A Utopia No Espaço Social - Identidades - Zaccara
A Utopia No Espaço Social - Identidades - Zaccara
A Utopia No Espaço Social - Identidades - Zaccara
RESUMO:
A arte pode ser um dos canais de promoção de uma utopia para novos tempos: o da
sociedade do espetáculo. É trabalhando um intervalo micropolítico, que o movimento
intercultural IDENTIDADES, nascido em Porto, Portugal, se manifesta em relação à
possibilidade da concretização da utopia ao longo de sua história, que ora contabiliza
dezessete anos de atividades. Atuando em comunidades situadas em três espaços
geograficamente distintos, de colonização lusa, ele interage em comunidades situadas em
Moçambique e Cabo Verde, na África e em Conceição das Crioulas, Pernambuco, Brasil
promovendo uma relação de trocas que constitui o seu fazer artístico.
Palavras Chave: arte; interação; utopia; movimento intercultural IDENTIDADES.
ABSTRACT
Art can be one of promoting a vision for new times channels: the society of the spectacle. It
is working one micropolitical range, the intercultural movement IDENTITIES, born in Porto,
Portugal, manifests itself in relation to the possibility of utopia throughout its history, which
now accounts for seventeen years activities. Working in communities located in three
geographically distinct areas of colonization lusa it interacts in communities in Mozambique
and Cape Verde in Africa and Conception of Creole, Pernambuco, Brazil fostering a
relationship of burrows is your art making.
Key words: art; interaction; utopia; intercultural movement IDENTITIES.
1
. J.P. Mayer in Baudrillard Jean. La societé de consummation. Paris : Éditions Denoel,1 970, Avant –
propos
estabelecida “com tipos de consumidores claramente diferenciados e novas
modalidades de comercialização e técnicas de marketing” (BARBOSA, Lívia, 2004,
p.27), bem como uma publicidade que atiçava, já desde então, o desejo dos
consumidores “fornecendo um mundo de sonhos e impondo uma nova tecnologia do
olhar”.
A cultura do consumo, que encontra cada vez mais eco na
contemporaneidade, segundo Don Slater (apud BARBOSA, Lívia, 2004, p.32), está
vinculada à uma sociedade de mercado na qual as “práticas sociais, valores
culturais, ideias, aspirações e identidades são definidas e orientadas em relação ao
consumo” o que significa que vivemos em uma sociedade materialista e pecuniária
na qual “o valor social das pessoas é aferido pelo que elas têm e não pelo que elas
são”.
Trata-se de uma cultura com características universais, uma vez que
teoricamente todos teriam acesso aos seus produtos e impessoais dado que as
mercadorias são produzidas para um mercado de massas e não para indivíduos.
Estes, os indivíduos, fazem parte de um todo insaciável e uniformizador no que diz
respeito à ação de consumir uma vez que o sistema capitalista os quer assim para
sua própria sobrevivência.
2
Trabalho, lazer, natureza, cultura, tudo isto antes disperso gerando angústia e complexidade na vida
real, nas nossas cidades “anárquicas e arcaicas”, todas estas atividades esparsas e mais ou menos irredutíveis
umas das outras- tudo isso enfim misturado, amassado, climatizado, homogeneizado na mesma viagem em
um shopping perpétuo, tudo isso enfim assexuado no mesmo clima hermafrodita da moda(tradução do autor)
3
Espetáculo permanente da celebração do objeto na publicidade e de centenas de mensagens
cotidianas vindas da mass media. (tradução do autor).
4
Apresenta-se a cada vez como a sociedade em sua totalidade, como uma parte da sociedade e como
instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, ela é expressamente o setor que concentra todo
olhar e toda consciência.
Vive-se sob a ditadura de uma mídia que condiciona o comportamento com o
objetivo de promover produtos. Através dela se processa toda uma transformação de
modos de vida, gostos e comportamentos. Trata-se de uma máquina de
uniformização capaz de produzir uma "felicidade conformista", materialista e
mercantil. Esta capacidade midiática de criar, em grande escala, segundo Lipovetsky
(2004) gera fenômenos comportamentais e de emoções similares.
Neste contexto a identidade deixa de fazer sentido bem como aqueles que
estão excluídos do consumo como quase religião, e as alternativas quase utópicas.
