O Lugar Da Reabilitação Psicossocial em Um Centro de Atenção Psicossocial de Santa Catarina

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O LUGAR DA REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL EM UM CENTRO DE

ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DE SANTA CATARINA

Mauricio Lopes da Silva¹; Dipaula Minotto da Silva²

¹ Psicólogo Residente no Programa de Residência em Saúde Mental e Atenção Psicossocial –


UNESC
² Profa. Ma. em Saúde Coletiva, Tutora no Programa de Residência Multiprofissional
em Saúde mental e Atenção Psicossocial - UNESC

RESUMO
Este artigo é um recorte do resultado do Trabalho de Conclusão de Residência, no
Programa de Residência em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da UNESC, que
visou pesquisar a compreensão e os processos de reabilitação psicossocial em relação a
usuários com psicose em um CAPS no sul de SC. Trata-se de uma pesquisa qualitativa,
na qual foram entrevistados quatro profissionais por meio de roteiro semiestruturado,
visando compreender a percepção e os modos de estruturação de atividades do serviço
de uma possível reabilitação psicossocial. Os dados foram analisados a partir da
proposta de Análise de Conteúdo, tendo como base teórico-conceitual os estudos sobre
reabilitação psicossocial, Reforma Psiquiátrica e Psicanálise. Foi evidenciado que
mesmo os profissionais apresentando dificuldade de reconhecer o conceito da
reabilitação psicossocial, encontram-se alinhados a processos de estabelecimento e
reestabelecimento da cidadania, do cuidado em liberdade e da autonomia.

Palavras-Chave: Reabilitação Psicossocial; Reforma Psiquiátrica; Psicanálise;


Psicose.

______________________________________________________________________
THE PLACE OF PSYCHOSOCIAL REHABILITATION IN A PSYCHOSOCIAL
CARE CENTER IN SANTA CATARINA

Abstract:This article is an excerpt from the result of the Conclusion of Residency


Work, in the UNESC Mental Health and Psychosocial Care Residency Program, which
aimed to research the understanding and psychosocial rehabilitation processes in
relation to users with psychosis in a CAPS in the south of SC. It is a qualitative
research, in which four professionals were interviewed by means of a semi-structured
script, aiming to understand the perception and ways of structuring the service activities
of a possible psychosocial rehabilitation. The data were analyzed from the Content
Analysis proposal, based on the theoretical-conceptual studies on psychosocial
rehabilitation, Psychiatric Reform and Psychoanalysis. It was evidenced that even the
professionals presenting difficulties to recognize the concept of psychosocial
rehabilitation, are aligned with the processes of establishment and re-establishment of
citizenship, care in freedom and autonomy at least in terms of discourse.
Keywords: Psychosocial Rehabilitation; Psychiatric Reform; Psychoanalysis;
Psychosis

EL LUGAR DE LA REHABILITACIÓN PSICOSOCIAL EN UN CENTRO DE


ATENCIÓN PSICOSOCIAL DE SANTA CATARINA

Resumen: Este artículo es un extracto del resultado de la Conclusión del Trabajo de


Residencia, en el Programa de Residencia de Salud Mental y Atención Psicosocial de la
UNESC, que tuvo como objetivo investigar los procesos de comprensión y
rehabilitación psicosocial en relación a los usuarios con psicosis en un CAPS en el sur
de SC . Se trata de una investigación cualitativa, en la que se entrevistó a cuatro
profesionales mediante un guión semiestructurado, con el objetivo de comprender la
percepción y formas de estructurar las actividades de servicio de una posible
rehabilitación psicosocial. Los datos fueron analizados a partir de la propuesta de
Análisis de Contenido, con base en los estudios teórico-conceptuales sobre
rehabilitación psicosocial, Reforma Psiquiátrica y Psicoanálisis. Se evidenció que
incluso los profesionales que presentan dificultades para reconocer el concepto de
rehabilitación psicosocial, están alineados con los procesos de establecimiento y
reestablecimiento de ciudadanía, cuidado en libertad y autonomía al menos en términos
de discurso.

Palabras chave: Rehabilitación psicosocial; Reforma psiquiátrica; Psicoanálisis;


Psicosis.

INTRODUÇÃO

A Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) é um processo que surge nos anos


