfecho inesperado: Kiarostami usa um
pequeno artifício dramático para conquistar de vez a simpatia do espectador.
Quando parecia que o mais interessante ali era o caminho percorrido pelo
garoto, descobre-se que o destino também escondia um pote de ouro.
Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (Khane-ye Doust Kodjast?) — Irã, 1987, 83 min. Direção e roteiro: Abbas Kiarostami Com Babek Ahmed Poor, Ahmed Ahmed Poor, Kheda Barech Defai,
Iran Outari, Ait Ansari, Sadika Taohidi, Biman Mouafi. Distribuição em VHS: Cult Filmes.

(Publicado em Educação 44, dezembro de 2000)


Ônibus 174
Brasil, 2002
Direção: José Padilha

O Dia dos Namorados de 2000 entrou para a história do país graças a


um episódio de violência urbana, revelador de aspectos nefastos da sociedade
brasileira. Naquela tarde, milhões de pessoas acompanharam ao vivo, pela
TV, o cerco policial a um ônibus no Rio de Janeiro. Era um assalto que,
involuntariamente, se transformou em sequestro. A tragédia de 12 de junho,
que terminou com um saldo de dois mortos, durou cinco horas, mas os fatores
que a provocaram continuam produzindo seus efeitos, sem que boa parte da
população se dê conta.
A tomada de consciência pode ser facilitada por Ônibus 174,
documentário que reconstitui o episódio com o uso de imagens captadas na
ocasião pelas TVs Globo, Record e Bandeirantes. O diretor José Padilha
respeita a cronologia dos acontecimentos e adota a estrutura de um suspense.
A excelência técnica passa pela montagem das cenas de arquivo, que inclui a
contribuição de especialistas em leitura labial para identificar os diálogos
dentro do ônibus, e pelos efeitos de som, que recriam a atmosfera em torno
do ônibus.
O resultado é tão envolvente quanto um bom filme de ficção, o que lhe
valeu diversas críticas. Alguns críticos o acusaram de “sensacionalismo”, ou
seja, de manipular os sentimentos do público – pecado mortal para muitos
documentaristas. Padilha assumiu conscientemente os riscos e preferiu usar
todos os recursos à disposição (incluindo ferramentas narrativas consagradas
pela ficção, como a ótima trilha sonora, que sublinha os momentos mais
dramáticos) para transmitir o seu recado.
Qual era? A convicção de que o Estado é responsável direto pela
violência no Brasil, em virtude do tratamento que reserva a menores de rua,
delinquentes juvenis e pessoas de baixa renda. A defesa dessa tese não vem
apenas da reconstituição do sequestro, mas também da investigação sobre o
desastrado sequestrador, batizado pelos policiais, naquela tarde dos horrores,
como “Sérgio”. Era Sandro do Nascimento, ex-menino de rua, sobrevivente
do massacre da Candelária, em 23 de julho de 1993, a quem os colegas
haviam apelidado “Mancha”.
Tratado pelo circo da mídia como um bandido sem rosto, Sandro
readquire identidade no filme. Sua vida é reconstituída paralelamente à
recriação do sequestro, realçando a dramaticidade social do episódio.
Imagens, documentos e depoimentos fazem mapeamento detalhado de sua
trajetória, semelhante à de inúmeros jovens brasileiros, vítimas da
“desumanizacão institucional dos miseráveis urbanos”, segundo o cineasta.
Sandro teve o infortúnio adicional de alcançar o palco principal da nossa
sociedade televisiva. Ônibus 174 argumenta que os incidentes daquele Dia
dos Namorados exemplificaram, na visão de Padilha, o “processo tipicamente
brasileiro, capitaneado pelo Estado, que transforma miséria em violência”.
Ônibus 174 — Brasil, 2002, 130 min. Direção: José Padilha. Codireção e montagem: Felipe Lacerda. Distribuição em DVD: Paris.

(Publicado em Educação 96, abril de 2005)


Orange County – Correndo Atrás do
Diploma
Orange County
EUA, 2002
Direção: Jake Kasdan

Orange County é uma divisão administrativa do Estado da Califórnia


(EUA) que engloba 40 municípios (alguns de nome curioso, como Coto de
Caza, Yorba Linda ou Los Alamitos) e três milhões de habitantes. Fica ao Sul
de Los Angeles e, graças a suas praias, reúne um grande contigente de
surfistas. Shaun Brumder (Colin Hanks, filho do ator Tom Hanks) é um
deles. Filho de pais separados, mas milionários, ele tem ótimo padrão de
vida, uma namorada simpática (Schuyler Fisk, filha da atriz Sissy Spacek) e
nenhum plano ambicioso para depois de se formar no secundário por uma
escola de qualidade duvidosa que se chama, sugestivamente, Vista Del Mar.
Suas perspectivas de futuro são alteradas, no entanto, quando ele
encontra na areia da praia um romance escrito por um certo Marcus Skinner,
professor da Universidade de Stanford. Obcecado, Shaun lê o livro 52 vezes.
Sob o impacto da descoberta, alimenta o sonho de tornar-se escritor e
ingressar em Stanford para ser aluno do próprio Skinner. Orange County –
Correndo Atrás do Diploma faz humor de sua tentativa de trocar a
provinciana região onde sempre viveu por uma das consagradas
universidades da Ivy League, a “primeira divisão” das instituições americanas
de ensino superior, que inclui também Harvard, Princeton, Yale e Columbia.
Comédia juvenil que não se preocupa em falar muito a sério dos temas
que levanta, Orange County revela, no entanto, diversas características do
sistema educacional americano. A decantada fragilidade do ensino básico,
por exemplo, é ironizada em diversos momentos. Quando o diretor da escola
pede aos alunos que sugiram um paraninfo e Shaun indica a escritora Toni
Morrison, ele finge pensar no assunto e em seguida consulta uma jovem
sobre a possibilidade de entrar em contato com... Britney Spears. Em uma
aula de literatura, o professor (interpretado pelo roteirista do filme, Mike
White) pergunta à turma qual é o nome que Romeu e Julieta lhes traz à
mente. Claire Danes e Leonardo Di Caprio, dizem os alunos – ambos
interpretaram uma versão para cinema da peça de William Shakespeare (esse,
ninguém se lembrou de mencionar).
O mecanismo de acesso às universidades fica também muito claro. Não
existe, nos EUA, vestibular no modelo brasileiro. Cada aluno escreve à
instituição onde pretende estudar, encaminhando seu resultado no SAT
(exame nacional equivalente ao nosso Enem), seu histórico escolar
(atividades extracurriculares valem pontos) e o que mais for capaz de exibir
como trunfo. Com base no dossiê de todos os candidatos, as universidades
resolvem aceitar ou não os pedidos. Shaun tem perfil para dar-se bem nessa
espécie de seleção e obter uma vaga em Stanford, mas um pequeno equívoco
lhe complica a vida. A própria Ivy League, tratada iniciamente com respeito,
recebe no final suas farpas e tem sua importância relativizada. Nada substitui
a experiência de vida, sugere Orange County.
Orange County – Correndo Atrás do Diploma (Orange County) — EUA, 2002, 82 min. Direção: Jake Kasdan. Roteiro: Mike White. Com Colin Hanks, Kyle Howard, R. J. Knoll, Bret Harrison,
Schuyler Fisk, Mike White, Jack Black, Lily Tomlin, Catherine O’Hara, Chevy Chase, Garry Marshall, Harold Ramis, Kevin Kline. Distribuição em DVD: Paramount.

(Publicado em Educação 75, julho 2003)


O Ouro de Ulisses
Ulee’s Gold
EUA, 1997
Direção: Victor Nunez

Na Odisseia de Homero, Ulisses é descrito como “um homem que


jamais se deixou vencer”. Retido durante alguns anos na ilha da deusa
Calipso, o herói grego luta para voltar ao reino de Ítaca, onde o esperam a
esposa Penélope e o filho Telêmaco. Ulysses Jackson, o protagonista de O
Ouro de Ulisses, já não tem onde reencontrar a família: sua mulher,
Penelope, morreu há seis anos, e o filho, Jimmy, cumpre pena por assalto a
banco. Resta-lhe cuidar das netas adolescentes, uma vez que a nora, Helen,
sumiu.
O uso dos nomes – Ulysses, Penelope, Helen – pode levar o espectador a
acreditar que o filme de Victor Nunez é uma pretensiosa adaptação da
Odisseia. Na verdade, é muito mais uma homenagem do que uma tentativa de
colagem. Ao batizar seus personagens com nomes que remetem a uma das
maiores jornadas espirituais da cultura ocidental, Nunes quer chamar a
atenção para a grandeza escondida nas coisas aparentemente pequenas,
banais, que alimentam o cotidiano.
A própria ideia do argumento surgiu-lhe de um registro de extrema
simplicidade: uma foto, publicada na imprensa, de um homem e uma criança
tirando mel de favos. Nunez perguntou-se como seria a personalidade de
quem dedica a vida àquela atividade. A busca de uma resposta o levou a criar
Ulysses Jackson, ou Ulee. O personagem aprendeu com o pai a cuidar de
abelhas e mantém diversos apiários instalados em propriedades de amigos,
nos pântanos da Flórida.
“Tenho um acordo com as abelhas: eu cuido delas e elas cuidam de
mim”, explica Ulee. Único sobrevivente de seu pelotão na guerra do Vietnã,
ele viu a família desmoronar com a morte da mulher, a prisão do filho e o
desaparecimento da nora. O “ouro” de Ulee não é apenas o mel que suas
abelhas produzem, mas também a firmeza de caráter e a paz espiritual que
contribuem para mantê-lo vivo, educando sozinho as netas.
Todo esse esforço, porém, custa caro. “Seu coração fugiu há muito
tempo”, diz a vizinha, também maltratada pela vida. “Não sei lidar com as
coisas novas – sentimentos, gente”, admite Ulee. Pois o destino vai obrigá-lo
a se virar: um telefonema inesperado o leva a alterar sua rotina para salvar o
que resta da família. À medida que se expõe para atender a um chamado do
filho, consegue também reconstituir os vínculos afetivos que estavam em
frangalhos. Seu coração parece encontrar o caminho de volta.
Um dos cineastas de maior prestígio do atual cinema independente
norte-americano, Nunez formou o elenco basicamente com atores
desconhecidos, mas talentosos, com os quais já havia trabalhado em seus
filmes anteriores, como O Sol do Paraíso (1993). Para o papel de Ulysses,
recrutou o veterano Peter Fonda. Filho de Henry, irmão de Jane e pai de
Bridget Fonda, ele ainda vive da fama de Sem Destino (1969), que estrelou,
coescreveu e produziu. Sua interpretação – premiada com o Globo de Ouro e
uma indicação ao Oscar – demonstra, na mais rigorosa das avaliações, que
não faz feio diante da tradição da família.
O Ouro de Ulisses lembra O Espírito da Colmeia (1973), do espanhol
Victor Erice, no qual uma garota (Ana Torrent, de Cria Cuervos) tem
fantasias sobre monstros escondidos em favos. Já o espírito que Ulee enxerga
nas colmeias é de outra natureza, sábia e aglutinadora. “As abelhas às vezes
fogem, mas não gostam de ficar longe de casa. Alguém precisa trazê-las”,
comenta. O problema é saber como reencontrar (ou reerguer das ruínas) o
nosso reino de Ítaca.
O Ouro de Ulisses (Ulee’s Gold) – EUA, 1997, 112 min. Direção e
roteiro: Victor Nunez. Com Peter Fonda, Patricia Richardson, Christine
Dunfort. Distribuição em VHS: Playarte.
(Publicado em Educação 23, março de 1999)
Oz - Mágico e Poderoso
Oz the Great and Powerful
EUA, 2013, 130 min
Direção: Sam Raimi

O American Film Institute, uma das principais instituições de cinema


dos EUA, realizou em 2007 a segunda edição de uma pesquisa com o
objetivo de relacionar os filmes mais populares da história. O Mágico de Oz
(1939), que havia ficado em sexto lugar no primeiro levantamento (de 1998),
caiu para o décimo lugar. De qualquer forma, manter-se entre os "dez mais",
quase sete décadas depois de seu lançamento, é um feito notável que
demonstra a perenidade da aventura vivida em um reino mágico pela menina
Dorothy (Judy Garland, na versão de 1939) e ajuda a explicar por que as
indústrias cinematográfica e editorial retomam, de tempos em tempos, o
universo criado pelo escritor norte-americano L. Frank Baum (1856-1919).
Quase 20 livros de Baum falam dos personagens da Terra de Oz. O
primeiro foi publicado em 1900. Adaptações começaram a ser feitas nos anos
seguintes e jamais pararam de sair do forno do cinema e da TV. Algumas das
versões mais antigas, realizadas nas décadas de 1910 e 1920, podem ser
vistas na edição especial de colecionador de O Mágico de Oz (o de 1939) em
DVD, lançada em comemoração aos 70 anos do filme.
Coube ao império Disney realizar a mais recente versão para cinema, Oz
- Mágico e Poderoso. Para cuidar da atualização dos ingredientes da história,
com o objetivo de atingir o público jovem de hoje, foi recrutado o diretor
Sam Raimi (Uma Noite Alucinante, Homem-aranha). Em relação ao clássico
estrelado por Garland, há uma drástica mudança de tom na abordagem: a
ingenuidade deu lugar a um humor cínico, com diálogos de sentido duplo.
Além disso, pitadas de terror e de elementos sobrenaturais combinam-se a
muita ação. O resultado, vertiginoso, pode parecer exagerado e desigual para
o espectador adulto, mas está voltado, não se deve esquecer, para crianças e
adolescentes habituados a videogames.
Ao imaginar como o tal mágico teria ido parar na terra que Dorothy
visitará anos depois, Oz - Mágico e Poderoso apresenta um pilantra simpático
(James Franco) que desembarca acidentalmente em um reino ameaçado por
uma bruxa dissimulada (Rachel Weisz). A ação é ambientada no início do
século 20, quando o cinema começava a se popularizar. Assim, é também do
cinema, como arte da ilusão, que o filme trata. A barulhenta e movimentada
superprodução de Raimi sugere que os cineastas foram os grandes
ilusionistas do século 20. Na melhor das hipóteses, a dispersão de
espectadores por diversas mídias, no século 21, obrigaria os diretores de
filmes a dividir esse pódio com... desenvolvedores de aplicativos?
Oz - Mágico e Poderoso (Oz the Great and Powerful) — EUA, 2013, 130 min. Direção: Sam Raimi. Roteiro: Mitchell Kapner e David Lindsay-Abaire, baseado em argumento que Kapner
retirou dos livros de L. Frank Baum. Com James Franco, Mila Kunis, Rachel Weisz, Michelle Williams, Zach Braff. Distribuição em DVD e Blu-ray: Disney.

(Publicado em Educação 195, julho de 2013)


Pai Patrão
Padre Padrone
Itália, 1977
Direção: Paolo e Vittorio Taviani

Siligo, vilarejo da Sardenha (Itália), janeiro de 1944. Gavino, seis anos


incompletos, começa a frequentar a escola por uma determinação legal que
obriga todas as crianças nessa idade a serem alfabetizadas. Seu pai, no
entanto, precisa dele para trabalhar como pastor na propriedade rural da
família. Certo dia, resolve tirá-lo à força da sala de aula, para espanto da
professora e dos demais alunos. “Vim buscá-lo. Preciso que ele cuide das
ovelhas. Ele é meu”, explica.
A cena, de impressionante brutalidade, abre Pai Patrão, clássico
dirigido pelos irmãos Paolo e Vittorio Taviani – os mesmos de A Noite de
São Lourenço (81) e Bom Dia, Babilônia (86) – a partir do livro homônimo
de Gavino Ledda. O filme, lançado agora em DVD no Brasil, ganhou a
Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1977 e, com o aval do prêmio,
correu o mundo. O relato autobiográfico também foi um sucesso
internacional e, recém-traduzido em português (Berlendis & Vertecchia),
trouxe Ledda ao país, em abril, para participar da Bienal Internacional do
Livro, em São Paulo.
Tratado como um servo pelo pai até completar 20 anos, ele só aprendeu
a ler e a escrever quando se alistou no exército. A descoberta das palavras
apresentou-lhe um mundo novo. Virou escritor e, durante um período,
professor. Depois, retornou a Siligo, onde vive até hoje, para dedicar-se à
glotologia (estudo científico de uma língua). Um de seus objetivos é
reescrever — e depois refilmar — Pai Patrão em sardo, o dialeto da região.
Sua trajetória ímpar é recriada, pelos irmãos Taviani, com um misto de
realismo e poesia que às vezes choca e outras vezes encanta.
Todo o drama se concentra, como o título sugere, na relação de
dominação entre pai e filho que, embora pareça inaceitável para um
espectador urbano do século 21, era regra entre as famílias da Sardenha no
pós-guerra. Há, ainda, outro senhor na história a exercer seu domínio sobre
Gavino: a terra. O filme é também uma crônica da vida rural nas regiões mais
pobres da Itália, que caminha de acordo com o ritmo das estações e com o
obedecimento a diversos rituais, inclusive os de vingança e os de iniciação
sexual com animais.
A adaptação dos Taviani usa diversos recursos para destacar o turbilhão
de sentimentos vividos pelos personagens. Em algumas sequências, ouvimos
seus pensamentos e desejos. A música, em outras situações, procura traduzir
estados interiores. E, por mais que a experiência de Ledda tenha sido moral e
fisicamente violenta, ele sobreviveu bem a ela. “Involuntariamente, seguindo
seu egoísmo, meu pai fez um grande favor histórico”, disse ele em entrevista
ao jornal O Estado de S. Paulo. “Salvou a minha cabeça de uma escola nada
criativa, mergulhando-a na escola da natureza.” Quase tudo o que aprendeu
de essencial, demonstra Pai Patrão, veio dessa sala de aula sem nota, diário
de classe ou programa.
Pai Patrão (Padre Padrone) — Itália, 1977, 113 min. Direção e roteiro: Paolo e Vittorio Taviani, baseado no livro autobiográfico de Gavino Ledda. Com Omero Antonutti, Saverio Marconi,
Fabrizio Forte, Marcella Michelangeli, Nanni Moretti, Gavino Ledda. Distribuição em DVD: Versátil.

(Publicado em Educação 86, junho de 2004)


Palavra (En)cantada
Brasil, 2008
Direção: Helena Solberg

Muitos documentários ainda optam por um formato apelidado de


“cabeças falantes”, no qual o trabalho de investigação consiste basicamente
em colher depoimentos de personagens relacionados ao tema. Filmes que
recorrem apenas a esse método costumam ser recebidos com reservas. Não é
por acaso: diante da atual vitalidade do gênero, demonstrada por títulos como
o brasileiro Santiago (2007) e o britânico-norte-americano O Equilibrista
(2008), eles parecem um tanto acomodados.
Palavra (En)Cantada merece figurar entre as exceções. Sua cadência
corresponde a um desfile de “cabeças falantes”, mas o assunto em pauta – a
presença da poesia na tradição musical brasileira — e a riqueza do elenco de
entrevistados compensam largamente o que há de convencional no formato.
E, no fim das contas, a palavra está no centro das atenções, tratada com
carinho por cabeças que também são “cantantes”.
Dirigido por Helena Solberg, que já havia se aproximado do universo
musical brasileiro em Carmen Miranda: Bananas is My Business (1995), o
documentário traz Chico Buarque, Tom Zé, Martinho da Vila, Maria
Bethânia, Adriana Calcanhotto, Zélia Duncan, Lenine, Ferréz e BNegão entre
os compositores e intérpretes que dão “canjas” para a câmera. Embora outros
depoimentos tenham caráter histórico e didático, o ponto forte são
confidências da turma que trabalha diretamente com a poesia.
Entre os melhores momentos, Chico nega que suas letras bastem para
caracterizá-lo como poeta, observando que algumas palavras foram parar em
suas canções apenas porque “a música pede”, e Tom Zé ilustra seu processo
criativo com uma interpretação notável de Jimmy Renda-se. Os extras do
DVD incluem cinco módulos voltados para o debate do filme em sala de
aula.
Palavra (En)Cantada — Brasil, 2008, 84 min. Direção: Helena Solberg. Distribuição em DVD: Biscoito Fino.

(Publicado em Educação 155, março de 2010)


O Palhaço
Brasil, 2011
Direção: Selton Mello

Atuante desde a infância na televisão, no teatro e no cinema, o ator,


diretor e roteirista Selton Mello vai completar 40 anos em dezembro como
um dos mais populares artistas brasileiros de sua geração. Seu intenso ritmo
de trabalho sugere alguém muito envolvido com o que faz, retirando da
atividade profissional desafios que o mantêm inquieto. Alguém convicto das
próprias escolhas, feliz com os rumos da carreira.
É um pouco o inverso disso que Mello explora em seu segundo longa-
metragem como diretor e roteirista, O Palhaço. O personagem que interpreta,
protagonista do filme, está em crise: faz o que sempre fez na vida, seguindo a
carreira do pai, mas tem a sensação de que talvez possa ser mais feliz
dedicando-se a outra ocupação, em outro lugar, com outra rotina.
O elemento que torna peculiar essa situação muito comum a tantas
pessoas é o fato de Benjamin, o protagonista, ser um palhaço, filho de
Valdemar (Paulo José), também palhaço. Na pele de Pangaré e Puro Sangue,
os "clowns" que vivem em parceria no picadeiro, eles têm a responsabilidade
de alegrar o distinto público. Mas pode lidar com a alegria quem é
essencialmente triste e insatisfeito?
Ao recriar o cotidiano de um pequeno circo (batizado de Esperança) que
viaja pelos rincões do Brasil, O Palhaço lança também um olhar carinhoso
sobre o cenário social interiorano, em que a cultura urbana disseminada pelos
meios de comunicação de massa ainda não consegue sufocar modos de vida
antagônicos a ela. Jovens de metrópoles talvez considerem anacrônicas essa
paisagem e suas personagens, mas é delas também que se faz o país.
O Circo Esperança de O Palhaço lembra, em alguns aspectos, a
Caravana Rolidei de Bye Bye Brasil (1980). No filme de Carlos Diegues, um
grupo de artistas liderados por Lorde Cigano (José Wilker) percorre a região
Norte do Brasil. Era o momento em que as "espinhas de peixe" (antenas de
televisão) chegavam a pontos ermos e promoviam a "integração nacional"
preconizada pelo regime militar de 1964.
Outros cineastas também realizaram filmes-de-estrada protagonizados
por trupes de artistas, como o sueco Ingmar Bergman (1918-2007) e o
italiano Ettore Scola. O primeiro dirigiu Noites de Circo (1953), sobre uma
decadente companhia que perambula pelo interior da Suécia, e O Rosto
(1958), sobre a chegada de um magnetizador e sua trupe a um vilarejo onde
acontecimentos sobrenaturais parecem acontecer.
Em A Viagem do Capitão Tornado (1990), Scola — diretor de Um Dia
Muito Especial (1977), Casanova e a Revolução (1982) e O Baile (1983),
entre outros — narra as aventuras de uma companhia itinerante de artes
cênicas que se perde na França, no século XVIII, e acaba se envolvendo em
intrigas da monarquia.
O Palhaço — Brasil, 2011, 90 min. Direção: Selton Mello. Roteiro: Marcelo Vindicato e Selton Mello. Com Selton Mello, Paulo José, Larissa Manoela, Giselle Motta. Distribuição em DVD e
Blu-ray: Imagem.