A utopia, entretanto, admite vários sentidos através do tempo. Inclusive aquele em
que ela pode se constituir na possibilidade de construção de uma nova realidade.
Neste sentido, a arte parece ser um dos canais de promovê-la. É, portanto, sob este
prisma que enfocamos a atuação do movimento intercultural IDENTIDADES.
5
(sejamos realistas; exijamos o impossível) slogan da juventude francesa de maio de 1968. Citado por
Agenor Brighenti in Esperança e Utopia. Estatuto epistemológico e formas de relação in
http://ordosocialis.de/pdf/Brighenti/Esperanca%20e%20Utopia.pdf. Consultado em 3 de junho de 2014.
Uma (re) conceitualização da noção de utopia, despida de toda a carga negativa
que lhe foi sendo incorporada se faz necessária bem como uma adaptação a um
presente que necessita de ser repensado em termos de desejo de mudança. A partir
disso, de sua clarificação contemporânea surge por ela um interesse novo. Afinal
como nos recorda Zygmunt Bauman (2000, p.15) “para tornar ainda mais complexas
as agruras atuais e as perspectivas de soluciona-las, vivemos também uma época
de privatização da utopia e dos modelos do bem”.
A arte contemporânea traz uma relação nova entre ela e o mundo. A realidade
transforma-se em um objetivo de investigação. Em se falando sob o ponto e vista de
uma perspectiva histórica estas interrogações não são específicas da
contemporaneidade. O realismo de Gustave Courbet, enquanto práxis artística, já
questionava sobre arte e realidade. Outros criadores e pensadores também se
debruçaram sobre o engajamento da arte com a realidade, entre eles Champfleury
(apud ARDENNE, Paul, 2002, p.22) para quem a arte deve trabalhar para uma
reconciliação entre os homens e a sociedade, o que seria seu objetivo supremo.
Outros teóricos mais contemporâneos insistem nessa relação arte e sociedade
que traz em seu bojo uma concepção micropolítica do social. Para Nicolas Bourriaud
(2009, p. 31) “A arte visa conferir forma e peso aos mais invisíveis processos” e “ao
tentar romper a lógica do espetáculo, restitui-nos o mundo como experiência a ser
vivida”. Ela, a arte, seria, portanto, uma forma de mudar uma realidade social
baseada no espetáculo e no poder neoliberal que, nas palavras de Guy Debord
(1992, p. 26) seria “l’auto-portrait du pouvoir à l’époque de sa gestion totalitaire des
conditions d’exitence”.7Ela, a arte, poderia interferir nesse processo a partir da sua
possibilidade de sensibilização sendo também uma utopia contemporânea enquanto
veículo de transformação e educação.
Jacques Rancière (2005, p. 26) nos diz que é a partir “do recorte sensível do
comum, da comunidade, das formas de sua visibilidade e de sua disposição, que se
coloca a questão da relação estética/politica” e só “a partir daí pode-se pensar as
intervenções políticas dos artistas”. A arte poderia, portanto, agir nas fissuras do real
e ainda manter relações com a utopia pela esperança que ela constrói.
Paul Ardenne (2002, p.39) que denomina de “arte contextual” esta relação artista
& sociedade citando Richard Martel, o teórico e artista canadense que se encontra a
frente do Le Lieu em Quebec, nos lembra através das palavras de Martel, de que “
l’art contextuel suppose la matérialisation d’ une intention d’artiste dans un contexte
particulier”. 8 Para Ardenne (2002,p. 41) “la première raison de l’art coxtextuel relève
d’un désir social:intensifier la présence de l’artiste à la réalité collective.” 9
Jose Carlos de Paiva (2011, p.29), considera que a arte “se constrói como lugar
reflexivo e contaminador”. As práticas artísticas seriam, portanto, uma possibilidade
de interferir na realidade ou, pelo menos, tornar tal fato uma utopia menos distante.
6
Octavio Paz. Sonho de Penas. In Revista de Poesia e Arte Contemporânea in
inhttp://www.mallarmargens.com/2012/10/viii-poemas-de-octavio-paz-escolhidos-e.html. Consultado em 3 de
junho de 2014.
7
O autorretrato do poder na época de sua gestão totalitária das condições de existência. (Tradução do
autor
8
A arte contextual supõe a materialização de uma intenção do artista em um contexto particular.
