Retiro Textos
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07 de fevereiro – Manhã
Fixemos nosso olhar em Jesus, perguntamo-nos quem é Jesus, por que o amamos,
como deixar-se amar por Jesus, até segui-lo no radicalismo de nossas escolhas, sem
pensar na distância do caminho, no cansaço, na ausência de todo conforto. Fixemos Jesus
e em comunhão com o povo de Deus, com a comunidade que conosco caminha
depositemos no cesto vazio nossos conhecimentos, nossos saberes, nossas vivências.
Despojemo-nos deste saber para nos deixar “instruir” pelo mestre Jesus.
Olhemos novamente para Jesus e perguntamos: “Mestre, onde moras?”. Ficamos
atentos a sua resposta: “Vinde e Vede” (Jo, 138-39).
O seguimento de Jesus
Mais uma vez sofro interiormente porque a “mas media” quer fazer-me contar
coisas sensacionalistas, acusar, denunciar, provocar a luta, a vingança… Esse
não é o meu objetivo. O meu maior desejo é transmitir-lhe a minha mensagem
de amor, na serenidade, no perdão e na reconciliação. Quero compartilhar com
você as minhas experiências: como encontrei Jesus em todos os momentos de
minha existência cotidiana, no discernimento entre Deus e as obras de Deus, na
oração, na Eucaristia, nos meus irmãos e nas minhas irmãs, na Virgem Maria,
guia de meu caminho. Ao mesmo tempo quero gritar: “Vivamos o testemunho
de Jesus! Atravessemos o limiar da esperança!”
Roma, 2 de fevereiro de 1997
Festa da Purificação de Maria (THUAN, 2000, p. 7-8).
2THUAN, François-Xavier Nguyen Van. Cinco pães e dois peixes. Do sofrimento do cárcere um alegre
testemunho de fé. Tradução de João Batista Boaventura Leite. Aparecida, SP: Editora, Santuário, 2000.
manifesta a generosidade de Deus, na gratuidade dos apóstolos
aparece a gratuidade do Evangelho (DAp, n. 31).
O que você faria diante de tal situação? Está preparado para Seguir Cristo no meio
das tribulações e dos sofrimentos? Em qual degrau me encontro na minha aproximação
com Jesus?
“Naquela noite, numa longa estrada de 450 Km que leva ao lugar de minha
residência obrigatória, tantos pensamentos confusos vieram à minha mente:
tristeza, abandono, cansaço, depois de 3 meses de tensão… Mas em minha mente
surgiu clara uma palavra que dispersou toda a escuridão, a palavra de Monsenhor
Jonh Walsh, bispo missionário da China, pronunciou quando foi libertado depois
de 12 anos de prisão: “passei metade da minha vida a esperar”. É bem verdade:
todos os presos, eu também, esperam a cada minuto a sua liberação, mas depois
decidi: “Não esperarei. Vivo o momento presente, enchendo-o com amor”.
Não é uma inspiração repentina, mas uma convicção que amadureci durante toda
a vida. Se passo o meu tempo a esperar, talvez as coisas que espero não
aconteçam mais. A única coisa que certamente acontecerá é a morte (THUAN,
2000, p. 12).
3
No mesmo ano, foi preso em Saigon a 15 de agosto e detido nos cárceres de Saigon, Nhatrang,
Saigon, Haipong (dezembro de 1976), Vinh Phu(dezembro de 1976), Hanói (1977-1988). É
liberado a 21 de novembro de 1988
Os cristãos hoje continuam sendo perseguidos. O site do Vatican News,
informou no dia 18 de janeiro de 2023 que em 2022: foram mortos 5621 cristãos. O
Relatório foi apresentado na Itália em contemporânea com outros 24 outros países. É o
resultado do trabalho de uma equipe de pesquisadores que monitoram a realidade dos
cristãos em 100 países do mundo e revela que entre outubro de 2021 e setembro de 2022,
5621 cristãos foram mortos, 4542 presos e 5259 sequestrados - incluindo 4726 na Nigéria
-, enquanto 2110 igrejas ou edifícios cristãos foram atacados. Aumentam também os
sequestros entre os cristãos, sobretudo na África, principalmente na Nigéria, Moçambique
e na República Democrática do Congo. Dezenas de milhares de cristãos foram atacados
(espancados ou assediados com ameaças de morte) apenas por causa da sua fé; mais de
29.400 casos surgiram no ano passado, enquanto 4.547 casas e 2.210 lojas e empresas
foram atacadas. Além da violência, há também o assédio diário aos cristãos, incluindo
discriminação no trabalho, falta de acesso à saúde e educação, pressão e ameaças de
renunciar à sua fé, negação de alívio de calamidades e excesso de burocracia. A liberdade
religiosa na América Latina é ameaçada por má governança, criminalidade. A opressão
direta do governo contra os cristãos, percebida como vozes da oposição, é generalizada
na Nicarágua, Venezuela e Cuba, onde líderes cristãos foram presos mesmo sem
julgamento por seu envolvimento em manifestações.
Estamos preparados a perseguição e a responder as oposições que se fazem a fé
cristã, aos fundamentalismos, as “ideologizações da fé”?
Francisco Xavier Nguyen van Thuan, relata como era sua permanência na prisão:
Na aldeia de Cây-Vông, que me foi indicada como residência obrigatória,
sob a vigilância aberta e oculta da polícia “confundida” no meio do povo,
noite e dia a obsessão pelo pensamento: Povo meu! Povo meu que amo tanto:
rebanho sem pastor! Como posso entrar em contato com meu povo,
exatamente no momento em que precisa mais de seu pastor? As livrarias
católicas foram confiscadas, as escolas fechadas; as freiras, os religiosos
ligados ao ensino vão trabalhar nas lavouras de arroz. A separação é um
choque que destrói o meu coração.
Não esperarei. Vivo o momento presento, cheio de amor. Mas como?
(THUAN, 2000, p. 12-13).
Padre Maximiliano Kolbe vivia esse radicalismo, quando repetia a seus noviços:
“tudo, absolutamente, sem condição”. Ouvi Dom Helder Câmera dizer: “A vida
é para aprender a amar”. Uma vez, Madre Teresa de Calcutá me escreve: “O
importante não é o número de ações que fazemos, mas a intensidade do amor
que colocamos em toda a ação”. Como atingir essa intensidade de amor no
momento presente? Penso que devo viver cada dia como o último de minha vida.
Deixar tudo que é acessório e concentrar-me somente no essencial. Cada palavra,
cada gesto, cada telefonema, cada decisão é a coisa mais bela de minha vida,
reservo a todos o meu amor, o meu sorriso; tenho medo de perder um segundo,
vivendo sem sentido….(THUAN, 2000, p. 14-15).
Trazemos aqui também o exemplo de Edith Stein, judia, cristã, filosofa, monja, mártir
no dia 9 de agosto de 1942, sob o poder nazista.
[...] antes de haver terminado o manuscrito [ciência da cruz], foi forçada pela
polícia alemã a deixar o convento de Echt, a 2 de agosto de 1942. A 6 de agosto,
foi reconhecida por uma das suas antigas alunas, na estação de Schifferstadt,
junto à janela de um vagão selado. Uma breve palavra foi sua última saudação:
“Diga a minhas irmãs que estou a caminho do Leste”. “Ad Orientem!” A última
fase do seu calvário começava. Não sabemos quando e onde atingiu o termo.
Muitos rumores correram, mesmo o de seu martírio na câmara de gás de
Auschwitz. Não houve nenhuma notícia segura.
Já não buscamos na terra, mas junto a Deus que aceitou seu sacrifício, cujo
fruto deu Ele ao povo pelo qual ela orou, sofreu e morreu, na plenitude da
palavra: BENEDITA DA CRUZ (Companhia da Virgem, 1958, p. 14-15).
Se, de fato, a ciência afastou Edith Stein de Deus, o estudo mais aprofundado
da mesma levou-a depois a descobri-lo. E desta descoberta, tirou as últimas
consequências; foi até o dom de si mesma, do seu sangue, de sua vida, numa
mor transcendente e numa interpretação perfeita das palavras do divino
Mestre: ‘Não há maior amor do que dar a vida pelo um amo’” (Nabuco, 1955,
p. 5).
Chamado à santidade
O Concílio Vaticano II salientou vigorosamente: “munidos de tantos e tão grandes
meios de salvação, todos os fiéis, seja qual for a sua condição ou estado, são chamados
pelo Senhor à perfeição do Pai, cada um por seu caminho” (LG 11).
Para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso. Todos
somos chamados a sermos santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho
nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra. Mas, para viver num caminho de
santidade, de perfeição é preciso deixar que a graça do Batismo frutifique, que a força do
Espírito Santo torne possível a santidade. A Santidade a que o Senhor nos chama, vai
crescendo com pequenos gestos de amor, de escuta, de compaixão.
Mas, sucede, às vezes, que a vida apresenta desafios maiores e, através deles, o
Senhor nos convida a novas conversões que permitam à sua graça manifestar-se melhor
na nossa existência, “para nos fazer participantes da sua santidade” (Heb 12, 10). Outras
vezes trata-se apenas de encontrar uma forma mais perfeita de viver o que já fazemos:
“há inspirações que nos fazem apenas tender para uma perfeição extraordinária das
práticas ordinárias da vida cristã”. 4
4 São Francisco de Sales, Tratado do Amor de Deus, VIII, 11: Opere complete IV (Roma
2011), 468.
Num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança ou mesmo
o dever do ódio e da violência, ainda é possível “crer no amor de Deus” e, responder ao
dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro.
Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele » (1
Jo 4, 16). Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da
fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu
caminho. E, ainda, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula
sintética da existência cristã: “Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem”.
Na Carta Encíclica Deus Caritas Est - Sobre o Amor Cristão, Bento XVI assegura
que “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e,
desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1).
Nessa Carta destaca-se o nexo indivisível entre o amor a Deus e o amor ao
próximo: um exige tão estreitamente o outro que a afirmação do amor a Deus se torna
uma mentira, se o homem se fechar ao próximo ou, inclusive, o odiar. O citado versículo
joanino deve, antes, ser interpretado no sentido de que o amor ao próximo é uma estrada
para encontrar também a Deus, e que o fechar os olhos diante do próximo torna cegos
também diante de Deus (DCE 16).
