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ARQUIDIOCESE DE CURITIBA (PR)1

O ENCONTRO COM DEUS NAS TRILHAS DO COTIDIANO

07 de fevereiro – Manhã

Primeiro Pão: Viver o momento presente

Refletimos, ontem, sobre a necessidade de nos colocar a caminho no encontro


com Deus. Pedimos para que cada um antes de se deitar colocasse por escrito numa
folha seus títulos de estudo, seus cursos e descrevesse algumas de suas experiências de
suas vivências que marcaram sua vida. Esta folha iremos utilizá-la daqui a pouco.
De hoje até sexta-feira a História de vida do Cardeal Francisco Xavier Ngyen Van
Thuan relatada por ele no livro Cinco Pães e dois peixes . Do sofrimento do cárcere um
alegre testemunho de fé (2000) nos conduzirá em nossas reflexões. Francisco Xavier
Ngyen Van Thua sintetiza sua vivência carcerária de 13 anos com base na narrativa dos
cinco pães e dois peixes do Evangelho de São João 6, 5-11.
Levantem-se, vamos ouvir a palavra de Jesus:
Jesus, levantou os olhos e viu muita gente que vinha a ele, e disse a Felipe: ‘Onde
poderemos comprar pão para matar a fome desses?’ Isso dizia para pô-lo a prova,
porque sabia o que ia fazer. Respondeu-lhe Felipe: ‘Duzentos denários de pão
não são suficientes para dar um pedacinho para cada um’. Disse-lhe um de seus
discípulos, André, irmão de Simão Pedro: ‘Há aqui um rapazinho que tem cinco
pães de cevada e dois peixes. Mas o que é isso para tanta gente?’. Disse Jesus:
‘Fazei-os assentar-se!’. Havia muita relva naquele lugar. Assentaram-se os
homens, cerca de cinco mil. Jesus pegou o pão e deu graças, distribuiu-o a cada
um que estava assentado. Igualmente o fez com os peixes, a quantos quiseram.

Fixemos nosso olhar em Jesus, perguntamo-nos quem é Jesus, por que o amamos,
como deixar-se amar por Jesus, até segui-lo no radicalismo de nossas escolhas, sem
pensar na distância do caminho, no cansaço, na ausência de todo conforto. Fixemos Jesus
e em comunhão com o povo de Deus, com a comunidade que conosco caminha
depositemos no cesto vazio nossos conhecimentos, nossos saberes, nossas vivências.
Despojemo-nos deste saber para nos deixar “instruir” pelo mestre Jesus.
Olhemos novamente para Jesus e perguntamos: “Mestre, onde moras?”. Ficamos
atentos a sua resposta: “Vinde e Vede” (Jo, 138-39).

O seguimento de Jesus

1Clélia Peretti. Profª do Programa de Pós-Graduação em Teologia – Mestrado e Doutorado e do


Bacharelado, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
O Cardeal Francisco Xavier Nguyen van Thuan quando estava na prisão
renunciou a desgastar-se com a ânsia da sua libertação. A sua decisão foi “viver o
momento presente, cumulando-o de amor”; eis o modo como se concretizava: “aproveito
as ocasiões que vão surgindo cada dia para realizar ações ordinárias de maneira
extraordinária”2 (GE 17).
No seu livro Cinco pães e dois peixes. Do sofrimento do cárcere um alegre
testemunho de fé (2000), o Cardeal Francisco Xavier Nguyen van Thuan conta sua
experiência no seguimento de Jesus aos jovens. Dirigindo-se a eles, disse:
Então caríssimos jovens, faço como no trecho do Evangelho em que Jesus
oferece cinco pães e dois peixes. Não é nada em comparação a uma multidão de
milhares de pessoas, mas é tudo o que tem, e Jesus deles faz tudo: dom e mistério.
Como o rapaz no trecho do evangelho, resumo minha experiência em sete
pontos: 5 pães e 2 peixes. È nada, mas é tudo o que tenho. Jesus fará o resto.

Mais uma vez sofro interiormente porque a “mas media” quer fazer-me contar
coisas sensacionalistas, acusar, denunciar, provocar a luta, a vingança… Esse
não é o meu objetivo. O meu maior desejo é transmitir-lhe a minha mensagem
de amor, na serenidade, no perdão e na reconciliação. Quero compartilhar com
você as minhas experiências: como encontrei Jesus em todos os momentos de
minha existência cotidiana, no discernimento entre Deus e as obras de Deus, na
oração, na Eucaristia, nos meus irmãos e nas minhas irmãs, na Virgem Maria,
guia de meu caminho. Ao mesmo tempo quero gritar: “Vivamos o testemunho
de Jesus! Atravessemos o limiar da esperança!”
Roma, 2 de fevereiro de 1997
Festa da Purificação de Maria (THUAN, 2000, p. 7-8).

Refletir sobre nossa vocação, sobre o seguimento de Jesus significa


perceber sua presença na nossa vida, tomar consciência dessa presença
amorosa e cheia de compaixão. Todos enfrentamos momentos difíceis nestes
últimos anos devido a pandemia. Agora vivemos tempos de guerras, de
polarizações, de violências, de atos terroristas, de medo e inseguranças.
Estamos preocupados com nossas Igrejas ... como o retorno do povo de Deus...
Iluminados pelo caminho da sinodalidade, todos somos, por força do nosso
batismo, chamados a um processo de escuta, de oração, de “Saída missionária”,
de testemunho fiel e coerente do Evangelho.
Temos recebidos dons incalculáveis para acolher o dom da fé e viver no
seguimento do Senhor, como discípulos amados.
No Evangelho aprendemos a sublime lição de ser pobres seguindo a
Jesus pobre (cf. Lc 6,20; 9,58), e a de anunciar o Evangelho da paz sem
bolsa ou alforje, sem colocar nossa confiança no dinheiro nem no poder
deste mundo (cf. Lc 10,4 ss). Na generosidade dos missionários se

2THUAN, François-Xavier Nguyen Van. Cinco pães e dois peixes. Do sofrimento do cárcere um alegre
testemunho de fé. Tradução de João Batista Boaventura Leite. Aparecida, SP: Editora, Santuário, 2000.
manifesta a generosidade de Deus, na gratuidade dos apóstolos
aparece a gratuidade do Evangelho (DAp, n. 31).

Somos convocados a viver o momento presente, com seus desafios, com


suas diferentes demandas mas, sempre acreditando que “Jesus está presente”.
É no mundo desesperançado, fragilizado que os discípulos de Jesus
experimentaram a força da ressurreição de Cristo até se identificar
profundamente com Ele: “Já não vivo eu, mas é Cristo que vive em mim (Gl 2,20).

Viver o momento presente enchendo-o com amor


Ouçamos o testemunho de Francisco Xavier Nguyen van Thuan:
Meu nome é Francisco Xavier Nguyen van Thuan e sou vietnamita, mas na
Tanzânia e na Nigéria os jovens me chama, “Uncle Francis”. Assim é mais
simples chamar-me tio Francisco, ou melhor, só Franscisco.
Até 23 de abril de 1975 fui, por 8 anos, bispo de Nhatrang, no centro do Vietnã,
(1967 a 1975), primeira diocese que me foi confiada, onde me sentia feliz, e pela
qual conservo a minha predileção. Em 23 de abril de 1975, Paulo VI me
promoveu a arcebispo-coadjutor de Saigon. Quando os comunistas chegaram a
Saigon, me disseram que essa nomeação era fruto de um complô entre o
Vaticano e os imperialistas, para organizar a luta contra o regime comunista.
Três meses depois fui chamado ao palácio presidencial para ser preso: era o dia
da Assunção da Santíssima Virgem, 15 de agosto de 1975”3.

O que você faria diante de tal situação? Está preparado para Seguir Cristo no meio
das tribulações e dos sofrimentos? Em qual degrau me encontro na minha aproximação
com Jesus?
“Naquela noite, numa longa estrada de 450 Km que leva ao lugar de minha
residência obrigatória, tantos pensamentos confusos vieram à minha mente:
tristeza, abandono, cansaço, depois de 3 meses de tensão… Mas em minha mente
surgiu clara uma palavra que dispersou toda a escuridão, a palavra de Monsenhor
Jonh Walsh, bispo missionário da China, pronunciou quando foi libertado depois
de 12 anos de prisão: “passei metade da minha vida a esperar”. É bem verdade:
todos os presos, eu também, esperam a cada minuto a sua liberação, mas depois
decidi: “Não esperarei. Vivo o momento presente, enchendo-o com amor”.
Não é uma inspiração repentina, mas uma convicção que amadureci durante toda
a vida. Se passo o meu tempo a esperar, talvez as coisas que espero não
aconteçam mais. A única coisa que certamente acontecerá é a morte (THUAN,
2000, p. 12).

A perseguição por causa do nome de Cristo já estava presente no início da Igreja.


Os discípulos de Jesus foram perseguidos, feito prisioneiros. Na cidade de Filipos, Paulo
e Silas não desanimaram, presos e açoitados, ficaram até tarde da noite orando e
cantando louvores a Deus, e os outros presos os escutavam (At 16, 29-32).

3
No mesmo ano, foi preso em Saigon a 15 de agosto e detido nos cárceres de Saigon, Nhatrang,
Saigon, Haipong (dezembro de 1976), Vinh Phu(dezembro de 1976), Hanói (1977-1988). É
liberado a 21 de novembro de 1988
Os cristãos hoje continuam sendo perseguidos. O site do Vatican News,
informou no dia 18 de janeiro de 2023 que em 2022: foram mortos 5621 cristãos. O
Relatório foi apresentado na Itália em contemporânea com outros 24 outros países. É o
resultado do trabalho de uma equipe de pesquisadores que monitoram a realidade dos
cristãos em 100 países do mundo e revela que entre outubro de 2021 e setembro de 2022,
5621 cristãos foram mortos, 4542 presos e 5259 sequestrados - incluindo 4726 na Nigéria
-, enquanto 2110 igrejas ou edifícios cristãos foram atacados. Aumentam também os
sequestros entre os cristãos, sobretudo na África, principalmente na Nigéria, Moçambique
e na República Democrática do Congo. Dezenas de milhares de cristãos foram atacados
(espancados ou assediados com ameaças de morte) apenas por causa da sua fé; mais de
29.400 casos surgiram no ano passado, enquanto 4.547 casas e 2.210 lojas e empresas
foram atacadas. Além da violência, há também o assédio diário aos cristãos, incluindo
discriminação no trabalho, falta de acesso à saúde e educação, pressão e ameaças de
renunciar à sua fé, negação de alívio de calamidades e excesso de burocracia. A liberdade
religiosa na América Latina é ameaçada por má governança, criminalidade. A opressão
direta do governo contra os cristãos, percebida como vozes da oposição, é generalizada
na Nicarágua, Venezuela e Cuba, onde líderes cristãos foram presos mesmo sem
julgamento por seu envolvimento em manifestações.
Estamos preparados a perseguição e a responder as oposições que se fazem a fé
cristã, aos fundamentalismos, as “ideologizações da fé”?
Francisco Xavier Nguyen van Thuan, relata como era sua permanência na prisão:
Na aldeia de Cây-Vông, que me foi indicada como residência obrigatória,
sob a vigilância aberta e oculta da polícia “confundida” no meio do povo,
noite e dia a obsessão pelo pensamento: Povo meu! Povo meu que amo tanto:
rebanho sem pastor! Como posso entrar em contato com meu povo,
exatamente no momento em que precisa mais de seu pastor? As livrarias
católicas foram confiscadas, as escolas fechadas; as freiras, os religiosos
ligados ao ensino vão trabalhar nas lavouras de arroz. A separação é um
choque que destrói o meu coração.
Não esperarei. Vivo o momento presento, cheio de amor. Mas como?
(THUAN, 2000, p. 12-13).

É imprescindível que o discípulo se fundamente no seguimento radical do


Mestre, que lhe concede a força necessária, não só para não sucumbir diante das insídias
do materialismo e do egoísmo, mas, também diante do sofrimentos, da injustiças, das
perseguições e inclusive a morte. O Cardeal Francisco testemunha que na doação a vida
se fortalece, e se enfraquece no comodismo e no isolamento. Diz Papa Francisco na EG,
n. 10: “a vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros.
Isto é, definitivamente, a missão. Consequentemente, um evangelizador não deveria ter
constantemente uma cara de funeral. Recuperemos e aumentemos o fervor de espírito, a
suave e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com
lágrimas! [...]”.
Van Thau escreve:
Numa noite vem uma luz: “Francisco, é muito simples: faça como São Paulo
quando estava preso: escrevia cartas a várias comunidades”. Na manhã seguinte,
em outubro de 1975, fiz sinal a uma criança de 7 anos, Quang, que voltada da
missa às 5, ainda escuro: “Diga a sua mãe para comprar velhos blocos de
calendário”. Tarde da noite, de novo no escuro, Quang me trouxe os calendários
e em toda as noites de outubro e de novembro de 1975 escrevia a meu povo
minha mensagem do cativeiro. Todas as manhãs o menino vinha recolher as
folhas para levá-las a sua casa, e fazer recopiar a mensagem por seus irmãos.
Assim foi escrito o livro O Caminho da esperança, publicado em 8 línguas:
vietnamita, inglês, francês, italiano, alemão, coreano, chines (THUAN, 2000, p.
13-14).

As obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça


interior do Espírito, precisamos nos convencer disso. O relato a seguir nos faz entender
como atua o maravilhoso dom da graça.
A graça me deu a energia para trabalhar e continuar até nos momentos mais
desesperados. Escrevi o livro à noite, em um mês e meio, porque tinha medo de
não poder terminá-lo: temia ser transferido para outro lugar. Quando cheguei ao
número 1001 decidi encerrar: são como as “mil e uma noites…” (THUAN, 2000,
p. 14).

No Discurso inaugural da Conferência de Aparecida, o Papa Bento XVI dizia:


“Para cumprir a sua altíssima missão (o presbitero) deve possuir uma sólida estrutura
espiritual e viver a existência animada pela fé, esperança e caridade”. “Se o sacerdote
fizer de Deus o fundamento e o centro de sua vida, então experimentará a alegria e a
fecundidade da sua vocação”.
Com os ensinamentos da Palavra de Deus e à luz das orientações dos Pastores –
Papa e Bispos – nestes dias, procuremos discernir como tornar sempre mais transparente,
mais autêntico o nosso ministério, começando com uma renovada revisão de nossa vida
pessoal e espiritual.
Estejamos atentos. Não adiamos nosso compromisso de conversão, de nos deixar
encontrar por Deus. “Não esperarei. Vivo o momento presente, enchendo-o de amor” ,
dizia Van Thaun e aqui já estava em Gian-xá, no Vietnã do Norte, 1980.
Os apóstolos queriam escolher o caminho mais fácil: “Senhor, deixa a multidão
partir para que possa encontrar o alimento…”. Mas Jesus quer o momento
presente: “Deem vocês mesmo a eles o alimento” (Lc 9,13). Na cruz quando o
ladrão lhe disse: “Jesus, lembra-te de mim quando estiveres no teu reino”. Ele
respondeu: “Ainda hoje estarás comigo no paraíso! (Lc 23,42-43). Na palavra de
“hoje” sentimos todo o perdão, todo o amore de Jesus (THUAN, 2000, p. 14-
15).
Van Thaun nos convida a viver a radicalidade do Evangelho. Na Igreja da América
Latina temos muitos testemunhos valentes de santos e santas, e aqueles que, inclusive
sem terem sido canonizados, viveram essa radicalidade e ofereceram sua vida por Cristo,
pela Igreja e por seu povo (DAp 98. Mas, são pouco conhecidos por nós.

Padre Maximiliano Kolbe vivia esse radicalismo, quando repetia a seus noviços:
“tudo, absolutamente, sem condição”. Ouvi Dom Helder Câmera dizer: “A vida
é para aprender a amar”. Uma vez, Madre Teresa de Calcutá me escreve: “O
importante não é o número de ações que fazemos, mas a intensidade do amor
que colocamos em toda a ação”. Como atingir essa intensidade de amor no
momento presente? Penso que devo viver cada dia como o último de minha vida.
Deixar tudo que é acessório e concentrar-me somente no essencial. Cada palavra,
cada gesto, cada telefonema, cada decisão é a coisa mais bela de minha vida,
reservo a todos o meu amor, o meu sorriso; tenho medo de perder um segundo,
vivendo sem sentido….(THUAN, 2000, p. 14-15).

Trazemos aqui também o exemplo de Edith Stein, judia, cristã, filosofa, monja, mártir
no dia 9 de agosto de 1942, sob o poder nazista.

[...] antes de haver terminado o manuscrito [ciência da cruz], foi forçada pela
polícia alemã a deixar o convento de Echt, a 2 de agosto de 1942. A 6 de agosto,
foi reconhecida por uma das suas antigas alunas, na estação de Schifferstadt,
junto à janela de um vagão selado. Uma breve palavra foi sua última saudação:
“Diga a minhas irmãs que estou a caminho do Leste”. “Ad Orientem!” A última
fase do seu calvário começava. Não sabemos quando e onde atingiu o termo.
Muitos rumores correram, mesmo o de seu martírio na câmara de gás de
Auschwitz. Não houve nenhuma notícia segura.

No “Samba da Bênção”, Vinicius de Moraes canta: “A vida é a arte do encontro,


embora haja tanto desencontro pela vida” (Moraes, 1962, s/p.). No ano de 1955, Maria
Anna Nabuco publicou “Edith Stein: convertida, carmelita, mártir”, que se inicia com
estas palavras: “[...] Edith Stein, delicada e atraente, modesta e dinâmica, destaca-se pelos
raros dotes pessoais que foram o seu quinhão como pelos altos estudos que lhe
empolgaram a inteligência, e pela espiritualidade profunda que lhe cunhou
indelevelmente a alma” (Nabuco, 1955, p. 5).

Já não buscamos na terra, mas junto a Deus que aceitou seu sacrifício, cujo
fruto deu Ele ao povo pelo qual ela orou, sofreu e morreu, na plenitude da
palavra: BENEDITA DA CRUZ (Companhia da Virgem, 1958, p. 14-15).

Prosseguindo, Maria Anna Nabuco anuncia:

[...] Num campo — o da ciência abstrata, — distingue-se como filósofa, e


noutro, o da ascese, elevou-se à santidade.
[...]

Se, de fato, a ciência afastou Edith Stein de Deus, o estudo mais aprofundado
da mesma levou-a depois a descobri-lo. E desta descoberta, tirou as últimas
consequências; foi até o dom de si mesma, do seu sangue, de sua vida, numa
mor transcendente e numa interpretação perfeita das palavras do divino
Mestre: ‘Não há maior amor do que dar a vida pelo um amo’” (Nabuco, 1955,
p. 5).