(tradução do autor).
9
A primeira meta da arte contextual revela um desejo social: intensificar a preferencia do artista pela
realidade coletiva.(tradução do autor
Através de ações micropolíticas possibilitadas pela arte poder-se-ia tentar mudar a
dinâmica do mainstream.
Esse envolvimento arte/política, hoje, corresponde à iniciativa de alguns artistas
que mergulham no campo ampliado da criatividade humana onde o caráter político é
relacionado ao fato de uma interação do trabalho artístico com a vida. A arte, nas
suas novas formas, ultrapassou a antiga condição de uma produção de objetos
destinados a serem vistos.
Sim, porque a fusão entre arte e vida, caracterizada por Jacques Rancière
(2005) como “partilha do sensível” não levou em conta a produção de objetos nem
tampouco a modificação da vida pela beleza do gesto estético. Essa partilha seria
antes a adoção de novos modos de vida, de engajamento social e
consequentemente, de uma nova práxis artística.
As intervenções da arte na vida teriam, portanto, por finalidade, segundo
Hans Obrist (2006, p.17) construir “espaços e relações visando uma (re)
configuração material e simbólica de um território comum”. Elas corrigiriam
as falhas nos vínculos sociais ao redefinirem as “referências de um mundo comum
e suas atitudes comunitárias” (RANCIÈRE, 2005, p.30). Uma estética que se
pauta em função das relações inter-humanas que elas figuram, produzem ou criam.
O mundo da arte e da vida está, portanto, cada vez mais fundido e a estética, como
ciência do sensível, está em consonância com esse novo olhar.
Ao artista relacional caberia assim evidenciar práticas e “modos de
discursos”, que seriam novas “formas de vida”, formas estas que operariam
como resistência em relação à sociedade do espetáculo (RANCIÈRE, 2005,
10
p.50), esse espetáculo que é “l l’autre face de l’argent” segundo Debord (1992, p.
44). Seu objetivo seria criar condições para que experiências comunitárias
se concretizassem.
10
A outra face do dinheiro (tradução do autor)
11
Alain Souchoun. C’est déjà ça. Letra de música.
para lhe retirar essa capacidade de gerar propostas e ressonâncias. E esta é a
nossa esperança. A de uma nova utopia uma vez que segundo Jean Baudrillard:
12
Todas as utopias dos séculos XIX e XX ao realizar-se expulsaram a realidade da realidade e nos deixaram em
uma hiper-realidade vazia de sentido, uma vez que toda perspectiva final acabam absorvidas, digeridas e não
deixam qualquer resíduo a não ser uma superfície carente de profundidade (tradução do autor)
portanto, construir e realizar modelos de ação dentro da realidade existente que
tenham como objetivo maior fazer a diferença.
Em Moçambique o movimento encontra seu foco de interesse em um espaço
onde “o caos, a quantidade impressionante de moradores nas periferias
desurbanizadas da cidade, a implantação urbana caótica, fruto do modo espontâneo
como se ergueu, o trânsito, o ruído, o calor e a humidade, antecipam a entrada na
cidade do cimento, onde o luxo colonial da elite branca, as avenidas guarnecidas de
jacarandás lilases e de acácias rubras, foi ocupado pela população nativa que a vive
do modo como quer e pode.” (Paiva, Jose Carlos, 2009, p. 90)
Em Março de 1997, desembarcou em Maputo o primeiro grupo que iniciou as
ações do movimento naquele espaço geográfico. O grupo chegou carregado de
equipamentos e expectativas em relação ao estabelecimento de interações entre
artistas lusos e moçambicanos. O mergulho na cultura do país marcou esse início
relacional. Oficinas diversas, de múltiplas formas de expressão artística, localizadas
na ENAV estabeleceram o espaço físico para as primeiras partilhas. Viagens, pelo
interior de Moçambique, contribuíram para dimensionar melhor a força de sua cultura
bem mais diluída em sua capital.
De acordo com Paiva: “a partir de então (1997) o Movimento Intercultural
IDENTIDADES alojou a sua base de trabalho em Moçambique na ENAV, escola que
passou a integrar o movimento. Gradualmente estabeleceram-se entre os
protagonistas elevados níveis de confiança e uma sólida amizade que soldou a
presença, particularmente de alguns docentes da FBAUP, no quotidiano da ENAV.”
