KANAYAMA, Rodrigo Luís. A Vedação Aos Argumentos Políticos Na Ativdade Jurisdicional

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A VEDAÇÃO AOS ARGUMENTOS POLÍTICOS NA ATIVIDADE JURISDICIONAL

Direito do Estado – Rodrigo Luís Kanayama

A VEDAÇÃO AOS ARGUMENTOS POLÍTICOS NA ATIVIDADE


JURISDICIONAL

Rodrigo Luís Kanayama∗

RESUMO

Desde a escolha das normas jurídicas que ordenarão uma sociedade até sua efetiva
aplicação pelos juízes é preciso que haja coerência. Não é possível permitir que, em
prejuízo da segurança jurídica e da democracia, seja possível o julgamento de casos
concretos pelo Poder Judiciário pela eqüidade ou pelo bom senso dos magistrados.
Portanto, como limite à atuação jurisdicional tem-se a fundamentação, que
obrigatoriamente deverá existir em todas as decisões judiciais, baseando-se em normas
jurídicas pré-existentes. Somente assim será possível chegar mais próximo da Justiça.

Palavras-chave: Teoria do Direito; Atuação jurisdicional; Coerência do ordenamento;


Justiça; Decisões políticas.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 PROCESSO DE


ELABORAÇÃO DO DIREITO; 3 DEVER DE
OBSERVÂNCIA ÀS NORMAS JURÍDICAS; 4 A
APLICAÇÃO DO DIREITO; 4.1 INTERPRETAÇÃO E
INTEGRAÇÃO DO DIREITO; 4.2 CASOS DIFÍCEIS E
ARGUMENTOS POLÍTICOS; 5 CONCLUSÃO.

1 INTRODUÇÃO

O maior problema das normas provenientes da atividade legiferante é a


impossibilidade de prever todas as situações concretas por meio de dispositivos
formais. Ao Poder Judiciário, intérprete e aplicador do Direito caberá também integrar
lacunas, ou seja, suprimir os espaços vazios, situações não previstas.

O objetivo será [procurar] demonstrar como esse impasse pode ser superado.
Mais simples compreender o problema com um exemplo concreto: no editorial do


Advogado e Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Email: [email protected]
jornal O Estado de S. Paulo, de 20 de junho de 20061, criticou-se a declaração da
Ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia Antunes Rocha, que anunciou
aos jornalistas a escolha de dois objetivos principais para balizar sua atuação
jurisdicional. O primeiro é acabar com o que chamou de “exclusão social da maior
parte da população” no acesso ao Poder Judiciário. O segundo objetivo é “tornar
efetivos” os direitos garantidos pela Constituição.

Para o jornal, essa declaração causou apreensão, pois, de acordo com ele, a
Ministra, ao atuar dessa forma, estaria deixando de lado a isenção e a objetividade em
seus julgamentos para atuar como “ministra do social”, disseminando “incerteza
jurídica”. Ainda, de acordo com o editorial, a principal função do magistrado do STF é
garantir a segurança do Direito e a coerência e racionalidade do sistema jurídico.

Continuando, o “Estado” afirma que a Constituição Federal trouxe incerteza


por conter em seu bojo princípios jurídicos vagos, como a “função social da
propriedade”, ampliando a discricionariedade da magistratura e favorecendo a
tolerância de condutas ilegais (como o desrespeito contratual).

Por fim, o Jornal pugna por uma interpretação rigorosa das leis, sem que os
Ministros possam “defender” as partes mais fracas. Ainda, diz que a função do
magistrado é puramente técnica, jamais política, e que a isenção e a neutralidade do
juiz é essencial ao Estado de Direito.

Levantam-se as dúvidas: é um problema verdadeiro a discricionariedade


judicial? Há muitos termos indeterminados na Constituição Federal? Como solucionar
o problema? Deverá o juiz defender a parte mais fraca ao invés de aplicar a lei
objetivamente? Essas indagações serão analisadas a seguir.

2 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO DIREITO


1
A TOGA e a política. O Estado de S. Paulo, 20 jun. 2006, p. A3. Notas e Informações.

5
Revista Eletrônica do CEJUR, Curitiba-PR, a. 2, v. 1, n. 2, ago./dez. 2007

Na contemporaneidade, o Direito é a manifestação da vontade dos membros


de uma determinada sociedade (mesmo que formalmente). Não é um fenômeno
natural, mas é voluntariamente criado para proporcionar a estabilidade e coesão social.

