Textos para Tocar Cicatrizes - Igor Pires
Textos para Tocar Cicatrizes - Igor Pires
Textos para Tocar Cicatrizes - Igor Pires
tocar cicatrizes
Igor Pires
Juliana Colinas
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vontade é suficiente
para fazer ficar?
ainda é difícil
compreender que não sou o culpado
quando alguém vai embora de mim
– é um processo
a que nível de destruição eu estou fadado
ao acreditar que ninguém ficaria por mim?
– autossabotagem
deixo um pouco do teu gosto em cada
boca que avisto
e rezo para não precisar beijar nenhuma
outra na intenção de te esquecer.
– é tão difícil
procura
te procuro
para não me procurar temo o horror de me achar tão perdido e aí vou me esquecendo
um pouquinho a cada dia tateando suas sombras nas minhas costas
atrás das minhas solidões mas não te acho.
encontro, na verdade, uma projeção alucinada de sentimentos que crio pois no final
da noite não há nada e é tudo mais fácil com você.
dança
se eu te perdi
por que continuo te vendo nos postes iluminados da cidade?
nos piscas-piscas das casas cujos donos celebram mais um jantar natalino na areia da
praia
tão branca tão quente
tão cheia de passos e marcas e promessas de casais que terminarão dali três meses ou
três dias
areias que foram palco de pedidos de casamento divórcio amizade na parte da vida
que recebe o mar as ondas as preces
a fé dos banhistas
o sagrado do mundo que se dissolve no sal e na água
sua voz na minha cabeça como uma música de carnaval como farol em uma rua
escura como um sol que ilumina o final do túnel, enfim me responde como é
possível te ver malhando e puxando todos os pesos que, horas antes, dizia ser
impossível fazê-lo você brincava: não vou conseguir não sou tão forte quanto você
mas você era e continua sendo que força da natureza você é para continuar
pavimentando meu caminho atraindo meus olhares e aquecendo de ansiedade
qualquer que seja o vislumbre que tenho que força da natureza és tu contemplando
minha vida e existência e, ainda assim, decidindo permanecer aqui perseguindo-me
com graciosidade esquadrinhando-me pelas
calçadas janelas apartamentos vista para o mar metrôs supermercados academias
tudo tudo
me responde
por que para mim
a vida parece continuar a mesma em sonho
utopia
irrealidade
depois que você foi embora
e meu olhar permaneceu
chuveiro
o sol do meio-dia arranha o céu lá fora me lembrando de que estou sempre atrasado
para a vida e para me encontrar eu já te perdi meses atrás em um sono profundo e
irrecuperável e nunca mais consegui acordar uma pandemia acontece no mundo e
aqui dentro o caminho para te abandonar também parece interminável se acordo
o teu nome é o primeiro carro a passar na rua obrigando minhas mãos a te
procurarem no ar morto da manhã
quase tarde
mas é em vão o horror, o instinto todo o alarde
é apenas a mão
esculpindo a vida
viva do passado
– onde te encontrei e fui feliz.
perda
perdi o gosto da boca e o cheiro do perfume na nuca não me recordo da cor dos seus
olhos confundo o sobrenome da sua mãe já não sei se a pinta morava no lado direito
ou esquerdo das costas
eu perdi todos os detalhes do seu corpo que eu lembraria se o tempo não tivesse sido
tão fiel em me proteger de querer reviver todas essas memórias com você.
viagem
tinha o perfume que comprei na viagem a vontade de voltar para os seus braços e
resgatar meu cheiro que ficou pendurado na manga da sua camisa
tinha o desejo de que minha pele conhecesse a tua de forma tão honesta que, a partir
do toque, nunca mais precisaríamos falar palavra alguma ficaríamos petrificados,
paralisados, emudecidos um no silêncio do outro
tinha a saudade que andava à minha frente, moldava meu humor, anunciava a todos
que falavam comigo: falta alguém porque faltava
e continua faltando
se o que eu amei de você foi uma projeção os lugares também foram inventados?
era projeção todos os sexos nos fins de semana e todos os dias úteis em que fomos
tão distantes que buracos poderiam ser abertos sob nossos pés?
a vez que te peguei me traindo com outras expectativas que não aquelas que criamos
durante anos e os planos das viagens os cadernos com as contas de cada mês as
passagens compradas e depois as discussões porque desistir era mais fácil do que se
aventurar em outro país?
o gás da cozinha que quase explodiu na nossa cara no final do ano de 2016
os chinelos que perdi durante aquela chuva torrencial que engoliu o mês de maio
e que depois encontrei acidentalmente perto do mercado da rua o porteiro do nosso
prédio dando bom dia todas as manhãs como se esperasse que fôssemos ter
realmente um dia incrível sua mãe gritando comigo que eu era péssimo para você
minha mãe agradecendo a sua existência sem saber que você colocava mentiras
debaixo do meu travesseiro à noite para eu dormir melhor?
a terapia de casal
os três carnavais no Rio de Janeiro a viagem até Minas Gerais para você prestar
concurso público
o braço que eu quebrei caindo da cadeira que usei para pendurar um quadro teu o
que foi real e o que foi invenção?
você passando os dedos nas minhas têmporas o arrepio que eu sentia toda vez que
sua língua descobria cenários no meu corpo
o cheiro de mel do seu cabelo
suas pernas peludas e cheias de vida a cor dos seus olhos que pareciam com o mar
das sete da noite
o cheiro de amaciante das suas roupas o sabor da sua boca arejada depois de um dia
de trabalho?
se o que eu amei de você foi realmente uma projeção, me explica, eu quero entender
por que meu peito ainda acende
sempre que sinto o gosto do teu nome.
este é um texto sobre alguém que sabotou o amor
para evitar a queda preferiu se jogar primeiro do prédio. para evitar o soluço no
começo da garganta, que adoece até o mais forte dos brônquios, decidiu ele mesmo
dar fim àquilo que chamava de relacionamento, sorte, obra divina ou simplesmente
acaso. para evitar as aspirinas por meses a fio e o choro na casa das amigas no meio
da madrugada da tarde aos finais de semana ou em qualquer espaço onde o assunto
término viesse à tona, para evitar as explicações humilhantes de como ele tinha sido
deixado para trás; de como o outro tinha tirado todas as coisas do apartamento, o
sofá que compraram naquela liquidação da tokstok, o fogão que acharam no meio da
rua voltando da boate e até mesmo a cama, dada de presente quando fizeram dois
anos de casados; para evitar o choro repentino no meio de qualquer memória que
pudesse aparecer quando se lembrasse que o outro também havia levado o gato que,
porra, ele amava. para evitar a sensação de ser deixado pra trás na corrida do amor e
da superação; para evitar o sentimento de que existe sempre alguém melhor do que
ele, mais bonito, mais jovem, melhor ajuizado; para evitar chegar ao fim do amor
acabado, árido, drenado, sem ar e sem nada; para não viver a feitura à qual os casais
da pós-modernidade estão sujeitos: separados, vivem na mesma casa, se sentam na
mesma mesa, vestem as mesmas rotinas, mas longe estão do amor, da paz, dos votos
confessados e entregues ao altar, do compromisso que esfarelou antes mesmo de
adentrar a sala; para não terminar como estes casais que se orgulham de continuarem
amigos, vivendo debaixo do mesmo teto, compartilhando da mesma comida, todavia
com os corações repousados em outra terra, existindo em outro país, sendo felizes
com alguém que não você. para evitar a queda e os arranhões e a profundidade do
machucado, preferiu se atirar no assunto tão temido, incerto, sepulcral. e lá foi ele,
dizendo assim no começo, olha, eu te amei muito, eu quis muito que desse certo, eu
quis muito provar da liberdade e do amor e colocar a língua em todas as drogas
caminhos retiros espirituais transas e sentimentos que estavam presos a você quando
te conheci, eu quis muito construir uma família ter filhos casar na praia com uma
festa para 60 convidados sem padre nem figura cristã apenas com alguém fodido no
amor o suficiente para casar duas pessoas malucas que encontraram um no outro
motivos para seguir. lá foi ele cortando o bem pela raiz, pegando pela garganta a
chance, única, comprida, de ser feliz, muito feliz, lá foi ele arrancando da terra a
única flor à vista, a única que nascia mesmo com chuvas torrenciais e tempestades e
furacões e dias infelizes e semanas incompletas e meses em que tudo faltava, menos
os dois. ele sabotou o amor e o que tinham em nome do orgulho, do egoísmo e da
sensação, talvez falsa, talvez enganosa, de que o outro acabaria primeiro com ele,
colocaria fim aos dois, o deixaria sozinho pela estrada. e já pensou na hipótese disso
não acontecer? dele não te abandonar no meio do caminho e de você tê-lo feito
porque é isso o que sempre faz? mata o amor, estrangula o amor, engole seco o
amor, joga fora o amor. você quem desperdiça a água, quem pede por mais comida e
deixa de comer, quem clama por adrenalina, mas foge a qualquer sinal de frio na
barriga, no coração. então para evitar a queda e uma possível dor, você quem levou o
sofá, o fogão, a cama, o gato, o tato, o toque. para evitar as terapias às sextas, as
conversas com o divino e as muitas perguntas sobre quem fez o quê, tu abraçou a
parte feia, seca, dura e morta de um relacionamento que é quando alguém se sabota e
sabota o outro. que é quando alguém mata a si e ao outro em sinal de que não
consegue confiar em ninguém. você achou que pulando do barco o fim doeria
menos, que jogando-se da sacada do apartamento a queda seria menos escatológica e
mais poética, mais racional e menos alma, mais coragem e menos covardia. engano
seu. agora, vai olhar para trás como alguém que, mesmo do chão, ainda deseja
regressar ao momento antes do voo, como alguém que almeja não ter errado tanto no
cálculo da paranoia e das alucinações, como alguém que não deveria nutrir o
egoísmo tal qual a água alimenta os lençóis freáticos ou como alguém que
simplesmente aceita o amor e entende que amar também é para os grandes, os fortes
e para aqueles que têm medo como você tinha e continuará tendo.
mágoa
eu tive tanta vontade de mandar você ir se fuder ir à merda ir para o raio que pudesse
te partir depois tive vontade de ir até sua casa e gritar todos os xingamentos
possíveis não exatamente para você mas para os seus vizinhos eu queria te ferir
pelas beiradas
eu queria te desmoralizar
dizer “ele falava tanto sobre amor mas nunca
chegou a cobrir o meu corpo de afeto”
ou
“quanto mais afeto doava
mais sozinho eu ficava”
eu queria que o teu porteiro soubesse do grande covarde que você foi
eu queria que teus amigos soubessem do grande homem maduro e estável que você
era até deixar de ser
eu queria que todos soubessem que o personagem que você havia criado não passava
de alguém que não seguraria uma minissérie de 3 capítulos a atuação pequena,
ínfima
eu tive vontade de falar tudo nas redes sociais que você arquitetou uma rejeição que
não parecia tão ruim assim afinal de contas você me deixava dormir ao teu lado na
cama
você me deixava tomar café contigo todas as manhãs você até me deixava olhar em
teus olhos pouco antes de dormir no entanto a rejeição era ainda pior porque você
sabia que todas as vezes que desviava a boca quando eu ia te beijar uma cratera
ainda maior se içava em mim
que o desvio do beijo e do afeto eram como milhares de agulhas entrando no meu pé
ao mesmo tempo era como receber socos sucessivos de quem eu mais queria e
amava meu deus como eu queria e te amava eu juro que tive vontade de contar das
vezes que quase implorei pra gente fazer amor das vezes que te olhava nos olhos e a
tua linguagem corporal me empurrava para uma zona de amizade para um lugar
estranho onde afeto não anda lado a lado com amor e onde desejo é um cidadão
impedido de entrar no próprio país você dizia que não gostava muito que não era
muito “você”
o toque o tato o beijo não eram muito você ou o problema era eu?
e eu te perguntei inúmeras vezes “o problema sou eu?
o problema sou eu?
o problema sou eu?”
tenho conversas inteiras que nunca ousaram sair de mim e conhecer outras
atmosferas, a atmosfera do seu peito. minhas verdades nunca assustaram seus olhos,
não causaram terror na sua negligência. por você, sempre me mantive inanimado,
feito vulcão que adormece por medo de machucar. por isso eu me machucava, me
sucumbia em dias e dias de silêncio, em festas que de felicidade não tinham nada,
em semanas de estranhamento e completa deslocação. eu parecia sempre deslocado
ao teu lado. como se pegassem uma fotografia nossa, recortassem e pronto, lá
estávamos nós, tentando em vão o amor, tentando em vão alguma coisa que pudesse,
magicamente, nos unir, tentando uma situação que já nascera morta e inútil. eu
tentava te fazer feliz enquanto você tentava me manter aqui. uma diferença que
não se resume apenas à gramática: o espaço entre nós era maior do que o espaço
entre dois irmãos que não se falam; entre dois amantes que se consomem, mas não
se amam; entre a solidão de dois cachorros que moram na mesma rua, no entanto
não sabem de si, nunca se deitaram no mesmo paralelepípedo, sequer latiram para os
mesmos transeuntes. nós estamos no mesmo cômodo agora, cada um em sua própria
sentença de morte. estamos rindo e bebendo cerveja e de longe avisto o Cristo
Redentor, pensando que a medida do nosso fim ocorre no instante em que me dou
conta dessa lacuna, desse vão, abismo, buraco em que tudo cabe, menos a gente. e já
tentamos unir nossas peles, já tentamos fazer amor com a conexão de duas
dimensões impensadas (e por isso desconhecidas), já tentamos dialogar sobre as
diferenças que nos compõem, arquear as palavras rumo à reconciliação e à paz,
erguer o sentimento de que somos um para o outro e deixá-lo no centro da disputa,
no seio das nossas próprias vontades. mas te pergunto: vontade é suficiente para
fazer ficar? vontade é suficiente para fazer arder o peito, avolumar o desejo, trazer à
tona a esperança de um amor recíproco? te falta reciprocidade. um pouco mais de
pulo e você estaria no mesmo lugar que eu. um pouco mais de coragem e você
estaria voando, comigo, neste instante. mas estamos em momentos diferentes deste
mesmo céu que nos abriga, não é? habitamos o mesmo tecido do mundo e, ainda
assim, permanecemos isolados, distantes, presos à retórica da permanência. eu me
pergunto por que eu permaneço. se sinto meu corpo adoecer em ansiedade todos os
dias pouco antes de dormir. se sinto meus ossos dançarem a música da solidão
mesmo quando você me abraça e consigo sentir o cheiro ocre do seu corpo manso.
se meu corpo treme com a possibilidade de que continuemos juntos, porque assim,
dessa forma, atesto que permanecerei sozinho por muito mais tempo, tempo
demasiado. carrego desmoronamentos em mim que nunca desafiaram a sua
constância. prédios inteiros que desabam enquanto você conta sobre alguma coisa
que fez durante o dia, cidades que se destroem enquanto você balbucia algo sobre
seu trabalho, países em guerra enquanto você sussurra algo sobre inflamações na
pele, coisa e tal. tudo o que você disse parece maior do que aquilo que sou, que
tenho. nenhuma das minhas agonias parecem ser agonias perto de você. faminto,
você abocanha minha vivacidade, tudo o que em mim limita meu espírito, me torna
eu. seus movimentos deságuam meus limites, contigo e por você perco, muitas
vezes, a minha identidade. o que sou? penso, tantas vezes. é amor se eu for embora
agora? se eu for contra a vontade de todos, se eu surpreender meus amigos e minha
família, se eu disser toda a verdade que me segura e me ampara dentro desse
território que estamos? todos acham que estou feliz, mas na verdade estou em
completo fingimento. acreditam que por vivermos sorrindo não há uma bomba
atômica passeando pelo sangue. eu te amo, sim, é claro que te amo. mas como posso
amar alguém se para amá-lo necessito abrir mão de mim e de tudo que me formou
para chegar aqui? se falta a conexão e as perguntas e a curiosidade. se falta você sair
do centro do mundo, universo, palco, nós, para que eu também seja visto — e, então,
amado? pois é isto que falta em você. me ver para me amar.
entre Santa Teresa e Laranjeiras
há uma tristeza branda nos seus olhos, já conheço bem os caminhos para o fim.
foi terça-feira passada? foi naquele domingo depois de tantas taças de vinho e um
sexo que não deu certo?
porque estamos neste estado estranho onde os dias vão acontecendo e vamos sendo
levados, arrastados para dentro do cotidiano, e quando percebemos passaram-se
dois,
três meses,
quatro.
carrego um pressentimento no peito de que algo está fora do lugar e ele ecoa não
importam quantas vezes a gente faça amor, se na cozinha nossas mãos se encontram
e nosso abraço se encaixa, se na rua andamos lado a lado, cuidadosos e amáveis
demais para quem não rotulou a relação, para quem a deixou livre, para andar por aí,
viver solta, mesmo sem nós.
eu sinto o cheiro dos seus braços cruzados enquanto bato a porta e me despeço de
você e do que vivemos esse tempo todo.
por isso estou calmo. uma paz invade milimetricamente cada parte que tenho pois eu
já sei o script, já li o roteiro, já passei por isso outras vezes, muitas.
e aquilo que era para ser uma relação amorosa vai se transformando, silenciosa e
infelizmente, em um afeto condensado em tristeza. um amor-amigo que queima a
pele, rasga o orgulho, mastiga o ego.
eu sinto isso agora.
a estranheza de já ter estado neste lugar antes.
nada do que eu faça te fará fazer alguma coisa para além do que já sei.
e sei que não passaremos de dias, no máximo semanas.
e tudo bem que sem mim. e tudo bem que histórias de amor de três, quatro meses,
arranquem com tanta dor as nossas projeções e as nossas lágrimas. e tudo bem que
eu achei mesmo que dessa vez ficaria com alguém que me compreendia, que me
olhava calmo e doce, que me fazia dançar certo e confiante, que me dava todas as
razões para acreditar.
mais especificamente naquele em que você fez brownie de chocolate para as minhas
irmãs. era domingo e depois do almoço estávamos todos nós rindo e comendo como
se nossos problemas não estivessem agarrados ao estresse do cotidiano. a vida
parecia no lugar certo. o mundo parecia ter parado de rodar por um momento para
nos apreciar.
eu acreditei tanto
pois você me parecia tão certo
tão manso
tão no lugar
mas agora eu me pergunto
o céu ainda está bonito em todas as suas cores, quando anoitecer você diz.
está tudo bem entre nós?
eu fiquei com as palavras atravessadas na garganta das noites que, antes de dormir,
tentava te perguntar: está tudo bem entre nós?
mas nenhuma delas ousava dançar nos meus lábios, feito bailarina, que encontra
olhos expectantes e aplausos de quem sabe apreciar o corpo flutuando eu fiquei com
todas as perguntas doentes, moles, secas, que pairavam no meu cérebro, que se
alimentavam dos fios da minha cabeça, sobre o que tínhamos, sobre o que você
sentia por mim
eu fiquei com a sensação morna e grotesca mas, ainda assim, dura e imprecisa, logo
pela manhã, de que você não era pra mim e pensava: meu deus,
por que eu continuo aqui?
quando te via tomar banho, sempre tão longe, mesmo com o corpo colado ao meu, e
não queria compreender o gosto ácido da palavra
solidão
aquilo era a mais pura solidão contemporânea: quando duas pessoas
estão tomando banho no mesmo quadrado do azulejo e, ainda assim, um silêncio
impera, uma força da natureza capaz de silenciar mãos e toques e olhares aniquilar
qualquer um dos corpos
e então partilhamos a mesma cama por dois meses o café da manhã que consistia em
ovos, bacon, pão e chá; as sextas-feiras com seus amigos, que sabiam da fronteira
que nos apartava; os sábados sempre iguais, com a ansiedade de não saber se
naquela noite faríamos amor ou apenas colidiríamos dois corpos no espaço; se no
domingo o dia todo deitado um no colo do outro diria mais sobre amizade do que
romance agora, percebo, habitei um país que desconhecia.
você me deu o passaporte errado, me mandou a uma cidade que eu nunca tinha
estado, me fez andar por ruas, procurar lojas, visitar pontos turísticos contigo e com
a tua ansiedade, e no entanto nunca me deixou conhecer, de fato, tudo que te
brilhava os olhos, assustava a pele, te fazia gritar eu estava em uma viagem de ida
para uma palavra chamada afeto e em sua cabeça tudo estava perfeitamente
arquitetado: me manter suficientemente por perto para continuar te amando e te
rendendo graças; mas não muito próximo ou íntimo para não te causar tremor ou
emoção me permitir te ver nu, mas nunca despido fazer sexo, nunca amor
as palavras que demorei para dizer, porque doíam, finalmente vieram após dois
meses de microlesões após algumas semanas em que engoli o orgulho e o ego e
almocei com intuições – que agora vejo, estavam corretas, todas em seu devido lugar
– pude compreender por que você é você e eu sou eu
eu não colocaria alguém para dormir comigo debaixo dos mesmos lençóis e
expectativas durante meses para suprir carências e espaços que outras pessoas
deixaram eu não faria uma festa de aniversário para alguém em uma sexta-feira e
logo no domingo estaria concordando em deixá-la ir embora, intacto e imóvel, como
você fez eu não levaria uma relação para a casa dos meus amigos e família com a
intenção de deixar a pessoa a qual amo sozinha solitária
vazia e sem vontade de permanecer
você conseguiu, com a apatia que lhe é total, consumir toda a energia que tinha
quando te vi pela primeira vez toda a luz que existia dentro de mim quando achei
que você seria diferente dos homens, tantos, que encontrei por aí.