“Na história de amor que a Bíblia nos narra, Ele vem ao nosso encontro, procura
conquistar-nos — até à Última Ceia, até ao Coração trespassado na cruz, até às aparições
do Ressuscitado e às grandes obras pelas quais Ele, através da ação dos Apóstolos, guiou
o caminho da Igreja nascente. Também na sucessiva história da Igreja, o Senhor não
esteve ausente: incessantemente vem ao nosso encontro, através de homens nos quais Ele
Se revela; através da sua Palavra, nos Sacramentos, especialmente na Eucaristia. Na
liturgia da Igreja, na sua oração, na comunidade viva dos crentes, nós experimentamos o
amor de Deus, sentimos a sua presença e aprendemos deste modo também a aprecia-la na
nossa vida quotidiana. Ele amou-nos primeiro, e continua a ser o primeiro a amar-nos;
por isso, também nós podemos responder com o amor. Deus não nos ordena um
sentimento que não possamos suscitar em nós próprios. Ele ama-nos, faz-nos ver e
experimentar o seu amor, e desta “antecipação” de Deus pode, como resposta, despontar
também em nós o amor” (DCE17)
É próprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e
incluir, por assim dizer, o homem na sua totalidade. O encontro com as manifestações
visíveis do amor de Deus pode suscitar em nós o sentimento da alegria, que nasce da
experiência de ser amados. Tal encontro, porém, chama em causa também a nossa
vontade e o nosso intelecto. O reconhecimento do Deus vivo é um caminho para o amor,
e o sim da nossa vontade à d’Ele une intelecto, vontade e sentimento no ato globalizante
do amor. Mas isto é um processo que permanece continuamente em caminho: o amor
nunca está « concluído » e completado; transforma-se ao longo da vida, amadurece e, por
isso mesmo, permanece fiel a si próprio. Querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa
é, segundo os antigos, o autêntico conteúdo do amor: um tornar-se semelhante ao outro,
que leva à união do querer e do pensar.
A história do amor entre Deus e o homem consiste precisamente no fato de que
esta comunhão de vontade cresce em comunhão de pensamento e de sentimento e, assim,
o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais: a vontade de Deus deixa
de ser para mim uma vontade estranha que me impõem de fora os mandamentos, mas é a
minha própria vontade, baseada na experiência de que realmente Deus é mais íntimo a
mim mesmo de quanto o seja eu próprio. Cresce então o abandono em Deus, e Deus torna-
Se a nossa alegria (cf. Sal 73/72, 23-28).
Atividade Reflexiva:
Na Presença do Senhor, procuremos agora nos desconectar de tudo, Deixa o
Senhor te Instruir. Permaneça na posição do discípulo amado. Viva com profundidade o
momento presente. Anote em poucas linhas a tua experiência de estar a sós com o
Senhor.
ORAÇÃO
NA PRISÃO, POR CRISTO
Jesus,
ontme à tarde, festa da Assunção de Maria,
fui detido.
Transportado durante a noite de Saigon
para Nhatrang,
quatrocentos e cinquenta quilômetros
de distância entre dois policiais,
comecei a experiência de uma vida
de encarcerado.
Quantos sentimentos confusos
na minha cabeça:
tristeza, medo, tensão,
meu coração dilacerado
por estar distanciado de meu povo.
Humilhado, recordo a palavra
da Sagrada Escritura:
“Foi contado entre os malfeitores
- et cum iniquis deputatus est” (Lc 22,37).
Atravessei de carro as minhas três dioceses,
Saigon, Phanthiet, Nhatrang:
com tanto amor a meus fiéis,
mas nenhum deles sabia que o seu Pastor
estava passando
pela primeira etapa de sua via-sacra.
Mas neste mar de extrema amargura,
sinto-me mais do que nunca livre.
Não tenho ninguém comigo,
nem uma moeda, só o meu rosário
e a companhia de Jesus e de Maria.
Na estrada do aprisionamento rezei:
“Meu Deus e meu tudo”.
Jesus,
enfim posso dizer como São Paulo:
“Eu Francisco, por causa de Cristo,
estou na prisão
-ego Franciscus, vinctus Jesu Christi
pro vobis” (Ef 3,1).
Na escuridão da noite,
no meio deste oceano de ansiedade,
de pesadelo,
pouco a pouco me desperto:
“Devo enfrentar a realidade”.
“Estou preso,
se espero o momento oportuno
para fazer alguma coisa
verdadeiramente grande,
quantas vezes na vida se apresentarão
semelhantes ocasiões?
Não, agarro as ocasiões que
se apresentam a cada dia,
para realizar ações ordinárias
de modo extraordinário.”
Jesus,
não esperarei, vivo o momento presente,
enchendo-o com amor.
A linha reta é feita de milhões de pequenos
pontos unidos um ao outro.
Também a minha vida é feita de milhões de
segundos e de minutos unidos um ao outro.
Coloco em ordem cada ponto
e a linha será reta.
Vivo com perfeição cada minuto
e a vida será santa.
O caminho da esperança é calçado
de pequenos passos de esperança.
Como tu, Jesus, que fizeste sempre
o que agrada a teu Pai.
A cada minuto quero dizer-te:
Jesus, eu te amo,
a minha vida é sempre uma
“nova e eterna aliança” contigo.
A cada minuto quero cantar
com toda a Igreja:
Glória ao Pai, ao Filho
e ao Espírito Santo…
Residência obrigatória
em Cây-Vông (Nhatrang, Vietnã central),
16 de agosto de 1975,
dia seguinte ao da Assunção de Maria.
RETIRO COM OS PADRES
ARQUIDIOCESE DE CURITIBA (PR)5
O ENCONTRO COM DEUS NAS TRILHAS DO COTIDIANO
07 de fevereiro -Tarde
O dom do Discernimento
5
Clélia Peretti. Profª Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa Mestrado e Doutorado em
Teologia e Bacharelado. Presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião.
O mundo está aí, com suas luzes e sombras, com seus desafios individuais
e comunitários. O mundo está aí com sua beleza e fulgor, mas também com as
suas contradições e obscuridades. Temos o mundo das diferentes e ricas
manifestações religiosas e culturais, da solidariedade e da generosidade, mas
também o mundo homogêneo de determinado modelo econômico e
geopolítico que mata. Nele respiramos, mas, também podemos nos asfixiar.
No mundo de cada um de nós e no mundo de todos nós, sem uma bússola,
sem uma orientação, sem um discernimento a vida perde a sua direção. E sem
uma direção, nada faz sentido, tudo se torna banal, descartável, mutável, líquido.
• Como, então, encontrar a direção certa para nossa vida?
• Qual rumo queremos dar?
• Qual sentido dar a nossa vocação?
“Jesus chamou e enviou os que ele mesmo quis (cf. Mc 3, 13-19)”. Fomos
escolhidos e enviados. Este texto bíblico nos ajuda a aprofundar que a origem,
o centro e a meta de toda a vocação e missão é a pessoa de Jesus Cristo.
• Com tantas distrações, conexões rápidas e superficiais, como
buscar o que é essencial para a nossa vida de discípulos missionários, de
sacerdotes consagrados a Deus e ao povo? Escolhemos, de fato, o seguimento
de Jesus?
• Como, apesar das tempestades da vida, alegrar-se com as palavras
de Jesus: “Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo
10,10)?
• Como cultivar “Corações ardentes, pés a caminho" (Lc 24,32-33),
na nossa jornada espiritual e na nossa missão?
Na espiritualidade cristã, há uma bússola: o exercício do discernimento. Trata-
se de uma tradição já testemunhada pelo povo do Antigo Testamento e continuada no
Novo Testamento com a pessoa de Jesus, Paulo e João. Sabemos, também que a busca de
Deus em todas as coisas constitui o núcleo da espiritualidade e da oração de Santo Inácio
de Loyola e da Companhia de Jesus. Santo Inácio nos dá uma verdadeira metodologia
para fazermos o Discernimento dos Espíritos.
O Papa Francisco retomou, como bom Jesuíta, o tema do discernimento nas suas
catequeses, falando dos seus elementos essenciais: a oração, entendida como
familiaridade e confidência com Deus; o conhecimento de si. Conhecer a si mesmo. E
isto não é fácil, “pois o discernimento envolve as nossas faculdades humanas: a memória,
o intelecto, a vontade, os afetos. Muitas vezes não sabemos discernir porque não nos
conhecemos de modo suficiente, e assim não sabemos o que realmente queremos”.
(FRANCISCO, Catequese, 05 de outubros de 2022).
O discernimento é uma graça concedida por Deus e que também
corresponde a uma atitude, a uma intencionalidade, a uma procura consciente e
permanente da pessoa. Nesse sentido, discernir se aprende discernindo, não há
manuais para isso. É um exercício, uma prática cotidiana enraizada na vida, na
vocação, na comunidade, no mundo, apontando sempre para a Vontade de Deus.
Por ser graça qualquer pessoa que abra a sua mente e coração a Deus pode
receber o dom do discernimento.
Não se trata de um conhecimento para especialistas, sábios, doutores, mas de uma
dinâmica de comunicação de Deus com todos os que buscam o bem, o que faz lembrar as
palavras de Jesus: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas
coisas aos sábios e doutores e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11, 25).
Portanto, o discernimento não é um conhecimento meramente racional, abstrato
ou teórico, mas é aquele que encontramos no livro da Sabedoria que consegue diferenciar
o que é de Deus e o que não é de Deus. Ou, igualmente, aquele conhecimento de que tanto
nos fala Inácio de Loyola nos Exercícios Espirituais, e que pode ser pedido 6: “pedirei [...]
conhecimento interno do Senhor [...], para que mais o ame e o siga” 7.
Na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, o Papa Francisco nos diz: “Hoje
em dia, tornou-se particularmente necessária a capacidade de discernimento, porque a
vida atual oferece enormes possibilidades de ação e distração, sendo-nos apresentadas
pelo mundo como se fossem todas válidas e boas” (GE, n. 167).
É necessário, portanto, um “discernimento orante” este exige partir da
predisposição para escutar o Senhor, os outros, a própria realidade que não cessa de nos
interpelar de novas maneiras. Somente quem está disposto a escutar é que tem a liberdade
de renunciar ao seu ponto de vista parcial e insuficiente, aos seus hábitos, aos seus
6
“Dos céus sagrados, envia-a, manda-a de teu trono de glória para que me assista nos trabalhos,
ensinando-me o que te agrada” (Sb 9, 10).
