Construcao Naval Amazonia

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ETNOMATEMÁTICA E

CONSTRUÇÃO NAVAL:
SABERES DE GEOMETRIA DE
CARPINTEIROS NAVAIS DA
AMAZÔNIA
Ligia Francoise Pantoja1
Rodrigo Erasmo da Conceição Silva2
Dulcilene Freitas Palheta3
Silvia Maria Leal Albuquerque4

RESUMO

Neste artigo apresentamos os resultados de uma pesquisa de


campo que trata da Etnomatemática nas regiões ribeirinhas, en-
fatizando a carpintaria na Construção Naval realizada por mo-
radores da Vila do Itapuá – Vigia/PA. Tal pesquisa teve como
objetivo investigar quais saberes matemáticos os carpinteiros
navais possuem e aplicam na construção dos barcos e se estes
são saberes oriundo da aprendizagem escolar ou Etnomatemá-
ticos, ou seja, gerados, organizados e difundidos na cultura de
sua profissão. A pesquisa é de natureza qualitativa e foi realizada
1 Doutoranda do programa REAMEC em Educação em Ciências e Matemá-
tica, Mestre em Educação em Ciências e Matemática pela UFPa/PPGECEM;
Especialista em Educação Matemática pela UEPA; Licenciada Plena em Ma-
temática e Pedagogia com atuação profissional na Universidade do Estado do
Pará - UEPA pelo Departamento e Secretaria Estadual de Educação do Pará
– SEDUC. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – CAPES. E-mail: [email protected]
2 Mestre em Geofísica pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Licenciado
Pleno em Matemática pela UEPA e Coordenador de Subprojeto do PIBID pela
UEPA. E-mail: [email protected]
3 Licenciada Plena em Matemática pela Universidade do Estado do Pará –
UEPA. E-mail: [email protected]
4 Licenciada Plena em Matemática pela Universidade do Estado do Pará –
UEPA. E-mail: [email protected]

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Ligia Francoise Pantoja et al

em dois estaleiros da Vila do Itapuá através de entrevistas com


os mestres carpinteiros e observações durante a construção das
embarcações. Obteve-se como resultados a percepção de que o
conhecimento matemático dos mestres carpinteiros são oriun-
dos de práticas diárias de seus trabalhos, decorrentes dos erros e
acertos trazidos consigo ao longo dos anos de profissão.

Palavras-chave: Etnomatemática. Carpintaria Naval. Conheci-


mento Geométrico.

ABSTRACT

In this paper we present the results of a field research that deals


with Ethnomathematics in riverine areas, emphasizing the car-
pentry in the shipbuilding held by residents in Itapuá village –
Vigia/PA. This study aimed to investigate which mathematical
knowledges the shipwrights have and use in the construction of
boats, and if these knowledges were acquired from the school
learning or through Ethnomathematics, that is, generated, orga-
nized and disseminated in the culture of their profession. This
research is qualitative and it was conducted through interviews
with the master carpenters and observations during the construc-
tion of boats in two shipyards located in Itapuá village. We have
obtained as results the perception that the carpenters’ mathema-
tical knowledges come from the daily practice of their work, re-
sulting from mistakes and successes brought with them over the
years in the profession.

Keywords: Ethnomatematics. Naval Carpentry. Geometrical


knowledge.

INTRODUÇÃO

Etnomatemática é uma tendência no campo da Educação


Matemática que possibilita, entre outras coisas, identificar, en-
tender e reconhecer os conhecimentos matemáticos desenvolvi-
dos nas práticas diárias de alguns grupos culturais. Neste artigo
buscamos identificar e reconhecer os saberes matemáticos, em
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Etnomatemática e construção naval: saberes de geometria de carpinteiros navais ...

