Mario Pedrosa 120 Anos
Mario Pedrosa 120 Anos
Mario Pedrosa 120 Anos
PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
VOLUME 7 | NÚMERO 1 | 2021
Universidade Federal do Paraná
ISSN 2316-9249
socio
logias
DOSSIÊ
MÁRIO PEDROSA
120 ANOS
plurais
Universidade Federal do Paraná Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Reitor: Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca Coordenadora: Profª. Drª. Simone Meucci
Vice-Reitoria: Profª. Drª. Graciela Bolzón de Muniz Vice-Coordenadora: Prof. Dr. Jaime Santos Júnior
Ana Carolina de Andrade Ferreira, Ana Julia Guilherme, Eduardo Russo Ramos, Henrique da Costa
Valério Quagliato, Mariana Gonçalves Felipe e Talita Cristine Rugeri.
Conselho Editorial
Prof. Dr. André Augusto Michelato Ghizelini (UFES), Profª. Drª. Anna Catarina Morawska Vianna
(UFSCar), Prof. Dr. Antônio Fernandes Nascimento Junior (UFLA), Profª. Drª. Carolina Cravero (UNR),
Prof. Dr. Gabriel de Santis Feltran (UFSCar), Profª. Drª. Gisele Rocha Cortes (UFPB), Prof. Dr. João Feres
Júnior (UERJ), Prof. Dr. Joelson Gonçalves de Carvalho (UFSCar), Prof. Dr. Josnei Di Carlo (UFPR/UFSC),
Profª. Drª. Larissa Maves Pelucio Silva (UNESP), Prof. Dr. Milton Lahuerta (UNESP), Prof. Dr. Nelson
Rosário de Souza (UFPR), Prof. Dr. Richard Miskolci Escudeiro (UNIFESP), Profª. Drª. Rosane Rosa
(UFMS), Prof. Dr. Ruy Braga (USP), Profª. Drª. Simone Meucci (UFPR), Prof. Dr. Thales Haddad Novaes
de Andrade (UFSCar), Profª. Drª. Vânia Penha Lopes (Bloomfield College), Prof. Dr. Wanderley Marchi
Junior (UFPR), Prof. Me. George Gomes Coutinho (UFF) e Profª. Ma. Paula Grechinski (UNICENTRO).
Diagramação
Eduardo Russo Ramos e Ana Carolina de Andrade Ferreira
Capa
Comissão Executiva Editorial
Crédito de Imagem
Rafael Carvalho
Apresentação
Ana Julia Guilherme
Talita Rugeri
6
Artigos
“Água enquanto...”: estudo das múltiplas performances da água no
contexto de escassez hídrica do Distrito Federal
Larissa do Carmo Inácio
191
Nominata de pareceristas
431
6
APRESENTAÇÃO
cientistas sociais, ora por teimosia, ora por gosto à prática científica, tem realizado suas
pesquisas sobre a realidade social. Nesta edição trazemos um pouco da riqueza que as
ciências sociais nos permitem analisar e compreender, apesar das dificuldades de
realização e produção científica em meio a umas das maiores pandemias já registradas
da história.
A abertura da chamada livre desta edição se dá com o texto “Água enquanto…”:
estudo das múltiplas performances da água no contexto de escassez hídrica do Distrito
Federal, de autoria de Larissa do Carmo Inácio. Ao dar ênfase sobre a questão hídrica
no debate das Ciências Sociais, a autora busca mapear as diferentes performances
discursivas da água - os modos de coordenação e descoordenação dos múltiplos atores
envolvidos - em torno do contexto de escassez hídrica no Distrito Federal entre os anos
de 2016 e 2018.