de 1970 inspirada pela psiquiatria democrática italiana de Basaglia, e se intensifica
junto a conjuntura de redemocratização que o Brasil vivenciou após a ditadura militar
iniciada em 1964. Propõe um rompimento do paradigma centrado na doença, por meio
da transformação do modelo hegemônico nas relações entre a sociedade e loucura
(Amarante, 2016). Compreendida enquanto um complexo processo político e social,
formado por múltiplos atores e atuando em diversas esferas, a RPB abrange um
conjunto de transformações de práticas, saberes e valores socioculturais. Esse processo
firmou sua crítica as instituições psiquiátricas clássicas e a violência exercida aos
sujeitos em sofrimento psíquico (Brasil, 2005).
No Brasil, a história da psiquiatra replicou o modelo europeu, instituindo
categoricamente os hospitais psiquiátricos como centro do modelo de “tratamento” para
a chamada loucura, configurando-se a partir das violências asilares. As políticas de
saúde mental no império até a república velha, vem traçando o não lugar social dos
sujeitos (AMARANTE, 2016).
Com a ditadura militar em 1964 e seus 20 anos de repressão levando em
consideração a relação público-privado, as hospitalizações tornam-se sinônimo de
lucro. Ao final da ditadura, os movimentos da Reforma Sanitária Brasileira e da
Reforma Psiquiátrica tomam força. Os Movimentos dos Trabalhadores em Saúde
Mental juntamente com familiares, movimentos sociais, reivindicam condições dignas
de tratamento (Amâncio, 2012).
Estes movimentos impulsionam o surgimento dos primeiros dispositivos de
cuidado em liberdade no Brasil, os CAPS, inspirados no modelo de psiquiatria
democrática de Basaglia na Itália. Os CAPS são serviços de saúde abertos e
comunitários, que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no SUS,
considerados locais de referência e tratamento aos sujeitos que apresentam sofrimento
psíquico grave e persistente, por meio do cuidado intensivo, e promotor de vida.
Proporcionam atenção à população de sua área, possibilitando a inclusão social dos
usuários por meio do trabalho, lazer, promoção dos direitos civis, assim como da
promoção dos laços familiares e comunitários. Sendo assim, são serviços de atenção à
saúde mental, que buscam ser substitutivos aos hospitais psiquiátricos, agindo em
articulação com outros dispositivos da RAPS. Sua existência viabiliza a tentativa de
quebra ao modelo biomédico, criando outro modo de conceber a loucura e seu local
social (Brasil, 2004).
Nessa direção, a criação de espaços de articulação em rede cresce à medida
que políticas de saúde mental são implantadas, porém não bastava somente a criação de
lugares de cuidado, estes espaços necessitavam, e ainda necessitam, ser preenchidos de
sentidos que sustentem os princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica Brasileira. O
movimento da luta antimanicomial enquanto propulsor que norteia práticas em saúde
mental, tem forte influência na construção de novas propostas de cuidado em liberdade.
Para Pitta (2016) em uma direção de sentimento instrumental, a reabilitação
psicossocial pode ser vista enquanto representante de um conjunto de programas e
serviços que são desenvolvidos com a finalidade de facilitar (mediar) a vida de sujeitos
acometidos por dificuldades severas e persistentes. Pode ser compreendida enquanto um
modo de saber-fazer em saúde mental que visa a redução do poder cronificador dos
tradicionais tratamentos psiquiátricos. Porém, essa definição leva a múltiplas formas de
interpretação, sendo observáveis em diversas experiências, nos mais diversos lugares.
A autora ainda ressalta que no Brasil a etimologia de Reabilitação
Psicossocial traz em si prejuízo de valor e sentido. O prefixo “re” representa um
movimento para traz, sendo a palavra habilitação, o efeito ou ato de habilitar, por meio
de uma diversidade de conhecimentos, aptidões, capacidades. Quando postas juntas a
reabilitação, coloca-se a representar uma “recobrança de crédito”, recuperação das
condições físicas ou mentais das incapacidades, podendo remeter a um sentindo
ortopédico (Pitta, 2016).
Quando em articulação com a dimensão psicossocial torna-se ainda mais
ambíguo, suscitando uma diversa forma de compreensão e significação. Nesta direção
toma-se a noção de que quando enfatizado a perspectiva de equidade enquanto
possibilidade de atenção igualitária de direitos das pessoas, podendo evidenciar a
singularidade e subjetividade de cada um, a reabilitação pode vir a ser representada
enquanto um tratado ético-estético que de ânimo aos projetos terapêuticos na direção de
uma sociedade justa com oportunidade a todos (Pitta. 2016).
De acordo com Saraceno (2016) no I Encontro Brasileiro de Reabilitação
Psicossocial, entende-se por Reabilitação Psicossocial não uma técnica entre muitas,
mas antes de tudo, uma necessidade ética, uma estratégia que vai além da mudança
ou transformação de uma condição de desabilidade para uma habilidade do sujeito. A
Reabilitação Psicossocial levaria a implicação de uma mudança total de toda a política
dos serviços de saúde mental, ressaltando o papel e a função de todos os profissionais e
atores do processo de saúde e doença, ou seja, coloca em cena os usuários, familiares e
as diversas comunidades onde estes sujeitos vivem.
Saraceno (2016) parte do conceito de contratualidade ao referir-se as
negociações diárias que os sujeitos se deparam em diversos cenários de suas vidas. A
contratualidade pode ser compreendida enquanto uma escolha entre as possibilidades
postas as diversas condições que envolvem os sujeitos. Nestes cenários o sujeito pode
ter mais ou menos um determinado nível de habilidade, podendo ser diversos são
espaços de troca, onde se desenrolam as cenas do cotidiano, as histórias de vida, os
efeitos de todos os elementos que envolvem os níveis de contratualidade dos sujeitos.
Também, neste cenário encontra-se as desabilidades por decorrência da falta ou dá
inexistência de estímulo ao exercício do poder contratual, sendo neste sentindo que o
conceito de reabilitação toma corpo.
O processo de reabilitação seria como um caminho a reconstrução, um
exercício pleno da cidadania, da plena contratualidade, nos cenários, onde Saraceno
(2016, p.16) os localiza enquanto: habitat, rede social e trabalho como valor social.
Pode-se pensar com isso o atravessamento da cidadania enquanto balizador das práticas
de cuidado em espaços de saúde mental. O autor ainda sinaliza que para haver a
reabilitação é necessário a construção de um caminho que não acaba em si mesmo, “não
necessitamos de esquizofrênicos pintores, necessitamos de esquizofrênicos cidadãos”,
porém, ressalta-se que se exclui a arte ou os objetos e estratégias para que se (re)
construa uma condição de contratualidade maior com o mundo externo.
Toma-se o conceito de reabilitação enquanto base na análise de narrativas
de profissionais de um centro de atenção psicossocial, ao passo que, este conceito liga-
se com o saber-fazer em relação ao campo das psicoses, sendo isto o foco deste
trabalho. A questão se faz frente ao que os profissionais de saúde mental de um
centro de atenção psicossocial, sabem e produzem sobre a reabilitação psicossocial, suas
intervenções frente a sujeitos acometidos pelas psicoses, bem como pensam e fazem
uma clínica possível para o CAPS.
Segundo Rinaldi (2006) a dimensão política assume na Reforma
Psiquiátrica a dianteira do movimento, por decorrência das diversas denúncias às
violências asilares nos manicômios. Esta questão ofuscou por um tempo a discussões
acerca da clínica nos dispositivos substitutivos, pois o paradigma da
desinstitucionalização, que deu norte ao movimento reformista, criticou os modelos de
clínica, até então fortemente ligados ao modelo da psiquiatria tradicional, mas carece
avançar nesta pauta.
Sendo assim, a partir de organizações municipais e estaduais desde os nos
de 1980, e com a lei 10.216 do ano de 2001, a política nacional de saúde menta tem
como base no modelo italiano. A reforma psiquiátrica brasileira deu valor ao dispositivo
da atenção psicossocial, tendo estes por base a noção de Reabilitação Psicossocial,
trazendo consigo o objetivo da recuperação da autonomia enquanto aumento do poder
de contratualidade na direção da inclusão social.
A Reabilitação Psicossocial norteia as políticas de saúde mental no Brasil,
sendo considerada um importante operador teórico-prático da desinstitucionalização em
saúde mental. Entretanto, entende-se que na marca desse conceito e de suas práticas
podem ser encontrados antigas formas de psiquiatrização a partir de uma nova
roupagem (Pinto & Ferreira, 2009). Sabe-se que o manicômio, muito mais que uma
estrutura física, é a expressão de modos de pensar e agir que colocam as pessoas em
desvantagem psicossocial, ou com desabilidades psíquicas, em condição de não
cidadania. Neste sentido, as antigas formas ou novas roupagens de opressão nas práticas
profissionais serão sempre postas como linha tênue que exige das equipes o movimento
de supervisão clínico institucional dos trabalhadores.
Partindo do estudo acerca do referencial teórico abordado, verificou-se a
necessidade de compreender os processos de reabilitação psicossocial em relação a
usuários com psicose em um CAPS no sul de SC.