especial os geométricos, aplicados no exercício da carpintaria na-


val.
A construção naval é um símbolo cultural da Amazônia
por se tratar de uma região constituída de florestas cortadas por
inúmeros rios. Tal cultura foi gerada e organizada desde a época
em que fora habitada por seus primeiros moradores, os índios.
Hoje a cultura tem sua importância econômica e social para re-
gião, principalmente para os ribeirinhos5 que tem suas vidas en-
trelaçadas a ela em função da pesca ser sua principal fonte de
alimento e renda desse grupo social. Considerando a importân-
cia e a necessidade das embarcações para as regiões ribeirinhas,
a construção das mesmas ainda se faz uma realidade sócio-eco-
nômico-cultural desenvolvida por mestres construtores navais
locais.
Em meio a construção de embarcações de pequeno e mé-
dio porte, os mestres vão trabalhando de maneira minuciosa para
que estas fiquem prontas e em perfeito estado de uso o que im-
plica na utilização de conhecimentos diversos, entre eles, mate-
máticos, os quais buscamos evidenciar neste trabalho. Todavia,
considerando a pouca ou nenhuma escolaridade dos mestres da
carpintaria naval, algumas questões nos fazem refletir: Os carpin-
teiros navais reconhecem a matemática existente na construção
das embarcações? Que saberes matemáticos se fazem presentes
nas embarcações? Como esses conhecimentos são adquiridos?
Como e onde são aplicados durante a construção dos barcos?
Para discutir tais questões buscamos apoio em alguns
trabalhos na área da Etnomatemática como os de Ubiratan
D’Ambrósio (1996; 1998; 2005);Gelsa Knijnik (1993, 2001, 2004);
Machado, Soares e Gonçalves (2008), Lucena (2002; 2005); atra-
vés dos quais tentamos compreender o Programa Etnomatemá-
tica e sua relação com as diversas culturas, para assim, embasar-
mos nossas discussões sobre os conhecimentos matemáticos dos
mestres carpinteiros navais.

5 Ribeirinhos são pessoas que habitam as beiras dos rios da Amazônia. Geral-
mente vivem do artesanato, da agricultura, da caça, do extrativismo vegetal e,
principalmente, da pesca.

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Ligia Francoise Pantoja et al

REFERENCIAL TEÓRICO DA PESQUISA

A Etnomatemática é uma das tendências atuais no ensino


de matemática, e segundo Knijnik (2004, p. 20)“[...] deve seu de-
senvolvimento como área da Educação Matemática a Ubiratan
D’Ambrósio, que, em meados da década de 70, apresenta suas
primeiras teorizações sobre este campo de estudos”. Nos dias de
hoje, D’Ambrósio é conhecido como o “pai da Etnomatemáti-
ca” por seus estudos terem influenciado pesquisadores de todo o
mundo a desenvolver pesquisas com abordagem etnomatemática
valorizando a realidade, a cultura de diferentes povos e grupos
sociais, reconhecendo como conhecimento as experiências ad-
quiridas pelos grupos em seu cotidiano, ou seja, no meio onde
vivem. De acordo com D’Ambrósio (2005):

Indivíduos e povos têm, ao longo de suas existências e ao longo


da história, criado e desenvolvido instrumentos de reflexão, de
observação, instrumentos materiais e intelectuais [que chamo
ticas] para explicar, entender, conhecer, aprender para saber e
fazer [que chamo matema] como resposta a necessidades de so-
brevivência e de transcendência em diferentes ambientes natu-
rais, sociais e culturais [que chamo etnos]. Daí chamar o exposto
acima de Programa Etnomatemática. (D’AMBRÓSIO, 2005, p.
60, grifos do autor)

O “Programa Etnomatemática” criado por D’Ambrósio,


diferente do que muitos pensam, não se esgota em procurar en-
tender, explicar e conhecer os saberes e fazeres matemáticos das
diversas culturas, trata-se de algo mais abrangente, conforme
descreve D’Ambrósio (2002, p. 45)“O Programa Etnomatemá-
tica não se esgota no entender o conhecimento [saber e fazer]
matemático das culturas periféricas [...] Por que Etnomatemá-
tica? Poderíamos falar em Etnociência, um campo muito fértil e
intenso de estudos, ou até mesmo Etnofilosofia”. Além do enfo-
que que busca compreender e reconhecer a matemático de um

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determinado grupo social, traz vertentes históricas e filosóficas


de cada cultura, algo que está associado a própria criação do ter-
mo Etnomatemática. Pode-se dizer então, que a etnomatemática,
segundo D’Ambrósio procura entender o ciclo da geração, orga-
nização intelectual, organização social e difusão do conhecimen-
to matemático das diversas culturas. A esse respeito, Machado,
Soares e Gonçalves (2008) destacam que:

A ideia básica é simples: todas as pessoas, todos os povos, em di-


ferentes culturas, possuem formas de lidar com o conhecimento
matemático que lhes são próprios, sejam eles os grupos indíge-
nas da Amazônia, sejam as comunidades agrícolas do interior do
Brasil, sejam os moradores dos grandes centros urbanos, todos
produzem, de alguma forma, conhecimentos matemáticos. É
claro que estes conhecimentos estarão muito fortemente ligados
às práticas e vivências (e necessidades) de cada um destes gru-
pos em questão. (MACHADO; SOARES; GONÇALVES, 2008,
p. 49).