merecedora da sua verdade, por mais que ela doesse e me partisse ao meio.
alguém que merecia sua honestidade como primeiro passo para qualquer caminho ou
estrada que pegássemos.
alguém que também tinha planos sonhos e uma vontade, quase vergonhosa, de ser
amado?
que merecia a consideração dos dias que estava ali, ao teu lado, te cuidando nos
detalhes mínimos – de quando machucou o dedo do pé à vez que precisou ser
colocado para dormir depois de desmaiar por causa do álcool? –, tentando ser a
melhor versão para você, porque eu achava justo, ainda sentindo que, talvez, não
estivéssemos na mesma oração?
um aperto no peito que não conversa com mágoa alguma. um pressentimento de que
tudo passa, mesmo você. um nó na garganta parecido com alívio. o momento de
suspiro depois de dias em que o único caminho parecia o seu. dias em que não
conseguia me enxergar, tudo tinha um pouco da sua voz, do tato, do dna. são quase
seis da tarde de um junho inimaginável. o sol lá fora já se deitou sobre o céu, uma
música lenta e calma invade o quarto e põe até a mais profunda tristeza para
dançar, mas nada é triste por aqui. nada é suficientemente doloroso que me traga a
sensação de que te perdi. porque a verdade é que eu nunca te tive, meu bem.
texto para curar a língua
você queria que ele levantasse o tapete da sua voz para descobrir aquilo que não
estava sendo dito. você rezava, entrecortando o próprio fluxo de pensamentos,
pedindo: que ele entenda que peço socorro. você não pediria, assim, de maneira tão
explícita. não se colocaria neste lugar tão humilhante, pensava, porque se mostrar
tão vulnerável era como pedir para ser abandonada. e então pedia. que ele
compreendesse seu discurso para além das palavras “estou bem”. pois você não
estava bem e não sabia como levantar a mão. tinha medo de não ser levada a sério,
como aconteceu nas primeiras vezes em que tentou balbuciar alguma coisa na aula
da faculdade, mas ninguém ouviu. e você passou anos engolindo oceanos infinitos e
territórios conflituosos pois não sabia como vociferar que uma adaga morava no
peito, que uma lança lhe arrancava o ar toda vez que acordava da cama, que uma
faca lhe cortava a pele toda vez que se sentia sozinha em casa, no supermercado, nos
bares, nas festas, na superfície das coisas, do mundo. então você contava o básico, o
superficial, o aceitável. você ficou boa em dizer aquilo que as pessoas gostavam de
ouvir. virou mestre em entender sobre a percepção dos ouvidos alheios, o que os
mantinham vivos em uma conversa. dizia amenidades como olha que tempo
agradável, que desgoverno é esse, está tudo bem no trabalho, em casa está tudo em
ordem. você manipulava a escuta alheia como uma jogadora de esgrima. afiada,
dava aos outros a superficialidade da vida. o que era raso, primário, visível. mas
estava cansada. estava exausta do fingimento e de precisar se colocar embaixo de si
mesma para não se mostrar. queria se mostrar e ser de verdade, pela primeira vez em
anos, com alguém. queria levantar a mão no meio da sala de aula e falar com os
pulmões cheios e a boca intrometida e os olhos curiosos que queria alçar o corpo e
lançá-lo no espaço mais denso, profundo e pouco habitado do ser humano. e foi
dizendo coisas sem sentido, banais, perecíveis, ao mesmo tempo que pedia,
distraidamente, que ele enfim quebrasse a quarta parede, o clima, a linha razoável
que nos mantém vivendo como animais sem a perspectiva do mergulho. você pedia,
com olhos gritantes e mãos abraçadas à sudorese, que ele me pergunte que ele me
pergunte que ele me pergunte como verdadeiramente estou. você vislumbrava o
momento em que ele, de fato, o faria. você até se emocionava com a possibilidade
de, enfim, soltar todos os monstros que moram dentro do peito e alimentam-se da
sua angústia. você permitia, vez ou outra, que uma lágrima escorresse pelo rosto,
para que assim ele pudesse perceber que algo em ti já não estava bem, que algo em ti
morria como morre a parte do oceano que conhece o plástico e o descaso do homem.
enquanto dizia sobre as compras da semana, o preço da carne, a terapia e a evolução
da sua saúde mental, queria, em fato, dizer que uma dor está alojada há anos em uma
membrana sua que nem mesmo você sabe onde está. que abandono é uma palavra-
membro na sua família e que sua mãe dançou com ela antes de te deixar. que seu pai
foi o primeiro homem a proferi-la, depois de uma briga, e nunca mais voltou para
casa. você queria libertar os traumas todos que ferem das células aos tecidos, dos
pensamentos verbalizados aos que sequer se atrevem a existir. você queria alguém
que pudesse te ouvir sendo miserável, deprimida, magoada, ressentida. cujos
ouvidos pudessem suportar confissões, desembaraços, dores crônicas e
insuportáveis, universos impossíveis e outras realidades que você inventa, vivencia e
é. era triste que ele não pudesse te ouvir. que a língua dele não se levantasse no meio
da multidão para te perguntar e, assim, te arrancar da normalidade da vida. que o
músculo guardado na boca não servisse para nada a não ser existir meio morto, sem
vida. porque a sua língua também está morrendo por não dizer todas as coisas que
gostaria. então de noite, pouco antes de dormir, o travesseiro é a única presença, a
mais rápida, efetiva, importante que seu grito conhece. e você grita grita grita.
chora. desaba humana. desaba inteira. desaba firme em seu propósito único,
máximo, de ser ouvida. era triste que ele não te perguntasse onde dói e onde
repousam todas as suas tristezas. onde nascem os rios e desaguam os terremotos,
furacões, tsunamis. onde a ponta do iceberg degela e, enfim, encontra-se com a
infinitude das emoções. você queria que ele abrisse a boca e ecoasse as letras
amontoadas, dando as mãos umas às outras, formando a frase tão desejada. está tudo
bem? cortando o ar, estilhaçando de esperança até o mais incrédulo indivíduo,
partindo ao meio a nossa anacoluta vida, a nossa frágil vida, a nossa rasa vida, a
nossa infeliz vida. mas ele não perguntou. ele não retirou você de si mesma, em um
movimento de quem sabe que há mais segredos a serem revelados. ele não prestou
atenção à sua voz suplicando por uma atenção que não rodopiasse com o que de
mais superficial existe no mundo. ele não puxou para fora os monstros e dores que
seguem te corroendo.
poeira
eu não vi a tempo. eu não reconheci os sinais, fechei os olhos para não ver o que
estava debaixo do meu nariz. me faltou a sensibilidade ou a coragem de levantar o
tapete e sentir a poeira de tantos meses que se acumulava; abrir a porta e enxergar,
bem ali, todas as discussões que não tivemos; perceber que você nunca me conheceu
ou conheceu os meus sentimentos de tristeza, insegurança, solidão.
passei meses acreditando em tudo o que você dizia, mesmo sentindo, internamente,
que algo estava fora do lugar – mesmo achando que esse lugar era eu. passamos por
festas, aniversários, reuniões entre amigos, viagens e momentos onde nosso
relacionamento parecia certo. onde nossas mãos se encontravam e eu conseguia
sentir paz. ainda assim, quando voltava para casa, o caminho era indigesto. a solidão
apertava meu pescoço, eu me sentia sozinho, a conexão de que tanto falam não me
acompanhava pelo trajeto, os sinais divinos falhavam em sua tarefa de me fazer
acreditar.
quis tanto acreditar. quis tanto que você fosse para mim da mesma maneira que a
areia da praia anseia pelo abraço das ondas, pelo momento incandescente em que a
fotografia revela a magia do encontro. do mesmo jeito que um céu só é céu quando
um pássaro resolve voar do galho rumo ao infinito azul. e eu quis tanto que minha
fé, afinal, sobrevoasse a realidade. cobrisse, de amor e devoção, as lacunas que nos
moviam, os espaços que também eram nosso sustento. amor e companheirismo, no
fim, não nos salvariam de todos os problemas que silenciávamos porque era
conveniente seguir.
eu estava perdido tentando entender por que mesmo juntos há tanto tempo em mim
ainda morava a sensação de que não éramos um para o outro, de que nunca fomos.
em mim existia a descrença de que mesmo ignorando os espaços, tudo daria certo no
final.
mas, agora que tudo foi embora, me pergunto como não vi antes. como não percebi
que, além de não estarmos no mesmo lugar, eu estava sempre um pouco à frente,
mais entregue, mais real, mais de verdade, mais na sua casa do que na minha, mais
na sua rotina do que no meu cotidiano. que as mensagens, as viagens da minha casa
à sua, as transas, as séries que assistimos, as comidas que pedidos nos aplicativos de
delivery, as praias que fomos, mesmo os fins de semana em que eu passava contigo,
diziam mais sobre minha facilidade em me desdobrar por você do que você por nós.
no entanto, estava aqui esse tempo todo. a ausência de um sentido palpável ou falta
de uma genuína vontade de construir um relacionamento para além do superficial,
para além da primeira camada onde todos veem e admiram. a inexistência da
confiança necessária para manter duas pessoas unidas e energizadas. a escassez de
uma honesta ligação que pudesse fazer com que nos conhecêssemos tanto, e de
maneira tão profunda, que hoje não estaríamos, aqui-agora, equidistantes e
equivalentes nas próprias ruínas. separados, intocados, profundamente exaustos e
cansados para tentar de novo, tentar alguém, tentar o amor ou simplesmente
a vida.
eu já não sinto medo. eu já não sinto os pés regressarem, sozinhos, rumo ao caminho
que sempre construíram. eu já não sinto que é sobre perda, sobre quem levantou a
mão primeiro e foi embora, sobre quem apagou a luz, sobre quem abriu a porta,
sobre quem desplugou a memória e seguiu. porque tem esse frio na barriga, no
intermédio de uma ansiedade e outra, no coração de todas as agonias que já
antecederam este momento, mas não está aqui agora. faz frio no Rio de Janeiro. uma
nuvem espessa e ácida isola minha casa em um sentimento que parece solidificar
todos os presságios. o frio na ponta da derme de dias atrás coagulou justamente hoje.
o corpo humano tem formas incríveis de nos ajudar, sobre tudo. trens chegam agora
na Central do Brasil. milhares de pessoas se atravessam sem saberem que dentro de
si mesmas há pontas se desconectando; histórias de anos, meses, semanas, minutos,
tudo se contraindo, tudo deixando de estar. as coisas deixam de estar, certa vez li
num livro de filosofia. então por que você ficaria? se as coisas, este mundo infinito,
os amores imaginários, os amores reais e profanos, nada existe se não fizer chover,
se não fizer ir embora, se não fizer a parte nossa chorar, silenciosamente, enquanto o
mundo lá fora desaba? vê? tudo está terminantemente conectado. todas as histórias;
as faltas ausências fracassos derrotas tristezas angústias medos e abandonos; tudo
está posto sobre uma linha que nos une e nos aparta. hoje eu não sinto medo de
andar sobre ela. pois você já passou por aqui, sem mim, e eu entendi a mensagem. o
céu de hoje chora a gente, meu bem. dias atrás eu já sabia disso.
ileso
você acha que consegue sair ileso do fim até se dar conta de que está com o corpo
mole e ansioso na manhã de uma terça-feira onde o trabalho te chama e a vida corre
lá fora você se pega rezando a um deus que até então não acreditava existir pedindo
que a dor e o trauma passem rápido porque seu estômago precisa voltar a ter fome
e as mãos precisam voltar a segurar a própria respiração acha que consegue sair
intacto de um coração quebrado e uma dor inevitável
porém se percebe com a cabeça pendida na janela do ônibus
chorando como se não tivesse vergonha de ter uma plateia de desconhecidos ao seu
redor te fazendo perguntas
tentando entender o que está acontecendo mas nem você sabe o que aconteceu o que
se passou entre aquela primeira sensação de que o amor não te levaria nada seria
calmo e leve
bom e eterno
para esta, a de estar em um inferno sem a paz que te habitava antes dele ausente no
próprio espírito na própria casa
e em tudo que quiser tocar o que aconteceu?
você se pergunta
eu achei que pudesse te fazer desistir da ideia de viajar a outros cenários sem sair do
lugar
te convencer que minha língua era a única falésia possível em que você poderia
descansar do terror da vida e de tudo eu pensei que poderia te domar colocar
cabresto em seu desejo
pegar pelas rédeas todos os impulsos trancá-los em projeções injustas e vontades
absurdas eu achei que meu amor serviria para outra coisa além do sexo e das pernas
abertas em uma sexta-feira à noite que meu amor poderia nos salvar da aventura
efêmera que é se relacionar com alguém cujo choro não alimenta uma terra e cuja
boca nunca sentiu um furacão dormir na superfície dos lábios eu achei que pudesse
te curar do vício e das horas seguidas de emoção a que seu corpo está acostumado
quando dança a música da noite que poderia dosar seus impulsos de sair de casa à
procura de
qualquer que fosse a distração, o momento catártico, o prazer lisérgico
que conseguiria entrar na frente de todas as suas guerras e evitar as discussões, os
lapsos de memória, o fim meu deus, como eu achei que poderia evitar o fim
que por ter te colocado como deus em um altar feito à mão você nunca teria coragem
de abandonar o culto e ir embora
para além das noites de intimidade e da última gota de suor que dizia: “um tsunami
passou por aqui”
para além da bebida que compartilhávamos na balada e dos cigarros que nossas
bocas dividiam em sinal de respeito ou reciprocidade para além de todas as vezes
que fiz suas pernas tremerem de tanto amor doado e os pelos da perna molhados em
sinal de redenção para além do soluço que causei em parte do seu peito e da
calmaria que trouxe à sua vida quando tudo em você era uma sucessão de trovões e
pancadas de chuva eu achei que pudesse te resgatar da ressaca do mar e dos dias
infelizes onde o corpo, vazio da adrenalina, procura pilastras para se apoiar
o amor era sublime demais para enfrentar batalhas perdidas, para perdidos como
nós.
Vesúvio
às vezes é difícil crer que aquela pessoa já não faz parte da sua história-presente.
ficou estática, como uma fotografia, em um passado que não se resolve mais.
alguém que um dia sentiu o cheiro da sua pele, ouviu seu coração pulsar de tremor
ou ansiedade, te preparou para o momento, expectante, do voo.
dói porque pensar é viscoso e irresolúvel. você não vai voltar para ele, para o
momento que se sentiu vista e desejada e querida e infinita. os tsunamis no peito, as
maresias nas veias, os vulcões nos ossos, os furacões na palma das mãos. nada disso
é possível no agora, no hoje, neste dia triste e infeliz que há de se viver. parece
impossível voltar àquela vez que você se sentiu como se estivesse sendo movida por
deus ou por uma força divina e sobrenatural. o amor que você tinha por ele moveria
montanhas, versículos da Bíblia, muros que separam países, pais e conversas
difíceis. o amor que ele tinha por você moveria móveis, cômodos, apartamentos e
cidades inteiras. no entanto, aqui estão vocês, geograficamente tão perto.
romanticamente, tão distantes, separados por mágoas e tristezas inteiras.
se volto um pouco a memória, estremeço com a constatação de que nada será como
antes. que, de alguma maneira trivial, porém profunda, magnética, espiritual, nunca
mais meus olhos vão vibrar ao ver alguém como te vi. não da mesma forma. não
como a lava escorre pelo vulcão, dizendo, ao mesmo tempo, que pode queimar tudo
e todos; que pode acabar com vilarejos e sociedades, mas que pode pavimentar
novos caminhos, erguer novos horizontes.
volta?
nunca é uma palavra maior do que cinco letras que se uniram para dar sentido às
coisas.
eu não tenho você, eu não tenho nós, eu não tenho teus olhos verdes, eu não tenho
tuas mãos pacíficas, eu não tenho a tua risada acordando todas as minhas ausências,
eu não tenho você.
sou eu a própria bala, que não atingiu o alvo porque presente e passado são linhas
horizontais que jamais se encontrarão, novamente, no curso da história.
e eu me pergunto, todos os dias, enquanto o pensamento envolta o presente: será que
haverá outra oportunidade para voar?
desta vez eu não choro desta vez eu não me perco tentando entender os motivos
porque querer entender é continuar dando poder a quem me partiu ao meio.
desta vez sigo a vida e apago as memórias fotos dias viagens projetos planos brigas
amigos países inteiros guerras colossais. à la brilho eterno de uma mente sem
lembranças eu sigo, apenas sigo, sem olhar para trás e analisar o tamanho da dor, seu
perímetro, a densidade de sua própria existência. apenas me conformo, não brigo
com o universo, não discuto com deus, não peço conselhos terapêuticos, não digo
nada nem aos melhores amigos. a versão de mim que as pessoas terão depois de
você será incólume, impassível, vazia de questionamentos e avessa a qualquer
possibilidade de lágrima. não choro teu nome, não grito aos quatro cantos sobre o
que você fez, nem mesmo ao meu silêncio eu dou o direito de te celebrar. eu vou te
apagar de dentro de mim. é isso. pela primeira vez eu vou precisar enterrar alguém,
uma história, a história dos teus olhos, a curvatura do teu sorriso quando a gente
conversava sobre constelações às sete da noite na varanda do teu prédio olhando o
Cristo Redentor, o formato dos teus braços fazendo qualquer trabalho doméstico.
deleto agora todos os banhos debaixo do teu chuveiro quebrado, cuja água estava
sempre mais para o frio do que para o quente, os cigarros que compartilhamos à
beira da janela, as discussões sobre política, os fast-foods no lugar das dietas
saudáveis, as cervejas em promoção nos aplicativos para celular, as festas nas quais
eu passava mal de ansiedade ou simplesmente medo do mundo. nenhuma versão de
mim que esteve contigo permanecerá comigo. mato também a pessoa que chegou
um dia a acreditar no teu amor ou no que você tinha a me oferecer. encerro as
expectativas desenhadas à mão, os unos que jogamos antes de sairmos para
qualquer social na casa dos amigos, as vezes que dormimos depois das três da
manhã rezando para que o dia seguinte não chegasse tão cedo, tão logo, porque
tínhamos sono e precisávamos descansar. eu mato aqui, neste texto, todos os sonhos
que despontaram em minha mente sobre ter filhos, um apartamento grande e uma
vida plena para aqueles que amaríamos daqui dez anos. mato em mim a versão que
criei para que você me amasse mais. me desfaço dos movimentos por atenção, a
carência dissolvida no amor servil que estava aqui para tudo, as horas que te doei
pois achava que o amor se aglutinava em pequenos gestos do cotidiano. porque
achava que doar era mais importante do que receber, mesmo que eu fosse o quarto
colocado na prova de natação, aquele nadador prestes a ganhar o bronze, no entanto
o perde por centésimos de milésimos de segundos. você estava sempre em terceiro
lugar. sempre à frente, em outro mundo, esperando pelo momento que eu fosse me
cansar. eu estava cansado dentro de um relacionamento que não me fazia sair do
lugar. com falta de ar dentro de um apartamento que tinha mais janelas do que
portas. mais infeliz contigo do que podia contar àqueles que me amavam. você
forçou cada pequena situação para que eu fosse me cansando de nós e terminasse,
sem forças, sem nada. e o amor evaporou qualquer das vontades, sumiu com
qualquer dos esforços, pulou no mar com quaisquer que fossem os resquícios de paz.
então dessa vez eu não choro. não cedo lágrima alguma à minha pele ou a esta
história que acabou muito antes de eu subir os andares do teu apartamento dizendo
não dá mais. você fez com que não desse mais meses antes, mesmo assim me
manipulou para que eu ficasse mais e mais e mais até eu perder identidade, amor-
próprio, vontade de viver. você me mantinha por perto sob o pretexto de me amar,
mas nunca me amou de verdade. amar é um verbo no qual tua língua nunca se
enrolou, embora você como estrangeiro fale muito bem a minha. então não choro.
então te mato aqui-agora. mato toda a nossa história com o coração seco e os dedos
elétricos, efervescentes. te apago como a Clementine apaga o Joe. te apago como
quem esquece uma rota importante, o único caminho de acesso ao coração da
própria dor. te apago como se apagasse uma digital, a morte de um animal indefeso,
o dia fatal em que duas pessoas perdidas e cansadas decidiram se encontrar.
