2-Myrian Sepúlvida Dos Santos e Paulo Peixoto - Patrimonios Mundiais - Fragmentação e Mercantilização Da Cultura

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PATRIMÔNIOS MUNDIAIS: FRAGMENTAÇÃO E MERCANTILIZAÇÃO DA

CULTURA1

Resumo:

Na segunda metade do século XX, as políticas de preservação do patrimônio


deixaram de ter como local privilegiado os Estados nacionais. A normatização das
políticas preservacionistas por fóruns da UNESCO (Organização das Nações Unidas
para a Educação, Ciência e Cultura) criou uma nova dinâmica e remeteu o patrimônio
para a esfera da circulação global de valores, signos e mercadorias. Independentemente
das razões que deram início às práticas de salvaguarda dos “patrimônios mundiais”, este
processo acarretou a configuração de novas matrizes de identidade nas cidades eleitas,
pois estas se tornaram objeto privilegiado da indústria de turismo e fortaleceram
justamente seus pólos mais modernos e globalizados em detrimento do mais antigo e
tradicional. Além disso, as disputas entre nações para que seus patrimônios sejam
eleitos como “mundiais” levaram a uma distinção entre patrimônios culturais e naturais,
por um lado, e imateriais ou intangíveis, por outro. Tais disputas envolvem forças
políticas diferenciadas e tendem a consolidar as hierarquias já formadas nos fóruns
globais entre as nações que estão no centro das decisões políticas e aquelas que se
situam na periferia.

Palavras-chave: patrimônio universal; patrimônio material; patrimônio intangível.

1
Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia,
realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil.

1
Introdução:

Edward Said, em “Orientalismo”, denunciou a obsessão Ocidental com o


exótico, a forma pela qual o Ocidente construiu uma identidade estereotipada para o
Oriente, e, com isso, a homogeneização e banalização de grupos sociais que possuíam
culturas complexas e milenares. Esse processo tem sido apontado como fundamental na
legitimação do poder colonial sobre diversos países.2 Mas nos mostra, também, como as
dinâmicas de patrimonialização se concretizam através de exclusões, de dominações e
de exuberâncias, ao mesmo tempo em que revela que a economia política das
identidades é uma ação performativa e espetacularizada.
Os imaginários nacionais, além do promoverem uma hierarquia entre as nações
que se constituíam, consolidaram homogeneidades culturais no interior de cada
território de forma a favorecer elites dominantes. O patrimônio monumental expressou
material e simbolicamente esse processo. As nações, ao subordinarem a diversidade de
linguagens e expressões simbólicas de suas populações a um conjunto essencializado de
símbolos, produziram um discurso de poder que foi capaz de hierarquizar os diversos
grupos sociais que compunham as nações. Dada a configuração existente de nação
constituída, e essa facilidade em essencializar, grupos sociais associados a categorias
que não foram reconhecidas pelas ações coletivas hegemônicas encontraram-se
estigmatizados.3
Inicialmente associado à formação dos Estados nacionais, o “patrimônio” se
tornou um aspecto onipresente no mundo contemporâneo. Muitos desses patrimônios
esconderam séculos de dominação e violência, aproximando-se dos documentos da
barbárie denunciados por Walter Benjamin (1968). Em rigor, seu reconhecimento como
patrimônio simboliza, muitas vezes, o sucesso do lado vencedor da história. A partir da
década de 1970, a noção de “patrimônio” adquiriu novos significados. Nas Convenções
da UNESCO, o termo patrimônio surgiu associado a políticas capazes de promover a
diversidade cultural, ajudar minorias e grupos carentes, e, até mesmo, de melhorar a
qualidade de vida. Contudo, diferentemente das justificativas presentes em políticas
preservacionistas, o carro-chefe da política patrimonial global, ou seja, o processo de
eleição de patrimônios “universais,” continuou a desempenhar papel fundamental na

2
A análise de Edward Said (1978) sobre a construção estereotipada do Oriente tem dado origem a
diversas análises relativas às construções nacionais de antigas colônias européias. Em relação aos países
da América Latina, ver, por exemplo, Walter Mignolo (2000).
3
Os trabalhos de Stuart Hall (1976) e Paul Gilroy (1993), por exemplo, têm mostrado a dificuldade de
determinados grupos sociais reconhecerem-se como britânicos e o lugar de subalternidade que ocupam no
contexto nacional.

2
configuração de uma relação hierarquizada entre nações, acentuando, por um lado, a
distância entre o centro e a periferia; e, por outro lado, a divisão entre esferas locais e
globais.

I. O patrimônio como celebração dos Estados nacionais


A consolidação dos Estados nacionais ao longo dos séculos XVII, XVIII e
XIX, pelo menos, resultou de um longo processo, envolvendo diversas disputas
econômicas, políticas, sociais e culturais. Nesse período, o sentimento de pertencimento
à nação não surgiu espontaneamente, mas a partir de estratégias diversas, desde a defesa
militar de cada território à promoção de identidades próprias.
O surgimento da imprensa e da literatura como também a construção de uma
historiografia comum permitiram que idéias circulassem e fossem consolidadas. Além
disso, os heróis, monumentos, mitos e iconografias relacionados aos Estados nacionais
que se constituíram foram capazes de propiciar o enaltecimento de virtudes e atitudes
morais em substituição aos pertencimentos anteriores relacionados à religião e às
dinastias existentes. Na consolidação de narrativas nacionalistas, a partir das quais
membros da nação se perceberam como semelhantes entre si, foram fundamentais os
rituais, as festas cívicas, as comemorações, os monumentos e as instituições culturais. O
patrimônio cultural constituído por cada Estado foi fundamental na construção de sua
identidade. 4 Embora a construção do imaginário nacional não seja apenas uma invenção
datada, uma vez que ela utiliza elementos que já eram aceitos e reconhecidos por grupos
sociais, diversos mecanismos podem ser apontados como sendo responsáveis pela
consolidação de um conjunto de símbolos compartilhado entre os membros da nação.5
Sabemos, portanto, que os imaginários nacionais, tal como ainda os
conhecemos, estão associados à formação dos Estados nacionais. É preciso, contudo,
perceber que este projeto não pode ser naturalizado e que ele conviveu, como ainda
convive, com fissuras e contradições.6 Os Estados nacionais promoveram determinados
elementos da cultura com o objetivo de construírem uma identidade própria em
confronto com as demais nações que se formavam. A escolha de quais elementos seriam