Escrito por Renan Oliveira de Carvalho, o segundo artigo Modernidade e
Racionalização: Entre a Tragédia do Esclarecimento e a Esperança no Agir Comunicativo
reflete as Teorias da Modernidade como fruto da racionalização da vida através do
olhar dos sociólogos Weber, Adorno, Horkheimer e Habermas. O autor aborda
também que os pensadores da escola de Frankfurt por meio da crítica entendem a
modernidade como um processo trágico, mas como o chamado paradigma da
racionalidade nos permite um olhar interpretativo referente a isso que se
convencionou a chamar de modernidade.
Em seguida, Maxmiliano Martins Pinheiro traz uma discussão teórica sobre a
sociologia pós-colonial e sua crítica ao pensamento eurocêntrico em A dinâmica da
recepção: a intelectualidade brasileira e o ingresso do pensamento europeu do século
XIX. Com base nas “Epistemologias do Sul” de Boaventura de Sousa Santos, Pinheiro se
propõe a dialogar com a tese de Angela Alonso, a qual defende a dinamicidade da
intelectualidade brasileira na transição do período monárquico para o republicano,
ocasionando uma reconstrução sócio-política do Brasil. A partir disso, o texto explora a
condição pós-colonial em diferentes países e etnias e apresenta a recepção das ideias
europeias mediante o papel das elites intelectuais do Brasil.
No artigo Ministério Público Federal e Polícia Federal: uma análise sobre os
conteúdos das páginas oficiais no Facebook, Carla Avanzi descreve as estratégias de
comunicação utilizadas pelas instituições envolvidas na operação Lava Jato no
8
Facebook. Segundo a autora, que afirma buscar compreender um dos aspectos da luta
simbólica por poder pelas instituições da burocracia, conclui que suas estratégias se
diferenciam uma vez que a Polícia Federal prioriza publicações relacionadas à
capacidade institucional e o Ministério Público enfatiza assuntos relacionados às suas
atribuições constitucionais e, ainda, se distinguem por suas publicações sobre
corrupção e pelas reações dos usuários.
O quinto texto da seção é intitulado E quando as bichas, sapatão, travas e trans
caminham pelas ruas? Os emblemas sociais da caminhabilidade no Brasil e escrito por
Antoniel dos Santos Gomes Filho, Antônio Ailton de Sousa Lima, Antônio Micael
Pontes da Silva, Larissa Ferreira Nunes e Tadeu Lucas de Lavor Filho. O artigo aborda
uma reflexão sobre a caminhabilidade de pessoas dissidentes de gênero e sexualidade,
com ênfase no público LGBTs, em seu entrelaçamento com a violência e busca ampliar
a maiores discussões a partir do campo socioantropológico da Teoria da
Caminhabilidade.
Temos ainda o artigo de Raphael de Oliveira Soares, Individualismo Moral e a
Sociologia Clássica, abordando a existência da pluralidade de epistemologias na
sociologia na qual o individualismo moral perpassa por autores clássicos da sociologia
e em alguns pensadores da filosofia. O objetivo do texto segundo Soares é apresentar
como esses pensadores desenvolveram teorias referentes à liberdade individual, ou
seja, a finalidade dos escritos é o indivíduo universal. Porém, fatores de exploração e
dominação interferem nessa busca da liberdade e desenvolvimento humano, também
perceptível nas obras de Amartya Sen.
Para encerrar a seção, em Luta e resistência: a importância de manter viva a
memória de 1968, Juliana Marques de Carvalho Camargo trata da importância do ano
de 1968 para o Brasil e para outros países no mundo como um momento de
efervescências de movimentos e mudanças sociais e políticas. Através de pesquisa
bibliográfica e documental, Camargo traz a perspectiva da memória, “justa memória”
de Paul Ricouer (2007), tratando especificamente em ocorridos na Universidade de
Brasília no ano relatado chegando ao AI-5.
O espaço graduação, que também integra este exemplar, é composto pelo
texto de Guilherme Lassabia de Godoy, Colonização e descolonização: fundamentos da
dominação Ocidental e perspectivas de transformação. O autor retoma o debate das
9
1
Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade
Federal de Santa Catarina (PPGSP/UFSC), com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq).