o desencontro
mas era esperado que retornassem como se precisassem, uma vez mais, descobrir
um o gosto amargo do outro, o cheiro etéreo, as palavras secas alarmando a
garganta, a tosse que enerva o corpo quando a pele vai avisando que um deles irá
embora. era esperado que a lágrima caísse dos olhos e fosse encontrando os poros,
preenchendo os vazios que rodeiam onde nascem e morrem todas as inflamações,
para enfim escorrer pra boca e amargar a língua, talvez o palato, chegando no início
do esôfago e morrendo no centro do coração. era esperado que as mãos tremessem
em sinal de queda ou redenção, porque finalmente algo ali queimaria para nunca
mais retornar, algo ali quebraria no chão como um pirex de vidro que esteve por
anos guardado e finalmente fora usado, algo ali se espatifaria no chão como estrelas
que caem de alguma dimensão longe e ao mesmo tempo pertíssima de nós. quando
ele abrisse a boca e a voz pigarreasse o que esconde as submersas, duras, sonolentas,
infernais, subterrâneas palavras: acabou. era esperado que deus chorasse e que seu
choro despencasse o céu na cabeça dos amantes, dos amados; que as lágrimas de
deus se juntassem ao sal do mar; que a profunda tristeza de deus alimentasse ainda
mais a amargura do mundo e que a frustração de ver seus filhos se despedindo traria
ao planeta ainda mais rancor. era esperado que quando os dois se abraçassem pela
última vez os tsunamis levantassem, esbravejantes, reclamando o direito de
existirem. e então acabariam com todas as orlas, praias, enseadas, condomínios e
amantes da brisa, da areia e de tudo que voa; as placas tectônicas, bravias, também
se mexeriam em sinal de loucura, tristeza, rejeição. como pode o amor ir embora
assim. como pode a dor do amor de repente transpassar a espinha dorsal, o momento
antes da sinapse avisar do cheiro e do toque, a memória pouco antes do sono
finalmente vir e estancar o corpo por horas em suspensão do mundo. era de se
esperar que as células de seus corpos provocassem uma rebelião. tirassem o oxigênio
do sangue, convertessem em mistério toda a vida que habita o corpo humano,
retirassem dos tecidos a capacidade de existir, subtraíssem deles toda a aptidão em
respirar, transformando o ar em desespero, transformando o fim, a falta e a ausência
no princípio da morte, no princípio do fim da vida de cada um que ali se entregava à
fatalidade das relações. era de se esperar que o sol derretesse e a lua virasse sangue,
que o céu deformasse o que chamamos de dia e que a noite se estendesse sobre nós
como se fôssemos, agora, seus eternamente. como se, agora e para sempre,
estivéssemos debaixo de um enorme e gigantesco cobertor de mágoas.
mas também era de se esperar que voltassem uma vez mais à ideia um do outro. o
suor de um conhecendo o gosto e a novidade do outro, como se, separados, tivessem
adquirido outro sabor, tato, conveniência. como se, durante os três meses que os
separaram, tivessem adquirido outro dna, pele, desejo. era, certamente, outro desejo
ali, outra agonia entrelaçada, outro espasmo que se avolumava. e então iam eles, pra
se provocar, se reaver, se reacostumar àquela que seria, talvez, a última vez que
faziam aquilo. a última vez que se despediam, a última vez que transariam no chão
do apartamento, depois na cama, passando pela cozinha, terminando no banheiro; a
última vez que tragariam o mesmo cigarro, conversariam sobre o livro de Clarice
Lispector que tanto amam, dariam risadas sobre a situação caótica do país, a rotina
de trabalho de ambos, a comédia que é o amor em tempos tão sombrios. era
certamente a última vez que se olhariam com a profundidade de quem se joga em
uma piscina olímpica, de quem se joga do último andar de si mesmo, de quem se
joga da sacada, da calçada, de tudo que arde o peito e destrói. era de se esperar que
retornassem ao princípio das coisas, de quanto tudo começou, lá em fevereiro, no
carnaval de 2019, quando sexo foi uma palavra colocada para escanteio, trocada por
paz, afeto, carinho ou simplesmente respeito; lá no começo de tudo, quando por dois
meses transaram em todos os cômodos da casa; quando tocaram a pele um do outro
de maneira tão sutil e densa que os mares do mundo todo se abririam para
reverenciar o encontro de duas pessoas que souberam como se sentir. era esperado,
então, que depois de meses pudessem retornar, atordoados, apaixonados, carentes e
sozinhos, solitários e cheios de ranhuras, trôpegos e perturbados, com o coração
cheio de vazio, com a pele carregada de marcas de projeção, com as falas na ponta
da língua e o medo e a falta de paz e as crenças e as expectativas e tudo, tudo
queimando o peito como se tivessem chegado no centro do universo, resolvido o
mistério da vida, descoberto o paraíso de deus, encontrado outro planeta.
era de se esperar que deus chorasse, tsunamis destruíssem a terra, placas tectônicas
acabassem com os continentes e os olhos se encontrassem e conversassem uma vez
mais.
era esperado que ficassem juntos por toda a eternidade, mas o tempo corria feito
criança e nada disso aconteceu: um deles não soube como voltar.
eu estava prestes a me apaixonar por você
como quem finalmente ergue a cabeça para fora do mar e, agradecendo entre as
sinapses se esbarrando, se dá conta de que a agonia do afogo está indo embora como
quem, finalmente, chega ao topo da montanha que escalava por dias e, por fazê-lo,
se perde na contagem do tempo das horas e dos presságios
eu estava prestes a colocar a ponta dos pés no chão, depois de meses descendo uma
pedra difícil, escorregadia, feia, sem plateia alguma um sopro no meio do deserto
quente
um abraço depois de anos sem saber sobre a anatomia do afeto; sobre como quando
nos estendemos na pele de outra pessoa e o toque é imiscível. nada se mistura, mas,
ao mesmo tempo, tudo se funde e vira amor, paixão, desejo ou simplesmente ânsia
eu estava prestes a sentir o coração pular para fora do peito, do espaço concedido
pelo universo a pessoas como nós, distraídas e entregues a qualquer brisa de mar,
choro de céu, chuva de paz você era minha paz às sextas-feiras enquanto o mundo
caminhava rumo às drogas e às festas e a tudo que rasga o peito e não volta para
suturar você era meu sábado pela manhã, o sol tilintando a graça de deus na janela e
seus olhos sendo o único motivo pelo qual eu queria ser salvo. eu não tinha fé
nenhuma no mundo, mas em você eu era o cristão mais fervoroso da igreja, eu era os
anos de história que o catolicismo escondeu, eu era o inferno para aqueles que
acreditam na possibilidade do pecado você era meu pecado antes mesmo de eu
entender sobre a tempestade que se forma quando dois homens se beijam pela
primeira vez a oração para que a dor disso que me consome não me matasse
novamente mas você me consumiu.
feito gasolina de navios dos quais não sabemos sequer o nome, desses grandes que
circulam em mares que também desconhecemos. Madagascar, Seychelles, Papua
Nova Guiné ou Palau. eu fui consumido da mesma forma como a energia foi
queimada em países que não encontramos no mapa, apenas recriamos na memória
para não sucumbir.
fui consumido como consumidas são as estações do ano por aqueles que não são à
flor da pele e do céu.
eu estava prestes a entender por que você, por vezes, para o rosto no ar e me olha
lento. por que enternece o olhar e sorri, desajeitado, como se guardasse um segredo.
qual é o segredo?
eu quase soube onde você afundou todas as mágoas, irrecuperáveis.
não teve teus olhos adormecidos nos meus, encharcados de amor ou entrega.
não houve tempo suficiente para que pudéssemos nos fazer feliz.
é impossível esquecer aquilo que não foi embora
sei que te amei às duas de manhã ouvindo yebba no fone de ouvido, escrevendo
sobre por que razão eu permanecia parado no meio do caminho enquanto você
nadava de braços e pulmões abertos, quilômetros à frente, com alguém que não eu.
que senti uma pontada forte no peito, como se previsse o momento antes da queda, o
centésimo de milésimo de segundo antes da porta fechada e das fotos rasgadas, o dia
em que você me escreveria uma carta dizendo que não dava mais para continuarmos
a construir nosso castelo de areia em uma praia bonita e distante daqui. que nas
primeiras noites eu chorava vendo tuas fotos sendo feliz com ele e me questionava
sobre a veracidade do que havia acontecido, se o encontro tinha sido real. que
adormeci agarrado ao travesseiro que você me comprou quando foi a Cidade do
México, e que nele confortei todas as minhas dúvidas, abdiquei de todas as
frustrações, despejei medos e lágrimas, me desvencilhei das projeções que eu
mesmo havia arquitetado. no meio
da madrugada, eu acordava absorto, incrédulo que alguns móveis haviam sido
levados do apartamento. e então chorava, de soluçar. parecia carregar maremotos e
oceanos inteiros. achei que fosse morrer de tanto chorar, secar até que não restasse
água alguma em meu corpo, ser drenado até que sede em mim fosse sobrenome. mas
de ti nada soube. não procurei saber por que para você foi mais rápido e instantâneo
o seguir em frente. por que para você o caminho pareceu bonito e cheio de luz. por
que a rapidez dos movimentos. de ti não sei se doeu, o que quer que seja. se
machucou o peito, se feriu o pensamento, se vez ou outra pensou em mim que ficava
com uma cidade inteira para iluminar. de ti não soube o cep novo ou se a promoção
no trabalho chegou a acontecer. as viagens pela América do Sul e as teorias
matemáticas sobre como os casais do mundo estão determinados a se encontrar. se a
Colômbia aconteceu em tua vida ou se você se perdeu em alguma ilha no nordeste
do Brasil. não sei se me amou como disse e se me quis como escreveu em minhas
costas naquela noite de lua cheia. se realmente te tirei o ar como disse na primeira
vez que me viu nu e se eu provoquei arrepios na vértebra e na emoção como me
contou naquele dia que fizemos amor dentro do seu carro antes de oficializarmos “o
nosso namoro entre aspas”. não sei de tantas coisas que agora me assolam como se
precisassem ser descobertas, mas eu não preciso. não preciso decifrar descobrir ou
simplesmente saber de ti ou de tudo o que disse pois nada disso me importa agora.
sei de mim. que te amei como nunca e te quis como se não calculasse os riscos e os
cortes; como se entrega fosse apenas uma palavra e não um pé no precipício; como
se amor fosse apenas sentimento e não uma dança sobre os escombros que não acaba
nunca; como se a gente pudesse, mesmo depois da dor, desejar que a vida continue
igual ainda que alguém tenha levado partes nossas irrecuperáveis, que se deixam no
caminho para não nos atrapalhar. eu sei de mim. que permaneço aqui, com um
coração para fazer bater.
indagações
quem você se torna depois que um grande trauma se senta sobre seus ombros você
caminha com eles pela cidade ou os esconde no armário e
espera até eles explodirem algum dia?
você fala do seu ex na terapia ou conta dele apenas aos melhores amigos?
você chora quando relembra fotos antigas você chora quando vê fotos recentes chora
quando descobre que ele vai
se casar enquanto você parou no meio do caminho e não sabe mais como seguir?
deus sabe que você está cansado de viver esta vida cheia de falsas perspectivas e
projeções do mundo
que você quase se demitiu do trabalho por causa da depressão, e que pensou em
fugir para outro estado à procura de paz?
quem sabe que você chora toda noite porque está deprimido
porque a voz dele ainda estremece na sua cabeça, tira suas células para dançar,
aborrece seus pensamentos?
qual dos seus amigos está por você quando você precisa quem é que te leva para
casa após uma noite de bebidas e recaídas quem te ajuda a limpar a bagunça que fica
depois que você liga para o seu ex pedindo para voltar?
quem é você depois que cumprimenta na rua a pessoa que mexeu com seus últimos
meses quando ele vai embora depois de te pedir perdão pelo término e por tudo
o que você faz com o pedido de desculpas, com as mentiras que ele contou para
amenizar a culpa, com o fim, que é eterno e vai durar?
uma ferida com o teu nome
II.
me lembrar de quem eu era com você
III.
me lembrar de mim depois de você
IV.
não esquecer quem você era e quem você se tornou
V.
voltar novamente para mim.
faxina
na sala de estar
coloquei frente a frente os impulsos que tive de te ligar e pela janela joguei a mágoa
e a tristeza de ter sido passado para trás por fim
foi no banheiro onde consegui me limpar de todas as promessas feitas entre um
suspiro e outro no calor das mãos que se moviam rumo ao prazer
e entendi
alguém precisava limpar a bagunça recolher os cacos depois do fim agachar no chão
se desobrigar da postura correta ereta
e do orgulho de permanecer em pé ignorando ali a fratura exposta alguém precisava
fazer o trabalho sujo de pegar com as mãos o que deixou de ser amor para virar
incômodo o machucado pontiagudo
cheio de tudo as promessas espatifadas as conversas fiadas o fio condutor do mundo
***
arrancar o ego até que não reste
faísca alguma do incêndio
criminoso que fomos nós.
***
com a cabeça para fora do mar e o corpo dormente pedindo socorro tentando se
salvar da fúria solitária que é o fim
colocando o trabalho à frente das consultas médicas suas dores à frente das saídas
com os amigos buscando desculpas para não pôr o pé na rua, no coração da vida
ou em algo que te enerve, levante, eleve deixando de sair do próprio armário que
construiu para suportar os dias seguintes usando o expediente como fuga para curar
alguma solidão inóspita que vive aí dentro e você mal sabe o nome o que é esta dor
você se questiona
o que é?
mas eu quero te lembrar de quando, no auge dos seus 17, o primeiro amor da sua
vida quase te fez acreditar que a glória não era para você
ele escolheu outra garota aquela mais bonita e sensual a mais celebrada e adorada do
colégio cuja presença não precisava de muito para chamar a atenção dos meninos
que eram moleques em corpo e coração e você chorou
por dias e dias
se sentindo a pessoa mais abandonável desprezível do mundo
como se tantos outros também não tivessem seus corações dilacerados em dias
banais de meses ainda mais frívolos achando que aquela seria sua sina para sempre:
servir de ponte não ser caminho
ser atalho
não ser destino final
cê não vai saber o que em mim virou pó e o que virou pedra, o que se transformou
em memória e o que matei para não virar gatilho, o que tirei de dentro para não me
consumir e o que deixei para me lembrar de que nunca mais darei amor a alguém
que não quer recebê-lo. cê não vai saber da minha boca há quantas andam o
processo de esquecer: parte do teu corpo, cor dos olhos, palavras ditas
inoportunamente, falsos diálogos sobre o chão. quais são os flashbacks que me
assolam, em qual momento específico do carnaval pensei ter te visto, quem em
minha boca virou prece ou devoção, quais e quantas vezes orei para que não te
encontrasse, para que enfim pudesse te perder. você nunca vai saber o que em mim
virou raiva mágoa ou simplesmente ferida aberta e indizível, que não se revela a
ninguém porque sabe tanto de si que prefere a paciência de uma cura que virá lenta e
talvez tardia. o que sobre você eu desaprovo e procuro esconder dos outros para que
eles, como eu, não te condenem à falsidade ou hipocrisia, o que em ti me deixou em
chamas e me faz queimar em outras pessoas, ferver promessas, derrubar conceitos e
teorias sobre felicidade. porque digo assim: com ele não fui. porque afirmo: com ele
o amor me foi brutal, infeliz, desastroso. porque repito: com ele sequer conheci o
diafragma da intensidade, a aparência da compaixão. você nunca vai saber como
muitas vezes tenho que assassinar um pensamento para não chorar. tarde da noite,
logo na quarta-
-feira de cinzas, o que precisei ferir para continuar supostamente curado. as palavras
que precisei sufocar no travesseiro para manter uma postura equilibrada de quem
não volta ao lugar do crime, à cena triste a qual se submeteu o nosso fim, à terrível
sensação de que rejeição para mim é quase como um pai, sempre disposto a me
machucar. digo às pessoas que me perguntam de você: não sei. respondo que há
quase um mês estou tentando me recuperar de um fardo insustentável que se
reproduz em minhas costas: há sempre algum outro cansaço nascendo no meu corpo.
há sempre uma nova tristeza que preciso matar para não ser morto. há sempre algum
começo de choro que preciso engolir asperamente para não ceder ao fim da vida.
digo superficialmente sobre qualquer movimento teu, algo como “ele deve ter
seguido a vida”, “deve estar com outra pessoa”, “deve estar feliz”. porque nas nossas
suposições a vida parece tecer sobre si mesma o destino soberano de que algo
extraordinário sempre acontece depois de uma ruptura. pessoas esbarram umas nas
outras, encontram-se destinadas a ligarem pontos e corações, a serem felizes não
importa como ou com quem. eu vi uma foto tua sem querer no Instagram de um
conhecido. eram cinco e meia da manhã e eu estava na Praça Mauá depois de um
bloco de rua. e eu queria ter te dito que mesmo depois de cinco semanas a vida
parece não ter voltado à tona. parece uma vida fake acontecendo pra mim, uma
encenação que se sabe terá fim após uma hora de espetáculo. mas a tristeza não vai
acabar, não agora. não vai acabar a angústia de olhar em qualquer direção durante o
carnaval e pensar que talvez você possa estar lá, mas pedir “meu deus, que não seja
ele”. pois acabaria comigo esbarrar em você e perceber que já não existe nada de
mim em teus ossos. que minhas manias foram embora das suas, deram lugar aos
vícios de outra pessoa; que meu jeito já não dorme nos teus; que tua saliva ganhou
outra textura; que tudo aquilo que não deu certo está entre nós, implorando para ser
liberado da energia que dispomos de nos aniquilarmos, esquecermos, deixarmos para
lá. você nunca vai saber que eu me sentei no meio-fio da avenida Rio Branco
enquanto a cidade inteira sorria e a minha lágrima escorria pelo rosto, como a
antítese de um deus que continua segurando minha mão mesmo quando a tua já não
está aqui. que eu ri porque lembrei de uma piada que só você entenderia e que, ao
contá-la aos meus amigos, nenhum sorriso chegou no coração dos meus ouvidos.
que eu estava em um barco na Baía de Guanabara enquanto você estava em outro e
que precisamente às 16:25 da tarde ambos se alinharam, lado a lado, como uma
metáfora, um aviso, uma oração, um manifesto: mesmo no mar, onde tudo é infinito,
já não éramos mais duas pessoas que se amaram, mas sim dois corpos mergulhados
em suas próprias solidões.
vapor barato
meu amor
os trabalhadores pela manhã acordarão insones e cansados para mais uma jornada de
trabalho que se levanta os ônibus de linha com seus motoristas moídos por dormirem
4 horas de sono e os passageiros preocupados com o preço do café do arroz do óleo
infames com os rumos de um país pequeno apesar de sua grandiosidade territorial e
então a vizinha também abrirá os olhos e pensará talvez em seu casamento que está
ruindo depois de vinte anos
ela descobriu uma traição depois de ler uma conversa no whatsapp
e então descobriu outras muitas fotos vídeos e o pior: o desejo dele de sair de casa
ela queria pelo menos que ele ficasse ali, com ela, sendo que partir é o pior dos
espinhos é a mão fechada estrangulando o pescoço que se preocupou todo este
tempo em lhe dar de comer, passar sua roupa, tocar em seu prazer e o vizinho, fiquei
sabendo, não apenas vai sair de casa como alugará outra
e nela construirá uma outra família aquela com a qual sempre sonhou, só não sabia
como meu amor
o mundo vai continuar girando mesmo depois de nós e do nosso fracasso
por isso não choro nem cedo fervor algum por isso não me permito chorar ou sequer
pensar na hipótese de adoecer com o fato de que você foi com o perdão da palavra
um grandíssimo filho da puta porque eu penso no preço do quilo do frango e no
convênio médico da minha mãe que preciso pagar penso em voltar à faculdade,
trancada há mais de dois anos
penso em sair do país, viajar, nem que seja para fora de mim mesmo
penso no discurso de ódio do presidente e no asco e na fúria do mundo e então na
mediocridade das pessoas na mentira nas várias versões de nós mesmos que vamos
inventando para caber em círculos sociais em tribos em legendas de seriados que
cansamos de assistir no entanto continuamos assistindo porque é triste demais ter o
eco da solidão dançando no meio da sala de casa
versões de nós que vamos criando para ficar em relacionamentos ruins trabalhos que
pagam mal conversas que não chegam a lugar nenhum igual esse texto
ninguém liga para nós e para o que deixamos de ser para o que você me fez
para as mentiras que você esculpiu em minhas costas para os dias em que você me
feriu afastou e negou qualquer porção de afeto qualquer pequena fresta de emoção
qualquer milésimo de ternura de carinho ou de simplesmente amor “não foi amor”
eu digo aos meus amigos terapeuta
seguidores na internet
não foi amor porque não me senti amado o sentimento não alcançou a segunda pele
a terceira o epicentro do meu ego o centro do meu orgulho
como poderia ser amor se você nunca se despiu?
como poderia ser amor se você nunca me deixou te acessar chegar mais perto olhar
pela janela observar como quem entende o que está acontecendo com a coisa ali
observada?
eu nunca te vi de mais perto nunca atravessei a muralha da China não ganhei na
Mega-Sena
não vi deus
eu nunca soube nada de ti e dos teus olhos eu nunca soube quem te tocou o coração
a ponto de derretê-lo e transformá-lo em um rio imóvel eu nunca soube quem te
ensinou que para amar é preciso um pouco de rejeição quem colocou em tua boca o
cinismo a incoerência a incompletude quem foi?
quem foi que te amargurou os movimentos quem foi teu professor de como ser um
babaca um homem incapaz de cuidar de si e dos outros alguém cuja infância
desdenha do adulto que se tornou tão irresponsável
tão cheio de si e vazio das coisas bonitas do mundo?