4
Sobre a formação dos Estados nacionais, ver, entre outros, Hobsbawm & Ranger 1983, Gellner 1983,
Anderson 1983, Hobsbawm 1992, Kammen 1993, Gillis 1994, Boswell & Evans 1999.
5
A importância de vínculos coletivos anteriores às formações dos Estados nacionais é bem explorada por
autores como Hastings 1997 e Smith 1999.
6
Ver a crítica de Chatterjee (2008) a Benedict Anderson por tornar a história da modernidade capitalista,
ou das sociedades da Europa Ocidental e América do Norte, como processo universal.

3
eleitos para identificar o conjunto dos membros de uma nação não foi realizada de
forma passiva, nem no fórum geral das nações, nem no interior do território nacional.
Nos séculos XVIII e XIX, no confronto entre nações, além das disputas por
riquezas e colônias houve também diversas contendas em torno das definições que
assumiam as diversas culturas nacionais. Houve uma corrida por parte das grandes
nações do Ocidente pela posse do “grande legado da civilização ocidental”. O passado
tornava-se um objeto distante e importante, que podia ser apropriado, atribuindo
prestígio a seu proprietário. As tropas militares e missões colonialistas foram utilizadas
no resgate do que foi considerado o “patrimônio universal da humanidade” naquela
época. Era freqüente a presença de embaixadores ingleses e franceses com
conhecimento muito grande sobre objetos e monumentos que representassem o berço da
civilização ocidental nas missões coloniais. Eles procuravam antigos tesouros e os
enviavam para os museus de suas pátrias. Expedições das potências européias invadiram
a Grécia, Itália, Ásia Menor, Norte da África e regiões onde se localizavam as antigas
cidades da Mesopotâmia em busca das antiguidades clássicas. O valor dessas
antiguidades foi imenso para a formação de uma hierarquia que se formava entre as
nações. As obras de arte gregas e romanas, consideradas como ideais de perfeição, eram
sistematicamente conduzidas aos museus das nações européias mais poderosas. Houve
uma disputa entre nações européias pela obtenção de objetos de arte, mas também da
vida cotidiana, das antigas civilizações da humanidade.7
No que diz respeito à natureza, uma corrida similar ocorreu. O conhecimento
sobre a origem da vida implicava em classificar objetos encontrados em toda a parte do
mundo. Na primeira metade do século XIX, a iniciativa de identificar e classificar todas
as plantas, animais e minerais existentes se generalizou na Europa. Os naturalistas
engajaram-se em viagens exploratórias ao redor do globo, colheram milhares de
exemplares da natureza e levaram todo o conhecimento sobre este material para seus
países. Arquivos, bibliotecas, jardins botânicos e museus europeus fizeram parcerias
com associações e sociedades científicas, ou mesmo as substituíram, no suporte a estas
investigações. Paralelamente às espécimes de flora e fauna, foram classificados e

7
Para uma análise da importância das coleções oriundas da antiguidade clássica na constituição da
coleção do Museu Britânico, ver as investigações de St Clair (1988), sobre os mármores do Parthenon, e
as análises de Sir David M. Wilson, ex-diretor do Museu Britânico, sobre o caráter universalista do
museu. Este último autor ressaltou ainda a dificuldade do Museu Britânico em manter sua posição frente
ao poder financeiro dos Estados Unidos (Wilson 1989). Sobre o caráter nacionalista da coleção do
Louvre, ver Duncan , e sobre a a constituição do acervo do Museu do Pérgamo, ver Mathes 1998.

4
hierarquizados os grupos nativos que se encontravam espalhados ao redor do mundo.
Diversos museus ainda hoje exibem dioramas com povos ditos “primitivos” ao lado de
outros que mostram animais empalhados e habitats diversos construídos. A partir de
meados do século XIX, os Estados Unidos entraram na disputa pelo controle dos
sistemas classificatórios de elementos da natureza, de teorias sobre a origem da vida e
sobre o desenvolvimento da incipiente ciência biológica.8
Enquanto os Estados nacionais europeus assumiam o controle dos patrimônios
considerados universais, fossem eles culturais ou naturais, os demais Estados que foram
se constituindo contentavam-se com a posse das migalhas desse patrimônio. Na
hierarquia entre nações, ocidente e oriente constituíram-se como pólos opostos. Portugal
e Espanha surgiam como nações híbridas, pouco helênicas. A herança moura não lhes
conferia prestígio. As Américas, como bem diagnosticado por Walter Mignolo
(2000:327-8), foram consideradas pelo ponto de vista dos intelectuais europeus, como
cópias subalternas. Brasil, Argentina e outras nações da América Latina construíram
seus perfis identitários com base na natureza, pois faltava às nações jovens o legado
cultural.9 Na representação novecentista da nação brasileira, os nativos foram
associados à natureza e os africanos e seus descendentes, que eram trazidos aos milhares
como escravos das grandes lavouras, foram ignorados.
Na segunda metade do século XX, associada à crise por que passavam os
Estados nacionais, observou-se uma reformulação dos objetivos e estratégias das
instituições associadas à preservação dos patrimônios nacionais em todo o mundo. Em
1946, reunindo representantes de 147 países, foi criado o Conselho Internacional de
Museus (ICOM), uma organização não governamental que mantém relações formais
com a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura),
e que tem definido orientações gerais para as práticas desenvolvidas pelos profissionais
de museus em todo o mundo. No período pós-guerra atuou decisivamente no sentido de
redefinir os discursos autoritários e excludentes inerentes às grandes narrativas
presentes nos museus inserindo-os no mercado cultural que se formava. Atualmente
uma de suas ações principais é a de coibir o tráfico ilícito de patrimônios culturais,
muito embora os saques e expropriações do passado não sejam objeto de pauta.

