A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE DO USO DE ALGEMAS
Luciana Aparecida Vazzi Villares*
RESUMO
O uso de algemas no nosso país continua sendo assunto tormentoso por falta de adequada disciplina
jurídica. O uso de algemas deve ser permeado pelo direito como garantia fundamental da dignidade
da pessoa humana. Quando usado de maneira aleatória pode ocasionar abuso de direito pelas
autoridades competentes, visto que há conflito entre princípios de um lado, a segurança e do outro
lado a dignidade da pessoa humana. Portanto deve-se analisar quando seu uso é permitido ao preso
que oferece ameaça a segurança dele e das autoridades. É importante salientar que o correto uso da
algema preserva o ordenamento jurídico, uma vez ser um instrumento não letal que diminui a
capacidade agressiva do cidadão a ser preso. O que se busca neste artigo é conciliar, dentro das
possibilidades, o cuidado com a integridade física tanto do policial como do preso. Mostrar que já
existem normas suficientes para garantir o uso correto de algemas não é ato ilegal nem abuso de
poder por parte das autoridades competentes. Ou pior, que não seja motivo para tratamento
desumano e degradante ao preso. Levando a uma atuação prática, desigual e preconceituosa que
acentua o tratamento parcial oferecido pelo Direito Penal aos concidadãos.
PALAVRAS – CHAVE: algemas, abuso de poder, dignidade da pessoa humana
ABSTRACT
The use of handcuffs in our country continues to be stormy affair for lack of adequate legal discipline.
The use of handcuffs should be permeated by the law as a guarantee of fundamental human dignity.
When used randomly can cause abuse of rights by the competent authorities, as there is conflict
between principles on the one hand and security on the other side the dignity of the human person.
Therefore, one should analyze when their use is allowed the prisoner offering threatens his safety and
the authorities. Importantly the correct use of handcuffs preserves the legal system, since being a non
lethal tool that aggressively reduces the ability of the citizen to be anested. What is sought in this
article is to reconcile, within the possibilities, care for the physical integrity of both the police and the
prisoner. Show that there are already enough rules to ensure the correct use of handcuffs isn’t an
illegal act or abuse of power by the authorities. Or worse, that ins’t subject to inhuman and degrading
treatment at the prisoner. Taking a practical performance prejudiced and unequal treatment that
accentuates the partial offered by Criminal Law to citizens.
KEYWORDS: handcuffs, abuse of power, human dignity
_______________________
*Aluna do 3º ano do Curso de Direito da FADIVA.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo abordar e analisar a temática quanto ao
devido uso de algemas e o uso de forma arbitrária, seja nas atividades policiais,
expondo, quando há o desrespeito à dignidade da pessoa humana no que diz
respeito ao seu uso indevido, bem como o abuso de poder por parte de autoridades
competentes no ato da apreensão, que viola os direitos e a dignidade da pessoa
humana.
A ausência de regramento específico sobre o assunto inviabiliza ainda mais o
seu uso correto. O artigo 199 da Lei de Execução Penal sinalizou com seu
regramento “O emprego de algemas será disciplinado por Decreto Federal.” Mas até
hoje não temos esse decreto.
Em um país filiado ao Sistema da Civil Law (todo direito deve ser
exteriorizado de forma escrita), não há dúvida que constitui fonte de enorme
insegurança a falta de regramento nacional específico sobre cada matéria.
Essa pesquisa tem o objetivo de mostrar, quanto ao uso de algemas, a sua
indispensabilidade, necessidade e justificação. Examinando-se atentamente o direito
vigente, vê-se que já conta-se com um produto legislativo mais do que suficiente
para concluir que pode-se fazer ‘bom’ (e moderado) uso das algemas.
DESENVOLVIMENTO
A discussão acerca do emprego de algemas é bastante calorosa, por envolver
a colisão de interesses fundamentais para a sociedade, o que dificulta a chegada a
um consenso sobre o tema.
De um lado, depara-se com o comando constitucional que determina ser a
segurança pública dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, sendo
exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e o
patrimônio através dos órgãos policiais, constituição federal, artigo 144. De outro
lado, do texto constitucional emanam princípios de enorme magnitude para a
estrutura democrática, tais como o da dignidade humana e presunção de inocência,
os quais não podem ser sobrepujados quando o Estado exerce a atividade policial.
Quando a Constituição da República preceitua ser dever do Estado a
Segurança Pública, a este devem ser assegurados os meios que garantam tal
mister, estando, portanto, os órgãos policiais legitimados a empregar os
instrumentos necessários para tanto, como a arma de fogo e o uso de algemas, por
exemplo.