A criação do ordenamento jurídico é de importância ímpar. Após a passagem


de um estado natural para um estado social, em que os indivíduos unem seus interesses
comuns para a constituição de uma sociedade, é necessário que se elejam normas que
regulem a convivência de todos os seus membros, com vistas à estabilidade social.

Para tanto, existem algumas condições: que o povo possa, por si só, decidir o
caminho pelo qual irá trilhar; que todos possam participar das discussões para escolher
livremente qual caminho tomarão. O povo detém a soberania2, ou seja, a capacidade de
que os próprios membros determinem como deve ser regulada a sociedade em que
viverão.

É a necessidade de auto-regulação, ou seja: "um povo, entendido como uma


comunidade de indivíduos livres e autônomos, tem o direito e o dever de se instituir ex
novo uma constituição capaz de traduzir em elementos institucionais e positivos uma
fé racional em princípios fundamentais de convivência".3

Os interesses são, assim, refletidos nesta carta normativa4 e nas normas


subseqüentes.

O ponto fundamental que legitima todo o ordenamento normativo, desde essa

2
Carl Schmitt traz o conceito de soberania do contexto teológico para o político. Segundo o
prefácio de Hans Georg Flickinger (SCHMITT, Carl. O conceito do político. Rio de Janeiro: Vozes,
1992, p. 21), Schmitt critica o conceito moderno de soberania, “que é esvaziado de seu sentido
verdadeiramente político: o caráter do logos divino enquanto decisão originária, por sua vez não mais
fundamentável e enquanto princípio criador da ordem objetiva aparecerá, de novo, no contexto de sua
interpretação da essência da soberania política”.
3
PALOMBELLA, Gianluigi. Constitución y soberania. Granada: Comares, 2000, p. 24.
4
Conforme Cláudio Pereira de Souza Neto, a Constituição não pode ser entendida como um
mero “reflexo da realidade”, mas deve alentar também a pretensão de conformá-la, contribuindo para
o estabelecimento de termos justos para a cooperação social (SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. A
teoria constitucional e seus lugares específicos: notas sobre o aporte reconstrutivo. Revista de Direito
do Estado, a. 1, n. 1, p. 104).

6
escolha normativa, é a soberania, o poder do povo, uma concreta referência à estrutura
organizativa no nível sociológico, político, econômico e da vontade constituinte5.
Somente assim uma Constituição será válida e legítima. Essa é a idéia que predominou
no constitucionalismo pós-guerra e foi determinante para a limitação do poder estatal.

3 DEVER DE OBSERVÂNCIA ÀS NORMAS JURÍDICAS

O dever de obedecer ao Direito surge com a própria escolha democrática


normativa, decorrente da soberania. É neste ponto, então, que o ordenamento jurídico
ganha legitimidade. Existem vários argumentos diferentes para justificá-la. Uma delas
é o contrato social, que já havia sido exposto por Rousseau e foi revisto por John
Rawls, em sua Teoria da Justiça.

Para Rawls, a sociedade deve estar regida por um conceito público de justiça.
Os homens, pois, podem propor demandas reciprocamente, no entanto concordam com
um ponto de vista comum a partir do qual elas serão julgadas: "poder-se-ia pensar no
conceito público de justiça, como sendo a carta fundamental de uma sociedade
humana em boa ordem"6.

A posição original de igualdade corresponde ao estado de natureza da teoria


clássica do contrato social. É uma situação hipotética (aliás, isso é reconhecido pelo
próprio Rawls). Ninguém conhece sua posição na sociedade, ninguém conhece sua
classe, nem o status social, nem a capacidade natural. Ainda, as partes não conhecem
seus diferentes conceitos de bem, ou suas propensões psicológicas particulares.

"Os princípios de justiça são, desta forma, estabelecidos em total ignorância da


posição específica de cada um. Isto garantirá que não se possa tirar vantagens ou sofrer
desvantagens durante o processo de escolha dos princípios através de decorrências de

5
PALOMBELLA, op. cit., p. 27.
6
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Brasília: UnB, 1981, p. 28.

7
Revista Eletrônica do CEJUR, Curitiba-PR, a. 2, v. 1, n. 2, ago./dez. 2007

chances naturais, ou da contingência de circunstâncias sociais".7

Os acordos serão eqüitativos. E esse é o motivo do nome “Teoria da Justiça”.