(Publicado em Educação 180, abril de 2012)


O Pecado de Hadewijch
Hadewijch
França, 2009, 105 min
Direção: Bruno Dumont

Recém-expulsa de um convento, a jovem francesa Céline (interpretada


pela estreante Julie Sokolowski) aceita um convite para assistir a uma aula
sobre o Alcorão, mas resolve sair da sala, perturbada, quando um rapaz passa
a olhar fixamente para ela. O professor vai atrás de Céline para saber o que a
incomodou. "Não suporto quando outra pessoa me olha", diz a moça. "Outra
pessoa além de quem?", pergunta o homem. "Além de Jesus Cristo",
responde ela.
A angustiada Céline — que procura "ajuda para viver com Deus", por
quem diz estar "apaixonada" — é a protagonista de O Pecado de Hadewijch.
Não é a primeira vez que o diretor e roteirista francês Bruno Dumont aborda
temas ligados à espiritualidade. A Vida de Jesus (1997) e A Humanidade
(1999), os filmes que o revelaram, também apresentavam jovens em
situações de incômodo semelhante.
Desta vez, no entanto, o vínculo com a religiosidade ocorre de forma
mais estreita. A ambiguidade que caracteriza a obra de Dumont — ex-
professor de filosofia interessado em fazer do cinema um instrumento de
reflexão — encontra, em Hadewijch, uma variação associada à ideia do
"chamado divino": o que leva uma jovem a se afastar das atividades com as
quais outras moças de sua idade estão envolvidas para buscar uma forma de
se relacionar com Deus?
Não se deve esperar nenhuma explicação racional para a devoção de
Céline. Ao lidar com o aspecto invisível da fé, o filme transfere para o
público a dor e as dúvidas da protagonista, potencializadas por uma pequena
surpresa, perto do final, que expande o alcance do tema e o torna ainda mais
contemporâneo. Dumont olha para o mundo de forma contemplativa, mas
investigativa, como alguém que também se alimenta de uma fé, ou esperança:
a de que seus filmes alcancem espectadores capazes de enxergar.
O drama da fé vivido pela contemporânea Céline lembra a jornada
espiritual do protagonista de Diário de um Padre (1951), do francês Robert
Bresson (1901-1999) — ao qual, não por acaso, o diretor Bruno Dumont já
foi comparado, por seus procedimentos (no trabalho com os atores, em
especial) e também por suas preocupações temáticas.
Baseado em romance de Georges Bernanos, o filme de Bresson
acompanha um jovem e inexperiente padre (Claude Laydu) que, recém-
chegado a uma pequena paróquia no interior da França, enfrenta certa
resistência dos moradores. Ao mesmo tempo, ele sofre em virtude de um
problema de saúde e de sua maneira radical de se relacionar com o divino.
Outra abordagem desse universo pode ser encontrada no documentário
brasileiro O Chamado de Deus (2001), que acompanha meia dúzia de jovens
para os quais a vocação religiosa teria se manifestado. Empenhado em
mostrar o que seus personagens fazem em nome desse impulso movido pela
fé, o diretor José Joffily ajuda a entender um pouco da sociedade brasileira na
virada de século.
O Pecado de Hadewijch (Hadewijch) — França, 2009, 105 min. Direção e roteiro: Bruno Dumont. Com Julie Sokolowski, Yassine Salime, Karl Sarafidis. Distribuição em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 170, junho de 2011)


Pequena Miss Sunshine
Little Miss Sunshine
EUA, 2006
Direção: Jonathan Dayton e Valerie Faris

Comédias dramáticas em torno de conflitos familiares pertencem a uma


categoria de filmes cuja empatia com o público costuma ser grande e
imediata: por experiência própria ou muito próxima, o espectador tende a
reconhecer nos personagens comportamentos que, em maior ou menor grau,
já vivenciou. Descontadas as diferenças culturais entre países, regiões e
classes sociais, famílias são essencialmente parecidas em todos os quadrantes
do planeta.
Esse tema universal encontra uma variação de enorme apelo em
Pequena Miss Sunshine, produção independente – ou seja, realizada à
margem dos grandes estúdios norte-americanos, com orçamento e pretensões
modestos – que, para surpresa geral, teve fôlego para disputar o Oscar deste
ano em quatro categorias, incluindo a de melhor filme, e ganhou os prêmios
de roteiro original (para o estreante Michael Arndt) e ator coadjuvante (para o
veterano Alan Arkin).
A família em questão vive no Arizona e é formada por um especialista
em programas de autoajuda (Greg Kinnear), sua mulher (Toni Collette), a
filha de ambos (Abigail Breslin) e o filho adolescente do primeiro casamento
dela (Paul Dano). O núcleo é engrossado pelo pai dele (Arkin) e pelo irmão
dela (Steve Carell). Cada um tem os seus problemas, mas os da menina se
sobrepõem por um momento aos dos demais: ela sonha disputar um concurso
de beleza para crianças na Califórnia.
Durante a longa viagem a bordo de uma velha kombi amarela, os
diretores Jonathan Dayton e Valerie Faris – também estreantes em longa-
metragem – combinam humor com situações mais dramáticas, de modo a
tratar de situações pesadas com uma leveza que as torna palatáveis. À medida
que os personagens vão se expondo, desenvolve-se uma certa compaixão por
eles, e suas dificuldades espelham as de todos os que se sentem deslocados
em relação aos valores da sociedade de consumo.
Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine) — EUA, 2006, 101 min. Direção: Jonathan Dayton e Valerie Faris. Roteiro: Michael Arndt. Com Greg Kinnear, Toni Collette, Abigail Breslin,
Paul Dano, Alan Arkin, Steve Carell. Distribuição em DVD e Blu-ray: Fox.

(Publicado em Educação 122, junho de 2007)


O Pequeno Nicolau
Le Petit Nicolas
França/Bélgica, 2009
Direção: Laurent Tirard

Muito popular na França, a obra do escritor René Goscinny (1926-1977)


tem como principal monumento o universo de Asterix, ilustrado por Albert
Uderzo. Em 1959, em parceria com o ilustrador Jean-Jacques Sempé, ele
criou outro personagem que se enraizou na cultura nacional, "le petit" (o
pequeno) Nicolas. Suas aventuras envolvem amigos de nomes extravagantes,
como Rufus, Alceste e Clotaire, e um olhar de intensa curiosidade para o
mundo.
Até 1965, essa turma teve suas histórias contadas em revistas e em cinco
livros. A morte de Goscinny parecia encerrar de vez a trajetória dos
personagens, mas a filha do escritor encontrou material inédito nos arquivos
do pai e Nicolas retornou em 2004, com a publicação de novo livro. Em
2009, as homenagens pelo 50 . aniversário incluíram uma série de animação
o

para a TV, com 52 episódios de 13 minutos em 3D, e um longa-metragem


para cinema.
Lançado no Brasil como O Pequeno Nicolau, o filme aportuguesa o
nome do protagonista e de alguns de seus amigos, como Clotaire, que vira
Clotário. O diretor Laurent Tirard (As Aventuras de Molière) mexeu em
vespeiro, ao arriscar-se na adaptação de obra cultuada por diversas gerações
de franceses. Uma decisão sábia o ajudou a se sair bem: optar por recriação
de época idealizada.
Nicolau (o estreante Maxime Godart), seus pais (Valérie Lemercier, Kad
Merad), sua professora (Sandrine Kiberlain) e seus colegas de traquinagem
vivem na Paris dos anos 1950, mas de acordo com a visão que crianças
teriam dela. Cria-se, dessa forma, um romantismo que contribui para evocar o
universo concebido por Goscinny e Sempé, sem prejudicar a crítica a
comportamentos adultos. E, como se pode imaginar, o pacote de ironias
reserva papel privilegiado à escola.
Antes de fazer carreira como diretor, Tirard trabalhou como jornalista na
revista francesa Studio e teve a oportunidade de entrevistar dezenas de
cineastas. Parte significativa desse material, com a íntegra de 20
depoimentos, foi reunida no livro Grandes Diretores de Cinema (Nova
Fronteira). Leitura recomendada para quem deseja compreender os
mecanismos de criação de filmes e desfazer equívocos comuns sobre o papel
dos diretores, a coletânea traz veteranos do cinema dos EUA, como Woody
Allen, Martin Scorsese e David Lynch, e estrelas da Europa e do Oriente,
como Pedro Almodóvar, Lars von Trier, Jean-Luc Godard, John Woo e
Wong Kar Wai.
Ex-aluno de cinema na Universidade de Nova York, Tirard afirma que
as entrevistas lhe deram confiança ao mostrar "que não existia uma maneira
única de fazer filmes". De fato, há depoimentos contrastantes sobre diversos
tópicos. Estudar cinema, por exemplo: há quem diga que as escolas não
servem para muita coisa, enquanto outros as defendem.
"Cada um pode — e deve — abordar a direção a seu modo", diz Tirard.
"Basta ter um ponto de vista, instinto e determinação. É claro que também é
conveniente ter talento. Mas não necessariamente tanto quanto em geral se
pensa." Até mesmo Scorsese e Godard, lembra ele, "não acordaram um dia
com todo seu conhecimento impressionante": ele foi adquirido "ao longo de
anos de trabalho e de experiência".
O Pequeno Nicolau (Le Petit Nicolas) — França/Bélgica, 2009, 99 min. Direção: Laurent Tirard. Roteiro: Laurent Tirard e Grégoire Vigneron, com diálogos de Alain Chabat, Tirard e Vigneron,
baseado nos personagens de René Goscinny e Jean-Jacques Sempé. Com François-Xavier Demaison, Kad Merad, Maxime Godart, Sandrine Kiberlain, Valérie Lemercier. Distribuição em DVD:
Imovision.

(Publicado em Educação 166, fevereiro de 2011)


Peter Pan
Peter Pan
EUA, 2003
Direção: P.J. Hogan

Autor de peças teatrais e romances, o escocês J.M. Barrie (1860-1937)


recebeu o título de “Sir” e fez sucesso na primeira metade do século 20. Com
o tempo, no entanto, seu nome tornou-se bem menos conhecido do que o de
seu personagem mais popular, Peter Pan. Barrie o inventou a partir das
histórias que criava para entreter os cinco filhos de um casal de amigos,
adotados pelo escritor depois que seus pais morreram. Em 1904, apresentou
Peter ao público em um espetáculo teatral. Dois anos depois, publicou uma
nova história com o personagem. E, em 1911, adaptou a peça original em
forma de livro.
Essas obras deram origem a diversos filmes, como Hook – A Volta do
Capitão Gancho (1992), e influenciaram os conceitos de infância e
maturidade na cultura ocidental. O psicólogo americano Dan Kiley batizou de
“Síndrome de Peter Pan” o fenômeno contemporâneo dos homens que
resistem a se tornar adultos. Muitos supunham que já não haveria nada de
novo a dizer sobre o personagem, mas esta versão recente de Peter Pan
demonstra que sempre é possível estabelecer novo olhar sobre os clássicos.
“Todas as crianças crescem, exceto uma”, diz o letreiro inicial. Supõe-se
então, a exemplo da maioria das adaptações, que o foco estará em Peter
(Jeremy Sumpter). Na verdade, o filme se concentrará em Wendy (Rachel
Hurd-Wood) e no início de seu rito de passagem para a vida adulta. Filha de
um bancário (Jason Isaacs), ela tem 13 anos e os mesmos lábios da mãe
(Olivia Williams), em “forma de beijo”. Seu queixo, diz a tia (Lynn
Redgrave), é “de mulher”. “Quase uma mulher”, corrige o pai. Depois de
alguma resistência, no entanto, ele concorda que a filha vá morar com a tia
para “começar seu aprendizado”, ou seja, saiba como ingressar na sociedade
e arrumar um bom marido.
É nesse ponto, quando Wendy começa a lidar com a possibilidade de
separar-se dos dois irmãos mais novos (com os quais se diverte, contando
histórias fantasiosas) e dar adeus à infância, que surgem Peter, a ciumenta
fada Sininho (Ludivine Sagnier) e os demais personagens da Terra do Nunca,
onde o casal brinca de papai e mamãe. A descoberta do amor e da
sexualidade é carta aberta sobre a mesa.
“Adoro o jeito como você fala das mulheres”, diz Wendy a Peter. “Eu
adoraria lhe dar um beijo”, provoca em seguida. O contraste entre a postura
adulta dessa “quase mulher” e a infantilidade selvagem do “sempre menino”
rende, sozinha, bom material de discussão sobre as diferenças entre os sexos
e os papéis reservados a eles na sociedade ocidental. O trunfo desta versão
talvez seja o de conciliar a leitura adulta da história com um forte apelo
infanto-juvenil, voltado para a ação e a fantasia, lembrando que a riqueza e a
perenidade do universo criado por Barrie estão justamente na diversidade de
interpretações que oferece.
Peter Pan (Peter Pan) — EUA, 2003, 113 min.. Direção: P.J. Hogan. Roteiro: Michael Goldenberg e P.J. Hogan, baseado em peça e livros de J.M. Barrie. Com Jason Isaacs, Jeremy Sumpter,
Rachel Hurd-Wood, Lynn Redgrave, Richard Briers, Olivia Williams, Geoffrey Palmer, Ludivine Sagnier. Distribuição em DVD e Blu-ray: Sony.

(Publicado em Educação 90, outubro de 2004)


Pi
Pi
EUA, 1998
Direção: Darren Aronofsky

De todas as áreas do conhecimento contempladas no ensino fundamental


e médio, a matemática talvez seja a que menos tenha presença no cinema.
Ainda assim, há uma diversificada oferta de filmes sobre o tema. Enquanto O
Preço do Desafio (1987) conta a história verídica de um professor de Los
Angeles que convence seus alunos sobre a importância da matéria, Afogando
em Números (1987) propõe um jogo complexo governado também por
conceitos da psicanálise. Uma Mente Brilhante (2001), por sua vez, torna
popular, de acordo com o habitual “distorcionismo” hollywoodiano, a
trajetória do matemático americano John F. Nash Jr., que recebeu o Prêmio
Nobel de Economia em 1994.
O repertório que combina números e imagens ganha reforço
considerável com Pi, o primeiro longa-metragem do cineasta norte-americano
Darren Aronofsky. Em seguida, ele dirigiu o controvertido Réquiem para um
Sonho (2000). Aqui, o protagonista é Maximillian Cohen (Sean Gullette),
jovem doutor em matemática pela Universidade Columbia, que vive recluso
em seu pequeno apartamento de Nova York. Sai dali apenas para perambular
pela cidade e para visitar um ex-professor (Mark Margolis), com quem
conversa (sobre matemática, invariavelmente) e disputa partidas de Go, jogo
chinês. Na maior parte do tempo, dia e noite, Max trabalha diante de
terminais de computador e de um letreiro eletrônico com as cotações da Bolsa
de Valores de Nova York.
Sua obsessão: encontrar um padrão númerico no movimento do mercado
de ações – sistema “não linear, dinâmico, caótico”. Suas três convicções: a
matemática é a linguagem da natureza; tudo à nossa volta pode ser
representado e compreendido por meio de números; se esses números são
colocados em um gráfico, surgem padrões. Logo, haveria padrões por toda a
natureza. A busca pela explicação numérica para a própria vida leva Max a
desconfiar que a resposta se encontra no antigo objeto de estudo de seu ex-
professor: Pi, a 16ª letra do alfabeto grego, que designa a razão constante
entre o comprimento de uma circunferência e seu diâmetro, e que carrega a
“beleza” do círculo perfeito.
Para simplificar cálculos, costuma-se corresponder Pi a 3,1416. Seu
valor exato, no entanto, continua um mistério. Em 1997, chegou-se a mais de
51 bilhões de dígitos – e apenas depois de 500 milhões é que surge, pela
primeira vez, a sequência “123456789”. O fascínio, portanto, é que seus
números não têm padrão; em matemática, porém, equivale a dizer que eles
têm todos os padrões. O enigmático filme de Aronofsky acrescenta, a essa
referência principal, conceitos variados como os da Teoria do Caos e da
Cabala. E atira seu protagonista em uma espiral de suspense de ordem
paranoica (lembre-se de que a paranoia, em resumo, consiste em crer na
existência de uma ordem oculta por trás do visível) e conspiratória. Não
temos como saber se Max é um louco, um gênio ou ambas as coisas enquanto
tentamos acompanhar suas reflexões – provocantes, no mínimo – sobre a
engrenagem secreta do mundo.
Pi (Pi) — EUA, 1998, 82 min. Direção e roteiro: Darren Aronofsky, baseado em argumento de Sean Gullette, Eric Watson e Darren Aronofsky. Com Sean Gullette, Mark Margolis, Ben
Shenkman, Pamela Hart, Stephen Pearlman, Samia Shoaib, Ajay Naidu, Joanne Gordon, Kristyn Mae-Anne Lao. Distribuição em DVD: Europa.

(Publicado em Educação 87, julho de 2004)


Pina
Pina
Alemanha/França/Inglaterra, 2011
Direção: Wim Wenders

Durante muitos anos, o cineasta alemão Wim Wenders alimentou um


projeto de documentário sobre uma artista que admirava, a também alemã
Pina Bausch. Dançarina e coreógrafa, ela era uma referência internacional em
sua área de atuação, mas resistia à ideia de ver seu cotidiano registrado em
um filme. Finalmente, em 2009, Wenders a convenceu a aceitar o projeto.
Mas, pouco depois de iniciadas as filmagens e sem que o diretor soubesse da
gravidade de seu estado de saúde, ela morreu, vítima de um câncer
avassalador.
A notícia repentina deprimiu Wenders, bem como a todos os integrantes
da companhia da coreógrafa, a Tanztheater Wuppertal Pina Bausch. A dor, no
entanto, levou ao desejo coletivo de homenageá-la. Foi assim que ressurgiu,
como uma obra realizada por muitas mãos, o documentário Pina. Wenders
assina a produção, o roteiro e a direção, mas o ponto de vista é o de dezenas
de amigos e colaboradores com quem Bausch trabalhava e convivia. Todos
falam em suas próprias línguas, inclusive o português, em um afetuoso coral
de lembranças compartilhadas com o público.
O ponto forte, no entanto, corresponde aos números musicais (que
incluem uma coreografia minimalista para O Leãozinho, de Caetano Veloso).
O uso de locações – principalmente nas ruas de Wuppertal, sede da
companhia – cria uma conexão entre dança e cotidiano, ou entre dança e vida,
que está em plena sintonia com os princípios do trabalho de Bausch. Um de
seus lemas é utilizado como motivo recorrente do documentário: "Dance,
dance – senão, estamos perdidos". Wenders foi feliz ao traduzi-lo em forma
de cinema, dando uma atmosfera quase hipnótica – e encantadora – a um
documentário golpeado por circunstâncias tão dolorosas.
Nos cinemas, Pina foi exibido em 3D. A campanha internacional de
lançamento o apresentou como o primeiro "filme de arte" a ser realizado com
essa tecnologia de captação e projeção. Até então, os documentários feitos
em 3D eram exclusivamente voltados para temas da natureza e do cosmo.
Indicado ao Oscar de melhor documentário, Pina ganhou, nessa mesma
categoria, o prêmio da Academia Europeia de Cinema
Diretor de longas de ficção como Alice nas Cidades (1974), O Amigo
Americano (1977), Paris, Texas (1984) e Asas do Desejo (1987), Wenders é
também documentarista, com uma filmografia variada que inclui Um Filme
para Nick (1980), sobre o diretor Nicholas Ray, Tokyo-Ga (1985) e
Identidade de Nós Mesmos (1989), ambos rodados no Japão, e Buena Vista
Social Club (1999), sobre um grupo de músicos cubanos.
Pina Bausch (1940-2009) criou sua própria companhia em 1973. Nela,
os espetáculos que dirigiu e coreografou contribuíram para renovar a cena
contemporânea de dança. No cinema, Bausch fez o papel de uma princesa em
E la Nave Va (1983), do italiano Federico Fellini, e aparece como ela mesma,
durante uma apresentação do espetáculo Café Müller, em Fale com Ela
(2002), do espanhol Pedro Almodóvar. Seu trabalho aparece também no
documentário Sonhos em Movimento (2010).
Pina (Pina) — Alemanha/França/Inglaterra, 2011, 103 min. Direção: Wim Wenders. Distribuição em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 187, novembro de 2012)


Poesia
Shi
Coreia do Sul, 2010
Direção: Lee Chang-dong

Seria possível ensinar poesia? E, caso a resposta seja afirmativa, quem


haveria de se interessar por esse aprendizado na voraz sociedade de consumo
em que vivemos? Respostas estimulantes às duas perguntas podem ser
encontradas no drama sul-coreano Poesia, que recebeu o prêmio de melhor
roteiro pelo júri oficial e uma menção especial do júri ecumênico no Festival
de Cannes do ano passado.
Ex-professor de ensino médio e escritor de prestígio em seu país, o
diretor e roteirista Lee Chang-dong conta, em seu quinto longa-metragem, a
história de Mija (interpretada com serenidade pela excelente Yun Jeong-hie).
Solitária, já acusando o desgaste físico provocado pela idade, ela faz bicos
como enfermeira e cuida do neto adolescente na ausência da filha, que mora
em outra cidade e que, pelos indícios, não parece muito próxima ao garoto.
Apesar da rotina espartana, Mija não se deixa abater — nem mesmo pela
insensibilidade das pessoas que a cercam, indiferentes ao que significa
envelhecer em sociedade governada por estímulos à juventude. Ela sofre um
baque, no entanto, quando descobre ser vítima do mal de Alzheimer, ainda
em sua fase inicial, já acusando os primeiros lapsos de memória e de uso da
linguagem verbal. No lugar de entregar os pontos, prefere agarrar-se à vida.
A poesia entra em seu cotidiano nesse contexto, por meio de um curso
ministrado por um poeta e aberto a qualquer interessado, mesmo àqueles,
como Mija, sem nenhuma experiência literária ou predileção especial por
leitura. A aplicada aluna não entenderá, inicialmente, o que o professor quer
dizer quando recomenda a todos, como ponto de partida, olhar para o mundo
como nunca o fizeram. O tempo lhe mostrará que a linguagem pode mantê-la
conectada ao mundo.
Além de abordar a função da literatura onde muita gente acredita que ela
não tenha papel a cumprir, Poesia provoca também reflexões sobre o
processo de envelhecimento e os cuidados, familiares e sociais, com a
população idosa. O tema é especialmente relevante no Brasil, cujas mudanças
demográficas apontam, nas próximas décadas, para o fim do "país de jovens".
Mija, a protagonista de Poesia, descobre ser vítima do mal de
Alzheimer, que atinge cerca de 20 milhões de idosos em todo o mundo. Os
danos provocados pela doença são devastadores, como ajudam a entender
outros filmes com personagens na mesma situação, como o argentino O Filho
da Noiva (2001), o norte-americano Diário de uma Paixão (2004) e o
canadense Longe Dela (2006).
No primeiro, Norma Aleandro interpreta a mãe de um dono de
restaurante (Ricardo Darín). No segundo, Gena Rowlands faz o papel de uma
mulher que já se esqueceu da grande história de amor de sua vida. E, no
terceiro, Julie Christie encarna a esposa que deixa o marido devastado pela
dor ao ser internada em uma clínica — onde já estão as personagens dos
outros dois filmes — e dar os primeiros sinais de perda de memória.
Poesia (Shi) — Coreia do Sul, 2010, 139 min. Direção e roteiro: Lee Chang-dong. Com Yun Jeong-hie, Lee Da-wit, Kim Hira. Distribuição em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 172, agosto de 2011)


Policarpo Quaresma – Herói do Brasil
Brasil, 1997
Direção: Paulo Thiago

Quatro anos depois da Proclamação da República, chega ao Congresso


uma petição para transformar o tupi-guarani no idioma oficial do Brasil. O
autor da ideia, o funcionário público Policarpo Quaresma, considera a língua
portuguesa “emprestada” e sustenta que a língua “originalíssima” falada
pelos índios “adapta-se perfeitamente aos nossos órgãos vocais e cerebrais”.
Expulso do plenário a pontapés, chega à rua a tempo de ver um militar atirar
em um estudante que protesta contra o governo republicano.
Que país é esse? Policarpo Quaresma – Herói do Brasil começa assim,
alternando farsa e seriedade, na tentativa de responder a uma outra pergunta
muito frequente entre os intelectuais e pesquisadores que se dedicaram a
investigar o caráter nacional: afinal, quem somos? A “essência” pindoranimá
(brasileira, em tupi-guarani) esconde-se em algum endereço ou buscá-la, ao
menos com a ingenuidade de Policarpo, deveria valer – como de fato vale ao
personagem – uma passagem para o hospício mais próximo?
No romance publicado em 1911 por Afonso Henriques de Lima Barreto
(1881-1922), Policarpo é definido como um “patriota”. Um personagem fiel a
princípios éticos, ao contrário de Macunaíma, o “herói sem caráter” criado
por Mário de Andrade (1893-1945) no romance homônimo publicado em
1928 – e, por coincidência, também interpretado no cinema por Paulo José
(no filme dirigido em 1968 por Joaquim Pedro de Andrade). Admirador do
romance de Lima Barreto desde os 18 anos, o ator é o maior responsável por
evitar que o filme de Paulo Thiago perca o rumo e caia no ridículo.
Ainda que o restante do elenco também ajude nessa tarefa, é de Paulo
José a obrigação de aparecer em quase 100% das cenas e manter o tom geral
de farsa sem cair na caricatura barata. O mesmo elogio não vale para a
narrativa. A estrutura do roteiro é razoavelmente fiel à do livro, estruturada
em quatro atos, e a recriação de época é convincente, mas o filme parece não
ter identidade própria, tendo largado a do livro pelo caminho – fenômeno
comum, desejável até, em adaptações literárias.
Dono de um currículo que inclui transposições para o cinema de
Guimarães Rosa (Sagarana, o Duelo) e Oswaldo França Jr. (Jorge, um
Brasileiro), Thiago talvez tenha sido reverente demais ao romance de
Barreto, mais preocupado em traduzi-lo “ao pé da imagem” do que em
arriscar uma versão mais pessoal. O diretor assume poucos riscos, como o de
usar modinhas cantadas por Ricardo Coração dos Outros (Ilya São Paulo)
para marcar o andamento da trama, preferindo caminhar no terreno seguro da
adaptação fabular, que se prende mais ao entrecho do que ao espírito da obra.
Espírito presente na atuação de Paulo José e também nos desenhos de
Paulo Caruso que acompanham os créditos finais. Caruso foi um dos
criadores do Bar Brasil (hoje, Avenida Brasil), cenário no qual desfilam
personagens da vida pública brasileira em charges da revista IstoÉ. Policarpo
caberia bem ali, conversando com FHC em tupi-guarani sobre como acabar
com algum problema que venha do seu tempo – o dos sem-terra, por
exemplo. O país é esse.
Policarpo Quaresma – Herói do Brasil – Brasil, 1997, 123 min. Direção: Paulo Thiago. Roteiro: Alcione Araújo, baseado no romance de Lima Barreto. Com Paulo José, Giulia Gam, Ilya São
Paulo, Antônio Calloni, Bete Coelho, Othon Bastos, Cláudio Mamberti, José Lewgoy, Chico Diaz, José Dumont. Distribuição em DVD: Paramount.