O emprego de algemas, portanto, representa importante instrumento na
atuação prática policial, uma vez que possui tríplice função: proteger a autoridade
contra a reação do preso; garantir a ordem pública ao obstaculizar a fuga do preso;
e até mesmo tutelar a integridade física do próprio preso.
Embora esta tríplice função garanta a segurança pública e individual, tal
instrumento deve ser utilizado com reservas, pois, se desviado de sua finalidade,
pode constituir drástica medida, com caráter punitivo, vexatório, ou seja, nefasto
meio de execração pública, configurando grave atentado ao princípio constitucional
da dignidade humana.
A Lei de Execução Penal, LEP, em seu artigo 199, reza que o emprego de
algema seja regulamentado por decreto federal. Passados mais de 24 anos desde a
edição da referida lei, nada aconteceu. Assim, as regras para sua utilização
passaram a ser inferidas, a partir dos institutos em vigor.
O código de Processo Penal, em seu artigo 284, embora não mencione a
palavra ‘algema’, dispõe que “não será permitido o uso de força, salvo a
indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”, sinalizando
com as hipóteses em que aquela poderá ser usada.
No mesmo sentido, o artigo 292 do CPP que ao tratar da prisão em flagrante,
permite o emprego dos meios necessários, em caso de resistência. O parágrafo 3º,
do artigo 474, alterado pela Lei nº 11.698/2008, preceitua no sentido de que:
“Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que
permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos
trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos
presentes”. (Lei nº 11.698/2008)
Da mesma forma, o artigo 234, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal
Militar prevê que “O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja
perigo de fuga ou agressão da parte do preso.” Finalmente, o artigo 10 da Lei nº
9.537/97 prega que:
“O comandante, no exercício de suas funções e para garantia da segurança das
pessoas, da embarcação e da carga transportada, pode: III – ordenar detenção de
pessoa em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, quando
imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiroda embarcação
ou da carga”. (Lei nº 9.537/97)
Em todos estes dispositivos legais tem-se presente um elemento comum: a
utilização deste instrumento como medida extrema, portanto, excepcional, somente
podendo se dar nas seguintes hipóteses: (a) impedir ou prevenir a fuga, desde que
haja fundada suspeita ou receio; (b) evitar agressão do preso contra os próprios
policiais, terceiros ou contra se mesmos.
Percebe-se, por conseguinte, que incumbirá à própria autoridade avaliar as
condições concretas que justifiquem ou não o seu emprego, isto é, quando tal
instrumento consistirá em meio necessário para impedir a fuga do preso ou conter a
sua violência.
Aos olhos dos leigos e frente aos discursos bem articulados dos grandes
advogados, o uso de algemas nos criminosos ‘acompanhados’ pela grande média
sempre parecerá abusivo, quando, em verdade, a possibilidade de descontrole e de
reação é a mesma de qualquer indivíduo menos favorecido a ser preso.
Não se deve confundir os efeitos de abusos no ato de determinada prisão, por
vezes cometidos, como o algemamento violento, sarcástico e humilhante, com sua,
correta utilização. Sucede, no entanto, que em algumas situações, tem-se lançado
mão das algemas de forma abusiva, com nítida intenção de execrar publicamente o
preso, de constranger, de expo-lo vexatoriamente, ferindo gravemente os princípios
da dignidade humana.
O dispositivo do Código de Processo Penal Militar citado abrange civis. Dele
se extrai, ademais, que o emprego das algemas constitui medida profundamente
vexatória, tanto que a lei restringe o máximo o seu emprego. Algemar por algemar é
medida odiosa, pura demonstração de arrogância ou ato de exibicionismo que,
quando o caso, deve dar ensejo ao delito de abuso de autoridade.
O Supremo Tribunal Federal editou no dia 7 de agosto, durante o julgamento
do Habeas Corpus (HC) 9/952, a súmula vinculante nº 11, segundo a qual
Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de
fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do pres ou
de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de
responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou das autoridades e de
nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da
responsabilidade civil do Estado. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL)
A mencionada súmula está longe de resolver os problemas relacionados aos
critérios para o uso de algemas, deixando apenas claro que o emprego desse
instrumento não é um consectário natural obrigatório que integra o procedimento de
toda e qualquer prisão, configurando, na verdade, um artefato acessório a ser
utilizado quando justificado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é algema que desmoraliza o preso, afinal, ele estará sob o jugo de
grades desde então, mas sim a legalidade, a arbitrariedade por parte do Poder
Público. A ilegalidade e o constrangimento encontram-se na ordem jurídica
arbitrária, e não somente no ato físico de seu cumprimento. É óbvio que o uso
arbitrário, feito mediante tratamento desproporcional, é agressivo, mas não menos
que a farra das liminares.