8
Sobre as diversas expedições europeias de naturalistas voltados para a classificação de espécies e
culturas, ver, entre outros, Blanckaert 1997.
9
No Brasil, os principais museus criados no século XIX caracterizaram-se por suas coleções de História
Natural. Na Argentina e em outros museus latino-americanos os museus nacionais tiveram por base a
coleta de fósseis. Sobre o tema, ver Santos 2005, 2008.

5
A partir da década de 1970 diversos fóruns foram criados além do ICOM
ampliando substantivamente as políticas preservacionistas que passaram a associar o
patrimônio à esfera de circulação global de valores, signos e mercadorias. O turismo
cultural se expandiu. Diferentemente do que acontecera no período de formação dos
Estados nacionais, quando os “patrimônios mundiais” foram apropriados em museus
pelas nações mais poderosas, trata-se agora de sacralizar determinados sítios, práticas e
expressões ao redor do globo para que estes se tornem parte do circuito do turismo
cultural internacional. Estratégias diferenciadas, mas com resultados semelhantes. Tanto
mais que, a médio prazo, como veremos mais à frente, a instrumentalização dessas
novas categorias patrimoniais pelos Estados centrais se foi tornando evidente.
Em 1972, os países-membro da UNESCO referendaram a petição intitulada
“Convenção para a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural do Mundo”. Na petição
ficou proposta a proteção de monumentos, construções, lugares arqueológicos, assim
como de formações físicas ou biológicas, que tivessem um valor universal e
excepcional, tanto do ponto de vista estético como científico. Essa política de
preservação dava continuidade às preocupações já presentes em Conferências Européias
sobre Políticas Culturais (Veneza, 1970 e Helsinki, 1972) em conter as consequências
do colonialismo sobre culturas nacionais; combater o racismo e proteger as culturas
nacionais do então chamado “neo-colonialismo”. Os documentos mostram que o termo
“cultura” distancia-se de educação e tecnologia, e encontra-se bem próximo do conceito
de patrimônio, ou seja, conjunto de bens e práticas tradicionais capazes de unir uma
determinada população em torno de uma representação de nação. Ele aparece associado
às sociedades Asiáticas, Africanas, Latino-americanas e da Oceania, entre outras, e
compreendido em contraposição às sociedades tecnológicas e pós-industriais como as
existentes na Europa ou nos Estados Unidos da América.
Acreditava-se que a preservação do patrimônio cultural seria capaz de
proporcionar um sentido de identidade e continuidade aos grupos sociais ameaçados,
não só por causas tradicionais, mas também devido à evolução da vida social.
Procurava-se compensar os males do progresso. Além disso, a política de preservação
de patrimônios universais apontava para a criação de uma identidade coletiva que unisse
a todos, independentemente, de suas diversas configurações identitárias. Nas décadas
subsequentes, o patrimônio consolida-se em diversas convenções da UNESCO como
ferramenta capaz de promover a diversidade cultural, ajudar minorias e grupos carentes,
e, até mesmo, de melhorar a qualidade de vida em nações mais pobres.

6
II. A transformação de cidades pequenas e médias em patrimônios mundiais

A eleição de patrimônios mundiais não implicou na criação de um coletivo que


tivesse uma identidade “mundial” ou “global”, e nem mesmo foi significativa para o
desenvolvimento de nações mais carentes de recursos. Ao contrário, acirrou a disputa
entre diversas nações ou cidades por ganhos políticos ou comerciais, consolidando ou
mesmo reforçando as hierarquias existentes. Por um lado, o precedimento da
Convenção de 1972, ao fazer repousar sobre os Estados nacionais a responsabilidade de
elaboração de uma lista indicativa a partir da qual seriam selecionados os bens do
patrimônio mundial, acentuou essa disputa. Por outro lado, o crescente protagonismo
das cidades enquanto agentes de políticas públicas contribuiu para instigar a contenda e
fazer emergir fenômenos de escalada no domínio da dramatização do patrimônio.
O resultado da corrida ao estatuto de cidade patrimônio mundial pode ser
observado quantitativamente (Quadro 1 e Gráfico 1). Em finais dos anos 1980 o número
de cidades patrimônio mundial era de 71, enquanto em finais dos anos 1990 (apenas 10
anos volvidos) esse número se elevava a 164. Tão ou mais significativo quanto este
crescimento é o fato de a percentagem de cidades patrimônio mundial situadas na
Europa ter passado, na última década do século XX, de 45,1%, em 1989, para 57,3%,
em 1999 (Peixoto, 2000).

Quadro 1 – “Cidades patrimônio-mundial” por regiões em 1995 e em 2008


1995 2008
Regiões
N % N %
Europa 66 49,3 133 55,7
África e Médio Oriente 18 13,4 35 14,6
Ásia e Pacífico 22 16,4 30 12,6
América do Norte* 9 6,7 12 5,0
América do Sul, Central e Caraíbas 19 14,2 29 12,1
Total 134 100,0 239 100,0
Fonte: OCPM * EUA, Canadá et México

O estatuto de cidade patrimônio mundial se tornou um alvo de estratégias de


regiões onde estão localizados os principais destinos do turismo histórico e patrimonial.
A mudança de identidade simbólica provocada pela obtenção deste estatuto funciona