Os princípios da Justiça são escolhidos em conjunto (com alguns já previamente
escolhidos). Após, determinado seu conceito de Justiça, aprovar-se-ão uma Carta de
princípios e leis.

Tudo terá pretensão de ser justo, sendo que “uma característica da justiça
como eqüidade é considerar as partes iniciais como encontrando-se numa situação
racional e de desinteresse mútuo”8. Os princípios fundantes deverão ser escolhidos
racionalmente e sem nenhum interesse, exceto o bem comum. Para deixar claro, os
princípios da justiça deverão obedecer a certas condições e ninguém poderá tirar
vantagem na escolha dos deles.

Para os contratualistas, um acordo tácito, tal como a visão de Rawls, é aquilo


que fundamentaria uma sociedade e o respeito às instituições e ao Direito. No entanto,
esse entendimento é alvo de críticas de Dworkin, que afirma que ninguém poderá
defender esse argumento por muito tempo, pois o consentimento não pode ser
obrigatório para as pessoas.

Além dessa vertente, Rawls afirma que as pessoas reconheceriam o dever


natural de apoiar as instituições que passem nos testes de justiça abstrata (devem ser
justas ou quase justas). É o dever de ser justo. Isso, no entanto, não explica muito bem
a legitimidade.

Um argumento mais forte é o dever moral (dever deontológico), e não a


simples coação9, que leva os membros da sociedade a obedecer às leis. Como houve
uma decisão democrática acerca dos princípios que agora regem as pessoas, presume-

7
RAWLS, op. cit., p. 33-34.
8
Ibidem, p. 34.
9
Conforme Bobbio (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 1995, p.
147), a coação possui duas concepções: clássica e moderna. “Para a teoria clássica, a coerção é o meio
mediante o qual se fazem valer as normas jurídicas, ou, em outras palavras, o direito é um conjunto de
normas que se fazem valer coativamente; para a teoria moderna, a coerção é o objeto das normas
jurídicas ou, em outros termos, o direito é um conjunto de normas que regulam o uso da força
coativa”.

8
se que elas aceitam o ordenamento (ou, ao menos, a maioria).

Sobre o assunto, Hart10 entendia que para a existência do ordenamento jurídico


é necessário que as normas sejam obedecidas pelas pessoas (é um critério de eficácia),
mas também que as regras de reconhecimento que estabelecem as condições de validez
das demais normas sejam efetivamente aceitas pelos membros da sociedade como
modelos públicos de conduta oficial.

Para o autor era nessa norma de reconhecimento (que era norma secundária
fundamental para Hart) que estava o fundamento da obediência, não no monopólio do
poder11. Sendo assim, uma norma pode ser obrigatória porque é aceita ou porque é
válida. A despeito da existência de uma norma de reconhecimento12, de Hart, e da
coercibilidade, é acima de tudo necessário que haja a obrigatoriedade moral ou
correção material13, pois é preciso distinguir o Direito da mera força (ou seja, apenas
sanções não são suficientes para legitimá-lo).

Por esse entendimento, a obrigação moral e a norma de reconhecimento


garantiriam a validade e a efetividade (obediência) do Direito e a coação (ou o medo
de sanção), o cumprimento “forçado”, ou seja, permite que o ordenamento continue
vigendo mesmo que nem todos concordem ou obedeçam a ele14.

10
HART, H. L. A. O conceito de direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 145.
11
Para Austin (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 29), a regra jurídica é uma ordem proveniente de uma pessoa dotada de força. Típico
pensamento positivista, tal como Kelsen, que atribuía a obediência à sanção. Além disso, defendia em
sua teoria a possibilidade do juiz criar um novo direito para o caso de não haver previsão ou
jurisprudência, cuja discussão virá adiante.
12
Dworkin explica a “norma de reconhecimento” de Hart. Para ele, essa norma é a regra
secundária, que fundamenta o ordenamento jurídico. A autoridade está nela, e não no monopólio do
poder, como afirmava Austin (ibidem, p. 33).
13
SANCHÍS, Luis Prieto. Constitucionalismo y positivismo. México: Fontamara, 1999, p.
59.
14
É preciso ressaltar que para manter um sistema jurídico não é suficiente apenas a força,
mas também legitimidade. A adesão ao direito não pode ser forçada, mas voluntária. (SANCHÍS, op.
cit., p. 72). Conforme Rousseau, “convenhamos que a força não faz o direito e que só devemos
obedecer aos legítimos poderes”. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrato social. Lisboa: Presença,
[s.d.], p. 14).