Para D’Ambrósio (2005), o conhecimento é gerado a par-


tir das necessidades de um indivíduo que busca, no meio onde
vive, elementos necessários e suficientes para sobreviver, com-
preender e transformar sua realidade. No habitat humano são
encontradas informações traduzidas por símbolos repletos de
significados que são característicos de uma dada cultura e que
por isso devem ser estudados, compreendidos e respeitados por
outros grupos sociais.
Entre os vários saberes, existem aqueles inerentes à ciência
matemática que também estão inseridos em realidades de dife-
rentes grupos sociais sendo praticada por estes para resolver seus
problemas, mas, a seu modo; por isso, é importante e necessá-
rio compreender a diversidade de saberes produzidos no sentido
de verificar como os povos veem o seu fazer matemático, como
fazem, como explicam, como usam a matemática em seu meio
cultural, em seu cotidiano.
Knijnik (1993) entende que a Matemática precisa ser
compreendida como um tipo de conhecimento cultural gerado

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por diferentes culturas assim como a linguagem, as crenças, os


rituais, as técnicas específicas de produção, por isso, no enten-
dimento da autora, a abordagem etnomatemática deve ser com-
preendida como:

A investigação das concepções, tradições e práticas matemáticas


de um grupo social subordinado e o trabalho pedagógico que
se desenvolve na perspectiva de que o grupo interprete e codifi-
que seu conhecimento; adquira o conhecimento produzido pela
matemática acadêmica, utilizando, quando se defrontar com si-
tuações reais, aquele que lhe parecer mais adequado. (KNIJNIK,
2001, p.88)

Em nossa pesquisa verificamos que há um modo particu-


lar de enxergar, fazer e explicara a matemática no processo de
construção das embarcações pelos mestres carpinteiros. Os mes-
mos apresentam uma forma particular de classificar, estabelecer
relações, comparar, medir, quantificar, agrupar, entre outras coi-
sas, que é natural no exercício da profissão que desenvolvem.
Na etnomatemática, procura-se entender a funcionalidade
desse processo num dado meio cultural como dos mestres car-
pinteiros navais na vila do Itapuá-Vigia/PA, daí o desenvolvi-
mento desta pesquisa.

METODOLOGIA DA PESQUISA

A pesquisa foi desenvolvida mediante a realização de al-


gumas visitas à Vila do Itapuá-Vigia/PA e, consequentemente,
aos locais aonde acontecem as construções e reparos das embar-
cações.
A pesquisa de campo foi realizada em apenas dois entre os
dez estaleiros existentes na vila: o Estaleiro do Luís, vulgo “seu
Tatu” e o Estaleiro do “seu Rosinaldo”. Estes dois estaleiros fo-
ram escolhidos por serem os mais antigos, conhecidos e procu-
rados na região.
Foram realizadas duas visitas aos estaleiros. A primeira
aconteceu no dia 19 de abril de 2015 aonde, em períodos dis-

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tintos (manhã e tarde), tivemos nosso primeiro contato com os


mestres carpinteiros sujeitos da pesquisa os quais nos receberam
com muita atenção e educação. Tanto seu “Tatu” como o seu Ro-
sinaldo autorizaram a realização da pesquisa, assinado, inclusive,
o termo de consentimento livre (apêndice 1) e aceitaram nosso
convite para a realização de uma futura entrevista semiestrutura-
da (apêndice 2). A segunda visita aconteceu no dia 24 de abril de
2015, onde realizamos as entrevistas com os dois mestres donos
dos estaleiros.
Em meio ao que observamos e a partir das informações
proferidas pelos mestres construtores em entrevista, consegui-
mos identificar que saberes matemáticos, principalmente de
geometria, estavam presentes no trabalho realizado nos estalei-
ros e de que forma os mesmos emergiam considerando a pouca
escolaridade dos mestres construtores. Na pesquisa os registros
foram realizados por meio de, anotações, gravações e fotografias,
devidamente autorizadas.