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, na qual foram entrevistados 4 (quatro)


profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II) no Sul de Santa Catarina.
Os entrevistados foram profissionais concursados ou contratados, que realizaram
atividades individuais e/ou de grupo e que participaram das reuniões de equipe. Foram
propostas 10 (dez) perguntas de roteiro de entrevista semiestruturada como ferramenta
de coleta dedados, com perguntas abertas que viabilizaram aos entrevistados falar sobre
o assunto livremente.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade do Extremo
Sul Catarinense, com o número 4.183.973. A autorização dos profissionais foi mediante
ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Os dados foram analisados através das etapas da análise de conteúdo
(BARDIN, 2009), sendo estas: A primeira, fase pré-análise é a etapa de organização do
material, tendo como objetivo a operacionalização. Esta fase acontece por meio de
quatro momentos: 1) leitura flutuante, haverá o estabelecimento de contato com os
documentos da coleta de dados, reconhecimento do texto; (2) escolha dos documentos, é
realizado pela demarcação do que será analisado; (3) formulação das hipóteses e dos
objetivos; (4) referenciação dos índices e elaboração de indicadores, ocorrendo o
envolvimento da determinação de indicadores por meio de recortes de texto nos
documentos de análise. A segunda fase deu-se por meio da exploração do material,
visando a definição dos sistemas, codificação e a identificação das unidades de
registros. Na última fase será trabalhado os resultados, as inferências, sendo realizado
interpretação dos dados (BARDIN, 2009).

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Este trabalho evidenciou, a partir dos discursos analisados, duas principais


categorias nas quais foram discutidas: a) a reabilitação psicossocial e a sua reação com
os processos de autonomia, desenvolvimento da cidadania e inclusão social; b)os
processos de cuidado que se estabelecem no CAPS.
Os CAPS surgem no Brasil como parte de uma rede que pretende ser
substitutiva aos hospitais psiquiátricos. Compostos por equipes multiprofissionais de
saúde mental, devem colaborar no resgate da cidadania de sujeitos com “carreira” na
psiquiatria, ou seja, aquelas que sofrem com o estigma social da loucura, e ofertar
estratégias e cuidado em liberdade.
Na presente pesquisa, o primeiro movimento realizado junto aos
trabalhadores foi de buscar compreender como estes compreendem o lugar do conceito
de reabilitação psicossocial nas práticas realizadas pelo CAPS. Para tanto, questionou-se
ao participantes da pesquisa: “Como são realizadas as práticas de reabilitação
psicossociais no serviço?” Com isto:

Acho que tem algumas pessoas que tem um foco maior nisso, por exemplo a Artesã que
faz mais passeios, mas tem outras pessoas que também fazem isso e que tentam essa
reinserção social a partir de uma vivência e experiências com o mundo mais externo.
Acho também que aqui mesmo, em certas oficinas a gente tem essa oportunidade de
estar treinando habilidade e capacidades que lá fora eles vão utilizar para a sua
reinserção. O CAPS como um todo, tem a função de reinserção, não trabalhamos
mais nessa ideia de isolar as pessoas e fazer com que elas estejam distanciadas dos
problemas do mundo, é muito como se a gente preparasse ela pra esses problemas (...)
Acho que a gente fica sempre tentando dar asas e liberdade e ajudar as pessoas” (P2)
“Pode ser as mais voltadas pro social? De repente até tentando inserir ele,
encorajando ele a estar novamente no mercado de trabalho, (...) buscando sua
autonomia. Quando ele é inserido aqui, a gente fala: o CAPS é só uma passagem, não é
pra vida inteira, que ele está aqui só pra realizar um tratamento, que o principal é
reinserir novamente na sociedade, e buscar espaços na sua comunidade, que não existe
atividade de grupo só aqui no CAPS, que existem atividades extra CAPS na sua
comunidade. Eu acredito que esse trabalho visa resgatar a autonomia do sujeito que
ele possa se encorajar a viver novamente em sociedade” (P4)