meu amor, mas ninguém liga
amanhã tem jogo de futebol em horário nobre na tv tem fofoca em instagram de
celebridade tem fome miséria desencontro tem muitas outras pessoas terminando
relacionamentos nos quais juraram votos fizeram pedidos arquitetaram sonhos
construíram cômodos tiveram filhos tiveram cistos tiveram tudo
tiveram fim
amanhã pela manhã o mundo volta à programação normal a bolsa de valores
voltando a funcionar pontualmente às 10 da manhã
escritórios mundo afora organizando-se para receberem seus arquitetos advogados
publicitários jornalistas profissionais que agora entregarão suas horas de trabalho ao
capital ou ao cansaço à cólera de que dizia Gabriel García Márquez à exaustão,
como diria algum terapeuta por aí então é por isso que não me permito doer não
permito chorar e também não permito que meus amigos falem teu nome
eu digo: que ele suma da face da terra que ele se exploda, ele e seus joguinhos
psicológicos ele e as suas farsas ele e toda a sua violência não permito que ergam tua
presença perto de mim não permito que assumam o teu partido não permito sequer
que esbocem sorriso ao redor do teu espírito
não permito que nada aqui seja para você ou para o fingimento descabido que foi a
nossa relação o circo onde eu era o palhaço o espetáculo para o qual havia sido
convidado a participar e só percebi nos minutos finais afinal nunca fui bom ator
nunca fui bom em muita coisa mas em esquecer você
em apagar
e fingir que está tudo bem
ah
nisso talvez eu seja mesmo.
teatro
eu quero te contar que não chorei na sua frente quando a gente terminou, mas que,
ao chegar em casa, corri para o banheiro, me agachei no chão e chorei como nunca
antes. eu chorei como se o pedaço de céu que cobre o Rio de Janeiro de repente
fosse o pedaço de céu que cobre o Amazonas. eu chorei como se não precisasse
respirar no dia seguinte, não tivesse que trabalhar, não precisasse de um corpo útil
para enfrentar mais um dia capitalista, com suas cerimônias e obrigações sociais.
que eu não falei nada simplesmente para não parecer abalado demais, mas que gritei
no meio da rua para estranhos que desconheciam o tamanho da dor que se agarrava
no meu pescoço, que prendia meus pés. que tive uma crise de ansiedade andando
pelas ruas de São Paulo e que de repente nada fazia sentido. os semáforos pareciam
concordar com o estado de calamidade das minhas células e se esverdearam para que
eu pudesse chegar em segurança na nossa casa, em um lugar que agora seria meu,
um país inabitável, um território em conflito, uma guerra fria que acabava, enfim,
com um dos lados derrotados. eu estava derrotado, perdido, desestruturado, mas
ainda assim compenetrado na minha própria força e própria dor.
que eu não rebati todas as suas palavras dizendo sobre finais, sobre como
poderíamos ser amigos, sobre como poderíamos compartilhar a guarda dos
cachorros, que mês sim, mês não poderíamos nos encontrar para falar da vida e das
coisas da vida, sobre como havia sido boa a nossa relação; havia sido forte; havia
sido terna; mas que chegando em casa, colocando o pé no nossa quarto, eu falei falei
falei como se monólogos fossem apenas mais uma camada profunda da vida a que
estamos sujeitos quando precisamos desabar. e que desabei rebatendo absolutamente
tudo o que me disse. que calculei todas as brigas, ponderei sobre cada discussão,
analisei meticulosamente todas as vezes que cedi, mudei, transfigurei, me perdi e
sobretudo diminuí para que você coubesse, ou para que eu fosse cada vez menos.
que desapareci dos meus amigos, deixei de ir às suas casas, deixei de ligar para os
meus pais para contar do trabalho, da faculdade, da parte minha que doía, que tendia
ao fracasso, que me abandonei quando decidi viver contigo. que desapareci de mim
mesmo, que não reconhecia minhas digitais e não sabia mais como pronunciar a
palavra liberdade, que liberdade para mim era apenas uma bagagem perdida de
aeroporto que nunca mais recuperamos. eu era a bagagem, eu era a carteira que se
perde, mas, de tão ínfima, é esquecida no calabouço de alguma memória. eu era a
rua deserta por onde ninguém quer caminhar. eu não rebati, mas chegando em casa
escrevi tudo, tudo. escrevi que você me aprisionou em jogos emocionais e me fez
acreditar que eu era louco. que me traiu diversas vezes, no entanto fez parecer que
era minha culpa, que faltava algo em mim, que suficiência e eu éramos antônimos,
que estar com alguém como você já estava de bom tamanho. eu só não entendia que
você era pequeno demais, mas agora entendo. eu só não compreendia que você era
menor do que uma mentira mal contada. que você era egoísta, sádico, imoral,
entorpecente. que você era alguém digno de asco ou, como diz, de nada.
por isso me calei diante do furacão dos fatos. e se escrevo, é porque preciso, de
alguma forma, levantar muros e conceder ao destino o que lhe é de direito: toda a
minha fúria; toda a minha raiva; todo o meu desafeto. pois é preciso deixar sair todas
as mágoas, todas as lágrimas secas podres inúteis; pois é necessário deixar que voe
qualquer apego que vem junto da decepção. você não me decepcionou, você apenas
se mascarou por tempo o suficiente. você não me frustrou, você apenas despejou
sobre si mesmo um pouco da miséria humana. eu calei pois nada do que eu diria
poderia te ferir o bastante e diante da tentativa, às vezes, o melhor a se fazer é ir
embora. pois eu queria que você ficasse ali com toda a argumentação suspensa no ar,
solitária de companhia. com as palavras em ordem, no entanto vazias de validação.
eu não validaria seu discurso, eu não concordaria com os trejeitos, os silêncios, as
vezes que você me machucou, eu não abraçaria o que você dizia só para você ter
com o que contar.
porém você já não tinha nada meu. você não tinha meus contra-argumentos, lágrima,
fronteira alguma, faísca, chama, fogo, incêndio-tudo. você tinha apenas o nada, o
imóvel, aquilo que não se modifica diante da vida sendo ela mesma em sua tarefa de
esmagar. eu estava quebrado, despedaçado, largado às traças, no entanto permanecia
inteiro na minha própria fortaleza, preso, atado à própria condição que criei. eu não
iria sofrer por nós ali, na frente de tudo o que acontecia. eu não aprisionaria a minha
dor à sua estética. eu não despejaria as minhas lágrimas enquanto você performava o
fim, eu não cederia minhas emoções ao seu teatro e ao teatro do horror.
escrevo agora, dia seguinte após a cratera, dia depois da chuva, da água abundante
sobre o corpo mole sozinho, da água que limpou até a mais escondida sujeira: estou
limpo. como quando finalmente o pedaço do céu carioca volta a ser de novo ele
mesmo. quando uma massa de ar passa pelo país e ruma para o sul do planeta terra,
do universo, do mundo, enfim de nós.
dívida
eu não te devo minhas horas de trabalho as noites que chorei por ti as manhãs em
que procurei alguma mensagem e nada pulsava
as tardes onde as plantas precisavam te ver
porém presença alguma aguava o caule
amansava a casa
não te devo os textos que escrevi enquanto te esperava voltar as mensagens escritas
e apagadas tantas e tantas vezes
às segundas e terças
e todos os outros dias
as vezes que dei perda total e gritei teu nome em alguma balada da Rua Augusta o
choro preso na garganta na linha amarela do metrô a angústia que me acompanhava
durante o trajeto de quarenta e cinco minutos da linha azul todas as outras cores do
metrô de São Paulo que já me viram padecer e ter crises de ansiedade de ausência
de solidão
os passos dados em direção a algum lugar, qualquer um, que tirasse você da minha
cabeça
eu não te devo nada
eu não te devo os boletos que você pagou e as compras de mercado que fizemos
juntos as feiras às terças
e as frutas que comprávamos no fim de semana pois era mais barato e estavam mais
bonitas as idas ao hortifruti no sábado e aos domingos o pastel com caldo de cana eu
não te devo os jantares a lasanha com Coca-Cola nos almoços a padaria da esquina
pela manhã e todo o ritual que tínhamos para fazer qualquer coisa nas primeiras
horas do dia eu não te devo as festas na casa dos amigos nem as vezes que ficamos
chapados de cigarro ou intimidade
as comemorações de promoção no trabalho as garrafas de vinho compradas na
promoção do supermercado Zona Sul
a pia cheia de louça
esperando para ser limpa
as horas na casa da sua mãe reclamando que uma vez mais nós estávamos distantes
afastados
mais distantes do que óleo e água quando colocados juntos não nos misturávamos
nem queríamos nos misturar os passeios de bike pela orla da praia as vezes que
jogamos vôlei com pessoas desconhecidas e as tornamos mais conhecidas que um ao
outro as tardes no arpoador com cerveja e cigarro as viagens para Salvador para
visitar meus pais porque você queria mostrar a eles o quanto os amava apesar de
mim
eu não te devo os discos que você comprou nos meus aniversários os vinis da Maria
Bethânia e Gilberto Gil a vitrola que continha um anel de noivado e todas as
histórias
memórias
e tristezas de um casamento que quase deu certo se não fosse por você por nós
pela vida
a verdade é que nos perdemos entre os silêncios compridos dos dias que pareciam
inofensivos, mas que traziam consigo vazios e espaços indesculpáveis dias que
abriram crateras entre nós e nossos desejos alargando o espaço que existia na cama e
em nossas almas
apagando a paixão com extintores de incêndio e beijos mornos
e abraços pequenos
e sexos sem amor
queimando o tesão com pitadas de sonolência provas da faculdade
e expediente em horários que deveríamos estar juntos fazendo alguma coisa
qualquer coisa
eu não podia te fazer ficar você já sabia o caminho até sua outra casa destino e
coração
já havia outra cama esperando pelo seu corpo ter com quem conversar outra rede na
varanda
e o anseio de te ver descansar da vida e do perigo da vida de mim e do perigo
que fomos um ao outro
fazia sol no meio da semana fria de um mês mais frio ainda. o Rio de Janeiro parece
menos cidade quando esfria, mas não havia nada congelante entre nós. o que existia,
na verdade, eram duas pessoas que estavam dispostas a se despir em nome da
conexão, vontade, desejo, tesão ou simplesmente falta. em minha cabeça, eu
perguntava quem já havia tirado uma lágrima dos teus lindos olhos ou feito teu
coração cair no chão e se quebrado em mil pedacinhos. quem, qual altura, de qual
país, idioma e forma física havia tirado de você o gozo e o prazer, a fome e a ânsia
em se saciar, o carinho e o afeto. e por que você estava ali, em um junho pandêmico,
sozinho, como eu. e você me disse, pela manhã, rindo, despretensiosamente, que sua
maior dificuldade era se permitir ser amado. ruborizou algo logo depois, como se me
pedisse desculpas por soltar, assim, do nada, algo tão pesado, mas de fato tão
humano. seu medo era tão grande quanto o meu? os muros que você estava
levantando eram tão altos quanto os que ergui durante todos estes anos? tantas
perguntas ficam me atravessando a esta hora da noite; tantos questionamentos do
porquê não demos certo. foi o tempo? a distância? o querer? só sei que te quis muito.
como um crente quer muito acreditar na existência de deus. como o cientista crê
inefavelmente na existência de leis. como alguém que ama o mar crê na
possibilidade da lua, enfim, o encontrar para beijá-lo. você carregava a paz de um
torcedor que vai ao estádio e compreende a liturgia do minuto de silêncio. eu era
uma voz gritando de algum lugar próximo ao local onde tudo acontece. você era a
varanda do apartamento do décimo andar, com vista para o Cristo Redentor e para a
praia de Copacabana enquanto eu era apenas mais um visitante, que se espantava
com a aventura que aparecia à frente. eu não acreditei em você. eu não acreditei que
podia ser tão real e tão terreno e tão orgânico e tão de verdade. eu não acreditei que
podia ser feliz ou fazer parte do seu caminho. eu não tinha fé suficiente no calor das
minhas mãos, não pude crer que te aqueceria nos dias frios que se erguiam entre o
seu beijo e a minha respiração, entre a sua agitação e a tranquilidade do meu corpo,
entre seu entusiasmo e a minha temperança. quando você me conta que não
consegue se entregar, eu entendo agora, do outro lado da cidade, os porquês do
encontro: precisávamos nos esbarrar para nos compreender. precisávamos nos
despedir para seguirmos, sozinhos, com os traumas ainda abraçados às próprias
mãos.
filme iraniano
então de repente ele já não consegue mais acompanhar sua vida se expandindo. você
chega em casa depois das dez, o leite integral deu espaço para o desnatado, Cecília
Meireles deixou de ser sua escritora favorita. em alguma parte do caminho, que não
se sabe qual, ele desaprendeu você e seu amor. você cresceu e hoje consegue não
explodir no meio de uma discussão.
hoje, você se inclina a rotinas menos dolorosas e esperas menos sofridas. você não
espera ele dizer que te ama para poder dizer também. você criou paladar para
comida mexicana enquanto ele não consegue passar do arroz e feijão. você já não
assiste filme francês porque descobriu que cinema iraniano é muito melhor. ele ainda
se deleita assistindo Almodóvar. amarelo não é mais sua cor favorita; ele nunca teve
apreço por cores e seus significados. vocês, ambos, se perderam durante a viagem do
relacionar-se.
ele frita os ovos no café da manhã: “aprendi naquele seriado que gostávamos”.
hoje, você mal se esforça para ver Friends na tv. os hábitos mudam e levam tempo,
como naquela vez em que vocês quase hesitaram em se separar, mas continuaram
por amor a alguma situação maior. talvez você tenha se dado conta de que toda
mudança tem um custo. o de vocês foi presenciar um fim quase que
cinematográfico. ele pensa em visitar o Peru, você ainda nem conheceu seu próprio
estado. você já não dorme com os pés em cima dos dele; ele não te observa dormir
enquanto se arruma para o trabalho. você perdeu a vontade de ir ao cinema às sextas,
ele ainda te questiona por qual razão você estagnou durante este processo de crescer.
“não estagnei”, você replica, se dando conta de que talvez, e só talvez, aquele
encontro esteja quase no fim. quase, porque embora mudados de um começo quase
perfeito e simétrico, ainda hoje existe amor.
e é por ele que você, numa quarta-feira chuvosa, percebe que o amor é esse
sentimento laborioso de ir acompanhando a mudança no outro como uma mãe mira a
mudança do filho: com os olhos marejados, percebe-se que a criança já pode ferir
outras comidas, estabelecer outros métodos degustativos, se cuidar por si só. e é isso
que verdadeiramente dói.
no entanto, o amor dele, assim como tudo que atravessa nossos olhos e atropela
nossa visão, não percebe a expansão da sua coluna se endireitando por outros
caminhos. que você anda por vezes tácita, por vezes indiferente, e até infeliz.
seria o amor essa parte nossa que, vendo o outro adquirir asa, voo e plano, abre os
braços e voa também? seria o amor justamente essa vontade de continuar o caminho
mesmo que a mudança traga dor, constrangimento e às vezes fadiga?
você se atrasa para o jantar. ele ainda questiona sobre os leites desnatados. o chinelo
dele na porta do quarto parece uma tempestade em inúmeros copos d’água. a
maneira dela falar muda de acordo com a veracidade das ações. não há mais sexo,
nem o fazer amor. há, todavia, duas pessoas tentando qualquer resquício de respiro.
há, e de maneira desaprendida, uma tentativa furtiva de continuar porque estar juntos
ainda é melhor do que estarem felizes ou completos, mesmo que sozinhos.
ele já não consegue acompanhar sua vida expandindo, criando casca, reverberando
pelas ruas da cidade, crescendo e caminhando por aí livre. o amor pareceu se
agachar na varanda de casa para esperar que você volte algum dia. mas é
irremediável a expansão, a vida te arrancando dos braços da inércia, o elixir da
liberdade. ele ficou te esperando voltar para a mesa, você já estava em outra, que
não a de vocês dois. hoje é dia de filme iraniano.
love is a losing game
se o amor é mesmo um jogo perdido, como cantou Amy, por que eu sinto que não
perdi nada?
se te amei e fomos um para o outro como aquela parte da praia vazia de gente e de
frustrações; se nela nos sentamos sobre a canga e nos abraçamos como se o mundo
não estivesse se acabando; se de repente tudo havia ruído – mágoas tristezas
cicatrizes. eu não sentia o peso do mundo nos meus ombros eu não sentia que
havíamos terminado eu não sentia que estávamos separados de todas as coisas todos
os planos todas as conversas jogos memórias amor. se lá, naquele momento, naquela
fresta do espaço por onde vazam todas as emoções, eu te amava e você me amava
também e nós nos perdoávamos por termos dado tanto, dado errado? então eu não
sentia que estava te perdendo, eu sentia que estava me ganhando de volta. que
finalmente algo em mim voltava à tona, a minha vontade de viver e de conhecer
outras pessoas e outros tipos de amor. eu te olhava no meio da brisa do mar e tinha
vontade de voar. eu era livre! meu deus como eu era livre. meus amigos me ligaram
no final de semana para perguntar se estava tudo bem e eu não sei lhes explicar
ainda hoje que bem é uma palavra minúscula para o tamanho da paz e calmaria que
me habitou nos três dias que estivemos juntos. era como se tudo estivesse se
quebrando, mas não o suficiente para cortar. era como se tudo estivesse
desmanchando na atmosfera, mas não de uma maneira feia, torpe, cínica, mas
especial: estávamos indo embora um do outro como quem sabe (e saber é o mais
importante) que algum dia estaremos juntos, seja sentados em uma padaria comendo
um misto-quente e falando de signos; seja jogando vôlei e rindo da vida e de como
as relações podem nos perfurar. você tinha me perfurado, como uma bala que passa
de raspão, mas depois percebemos que a ferida é bem mais profunda, que o projétil
está alojado perto de algum órgão, de algum lugar que se emociona. Audre Lorde
nos ensina, no entanto, que se pressionarmos forte a ferida ela para de sangrar. eu
estava pressionando forte a ferida quando decidi viajar contigo. eu estava
pressionando todas as minhas projeções que deram errado e os meus desejos de te
querer e as vontades de passar o resto da minha vida ao seu lado. eu estava
apertando meu próprio pescoço e jogando fora todos os manuais sobre cura e como
seguir em frente – que consiste em deletar memórias, ir embora sem olhar para trás,
apagar mensagens e fotografias… pelo contrário, eu estava lá, perto de você, no
âmago da experiência. eu estava lá, no infinito da minha própria dor, no ápice da
crise existencial, sentindo que você não era para mim.
então me responde, como eu perdi essa batalha? não sinto que perdi o amor ou para
o amor. não senti que joguei na loteria e de repente todas as minhas fichas foram
embora juntamente com as possibilidades de amar novamente. não senti que
deixando você ir embora (e indo também) eu nunca mais encontraria contigo pelo
caminho ou, melhor, me reencontraria nele. porque enquanto eu te olhava dançar
segurando um cigarro na boca e você virava para mim, sorrindo, eu pensava:
furacões sempre voltam para resgatar
o que não conseguiram destruir.
enquanto você vinha até minha direção para me oferecer abrigo ou abraço, eu
pensava:
tsunamis sempre voltam ao lugar de origem para
reencontrarem o que deixaram pelo caminho.
por isso você sempre voltava a mim e ninguém ali podia compreender o que
acontecia. as pessoas ao nosso redor diziam “mas vocês terminaram?”, “o que vocês
têm?” e eu não sabia como responder. pois o que éramos? ali, eu e você, no meio de
uma ilha, apaixonados, afetados, mas ausentes do amor romântico? eu e você, no
meio do nada, mas ainda assim, cheios, de amor paixão entrega verdade tudo?
não pode ser derrota quando o amor vai embora mas ficam as muitas outras coisas
boas. porque eu te quero bem e feliz e livre e leve. eu quero que você abra esse peito
e deixe todos os pássaros saírem voando. eu quero que você se jogue de olhos
fechados e peito aberto e a certeza de que se doer vai também sarar. de que se te
machucar, vai igualmente servir para você se proteger e, mesmo assim, continuar
tentando o amor e a vida e as relações. que se você se quebrar, você sempre terá para
onde voltar. porque quero ver que você é capaz de sentir sem se preocupar se as
pessoas vão te acusar de intenso, porque quero ver que você, ao me conhecer, passou
a entender o significado da palavra sensibilidade. eu te quero sensível, para o
mundo, para as coisas do mundo.
eu não te perdi, garoto, eu não perdi nesse jogo do amor, pois te vendo existir me dei
conta de que não dá para perder no amor quando o ganho é a liberdade e a certeza de
que ficaremos bem, independentemente se juntos ou não.
eu não perdi no jogo do amor porque abrir mão de alguém que se ama muito é sobre
paz
ou liberdade
voltar para você seria como dançar sobre um prego enferrujado seria escolher a
piscina do prédio tendo um oceano bem à minha frente me
convidando para ser livre seria escolher pisar em ovos ignorando a magia dos meus
pés que voam
então permaneço aqui, quietinho observando este corpo tropeçar, vez ou outra, na
palavra superação
caindo, em alguns momentos, porque ainda não sabe de todas as respostas e nem se
pretende saber porque saber exclui a surpresa de se descobrir e se desvendar e tenho
me descoberto e desvendado mais apaixonado pelo mundo e pelas coisas do mundo
pela vida e por todas as grandes emoções que ela causa pelas pessoas e por todos os
bons corações que permanecem comigo apesar de você
observando este corpo, que é meu, reagir sem se prostrar à tristeza profunda que me
habitou depois do término, sem ceder à amargura de ter me perdido enquanto estava
contigo, sem entrar em uma batalha emocional comigo mesmo sobre os porquês do
fim e suas implicações este mesmo corpo que agora vejo ganhar sonhos e tecer
novas emoções e aprendizados
que vejo sobrevoar um território calmo e tranquilo, sereno e impenetrável
este que é um corpo que cai mas
continua dançando.
caminho
há um caminho de paz esperando por você cujo silêncio não vai te estapear a face a
ansiedade não fará seu coração correr uma olimpíada inteira e onde ego algum
competirá para te tirar o ar puro de se sentir amada um caminho cujas expectativas
não apertarão forte o seu pescoço e as inseguranças não alcançarão um lugar à sua
cama, te impedindo de descansar um espaço onde todas as suas lágrimas se sentirão
bem-vindas para serem celebradas terem em quem se apoiar
um lugar onde superação será apenas uma palavra bonita, mas esquecida em alguém
que já não te machuca o peito em que deus escutará o coração das suas intenções e
com elas se sentará para conversar há um lugar
onde seu choro se transforma em música para fazer dormir todas as palavras que um
dia te atravessaram como lança e te deixaram quebrada: uma hora ou outra, de tanto
doer, deixa de queimar um caminho em que você de tanto incendiar
torna-se o próprio fogo
beijando tudo
consumindo-se em si mesma.
feliz aniversário de namoro
– oração
quando me perguntam de você no ponto de ônibus
eu hasteio um sorriso no canto da boca levanto a mão como uma criança faminta por
atenção
rodopio de ansiedade e me alimento do êxtase em dizer: encontrei alguém com quem
compartilhar uma existência.
os anjos no céu
invejam o movimento das nossas pernas indo e vindo cansadas de tanto prazer
sexo é uma palavra inadequada demais para o que fazemos à noite quando os
pássaros vêm nos visitar
você coloca sua mão em mim como se descobrisse um texto em braile como se não
precisasse de asas para voar mas não percebe: eu sou as asas eu sou o caminho para
você chegar mais próximo a deus eu sou o ar namorando o seu nariz enquanto você
morde meu nome.
mel e girassóis
passa a boca doce de mel no meu corpo salgado de mar quero sentir a dança do óleo
encontrando a água e fazendo cócegas no impossível mergulha teu inverno na minha
primavera há flores que só crescem quando a chuva vem beijá-las
e enfim
derrama tua sede sobre minha fome mostre ao mundo como nascem
amores insaciáveis.