7
SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Escritos de Santo Inácio: Exercícios Espirituais. Tradução R. Paiva. 3.
ed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 53 (EE 104). Título original: Ejercicios Espirituales. A partir de agora, para
citação das anotações de Santo Inácio contidas no livro dos Exercícios Espirituais utilizaremos apenas a
sigla EE seguida do número correspondente no corpo do texto.
esquemas” (GE, n. 172). Eu diria ainda as tentações do aparecer, a sedução e
exibicionismo. Nossa ação pastoral, celebrações litúrgicas, às vezes, tornam-se palco
desse exibicionismo autorreferencial, misturado de egolatria, ou seja, amor exagerado
pelo próprio eu; culto de si mesmo; narcisismo.
- Então, como ser apóstolos do Evangelho, apesar de tantas contradições e das
nossas fraquezas e defeitos?
- Em um mundo complexo e complicado, como viver a autenticidade do Evangelho
de Jesus, mantendo-nos fiéis à nossa vocação, sem ignorar a modernidade e a pós-
modernidade?
- Como superar as crises existenciais e vocacionais?
O cardeal Walter Kasper no seu livro Servidores da alegria. Existência sacerdotal
– serviço sacerdotal nos alerta: “precisa ter cautela” com a palavra crise, e entendê-la em
seu sentido original de desafio e de kairós, “isto é, como situação que nos foi dada por
Deus como dom e tarefa”.8 Observa: “Evidentemente a percepção do presbítero como
também sua própria autoimagem não permaneceram intactas perante as profundas
transformações dos últimos anos. A autopercepção e a percepção exterior dos presbíteros
tornaram-se incertas e indistintas em vários aspectos; e, não raro, o serviço, o ministério
e a forma de vida do presbítero são radicalmente questionados”. 9
Nesse sentido, o acompanhamento espiritual é importante sobretudo para o
conhecimento de si. O Acompanhamento “é uma condição indispensável para o
discernimento. Olhamo-nos no espelho, sozinhos, nem sempre ajuda, pois podemos
alterar a imagem. Ao contrário, olhar no espelho com o auxílio de outra pessoa, isto ajuda
muito pois o outro diz-te a verdade – quanto é verdadeiro – e assim ajuda-te”
(FRANCISCO, Catequese, 04 de jan. de 2023).
A prática do discernimento
Como exemplo da prática de discernimento olhamos a experiência do vietnamita,
o Cardeal Francisco Xavier Ngyuyen Van Thuan. Na introdução do Segundo pão:
discernir entre Deus e as obras, ele escreve:
É verdade, Jesus é um amigo exigente que indica altas metas … Derrubem as
barreiras da superficialidade e do medo, reconhecendo-se como homens e
mulheres ‘novos (JOÃO PAULO II, Mensagem para a XII Jornada Mundial da
Juventude, 1997, n. 3).
8
KASPER, WALTER. Servidores da alegria. Existência sacerdotal – serviço sacerdotal. São Paulo:
Edições Loyola, 2008, p. 11.
9
Ib., p. 10.
Francisco, o vietnamita declara que Jesus é um amigo exigente que indica altas
metas e nos predispõe para corresponder a sua proposta, consciente e livremente.
Ouçamos o relato de van Thuan (p. 21-23):
Quando eu era estudante em Roma, uma pessoa me disse: “A tua qualidade maior
é ser ‘dinâmico’, o teu defeito maior é ser ‘agressivo’”. Em todo caso sou muito
ativo, sou um batedor, capelão dos Rover, é um estímulo que me impele todos
os dias: correr contra o relógio, devo fazer tudo que me é possível para confirmar
e desenvolver na minha diocese de Nhatrang, antes que venham tempos difíceis,
quando estaremos sob o comunismo. Aumentar o número de Seminaristas
maiores, de 42 a 147, em 8 anos; de 200 seminaristas menores para 500 em 4
seminários: formação permanente de padres de 6 dioceses da Igreja
metropolitana de Hue; desenvolver e intensificar a formação de novos
movimentos de jovens, de leigos e de conselhos pastorais... Amo muito a minha
primeira diocese, Nhatrang (THUAN, 2000, p. 21).
Thuan, nos ensina que é importante ler o que se move dentro de nós, para não
tomar decisões apressadas, na onda da emoção do momento, para depois nos
arrependermos, quando já é demasiado tarde.
Estava sempre preparado para fazer a vontade de Deus. Mas essa luz me traz
uma nova força que muda totalmente o meu modo de pensar e me ajuda a superar
momentos fisicamente impossíveis. As vezes um programa bem desenvolvido
deve ser deixado incompleto; algumas atividades iniciadas com muito
entusiasmo encontram dificuldades; missões de alto nível rebaixadas a
atividades menores. Talvez estejas perturbado e desanimado. Mas o Senhor
chamou-me a seguir a ele ou a esta iniciativa ou àquela pessoa? Deixa o Senhor
agir: ele resolverá tudo para melhor (THUAN, 2000, p. 24).
Diante desse estado espiritual definido como desolação, quando no coração é tudo
escuro, triste, este estado de desolação pode ser ocasião de crescimento. Com efeito, se
não houver um pouco de insatisfação, um pouco de tristeza saudável, uma capacidade
salutar de habitar na solidão, de estar conosco próprios sem fugir, corremos o risco de
permanecer sempre na superfície das coisas, sem nunca entrar em contacto com o íntimo
da nossa existência (FRANCISCO, Catequese, 16.nov de 2022).
Desde esse momento, uma nova paz enche meu coração, e permanece comigo
13 anos. Sinto a minha debilidade humana, renovo esta escolha frente às
situações difíceis, e a paz não faltou mais.
Quando declaro: “Por Deus e pela Igreja”, fico silencioso na presença de Deus e
a mim pergunto honestamente: “Senhor, trabalho somente por ti? È sempre o
motivo essencial de tudo aquilo que faço? Vou envergonhar-me em admitir que
há outros motivos fortes” (p. 26)
Escolher Deus e não as obras de Deus. È uma escolha bela, mas difícil. João
Paulo II vos interpela: “Caríssimos jovens, como os primeiros discípulos, sigam
Jesus! Não tenham medo de aproximar-se dele… Não tenham medo da ‘vida
nova’ que ele lhes oferece: ele mesmo lhes dá a possibilidade de acolhê-la e de
colocá-la em prática, com a ajuda de sua graça e o dom de seu espírito”.
(Mensagem para a XII Jornada Mundial da Juventude, 1997, n. 3).
Pausa: 5 minutos
O que é para ti o discernimento? Como você pratica o discernimento? O que
a vivência do Cardeal van Thuan
10
Cf. FREITAS, P. P. de. No calor do abraço divino. pp. 41-43.
No escrito, Como cheguei ao Carmelo de Colônia, em um parágrafo desse texto fica claro
seu desapego e a vivência do discernimento:
Antes da minha partida[de Friburgo], perguntei ao arquiabade o que deveria
fazer caso tivesse de abandonar minhas atividades em Münster. Ele não
conseguia acreditar que isso viria a acontecer. No caminho de minha viagem
para Münster, li um artigo no jornal sobre um grande congresso nacional-
socialista de professores, do qual as associações confessionais foram obrigadas
a participar. Para mim, ficou bem claro que em questões educacionais não seriam
permitidas quaisquer posições destoantes de orientação dominante. O Instituto
no qual eu trabalhava era uma instituição católica, fundada e mantida por
docentes católicos; portanto, seus dias estavam contados. Diante dessa situação,
eu devia esperar pelo fim de minha curta carreira docente. (STEIN, 2018, p.
541).
O olhar volta-se agora para sua vida e sua caminhada. É um olhar de alguém que
consegue ler e aperceber-se dos sinais interiores. Uma pessoa integrada que consegue ler
em sua própria história as vivências de seu itinerário existencial. Tem para com sua vida
um olhar livre, sem, contudo, deixa de perceber erros e falhas. Emerge uma certeza: a
vida tem uma meta e o verdadeiro encontro com a Verdade não se dá nesse mundo. Então,
compreende que sua vontade precisa ser ordenada, submetendo-se a todos os
acontecimentos providenciais, sejam eles, desejados ou permitidos por Deus, para um
caminho de crescimento e santificação.
O discernimento nos prepara para responder à pergunta mais fundamental
e importante de toda a nossa existência: como acertar na vida, como empregar
bem o maior dom que recebemos de Deus, a nossa liberdade”?11. Em outras
palavras, o discernimento nos predispõe para corresponder a uma proposta, não
aleatoriamente, mas consciente e livre. Disso, podemos dizer que uma sua
importância essencial é ser impulso que nos leva a decidir pela vontade de Deus,
a comungar com sua Verdade, Jesus Cristo.
A expressão “Vontade de Deus” compreende a referência ao Deus de Jesus
Cristo. Por isso, aderir a essa vontade é ao mesmo tempo decidir-se por Cristo,
pois “Ele é a imagem do Deus invisível” (Cl 1, 15). Isso significa renunciar ao
próprio instinto egoísta e confiar no Deus que nos pede e deseja um “sim”, como
o fez, por exemplo, Maria de Nazaré (cf. Lc 1, 26-38), visto que a Vontade de
Deus é sempre nova e diferente; e considerar, como o apóstolo Paulo: “o que
era para mim lucro eu o tive como perda, por amor de Cristo” (Fl 3, 7).
11
FREITAS, Paulo Pedreira de. No calor do abraço divino: resgatando o discernimento orante do 2º
tempo. Revista de Espiritualidade Inaciana, ITAICI, n. 47, p. 41, mar. 2002.
Mais ainda: tudo eu considero perda, pela excelência do conhecimento de
Cristo Jesus, meu Senhor. Por ele, eu perdi tudo e tudo tenho como esterco, para
ganhar a Cristo e ser achado nele” (Fl 3, 7-9a), é indispensável para o bom e
autêntico discernimento; é indispensável para encontrar aquele tesouro que vale
a pena deixar tudo (cf. Mt 13, 44-46); é indispensável ainda para descobrir um
pouco da experiência de Deus que teve Jesus Cristo e saborear a verdadeira
alegria.
Assim, a liberdade não é uma espécie de dispositivo que funciona somente
no momento de fazer ou escolher coisas, mas alcança o ser humano em sua
totalidade como pessoa. Jesus possuidor do discernimento infalível, vem colocar
em movimento o nosso discernimento titubeante, às vezes embotado ou
paralisado. É nele e não em nós mesmos que reconhecemos a vontade do Pai.
Cada um de nós, somos chamados a serem outras “Marias”; outros
“Paulos”; outros, enfim, “Jesus”. Neles encontramos algo em comum: a diligente
abertura ao Espírito de Deus; a fidelidade ao seu chamado, ao seu amor, tudo
em clima de muito discernimento e liberdade.