2
Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal do Paraná (UFPR).
3
Apesar de poucos trabalhos serem sobre a trajetória pedrosiana no todo, indiquemos alguns que
procuraram sistematizá-la. Enquanto Pedroso e Vasquez (1992) e Pedrosa (2019) fazem uma
cronologia, Elia (1982) e Andrade (2014) apresentam uma síntese. Se Karepovs (2017) faz uma biografia
política de Pedrosa, Arantes (1991) faz um itinerário dele enquanto crítico de arte e Di Carlo (2019a)
preocupa-se em apresentar suas formas de intervenção na esfera pública. Por fim, Marques Neto (1993)
expõe sua formação política entre os anos 1920 e 1930.
É, pois, muito próxima dessa compreensão elaborada por Rama que autores
como o peruano José Carlos Mariátegui ou mesmo o italiano Antonio Gramsci serão
lidos e interpretados à luz da estrutura colonial, sem desconsiderar o aspecto da
modernização na América Latina no decorrer do século XX. Interessante notar
também que a recepção destes intelectuais está associada a uma possibilidade de
construção de certa emancipação das classes subalternizadas no curso do
desenvolvimento capitalista, ao mesmo tempo em que se instiga o desenvolvimento de
um marxismo com enfoque na questão colonial.
No caso do Brasil, especificamente, há vários autores que operaram nessa
chave interpretativa, a exemplo de Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e o próprio
Pedrosa. Dado a forma de este intervir na esfera pública como intelectual – ora como
crítico de arte, ora como pensador político – pode ser tomado como um caso exemplar
para refletirmos como se constitui uma agenda de pesquisa sobre intelectuais. Assim, o
mercado editorial e a academia são duas instâncias que reposicionam constantemente
as ideias de um pensador, com cada contexto dando os limites para sua obra ser lida e
para seu reconhecimento a posteriori. Em síntese, como os pesquisadores constroem
um intelectual quando ele é plural, como era Pedrosa?
4
Di Carlo (2017) realizou um levantamento até 2016 e fizemos outro dos anos subsequentes
monitorando o alerta do Google e do Google Acadêmico para os termos “Mário Pedrosa” e “Pedrosa,
Mário”. Também consultamos o Currículo Lattes e as referências bibliográficas das novas dissertações
e teses apresentadas após 2016.
5
Os programas de pós-graduação por áreas de conhecimento são: 1) História, História Social e História
Social da Cultura foram classificados como História; 2) Artes, Artes Visuais, Interunidades em Estética
e História da Arte, Arte e Cultura Contemporânea, Arte e Produção Simbólica e Estética e História da
Arte, como Artes; 3) Ciência Política, Sociologia e Antropologia, Antropologia Social, Ciências Sociais,
Sociologia e Ciência Política e Sociologia, como Ciências Sociais; 4) Filosofia, como Filosofia; 5)
De acordo com os dados, 75% das dissertações e teses sobre Pedrosa estão
concentradas em três áreas de conhecimento. Enquanto Filosofia concentra três
trabalhos acadêmicos de 1982 a 1992, História, Artes e Ciências Sociais uma cada6. A
obra pedrosiana, portanto, entra na agenda de pesquisa das áreas predominantes
posteriormente. Também passa a ser pesquisada por outras. Duas das cinco
dissertações e teses agrupadas em “Outras” no Gráfico 1 são da área de Arquitetura e
Urbanismo, com ambas apresentadas nos últimos três anos. Os movimentos podem
indicar que a academia se aproxima de Pedrosa conforme cada contexto o tipifica. Em
termos concretos, tornou-se um pensador da arquitetura a partir do momento em que
passou a ser reconhecido como tal. Guilherme Wisnik é responsável pela organização,
prefácio e notas dos textos arquitetônicos pedrosianos lançado pela Cosac Naify em
2015 (PEDROSA, 2015a). Arquitetura: Ensaios Críticos é o primeiro livro exclusivo sobre
arquitetura de Pedrosa.
da obra pedrosiana até hoje7. Entre 1995 a 2000, organizou uma antologia em quatro
volumes da crítica de arte de Pedrosa para a EDUSP (PEDROSA, 1995, 1996, 1998,
2000)8. Com Mário Pedrosa – Itinerário Crítico cria uma série de problemas para os
pesquisadores; com Política das Artes (1995), Forma e Percepção Estética (1996),
Acadêmicos e Modernos (1998) e Modernidade Cá e Lá (2000) dispõe fontes para
hipóteses serem testados por eles.