7
como uma bandeira que é agitada para atuar como imagem de marca de lugares que
procuram tornar-se mais competitivos, sobretudo ao nível da captação dos fluxos do
turismo histórico e patrimonial. O reforço progressivo da logística turística,
designadamente da oferta hoteleira e de serviços de animação, bem como a gradual
diversificação da oferta – como mostra a realidade de diversas cidades brasileiras e
portuguesas – são indicadores evidentes da transformação da economia simbólica dos
lugares tombados.
Além disso, em um levantamento realizado em cidades médias de Portugal que
foram eleitas a patrimônio universal, observamos uma nova configuração de matrizes
urbanas, com fortalecimento dos pólos mais modernos e adaptáveis à indústria de
turismo em detrimento do mais antigo e tradicional, funcionando este como adereço da
vetustez que atesta a autenticidade e permite a espetacularização e a performatividade
de identidades locais.
É sabido que os custos económicos associados à manutenção das cidades
históricas e dos conjuntos patrimoniais, em geral, são avultados (Icomos, 1993: 21-22;
Patin, 1997: 130-138). Acresce que, em comunidades que estão ainda longe de
assegurar uma satisfação conveniente das necessidades primárias, o ato de consagrar
recursos à conservação do patrimônio é frequentemente encarado como um luxo. A
intensificação da patrimonialização e mais concretamente a corrida ao estatuto de
patrimônio mundial, essa marca moderna do património universal, justifica-se quando
compreendemos que as políticas locais e urbanas voltaram-se para a promoção da
atividade turística decorrente da “febre da patrimonialização”, ou da “histeria do
patrimônio” (Peixoto, 2002).
A intensificação da patrimonialização resulta, em larga medida, da necessidade
de atuar e de reagir localmente face a processos que são estruturais ao nível económico
e globais em termos de escala (Newby, 1994). Com isto, queremos dizer que as
transformações ocorridas no seio das estruturas da economia mundial, caraterizadas pela
crise das economias industriais, pelo crescimento do consumo e pela generalização dos
lazeres, tem obrigado muitas cidades dominadas por economias industriais ou agrícolas
a reconverterem-se. Os elementos disponíveis para promover essa reconversão
(sobretudo ao nível das pequenas e médias cidades) são a cultura, o passado e o
patrimônio. Assim, para lá do número crescente de lugares que disputam essa
classificação, um segundo indicador, que permite caraterizar com maior propriedade
esta corrida ao estatuto de patrimônio mundial, e que é uma consequência das
transformações que acabamos de referir, é discutido adiante. Ele remete para o fato de a

8
última década do milénio ter visto a corrida ser dominada pelas cidades dos países da
Europa ocidental, que, curiosamente, integram os principais mercados emissores e
recetores dos fluxos turísticos.
No Quadro 2 é fácil verificar que a posição que os países ocupam na lista do
patrimônio mundial (se os hierarquizarmos de modo decrescente a partir do número de
bens inscritos na lista) é idêntica à posição que esses mesmos países ocupam na
hierarquia dos principais destinos do turismo internacional. É, aliás, interessante notar
que as posições são quase homólogas e que esse fato não é circunstancial, uma vez que
pode ser observado ao longo de um vasto período.

Quadro 2 - Posição ocupada na lista do patrimônio mundial e na hierarquia dos


destinos turísticos
País Nº de bens Nº de
Posição na lista Hierarquia dos
inscritos na lista turistas
do patrimônio destinos
do patrimônio (em
mundial turísticos
mundial milhões)
200 199 200 200
1990 2001 2008 1990 2001 2008 2001
8 0 1 8
Espanha 16 37 40 4 1 2 49,5 59,2 3 2 2
Itália 6 35 43 18 2 1 39,1 43,7 4 4 5
China*** 7 28 37 13 3 3 33,2 54,7 12 5 4
França 17 28 33 2 3 4 76,5 81,9 1 1 1
Alemanha 9 25 33 8 5 4 17,9 24,4 9 10 7
Reino Unido 14 24 27 5 6 7 23,5 30,7 7 6 6
Índia 19 22 27 1 7 7 2,5 5 -- -- 42
México 8 21 29 10 8 6 19,6 21,4 8 7 10
Estados Unidos 17 20 20 2 9 10 44,5 56 2 3 3
Brasil 7 17 17 13 10 11 4,9 5 53 28 41
Rússia* 3 17 23 -- 10 9 15,8 20,2 17 13 13
Grécia** 12 16 17 6 12 11 12,8 16 13 14 16
Austrália** 8 14 17 10 13 11 4,8 5,1 36 33 40
Canadá 10 13 15 7 14 14 19,6 17,9 10 8 14
Portugal 6 12 13 18 15 16 12,2 12,3 14 15 20

9
Repúb. Checa 0 11 12 -- 16 18 3,7 6,7 -- 38 35
Japão 0 11 14 -- 16 15 4,8 8,3 28 34 28
Fontes: lista do patrimônio mundial. Unesco (Janeiro de 2002) e Organização Mundial
do Turismo
*Dados relativos a 1998 no que respeita ao turismo; **Dados relativos a 2006 no que
respeita ao turismo; ***Excluindo Macau, 12,9 milhões de turistas em 2007

A França que é o principal destino turístico no mundo ocupa a terceira posição


na lista do patrimônio mundial. A Espanha é o segundo destino turístico e é o país que
conta mais bens na lista do patrimônio mundial. A título de exemplo, podemos constatar
que, no início dos anos 1990, a Índia (que é um destino turístico marginal) ocupava o
primeiro lugar na lista do patrimônio mundial. Chegados ao início da primeira década
do século XXI, a Índia tinha sido ultrapassada pela Espanha, pela Itália, pela França,
pela China, pela Alemanha e pelo Reino-Unido. Em 1990, entre os países que contavam
mais bens sancionados pela Unesco figuravam a Bulgária (em oitavo lugar), o Peru (em
décimo lugar), a Etiópia (na décima terceira posição), a Argélia (em décimo oitavo
lugar), o Egipto, a Líbia e o Paquistão (na vigésima posição). Em 2001, nenhum destes
países “periféricos” ocupava uma posição entre os vinte primeiros da lista do patrimônio
mundial. Em contrapartida, a Itália, que em 1990 ocupava a décima oitava posição na
lista da Unesco, em 2001 subiu ao segundo lugar. Este fato permite-nos afirmar que não
nos encontramos apenas perante uma corrida ao estatuto de patrimônio mundial. O
fenómeno parece ser mais complexo. Encontramo-nos, na verdade, perante uma corrida
que se intensificou fortemente à medida que as cidades dos países que dispõem de
conjuntos patrimoniais mais valiosos ou mais valorizados pela indústria turística,
animadas pela retórica da concorrência e pela densificação dos fluxos turísticos, se
empenharam profundamente na transformação da sua identidade simbólica.
Através do Gráfico 1 podemos verificar que os países que inscreveram um
maior número de bens na lista do patrimônio mundial durante os anos 1990 são,
simultaneamente, aqueles que figuram entre os principais destinos turísticos. A China,
que, durante o decénio (1990-1999), foi o segundo país a recolher maior número de
distinções da Unesco, tendo passado da décima terceira para a quarta posição (terceira
em 2001) na lista do patrimônio mundial, ganhou em igual período 6 posições na
hierarquia dos destinos turísticos, tendo passado de décimo para sexto lugar (quinto em