12
RANDLE, Guillermo. La ciencia del espíritu: adiestramiento integral para acompañantes
espirituales: dimensión funcional de la teología espiritual. 1ªed. Buenos Aires: San Benito, 2006.
p. 34. Tradução nossa.
13
PAGOLA, José Antônio. O caminho aberto por Jesus: Mateus. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 168.
que vem de Deus e o que não vem. Além disso, o discernimento nos ajuda a
identificar nossas fraquezas e erros e o que impede o progresso na nossa jornada
espiritual.
Os santos/as, nas suas biografias relatam que o entrave mais sério para o
progresso interior é o descaso em relação ao pecado. Teresa D’Ávila, no livro da
Vida (c. 4. 7, pp. 67) escreve: No tocante os pecados veniais, eu lhes dava pouca
atenção, e era isso que me destruía”. Ela ressaltava que, em parte, isso se deu
por causa do conselho “liberal e permissivo o que lhe era dado por padres
(MARTIN, 2019, p. 38) . (Engano espiritual).
O que era pecado venial eles diziam não ser pecado, e o quer era sério
pecado mortal eles diziam ser venial. Isso prejudicou muito. […]. Creio
que continuei nessa cegueira por mais de dezessete anos, até que um
padre dominicano, um homem versado, escarneceu-me muitas coisas.
14
RANDLE, G. La ciencia del espíritu. p. 47. Tradução nossa
Essa prática espiritual do profeta de descobrir o plano salvífico de Deus
para si e para o povo, nada mais é do que exercício de discernimento, condição
para a santidade. Esta prática é encontrada também no livro da sabedoria (Sb 9,
6.9b-11.17-18).
O discernimento espiritual (ou a Sabedoria divina) nos ajuda a diferenciar
o valioso do efêmero; sendo um dom que ultrapassa os ideais humanos, pois
capta a Lei do Senhor, gerando um compromisso de vida mais autêntico. Propõe
uma vida, uma mentalidade, ações e reações formadas não só a partir do plano
moral e civil, mas, também e principalmente, a partir do Espírito divino.
O exercício do discernimento é um imperativo vital para os profetas.
Podemos, inclusive, encontrar posturas muito parecidas em Isaías e Jeremias.
Em Is 1, 3 a percepção comunicada é a de que até mesmo um boi ou um asno
conhecem seus donos, no entanto, Israel não conhece seu Deus. Jeremias se
queixa da ignorância do povo: lerdo para o bem e ágil para o mal. Assim como
Isaías, se refere também aos animais e fala que mais atentas são as aves do céu,
pois conseguem conhecer o momento de suas migrações. Já “o meu povo não
conhece o direito do Senhor” (Jr 8, 7)15.
Que conhecimento é esse tão importante que o povo eleito despreza,
como observam os profetas? Por que é tão importante? Que conhecimento é esse
tão importante que o povo eleito despreza, como observam os profetas? Por que
é tão importante? Segundo Randle, “é um conhecimento em ordem a diferenciar
onde está Deus e onde não [está] nos acontecimentos da vida, para tomar
decisões de acordo com tal conhecimento” 16.
A ausência do conhecimento de Deus é sinônimo de imaturidade humana
e espiritual; e também de confusão. Porque incapaz de diferenciar o positivo do
negativo, o ser humano não conseguirá assumir responsabilidades (não seria,
portanto, um sujeito livre), muito menos identificar as diversas moções 17
15
Grifos nossos
16
RANDLE, G. La ciencia del espíritu. p. 48. Tradução nossa.
17
16 Segundo Werner, moções “são dinamismos interiores que atraem a pessoa para algo. São propostas
interiores (sugestões) vindas de fora do querer de quem as experimenta. Aparecem como pensamentos
[...] e produzem reações emocionais [...]. Podem ser descritas também como movimentos ‘dentro da
pessoa’ que ‘puxam’ para algo, sendo sentidas como apelos, chamamentos ou atrações”. WERNER,
Cláudio. Rodapé 256. In: SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Escritos de Santo Inácio: Exercícios
Espirituais. 3ªed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 119.
interiores para escolher o melhor caminho a seguir. Resulta também em certa
inconstância na vida, pois não há clareza suficiente nas escolhas. Portanto, o
discernimento, que nasce “de uma sensibilidade cheia de fidelidade [...] à aliança
[de Deus], do reconhecimento de seus benefícios, da comunicação e intimidade
com Ele, do amor”18, garante uma vida mais coerente e feliz. Em outras palavras,
uma vida mais voltada para o reconhecimento de Deus e de sua ação na História
e na história de cada pessoa.
Em Deus não há confusão ou mescla entre luz e trevas; com Ele sempre
seguimos o melhor. O discernimento, dom de Deus, é, dessa forma, um convite
a fazer o bem e buscar o justo: “Tirai da minha vista as vossas más ações! Cessai
de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, corrigi o opressor!
Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva” (Is 1, 16-17)!
18
RANDLE, G. op. cit., p. 49. Tradução nossa.
19
GREEN, T. H. GREEN, Thomas H. Ervas daninhas entre o trigo: discernimento: onde oração e ação
se encontram. São Paulo: Loyola, 2005. p. 53.
20
Cf. CUSTÓDIO FILHO, S. Exercícios na vida cotidiana (EVC). p. 16. Em conformidade com o
comportamento de Jesus que diante dos possíveis da vida escolhia somente aqueles que mais agradavam
ao Pai, citamos o apóstolo Paulo que em Rm 12, 2 diz: “E não vos conformeis com este mundo, mas
transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é
bom, agradável e perfeito”.
por experiência e não pelo cumprimento automático de leis e regras como faziam
os fariseus.
O autor da Carta aos Hebreus (Heb 4, 15b) no diz que “Aquele que triunfou
sobre o mal não é indiferente às nossas fraquezas, “pois ele mesmo foi provado
em tudo como nós, com exceção do pecado”. Viveu nossa vida, experimentou o
sofrimento, solidarizou-se com os seus. E, ele “é capaz de ter compreensão por
aqueles que ignoram e erram, porque ele mesmo está cercado de fraqueza. E
embora fosse Filho, aprendeu, contudo, a obediência pelo sofrimento” (Heb 5,
2.8).
Temos aqui a chave para compreender o discernimento de Jesus:
alguém que é tentado e que experimenta o sofrimento não parece ter clara a sua
missão e a sua identidade. Mesmo assim, ainda pode nos parecer um tanto
surpreendente enxergar essa realidade na pessoa de Jesus. A nossa velha
mentalidade de um Jesus “pronto”, todavia, deve dar espaço ao Jesus humano
que conheceu o conflito até os seus últimos passos neste mundo, “sobretudo nas
dificuldades traçadas diretamente pelo inimigo, e indiretamente por intermédio
de alguns fariseus e de seus próprios discípulos” 21. Jesus nos ensina, dessa
forma, com a própria vida, sobre a necessidade da constante vigilância, pois não
podemos cair no engano de ignorar o conflito, visto que se assim procedermos
nos acharemos numa confusão ainda maior.
Abrindo um parêntese , na verdade, o que nos impede a progredir na
nossa jornada espiritual, de dar uma resposta incondicional ao chamado de Jesus,
não são as circunstâncias externas de nossa vida, mas a indolência interior do
nosso coração. Precisamos reconhecer que nunca haverá melhor momento nem
melhor conjunto de circunstâncias que agora para uma resposta incondicional
ao chamado à santidade.
É o que igualmente a epístola de Pedro nos ensina: “Sede sóbrios e
vigilantes! Eis que o vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir,
procurando a quem devorar. Resisti-lhe, firmes na fé, sabendo que a mesma
espécie de sofrimento atinge os vossos irmãos espalhados pelo mundo” (1Pd 5,
8-9). Essa batalha contra o “inimigo da natureza humana” e “pai da mentira”
21
RANDLE, G. La ciencia del espíritu. p. 55. Tradução nossa.
nada mais é do que exercício de discernimento ou, de outro modo, tarefa de
diferenciação entre a presença e ação de Deus e a do nosso adversário.
A partir dos Evangelhos sinóticos, a saber: Mateus, Marcos e Lucas,
podemos observar ainda, que a realidade do discernimento
consiste substancialmente em ‘reconhecer’ na pessoa e na ação de Jesus
o poder do Espírito de Deus e a derrota do espírito do mal. [...]; os que
o acolhem descobrem nele os caminhos do Espírito; os outros continuam
lendo as Escrituras sem compreendê-las e veem Jesus passar sem
reconhecer que Deus está nele 22.
22
BARRUFO, A. Discernimento. p. 286.
algumas nobres,
outras mais comuns.
24
“Sabendo Jesus tudo o que lhe aconteceria, adiantou-se e lhes disse: ‘A quem procurais?”. Responderam:
‘Jesus, o Nazareno. Disse-lhes: “Sou eu”, recuaram e caíram por terra. Perguntou-lhes, então novamente:
“A quem procurais”? Disseram: “Jesus, o Nazareno” (Jo, 18,5.7).
25
“Jesus diz: “Mulher, por que choras? A quem procuras?” . Pensando ser ele o jardineiro, ela lhe diz: ‘
Senhor, se foste tu que o levaste, diz-me onde o puseste e eu irei buscar”! .
(Jo 15,5), mas garante que Ele mesmo permanecerá com seus discípulos, a quem não
chama servos, mas amigos (Jo 15,5.7).
3. O terceiro elemento fundamental da experiência vocacional: o anúncio do
encontro com Jesus. André… um dos dois que seguiram a Jesus foi encontrar primeiro
seu irmão Simão e lhe disse: ‘Encontramos o Messias… André conduziu Simão a Jesus”.
O encontro dos dois discípulos de João com Jesus e a experiência do permanecer com Ele
estão na base do autêntico processo de discernimento vocacional (que não se dá somente
no processo de formação), que culminará no testemunho. Não são apenas informações
sobre uma situação vivenciada, mas uma convicção compartilhada de uma resposta dada
livre e conscientemente a um chamado. Jesus chamando Simão de Cefas lança o desafio
para quem quer segui-lo, construir sobre a rocha o seu relacionamento com Ele, pois a
casa que não está fundamentada na pedra, não permanece num alicerce seguro,
desmorona.