7
Nos anos 2010, a Cosac Naify começou um projeto editorial sobre Pedrosa, chegando a publicar dois
volumes da coleção Mário Pedrosa, cuja coordenação estava a cargo de Danis Karepovs, Francisco
Alambert, Guilherme Wisnik, Isabel Maria Loureiro, Lorenzo Mammì e Milton Ohata (PEDROSA,
2015a, 2015b). Com a falência da editora em 2015, o projeto foi abortado. Um de seus coordenadores,
Alambert, afirmou que a coleção ia ser mais ampla, “quase completa”, comparada com a de Arantes (DI
CARLO, 2016, p. 255).
8
Nos quatro volumes foram publicados parte dos setecentos textos de Pedrosa sobre artes reunidos por
Arantes (1995, p. 9). O arco temporal deles vai de 1933 a 1980. Di Carlo (2019b), ao fazer um
levantamento das colunas pedrosianas de artes e política nos jornais Correio da Manhã, O Estado de S.
Paulo, Tribuna da Imprensa e Jornal do Brasil entre 1944 e 1968, contabilizou ao todo 1012. Enquanto
não houver uma organização sistemática dessa obra, os números sempre serão discrepantes.
Gráfico 3: Dissertações e teses sobre Mário Pedrosa divididas pelo campo de sua
atuação intelectual analisada (1982-2020)
elementos para posicioná-lo como pensador político, em função do que ele representa
como ideologia política finalmente erigiu um partido e chegou ao poder central logo
após seu centenário de nascimento. Intelectuais acadêmicos de matizes políticas
distintas e sem vínculos com o PT e a esquerda, embora com formação política-
intelectual marxista dada entre os anos 1940 e 1950 – como no caso de Oliveiros S.
Ferreira e Hélio Jaguaribe –, relacionam-se com a memória pedrosiana de forma
similar.
No artigo “A Espada e o Escudo”, publicado no Estado de S. Paulo em 13 de
março de 1983, Ferreira propõe como método a necessidade de se distinguir o
marxismo e o comunismo brasileiros não só para conhecer a história do primeiro
melhor quanto para emergir alguns de seus protagonistas relegados ao esquecimento
por não fazerem parte da história do segundo. “A história do marxismo no Brasil não se
poderá fazer sem a referência obrigatória à figura humana e à atuação intelectual de
Mário Pedrosa”, mas, continua Ferreira (1983, p. 14), “a história do Partido Comunista
em nada se alterará se a ele não se fizer menção”. Em entrevista de 1980, Jaguaribe
destaca que foi discípulo de Pedrosa e, por conta disso, participou do PSB a seu lado
(MOTA, 1982, p. 170). Dezoito anos depois voltaria ao tema, indicando o período que
iniciou sua relação política com o crítico de arte: “tive a influência do marxismo, a
partir de uma posição antistalinista. Tive muito contato com Mário Pedrosa, que
dirigia a revista [sic] Vanguarda Socialista. Contribuí com vários artigos para essa
revista [sic]” (COELHO, 1998). Apesar de destacarem Pedrosa como pensador político,
Ferreira e Jaguaribe enfatizam sua contribuição à história do marxismo no Brasil e,
indiretamente, para a formação de uma geração de intelectuais críticos ao stalinismo.