A CULTURA DA CONSTRUÇÃO NAVAL EM VIGIA – PA.

O município de Vigia, por se tratar de uma região ribeiri-


nha, sempre teve as embarcações de madeira presentes em seu
contexto sociocultural. Faz parte da vida dos habitantes o conví-
vio com embarcações as quais, geralmente, são construídas em
estaleiros6 no próprio município.
A cidade de Vigia de Nazaré, lócus da pesquisa, fica locali-
zada na Mesorregião Nordeste do Estado do Pará, mais especifi-
camente na Zona Fisiográfica do Salgado a 99 km da capital Be-
lém. Vigia, assim como outras cidades amazônicas, tem a pesca e
a construção naval como uma das principais fontes econômicas
vigentes. A construção naval está relacionada à história do Brasil
e a própria história da cidade de Vigia a qual, por já ter sido uma
Aldeia indígena, tinha e tem em seu cotidiano a cultura da cons-
trução de embarcações.

6 Palavra derivada do francês no início do século XIV, também denominada de


Telheiro.

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Ligia Francoise Pantoja et al

Sobre a herança da construção naval na Amazônia, e con-


sequentemente na cidade de Vigia, Salorte (2010, p.103) explica
que: “ao saber dos mestres da construção naval da Europa, so-
bretudo os portugueses, o conhecimento e as técnicas indígenas
reuniram-se aqui na produção de embarcações ágeis e duráveis,
aptas a enfrentar com sucesso as peculiaridades da região”. Sen-
do assim, é possível dizer que a construção naval surgiu em fun-
ção dos conhecimentos herdados tanto pelos europeus, que por
aqui passavam, quanto pelos índios. Suas técnicas se entrelaça-
ram tornando a construção dos barcos uma atividade econômica
e fazendo das embarcações um dos meios de transporte mais im-
portante da Amazônia.
Esta prática, traz consigo tradição e cultura por meio dos
saberes e fazeres dos mestres carpinteiros que segundo Gualberto
(2009, p. 20), mesmo que as vezes imperceptíveis, consta de “[...]
saberes no campo da matemática, da química, da física, da geo-
metria, da educação, da administração, da economia, da ética, da
arte, da história”, em fim, áreas de conhecimento ensinadas na
escola que são desenvolvidas e exercitadas por carpinteiros no
oficio do seu trabalho diário sem que tenham tido contato com
tais saberes nas escolas. Sobre tais saberes, mais especificamente
sobre a presença de conhecimentos geométricos no processo de
construção das embarcações, que focamos o presente trabalho.

OS SABERES E FAZERES ETNOMATEMÁTICOS DOS


MESTRES DA CARPINTARIA NAVAL

Os mestres carpinteiros usam para a construção naval suas


formas de compreender a natureza e os saberes adquiridos ao
longo do tempo, os quais, são transmitidos de geração em gera-
ção. Tais conhecimentos podem ser classificados como tradicio-
nais e científicos.
Conhecimento tradicional, segundo Derani (2002, p.155
apud MARTINS, 2007, p. 29) “[...]é o conhecimento da nature-
za, oriundo da contraposição sujeito-objeto sem a mediação de
instrumentos de medida e substâncias isoladas traduzidas em có-

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digos e fórmulas”. Os conhecimentos dos mestres carpinteiros


da vila do Itapuáse enquadram nesta categoria pois são oriundos
de experiências humanas, difundidas a partir da compreensão da
natureza e da forma de como se adequar a ela. Segundo Martins
(2007), a relação entre homem e natureza, levando em considera-
ção a relação espaço-tempo (onde se vive e o tempo de vivência),
define a forma como surgem os conhecimentos.
O conhecimento cientifico está entrelaçado ao tradicional,
de modo que, quando gerado por indivíduos em atividades diá-
rias, como o sabre matemático por exemplo, pode vir a tornar-se
ciência. A esse respeito Schliemann et al (2001), descreve que:

[...] a matemática que um sujeito produz não é independente


de seu pensamento enquanto ele a produz, mas pode vir a ser
cristalizada e tornar-se parte de uma ciência, a matemática, en-
sinada na escola e aprendida dentro e fora da escola. (SCHLIE-
MANN, et al, 2001, p. 13, grifo nosso)

O conhecimento dos mestres carpinteiros navais verifica-


dos no processo de construção das embarcações pode tornar-se
modelo de saber a ser reconhecido cientificamente, por isso, é
importante e necessário investigá-los. Atualmente, na Vila do
Itapuá, existem cerca de dez estaleiros em atividade nos quais
são realizados trabalhos de reparoe construção de embarcações.
Dentre estes, apenas dois estaleiros, o do Mestre Rosinaldo e do
Mestre Luiz (Seu Tatu), foram escolhidos para a realização da
pesquisa.
Na entrevista realizada com os metres carpinteiros muitas
perguntas foram realizadas, entretanto, neste artigo, apresenta-
mos e discutimos somente algumas delas, entre as quais: Você
trabalha com carpintaria naval há quanto tempo? Como você ad-
quiriu todos os conhecimentos necessários para a construção de
uma embarcação?
Os dois mestres carpinteiros responderam que aprende-
ram o ofício durante a infância, e complementaram suas respos-
tas dizendo:

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Trabalho desde os 12 anos e tenho 23 anos de trabalho [...] apren-


di trabalhando, comecei trabalhando com o seu Olavo” (Infor-
mação verbal7, Mestre Rosinaldo, 2015).

Trabalho há uns 20 anos [...] quando eu era criança eu aprendi


um pouco, depois eu pesquisei muito, depois eu comecei a tra-
balhar de carpinteiro e fui evoluindo, trabalhando com os outros
e fui evoluindo, até começar a trabalhar por minha conta, fui
aprendendo, porque primeiro a gente aprende pra depois fa-
zer as coisas né? Fiquei aprendendo “um bocado”, trabalhei em
Icoaraci, trabalhei em Mosqueiro, trabalhei em Bragança, aí eu
aprendi trabalhando, ajudando os outros. (Mestre “Tatu”, 2015).

A mais de duas décadas os mestres participantes da pes-


quisa trabalham na carpintaria naval. Primeiramente como aju-
dantes-aprendizes e, em seguida, como mestre construtores cujo
aprendizado do ofício aconteceu em meio ao contato direto com
a profissão e a realização de pesquisas.
Há nos estaleiros uma grande circulação de conhecimen-
tos que são difundidos e repassados de geração para geração
conforme aconteceu com os mestres Rosinaldo e “Tatu”. Mesmo
os estaleiros não sendo instituições educacionais configuram-se
como verdadeiros ambientes de aprendizagem e isso é possível
porque, segundo Brandão (2007):

Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a


escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o
melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor
profissional não é o seu único praticante [...] Existe a educação
de cada categoria de sujeitos de um povo. (BRANDÃO, 2007,
p.9, apud GUALBERTO, 2009, p. 85).

Quando perguntamos sobre o grau de escolaridade, veri-


ficamos que os mestres pouco estudaram já que ambos possuem
7 Todas as informações verbais transcritas foram fornecidas em entrevista rea-
lizada com os mestres carpinteiros, senhor Luís e Senhor Rosinaldo no dia 24
de abril de 2015.

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somente o ensino fundamental incompleto. O Mestre “Tatu” tem


59 anos de idade, 20 anos de profissão e estudou até o 6º ano; o
Mestre Rosinaldo, possui 35 anos de idade, 22 de profissão e es-
tudou até o 7º ano. Apesar do pouco estudo, os dois carpinteiros
trazem consigo e colocam em prática durante a construção das
embarcações conhecimentos diversos sobre figuras planas, só-
lidos geométricos, ângulos, noção de densidade, empuxo, entre
outros.
Nas embarcações construídas ou em processo de constru-
ção, são visíveis a presença de elementos da matemática, em es-
pecial da geometria, por isso realizamos a seguinte pergunta aos
mestres:
Vocês reconhecem a presença da Matemática no trabalho
que realizam?