Buenos Aires
eu não sou seus traumas antigos e as vezes em que foi abandonado. eu não sou
aquele seu amor de 22 anos que acabou pendurado na árvore do destino, esperando
para ser perdoado de todo o mal que te causou.
você ainda sonha com o que aconteceria se a vida não fosse sobre perder amores no
começo da vida adulta, tão natural como quando perdemos o dente de leite, a moeda
da carteira, uma parte do peito quando se relacionar é o pulo, sem precedentes, no
corpo do abismo.
eu não vou embora como os outros foram. e se eu for, acredite, você será a primeira
pessoa a saber. te contarei olhando nos olhos, em um lugar que merece a minha
completa verdade e todos os sentimentos que brotam em mim quando você está por
perto. não vou te negar sorriso algum, nenhuma dor sobre nós será escondida, eu não
vou embora de você como quem apaga a luz e esquece de voltar para acender.
eu não vou te abandonar como os outros fizeram. não farei da sua promessa em mim
um caminho distante, longe do que temos aqui e é bonito; tem luz. não vou
desaparecer da sua vida como uma nuvem no céu, sem presságio, e eu prometo que
toda tempestade que vier será para anunciar dias melhores, noites mais calmas e
solos preparados para florescer.
você ainda está em alguma avenida de Buenos Aires, o barulho dos carros soprando
em seu ouvido, o céu azul quente estrangulando sua memória, os espasmos no corpo
porque se dá conta de que ninguém vem te resgatar.
é por isso que, pouco antes de dormir, você treme e parece que vai afundar.
no entanto, estou aqui. passando na mesma rua que você. recebendo o mesmo sol,
avistando a mesma possibilidade, tentando compreender como é que ficam as
pessoas traumatizadas pelo amor.
eu posso ser seu lar, querido. abrigo para quando você precisar amansar os
sentimentos e dizê-los em voz alta. você não os diz com tanta frequência, há um
silêncio dançando frente à sua boca, uma Muralha da China que se alojou no mais
íntimo da tua vulnerabilidade, te impedindo de tentar.
há uma história que se perdeu durante anos dentro de ti e que te faz se sentir
inseguro rumo ao salto, à queda,
à glória.
rumo a mim, que estou ao teu lado da cama esperando pelo momento em que vais
abrir os olhos e me enxergar ali.
ácido desoxirribonucleico
vem
que te mostro todas as minhas cicatrizes e você me conta quem fragmentou seu
coração em pequenas peças, antes impossíveis de consertar, porém agora
perfeitamente vivas e à espera da
luz que irradia o corpo quando há espaço para celebrar (te celebro)
vem, que te mostro minhas músicas favoritas e te falo sobre todos os versos que
dançam no meu peito tarde da noite e você diz quem foram tuas últimas inspirações
para viver, por que teu cabelo tem esse corte,
por que carrega com tanta vontade todas essas palavras gestos modos medos marcas
cheiros tudo que eu quero morar no cheiro da tua nuca no momento exato em que a
respiração volta ao seu corpo lembrando-se do lugar de onde nunca deveria ter saído
quero ser eu a tua respiração que volta aquela que, por saudade, retorna à pele ao
sangue, ao coração
que eu quero saber por qual razão seu sorriso desmancha todas as minhas barreiras
e mancha as cercas que construí passando tantos anos sozinho e solitário pois quero
compreender por que depois de você a palavra solitário se tornou uma prima distante
que hoje desconheço um gosto amargo que minha saliva já não consegue tocar vem
comigo que eu te mostro como duas línguas erguem cidades inteiras com apenas o
calor de um beijo que te mostro como nossas células
podem se tocar e, ainda assim,
deus permanecer imóvel, intacto,
esperando pelo momento
em que finalmente nos amaremos sem retroceder vem comigo que eu te mostro onde
dói, mas não como alguém que compartilha, gratuitamente, o mapa do tesouro
perdido como quem sinaliza o caminho frágil
como quem demonstra a fraqueza que possui porque quero te mostrar onde, em
mim, há machucados pois acredito no braile dos teus dedos e sei que tuas mãos
jamais tocariam partes minhas que eu não consiga defender jamais afundariam
traumas em um espaço que foi reservado para adoração vem comigo que eu te
ensino a voar enquanto fazemos amor
enquanto fazemos o que duas pessoas fazem quando baixam a guarda e se permitem
a fragilidade
vôlei de praia
você está dormindo na cama agora como se esquecesse que respirar requer mínimos
esforços a cama está cheia de areia e o vôlei na praia durou quase cinco horas
estamos cansados mas não a ponto de destruirmos os nossos suspiros
as coisas mais simples são as que não dizemos mas aqui eu digo: não há nada mais
bonito do que te ver descansar
porque esqueço, por um momento, que há pessoas e ruínas lá fora.
escrivaninha
me deixe ficar aqui, entre uma respiração e outra, onde teu coração inflama, mas,
esperto, sabe como voltar ao corpo sem reclamar.
onde teu cansaço exprime no corpo arrepios, que te abraço e sussurro em teu ouvido
morto de sono que tudo ficará bem um dia, apesar de não saber sobre você
amanhãs
ou futuros.
me deixe ficar aqui, com tua cabeça sobre meu peito, admirando o porquê do tempo
parar quando
estamos apaixonados.
nada é tão certo na vida que não resista a duas pessoas se apaixonando.
nada é tão teórico no universo que não resista a dois corpos se reagindo e se
transformando em amor.
que quero ficar aqui, onde te vejo brilhar e onde sua luz nunca se apaga e
consequentemente a minha também.
tem sido bom viver fora da realidade, dentro de um sonho onde me sinto feliz e o
amor é leve, fácil, tranquilo e microscópico. onde as conversas se encerram antes
mesmo de entrarem no ringue e vestirem armadura; antes que nos arrastemos um
para o inexorável do outro, ao minúsculo, limitante, enfadonho do outro. onde ainda
podemos nos olhar com a paciência de gurus indianos, rumo à certa espiritualidade
que não se encontra em lugar algum.
eu quero permanecer aqui igual à vez que me sentei ao teu lado na varanda do
apartamento e, olhando para o cristo redentor, palavra alguma poderia revelar a
sacralidade do que ali estávamos fazendo.
quando estamos apaixonados, nada é grande demais que não possa se demorar no
silêncio e na paz que se acomoda quando o amor também está. nada, no universo,
pode ser tão incrível quanto duas pessoas sabendo se recomeçar.
sua respiração assombra a tempestade a cada começo
de noite
o soluço baixinho, como se tentasse entender por que pesadelos ainda fazem parte da
vida adulta
os olhos abertos mirando o céu azul de agosto
a vida acontecendo contigo e fora de nós um mundo ainda maior para ser explorado
se no próximo aniversário você será a pessoa que me acordará debaixo das cobertas,
tentando so le trar alguma palavra difícil da língua portuguesa, ou se estarei
longe, sem ousar pensar em você,
em nós ou nisso que chamo de sorte.
se você é só mais um cara que aparece porque a vida precisa me mostrar que ainda
existem pessoas que valem a pena, valem a
queda.
você apareceu porque eu precisava entender que toda queda pressupõe coragem para
se jogar e história para escrever na pele.
você é uma história solar que aconteceu no meio da semana inesperada de um junho
cinzento.
nada de jogos
montanha-russa
adrenalina no calor do espírito:
tudo maduro e crescido
tudo suficientemente calmo
e sereno.
os minutos que separaram meu sono do seu foram suficientes para que eu entendesse
sobre sorte e grandes encontros.
mesmo que amanhã nossas partidas de vôlei sejam marcadas por estranheza e
ausência de contato físico e emocional, a falta de intimidade existindo para além da
quadra.
mesmo que biologia seja apenas mais um curso que você fez, e não a história
cotidiana que você me conta sobre seu trabalho e como é incrível experimentar
células tão pequenas, mas ainda assim tão importantes para a vida humana.
escrevo este texto só para dizer que não tenho medo do que vem depois.
porque depois é uma palavra que só existe no futuro e eu quero viver o hoje, este céu
limpo, esta calma branda e estes dois dias,
que podem não se transformar em duas semanas ou duas décadas, mas que já cabem
vidas e entregas inteiras.
eu quero o momento inóspito e especial que a lua toca no mar quando ainda é noite e
as pessoas na cidade grande estão dormindo.
o momento exato em que a língua encontra com o que mata a sede, mas não a ponto
de fazer morrer.
eu não quero morrer antes de você entrar em mim e permanecer como permanecem
no ar as partículas de carbono, as saudades todas dissipadas em abraços longos de
namorados que não se veem há dias, amores que se encerram em esquinas e de
repente encontram-se no universo, no invisível e limiar das coisas impronunciáveis.
o que quero cabe nos teus olhos e, no entanto, ainda faz questão de transbordar.
o que existe no fundo no teu corpo, na tua pele, que guarda todos os segredos do
mundo.
eu quero o instinto que te faz viver e existir dessa maneira. os motivos que fazem
seu sorriso ser tão perturbadoramente bonito. e quero não apenas o sexo que alegra e
endireita as pernas pelas manhãs, como também a intimidade do que duas mãos
constroem quando finalmente encontram no prazer a paz de que tanto procuravam.
quando você me perguntou o que eu queria, meu coração parou de bater porque
querer é uma palavra limitada perto do amor que sinto por você.
não cabe aqui, nesse verso, universo, fantasia.
então preciso inventar outro país, outro planeta, outro mundo que dê conta de te
receber.
porque é injusto que seus pés pisem em uma esfera tão material, se tudo o que senti
até aqui é infinito e expansivo; se tudo o que você me deu não cabe nas mãos de
deus; se até mesmo deus se surpreendeu contigo atravessando minha vida feito
meteoro não anunciado.
o que quero
o que sempre quis
e não sabia
é você, meu bem.
Lapa
você sentado ao meu lado num domingo à noite e a cidade está em festa porque
alguém no mundo se sente preparado para o amor. o Brasil perdeu ontem para a
Argentina e a Lapa inteira se distraiu com a tristeza de um sábado que existia fora do
final de semana. você tem olhos carentes, mas nada no seu corpo parece esbravejar
essa tua fome de atenção. me pergunto quem te negou afeto para que hoje você
apresentasse mãos tão abertas para o universo. eu gosto de você, estamos na quarta
semana desde que nossos corpos criaram algum tipo de vínculo, necessidade,
exatidão, e ainda assim acredito sermos dois pontos distantes duma mesma reta. o
dia foi agradável, o céu azul-celeste rodopiou sobre nossas cabeças na hora do
almoço e a comida que você preparou com mãos tão atenciosas disparou nos nossos
estômagos uma espécie de conforto. de repente não existe uma doença matando
tantas pessoas e arrancando tantas lágrimas de rostos que nunca sentiram o gosto
salgado do que sofre; de repente não existe uma insegurança estrangulando meu
pescoço e acabando com minha respiração; de repente não estamos no Brasil no Rio
de Janeiro em alguma rua da zona sul rodando rodando rodando. estamos de peruca
dançando músicas incessantes e engolindo o momento como fazemos com algo do
qual nossa boca sempre sentiu falta, mas não sabia como pedir. então ela se viu
saciada comigo dançando na sua frente, te pegando pela mão, te guiando pela sacada
do apartamento, rindo de felicidade e por entender que, mesmo em meio à solidão,
nós ainda dançamos. mesmo em meio ao caos à guerra à morte a tudo, ainda
conseguimos olhar para o céu e imaginar uma outra vida, encená-la solene no espaço
entre um terror e outro, na brecha do mundo que escalamos com pés curiosos, para
descobri-lo, encantá-lo, recriá-lo. você está aqui, estudando a concentração de
elementos químicos e tentando entender por que este caminho e talvez por que eu.
ontem, na praia, tivemos aquela conversa tão terrível. eu disse aquelas palavras, tão
duras, tão secas, tão intragáveis, tanto que a língua, ao despejá-las, recrudesceu
depois, atrofiando-se. a sentença: o que somos? o que você quer?
hoje eu senti algo próximo a amor pela vida quando estive com você. tudo parecia
no lugar porque você também parecia. não havia medos descrenças outros desejos
inseguranças altares palcos nada. não havia comparações inúteis e insolentes não
havia pensamentos de você indo embora ou de mim mesmo indo não havia
abandono dor tristeza lágrima ou chuva. tinha sol. tinha um silêncio apaziguador de
vizinhos que estavam dentro de suas casas aproveitando o domingo como se
aproveita banho gelado de um mar que sente saudade de pele, do arrepio primeiro de
um corpo que há muito tempo não sente o gosto frio do oceano. tinha uma esperança
em cada gesto, de cada movimento, nos braços e sorrisos das minhas irmãs. tinha
acalento no olhar dos meus amigos me dizendo que eu estou mesmo apaixonado.
tinha uma espécie de fio condutor que alinhava todos os porquês, recolocando cada
ferida aberta em seu devido lugar. hoje não era dia para sentir que mesmo gostando
muito de você, isso não é para mim. hoje eu sou os fogos de artifício dançando à
noite no céu da cidade.
blues da piedade
quantos impossíveis cabem dentro de uma história?
teus olhos são tão bonitos. duas paralelas sobre sua íris e nossos corpos não se
conversam, receio que não se conversariam nunca. quantos impossíveis vivem no
espaço entre minha boca e a sua? te conheci no momento mais inóspito da vida,
quando minhas mãos apalpam outras e meu peito pertence a outro território. quantas
chances vamos perder pela impossibilidade do destino ou simplesmente pela vida?
esta que nos arrasta e surpreende; que assusta as pálpebras; que incendeia o peito;
que arrasta as certezas e muda os móveis de lugar; que transforma lugar em uma
palavra desestruturada, sem forma alguma, seca, oca, triste, magra. o que faço com
esse desejo se estou preso aqui, nesta parte da praia, onde teus pés ainda não
conheceram? se você chegou e deu uma rasteira em todas as minhas emoções, se eu
achava que estava a salvo do amor profundo e da paixão avassaladora, se pensei que
estivesse protegido, que tivesse erguido montanhas e vulcões, estendido peles e
opiniões, criado cascas e proteções; se pensei, por um momento, que nada arrancaria
de mim o ar e a respiração trêmula e sôfrega; se pensei, por um momento, que estava
livre de sentir o sangue quente correndo e correndo, solto feito pipa; se achei que
finalmente o amor estivesse longe de mim, de meu corpo esguio e mãos desastradas.
tem algo tão bonito sobre a maneira como você estende as palavras, lentas, no ar.
dizendo coisas sobre a beleza da vida, a tessitura da existência humana, a força os
chakras os chás as orações os países que visitou os tipos de café que experimentou
os mares que viu com olhos vivos e latentes. “me encanta tus ojos” te escrevo aqui-
agora. te escrevo porque é na escrita que a impossibilidade regressa à sua origem, à
primeira palavra, à sua mãe. porque possibilidade, aqui, nestas palavras, ganham
profundidade, eco, fé. pois acredito com força, com a benção divina, com a certeza
imiscível das marés que alagam, mas nada levam; com o destino imutável, no
entanto sempre certeiro, ao qual estamos atados, estaríamos se pudesse. porque
quando escrevo, impossível é apenas um estado em que fico depois de te encontrar e
esbarrar na tua energia. é impossível não se encantar por você. é impossível não
querer viver um romance e dançar Cazuza na praia enquanto o sol nos abraça e nos
concede o calor ameno daqueles que se querem e querem inventar o amor, mesmo
que não exista uma vida para contar depois. eu quero continuar escrevendo aqui,
através desta porção mágica de palavras postas uma ao lado da outra, porque é
possível nos recriar, inventar o amor, nos fazer feliz e se distrair das coisas que não
existem, que não existiram nunca.
uma primavera no meu outono
como é ter uma bomba dentro de cada sentença falada ou marcada na tela do celular,
no centro das contradições, nos elementos da vida cotidiana, tão solitária, em seus
prédios apartamentos
forças maiores.
não sei quem te rasga o peito, quem te arranca o ar, quem te empurra para o
precipício, quem é o teu próprio precipício dançando na frente do infinito.
sei apenas que desde que te conheci algo em mim convulsionou e não voltou à tona.
algo em mim se partiu em mil pedacinhos que não voltarão nunca, jamais, em
hipótese alguma, a respirar. algo em mim sacro, insolente, mais ilimitado do que o
céu e os pássaros do céu; mais expansivo do que o ar e tudo o que nele se prende e
se contém; se perdeu e nunca mais voltará para se buscar.
o sangue errou o fluxo, as ideias foram dormir comigo à noite e gritavam gritavam,
as horas do dia se desmancharam no relógio de si mesmas, à la Dalí. o surrealismo
que foi te encontrar transcendeu o tempo as horas os presságios e qualquer fuso-
horário que em tese separariam pessoas conectadas pelo fio condutor da vida.
três horas nos separam no mundo, mas as emoções parecem estar no mesmo lugar.
isso significa dizer que no lapso do tempo e do universo ainda é possível te
encontrar. ainda assim, mesmo no encontro, quando estamos diante do mesmo
desejo e da mesma força motriz em que habita a paixão, te desconheço.
não sei nada de ti a não ser que acreditas com força nos astros e na bondade
humana. que olhas a noite com olhos de menino desencontrado e que sentes
saudade de tudo o que nunca te afundou o peito, de tudo o que esqueceu de te achar
para te vestir ou honrar com luz, de tudo o que, de tão magnífico, nunca beijou os
teus lindos olhos.
o que estou fazendo comigo mesmo?
me questiono sempre que penso em você.
paixões proibidas existem para nos tirar da linha razoável do viver cotidiano. é
preciso um pouco de adrenalina para sentir a vida te abraçando e te tirando de órbita.
o mundo se desmanchando em água em terra em sonho. não sei nada de ti, mas
invento, interrompo, e assim escrevo. não sei qual cheiro dorme em teu pescoço,
quem dormiu na tua cama nos últimos dias, quem te feriu e hoje carrega um pedaço
de ti nas próprias mãos; quem te carregou em mentiras e te levou embora de si
mesmo; se janta com teus amigos nas sextas, fazes amor aos sábados, te apaixonas
aos domingos. quem te rouba ar, quem devolve. quem tira tua roupa, quem coloca
todas elas no lugar; quem te olha nos olhos e sabe da raridade que encontrou, quem
recebe seu olhar e sente na pele que foi encontrado, o quão raro é.
agora, em alguma parte deste mundo grande e cheio de retalhos, gosto de pensar que
você também pensa em mim. que se deita na cama, olhando para o teto, e propõe
filosofias, teorias de como teria acontecido se tivéssemos nos dado outras chances,
se no calor da loucura e do pulo teríamos voado ou nos esborrachado no chão, se na
física do voo teríamos nos encontrado ou quebrado em partes coaguladas. que
pensas sobre o que eu te disse, de termos acontecido errados no tempo que é sempre
certo, de termos nos esbarrado na fila de um viver que não estava preparado para nos
receber, de termos um enxergado no outro sentimentos que estavam tão escondidos,
sedimentados, atolados, que mesmo querendo demais era quase impossível senti-los
ou revivê-los.
que tu também imagina que poderíamos ter ao menos tentado sair dos pensamentos,
escalado as tais paredes imaginárias e traumas do passado rumo a esta parte que nos
daria um pouquinho de felicidade e paz num mundo cheio de tormenta; que se
tivéssemos arriscado um pouco mais; que se eu não tivesse tantos medos
adolescentes e pensamentos inseguros; que se eu não engolisse o próprio silêncio da
mesma forma que engulo a comida que não como há meses; que se eu não tivesse
tantas questões a serem respondidas, talvez.
danço sobre eles como quem não sabe o que faz. festa? choro? alívio? a dúvida é o
que corrói todos os movimentos que faço durante o dia. se te penso, penso logo na
história que se escreveria depois dos nossos corpos unidos. imagino logo como
seriam os dias as noites o sexo meu corpo colado ao teu e nossos ouvidos silenciosos
e atentos à Bethânia Gal Costa ou qualquer outra artista que você gosta de ouvir,
como seriam as discussões as ausências e os dias em que não conseguiríamos nos
falar, as saudades saturadas em videochamadas, você do outro lado do mundo, eu
deste, te esperando chegar e trazer o gosto da intimidade debaixo da língua, no
tecido da saliva, na profundidade do beijo.
que se penso muito sobre ti, me pergunto se fez sentido para o teu corpo. se você
também ficava estremecido com qualquer palavra ou momento de conexão mais
profunda, se os pelos eriçavam e dançavam ao menor sinal de toque, se a pele era
uma pista de patinação artística em que o atleta dançava belamente sem nunca cair,
se mesmo assim a pele estremecia e desmanchava como se milhares de patinadores
dançassem e se jogassem no ar.
que há 32 anos teus olhos enxergam primaveras perfilarem metáforas sobre perder
para ganhar; que química era tua matéria favorita no colégio e que hoje sabes como
e de que são feitas as paixões no cérebro humano; que beleza é o teu trabalho, mas
também o teu caminho; que pessoas como você foram feitas para voar e que
eventualmente encontram pessoas como eu, ainda com pés medrosos e atados ao
chão.