10
2001).10 Devemos notar que não defendemos o argumento que a obtenção do estatuto de
patrimônio mundial garante, por si só, o crescimento da procura turística. O argumento
que sustentamos é que a instituição do estatuto de patrimônio mundial pela Unesco se
converteu numa distinção simbólica que as cidades e os Estados não desprezam no
conjunto dos esforços que empreendem para reforçar a sua atratividade turística.11 Esta
distinção simbólica é, frequentemente, o elemento mais importante das políticas de
marketing urbano e da gestão e da estruturação dos fluxos do turismo patrimonial, que
é, entre as formas de turismo, um dos segmentos mais organizados e cujos fluxos são
dos mais controlados por estratégias e aparelhos organizacionais (Page, 1995).

Gráfico 1 – Nº de bens inscritos na lista do patrimônio mundial por país (anos


1990)

25
Itália

China 17

Espanha 14

Alemanha 14

Rússia 13

México 13

França 10

Japão 10

Rep. Checa 9

0 5 10 15 20 25

Fonte: lista do patrimônio mundial. Unesco (Janeiro de 2002)

10
Segundo previsões da Organização Mundial do Turismo (1997), a China, que em 1985 estava
classificada na décima terceira posição dos países mais visitados, ocupará, em 2020, o primeiro lugar
entre os destinos mais procurados.
11
Podemos citar, a título de exemplo, o caso da República Checa. Este país, que era, em 1990, o décimo
sexto destino mais procurado pelo turismo internacional e que, em 1998, era já o décimo segundo, no
início da década de 1990 não tinha qualquer bem inscrito na lista do patrimônio mundial. Ainda que este
país tenha perdido, no período 1999-2001, algumas posições na hierarquia do turismo internacional, os
esforços que tem levado a cabo para melhorar a sua atractividade turística, incluindo as candidaturas ao
patrimônio mundial, permitiram-lhe provisoriamente ganhar algumas posições nesta hierarquia. As
previsões da Organização Mundial do Turismo (1997) apontam este país como candidato a ocupar, em
2020, a décima posição entre os destinos mais procurados.

11
A ideia que as cidades estão em crise parece ter-se tornado um lugar-comum. A
concentração da população nas cidades, o crime e a violência, a degradação paisagística
e ambiental, a decadência das infraestruturas, o declínio da economia industrial, o
aumento do desemprego, o trânsito e o estacionamento, a falta de habitação e a
marginalidade, são fatores recorrentemente apontados como sintomas da crise das
cidades. Asfixiadas pelo crescimento ou vítimas de um declínio incontornável e
agonizante, as cidades parecem não conseguir escapar aos discursos negativistas que
sobre elas se produzem. Face às pressões dos processos económicos dominantes, e aos
discursos negativos sobre a cidade, a retórica política dos governantes locais tende a
concentrar-se à volta das necessidades em desenvolver estratégias sustentáveis de
combate ao declínio, afirmando-se o turismo, nesse contexto, como um eixo
incontornável. É por essa razão que, nas últimas décadas o turismo urbano, e
especificamente o turismo cultural citadino, se tornou um fator de interesse para as
organizações envolvidas na atividade turística.
A turistificação e a patrimonialização dos lugares, que frequentemente se
tornam dinâmicas indissociáveis, são processos que conduzem a uma progressiva
mercadorização dos territórios, dos quais se espera que tenham um valor de troca cada
vez maior. A crescente competição entre cidades está a fazer com que as políticas
ligadas ao turismo se concentrem cada vez mais no marketing do turismo cultural
urbano, uma vez que parece ser evidente que os lugares fazem um uso cada vez mais
intenso do turismo cultural para se promoverem.
Nesta medida, visando concretizar palcos estratégicos capazes de atrair fluxos
turísticos, são recorrentes as operações de animação cultural. Estas, por sua vez, tanto se
concretizam através da criação de produtos culturais desenvolvidos a partir de valores
culturais existentes, como a partir do desenvolvimento de atrações culturais que não têm
qualquer relação com a historicidade local. Em qualquer dos casos, o patrimônio, mais
que uma herança a preservar, torna-se uma mercadoria a valorizar. Concretiza-se, assim,
uma espécie de corrida ao turista, na medida em que os centros urbanos passam a estar
reorientados de acordo com as características de um mercado fugaz, composto por
consumidores potenciais externos a esse lugar e que estão sujeitos a tornar-se
espectadores de uma cidade encenada (Bonard e Felli, 2008).

III. Patrimônios materiais: centro e periferia

12
A tentativa da Convenção de 1972 de preservar elementos da cultura e da
natureza, tornando-os patrimônios mundiais, aparentemente teve o grande mérito de
tornar coletiva a responsabilidade sobre a preservação de determinados legados da
humanidade ameaçados pelo “desenvolvimento”. Há, entretanto, alguns aspectos
contraditórios nestas políticas de salvaguarda cultural.
Como vimos na seção anterior, distante dos discursos salvacionistas de
sociedades tradicionais, as políticas de preservação do patrimônio material (natural e
cultural) têm modernizado as cidades, cujos centro históricos são eleitos como sendo
“universais”, tornando-as espaço privilegiado para que um complexo industrial externo
à cultura local lá se instale. O processo, ainda que perverso, insere as cidades em um
circuito cultural de turismo, trazendo recursos para as cidades, parques e sítios
transformados em patrimônios mundiais. Longe de ser um processo democrático, a
eleição do que deve ser considerado de valor “mundial” obedece a uma série de
pressões políticas.
Atualmente 186 países apoiam a Convenção de 1972, o que transforma esta
Convenção em uma das mais representativas da UNESCO. A lista realizada pelo
comitê eleito da Convenção de 1972 é composta por 911 propriedades, de caráter
natural, cultural e misto, que foram eleitas como patrimônios universais de valor
excepcional. Lembramos que a justificativa de preservação destes bens é a de que eles
estariam ameaçados por processos de “neo-colonização” e desequilíbrio entre nações
ricas e pobres. A necessidade de preservar os patrimônios teria como justificativa a
ameaça de destruição dos patrimônios não só por causas naturais, mas devido a
mudanças sócio-econômicas, e à consideração de que:

“A proteção desse patrimônio no nível internacional muitas vezes


permanece incompleto devido à escala de recurso que ela requer e aos recursos
insuficientes técnico, econômico e científico do país onde a propriedade a ser
protegida está situada.”12

Contudo a maior parte dos bens patrimoniais eleitos como sendo de caráter
universal estão localizados nas regiões mais ricas e desenvolvidas do globo: Europa e
América do Norte (Quadros 3).

Quadro 3 – distribuição do “patrimônio cultural e natural” por regiões (2010)

12
http://unesdoc.unesco.org/images/0011/001140/114044e.pdf#page=134

13
Nº de países
com bens
inscritos
Natural
Cultural

Total
Mistos
Regiões

%
África 42 32 4 78 9 29
Países Árabes 61 4 1 66 7 16
Ásia e Pacífico 138 51 9 198 22 31
Europa e América do Norte 377 58 10 445 49 49
América Latina e Caribe 86 35 3 124 14 25
Total 704 180 27 911 100 151
Fonte: Unesco / http://whc.unesco.org/en/list/stat, em 18/08/2010

Os países que compõem o G8 e que são os mais industrializados e com maior


poder de intervenção econômica no mundo capitalista -- Estados Unidos, Japão,
Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Canadá e Rússia -- concentram um número bem
maior de patrimônios “mundiais” do que os demais 179 países. Se considerarmos o total
de patrimônios eleitos (911) e o número total de países membros (187) teremos uma
média de 4,8 por país. Contudo a média dos oito países citados é de 26,7
patrimônios/país em contraposição a média dos demais 179 países, que se limita a 3,9.
Esses números nos mostram que os países com o maior poder de intervenção no mundo
são justamente aqueles que têm o maior número de monumentos e sítios naturais
protegidos pelo conjunto de nações (Quadro 4).

Quadro 4 –Patrimônios Mundiais (PM)/país - 2010

Países inscritos n° PM/


N° países % N° PM
país
G8 8 4,3 214 26,7
Demais países membros 179 95,7 697 3,9
Total 187 100,0 911 4,8
Fonte: http://whc.unesco.org/en/list/, em 18/08/2010

A pequena participação de países africanos, asiáticos e latino-americanos pode


ser compreendida pelas exigências que são feitas para que um patrimônio seja eleito
pelo comitê da UNESCO. A lógica é circular, pois ganham apoio os países que podem

14
apresentar maiores garantias de preservação do sítio em questão. Segundo as
“Orientações Técnicas para Aplicação da Convenção do Patrimônio Mundial”13, para
que a comunidade internacional apoie o patrimônio é necessário que o país membro
institua serviços de proteção, conservação e valorização do patrimônio; apresente
capacidade científica, técnica, administrativa, jurídica e econômica para desenvolver
medidas de segurança; conte com institutos ou centros preservacionistas; estabeleça a
criação de associações ou fundações, públicas ou privadas, voltadas para ações de
preservação; desenvolva projetos educativos e de informação; e, ainda, contribua
regularmente e em campanhas para o Fundo do Patrimônio Mundial.
Em síntese, para que o Fundo apoie o tombamento do patrimônio, ele solicita
uma contrapartida dos países membros que restringe abertamente a entrada àqueles que
apresentam uma maior estrutura política, administrativa, científica e econômica no que
diz respeito às ações preservacionistas. Não é surpresa, portanto, que 36 países
membros, a maior parte da África, não tenham nenhum patrimônio mundial inscrito na
lista. Em contraposição, da Europa, apenas o principado de Mônaco não tem um bem
registrado. Para complicar a situação das nações mais desfavorecidas, dentre os
patrimônios mundiais que se encontram ameaçados e sem conservação e com risco de
serem eliminados da lista dos “patrimônios mundiais” 41% são africanos.14 Debates
recentes não levaram à democratização do acesso à lista de patrimônios culturais e
naturais, mas, sim, à criação de uma nova categoria de patrimônio. A partir de 1989,
uma série de convenções, congressos e deliberações foram realizadas em apoio às
políticas preservacionistas voltadas para a defesa do folclore e de outras manifestações,
compreendidas como patrimônio imaterial ou intangível.15

IV. Novas dicotomias em torno do patrimônio imaterial

A distância entre a participação das nações centrais e periféricas nas políticas de


preservação aumenta quando analisamos a relação entre a Convenção de 1972, voltada
para a salvaguarda dos patrimônios materiais (cultural e natural) mundiais e aquelas
(2003 e 2005) que se caracterizam pela proteção aos patrimônios imateriais.
A partir, principalmente da Convenção de 2003, ficou estabelecido que o
patrimônio cultural a ser preservado não se limitaria a monumentos e coleções de
objetos, mas também deveria incluir tradições e expressões vivas herdadas de ancestrais

13
http://whc.unesco.org/archive/opguide08-pt.pdf, pag. 10, em 18/08/2010.
14
http://whc.unesco.org/en/list/stat#s9, em 18/08/2010.
15
Recomendação 1989 (Cultura Tradicional e Folclore); Declaração Universal 2001 (Diversidade
Cultural); Declaração Universal 2003 (contra destruição intencional do Patrimônio Cultural); Convenção
2003 (Patrimônio Cultural Imaterial); Convenção 2005 (Diversidade de Expressões Culturais).