Um pouco, pelos cálculos que a gente faz, a gente já tem a base,


já trabalha a tanto tempo que já tem a base dos cálculos que a
gente faz e dá certo, a gente já vai mais pela intuição, isso dá
certo, faz assim, assim, dá certo né? Essa é a base que a gente já
tem, porque a gente já táa muito tempo trabalhando [...]. (Mes-
tre “Tatu”, 2015)

Tem matemática mas diferente da de vocês. No caso de a gente


medir uma madeira, por exemplo, a gente mede uma madeira
em metro cúbico, eu não sei se vocês sabem, a gente trabalha
assim”.(Mestre Rosinaldo, 2015, grifo nosso)

Quando o mestre Rosinaldo diz “Tem matemática mas di-


ferente da de vocês” mostra o distanciamento que o carpinteiro
faz da matemática utilizada por ele na construção dos barcos com
a matemática formal, geralmente estudada nas escolas. Esse mes-
mo sentimento é compartilhado por alguns estudantes em meio
ao não reconhecimento de conceitos matemáticos estudados em
sala de aula presentes em algumas práticas diárias, como a car-
pintaria naval. Eis um importante ponto a ser considerado nesta
pesquisa, a necessidade de deixar carpinteiros e alunos reconhe-
cerem em seu cotidiano a matemática e descobrir que ela não está
distante das práticas educativas e vice-versa.

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Ligia Francoise Pantoja et al

De todo modo, é possível dizer que há o reconhecimento


da presença da matemática no processo de construção das em-
barcações por parte dos mestres carpinteiros, todavia, estes são
decorrentes da prática, com base em experiências empíricas.Em
meio a esse reconhecimento, buscamos então verificar se os mes-
tres enxergavam geometria nas construções das embarcações.

Na minha construção eu enxergo a geometria pelo fato de a gen-


te fazer as partes do barco, tem uma parte larga, tem uma parte
estreita, aí a gente vai já por cabeça, ai vem à geometria, aqui da
tantos metros, pra ali já vai dar tantos metros. (Mestre “Tatu”,
2015, grifos nossos).

Na fala do mestre “Tatu” é possível perceber que o conhe-


cimento de grandezas e medidas é uma constante no processo de
construção das embarcações, entretanto, o mestre entende este
saber como sendo da área da geometria. Outra pergunta que rea-
lizamos foi: Como as formas geométricas contribuem para que a
embarcação fique em perfeito estado?

Vai da gente armar direitinho quando a gente começa a armar.


No caso daquela canoa bem ali (aponta para uma canoa em
construção), ela tá só a costelazinha lá olha, pra gente armar,
olha só a técnica, a gente coloca primeiro essa peça (aponta para
a peça que fica na parte de baixo da embarcação, a quilha8), só
essa daqui de baixo, depois coloca essa aqui que se chama talha-
-mar9 (aponta para o talha-mar), aí depois coloca essa parte de
trás, esse painel lá atrás (aponta para a proa10), aí que vem a ma-
temática, pra gente ver essa largura aqui pra gente poder armar.
Tem que armar certinho, tem que pegar o nível d’água11, bater
tudinho, aí a gente vai colocar os braços tudo nivelado, tudo cer-
tinho. (Mestre Rosinaldo, 2015)

8 Peça disposta em todo o comprimento do casco, constitui as cavernas.


9 Peça vertical, localizada em frente as embarcações, destinado a quebrar a força
da corrente das águas.
10 Parte dianteira da embarcação.
11 Importante ferramenta, para colocar peças em posicionamentos correto.
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A partir da fala dos mestres, é possível observar que os car-