(Publicado em Educação 15, julho de 1998)


Precisamos Falar Sobre o Kevin
We Need to Talk About Kevin
Inglaterra/EUA, 2011
Direção: Lynne Ramsay

Materialização dos piores pesadelos de mães e de todos os profissionais


que lidam com crianças e adolescentes, a trama de Precisamos Falar Sobre o
Kevin mergulha no turbilhão emocional de uma das famílias mais
disfuncionais já apresentadas no cinema. Os personagens saíram do romance
homônimo de Lionel Shriver: pai (John C. Reilly), mãe (Tilda Swinton) e
dois filhos. De longe, eles parecem compor apenas mais um núcleo de classe
média, com uma dinâmica interna comum a tantos outros. De perto, no
entanto, uma dor profunda se instala, sem dizer claramente de onde veio, e
adquire traços assustadores.
O epicentro do desequilíbrio é o filho mais velho, Kevin (interpretado
por três atores, com destaque para Ezra Miller, que o encarna na
adolescência). Desde a infância, algo de perturbador se manifesta em seu
comportamento. A morbidez e a agressividade endereçadas por ele à mãe
contrastam com a imagem de bom menino que consegue transmitir para o
pai. Quando cresce e ganha a companhia de uma irmã, suas atitudes podem
até sugerir, a um estranho, somente mais um adolescente rebelde em conflito
com as regras sociais. Pura ilusão: se todos em sua idade fizessem o que ele
termina por fazer, não haveria sociedade tal como a conhecemos.
Na habilidosa narrativa da diretora e roteirista escocesa Lynne Ramsay,
a história vai e volta no tempo. Sabemos inicialmente que algo terrível
aconteceu aos personagens, mas a revelação surge apenas perto do final. Até
lá, e ainda depois, somos convidados a especular sobre as razões que levam
Kevin a agir daquela forma. A importância da mãe na trama faz com que
prestemos atenção especial a ela, mas talvez seja mais razoável ampliar o
foco.
À época do lançamento, durante uma conversa com o público de uma
sessão em Nova York, Miller foi sensato: quando alguém triunfa, lembrou
ele, tendemos a atribuir o êxito a muitas pessoas e fatores; no fracasso, somos
tentados a buscar, equivocadamente, uma só resposta. Hoje com 19 anos,
Miller estreou no cinema em outro filme de apelo para pais e educadores: o
aqui inédito Afterschool (2008), exibido em festivais no Brasil com o título
Depois da Escola. Dirigido por Antonio Campos, filho do jornalista
brasileiro Lucas Mendes, traz Miller como um adolescente que captura, pela
internet, imagens comprometedoras de duas jovens.
Pouco conhecida no Brasil, Lynne Ramsay tem 42 anos. Dois de seus
curtas-metragens foram premiados no Festival de Cannes, ainda nos anos
1980, e a estabeleceram como uma das principais promessas do cinema
britânico. Seus três longas-metragens — Ratcatcher (1999), Morvern Callar
(2002) e Kevin — lhe renderam prêmios em diversos países. Lionel Shriver é
o nome masculino adotado, aos 15 anos, pela jornalista e escritora norte-
americana Margaret Ann Shriver. Hoje com 55 anos, ela vive em Londres
(Inglaterra). Precisamos Falar Sobre o Kevin, o oitavo de seus 11 romances
já publicados, foi lançado em 2003 e provocou intensa polêmica.
Precisamos Falar Sobre o Kevin (We Need to Talk About Kevin) — Inglaterra/EUA, 2011, 113 min. Direção: Lynne Ramsay. Roteiro: Rory Kinnear e Ramsay, baseado no romance de Lionel
Shriver. Com Tilda Swinton, John C. Reilly, Ezra Miller. Distribuição em DVD e Blu-ray: Paris.

(Publicado em Educação 182, junho de 2012)


Pro Dia Nascer Feliz
Brasil, 2007
Direção: João Jardim

Diante dos 5,3 milhões de espectadores que viram Dois Filhos de


Francisco — a maior bilheteria de uma produção nacional nos últimos 20
anos — nos cinemas, fora as vendas de DVD (oficiais e piratas), a carreira do
documentário Pro Dia Nascer Feliz parece um tanto pálida. Lançado no
início deste ano com apenas cinco cópias, ele obteve generosos espaços na
imprensa e foi tratado como um filme obrigatório, mas acumulou menos de
50 mil espectadores.
O desempenho de um e de outro tem a ver com as características
massificantes da indústria cultural, que privilegia determinados
(pouquíssimos) produtos em detrimento de quase todos os outros, com o
espaço ainda restrito ocupado pelos documentários nos cinemas e com a
concentração do circuito exibidor nas grandes capitais. Agora, o lançamento
em DVD possibilita que o longa-metragem de João Jardim (codiretor de
Janela da Alma) chegue finalmente a seu público preferencial, educadores e
alunos de todas as escolas de ensino básico do país.
Por que, afinal, tanta gente o considerou obrigatório? Entre outros
motivos, porque facilita a compreensão de algumas das principais razões que
impedem a educação brasileira de dar o salto de qualidade considerado
indispensável ao desenvolvimento do país. Uma delas encontra respaldo nos
períodos em que Jardim e sua equipe conviveram com professores e alunos
de diferentes regiões e classes sociais: o desconhecimento das condições
psicológicas que caracterizam a adolescência e que repercutem no
rendimento escolar.
Na análise do cineasta, o que mais chama a atenção no cenário é a
situação de antagonismo protagonizada por educadores e estudantes, como se
pertencessem a mundos distintos e cultivassem um estado permanente de
enfrentamento. Além de observar o microcosmo escolar com a equidistância
de quem não se insere nele, Pro Dia Nascer Feliz é também uma expedição a
um mundo que nenhum adulto (sobretudo os que trabalham com
adolescentes) deveria esquecer: o da sociedade vista da perspectiva da
juventude, pautada por desejos, limites e inseguranças.
Pro Dia Nascer Feliz — Brasil, 2007, 88 min. Direção: João Jardim. Distribuição em DVD: Copacabana.
(Publicado em Educação 128, dezembro de 2007)
A Professora de Piano
La Pianiste
França/Áustria, 2001
Direção: Michael Haneke

Alguns cineastas se notabilizam pelo uso da estratégia do incômodo:


seus filmes não são feitos para agradar o público, mas para deixá-lo
desconfortável em relação a certos temas e, com isso, forçá-lo a refletir sobre
eles. É o caso do austríaco Michael Haneke. Seu primeiro longa a provocar
impacto no circuito internacional foi O Sétimo Continente (1989), no qual
uma família burguesa e entediada planeja uma longa viagem à Austrália —
na verdade, apenas metáfora para o suicídio em grupo. Em Violência
Gratuita (1997), a ordem burguesa é novamente desestabilizada por dois
estranhos que invadem uma casa de veraneio e torturam os moradores.
A Professora de Piano se mantém, com pequenas variações, nesse
mesmo registro. Desta vez, o que mais interessa é a repressão sexual e os
canais que ela encontra para se exprimir no âmbito da vida burguesa. A
protagonista é Erika (Isabelle Huppert), admirada professora de piano em um
conservatório de Viena (Áustria). Seus alunos a temem, porque é dura e
rigorosa, mas a respeitam, em especial quando o compositor em pauta é o
romântico austríaco Franz Schubert (1797-1828), sua especialidade. Mantém
todos a distância, e parece uma mulher serena e segura. Vista de perto, no
entanto, revela-se frágil e atormentada, sob controle da mãe dominadora
(Annie Girardot). Debaixo da máscara social usada por Erika, corre um
turbilhão de sentimentos que, represados a vida inteira, irrompem de repente
como as lavas de um vulcão adormecido.
O catalisador do desequilíbrio é Walter (Benoît Magimel), pianista
diletante que a conhece durante um recital e sente-se atraído pela sua energia
e talento ao piano. Obcecado, ele se inscreve no concurso para ingressar no
conservatório, é aprovado (apesar do voto contrário de Erika) e, uma vez em
sala de aula, deixa claro que suas intenções em relação à professora têm
pouco a ver com música, dando início a um jogo de sedução que, ao mexer
com sexualidade reprimida e masoquismo, desperta reações violentas em
ambos.
A estratégia do incômodo (ou, como preferem alguns, do escândalo)
utilizada por Haneke passa, aqui, por cenas fortes, relacionadas ao
comportamento sexual de Erika, e que talvez choquem o público mais
conservador. Descontado esse tempero apimentado, sua abordagem das
relações de poder entre professor e aluno funciona como um bom
complemento para Oleanna (1994), de David Mamet, que fala de assédio
sexual em uma universidade dos EUA. Mas o maior trunfo de A Professora
de Piano reside mesmo na música, em especial a de Schubert, que pauta o
andamento da narrativa. As sequências de aulas e concertos são inebriantes,
com um detalhe curioso: é a própria Isabelle Huppert, que estudou piano
durante 12 anos, quem interpreta todas as peças. Não é por acaso que na parte
final, quando a música sai de cena, o filme perde um pouco de sua alma.
A Professora de Piano (La Pianiste) — França/Áustria, 2001, 130 min. Direção e roteiro: Michael Haneke, baseado no romance Die Klavierspielerin, de Elfriede Jelinek. Com Isabelle Huppert,
Annie Girardot, Benoît Magimel, Susanne Lothar, Udo Samel, Anna Sigalevitch, Cornelia Köndgen. Distribuição em DVD: Movie Star.

(Publicado em Educação 83, março de 2004)


Uma Professora Muito Maluquinha
Brasil, 2011
Direção: André Alves Pinto e César Rodrigues

Professora sem Classe


Bad Teacher
EUA, 2011
Direção: Jake Kasdan

De um lado, uma professora "sem classe" interpretada pela atriz norte-


americana Cameron Diaz; do outro, uma "muito maluquinha" vivida pela
brasileira Paola Oliveira. Duas representações bem diferentes de educadores,
de alunos e do ensino básico. Criadas pelo cinema, mas de acordo com
circunstâncias e objetivos distintos. Justamente por isso, ambas fornecem
matéria-prima para identificar mas uma vez alguns dos estereótipos sobre a
escola em circulação na sociedade.
A comédia norte-americana Professora sem Classe estreou nos cinemas
brasileiros no final de agosto, enquanto a produção infantojuvenil brasileira
Uma Professora Muito Maluquinha tem lançamento previsto para 7 de
outubro. Embora o primeiro seja muitas vezes agressivo e vulgar, e o
segundo prefira um ar de inocência, os dois concidem ao recriar a escola
como um espaço controlado por adultos aborrecidos e, em alguns casos,
francamente debiloides.
Elizabeth, a personagem de Cameron Diaz em Professora sem Classe,
volta à escola em que odiava trabalhar, em uma pequena cidade do estado de
Illinois, depois de ser deixada pelo noivo milionário. Para enrolar seus alunos
de sétima série, ocupa as aulas com a exibição de filmes. Ironicamente, a
seleção inclui títulos norte-americanos populares sobre educadores que
transformam positivamente a vida de suas turmas: O Preço do Desafio
(1988), Meu Mestre, Minha Vida (1989) e Mentes Perigosas (1995).
Sua postura muda, no entanto, quando descobre que o dinheiro para
fazer um implante de silicone nos seios — "instrumento" para fisgar outro
noivo milionário — pode vir de um prêmio ao professor cujos alunos
apresentem o maior salto no desempenho em um exame estadual.
Determinada a fazer de sua turma um exemplo, Elizabeth procura meios para
incrementar o aprendizado e chega a um modo ilícito, mas seguro, de obter
bons resultados no exame.
Como a personagem é caracterizada como alguém sem o menor
compromisso com o ensino, seu comportamento pouco tem a ver com
projeções sobre professores. Não é o caso, porém, do diretor e dos colegas de
Elizabeth na escola — cada um deles inepto à sua maneira, e todos com
evidentes problemas de sociabilização. Trata-se apenas de uma comédia
hollywoodiana para consumo de massas, e não de um estudo sobre a
profissão, mas o êxito do filme (cerca de US$ 100 milhões arrecadados nos
EUA) sugere que algo ali corresponde às experiências do espectador e às suas
projeções.
A ação de Uma Professora Muito Maluquinha se ambienta no interior
de Minas Gerais, durante a II Guerra Mundial, e corresponde em linhas gerais
aos personagens e situações do livro homônimo de Ziraldo, publicado em
1995. O autor assina o roteiro e faz uma participação especial, muito breve,
como o gerente da única sala de cinema do lugar. Natural, portanto, que a
adaptação — dirigida por André Alves Pinto e César Rodrigues — procure
reproduzir o ar singelo e nostálgico do livro.
Sob a desconfiança da diretora e de quase todas as professoras do grupo
escolar da cidade, a inexperiente Catarina (Paola Oliveira) assume uma turma
de crianças recém-alfabetizadas. Para tornar as aulas mais divertidas e os
alunos envolvidos pelos temas, ela passa a usar estratégias que parecem
estranhas às colegas, muito conservadoras (e abobadas como as de
Professora sem Classe). Além disso, para aumentar o incômodo, Catarina é
muito bonita, exala simpatia e desperta o interesse de diversos rapazes.
Como no livro de Ziraldo, ela é uma precursora de procedimentos hoje
corriqueiros para aumentar o interesse das crianças pelo conhecimento e para
conectá-lo ao seu cotidiano. A aula de geografia, por exemplo, é dada ao ar
livre, durante um piquenique no alto de uma colina com vista para um lago.
Outra de suas inovações é levar a turma para assistir a um longa-metragem
hollywoodiano sobre Cleópatra que incrementa os estudos sobre o Egito.
Casa de ferreiro, espeto de ferro mesmo: a produção de Uma Professora
Muito Maluquinha oferece, no site do filme, uma "cartilha pedagógica", para
auxiliar os professores interessados em explorar o universo de Ziraldo com
seus alunos. No lugar de um "material didático prescritivo", a autora da
cartilha, Débora Garcia, acredita "que será muito mais proveitoso deixar-se
provocar pelo espírito inquieto de Catarina, pela ternura de seus atos, pelo
seu comprometimento com a educação em seu sentido mais amplo e pela
crença de que é possível aprender, sempre".
Uma Professora Muito Maluquinha — Brasil, 2011, 88 min. Direção: André Alves Pinto, César Rodrigues. Com Paola Oliveira, Chico Anysio, Suely Franco, Ana Beatriz Caruncho, Lys Araújo,
Max Fercondini. Distribuição em DVD: Paris.

Professora sem Classe (Bad Teacher) — EUA, 2011, 98 min. Direção: Jake Kasdan. Com Cameron Diaz, Lucy Punch, Jason Segel, Justin Timberlake. Distribuição em DVD e Blu-ray: Sony.

(Publicado em Educação 174, outubro de 2011)


Promessas de um Novo Mundo
Promises
EUA, 2001
Direção: Carlos Bolado, B.Z. Goldberg e Justine Shapiro

Guerras são criadas por adultos, mas seus efeitos atingem crianças e
jovens de forma dramática. Essa perspectiva raramente chega à imprensa,
encontrando abrigo mais comum no cinema, em filmes como a ficção
Tartarugas Podem Voar, que trata da invasão do Iraque sob a perspectiva de
órfãos de origem curda, e o recém-lançado documentário Promessas de um
Novo Mundo.
Entre 1997 e 2000, os diretores Carlos Bolado, B.Z. Goldberg e Justine
Shapiro acompanharam a rotina de sete crianças, israelenses e palestinas, que
viviam dentro e nos arredores de Jerusalém. Foi um tempo de relativa
calmaria, em seguida à primeira Intifada, revolta palestina que durou de 1987
a 1991, e ao processo de paz. Logo em seguida às filmagens, no outono de
2000, viria outra Intifada.
Educado em Jerusalém, Goldberg é quem aparece na tela, conversando
com as crianças, visitando suas casas e seus bairros. Nenhuma delas morava a
mais de 20 minutos de distância dos outros, lembra o cineasta. Ainda assim,
elas viviam em mundos muito distintos, expostas ao ódio que alimenta há
décadas as relações entre judeus e árabes no Oriente Médio.
O recente agravamento da crise torna esse documentário extremamente
atual (bem como o ensaio O Crime Ocidental, de Viviane Forrester).
Entende-se ali, um pouco melhor, alguns dos motivos que dificultam as
negociações de paz hoje, e que talvez as inviabilizem pelas próximas
gerações. Promessas de um Novo Mundo vai muito além, no entanto, desse
interesse geopolítico circunstancial: é um notável estudo sobre a infância em
tempos difíceis, que não oferecem perspectivas agradáveis de futuro para
quem deveria forçosamente tê-las.
Promessas de um Novo Mundo (Promises) — EUA, 2001, 85 min. Direção: Carlos Bolado, B.Z. Goldberg e Justine Shapiro. Distribuição em DVD: Abril.

(Publicado em Educação 113, setembro de 2006)


Quando Papai Saiu em Viagem de
Negócios
Otac na sluzbenom putu
Iugoslávia, 1985
Direção: Emir Kusturica

Na produção brasileira O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias


(2006), dirigida por Cao Hamburger, um menino é deixado aos cuidados do
avô em São Paulo, às vésperas da Copa do Mundo de futebol de 1970,
enquanto seus pais se escondem das forças de repressão do regime civil-
militar de 1964. Outro filme que também adota o ponto de vista infantil para
reconstituir o cotidiano sob ditadura é o argentino Kamchatka (2002), de
Marcelo Piñeyro, com Ricardo Darín (O Segredo dos Seus Olhos, Abutres) e
Cecilia Roth (Tudo Sobre Minha Mãe, Ninho Vazio) no papel do casal que
omite dos filhos o que acontece no país (e, por decorrência, com a família)
depois do golpe de 1976.
Anterior a ambos, o drama Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios
é um exemplo admirável nessa mesma linha, ao combinar um pano de fundo
sociopolítico com uma trama intimista em torno dos mistérios do mundo
segundo o olhar de uma criança. Sucesso internacional à época do
lançamento nos cinemas, o filme valeu ao diretor sérvio Emir Kusturica a sua
primeira Palma de Ouro de melhor filme no Festival de Cannes (a segunda
viria, dez anos depois, por Underground - Mentiras de Guerra, outro
polêmico mergulho na história iugoslava) e ajudou a pavimentar uma carreira
em que cinema e política se encontram, ruidosamente, quase o tempo todo.
Em 1948, o marechal croata Josip Broz Tito, líder comunista da
Iugoslávia, resistiu à tentativa da União Soviética em fazer do país um
estado-satélite e rompeu com Moscou. A manobra criou problemas para os
integrantes de facções comunistas iugoslavas identificadas com os soviéticos,
como um dos personagens de Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios,
que é preso. A família precisa se virar sozinha na sua ausência, tomando
cuidado para não se envolver em novos problemas políticos, e o seu filho
menor acredita na versão fantasiosa que lhe contam para explicar por onde
anda o pai. A partir desses elementos, Kusturica cria uma fábula sobre o fim
da inocência — de uma criança, e também de uma sociedade.
Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios (Otac na sluzbenom putu) — Iugoslávia, 1985, 136 min. Direção: Emir Kusturica. Roteiro: Abdulah Sidran. Com Moreno D'E Bartolli, Predrag
Manojlovic, Mirjana Karanovic. Distribuição em DVD: Lume.

(Publicado em Educação 181, maio de 2012)


Quando Tudo Começa...
Ça Commence Aujourd’hui
França, 1999
Direção: Bertrand Tavernier

O cenário é francês, mas parece-se com o brasileiro. Em Hernaing,


pequena cidade próxima a Valenciennes, na região Norte do país, a taxa de
desemprego é de 34% – por causa da crise na mineração – e os mecanismos
de assistência social do governo não conseguem dar conta das necessidades
básicas de centenas de famílias. Algumas não têm sequer os 30 francos
mensais (menos de R$ 10) que a escola pública maternal Léo Lagrange pede
como contribuição, equivalente à nossa taxa da APM.
“Trinta francos é o que temos para passar até o final do mês”, diz a mãe
de um aluno a Daniel Lefebvre (Philippe Torreton), o diretor da escola. Ela
compra biscoitos com o dinheiro e os molha no leite, explica. Como reagir –
e ensinar – em terra socialmente devastada como essa? Lefebvre começa pela
indignação, o sentimento nobre que move Quando Tudo Começa..., do
veterano diretor francês Bertrand Tavernier (Por Volta da Meia-Noite, A Vida
e Nada Mais).
Embora o filme não seja um documentário, o episódio dos 30 francos é
verídico. Foi o ponto de partida para que Dominique Sampiero, professor e
diretor de escola pública por mais de 20 anos, transformasse em roteiro
algumas de suas experiências, a pedido de Tavernier, seu sogro. O relato
parece tão verdadeiro que empresta à história um ar de documentário, com
ênfase no tom de denúncia.
Quando Tudo Começa... é, para o bem e para o mal, cinema socialmente
engajado, como o do inglês Ken Loach (Terra e Liberdade, Meu Nome é
Joe). Em vez de fazer um amplo e equilibrado panorama de causas e efeitos,
Tavernier deixa claro que toma partido. Fica ao lado dos professores, nos
quais identifica uma dedicação quase messiânica às crianças e às suas
famílias, e dos assistentes sociais que reconhecem a incapacidade de atuar
como deveriam.
Os principais alvos são os burocratas de forma geral – consumidos por
tarefas inócuas, como a avaliação de profissionais para fins de promoção – e
os administradores públicos, tanto à direita quanto à esquerda. “Deixemos de
lado o protecionismo medroso e adaptemo-nos às leis do mercado”, prega um
representante do governo em discurso caça-votos, pouco antes de explicar,
em “novilíngua” (o idioma manipulador do romance 1984, de George
Orwell) e “novinúmeros”, que as verbas sociais aumentaram, e não
diminuíram.
Já o prefeito comunista de Hernaing recusa-se a dar merenda a crianças
cujos pais não tenham adquirido os respectivos tíquetes, sem querer saber
quais os motivos de cada um. É um dos vários personagens que Lefebvre
peita ao longo do filme. Às vezes ele parece consciente de que exagerou, mas
demonstra sempre a convicção de estar do lado certo, o da solidariedade (ou
o da “igualdade” e da “fraternidade”, para usar palavras de ordem da
Revolução Francesa). Suas atitudes, e as de sua equipe no cotidiano da
escola, fazem o termo “educador” adquirir sentido concreto.
Quando Tudo Começa... (Ça Commence Aujourd’hui) — França, 1999, 117 min. Direção: Bertrand Tavernier. Roteiro: Dominique Sampiero, Tiffany Tavernier e Bertrand Tavernier. Com
Philippe Torreton, Maria Pitarresi, Nadia Kaci, Véronique Ataly, Nathalie Bécue, Emmanuelle Bercot, Françoise Bette, Christine Citti, Christina Crevillen. Distribuição em VHS: Cult Filmes.