9
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Ainda, essa teoria positivista admite a existência de uma “textura aberta”15,


que permitiria a inovação por parte do juiz, ao julgar uma lide. É esse o alvo das
críticas de Dworkin, pois o juiz deverá fundamentar sua decisão num direito já posto,
não inventando um novo direito para o caso concreto. Para essa finalidade é que,
segundo o autor, servem os princípios, que fazem parte do ordenamento e são
obrigatórios.

O autor ensina que um positivista

poderia argumentar que os princípios não podem ser vinculantes ou obrigatórios. Tal
argumento seria um erro. Sem dúvida, é sempre questionável se algum princípio particular
obriga, de fato, alguma autoridade jurídica. Mas não há nada no caráter lógico de um
princípio que o torne incapaz de obrigá-la.16

Os princípios também são capazes de obrigar, porém de maneira diferente às


regras. Conforme Dworkin17:

somente regras ditam resultados [particulares]. Quando se obtém um resultado contrário, a


regra é abandonada ou mudada. Os princípios não funcionam dessa maneira; eles inclinam a
decisão em uma direção, embora de maneira não conclusiva. E permanecem intactos quando
não prevalecem18.

Vedam-se as decisões conciliatórias, que são aquelas que garantem os direitos


proporcionalmente à vontade de cada grupo dentro de uma sociedade, pois elas
impedem a coerência do ordenamento, ou seja, desrespeitam sua integridade. Para
Dworkin, decisões conciliatórias existem quando uma comunidade estabelece e aplica
direitos diferentes (para cada grupo que assim decidiu), coerentes em si mesmo, mas

15
DWORKIN. Levando ..., p. 35. Conforme Dworkin, “os positivistas sustentam que quando
um caso não é coberto por uma regra clara, o juiz deve exercer seu poder discricionário para decidi-lo
mediante a criação de um novo item de legislação” (ibidem, p. 50).
16
Ibidem, p. 56.
17
Ibidem, p. 57.
18
Ao contrário das regras que, em caso de conflito, um deixará de ser válida.

10
que não podem ser defendidos em conjunto como a expressão de uma série coerente de
princípios da justiça, eqüidade ou devido processo legal.

As decisões conciliatórias são obtidas com muito mais facilidade, pois a cada
grupo de uma comunidade pode-se aplicar o Direito que mais lhes aprouver. Não há
conflito de opiniões e isso dispensa discussões. Mas os reveses são, por exemplo, a
ausência da “igualdade formal”, a existência da parcialidade, impossibilidade da união
da vida moral e política do cidadão.

Tem-se como certo que a integridade do sistema é necessária, ou seja, é


preciso que todas as normas sejam coerentes entre si, com aplicação a todos os
integrantes de uma sociedade indistintamente. Aí está, pois, um problema com o qual é
preciso lidar, ou seja: deve-se obedecer a uma determinada lei se não se concorda com
ela? A resposta é positiva, devido ao princípio da integridade. E consciente de que uma
Constituição não é simplesmente um conjunto de normas que apenas serve de
parâmetro, mas possui força normativa concreta, sendo lícito afirmar que, após sua
promulgação, o respeito a ela torna-se obrigatório a todos os membros da sociedade.19

O dever de obediência ao Direito é decorrente de obrigações morais, além do


respeito às decisões democráticas da maioria e do ideal de integridade, não
simplesmente de um contrato social ou apenas devido às sanções, que podem ser
impostas em caso de descumprimento da norma.

Nesta toada, quanto à integridade na aplicação do Direito pelos juízes aos


casos concretos, Dworkin20 refere-se aos casos fáceis e difíceis. Aos casos fáceis é
simples afirmar que as normas já vigentes é que devem ser aplicadas. Mas em relação
aos casos difíceis – que são aqueles em que não há nenhuma regra aplicável
imediatamente ao caso concreto, ou seja, há lacunas no ordenamento – como deve
proceder o juiz?

19
“Um Estado é legítimo se sua estrutura e suas práticas constitucionais forem tais que seus
cidadãos tenham uma obrigação geral de obedecer às decisões políticas que pretendem impor-lhes
deveres” (DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 232).

11
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4 A APLICAÇÃO DO DIREITO

4.1. INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DO DIREITO

As lacunas no ordenamento jurídico são comuns, propositalmente deixadas


pelo legislador ou não, haja vista não ser possível prever abstratamente todas as
situações concretas e futuras.