Evidencia-se a partir dos discursos a cima citados, a reabilitação


psicossocial enquanto pertencente a um lugar no CAPS, estando vinculada a arte e
práticas voltadas para fora dos muros do serviço. Estas práticas são balizadas por meio
da percepção de autonomia ligada a construção ou retomada da cidadania do sujeito,
colocando o conceito de autonomia enquanto sinônimo de independência e adequação,
onde o CAPS surge enquanto um lugar de ajustamento. Outro ponto a ressaltar é que
estes sujeitos estavam, de algum modo, isolados socialmente, tendo em vista as frases
que se referem a “reinserção social”,
Em relação a autonomia, estudo realizado por Pereira (2007) evidenciou a
Reabilitação Psicossocial enquanto um processo complexo que proporciona seu
desenvolvimento junto aos sujeitos acometidos por algum transtorno mental,
viabilizando sua inserção social. A noção de autonomia corrobora com Ribeiro e
Bezerra (2015) quando ressaltado que seu regate e a ampliação das possibilidades de
trocas sociais no campo da afetividade, material ou simbólico, são considerados
constituintes do que se pode considerar o processo de reabilitação psicossocial.
Onocko-Campos e Campos (2007) partem da noção de autonomia e de
saúde enquanto processos dinâmicos, onde estes conceitos estão implicados em perdas
ou em aquisições sempre gradativas. Sendo assim, os autores tencionam a noção de
saúde estabelecida pelo OMS, onde o total estado de bem estar físico, mental e social
está associado a saúde dos sujeitos, lançando ao sujeito a noção estática de um absoluto
inatingível. Sendo assim, pensa-se a autonomia não enquanto o oposto da dependência,
ou ainda representada pela liberdade. Mas sim, enquanto a capacidade e condição do
sujeito de lidar com sua rede de dependências. Autonomia pode ser pensando a partir
disto enquanto processo de constituição de maiores condições de compreensão e ação
sobre si mesmo e sobre o contexto em que está inserido.
Os CAPS devem ter como característica principal, a busca da integração
de ambientes sociais e culturais entendido enquanto “território”, dentre eles o espaço da
cidade, onde se encontra o cotidiano do laço social (BRASIL,2004).
Kammer, Moro e Rocha (2020) argumentam que os diversos documentos
que dão sustentação as políticas de saúde mental evidenciam a autonomia enquanto
meta dos processos de cuidado, porém ressalta-se que esta abordagem está descrita de
forma tênue e superficial, sem aprofundamento do conceito, tornando urgente a
problematização das concepções do significado da autonomia enquanto desafio para a
construção de formas de cuidado.
Em estudo, os autores supracitados (2020) evidenciaram a autonomia
enquanto força propulsora para o desenvolvimento e diversificação das relações do
sujeito, compreendendo que estes apresentam diversos limitantes ao que se refere ao
estabelecimento e permanência de relações sociais. Estes limites, por consequência,
podem os tornar dependentes de insuficientes relações, restringindo-os a poucos espaços
de circulação social, ou seja, levando a construção de uma rede fragilizada. Nesse
sentindo, verifica-se nos discursos profissionais a noção de desenvolvimento de
autonomia vinculada às propostas voltadas ao campo social - extramuros,
evidenciando estratégias como:

(...) tipo a feira do livro, semana do meio ambiente, eles estão sempre
saindo, tem o grupo que trabalha com o teatro, as vezes eles vão pra Universidade
(referindo-se as apresentações teatrais) vão pra outro setor da prefeitura, aonde são
chamados a ir e se apresentam (P1)

As atividades promotoras de autonomia ainda circulam em torno das


desabilidade, sendo assim, o desenvolvimento da autonomia, ou melhor, sua
potencialidade traz a luz a noção de (re)inserção social. Em revisão sistemática Passos
& Aires (2013) ressaltam que diversos estudos evidenciam os conceitos de reabilitação
psicossocial e reinserção social entrelaçados, sendo reconhecidos enquanto
fundamentais ao contexto da Reforma, porém não apresentando maior profundidade ao
que tange a suas definições.
A noção de reinserção social está sustentada na historicidade em que a
exclusão da loucura se presentifica em nossa sociedade. Esta, que se organizou a partir
da exclusão da diferença, levando a marginalização dos sujeitos que apresentam
sofrimento psíquico. Em sua contramão a Reforma surge como uma possibilidade de
mobilizar o social a partir de condições legais, para que estes sujeitos tenham lugar.
Não basta somente reinserir, é necessário possibilitar a reabilitação destes sujeitos, por
meio de práticas que se direcionem a autonomia. Do mesmo modo, não é suficiente
apenas reabilitar, deve haver o estímulo do sujeito enquanto cidadão, que este venha
demarcar seu próprio lugar no social (Passos & Aires, 2013).
Com isto entende-se que o conceito de “reinserção social” surge a partir das
propostas da Reforma Psiquiátrica no Brasil, quando destaca a articulação em rede
enquanto funções substitutivas as internações em hospitais psiquiátricos (Ferreira &
Bezerra, 2017), este conceito toma maior forma a partir das considerações do
Observatório Brasileiro de informações Sobre Drogas (OBID) que considera a
reinserção enquanto um resgate de uma rede social, podendo ela estar inexistente ou
afetada. Tem enquanto objetivo a capacitação de sujeitos para o exercício pleno de seus
direitos da cidadania. Considera-se este processo longo, gradual e dinâmico, pois
implica uma reorganização e superação de estigmas sociais, bem como a reestruturação
da percepção e tomada da cidadania do sujeito (OBID, 2007), sendo a reinserção social
evidenciado nas seguintes falas:

(...) Acontece de existir sim, na prática quando a gente que uma pessoa está muito
distante de poder atingir essa independência da qual falei, acho que a gente vai
tentando convocar a rede, pra que familiares e amigos tentem ajudar essa pessoa, se a
gente vê que ela tem sintomas mais psicóticos ou esquizofrenia algo mais grave, a
gente acaba por convocar essa rede pra dar mais suporte. (P2)

Eu acredito que a reabilitação psicossocial tenha a ver com a questão desse


individuo se entender como ser humano que tem direitos, que tem deveres. Eles (os
usuários) se veem como uma população que não tem direito, que não pode sair porque
são loucos, são limitados. O que eles passam, pra mim é que não podem ter sonhos,
não podem sair, interagir e trabalhar. Então, acho que essa palavra reabilitação
psicossocial envolve muitas coisas (...) (P1)

Também se evidencia a noção de cidadania entrelaçada aos conceitos de


autonomia e reinserção social. A cidadania é compreendida enquanto um determinante
das políticas de saúde mental proposto desde sua constituição, pois viabiliza o sujeito
suas garantias de direitos sociais. Parte-se de Saraceno (2016) para compreender a
reabilitação psicossocial enquanto balizada pelo poder de contratualidade que o sujeito
apresenta a partir dos eixos do habitar (moradia), rede social e trabalho. Nesse sentido,
compreender as condições contratuais do sujeito seria um caminho a reabilitação
psicossocial, sendo que a transformação do poder contratual daria ao sujeito condições
ao exercício da cidadania. Nesta direção, não se pode dissociar a autonomia,
reinserção social e cidadania de uma prática de reabilitação psicossocial.
Sendo assim, estes conceitos estão estritamente atrelados ao processo de
desinstitucionalização em que a Saúde Mental vivenciou em seu percurso de cárter
reformista. A desinstitucionalização segundo Amarante (2003) é considerada uma das
mais importantes referências da Reforma, não estado sua importância apenas no Brasil.
Tem bases nas percepções e críticas de Franco Basaglia, sendo a institucionalização
percebida enquanto promotora de sofrimento e alienação, posta na contramão de
soluções terapêuticas para o sofrimento psíquico. Utiliza-se aqui o conceito proposto
por Goffman (1961), de mortificação do eu. Este conceito representa o efeito do
poder institucionizante dos Hospitais Psiquiátricos em graves prejuízos psicossociais ao
internado.
Amarante (2003) também ressalta que a noção de cidadania não retrata
apenas as questões dos usuários, enquanto algo que represente sua retirada dos
hospitais, mas sim, uma posição que deve ser revista por todas as equipes. A realização
de processos de desinstitucionalização deve ser realizado por meio de dois níveis
simultâneos, sendo um teórico e outro político, permitindo a criação de novas estruturas
assistenciais e terapêuticas, neste caso os CAPS podem vir a presentar estes espaços.
As políticas públicas de saúde tomam a loucura enquanto uma vertente das
manifestações do sofrimento psíquico, colocando os sujeito que vivencia o sofrimento
enquanto alguém de direito, assegurado pelo Estado. Este Sujeito do social, encontra na
universalidade a possibilidade de compartilhamentos de valores culturais, se
diferenciando do sujeito da singularidade que traz pela lógica da particularidade sua
própria ética do desejo, está por sua fez diz dos modos como se constituiu e se fez
constituir por meio de sua história (Maranhão & Vieira, 2019).
Toma-se essa dicotomia entre sujeito de direitos e o sujeito do inconsciente
para pensar o significante da autonomia. A noção da loucura vista por meio das ideias
de igualdade e de cidadania foram viabilizadas por decorrência das ideias iluministas e
o desenvolvimento e crescimento do Estado burguês no percorrer da Idade Moderna
para a Contemporânea (Maranhão & Vieira, 2019). Em meio a transformação do
capitalismo e dos meios de produção, alguns sujeitos passaram a ter direitos. Com os
representantes da loucura o processo se dá por meio da busca de uma autonomia
vinculada ao exercício da cidadania pautado no dever de produzir. O sujeito de direitos
está colocado em um processo reabilitador que o devolve a possibilidade de ser
pertencente ao social por meio de sua produção. A RPB demarca uma divisão entre o
sujeito da desrazão e o sujeito de direitos sociais, porém algo desta cisão escapa,
passando o sujeito representante da loucura a ter lugar por meio de sua produtividade.
De acordo com Rinaldi (2006) os espaços de saúde mental representando
pela força e o campo constituído pela RPB, abrem-se às diversas práticas e saberes. É
nesse espaço plural que se apresenta a escuta da psicanalise, sustentada por uma ética do
desejo, pois, entende-se que, nem toda intervenção oferece condições de reabilitação
psicossocial e cuidado em liberdade. Segundo Saraceno (2016) para haver a reabilitação
é necessário a construção de um caminho que não acaba em si mesmo, “não
necessitamos de esquizofrênicos pintores, necessitamos de esquizofrênicos cidadãos”,
sendo nesta direção que a psicanalise implica o sujeito em sua responsabilização gente
ao seu mal-estar.
Entende-se que a noção de sujeito diz de uma individualidade ao passo que
a cidadania viabiliza um lugar no campo social deste sujeito (Rinaldi, 2006). Sendo
assim, a noção de cidadania quando pensado o sujeito representante da loucura
atravessa um “além” da produção social, e põe em questão o seu lugar na sociedade.