Dado o exposto, qual intelectual emerge dos artigos do dossiê Mário Pedrosa,
120 Anos, da Sociologias Plurais (PGSocio/UFPR)? Uma reposta unívoca não é o
objetivo de um dossiê, mas criar problemas não só para os estudos pedrosianos quanto
para alguns campos de pesquisa da sociologia, particularmente o da sociologia dos
intelectuais, embora não só. Assim, nosso texto tencionou, de um lado, a pensar o
lugar dos intelectuais nas análises sociológicas, e, de outro, o lugar de Pedrosa nas
pesquisas acadêmicas, para a leitura do dossiê ser frutífera para os pesquisadores de
sua obra e para o desenvolvimento científico das ciências humanas, em geral, e da
sociologia, em particular.
O dossiê abre com um artigo de Everaldo de Oliveira Andrade. Em “Duas
ditaduras e uma só liberdade: Mário Pedrosa, o fascismo colonial e o bonapartismo
militar”, faz uma análise da produção intelectual pedrosiana dos anos 1930 e 1960, mais
especificamente no período pré-Estado Novo e da ditadura militar. Nos dois processos,
lembra o autor, Pedrosa fez uso dos conceitos marxistas de bonapartismo e
desenvolvimento desigual e combinado para produzir uma interpretação original sobre
o autoritarismo no Brasil. O próximo artigo, “A trajetória de Mário Pedrosa em suas
primeiras apropriações do marxismo (1919-1931)”, afasta-se do método comparativo
para centrar no início da trajetória pedrosiana. Ao final dela, Pedrosa publicou “Esboço
de Análise da Situação Brasileira” em conjunto com Lívio Xavier. O ensaio em questão
– posteriormente conhecido como “Esboço de uma análise da situação econômica e
social do Brasil”, por assim ter circulado em Na Contracorrente da História, de 1987 (cf.
DI CARLO, 2018, p. 163) – tornou-se um pequeno clássico sobre a formação social
brasileira pela perspectiva do marxismo, sendo a principal fonte da autora do artigo
Juliana Rodrigues Alves.
Nos dois primeiros artigos, a obra pedrosiana investigada é a política. Mas o
terceiro, “Gestalttheorie, Mário Pedrosa y el arte concreto argentino: un capítulo de la
historia de la psicologización del estudio de la forma y el color en el arte”, foca na
crítica de arte de Pedrosa. No caso, María Cecilia Grassi objetiva compreender como
ele articulou a teoria da Gestalt – da área da psicologia – com as artes. Compreensão
necessária para indicar a circulação de suas ideias entre os artistas concretos da
Argentina entre os anos 1940 e 1950. O quarto artigo, em uma tentativa de relacionar
arte e política em Pedrosa, avança para a década seguinte. Em “As relações entre arte e
política na ditadura militar brasileira”, Luis Claudio Reginato Carvalho recorre a
Partilha do Sensível (2000), de Jacques Rancière, para fazer essa relação na obra
pedrosiana produzida no contexto da ditadura militar.
Referências
DI CARLO, J. Política das artes e arte da pesquisa: entrevista com Francisco Alambert.
Em Tese, v. 13, n. 1, p. 243-257, jan.-jun. 2016.
ELIA, R. Mário Pedrosa (1900-1981): anotações sobre sua trajetória intelectual. Revista
Brasileira de História, v. 2, n. 4, p. 259-264, set. 1982.
GULLAR, F. et al. Mário Pedrosa e a vitória dos seus fracassos. Pasquim, p. 4-14, n.
467, 23-29 jun. 1978.
_____. (org.). Mário Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.
PEDROSA, M. Política das artes: textos escolhidos I. São Paulo: Edusp, 1995.
_____. Forma e percepção estética: textos escolhidos II. São Paulo: Edusp, 1996.
_____. Acadêmicos e modernos: textos escolhidos III. São Paulo: Edusp, 1998.
_____. Modernidade cá e lá: textos escolhidos IV. São Paulo: Edusp, 2000.
PEDROSA, Q. Mário Pedrosa, uma cronologia. In: PUCU, I.; VILLAS BÔAS, G.;
PEDROSA, Q. (orgs.). Mário Pedrosa, atual. Rio de Janeiro: Instituto Odeon, 2019. p.