A simples colocação de algemas não ataca qualquer direito, mas a prisão
ilegal é que o faz. Seja ilegalidade no cumprimento da medida, com força extrema e
desproporção no ato, seja na ordem de prender sem os fundamentos bastantes e
legais. O ato a ser rechaçado, pois, é a prisão ilegal, não o uso de algemas. O
indivíduo que rompeu o pacto social e tem sua prisão correta decretada não pode se
valer de argumentação oportunista de que sua imagem é exposta abusivamente.
A algema é um poderoso aliado de quem executa as ordens judiciais ou se
depara com o flagrante delito. Sob a ótica do Direito, é um instrumento de
salvaguarda de todos os envolvidos no momento da prisão. Visa, pois, a
manutenção de todos os direitos, garantias e obrigações constitucionais que
envolvem por completo o ato de prisão.
O uso de algemas não visa somente evitar possível fuga. Em uma análise
mais profunda, mais técnica, se utilizada corretamente, pode evitar conflitos trágico
oriundos de destemperos dos que são presos, fato social cada vez mais constante
em nossa sociedade. O uso legal de algema, por parte de agentes policiais, evita,
sim, que o desesperado tente reagir, tenha acesso a qualquer instrumento
agressivo, e protege a sociedade de trágicos conflitos.
O uso de algemas em pessoas legalmente presas em flagrante ou por ordem
judicial deveria ser a regra, e não a exceção. Dessa forma, todos teriam o
tratamento igual, e os operadores da lei fariam uso de forma escorreita do
instrumento de salvaguarda que é a algema.
Tudo se resume na boa aplicação do princípio da proporcionalidade, que
exige adequação, necessidade e ponderação da medida. Em todos os momentos
em que não patenteada a imprescindibilidade da medida coercitiva ou a necessidade
do uso de algemas ou, ainda, quando evidente for seu uso imoderado, há flagrante
violação ao princípio da proporcionalidade, caracterizando-se crime de abuso
de autoridade.
Lógico que, muitas vezes, não é fácil distinguir o uso lícito do uso ilícito. De
qualquer modo, o fundamento de tudo quanto foi exposto é atentar para a busca do
equilíbrio, da proporção e da razoabilidade .
O que se pretende é chamar a atenção para a ilegalidade da execração
pública e da humilhação ao preso, pois atenta contra o Estado de Direito. Na
verdade, as ‘prisões espetaculares’, em vez de ter efeitos pedagógicos ou
preventivos, transmitindo para a sociedade a idéia de que o crime não compensa,
como afirmam algumas autoridades fiscais e policiais, podem trazer resultados
diametralmente opostos. Ou seja, causar danos irreparáveis a cidadãos inocentes e,
por extensão, a toda sua família.
Em suma, diante dos direitos fundamentais assinalados, deve-se proclamar a
absoluta necessidade de prudência e razoabilidade na aplicação de medidas
antecipadas de constrição da liberdade, por ser a melhor maneira de prevenir a
arbitrariedade estatal e de afastar a tentação de extrapolar os limites do uso legítimo
da força pelo abuso de autoridade.
Por fim, é importante ressaltar que a pressão da mídia é enorme, em especial
nos crimes de grande repercussão, o que tem causado uma sensação de
justiçamento. Isto é fato, já que a justiça feita com as próprias mãos, pela
condenação antecipada do acusado, inibe toda forma de defesa, respaldando
abusos de toda sorte.
REFERÊNCIAS
CAPEZ, Fernando. Direito Militar. A questão da legitimidade do uso de algemas.
Revista da Associação dos Magistrados da Justiças Militares Estaduais –
AMAJME, ano XII, n.75, p.23-26, jan./fev.2009.ISSN 1981/3414.
GOMES, Luiz Flávio. Ausência de regramento específico sobre o assunto. Revista
Jurídica Consulex, Rio Grande do Sul, ano XI, n. 241, p.30-32, jan.2007.
ISSN 1519/1834. Assunto especial doutrina – uso de algemas. Revista I0B de
Direito Penal e Processual Penal, n. 36, p.7-12, fev./mar.2006.
JUNIOR, Ans Nacfur. Questões de Direito. Revista Prática Jurídica, ano X, n.113,
p.51-53, agos.2011.
ISSN 1519/1834. Assunto especial doutrina – uso de algemas. Revista I0B de
Direito Penal e Processual Penal, n. 36, p.7-12, fev./mar.2006.
MONDUCCI, Maurício Cerqueira. Uso de algemas e uniforme prisional constituindo
degradação do preso. Revista do Conselho de Criminologia e Política Criminal,
p.53-63, set.2008. ISSN 1809/1938.
SILVA, Uelton Santos. Aspectos históricos. Revista Jurídica Consulex, Rio Grande
do Sul, ano XI, n. 241, p.36-37, jan.2007.