(Publicado em Educação 41, setembro de 2000)


O Quarto do Filho
La Stanza del Figlio
Itália/França, 2001
Direção: Nanni Moretti

“Você fala comigo como se estivesse longe, e respondo com impressões


vindas de outro tempo”, diz a letra de By This River, canção gravada por
Brian Eno no álbum Before and After Science, de 1977. O cineasta italiano
Nanni Moretti retirou-a do baú para pontuar o doloroso processo de perda
experimentado por uma família de classe média em O Quarto do Filho.
Quem não sabe que a música tem 25 anos talvez imagine que foi composta
especialmente para o filme, tamanha a identidade entre o que ela sugere e o
que as imagens exploram. Alguém poderá insinuar que demorou um quarto
de século para que um cineasta tivesse a ideia de realizar um longa no qual
coubesse, tão bem ajustada, a canção de Eno.
Moretti recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2001 por
esse drama intimista ambientado em Ancona, pequena cidade portuária na
costa do Mar Adriático. Vivem ali um terapeuta (Moretti), sua mulher (Laura
Morante) e um casal de filhos adolescentes (Jasmine Trinca e Giuseppe
Sanfelice). Na primeira meia hora, é dissecado o cotidiano feliz e tranquilo da
família. O pai atende a seus clientes e corre pelas ruas da cidade, a mãe cuida
de um escritório de arte e os filhos envolvem-se em afazeres escolares.
Apenas uma sombra de crise ronda o lar: a suspeita de que o rapaz
furtou um fóssil do laboratório de ciências da escola. Ele nega, os pais
acreditam, e a vida segue. Fãs dos filmes anteriores de Moretti, como os
autobiográficos Caro Diário (94) e Abril (98), reconhecerão nesse ato de
abertura seu humor muito particular e uma leveza refrescante na construção e
tratamento dos personagens. Eis, no entanto, que o destino resolve aprontar
das suas, e essa família bem funcional, para usar um jargão da psicologia,
será obrigada a enfrentar a morte e as disfunções emocionais trazidas por ela.
“Senti uma necessidade urgente de relatar essa dor, a morte de um ente
querido, as diferentes maneiras com que as pessoas próximas das vítimas
reagem”, explica Moretti na entrevista que acompanha a cópia em DVD.
“Nunca me envolvi sentimentalmente com um filme como neste caso. Fui
absorvido pela dor que queria retratar.” O título original em italiano tem
duplo sentido: “stanza” significa “quarto”, mas também “estrofe poética”. É
no terreno delicado entre o realismo e a poesia que o cineasta constrói essa
pequena aula sobre aprender a olhar para o próprio sofrimento.
Pequenos movimentos simbólicos recheiam a jornada, como o
consultório do terapeuta separado por apenas uma porta de seu apartamento
(a lembrar que o personagem mistura trabalho e vida pessoal em um grau que
cobrará o seu preço) e a viagem de carro no final, quando os personagens
atravessam a noite para chegar – sem que alguém saiba dizer exatamente por
quê, como sublinha também a canção de Brian Eno – ao Mediterrâneo. A
coreografia discreta que reproduzem ali resume o que o espectador acabou de
experimentar ao lado deles. Poucas vezes no cinema as lágrimas derramam-se
de forma tão verdadeira e enriquecedora.
O Quarto do Filho (La Stanza del Figlio) — Itália/França, 2001, 100 min. Direção: Nanni Moretti. Roteiro: Linda Ferri, Nanni Moretti e Heidrun Schleef, baseado em argumento de Nanni
Moretti. Com Nanni Moretti, Laura Morante, Jasmine Trinca, Giuseppe Sanfelice, Silvio Orlando, Stefano Accorsi, Claudia Della Seta, Sofia Vigliar, Renato Scarpa, Roberto Nobile.
Distribuição em DVD: Warner.

(Publicado em Educação 69, janeiro de 2003)


O Que Eu mais Desejo
Kiseki
Japão, 2011
Direção: Hirokazu Kore-eda

Da perspectiva infantil, o mundo se configura, em boa medida, como um


espaço repleto de mistérios. As relações entre os adultos, por exemplo,
parecem nebulosas, uma vez que as motivações para certos comportamentos
são desconhecidas por crianças (ou mesmo ocultas, propositalmente, delas).
Por decorrência, o mundo também se apresenta, na infância, como um espaço
de descobertas inesgotáveis. Junte a isso tudo um pouco de fantasia e de
elementos da cultura japonesa, e chegaremos perto do universo representado
em O Que Eu Mais Desejo.
Na trama, escrita pelo diretor Hirokazu Kore-eda, a separação provisória
de um casal leva também ao distanciamento entre seus dois filhos. Koichi, de
12 anos, fica morando com a mãe e os avós. O caçula, Ryunosuke, passa a
viver com o pai em outra cidade, ao norte. Muito ligados, os meninos
procuram manter os laços; conversam por telefone sobre o que fazem na
escola, com os amigos e em família. Embora seja um pouco mais capaz de
entender o que está acontecendo, Koichi não deixa de ser criança — e, ao
ouvir que milagres podem ser concedidos a quem presencia um encontro
entre dois trens que seguem em rotas opostas, decide planejar uma forma de
pedir o seu próprio milagre, a reconciliação dos pais.
Os adultos são personagens secundários nessa história protagonizada por
crianças e que busca se aproximar ao máximo da visão de mundo infantil.
Não é, portanto, um filme que pretenda discorrer, em tom professoral, sobre
aspectos comportamentais da infância. Seu convite ao espectador envolve um
exercício para a percepção: a aventura fabular de Koichi, Ryunosuke e seus
amigos em busca do encontro mágico entre dois trens ganha sentido à medida
que o espectador consiga deixar de lado o olhar adulto para recuperar, mesmo
que apenas por alguns instantes, a sensação de encarar o mundo como um
lugar de mistérios e descobertas.
Filmes japoneses são um exemplo de como o cinema pode nos
apresentar a culturas muito diferentes da nossa. Por esse motivo, eles podem
também nos induzir a pequenos enganos de interpretação. O sentido de
obrigação dos filhos em relação aos pais idosos e o respeito à privacidade são
exemplos de condutas que, no Japão, têm padrões distintos dos adotados no
Brasil. Assim, é possível que o comportamento de alguns personagens, às
vezes, pareça estranho. Eles são justificados, no entanto, pelo código cultural
do país.
Um dos diretores orientais de maior prestígio internacional na
atualidade, Kore-eda tem 50 anos. Sua obra o tornou um cronista da vida
cotidiana e das relações familiares no Japão contemporâneo, ao explorar
temas como a infância, a memória e a morte. Maborosi (1995) revelou seu
talento, confirmado em filmes como Depois da Vida (1998), Distância
(2001), Ninguém Pode Saber (2004) e Andando (2008).
O Que Eu mais Desejo (Kiseki) — Japão, 2011, 128 min. Direção e roteiro: Hirokazu Kore-eda. Com Koki Maeda, Ohshirô Maeda, Hiroshi Abe. Distribuição em DVD: Imovision

(Publicado em Educação 188, dezembro de 2012)


Quem Não Cola Não Sai da Escola
Cheats
EUA, 2002
Direção: Andrew Gurland

A escola é um local privilegiado para a aquisição de conhecimentos e o


desenvolvimento de habilidades. Nela, as avaliações consolidam os degraus
percorridos pelo aluno em sua trajetória educacional. Exercícios, trabalhos e
provas são apenas mecanismos para que o estudante perceba como anda seu
aprendizado. Graças a essas atividades, ele pode certificar-se de que
compreendeu determinados conteúdos. E, diante de eventuais lacunas, tem
como dedicar-se a saná-las. Certo?
Errado, ao menos de acordo com o que pensam os personagens de Quem
Não Cola Não Sai da Escola. É uma comédia, voltada para o público jovem,
mas nem por isso deve ser levada menos a sério do que uma análise sisuda
sobre o tema. Ao contrário: muitas vezes, são os filmes de aspecto mais
inocente os responsáveis pela disseminação de conceitos (e preconceitos) já
enraizados na sociedade ou, no mínimo, populares em alguns de seus setores.
Aqui, propaga-se uma visão que desagrada aos educadores, mas que é
corrente entre muitos dos que passaram pelo ensino formal: a escola é apenas
um obstáculo na corrida da vida, e deve ser superado da maneira menos
dolorosa possível. Como ali não se aprenderia nada de relevante para
aplicação cotidiana, os fins justificariam os meios. Assim, fraudar as
obrigações escolares seria uma ferramenta aceitável para alcançar o objetivo
maior de formar-se e, então, viver.
Os protagonistas de Quem Não Cola Não Sai da Escola orgulham-se de
fraudar toda espécie de avaliação, desde a pré-escola até o último ano do
ensino médio, que estão prestes a concluir. Seus métodos são os mais
variados: “cola” em letras minúsculas escondida na embalagem do chiclete,
roubo de provas, cópias das anotações dos alunos mais esforçados. Só faltou
lembrar o potencial para fraude representado hoje pela internet.
“Por que estudar?”, a frase promocional que acompanhou o lançamento
do filme nos EUA, resume essa filosofia, que elege como adversários a
diretora da escola (Mary Tyler Moore) e os professores — todos
caracterizados como paspalhos, enquanto os “coladores” adquirem status de
heróis. Nem mesmo a conclusão da história melhora as coisas para os
adultos: embora pareça moralista, ela consagra a perspectiva de que o
negócio é levar vantagem, sempre.
Entre profissionais de educação, uma comédia ingênua (será mesmo?)
como essa pode esquentar o debate a respeito de temas considerados tabus,
como o fato de que parte dos alunos não vê sentido na escola, menos ainda
nas avaliações. Estariam mesmo errados? Não haveria equívocos graves no
sistema escolar, despreparado para acompanhar a velocidade das mudanças
na sociedade? Todos os professores sabem avaliar? A “cola” (e sua versão
moderna, o plágio via internet) é também uma resposta espontânea a um
modelo em crise. Demonizá-la, sem refletir sobre suas origens, não leva a
lugar nenhum.
Quem Não Cola Não Sai da Escola (Cheats) — EUA, 2002, 86 min. Direção e roteiro: Andrew Gurland. Com Trevor Fehrman, Elden Henson, Matthew Lawrence, Martin Starr, Mary Tyler
Moore, Griffin Dunne, David Krumholtz. Distribuição em DVD: Playarte.

(Publicado em Educação 84, abril de 2004)


Raul - O Início, o Fim e o Meio
Brasil, 2012
Direção: Walter Carvalho

Lançado nos cinemas em março, Raul - O Início, o Fim e o Meio atraiu


quase 200 mil espectadores. Pode não parecer muito em um país de 190
milhões de habitantes, mas é um número expressivo para documentários, que
circulam em um circuito muito menor do que os longas-metragens de ficção.
Dos 99 filmes brasileiros lançados nos cinemas em 2011, apenas 18 tiveram
mais de 70 mil espectadores. Entre eles, somente um documentário: Bahêa
minha vida, sobre o Esporte Clube Bahia, que foi visto por um público de 75
mil pessoas, o equivalente à lotação do antigo estádio da Fonte Nova, em
Salvador.
Agora disponível em DVD, Raul tende a ampliar de maneira
significativa o seu público, alcançando moradores dos milhares de
municípios brasileiros que não dispõem de salas de cinema. Dirigido pelo
fotógrafo Walter Carvalho, o filme nasceu de um impressionante volume de
pesquisas, com dezenas de depoimentos e diversas imagens raras. Para
organizar esse vasto material, a montagem não segue a linearidade
cronológica de documentários biográficos convencionais, optando por
explorar o personagem de acordo com temas. Um dos principais blocos, por
exemplo, investiga as relações pessoais e profissionais entre Raul Seixas e o
escritor Paulo Coelho, que foram parceiros de trabalho nos anos 1970.
Raul consagrou-se como um roqueiro singular e algumas de suas
canções, como Maluco Beleza, Metamorfose Ambulante, O Dia em que a
Terra Parou e Sociedade Alternativa, continuam a ter um grande apelo
contestador. Não por acaso, boa parte do público que assistiu ao filme nos
cinemas não tinha nascido ou ainda era criança quando o compositor e
intérprete morreu precocemente, em 1989, aos 44 anos. Para eles, o
documentário não representa apenas um mero retrato de artista: a janela
aberta por Carvalho, usando Raul como fio condutor, contempla aspectos
importantes da história e da cultura popular do Brasil desde os anos 1950.
O êxito de Raul representa um novo capítulo na recente e bem-sucedida
aproximação entre o documentário e a tradição musical brasileira, que inclui
títulos como Cartola - Música para os Olhos (2006), Loki - Arnaldo Batista
(2009), Uma Noite em 67 (2010) e A Música Segundo Tom Jobim (2012),
entre muitos outros. Um dos mais recentes a entrar em cartaz nos cinemas foi
Tropicália, que abriu, em março, o É Tudo Verdade - Festival Internacional
de Documentários.
Responsável pela direção de fotografia de dezenas de filmes brasileiros,
como Central do Brasil (1998) e Carandiru (2003), Carvalho assinou a
codireção do documentário Janela da Alma (2001, com João Jardim) e da
ficção Cazuza - O Tempo não Para (2004, com Sandra Werneck), além de
dirigir sozinho Budapeste (2009), baseado no romance de Chico Buarque, e a
versão para DVD de espetáculos do ator, músico e dançarino Antonio
Nóbrega (Lunário Perpétuo, Nove de Fevereiro).
Raul - O Início, o Fim e o Meio — Brasil, 2012, 124 min. Direção: Walter Carvalho. Roteiro: Leonardo Gudel. Distribuição em DVD: Paramount.

(Publicado em Educação 186, outubro de 2012)


A Rede Social
The Social Network
EUA, 2010
Direção: David Fincher

Hoje a mais popular das redes sociais baseadas na internet, com cerca de
500 milhões de usuários, o Facebook nasceu em 2003, em uma das escolas de
maior prestígio do mundo, a Universidade de Harvard, nos EUA. Não havia,
em sua concepção, nenhum objetivo acadêmico mais nobre. Um de seus
criadores, Mark Zuckerberg, utilizou seus conhecimentos em programação de
computadores para criar uma forma de aproximar estudantes universitários e
de lhes proporcionar uma identidade virtual.
Os bastidores da fundação do website, dos conflitos jurídicos que
envolveram seus proprietários e da rápida ampliação da base de usuários,
com a chegada a outras universidades dos EUA, foram recriados em A Rede
Social, cujo roteiro — de Aaron Sorkin, autor do seriado The West Wing —
tomou como base o livro-reportagem Bilionários por Acaso - A Criação do
Facebook, de Ben Mezrich (Intrínseca).
De interesse especial para todos os que pesquisam o empreendedorismo
na sociedade contemporânea, sobretudo a partir de suas interações com as
tecnologias digitais, a história bem-sucedida de Zuckerberg ganha, no filme,
uma abordagem que se preocupa também com a natureza psicológica do
personagem (interpretado por Jesse Essenberg). Em seus movimentos,
procura-se entender como a solidão, as dificuldades para criar (e manter)
relacionamentos e a necessidade de afirmação social estão na raiz de redes
criadas pela internet.
Especializado em organizar pacotes gigantescos de informação em
narrativas fluentes, o diretor David Fincher (Clube da Luta, Zodíaco)
condensa habilidosamente os fatos que levaram à ascensão do Facebook e,
assim, transforma o Zuckerberg de A Rede Social em um ícone do nosso
tempo. A romantização do personagem, caracterizado como anti-heroi (ou
patinho feio) que se beneficia da era digital, sugere que os valores sociais e
econômicos do século 20 deram lugar a algo que ainda não revelou
inteiramente a sua face.
Entre os inúmeros longas-metragens de ficção que têm incorporado a
internet a suas tramas, alguns se destacam por tratar das mudanças
comportamentais protagonizadas pelas novas gerações e, também, dos
contrastes estabelecidos com o mundo em que cresceram seus pais — muitos
deles empenhados em compreender o alcance dessas transformações para não
perder de vista o que elas representam para seus filhos. É o caso do brasileiro
Nome Próprio e do canadense Adoração.
O primeiro é baseado no livro Máquina de Pinball, de Clarah Averbuck,
uma das primeiras "blogueiras" a despertar a atenção de milhares de
internautas no Brasil pelo tratamento literário dado à exposição de conflitos e
angústias pessoais. No filme, dirigido por Murilo Salles (Como Nascem os
Anjos), uma jovem (Leandra Leal) cria uma identidade virtual que arrebanha
seguidores, mas lhe cria problemas, na rede e fora dela.
Em Adoração, o diretor e roteirista Atom Egoyan (O Doce Amanhã) cria
uma trama sinuosa a partir de uma redação escrita por um aluno de ensino
médio (Devon Bostick) sobre sua suposta mãe. Restrita à sala de aula, a
história não teria muitos desdobramentos. Mas, a partir da circulação de
informações em redes sociais de alunos e de seus pais, instala-se na
comunidade uma crise que vai muito além do poder que se costuma atribuir a
um mero texto escolar.
A Rede Social (The Social Network) — EUA, 2010, 120 min. Direção: David Fincher. Roteiro: Aaron Sorkin, baseado em livro de Ben Mezrich. Com Jesse Eisenberg, Andrew Garfield, Justin
Timberlake, Rooney Mara. Distribuição em DVD e Blu-ray: Sony.

(Publicado em Educação 169, maio de 2011)


Réquiem para um Sonho
Requiem for a Dream
EUA, 2000
Direção: Darren Aronofsky

“Réquiem”, ensina o dicionário, é parte do ofício dos mortos e também a


música composta para essa ocasião fúnebre. Conclui-se, só de olhar para o
título, que há algo de sombrio no “sonho” de que trata o segundo longa-
metragem do diretor e roteirista americano Darren Aronofsky (que antes
realizou Pi, sobre um jovem e genial matemático em crise). O resultado, no
entanto, dificilmente confirmará a mais dura das expectativas. Réquiem para
um Sonho é o mais incômodo e agressivo filme antidrogas já realizado pelo
cinema americano, graças sobretudo a um bem utilizado recurso narrativo: a
história é contada “de dentro” da própria espiral, ou seja, da perspectiva dos
personagens, fazendo com que o espectador sinta-se na pele deles, inclusive
no aspecto puramente sensorial.
A sequência de abertura já nos transporta para o olho do furacão, bem
conhecido por inúmeras famílias. A viúva Sara (Ellen Burstyn) procura
convencer — ao que parece, pela enésima vez – seu filho único, Harry (Jared
Leto), a não levar de casa o velho aparelho de televisão. Incapaz de usar a
força para impedi-lo ou mesmo de enfrentá-lo cara a cara, ela tranca-se em
um cômodo e, pelo buraco da fechadura, vê a história começar a repetir-se.
Primeiro, Harry e seu amigo Tyrone (Marlon Wayans) levam a TV a um
comerciante do bairro, que lhes paga alguns trocados por ela. Depois, eles
usam o dinheiro para comprar cocaína. Por fim, Sara vai até o comerciante
para recuperar a televisão, pagando-lhe a mesma quantia que ele deu aos
jovens – e, portanto, financiando indiretamente a operação.
Se esse é o ponto inicial do drama, pode-se ter alguma ideia de como o
ciclo vai evoluir. Harry tem sua dependência potencializada pela namorada,
Marion (Jennifer Connelly), que vive sozinha em um apartamento bancado
pelos pais. O casal, com a participação de Tyrone, sonha levantar dinheiro
para realizar seus sonhos por meio do tráfico de drogas. Enquanto isso, Sara
entrega-se a outro sonho, o de tornar-se celebridade nacional aparecendo em
um programa de autoajuda na TV para o qual foi supostamente convidada.
Mas, para entrar no vestido vermelho que gostaria de usar nesse momento de
glória, precisa emagrecer. A partir daí, as trajetórias dos quatro personagens
são acompanhadas em paralelo e as dependências são equiparadas – o ritual
do consumo de cocaína, por exemplo, é descrito visualmente com o mesmo
ritmo usado por Sara para ligar a televisão.
Construída como se fosse uma estranha fábula infantil, a trama
depressiva culmina na impressionante sequência de 30 minutos que encerra o
filme. Carregada e melancólica, mas também poética ao desenhar, nos
discretos movimentos de câmera que se despedem dos personagens, uma
tentativa de retorno ao útero, onde estavam todos protegidos das engrenagens
da sociedade de consumo norte-americana, da solidão e do conseqüente
desespero gerados por ela. Réquiem para um mundo hostil.
Réquiem para um Sonho (Requiem for a Dream) — EUA, 2000, 102 min. Direção: Darren Aronofsky. Roteiro: Hubert Selby Jr. e Darren Aronofsky, baseado no romance homônimo de Hubert
Selby Jr.. Com Ellen Burstyn, Jared Leto, Jennifer Connelly, Marlon Wayans, Christopher McDonald, Louise Lasser, Marcia Jean Kurtz. Distribuição em DVD: Europa.

(Publicado em Educação 65, setembro de 2002)


A Revolução dos Bichos
Animal Farm
Inglaterra, 1999
Direção: John Stephenson

“Passamos anos escondidos na opressão”, discursa o Velho Major diante


dos companheiros que correram especialmente para ouvi-lo falar de um
sonho. “Enfrentemos a realidade: nossa vida é miserável, trabalhosa e curta.
Nascemos, recebemos o mínimo de alimento necessário para continuar
respirando e os que podem trabalhar são forçados a fazê-lo até a última
parcela de suas forças. No instante em que nossa utilidade acaba, trucidam-
nos com hedionda crueldade.”
O discurso pode até caber na boca de um líder sindical mais inflamado,
mas vem de um porco premiado que, aos 12 anos, inspira respeito nos
animais da fazenda onde vive. Sabe que não terá como ver realizado seu
sonho de liberdade e, por isso, quer semeá-lo entre os mais jovens. Suas
palavras, transformadas em mandamentos, desencadeiam A Revolução dos
Bichos, baseado na sátira política que forma com 1984 a dupla de obras mais
populares do inglês George Orwell (1903-1950).
Publicado em 1945, o livro já havia sido adaptado para o cinema em
forma de desenho animado, em 1955. A nova versão tem atores e animais de
verdade, e algumas criaturas geradas por efeitos digitais. A tecnologia
permite que os bichos adquiram voz, expressão facial e movimentos em um
grau de precisão e verossimilhança impossível de obter até alguns anos atrás.
Para quem leu o livro e julgava ingrata a tarefa de recriá-lo no cinema, o
resultado é mesmo impressionante.
Orwell tinha o objetivo de satirizar o quadro político na URSS depois da
Revolução Russa. Seus animais enfrentam a tirania dos donos da fazenda,
conseguem expulsá-los e passam a administrar sozinhos a propriedade. Dois
porcos polarizam a disputa pelo poder: Napoleão, mais velho e esperto,
proclama-se o líder da comunidade, enquanto o inquieto e solidário Bola-de-
Neve torna-se naturalmente o porta-voz e principal comandante das
mudanças. O primeiro é autoritário e centralizador; o segundo acredita que o
progresso do “animalismo” passa pela união “dos animais de todas as
fazendas”.
Napoleão lembra Stálin e Bola-de-Neve, com a sua proposta de
internacionalizar a revolução, corresponde a Trótsky. Se os papéis são
distribuídos assim, é fácil imaginar para onde caminha o movimento da
bicharada. É claro que a sátira pode ser aplicada, por tabela, a qualquer
revolução. Seu impacto mantém-se, 55 anos depois, graças a um didatismo
político que, correndo o risco de ser simplista, é compreensível até pelo mais
despolitizado dos cidadãos.
Frases como a célebre “todos os animais são iguais, mas alguns são mais
iguais do que os outros”, usada até hoje em diversos contextos, iluminam o
livro e são transportadas também para o filme, cujo roteiro acrescenta um
final esperançoso à ironia cortante com que Orwell encerra o original. Pena
que o tradutor da cópia lançada do Brasil não tenha usado como referência a
edição em português de A Revolução dos Bichos. Bola-de-Neve, por
exemplo, fica Snowball – e azar de quem não compreende inglês.
A Revolução dos Bichos (Animal Farm) — Inglaterra, 1999, 91 min. Direção: John Stephenson. Roteiro: Alan Janes e Martyn Burke, baseado no romance de George Orwell. Com Pete
Postlethwaite, Alan Stanford, Caroline Gray, Joe Taylor, Jimmy Keogh e as vozes de Kelsey Grammer, Ian Holm, Julia Louis-Dreyfus, Julia Ormond, Pete Postlethwaite, Paul Scofield, Patrick
Stewart e Peter Ustinov. Distribuição em DVD: Flashstar/Focus.