Praça XV
lembro de levantar os braços enquanto corria e gritava teu nome pela Praça xv do
gosto da adrenalina que serpenteava pelo meu corpo à medida que a cidade
começava a abrir os olhos para a noite
– as festas estavam prematuras ainda – e para o amor,
já que casais se beijavam,
avançando sentimentos contra semáforos vermelhos, prestes a atravessarem
eu lembro de você correndo atrás de mim cheio de alegria e de olhar nos seus olhos,
dizendo “há quanto tempo não sinto isso”
era a paz de uma família de ursos encontrando o alimento depois de dias à procura a
felicidade de um circense que se desmancha em lágrimas ao ver que o espetáculo fez
lotar uma arena, emocionar crianças e adultos era a segurança de ver em teu cuidado
a queda de todos os meus traumas o terror de todas as inseguranças a frustração de
todas as minhas angústias que já não teriam onde morar de te dizer
“temos apenas mais dois dias juntos”
e você gritar para quem quisesse te ouvir algo como “o que é eterno não sabe
durar”
e então rimos choramos
rimos de novo
e tornamos a chorar
um lamento de quem sabia que o amor que sentíamos um pelo outro continuaria
apesar da distância e dos atrasos
das agendas difíceis e dos que nos separariam quilômetros
talvez para sempre talvez até mês que vem
e depois nos abraçamos ali pela Avenida Rio Branco já quase onze da noite
os blocos de carnaval começando os cortejos a chuva fina querendo dar o ar da graça
colocando suavemente a mão em nossas costas tentando aparecer na fotografia da
redenção e com os olhos marejados e apenas o desejo de que as pessoas as quais
amamos perdurassem nas veias e nas esquinas
seguimos cantando
uma marchinha
uma música
o doce fim
como eu te amei ali
naquela rua onde tudo ferve e acontece onde nossas preocupações fenecem e dão
lugar às mais legítimas e rasteiras alegrias onde casais se amam e depois vão embora
como se não tivessem retirado um o gosto imaculado do outro onde o tempo é
apenas um menino cuja compreensão não sabe que crescer dói e arranca um pouco
da nossa capacidade de sentir mas estávamos sentindo deus
como sentíamos
mesmo assim nos beijamos você me ensinando novas palavras em inglês as vidas
interpondo-se como se fossem folhas de papel-manteiga
o universo rindo da nossa cara ousadia ou simplesmente entrega adolescêntica-
maluca
foi bom
como foi bom
viver você
respirar o mesmo ar que teu nariz sentir o cheiro do teu suor escorrendo das
têmporas enquanto fazíamos amor
fazíamos arte fazíamos
poesia
sentir que de alguma forma alguém me conhecia e que isso acontecia em um tempo
recorde como se o relógio não soubesse de si não vestisse sua roupa usual estivesse
errado
existisse ao contrário
no entanto ele nunca erra por isso estamos aqui agora você do outro lado do oceano
eu deste lado do mundo
e a lembrança de quando a vida parecia mais real e menos inventada.
joy / alegria
eu pensei que chorar de felicidade fosse um estado descrito na bíblia com a intenção
de nos fazer acreditar que é possível encontrar com deus e ainda assim se manter
razoável
depois
eu pensei que chorar de alegria fosse uma metáfora para as coisas que fogem de
sentido
como por exemplo quando você faz amor pela primeira vez com a pessoa certa
no momento certo
no lugar certo
e tudo é tão incrível que você chora porque a probabilidade disso acontecer seria a
mesma de um camelo passando pela cabeça da agulha: impossível
e por último
eu pensei que chorar de alegria fosse o céu para os santos em Cristo aqueles que se
guardariam do mundo de maneira tão intacta que, chegando no paraíso, descobririam
que o grande prêmio pelo feito conquistado seria cem anos com o silêncio cem anos
convivendo com a própria presença mas aí eu encontrei você.
e você me disse que a sua palavra favorita no mundo era joy
que poesia era um animal que dançava no quarto enquanto fazíamos amor que o frio
da cidade era apenas a respiração de Deus concedendo aval sobre os nossos corpos
naquele dia eu descobri o que chorar de alegria significava.
era como regressar à primeira vez que olhei nos olhos da minha mãe quando a vi me
segurando nos braços e dizendo: seja bem-vindo, meu filho era como me olhar no
espelho e não sentir medo de mim – todos os meus demônios haviam fugido era
como passar as mãos sobre feridas que me habitavam
e descobrir que elas tinham pedido férias intermitentes nunca mais voltariam para
me beijar chorar de alegria foi o poema que escorreu dos meus olhos quando te vi
quando desejei ter te conhecido antes mesmo sabendo que se realmente tivesse
acontecido
talvez nunca estivéssemos presos pelo laço da conexão
– porque se nós pedirmos ao tempo que ele esteja mais ao nosso favor do que ao
dele
podemos perder mais do que ganhar e eu não queria te perder – então eu só respirei
fundo coloquei minha mão no seu rosto bonito e cheio de luz e te falei: joy
eu vou tatuar esta
que será a nossa palavra e bem
o que tem debaixo dos seus olhos quantos furacões e tempestades desilusões e
apertos no peito?
por quê?
por que você a machucou?
e o que me garante que você não fará do mesmo jeito comigo
a mesma queda
o mesmo escanteio e o gol com a cabeça as mãos
a mentira?
o que você esconde quando está longe de mim?
e quando está muitoperto?
o que você não me disse ou disse mas de maneira silenciosa e eu não peguei?
o que deixei de pegar
ouvir
querer
me conta
não, não me conta me espera descobrir quantas ilhas podem habitar teu arquipélago
quanto gozo posso tirar de ti quantos eu te amos há na tua língua quando ela começa
a dançar e a pedir pela minha quantas súplicas há nas tuas mãos cada vez que nos
encontramos quantas segundas-feiras podem caber em uma semana que não suporta
começos se todo começo para nós é uma oportunidade de crescer evoluir e nos
tornamos outros o que tuas pálpebras escondem quando se recolhem
quando você se fecha e de repente já não há nós
e nó é apenas um estado onde nos sufocamos
e deixamos nossas mãos se afastarem?
quando você some por dias e dias e eu te procuro nas brechas que o sol concede às
janelas do meu quarto quando teu silêncio é o único idioma que nos conecta e o
vazio começa a dar cambalhotas fazer ginástica
ganhar medalhas
enfim se alargar entre nossos intervalos eu tenho tantas perguntas para te fazer mas
não responde agora não diz nada
só fica aqui
você sorriu enquanto contava aquela história engraçada de como tinha caído
justamente na hora que dançava no baile da escola. todos à sua volta chorando de rir
de como uma garota tão alta poderia ser tão desengonçada. a feição do rosto
confortável como se finalmente tivesse encontrado alguém em que pudesse
descansar. alguém que ouviria pacientemente não apenas esta, mas todas as outras
histórias que você carrega e não conta para ninguém por medo de rirem ou não se
importarem. e você gosta tanto dos detalhes, de ver com os olhos flamejantes e
curiosos pela vida, pelo mundo.
do outro lado alguém te espreitava e paralisava o olhar em sua boca enquanto você
contava sobre como estava o humor, as horas de trabalho, a solidão da vida de
solteira, a solitude da vida adulta. alguém que não te interrompeu porque enquanto
você falava era necessário o respeito a este espaço de entrega e doação. é tão
necessário o espaço entre o que a boca fala e o ouvido acolhe. entre o que a língua
induz e os olhos silenciam.
alguém cuja visão repousou na sua presença enquanto você contava sobre como
havia sido machucada da vez que o amor te encontrou. e então, como se prestasse
atenção em um pássaro raro, cujo voo acontece em dias espetaculares, te percebia e
deixava que você também alcançasse voo. rumo a uma nova frase, sentença, beco,
risada, choro.
você parecia estar de frente para o oceano contando as histórias de como caiu
bêbada na rua, de como se apaixonou pelo primeiro cara que te olhou nos olhos, de
como fugiu do estado para casar com outra mulher, como no auge dos 35 abandonou
o trabalho e foi fazer trabalho social no Sri Lanka. seu peito era aquele píer onde
ficam as caixas com os fogos de artifício esperando dar meia-noite para enfim
existirem no céu carioca. você era aquela faísca primeira que arranca o grito da boca
do turista que foi para a cidade maravilhosa apenas por este momento lancinante de
felicidade. você era a pessoa mais feliz do baile da escola do bairro que odiava. você
era a música estonteante que entrava pelos ouvidos, serpenteava pelas células até
chegar no centro do coração. você era a bailarina acesa, astuta, infinita dançando
uma valsa, uma sinfônica de Beethoven,
o gol pedido, implorado que acontece nos segundos finais da partida que mudaria o
curso das nossas vidas, o choro inesperado, preenchido, transpassado de uma
emoção que não tem nome. você contando sua história e sendo escutada como
escutados são os cardumes incomuns que vivem em partes do mar nunca antes
encontradas; construídas e pensadas apenas no consciente humano.
você estava tão feliz que seu corpo não se deu conta de que finalmente havia
encontrado alguém cuja escuta era mais importante do que a fala. alguém cuja escuta
era mais poética do que qualquer palavra ou tentativa de verbalizar.
observar
o amar
mover montanhas.
– perspectiva
ei
preste atenção.
– autocuidado
me cansar dos passos
e recorrer ao descanso
como quem precisa olhar
para dentro
para trás
para si
– ceder
afasta de mim o desejo de aprisionar as pessoas que amo em projeções desonestas e
expectativas desleais. me liberte da necessidade de sempre pertencer a algo ou
alguém. me livra, senhor, de me alimentar com mágoas espessas e rancores mais
profundos que o mar.
– súplica a deus
choro
isso. engole o choro. você precisa acordar no dia seguinte e trabalhar. fazer reunião
de equipe logo pela manhã, falar sobre as metas da semana, quanto a empresa
faturou no ano fiscal, o quão difícil tem sido decifrar aquela planilha no Excel. não
ceda agora, você não pode se mostrar tão vulnerável para os seus colegas de
trabalho. se precisar, corre para o banheiro e lá desabe, chore tudo o que precisou
guardar durante esses anos, todas as brigas abafadas, desentendimentos mornos e
inundações suspensas no ar. você precisa pagar a conta de luz, de água, o boleto da
internet, o supermercado, as idas aos restaurantes com pessoas para manter a
aparência e a etiqueta social. a cama precisa ser arrumada, tem sapatos perdidos pela
casa toda, a areia da gata está suja há pelo menos três dias. engole o choro. você tem
fotos da viagem do mês passado para postar no Instagram. comentários para
responder, que estão perdidos há semanas na caixa de mensagem, inclusive de
amigos, perguntando se você está melhor, se conseguiu ir à terapia, se está
conseguindo se alimentar direito. está? mas não chore agora. engole a lágrima e vá
encontrar aquela sua amiga que gosta tanto de falar sobre si mesma – e você, de
ouvir. porque você é uma bacia sedimentar onde as pessoas se acham no direito de
despejar todas as histórias sem ao menos perguntar: posso? não pode não, você
pensa, internamente, mas continua lá, ouvindo e ouvindo. engole o choro. você tem
que estudar para a prova de cálculo da faculdade. tem que apresentar um trabalho
importante na semana que vem, não há tempo de sofrer por ele. ainda restam as
questões do exame da habilitação que você precisa rever. ainda há as reportagens
que você precisa ler sobre política e saúde, ficar inteirada na barbárie do país, alguns
de seus amigos te esperam em um barzinho agora. não há tempo de chorar, eu sei.
quando tem, é debaixo do chuveiro, onde lágrima e água se misturam e se perdem
dentro do contexto. você chora lá porque ninguém te demanda emoção alguma e
porque nenhum trator social passa por cima de você. mas esse choro que você quer
chorar no metrô? para quê? ninguém vai te ouvir mesmo. esse buraco, do tamanho
de uma ferida aberta na superfície do universo, ninguém vai preencher. ninguém vai
retirar o peso de dois elefantes dos seus ombros; retirar o acúmulo de dor e mágoa e
raiva e tristeza de cima do seu peito cansado. então engole isso. passe por cima da
sua dor porque tem uma construção ao lado de casa desde as nove da manhã
acabando com a paz e o silêncio do apartamento. os cachorros da rua gritam, pedem
socorro. o carro do ovo está lá fora, anunciando a promoção da semana. e você ainda
tem que falar com seus pais, se fazer presente em suas vidas, parecer feliz ou
satisfeita. ninguém pode saber que dentro de você uma ansiedade gera filhos.
ninguém pode saber que seu sangue brinca de montanha-russa enquanto você tenta
se equilibrar entre ser boa para as pessoas e estar viva. você está viva? não responde.
só engole o choro de ter sido abandonada e trocada por outra mulher. engole o choro
de ter sido colocada em um lugar de múltiplas ausências e abstinências emocionais.
não incomode. não fale alto da sua dor. não comente com seu chefe que uma crise do
pânico segurou teus pés hoje e os impediram de levantar da cama e ser produtiva no
trabalho. não fale para a sua melhor amiga que você passou as últimas doze horas
deitada de bruços na cama, sendo engolida pelo calor da tristeza e amargura. não
conte aos seus seguidores que todos os domingos são tristes e infelizes: você dorme
às nove da noite para não pensar. performe. trabalhe. seja incrível. seja indestrutível.
impenetrável. inalcançável. e se quebre inteira, longe, distante, onde nenhuma
pessoa chega ou quer saber. que de solidão em solidão, a cada trancafiamento,
vamos nos matando, nos aniquilando, nos colocando nas mãos de uma vida
miserável e muito, muito comum.
stoned at the nail salon
existe uma angústia no coração das pessoas que ultrapassa o pânico cotidiano na
bolsa de valores a crise financeira na bolsa debaixo dos nossos olhos a crise política
no bolso dos homens poderosos algo além dos amores não correspondidos e das
festas regadas a álcool e solidão algo menos sólido e mais extenso menos material e
mais infinito
algo menos concreto e mais filosófico e talvez, quem sabe, mais doloroso porque
com o dinheiro ainda se consegue elaborar sorrisos mas e com a falta de amor e
empatia?
quanto carinho afeto e paz se compra com bilhões de reais ou misérias
com quantos prédios se barganha a fome de milhões de brasileiros que nunca saíram
de suas casas viram o mar
sentiram a brisa leve dos ventos grávidos de futuro?
injusto não encontrar o amor da vida se apaixonar pela primeira vez ir a um primeiro
encontro
se emocionar com o sentimento de finalmente ter alguém
com o qual dividir as lutas e o espírito o apartamento e as contas
a angústia e o prazer da felicidade é injusto morrer porque a morte leva tudo: a paz
dos dias a esperança das noites e a luz das manhãs ela leva os aniversários as datas
especiais
as comemorações de fim de ano leva os presentes que
seriam comprados
as surpresas ao recebê-los
as risadas ao compartilhá-los a morte é feia pois ela leva os quilos do corpo dos que
ficaram para honrar aquela memória
o apetite da boca e a saliva da língua viram estados inexistentes e inexpressivos e a
sede apenas mais um nome irretocável, que se deve respeitar é injusto morrer porque
não sabemos o que encontraremos do outro lado se haverá um deus com os braços
abertos e um sorriso do tamanho da terra ou apenas o breu e a inconsciência eterna –
se na morte descansaremos ou apenas continuaremos a sobrexistir é injusto morrer
antes de ver o mar e de ver os olhos do primeiro amor antes de conseguir dizer eu te
amo uma última vez
uma primeira
é uma dor que não se modifica. afunda tenra na membrana do peito. prende a
respiração e entorpece a fala, agride qualquer possibilidade de voz. é uma dor
infinita, que toma o corpo como se roubasse todo o ar do ambiente. o pescoço
pressionado contra a apatia de um país pequeno apesar de continental. a vida
amordaçada pela desesperança de que a gente consiga sair dessa vivos. vivos? a
troco de quê? que passaremos por isso não me resta dúvidas. mas como ficaremos
depois do fim? da tragédia que se encorpou à pele e virou tecido, órgão, células. se o
horror virou um corpo para o qual olhamos todos os dias com os olhos
desassustados? é uma falta de sentido que dói até os mais desconhecidos dos
lugares. que fere de ausência qualquer parte nossa que ousa reagir. que estapeia
nossas vontades pequenas e espatifa no chão a adrenalina da vida correndo lá fora. a
morte é horrorosa. é ridícula. é estúpida. mas sobretudo humana. e é por isso que dói
ainda mais. dói porque faz parte do ciclo já aceitado da existência. sabe-se que virá
em algum momento inerte. que levará alguém que amamos ou mesmo a nós sem
pedir licença, sem bater na porta, sem explicar-se. ela vai tirando e se alimentando
da angústia dos que ficaram para contar história. e meu deus... como é ruim ter que
contá-la. ter que dizer assim: ele era tão especial. ela era tão incrível. a risada dele
era tão contagiante. a voz dela era o som mais especial que já ouvi na vida. e de
repente um choro que gangrena até as mais fortes e firmes gargantas. uma lágrima
que pesa o tamanho de elefantes africanos. uma dor, mas uma dor, que não se
descreve em livros ou em bibliotecas. uma dor que não se mede com a quantidade de
letras colocadas uma a uma na intenção de explicar como é viver mesmo após
alguém levar um pedaço da gente. uma dor que não cabe no dicionário humano
porque, como humanos, não sabemos como é ir. a morte é ridícula porque nos retira
do eixo e da linha razoável que mantém o mundo funcionando. e quando perdemos
alguém que amamos, assim, inesperadamente, aí é que dói mais. e a dor vai se
misturando à respiração, que porventura se mistura à saliva seca e à língua morta de
vida e, enfim, cai irrealizada no calabouço que chamamos de corpo. e não há culpa
na morte. não podemos culpá-la de existir em sua tarefa de impedir que soframos
mais ou que existamos em um tempo errado. não podemos olhar em seus olhos e
gritar, espernear, pedir de volta, implorar que os dias voltem atrás, as semanas
regridam, os meses peçam para morar, novamente, nos anos anteriores. a morte é
irreparável e irreprimível. insolente e íntegra em sua própria vontade. ela não renega
sua hora, ela apenas chega e vai. e que infelicidade a nossa. que infelicidade sermos
tão pequenos, frágeis, materiais, que tão fácil é nos levar. que é tão tácito,
irrecuperável, irresistível nos levar. e não há poesia na morte. não há do que se tirar
um sentido ou uma sabedoria que poderia curar o mundo do choro de perder. não há
lição sobre se despedir de alguém que se ama muito. não há aprendizado sobre
deixar de olhar no olho vivo daquele que te faz se sentir brilhando no mundo. que
ironia. que ironia estarmos vivos enquanto outros estão à beira de encontrá-la.
lúcida, dura em si mesma, inegociável. quando é hora, é hora. quando é tempo, é
tempo. é sempre a mesma dor, o mesmo horror e o mesmo susto. a dor não para de
doer nunca. procura sempre outro motivo para latejar e existir serena.