O encontro pessoal com Jesus, o “permanecer com Ele”, então, desperta nos
discípulos um desejo maior pela vocação e missão. O Papa Francisco na EG, n. 120, diz:
Os discípulos missionários, logo depois de terem conhecido o olhar de Jesus,
saíram proclamando cheios de alegria: “Encontrámos o Messias” (Jo 1, 41). A
Samaritana, logo que terminou o seu diálogo com Jesus, tornou-se missionária,
e muitos samaritanos acreditaram em Jesus “devido às palavras da mulher” (Jo
4, 39). Também São Paulo, depois do seu encontro com Jesus Cristo, “começou
imediatamente a proclamar […] que Jesus era o Filho de Deus” (At 9, 20). Por
quem esperamos nós? (EG 120).
Oração de presença
Todavia, há dias na nossa vida, como testemunha o Cardeal Francisco Van Thuan,
que não conseguimos rezar uma oração.
Depois da minha libertação, muitas pessoas me disseram: “Padre, o Senhor teve
muito tempo para rezar na prisão”. Não é assim simples como podem pensar. O
Senhor me permitiu experimentar toda a minha fraqueza, minha fragilidade
física e mental. O tempo passa lentamente na prisão, em particular durante o
isolamento. Imaginem uma semana, um mês, dois meses de silêncio … São
terrivelmente longos, mas quando se transformam em anos, tornam-se uma
eternidade. Um provérbio vietnamita diz: ‘um dia na prisão é como mil outonos
fora’. Ali houve dias em que, reduzido ao maior cansaço, à doença, não consegui
rezar uma oração! (THUAN, 2000, p. 33).
Van Thuan vem a sua lembrança a do velho Jim e narra aos jovens curiosos sobre
como ele conseguia rezar na prisão. Ele diz:
Vem-me à lembrança uma história, a do velho Jim. Todo dia às 12h, Jim entrava na Igreja,
não mais do que dois minutos, depois saia. O sacristão era muito curioso e um dia deteve
Jim e lhe perguntou:
- Por que vem aqui todos os dias?
- Venho para rezar.
- Impossível! Que oração você pode dizer em dois minutos?
- Sou um velho ignorante, rezo a Deus do meu jeito.
- Mas que coisa você diz?
- Digo: Jesus, eis-me aqui, sou Jim. E me vou.
Passam os anos. Jim, sempre mais velho, doente, entra no hospital, na enfermaria dos
pobres. Logo parece que Jim vai morrer. O padre e a freira enfermeira estão perto da sua
cama.
- Jim, diga uma coisa: por que desde que você entrou nesta enfermaria, tudo mudou para
melhor, e o pessoal ficou mais contente, feliz e amigo?
- Não sei. Quando posso caminhar, vou aqui e ali, visitando todos, converso um pouco.
Quando estou na cama, chamo todos, faço todos rir, faço todos felizes. Com o Jim todos
estão sempre felizes.
- Mas por que você é feliz?
- Vocês, quando recebem uma visita todos os dias, não se sentem felizes?
- Certamente. Mas quem vem visitar você? Nunca vimos ninguém.
- Quando entrei nesta enfermaria pedi duas cadeiras: uma para você, outra para o meu
visitante, não veem?
- Quem é o seu visitante?
- É Jesus. Antes ia à Igreja visitá-lo, agora não posso mais. Então às 12h Jesus vem.
- E que coisa lhe diz Jesus?
- Diz: Jim, eis-me aqui, sou Jesus!...
Antes de morrer o vimos sorrir e fazer um gesto com a mão em direção à cadeira próxima
à sua cama, convidando alguém a assentar-se. Sorriu de novo e fechou os olhos (THUAN,
2000, p. 34-35).
O recolhimento, ou quiete da alma nos torna mais aptos a perceber Deus e
simplesmente estar es Sua Presença. Como diria santa Teresa D´Ávila, a vontade de Jim
está fixa no Senhor, ainda que o intelecto, a memória e a imaginação talvez continuem a
vaguear e a distrair-se. Mas, Jim, com suas visitas contínuas a Igreja pode alcançar níveis
mais profundos de mergulho no Senhor. Van Thuan, inspirando-se na história de Jim, sob
a escada da “oração de união”, ele diz:
Quando as forças me faltam e não consigo nem mesmo recitar minha oração,
repito: “Jesus, eis-me aqui, sou Francisco”. Vêm alegria e consolação, e
experimento que Jesus responde: “Francisco, eis-me aqui, Sou Jesus”.
Vocês me perguntam: quais suas orações preferidas?
Sinceramente, amo muito as orações breves e simples do evangelho: “Não há
mais vinho!” (Jo, 2,3).
Magnificat ... (Lc 1, 46-55).
“Pai, Perdoa-lhes...”
“In manus tuas” (em tuas mãos) ... (Lc 23,46)
Ut sint unum (que sejam um) ... tu, Pai, estás em mim ...” (Jo 17, 21)
“Miserere mei peccatoris (Ó Deus, tem piedade de mim, pecador)” (Lc 18, 13)
“Lembra-te de mim quando estiveres no paraíso” (Lc 23, 42-43) (THAUN,
2000, p. 36).
Como disse, fiquei 09 anos de isolamento para evitar doenças, devido à imobilidade,
como a artrose, caminhava todo dia fazendo massagem e exercícios físicos etc., rezando
cânticos como Miserere, Te Deum, Veni Creator e o hino dos mártires Sanctorum meritis.
Inspirados na Palavra de Deus, esses cânticos me comunicavam uma grande coragem para
seguir Jesus.
Para apreciar essas belíssimas orações, foi necessário experimentar a obscuridade do
cárcere e tomar consciência do fato que nossos sofrimentos são oferecidos pela fidelidade
à Igreja. Essa unidade com Jesus, na comunhão com o Santo Padre e toda a Igreja, sinto-
a de modo irreversível quando repito durante o dia: “Per ipsum et cum ipso et in ipso
(Por ele, com ele e nele)…” (p. 37).
Vem à minha mente uma oração muito simples de um comunista, é verdade, que primeiro
era um espião, mas que depois se tornou meu amigo. Antes da libertação me prometeu:
A minha casa fica a 3 quilômetros do Santuário de Nossa Senhora de Lavang. Irei até lá
rezar para você. Acreditei em sua amizade, mas duvidei que um comunista fosse rezar a
Nossa Senhora. Eis que um dia, talvez 6 anos depois, enquanto estava no isolamento,
recebi uma carta dele! Escrevia: “Caro amigo, prometi ir rezar a Nossa Senhora de Lavang
por você. Faço-o todos os domingos, se não chove. Pego minha bicicleta quando escuto
tocar o sino. A basílica foi inteiramente destruída pelo bombardeio, então vou ao
monumento da aparição que permanece ainda intacto. Rezo por você assim: Senhora, não
sou cristão, não conheço as orações, peço-te dar ao senhor Thuan o que ele deseja”. Fiquei
comovido no profundo do meu coração. Certamente Nossa Senhora o escutará (THUAN,
2000, p. 37-38).
O salmo 16, 3 diz “O Senhor colocou em meu coração um amor maravilhoso pelos
fiéis que habitam em sua terra”. De fato, o Senhor coloca esse amor em nosso coração à
medida que crescemos em nossa relação com Ele e expandimos este amor para com o
próximo. São Bernardo de Claraval descreve esse crescimento dinâmico em amor que é
o propósito da jornada espiritual. Ele nos coloca diretamente no coração do desafio de
Jesus no Sermão da Montanha: ampliar as fronteiras do nosso amor para além dos nossos
irmãos e amigos. E Santa Catarina de Sena explica os estágios da jornada espiritual em
termos de purificação progressiva e de um aprofundamento do amor. Ela usa a imagem
do corpo de Cristo pregado à Cruz como uma representação visual da jornada espiritual.
São três estágios: 1) processo de conversão – afastamento do pecado; 2) iluminação –
crescimento em virtude e entendimento; 3) união – profunda e permanente com Cristo.
São muitos os meios de que Deus se vale para purificar nosso amor por ele, mas
é preciso estar atentos a ligação essencial entre o amor a Deus e o amor ao próximo, assim
como vimos nos exemplos dos santos. Com já vimos, Van Thuan tinha consciência da
ligação entre amor e ação.
No texto de João que estamos meditando, antes de realizar o milagre, antes de
alimentar o povo faminto, Jesus rezou. Jesus quer ensinar-me: antes do trabalho
pastoral, social, caritativo, é preciso rezar.
João Paulo II nos diz: Conversem na oração e na escuta da Palavra; saboreiem a
alegria da reconciliação no sacramento da penitência; recebam o Corpo e o
Sangue de Cristo na eucaristia …. Descubram a verdade sobre vocês mesmo, a
unidade interior e encontrarão aquele “Alguém” que cura angústias, pesadelos e
aquele subjetivismo selvagem que não dá a paz. (Mensagem para XII Jornada
Mundial da Juventude, 1997, n. 3).
Pai, perdoa-lhes,
porque não sabem aquilo que fazem.
Pai, que sejam uma só coisa.
Lembra-te de mim,
quando estiveres em teu Reino.
A oração da Igreja
“Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a vós, Deus Pai Todo-Poderoso, na unidade
do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre”".
26
Clélia Peretti. Profª do Programa de Pós-Graduação em Teologia – Mestrado e Doutorado e do
Bacharelado, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Edith Stein, toma esta oração da Igreja e reflete sobre todo o seu sentido teológico.
No diálogo silencioso do coração com Deus compreende que a doação de si a Deus, por
amor e de modo ilimitado é a mais alta elevação do coração e a resposta divina a esta
doação - a união plena e constante - é a mais alta elevação atingível pelo coração, o mais
elevado grau da oração. As almas que atingiram tal grau são o verdadeiro coração da
Igreja: nelas vive o mais alto amor sacerdotal de Jesus. Ocultas em Deus, com Cristo, só
podem irradiar a outros corações o amor divino do qual estão plenificadas, participando
assim, na perfeição de todos na união com Deus, que foi e é o grande desejo de Jesus.
Todo louvor a Deus se realiza por, com e em Cristo. Por ele porque somente por
meio de Cristo a humanidade chega ao Pai e porque sua existência como Deus-homem e
sua obra de salvação são a mais perfeita glorificação do Pai. Com Ele, porque toda oração
verdadeira é um fruto da união com Cristo e, ao mesmo tempo, um aprofundamento desta
união. Assim, todo louvor ao Filho é também um louvor ao Pai. Do mesmo modo, quando
se louva ao Pai também o Filho é louvado. Em Cristo, porque a Igreja em oração é o
próprio Cristo - cada indivíduo que ora participa do seu Corpo Místico - e porque o Pai
está no Filho. O Filho é o reflexo resplandecente do Pai, cuja glória manifesta. O duplo
sentido de cada uma destas três expressões – “por ele”, “com ele” e “nele - exprime,
claramente, o papel de mediador do homem-Deus. A oração da Igreja é a oração do Cristo
sempre vivo. Seu modelo original é a prece do Cristo durante sua vida humana.