A interpretação do Direito é o primeiro passo para sua aplicação, em que se


procura o “espírito da norma”. Caso constatada a existência de lacunas na lei, caberá
ao juiz integrá-las de acordo com as normas (outras regras ou princípios) já existentes
no próprio ordenamento. A ele é vedada a criação de um direito que inove a ordem
jurídica, não podendo, jamais, decidir discricionariamente ao criar um direito
retroativo, tal como era a defesa dos positivistas, tal como Austin ou Kelsen21, que
defendia a possibilidade da integração de lacunas através da ampla discricionariedade
do juiz.

Antes de continuar, é importante a explanação da diferença entre normas-


regras e normas-princípios. Conforme Alexy22, a base do argumento dos princípios
está constituída pela própria distinção entre regras e princípios. O autor diz serem as
regras mandamentos definitivos23 e os princípios são mandamentos de otimização24.

20
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério, p. 9.
21
Os positivistas reconhecem a existência de lacunas no ordenamento jurídico e indicam a
solução: o intérprete, conforme Kelsen, deverá criar o direito para preencher a “moldura” da lei e se
alcançar a sentença correta. Para o jurista, juiz e legislador produzem o direito, mas este o faz muito
mais livremente. Apesar disso, a atividade do juiz envolve sua vontade, criando uma regra individual
para o caso concreto. (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado,
1979, p. 469)
22
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 75.
23
“Las reglas son normas que, cuando se cumple el tipo de hecho, ordenan una consecuencia
jurídica definitiva, es decir, cuando de cumplen determinadas condiciones, ordenan, prohíben o
permiten algo definitivamente o autorizan definitivamente hacer algo”. (ALEXY, op. cit., p. 75)
24
Os princípios “son normas que ordenan que algo se realice en la mayor medida posible
según las posibilidades fáticas y jurídicas. Esto significa que pueden ser realizados en diferente grado
y que la medida de su realización de un principio están determinadas esencialmente, a más de por la
reglas, por los principios opuestos”. (ALEXY, op. cit., loc. cit.)

12
Isso porque as regras agem de forma definitiva, ou seja, simplesmente ordenam ou
proíbem, por exemplo. Já os princípios são totalmente contrários a essa concepção,
dando maior liberdade à interpretação.

As regras dizem com exatidão o que se pode fazer, o que não se pode etc. Mas
a aplicação dos princípios só pode ser vislumbrada perante o caso concreto, como
afirma Zagrebelsky25, o que, segundo Kelsen, daria abertura para o decisionismo
judicial (ou “discricionariedade forte”, para Dworkin26), já que são indeterminados.

Os princípios, para Carl Schmitt, são “abusivamente designados como


normas”. Por esse ponto de vista é muito visível que os princípios são incompatíveis
com o juspositivismo. O advento do constitucionalismo, portanto, vem alterar este
quadro, abrindo possibilidades para a utilização de princípios, contudo acarretando
problemas inerentes a uma interpretação mais ampla e que permite mais liberdade
judicial (o que não significa dizer “decisionismo”).

Expõe Dworkin:

a diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois


conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em
circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem.
As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula,
então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é
válida, e neste caso em nada contribui para a decisão27.

Além disso, para o autor, os princípios:

25
SANCHÍS, op. cit., p. 31.
26
A discricionariedade do juiz, neste trabalho, é utilizada no sentido forte (de arbitrariedade)
(DWORKIN. Levando ..., p. 49). No direito anglo-saxão, o juiz poderá decidir discricionariamente
dentro dos limites impostos pelas normas jurídicas. Dworkin explica o termo. Para ele, existem duas
acepções: no sentido fraco e no sentido forte. Quanto ao sentido fraco, aplica o termo para a
capacidade de julgamento, ou para dizer que um determinado funcionário tem o poder da “última
palavra”. Já em relação ao sentido forte, utiliza o termo para mostrar que aquele funcionário “não está
limitado pelos padrões de autoridade em questão” (p. 52). Neste caso, o funcionário não precisaria
recorrer ao padrão de autoridade (poderá, até mesmo, utilizar-se do bom senso ou eqüidade, o que não
descaracteriza o sentido forte).
27
Ibidem, p. 39.