Chamado à santidade
O Concílio Vaticano II salientou vigorosamente: “munidos de tantos e tão grandes
meios de salvação, todos os fiéis, seja qual for a sua condição ou estado, são chamados
pelo Senhor à perfeição do Pai, cada um por seu caminho” (LG 11).
Para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso. Todos
somos chamados a sermos santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho
nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra. Mas, para viver num caminho de
santidade, de perfeição é preciso deixar que a graça do Batismo frutifique, que a força do
Espírito Santo torne possível a santidade. A Santidade a que o Senhor nos chama, vai
crescendo com pequenos gestos de amor, de escuta, de compaixão.
Mas, sucede, às vezes, que a vida apresenta desafios maiores e, através deles, o
Senhor nos convida a novas conversões que permitam à sua graça manifestar-se melhor
na nossa existência, “para nos fazer participantes da sua santidade” (Heb 12, 10). Outras
vezes trata-se apenas de encontrar uma forma mais perfeita de viver o que já fazemos:
“há inspirações que nos fazem apenas tender para uma perfeição extraordinária das
práticas ordinárias da vida cristã”. 4

Escrevi o livro O caminho da esperança: “Para ti o momento mais belo é o


momento presente (cf. Mt 6,34; Tg 4, 13-15). Vive-o plenamente no amor de
Deus. A tua vida será maravilhosamente bela se for como um cristal formado de
milhões de tais momentos. Vê como é fácil” (ibidem, n. 997)
Carissimos jovens [sacerdotes], no momento presente Jesus precisa de vocês.
João Paulo II os chama, insiste mente, a enfrentar os desafios do mundo de hoje:
Vivemos uma época de grandes transformações, na qual desabam rapidamente
ideologias que pareciam dever resistir ao longo do tempo, e no planeta se vão
redesenhando limites e fronteiras. A humanidade encontra-se muito incerta,
confusa e preocupada (Mt 9,36), mas a palavra de Deus não desaba; percorre a
história e, na mudança dos acontecimentos, permanece estável e luminosa (Mt
24,35). A fé da Igreja é fundada sobre Jesus Cristo, único salvador do mundo:
ontem, hoje e sempre (Hb 13,8)” (João Paulo II, Mensagem para a II Jornada
Mundial da Juventude, 1997, n. 2)

4 São Francisco de Sales, Tratado do Amor de Deus, VIII, 11: Opere complete IV (Roma
2011), 468.
Num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança ou mesmo
o dever do ódio e da violência, ainda é possível “crer no amor de Deus” e, responder ao
dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro.
Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele » (1
Jo 4, 16). Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da
fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu
caminho. E, ainda, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula
sintética da existência cristã: “Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem”.
Na Carta Encíclica Deus Caritas Est - Sobre o Amor Cristão, Bento XVI assegura
que “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e,
desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1).
Nessa Carta destaca-se o nexo indivisível entre o amor a Deus e o amor ao
próximo: um exige tão estreitamente o outro que a afirmação do amor a Deus se torna
uma mentira, se o homem se fechar ao próximo ou, inclusive, o odiar. O citado versículo
joanino deve, antes, ser interpretado no sentido de que o amor ao próximo é uma estrada
para encontrar também a Deus, e que o fechar os olhos diante do próximo torna cegos
também diante de Deus (DCE 16).
“Na história de amor que a Bíblia nos narra, Ele vem ao nosso encontro, procura
conquistar-nos — até à Última Ceia, até ao Coração trespassado na cruz, até às aparições
do Ressuscitado e às grandes obras pelas quais Ele, através da ação dos Apóstolos, guiou
o caminho da Igreja nascente. Também na sucessiva história da Igreja, o Senhor não
esteve ausente: incessantemente vem ao nosso encontro, através de homens nos quais Ele
Se revela; através da sua Palavra, nos Sacramentos, especialmente na Eucaristia. Na
liturgia da Igreja, na sua oração, na comunidade viva dos crentes, nós experimentamos o
amor de Deus, sentimos a sua presença e aprendemos deste modo também a aprecia-la na
nossa vida quotidiana. Ele amou-nos primeiro, e continua a ser o primeiro a amar-nos;
por isso, também nós podemos responder com o amor. Deus não nos ordena um
sentimento que não possamos suscitar em nós próprios. Ele ama-nos, faz-nos ver e
experimentar o seu amor, e desta “antecipação” de Deus pode, como resposta, despontar
também em nós o amor” (DCE17)
É próprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e
incluir, por assim dizer, o homem na sua totalidade. O encontro com as manifestações
visíveis do amor de Deus pode suscitar em nós o sentimento da alegria, que nasce da
experiência de ser amados. Tal encontro, porém, chama em causa também a nossa
vontade e o nosso intelecto. O reconhecimento do Deus vivo é um caminho para o amor,
e o sim da nossa vontade à d’Ele une intelecto, vontade e sentimento no ato globalizante
do amor. Mas isto é um processo que permanece continuamente em caminho: o amor
nunca está « concluído » e completado; transforma-se ao longo da vida, amadurece e, por
isso mesmo, permanece fiel a si próprio. Querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa
é, segundo os antigos, o autêntico conteúdo do amor: um tornar-se semelhante ao outro,
que leva à união do querer e do pensar.
A história do amor entre Deus e o homem consiste precisamente no fato de que
esta comunhão de vontade cresce em comunhão de pensamento e de sentimento e, assim,
o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais: a vontade de Deus deixa
de ser para mim uma vontade estranha que me impõem de fora os mandamentos, mas é a
minha própria vontade, baseada na experiência de que realmente Deus é mais íntimo a
mim mesmo de quanto o seja eu próprio. Cresce então o abandono em Deus, e Deus torna-
Se a nossa alegria (cf. Sal 73/72, 23-28).

Atividade Reflexiva:
Na Presença do Senhor, procuremos agora nos desconectar de tudo, Deixa o
Senhor te Instruir. Permaneça na posição do discípulo amado. Viva com profundidade o
momento presente. Anote em poucas linhas a tua experiência de estar a sós com o
Senhor.
ORAÇÃO
NA PRISÃO, POR CRISTO

Jesus,
ontme à tarde, festa da Assunção de Maria,
fui detido.
Transportado durante a noite de Saigon
para Nhatrang,
quatrocentos e cinquenta quilômetros
de distância entre dois policiais,
comecei a experiência de uma vida
de encarcerado.
Quantos sentimentos confusos
na minha cabeça:
tristeza, medo, tensão,
meu coração dilacerado
por estar distanciado de meu povo.
Humilhado, recordo a palavra
da Sagrada Escritura:
“Foi contado entre os malfeitores
- et cum iniquis deputatus est” (Lc 22,37).
Atravessei de carro as minhas três dioceses,
Saigon, Phanthiet, Nhatrang:
com tanto amor a meus fiéis,
mas nenhum deles sabia que o seu Pastor
estava passando
pela primeira etapa de sua via-sacra.
Mas neste mar de extrema amargura,
sinto-me mais do que nunca livre.
Não tenho ninguém comigo,
nem uma moeda, só o meu rosário
e a companhia de Jesus e de Maria.
Na estrada do aprisionamento rezei:
“Meu Deus e meu tudo”.
Jesus,
enfim posso dizer como São Paulo:
“Eu Francisco, por causa de Cristo,
estou na prisão
-ego Franciscus, vinctus Jesu Christi
pro vobis” (Ef 3,1).
Na escuridão da noite,
no meio deste oceano de ansiedade,
de pesadelo,
pouco a pouco me desperto:
“Devo enfrentar a realidade”.
“Estou preso,
se espero o momento oportuno
para fazer alguma coisa
verdadeiramente grande,
quantas vezes na vida se apresentarão
semelhantes ocasiões?
Não, agarro as ocasiões que
se apresentam a cada dia,
para realizar ações ordinárias
de modo extraordinário.”
Jesus,
não esperarei, vivo o momento presente,
enchendo-o com amor.
A linha reta é feita de milhões de pequenos
pontos unidos um ao outro.
Também a minha vida é feita de milhões de
segundos e de minutos unidos um ao outro.
Coloco em ordem cada ponto
e a linha será reta.
Vivo com perfeição cada minuto
e a vida será santa.
O caminho da esperança é calçado
de pequenos passos de esperança.
Como tu, Jesus, que fizeste sempre
o que agrada a teu Pai.
A cada minuto quero dizer-te:
Jesus, eu te amo,
a minha vida é sempre uma
“nova e eterna aliança” contigo.
A cada minuto quero cantar
com toda a Igreja:
Glória ao Pai, ao Filho
e ao Espírito Santo…

Residência obrigatória
em Cây-Vông (Nhatrang, Vietnã central),
16 de agosto de 1975,
dia seguinte ao da Assunção de Maria.
RETIRO COM OS PADRES
ARQUIDIOCESE DE CURITIBA (PR)5
O ENCONTRO COM DEUS NAS TRILHAS DO COTIDIANO

07 de fevereiro -Tarde

2 SEGUNDO PÃO: DISCERNIR ENTRE DEUS E AS OBRAS DE DEUS

O tema central dessa tarde é o discernimento, um ato importante que se


refere a todos os cristãos. As escolhas constituem uma parte essencial da vida,
disse o Papa Francisco durante a primeira catequese sobre o discernimento, na
Audiência Geral no dia 31 de agosto de 2022. Discernir as escolhas. “Escolhe-se
uma comida, uma roupa, um curso de estudos, um emprego, uma relação. Em
tudo isso se realiza um projeto de vida, e se concretiza a nossa relação com
Deus”.
No Evangelho, Jesus fala do discernimento com imagens tiradas da vida
comum; por exemplo, descreve os pescadores que selecionam os peixes bons e
descarta os maus; ou o comerciante que sabe identificar, entre muitas pérolas,
a de maior valor. Ou aquele que, lavrando um campo, se depara com algo que
se revela um tesouro. A partir desses exemplos, “o discernimento se apresenta
como um exercício de inteligência, de perícia e inclusive de vontade, para
reconhecer o momento favorável: são estas as condições para fazer uma boa
escolha”. Segundo o Papa Francisco:
As decisões são tomadas por cada um de nós. Não há quem a tome por nós. Adultos,
livres. Podemos pedir um conselho, pensar, mas a decisão é própria. Não se pode dizer:
‘Eu perdi isso, porque meu marido decidiu, minha esposa decidiu, meu irmão decidiu’:
não! Você deve decidir, cada um de nós deve decidir. Por isso, é importante saber
discernir: para decidir bem é necessário saber discernir. (FRANCISCO, Catequese, 31de
agosto de 2022.

Para nosso Itinerário de reflexão tomamos como inspiração o capítulo 2 –


Segundo Pão: discernir entre Deus e as obras de Deus, de Van Thuan.

O dom do Discernimento

5
Clélia Peretti. Profª Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa Mestrado e Doutorado em
Teologia e Bacharelado. Presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião.
O mundo está aí, com suas luzes e sombras, com seus desafios individuais
e comunitários. O mundo está aí com sua beleza e fulgor, mas também com as
suas contradições e obscuridades. Temos o mundo das diferentes e ricas
manifestações religiosas e culturais, da solidariedade e da generosidade, mas
também o mundo homogêneo de determinado modelo econômico e
geopolítico que mata. Nele respiramos, mas, também podemos nos asfixiar.
No mundo de cada um de nós e no mundo de todos nós, sem uma bússola,
sem uma orientação, sem um discernimento a vida perde a sua direção. E sem
uma direção, nada faz sentido, tudo se torna banal, descartável, mutável, líquido.
• Como, então, encontrar a direção certa para nossa vida?
• Qual rumo queremos dar?
• Qual sentido dar a nossa vocação?
“Jesus chamou e enviou os que ele mesmo quis (cf. Mc 3, 13-19)”. Fomos
escolhidos e enviados. Este texto bíblico nos ajuda a aprofundar que a origem,
o centro e a meta de toda a vocação e missão é a pessoa de Jesus Cristo.
• Com tantas distrações, conexões rápidas e superficiais, como
buscar o que é essencial para a nossa vida de discípulos missionários, de
sacerdotes consagrados a Deus e ao povo? Escolhemos, de fato, o seguimento
de Jesus?
• Como, apesar das tempestades da vida, alegrar-se com as palavras
de Jesus: “Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo
10,10)?
• Como cultivar “Corações ardentes, pés a caminho" (Lc 24,32-33),
na nossa jornada espiritual e na nossa missão?
Na espiritualidade cristã, há uma bússola: o exercício do discernimento. Trata-
se de uma tradição já testemunhada pelo povo do Antigo Testamento e continuada no
Novo Testamento com a pessoa de Jesus, Paulo e João. Sabemos, também que a busca de
Deus em todas as coisas constitui o núcleo da espiritualidade e da oração de Santo Inácio
de Loyola e da Companhia de Jesus. Santo Inácio nos dá uma verdadeira metodologia
para fazermos o Discernimento dos Espíritos.
O Papa Francisco retomou, como bom Jesuíta, o tema do discernimento nas suas
catequeses, falando dos seus elementos essenciais: a oração, entendida como
familiaridade e confidência com Deus; o conhecimento de si. Conhecer a si mesmo. E
isto não é fácil, “pois o discernimento envolve as nossas faculdades humanas: a memória,
o intelecto, a vontade, os afetos. Muitas vezes não sabemos discernir porque não nos
conhecemos de modo suficiente, e assim não sabemos o que realmente queremos”.
(FRANCISCO, Catequese, 05 de outubros de 2022).
O discernimento é uma graça concedida por Deus e que também
corresponde a uma atitude, a uma intencionalidade, a uma procura consciente e
permanente da pessoa. Nesse sentido, discernir se aprende discernindo, não há
manuais para isso. É um exercício, uma prática cotidiana enraizada na vida, na
vocação, na comunidade, no mundo, apontando sempre para a Vontade de Deus.
Por ser graça qualquer pessoa que abra a sua mente e coração a Deus pode
receber o dom do discernimento.
Não se trata de um conhecimento para especialistas, sábios, doutores, mas de uma
dinâmica de comunicação de Deus com todos os que buscam o bem, o que faz lembrar as
palavras de Jesus: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas
coisas aos sábios e doutores e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11, 25).
Portanto, o discernimento não é um conhecimento meramente racional, abstrato
ou teórico, mas é aquele que encontramos no livro da Sabedoria que consegue diferenciar
o que é de Deus e o que não é de Deus. Ou, igualmente, aquele conhecimento de que tanto
nos fala Inácio de Loyola nos Exercícios Espirituais, e que pode ser pedido 6: “pedirei [...]
conhecimento interno do Senhor [...], para que mais o ame e o siga” 7.
Na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, o Papa Francisco nos diz: “Hoje
em dia, tornou-se particularmente necessária a capacidade de discernimento, porque a
vida atual oferece enormes possibilidades de ação e distração, sendo-nos apresentadas
pelo mundo como se fossem todas válidas e boas” (GE, n. 167).
É necessário, portanto, um “discernimento orante” este exige partir da
predisposição para escutar o Senhor, os outros, a própria realidade que não cessa de nos
interpelar de novas maneiras. Somente quem está disposto a escutar é que tem a liberdade
de renunciar ao seu ponto de vista parcial e insuficiente, aos seus hábitos, aos seus

6
“Dos céus sagrados, envia-a, manda-a de teu trono de glória para que me assista nos trabalhos,
ensinando-me o que te agrada” (Sb 9, 10).
7
SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Escritos de Santo Inácio: Exercícios Espirituais. Tradução R. Paiva. 3.
ed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 53 (EE 104). Título original: Ejercicios Espirituales. A partir de agora, para
citação das anotações de Santo Inácio contidas no livro dos Exercícios Espirituais utilizaremos apenas a
sigla EE seguida do número correspondente no corpo do texto.
esquemas” (GE, n. 172). Eu diria ainda as tentações do aparecer, a sedução e
exibicionismo. Nossa ação pastoral, celebrações litúrgicas, às vezes, tornam-se palco
desse exibicionismo autorreferencial, misturado de egolatria, ou seja, amor exagerado
pelo próprio eu; culto de si mesmo; narcisismo.
- Então, como ser apóstolos do Evangelho, apesar de tantas contradições e das
nossas fraquezas e defeitos?
- Em um mundo complexo e complicado, como viver a autenticidade do Evangelho
de Jesus, mantendo-nos fiéis à nossa vocação, sem ignorar a modernidade e a pós-
modernidade?
- Como superar as crises existenciais e vocacionais?
O cardeal Walter Kasper no seu livro Servidores da alegria. Existência sacerdotal
– serviço sacerdotal nos alerta: “precisa ter cautela” com a palavra crise, e entendê-la em
seu sentido original de desafio e de kairós, “isto é, como situação que nos foi dada por
Deus como dom e tarefa”.8 Observa: “Evidentemente a percepção do presbítero como
também sua própria autoimagem não permaneceram intactas perante as profundas
transformações dos últimos anos. A autopercepção e a percepção exterior dos presbíteros
tornaram-se incertas e indistintas em vários aspectos; e, não raro, o serviço, o ministério
e a forma de vida do presbítero são radicalmente questionados”. 9
Nesse sentido, o acompanhamento espiritual é importante sobretudo para o
conhecimento de si. O Acompanhamento “é uma condição indispensável para o
discernimento. Olhamo-nos no espelho, sozinhos, nem sempre ajuda, pois podemos
alterar a imagem. Ao contrário, olhar no espelho com o auxílio de outra pessoa, isto ajuda
muito pois o outro diz-te a verdade – quanto é verdadeiro – e assim ajuda-te”
(FRANCISCO, Catequese, 04 de jan. de 2023).

A prática do discernimento
Como exemplo da prática de discernimento olhamos a experiência do vietnamita,
o Cardeal Francisco Xavier Ngyuyen Van Thuan. Na introdução do Segundo pão:
discernir entre Deus e as obras, ele escreve:
É verdade, Jesus é um amigo exigente que indica altas metas … Derrubem as
barreiras da superficialidade e do medo, reconhecendo-se como homens e
mulheres ‘novos (JOÃO PAULO II, Mensagem para a XII Jornada Mundial da
Juventude, 1997, n. 3).

8
KASPER, WALTER. Servidores da alegria. Existência sacerdotal – serviço sacerdotal. São Paulo:
Edições Loyola, 2008, p. 11.
9
Ib., p. 10.
Francisco, o vietnamita declara que Jesus é um amigo exigente que indica altas
metas e nos predispõe para corresponder a sua proposta, consciente e livremente.
Ouçamos o relato de van Thuan (p. 21-23):
Quando eu era estudante em Roma, uma pessoa me disse: “A tua qualidade maior
é ser ‘dinâmico’, o teu defeito maior é ser ‘agressivo’”. Em todo caso sou muito
ativo, sou um batedor, capelão dos Rover, é um estímulo que me impele todos
os dias: correr contra o relógio, devo fazer tudo que me é possível para confirmar
e desenvolver na minha diocese de Nhatrang, antes que venham tempos difíceis,
quando estaremos sob o comunismo. Aumentar o número de Seminaristas
maiores, de 42 a 147, em 8 anos; de 200 seminaristas menores para 500 em 4
seminários: formação permanente de padres de 6 dioceses da Igreja
metropolitana de Hue; desenvolver e intensificar a formação de novos
movimentos de jovens, de leigos e de conselhos pastorais... Amo muito a minha
primeira diocese, Nhatrang (THUAN, 2000, p. 21).

A vida coloca-nos sempre diante de escolhas, e se não as fizermos de maneira


consciente, o final , é a vida que escolherá por nós. O discernimento não se faz sozinhos,
é indispensável o confronto com a Palavra de Deus, com a doutrina da Igreja e alguém
que possa nos guiar. Esses meios nos ajudam a ler o que se move no coração, aprendendo
a reconhecer a voz de Deus e a distingui-la de outras vozes, que parecem impor-se à nossa
atenção, mas que no final nos deixam confusos (FRANCISCO, Catequese, 21 de dez. de
2022).
Numa noite, das profundezas de meu coração senti uma voz que sugeria: ‘Por
que te atormentas assim? Deves distinguir entre Deus e as obras de Deus. Tudo
o que realizastes e desejas fazer: visitas pastorais, formação dos seminaristas,
religiosos, religiosas, leigos, jovens, construção de escolas, lares para estudantes,
missões para evangelização… tudo isso é um trabalho excelente, são obras de
Deus, mas não são Deus! Se Deus quiser que abandones todas essas obras
colocando-as em suas mãos, fazê-lo logo e tem confiança nele. Deus o fará
infinitamente melhor do que tu. Confiará suas obras a outros que são muito mais
capazes que tu. Escolhestes somente Deus, não suas obras (THUAN, 2000, p.
23-24).

Thuan, nos ensina que é importante ler o que se move dentro de nós, para não
tomar decisões apressadas, na onda da emoção do momento, para depois nos
arrependermos, quando já é demasiado tarde.

Estava sempre preparado para fazer a vontade de Deus. Mas essa luz me traz
uma nova força que muda totalmente o meu modo de pensar e me ajuda a superar
momentos fisicamente impossíveis. As vezes um programa bem desenvolvido
deve ser deixado incompleto; algumas atividades iniciadas com muito
entusiasmo encontram dificuldades; missões de alto nível rebaixadas a
atividades menores. Talvez estejas perturbado e desanimado. Mas o Senhor
chamou-me a seguir a ele ou a esta iniciativa ou àquela pessoa? Deixa o Senhor
agir: ele resolverá tudo para melhor (THUAN, 2000, p. 24).