evermore
carregamos tantos vazios cheios de mágoa que não há tempo para relógios um pouco
atrasados para encontros adiados pelo destino agendas desajustadas de pessoas
também desajustadas para conversas que não voltam no tempo e perdões que devem
demorar a aparecer
sinto que afogamos nossas solidões em piscinas rasas de condomínios caros para
escaparmos de não saber ou lidar mas deixar que nossas agonias flutuem no mar da
dúvida
ainda é abrir os braços para o incerto e esperar que o mundo não afogue nossos
sonhos e para festas levamos todas as nossas dores na esperança de que se sintam
menos sozinhas ou despercebidas
atravessando drinques e corpos alheios tatuando beijos e transas desconexas sendo
palco para dias seguintes e romances que duram
o infinito de duas semanas
(o tempo é uma sutura do universo)
havia tanta pressa em consumi-lo que esqueceu de conhecê-lo. tanta sede pelo sexo,
pela língua deslizando quente pelo corpo, pelas mãos descobrindo novos mundos,
que se esqueceu de olhar no olho, exprimir da pele o encantamento. foi ao encontro,
à transa marcada para o meio da semana, para o fim de si mesmo, sem perguntar.
sem se questionar se era isso que queria, como queria, se estava tudo bem. estava?
mas também não se permitia perguntas. não se permitia grandes discussões ou
debates sobre como se arrastava de lugar em lugar a fim de encontrar um conforto,
quando o conforto poderia achar no próprio colo. foi tão avulso ao encontro dele,
que esqueceu de desmembrar o que no outro era humano, imenso, colossal. o que no
outro era vivido, ácido, contemporâneo. o que no outro se mexia, vibrava, pulava
feito fantasia de carnaval. ele acreditava estar ali por conexão, fome de mundo,
curiosidade ou mero prazer, mas mal sabia que sua fome, na verdade, era de afeto.
de algo mais profundo e oceânico. de um carinho que atravessa todas as camadas da
pele, que inclusive chega a ferir o território do orgulho. ele tinha fome de comida
que língua alguma supre, que beijo algum sacia, que sexo algum provê. a fome de
encontrar um sentido na vida, uma explicação para o mundo, um rumo para o viver-
nos-cantos. ele queria revirar os olhos, satisfazer a libido, encantar a ponta do tesão,
mas estava fraco, enterrado na própria solidão crua e fria e concreta. uma solidão de
anos, pois fazia anos que não encontrava com alguém que lhe tirasse do prumo, do
eixo, dos sonhos. e então fechava os olhos, abria a porta de casa, e ia. ia tanto, ia
muito, ia sempre. ia como se fosse para uma guerra, um encontro fatal onde dois
corpos finalmente colidem para que se desmontem e vivam aos cacos. para que no
dia seguinte não tenha telefonema ou mensagem ou pedido de desculpas ou tudo
bem com você? porque no dia seguinte o atrito fará dos corpos dois continentes
ilhados e sozinhos em suas próprias margens, limites, suposições. ele permanecerá
sozinho na rotina do trabalho, emprego insuportável e vida brutal esperando ser
engolida pelo isolamento; o outro continuará sua vida lendo artigos acadêmicos e
bebendo caipirinha com os amigos aos fins de semana. enquanto isso, a solidão
cresce, se expande, fica comprida no meio de duas pessoas feitas para se conhecer,
mas que só se consumiram, colidiram, se espatifaram no chão da vida. miúdos,
solitários, mas perfeitamente humanos.
macarrão instantâneo
solidão é o miojo que você faz às dez da noite de uma terça-feira em que o trabalho
só não puxou seu cérebro para fora porque depois o processo trabalhista seria
desgastante
solidão é a sua espera por mensagens que nunca vão chegar você pega o celular pela
manhã como se pegasse a atenção da sua mãe e amarrasse no próprio pescoço a
ansiedade de ler a resposta de uma pessoa específica mas não está ali o texto que
seus olhos esperavam absorver como absorvemos mentiras ditas repetidas vezes não
está ali
as palavras que sua retina gostaria de abraçar
a conversa não acordou junto com o seu sono e solidão é você andando pela casa
procurando respostas para as perguntas que fez na noite anterior eu te entendo: a
gente costuma cavar um poço dentro de outro quando nos sentimos perdidos mas
neste ponto
todos nós estamos, não é?
sozinhos e perdidos
por exemplo
você não sabe que sua colega de trabalho tem depressão e toma remédio todos os
dias ela não sabe que você chora no banheiro
porque faz dois meses que terminou um namoro e ainda assim
o barulho das lágrimas e a falta de respostas são as únicas companhias que te
aguardam à noite
mas estamos
todos bem, não é?
temos uma boca para ser alimentada a expectativa de receber a mensagem amanhã
de manhã
a playlist de vídeos feita sob medida um trabalho que paga as nossas contas os
comentários nas fotos do instagram e o miojo instantâneo de três minutos
e cento e oitenta segundos.
eu quero saber tudo mesmo que tudo seja uma palavra muito
comprida
fale onde dói, mas especifique a dor, que é para eu saber aonde não ir,
onde não pisar meus pés ignorantes e tão alheios.
me conte sobre quem te machucou o coração quem fez você desacreditar no amor,
repreender o amor, amaldiçoar o amor.
e quem fez você acreditar novamente; o que houve para que seus olhos brilhassem e
retornassem ao mundo outra vez.
me conta que eu quero saber tudo mesmo que tudo seja uma palavra grande demais
para caber nesta conversa.
esta dor que te queima vivo agora que te questiona e te arranca para fora do conforto
a dor que te pede por respostas impossíveis e dias amenos felizes completos
a dor que te pede bem-estar e sorrisos falsos palavras prontas sempre que te
perguntam como você está
mas eu te pergunto
qual dor é eterna?
qual estrela, queimando anos em solidão, permanece acesa no espaço?
qual ferida existe inexorável no corpo humano?
qual lágrima continua rolando pelo rosto de quem nunca se emocionou com a chuva
caindo e a vida existindo e o planeta em rotação ininterrupta?
que dor se atreve a te habitar até que em ti não exista nada a não ser matéria poeira
cósmica
cinzas?
olhe para os dias quando doer e observe como tudo é temporário passageiro
febril
olhe para a beleza das nuvens atravessando, por teimosia, o rosto do sol mire a lua,
que, em sua complexidade iluminada, deixa de existir por muitos dias na superfície
da terra observe o mar
e como ele usa de sua ressaca para avisar que no dia seguinte haverá sossego é isto
que estou tentando lhe dizer: haverá sossego e descanso em sua dor.
lista para ler antes de rodopiar na rua enquanto chove
1. você vai errar com pessoas que ama. vai ser imaturo, birrento,
egoísta e ruim. você será ruim com pessoas que ama. e o remorso, a
culpa ou o sentimento de “preciso voltar atrás, aqui neste ponto’’ poderá
aparecer pouco depois da situação ou poderá demorar meses, quem sabe
anos. é importante você ter em mente que, sim, isso é um aviso para
voltar àquele momento que te dividiu e te tornou diferente do que era
antes para o que é agora. o lapso de consciência, a conversa que não
veio, o silêncio descomunal: vomite antes que te mate. que te afogue e
te coloque sob um jugo pesado e que te não faz crescer.
5. o medo vai brotar nas suas costas diariamente. vai supor diálogos. quererá
explicações. e você tentará pular numa piscina vazia, fazendo alusão àquela vez que
tentou fugir porque fugir parecia certo e menos doloroso. ninguém quer encarar o
medo. mas ele está aqui. e estará amanhã. e em dezembro. o ponto é que se você não
descobrir maneiras de olhar olho-no-
-olho, de insistir no contato físico, de tentar desdobrá-lo, entendê-lo e mandá-lo
passear, ele continuará colocando em você uma espécie de fardo. medo do amanhã.
medo do que virá. de nunca encontrar alguém. de não amar novamente. de falhar
com seus amigos. com a família. comigo mesma. e assim por diante. o que fazer?
não permitir a chantagem. antes disso, levantar a voz, gritar: hoje não! hoje não
permito o medo se instalar. hoje não! hoje não permito o medo tirar de mim a
capacidade messiânica que sinto em viver cada milésimo de segundo e aproveitar ao
máximo minha existência no mundo.
e você é lindo.
árvore bonita
faz parte de todo o processo humano, meu bem, você não vê? toda vez que lhe
cortam as asas, lhe podam as folhas, lhe lançam as adagas, uma nova possibilidade
se renova, se faz presente. este corte aí vai virar cicatriz em algum momento. em
algum momento, a dor dará as mãos ao tempo e, juntos, eles começarão a dança do
acasalamento: é a cura nascendo de um amor recíproco. são as memórias dele indo
embora do teu corpo, escoando para lugares que teus pés não pisarão nem tão cedo.
nada em ti foi feito para perdurar. você não consegue enxergar o propósito nisso
tudo? na angústia faminta e no medo amedrontador e nas vezes em que a lágrima
escorre lenta e leve pelo rosto? eu te explico: uma vez arrancaram uma árvore aqui
na rua do bairro. as pessoas diziam: corta ela! corta ela! corta ela! e então, num dia
cinza de junho, lá estavam os homens, empunhando sobre si a autoridade (que nem
todos haviam lhes concedido) e começaram a cortá-la. da janela do meu quarto pude
ouvi-la se contorcer em dor. gritava, coitada. gritava a dor de ser cortada por mãos
insolentes; gritava a força, que agora se esfarelava diante dos olhos curiosos dos
moradores; gritava altiva na única maneira que tinha de ser ouvida. uma hora depois
não existia árvore nenhuma ali. apenas uma porção de terra, com um pequeno,
minúsculo, tronco à vista. a rua ficou triste. o céu chorou por duas semanas
consecutivas. deus não falou comigo nesse meio-tempo. e anos se passaram. eu
cresci, ganhei pele e músculo, ganhei tato e resiliência, adquiri força e um pouco de
coragem. eu tinha 18 quando precisei sair do estado para estudar. e aí que eu passei
um ano inteirinho fora de casa, longe daquela rua e da árvore a qual havia me feito
chorar e sofrer pelas coisas que, aparentemente, se quebram e não voltam mais.
quando retornei para casa, nas férias do meio de ano, eu tomei um susto. um susto
bem grande e alegre no meio do peito! quem é que estava lá? a bendita árvore.
estava seca, magra, mas, ainda assim, percebia-a crescendo, ganhando forma e
volume, afirmando-se soberana, majestosa, inquebrável. perguntei à minha mãe qual
era a da árvore. minha mãe me olhou nos olhos, sorrindo doce, me dizendo: “filho,
durante anos, quando você era mais novo, tentaram porque tentaram arrancá-la dali.
vixe. teve uma vez que até chamaram o corpo de bombeiros. mas nada, filho! nada
dela desistir do seu espaço, daquela porção de terra que se alimenta dela e da qual
ela come e vive também. ela sempre crescia mais forte, como se dissesse que sobre
ela ninguém teria poder. e não temos mesmo, meu filho. e você sabe qual é o fato
mais impressionante sobre a árvore? ela é o reflexo do que nós, seres humanos,
somos. mesmo quebrados, estilhaçados, cortados até a raiz, em algum momento nós
damos conta de voltar à tona, voltar a si. toda vez que pensamos ser o nosso fim, um
novo dia, uma nova primavera, um novo tempo estica-se sobre nós e nos concede a
honra, a graça, o privilégio de respirar. nós somos árvores bonitas, meu filho!
andando e respirando por aí”. você não vê, menina boba? que também és uma
árvore. que a todo momento que tentam lhe cortar, lhe tolher, lhe arrancar do teu
lugar, você volta mais forte, mais resignada, mais resiliente? você não percebe que
toda vez que alguém lhe machuca, novas maneiras de sobrevivência começam a
grudar na tua pele; novas formas de autoproteção começam a se arquitetar para te
manter, novamente, mais forte e ainda mais incômoda? o problema, agora, é que
você chama a atenção. você expande os braços, os galhos, os ganhos, as flores. você
fica mais perto do céu! você entende isso, pequena semente? você compreende o
milagre da existência humana, no final das contas? a árvore da minha rua, dia
desses, voltou a florescer. eu disse ao meu vizinho que a árvore era o reflexo de nós,
não desistiria de si tão facilmente. ele ficou me olhando, me encarando, até dizer: é,
não vai ter mais jeito. teremos que deixá-la aí. faz parte de todo o processo, meu
bem. passar pelos términos, pelos finais de relacionamentos românticos ou afetivos,
pelos ciclos no trabalho, na faculdade, mesmo nossas células têm um tempo
específico de vida, de existência no mundo. as fases, as perdas, as derrotas, os
momentos de sofreguidão, as vontades de ficar na cama para sempre, as angústias de
não se perceber suficiente, os traumas todos morando na pele e se fazendo presente,
tudo, tudo isso é passageiro e tem o seu final na próxima gota de chuva que cai. no
próximo raio de luz que estende-se sobre nossas cabeças. na próxima oração
proferida ao redor da nossa fé. o teu fim é apenas o começo. ele é apenas uma parte,
minúscula, de um lugar muito bonito, de paz e de leveza no qual você vai chegar.
você não percebe, bobinha? estás cada dia mais próxima do céu.
toda cicatriz é um rastro de história
perdemos: dente, roupas, melhores amigos, filmes, aulas, tudo. e que dádiva é
saber perder. que dádiva é noticiar a presença de outro dente nascendo ao
redor da boca, ao lado da cura, no infinito de tudo.
sozinho
eu sou sozinho como sozinhos são os milhares de peixes que se perdem do cardume
e estão por aí
em alguma parte do Oceano Atlântico lamentando a perda mas seguindo em frente
como aquele banco do ônibus cuja goteira espanta o pior
dos cansados
o último assento
à direita, próximo à janela o mais difícil de ser pego porque tem sempre duas
pessoas dificultando seu acesso eu sou a goteira e a dificuldade sozinho
como as dezenas de páginas em branco do caderno da faculdade em que o semestre
foi encurtado e não tendo sobre o que escrever é deixado de lado debaixo de uma
pilha de outros livros esquecido na memória do estudante que sempre compra outro
e o ciclo recomeça eu sou sozinho como alguma ilha que vive virgem livre de
visitantes em algum lugar entre o começo do Brasil e o final dele e nesta ilha tem
cadernos em branco bancos com goteira peixes perdidos do cardume sou sozinho
como a tomada abandonada da casa porque o encaixe
está um pouco frouxo e os moradores não têm paciência para segurar o cabo do
celular e ficar ali eu sou sozinho como aquela gota do chuveiro que não cai
mas permanece à mostra beirando o possível e eu me pergunto será que um dia
eu caio no chão?
será que um dia
eu molho o corpo cansado dos que moram
na casa da tomada frouxa e sozinha?
eu sou sozinho como a maçã que escorre da feira de quinta empurrada pela água do
caminhão-pipa
e fica próxima
de cair no bueiro pendurada no esquecimento eu sou sozinho como tantas outras
coisas também o são que me pergunto
vez ou outra
por qual razão escrevo se no final do dia a maçã continua
a um palmo de se esborrachar no esgoto
o pão a um dia de ser colocado no forno a gota a uma mão de ser arrancada para fora
do chuveiro a tomada a uns dias de ser finalmente consertada
a ilha a alguns estudos de ser encontrada pelos humanos os livros a um semestre de
serem jogados no lixo o banco a poucos minutos de ser descoberto por alguém
extremamente cansado e os peixes seguindo como se não tivessem medo da
imensidão da vida.
cheguei à conclusão
de que é a dor que se
alimenta de mim
descobri o que era ansiedade no dia que dois ursos-polares apareceram no meu
quarto
o sol que tilintava na janela era o único espectador da tragédia e o meu corpo
estático
sentado na cama
tirando forças para levantar, o único supermercado aberto da cidade o frio
queimando as gôndolas a falta de ar derrubando todos os produtos os pensamentos
correndo como clientes para pegar o último pedaço de mim
que estava na promoção
enquanto tentava entender o que acontecia
me dava conta de que os ursos também estavam dentro do supermercado
que eles se sentavam no lugar dos atendentes esperando a hora que eu fosse sair
atravessar a porta de entrada levantar da cama
fazer alguma coisa
e que durante os cento e vinte segundos de terror que se esticaram sobre seu corpo
meu nome foi a gota de chuva tilintando na janela da sua consciência o mel que o
beija-flor
volta novamente para roubar o último movimento do furacão que já destruiu uma
cidade inteira meu nome ficou transitando entre suas sinapses disputando maratonas
imaginárias com os neurônios percorrendo rapidamente seu sangue correndo atrás de
uma possível medalha de ouro e os olhos procurando qualquer espécie de conforto
ou possibilidade de voltar ao mundo real ou a mim
mas eu não estava lá
eu não estava
você nunca escolheria meu nome como único caminho para chegar ao divino gritar
por mim não mudaria o fato de que estávamos a quilômetros de distância procurando
formas diferentes para se aliviar não mudaria o fato de que
a única maneira que minha língua encontrou para se perceber viva era morando na
sua não mudaria o fato de que enfim estávamos fazendo escolhas que bagunçariam
para sempre o rumo das nossas vidas
cpfs
endereços
emoções
puxar meu nome no ar com a língua e pedir por ajuda às 7h da manhã do primeiro
domingo do ano
não mudaria o fato de que eu não estava ali que vício em sua boca era uma palavra
transformada em luto ou redenção que havíamos optado por formas distintas de
pegar a vida pelas mãos e dançar todavia você dançava
ontem
muito
tanto
sempre
e hoje eu me pergunto como pude não conseguir dançar também
como não fui capaz de estar lá te olhar nos olhos e dizer que tudo ficaria bem
mergulhar dentro da dor e te tirar do vazio que existe em qualquer ato de desespero e
qualquer estado de solidão quando o último dos movimentos é o corpo tremendo o
peito pulsando e a vida em tempo de ir embora por muitos meses me perguntei como
para você era melhor manter o mundo inteiro debaixo da língua do que tê-lo ao seu
lado
e tropeçava em todos os porquês que não se resolveriam e explicariam duas pessoas
se amarem tanto mas precisarem partir partimos.
durante os últimos meses o que tentei fazer foi dissolver a culpa que me abraçou no
instante exato em que eu disse: não dá mais
porque não dava mais muito antes daquela sexta-feira, de janeiro,
de 2022
não dava mais talvez quatro meses antes quando percebi que, para você, o nosso
relacionamento se tratava de uma espécie de experimento. era sobre como eu
poderia te amar por inteiro; me entregar religiosamente; ser e me doar íntegro e
honesto; enquanto você permaneceria vivendo em um lugar intocável, onde os
movimentos de reciprocidade eram quase inexistentes. as nossas diferenças
habitavam todos os campos: físicos, geográficos, materiais, sentimentais não dava
mais desde a primeira vez em que me senti exposto e vulnerável à sua completa falta
de tato e sensibilidade
não dava mais desde o primeiro dia em que me senti tão à parte do teu amor e tão
deslocado da tua vida que nem mesmo querendo muito (e como eu quis) eu
conseguiria amar por dois
eu conseguiria te fazer olhar para mim e fincar afeto desde então, tenho tentado
dissecar a culpa que atribuí a mim quando rompemos o laço. eu acreditava ser o
maior culpado da nossa história, eu cri ser o responsável pelos traumas que você me
imprimiu. afinal, eu quem permaneci mesmo me sentindo, muitas vezes, quebrado e
sem expectativas, ferido e ansioso, sobrecarregado e, no entanto, vazio de amor.
afinal, era eu quem, no dia seguinte, optava por voltar e bater à sua porta, voltar
àquilo que acreditava ser o melhor para mim.
o tempo serviu para que eu entendesse sobre a necessidade que as pessoas têm de
suportarem algumas mazelas em troca de um punhado de afeto e diálogos razoáveis
e sexos nem tão bons assim. vivemos uma vida inteira sem gozar, contando meias
verdades para preencher argumentos frágeis de sentido, deixando de dizer aquilo que
verdadeiramente sentimos, medrosos na expectativa do que os outros vão dizer – e
sempre vão.
ao mesmo tempo, fui colocando a culpa das minhas escolhas e a responsabilidade da
permanência em nosso relacionamento também em você. fui entendendo que, na
verdade, muitas foram as vezes que você me arrastou para uma zona nebulosa onde
o amor romântico estava longe de ser um pilar para nós; que você preenchia o nosso
tempo com jantares aos finais de semana com seus amigos e vôlei aos sábados e
festas sempre que possível porque era mais fácil tomar decisões sozinho e me
encaixar nelas do que construir, ao meu lado, um projeto de relação pensado por
duas pessoas, maduras e conscientes do que faziam. então acabava que você me
incluía nas suas “coisas” e eu ia pensando que era suficiente. você me inseria na sua
rotina porque queria que eu te visse viver a tua vida, mesmo que um abismo nos
separasse, ou melhor, nos engolisse, triturasse. eu estava tão próximo de você, mas
tão longe ao mesmo tempo. a solidão era absurda, consigo entender agora.
a miserabilidade também.
a culpa que eu abracei tão desesperadamente para tentar me explicar por que eu
permaneci contigo tem sido desmanchada pouco a pouco. consigo perceber o que
um relacionamento abusivo é capaz de fazer com a vítima: abraçamos a culpa
porque é mais fácil dizer a nós mesmos que terminou porque fomos o problema. pois
é o que nos resta depois do navio com todas as expectativas e planos e agendas e
momentos finalmente atingir uma imensa e massiva pedra de gelo. boom. a culpa é o
bote que nos olha nos olhos e diz: “me agarre, me agarre! eu sou a tua única
companhia”. hoje eu tenho percebido que não preciso carregá-la apenas porque você
desenhou ao meu redor jogos psicológicos muito bem planejados e uma engenharia
emocional muito bem praticada para que, no final do dia, eu ainda me culpasse por
ser a pessoa que me entregava, permanecia e tentava te apoiar. uma vez que você viu
a minha infelicidade e angústia ao ser afastado do teu afeto e, mesmo assim, me
alimentou com pequenas esperanças de que melhoraria seu comportamento, mudaria
a maneira como me tratava, seria um namorado melhor, abrindo-se mais, sendo mais
honesto sobre o que sentia, sobre o que queria para nós.
estou me olhando com carinho. e tem sido uma imagem bonita, sem você.