15
e repassadas a descendentes através de tradições orais, artes cênicas, práticas sociais,
rituais, festivais e conhecimentos e habilidades específicas.
A preocupação recente com o patrimônio imaterial ou intangível tem como
justificativa a necessidade de proteger populações nativas e outros grupos minoritários
que encontram dificuldade em manter vivas suas línguas e tradições. Segundo as
Convenções de 2003 e 2005, frente a processos de globalização, à evolução rápida de
novas tecnologias de informação e comunicação, e aos desequilíbrios entre países ricos
e pobres, a proteção à diversidade cultural tem por objetivo o combate à intolerância e a
defesa de direitos humanos. A diversidade cultural é eleita como um patrimônio da
humanidade.
Em 2003, a Conferência Geral da UNESCO elaborou a petição intitulada
"Convenção para a Proteção do Patrimônio Cultural Imaterial”, em que este era definido
como sendo:

“práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas –


assim como instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais que lhes são
inerentes – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos
reconheçam como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio
cultural imaterial, transmitido de geração a geração, é recriado constantemente
por comunidades e grupos em função de seu meio, sua interação com a
natureza e sua história, proporcionando-lhes um sentimento de identidade e
continuidade, e, contribuindo assim para promover o respeito pela diversidade
cultural e pela criatividade humana.” 16

No texto, a defesa da diversidade cultural, além de um imperativo ético, volta-se


para a defesa de povos nativos e de outras minorias. As identidades locais são
associadas a desenvolvimento e os planos de ação propõem um aprofundamento do
debate internacional sobre diversidade cultural. As novas medidas têm como
justificativas, entre outras, a proteção o combate à intolerância e a defesa de direitos
humanos. Os patrimônios imateriais ou intangíveis, portanto, são definidos como sendo
expressões vivas de indivíduos, grupos e comunidades, que lhes proporcionam
sentimento de identidade. Como é inegável que a intolerância em relação a práticas
culturais não hegemônicas seja um dos maiores problemas deste novo milênio, os
objetivos da Convenção de 2003 se apresentam atuais e de grande relevância política
no cenário global.

16
Ver http://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=12027&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=-
471.html

16
Tal como na Convenção de 1972, a defesa de preservar o patrimônio, agora o
intangível, aparece vinculada a um diagnóstico de fragilidade de determinados grupos
sociais frente aos processos de globalização, responsáveis por fenômenos de
intolerância e de destruição da diversidade. Procura-se proteger expressões culturais de
grupos e comunidades que não têm recursos para sua sustentação. Procura-se defender o
local frente à ameaça do global. O patrimônio imaterial ou intangível não é definido
pelo seu valor intrínseco, ou seja, por seu valor estético e/ou excepcional, como no caso
dos patrimônios materiais (cultural e natural), mas por sua associação a tradições em
perigo de extinção. A Convenção ressalta a importância de proporcionar suporte para
línguas, rituais, danças, crenças e conhecimentos diversificados em vias de
desaparecimento. O patrimônio imaterial não aparece associado a um valor “universal”,
mas a práticas locais, que dão vida a grupos minoritários e comunidades afastadas das
grandes metrópoles e centros mais desenvolvidos.
Ora, acontece que os patrimônios imateriais não foram incorporados à lista de
patrimônios materiais, mas constituíram uma lista diferenciada, que obtém suporte de
um grupo também diferenciado de nações. Apenas 127 países foram signatários da
Convenção de 2003, um número, para já, bem menor do que aquele associados à
Convenção de 1972 (187). Quando as duas listas de patrimônio são comparadas, nota-se
que os países da Europa Ocidental e da América do Norte, que se destacam por
possuírem uma enorme concentração dos patrimônios mundiais pouco participam da
lista dos patrimônios intangíveis. Quatro dos países que compõem o G8 (Estados
Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá) não foram signatários e não participam do
Fundo da Convenção de 2003. França, Itália, e Rússia, com, respectivamente 5, 2 e 2
práticas culturais inscritas, não se destacaram e somente o Japão aparece com destaque
na lista. Se considerarmos o número total de patrimônios eleitos (178) e o número total
de países membros (127) teremos uma média de 1,4 patrimônio registrado por país. O
contraste em relação à lista anterior é gritante, pois a média de patrimônios imateriais
eleitos dos países que compõem o G8 cai de 26,7 patrimônios/país para 6,25.
A Convenção de 2003 é recente e ainda não tem seu perfil consolidado.
Podemos, contudo, afirmar que a política de proteção ao patrimônio imaterial continua
longe de ser conduzida de forma a proteger os patrimônios que se encontram em países
que apresentam maior dificuldade em mantê-los. Comparando a lista nos anos de 2008 e
2009, constatamos que a entrada maciça de práticas intangíveis de países como China e
Japão, com 25 e 13 práticas inscritas, modificaram bastante o perfil anterior. Dos 76
novos bens registrados em 2009, mais da metade deles foram de origem asiática.
Cresceu também em 2009 a participação dos países da Europa Oriental. Além disso, foi

17
criada em 2009 uma lista de 12 atividades que merecem receber apoio financeiro
imediato, uma vez que estão em risco de desaparecimento: 3 estão localizados na China
e 3 na Mongólia, sendo as demais distribuídos entre França, Bielarússia, Látvia,
Indonésia, comunidade Aymara (Bolívia, China e Peru), Quênia e Mali.

Quadro 5 – distribuição do “patrimônio imaterial” (PI) por regiões (2010)

em risco
Países não

PI 2008

PI 2009
inscritos %

Patrimônio

Total
Regiões

%
%
África 53,6 14 15,6 4 1 19 10,7

Países Árabes 60 8 8,9 0 0 8 4,5

Ásia e Pacífico 36,4 27 30 45 7 79 44,4

Europa e América do Norte 60 12 13,3 9 2 23 12,9


Europa Oriental 31,8 10 11.1 14 1 25 14,0

América Latina e Caribe 44 % 19 21,1 4 1 24 13,5

Total 90 100,0 76 12 178 100,0

Fonte: Unesco / http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?lg=en&pg=00011, em


18/08/2010

As Convenções de 1972, relacionada ao patrimônio universal, e as de 2003 e


2005, voltados para o patrimônio imaterial, mantêm estruturas de funcionamento
similares. Um comitê eleito seleciona os patrimônios que receberão apoio de um fundo
constituído pela totalidade de países signatários. As maiores potências mundiais
ocidentais, aparentemente, não têm interesse na preservação de tradições orais, práticas,
representações, expressões e conhecimentos diversos. Países como Estados Unidos,
Reino Unido, Canadá e Alemanha nem se mobilizaram para registrar as práticas
tradicionais ocorridas em seu território, nem se tornaram signatários da Convenção de
2003, contribuindo para dar suporte àquelas práticas que ocorrem em outras partes do
globo. Apostam, contudo, em remanescentes da colonização ocidental e conhecimentos
alternativos, países orientais como China, Japão e Coréia, que aparecem na lista de
patrimônios intangíveis, com 29, 17 e 8 entradas, respectivamente. Os três países
monopolizam quase 1/3 de todos os bens registrados.