Van Thuan vive cada momento do cárcere como pão partilhado e realiza a partir
do encontro íntimo com Deus, um encontro com os outros prisioneiros, que se faz
comunhão, serviço de caridade com o próximo, nas pessoas que contacta reconhece irmãs
e irmãs, pelos quais o Senhor deu a sua vida amando-os até o fim” (Jo 13,1). “O pão que
Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo” (Jo 6, 51). Com estas
palavras, o Senhor revela o verdadeiro significado do dom da sua vida por todos os
homens; as mesmas mostram-nos também a compaixão íntima que Ele sente por cada
pessoa”. […] A vocação de cada um de nós consiste em ser unido a Jesus, pão repartido
para a vida do mundo. Quantas vezes já não nos sentimos “pão repartido” ... em nossa
caminhada.
Van Thaun, relata:
Toda semana há uma sessão de doutrinação, da qual todo o campo deve
participar. Nos momentos de intervalo, com os meus companheiros católicos,
aproveitamos para passar um pacotinho a cada um dos outros quatro grupos de
prisioneiros: todos sabem que Jesus está no meio deles, é ele que cuida dos
sofrimentos físicos e mentais. À noite, os prisioneiros se revezavam nos turnos
de adoração. Jesus eucarístico ajuda de modo tremendo com a sua presença
silenciosa. Muitos cristãos retornam ao fervor da fé durante aqueles dias. Até
budistas e outros não cristãos se convertem. A força do amor de Jesus é
irreversível. A obscuridade do cárcere se ilumina, a semente germinou da terra
durante a tempestade (THUAN, 2000, p. 45).
A Eucaristia como memória quotidiana da Igreja, nos introduz cada vez mais na
Páscoa do Senhor. Ela reforça a comunhão “e é somente sacramento de comunhão entre
irmãos e irmãs que aceitam reconciliar-se em Cristo, o Qual fez de judeus e gentios um
só povo, destruindo o muro de inimizade que os separava (Ef 2, 14)”. A Eucaristia, reforça
e estimula a reconciliação, o diálogo e o compromisso em prol da justiça. A restauração
da justiça, a reconciliação e o perdão são, sem dúvida alguma, condições para construir
uma verdadeira paz; desta consciência nasce a vontade de transformar também as
estruturas injustas, a fim de se restabelecer o respeito da dignidade do homem, criado à
imagem e semelhança de Deus; é através da realização concreta desta responsabilidade
que a Eucaristia se torna na vida o que significa na celebração” (SC, 2007, n. 89).
Do mesmo modo, “a Eucaristia arrasta-nos no ato oblativo de Jesus. Não é só de
modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica
da sua doação” (DC, n. 13). Na Eucaristia “a Ágape Deus vem corporalmente a nós, para
continuar sua ação em nós e através de nós […]. No próprio “culto”, na comunhão
eucarística, está contido o ser amado e o amar, por sua vez, os outros (DC, n.114).
Incessantemente, através da Sua Palavra, nos Sacramento, especialmente na Eucaristia,
O Senhor vem ao nosso Encontro (DC, 17).
Francisco Van Thaun, relata:
“Passei 9 anos no isolamento. Durante esse período celebro a missa todos os dias
pelas 3 horas da tarde: a hora de Jesus agonizante na cruz. Estou só, posso cantar
a minha missa como quero, em latim, francês, vietnamita… levo comigo o
saquinho que contém o Santíssimo Sacramento: “Tu em mim e eu em ti”. São as
missas mais belas (THUAN, 2000, p. 46).
Do mesmo modo como vimos na história de vida vivida no cárcere pelo cardeal
Francisco Van Thaun uma grande espiritualidade Eucarística, encontramos também na
vida de Edith Stein, judia, filósofa, convertida ao cristianismo. Há um fato que a própria
Edith Stein relata na sua autobiografia que sempre chamou minha atenção. Edith, escreve
sua autobiografia (vida de uma família judia) quando já estava na vida religiosa. Escreve
sua autobiografia entre os 1933-1939, mas, em maio de 1935, pouco tempo depois da sua
profissão religiosa, por ordem de seus superiores ela teve de interromper suas anotações
porque lhe foi pedido de terminar a sua importante obra filosófica (Ser finito ser eterno.
Por uma elevação do sentido do ser. Retoma somente em Echt 7 de Janeiro de 1939. Ela
escreve:
O último texto que escrevi relatava minha viagem de Breslávia para Friburgo,
em julho de 1916. Separei-me de Hans Lipps em Leipzig e viajei a noite toda até
Heidelberg. Desde os meus primeiros tempos de liceu, sonhara em estudar em
Heidelberg, o que nunca se realizou. Agora queira pelo menos conhecer a cidade
e, por isso, interrompi a viagem por um dia. Aliás, não estou bem certa se foi
durante essa viagem ou alguns meses mais tarde, quando voltei a Friburgo.
Também não sei bem em qual dessas viagens me encontrei com Pauline Reinach
em Frankfurt. Tínhamos muito a conversar enquanto passeávamos pela velha
cidade, que me era tão familiar por causa do livro Pensamentos e lembrança, de
Goethe. Mas não foi nem o Römerberg nem o Hirschgraben que me causaram
maior impressão. Por alguns minutos, nós entramos na catedral. Enquanto
estávamos lá, num ambiente silencioso e respeitoso, chegou uma mulher com
sua cesta de compras e ajoelhou-se para fazer suas orações. Para mim, aquilo era
algo totalmente novo. Era só para o culto religioso que se ia às sinagogas e às
igrejas protestantes que eu conhecia. Agora eu via ali alguém que, em meio as
suas preocupações cotidianas, dirigia-se à Igreja deserta para uma conversa
íntima. Aquela cena nunca saiu de minha memória (STEIN, 2018, p. 515-516)27.
27 STEIN, Edith. Vida de uma família judia e outros escritos autobiográficos. São Paulo/Paulus, 2018.
acompanhando o percurso da sua vida. Va se tornando menos exterior, menos referido ao
ambiente, e mais associado a consciência do que acontece em sua própria pessoa.
No nível da “experiência eucarística” encontramos vários acenos em muitos dos
seus escritos, tanto no âmbito da mulher, como nos mais estritamente pedagógicos e
antropológicos. Para Edith, a vida do cristão deve gravitar à volta da Eucaristia, como
mistério da presença, e como atualização da nossa redenção e vocação.
A seguir sintetizamos em grandes traços o seu pensamento eucarístico de Edith
Stein:
a) Deixar-se modelar por Cristo
A celebração da Eucaristia é o centro da vida da Igreja. Nela contempla a sua
origem e nascimento na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Uma obra realizada para
sempre, e que se renova continuamente através do memorial eucarístico, que é sacramento
da presença real de Cristo.
Quem compreende esta verdade não deixará passar a oportunidade de abeirar-se
o mais possível a quem é o centro da sua vida. Edith Stein não pode compreender que um
cristão convencido passe diante da Eucaristia com indiferença, e que prescinda dela no
programa da sua vida. Não é liturgismo, nem assistência obrigatória o que Edith defende,
mas vivência conforme ao que se crê.
Jesus Cristo deixou-nos os sacramentos como fonte ordinária da sua graça, como
meios que nos ajudam no caminho da santificação. Mas se nalgum deles se manifesta a
sua presença de um modo mais admirável é, precisamente, no sacramento da Eucaristia.
É o memorial da sua obra de redenção. É o sacramento da união-comunhão. É presença
real de Cristo e ação de graças ao Pai. É o ato supremo do culto dirigido a Deus. Por tudo
isto, torna-se a alma e o princípio da vida da Igreja.
A celebração eucarística cria continuamente a comunidade de Cristo e une os
homens entre si e com Deus. O viver cristão, para alcançar a sua plenitude, há-de
acomodar-se ao mistério eucarístico, uma vez que este significa e realiza o fim ao qual o
cristão é chamado: “a união mais íntima com” Cristo.
Cristo torna-se presente na Eucaristia como Verbo encarnado e como vencedor
sobre o pecado e a morte; como aquele que quer abrir um caminho na alma que o acolhe.
Todo o homem é convidado, se quiser configurar-se com Cristo, a “dar lugar para que o
Salvador eucarístico… possa transformar a nossa vida na sua” (OC IV, 241).
b) Viver eucaristicamente
Viver eucaristicamente consiste em viver a união com Cristo. União que implica
integração na vida da Igreja, Corpo de Cristo, pois “quando participamos no Santo
Sacrifício e na comunhão, alimentados com a carne e o sangue de Cristo, convertemo-
nos na sua carne e sangue” (OC V, 121). A importância que tem o fazer da própria vida
uma vida eucarística consiste em deixar que as verdades eucarísticas atuem eficazmente.
Trata-se essencialmente de três simples verdades de fé: 1. O Salvador está presente no
Santíssimo Sacramento. 2. Ele renova diariamente o seu sacrifício de cruz sobre o altar.
3. Ele quer unir intimamente consigo cada alma particular na Sagrada Comunhão” (OC
IV, 150-151).
A vida eucarística afeta a toda a pessoa, que se sente invadida pelos seus frutos:
do Salvador eucarístico recebemos força, paz e alegria, amor e disponibilidade. Ele
espera-nos para “acolher todas as nossas cargas, para nos consolar, aconselhar, para nos
ajudar como o mais fiel sempre amigo” (OC IV 151). Produz-se uma transformação do
ser que se vai modelando segundo Cristo: “significa sair das angústias da própria vida e
penetrar no horizonte infinito da vida da Cristo” (OC IV, 241).
Senhor,
dá-me do Teu Pão na noite Santa deste dia.
Eu quero receber o Pão vivo descido do Céu,
para acolher a Tua Vida, a Tua Pessoa, todo o Teu ser.
Não serei de fato eu a acolher-Te, mas Tu a transformares-me em Ti.
28
SANCHO, Javier. 100 Fichas sobre Edith Stein. Edições Carmelo, Avessadas, 2008,
pp. 205-206.