pinteiros trazem consigo conhecimentos geométricos de forma
variada e com diferentes entendimentos. Um refere-se a geome-
tria relacionando-a com o conceito de área, distinguindo a área
em metros quadrados para cada parte da embarcação; outro a
relaciona com medidas e faz referência à simetria quando diz que
“[...] dependendo do comprimento da quilha e depois de coloca-
das o talha-mar e a proa, que são peças importantíssimas da em-
barcação, são ajustas as medidas exatas para que os lados fiquem
iguais”. (Mestre Rosinaldo, informação verbal)
Durante a pesquisa de campo identificamos os seguintes
conceitos de grandezas e medidas, assim como, de geometria,
empregados pelos mestres carpinteiros no processo de constru-
ção das embarcações: medidas em metros, centímetros, milíme-
tro e polegadas (quando precisam cortar madeiras, escolher onde
as peças poderão ser empregadas, ao assentar um motor e medir
distancias); ângulos12 (ao posicionarem madeiras, pregá-las ou
cortá-las); simetria13 (pois para uma embarcação ter estabilida-
de a forma de seu casco14 precisa ter um eixo de simetria, plano
diametral ou longitudinal, que passa pelo eixo da quilha e está
perpendicular à superfície da água, ou seja, os lados devem estar
posicionados com a mesma medida caso contrário não terá esta-
bilidade); polígonos15 (de acordo com o lugar da embarcação a
madeira pode ser cortada de formas diferentes como: quadrados,
retângulos, trapézios e etc.); e cálculo de áreas e volumes (pois de
acordo com o tamanho e tipo de embarcação os mestres calculam
a quantidade de madeira que seria necessária durante o processo
de construção).
A seguir, mostramos imagens que evidenciam a presença
da matemática na construção de algumas embarcações em pro-

12 Uma região do plano, convexa, determinadas por duas semirretas de mesma


origem.
13 Correspondência de partes situados em lados opostos de uma linha ou plano
médio ou que se acham distribuídos em volta de um centro ou eixo.
14 É o corpo da embarcação, parte simétrica a partir do eixo da quilha.
15 São figuras geométricas limitadas por linhas (segmentos).

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cesso de construção nos estaleiros.


Imagem 1 - Sólido geométrico e polígono nas embarcações

Fonte: arquivo Pessoal (2015)

Imagem 2 - Ângulo formado pelos segmentos do Talha-mar e Quilha

Fonte: arquivo pessoal (2015)

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Etnomatemática e construção naval: saberes de geometria de carpinteiros navais ...

Imagem 3 - Simetria existente nas embarcações

Fonte: arquivo pessoal (2015)

No processo de construção das embarcações, os mestres


carpinteiros também utilizam, sem jamais terem estudado em
escolas, noções de outras áreas do conhecimento como empu-
xo, estabilidade e flutuabilidade, já que as embarcações ficarão
na água.
Na árdua tarefa de construir embarcações, conhecimentos
de física, geometria e de outras áreas vão sendo utilizados pelos
mestres sem que estes lhes tenham sido ensinados nas escolas.
São saberes etnomatemáticos, oriundo de suas práticas e adquiri-
dos em anos de profissão em meio a erros, acertos e observações
junto com outros mestres conforme mostrou a pesquisa realiza-
da.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cultura da construção naval existente na Vila do Itapuá-


-Vigia/PA e, consequentemente, na região Amazônica, se deu a
partir da necessidade de navegar pelos rios, herança cultural de
nossos antepassados indígenas e europeus. Os conhecimentos
adquiridos pelos mestres carpinteiros navais foram sendo gera-

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dos e difundidos ao longo do tempo sendo repassados de geração


para geração até os dias hoje, apesar das dificuldades encontra-
das, considerando o pouco interesse dos jovens e crianças em
aprender e dar continuidade ao exercício da profissão.
Os saberes matemáticos dos construtores navais identifi-
cados na pesquisa são etnomatemáticos, ou seja, são gerados, or-
ganizados e difundidos na cultura da profissão da carpintaria na-
val. Tais conhecimentos, mesmo sendo tradicionais e informais,
estão ligados a ciência já que servem de parâmetro para a cons-
trução de novos conhecimentos cientificamente reconhecidos.
Durante a entrevista realizada foi possível verificar que
os mestres não somente reconhecem que existe matemática, em
especial geometria, presente nas embarcações que constroem,
como também, souberam revelar aonde e de que forma elas
aparecem em meio aos rabiscos de medidas, cortes nas madei-
ras, através do cálculo da quantidade de material necessário para
construir uma embarcação.
Um fato importante a ser considerado na pesquisa é que
os Mestres Rosinaldo e Luiz (Seu Tatu) tiveram pouco acesso à
escola mas, ainda assim, possuem conhecimentos da física, mate-
mática, biologia e outras áreas do conhecimento os quais foram
desenvolvidos no decorrer do exercício da profissão.
Os saberes e fazeres dos Mestres da Carpintaria Naval de-
vem ser valorizados e repassados para gerações futuras para que
est bela profissão não seja extinta.

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