7-39.
9
Elaborado com base em levantamento de Di Carlo (2017) e dos autores.
Mário Pedrosa e a arquitetura brasileira: autonomia e Marcos Faccioli Arquitetura e José Tavares
29 2017 USP SP Dr.
síntese das artes Gabriel Urbanismo Correia de Lira
Arte e Cultura
Mário Pedrosa entre os tupiniquins ou nambás: uma Marcelo Gustavo
30 2018 Pollyana Quintella UERJ RJ Contemporân Me.
perspectiva primitivista para a arte pós-moderna Lima de Campos
ea
O exílio de Mário Pedrosa nos Estados Unidos e os New Marcelo Ribeiro
31 2018 Unicamp SP Sociologia Dr. Renato Ortiz
York Intellectuals: abstracionismo na barbárie Vasconcelos
Sociologia e
Intelectuais socialistas e imprensa liberal: o caso Mário Ricardo Gaspar
32 2018 Josnei Di Carlo UFSC SC Ciência Dr.
Pedrosa no segundo governo Getúlio Vargas Müller
Política
Brasília e Mário Pedrosa: reflexões sobre a crítica da Bianca Ardanuy Arquitetura e Eduardo Pierrotti
33 2019 UnB DF Me.
cidade Abdala Urbanismo Rossetti
Teoria
Abstração e informalismo depois de 1945: de Pedrosa e Jorge Manzi Literária e Jorge Mattos Brito
34 2019 USP SP Dr.
Greenberg à nova prosa de Haroldo de Campos Cembrano Literatura de Almeida
Comparada
Interunidades
A dimensão afetiva da arte: Mário Pedrosa e a percepção Gabriela Borges em Estética e Lisbeth Rebollo
35 2019 USP SP Dr.
estética Abraços História da Gonçalves
Arte
Interunidades
A opção museológica de Mário Pedrosa: solidariedade e Luiza Mader em Estética e Maria Cristina
36 2020 USP SP Dr.
imaginação social em museus da América Latina Paladino História da Machado Freire
Arte
RESUMO
Este artigo analisa a produção política e intelectual de Mário Pedrosa tendo como referência sua atuação
no período da década de 1930 que desembocou na ditadura varguista (1937-1945|) e depois no período da
ditadura militar iniciada em 1964. Busca-se refletir sobre a possível originalidade das suas abordagens, em
particular através do uso de conceitos como bonapartismo e desenvolvimento desigual e combinado no
estudo do autoritarismo e da perenidade de traços e práticas fascistas nos governos brasileiros nos dois
períodos. São utilizadas como fontes documentais a coleção de jornais O Homem Livre (1933-1934) e textos
e obras do próprio autor produzidas no período em análise.
Two dictatorship and only one freedom: Mário Pedrosa, the colonial fascismo
and the military bonapartism
ABSTRACT
This article analyzes the political and intellectual production of Mário Pedrosa having as reference his
performance in the period of the 1930s that ended in the Vargas dictatorship (1937-1945) and then in the
period of the military dictatorship that began in 1964. It seeks to reflect on the possible originality of their
approaches, in particular through the use of concepts such as Bonapartism and uneven and combined
development in the study of authoritarianism and the continuity of fascist traits and practices of Brazilian
governments in both periods. The collection of newspapers O Homem Livre (1933-1934) and texts and
works by the author himself produced in the period under analysis are used as documentary sources.
Keywords: Mário Pedrosa; Brazilian fascism; dictatorships in Brazil; bonapartism; uneven and combined
development.