De uma clínica possível: os processos de cuidado que se estabelecem no CAPS.

Doravante, pensar a diversidade que é a representação da reabilitação


psicossocial não pode estar dissociado dos modos de fazer clínica. Sendo este tema
fundamental na construção de uma base teórica que escuta sujeito, sintoma e demanda.
Saraceno (2016) ao discutir a clínica em interlocução com a reabilitação
psicossocial tece uma consideração importante para pensar o que está posto quando
escutamos profissionais atuantes em CAPS. Fala que a reabilitação psicossocial, no
momento, é uma prática sem teoria e que isto não significa que qualquer modelo teórico
seja aceito. Esta posição de estar construindo um caminho referente a reabilitação
psicossocial pode levar a dois erros importantes: o primeiro, o preenchimento desse
vazio teórico a partir de antigas teorias. O segundo risco é, que essa ausência de teoria
possa gerar uma referência ideológica. Ou seja, quando pensado a reabilitação
psicossocial enquanto prática sem teoria, surge a possibilidade de ela ter uma ideologia
da exclusão enquanto apoio. Com isto entende-se que deve haver um preenchimento
teórico frente as práticas de reabilitação psicossocial, porém, precisamos pensar as
teorias articuladas entre si e não potencializadoras de segregação ampliando o olhar
diante de sua complexidade
E para isto, tomamos o tensionamento que a psicanálise propõe.
Incialmente, parte-se de Bezerra (2016) para pensar o lugar da clínica no campo de
intervenção da reabilitação psicossocial. Este lugar é, em determinados momentos,
supervalorizado e em outro subvalorizado. A supervalorização se dá, por muitos, por
sujeitos que trazem consigo uma visão reducionista frente a estas práticas,
superdimensionado o trabalho individual e coletivo, mas a partir de um nível de
intervenção psicológica, psiquiátrica ou psicanalítica, ou seja, a partir do campo psi em
detrimento de intervenções no campo relacional entre os sujeitos entre si e em com seus
ambientes. De outro modo encontram-se aqueles que subvalorizam e subestimam a
clínica, distanciando as discussões conceituais das práticas e o que a sustenta.
O autor ainda propõe questões importantes referentes ao que é o sujeito? do
que diz as interações humanas? o que é um sintoma, ou melhor, o que pode vir a ser o
sofrimento psíquico? O que é ou não terapêutico? Levando a compreensão de que as
transformações dos modos de assistência, devem ser balizadas por algumas noções
básicas que norteiam as ações e formas de pensar os dispostos de saúde e suas
intervenções. Interessante pensar o que vem sustentado estes conceitos e como eles se
articulam para os profissionais, trazendo a questão de como a reabilitação psicossocial
se faz a partir de uma clínica possível (Bezerra, 2016).
De acordo com Onocko-Campos (2014) a impressão que fica, quando
retomado o caminhar do desenvolvimento dos dispositivos de saúde do SUS, é de que a
doença ainda não foi colocada em parênteses, mas sim foi negada, oculta por um
discurso que pende, por muitos, em uma idealização da loucura e a negação da
concretude das dificuldades dos usuários frente aos seu sofrimento. Em relação a
algumas abordagens, evidencia-se a neurotização de alguns sujeitos com psicose,
evidenciando a necessidade de ampliação das discussões sobre uma clínica possível nos
serviços de Saúde Mental.
Nesse sentindo, pensar a Psicose dissociado da lógica tutelar viabiliza
sustentar a RPB a partir de uma atenção psicossocial. Porém, dada a complexidade das
psicoses, torna-se necessário compreender, a partir de que lógica se escuta estes
sujeitos. Amâncio (2012) argumenta que há a necessidade de realizar a diferenciação
estrutural das demandas do sujeito, para então pensar suas intervenções. A condução de
um tratamento necessita que haja uma identificação das estruturas clínicas, desde o
primeiro contato do sujeito com o CAPS, sendo por meio do acolhimento que isto
ocorre até a construção da sua permanência no serviço, evidenciando a necessidade de
compreender do que se trata o sofrimento do sujeito e como ele pode vir a sustentar seu
mal-estar.
Segundo Zenha (2005) falar sobre a Clínica e Reabilitação não é tarefa fácil
ressaltando uma dificuldade de articulação entre elas. Porém, quem se propõe a
trabalhar com psicóticos e neuróticos graves não pode recuar frente a essa
complexidade, diz Lacan (1988) “não devemos recuar diante das psicoses’’ porque são
essas interlocuções que podem vir a sustentar as diversas maneiras de conceituar,
compreender e lidar com a loucura.
Em Relação a construção do plano terapêutico no CAPS, evidenciam-se os
seguintes discursos:

“No momento do acolhimento, o acolhedor vai verificar qual é o sofrimento dele, ele
traz pra equipe e nessa reunião a equipe define qual é o plano terapêutico dele.” (P1).

