A Viúva e o Papagaio
A Viúva e o Papagaio
A Viúva e o Papagaio
Virginia Woolf
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Como disse no início, a viúva coxeava da perna direita. Num dia bom, caminhava devagar, mas,
naquele dia, depois de tanta desilusão e atolada nas margens do rio, andava muito mais devagar do
que o costume. O dia foi escurecendo, enquanto a velha senhora se arrastava pela lama que ladeava o
rio. À medida que caminhava, resmungava, lamentando-se do seu ardiloso irmão Joseph, que a fizera
passar por “tamanho aborrecimento só para me atormentar”, pensou. “Foi sempre um garoto cruel desde
pequeno” continuava nas suas cogitações. “Gostava de arreliar os pobres dos insetos, e lembro-me de
uma vez ter tentado cortar o pelo a uma lagarta com uma tesoura, mesmo diante dos meus olhos. Era
um parasita miserável, o meu irmão. Costumava esconder a mesada dentro de uma árvore oca e, se
alguém lhe oferecesse uma fatia de bolo com cobertura ao lanche, retirava a cobertura e guardava-a
para comer ao jantar. Não duvido que esteja a arder no Inferno neste momento, mas que consolo é que
isso me traz?”
Na verdade, não lhe trouxe consolo nenhum pois, absorta nos seus pensamentos, acabou por ir de
encontro a uma vaca que seguia ao longo da margem, rebolando, depois na lama.
Levantou-se da melhor forma que pôde e seguiu caminho. Parecia-lhe que já estava a caminhar
há horas. A noite era escura como breu e não se conseguia ver um palmo à frente do nariz. De repente,
lembrou-se das palavras do Sr. Stacey sobre o vau do rio.
— Deus seja louvado, — exclamou — como vou encontrar o caminho de volta? Se a maré estiver
cheia ainda fico sem pé e sou arrastada para o mar num instante! Já tantas pessoas se afogaram aqui;
isto para não falar dos cavalos, das carroças, dos rebanhos inteiro e das meadas de feno.
De facto, metera-se num belo sarilho, naquela escuridão e com toda aquela lama. Mal
conseguia ver a água, quanto mais saber se tinha chegado ou não ao vau do rio. Não se viam luzes
nenhumas, pois, como devem saber, a casa mais próxima era a Asheham House, a residência do Sr.
Leonard Woolf. Não havia casas nem chalés daquele lado do rio que ficassem mais perto. Parecia
que nada mais havia a fazer do que esperar pelo nascer do dia. Contudo, na sua idade e com os seus
ataques de reumatismo, era muito provável que morresse de frio. Por outro lado, se tentasse atravessar
o rio era quase certo que se afogaria. O seu estado era tão miserável que não se importaria nada de
trocar de lugar com uma das vacas que pastavam no campo. Não havia mulher mais triste e mais
desgraçada em todo o condado de Sussex. Permanecia em pé, na margem do rio, sem saber se devia
sentar-se, nadar ou simplesmente rebolar pela relva molhada, e adormecer ou morrer de frio, conforme
o seu destino ditasse.
Mas, naquele momento, algo maravilhoso aconteceu. Uma luz incandescente surgiu, como uma
tocha gigante, iluminando cada pedaço de relva e revelando-lhe o vau do rio, a menos de vinte
metros de distância. A maré estava baixa e seria fácil atravessá-lo, se a luz não se apagasse antes de
ela chegar à outra margem.
— Deve ser um cometa ou qualquer outra monstruosidade maravilhosa! — disse, enquanto
atravessava o rio a coxear. Já conseguia ver com clareza as luzes da aldeia de Rodmell ao fundo.
— Deus nos abençoe e nos salve! — exclamou. — Está uma casa a arder, graças a Deus!
Uma casa levaria, pelo menos, uns bons minutos a arder, o que lhe daria tempo suficiente para
conseguir chegar a Rodmell.
— Está um vento maldito que não traz nada de bom a ninguém — disse, enquanto coxeava ao longo
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da estrada romana. Conseguia ver o caminho com facilidade e estava quase a chegar à aldeia quando lhe
ocorreu: “Se calhar é a minha casa que está a arder diante dos meus olhos!”
E estava certa.
— Venha ver a casa do velho Joseph Brand em chamas! — gritou um miúdo em pijama saltando
para a sua frente de rompante.
Todos os habitantes da aldeia estavam reunidos à volta da casa, passando baldes de mão em mão
com água retirada do poço da cozinha de Monks House. Tentavam apagar as chamas à baldada, mas o fogo
era tão intenso que fez o telhado ruir precisamente quando a Sra. Gage se aproximava.
— Alguém conseguiu salvar o papagaio? — perguntou, aflita.