Van Thuan relata:


Enquanto me encontro na prisão de Phú -Khánh, em uma cela sem janela, um
calor axfixiante, sufocante, sinto a minha lucidez diminuir pouco a pouco até a
inconsciência. Às vezes a luz continua acesa noite e dia, às vezes é sempre
escuridão. Há tanta umidade que os fungos crescem sobre minha cama. Na
escuridão vi um buraco debaixo do muro (para fazer escorrer a água). Por isso
passei mais de cem dias agachado com o nariz colado naquele buraco para
respirar. Quando chove, sobe o nível da água; pequenos insetos, pequenas rãs,
minhocas e centopéias vêm do lado de fora. Deixo-os entrar, pois não tenho
mais forças para afastá-las.
Escolher Deus e não as obras de Deus: Deus me quer aqui e não em outro lugar.
(THUAN, 2000, p. 24).

Diante desse estado espiritual definido como desolação, quando no coração é tudo
escuro, triste, este estado de desolação pode ser ocasião de crescimento. Com efeito, se
não houver um pouco de insatisfação, um pouco de tristeza saudável, uma capacidade
salutar de habitar na solidão, de estar conosco próprios sem fugir, corremos o risco de
permanecer sempre na superfície das coisas, sem nunca entrar em contacto com o íntimo
da nossa existência (FRANCISCO, Catequese, 16.nov de 2022).

Quando os comunistas me carregam para o porão do navio Hâi-Phòng com


outros 1.500 prisioneiros, para sermos transportados para o norte, vendo o
desespero, o ódio, o desejo de vingança no rosto dos presos, compartilho o seu
sofrimento, mas de repente esta voz me torna a dizer: “Escolhestes Deus e não
as obras de Deus”. Sem dúvida, Senhor, aqui é minha Catedral, aqui é o povo
de Deus que tu me deste para cuidar. Devo assegurar a presença de Deus no
meio destes irmãos desesperados, miseráveis. E tua vontade portanto é a minha
escolha” (p. 25).

Chegando à montanha de Viñh-Phú, no campo de reeducação, onde estão 250


prisioneiros, a maior parte não católicos, esta voz me diz de novo: “Escolhestes
Deus e não as obras de Deus”. “Sim, Senhor, tu me mandas aqui para ser o teu
amor no meio de meus irmãos, na fome, no frio, no trabalho cansativo, na
humilhação, na injustiça. Escolho-te, a tua vontade, sou o teu missionário aqui”.
(25-26).

Desde esse momento, uma nova paz enche meu coração, e permanece comigo
13 anos. Sinto a minha debilidade humana, renovo esta escolha frente às
situações difíceis, e a paz não faltou mais.

Quando declaro: “Por Deus e pela Igreja”, fico silencioso na presença de Deus e
a mim pergunto honestamente: “Senhor, trabalho somente por ti? È sempre o
motivo essencial de tudo aquilo que faço? Vou envergonhar-me em admitir que
há outros motivos fortes” (p. 26)

Escolher Deus e não as obras de Deus. È uma escolha bela, mas difícil. João
Paulo II vos interpela: “Caríssimos jovens, como os primeiros discípulos, sigam
Jesus! Não tenham medo de aproximar-se dele… Não tenham medo da ‘vida
nova’ que ele lhes oferece: ele mesmo lhes dá a possibilidade de acolhê-la e de
colocá-la em prática, com a ajuda de sua graça e o dom de seu espírito”.
(Mensagem para a XII Jornada Mundial da Juventude, 1997, n. 3).

João Paulo II encoraja os jovens mostrando-lhes o exemplo de Santa Teresinha


do Menino Jesus: “percorram com ela a via humilde e simples a maturidade
cristã, na escola do Evangelho. Fiquem com ela no ‘coração’ da Igreja, vivendo
radicalmente a escolha por Cristo” (Mensagem para a XII Jornada Mundial da
Juventude, 1997, n. 9).
O rapazinho do evangelho fez essa escolha, oferecendo tudo: 5 pães e 2 peixes
nas mãos de Jesus, com confiança. Jesus fez “as obras de Deus” dando de comer
a 5.000 mil homens, além de mulheres e crianças. (THUAN, 2000, p. 25-26)

Pausa: 5 minutos
O que é para ti o discernimento? Como você pratica o discernimento? O que
a vivência do Cardeal van Thuan

Algumas recomendações no processo de discernimento


O discernimento deve ser vivido em clima de oração, visto que não se trata
de uma decisão unicamente do indivíduo ou do puro resultado de ponderações
próprias, mas que envolve a alteridade da pessoa humana e a de Deus: encontro
de duas liberdades. O discernimento, portanto, é um processo dialogal. Quem
discerne questiona, escuta, responde, compromete-se. E o compromisso gerado
por uma resposta livre e consciente ao chamado pessoal de Deus não pode ser
entendido como algo conceitual ou volitivo, pois não se trata de viver buscando
perfeição de virtudes, mas de uma comunhão de vidas! Em outras palavras, uma
vida oferecida pelo Pai em Jesus Cristo e acolhida pela liberdade humana
resultando o Reino querido por Deus10.
Discernir, portanto, é conhecer e, naturalmente, transferir para o concreto
da vida a verdade que jorra do coração de Deus. A oração, aspecto fortemente
presente na pessoa de Jesus, permeia, inclusive, os seus últimos momentos na
terra: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23, 46).
O pilar do discernimento é a liberdade interior sem a qual seria verdadeira
utopia entrar num processo de discernimento. Esse processo exige abertura de
mentalidade, de sentimento, despojamento das próprias convicções, certa
maturidade humana e espiritual, pois se traduz numa atitude de querer e desejar
somente aquilo que mais nos conduz ao fim para o qual somos criados.
Diz Edith Stein no comentário que ela faz do castelo interior de Santa Teresa D'Ávila, escrito no apêndice da
sua obra magna: Ser finito e ser eterno. “O caminho de renúncia leva a busca do necessário, ao esvaziamento”. Na
experiência existencial de Edith Stein encontram-se momentos de renúncia e de desejo de fazer a Vontade divina
permitindo-se vivenciar o novo como um verdadeiro ordenamento de sua vida.

10
Cf. FREITAS, P. P. de. No calor do abraço divino. pp. 41-43.
No escrito, Como cheguei ao Carmelo de Colônia, em um parágrafo desse texto fica claro
seu desapego e a vivência do discernimento:
Antes da minha partida[de Friburgo], perguntei ao arquiabade o que deveria
fazer caso tivesse de abandonar minhas atividades em Münster. Ele não
conseguia acreditar que isso viria a acontecer. No caminho de minha viagem
para Münster, li um artigo no jornal sobre um grande congresso nacional-
socialista de professores, do qual as associações confessionais foram obrigadas
a participar. Para mim, ficou bem claro que em questões educacionais não seriam
permitidas quaisquer posições destoantes de orientação dominante. O Instituto
no qual eu trabalhava era uma instituição católica, fundada e mantida por
docentes católicos; portanto, seus dias estavam contados. Diante dessa situação,
eu devia esperar pelo fim de minha curta carreira docente. (STEIN, 2018, p.
541).

O olhar volta-se agora para sua vida e sua caminhada. É um olhar de alguém que
consegue ler e aperceber-se dos sinais interiores. Uma pessoa integrada que consegue ler
em sua própria história as vivências de seu itinerário existencial. Tem para com sua vida
um olhar livre, sem, contudo, deixa de perceber erros e falhas. Emerge uma certeza: a
vida tem uma meta e o verdadeiro encontro com a Verdade não se dá nesse mundo. Então,
compreende que sua vontade precisa ser ordenada, submetendo-se a todos os
acontecimentos providenciais, sejam eles, desejados ou permitidos por Deus, para um
caminho de crescimento e santificação.
O discernimento nos prepara para responder à pergunta mais fundamental
e importante de toda a nossa existência: como acertar na vida, como empregar
bem o maior dom que recebemos de Deus, a nossa liberdade”?11. Em outras
palavras, o discernimento nos predispõe para corresponder a uma proposta, não
aleatoriamente, mas consciente e livre. Disso, podemos dizer que uma sua
importância essencial é ser impulso que nos leva a decidir pela vontade de Deus,
a comungar com sua Verdade, Jesus Cristo.
A expressão “Vontade de Deus” compreende a referência ao Deus de Jesus
Cristo. Por isso, aderir a essa vontade é ao mesmo tempo decidir-se por Cristo,
pois “Ele é a imagem do Deus invisível” (Cl 1, 15). Isso significa renunciar ao
próprio instinto egoísta e confiar no Deus que nos pede e deseja um “sim”, como
o fez, por exemplo, Maria de Nazaré (cf. Lc 1, 26-38), visto que a Vontade de
Deus é sempre nova e diferente; e considerar, como o apóstolo Paulo: “o que
era para mim lucro eu o tive como perda, por amor de Cristo” (Fl 3, 7).

11
FREITAS, Paulo Pedreira de. No calor do abraço divino: resgatando o discernimento orante do 2º
tempo. Revista de Espiritualidade Inaciana, ITAICI, n. 47, p. 41, mar. 2002.
Mais ainda: tudo eu considero perda, pela excelência do conhecimento de
Cristo Jesus, meu Senhor. Por ele, eu perdi tudo e tudo tenho como esterco, para
ganhar a Cristo e ser achado nele” (Fl 3, 7-9a), é indispensável para o bom e
autêntico discernimento; é indispensável para encontrar aquele tesouro que vale
a pena deixar tudo (cf. Mt 13, 44-46); é indispensável ainda para descobrir um
pouco da experiência de Deus que teve Jesus Cristo e saborear a verdadeira
alegria.
Assim, a liberdade não é uma espécie de dispositivo que funciona somente
no momento de fazer ou escolher coisas, mas alcança o ser humano em sua
totalidade como pessoa. Jesus possuidor do discernimento infalível, vem colocar
em movimento o nosso discernimento titubeante, às vezes embotado ou
paralisado. É nele e não em nós mesmos que reconhecemos a vontade do Pai.
Cada um de nós, somos chamados a serem outras “Marias”; outros
“Paulos”; outros, enfim, “Jesus”. Neles encontramos algo em comum: a diligente
abertura ao Espírito de Deus; a fidelidade ao seu chamado, ao seu amor, tudo
em clima de muito discernimento e liberdade.

O processo de crescimento interior


O discernimento não é uma instância reservada apenas para alguns
cristãos, mas para a todos. Assim, “o discernimento, [...], é o verdadeiro modo,
[...], de poder colocar em prática e escolher as diversas opções concretas, e a
estratégia apostólica mais adequada, porque não é outra coisa que descobrir –
aqui e agora – o querer de Deus”12.
O discernimento faz parte da vida do homem de fé, vida segundo o Espírito
Santo. Portanto, o cultivo da vida interior não é um algo a mais, mas uma
realidade “imprescindível para viver abertos às surpresas de Deus”13 e colocá-las
em prática. A pessoa que tem discernimento sabe distinguir o que é certo ou
errado, verdadeiro ou falso na área espiritual, ou seja, sabe a diferença entre o

12
RANDLE, Guillermo. La ciencia del espíritu: adiestramiento integral para acompañantes
espirituales: dimensión funcional de la teología espiritual. 1ªed. Buenos Aires: San Benito, 2006.
p. 34. Tradução nossa.
13
PAGOLA, José Antônio. O caminho aberto por Jesus: Mateus. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 168.
que vem de Deus e o que não vem. Além disso, o discernimento nos ajuda a
identificar nossas fraquezas e erros e o que impede o progresso na nossa jornada
espiritual.
Os santos/as, nas suas biografias relatam que o entrave mais sério para o
progresso interior é o descaso em relação ao pecado. Teresa D’Ávila, no livro da
Vida (c. 4. 7, pp. 67) escreve: No tocante os pecados veniais, eu lhes dava pouca
atenção, e era isso que me destruía”. Ela ressaltava que, em parte, isso se deu
por causa do conselho “liberal e permissivo o que lhe era dado por padres
(MARTIN, 2019, p. 38) . (Engano espiritual).
O que era pecado venial eles diziam não ser pecado, e o quer era sério
pecado mortal eles diziam ser venial. Isso prejudicou muito. […]. Creio
que continuei nessa cegueira por mais de dezessete anos, até que um
padre dominicano, um homem versado, escarneceu-me muitas coisas.

Ao mesmo tempo, porém, Teresa reconhece que deveria ter uma


consciência instintiva do que era certo e errado, e que houvesse nela algo que a
fizesse aceitar tais conselhos com demasiada facilidade. Se olharmos para cada
um de nós, de fato, percebemos, uma inclinação a procurar conselhos que nos
deixarão seguir nossos desejos egoístas. Como ressalta Santa Teresa, a escolha
livre de cometer um pecado “leve” realmente é uma bobagem se estamos
tentando levar uma vida que agrade a Deus. (MARTIN, 2019, p. 39).
Um dos motivos mais comuns para as pessoas não progredirem na jornada
espiritual, é a falta de discernimento no tocante de como evitar aquelas ocasiões
que tendem a levar-nos a pecar. E esse foi o caso de Santa Teresa durante muitos
anos em que “andou em círculos” sem fazer progresso na jornada espiritual.
Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, n. 2 nos alerta: “O grande risco do
mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza
individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca
desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida
interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros,
já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce
alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem”.
Francisco continua dizendo: “Este é um risco, certo e permanente, que
correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas
ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna e plena,
este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida no Espírito que
jorra do coração de Cristo ressuscitado”.
O Papa Francisco faz um apelo a todos os cristãos: “Convido todo o cristão,
em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu
encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar
encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para alguém
poder pensar que este convite não lhe diz respeito, já que “da alegria trazida pelo
Senhor ninguém é excluído”.

O discernimento na Sagrada Escritura

No AT sua prática era ainda um pouco mecanicista, porque a compreensão


de Deus e de ser humano estava muito mais ligada aos sinais externos e na
autoridade do que nas intuições ou inspirações interiores. Frequentemente
encontramos nos versículos do Antigo Testamento exemplos de profetas
entranhados pelo desejo de fazer cumprir, aqui e agora, o querer de Deus, não
se limitando à maneira vigente dessa realização. Ao contrário, questionavam as
maneiras de Deus se revelar na História e não podiam aceitar o retrato de um
Deus tão arbitrário e intransigente. Nesse ponto, a ideia de Deus também era
objeto de discernimento e nascia da sua própria experiência, o que o leva a
justificar sua mensagem a partir do relato da própria vocação.
O profeta deveria ser coerente com o que profetizava. Por isso, o
discernimento não possui, caráter aleatório e/ou abstrato, mas está enraizado na
vida (objetivo), na vocação (subjetivo), na comunidade (povo de Israel), no
mundo (testemunho transmitido através da História), apontando sempre para a
vontade de Deus. Assim, “o critério último de discernimento profético é
juntamente subjetivo e objetivo. Este consiste no acordo de um homem que se
sabe enviado de Deus para falar a um povo que reconhece na palavra que lhe é
dirigida, a palavra de Deus que funda sua existência como povo de Deus” 14.

14
RANDLE, G. La ciencia del espíritu. p. 47. Tradução nossa
Essa prática espiritual do profeta de descobrir o plano salvífico de Deus
para si e para o povo, nada mais é do que exercício de discernimento, condição
para a santidade. Esta prática é encontrada também no livro da sabedoria (Sb 9,
6.9b-11.17-18).
O discernimento espiritual (ou a Sabedoria divina) nos ajuda a diferenciar
o valioso do efêmero; sendo um dom que ultrapassa os ideais humanos, pois
capta a Lei do Senhor, gerando um compromisso de vida mais autêntico. Propõe
uma vida, uma mentalidade, ações e reações formadas não só a partir do plano
moral e civil, mas, também e principalmente, a partir do Espírito divino.
O exercício do discernimento é um imperativo vital para os profetas.
Podemos, inclusive, encontrar posturas muito parecidas em Isaías e Jeremias.
Em Is 1, 3 a percepção comunicada é a de que até mesmo um boi ou um asno
conhecem seus donos, no entanto, Israel não conhece seu Deus. Jeremias se
queixa da ignorância do povo: lerdo para o bem e ágil para o mal. Assim como
Isaías, se refere também aos animais e fala que mais atentas são as aves do céu,
pois conseguem conhecer o momento de suas migrações. Já “o meu povo não
conhece o direito do Senhor” (Jr 8, 7)15.
Que conhecimento é esse tão importante que o povo eleito despreza,
como observam os profetas? Por que é tão importante? Que conhecimento é esse
tão importante que o povo eleito despreza, como observam os profetas? Por que
é tão importante? Segundo Randle, “é um conhecimento em ordem a diferenciar
onde está Deus e onde não [está] nos acontecimentos da vida, para tomar
decisões de acordo com tal conhecimento” 16.
A ausência do conhecimento de Deus é sinônimo de imaturidade humana
e espiritual; e também de confusão. Porque incapaz de diferenciar o positivo do
negativo, o ser humano não conseguirá assumir responsabilidades (não seria,
portanto, um sujeito livre), muito menos identificar as diversas moções 17

15
Grifos nossos
16
RANDLE, G. La ciencia del espíritu. p. 48. Tradução nossa.
17
16 Segundo Werner, moções “são dinamismos interiores que atraem a pessoa para algo. São propostas
interiores (sugestões) vindas de fora do querer de quem as experimenta. Aparecem como pensamentos
[...] e produzem reações emocionais [...]. Podem ser descritas também como movimentos ‘dentro da
pessoa’ que ‘puxam’ para algo, sendo sentidas como apelos, chamamentos ou atrações”. WERNER,
Cláudio. Rodapé 256. In: SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Escritos de Santo Inácio: Exercícios
Espirituais. 3ªed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 119.
interiores para escolher o melhor caminho a seguir. Resulta também em certa
inconstância na vida, pois não há clareza suficiente nas escolhas. Portanto, o
discernimento, que nasce “de uma sensibilidade cheia de fidelidade [...] à aliança
[de Deus], do reconhecimento de seus benefícios, da comunicação e intimidade
com Ele, do amor”18, garante uma vida mais coerente e feliz. Em outras palavras,
uma vida mais voltada para o reconhecimento de Deus e de sua ação na História
e na história de cada pessoa.
Em Deus não há confusão ou mescla entre luz e trevas; com Ele sempre
seguimos o melhor. O discernimento, dom de Deus, é, dessa forma, um convite
a fazer o bem e buscar o justo: “Tirai da minha vista as vossas más ações! Cessai
de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, corrigi o opressor!
Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva” (Is 1, 16-17)!