13
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entram em conflito e interagem uns com os outros, de modo que cada princípio relevante
para um problema jurídico particular fornece uma razão em favor de uma determinada
solução, mas não a estipula. O homem que deve decidir uma questão vê-se, portanto, diante
da exigência de avaliar todos esses princípios conflitantes e antagônicos que incidem sobre
ela e chegar a um veredicto a partir desses princípios, em vez de identificar um dentre eles
como ‘válido’. 28

Habermas afirma que os princípios têm conteúdo deontológico (reconhecidos


pelo caráter normativo). Não são valores. Eles servem para cimentar as decisões
jurisdicionais. Os princípios, assim, não têm estrutura teleológica, mas deontológica29.

Nos Estados Unidos, de tradição do commom law, onde se valorizam os


costumes e as decisões judiciais pretéritas, é necessário preencher lacunas deixadas
pelos casos julgados e pela própria regra politicamente criada. No Brasil, de forma
similar, caberá ao juiz a decisão também se utilizando de normas já postas, sejam
regras ou princípios30.

O juiz não pode substituir a vontade política, legislando, criando um direito ex


post facto, que acarretaria não apenas falta de legitimidade de sua decisão, mas
também incerteza e incoerência perante o ordenamento. Ao proferir uma decisão que
substitui essa vontade, estará restringindo a livre manifestação dos membros da
sociedade.

Um modelo de regras, positivista, fechado, no qual os juízes tenham que


decidir discricionariamente (forte), não tem lugar nos atuais sistemas. O que se vê na
contemporaneidade é que a segurança jurídica tornou-se ela própria um princípio,
sendo que a decisão judicial discricionária (autoritária) é uma decisão que desrespeita

28
Ibidem, p. 114.
29
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1,
p. 258.
30
No direito pátrio a determinação decorre da Lei de Introdução ao Código Civil, em seu art.
4º: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito”. E no Código de Processo Civil, art. 126: “O juiz não se exime de
sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide, caber-lhe-á
aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de
direito”.

14
o sistema jurídico31.

Os princípios de direito têm como função suprir essas lacunas no


ordenamento. Pode não ser considerado extremamente justo, mas mais injusto seria a
não adoção desse critério de julgamento32. Ao juiz caberá a análise do litígio baseado
em princípios já colocados, para o caso em que encontre lacuna na legislação. Não
existe a possibilidade de o juiz julgar uma demanda discricionariamente. Para tanto,
deverá utilizar-se das normas (princípios e regras) para chegar à decisão correta
(Dworkin). Essa decisão é a única correta, segundo o autor.

4.2 CASOS DIFÍCEIS E ARGUMENTOS POLÍTICOS

Para procurar resolver casos difíceis, Dworkin idealiza a tese dos direitos. Por
meio dela, separa, inicialmente, as decisões baseadas em argumento de política e
argumentos de princípio.

Os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta
ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo (...). Os argumentos de
princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um

31
“Se um juiz tem o poder discricionário, então não existe nenhum direito legal (right) ou
obrigação jurídica – nenhuma prerrogativa – que ele [juiz] deva reconhecer” (DWORKIN. Levando ...,
p. 71).
32
Dworkin cita o famoso caso Riggs contra Palmer: “um tribunal de Nova Iorque teve que
decidir se um herdeiro nomeado no testamento de seu avô poderia herdar o disposto naquele
testamento, muito embora ele tivesse assassinado seu avô com esse objetivo. O tribunal começou seu
raciocínio com a seguinte admissão: ‘é bem verdade que as leis que regem a feitura, a apresentação de
provas, os efeitos dos testamentos e a transferência de propriedade, se interpretados literalmente e se
sua eficácia e efeito não puderem, de modo algum e em quaisquer circunstâncias, ser limitados ou
modificados, concedem essa propriedade ao assassino’. Mas o tribunal prosseguiu, observando que
‘todas as leis e os contratos podem ser limitados na sua execução e seu efeito por máximas gerais e
fundamentais do direito costumeiro. A ninguém será permitido lucrar com sua própria fraude,
beneficiar-se com seus próprios atos ilícitos, basear qualquer reivindicação na sua própria iniqüidade
ou adquirir bens em decorrência de seu próprio crime’. O assassino não recebeu sua herança”. (ibidem,
p. 37).