— Dê graças por não estar a senhora lá dentro! — respondeu o reverendo James Hawkesford, o
pároco da aldeia — Não se preocupe com os animais irracionais. Não tenho dúvidas de que o papagaio
sufocou misericordiosamente no seu poleiro.
Mas a senhora Gage estava decidida a verificar com os seus próprios olhos. Os habitantes da
aldeia tiveram de segurá-la, dizendo-lhe que deveria ser louca para querer arriscar a vida por um
pássaro.
— Pobre mulher — exclamou a senhora Ford. — Perdeu tudo o que tinha, exceto uma velha caixa
de madeira com os seus objetos de higiene e uma camisa de noite. Qualquer um de nós ficaria
tresloucado, no seu lugar.
E, posto isto, a senhora Ford levou-a para casa, oferecendo-lhe guarida. O incêndio foi, entretanto,
extinto e toda a gente voltou para casa.
Mas a pobre senhora Gage não conseguia dormir. Deu voltas e mais voltas na cama a pensar na sua
desgraça e em como conseguiria voltar para Yorkshire e pagar ao reverendo Samuel Tallboys o dinheiro que
lhe devia. Para além disso, sentia-se ainda mais triste ao pensar no destino do pobre papagaio James.
Afeiçoara-se ao pássaro e acreditava que o animal deveria ter um grande coração para lamentar tão
profundamente a morte do velho Joseph Brand, que nunca fora carinhoso com ninguém durante toda a
vida. “Que morte terrível para um pássaro indefeso”, pensou. Se tivesse chegado a tempo, teria arriscado
a sua vida para salvar a dele.
Estava deitada na cama, embrenhada nestes pensamentos, quando uma ligeira pancada no vidro
da janela a assarapantou. A pancada repetiu-se três vezes. Saiu da cama da forma mais célere que pôde
e dirigiu-se à janela. Quando lá chegou, para seu espanto, estava um enorme papagaio no parapeito A
chuva parara, dando lugar a uma bela noite de luar. A princípio, assustou-se, mas logo reconheceu James,
o papagaio cinzento e ficou extasiada ao ver que ele conseguira escapar ao fogo. Abriu a janela,
acariciou-lhe várias vezes a cabeça e disse-lhe para entrar. O papagaio respondeu-lhe, abanando
delicadamente a cabeça de um lado para o outro. Em seguida, voou até ao chão, afastou -se alguns
passos, olhou para trás como que a verificar que ela o seguia, e voltou ao parapeito da janela, onde a
viúva permanecia boquiaberta. “Os atos do animal têm mais significado do que as pessoas julgam”,
pensou.
— Muito bem, James — disse em voz alta, conversando com o pássaro como se ele fosse um ser
humano. — Vou acreditar em ti. Espera só um minuto enquanto me ponho decente para sair. E,
dizendo isto, atou um avental à cintura, desceu sorrateiramente as escadas e conseguiu sair de casa
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sem acordar a Sra. Ford.
James estava, visivelmente, satisfeito. Pulava energicamente alguns metros à sua frente, em
direção à casa incendiada. A mulher seguia-o tão depressa quanto podia. O pássaro saltitava como se
soubesse de cor o caminho pelas traseiras da casa, onde ficava a cozinha. Nada restava dela, a não ser o
chão de tijolo, ainda encharcado da água que lhe tinham atirado para tentar apagar o fogo. A senhora
Gage permanecia pasmada enquanto James saltava de um lado para o outro, bicando aqui e ali, como se
estivesse a testar a rigidez dos tijolos com o bico. Tudo lhe parecia muito estranho e, não fosse a
viúva estar habituada a lidar com animais, teria com certeza perdido a paciência e, muito
provavelmente, coxeado de volta para casa. Mas coisas mais estranhas estavam ainda por acontecer.
Durante todo aquele tempo, o papagaio não proferira uma palavra. De repente, entrou num estado de
grande euforia, agitando as asas, batendo repetidamente no chão com o bico e exclamando “Não está
ninguém em casa! Não está ninguém em casa!”, com uma voz tão alta e esganiçada que a mulher temeu
que a aldeia inteira acordasse.
— Não batas com tanta força, James. Ainda te magoas — disse, carinhosamente. Mas o pássaro
repetia os ataques aos tijolos de forma cada vez mais forte.
— O que poderá querer dizer isto? — questionava-se, enquanto olhava para o chão da cozinha. À luz
do luar, podia ver-se uma ligeira irregularidade na colocação dos tijolos, como se tivessem sido retirados e
colocados novamente no sítio sem ficarem devidamente alinhados com os restantes. O alfinete-de-ama que
usara para prender o avental serviu para ajudar a escavar entre os tijolos, que se moviam com facilidade.