(Publicado em Educação 38, junho de 2000)


As Ruas de Casablanca
Ali Zaoua
França/Marrocos, 2000
Direção: Nabil Ayouch

Casablanca, a maior cidade do Marrocos, hoje com cerca de três milhões


de habitantes, ocupa lugar privilegiado na mitologia cinematográfica. Foi lá
que o durão Rick Blaine (Humphrey Bogart) reencontrou sua ex-amante, Ilsa
(Ingrid Bergman), em Casablanca (1942), um dos maiores ícones de
Hollywood. No filme, ambientado durante a II Guerra Mundial, a cidade era
tratada como um lugar “fácil para entrar, mas muito difícil para sair”. Seis
décadas depois, é outra metrópole, nada romântica e desprovida de mistério,
que surge na produção franco-marroquina As Ruas de Casablanca.
O Norte do Marrocos fica a meros 15 quilômetros da costa espanhola,
mas os níveis socioeconômicos do país têm mais a ver com o mundo árabe e
a África do que com a Europa. Os problemas de seus grandes centros urbanos
são idênticos aos de outras nações em desenvolvimento. Um deles é a
“infância perdida”: sucessivas gerações de crianças que começam a trabalhar
cedo, ou vivem sem teto, tornando-se delinquentes. As Ruas de Casablanca
recrutou dezenas dessas crianças para atuar como meninos de rua em uma
história semidocumental inspirada na trajetória de algumas delas.
No início do filme, assistimos ao depoimento de Ali (Abdelhak Zhayra),
que fala para a câmera como se desse uma entrevista a um repórter de TV.
Ele conta que tem 15 anos e que saiu de casa porque a mãe queria vender
seus olhos. Sonha tornar-se marinheiro e planeja embarcar em um navio
rumo a uma “ilha de dois sóis”. Seus companheiros de rua, na zona portuária
de Casablanca, são Kwita (Mounim Kbab), Omar (Mustapha Hansali) e
Boubker (Hicham Moussoune). Os quatro formam uma dissidência da
gangue infantil liderada por um adulto, Dib (Said Taghmaoui), contra a qual
precisam agora lutar.
A descrição do cotidiano desses garotos mistura brutalidade com poesia.
Ao mesmo tempo que mergulhamos na violência física e psicológica a que
são submetidos, acompanhamos também seus sonhos, traduzidos em
desenhos. Durante quase todo o filme, Ali é apenas a lembrança que move
Kwita, Omar e Boubker. Para homenagear o amigo e realizar-lhe o último
desejo, eles contam também com a ajuda de um pescador (Mohamed Majd).
A mãe de Ali, uma prostituta (Amal Ayouch), acaba se aproximando deles.
As Ruas de Casablanca filia-se a uma tradição que inclui clássicos como
Os Esquecidos (1950), realizado no México pelo espanhol Luís Buñuel, e Os
Incompreendidos (1959), longa autobiográfico do francês François Truffaut.
Pixote – A Lei do Mais Fraco (1980), de Hector Babenco, ambientado em
São Paulo, e Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, rodado no Rio
de Janeiro, são exemplos de como o cinema brasileiro também explorou o
mesmo território. Ao apontar os mecanismos sociais que levam à perda da
infância, esses filmes denunciam o mundo adulto pelo seu traço mais
perverso: o abandono de suas crianças à própria sorte.
As Ruas de Casablanca (Ali Zaoua) — França/Marrocos, 2000, 90 min. Direção: Nabil Ayouch. Roteiro: Nabil Ayouch e Nathalie Saugeon. Com Mounim Kbab, Mustapha Hansali, Hicham
Moussoune, Abdelhak Zhayra, Said Taghmaoui, Amal Ayouch, Mohamed Majd, Hicham Ibrahimi, Nadia Ould Hajjaj. Distribuição em DVD: Europa.

(Publicado em Educação 76, agosto de 2003)


São Bernardo
Brasil, 1972
Direção: Leon Hirszman

Entre os principais representantes da prosa moderna na literatura


brasileira, Graciliano Ramos (1892-1953) foi o que teve mais sorte no
cinema, com ao menos três longas notáveis baseados em sua obra: Vidas
Secas (1964) e Memórias do Cárcere (1984), ambos de Nelson Pereira dos
Santos, e S. Bernardo (1972), de Leon Hirszman (1937-1987), restaurado no
segundo pacote de recuperação da obra integral do cineasta (o primeiro inclui
Eles não Usam Black-tie, de 1981).
Escrito entre 1932 e 1934, em Maceió (AL), o segundo romance de
Graciliano – que, em sua recém-publicada 87ª edição (Record), recupera as
últimas correções do escritor, feitas para a 3ª. edição, em projeto
supervisionado pelo professor Wander Melo Miranda, da Universidade
Federal de Minas Gerais – oferece várias possibilidades de análise. Uma das
mais atuais conduz à exposição dos mecanismos brutais de transformação do
homem em mercadoria pelo capitalismo de feição rural, baseado na
propriedade e exploração da terra.
Hirszman optou por uma adaptação que se mantém muito próxima do
texto original, erguido a partir do relato em primeira pessoa do fazendeiro
Paulo Honório, 50 anos. Othon Bastos interpreta o personagem e, embora não
corresponda fisicamente à descrição que Paulo Honório faz de si mesmo no
romance, encontra um modo feliz de representar alguém de inteligência
aguda e, ao mesmo tempo, extrema rudeza no trato com os outros – incluindo
a mulher, a professora Madalena (Isabel Ribeiro) – e na maneira de olhar para
as engrenagens da sociedade.
A grandeza de S. Bernardo não reside, contudo, apenas na tentativa de
traduzir a prosa original de Graciliano em imagens e sons, expressa também
pelo rigor formal de Hirszman, que estruturou o filme em longos planos
abertos e com poucos movimentos de câmera. É do Brasil dos anos 1970, sob
regime militar, que também se fala, na mesma linha do que Joaquim Pedro de
Andrade (1932-1988) fez, usando a Inconfidência Mineira como pretexto, em
Os Inconfidentes (1972), outro clássico brasileiro no qual o passado conversa
com o presente.
São Bernardo — Brasil, 1972, 114 min. Direção e roteiro: Leon Hirszman, baseado no romance de Graciliano Ramos. Com Othon Bastos, Isabel Ribeiro, Luiz Carlos Braga, Vanda Lacerda,
Mário Lago. Distribuição em DVD: Videofilmes.
(Publicado em Educação 142, fevereiro de 2009)
São Paulo Sociedade Anônima
Brasil, 1965
Direção: Luiz Sergio Person

Não há enquete a respeito dos principais filmes já realizados pelo


cinema paulista que não inclua no topo da lista São Paulo Sociedade
Anônima (1965). No fundo, a abordagem regional é injusta: o longa-
metragem de estreia do cineasta e dramaturgo Luiz Sergio Person (1936-
1976), morto precocemente em um acidente de carro, é um dos marcos do
cinema brasileiro pela sua compreensão do que estava em jogo no processo
de industrialização do Sudeste, na virada dos anos 1950 para os 1960.
Um clássico, portanto, e que não tem nada de solene (no mau sentido do
termo). Ao contrário: quatro décadas depois, mantém ainda um vigor
narrativo contemporâneo e uma impressionante capacidade de antever a
cidade (e o país) que viriam pela frente. A gênese da classe média brasileira,
essa abstração que costuma ser invocada para explicar fenômenos sociais e
políticos nascidos com o regime civil-militar de 1964, é apresentada aqui sem
rancor ou didatismo afetado.
No período desenvolvimentista em que as montadoras de veículos se
instalaram na região do ABC paulista, que vai de 1957 a 1961, um pequeno
empresário no ramo de autopeças (Otello Zeloni) convida para ser seu sócio
— convite tentador, uma vez que o negócio promete — um jovem, Carlos
(Walmor Chagas), que havia se transferido do Rio de Janeiro para São Paulo
em busca de novos horizontes, profissionais e pessoais. Na capital paulista,
ele se envolve também com uma “moça de família” moldada para o
casamento (Eva Wilma).
De um lado, corre o sonho de progresso econômico e ascensão social.
De outro, o pesadelo representado por uma sociedade cujos valores se
alteram rapidamente, num processo de brutalização que vai deixando vítimas
pelo caminho, e ao qual, de qualquer maneira, nem mesmo os poucos
vencedores sobrevivem sem feridas. Sociedade de gente anônima, repleta de
tormentas, e musicada por um tema circular e angustiante de Claudio
Petraglia.
São Paulo Sociedade Anônima — Brasil, 1965, 111 min. Direção e roteiro: Luiz Sergio Person. Com Walmor Chagas, Eva Wilma, Otello Zeloni, Darlene Glória, Ana Esmeralda. Distribuição
em DVD: Videofilmes.

(Publicado em Educação 117, janeiro de 2007)


Ser e Ter
Être et Avoir
França, 2002
Direção: Nicolas Philibert

Um professor e seus alunos, acompanhados durante um semestre letivo


pela equipe de filmagem. Dentro da sala de aula, na maior parte do tempo,
mas também em atividades externas e nas casas de suas famílias. Nada além
de ações cotidianas. Ao ser transportada para o cinema, no entanto, essa
banalidade adquiriu magia. É o que ajuda a explicar o sucesso extraordinário
do documentário Ser e Ter.
Entre os franceses, o filme teve bilheteria de superprodução. Nos outros
países em que foi exibido, sempre despertou simpatia e provocou debates. E,
quando já era um êxito internacional, voltou a ocupar espaço na imprensa
porque seu professor-protagonista, Georges Lopez, processou os produtores,
reivindicando a atribuição de coautoria e a decorrente participação nos lucros.
Em toda a França, há escolas “classe unique”, de classe única, reunindo
as crianças da vila que estudam do maternal até a última série do ensino
fundamental, sempre em torno de um(a) só professor(a). A do filme tem 13
crianças, sob o acompanhamento de Lopez. O relacionamento que se desenha
entre eles é muito particular: ao mesmo tempo que todos se voltam para a
experiência coletiva criada no dia a dia, lidam também com a abertura para o
mundo.
O diretor Nicolas Philibert entrou em contato com 300 dessas escolas e
visitou cerca de 100 antes de escolher a definitiva. Queria uma área
montanhosa em que as condições climáticas fossem difíceis. Queria também
um número de alunos por volta de uma dúzia para que o público pudesse
identificá-los. Sabia, contudo, que o filme dependeria muito do professor, e
não tinha pré-requisitos para isso.
Lopez, com 35 anos de experiência e a um ano e meio da aposentadoria,
espantou-se ao saber que queriam fazer um filme sobre algo tão frágil e
pouco espetacular. Philibert acreditava que uma criança aprendendo a subtrair
poderia dar origem a um épico. Lopez contou-lhe então que precisava adaptar
seus métodos incessantemente, e que seria melhor optar por alguém com
abordagem mais moderna, pois ele era um tanto “clássico”.
A preocupação de Philibert não era saber como o professor ensinava
matemática. Ele não queria fazer um documentário convencional, com uma
abordagem demonstrativa e didática. Preferiu contar uma história, provocar
emoção e ficar próximo dos personagens nessa aventura e dos seus
sentimentos enquanto aprendem e crescem. Conseguiu.
Ser e Ter (Être et Avoir) — França, 2002, 104 min. Direção: Nicolas Philibert. Distribuição em DVD: Videofilmes.

(Publicado em Educação 110, junho de 2006)


Shrek
Shrek
EUA, 2001
Direção: Andrew Adamson e Vicky Jenson

O nome é feio, mas corresponde à personalidade do dono. Shrek é um


ogro verde e antipático, de hábitos repugnantes, que vive como ermitão no
meio de uma floresta. Detesta companhia – gente, bicho, qualquer coisa. Sua
vida pacata sofre um abalo quando dezenas de visitas resolvem acampar em
sua propriedade. São personagens de contos de fadas que viraram “sem-teto”,
entregues por seus donos às autoridades do reino em troca de recompensa
barata. E o que Shrek tem a ver com isso? Nada. Mas caberá a ele resolver a
situação, salvando uma princesa das garras de um dragão e permitindo que
ela se case com um príncipe – ainda que ninguém aí (herói, princesa, dragão
e príncipe) vá corresponder ao que se costuma esperar deles.
A trama insólita pertence ao desenho animado mais politicamente
incorreto já produzido em um grande estúdio norte-americano. Seu mentor é
Jeffrey Katzenberg, ex-executivo da Disney que se tornou sócio de Steven
Spielberg na DreamWorks SKG. Especialista em animação, Katzenberg
comandou a realização de FormiguinhaZ (1998) e O Caminho para El
Dorado (2000), os primeiros desenhos da produtora. Sua maior aposta, no
entanto, foi Shrek. Primeiro, exigia-se que o filme tivesse padrão de
qualidade superior às experiências anteriores com animação digital (o melhor
exemplo, até então, era Toy Story). E, além disso, seria bem-vinda, na disputa
por mercado, uma estocada mais direta na Disney, a principal concorrente.
Ambos os objetivos foram atingidos. Feito em computadores por artistas
gráficos que trabalharam durante três anos, Shrek tem um aspecto visual
quase impecável, muito superior à movimentação tacanha de videogames e
produtos similares gerados na chocadeira da informática. E, por causa de sua
resposta agressiva ao bom-mocismo da Disney, ficou mais “antenado” com o
humor de crianças e jovens já habituadas, sobretudo na TV, a paródias de
tudo e de todos. Como a cultura pop parece levar o mundo cada vez menos a
sério, fazendo graça até de tragédias como os atentados de 11 de setembro, o
cenário era favorável ao surgimento de uma fábula “torta”, que ridiculariza
personagens “bonzinhos” e adota como heróis figuras de gosto duvidoso.
Essa inversão de expectativas serve para que a estrutura clássica dos
contos de fadas submeta-se a uma divertida releitura. Chavões e preconceitos,
por exemplo, são ressaltados pela ironia dirigida a obras clássicas como
Branca de Neve e os Sete Anões, A Bela Adormecida, Pinóquio e O Mágico
de Oz. A falta de cerimônia com tais monumentos do imaginário infantil faz
de Shrek um filme subversivo? Na aparência, e não na essência. Seu
andamento, ainda que insólito, obedece a algumas das regras fundamentais da
fabulação. A familiaridade ajuda a aumentar o apelo, em especial para o
público adulto. Rimos de aspectos ridículos daquele universo porque somos
capazes de reconhecê-lo como algo muito caro à nossa formação.
Shrek (Shrek) — EUA, 2001, 89 min. Direção: Andrew Adamson e Vicky Jenson. Roteiro: Ted Elliott, Terry Rossio, Joe Stillman e Roger Schulman, baseado em personagem criado por William
Steig. Com as vozes de Mike Myers, Eddie Murphy, Cameron Diaz, John Lithgow, Tommy Karlsen e Vincent Cassel. Distribuição em DVD: Universal.

(Publicado em Educação 57, janeiro de 2002)


Sob a Névoa da Guerra
The Fog of War
EUA, 2003
Direção: Errol Morris

A intensa cobertura da recente eleição presidencial norte-americana pela


imprensa mundial consolidou a ideia de que o nome do ocupante da Casa
Branca e suas deliberações são tema de interesse não só dos EUA, mas de
todos os países que, direta ou indiretamente, mantêm relações (ou, por
motivos políticos, deixam de mantê-las) com o que alguns analistas
internacionais chamam, talvez com algum exagero, de o “novo império”. Ou
seja: todo o planeta.
No Brasil, os meios de comunicação trataram a disputa entre o
presidente republicano George W. Bush e o senador democrata John Kerry
como se integrasse o calendário eleitoral nacional. Hoje, é provável que a
biografia de ambos seja mais conhecida do que a de muitos políticos
brasileiros ocupando cargos de expressão. A essa difusão de informações
nem sempre corresponde, no entanto, verdadeira compreensão sobre o papel
exercido pelos EUA no campo da geopolítica e sobre os mecanismos
particulares de funcionamento da sociedade (e da democracia representativa)
norte-americana.
Os bastidores do poder constituem, em especial, terreno ainda nebuloso.
Quais os critérios de ação da Casa Branca? Quais as forças internas que se
enfrentam quando o governo examina a hipótese de intervir militarmente em
outro país, o que se tornou frequente nas últimas décadas? Como são
encaradas as perdas humanas? Sob a Névoa da Guerra lança algumas luzes
sobre o que se diz e faz, nesses momentos tensos e delicados, nos gabinetes
da Presidência e do Pentágono, sede da Secretaria de Defesa dos EUA.
O documentário de Errol Morris, premiado neste ano com o Oscar de
melhor longa-metragem na categoria, nasceu de uma série de entrevistas
concedidas por Robert S. McNamara, secretário de Defesa dos EUA de 1961
a 1968, para o programa First Person, da rede pública de TV PBS. Ao avaliar
o material, Morris julgou que renderia um estudo mais aprofundado. Optou
então por usar o depoimento de McNamara como estrutura para uma espécie
de seminário, com 11 “lições” apresentadas, em tom direto e professoral, pelo
ex-presidente da Ford (o primeiro a exercer o cargo que não pertencia à
família do fundador Henry Ford) convocado pelo presidente John Kenneedy
para comandar a Secretaria de Defesa.
Com a morte de Kennedy, o presidente Lyndon Johnson o manteve no
cargo. No governo, McNamara foi agente e testemunha de dois episódios-
chave na história recente dos EUA, a tentativa de invasão de Cuba e a guerra
do Vietnã. Seu depoimento inclui também a experiência na II Guerra, na
equipe do general Curtis LeMay, que comandou o bombardeio a alvos civis
em 67 cidades japonesas, com saldo de um milhão de mortes. Aos 85 anos,
ele não se diz arrependido de nada, mas algumas de suas frases, expressões e
raciocínios dissecam o funcionamento das entranhas do poder no país que
assumiu o papel de polícia do mundo.
Sob a Névoa da Guerra (The Fog of War) — EUA, 2003, 107 min. Direção e roteiro: Errol Morris. Distribuição em DVD: Sony.

(Publicado em Educação 92, dezembro de 2004)


Somos tão Jovens
Brasil, 2013
Direção: Antonio Carlos da Fontoura

Faroeste Caboclo
Brasil, 2013
Direção: René Sampaio

Lançados nos cinemas brasileiros em um espaço de poucas semanas, em


maio, Somos tão Jovens e Faroeste Caboclo tiveram público conjunto
superior a três milhões de espectadores (com ligeira vantagem para o
primeiro). Agora, chegam também juntos ao mercado de vídeo doméstico. Os
produtores (diferentes) temiam que essa coincidência involuntária pudesse
prejudicar os dois filmes, mas ocorreu o contrário: um despertou interesse
para o outro, e ambos contribuíram para trazer de volta aos holofotes da
mídia o cantor e compositor Renato Manfredini Júnior, o Renato Russo
(1960-1996).
De volta? Renato parece jamais ter saído de cena — e o êxito desses
filmes, sobretudo entre espectadores que mal o acompanharam em vida,
demonstra que seus versos e suas ideias sobre o poder jovem dos anos 1980 e
1990 continuam a fazer eco entre os jovens dos anos 2000. É um fenômeno
semelhante ao que ocorreu com Agenor Miranda Araújo Neto, o Cazuza
(1958-1990), hoje também objeto de culto, inclusive entre pessoas que
nasceram depois da sua morte. Entender por que esses dois artistas mantêm
tamanho prestígio, como ícones da cultura pop brasileira, ajuda a entender
valores caros à "geração Facebook".
Ainda que Russo seja o denominador comum a Somos tão Jovens e
Faroeste Caboclo, ambos evocam a sua memória de maneiras bem distintas.
O primeiro faz uma crônica do período de formação do cantor e compositor
(interpretado por Thiago Mendonça). Por tabela, recria também o cenário pop
de Brasília nos anos 1970 e 1980. Já o segundo se inspira em uma de suas
mais célebres canções para imaginar uma história ficcional que, no entanto,
se ambienta na capital federal durante o mesmo período. Boa oportunidade,
portanto, para falar sobre os dois filmes em aulas de história: ao fundo, e às
vezes até em primeiro plano, o que vemos também é o fim do regime civil-
militar de 1964.
Nascido no Rio de Janeiro, Renato Russo se mudou com a família para
Brasília em 1973. Ali, participou da criação da banda Aborto Elétrico, ao
lado dos irmãos Felipe e Flávio Lemos (que mais tarde formariam, com
Dinho Ouro-Preto e Loro Jones, a banda Capital Inicial), e de André
Pretorius. Com a dissolução do grupo, Renato fez por algum tempo carreira
solo, abandonada para a criação da banda Legião Urbana ao lado de Marcelo
Bonfá, Eduardo Paraná e Paulo Guimarães. Os dois últimos saíram logo no
início. Mais tarde, a formação clássica ganhou a presença de Dado Villa-
Lobos.
Composta em 1979, Faroeste Caboclo foi gravada pela Legião Urbana
no álbum Que País É Este 1978/1987 (1987). Tem pouco mais de nove
minutos de duração, com 168 versos. Seu protagonista é o personagem
ficcional João de Santo Cristo, um nordestino que vai parar acidentalmente
em Brasília, onde trabalha como marceneiro. Depois, vira traficante de
drogas e vive uma história de amor com uma "menina linda", Maria Lúcia.
No filme, esses papéis são interpretados por Fabrício Boliveira e Isis
Valverde.
Somos tão Jovens — Brasil, 2013, 104 min. Direção: Antonio Carlos da Fontoura. Roteiro: Marcos Bernstein. Com Thiago Mendonça, Laila Zaid, Bruno Torres, Sandra Corveloni, Marcos
Breda. Distribuição em DVD e Blu-ray: Fox.

Faroeste Caboclo — Brasil, 2013, 105 min. Direção: René Sampaio. Roteiro: Victor Atherino e Marcos Bernstein, baseado em canção de Renato Russo. Com Fabrício Boliveira, Isis Valverde,
Felipe Abib, Antonio Calloni, Marcos Paulo. Distribuição em DVD e Blu-ray: Europa.

(Publicado em Educação 196, agosto de 2013)


Tainá – Uma Aventura na Amazônia
Brasil, 2001
Direção: Tânia Lamarca, Sérgio Bloch

Antes, eram Os Trapalhões. Agora, é Xuxa quem estabeleceu uma


“reserva de mercado” no cinema brasileiro, como se o público infantil do país
só tivesse a capacidade de assistir a um filme nacional por ano (ou, na melhor
das hipóteses, por semestre). Qualquer tentativa de furar esse bloqueio ganha
a simpatia automática de todos os que acreditam na pluralidade. Nada contra
a “rainha dos baixinhos”, desde que existam opções a ela. Se Tainá – Uma
Aventura na Amazônia fosse apenas uma alternativa a esse duvidoso reinado,
já mereceria aplausos. Mas, diante de seus méritos, seria injustiça reduzi-lo a
uma espécie de “lado B”: eis um filme de ação que, além de capturar a
atenção das crianças, oferece a pais e professores a oportunidade de
aprofundar temas ecológicos e geopolíticos.
Tainá (Eunice Baía) é uma índia criada às margens do Rio Negro. Seu
nome significa “luz da manhã”. Para proteger a vida na floresta, a menina
especializa-se em sabotar armadilhas de caçadores. Certo dia, salva um
macaco em extinção e torna-se alvo de uma quadrilha contratada por
cientistas estrangeiros para capturar espécies raras que ajudem a criar e
patentear novas fórmulas de vacinas e remédios. Durante sua jornada como
vigia da natureza, Tainá conhece o filho de uma bióloga, Joninho (Caio
Romei), que se junta à índia em defesa da causa ecológica. Por tabela, e sem
que ninguém abra a boca para dizer isso, a dupla luta também pela soberania
brasileira sobre a Amazônia.
Como filme de ação, Tainá é simples e eficiente o bastante para agradar
ao público infantil sem ofender a inteligência do adulto. Para isso, vale-se
principalmente da empatia despertada pelos personagens. Joninho, cidadão
urbano, só veste camisetas com frases e nomes de clubes em inglês. Passa o
tempo jogando videogame no computador, embora tenha à disposição o
maior quintal do mundo, e sonha deixar a mãe na floresta para viver com o
pai na cidade, onde poderia ir ao shopping-center para comer hambúrguer. As
crianças da plateia tendem a identificar-se com seus hábitos e, portanto, a
compartilhar com ele a descoberta do universo a que pertence sua amiga
índia.
O aspecto paradidático da trama está presente quase o tempo todo, mas
sem incomodar quem procura apenas diversão. Diálogos e situações tocam
superficialmente em assuntos que, de acordo com a circunstância em que se
exiba o filme, podem gerar conhecimento e debate. As maiores possibilidades
de aprofundamento giram em torno do cenário, o verdadeiro protagonista da
história. Não se trata apenas de lembrar que, para a imensa maioria da
população brasileira, a Amazônia é uma desconhecida. Ver tanto verde e
tanto bicho, para a geração criada em playgrounds de prédios e acostumada à
vida no asfalto, equivale a uma revelação – a de que o mundo não se esgota
nos corredores dos shopping-centers. Ou na Disneylândia.
Tainá – Uma Aventura na Amazônia — Brasil, 2001, 90 min. Direção: Tânia Lamarca, Sérgio Bloch. Roteiro: Cláudia Levay e Reinaldo Moraes. Com Eunice Baía, Caio Romei, Jairo Mattos,
Branca Camargo, Betty Erthal, Rui Polanah, Luiz Carlos Tourinho, Alexandre Zachia, Luciana Rigueira, Charles Paraventi, Marcos Apolo. Distribuição em DVD: Europa.