“É construído em reunião de equipe. Depois do acolhimento eles são naturalmente


trazidos (ato contínuo), na reunião seguinte após o acolhimento a gente debate como
foi essa primeira experiência com o paciente e em equipe definimos em quais grupos
seria melhor pra ele participar e o que a gente pode fazer pra ir ajudando ele.” (P2)

Percebe-se que a noção de construção de projeto terapêutico tem seu início e


direcionamento no acolhimento, sendo a partir disto que se dá a construção de
possibilidades de cuidado ao usuário.
O acolhimento é uma diretriz preconizada pela Política Nacional de
Humanização (PNH), é entendido enquanto uma ação de aproximação, um ato que
exerce um efeito em meio as trocas relacionais, estar com o sujeito ou estar perto do
sujeito, para além do físico, tendo a finalidade de auxiliá-lo a suportar o seu
sofrimento. O acolhimento está presente em diversos momentos da vida do sujeito e
sua ocorrência é independe das instituições, porém percebe-se que, por ser uma diretriz
e estar posta no SUS enquanto uma prática, ele é tomado também enquanto técnica,
procedimento, acontecimento que antecede as intervenções e planejamentos no CAPS
(BRASIL, 2012).
Em pesquisa Romanini; Guareschi e Rosso (2017) evidenciam o
acolhimento enquanto um conceito e prática polifásico e polissêmico. Um encontro
entre usuários e profissionais que provoca inquietações, podendo vir a produzir um
comum entre os sujeitos. É justamente por meio destes que os sujeitos se deparam com
outras pistas ou desafios para a construção do comum nas políticas sobre saúde mental.
Posterior a escuta ao sujeito e uma possível construção de demanda, por
meio do acolhimento, encontra-se a reunião de equipe enquanto local – também de
trocas – que viabiliza a construção do Plano Terapêutico. A Reunião não é
compreendida apenas enquanto um espaço para que uma pessoa da equipe delegue
tarefas, ela é tomada enquanto um momento de diálogo que se torna viável se todos
tenham direito à voz e à opinião (BRASIL, 2008).
Importante ressaltar que nas falas dos profissionais não se encontra a
referência a um Projeto Terapêutico Singular (PTS), mas sim a construção de um
plano terapêutico, iniciado a partir da marca e impressões de quem ouviu o sujeito em
diálogo com a equipe. Tomamos a noção de PTS enquanto conjunto de diversas
propostas terapêuticas que criam articulações entre si, podendo ter finalidade individual
ou coletiva, necessitando da discussão interdisciplinar da equipe e muitas vezes de
apoio matricial. Pode ser entendida enquanto uma variação dos casos clínicos, não
precisando acontecer somente no início, na inserção de um usuário ao serviço. O PTS
carrega consigo movimentos de definição e hipótese diagnóstica, definição de metas,
divisão de responsabilidades e reavaliação (Brasil, 2012).
Nesse sentido percebe-se que os processos de construção de um Projeto
Terapêutico Singular não são evidenciados na fala dos participantes da pesquisa, tão
pouco apontado de forma mais abrangente quando as etapas de sua efetivação. Porém
percebe-se uma intencionalidade a partir da construção do diálogo com o usuário e seus
familiares na organização da proposta terapêutica junto ao serviço, a partir de suas
possibilidades e dificuldades.

Neste sentido, evidencia-se também:


“(...) o que eu observo é o seguinte, também não deixar de ser discutido com ele, por
que depois que o paciente é inserido nas atividades, no trabalho, se ele não se adapta é
feita uma nova reavaliação. A avaliação se dá novamente com a equipe, se pensa se
estuda junto, e é feito um novo projeto terapêutico pra ele.” (P3)

“(...) mas isso nada e estático, durante o processo se não há identificação o plano
terapêutico muda, ele sempre está em movimento, não pode ser fechado ele é
construído durante toda a permanência do usuário no serviço.” (P4)

Ou seja, o projeto terapêutico se faz à medida que o sujeito é percebido


pela equipe, pelo lugar que vem a ocupar nos grupos e cuidados. Porém, entende-se que
esse atravessar da experiência precisa ser mediado, orientado, compreendido não
enquanto um ajuste, mas sim enquanto uma possibilidade de ouvir o que quer dizer o
não pertencimento do sujeito a determinadas propostas.
Nesta trajetória da construção do plano terapêutico como referido pelos
profissionais , questiona-se se existe diferença na criação de estratégias de cuidado
para usuários psicóticos. Com isto evidencia-se:

“Nós temos grupos diferenciados, não sei se a gente pode usar essa denominação, mas
dos grupos de crônicos, dos grupos reflexivos, de psicoterapia, existe sim. Eu vejo que
isso transcorre em torno da reunião de equipe, onde alguns profissionais já conhecem,
pois estão em situação de reacolhimento, alguns pacientes com o tempo já retornam ao
trabalho, alguns profissionais já conhecem, outro pelo relato e pela percepção do
acolhedor e de equipe em discussão de caso, e denominado e inserido nos grupos que
pensa-se que pode ser dela aquela pessoa.” (P3)

“A maioria deles é inserida em um grupo que se assemelha-se a eles, temos os grupos


dos crônicos, pessoas que estão a longo prazo aqui, tem esse trabalho. O que eu
percebo é que já mudou bastante, pessoas com bastante alucinações, com psicoses,
hoje em dia eles tem mais terapia, percebo que eles têm suporte psicológico, no
passado eram mais grupos abertos, hoje eles têm mais acesso a psicoterapia.” (P4)