15
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direito de um indivíduo ou de um grupo. 33

Os argumentos de política são utilizados pelo Poder Legislativo e visam a


estabelecer um direito coletivo34. Já os argumentos de princípio são utilizados pelo juiz
e visam a estabelecer um direito individual. O Poder Judiciário não poderá se utilizar
do outro argumento por não ser “legislador segundo”, devendo se utilizar da lei, que
foi construída politicamente.35 Um argumento de política é transformado em lei,
tornando-se questão de princípio36 e a solução para os casos difíceis.37

Ao Poder Judiciário, portanto, não cabe decidir senão aplicando a norma


jurídica com o intuito de melhor atender àquela deliberação política. O juiz deverá
respeitar a integridade do Direito. Dworkin entende que eventual decisão política-
judicial tem o intuito de agradar o povo, e não é essa a tarefa do magistrado, que não
foi eleito por ele.

Não existe nada que faça obedecer a um direito que não é proveniente da
decisão política. Essa é primeira das objeções à originalidade judicial de Dworkin.38 A
segunda objeção tem o seguinte significado: "se um juiz criar uma nova lei e aplicá-la
retroativamente ao caso que tem diante de si, a parte perdedora será punida, não por ter
violado algum dever que tivesse, mas sim por ter violado um novo dever, criado pelo

33
Como exemplo, o autor diz que "o argumento de política é aquele o em favor de um
subsídio para a indústria aeronáutica, que apregoa que tal subvenção irá proteger a defesa nacional, é
um argumento de política. Já o argumento de princípio é aquele em favor das leis contra a
discriminação, aquele segundo o qual uma minoria tem direito à igualdade de consideração e
respeito”. (DWORKIN. Levando ..., p. 129).
34
Ibidem, p. 141.
35
O entendimento de Dworkin para decisões políticas é uma decisão que tenha como
objetivo agradar o povo. No entanto, essa decisão usurpa a atribuição da função legislativa, que é
representante da vontade popular. Decisões políticas diminuiriam o respeito pela lei (DWORKIN,
Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 28). Importante ressaltar que a
decisão política para o caso em tela é aquela que substitui a decisão majoritária do povo (por isso
também chamada decisão contramajoritária).
36
DWORKIN. Levando ..., p. 131.
37
“O juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os
direitos das partes, e não de inventar novos direitos retroativamente”. (Ibidem, p. 127).
38
Ibidem, p. 132.

16
juiz após o fato".39

Uma decisão fundamentada em argumentos de política resultaria injustiça40


para a parte que perdeu, não sendo justificável nem mesmo que fosse mais favorável à
sociedade, como um melhor desenvolvimento econômico ou em respeito à reserva do
possível41. Além disso, a decisão política não tem como obrigação o igual tratamento
de todos, diferentemente das decisões baseadas em direitos. Isso acontece porque a
decisão política poderá ser benéfica se aplicada para alguns e não benéfica para outros.

Nada obstante, a vedação a decisões políticas acarreta uma vantagem para o


juiz: o julgador, que não é eleito, possui, devido à tese dos direitos, não-sujeição às
pressões sociais de qualquer natureza, ao contrário dos representantes eleitos. Poderá
julgar prolatando decisões impopulares sem que sofra qualquer reprimenda por parte
do povo.

Essa é, inclusive, a finalidade da separação das funções do Estado. A


proibição de prolação de decisões políticas pelo Poder Judiciário tem como [um]
objetivo manter a integridade dos atos políticos. Por isso que ao Judiciário cabe a
declaração de inconstitucionalidade, pois poderá declarar a invalidade de uma lei
criada política-democraticamente se acreditar, com base em argumentos de princípios,
que ela não deve pertencer ao ordenamento jurídico por estar desrespeitando o ideal de
integridade [e não apenas].

No caso da ação direta de inconstitucionalidade42, em que o juiz decide, a

39
DWORKIN. Levando ..., p. 132.
40
Ou, ao menos, mais injustiça se decidido o caso com argumentos de princípio. Como se vê
em Derrida, Justiça é um avenir, ou seja, sempre se está em busca dela. “La justice reste à venir, elle a,
elle est à-venir, la dimension même d’evénements irréductiblement à venir (...). Il y a um avenir pour
la justice et il n’y a de justice que dans la mesure ou de l’evénement est possible qui, em tant
q’evénement, excede le calcul, les règles, les programmes, les antecipacions, etc. La justice comme
expérience de l’altérité absolue, est imprésentable, mais c’est la chance de l’evénement et la condition
de l’historie. (DERRIDA, Jacques. Force de loi: le “fondament mystique de l’autorité”. Cardozo Law
Review, v. 11, p. 970, 1990).
41
A reserva do possível: a aplicação de um direito poderá ser contida devido à ausência de
recursos do Estado. O juiz será omisso nesse caso e também estará tomando uma decisão não baseada
no direito, mas numa situação de conveniência política.
42
Como afirma Dworkin, “(...) parece que esses juízes exercem um poder de veto sobre a
política da nação, proibindo as pessoas de chegar a decisões que eles, um número ínfimo de nomeados