(Publicado em Educação 58, fevereiro de 2002)


Tartarugas Podem Voar
Lakposhtha parvaz mikonand
Irã/França/Iraque, 2004
Direção: Bahman Ghobadi

Ninguém Pode Saber


Dare mo shiranai
Japão, 2004
Direção: Hirokazu Kore-eda

Desde que Charles Chaplin e o neorrealismo italiano – entre diversos


outros casos – ensinaram, ainda na primeira metade do século 20, que o uso
de crianças em filmes de ficção ajuda a estabelecer laços muito fortes com o
espectador adulto, a infância conquistou espaço cativo na produção
cinematográfica. Não há temporada sem ao menos meia dúzia de filmes
notáveis sobre o mundo visto da perspectiva de meninos e meninas.
Em muitos casos, eles estão ali para denunciar o descaso adulto em
relação à infância e o desrespeito a convenções internacionais sobre os
direitos de crianças e adolescentes. Dois ótimos exemplos são Tartarugas
Podem Voar, do iraniano Bahman Ghobadi (Tempo de Embebedar Cavalos),
e Ninguém Pode Saber, do japonês Hirokazu Kore-eda (Depois da Vida).
Em Tartarugas, o registro predominante é o realista, mas há também
dolorosa poesia nessa crônica sobre o caos no Curdistão iraquiano, na região
próxima à fronteira com a Turquia, poucas semanas antes da invasão
comandada pelos EUA para derrubar o regime de Saddam Hussein, em 2003.
Tanques são abandonados pelas ruas e minas terrestres continuam armadas.
Um contingente de crianças se arrisca a encontrá-las para vendê-las. O líder
do grupo é um adolescente especializado em instalar antenas parabólicas.
Paradoxalmente, ele é fã dos norte-americanos.
Ninguém Pode Saber se inspira em episódio verídico, por mais absurdo
que pareça. Uma jovem mãe e seu filho supostamente único se mudam para
um pequeno apartamento e se mantêm distantes dos vizinhos. O principal
motivo, como se descobrirá, é que a família reúne outras crianças, a certa
altura abandonadas a sua própria sorte. Acompanhar o seu martírio não é
experiência das mais fáceis, mas oferece tremenda recompensa, estética e
ética.
Tartarugas Podem Voar (Lakposhtha parvaz mikonand) — Irã/França/Iraque, 2004, 95 min. Direção e roteiro: Bahman Ghobadi. Com Soran Ebrahim, Avaz Latif, Saddam Hossein Geysal.
Distribuição em DVD: Imovision.

Ninguém Pode Saber (Dare mo shiranai) — Japão, 2004, 141 min. Direção e roteiro: Hirokazu Kore-eda. Com Yûya Yagira, Ayu Kitaura, Hiei Kimura. Distribuição em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 123, julho 2007)


Terra Estrangeira
Brasil, 1995
Direção: Walter Salles e Daniela Thomas

Exílios
Exils
França/Japão, 2004
Direção: Tony Gatlif

Nas últimas duas décadas, a movimentação de populações pelo planeta


se intensificou. Parte-se do Hemisfério Sul para os países mais ricos do Norte
em busca de melhoria nas condições de vida; muitos dos que abandonam suas
origens com essa pretensão acabam por retornar, às vezes com o objetivo
cumprido – mas, em geral, traumatizados pela experiência.
Os fluxos também se relacionam a guerras civis, governos autoritários e
tragédias naturais, em especial na Ásia. Não espanta que o cinema, arte do
movimento, venha se dedicando ao tema, em suas inúmeras variações. Coisas
Belas e Sujas, A Caminho de Kandahar, Neste Mundo, Tartarugas Podem
Voar e Free Zone são exemplos recentes e bem-sucedidos ao narrar, em
forma de ficção, argumentos que mantêm um pé (em alguns casos, os dois)
no registro documental.
O brasileiro Terra Estrangeira (1995) e o francês Exílios (2004)
permitem debater o tema com base não apenas em chaves sociológicas que se
aplicam a multidões, mas em abordagens mais introspectivas de personagens
que vão e vêm porque há algo dentro deles – dado que, em parte, é cultural,
portanto também social – a lhes exigir movimento, espécie de imperativo
existencial.
Em Terra Estrangeira, dirigido por Walter Salles (Central do Brasil,
Diários de Motocicleta) e Daniela Thomas, acompanhamos brasileiros e
africanos em Portugal. A narrativa se concentra em um jovem (Fernando
Alves Pinto) que sai do Brasil porque não encontra mais motivo para ficar
aqui, como tantos outros de sua geração na primeira metade da década de
1990. Vítima da própria ingenuidade, ele desembarca em Lisboa para um
trabalho suspeito e conhece uma jovem que está por lá há algum tempo
(Fernanda Torres).
É o acaso que forma a dupla, diferentemente de Exílios, em que o casal
(Romain Duris e Lubna Azabal) vive junto no início do filme, em Paris. Ele
propõe que façam uma viagem como mochileiros até a Argélia, para rever o
local de onde seus antepassados emigraram para a França. Ela aceita o
convite para a aventura e os dois caem na estrada, passando no caminho pela
Espanha e por Marrocos. O diretor e roteirista Tony Gatlif, francês de origem
argelina e cigana, compôs também a trilha sonora dessa vibrante busca pela
identidade – outro tema recorrente na produção contemporânea.
Terra Estrangeira — Brasil, 1995, 100 min. Direção: Walter Salles e Daniela Thomas. Roteiro: . Com Fernando Alves Pinto, Fernanda Torres, Alexandre Borges, Laura Cardoso. Distribuição
em DVD: Videofilmes.

Exílios (Exils) — França/Japão, 2004, 104 min. Direção e roteiro: Tony Gatlif. Com Romain Duris, Lubna Azabal, Zouhir Gacem. Distribuição em DVD: California.

(Publicado em Educação 106, fevereiro de 2006)


Terra Vermelha
Birdwatchers - La Terra degli Uomini Rossi
Brasil/Itália, 2008
Direção: Marco Bechis

Embora seus filmes anteriores — Garage Olimpo (1999) e Filhos


(2001), ambos sobre o regime militar argentino — já houvessem chamado a
atenção para o seu trabalho, bastaria Terra Vermelha (2008) para atestar o
interesse do diretor e roteirista italiano Marco Bechis — que, nascido no
Chile, viveu também no Brasil, na Argentina, nos EUA e na França — por
temas espinhosos do nosso tempo.
A tensão sociocultural de que trata o filme já está anunciada na primeira
sequência, em que turistas estrangeiros excursionam pelo Mato Grosso do Sul
e encontram um grupo de índios, imóveis à margem do rio, como se fossem
modelos de uma tela pintada no século 16. Eles interpretam “selvagens
românticos”, em comunhão com a natureza e sem vínculos aparentes com a
sociedade de consumo.
Dessa forma, parecem corresponder a uma ideia, ainda muito difundida,
de como seriam as populações indígenas no século 21 e o que oferecer a elas.
Não demora muito, contudo, para que a cena inicial seja devidamente
explicada, de acordo com o ambíguo e conflituoso Brasil de hoje. São todos
vítimas históricas dos brancos colonizadores, mas tratá-los assim impede que
compreendamos, sem paternalismo, quem se tornaram. O filme prefere
conduzir o espectador a outro debate, sobre a crise de valores que atinge todo
o país.
Bechis recorreu a Guarani-Kaiowás da própria região para formar o
elenco. O roteiro, coescrito por Luiz Bolognesi (Bicho de Sete Cabeças,
Chega de Saudade), trabalha diversos núcleos paralelos. Ainda que a disputa
por terras entre índios e um fazendeiro (Leonardo Medeiros) faça o filme
caminhar, há uma série de outros conflitos, principalmente entre os próprios
índios, enriquecendo uma discussão atualíssima sobre o Brasil, e que talvez
só um diretor estrangeiro tivesse a capacidade de promover.
Terra Vermelha (Birdwatchers - La Terra degli Uomini Rossi) — Brasil/Itália, 2008, 108 min. Direção: Marco Bechis. Roteiro: Luiz Bolognesi e Marco Bechis, com a colaboração de Lara
Fremder. Com Claudio Santamaria, Alicéia Batista Cabreira, Chiara Caselli, Matheus Nachtergaele, Leonardo Medeiros. Distribuição em DVD: Paris.

(Publicado em Educação 145, maio de 2009)


Tiradentes
Brasil, 1999
Direção: Oswaldo Caldeira

“Meu nome é Joaquim José da Silva Xavier, sou brasileiro e luto pela
felicidade”, grita o maior herói de nossa história, sozinho no cárcere, em
Tiradentes. A cena, de impacto teatral, aparece perto do fim, como se o
diretor e roteirista Oswaldo Caldeira quisesse sublinhar qual foi a sua
principal intenção ao longo de todo o filme: investigar o cidadão de carne e
osso que se esconde por trás do mito.
Caldeira tomou como principal referência os dez volumes dos Autos da
Devassa da Inconfidência Mineira, que transcrevem os depoimentos colhidos
nas investigações da conjuração. Ficou tão impressionado com o resultado da
pesquisa que a desdobrou em dois projetos: uma tese de doutorado, A
Imagem de Tiradentes – Em Busca do Rosto Perdido, e um roteiro de longa-
metragem.
A tentativa quase antropológica de reconstituir o cotidiano de Vila Rica
no final do século XVIII é a primeira das várias diferenças de seu filme em
relação a Os Inconfidentes (1973), de Joaquim Pedro de Andrade, que faz
uma leitura estritamente política e intelectualizada da Inconfidência Mineira.
Aqui, os personagens que aparecem em livros escolares são vistos em um
bordel, fazendo piquenique ou jogando gamão.
O alferes Joaquim (Humberto Martins) leva bronca da mulher que
abandonou (Júlia Lemmertz), quer ser promovido a capitão para ganhar um
salário maior e tem pesadelos com mulheres nuas. Um de seus principais
traços, aliás, é a popularidade com o sexo oposto. Enquanto leva essa vida
comum, encanta-se pelos ideais da Revolução Francesa e discute com os
amigos como fazer um levante contra os portugueses.
Fazem parte de seu círculo, por exemplo, o poeta Tomás Gonzaga
(Eduardo Galvão) e sua noiva Marília (Giulia Gam). É do coronel Freire de
Andrade (Cláudio Mamberti), no entanto, a frase mais apropriada para
descrever o carismático Tiradentes recriado por Caldeira: “Ele pode ser
louco, mas que convence a gente, convence”. O próprio Joaquim também se
revela, falando a pessoas humildes: “Eu lhes darei dentes, mas não se
esqueçam de mim na hora de morder”.
Cabe a Paulo Autran, em uma aparição de poucos minutos, levar o filme
a seu melhor momento, no papel do padre que descreve a Tiradentes como
será realizada a cerimônia pública de enforcamento. É uma seqüência de
sonho, inserida em momento oportuno, sem destoar do registro
predominante, o realista. Seria um pouco demais exigir que Caldeira fosse
capaz de tratar do homem sem tocar no mito, ou nos elementos que ajudaram
a construí-lo.
O cineasta coordenou também, como parte do projeto, a publicação de
dois livros que funcionam como um complemento quase obrigatório:
Tiradentes: Roteiro Cinematográfico, Comentários e Fontes de Pesquisa
(Riofilme), e Tiradentes: Um Filme de Oswaldo Caldeira (Fundação
Universitária José Bonifácio), que reúne entrevistas, depoimentos e ensaios.
Tiradentes — Brasil, 1999, 123 min. Direção e roteiro: Oswaldo Caldeira. Com Humberto Martins, Júlia Lemmertz, Giulia Gam, Eduardo Galvão, Adriana Esteves, Marco Ricca, Janaína Diniz
Guerra, Cláudio Cavalcanti, Rodolfo Bottino, Cláudio Mamberti, Antônio Gonzales, Cláudio Corrêa e Castro, Carlos Versiani, Emiliano Queiróz, Nelson Dantas, Paulo Autran. Distribuição em
DVD: Original.

(Publicado em Educação 42, outubro de 2000)


Todas as Coisas São Belas
Lust Och Fägring Stor
Dinamarca/Suécia, 1995
Direção: Bo Widerberg

Stig Santesson e Viola Gruter estão apaixonados, perdidamente


apaixonados. Mas existem alguns problemas. Stig tem 14 anos e Viola, 37.
Stig é aluno de Viola – que, por sua vez, tem marido (atenuante: é um
caixeiro viajante alcoólatra, obcecado por Beethoven e Mahler). Ambos são
de Estocolmo, mas vivem na provinciana Malmö, na Suécia, em 1943, auge
da II Guerra Mundial. Apesar de tanta adversidade, o filme se chama Todas
as Coisas São Belas – o título original é um trecho de uma tradicional canção
sueca interpretada pelos estudantes da trama no final do ano letivo. A tal
beleza talvez escape aos personagens, mas certamente não ao espectador.
Análise delicada dos perigos de um relacionamento amoroso cujos
protagonistas são aluno e professor, o filme é também um ótimo exemplo de
“obra de formação”, ao centrar as atenções no rito de passagem
experimentado por Stig.
O personagem é interpretado por Johan Widerberg, à época com 17
anos, filho do diretor Bo Widerberg – bem menos conhecido por aqui do que
seu conterrâneo Ingmar Bergman, mas, nos países nórdicos, dono de prestígio
idêntico. Basta dizer que seu segundo longa-metragem, Kvarteret Korpen
(1963), foi eleito em 1995, por uma revista escandinava, o melhor filme
sueco de toda a história. Widerberg filmou pouco, 12 títulos em 35 anos de
carreira, e morreu em 1º. de maio de 1997, pouco antes de completar 67 anos.
A presença de seu filho Johan em Todas as Coisas São Belas reforça o
caráter involuntário de testamento da obra, que o diretor admitiu ser
parcialmente autobiográfica.
“É preciso notar que, naquela época, a relação entre Stig e Viola era
considerada criminosa”, disse Widerberg durante o lançamento internacional
do filme, que recebeu o prêmio especial do júri no Festival de Berlim e foi
indicado ao Oscar de melhor produção estrangeira junto com o brasileiro O
Quatrilho (1995). “Stig está numa posição de dependência em relação a
Viola. Ela arrisca-se a perder o emprego, se forem descobertos. Quem instiga
o relacionamento e qual a razão para isso, não sabemos.” Widerberg também
viveu a adolescência em Malmö e tinha quase a mesma idade de Stig quando
passou pela terceira série da junior school sueca – período de quatro anos
posterior ao ciclo básico de seis anos. O diretor lembrava que a divisão de
adolescentes em classes masculinas e femininas contribuía para que todos só
pensassem “naquilo”.
A descoberta da sexualidade não é apenas pano de fundo para o romance
entre Stig e Viola, nascido durante uma visita – premeditada pela professora,
diga-se – à reservada sala de mapas da escola. Está presente também nas
pequenas tramas paralelas da história, como a da vizinha de Stig, determinada
a perder a virgindade com ele, e a do garoto que planeja comprar uma caixa
com mil camisinhas para aproveitar o preço, estimando o uso de três por dia
(frequência média de relações sexuais de um homem, acredita ele). Na
verdade, o despertar da sexualidade apresenta-se, desde o início, como tema
preferencial do filme. Trechos de Sobre o Acasalamento, livro de Carolus
Linnaeus, seguem-se aos créditos iniciais, informando que “a descarga de
sêmen começa geralmente aos 14 anos”, época em que “os pelos ao redor do
membro começam a nascer” e “a voz começa a mudar”. “Os sexos são
modificados pela natureza para facilitar o acasalamento” pois, antes, as
diferenças entre ambos “quase não são notadas”.
É por aí que Todas as Coisas São Belas caminha alguns passos além de
outros filmes também voltados ao tabu dos relacionamentos entre alunos e
mestres. O filme de Widerberg trata com mais sutileza e profundidade a
beleza – e também a dor – de experimentar o amor na adolescência.
Todas as Coisas São Belas (Lust Och Fägring Stor) — Dinamarca/Suécia, 1995, 130 min. Direção e roteiro: Bo Widerberg. Com Johan Widerberg, Marika Lagercrantz, Tomas von Brömssen.
Distribuição em DVD: Lume.

(Publicado em Educação 5, setembro de 1997)


Três é Demais
Rushmore
EUA, 1998
Direção: Wes Anderson

Títulos infelizes têm a capacidade de afastar quem poderia se interessar


pelo filme, mas julgou que fosse outra coisa, e de desagradar os que são
enganados por eles. Três é Demais pertence a essa turma. A versão em
português lhe empresta um ar de seriado norte-americano de TV, algo
romântico e juvenil. Não chega a ser propaganda enganosa, mas se aproxima.
É bem verdade que o título original também não ajuda a revelar do que se
trata: Rushmore é o nome tanto da escola em torno da qual transcorre a ação
quanto do monte em que foram esculpidos em tamanho gigante os rostos de
quatro presidentes dos EUA, em Dakota do Sul. E daí?
O diretor e corroteirista Wes Anderson diz que buscava um nome bem
característico para uma história tipicamente norte-americana. Formado em
filosofia pela Universidade do Texas, ele só havia feito antes um filme, a
comédia Pura Adrenalina (1996), sobre jovens fugitivos. Três é Demais o
tornou uma das estrelas do cinema independente dos EUA e valeu a Bill
Murray (Os Caça-Fantasmas, Feitiço do Tempo) o prêmio de melhor ator
coadjuvante de 1998 da Associação Nacional de Comédia dos EUA e de três
círculos de críticos americanos (Nova York, Los Angeles e da sociedade
nacional), além do Independent Spirit, o “Oscar” dos independentes
(concedido também a Anderson como melhor diretor).
Murray não é, porém, o único destaque do elenco. Todos os elogios
devem ser repartidos com o estreante Jason Schwartzman, filho da atriz Talia
Shire (a filha de Marlon Brando em O Poderoso Chefão) e sobrinho do
cineasta Francis Coppola. Ele interpreta Max Fischer, 15 anos, aluno do 10º
“grade”, o equivalente ao 2º ano do ensino médio, na escola particular
Rushmore. Na sala de aula, seu desempenho é medíocre. Fora dali, no
entanto, ele é o rei do pedaço: lança e coordena campanhas, funda e preside
associações de toda espécie, escreve e dirige as produções teatrais da escola.
Graças à sua obsessão por atividades extracurriculares, ganha a bolsa de
estudos que lhe permite estar ali. Filho de um pacato barbeiro (Seymour
Cassel), só teria condições de estudar em escola pública.
O delicado equilíbrio que o mantém na Rushmore se rompe quando faz
amizade com um empresário local (Murray) e, logo em seguida, se apaixona
por uma professora que enviuvou recentemente (Olivia Williams). Até então
um adolescente que fingia muito bem ser adulto, portando-se como se fosse
candidato a vereador, Max vê-se obrigado a lutar em um mundo que
desconhece, usando armas que apenas julgava conhecer. É bom de lábia, mas
não tem sobre o que falar; faz teoria sobre relacionamentos, mas nunca viveu
um; considera-se maduro, mas aparenta ser um tolo. Sem a Rushmore, e a
máscara social que veste ali, fica sem chão. Erguer-se novamente será a prova
de fogo de seu rito de passagem.
Não por acaso, sua frase preferida em latim é sic transit gloria, ou “a
glória é passageira”. Franzino, com um jeito de desprotegido que pode
rapidamente virar energia e audácia, Schwartzman transforma o indomável
Max em um personagem antológico. Wes Anderson recheia a trama com
histórias paralelas; a principal delas, um triângulo amoroso, justifica a opção
brasileira por Três é Demais. Mas o filme, ao esboçar em tom de farsa um
inventário do "sonho americano", vai muito além. Misto de comédia e drama
em que nunca se sabe direito o que vem pela frente, aponta a escola como
território preferencial para a transmissão de valores e crenças, cenário em que
batalhas adultas já são travadas silenciosamente, sem que muita gente
perceba. Ao menos para Max, a vida é Rushmore.
Três é Demais (Rushmore) — EUA, 1998, 93 min. Direção: Wes Anderson. Roteiro: Wes Anderson e Owen Wilson. Com Jason Schwartzman, Bill Murray, Olivia Williams, Seymour Cassel,
Brian Cox, Mason Gamble, Sara Tanaka, Stephen McCole, Luke Wilson, Dipak Pallana. Distribuição em VHS: Buena Vista.

(Publicado em Educação 36, abril de 2000)


Tropa de Elite
Brasil, 2007
Direção: José Padilha

Proibido Proibir
Brasil, 2007
Direção: Jorge Durán

Alguém terá passado ao largo da polêmica em torno de Tropa de Elite?


Pivô de escândalo sobre pirataria, maior bilheteria do cinema nacional no ano
passado e vencedor do Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim-
2008, a estreia na ficção do documentarista José Padilha (Ônibus 174)
reacendeu as mais intensas discussões sobre a violência das imagens desde o
lançamento de Cidade de Deus (2002).
Além da corrupção policial e da tortura como método no combate aos
traficantes no Rio de Janeiro, Tropa de Elite mexe em ao menos outro tema
incômodo para a sociedade brasileira, e que gerou inúmeros debates: a
representação de universitários (e, por extensão, de todos os consumidores de
drogas das classes média e alta) como corresponsáveis, na medida em que são
consumidores, pela existência do tráfico e de suas ramificações no universo
do crime.
Lançado alguns meses antes de Tropa, Proibido Proibir não tinha o
objetivo de “conversar” com o outro filme, mas acabou por funcionar como
um complemento a ele. Enquanto Padilha apenas aponta para o meio
universitário, que não era a matéria-prima de seu filme, o diretor Jorge Durán
(que escreveu Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia e Pixote, a Lei do Mais
Fraco) elege os estudantes de hoje como seu principal interesse.
Na trama criada por Durán, um estudante de medicina (Caio Blat, o Frei
Tito de Batismo de Sangue) divide casa de fundos em bairro popular com um
aluno de ciências sociais (Alexandre Rodrigues, o Buscapé de Cidade de
Deus). De opiniões divergentes, eles amadurecem nas discussões, no
convívio com a namorada do segundo (Maria Flor) e ao proteger uma
testemunha de assassinato. A violência urbana também dá as caras, mas o
foco se concentra nos sonhos e perspectivas da geração que precisará lidar,
nas próximas décadas, com o país que lhe deixaram como herança.
Tropa de Elite — Brasil, 2007, 116 min. Direção: José Padilha. Roteiro: Bráulio Mantovani e José Padilha, baseado em livro de André Batista, Rodrigo Pimentel e Luiz Eduardo Soares. Com
Wagner Moura, André Ramiro, Caio Junqueira, Maria Ribeiro, Milhem Cortaz. Distribuição em DVD: Universal.

Proibido Proibir — Brasil, 2007, 101 min. Direção: Jorge Durán. Roteiro: Dani Patarra e Jorge Durán. Com Caio Blat, Alexandre Rodrigues, Maria Flor. Distribuição em DVD: Europa.