(PAIVA, José Carlos, 2009, p. 83). Essa interação gerou oficinas e publicações (fig.
1) entre outras ações.
Fig. 1.Capa do livro Imagem Passa Palavra. Porto: Editora Gesto (do Movimento Intercultural
Identidades)
Fig. 2. José Carlos de Paiva. Foto. Sessão de apresentação do primeiro vídeo produzido pelo
Crioula’s Vídeo na comunidade de Conceição das Crioulas, Pernambuco. Brasil.
13
Entrevista on line concedida a autora. Dezembro de 2013.
Através de uma ação que pode ser localizada em seus projetos executados
ou em execução tais como em Maputo, Moçambique, o Maputo, periferias urbanas,
no qual o movimento se desloca para diversos Bairros da periferia urbana da cidade
de Maputo.
Em Cabo Verde temos o Lajedos Santo Antão_ CV, juntamente com o Atelier
Mar. Nesta comunidade rural, que se dedica essencialmente à agricultura de
subsistência o IDENTIDADES se relaciona com vários sub- projetos que envolvem
Educação – Escola Comunitária de Lajedos, Artesanato , Materiais e Tecnologias de
Construção Civil .
Finalmente, em Conceição das Crioulas ele desenvolve o Crioula’s Video
além de interferir diretamente na comunidade quilombola através de processos que
envolvem a educação de base.
Desta forma, o movimento continua depois de mais de 15 anos de ação, com
sua proposta de uma “construção de uma memória partilhável, de relacionamentos
íntimos com comunidades, artistas, estudantes e professores de arte” (PAIVA, José,
201, p 29)
Comme la societé du Moyen Age s’ équilibrait sur Dieu et sur le Diable, ainsi la notre s’ equilibre sur la
14
consommation et sur sa dénonciation
L’art contextual (..) fait la preuve que l’activisme artistique peut valoir
comme une politique,c’est –à-dire,à s’en tenir á étymologie du terme
comme une des formes possibles « du gouvernement de la
15
realité ».(ARDENNE, Paul, 2002,p. 236)
14
(Da mesma forma que a sociedade da Idade Média se fundou sobre deus e o Diabo, a nossa se funda sobre
consumo e sua denuncia) in Jean Baudrillard. La societé de consummation. Paris: Éditions Denoel,1970.p.316
15
A arte contextual prova que o ativismo artístico pode valer como politica, ou seja, para ater-se á etimologia
do termo como uma das possíveis formas de "governo da realidade." (tradução do autor)
O movimento IDENTIDADES significa ação para além das teorizações. Ao
tomar comunidades e suas relações interculturais como campo do fazer artístico que
visa à desconstrução da subalternidade e o fortalecimento de sua identidade, o
coletivo pretende encontrar outras modulações para as oposições entre periferia e
centro, atrasado e desenvolvido, subalterno e dominante, popular e acadêmico, a
partir de relações de reciprocidade e de dialogo.
Nas palavras do coordenador do grupo José Carlos de Paiva (2011, p. 60) o
que diferencia a ação do coletivo da política social é que «a ação artística não
prepara nenhum amanhã, lida com o que habita em cada um, amplia a capacidade
de admiração, de atenção, de reflexão”. A denúncia e a ação caminham, portanto,
juntas.
Sua proposta encontra-se para além das múltiplas grades com as quais o
capital burocratiza e regula a arte incidindo em sua produção. Afinal, a arte, oferece
uma alternativa para o desencanto. Trabalhando em um intervalo micro politico,
o movimento interage com as comunidades nas quais atua e mobiliza trabalhando o
conceito de utopia no sentido de torna-la possível.
5. Referências.
Madalena Zaccara
Doutora em História da Arte pela Université Toulouse II, França, Pós doutora pela
Faculdade de Bellas Artes da Universidade de Porto, Portugal com bolsa da CAPES,
professora associada do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE,
membro do corpo docente do PPGAV - UFPE-UFPB, líder do grupo de pesquisa Arte,
Cultura e Memória, autora de artigos, livros e capítulos de livros.
http://lattes.cnpq.br/1876676115790550
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