“Glória a Deus nas alturas e paz aos homens por Ele amados”.
Vem, Jesus Menino!
PRESENTE E PASSADO
Jesus amantíssimo,
nesta noite, no fundo de minha cela
sem luz, sem janela, quentíssima,
penso com intensa nostalgia
na minha vida pastoral.
No isolamento,
prisão de Phú Khánh (Vietnã central),
7 de outubro de 1976,
Festa do Santo Rosário.
RETIRO COM OS PADRES
ARQUIDIOCESE DE CURITIBA (PR)29
O ENCONTRO COM DEUS NAS TRILHAS DO COTIDIANO
9 de fevereiro de 2023 – Manhã
QUINTO PÃO: AMAR ATÉ A UNIDADE O TESTAMENTO DE JESUS
Fraternidade e empatia
“Caríssimos Jovens, vocês são chamados a ser testemunhas verídicas
do evangelho de Cristo, que faz novas todas as coisas… Tenham amor
uns aos outros. (João Paulo II, Mensagem para a XII Jornada Mundial
da Juventude, 19997, n.8).
29
Clélia Peretti. Profª do Programa de Pós-Graduação em Teologia – Mestrado e Doutorado e do
Bacharelado, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
30
Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de dezembro de 2005), 15: AAS 98 (2006), 230.
cumprimento da lei31, não é capaz de abrir-se ao outro, tomar conhecimento da dor do
outro. Van Thuan nos mostra na sua narrativa uma vivência empática que é muito mais do
que perceber o sentir do outro como próprio; é reviver as ações e os sentimentos do outro, é um
comum sentir com o outro, a capacidade de compreendê-lo, de saber partilhar com ele
pensamentos e emoções em diferentes situações.
Quando fui colocado no isolamento, fui confiado a um grupo de cinco guardas:
dois desses estão sempre comigo. Os chefes os mudam de duas em duas semanas
com os de outro grupo, para que não seja “contaminados” por mim. Depois
decidiram não mudar mais, pois de outra forma todos ficaram contaminados.
No início, os guardas não falavam comigo respondiam somente “yes” e “no”. É
muito triste; quero ser gentil, cortês come eles, mas é impossível, evitam falar
comigo. Não tenho nada para lhes dar de presente: sou prisioneiro, todas as
roupas são marcadas com grandes letras “cai-tão”, isto é, “campo de
reeducação”. Que devo fazer? (p. 53-54)
A pergunta: “Que devo fazer?”, com certeza levou Van Thaun a uma atitude
empática, considerada aqui “como a capacidade de penetração afetiva e de saber se
colocar no lugar do outro sem perder a própria individualidade; é uma especial percepção
do eu em relação ao tu e um saber sobre o outro (Peretti, 1997). Ainda, levou Van Thaun
a relembrar a importância do amor/caridade proposto na carta de São Paulo (1 Cor 12,31-
13,13). O Amor é paciente, é bondoso, não é nada exigente, arrogante, orgulhoso, jamais
é descortês, nunca interesseiro, não se irrita, não guarda rancor no coração, tudo desculpa,
Tudo Crê, Tudo Espera, Tudo Suporta. O Amor é infinito. Mas, ao mesmo tempo levou-
o a repensar no rapazinho do milagre dos cinco pães e dois peixes: partilhou o que tinha.
A excedência do amor leva à doação, vivida não como perda, mas como
saciedade, como gratuidade do dar, sem expectativas de retorno.
Van Thuan, diz:
Uma noite, me vem um pensamento: “Francisco, tu és ainda muito rico. Tens o
amor de Cristo em teu coração. Ama-os como Jesus te ama”. No dia seguinte
comecei a amá-los, a amar Jesus neles, sorrindo, trocando palavras gentis.
Começo a contar histórias de minhas viagens ao exterior, como vivem os povos
na América, Canadá, Japão, Filipinas, Cingapura, França, Alemanha…. A
economia, a liberdade, a tecnologia. Isso estimulou a curiosidade dos guardas,
e os excitou a perguntar-me muitas outras coisas. Pouco a pouco nos tornamos
amigos. Querem aprender línguas estrangeiras, francês, inglês…. Os meus
guardas se tornaram meus alunos! A atmosfera da prisão mudou muito. A
qualidade de nosso relacionamento melhorou muito. Até os chefes da polícia.
Quando viram a sinceridade de meu relacionamento com os guardas, não só
31Esse texto nos remete a parábola do bom samaritano de Lucas 10, 25-37. “Quando viu o homem caído
na estrada, passou pelo outro lado. 32 E assim também um levita; quando chegou ao lugar e o viu, passou
pelo outro lado. 33 Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando
o viu, teve piedade dele. 34 Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois
colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele 35. Passaram vários ao
lado do Samaritano, mas, foram-se não pararam, não deram atenção, mas houve quem parou para derramar
o óleo e o vinho.
pediram para continuar a ajudá-los no estudo de línguas estrangeiras, mas ainda
me mandaram novos estudantes. (THUAN, 2000, p. 54-55).
O Amor fraterno
Qual foi a última realidade que você mudou amando?
Para Van Thuan o amor fraterno, a simplicidade, a fidelidade ao Senhor leva a
nutrir “pelos guardas” a prática do amor. A mesma exigiu dele a partilha do “amor de
Cristo que carrega no seu coração”. Sem ignorar as dificuldades e perigos, ele foi ao
encontro dos guardas amando-os com ternura, multiplicando os pães com as experiências
de sua vida, atraindo para si, os olhares, a atenção, despertando nos guardas o
maravilhamento, o fascínio.
“Um dia um cabo me pergunta:
- O que você pensa do jornal ‘O Católico’?”
- Este jornal não fez bem nem aos católicos e nem ao governo, antes alargou o
fosso da separação.
- Porque se expressa mal; usam mal os vocábulos religiosos e falam de maneira
ofensiva. Como remediar essa situação?
- Primeiro, é preciso entender exatamente o que significa tal palavra, tal
terminologia religiosa…
- Você pode ajudar-nos?
- Sim, proponho-lhes escrever um vocabulário de linguagem religiosa de A a Z.
Quando vocês tiverem um momento livre, lhes explicarei. Espero que assim
possam compreender melhor a estrutura, a história, o desenvolvimento da Igreja,
as suas atividades…( THUAN, 2000, p. 55).
Este diálogo faz pensar na necessidade de na nossa missão, hoje, dialogar com a
diversidade, para facilitar caminhos de redescoberta e reapropriação daquela que é a
autêntica vocação do cristão: são chamados não apenas a transmitir conteúdos, mas a
sermos testemunhas de uma maturidade humana, promovendo dinâmicas geradoras de
paternidade ou maternidade espiritual, de acompanhamento e anúncio do Reino de Deus,
da Boa Nova da Páscoa. “Por essa razão, o principal requisito de um bom acompanhador
é ter experimentado pessoalmente “a alegria do amor”, que desmascara a falsidade das
gratificações mundanas e preenche o coração com o desejo de comunicá-lo aos outros!
(IL, n. 173). Deste modo, ou seja, vivendo a prática da caridade podemos nos tornar
“comunidades autênticas” e de contatos com “testemunhas radiantes e coerentes” (IL, n.
173).
- Você pode ajudar-nos? pergunta, o Cabo: Sim … Quando vocês tiverem um
momento livre, lhes explicarei.
É diante das circunstâncias da vida cotidiana que a Igreja é chamada a “sair, ver,
chamar” (DP III, 1.3), isto é, investir tempo para conhecer e confrontar-se com as
restrições e as oportunidades dos diferentes contextos sociais e culturais e fazer ressoar
nestes a chamada à alegria do amor.
“A experiência ou o encontro com as fragilidades pessoais, próprias ou alheias, de
um grupo ou de uma comunidade, de uma sociedade ou de uma cultura, são tão difíceis
quanto preciosos”. (IL, n. 145). Exigem discernimento e saída missionária. “Cada cristão
e cada comunidade há-de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos
somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de
alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho. (EG, n. 20).
Nesse sentido, somos chamados a uma conversão pessoal, pastoral, missionária
(EG 25) e eclesial ( EG 26). “Neste momento não nos serve uma simples administração
(EG 25), mas de “uma generosa renovação não só dos indivíduos, mas à Igreja inteira,
isto é, de emenda dos defeitos, que aquela consciência denuncia e rejeita, como se fosse
um exame interior ao espelho do modelo que Cristo nos deixou de Si mesmo” (EG 26).
O centro da renovação da Igreja consiste numa maior fidelidade à própria vocação:
que é a fidelidade a Jesus Cristo. Nesse sentido, somos, portanto, chamados, a responder
à vocação recebida, comunicando por toda parte, a gratidão e a alegria do encontro com
o Senhor. Por isso, é essencial renovar a cada manhã nosso encontro pessoal com Cristo
e/ou pelo menos, tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de escutar sua voz, ouvir
seus apelos de conversão. “Sem vida nova e espírito evangélico autêntico, sem ‘fidelidade
da Igreja à própria vocação’, toda e qualquer nova estrutura se corrompe em pouco
tempo” (EG 26).
Na montanha de Viñh Phú, na prisão de Viñh Quang, num dia de chuva tive de
cortar lenha. Perguntei ao guarda:
-Posso lhe pedir um favor?
- Queria cortar um pedaço de madeira em forma de cruz.
- Você não sabe que é severamente proibido ter qualquer símbolo religioso?
-Eu sei. Mas somos amigos, e prometo escondê-la.
-Seria extremamente perigoso para nós dois.
- Feche os olhos, farei agora e serei muito cauteloso. Você vai andando e me
deixe só.
Talhei a cruz e a conservei escondida num pedação de sabão até a minha
libertação. Com uma moldura de metal, esse pedaço de madeira tornou-se minha
cruz peitoral. (THUAN, 2000, p. 57).
Não importa como, mas cada dia precisamos revitar, lizar o nosso modo de ser de
Cristo, nossas opções pessoais pelo Senhor, renovar nosso amor por Cristo […] para uma
evangelização mais missionária, que conduza aos caminhos de plenitude de vida que
Cristo nos trouxe (DAp, 2007, n.13). O amor exige criatividade.
Em outra prisão pedi um pedaço de fio elétrico a meu guarda, que já se tornara
meu amigo. Ele se espantou:
- Estudei na escola de polícia que, se alguém quer um fio elétrico, significa que
quer suicidar-se.
Expliquei:
- Os sacerdotes católicos não cometem suicídio.
-Mas que coisa quer fazer com um fio elétrico?