A prática de discernimento na pessoa de Jesus


Vejamos agora como a radicalidade do discernimento aparece na pessoa
de Jesus de Nazaré, na vida de alguns santos, na nossa vida, na vida da Igreja.
Jesus é o protótipo do discernimento cristão. Em qualquer circunstância,
discernir os caminhos que levavam à vontade do seu Pai foi para ele tarefa
incansável; levava “uma vida de amor de discernimento e tornou-se para nós o
objeto de nosso próprio discernimento” 19.
Os relatos evangélicos nos mostram um Jesus que não se conformava com
os possíveis da vida, mas dentre os possíveis escolhia sempre aquele que mais
agradava o coração de Deus20. Entre ele e o Pai havia verdadeira relação de
comunhão e solidariedade. Os relatos evangélicos nos apresentam um Messias
que se nos revela com a própria existência que nossa vida é luta, havendo,
portanto, um adversário que deve ser combatido. No episódio das tentações no
deserto observamos que Jesus teve um discernimento vivido, concreto, sabido

18
RANDLE, G. op. cit., p. 49. Tradução nossa.
19
GREEN, T. H. GREEN, Thomas H. Ervas daninhas entre o trigo: discernimento: onde oração e ação
se encontram. São Paulo: Loyola, 2005. p. 53.
20
Cf. CUSTÓDIO FILHO, S. Exercícios na vida cotidiana (EVC). p. 16. Em conformidade com o
comportamento de Jesus que diante dos possíveis da vida escolhia somente aqueles que mais agradavam
ao Pai, citamos o apóstolo Paulo que em Rm 12, 2 diz: “E não vos conformeis com este mundo, mas
transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é
bom, agradável e perfeito”.
por experiência e não pelo cumprimento automático de leis e regras como faziam
os fariseus.
O autor da Carta aos Hebreus (Heb 4, 15b) no diz que “Aquele que triunfou
sobre o mal não é indiferente às nossas fraquezas, “pois ele mesmo foi provado
em tudo como nós, com exceção do pecado”. Viveu nossa vida, experimentou o
sofrimento, solidarizou-se com os seus. E, ele “é capaz de ter compreensão por
aqueles que ignoram e erram, porque ele mesmo está cercado de fraqueza. E
embora fosse Filho, aprendeu, contudo, a obediência pelo sofrimento” (Heb 5,
2.8).
Temos aqui a chave para compreender o discernimento de Jesus:
alguém que é tentado e que experimenta o sofrimento não parece ter clara a sua
missão e a sua identidade. Mesmo assim, ainda pode nos parecer um tanto
surpreendente enxergar essa realidade na pessoa de Jesus. A nossa velha
mentalidade de um Jesus “pronto”, todavia, deve dar espaço ao Jesus humano
que conheceu o conflito até os seus últimos passos neste mundo, “sobretudo nas
dificuldades traçadas diretamente pelo inimigo, e indiretamente por intermédio
de alguns fariseus e de seus próprios discípulos” 21. Jesus nos ensina, dessa
forma, com a própria vida, sobre a necessidade da constante vigilância, pois não
podemos cair no engano de ignorar o conflito, visto que se assim procedermos
nos acharemos numa confusão ainda maior.
Abrindo um parêntese , na verdade, o que nos impede a progredir na
nossa jornada espiritual, de dar uma resposta incondicional ao chamado de Jesus,
não são as circunstâncias externas de nossa vida, mas a indolência interior do
nosso coração. Precisamos reconhecer que nunca haverá melhor momento nem
melhor conjunto de circunstâncias que agora para uma resposta incondicional
ao chamado à santidade.
É o que igualmente a epístola de Pedro nos ensina: “Sede sóbrios e
vigilantes! Eis que o vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir,
procurando a quem devorar. Resisti-lhe, firmes na fé, sabendo que a mesma
espécie de sofrimento atinge os vossos irmãos espalhados pelo mundo” (1Pd 5,
8-9). Essa batalha contra o “inimigo da natureza humana” e “pai da mentira”

21
RANDLE, G. La ciencia del espíritu. p. 55. Tradução nossa.
nada mais é do que exercício de discernimento ou, de outro modo, tarefa de
diferenciação entre a presença e ação de Deus e a do nosso adversário.
A partir dos Evangelhos sinóticos, a saber: Mateus, Marcos e Lucas,
podemos observar ainda, que a realidade do discernimento
consiste substancialmente em ‘reconhecer’ na pessoa e na ação de Jesus
o poder do Espírito de Deus e a derrota do espírito do mal. [...]; os que
o acolhem descobrem nele os caminhos do Espírito; os outros continuam
lendo as Escrituras sem compreendê-las e veem Jesus passar sem
reconhecer que Deus está nele 22.

Esses evangelistas nos apresentam a partir do relato das palavras e obras


de Jesus um discernimento em ação, vivido, enquanto nas Cartas do Novo
Testamento encontramos um discernimento mais refletido, mais em forma de
doutrina. O “duplo reconhecimento” com relação à pessoa de Jesus é o que
marca substancialmente o discernimento nos sinóticos. Ele mesmo, Jesus, é o
motivo de nosso discernimento, como também o discernimento aparece “em
motivo de um processo de assimilação e crescimento por parte dos discípulos,
certamente trabalhoso, mas graças ao qual vão descobrindo em Jesus os
caminhos do Espírito”. Desse modo, dizemos que a revelação de Deus em Jesus
Cristo é objeto de discernimento “que faz de Deus um descobrimento
existencial e não uma imposição intelectual”.

DEUS E A SUA OBRA

Por causa de teu amor infinito,


Senhor,
me chamaste a seguir-te,
a ser teu filho e teu discípulo.

Depois me confiaste uma missão


que não se assemelha a nenhuma outra,
mas com o mesmo objetivo das outras:
ser teu apóstolo e testemunha.

Todavia, a experiência me ensinou


que continuo a confundir
as duas realidades:
Deus e a sua obra.

Deus me deu a realização de suas obras.


Algumas sublimes,
outras mais modestas;

22
BARRUFO, A. Discernimento. p. 286.
algumas nobres,
outras mais comuns.

Empenhado na pastoral paroquial,


entre os jovens,
nas escolas,
entre os artistas e os operários,
no mundo da imprensa,
da televisão e do rádio,
coloquei todo o meu ardor
empregando todas as capacidades.
Não poupei nada,
nem mesmo a vida.

Quando assim apaixonadamente


mergulhei na ação,
encontrei a desconfiança,
a ingratidão,
a recusa em colaborar,
a incompreensão dos amigos,
a falta de apoio dos superiores,
a doença e a enfermidade,
a falta de meios…

Igualmente me chegou, em pleno sucesso, enquanto era


objeto de aprovação,
de elogios e de apego por todos,
ser repentinamente deslocado
e mudado de função.
Eis-me, então, preso pelo atordoamento
vou às apalpadelas,
como na noite escura.

Por que, Senhor, me abandonas?


Não quero desertar a tua obra.

Devo terminar tua tarefa,


ultimar a construção da Igreja…

Por que os homens atacam a tua obra?


Por que a privam de seu sustento?

Diante de teu altar, perto da Eucaristia,


senti a tua resposta, Senhor:
“Sou eu aquele que segues
e não minhas obras!
Se o quero entregarei a tarefa
a mim confiada.
Pouco importa quem assumirá o teu posto;
é assunto meu.
Deves escolher a mim!”

Do isolamento em Hanói (Vietnã do Norte),


11 de fevereiro de 1985,
Memória da Aparição da Imaculada em Lourdes
RETIRO COM OS PADRES
ARQUIDIOCESE DE CURITIBA (PR)23
O ENCONTRO COM DEUS NAS TRILHAS DO COTIDIANO
Quarta-feira – 08 de fevereiro - Manhã

TERCEIRO PÃO: UM PONTO FIRME, A ORAÇÃO

Logo no início do ministério de Jesus, dois discípulos vieram até Ele e


perguntaram-Lhe: “Mestre, onde moras”? A resposta breve mas, profunda de Jesus aos
discípulos “Vinde e Vede” (Jo 1,38–39), não foi só um convite para conhecer Jesus, mas
permanecer com Ele, conhecer sua missão e tomar parte dela. A relação que se estabelece
entre Jesus e os discípulos é mais forte do que aquela de um mestre com seus discípulos.
Os discípulos são convidados a participar da vida de Jesus e conhecer a relação que une
o Pai e o Filho também no mesmo projeto de salvação da humanidade.
Essa experiência direta dos discípulos com Jesus nos convence da necessidade de
um ponto firme na nossa vida - a oração. É o que o vietnamita, o Cardeal Francisco Van
Thuan chama de Terceiro Pão. Inspirando-se em João Paulo II, escreve para os jovens:
“Saibam escutar no silêncio da oração a resposta de Jesus: “Vinde e Vede’” (João Paulo
II, Jornada Mundial da Juventude, 1997, n.2).
Ouçamos o texto bíblico:
No dia seguinte, João se achava lá de novo com dois discípulos. Ao ver Jesus
que passava, disse: “Eis o Cordeiro de Deus”. Os dois discípulos ouviram-no
falar e seguiram Jesus. “Jesus voltou-se e, vendo que eles o seguiam, disse-lhes:
“Que estais procurando?”. Disseram-lhe: “Rabi (Mestre). Disse-lhe: “Vinde e
vede”. Então, eles foram e viram onde morava, e permaneceram com ele aquele
dia. Era por volta das quatro da tarde. André, irmão de Simão Pedro, era um dos
dois que ouviram as palavras de João e seguiram Jesus. Ele foi encontrar
primeiro seu irmão Simão e lhe disse: ‘Encontramos o Messias (que quer dizer:
Cristo)’. Então André conduziu Simão a Jesus. Jesus olhou bem para ele e disse:
‘Tu és Simão, filho de João; tu serás chamado Cefas’ (que quer dizer: Pedra).
(Jo 1, 35-39).

Todos nós guardamos na nossa memória a lembrança de encontro com alguém


que nos marcou na nossa vida. Essa lembrança retorna, de modo particular, quando
estamos sozinhos e ou vivemos momentos difíceis. Emerge em nossa recordação os
momentos de alegria, de felicidade, de paz que vivenciamos em companhia com a aquela
pessoa amada, que nos acolheu, nos escutou, empatizou conosco etc.

23Clélia Peretti. Profª do Programa de Pós-Graduação em Teologia – Mestrado e Doutorado e do


Bacharelado, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
O texto bíblico de Jo 1, 35-39 que acabamos de ouvir nos remete a experiência
que os primeiros discípulos fizeram com Jesus. Eles tiveram um convite inesperado, uma
decisão inadiável. Foram ver onde Jesus morava e permaneceram com Ele, conheceram
sua pessoa, sua proposta de vida e saíram deste encontro testemunhas de que Jesus, era o
enviado de Deus. Emergem desse texto três elementos:
1.O texto mostra que não basta apenas seguir Jesus por exemplo de outrem, mas
é preciso tomar consciência do que buscamos quando manifestamos o desejo de segui-
lo: “Voltando-se para eles e vendo que o estavam seguindo, Jesus perguntou: ‘O que
estais procurando?’” . Esta pergunta, aparecerá no início do Evangelho de João; é uma
pergunta que se torna chave de leitura para todo o evangelho, pois corrige a generalidade
do seguimento e exige compromisso com todas as consequências de quem optou livre e
conscientemente por Jesus.
Esta pergunta aparecerá em outros dois contextos no evangelho de João, em
momentos de encontros decisivos com Jesus: quando os soldados vão prendê-lo no horto
(Jo 18,5.7)24 e, na manhã da ressurreição, no encontro com Madalena (Jo 20,15) 25. Tomar
consciência do que buscamos, confrontando-o com o que encontramos, é a condição
necessária para assumir a vocação com perseverança e fidelidade, pois quando não
sabemos o que buscamos, nunca seremos capazes de testemunhar o que encontramos.
2. A reação dos discípulos: “Mestre, onde moras?” introduz o convite: “Vinde e
vede!”. Permanecer com o Mestre é justamente o segundo elemento da experiência
vocacional. “Foram, pois ver onde ele morava (permanecia) e, nesse dia, permaneceram
com Ele”.
Ilude-se, portanto, quem opta por seguir Jesus e o abandona, até apelando para
justificativas aparentemente louváveis, como a missão, o imediato serviço aos outros, o
urgente empenho pastoral. Pode-se até mesmo reconhecer um desejo irresistível de
anunciá-lo, de falar dele a outrem, porém, sem a cotidiana experiência do permanecer
com Ele, de falar com Ele, de deixar que Ele exerça a sua missão e autoridade de Mestre,
corre-se o risco de cair num ativismo desgastante onde restará apenas o vazio,
consequência de uma não permanência junto Dele. [consequência de uma vida espiritual
vazia]. Jesus não apenas fala da necessidade de permanecer com Ele para produzir frutos

24
“Sabendo Jesus tudo o que lhe aconteceria, adiantou-se e lhes disse: ‘A quem procurais?”. Responderam:
‘Jesus, o Nazareno. Disse-lhes: “Sou eu”, recuaram e caíram por terra. Perguntou-lhes, então novamente:
“A quem procurais”? Disseram: “Jesus, o Nazareno” (Jo, 18,5.7).
25
“Jesus diz: “Mulher, por que choras? A quem procuras?” . Pensando ser ele o jardineiro, ela lhe diz: ‘
Senhor, se foste tu que o levaste, diz-me onde o puseste e eu irei buscar”! .
(Jo 15,5), mas garante que Ele mesmo permanecerá com seus discípulos, a quem não
chama servos, mas amigos (Jo 15,5.7).
3. O terceiro elemento fundamental da experiência vocacional: o anúncio do
encontro com Jesus. André… um dos dois que seguiram a Jesus foi encontrar primeiro
seu irmão Simão e lhe disse: ‘Encontramos o Messias… André conduziu Simão a Jesus”.
O encontro dos dois discípulos de João com Jesus e a experiência do permanecer com Ele
estão na base do autêntico processo de discernimento vocacional (que não se dá somente
no processo de formação), que culminará no testemunho. Não são apenas informações
sobre uma situação vivenciada, mas uma convicção compartilhada de uma resposta dada
livre e conscientemente a um chamado. Jesus chamando Simão de Cefas lança o desafio
para quem quer segui-lo, construir sobre a rocha o seu relacionamento com Ele, pois a
casa que não está fundamentada na pedra, não permanece num alicerce seguro,
desmorona.
O encontro pessoal com Jesus, o “permanecer com Ele”, então, desperta nos
discípulos um desejo maior pela vocação e missão. O Papa Francisco na EG, n. 120, diz:
Os discípulos missionários, logo depois de terem conhecido o olhar de Jesus,
saíram proclamando cheios de alegria: “Encontrámos o Messias” (Jo 1, 41). A
Samaritana, logo que terminou o seu diálogo com Jesus, tornou-se missionária,
e muitos samaritanos acreditaram em Jesus “devido às palavras da mulher” (Jo
4, 39). Também São Paulo, depois do seu encontro com Jesus Cristo, “começou
imediatamente a proclamar […] que Jesus era o Filho de Deus” (At 9, 20). Por
quem esperamos nós? (EG 120).

O Papa Francisco argumenta na EG, n. 92, que todos “são/somos chamados a


testemunhar de forma sempre nova, uma pertença evangelizadora; a crescer como
evangelizadores (EG, n. 121), a dizer não ao mundanismo espiritual, que se esconde por
detrás de aparências religiosas e até mesmo de amor à Igreja, na busca da glória humana,
do poder, do bem-estar pessoal, do cuidado com a aparência, da procura dos “próprios
interesses, não aos interesses de Jesus” (Fl 2,21). (EG, n. 93). Nos adverte que este
mundanismo pode alimentar-se de duas maneiras profundamente relacionadas: pelo
gnosticismo e o pelo neopelegianismo.
1) O fascínio do gnosticismo, que define como “uma fé fechada no subjetivismo,
onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e
conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a
pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos”;
2) Neopelegianismo – se refere ao “neopelagianismo auto-referencial
prometeuco de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças e se sente superior aos
outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo
católico próprio do passado. [O neopelagianismo] é uma suposta segurança doutrinal ou
disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de
evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça,
consomem-se as energias a controlar.
“Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem os outros interessam
verdadeiramente. São manifestações dum imanentismo antropocêntrico. Não é possível
imaginar que, destas formas desvirtuadas do cristianismo, possa brotar um autêntico
dinamismo evangelizador” (EG, n. 94).
De acordo com o Papa Francisco, esse obscuro mundanismo se manifesta em
muitas atitudes, aparentemente opostas, mas, com a mesma pretensão de dominar os
espaços da Igreja.
A seguir analisamos algumas atitudes elencadas nos números 95-a 99 da EG, que
caracterizam o mundanismo espiritual:
1. exibicionismo da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja – o
Evangelho fica em segundo plano, não há inserção na vida do povo e a vida
da Igreja se transforma numa peça de museu ou numa possessão de poucos;
2. o mundanismo espiritual se esconde por detrás do fascínio do poder:
vontade de mostrar conquista sociais e políticas, na vanglória ligada à
gestão de assuntos práticos, numa atração pelas dinâmicas da auto-estima
e de realização auto-referencial;
3. uma densa vida social cheia de viagens, reuniões, jantares, recepções, etc;
4. funcionalismo empresarial, carregado de estatísticas, planificações e
avaliações, onde o principal beneficiário não é o povo de Deus, mas a
Igreja como organização; (burocratização das atividades pastorais).
5. falta de ardor evangélico e o gozo espúrio duma autocomplacência
egocêntrica;
6. a vanglória do poder – alguns preferem ser generais de exércitos
derrotados antes de que simples soldados de um batalhão que continua
lutar. Quantas vezes sonhamos planos apostólicos expansionistas,
meticulosos e bem traçados, típicos de generais derrotados!
7. o pecado do “deveriaqueísmo” – entretemo-nos vaidosos falar sobre o que
se deveria fazer – como mestres espirituais e peritos de pastoral que dão
instruções ficando de fora.
8. o cultivo ilimitado da imaginação, da fantasia, leva perder o contato com
a dolorosa realidade do povo fiel.
9. A rejeição da profecia dos irmãos -, desqualificação de quem nos
questiona, destacando os erros alheios e vivemos obcecados pela
aparência.
10. o coração fechado na própria imanência e nos próprios interesses e,
consequentemente, não aprende com os seus pecados nem está aberto ao
perdão. É uma tremenda corrupção com aparências de bem (EG, n. 97).
11. Vive-se a face de uma [longe de] Igreja mundana sob vestes espirituais ou
pastorais!
12. não à guerra entre nós, nas diferentes comunidades, com os outros cristãos,
que se interpõem na sua busca pelo poder, prestígio, prazer ou segurança
econômica
13. cuidado com a tentação da inveja.
Tudo isso, porque “o discípulo de Cristo”, “o clero”, “o presbítero” não traz o selo
do Cristo Encarnado, crucificado e ressuscitado, encerra-se em grupos de elite, não sai
realmente à procura dos que andam perdidos nem das imensas multidões sedentas de
Cristo.
“Este mundanismo asfixiante cura-se saboreando o ar puro do Espírito Santo, que
nos liberta de estarmos centrados em nós mesmos, escondidos numa aparência religiosa
vazia de Deus. Não deixemos que nos roubem o Evangelho!” (EG, n. 97).
Este mundanismo asfixiante cura-se no testemunho da comunhão fraterna: “Por
isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo
13,35). Foi o que Jesus, com uma imensa oração, pediu ao Pai: “Que todos sejam um só
[…] em nós [para que] o mundo creia” (Jo 17,21).
Este mundanismo asfixiante cura-se fugindo as tentações, frequentemente,
apresentadas sob forma de desculpas e queixas de não termos tempo de “permanecer em
oração”, de nos alimentar da sua Palavra.
Este mundanismo asfixiante cura-se com a formação do nosso caráter, do nossas
emoções, dos nossos sentimentos, com um aprofundamento do nosso amor e um
testemunho mais vivo do Evangelho (EG 121).
O mundanismo asfixiante cura-se: “Somente graças ao encontro – ou reencontro
– com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz. Nesse encontro é que somos
resgatados da nossa consciência isolada e da auto-referencialidade” (EG 8).
De fato, nos curamos do mundanismo asfixiante quando tomamos a decisão de
nos deixar encontrar pela Pessoa de Jesus, de O procurar dia a dia sem cessar. “Quem
arrisca, o Senhor não o desilude; e, quando alguém dá um pequeno passo em direção a
Jesus, descobre que Ele já aguardava de braços abertos a sua chegada” (EG, n. 3).

Oração de presença

Todavia, há dias na nossa vida, como testemunha o Cardeal Francisco Van Thuan,
que não conseguimos rezar uma oração.
Depois da minha libertação, muitas pessoas me disseram: “Padre, o Senhor teve
muito tempo para rezar na prisão”. Não é assim simples como podem pensar. O
Senhor me permitiu experimentar toda a minha fraqueza, minha fragilidade
física e mental. O tempo passa lentamente na prisão, em particular durante o
isolamento. Imaginem uma semana, um mês, dois meses de silêncio … São
terrivelmente longos, mas quando se transformam em anos, tornam-se uma
eternidade. Um provérbio vietnamita diz: ‘um dia na prisão é como mil outonos
fora’. Ali houve dias em que, reduzido ao maior cansaço, à doença, não consegui
rezar uma oração! (THUAN, 2000, p. 33).