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priori, contramajoritariamente (declara que uma lei, decidida pela maioria, não está de
acordo com a Constituição), é legítimo, sim, esse poder de declarar que uma regra
definida discursivamente está em desacordo com a Carta Constitucional, haja vista que
nela já existem princípios superiores que também foram discursivamente decididos
originalmente e que sempre deverão ser respeitados. Nesse caso, a necessidade da
integridade do ordenamento se impõe.

Além disso, o juiz está declarando inválida uma lei discursivamente criada
com fundamento em princípios também discursivamente criados e que possuem um
status superior, já que são os princípios originais e que também são discursivamente
criados com a finalidade de serem superiores.

Indaga-se se a decisão que declara a inconstitucionalidade é verdadeiramente


contramajoritária, haja vista estar-se aplicando princípios que também foram criados
discursivamente pela maioria. A decisão, neste caso, respeita a integridade do
ordenamento e os princípios originais (presentes na Constituição). Na elaboração da
lei, os membros da sociedade devem ter consciência que uma das condições do
discurso é o respeito aos princípios superiores que sempre deverão ser respeitados
(“objeção contramajoritária”): a Carta de princípios.

Contudo, não se estudará a fundo esse tema neste trabalho, ficando


demonstrado que, em qualquer caso, deverá o juiz decidir mediante princípios, jamais
podendo existir o decisionismo judicial, que, em ultima ratio, seria uma decisão
injusta.

Portanto, a tese dos direitos tem como finalidade precípua demonstrar que o
juiz poderá tornar efetivos os direitos políticos – que foram exercidos no passado com
a escolha das normas – com base na lei e princípios, ressaltando que esses direitos,
conforme Dworkin, “são criações tanto da história, quanto da moralidade: aquilo a que
um indivíduo tem direito, na sociedade civil, depende tanto da prática quanto da

vitalícios, acham erradas. Como isso pode ser conciliado com a democracia? Qual é a alternativa,
porém, exceto abdicar do poder que Marshall declarou? (...)”.(DWORKIN. Império ..., p. 41)

18
justiça de suas instituições políticas”.43

Somente pela teoria dos direitos de Dworkin é que se faz possível uma
sociedade com um sistema seguro de direitos e, acima de tudo, com vistas à Justiça.

5 CONCLUSÃO

A análise acima permite fazer retornar às primeiras linhas desse trabalho. Duas
questões devem ser levantadas: está de acordo com o que foi exposto acima a
declaração da Ministra do Supremo Tribunal Federal? Está correto o editorial do
Estado de S. Paulo, quando protestou contra princípios “vagos” no sistema
constitucional?

Primeiramente, não procede a crítica do jornal, pois para ser possível


preencher as lacunas do sistema são necessários os princípios. Nada obstante, são eles
normas jurídicas, aplicáveis imediatamente, e permitem que o juiz possa proferir um
julgamento justo quando não há regra que preveja a situação. Deve o julgador
promover, nesse caso, uma ponderação de princípios, com objetivo no atingimento da
Justiça.

Se o julgamento será justo, é outra dúvida que surgirá. Entretanto, mais injusto
é julgar sem qualquer fundamento, já que é impossível haver um ordenamento jurídico
que não contenha lacunas e que preveja a pluralidade de situações materiais.

Em segundo lugar, não é possível que o Supremo Tribunal Federal possa


julgar baseado em argumentos políticos, à procura de suprir a falta de políticas
públicas, que devem ser materializadas pelo Poder Executivo, não pelo Poder
Judiciário. Nesses termos, julgar com vistas ao fim da exclusão social pode violar a
ordem jurídica, pois será afastado o Direito em prol da realização desse intento, que
nada mais é que usurpação de funções. Portanto, ao Poder Judiciário cabe, na atividade

43
DWORKIN. Levando ..., p. 136.

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jurisdicional, a aplicação do Direito. E só!

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