18
Sem entrar no mérito de que monumentos ou sítios geográficos têm excepcional
valor para a humanidade, ou ainda, quais as práticas e expressões culturais locais mais
relevantes no mundo atual, podemos afirmar que as duas listas apontam claramente uma
divisão entre, por um lado, uma riqueza histórica e beleza natural sem equivalentes,
concentrados nas maiores potências mundiais, e, por outro lado, em tradições locais
concentradas em países orientais e em países periféricos. Além disso, apesar do
interesse de países da América Latina, Caribe, Africa e Oceania em ganhar mais espaço
no cenário global, no último ano, China e Japão assumiram a liderança na inscrição de
patrimônios intangíveis, seguidos por países da Europa Oriental.
A divisão do mundo ocorre entre continentes e no interior dos continentes.
Essas classificações implicam uma dupla tensão capaz de dividir os países-membros,
por um lado, ao longo do eixo norte/sul ou centro/periferia e, por outro, ao longo do
eixo local/global, tradicional/moderno ou ainda oriente/ocidente. A ajuda e promoção
diferenciada que é feita aos diversos patrimônios eleitos fomenta a diferenciação ao
longo desses eixos. Os países se alinham às classificações realizadas e disputam seu
lugar no traçado já existente.

Conclusão
Como compreender, por um lado, a anuência de 187 países em salvaguardar um
patrimônio material extremamente concentrado em dez potências mundiais, e, por outro,
o distanciamento destas grandes potências em relação ao apoio vital às tradições e
conhecimentos de populações carentes de recursos e ameaçadas de desaparecimento?
Chatterjee nos fala do amor ao Ocidente existente na dominação atual. Para o
intelectual indiano, como em Maquiavel, os ingleses procuraram legitimar sua
dominação não só pela força, mas também por meio do amor ao Ocidente:

“Sem analisar ambos elementos, seria impossível descobrir outro


segredo: o motivo pelo qual nós, aqueles que foram colonizados, continuamos
até hoje sentindo uma necessidade aparentemente insaciável de amar a
Europa.” (Chatterjee 2008: 39)

Partha Chatterjee (2008: 38-40) defende a permanência da dominação


colonialista através do medo nas relações entre Europa e o sul Asiático, mesmo depois
que formas de poder supostamente mais racionais e modernas foram introduzidas pelos
britânicos. O conceito de Ocidente ou de modernização ocidental não pode ser
compreendido sem a violência militar do século XX, o que não impede de
compreendermos que a dominação ocorre de várias formas. Citando as análises de
Rajanit Guha e Michel Foucault, Chatterjee aponta as especificidades da dominação

19
inglesa, pela primeira vez preocupada em fundamentar moralmente a violência
perpetrada.
Procurando ultrapassar o formato de dominação descrito por Edward Said,
diversos autores têm enfatizado que a colagem do estereótipo nunca é completa,
havendo sempre disjunções, fissuras, hibridismos e ambivalências nas narrativas
construídas. Homi Bhabha (1994) tem se destacado por apontar como textos têm a
habilidade de veicular inúmeros sentidos simultaneamente. Embora o conceito de
imperialismo seja empregado algumas vezes, não se trata mais de denunciar um sentido
único na dominação, mas ressaltar a multiplicidade de narrativas responsáveis pela
forma em que nações têm se estruturado e criado hierarquias que se mantém até o
presente. São justamente as zonas de sombra que permitem contestar as relações
hegemônicas.
Apesar de admitir a ambivalência inerente às narrativas veiculadas por
instituições dominadoras, alguns autores defendem a permanência da dualidade centro e
periferia paralelamente ao fluxo de formas simbólicas:

“Contra esta posição, defendo, como hipótese de trabalho, que nos


encontramos numa fase instável caracterizada pela sobreposição entre duas
formas de hierarquização: uma mais rígida, que constitui o sistema mundial
desde o seu início, entre o centro, a periferia e a semiperiferia, e outra, mais
flexível, entre o que no sistema mundial e produzido ou definido como local e
o que é produzido ou definido como global.” (Santos 2001:25).

Os dados analisados neste artigo nos mostram que, às inúmeras interseções e


encontros entre grupos que estão distantes no tempo e no espaço, resistem relações de
hierarquia consolidadas entre sociedades nacionais integrantes do sistema mundial.
Saber até que ponto este padrão de patrimonialização é estável é uma questão em
aberto, uma vez que -- convém não esquecer -- nas primeiras décadas de produção do
“patrimônio mundial” pela UNESCO, os países periféricos assumiram um maior
protagonismo, ainda que rapidamente perdido. Acresce que, no domínio do consumo
do patrimônio pelas indústrias turísticas, a chamada economia das experiências, que
convida ao consumo ativo do patrimônio pode ser um fator potencial de reversão deste
padrão. No lugar de formas de fruição contemplativas, tão próprias ao patrimônio
material, surgem novas formas de participação em atividades lúdicas e culturais, mais
de acordo com os bens do patrimônio imaterial. As iniciativas resultantes da Convenção
de 2003 são capazes tanto de fomentar a apropriação dos patrimônios intangíveis para
efeitos de promoção turística, criando um circuito paralelo ao já existente, como
contribuir para a melhor aceitação à diversidade cultural em que vivemos.

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