Van Thuan vem a sua lembrança a do velho Jim e narra aos jovens curiosos sobre
como ele conseguia rezar na prisão. Ele diz:
Vem-me à lembrança uma história, a do velho Jim. Todo dia às 12h, Jim entrava na Igreja,
não mais do que dois minutos, depois saia. O sacristão era muito curioso e um dia deteve
Jim e lhe perguntou:
- Por que vem aqui todos os dias?
- Venho para rezar.
- Impossível! Que oração você pode dizer em dois minutos?
- Sou um velho ignorante, rezo a Deus do meu jeito.
- Mas que coisa você diz?
- Digo: Jesus, eis-me aqui, sou Jim. E me vou.
Passam os anos. Jim, sempre mais velho, doente, entra no hospital, na enfermaria dos
pobres. Logo parece que Jim vai morrer. O padre e a freira enfermeira estão perto da sua
cama.
- Jim, diga uma coisa: por que desde que você entrou nesta enfermaria, tudo mudou para
melhor, e o pessoal ficou mais contente, feliz e amigo?
- Não sei. Quando posso caminhar, vou aqui e ali, visitando todos, converso um pouco.
Quando estou na cama, chamo todos, faço todos rir, faço todos felizes. Com o Jim todos
estão sempre felizes.
- Mas por que você é feliz?
- Vocês, quando recebem uma visita todos os dias, não se sentem felizes?
- Certamente. Mas quem vem visitar você? Nunca vimos ninguém.
- Quando entrei nesta enfermaria pedi duas cadeiras: uma para você, outra para o meu
visitante, não veem?
- Quem é o seu visitante?
- É Jesus. Antes ia à Igreja visitá-lo, agora não posso mais. Então às 12h Jesus vem.
- E que coisa lhe diz Jesus?
- Diz: Jim, eis-me aqui, sou Jesus!...
Antes de morrer o vimos sorrir e fazer um gesto com a mão em direção à cadeira próxima
à sua cama, convidando alguém a assentar-se. Sorriu de novo e fechou os olhos (THUAN,
2000, p. 34-35).
O recolhimento, ou quiete da alma nos torna mais aptos a perceber Deus e
simplesmente estar es Sua Presença. Como diria santa Teresa D´Ávila, a vontade de Jim
está fixa no Senhor, ainda que o intelecto, a memória e a imaginação talvez continuem a
vaguear e a distrair-se. Mas, Jim, com suas visitas contínuas a Igreja pode alcançar níveis
mais profundos de mergulho no Senhor. Van Thuan, inspirando-se na história de Jim, sob
a escada da “oração de união”, ele diz:

Quando as forças me faltam e não consigo nem mesmo recitar minha oração,
repito: “Jesus, eis-me aqui, sou Francisco”. Vêm alegria e consolação, e
experimento que Jesus responde: “Francisco, eis-me aqui, Sou Jesus”.
Vocês me perguntam: quais suas orações preferidas?
Sinceramente, amo muito as orações breves e simples do evangelho: “Não há
mais vinho!” (Jo, 2,3).
Magnificat ... (Lc 1, 46-55).
“Pai, Perdoa-lhes...”
“In manus tuas” (em tuas mãos) ... (Lc 23,46)
Ut sint unum (que sejam um) ... tu, Pai, estás em mim ...” (Jo 17, 21)
“Miserere mei peccatoris (Ó Deus, tem piedade de mim, pecador)” (Lc 18, 13)
“Lembra-te de mim quando estiveres no paraíso” (Lc 23, 42-43) (THAUN,
2000, p. 36).

O desafio de meditar e de orar

Meditar – refletir sobe as Escrituras ou alguma leitura espiritual – é um


componente importante e necessário da oração. Meditar, significa pensar em Deus. Orar,
por sua vez, é falar com Deus, seja em palavras ou na contemplação silenciosa. Para todos
as pessoas, meditar e orar são atividades difíceis em momentos e graus variados, tal como
o eram também para Santa Teresa, Edith Stein, os santos que tivemos oportunidade de ler
sua biografia. O momento mais precioso para a meditação e a oração é o da madrugada.
E quando não temos a Bíblia conosco, o que fazer? Van Thuan nos da uma bela
lição:
No cárcere não pude levar comigo a Bíblia. Então juntei todos os pedacinhos de
carta que encontrei e fiz uma minúscula agenda, na qual transcrevi mais de 300
frases do evangelho. Este evangelho reconstruído e reencontrado ficou sendo o
meu vade-mécum cotidiano, o meu escrínio (exame) precioso para obter força e
alimento da lectio divina.
Amo rezar toda a palavra de Deus: orações litúrgicas, salmos, cânticos. Amo
muito o canto gregoriano, que recordo em grande parte de memória. Graças a
formação do seminário, esses cânticos litúrgicos entraram profundamente no
meu coração! Depois as orações de minha língua nativa, que toda a família reza
à noite na capela da família, tão comoventes que lembram minha infância.
Principalmente as três Ave-Marias e o Memorare (lembrai-vos), que minha mãe
me ensinava a rezar de manhã e à tarde (THAUN, p. 2000, p. 36-37).
Não há dúvidas de que a Palavra de Deus nos educa para a santidade. A Lectio
divina, a escuta da voz de Cristo, o encontro pessoal e comunitário com Ele, nos leva a
mudar de vida, a viver a solidariedade, a partilha, o serviço, a trabalhar pela justiça,
reconciliar-se e trazer a paz e a alegria para dentro de nossas comunidades. A experiência
da leitura orante da palavra concede uma experiência de unidade com a Igreja e de
sinodalidade.

Como disse, fiquei 09 anos de isolamento para evitar doenças, devido à imobilidade,
como a artrose, caminhava todo dia fazendo massagem e exercícios físicos etc., rezando
cânticos como Miserere, Te Deum, Veni Creator e o hino dos mártires Sanctorum meritis.
Inspirados na Palavra de Deus, esses cânticos me comunicavam uma grande coragem para
seguir Jesus.
Para apreciar essas belíssimas orações, foi necessário experimentar a obscuridade do
cárcere e tomar consciência do fato que nossos sofrimentos são oferecidos pela fidelidade
à Igreja. Essa unidade com Jesus, na comunhão com o Santo Padre e toda a Igreja, sinto-
a de modo irreversível quando repito durante o dia: “Per ipsum et cum ipso et in ipso
(Por ele, com ele e nele)…” (p. 37).
Vem à minha mente uma oração muito simples de um comunista, é verdade, que primeiro
era um espião, mas que depois se tornou meu amigo. Antes da libertação me prometeu:
A minha casa fica a 3 quilômetros do Santuário de Nossa Senhora de Lavang. Irei até lá
rezar para você. Acreditei em sua amizade, mas duvidei que um comunista fosse rezar a
Nossa Senhora. Eis que um dia, talvez 6 anos depois, enquanto estava no isolamento,
recebi uma carta dele! Escrevia: “Caro amigo, prometi ir rezar a Nossa Senhora de Lavang
por você. Faço-o todos os domingos, se não chove. Pego minha bicicleta quando escuto
tocar o sino. A basílica foi inteiramente destruída pelo bombardeio, então vou ao
monumento da aparição que permanece ainda intacto. Rezo por você assim: Senhora, não
sou cristão, não conheço as orações, peço-te dar ao senhor Thuan o que ele deseja”. Fiquei
comovido no profundo do meu coração. Certamente Nossa Senhora o escutará (THUAN,
2000, p. 37-38).

O salmo 16, 3 diz “O Senhor colocou em meu coração um amor maravilhoso pelos
fiéis que habitam em sua terra”. De fato, o Senhor coloca esse amor em nosso coração à
medida que crescemos em nossa relação com Ele e expandimos este amor para com o
próximo. São Bernardo de Claraval descreve esse crescimento dinâmico em amor que é
o propósito da jornada espiritual. Ele nos coloca diretamente no coração do desafio de
Jesus no Sermão da Montanha: ampliar as fronteiras do nosso amor para além dos nossos
irmãos e amigos. E Santa Catarina de Sena explica os estágios da jornada espiritual em
termos de purificação progressiva e de um aprofundamento do amor. Ela usa a imagem
do corpo de Cristo pregado à Cruz como uma representação visual da jornada espiritual.
São três estágios: 1) processo de conversão – afastamento do pecado; 2) iluminação –
crescimento em virtude e entendimento; 3) união – profunda e permanente com Cristo.
São muitos os meios de que Deus se vale para purificar nosso amor por ele, mas
é preciso estar atentos a ligação essencial entre o amor a Deus e o amor ao próximo, assim
como vimos nos exemplos dos santos. Com já vimos, Van Thuan tinha consciência da
ligação entre amor e ação.
No texto de João que estamos meditando, antes de realizar o milagre, antes de
alimentar o povo faminto, Jesus rezou. Jesus quer ensinar-me: antes do trabalho
pastoral, social, caritativo, é preciso rezar.
João Paulo II nos diz: Conversem na oração e na escuta da Palavra; saboreiem a
alegria da reconciliação no sacramento da penitência; recebam o Corpo e o
Sangue de Cristo na eucaristia …. Descubram a verdade sobre vocês mesmo, a
unidade interior e encontrarão aquele “Alguém” que cura angústias, pesadelos e
aquele subjetivismo selvagem que não dá a paz. (Mensagem para XII Jornada
Mundial da Juventude, 1997, n. 3).

Permaneçamos numa relação pessoal com Jesus, com Maria, Mãe da


Evangelização, ela que com “o seu coração, esperançado na prática alegre e possível do
amor que lhe foi anunciado, sente que toda a palavra na Escritura, antes de ser exigência,
é dom. Ela, nos diz: “Não se perturbe o teu coração. [...] Não estou aqui eu, que sou tua
Mãe?”. Permita-se, realizar neste dia uma experiência de profunda fé na ação materna de
Maria que gera novos filhos para Deus.

BREVES ORAÇÕES EVANGÉLICAS

Penso, Senhor, que tu me deste


um modelo de oração.
Para dizer a verdade,
me deixaste somente um:
o Pai-nosso.
É breve, conciso e denso.

A tua vida, Senhor, é uma oração,


sincera e simples,
voltada para o Pai.
Aconteceu que a tua oração fosse longa,
sem fórmulas feitas,
como a oração sacerdotal
depois a Ceia:
ardente e espontânea.

Mas habitualmente, Jesus, a Virgem, os após-


tolos usaram orações breves, mas muito belas
que eles associavam a sua vida cotidiana.
Eu que sou fraco e tíbio, amo estas breves
orações diante do Tabernáculo, na escrivaninha,
pela estrada, sozinho. Quanto mais as repito,
mais me sinto penetrado. Sou vizinho de ti, Senhor.

Pai, perdoa-lhes,
porque não sabem aquilo que fazem.
Pai, que sejam uma só coisa.

Sou a serva do Senhor.

Não há mais vinho.

Eis o teu filho, eis a tua mãe!

Lembra-te de mim,
quando estiveres em teu Reino.

Senhor, o que queres que eu faça?

Senhor, tu sabes tudo,


Tu sabes que te amo.

Senhor, tem piedade de mim,


pobre pecador.

Meu Deus, meu Deus,


por que me abandonastes?

Todas essas breves orações, ligadas uma à outra,


formam uma vida de oração. Como uma cadeia de
gestos discretos, de olhares, de palavras íntimas formam
uma vida de amor. Elas nos conservam em um ambiente
de oração sem distorções do dever presente, mas
ajudando-nos a santificar todas as coisas.

No isolamento em Hanói (Vietnã do Norte),


25 de março de 1987, Festa da Anunciação.

RETIRO COM OS PADRES


ARQUIDIOCESE DE CURITIBA (PR)26
O ENCONTRO COM DEUS NAS TRILHAS DO COTIDIANO
8 de fevereiro de 2023 – tarde

QUARTO PÃO: MINHA ÚNICA FORÇA, A EUCARISTIA

A oração da Igreja
“Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a vós, Deus Pai Todo-Poderoso, na unidade
do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre”".

26
Clélia Peretti. Profª do Programa de Pós-Graduação em Teologia – Mestrado e Doutorado e do
Bacharelado, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Edith Stein, toma esta oração da Igreja e reflete sobre todo o seu sentido teológico.
No diálogo silencioso do coração com Deus compreende que a doação de si a Deus, por
amor e de modo ilimitado é a mais alta elevação do coração e a resposta divina a esta
doação - a união plena e constante - é a mais alta elevação atingível pelo coração, o mais
elevado grau da oração. As almas que atingiram tal grau são o verdadeiro coração da
Igreja: nelas vive o mais alto amor sacerdotal de Jesus. Ocultas em Deus, com Cristo, só
podem irradiar a outros corações o amor divino do qual estão plenificadas, participando
assim, na perfeição de todos na união com Deus, que foi e é o grande desejo de Jesus.
Todo louvor a Deus se realiza por, com e em Cristo. Por ele porque somente por
meio de Cristo a humanidade chega ao Pai e porque sua existência como Deus-homem e
sua obra de salvação são a mais perfeita glorificação do Pai. Com Ele, porque toda oração
verdadeira é um fruto da união com Cristo e, ao mesmo tempo, um aprofundamento desta
união. Assim, todo louvor ao Filho é também um louvor ao Pai. Do mesmo modo, quando
se louva ao Pai também o Filho é louvado. Em Cristo, porque a Igreja em oração é o
próprio Cristo - cada indivíduo que ora participa do seu Corpo Místico - e porque o Pai
está no Filho. O Filho é o reflexo resplandecente do Pai, cuja glória manifesta. O duplo
sentido de cada uma destas três expressões – “por ele”, “com ele” e “nele - exprime,
claramente, o papel de mediador do homem-Deus. A oração da Igreja é a oração do Cristo
sempre vivo. Seu modelo original é a prece do Cristo durante sua vida humana.

Mesa Eucarística: lugar da nossa transformação interior e de fraternidade

O cardeal Francisco Van Thaun, durante os anos de prisão, no isolamento,


compreende que é na mesa Eucarística onde deve começar a transformação interior, pois
é “ao redor da mesa eucarística que se realiza e se manifesta a harmoniosa unidade da
Igreja, mistério de comunhão missionária, na qual todos se sentem filhos e irmãos” (João
Paulo II, Mensagem para a XII Jornada Mundial da Juventude, 1997, n. 7)”.
Na Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis – Sobre a Eucaristia,
fonte e ápice da vida e da missão da Igreja (22 de fevereiro de 2007), Bento XVI tece um
grande hino à Eucaristia: “A Eucaristia é como um coração pulsante que dá vida a todo o
corpo místico da Igreja”. Sem a Eucaristia, a Igreja simplesmente não existiria. É a
Eucaristia, de fato, que faz de uma comunidade humana um mistério de comunhão, capaz
de levar Deus ao mundo e o mundo a Deus". “A Eucaristia constitui-se como uma espécie
de “antídoto”, que age nas mentes e nos corações dos fiéis e continuamente semeia nesses
a lógica da comunhão, do serviço, da partilha, em suma, a lógica do Evangelho [...]”.
“A Eucaristia faz-nos descobrir que Cristo, morto e ressuscitado, Se manifesta
como nosso contemporâneo no mistério da Igreja, seu corpo. Deste mistério de amor
fomos feitos testemunhas (SC n.97). E na parte conclusiva escreve:
…a Eucaristia está na origem de toda a forma de santidade, sendo cada um de
nós chamado à plenitude de vida no Espírito Santo. Quantos santos tornaram
autêntica a própria vida, graças à sua piedade eucarística! De Santo Inácio de
Antioquia a Santo Agostinho, de Santo Antão Abade a São Bento, de São
Francisco de Assis a São Tomás de Aquino, de Santa Clara de Assis a Santa
Catarina de Sena, de São Pascoal Bailão a São Pedro Julião Eymard, de Santo
Afonso Maria de Ligório ao Beato Carlos de Foucauld, de São João Maria
Vianey a Santa Teresa de Lisieux, de São Pio de Pietrelcina à Beata Teresa de
Calcutá, do Beato Pedro Jorge Frassati ao Beato Ivan Merz, para mencionar
apenas alguns de tantos nomes, a santidade sempre encontrou o seu centro no
sacramento da Eucaristia. Por isso, é necessário que, na Igreja, este mistério
santíssimo seja verdadeiramente acreditado, devotamente celebrado e
intensamente vivido.

Eucaristia, é pão repartido para a vida do mundo


Perguntaram para Van Thaun: “Você pode celebrar a missa na prisão?”. Ele
respondeu:
“... A Eucaristia é a mais bela oração, é a culminância da vida de Jesus. Quando
respondo: “sim”, logo surge a pergunta seguinte: “Como pôde encontrar o pão e
o vinho?”. […]. Jesus eucarístico está sempre comigo no bolso da camisa.
Lembro-me de que escrevi: Crê em uma só força: a eucaristia, o Corpo e o
Sangue do Senhor que te dará a vida. ‘Vim para que tenham a vida em
abundância’ (Jo 10,10). Como o maná alimentou os israelitas em sua viagem
para a Terra Prometida, assim a Eucaristia te alimentará em teu caminho de
esperança” (cf. Jo 6,50) (O Caminho da esperança, n. 983).

Van Thuan vive cada momento do cárcere como pão partilhado e realiza a partir
do encontro íntimo com Deus, um encontro com os outros prisioneiros, que se faz
comunhão, serviço de caridade com o próximo, nas pessoas que contacta reconhece irmãs
e irmãs, pelos quais o Senhor deu a sua vida amando-os até o fim” (Jo 13,1). “O pão que
Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo” (Jo 6, 51). Com estas
palavras, o Senhor revela o verdadeiro significado do dom da sua vida por todos os
homens; as mesmas mostram-nos também a compaixão íntima que Ele sente por cada
pessoa”. […] A vocação de cada um de nós consiste em ser unido a Jesus, pão repartido
para a vida do mundo. Quantas vezes já não nos sentimos “pão repartido” ... em nossa
caminhada.
Van Thaun, relata:
Toda semana há uma sessão de doutrinação, da qual todo o campo deve
participar. Nos momentos de intervalo, com os meus companheiros católicos,
aproveitamos para passar um pacotinho a cada um dos outros quatro grupos de
prisioneiros: todos sabem que Jesus está no meio deles, é ele que cuida dos
sofrimentos físicos e mentais. À noite, os prisioneiros se revezavam nos turnos
de adoração. Jesus eucarístico ajuda de modo tremendo com a sua presença
silenciosa. Muitos cristãos retornam ao fervor da fé durante aqueles dias. Até
budistas e outros não cristãos se convertem. A força do amor de Jesus é
irreversível. A obscuridade do cárcere se ilumina, a semente germinou da terra
durante a tempestade (THUAN, 2000, p. 45).

As implicações sociais do mistério eucarístico


A união com Cristo, que se realiza no sacramento, habilita-nos também a uma
novidade de relações sociais: “a mística” do sacramento tem um carácter social, porque
[...] a união com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele Se
entrega. Eu não posso ter Cristo só para mim; posso pertencer-Lhe somente unido a todos
aqueles que se tornaram ou hão-de se tornar Seus. Há uma relação profunda entre mistério
eucarístico e compromisso social” (SC, 2007, n. 89).
Van Thaun, testemunha isso, mesmo dentro da prisão:
Ofereço a missa unido ao Senhor: quando distribuo a comunhão entrego-me
juntamente ao Senhor para fazer de mim alimento para todos. Isso significa que
estou totalmente a serviço dos outros. Toda vez que ofereço a missa tenho a
oportunidade de estender as mãos e de pregar na cruz com Jesus, de beber com
ele o cálice amargo. Todos os dias, lendo e ouvindo as palavras da consagração,
confirmo de todo o coração e com toda a alma um novo pacto, um pacto eterno
entro mim e Jesus, diante o seu Sangue misturado ao meu (1Cor 11, 23-25).
Jesus na Cruz iniciou uma revolução. A revolução de vocês deve começar na
mesa Eucarística e daí ser levada para frente. Assim vocês poderão renovar a
humanidade (THUAN, 2000, p. 45-46).