Ilha Grande
lá estava eu
na proa do barco
pensando seriamente se pulava no oceano
naquele infinito azul e verde onde tudo habita e nada se perde ou onde tudo se perde
e tudo morre se não souber como respirar lá estava eu
prestes a cair com o corpo quente no frio que não se acaba nunca eram seis metros
de profundidade era o meu medo de não voltar era o coração acelerado de não
conseguir ter pulmão o suficiente para fazer dar certo mas eu fui
gritando: me joguem a boia!
me joguem a boia assim que eu cair!
eu aprendi a perder desde cedo. os dentes quando criança pareciam uma metáfora de
como as pessoas passariam pela minha vida: depressa. por isso não chorei quando
meu primeiro namorado me deixou. eu o amava tanto, mas tanto, que no dia em que
terminamos eu dei risada. era a dor dando a mão a tudo que me antecedera na queda:
eu já sabia exatamente como cair. eu sabia como seria o processo de dor
descomunal, para depois a paz indescritível de dias em que ele teria ido, finalmente,
em todos os aspectos. eu tinha 22 anos quando perdi a sanidade pela primeira vez.
remédio todos os dias para apaziguar a sensação de vazio, os mesmos caminhos
rumo à faculdade e a mesma hora de sempre para chorar. cronometrava: chorava dez
minutos para passar dois meses sem voltar ao país que me devastou. chorava tudo o
que podia no meio de uma crise de ansiedade porque, depois, não permitiria às
minhas lágrimas descerem livres por mim. então quando você se foi, naquele
domingo febril e pandêmico, eu igualmente não chorei. fui absorto para casa porque
perder você era como morder a maçã quando criança e esperar o sangue jorrar lento
pela roupa clara. era esperar uma fada do dente vir curar minha imaginação doente
de tanto criar cenas que não existiam. era esperar a dor do desconhecimento passar
para que a dor do renascimento pudesse voltar à gengiva, a mim mesmo. você não é
o dente, mas o choro de dez minutos do ponto de ônibus que aconteceu enquanto eu
ia para o trabalho na semana passada: grave, certeiro, mas pontual. eu chorei como
nunca, como se dor fosse a massa de bolo que incha para, depois, voltar ao seu
estado normal, cotidiana. porque me acostumei a perder e não existe feiura em dizer
isso. perdemos: dente, roupas, melhores amigos, filmes, aulas, tudo. e que dádiva é
saber perder. que dádiva é noticiar a presença de outro dente nascendo ao redor da
boca, ao lado da cura, no infinito de tudo.
amigo
chovia na cidade
casais estavam se amando dentro de carros em estacionamentos de shopping lotados
debaixo de toldos caindo aos pedaços fora do mar, onde tudo perece enquanto meu
pescoço estava suficientemente confortável afundado no peito de quem que me faz
brilhar os olhos enquanto descanso do outro lado da linha e do estado você
terminava mais uma jornada de trabalho cansado, talvez, por usar as mãos para
construir algo do qual as pessoas fazem pouco juízo
porque fui encontrado por alguém cuja presença não sondava meus sonhos não se
pendurava nos planos
não estava no script
no entanto aconteceu
e se transformou em algo mais poderoso do que o destino
mais profundo do que o desconhecido do mar queria responder que esbarrei
acidentalmente em alguém responsável por me fazer mais pele e menos osso
menos concreto e mais vulcão mais poesia e menos atrito que atrito para nós é sinal
de fogo
mas nós somos artifício estou na casa de um amigo
eu respondi
mas queria falar que estava experimentando uma espécie de céu que só existe
quando duas pessoas se encontram e nunca mais se deixam escapar quando os
corpos se compreendem tão bem que viver é apenas uma forma de dizer que
alcançamos a eternidade queria te contar, pai, que o amor finalmente me encontrou
mas veio preso à língua e no corpo de outro
homem.
sobre gôndolas, festas de aniversários e projeções
foi como ir ao supermercado com mamãe e esperar pelo doce que ela disse que iria
comprar, mas não comprou.
a esperança atolada em algum iogurte da prateleira que nunca viu minhas mãos
minúsculas esticando-se para pegar o objeto de desejo.
eu havia esperado por horas pelo momento solene em que o açúcar encontra o
sangue: onde a endorfina enfim dançaria no corpo afastando todo o medo de não ser
contemplado no pedido.
acho, inclusive, que foi aqui que comecei a ter medo de pedir.
eu tinha 7.
foi como a primeira vez que descobri ser possível acalmar a ansiedade escrevendo os
números do 0 até 2000 na sala de aula do ensino fundamental. aos 10 anos, enquanto
escrevia, não dava tempo para pensar que eu odiava o colégio e as brincadeiras e as
risadinhas e os grupos e tudo que me parecia certo demais e eu, eu tão errado, tão
fora, tão longe do círculo. então existiam os números e eu: rodopiando junto ao
tempo para ir embora o mais rápido que pudesse.
foi como a primeira vez que andei de avião. a ponte aérea São Paulo – Rio de
Janeiro durou quarenta minutos, mas pareceram três semanas, infinitas, cheias de
lágrima e ansiedade. a adrenalina de quando a decolagem perfura seu estômago e
encontra seu intestino, a vontade de vomitar, o medo de uma estrutura metálica se
desfazer no atrito do vento e de repente os bancos voarem
e o corpo se desintegrar. tão rápido, tão forte, tão irreal.
eu tinha 21 e já me diziam que era feio chorar quando adulto – não sabiam que era
meu esporte favorito.
você foi o mais perto que cheguei da gôndola e do momento de ir embora para casa,
depois de cinco horas no colégio.
você foi a decolagem, mas também o momento em que o avião pousou e a história
na cidade do Cristo redentor começou.
você foi as vezes que quis muito ser amado, mas estive longe do sentimento, mas
principalmente: do caminho.
as vezes que acordei ereto, ejaculado, em sonho. pois a realidade viva das coisas me
dizia sobre a impossibilidade de se amar alguém que voa, de querer alguém que nem
está aqui.
foi como estudar para a prova que eu tanto queria passar e no entanto não acordar no
dia do teste.
foi como aguardar o conjunto de carrinhos da hot wheels que meu pai sempre dizia
que iria comprar. eu aguardava algum dia especial; uma data comemorativa; uma
fresta de bondade no meio do caos que insurgia na vida pobre que levávamos, mas
até hoje não sei como é manobrar aquela minimáquina. como é ter a sensação de
ganhar algo que se quer muito.
foi como esperar a festa de aniversário surpresa ano após ano, aquela que nunca
aconteceu.
o que estou tentando dizer é que você é como todas as minhas projeções que nunca
se materializaram.
todas as vezes que quis tanto algo, que orei, chorei, bati o pé, pedi, tentei, mas
nunca, nem de perto, consegui alcançar.
aquela porção do mar que não chego porque os braços se cansam antes mesmo de
entenderem onde estão.
o que é esta abelha senão o momento exato em que tudo se conecta e faz sentido,
mãe? o que é esta abelha senão o momento exato em que o planeta entra em órbita
novamente e a respiração de deus volta à tona, como se estivesse, por um segundo,
esquecido de ser em si mesma, de existir em seu próprio poder, fatal e onipresente? a
abelha, mãe, chegando à colmeia, precisa contar a novidade para as outras, as
operárias. para chamar a atenção de suas companheiras, ela sobe em uma abelha-
prima. ao conseguir o olhar atento, começa a dançar, traçando um pulmão
imaginário ao redor de si mesma. e eu me pergunto, será que ali ela se dá conta da
metalinguagem à qual pertence? desenhando aquilo que nos mantém respirando.
sendo aquilo que nos mantém existindo. e é neste momento, ela se preparando para o
anúncio, eu imagino, que deus sorri. os planetas se emocionam com a possibilidade
de perfeição ser não apenas palavra, mas ação e movimento. o ser humano
respirando porque, milhares de anos atrás, seres tão pequenos conseguiram ser tão
gigantes na maneira que existem e compartilham da experiência que é a vida. quanto
mais a abelha demora para traçar a linha, mais longe está seu alimento. na dança,
ela ainda consegue traçar em que direção está a comida em relação ao sol. ela avista
o sol mesmo se nuvens estiverem em seu caminho. mesmo à noite, na escuridão, ela
sabe onde a maior estrela do espaço sideral descansa.
***
eu demorei para te escrever porque a língua atrofiou e mesmo assim nós nunca
fizemos um minuto de silêncio ou nunca, de fato, fizemos as pazes. lembro-me de te
amar muito mais quando estávamos distantes do que juntos. pode o amor existir no
meio do abismo desta forma? pensava. pode o amor coexistir entre a incompreensão
e a vontade de conhecer? por isso os gritos e os silêncios e as incompreensões, todas,
lado a lado, na minha infância, e logo depois na adolescência. por isso as mãos para
o alto, a obrigatoriedade de ir à igreja, as vezes que ajoelhei no milho para não
enfrentar o poder das suas mãos. por isso as vezes que me escondia debaixo da
cama, ouvindo os gritos do meu pai e a briga e o tumulto e a aspereza no modo de
lidar. eu demorei para te escrever porque a língua esteve petrificada, enrolada em si
mesma para não se dissolver. porque tinha medo e o medo me consumia feito
querosene quando encontra a madeira fina, frágil, deteriorada. mas agora escrevo e
penso muito sobre você. penso em todas as vezes que você me amou em silêncio,
ora pedindo para que deus me colocasse em suas mãos, ou mesmo orando às três das
manhã, pedindo para o Aba me resguardar debaixo de sua graça. ora preparando a
mesma comida de sempre: arroz, feijão, bife; ou quando passava as manhãs e tardes
trabalhando na casa de outras pessoas, enquanto a minha, a que vivia dentro de mim,
desabava feito prédio sem perícia, atenção. ninguém me dava atenção, mãe, e eu
achava injusto pedi-la a você. como se pede atenção quando a fome é um corpo à
frente da nossa boca? como se pede colo, quando a vida lá fora chacoalha os braços
e avisa que o dia seguinte, lá pelas cinco da manhã, começa tudo de novo seu
processo de esmagar ossos e sonhos? eu não me sentia no direito de me aconchegar
em suas mãos trêmulas e calejadas de vida. eu não conseguiria consumir o silêncio e
o espaço e a cratera que se materializavam em nossas vidas como contas a serem
pagas.
eu demorei porque o tempo é um elástico que quanto mais avança, mais recua para
se recuperar. e é isto que faço aqui, mãe. eu estou nos recuperando e nos colocando
nesse lugar que avisto e é imenso, florido. onde há luz e vento e paz e de repente
nossas dores não nos apartam ou fazem com que as bocas silenciem. estou aqui,
avançando na idade adulta, procurando na adolescência motivos para seguir em
frente, entendendo que agora somos pessoas curadas ou que, pelo menos,
conseguiram se libertar. daqui eu percebo que você precisou ser forte para suportar a
cidade grande e o peso de um relacionamento que não te fazia bem. era como
acorrentar um pássaro que até então só havia conhecido o gosto do vento. ele não
sabe fazer outro movimento senão voar. eu sei que foi injusto te colocarem dentro da
gaiola. porque pessoas como nós, que nascemos quase estéreis de futuro, morremos
se não conseguimos alçar outros voos, formas de existir com o coração pulsando. eu
sei que você tem um furacão no lugar do peito. eu vejo que seus olhos estão sempre
desafiando a gravidade, procurando no ar respostas para as infinitas perguntas que te
rodeiam. acho que agora sei de onde vem as minhas indagações, o meu
descontentamento: de uma mulher que nunca soube ser afirmação. uma vez você me
disse que eu sempre quero mais, que nunca pareço estar satisfeito com nada. mas eu
vim de você, mãe. eu nasci de um corpo impaciente. com 8 anos de idade você já
cuidava de seus irmãos como uma mãe cuida de seus filhos. aos 8 anos você já
carregava baldes de água para lavar roupa no rio. já se entendia como mulher,
alguém cujo dna precisou envelhecer antes mesmo da pele encontrar com os pelos,
da adolescência erigir na face e nos membros e em tudo. você já era adulta quando a
palavra mulher preenchia-se de significado. você já era uma mulher que corria com
os lobos antes de se reconhecer como uma. então acho que é por isso que vim
sedento também. que procuro perguntas onde há muros. que quero respostas onde há
abismo. que quero o amor inexorável e a entrega infinita e as palavras todas
entrecortando os silêncios, matando aquilo que é raso, asfixiando o superficial.
***
estávamos indo para mais um culto na Igreja Sede. e eu amava ir para a igreja-mãe
das outras igrejas. era como voltar a ver pessoas que eu só veria um mês depois, com
certeza mudadas pela ação das semanas sobre suas vidas. eu me atentava às roupas
que as mulheres vestiam, aos meninos com suas calças sociais e brincadeiras nada
convencionais, aos homens e suas manias de serem homens – em atitude, na forma
como tratavam as esposas, como inclinavam-se para atenderem o desejo dos filhos.
eu gostava de ir para a igreja porque podia ver minha avó na cantina. era o momento
em que podia praticar o privilégio de ser seu neto. o momento em que sentia o amor
materno multiplicado por dois. quando a avó olhava para mim, me dava uma
coxinha e sorria com aqueles olhos amendoados, os mais bonitos que eu já vi. ir à
igreja era o evento do mês e você, assim como eu, se arrumava como quem ia a um
lugar muito especial – e era. eu tinha muito orgulho de ser seu filho pois todos te
cumprimentavam como se você fosse uma celebridade. a mulher mais importante
daquele terreno, a responsável por organizar e celebrar as companheiras de fé,
aquela sempre à frente do seu tempo com palavras gentis e guiadas por deus.
aos cinco anos, toda viagem de ônibus parece um voo para outro país. para além da
igreja, eu lembro de amar os minutos que ficava dentro do transporte que nos levava
à Rua Nilo Peçanha porque era o momento em que duas das minhas coisas favoritas
aconteciam: ficar perto de você e olhar o mundo correr pela janela. nunca olhar pela
janela me trouxe tanta paz como na infância. me sentia como se pudesse disputar
uma corrida de carro, sendo eu o próprio automóvel da brincadeira, de modo que
escolhia a quantos quilômetros podia ir, com quem competia, quais eram as regras.
em minha cabeça, cada carro era um país e, de repente, estávamos nas olimpíadas
disputando cem metros rasos. e então eu corria corria corria. ao olhar pela janela, a
adrenalina de ultrapassar um a um me motivava ainda mais a olhar aquele vidro
embaçado e sujo de poeira. neste dia, você decidiu se sentar na parte da frente do
ônibus. não passamos a catraca, nos sentamos à esquerda do corredor, logo atrás de
onde o motorista nos guiava. não entendi por que ficamos ali, mas as perguntas eram
vaga-lumes prestes a se desfazerem no vento. então me sentei à sua frente, sozinho,
e você permaneceu atrás de mim, e ao fazer isso, me dizia sobre a liberdade que, de
certa forma, estava me concedendo. depois de alguns minutos, no entanto, algo
inesperado aconteceu. um homem entrou, com uma arma em punho, gritando e
pedindo dinheiro. aquilo, descobri anos depois, se chamava assalto. entre o momento
o qual o homem subiu pelas escadas, apontando aquela arma para o motorista, e o
momento em que você o interrompeu, dizendo, “eu posso pegar o meu filho?’’, algo
desabava em outro mundo. algo se quebrava, em nome do amor ou da coragem. eu
não entendia aquele grito de bravura até virar adulto. eu não entendia suas mãos
ágeis me pegando no colo e me arrastando para próximo dos seus braços até
entender por que mães existem, por que existe deus. olhando para trás, não apenas a
coragem foi sua voz contra a arma, a iminência da morte, o fim de tudo. também o
medo grudado na sua garganta, porém ínfimo, pequeno demais para te impedir de se
arriscar e se colocar no meio do fogo cruzado, no meio de alguém que poderia nos
levar a vida. seus gestos protetivos, a força com a qual você se colocou à minha
frente, o ímpeto que se sentou sobre suas costas enquanto você me puxava para perto
de si, me colocando rapidamente ao teu lado, dizia “não faça barulho”, mas você
era a explosão, mãe. o pedido de socorro da leoa que faria qualquer coisa pela sua
cria. você era meu escudo, o colete salva-vidas, o momento no qual um filho percebe
por que veio ao mundo: sua mãe veio primeiro.
***
te agradeço por vir primeiro que eu. por pavimentar o caminho, mostrando como é
que se busca a própria comida, como é que se alimenta uma boca faminta por
respostas. não foi apenas o alimento que você me ensinou a buscar, mas a poesia da
existência. vê-la existir no mundo foi uma das maneiras que encontrei para me ver
também, me enxergar, entender por que eu quero sempre, tanto e mais. por ter
sustentado meu corpo dentro do seu, como um galho que, de tão frágil, se permite à
beleza das folhas para manter a estrutura da árvore: é a gentileza que fornece o
encanto. por todas as vezes que falhamos, pois falhar significa que ainda pulsamos.
pelas conversas duras que tivemos, agora crescidas e maduras. por tudo o que você
já fez e eu não soube e nunca fiz questão de saber por achar irrazoável. por tudo o
que fez demais e, no entanto, desapareceu antes de chegarem até mim. os
quilômetros que percorreu do interior da Bahia até São Paulo porque manter-se viva
era mais importante do que apenas estar viva; os quilômetros que precisou percorrer
da colmeia até a comida porque alguém precisava liderar uma revolução; os
quilômetros de casa até o trabalho porque precisava me alimentar; e enfim os
quilômetros que continuam sendo percorridos para que não estejamos mais em
lugares tão distantes assim.
***
preciso curar minha língua de carregar o peso das palavras não ditas
preciso tirar um mundo inteiro de cima de seus ombros as expectativas dos meus
pais a faculdade que não terminei meu primeiro namorado a primeira traição
os primeiros remédios para ansiedade a depressão
eu preciso curar minha língua de fazer silêncio enquanto fogos de artifício queimam
o peito atingem o sangue
esquentam o corpo
me transformam em um vulcão preciso afastá-la
dos que acreditam que no grito mora uma conversa
dos que erguem os punhos para argumentar diante de uma discussão daqueles que
não têm o poder da palavra nas mãos
porque eu tenho.
eu estou escrevendo para curar minha língua de ter sido silenciada por tanto tempo
pelos socos do mundo me curando ao pegar em sua mão puxando-a para fora da
boca dizendo a ela: seja bem-vinda
você pode existir por aqui
nota do autor
eu quis escrever um livro que falasse sobre cicatrizes porque elas nos conectam e
nos transformam. são as responsáveis pelas histórias que contamos a amigos,
vizinhos, terapeutas, desconhecidos em fumódromos de festas, colegas de
transportes públicos, mesmo aqueles com as quais não temos muito contato, mas de
vez em quando encontramos por aí, nas esquinas esquecidas da vida. são as
cicatrizes que nos moldam, vertem nossos movimentos, nos guiam rumo a futuras
relações, rumo à principal delas: nós mesmos. às vezes à mostra; muitas vezes
invisíveis, todos nós estamos sendo cicatrizados no instante em que estas palavras
são lidas. há, sempre, alguma mágoa morando em nossos ombros. um fim que não
se resolveu. uma briga que aconteceu e até hoje remói o mais forte dos ossos. uma
declaração que não veio, se esqueceu de chegar; um pedido de desculpas que não
foi verbalizado, uma memória dolorosa de quando tudo parecia no lugar, uma
saudade apertada no mais profundo e irrecuperável do peito. temos cicatrizes de
anos, décadas, de meses, do ontem. do que poderia ter sido e não foi; do que foi até
demais; das vezes que amamos com intensidade, das vezes que nos amaram de tal
forma que quase não acreditamos. temos cicatrizes de feridas que nos custaram
meses de cura e de feridas que ainda estão aqui, atrasadas para cruzarem a linha de
chegada, o momento em que tudo se pacifica e deixa de doer. este livro eu escrevi
para você, para mim, para todos aqueles que têm relevo na pele e no mais honesto
de si: na cura da dor somos todos mais humanos.
Conheça os demais livros da série Textos cruéis demais:
Confira nossos lançamentos, dicas de leituras e novidades nas
nossas redes:
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Copyright do texto © 2022 by Igor Pires
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Texto fixado conforme as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Decreto Legislativo nº 54,
de 1995).
P744t
Pires, Igor
Textos para tocar cicatrizes / Igor Pires ; ilustração Anália Moraes. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Globo Alt,
2022.
21-79866
CDD: 869.1
CDU: 82-1(81)
1ª edição, 2022
Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S.A.
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