Se a proposta é de que a “doença” esteja entre parênteses, verifica-se neste


ponto um esforço dos trabalhadores em constituir o “parênteses” - ou seja, um espaço da
clínica, que não seja privilegiado ou preterido, mas parte integrante do processo de
Reabilitação Psicossocial direcionado aos sujeitos que convivem com psicose no CAPS.
A pesquisa evidencia também algumas as dificuldades relacionadas ao
cuidado dos usuários com psicose, dentre as quais:

O comprometimento com a medicação, de saber que é importante estar aqui, porque as


vezes por um motivo não tão justificável eles acabam não mandando seus familiares
pra cá. Famílias alheias ao tratamento do familiar, isso dificulta um pouco. Quando a
família anda junto com os profissionais, com o paciente as coisas tende a fluir
positivamente. Quando não tem esse comprometimento familiar e não tem esse
compromisso com as medicações e com presença dele, acaba deixando ele só em casa,
na cama e não tem incentivo, percebo que dificulta o tratamento. Aquela família que é
mais presente, incentiva, leva pro culto, pra missa, leva pra festa, que traz e é
comprometida e preocupada com o tratamento, percebemos a diferença se tu comparar
um e outro Família e serviço precisam ter uma afinidade bem grande. (P4)

“O que falta seria uma interação maior dos profissionais com eles (usuários).
Existe muita essa questão da separação de quem atende uma pessoa é o profissional
X ou Y, então ‘vai lá que ele te atende’. Mas as vezes o usuário quer mais que o
profissional X e Y, ele quer interagir com a equipe toda, ele achou interessante ser
atendido com o psicólogo e aqui dificilmente o usuário com psicose ele é atendido
pelos profissionais da psicologia, poucos são. Eles entendem que eles não tem insight, e
os usuários sentem falta dessa conversa, por que pra eles o psicólogo é referência no
CAPS, (...) mesmo que não seja psicoterapia, (...) então eles acabam se sentindo
excluídos, se sentem mal.” (P1)
Uma das dificuldades para o cuidado com as pessoas com psicose, segundo
os entrevistados se caracteriza relação/ausência das famílias no tratamento e cuidado
com usuários com psicose, entende-se que de acordo com Costa (2001) a subjetividade
do sujeito com psicose está orientada pelos padrões das relações familiares. Ao inserir a
família no cuidado em saúde desses sujeitos integra-se o sentido complexo e subjetivo
da constituição humana, seja ela dada a partir das psicoses ou não. Embora sejam
construídas e viabilizadas redes de apoio em saúde, ainda percebesse a fragilidade e as
dificuldades por parte dos familiares no estabelecimento de vínculos e formas de
convívio com sujeitos com psicose. Ressaltando que não somente o sujeito com psicose
necessita de suporte, mas também a família, que por muito nessa trajetória acaba por
adoecer (Tavares et al., 2020). Entende-se que, por muito tempo o manicômio separou
o sujeito de suas famílias, culpabilizando- nas pela doença mental. Sendo assim, é de
fundamental importância que os CAPS repensem os modos se ouvir e inserir das
famílias dos sujeitos com sofrimento psíquico, por meio do suporte e de sua inclusão no
processo de reabilitação psicossocial.
Sendo assim, esta dificuldade ressaltado no discurso dos profissionais deve
estar posta também em forma de discussão de casos, colocando a família não no suporte
ao cuidado, mas também enquanto sujeitos que devem receber, acolhimento, orientação
e espaços de fala.
Outro fator que surge em meio aos discursos é a interação dos usuários com
os profissionais do serviço, para além da exclusividade das participações de grupo. Esse
fator ainda remete a um modelo fechado de cuidado, onde não há circulação e
compartilhamento. Também se percebe que há demanda, os usuários endereçam suas
vontades, estão colocados a dizer sobre algo e, ao que parece, algumas ficam sem ser
ouvidas. Obviamente algo se opera no CAPS, pois os sujeitos com psicose possuem
diversos recursos para construir sua caminhada sem a presença de uma clínica, isto está
posto à medida que a profissional entrevistada relata que há uma demanda, e que há
procura por um espaço de escuta (Amâncio, 2012).
As equipes de Saúde Mental ainda exercem um trabalho “desclinicizado,
tendo somente por base a lógica da inclusão, acolhendo sem tratar”, considera-se que só
pode haver clinica quando há implicação do sujeito e dos profissionais a um ato que os
una. Sem a presença de uma implicação e suas responsabilidades do cuidado, não há
clínica (Amâncio, 2012 p.131). Nessa direção a reabilitação psicossocial representa
justamente esta implicação que liga o sujeito, seu território e os profissionais de saúde,
pensando para além de um tratamento sobre o sintoma de um diagnóstico.

CONCLUSÃO

Conforme disposto da leitura, encontram-se alinhados a processos de


estabelecimento e reestabelecimento da cidadania, do cuidado em liberdade e da
autonomia. Sendo assim, entende-se que por muito o cuidado e as formas de tratamento
são postas sem conhecimento prévio da historicidade e dos processos por detrás
envolvidos.
A família e o desenvolvimento ou criação de condições para autonomia
ainda são fatores importantes a serem repensando pela equipe e, que mesmo havendo
dificuldades, há uma abertura de compreender as demandas do sujeito. Estes ao
procurarem espaço no próprio serviço para falar de si, estão endereçando a este espaço e
a estes profissionais a possibilidade de construção de uma demanda. Deve-se tomar os
casos um a um, entender do que se trata o sofrimento de cada sujeito, assim como de
cada família, pensar quem são esses usuários e o que pode haver de implicação da
equipe com suas demandas.

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