A Eucaristia como memória quotidiana da Igreja, nos introduz cada vez mais na
Páscoa do Senhor. Ela reforça a comunhão “e é somente sacramento de comunhão entre
irmãos e irmãs que aceitam reconciliar-se em Cristo, o Qual fez de judeus e gentios um
só povo, destruindo o muro de inimizade que os separava (Ef 2, 14)”. A Eucaristia, reforça
e estimula a reconciliação, o diálogo e o compromisso em prol da justiça. A restauração
da justiça, a reconciliação e o perdão são, sem dúvida alguma, condições para construir
uma verdadeira paz; desta consciência nasce a vontade de transformar também as
estruturas injustas, a fim de se restabelecer o respeito da dignidade do homem, criado à
imagem e semelhança de Deus; é através da realização concreta desta responsabilidade
que a Eucaristia se torna na vida o que significa na celebração” (SC, 2007, n. 89).
Do mesmo modo, “a Eucaristia arrasta-nos no ato oblativo de Jesus. Não é só de
modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica
da sua doação” (DC, n. 13). Na Eucaristia “a Ágape Deus vem corporalmente a nós, para
continuar sua ação em nós e através de nós […]. No próprio “culto”, na comunhão
eucarística, está contido o ser amado e o amar, por sua vez, os outros (DC, n.114).
Incessantemente, através da Sua Palavra, nos Sacramento, especialmente na Eucaristia,
O Senhor vem ao nosso Encontro (DC, 17).
Francisco Van Thaun, relata:
“Passei 9 anos no isolamento. Durante esse período celebro a missa todos os dias
pelas 3 horas da tarde: a hora de Jesus agonizante na cruz. Estou só, posso cantar
a minha missa como quero, em latim, francês, vietnamita… levo comigo o
saquinho que contém o Santíssimo Sacramento: “Tu em mim e eu em ti”. São as
missas mais belas (THUAN, 2000, p. 46).

O diálogo Fraterno com Deus como oração da Igreja

Não podemos ficar inativos perante certos processos de globalização, de


ideologização da fé, da rejeição ao diferente, dos que vivem marginalizados, nas
periferias. As demandas para as Igrejas, são muitas e nos desafiam. Devemos estar abertos
ao Espírito Santo que vem dos lugares mais inesperados, para além de nossas próprias
limitações, estruturas existentes e lugares seguros. E como aconteceu no itinerário do
próprio Jesus (algo que frequentemente é muito evidente nos Evangelhos), as margens
provavelmente se tornam o lugar mais significativo onde ocorrem os mais profundos
apelos de Deus à conversão. A complexidade da vida, da cultura, das questões sociais
além de exigir um novo paradigma eclesiológico, exige um diálogo entre as perspectivas
pastoral, teológica, social, ecológica, econômica e, inclusive, política. Se isso é um
desafio, é ao mesmo tempo uma necessidade urgente de uma espiritualidade encarnada,
capaz de reconhecer a revelação de Deus que existe em cada realidade, e a presença das
sementes do Verbo encarnado em seu interior.
Francisco Van Thaun, na narrativa da sua história de cárcere escreve:
À noite, de 21 às 22 horas, faço uma hora de adoração, canto Lauda Sion, Pange
língua, Adoro Te, Te Deum e cânticos em língua vietnamita, apesar do barulho
do alto-falante que dura das 5 da manhã às 23h30m. Sinto uma paz singular de
espírito e de coração, e a alegria, a serenidade da companhia de Jesus e de Maria
e de José. Canto Salve, Regina; Salve, Mater, Regina coeli, em unidade com a
Igreja universal. Apesar das acusações e calúnias contra a Igreja, canto Tu es
Petrus, Oremus pro Pontífice nostro, Christus vincit… Como Jesus matou a
fome da multidão que o seguia no deserto, na Eucaristia é ele mesmo que
continua sendo alimento de vida de vida eterna (p. 47).

A vocação é um chamado de Deus. Os grandes homens e mulheres tanto do


cristianismo originário quanto contemporâneo só foram felizes quando disseram sim a
Deus e encontraram na Eucaristia aquela novidade de relações que tem sua fonte
inexorável no dom de Deus. “Não há nada de mais belo do que ser alcançado,
surpreendido pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada de mais belo do que conhecê-Lo e
comunicar aos outros a amizade com Ele” (SC, 2007, 84). Na celebração eucarística e na
adoração, encontramos a força para o seguimento radical de Cristo obediente, pobre e
casto (SC, 2007, n. 81).
Francisco Van Thaun afirma:
Na eucaristia anunciamos a morte de Jesus e proclamamos a sua ressureição. Há
momento de tristeza infinita, o que fazer? Olho para Jesus crucificado e
abandonado sobre a cruz. Aos olhos humanos, a vida de Jesus foi um fracasso,
inútil e frustrada, mas aos olhos de Deus, na cruz Jesus realizou a ação mais
importante de sua vida porque derramou o seu sangue para salvar o mundo.
Quanto Jesus está unido a Deus quando, na cruz, não pôde mais pregar, curar os
enfermos, visitar as pessoas, fazer milagres, mas permaneceu na imobilidade
absoluta!

A participação ativa na eucaristia exprime visivelmente aquela plena unidade que


Cristo quis para os seus discípulos (Jo 17, 21), implica a plena comunhão com a Igreja e
exprime a unidade e a universalidade da Igreja.
A Eucaristia, é mistério vivido: “Quem comer deste pão viverá eternamente”
(Jo 6, 51). Mas, esta “vida eterna” começa em nós, já agora, através da mudança que o
dom eucarístico gera na nossa vida: “Aquele que Me come viverá por Mim” (Jo 6, 57).
Francisco Van Thaun vivenciou está experiência no cárcere:
Jesus é o meu primeiro exemplo de radicalismo no amor pelo Pai e pelas almas.
Jesus deu tudo: “In finem dilexit”: “Amou-os até o fim”(Jo 13,1), até ao
“Consummatum est: tudo está consumado (Jo 19, 30), E o Pai amou tanto o
mundo que entregou o Filho Unigênito (Jo 3,16). Dar tudo de si como um pão
para ser comido “pro mundi vita”: para a vida do mundo (Jo 6, 51). Jesus disse:
“Misereor super turbam”: tenho compaixão do povo (Mt 15, 32). A
multiplicação do pão é um anúncio, um sinal da eucaristia que Jesus instituirá
dentre em pouco (p. 48).

Do mesmo modo como vimos na história de vida vivida no cárcere pelo cardeal
Francisco Van Thaun uma grande espiritualidade Eucarística, encontramos também na
vida de Edith Stein, judia, filósofa, convertida ao cristianismo. Há um fato que a própria
Edith Stein relata na sua autobiografia que sempre chamou minha atenção. Edith, escreve
sua autobiografia (vida de uma família judia) quando já estava na vida religiosa. Escreve
sua autobiografia entre os 1933-1939, mas, em maio de 1935, pouco tempo depois da sua
profissão religiosa, por ordem de seus superiores ela teve de interromper suas anotações
porque lhe foi pedido de terminar a sua importante obra filosófica (Ser finito ser eterno.
Por uma elevação do sentido do ser. Retoma somente em Echt 7 de Janeiro de 1939. Ela
escreve:
O último texto que escrevi relatava minha viagem de Breslávia para Friburgo,
em julho de 1916. Separei-me de Hans Lipps em Leipzig e viajei a noite toda até
Heidelberg. Desde os meus primeiros tempos de liceu, sonhara em estudar em
Heidelberg, o que nunca se realizou. Agora queira pelo menos conhecer a cidade
e, por isso, interrompi a viagem por um dia. Aliás, não estou bem certa se foi
durante essa viagem ou alguns meses mais tarde, quando voltei a Friburgo.
Também não sei bem em qual dessas viagens me encontrei com Pauline Reinach
em Frankfurt. Tínhamos muito a conversar enquanto passeávamos pela velha
cidade, que me era tão familiar por causa do livro Pensamentos e lembrança, de
Goethe. Mas não foi nem o Römerberg nem o Hirschgraben que me causaram
maior impressão. Por alguns minutos, nós entramos na catedral. Enquanto
estávamos lá, num ambiente silencioso e respeitoso, chegou uma mulher com
sua cesta de compras e ajoelhou-se para fazer suas orações. Para mim, aquilo era
algo totalmente novo. Era só para o culto religioso que se ia às sinagogas e às
igrejas protestantes que eu conhecia. Agora eu via ali alguém que, em meio as
suas preocupações cotidianas, dirigia-se à Igreja deserta para uma conversa
íntima. Aquela cena nunca saiu de minha memória (STEIN, 2018, p. 515-516)27.

Edith Stein vive uma profunda experiência de conversão interior: da fé judaica


para a fé cristã. Sua experiência de silêncio interior é relacionada com cada um dos sete
níveis de interioridade pessoal identificados na imagem do castelo de Santa Teresa
D’Ávila. Comentando em termos de antropologia filosófica o texto da experiências
mística de Teresa, Stein abre caminho para a identificação de diversas modalidades de
silêncio: silêncio baseado na dispersão da pessoa na vivência das circunstancias, silêncio
associado a resposta a apelos identificados na própria experiencia, silêncio vivido na
busca da própria interioridade pessoal, silencio diante do acontecimento da própria pessoa
e do mundo com seu mistério, silencio nas experiências de lucidez, silêncio definitivo e
silencio na vivência do núcleo da pessoa. As diversidades de silêncio são apresentadas na
sua conexão com cada grau da estrutura graduado do ente. Ela aponta implicações para
uma ciência da experiência propriamente humana.
Ela vive uma experiência empática eucarística –
O que nos interessa compreender é que para nós contemporâneos não somos
formados para ter hábitos de atenção para conosco mesmos, coletivamente, não somos
formados à interioridade. Fica aberta então, a pergunta, que permanece um problema
interessante: qual o nível de experiência que contêm o chamado à interioridade e que tipo
de resposta da pessoa não se refere a adestramento (modulado desde fora, mas é um
posicionamento pessoal que a estrutura, que a forme (no sentido pelo do termo). Então,
com Edith Stein podemos tomar o silêncio como significativo tema contemporâneo.
Chamando em causa a atenção para conosco mesmos, o reconhecimento de si e do mundo
em termos efetivamente pessoais, anda que permaneça como desafio. Examinando os
escritos de Edith Stein percebemos que o tema do silêncio aparece de formas variadas,

27 STEIN, Edith. Vida de uma família judia e outros escritos autobiográficos. São Paulo/Paulus, 2018.
acompanhando o percurso da sua vida. Va se tornando menos exterior, menos referido ao
ambiente, e mais associado a consciência do que acontece em sua própria pessoa.
No nível da “experiência eucarística” encontramos vários acenos em muitos dos
seus escritos, tanto no âmbito da mulher, como nos mais estritamente pedagógicos e
antropológicos. Para Edith, a vida do cristão deve gravitar à volta da Eucaristia, como
mistério da presença, e como atualização da nossa redenção e vocação.
A seguir sintetizamos em grandes traços o seu pensamento eucarístico de Edith
Stein:
a) Deixar-se modelar por Cristo
A celebração da Eucaristia é o centro da vida da Igreja. Nela contempla a sua
origem e nascimento na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Uma obra realizada para
sempre, e que se renova continuamente através do memorial eucarístico, que é sacramento
da presença real de Cristo.
Quem compreende esta verdade não deixará passar a oportunidade de abeirar-se
o mais possível a quem é o centro da sua vida. Edith Stein não pode compreender que um
cristão convencido passe diante da Eucaristia com indiferença, e que prescinda dela no
programa da sua vida. Não é liturgismo, nem assistência obrigatória o que Edith defende,
mas vivência conforme ao que se crê.
Jesus Cristo deixou-nos os sacramentos como fonte ordinária da sua graça, como
meios que nos ajudam no caminho da santificação. Mas se nalgum deles se manifesta a
sua presença de um modo mais admirável é, precisamente, no sacramento da Eucaristia.
É o memorial da sua obra de redenção. É o sacramento da união-comunhão. É presença
real de Cristo e ação de graças ao Pai. É o ato supremo do culto dirigido a Deus. Por tudo
isto, torna-se a alma e o princípio da vida da Igreja.
A celebração eucarística cria continuamente a comunidade de Cristo e une os
homens entre si e com Deus. O viver cristão, para alcançar a sua plenitude, há-de
acomodar-se ao mistério eucarístico, uma vez que este significa e realiza o fim ao qual o
cristão é chamado: “a união mais íntima com” Cristo.
Cristo torna-se presente na Eucaristia como Verbo encarnado e como vencedor
sobre o pecado e a morte; como aquele que quer abrir um caminho na alma que o acolhe.
Todo o homem é convidado, se quiser configurar-se com Cristo, a “dar lugar para que o
Salvador eucarístico… possa transformar a nossa vida na sua” (OC IV, 241).

b) Viver eucaristicamente
Viver eucaristicamente consiste em viver a união com Cristo. União que implica
integração na vida da Igreja, Corpo de Cristo, pois “quando participamos no Santo
Sacrifício e na comunhão, alimentados com a carne e o sangue de Cristo, convertemo-
nos na sua carne e sangue” (OC V, 121). A importância que tem o fazer da própria vida
uma vida eucarística consiste em deixar que as verdades eucarísticas atuem eficazmente.
Trata-se essencialmente de três simples verdades de fé: 1. O Salvador está presente no
Santíssimo Sacramento. 2. Ele renova diariamente o seu sacrifício de cruz sobre o altar.
3. Ele quer unir intimamente consigo cada alma particular na Sagrada Comunhão” (OC
IV, 150-151).
A vida eucarística afeta a toda a pessoa, que se sente invadida pelos seus frutos:
do Salvador eucarístico recebemos força, paz e alegria, amor e disponibilidade. Ele
espera-nos para “acolher todas as nossas cargas, para nos consolar, aconselhar, para nos
ajudar como o mais fiel sempre amigo” (OC IV 151). Produz-se uma transformação do
ser que se vai modelando segundo Cristo: “significa sair das angústias da própria vida e
penetrar no horizonte infinito da vida da Cristo” (OC IV, 241).

c) Penetrar na vida de Deus


O homem que se decide a configurar-se com o Cristo eucarístico vai penetrando
confiadamente na vida de Deus, deixando-se guiar e formar pelo amor divino, ó único
capaz de transformar a sua vida: “Esquecer-se de si mesmo, libertar-se de todos os desejos
e aspirações próprios, obter um coração para todas as penúrias e necessidades alheias,
isso só pode dar-se na relação diária, confiada no Salvador no tabernáculo. Quem visita
o Deus eucarístico e com Ele se aconselha em todas as ocasiões, quem se deixa purificar
pela força divina que surge do sacrifício do altar e se oferece ao Senhor nesse mesmo
sacrifício, quem na comunhão recebe o Salvador no mais íntimo da sua alma, esse ver-
se-á sem excepção cada vez mais profunda e fortemente atraído na corrente da vida
divina, crescerá no corpo místico de Cristo e o seu coração será configurado segundo o
modelo do coração divino” (OC IV, 174).

d) Transformação da própria vida


O cristão que penetra no sentido da Eucaristia, descobre nela o caminho eficaz
para a sua transformação e para a recuperação da sua filiação divina. É o caminho da
espiritualidade do cristão, através do qual começa a ver a vida a partir do próprio Deus e
a discernir os acontecimentos a partir da fé.
A vida em comunhão com o Cristo eucarístico eleva a alma por cima das suas
possibilidades individuais, ancorando-a no amplo espaço da comunidade divina e eclesial.
A partir da entrega eucarística o homem cresce no amor e compromete-se no seguimento
de Jesus Cristo: “Se é verdade que a vida eucarística leva à união com Cristo, à igualdade
de forma com Ele e, portanto, à redenção, tudo isto há-de tornar-se visível no homem.
Constituirá um forte motivo para crer nas verdades eucarísticas mostrar com as vidas e
com os testemunhos de cristãos exemplares, como era grande o seu desejo de participar
no santo sacrifício e de receber a sagrada comunhão, como crescia o seu amor a Cristo, e
o zelo por servi-Lo e por Lhe agradar; como saiam fortalecidos para tomar sobre si
pesadas cargas e superar os seus defeitos, e como todo o seu ser e a sua vida se convertia
progressivamente na imagem e no seguimento de Cristo” (OC IV, 747).
Segundo Edith Stein a vida eucarística é o caminho da espiritualidade de todo o
cristão. Não é só a celebração cimeira da liturgia da Igreja, mas é o caminho que cria a
Igreja, porque é o caminho por meio do qual o homem entra em comunhão com Deus e
se transforma em Corpo de Cristo, num sentido real 28.

ESPERO-TE NA EUCARISTIA DE HOJE

“Este é o pão vivo descido do céu”.


Quem faz d’Ele o seu pão quotidiano
deixa que se faça realidade quotidiana em si mesmo o mistério do Natal,
da Encarnação do Verbo.
E esse é o caminho seguro para alcançar o “ser um com Deus”
e para crescer cada dia com maior força e profundidade no Corpo Místico de Cristo.»

Santa Teresa Benedita da Cruz| Edith Stein,


O Mistério do Natal.

Senhor,
dá-me do Teu Pão na noite Santa deste dia.
Eu quero receber o Pão vivo descido do Céu,
para acolher a Tua Vida, a Tua Pessoa, todo o Teu ser.
Não serei de fato eu a acolher-Te, mas Tu a transformares-me em Ti.

Para que seja Natal, não basta que o seja em mim,


mas que o mundo fique melhor por eu estar em Ti e Tu em mim.
Então que o meu sorriso irradie o Teu,
as minhas palavras sejam as Tuas,
a minha alegria transpareça a alegria do Céu
e que os meus pobres cânticos se juntem na missa de hoje da meia-noite,
aos dos Anjos do Céu que cantam

28
SANCHO, Javier. 100 Fichas sobre Edith Stein. Edições Carmelo, Avessadas, 2008,
pp. 205-206.
“Glória a Deus nas alturas e paz aos homens por Ele amados”.
Vem, Jesus Menino!
PRESENTE E PASSADO

Jesus amantíssimo,
nesta noite, no fundo de minha cela
sem luz, sem janela, quentíssima,
penso com intensa nostalgia
na minha vida pastoral.

Oito anos de bispo, nesta residência,


somente a dois quilômetros de minha
cela de prisão,
na mesma estrada, na mesma praia…
Sinto as ondas do Pacífico,
os sinos da catedral.

-Já celebrei com patena e cálice dourados,


agora, com teu sangue na palma de
minha mão.

-Já percorri o mundo


para conferências e reuniões,
agora estou recluso numa cela estreita,
sem janela.

-Já fui visitar-te no tabernáculo,


agora levo-te, dia e noite, comigo em um bolso.

-Já celebrei a missa diante de milhares


de fiéis,
agora na escuridão da noite, passando
a comunhão debaixo do mosquiteiro.
-Já preguei os exercícios espirituais
aos padres, aos religiosos, aos leigos…
agora um padre, também ele prisioneiro,
me prega os
Exercícios de santo Inácio através
da greta de madeira.

-Já dei a bênção solene com o Santíssimo


na catedral,
agora faço a adoração eucarística
todas as noites às 21 horas, no silêncio,
cantando baixinho o “Tantum Ergo”,
a “Salve, Rainha”, e concluindo com
esta breve oração: “Senhor, estou contente em aceitar tudo de tuas mãos,
todas as tristezas, os sofrimentos, as
angústias, até a minha morte.
Amém”.

Sou feliz aqui nesta cela,


sobre a esteira de palha mofada crescem
fungos brancos,
porque tu estás comigo,
porque tu queres que eu viva aqui contigo.

Falei muito em minha vida,


agora não falo mais.
É a tua vez, Jesus, de falar-me.
Escuto-te: que coisa me sussurraste?
É um sonho?
Tu não me falas do passado, do presente,
não me falas de meu sofrimento, angústia…
Tu me falas de teus projetos,
de minha missão.

Então eu canto a tua misericórdia,


na obscuridade, na minha fragilidade,
no meu aniquilamento.