(Publicado em Educação 132, abril de 2008)


Verão Feliz
Kikujiro no natsu
Japão, 1999
Direção e roteiro: Takeshi Kitano

Para milhões de japoneses, Takeshi Kitano é apenas uma celebridade de


televisão, equivalente a um cruzamento de Renato Aragão com Jô Soares.
Conhecido também como Beat Takeshi, seu pseudônimo de ator, ele
apresenta um programa de grande audiência em que recebe convidados, faz
piadas, ridiculariza-se. Ninguém o leva a sério porque ele mesmo não parece
levar-se a sério. Mas Kitano tem uma extravagância: é um cineasta de
primeira qualidade, autor de filmes densos e, às vezes, violentos.
Sua obra-prima, Hana-bi – Fogos de Artifício (1997), recebeu o Leão de
Ouro no Festival de Veneza e o prêmio da crítica na Mostra Internacional de
São Paulo. Verão Feliz, seu filme seguinte, surpreendeu o público presente ao
Festival de Cannes por mostrar uma face de Takeshi pouco conhecida no
Ocidente – a do comediante que faz palhaçadas e contracena quase o tempo
todo com uma criança. Mas o humor leva um tempero agridoce: a risada que
se solta aqui fica amarga logo depois, porque uma situação engraçada na
superfície pode tornar-se séria, em questão de segundos, quando
compreendemos o que significa.
O filme é dividido em dez “capítulos”, cada um aberto por uma frase
infantil (“Os amigos de vovó”, “O que eu fiz no último verão” etc.). Como se
pertencessem a uma redação sobre as “minhas férias”, esses quadros contam
a aventura do menino Masao (Yusuke Sekiguchi) a partir do momento em
que as aulas se encerram. Para ele, é um período ruim. Os amigos viajam e os
treinos do time de futebol são suspensos. Sua única companhia é a avó, com
quem vive. Não conhece a mãe, que mora em outra cidade. Pois Masao
resolve aproveitar o tempo livre para ir ao encontro dela, sem ter ideia das
dificuldades que o aguardam.
Kikujiro (Kitano), o marido desmiolado de uma amiga da avó, dispõe-se
a ajudá-lo. Forma-se então uma dupla insólita que encontrará muita gente
pelo caminho, em um típico filme-de-estrada: o conhecimento adquirido no
percurso importa mais do que a chegada ao destino. Com o tempo, percebe-se
que Masao não gostará muito do que vai encontrar. É o ponto a partir do qual
Verão Feliz “tortura” o espectador, ao adiantar-lhe o desfecho da aventura
sem que se possa fazer nada para evitar o sofrimento do menino.
Humor à parte, o filme de Kitano lembra Paisagem na Neblina (1989),
do grego Theo Angelopoulos, sobre duas crianças que fogem de casa para
buscar o pai que jamais conheceram. Uma das diferenças é que ninguém as
ajuda. Em ambas as histórias, essa procura carrega também um forte dado
simbólico. “Pais” são a origem – e o lugar de onde viemos ajuda a explicar
quem somos. É o que Masao descobrirá, embora não tenha idade para
perceber, ao final de uma jornada única, ainda que escondida sob os rabiscos
apressados, aparentemente nada extraordinários, de um diário de férias.
Verão Feliz (Kikujiro no natsu) — Japão, 1999, 122 min. Direção e roteiro: Takeshi Kitano. Com Takeshi Kitano, Yusuke Sekiguchi, Kayoko Kishimoto, Yuko Daike, Kazuko Yoshiyuki, Beat
Kiyoshi. Distribuição em VHS: Cult.

(Publicado em Educação 48, abril de 2001)


Uma Verdade Inconveniente
An Inconvenient Truth
EUA, 2006
Direção: Davis Guggenheim

“Sou aquele que costumava ser apresentado como o futuro presidente


dos EUA”, diz o ex-senador e ex-vice-presidente norte-americano Al Gore
logo no início de Uma Verdade Inconveniente. A ironia volta-se, sobretudo,
para consumo interno: nos EUA, ainda é fresca a memória das eleições de
2000, quando Gore parecia bem próximo de cumprir o tal destino, mas foi
derrotado no colégio eleitoral (embora tenha vencido no voto popular) por
George W. Bush graças a um resultado até hoje contestado na Flórida, cujo
governador era irmão do atual presidente.
Com a derrota, Gore afirmou que não seria mais candidato presidencial,
afastou-se da máquina partidária democrata e passou a se dedicar quase
integralmente aos temas ambientais que sempre estiveram no centro de sua
atuação como senador. Conferencista de imensa receptividade, ele passou
então a correr o mundo (em 2006, veio inclusive ao Brasil) com a missão
prioritária de alertar a todos para os riscos do desequilíbrio climático do
planeta e do aquecimento global. Obras da humanidade, como Gore insiste
em destacar.
Uma Verdade Inconveniente se baseia em sua principal palestra sobre o
tema, repleta de atrações para conquistar a plateia, a começar pelo carisma de
Gore e pela segurança que transmite. De fato, ele parece falar a respeito de
coisas que conhece muito bem. A apresentação é também um exemplo do
bom uso de tecnologia a serviço da transmissão de ideias. É provável que
muitos professores sintam inveja dos recursos tecnológicos usados para
exemplificar os principais aspectos do problema – espécie de data show
tamanho família, com efeitos especiais de Hollywood.
O que sustenta o discurso, no entanto, é a substância da argumentação,
principal responsável pelo Oscar de melhor documentário atribuído ao diretor
Davis Guggenheim (e, indiretamente, a Gore). Em resumo: a conduta
irresponsável do homem em relação ao planeta – ocasionada, em linhas
gerais, pelos excessos da sociedade de consumo e pela falta de educação para
a preservação – já começou a alterar drasticamente as características do meio
ambiente e poderá trazer consequências trágicas em futuro bem próximo, ao
alcance de uma ou duas gerações.
Uma Verdade Inconveniente (An Inconvenient Truth) — EUA, 2006, 96 min. Direção: Davis Guggenheim. Distribuição em DVD: Paramount.

(Publicado em Educação 120, abril de 2007)


Vermelho como o Céu
Rosso Come il Cielo
Itália, 2006
Direção: Cristiano Bortone

Os principais prêmios dos festivais de cinema são atribuídos por júris


de, em média, cinco a dez pessoas, todos profissionais da área. Alguns
eventos, no entanto, oferecem prêmios do público, a partir dos votos de
espectadores comuns. Essas escolhas tendem a contemplar filmes de rápida e
intensa comunicação com a plateia, arrebatada ao final pela sensação de que a
experiência valeu a pena.
O raciocínio se aplica ao drama Vermelho como o Céu, que obteve o
prêmio do público para longas-metragens estrangeiros na Mostra
Internacional de São Paulo em 2006. Para aumentar a empatia, sua trama é
baseada na história verídica do italiano Mirco Mencacci, que perdeu a visão
na infância, devido a um acidente doméstico. Adulto, ele tornou-se editor de
som.
“O olho (em geral) superficial, o ouvido profundo e inventivo”, diz o
cineasta francês Robert Bresson (1907-1999) no livro Notas sobre o
Cinematógrafo (Iluminuras). “O apito de uma locomotiva imprime em nós a
visão de toda uma estação de trem”, exemplifica. Vermelho como o Céu
explora ideia semelhante, ao sublinhar o significado especial que a descoberta
de um gravador adquire para o protagonista (Luca Capriotti).
Como não havia política escolar inclusiva no sistema educacional
italiano da época, ele foi parar aos 10 anos em um instituto de deficientes de
Gênova. Resistiu, no entanto, ao estigma, e virou o jogo a seu favor. O
terceiro longa-metragem de ficção do também documentarista Cristiano
Bortone foi escrito com a ajuda do próprio Mirco e, embora o universo de
crianças cegas seja naturalmente propício à emoção, lida de maneira sóbria
com as tentações sentimentais para celebrar a vida e suas possibilidades.
Vermelho como o Céu (Rosso Come il Cielo) — Itália, 2006, 96 min. Direção: Cristiano Bortone. Roteiro: Paolo Sassanelli, Monica Zapelli e Cristiano Bortone. Com Luca Capriotti, Francesco
Campobasso, Marco Cocci, Simone Colombari. Distribuição em DVD: California.

(Publicado em Educação 137, setembro de 2008)


Verônica
Brasil, 2008
Direção: Maurício Farias

Contratempo
Brasil, 2008
Direção: Malu Mader e Mini Kerti

Entre os Muros da Escola


Entre les Murs
França, 2008
Direção: Laurent Cantet

Dúvida
Doubt
EUA, 2008
Direção: John Patrick Shanley

No Rio de Janeiro, uma professora de escola pública protege um aluno


perseguido ao mesmo tempo por uma quadrilha de traficantes de drogas e por
policiais corruptos. Também no Rio, um projeto de ensino de música
transforma a vida de jovens de comunidades carentes. Em Paris, um professor
de francês em uma escola frequentada por muitos filhos de imigrantes se
esforça para dar conta do programa e convencer os alunos da importância de
se dedicar aos estudos. E, em Nova York, a diretora de uma escola católica
suspeita que o padre da paróquia, também professor, cometeu assédio contra
um aluno.
Essas quatro histórias trazem de volta aos cinemas o olhar sobre a
educação, tanto no ensino formal quanto no informal, bem como sobre os
educadores e seu papel na sociedade contemporânea. Os brasileiros Verônica,
de Maurício Farias, e Contratempo, de Malu Mader e Mini Kerti, se juntam
ao francês Entre os Muros da Escola, de Laurent Cantet, e ao norte-
americano Dúvida, de John Patrick Shanley, nessa leva recente de filmes –
alguns baseados em fatos verídicos, outras apenas inspirados neles – que
contribuem para ampliar o debate social sobre temas educacionais,
alcançando um público mais amplo do que o de profissionais da área.
Em Verônica, o filho de um contador de traficantes (Matheus de Sá)
sobrevive ao massacre da família porque estava na escola. Como os pais não
aparecem para buscá-lo, sua professora (Andréa Beltrão) se oferece para
levá-lo até sua casa, em uma favela. Ao descobrir que os pais foram mortos e
os traficantes procuram o menino, ela decide protegê-lo e se recusa também a
entregá-lo às autoridades porque o “pen drive” que o pai confiou ao filho traz
um vídeo com imagens que incriminam policiais ligados ao tráfico. Verônica
não confia nem mesmo no ex-marido (Marco Ricca), policial que talvez
mantenha relações com colegas corruptos.
Farias diz que participou de duas sessões promovidas exclusivamente
para profissionais da educação — uma em São Paulo (que também reuniu
alunos), realizada pelo Sistema Anglo de Ensino, um dos patrocinadores do
filme, e outra no Rio de Janeiro, no Clube do Professor do Unibanco
Arteplex. “Foi maravilhoso, espetacular”, lembra o cineasta, que dirigiu
também O Coronel e o Lobisomem (2005) e A Grande Família - O Filme
(2007). “Vi cenas incríveis, professoras chorando. A identificação foi muito
forte e o filme as tocou bastante. Não tínhamos a preocupação de abordar isso
(as condições de trabalho do professor) em primeiro plano, mas a realidade é
muito forte.”
A detalhada caracterização da personagem e a interpretação de Andréa
Beltrão ajudam, de fato, a provocar identificação imediata com todo
espectador que conheça, ainda que superficialmente, o cotidiano de milhares
de professoras de ensino básico na rede pública do país. Verônica trabalha
muito, em condições às vezes impróprias, e se esvai física e mentalmente por
causa disso; leva tarefas para casa, o que aumenta o desgaste e contribui para
que negligencie a vida pessoal; o salário permite que sobreviva dignamente,
mas não muito mais do que isso – a personagem mora em uma quitinete, em
bairro popular do Rio, e não tem acesso a canais de TV paga, o que deixa o
filho do contador estupefato, pois ele mora na favela e tem (“TV a gato”,
como bem observa Verônica).
O cenário social de Verônica é muito semelhante ao do documentário
Contratempo, que acompanha a rotina de jovens que participavam, em 2006,
do projeto Villa-Lobinhos. Recrutados em favelas do Rio de Janeiro, eles
frequentavam aulas de música e faziam apresentações, promovidas também
no âmbito de outros grupos dos quais participavam. Alguns deles, por
exemplo, vão tocar em um concerto beneficente em Nova York. Com isso,
eles ganham perspectivas de futuro que, sem a dedicação à música,
dificilmente teriam. Há, no entanto, quem fique pelo caminho, e ao menos
uma das histórias – a do rapaz que abre o filme, cujo desfecho é revelado
apenas no final – é especialmente dramática ao ilustrar o que a sociedade
brasileira reserva a milhares de jovens.
Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes do ano passado e
candidato ao Oscar-2009 de melhor filme estrangeiro, Entre os Muros da
Escola se inspira na “tragicomédia ordinária de um professor de francês”, o
romance Entre les Murs, com lançamento no Brasil previsto para março,
simultaneamente à chegada do filme ao país. O autor, François Bégaudeau, se
baseou em suas próprias experiências em uma escola na periferia de Paris
para “divisar o discurso por meio dos fatos, as ideias pelos gestos” — e,
assim, “apenas documentar o trabalho cotidiano” de um educador hoje na
França.
Diretor de A Agenda (2001), que também lança um olhar
semidocumental sobre o mundo do trabalho (e a perda de identidade
representada pelo desemprego), Cantet recrutou o próprio Bégaudeau para
interpretar o papel do professor e adotou o princípio de observar a escola
como uma espécie de câmera de eco da sociedade – tudo o que ocorre ali,
entre muros, é apenas reverberação do que acontece no entorno. O
extraordinário trabalho com os adolescentes que interpretam os alunos, todos
usando seus nomes verdadeiros, faz o espectador acreditar que havia câmeras
ocultas dentro da sala de aula e em outros ambientes da escola.
Entre os Muros da Escola já se configura, tanto pelos métodos de
realização quanto pelo diagnóstico da escola como instituição em crise
profunda, como um dos grandes filmes em torno da relação ensino-
aprendizagem e da responsabilidade social que se atribui ao trabalho dos
educadores. Esses temas aparecem também em Dúvida, baseado em peça do
próprio Shanley ambientada em 1964. Para educadores, o interesse se
concentra na descrição da gestão autoritária de uma escola religiosa por uma
freira (Meryl Streep) que procura controlar tudo à sua volta e nos dilemas de
uma jovem professora (Amy Adams) pressionada a denunciar um padre
(Philip Seymour Hoffman).
Verônica — Brasil, 2008, 87 min. Direção: Maurício Farias. Roteiro: Bernardo Guilherme e Maurício Farias. Com Andrea Beltrão, Matheus de Sá, Marco Ricca, Flávio Migliaccio. Distribuição
em DVD: Europa.

Contratempo — Brasil, 2008, 92 min. Direção: Malu Mader e Mini Kerti. Distribuição em DVD: Videofilmes
Entre os Muros da Escola (Entre les Murs) — França, 2008, 128 min. Direção e roteiro: Laurent Cantet, baseado em romance de François Bégaudeau. Com François Bégaudeau, Agame
Malembo-Emene, Angélica Sancio. Distribuição em DVD: Imovision.

Dúvida (Doubt) — EUA, 2008, 104 min. Direção e roteiro: John Patrick Shanley. Com Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Viola Davis, Alice Drummond. Distribuição em
DVD e Blu-ray: Disney

(Publicado em Educação 143, março de 2009)


A Vida dos Outros
Das Leben der Anderen
Alemanha, 2006
Direção: Florian Henckel von Donnersmarck

Em Adeus, Lênin (2003), a derrocada da extinta República Democrática


Alemã (RDA, a Alemanha Oriental) era recriada de maneira leve e carinhosa,
a partir dos esforços de um jovem (Daniel Brühl) para convencer a mãe
(Kathrin Sass), socialista convicta em estado grave de saúde, de que a
reunificação com a Alemanha Ocidental – notícia escondida por ele até o
limite — representava uma vitória sobre o modelo capitalista.
É bem outra a atmosfera em A Vida dos Outros, que recebeu o Oscar de
filme estrangeiro em 2007, além de diversos outros prêmios internacionais. A
trama se ambienta na RDA em 1984, cinco anos antes da queda do Muro de
Berlim e do colapso do bloco soviético, e ainda sob o regime autoritário
liderado, desde 1971 e até a reunificação, por Erich Honecker.
Os serviços de inteligência cabiam à Stasi, a polícia secreta (embora
nem tão secreta assim) do regime. Um de seus profissionais com maior
experiência (Ulrich Mühe, falecido pouco mais de um ano depois do
lançamento) supervisiona a vigilância de um escritor bem-sucedido
(Sebastian Koch, de A Espiã) cuja namorada, uma atriz teatral (Martina
Gedeck, de Partículas Elementares), é cobiçada por um alto funcionário do
governo.
Ao mesmo tempo que permite compreender os mecanismos de controle
social praticados pelos países do bloco socialista durante a “guerra fria”, A
Vida dos Outros examina os dilemas morais de um policial incomodado por
notar que executa missão não alinhada com seus princípios e obrigações.
Como proceder em uma situação extrema como essa? Com base nessa
encruzilhada, o diretor e roteirista estreante Florian Henckel von
Donnersmarck demonstra muito bem a conexão indissolúvel entre as esferas
pública e privada.
A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen) — Alemanha, 2006, 137
min. Direção e roteiro: Florian Henckel von Donnersmarck. Com Ulrich
Mühe, Sebastian Koch, Martina Gedeck. Distribuição em DVD e Blu-ray:
Europa.
(Publicado em Educação 135, julho de 2008)
A Vida em um Dia
Life in a Day
Inglaterra/EUA, 2011
Direção: Kevin Macdonald

No futuro, quem estiver interessado em conhecer um pouco da vida


cotidiana no planeta neste início de milênio poderá recorrer, entre outros
materiais de pesquisa, a um ambicioso longa-metragem feito por milhares de
mãos, de diversas idades, nacionalidades, etnias e hábitos: A Vida em um Dia.
Recém-lançado em DVD no Brasil, ele está disponível gratuitamente, desde
janeiro de 2011, no YouTube, que foi parceiro desse ambicioso projeto
(procure pelo título original, Life in a Day).
Produzido pelos irmãos Ridley e Tony Scott, A Vida em um Dia nasceu
de um convite feito a cidadãos de todo o mundo para que enviassem ao
YouTube quaisquer imagens de seu cotidiano captadas em 24 de julho de
2010. De acordo com os produtores, o apelo foi atendido por pessoas de 192
países, que enviaram 85 mil vídeos. As 4.500 horas de imagens brutas foram
trabalhadas por uma equipe de montagem sob responsabilidade do diretor
Kevin Macdonald, dando origem a um enorme — e muitas vezes
emocionante — mosaico de culturas.
Há um pouco de tudo na condensação desses vídeos, desde momentos
de ternura familiar até uma brutal cena de matadouro (cuidado com esse
trecho, se for especialmente sensível a atos de violência contra animais).
Alguns participantes tiveram o espírito de documentaristas, preocupados em
registrar didaticamente a realidade próxima, mas outros agiram de maneira
despreocupada, como se estivessem postando vídeos domésticos em redes
sociais. A Vida em um Dia demonstra como a era das imagens em que
vivemos transformou a todos, com suas câmeras digitais e telefones celulares,
em cineastas.
Ingleses, os irmãos Scott começaram na publicidade e fizeram uma bem-
sucedida transição para o cinema. Ridley tem mais prestígio, graças a filmes
como Alien (1979), Blade Runner (1982), Thelma & Louise (1991),
Gladiador (2000) e Prometheus (2012). Tony dirigiu Ases Indomáveis (1986)
e Dias de Trovão (1990). Na TV, ambos produzem o seriado The Good Wife.
Vencedor do Oscar de melhor documentário por Um Dia em Setembro
(1999), o escocês Kevin Macdonald vem dirigindo também filmes de ficção,
como O Último Rei da Escócia (2006), sobre o ditador ugandense Idi Amin
Dada, e Intrigas de Estado (2009), sobre a imprensa de Washington. Sua
produção mais recente é o documentário Marley (2012), sobre o músico
jamaicano Bob Marley.
A Vida em um Dia (Life in a day) — Inglaterra/EUA, 2011, 90 min. Direção: Kevin Macdonald. Distribuição em DVD: Vinny Filmes.

(Publicado em Educação 185, setembro de 2012)


Vincere
Vincere
Itália/França, 2009
Direção: Marco Bellocchio

O ditador Benito Mussolini (1883-1945) e o período fascista na Itália já


foram objeto de diversos longas-metragens de ficção, como Os Últimos Dias
de Mussolini (1974), de Carlo Lizzani, estrelado pelo ator norte-americano
Rod Steiger no papel de Il Duce (título que atribuiu a si mesmo em 1925, e
que significa "o líder"), e Um Dia Muito Especial (1977), de Ettore Scola,
que se ambienta durante a visita de Adolf Hitler (1889-1945) a Roma, em
1938.
A filmografia sobre o personagem e sua atuação messiânica é
brilhantemente enriquecida, no entanto, por Vincere. Não é a primeira vez,
nos últimos anos, que o diretor e roteirista Marco Bellocchio (De Punhos
Cerrados, Diabo no Corpo) olha de forma provocante para a história da
Itália: em Bom Dia, Noite (2003), ele recria o traumático assassinato do líder
democrata-cristão Aldo Moro (1916-1978).
Em Vincere ("vencer"), Bellocchio adota como ponto de partida um
episódio relativamente obscuro na biografia de Mussolini (interpretado por
Filippo Timi, de Um Homem Misterioso): seu relacionamento com Ida Dalser
(Giovanna Mezzogiorno, de O Amor nos Tempos do Cólera), com quem teria
concebido um filho, Benito Albino, ainda na juventude. A criança chegou a
ser reconhecida por ele, mas depois foi renegada.
Menos caricato do que em outros filmes, o Mussolini recriado por
Bellocchio é, sobretudo, um personagem da esfera privada — o homem que
desperta a paixão e a admiração de Dalser, apesar de tratá-la, depois do
relacionamento, com frieza e mesmo desprezo. Desse retrato íntimo,
combinado de modo original com um tom operístico e com imagens de
arquivo, surgem indícios para entender melhor o fascínio exercido pela ação e
pelo pensamento da extrema direita.
Personagens históricos associados a ditaduras e a crimes contra a
humanidade representam um desafio a cineastas interessados em fugir de
estereótipos para caracterizá-los. A expectativa dominante é a de que sejam
mostrados como representantes do Mal absoluto, e não como pessoas que
tenham sua força mas também suas fraquezas, como o Mussolini de Vincere.
Um exemplo recente dessa dificuldade foi a reação ambígua ao longa-
metragem alemão A Queda! - As Últimas Horas de Hitler (2004), de Oliver
Hirschbiegel, com Bruno Ganz (O Amigo Americano, Asas do Desejo) no
papel de um Adolf Hitler fragilizado em seu "bunker" de Berlim, ainda
incapaz, mesmo sob cerco inimigo, de admitir a derrota na II Guerra
Mundial.
De um lado, os admiradores do filme observaram que o pesadelo nazista
poderia ser melhor compreendido por meio dessa recriação do cotidiano no
centro de poder alemão. De outro, seus críticos argumentaram que não deve
haver espaço ético para nenhuma espécie de tentativa de "humanização" de
alguém que tenha sido responsável pelo Holocausto.
Vincere (Vincere) — Itália/França, 2009, 128 min. Direção: Marco Bellocchio. Roteiro: Daniela Ceselli e Marco Bellocchio, baseado em argumento de Bellocchio. Com Filippo Timi, Giovanna
Mezzogiorno, Fausto Russo Alesi, Michela Cescon, Pier Giorgio Bellocchio. Distribuição em DVD: Imovision.

(Publicado em Educação 168, abril de 2011)


O Visitante
The Visitor
EUA, 2007
Direção: Thomas McCarthy

Simplesmente Feliz
Happy-Go-Lucky
Inglaterra, 2008
Direção: Mike Leigh

Professores, alunos e escolas são matéria-prima corriqueira para o


cinema de ficção de diversos países, como destacou artigo de Educação
número 143 (março de 2009) sobre uma nova e diversificada safra de longas-
metragens que incluía dois títulos recém-lançados em DVD, o brasileiro
Verônica, de Maurício Farias, e o francês Entre os Muros da Escola, de
Laurent Cantet.
Outra leva de representações de educadores pelo cinema reúne o drama
independente O Visitante e a comédia dramática Simplesmente Feliz. Em
ambos os casos, a escola aparece pouco, mas ganha relevo o perfil
profissional e pessoal de professores.
Em O Visitante, o protagonista é um professor universitário (Richard
Jenkins, indicado ao Oscar de melhor ator pelo papel), amargurado pela
morte da mulher e visivelmente desencantado com a rotina de trabalho.
Contra a sua vontade, ele aceita participar de um congresso em Nova York,
lendo um artigo que não escreveu, e decide passar alguns dias em seu
apartamento na cidade.
Ao chegar, descobre que o imóvel foi “alugado” informalmente para um
casal de imigrantes clandestinos, com os quais acaba por desenvolver relação
fraternal. Coisa parecida, mas em sinal inverso, ocorre com a professora de
educação infantil (Sally Hawkins, também indicada ao Oscar pela atuação) de
Simplesmente Feliz, que descobre no instrutor de sua autoescola uma alma
atormentada e preconceituosa.
Nos dois filmes, não parece casual que a alteridade necessária para
compreender o outro (sem necessariamente perdoá-lo, no filme britânico) seja
demonstrada por professores. Mais do que isso: há algo de generoso no
comportamento dos protagonistas desses filmes, sugerindo que o cinema
pode não pensar coisas muito positivas de advogados ou de policiais, mas
ainda alimenta imagem camarada de educadores.
O Visitante (The Visitor) — EUA, 2007, 103 min. Direção e roteiro: Thomas McCarthy. Com Richard Jenkins, Hiam Abbass, Haaz Sleiman, Danai Gurira. Distribuição em DVD: Paramount.