-Queria fazer uma correntinha para levar a minha cruz.
- Como pode fazer uma corrente com um fio elétrico? É impossivel!
- Se você me trouxer duas pequenas tenazes, eu mostrei.
- É muito perigoso!
-Mas somos amigos!
Hesistou, depois disse:
- Responderei dentro de três dias.
Depois de tres dias, me disse:
- É dificil recusar qualquer coisa a você.
Pensei assim: nesta noite vou trazer duas pequenas tenazes, das 7 às 11, e nesse
tempo devems terminar esse trablho. Vou deixar meu companheiro ir a “hanoi
by night”. Se ele nos visse, surgiria uma denúnica perigosa para nós ambos.
Cortamos o fio elétrico em pedaço do tamanho de um fosforo, o moldamos… e
a corrente ficou pronta antes das 11 horas da noite.
Aquela cruz e aquela corrente levo comigo todos os dias, não porque são
lembranças da prisão, mas porque indicam minha convicção profunda, uma
constante exigência para mim: só o amor cristão pode mudar os corações, nem
as armas, nem as ameaças, nem a midia (THUAN, 2000, p. 59).
Ecoa aqui a voz do apostolo Paulo: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será
a tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?”
(Rm 8, 35).
Atividade - Eu e o Senhor
O que você quer oferecer ao Senhor neste dia? Que tal uma experiência a “sós”
diante do tabernáculo e ali na presença do Senhor rever o teu programa de vida e se for
preciso traçar um novo programa para poder dizer: “Vivo o testamento de amor de Jesus”
com minhas atitudes. Não tenha medo de permanecer em profundo silêncio com o
Senhor... Ele quer falar ao teu coração.... Aproveite desse tempo não só para programar a
tua vida mas, também a missão que o Senhor te confiou. “Tenho compaixão do povo”
(Mt 15,32), “São como rebanho sem pastor” (Mc 6, 34).
CONSAGRAÇÃO
2. “Tudo é graça.” “O vosso Pai sabe de que coisas precisais” (Mt 6,8).
Pai, firmemente creio: ordenas todas as coisas para o nosso maior bem, sempre.
Não cesses de guiar a minha vida. Acompanha cada um de meus passos.
Que coisa poderei temer? Prostrado, adoro a tua santa vontade.
Entrego-me totalmente a tuas mãos, é por teu intermédio que tudo acontece.
Eu que sou teu filho, creio que tudo é graça.
4. “Fazei tudo para a glória de Deus” (1Cor 10,31). “Seja feita a tua vontade” (Mt 6,10).
Pai, firmemente e sem hesitação creio que tu ages e operas em mim.
Sou objeto de teu amor e de tua ternura.
Tudo que posso dar-te, realiza-o com ainda mais louvor em mim!
Só procuro a tua glória, esta basta para minha satisfação e minha felicidade.
Esta é a minha aspiração maior, o desejo urgente da alma.
6. “Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco” (Lc 22,15). “Tudo está consumado” (Jo 19,30).
Pai amantíssimo!
Unido ao santo Sacrifício que continuo a oferecer, ajoelho-me neste instante e por ti pronuncio a palavra
que sai de meu coração: “Sacrifício”.
Um sacrifício que aceita a humilhação como a glória, um sacrifício gozoso, um sacrifício integral…
Canta a minha esperança e todo o meu amor.
32
Clélia Peretti. Profª do Programa de Pós-Graduação em Teologia – Mestrado e Doutorado e do
Bacharelado, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. 09 de fevereiro de 2023
33
NODET, B. Il pensiero e l’anima del Curato d’Ars. Turim, 1967, p. 305.
rosário. Sua resposta era: “Rezo um rosário pedindo a Maria pelos sacerdotes”. Esta não
sabe nem ler nem escrever. Mas são essas mães, essas avós, que formaram a vocação em
nossos corações” (THUAN, 2000, p. 67-68).
Van Thuan testemunha que Maria tinha uma função especial na sua vida. Ele foi
preso a 15 de agosto de 1975, festa da Assunção de Maria e foi libertado da prisão no dia
21 de novembro festa da apresentação de Maria no Templo após ter implorado a proteção
de Maria. Na sua vida, carregou sempre viva na memória a lembrança as palavras
dirigidas a Santa Bernadete pela Imaculada: “Bernadete, não te prometo alegrias, mas
provações e sofrimentos”. Esta mensagem ouvida em 1957 em ocasião a uma visita a
gruta de Lurdes acompanhou sua caminhada de presbítero. Ele afirma: “Não sem medo
aceitei essa mensagem”.
Quando as misérias físicas e morais, no cárcere, tornam-se muito pesadas e me
impedem de rezar, digo então a Ave-Maria, repito centena de vezes a Ave-Maria.
Ofereço tudo pelas mãos da Imaculada, pedindo-lhe distribuir graças a todos que
precisam na Igreja. Tudo com Maria, por Maria e em Maria (THUAN, 2000, p.
89).
Dessa maneira, reconhece que em sua expressão mais genuína de liberdade de fé,
pura e da graça com o seu sim, “Maria não foi instrumento meramente passivo nas mãos
de Deus, mas cooperou na salvação dos homens com fé livre e com inteira obediência”
(LG 56). A liberdade de fé expressa no fiat de Maria a desloca da situação de serva
34
BOFF, Lina. Maria, a mulher. In: Maria no coração da Igreja: Múltiplos olhares sobre a Mariologia.
São Paulo: Paulinas/União Marista do Brasil UMBRASIL, 2011, p. 40.
submissa, em sua livre iniciativa: “Maria sente o Deus libertador presente nela; é livre e
independente [...] ”35.
A espiritualidade mariana que todo o presbítero é convidado a cultivar encontra o
seu ponto vital nesta relação especial com Maria. Um dos meios para que essa relação
seja eficaz, é necessário uma “autêntica e crescente devoção à Virgem Maria” (Diretrizes
Gerais da Formação de Presbíteros da Igreja no Brasil, 2010, n.286). Van Thuan
testemunha sua devoção a Imaculada dizendo:
Não rezo a Maria, pedindo-lhe a intercessão, mas frequentemente lhe rogo: “Mãe
que posso fazer por ti? Estou pronto a cumprir tuas ordens, a realizar tua vontade
para o Reino de Jesus”. Então uma paz imensa invade o meu coração, não tenho
mais medo”. [...] Maria Imaculada não me abandonou. Tem-me acompanhado
ao longo de toda a marcha nas trevas do cárcere. Naqueles dias de provações
indizíveis, rezei a Maria com toda simplicidade e confiança: “Mãe, se tu vês que
não poderei mais ser útil à Igreja, concede-me a graça de terminar a minha vida
na prisão. Mas se tu, ao invés, sabes que poderei ainda ser útil à tua Igreja,
concede-me sair da prisão no dia da tua festa! (THUAN, 2000, p. 70).
Após esta sua prece, ouve tilintar o telefone do guarda. “Talvez um telefonema
para mim! É verdade, hoje é 21 de novembro, festa de Maria no Templo! (.....) p. 71-72.
Maria me liberta. Obrigada. Maria.
Santo Afonso de Ligório compreendeu que o caminho que leva à perda da fé
começa muitas vezes pela tibieza e frialdade na devoção à Virgem. Nesse sentido,
difundiu por toda parte a devoção mariana e preparou para os fiéis, e em especial para
os presbíteros, um arsenal de materiais para a pregação e propagação da devoção a essa
Mãe divina. A Igreja sempre entendeu que um ponto totalmente particular na economia
da salvação é a devoção à Virgem, Medianeira das graças e corredentora, e por isso
Mãe, Advogada e Rainha. João Paulo II afirmava que Afonso sempre foi todo de
Maria, desde o começo da sua vida até à morte36.
Cada um de nós deve ser também “todo de Maria”, tendo-a presente nos seus
afazeres ordinários, por pequenos que sejam. E não devemos esquecer-nos nunca,
sobretudo se alguma vez tivermos a desgraça de afastar-nos, de que “a Jesus sempre
se vai e se 'volta' por Maria”. Ela conduz-nos ao seu Filho rápida e eficazmente37.
O momento em que me sinto mais filho de Maria é na santa missa, quando
pronuncio as palavras da consagração. Sou identificado com Cristo, in persona
Christi.
35 ESTRADA, Juan Antonio. Para compreender como surgiu a Igreja. São Paulo: Paulinas, 2005, p. p.
524).
36
Papa São João Paulo II, Carta Apostólica Spiritus Domini, no segundo centenário da morte de
Santo Afonso Maria de Ligório, 1.º de agosto de 1987.
37
São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 495.
Pergunta-me quem é Maria, para mim, na radical escolha de Jesus? Na Cruz,
Jesus disse a João: “Eis aí a tua mãe!” (Jo 19, 27). Depois da instituição da
eucaristia o Senhor não podia deixar-nos nada maior do que sua Mãe. Para
mim, Maria é como um evangelho vivo, maneiro, de grande difusão, mais
acessível que a vida dos santos.
Para mim, Maria é minha Mãe, a mim dada por Jesus. A primeira reação de
uma criança quanto tem medo, está em dificuldade ou sofre, é a de chamar:
“mamãe, mamãe”. Essa palavra é tudo para o menino (THAUN, 2000, p. 71-
72).
38
LUBICH, CHIARA. Maria. Org. Brendan Leahy, Judith Povilus. Tradução: Luciano Menezes Reis.
Vargem Grande Paulista, SP. Cidade Nova, 2017.
39
LUBICH, CHIARA. Maria. Org. Brendan Leahy, Judith Povilus. Tradução: Luciano Menezes Reis.
Vargem Grande Paulista, SP. Cidade Nova, 2017, p.155.
Diante disso, além de ter Maria como um modelo a ser seguido, escutamos o que
ela tem a nos dizer:
De primeiro fugia de Maria, Mãe do perpétuo socorro; agora escuto Maria que
me diz: “Fazei tudo o que Jesus vos disser” (Jo 2, 5) e muitas vezes peço a Maria:
“Mãe, que posso fazer por ti?”. Permaneço sempre um menino responsável que
sabe compartilhar as solicitudes com sua mãe.
A vida de Maria se resume em três Palavras: Ecce, Fiat, Magnificat.
Ecce: “Eis a escrava do Senhor” (Lc 1,38).
Fiat: “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38)
Magnificat: “Minha alma engrandece o Senhor” (Lc 1,46). (Thuan, 2000, p.
73).
MARIA, MINHA MÃE