Conseguiu, rapidamente, retirar um deles e o papagaio saltou para o tijolo seguinte bicando-o,
inteligentemente e repetido “Não está ninguém em casa!”. A Sra. Gage percebeu que deveria retirá-lo
também. Continuaram nesta labuta até criarem um buraco de cerca de dois metros por um. O papagaio
parecia achar o espaço suficientemente grande. Mas para quê?
A dada altura, a velha viúva decidiu descansar um pouco e deixar-se guiar totalmente pelo
comportamento do papagaio James. Mas não pôde descansar muito tempo. Depois de remexer o chão
arenoso durante alguns minutos, como uma galinha a esgaravatar a areia, o papagaio encontrou o que, a
princípio parecia ser uma pedra redonda e amarelada. Ficou tão entusiasmado com a descoberta que a
Sra. Gage decidiu ajudá-lo. Para seu espanto percebeu que o buraco que tinham escavado estava cheio
daquelas pedras redondas e amareladas, tão bem alinhadas que era difícil conseguir movê-las. Mas o
que seriam? Só depois de retirarem a primeira camada, e um pedaço de oleado que estava por baixo
delas, é que conseguiram ter a visão mais extraordinária de sempre — ali estavam, fila após fila,
maravilhosamente polidas e reluzindo à luz da lua, milhares de moedas de ouro!!!!!
Então era este o esconderijo do avarento, que se assegurara de que ninguém o descobriria
tomando duas notáveis precauções Em primeiro lugar, como se provou mais tarde, mandara construir um
fogão mesmo em cima do local onde o seu tesouro estava escondido, de forma a que, se não fosse o
incêndio, ninguém teria conhecimento da sua existência; em segundo lugar, revestira a primeira fileira
de moedas de ouro com uma substância pegajosa, cobrindo-a depois com terra para que, se por algum
acaso ficasse exposta, fosse imediatamente confundida com uma pedra vulgar. Assim sendo, a artimanha
do velho Joseph só foi descoberta devido à extraordinária coincidência do incêndio e à astúcia de James.
A senhora Gage e o papagaio tratavam, agora, de remover do esconderijo todo o tesouro — que
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continha nem mais nem menos do que três mil moedas — colocando-o no avental que a viúva
estendera no chão. Assim que assentaram a última moeda no topo da pilha, o papagaio voou
triunfante e pousou suavemente na cabeça da velha senhora. E foi nesses preparos que voltaram
para casa da Sra. Ford, a passo lento, pois a Sra. Gage era coxa, como já vos expliquei, e, ainda por
cima, o peso do avental era difícil de suportar. No entanto, conseguiu chegar ao quarto sem
ninguém se aperceber da sua visita à casa
No dia seguinte voltou para Yorkshire. O senhor Stacey levou-a novamente até Lewes mas, desta
vez, surpreendeu-se com o peso que a caixa de madeira tinha agora. Como não era homem de se meter
na vida dos outros, concluiu que os generosos habitantes de Rodmell deveriam ter oferecido algumas
bugigangas à pobre senhora para a reconfortarem pela terrível perda de todos os seus bens no incêndio.
Por pura bondade, o Sr. Stacey ofereceu-se para lhe comprar o papagaio por meia coroa, mas a senhora
Gage recusou a oferta com tal indignação — respondendo que não venderia o pássaro por toda a riqueza
das Índias —, que o pobre homem depreendeu que a senhora não deveria estar no seu perfeito juízo,
depois de tudo o que lhe acontecera.
Resta apenas dizer que a senhora Gage voltou para Spilsby sã e salva; levou a caixa de madeira até
ao banco e viveu muito feliz e em grande conforto com o papagaio James e o seu cão Shag até ser muito
velhinha.
Só contou toda esta história ao padre (filho do reverendo Samuel Tallboys), no seu leito de
morte, acrescentando que tinha a certeza de que a casa tinha sido propositadamente incendiada pelo
papagaio James que, tendo consciência do perigo que ela correra junto à margem do rio, voara para a
copa e virara o óleo do fogão onde estavam a aquecer uns restos para o jantar. Assim, não só a salvou
de afogar-se como também lhe mostrou onde estavam as três mil libras que, de outra forma, nunca
seriam descobertas. Esta era, segundo as suas palavras, a recompensa por tratar bem os animais.
O padre julgou que a velha senhora já não dizia coisa com coisa. Mas a verdade é que, assim que se
ouviu o seu último suspiro, o papagaio James exclamou “Não está ninguém em casa! Não está ninguém em
casa!” e caiu morto do seu poleiro. O cão Shag morrera uns anos antes.
Os visitantes da aldeia de Rodmell, ainda podem ver as ruínas da casa incendiada há cinquenta anos
e é comum ouvir-se dizer que, durante a noite, se ouve o papagaio a bicar o chão de tijolo. Há,
também, que afirme ter visto uma velha senhora com um avental branco, junto às ruínas da casa.