Aceito a minha cruz


e cravo-a, com minhas duas mãos,
em meu coração.

Se me permitissem escolher, não mudaria


porque tu estás comigo!
Não tenho mais medo, entendi,
te sigo em tua paixão
e em tua ressurreição.

No isolamento,
prisão de Phú Khánh (Vietnã central),
7 de outubro de 1976,
Festa do Santo Rosário.
RETIRO COM OS PADRES
ARQUIDIOCESE DE CURITIBA (PR)29
O ENCONTRO COM DEUS NAS TRILHAS DO COTIDIANO
9 de fevereiro de 2023 – Manhã
QUINTO PÃO: AMAR ATÉ A UNIDADE O TESTAMENTO DE JESUS
Fraternidade e empatia
“Caríssimos Jovens, vocês são chamados a ser testemunhas verídicas
do evangelho de Cristo, que faz novas todas as coisas… Tenham amor
uns aos outros. (João Paulo II, Mensagem para a XII Jornada Mundial
da Juventude, 19997, n.8).

No Novo Testamento, ressoa fortemente o apelo ao amor fraterno: “Toda a Lei se


cumpre plenamente nesta única palavra: ama o teu próximo como a ti mesmo”(Gl 5, 14).
“Quem ama o seu irmão permanece na luz e não corre perigo de tropeçar. Mas quem tem
ódio ao seu irmão está nas trevas” (1 Jo 2, 10-11). “Nós sabemos que passamos da morte
para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte” (1 Jo 3, 14).
“Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1
Jo 4, 20). São Paulo exortava os seus discípulos a ter caridade uns para com os outros ‘”e
para com todos” (1 Ts 3, 12) e, na comunidade de João, pedia-se que fossem bem
recebidos os irmãos, “mesmo sendo estrangeiros” (3Jo 5). A caridade, é um dom que
Deus infunde em nosso coração (FT, n. 61). “A estatura espiritual duma vida humana é
medida pelo amor, que constitui o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a
inutilidade duma vida humana”. 30
Buscando especificar em que consiste a experiência de amar, do amor que se torna
próximo e concreto, olhemos mais uma vez para a experiência vivida por Van Thuan, na
prisão.
Numa noite em que estou doente, na prisão de Phú Khánh, vejo passar um
policial e grito: “por caridade, estou muito doente, me dê um remédio!”. Ele
responde: “Aqui não há caridade nem amor, somente responsabilidade”.
Van Thuan, conclui: Essa é a atmosfera que respiramos na prisão. (Thuan,
2000, p. 53)

A atitude do policial é totalmente contrária aos ensinamentos do Evangelho. Ele


não é sensível a dor do outro, age friamente. Permanece fechado em si mesmo no

29
Clélia Peretti. Profª do Programa de Pós-Graduação em Teologia – Mestrado e Doutorado e do
Bacharelado, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
30
Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de dezembro de 2005), 15: AAS 98 (2006), 230.
cumprimento da lei31, não é capaz de abrir-se ao outro, tomar conhecimento da dor do
outro. Van Thuan nos mostra na sua narrativa uma vivência empática que é muito mais do
que perceber o sentir do outro como próprio; é reviver as ações e os sentimentos do outro, é um
comum sentir com o outro, a capacidade de compreendê-lo, de saber partilhar com ele
pensamentos e emoções em diferentes situações.
Quando fui colocado no isolamento, fui confiado a um grupo de cinco guardas:
dois desses estão sempre comigo. Os chefes os mudam de duas em duas semanas
com os de outro grupo, para que não seja “contaminados” por mim. Depois
decidiram não mudar mais, pois de outra forma todos ficaram contaminados.
No início, os guardas não falavam comigo respondiam somente “yes” e “no”. É
muito triste; quero ser gentil, cortês come eles, mas é impossível, evitam falar
comigo. Não tenho nada para lhes dar de presente: sou prisioneiro, todas as
roupas são marcadas com grandes letras “cai-tão”, isto é, “campo de
reeducação”. Que devo fazer? (p. 53-54)

A pergunta: “Que devo fazer?”, com certeza levou Van Thaun a uma atitude
empática, considerada aqui “como a capacidade de penetração afetiva e de saber se
colocar no lugar do outro sem perder a própria individualidade; é uma especial percepção
do eu em relação ao tu e um saber sobre o outro (Peretti, 1997). Ainda, levou Van Thaun
a relembrar a importância do amor/caridade proposto na carta de São Paulo (1 Cor 12,31-
13,13). O Amor é paciente, é bondoso, não é nada exigente, arrogante, orgulhoso, jamais
é descortês, nunca interesseiro, não se irrita, não guarda rancor no coração, tudo desculpa,
Tudo Crê, Tudo Espera, Tudo Suporta. O Amor é infinito. Mas, ao mesmo tempo levou-
o a repensar no rapazinho do milagre dos cinco pães e dois peixes: partilhou o que tinha.
A excedência do amor leva à doação, vivida não como perda, mas como
saciedade, como gratuidade do dar, sem expectativas de retorno.
Van Thuan, diz:
Uma noite, me vem um pensamento: “Francisco, tu és ainda muito rico. Tens o
amor de Cristo em teu coração. Ama-os como Jesus te ama”. No dia seguinte
comecei a amá-los, a amar Jesus neles, sorrindo, trocando palavras gentis.
Começo a contar histórias de minhas viagens ao exterior, como vivem os povos
na América, Canadá, Japão, Filipinas, Cingapura, França, Alemanha…. A
economia, a liberdade, a tecnologia. Isso estimulou a curiosidade dos guardas,
e os excitou a perguntar-me muitas outras coisas. Pouco a pouco nos tornamos
amigos. Querem aprender línguas estrangeiras, francês, inglês…. Os meus
guardas se tornaram meus alunos! A atmosfera da prisão mudou muito. A
qualidade de nosso relacionamento melhorou muito. Até os chefes da polícia.
Quando viram a sinceridade de meu relacionamento com os guardas, não só

31Esse texto nos remete a parábola do bom samaritano de Lucas 10, 25-37. “Quando viu o homem caído
na estrada, passou pelo outro lado. 32 E assim também um levita; quando chegou ao lugar e o viu, passou
pelo outro lado. 33 Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando
o viu, teve piedade dele. 34 Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois
colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele 35. Passaram vários ao
lado do Samaritano, mas, foram-se não pararam, não deram atenção, mas houve quem parou para derramar
o óleo e o vinho.
pediram para continuar a ajudá-los no estudo de línguas estrangeiras, mas ainda
me mandaram novos estudantes. (THUAN, 2000, p. 54-55).

O Amor fraterno
Qual foi a última realidade que você mudou amando?
Para Van Thuan o amor fraterno, a simplicidade, a fidelidade ao Senhor leva a
nutrir “pelos guardas” a prática do amor. A mesma exigiu dele a partilha do “amor de
Cristo que carrega no seu coração”. Sem ignorar as dificuldades e perigos, ele foi ao
encontro dos guardas amando-os com ternura, multiplicando os pães com as experiências
de sua vida, atraindo para si, os olhares, a atenção, despertando nos guardas o
maravilhamento, o fascínio.
“Um dia um cabo me pergunta:
- O que você pensa do jornal ‘O Católico’?”
- Este jornal não fez bem nem aos católicos e nem ao governo, antes alargou o
fosso da separação.
- Porque se expressa mal; usam mal os vocábulos religiosos e falam de maneira
ofensiva. Como remediar essa situação?
- Primeiro, é preciso entender exatamente o que significa tal palavra, tal
terminologia religiosa…
- Você pode ajudar-nos?
- Sim, proponho-lhes escrever um vocabulário de linguagem religiosa de A a Z.
Quando vocês tiverem um momento livre, lhes explicarei. Espero que assim
possam compreender melhor a estrutura, a história, o desenvolvimento da Igreja,
as suas atividades…( THUAN, 2000, p. 55).

Este diálogo faz pensar na necessidade de na nossa missão, hoje, dialogar com a
diversidade, para facilitar caminhos de redescoberta e reapropriação daquela que é a
autêntica vocação do cristão: são chamados não apenas a transmitir conteúdos, mas a
sermos testemunhas de uma maturidade humana, promovendo dinâmicas geradoras de
paternidade ou maternidade espiritual, de acompanhamento e anúncio do Reino de Deus,
da Boa Nova da Páscoa. “Por essa razão, o principal requisito de um bom acompanhador
é ter experimentado pessoalmente “a alegria do amor”, que desmascara a falsidade das
gratificações mundanas e preenche o coração com o desejo de comunicá-lo aos outros!
(IL, n. 173). Deste modo, ou seja, vivendo a prática da caridade podemos nos tornar
“comunidades autênticas” e de contatos com “testemunhas radiantes e coerentes” (IL, n.
173).
- Você pode ajudar-nos? pergunta, o Cabo: Sim … Quando vocês tiverem um
momento livre, lhes explicarei.

Deram-me papel, e escrevi esse vocabulário de 1.500 palavras, em francês,


inglês, italiano, latim, espanhol, chinês, com explicações em vietnamita. Assim,
pouco a pouco com a minha explicação, minhas respostas às perguntas sobre a
Igreja, e aceitando também as críticas, esse documento se torna “uma catequese
prática”. Há muita curiosidade por saber o que é um abade, um patriarca; qual a
diferença entre ortodoxos, católicos, anglicanos, luteranos; de onde provêm os
recursos financeiros da Santa Sé…(p. 55-56). Esse diálogo sistemático de A a Z
ajuda a corrigir muitas confusões, muitas ideias preconceituosas; torna-se dia a
dia interessante e até fascinante. (p. 56) .
Naquela época ouvi que um grupo de 20 jovens da polícia estudava latim com
um ex-catequista, para estar em condições de entender os documentos
eclesiásticos. Um de meus guardas pertence a esse grupo. Um dia me pergunta
se posso ensinar-lhe um cântico em latim.
- São tantos e belos cantos, respondi-lhe.
-Você canta e eu escolho, propôs.
Cantei a Salve, Regina, Veni Creator, Ave maris Stella... Podem adivinhar que
canto escolheu? O Veni Creator.

Enfatiza-se aqui a chamada especial pela missão e um modo prático de


evangelização. Se reforça também a livre e gratuita eleição de Deus, com a atribuição de
uma missão particular: com a qual Deus chama a todos para a salvação: assim, enquanto
Jesus diz “segue-me” ao publicano Levi, tornando-o apóstolo da Igreja (Mc 2, 14),anuncia
a todos que Ele não veio “para chamar os justos, mas os pecadores” (Mc 2, 17). (IL, n.
95).

Uma Igreja missionária


Mas, como eu expresso a natureza missionária da Igreja? Onde eu estou
multiplicando a alegria do amor ?
Não posso dizer quanto é comovente escutar todas as manhãs um policial
comunista descendo pela escada de maneira, pelas 7 horas, para fazer ginástica,
e depois lavar-se, cantando o Veni Creator na prisão.
Quando há amor sente-se a alegria e a paz, porque Jesus está no meio de nós:
“Veste uma só camisa e fala a única linguagem” (O Caminho da esperança, n.
984). (…( THUAN, 2000, p. 56-57).

É diante das circunstâncias da vida cotidiana que a Igreja é chamada a “sair, ver,
chamar” (DP III, 1.3), isto é, investir tempo para conhecer e confrontar-se com as
restrições e as oportunidades dos diferentes contextos sociais e culturais e fazer ressoar
nestes a chamada à alegria do amor.
“A experiência ou o encontro com as fragilidades pessoais, próprias ou alheias, de
um grupo ou de uma comunidade, de uma sociedade ou de uma cultura, são tão difíceis
quanto preciosos”. (IL, n. 145). Exigem discernimento e saída missionária. “Cada cristão
e cada comunidade há-de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos
somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de
alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho. (EG, n. 20).
Nesse sentido, somos chamados a uma conversão pessoal, pastoral, missionária
(EG 25) e eclesial ( EG 26). “Neste momento não nos serve uma simples administração
(EG 25), mas de “uma generosa renovação não só dos indivíduos, mas à Igreja inteira,
isto é, de emenda dos defeitos, que aquela consciência denuncia e rejeita, como se fosse
um exame interior ao espelho do modelo que Cristo nos deixou de Si mesmo” (EG 26).
O centro da renovação da Igreja consiste numa maior fidelidade à própria vocação:
que é a fidelidade a Jesus Cristo. Nesse sentido, somos, portanto, chamados, a responder
à vocação recebida, comunicando por toda parte, a gratidão e a alegria do encontro com
o Senhor. Por isso, é essencial renovar a cada manhã nosso encontro pessoal com Cristo
e/ou pelo menos, tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de escutar sua voz, ouvir
seus apelos de conversão. “Sem vida nova e espírito evangélico autêntico, sem ‘fidelidade
da Igreja à própria vocação’, toda e qualquer nova estrutura se corrompe em pouco
tempo” (EG 26).
Na montanha de Viñh Phú, na prisão de Viñh Quang, num dia de chuva tive de
cortar lenha. Perguntei ao guarda:
-Posso lhe pedir um favor?
- Queria cortar um pedaço de madeira em forma de cruz.
- Você não sabe que é severamente proibido ter qualquer símbolo religioso?
-Eu sei. Mas somos amigos, e prometo escondê-la.
-Seria extremamente perigoso para nós dois.
- Feche os olhos, farei agora e serei muito cauteloso. Você vai andando e me
deixe só.
Talhei a cruz e a conservei escondida num pedação de sabão até a minha
libertação. Com uma moldura de metal, esse pedaço de madeira tornou-se minha
cruz peitoral. (THUAN, 2000, p. 57).

Não importa como, mas cada dia precisamos revitar, lizar o nosso modo de ser de
Cristo, nossas opções pessoais pelo Senhor, renovar nosso amor por Cristo […] para uma
evangelização mais missionária, que conduza aos caminhos de plenitude de vida que
Cristo nos trouxe (DAp, 2007, n.13). O amor exige criatividade.
Em outra prisão pedi um pedaço de fio elétrico a meu guarda, que já se tornara
meu amigo. Ele se espantou:
- Estudei na escola de polícia que, se alguém quer um fio elétrico, significa que
quer suicidar-se.
Expliquei:
- Os sacerdotes católicos não cometem suicídio.
-Mas que coisa quer fazer com um fio elétrico?
-Queria fazer uma correntinha para levar a minha cruz.
- Como pode fazer uma corrente com um fio elétrico? É impossivel!
- Se você me trouxer duas pequenas tenazes, eu mostrei.
- É muito perigoso!
-Mas somos amigos!
Hesistou, depois disse:
- Responderei dentro de três dias.
Depois de tres dias, me disse:
- É dificil recusar qualquer coisa a você.
Pensei assim: nesta noite vou trazer duas pequenas tenazes, das 7 às 11, e nesse
tempo devems terminar esse trablho. Vou deixar meu companheiro ir a “hanoi
by night”. Se ele nos visse, surgiria uma denúnica perigosa para nós ambos.
Cortamos o fio elétrico em pedaço do tamanho de um fosforo, o moldamos… e
a corrente ficou pronta antes das 11 horas da noite.
Aquela cruz e aquela corrente levo comigo todos os dias, não porque são
lembranças da prisão, mas porque indicam minha convicção profunda, uma
constante exigência para mim: só o amor cristão pode mudar os corações, nem
as armas, nem as ameaças, nem a midia (THUAN, 2000, p. 59).

Ecoa aqui a voz do apostolo Paulo: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será
a tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?”
(Rm 8, 35).

Uma Igreja Misericordiosa e acolhedora


O que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas, de aquecer o
coração dos fiéis, de estar perto, a proximidade. Para alguns seguimentos a Igreja Católica
se tornou “obcecada” por temas como o aborto, o casamento homossexual e a
contracepção. Não podemos concentrar-nos só nestes temas. “Temos de encontrar um
novo equilíbrio, se não o edifício moral da Igreja pode cair como um palácio de cartas”,
disse Papa Francisco numa entrevista a revista New York Times. Os ministros da Igreja
devem ter como primeira missão levar uma palavra de “misericórdia”, a mensagem de
salvação de Jesus Cristo, sublinhou. “Proclamar o amor redentor de Deus é um dever
prioritário, antes do dever moral e religioso. Mas hoje parece que muitas vezes acontece
o contrário”, afirmou. “E precisa começar de baixo”, disse o Papa explicando aquilo de
que a Igreja mais precisa. “Eu vejo a Igreja como um hospital de campo após uma batalha.
É inútil – diz – perguntar a um ferido grave se tem colesterol e glicose altos! É preciso
curar as feridas. Depois se poderá falar de todo o restante”, acrescentou.
O tema da misericórdia assumiu no magistério ordinário do Papa Francisco um
papel significativo. A misericórdia está no centro da revelação bíblica, porque se encontra
no coração do nosso Deus trinitário. Van Thuan escreve:
Foi muito dificil para meus guardas entender como se pode perdoar, amar os
nossos inimigos, reconciliar-se com eles.
- Você nos ama verdadeiramente?
- Sim, os amo sinceramente.
- Mesmo quando lhes fazemos mal?
Quando sofre por estar em prisão por tantos anos injustamente?
- Pense nos anos que vivemos juntos. Ameio-os realmente!
- Quando você estiver livre, não mandará os seus para nos fazer mal, a nós e a
nossas famílias.
- Não, continuarei a amá-los, mesmo se quiserem matar-me.
- Mas, por que?
- Porque Jesus me ensinou a amá-los. Se não o faço, não sou mais digno de ser
chamado cristão (THUAN, 2000, p. 59).
Amar os “inimigos”, amar os que nos “condenam injustamente” não é fácil, para
superar esses momentos requer uma reforma nas nossas atitudes e muitas vezes o silêncio
é a melhor resposta. É preciso lembrar – sempre – que a “Igreja é Mãe e Pastora”. A
Igreja é chamada a ser um “oásis de misericórdia”, e não apenas a Igreja em geral, mas
todas as “paróquias, comunidades, associações e movimentos – em suma, onde houver
cristãos” (Papa Francisco, Misericordiae vultus, n. 12). A misericórdia é o coração da
identidade, das relações e da vida da Igreja. Mas a misericórdia também se encontra no
centro da atividade missionária da Igreja, porque todas as realidades humanas, e a
sociedade como um todo, são movidas pelo coração de Deus e a ele se orientam.
“A Igreja ‘em saída’ é uma Igreja com as portas abertas. Sair em direção aos
outros para chegar às periferias humanas não significa correr pelo mundo sem direção
nem sentido. Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr à parte a ansiedade para olhar
nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou à beira do
caminho. Às vezes, é como o pai do filho pródigo, que continua com as portas abertas
para, quando este voltar, poder entrar sem dificuldade.” (EG, n. 46).
A igreja tem como primeira missão levar uma palavra de “misericórdia”, a mensagem
de salvação de Jesus Cristo.
No evangelho, Jesus vendo a multidão, que o havia seguido por três dias, disse:
“tenho compaixão do povo” (Mt 15,32), “são como rebanho sem pastor” (Mc 6,
34)... Nos momentos mais dramáticos, na prisão, quando já estava desfalecido,
sem força para rezar, meditar, procurei uma maneira para retornar o essencial da
minha pregação, da mensagem de Jesus, e usei esta frase: “Vivo o testamento de
Jesus”. Isto é, amar os outros como Jesus me amou, no perdão, na misericórdia,
em direção à unidade, como ele rezou: Que todos sejam um como tu Pai, estás
em mim e eu em ti” (Jo 17,21). Rezei muito: “Vivo o testamento de amor de
Jesus”. Quero ser o rapaz que ofereceu tudo o que tinha. Era nada: cinco pães e
dois peixes, mas era “tudo” o que ele tinha, para ser instrumento do amor de
Jesus.