Simplesmente feliz (Happy-Go-Lucky) — Inglaterra, 2008, 118 min. Direção e roteiro: Mike Leigh. Com Sally Hawkins, Alexis Zegerman, Samuel Roukin. Distribuição em DVD: Swen Filmes.

(Publicado em Educação 148, agosto de 2009)


Viva São João!
Brasil, 2002
Direção: Andrucha Waddington

Em 11 de junho de 2001, o compositor e intérprete Gilberto Gil (que,


provavelmente, ainda não sonhava tornar-se um dia ministro da Cultura em
um governo do PT), assessores mais próximos e uma equipe de filmagem
embarcaram rumo a Exu (PE), a terra de Luís Gonzaga (1912-1989), o “rei
do baião”. Principal objetivo da expedição: registrar, enquanto Gil se
apresentava por diversas cidades, as festas juninas no Nordeste. Foram duas
semanas de trabalho intenso na Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí,
Rio Grande do Norte e Sergipe. No dia 26, depois de entrevistar lavadeiras e
pescadores do rio São Francisco, e de acompanhar o final da celebração em
Junco do Salitre (BA), a comitiva retornou ao Rio de Janeiro.
Nasceu assim o documentário Viva São João!, fruto da parceria entre
Gil e o diretor Andrucha Waddington na realização de Eu Tu Eles (2000).
Com base nas canções compostas para o filme, que os havia levado ao
coração do Nordeste, Gil montou um show. E, a partir dele, ambos pensaram
em investigar a importância que a região ainda reserva ao culto a São João
Batista, considerado pela tradição católica o precursor de Jesus Cristo.
Introduzidas no Brasil pelos portugueses, as festas juninas foram lentamente
desaparecendo nos grandes centros urbanos, inclusive por causa da
dificuldade em fazer fogueiras. No Nordeste, entretanto, constituem a mais
importante celebração do ano.
No lugar de uma abordagem convencional, de cunho mais didático,
Waddington optou por uma estrutura livre em que o papel de narrador
coubesse à música. O documentário começa no Rio, com a gravação de um
show de Gil na praia do Flamengo, do qual participaram também Elba
Ramalho, Margareth Menezes e Alexandre Pires. Em seguida, no caminho
para Exu, entra em cena Chiquinha Gonzaga, irmã de Luís, que ciceroneia a
equipe pela cidade e, emocionada, revê parentes e amigos. Nos outros
municípios, o procedimento se repete: Gil encontra gente pelas ruas, bate
papo, canta e, por fim, também se emociona com o que chama de “parada na
Estação São João”.
“A minha terra é pobre, porém o povo é nobre”, diz a letra de uma
canção sobre o Nordeste lembrada por Chiquinha. O filme confirma
discretamente a tese. Dos lavradores que celebram o Dia de São João (24 de
junho) na esperança de uma colheita farta até os praticantes de uma perigosa
manifestação de rua com “espadas de fogo”, passando por músicos e devotos,
forma-se um colorido painel dos valores culturais que se mantêm vivos em
cidades como Lajedo do Pai Mateus (PB), Cruz das Almas (BA) ou Caruaru
(PE). Nessa última, Gil protagoniza um momento especial, ao integrar-se à
célebre banda de pífanos local. As festas juninas celebram, segundo ele, a
integração entre o homem e a natureza, em uma paisagem rude enriquecida
pelo fator humano.
Viva São João! — Brasil, 2002, 81 min. Direção: Andrucha Waddington. Roteiro: Emílio Domingos, Quito Ribeiro e Andrucha Waddington. Com Gilberto Gil, Marinês, Dominguinhos, Alceu
Valença, Chiquinha Gonzaga, Sivuca, Targino Gondim, Elba Ramalho, Alexandre Pires, Margareth Menezes. Distribuição em DVD: Sony.

(Publicado em Educação 79, novembro de 2003)


Os Xeretas
Brasil, 2001
Direção: Michael Ruman

Sem jamais conseguir se estruturar industrialmente, a produção


brasileira de cinema tem diversas lacunas gritantes. Um dos exemplos é a
reduzida quantidade de biografias: embora nossa história seja repleta de
personagens que dariam filmes no mínimo interessantes sobre suas trajetórias
singulares e também sobre o período em que viveram, de Santos Dumont ao
jogador de futebol Leônidas da Silva (o “Diamante Negro”), os projetos
biográficos se tornam caros e complexos pela necessidade de reconstituição
de época e de pesquisa histórica aprofundada, entre outros aspectos
complicadores.
Outra área quase inteiramente descoberta é a da produção infantojuvenil.
Contam-se nos dedos, durante os últimos 30 anos, os filmes dirigidos a
crianças e jovens que não tenham sido feitos por Renato Aragão e Xuxa.
Antes deles, o cenário era ainda mais desértico. A escassez obriga a receber
com atenção as raras tentativas de estabelecer pontes com essa fatia do
público – filmes como A Reunião dos Demônios (1995), de Cecílio Neto
(lançado nos cinemas em 2000 com o título Os Três Zuretas), Castelo Rá-
Tim-Bum (1999), de Cao Hamburger, Tainá (2000), de Tânia Lamarca, e Ilha
Rá-Tim-Bum – O Martelo de Vulcano (2003), de Eliana Fonseca.
Reúne-se ao grupo Os Xeretas, que marca a estreia na direção de longa-
metragem do montador Michael Ruman. Realizada em 2001, mas só agora
lançada em vídeo, essa aventura tem vários elementos capazes de despertar a
identificação e o interesse de crianças e jovens. Os protagonistas são
adolescentes comuns que se envolvem casualmente em uma história cheia de
peripécias, lembrando Os Goonies (1985), produção de Steven Spielberg
dirigida por Richard Donner. A rotina desses meninos inclui a escola (cenário
raramente visitado pelo cinema brasileiro) e objetos de uso (ou desejo) dessa
faixa etária, como bicicletas e um supercomputador.
Na contramão das imagens urbanas que dominam a produção nacional, a
ação transcorre em uma cidade do interior, Castro (PR), com pouco mais de
60 mil habitantes. Os amigos Duda (Fábio Lins), Tato (José Eduardo Gomes)
e Nick (José Luiz Batistella) atravessam o caminho de dois vilões (Francisco
Cuoco e Roberto Arduin) que roubaram um medalhão antigo, relacionado a
uma menina (Jéssika Bueno Barth) que viaja no tempo graças a um portal. As
intenções são as melhores, mas a realização transparece a falta de tradição
brasileira na área. O roteiro exagera no caldeirão de referências e torna-se
confuso; algumas cenas de ação têm um ar desajeitado; e o elenco alterna
bons momentos de improviso com outros em que a preparação dos atores
iniciantes não foi suficiente para a boa caracterização de personagens e
situações. Mais do que problemas exclusivos desse filme, são deficiências
comuns em nossa filmografia.
Os Xeretas — Brasil, 2001, 86 min. Direção: Michael Ruman. Roteiro: Michael Ruman e Claudio Galperin. Com Francisco Cuoco, Roberto Arduin, Ana Lucia Torre, Fábio Lins, José Eduardo
Gomes, José Luiz Batistella, Fábio Henrique, Jéssika Bueno Barth, Maísa Prestes Saleh, Eliana Fonseca. Distribuição em DVD: Europa.

(Publicado em Educação 91, novembro de 2004)


Xingu
Brasil, 2012
Direção: Cao Hamburger

De Santos Dumont (1873-1932) a Ruy Barbosa (1849-1923), de


Lamartine Babo (1904-1963) a Chico Mendes (1944-1988), ainda são
inúmeros os brasileiros cujas ricas biografias continuam à disposição dos
interessados em adaptá-las para o cinema. Os irmãos Villas Bôas deixaram de
pertencer a esse clube com o lançamento da superprodução Xingu, sobre a
movimentada trajetória daqueles que "compuseram as vidas mais
extraordinárias e belas de que tenho notícia", segundo o antropólogo Darcy
Ribeiro ((1922-1997).
A afirmação de Ribeiro consta de uma das apresentações de A Marcha
para o Oeste, de Orlando e Cláudio Villas Bôas. No livro, eles reconstituem
sua participação na expedição Roncador-Xingu. Em outra das apresentações,
o lexicógrafo Antonio Houaiss (1915-1999) diz que a devoção dos irmãos à
"causa da redenção dos índios e do desenvolvimento do nosso Oeste"
constitui "matéria que deve perdurar no nosso imaginário coletivo".
Ciente das armadilhas oferecidas pelo excesso de informação, o diretor e
corroteirista Cao Hamburger optou por cobrir apenas duas décadas na vida
dos Villas Bôas. No esforço de concisão do filme, elas corresponderiam à
parte mais representativa do todo. A trama começa pelo ingresso de Orlando
(1914-2002), Cláudio (1916-1998) e Leonardo (1918-1961) na expedição
Roncador-Xingu, em 1943, e prossegue, dando saltos no tempo, até a
polêmica criação do Parque Nacional do Xingu, em 14 de abril de 1961,
durante o breve governo Jânio Quadros.
Informações ligeiras, no início, permitem entender a origem social dos
irmãos; ao final, o uso de imagens documentais, com os personagens
verdadeiros em cena, lembra que a saga continuou por mais algumas décadas.
Na primeira metade do filme, os paulistas aventureiros entram pela primeira
vez em contato com os índios e não sabem direito como proceder. Na
segunda, em que diminui o humor e aumenta a dramaticidade, eles percebem
que a jornada será muito mais difícil do que imaginavam. Hamburger não
oferece uma visão romântica dos Villas Bôas: embora a história tenha um
caráter épico, é banhada por um realismo que permite compreender qual foi o
preço cobrado dos três.
A ênfase na humanização dos personagens tem seu ponto mais forte na
interpretação de João Miguel (Cinema, Aspirinas e Urubus, Estômago). No
papel de Cláudio, ele contribui para lembrar que a epopeia dos irmãos
envolveu não só aspectos heroicos, mas também angústia, raiva e dúvidas,
inclusive em relação a Leonardo (Caio Blat), primeiro, e depois a Orlando
(Felipe Camargo).
Hamburger dirigiu, na TV Cultura de São Paulo, o programa infantil
Castelo Rá-tim-bum (1995), escrito por Flávio de Souza e Anna Muylaert.
Coube a ele, em sua estreia como diretor de longas-metragens, realizar quatro
anos depois o filme baseado nos personagens do programa. Hamburger
dirigiu também o longa O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006).
Xingu — Brasil, 2012, 102 min. Direção: Cao Hamburger. Com João Miguel, Caio Blat, Felipe Camargo, Maria Flor. Distribuição em DVD: Sony.

(Publicado em Educação 189, janeiro de 2013)


Zero em Comportamento
Zéro de Conduite
França, 1933
Direção: Jean Vigo

Os primeiros filmes da história, realizados no final do século 19,


duravam apenas alguns segundos. Mais tarde, o público habituou-se a ver
títulos medidos em rolos – cada um equivalia a cerca de 12 minutos, e muitos
restringiam-se a um único rolo. Eram o que chamamos hoje de curtas-
metragens. Foi apenas na passagem da década de 1920 para a de 1930 que a
indústria cinematográfica consolidou o formato do longa-metragem – filmes
que, em geral, vão de 90 a 120 minutos.
Clássico realizado por Jean Vigo em 1933, Zero em Comportamento
foge dessa padronização. Tem pouco mais de 40 minutos, e talvez pareça
rápido demais para o espectador atual. Esse formato híbrido – chamado de
média-metragem – cria uma dificuldade de exibição: o cinema interessado em
projetá-lo é obrigado a reunir na mesma sessão um outro filme com duração
equivalente. Foi o que ocorreu com Zero de Comportamento, lançado em
novembro de 1945, pouco depois da libertação de Paris, em companhia de
Espoir, de André Malraux.
Ou seja: 13 anos separaram as filmagens de seu lançamento. Durante
esse período, o filme esteve censurado pelo governo francês. Um escândalo
para um país de tradição liberal, sobretudo quando se sabe qual foi o motivo
da proibição: o filme poderia incentivar o “mau comportamento” dos
estudantes franceses, levando-os a enfrentar as autoridades – e não só as
escolares. No fundo, os censores tinham sua parcela de razão. A obra-prima
de Vigo tornou-se a fonte inspiradora de outros filmes sobre rebeldia, escolar
ou não, como Os Incompreendidos (1959), de François Truffaut, e Se...
(1968), de Lindsay Anderson, e antecipou em 35 anos o espírito contestador
dos eventos de maio de 1968 na própria França.
Curiosamente, o filme nem de longe tem um viés incendiário. Mais
poético do que militante, bem-humorado e quase ingênuo, é uma celebração
ao espírito libertário que, em tese, deveria nortear a formação educacional de
todos os cidadãos. O argumento, muito simples, traz um grupo de pré-
adolescentes de volta às aulas em uma escola interna, onde reencontram um
sistema rígido e professores com vocação militar. O autoritarismo ali não
configura uma exceção, e sim a regra para uma época em que a disciplina e o
respeito à hierarquia em estabelecimentos de ensino lembravam de fato o
ecossistema de um quartel.
Alguns desses alunos, inconformados com as obtusas normas em vigor,
planejam uma revolta que inclui, como símbolo da tomada de poder, içar uma
bandeira pirata no telhado do prédio. O momento culminante dessa pequena
revolução é uma animada guerra de travesseiros, imagem que perdura hoje
como um ícone da infância feliz e saudável. Vigo (1905-1934) morreu
prematuramente, de tuberculose. Autor de alguns curtas, realizou apenas um
filme depois de Zero de Comportamento, o também clássico Atalante.
Mesmo assim, é considerado na França um dos maiores cineastas que o país
revelou.
Se tivesse a oportunidade de ver Zero, o pai de Jean, Almereyda Vigo,
militante do movimento anarquista morto em 1917, teria certamente orgulho
do filho, que entre outras coisas legou à história do cinema a primeira obra-
prima sobre a rebeldia juvenil cheia de boas causas.
Zero em Comportamento (Zéro de Conduite) – França, 1933, 41 min. Direção e roteiro: Jean Vigo. Com Jean Dasté, Robert le Flon, Louis Lefebvre. Distribuição em DVD: Versátil.

(Publicado em Educação 26, junho de 1999)


Índice Temático
ADAPTAÇÕES LITERÁRIAS
Alice no País das Maravilhas
Aluno, O
Amor & Cia.
Auto da Compadecida, O
Deixa Ela Entrar
Dezesseis Luas
Erva do Rato, A
Invenção de Hugo Cabret, A
Memórias Póstumas
Minhas Tardes com Margueritte
Na Estrada
Oz - Mágico e Poderoso
Peter Pan
Policarpo Quaresma – Herói do Brasil
Precisamos Falar Sobre o Kevin
Revolução dos Bichos, A
São Bernardo

ADOLESCÊNCIA
Aprendiz, O
Basquete Blues
Caché
Deixa Ela Entrar
Dezesseis Luas
Diretor Contra Todos, Um
Elefante
Eleição
Em um Mundo Melhor
Encanto das Fadas, O
Encontrando Forrester
Fama para Todos
Juno
Melhores Coisas do Mundo, As
Nó na Garganta
Orange County – Correndo Atrás do Diploma
Precisamos Falar Sobre o Kevin
Pro Dia Nascer Feliz
Todas as Coisas São Belas
Três é Demais

ALUNOS-PRODÍGIO
Aluno, O
Lances Inocentes
Três é Demais

ANALFABETISMO
Central do Brasil

ARTES
Billy Elliot
Contratempo
Dezesseis Luas
Escola de Rock
Garotos Incríveis
Janela da Alma
Judeu, O
Kolya – Uma Lição de Amor
Linéia no Jardim de Monet
Lixo Extraordinário
Minhas Tardes com Margueritte
Mr. Holland – Adorável Professor
Música do Coração
Ninho Vazio
Noite em 67, Uma
Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos
Palavra (En)cantada
Palhaço, O
Pina
Poesia
Professora de Piano, A
Raul - O Início, o Fim e o Meio
Somos tão Jovens
Viva São João!

ASSÉDIO
187 – O Código
Bem-vindo à Casa de Bonecas
Caça, A
Deixa Ela Entrar
Dúvida
Eleição
Minha Vida em Cor-de-Rosa
Oleanna

CIÊNCIA
Céu de Outubro, O
Gênio Indomável
Gênio Indomável
Pi
Verdade Inconveniente, Uma

CONTOS DE FADA, FÁBULAS E FANTASIAS


Alice no País das Maravilhas
Verdade Inconveniente, Uma
Encanto das Fadas, O
Kiriku e a Feiticeira
Oz - Mágico e Poderoso
Peter Pan
Revolução dos Bichos, A
Shrek

CRÔNICAS DE COSTUMES
Amor & Cia.
Auto da Compadecida, O
DESIGUALDADE SOCIAL
12 Trabalhos, Os
Cidade de Deus
Como Nascem os Anjos
Crianças Invisíveis
Dezesseis, Zero, Sessenta
Elefante
Elefante Branco
Estamos Juntos
Fala Tu
Faroeste Caboclo
Homem ao Lado, O
Homem que Virou Suco, O
Invasor, O
Linha de Passe
Lixo Extraordinário
Motoboys - Vida Loca
Nenhum a Menos
Ônibus 174
Ruas de Casablanca, As
Tropa de Elite

ENSINO FUNDAMENTAL
Bem-vindo à Casa de Bonecas
Billy Elliot
Caça, A
Caminho para Casa, O
Como Eu Festejei o Fim do Mundo
Corrente do Bem, A
Dúvida
Entre os Muros da Escola
Escola de Rock
Filhos do Paraíso
Língua das Mariposas, A
Minha Vida em Cor-de-Rosa
Música do Coração
Nenhum a Menos
Onde Fica a Casa do Meu Amigo?
Pequeno Nicolau, O
Professora Muito Maluquinha, Uma
Professora sem Classe
Quando Tudo Começa...
Que Eu mais Desejo, O
Ser e Ter
Simplesmente Feliz
Verão Feliz
Vermelho como o Céu
Verônica
Xeretas, Os
Zero em Comportamento

ENSINO MÉDIO
187 – O Código
Aprendiz, O
Basquete Blues
Bela Junie, A
Bling Ring - A Gangue de Hollywood
Caché
Céu de Outubro, O
Depois de Maio
Dezesseis Luas
Diretor Contra Todos, Um
Duelo de Titãs
Dúvida
Educação
Elefante
Eleição
Encontrando Forrester
Garota Interrompida
Juno
Lugares Comuns
Melhores Coisas do Mundo, As
Mr. Holland – Adorável Professor
Não me Abandone Jamais
Nosso Professor é um Herói
Onda, A
Orange County – Correndo Atrás do Diploma
Pro Dia Nascer Feliz
Quem Não Cola Não Sai da Escola
Todas as Coisas São Belas
Três é Demais

ENSINO SUPERIOR
Apenas o Fim
Garotos Incríveis
Gênio Indomável
Homem Sério, Um
Oleanna
Pi
Proibido Proibir
Rede Social, A
Tropa de Elite
Visitante, O

ESPIRITUALIDADE E RELIGIÃO
Apóstolo, O
Banheiro do Papa, O
Batismo de Sangue
Elefante
Elefante Branco
Homem Sério, Um
Homens e Deuses
Judeu, O
Ouro de Ulisses, O
Pecado de Hadewijch, O

ESPORTE
Basquete Blues
Bem-vindo
Duelo de Titãs
Encontrando Forrester
Invictus
Lances Inocentes

FAMÍLIA
Aluno, O
Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, O
Babel
Bem-vindo à Casa de Bonecas
Billy Elliot
Caça, A
Caché
Chaves de Casa, As
Croods, Os
Culpa É do Fidel!, A
Doce Amanhã, O
Fama para Todos
Fita Branca, A
Garoto da Bicicleta, O
Grande Garoto, Um
Homem ao Lado, O
Ladrão, O
Ladrões de Bicicleta
Lances Inocentes
Linha de Passe
Melhores Coisas do Mundo, As
Meu Irmão É Filho Único
Minha Vida em Cor-de-Rosa
Ninho Vazio
Ninguém Pode Saber
Nó na Garganta
Pai Patrão
Palhaço, O
Pequena Miss Sunshine
Pequeno Nicolau, O
Precisamos Falar Sobre o Kevin
Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios
Quarto do Filho, O
Que Eu mais Desejo, O

GLOBALIZAÇÃO
Babel
Bem-vindo
Biutiful
Em um Mundo Melhor
Neste Mundo
Visitante, O

HISTÓRIA DA ÁFRICA
Exílios
Hotel Ruanda
Invictus
Ruas de Casablanca, As

HISTÓRIA DA ALEMANHA
Adeus, Lênin!
Vida dos Outros, A

HISTÓRIA DA FRANÇA
Culpa É do Fidel!, A
Depois de Maio
Maria Antonieta

HISTÓRIA DA IUGOSLÁVIA
Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios

HISTÓRIA DA ITÁLIA
Concorrência Desleal
Dia Muito Especial, Um
Gomorra
Ladrões de Bicicleta
Meu Irmão É Filho Único
Novo Mundo
Vincere
HISTÓRIA DE CUBA
Che
Culpa É do Fidel!, A

HISTÓRIA DE PORTUGAL
Judeu, O

HISTÓRIA DO BRASIL
Aluno, O
Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, O
Baile Perfumado, O
Batismo de Sangue
Brava Gente Brasileira
Caramuru – A Invenção do Brasil
Entreatos - Lula a 30 Dias do Poder
Guerra de Canudos
Hans Staden
Hércules 56
Marighella - Retrato Falado do Guerrilheiro
Netto Perde Sua Alma
Noite em 67, Uma
Peões
São Paulo Sociedade Anônima
Terra Estrangeira
Tiradentes
Xingu

HISTÓRIA DO CHILE
No

HISTÓRIA DO CINEMA
Artista, O
Baile Perfumado, O
Invenção de Hugo Cabret, A

HISTÓRIA DOS EUA


Leões e Cordeiros
No Vale das Sombras
Sob a Névoa da Guerra

ÍNDIOS
Brava Gente Brasileira
Caramuru – A Invenção do Brasil
Hans Staden
Tainá – Uma Aventura na Amazônia
Terra Vermelha
Xingu

INFÂNCIA
Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, O
Babel
Bem-vindo à Casa de Bonecas
Billy Elliot
Chaves de Casa, As
Como Eu Festejei o Fim do Mundo
Concorrência Desleal
Crianças Invisíveis
Crônica da Inocência
Culpa É do Fidel!, A
200 Crianças do Dr. Korczak, As
Filhos do Paraíso
Fita Branca, A
Garoto da Bicicleta, O
Grande Garoto, Um
Invenção de Hugo Cabret, A
Kiriku e a Feiticeira
Kolya – Uma Lição de Amor
Ladrão, O
Ladrões de Bicicleta
Liam
Língua das Mariposas, A
Minha Vida em Cor-de-Rosa
Ninguém Pode Saber
Onde Fica a Casa do Meu Amigo?
Pai Patrão
Pequena Miss Sunshine
Pequeno Nicolau, O
Promessas de um Novo Mundo
Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios
Que Eu mais Desejo, O
Ruas de Casablanca, As
Tartarugas Podem Voar
Verão Feliz
Zero em Comportamento

INTERNET
Rede Social, A
Vida em um Dia, A

JUVENTUDE
Apenas o Fim
Baran
Bela Junie, A
Bling Ring - A Gangue de Hollywood
Depois de Maio
Educação
Fala Tu
Garota Interrompida
Invasor, O
Linha de Passe
Maria Antonieta
Na Estrada
Na Natureza Selvagem
Não me Abandone Jamais
Pecado de Hadewijch, O
Réquiem para um Sonho
Somos tão Jovens
Todas as Coisas São Belas
Proibido Proibir
RACISMO
Duelo de Titãs

SEGUNDA GUERRA MUNDIAL


Aprendiz, O
Cartas de Iwo Jima
Conquista da Honra, A
Falsários, Os

SEXUALIDADE
Minha Vida em Cor-de-Rosa

TELEVISÃO
Adeus, Lênin!
Fama para Todos
No
Noite em 67, Uma

TUTOR
Aluno, O

VIOLÊNCIA ESCOLAR
187 – O Código
Diretor Contra Todos, Um
Elefante

Você também pode gostar