Emerge dessa narrativa de van Thuan o desprendimento, a completa


disponibilidade, a total liberdade. Na atitude da caridade, ela me força a amar a Deus, ao
passo que o desprendimento força a Deus a me amar. E, Deus se dá a um coração
desprendido e humilde. “Ele olhou a humildade da sua serva” (Lc 1,48). Em meio ao seu
dia a dia, Maria confia e se entrega à vontade de Deus, ela está disposta a permitir que o
anúncio do anjo aconteça na sua vida, mesmo conhecendo as dificuldades sociais que lhe
causaria e o que ela estaria exigindo de José.
Ela precisou processar o encontro do anjo com ela e entender o que tinha
acontecido – que ela tinha tido um contato direto com o mensageiro divino, e que Deus a
havia encontrado.
Concluindo
Carissimos jovens, o Papa João Paulo II manda-lhes sua mensagem: “
Encontrarão Jesus lá onde os homens sofrem e esperam: nas pequenas aldeias,
disseminadas pelos continentes, aparentemente à margem da história, como
Nazaré então; nas imensas metrópoles, onde milhões de seres humanos vivem
como estranhos. Jesus mora no meio de vocês... sua imagem é a dos pobres, dos
marginalizados, vítimas frequentemente do injusto modelo de desenvolvimento,
que coloca o lucro em primeiro lugar e faz dos homens um meio em vez de um
fim .... Jesus mora entre todos que o invocam sem tê-lo conhecido. Jesus mora
entre os homens e as mulheres ‘honrados com o nome de cristão’, mas no limiar
do terceiro milênio torna-se cada vez mais urgente o dever de reparar o escândalo
da divisão entre os cristãos” (Mensagem para a XII Jornada Mundial da
Juventude, 1997, n. 5).

Van Thuan conclui o capítulo dizendo:


O maior erro é não reparar que os outros são também o Cristo. Há muitas pessoas
que só vão descobrir isso no último dia.
Jesus ficou abandonado na cruz e o é ainda em todo irmão e irmã que sofre em
qualquer canto do mundo. A caridade não tem fronteiras. Se há fronteiras não
existe mais caridade (THUAN, 2000, p. 61).

Atividade - Eu e o Senhor
O que você quer oferecer ao Senhor neste dia? Que tal uma experiência a “sós”
diante do tabernáculo e ali na presença do Senhor rever o teu programa de vida e se for
preciso traçar um novo programa para poder dizer: “Vivo o testamento de amor de Jesus”
com minhas atitudes. Não tenha medo de permanecer em profundo silêncio com o
Senhor... Ele quer falar ao teu coração.... Aproveite desse tempo não só para programar a
tua vida mas, também a missão que o Senhor te confiou. “Tenho compaixão do povo”
(Mt 15,32), “São como rebanho sem pastor” (Mc 6, 34).
CONSAGRAÇÃO

Pai de imenso amor e onipotente, fonte de minha esperança e de minha alegria.

1. “Tudo que é meu é teu” (Lc 15,31).


“Pedi e vos será dado” (Mt 7,7).
Pai, creio firmemente: o teu amor nos ultrapassa infinitamente.
Como pode o amor de teus filhos competir com o teu?
Oh! Imensidade de teu amor paterno! Tudo que é teu é meu.
Aconselhas-me a rezar com sinceridade. Então confio em ti, Pai, plenitude de bondade.

2. “Tudo é graça.” “O vosso Pai sabe de que coisas precisais” (Mt 6,8).
Pai, firmemente creio: ordenas todas as coisas para o nosso maior bem, sempre.
Não cesses de guiar a minha vida. Acompanha cada um de meus passos.
Que coisa poderei temer? Prostrado, adoro a tua santa vontade.
Entrego-me totalmente a tuas mãos, é por teu intermédio que tudo acontece.
Eu que sou teu filho, creio que tudo é graça.

3. “Tudo posso naquele que me dá força”


(FI 4,13). “Em louvor de sua glória” (Ef 1,6).
Pai, firmemente creio: nada ultrapassa o poder de tua Providência.
O teu amor é infinito, e eu quero aceitar tudo de coração feliz. Eternos o louvor e o reconhecimento.
Unidos à Virgem Maria, associando suas vozes aos de todas as nações, São José e os anjos contam a glória
de Deus pelos séculos dos séculos. Amém.

4. “Fazei tudo para a glória de Deus” (1Cor 10,31). “Seja feita a tua vontade” (Mt 6,10).
Pai, firmemente e sem hesitação creio que tu ages e operas em mim.
Sou objeto de teu amor e de tua ternura.
Tudo que posso dar-te, realiza-o com ainda mais louvor em mim!
Só procuro a tua glória, esta basta para minha satisfação e minha felicidade.
Esta é a minha aspiração maior, o desejo urgente da alma.

5. “Tudo para a missão! Tudo para a Igreja!”.


Pai, firmemente creio: entreguei-me a uma missão, marcada toda por teu amor.
Prepara-me o caminho.
Não cesso de purificar-me e de me ancorar na resolução.
Sim, estou decidido: tornar-me-ei uma silenciosa oferta, servirei de instrumento nas mãos do Pai.
Consumarei o meu sacrifício, instante a instante, por amor à Igreja: “Eis-me aqui, estou pronto!”.

6. “Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco” (Lc 22,15). “Tudo está consumado” (Jo 19,30).
Pai amantíssimo!
Unido ao santo Sacrifício que continuo a oferecer, ajoelho-me neste instante e por ti pronuncio a palavra
que sai de meu coração: “Sacrifício”.
Um sacrifício que aceita a humilhação como a glória, um sacrifício gozoso, um sacrifício integral…
Canta a minha esperança e todo o meu amor.

Prisão de Phú Khánh (Vietnã central),


1º de setembro de 1976,
Festa dos santos Mártires vietnamitas.
RETIRO COM OS PADRES
ARQUIDIOCESE DE CURITIBA (PR)32
O ENCONTRO COM DEUS NAS TRILHAS DO COTIDIANO
9 de fevereiro de 2023 – tarde
Primeiro Peixe: Maria Imaculada, meu primeiro amor
A espiritualidade mariana acompanha os membros da Igreja de Cristo. Aos pés da
cruz, Maria assume a missão de mãe da humanidade. Na pessoa do discípulo amado ela
inicia um afeto e proteção maternal com os seguidores de Jesus. O relato do Evangelho
de João que apresenta Maria aos pés da cruz com o discípulo amado, remete à profunda
relação que o presbítero tem com a pessoa de Maria.
O Concílio Vaticano II convida os sacerdotes a olhar para Maria como o modelo
perfeito da sua existência, invocando-a como “Mãe do sumo e eterno Sacerdote, Rainha
dos Apóstolos, Auxílio dos presbíteros no seu ministério”. E os presbíteros continua o
Concílio “devem, portanto, venerá-la e amá-la com devoção e culto filial”
(cf. Presbyterorum ordinis, 18).
O Concílio Vaticano II , no Optatam Totius, (2000, n.08), ressalta ainda esta
relação do presbítero com Maria. “Com filial confiança amem e venerem a Bem-
aventurada Virgem Maria que, como mãe, foi dada ao discípulo por Jesus”. Nesta
perspectiva, note-se que não se trata apenas de um simples convite ao presbítero para
acolher Maria, mas é o próprio Filho de Maria quem entrega aos seus discípulos sua mãe,
para que ela continue a desempenhar a terna maternidade, porém de maneira espiritual.
O Santo Cura d’Ars, gostava de repetir: “Depois de nos ter doado tudo aquilo que
podia oferecer, Jesus Cristo ainda nos quer tornar herdeiros de quanto Ele possui de mais
precioso, ou seja, a sua Santa Mãe”. 33
Quem de nós não carrega no seu coração a devoção por Maria? Quem de nós não
lembra dos ensinamentos da nossa infância sobre Maria? Lembro-me que desde criança
meus pais nos colocava todas as noites depois da janta joelhados ao redor da mesa para a
recitação do terço. Ela nos instilou em nosso coração o amor a Maria desde quando
éramos crianças.
Van Thuan também recorda este ensinamento na sua vida. E quando perguntava
para a sua avó, porque depois de ter rezado o rosário em família, ela rezava ainda um

32
Clélia Peretti. Profª do Programa de Pós-Graduação em Teologia – Mestrado e Doutorado e do
Bacharelado, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. 09 de fevereiro de 2023
33
NODET, B. Il pensiero e l’anima del Curato d’Ars. Turim, 1967, p. 305.
rosário. Sua resposta era: “Rezo um rosário pedindo a Maria pelos sacerdotes”. Esta não
sabe nem ler nem escrever. Mas são essas mães, essas avós, que formaram a vocação em
nossos corações” (THUAN, 2000, p. 67-68).
Van Thuan testemunha que Maria tinha uma função especial na sua vida. Ele foi
preso a 15 de agosto de 1975, festa da Assunção de Maria e foi libertado da prisão no dia
21 de novembro festa da apresentação de Maria no Templo após ter implorado a proteção
de Maria. Na sua vida, carregou sempre viva na memória a lembrança as palavras
dirigidas a Santa Bernadete pela Imaculada: “Bernadete, não te prometo alegrias, mas
provações e sofrimentos”. Esta mensagem ouvida em 1957 em ocasião a uma visita a
gruta de Lurdes acompanhou sua caminhada de presbítero. Ele afirma: “Não sem medo
aceitei essa mensagem”.
Quando as misérias físicas e morais, no cárcere, tornam-se muito pesadas e me
impedem de rezar, digo então a Ave-Maria, repito centena de vezes a Ave-Maria.
Ofereço tudo pelas mãos da Imaculada, pedindo-lhe distribuir graças a todos que
precisam na Igreja. Tudo com Maria, por Maria e em Maria (THUAN, 2000, p.
89).

O Concílio Vaticano II no capítulo VIII da Lumen Gentium traz a base do princípio


mariológico da Igreja. Para tal, o Concílio trouxe à luz Maria no contexto das Sagradas
Escrituras, intrinsicamente relacionada ao plano de salvação. Maria está em comunhão
com a Trindade e através do seu fiat atua como participante definitiva na História da
Salvação. Em seu sentido antropológico, a Lumen Gentium situa Maria como a mulher
(LG 53), Mãe do Redentor
na linhagem das mulheres da inteira história da salvação que espera a
realização da promessa. Maria é a mulher da plenitude dos tempos que
inaugura a nova economia com seu sim que nos abre o mistério da Encarnação
(n. 55). [...] Maria [...] mulher que avançou em peregrinação de fé, chegando
aos pés da cruz, quando o próprio filho entrega sua Mãe como último
“testamento” de sua vida terrena ao discípulo amado, com estas palavras:
“Mulher, eis aí teu filho” (Jo 19, 26-27).
Nesse sentido, Maria, como mulher, supera a realidade de ser mulher histórica
para abrir-se à dimensão universal de ser a mulher da fé, a mulher da esperança
e a mulher do amor de mãe que se abre à dimensão universal da humanidade34.

Dessa maneira, reconhece que em sua expressão mais genuína de liberdade de fé,
pura e da graça com o seu sim, “Maria não foi instrumento meramente passivo nas mãos
de Deus, mas cooperou na salvação dos homens com fé livre e com inteira obediência”
(LG 56). A liberdade de fé expressa no fiat de Maria a desloca da situação de serva

34
BOFF, Lina. Maria, a mulher. In: Maria no coração da Igreja: Múltiplos olhares sobre a Mariologia.
São Paulo: Paulinas/União Marista do Brasil UMBRASIL, 2011, p. 40.
submissa, em sua livre iniciativa: “Maria sente o Deus libertador presente nela; é livre e
independente [...] ”35.
A espiritualidade mariana que todo o presbítero é convidado a cultivar encontra o
seu ponto vital nesta relação especial com Maria. Um dos meios para que essa relação
seja eficaz, é necessário uma “autêntica e crescente devoção à Virgem Maria” (Diretrizes
Gerais da Formação de Presbíteros da Igreja no Brasil, 2010, n.286). Van Thuan
testemunha sua devoção a Imaculada dizendo:
Não rezo a Maria, pedindo-lhe a intercessão, mas frequentemente lhe rogo: “Mãe
que posso fazer por ti? Estou pronto a cumprir tuas ordens, a realizar tua vontade
para o Reino de Jesus”. Então uma paz imensa invade o meu coração, não tenho
mais medo”. [...] Maria Imaculada não me abandonou. Tem-me acompanhado
ao longo de toda a marcha nas trevas do cárcere. Naqueles dias de provações
indizíveis, rezei a Maria com toda simplicidade e confiança: “Mãe, se tu vês que
não poderei mais ser útil à Igreja, concede-me a graça de terminar a minha vida
na prisão. Mas se tu, ao invés, sabes que poderei ainda ser útil à tua Igreja,
concede-me sair da prisão no dia da tua festa! (THUAN, 2000, p. 70).

Após esta sua prece, ouve tilintar o telefone do guarda. “Talvez um telefonema
para mim! É verdade, hoje é 21 de novembro, festa de Maria no Templo! (.....) p. 71-72.
Maria me liberta. Obrigada. Maria.
Santo Afonso de Ligório compreendeu que o caminho que leva à perda da fé
começa muitas vezes pela tibieza e frialdade na devoção à Virgem. Nesse sentido,
difundiu por toda parte a devoção mariana e preparou para os fiéis, e em especial para
os presbíteros, um arsenal de materiais para a pregação e propagação da devoção a essa
Mãe divina. A Igreja sempre entendeu que um ponto totalmente particular na economia
da salvação é a devoção à Virgem, Medianeira das graças e corredentora, e por isso
Mãe, Advogada e Rainha. João Paulo II afirmava que Afonso sempre foi todo de
Maria, desde o começo da sua vida até à morte36.
Cada um de nós deve ser também “todo de Maria”, tendo-a presente nos seus
afazeres ordinários, por pequenos que sejam. E não devemos esquecer-nos nunca,
sobretudo se alguma vez tivermos a desgraça de afastar-nos, de que “a Jesus sempre
se vai e se 'volta' por Maria”. Ela conduz-nos ao seu Filho rápida e eficazmente37.
O momento em que me sinto mais filho de Maria é na santa missa, quando
pronuncio as palavras da consagração. Sou identificado com Cristo, in persona
Christi.

35 ESTRADA, Juan Antonio. Para compreender como surgiu a Igreja. São Paulo: Paulinas, 2005, p. p.
524).
36
Papa São João Paulo II, Carta Apostólica Spiritus Domini, no segundo centenário da morte de
Santo Afonso Maria de Ligório, 1.º de agosto de 1987.
37
São Josemaría Escrivá, Caminho, n. 495.
Pergunta-me quem é Maria, para mim, na radical escolha de Jesus? Na Cruz,
Jesus disse a João: “Eis aí a tua mãe!” (Jo 19, 27). Depois da instituição da
eucaristia o Senhor não podia deixar-nos nada maior do que sua Mãe. Para
mim, Maria é como um evangelho vivo, maneiro, de grande difusão, mais
acessível que a vida dos santos.
Para mim, Maria é minha Mãe, a mim dada por Jesus. A primeira reação de
uma criança quanto tem medo, está em dificuldade ou sofre, é a de chamar:
“mamãe, mamãe”. Essa palavra é tudo para o menino (THAUN, 2000, p. 71-
72).

A devoção é um caminho importante para cultivar a relação filial com a Mãe de


Jesus. Contudo, não basta estagnar apenas na devoção, por exemplo na oração do rosário.
É preciso, também observar e imitar as suas virtudes. “Não pode ser filho devoto se não
se sabe imitar as virtudes da mãe. Portanto, o presbítero deve olhar para Maria a fim de
ser um ministro humilde, obediente, casto, e para testemunhar a caridade na doação total
ao Senhor e à Igreja” (Diretório para o Ministério e a Vida dos Presbíteros, 2013, n.85).
A mãe de Jesus não é tão somente uma poderosa intercessora, ela também se torna um
modelo a ser seguido para os discípulos de Jesus.
Maria vive completamente para Jesus. A sua missão foi compartilhar a sua obra
de redenção. Toda sua glória vem dele. Isto é, a minha vida não valerá nada se
me separo de Jesus.
Maria não se preocupava só com Jesus. Mostrou também seus cuidados com
Isabel, com João e com os noivos de Caná.
Amo muito a Palavra de Santa Teresinha do Menino Jesus: “Gostaria muito de
ser padre para poder falar sobre Maria a todos (THUAN, 2000, p. 72-73).

Chiara Lubich38 afirma que Maria é a complacência extremamente preciosa que


Jesus ofereceu aos sacerdotes para que, se espelhando nela, possam servir a Igreja. Maria
é uma figura de suma importância para o sacerdote. Através da contemplação da mãe de
Jesus, os presbíteros poderão exercer sua missão na Igreja. Lubich 39 afirma:
A Virgem Maria é o modelo da Igreja; e cada sacerdote que é chamado a edificar
a Igreja, nunca chegará a desempenhar tão bem a sua missão como diante de
Maria. Se os sacerdotes viverem em comunhão com Maria, ela a mãe da unidade,
revelará a eles como deve ser organizada a caridade em seus corações, como
deve ser edificado o corpo de Cristo.

Maria como modelo de doação e serviço, contribuiu através de seu auxílio, na


missão sacerdotal, que se manifesta no zelo pela Igreja. Tal missão, advém de uma
profunda comunhão com Maria, mãe dos membros da Igreja que intercede para que vivam
na sublime unidade, da qual o sacerdote é o ponto de comunhão.

38
LUBICH, CHIARA. Maria. Org. Brendan Leahy, Judith Povilus. Tradução: Luciano Menezes Reis.
Vargem Grande Paulista, SP. Cidade Nova, 2017.
39
LUBICH, CHIARA. Maria. Org. Brendan Leahy, Judith Povilus. Tradução: Luciano Menezes Reis.
Vargem Grande Paulista, SP. Cidade Nova, 2017, p.155.
Diante disso, além de ter Maria como um modelo a ser seguido, escutamos o que
ela tem a nos dizer:
De primeiro fugia de Maria, Mãe do perpétuo socorro; agora escuto Maria que
me diz: “Fazei tudo o que Jesus vos disser” (Jo 2, 5) e muitas vezes peço a Maria:
“Mãe, que posso fazer por ti?”. Permaneço sempre um menino responsável que
sabe compartilhar as solicitudes com sua mãe.
A vida de Maria se resume em três Palavras: Ecce, Fiat, Magnificat.
Ecce: “Eis a escrava do Senhor” (Lc 1,38).
Fiat: “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38)
Magnificat: “Minha alma engrandece o Senhor” (Lc 1,46). (Thuan, 2000, p.
73).
MARIA, MINHA MÃE

Maria, minha Mãe, Mãe de Jesus, Mãe nossa,


por sentir-me unido a Jesus e a todos os homens, meus
irmãos, quero chamar-te Mãe nossa. Vem viver em mim,
com Jesus, teu amadíssimo Filho, esta mensagem de
renovação total, no silêncio e na vigília, na oração e na
oferta, na comunhão com a Igreja e com a Trindade, no
fervor de teu “Magnificar” unido a José, teu santíssimo
esposo, no teu humilde e amoroso trabalho para cumprir
o testamento de Jesus, no teu amor por Jesus e por José,
pela Igreja e pela humanidade, na tua fé inabalável no
meio de tantas provações, suportadas pelo Reino, na tua
esperança, que ininterruptamente age em construir um
mundo novo de justiça e de paz, de felicidade e de
verdadeira ternura, na perfeição de tuas virtudes no
Espírito Santo, para tornar-te testemunha da Boa-Nova,
apóstola do evangelho.
Em mim, ó Mãe, continua a operar, a rezar, a
amar, a sacrificar-me. Continua a cumprir a vontade do
Pai, continua sendo a Mãe da humanidade. Continua
vivendo a paixão e a ressurreição de Jesus. Ó Mãe,
consagro-me a ti, todo a ti, agora e sempre. Vivendo no
teu espírito e no de José, eu viverei no espírito de Jesus,
com Jesus, José, com os anjos e santos e todas as almas.
Amo-te, ó Mãe nossa, e compartilharei tua fadiga, tua
preocupação e teus combates pelo reino do Senhor Jesus.
Amém.

No isolamento em Hanói (Vietnã do Norte),


1º de janeiro de 1986,
Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus.

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