Introdução
1
Everaldo de Oliveira Andrade, professor no departamento de História da FFLCH - USP
políticas. Sua atuação na década de 1930 foi marcada pela ação contra o avanço do
fascismo brasileiro e a implantação da ditadura varguista. Décadas depois, e em contexto
bem diferente, seguiu atuando como homem de ação e de palavras buscando derrotar a
nova ditadura de 1964 e suas redes de apoios autoritárias e fascistas. A comparação destes
dois períodos na peculiar leitura de Pedrosa sobre as relações políticas, econômicas e
sociais do Brasil e destes com o capitalismo internacional provavelmente nos permita
apresentar uma contribuição original de Pedrosa para a história do pensamento político
e econômico brasileiro contemporâneo nestes momentos em que nos debatemos com
avanços autoritários. Buscamos nessa mesma perspectiva analisar as possíveis
continuidades, rupturas e a evolução do aparato conceitual de análise utilizado por
Pedrosa para abordar esses dois momentos específicos de sua atividade política e da
história do país.
O conceito de bonapartismo provavelmente tenha sido a ferramenta constante e
central nas análises que realiza dos dois períodos, e que remete à sua compreensão da
permanente oscilação do regime político de um estado dependente como o brasileiro.
Isso teria permitido muito provavelmente a Pedrosa absorver e mirar criticamente o
chamado “ciclo nacional populista desenvolvimentista” do pós Segunda Guerra não como
uma fase específica e de ruptura na história política e econômica nacional, mas muito
mais como uma quase previsível oscilação de um mesmo regime político de
características comuns. E seria preciso acrescentar nessa abordagem as dimensões
combinadas, interna e externa, das estruturas econômicas deste regime bonapartista,
bem como suas expressões políticas caracteristicamente oscilantes: ora democráticas e
ora autoritário-ditatoriais. Mário Pedrosa incorpora como seu método de análise, de
maneira contínua e dialética, o exame dos deslocamentos do regime político nacional e
seu específico lastro econômico, seus ajustes internos que combinam não só à luta de
classes, mas às lutas fracionais no interior da burguesia. As oscilações do regime
bonapartista são igualmente compreendidas sob o impacto das pressões do mercado
mundial e do seu núcleo estadunidense.
Pedrosa se utiliza também de outro conceito fundamental, o de desenvolvimento
desigual e combinado, como ferramenta articuladora para a análise das oscilações
internas do regime político na ação política nacional e suas conexões específicas com o
O dirigente antifascista2
2
Alguns parágrafos desta seção foram publicados em A Terra é Redonda sob o título “Mário Pedrosa,
antifascista”: ANDRADE, Everaldo de Oliveira. Mário Pedrosa, antifascista. A Terra É Redonda, São
Paulo, 12 jun. 2020. Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/mario-pedrosa-antifascista>. Acesso
em: 31 jan. 2021.
seguida atacada e dispersada com cavalos da Força Pública, a equivalente na época à atual
polícia militar.
O núcleo militante que animava a frente era composto pelos militantes da LCI
liderados por Mário Pedrosa. Eles haviam decidido, para ajudar na constituição e
consolidação da campanha antifascista, fundar um jornal de massas em 1933 - O Homem
Livre. As páginas deste periódico, que circulou na capital paulista entre 1933 e 1934 são
das mais interessantes testemunhas históricas da tenacidade e coragem do movimento
antifascista, além de revelar também os embates e dificuldades da luta cotidiana. O jornal
buscava aproximar representantes de diferentes organizações, mobilizar as camadas
trabalhadoras da cidade, informar e denunciar a barbárie do fascismo na Europa e
combater os fascistas no Brasil. Mário Pedrosa escreveu em pelo menos 12 dos 22 números
publicados. A maior parte dos artigos eram assinados apenas por pseudônimos para evitar
represálias. O jornal conseguiu sobreviver heroicamente, acompanhando e relatando as
iniciativas da FUA. Seu último número foi publicado em fevereiro de 1934 cumprindo seu
principal papel de consolidar o amplo movimento da frente única.
Mário Pedrosa escreveu artigos principalmente sobre temáticas da luta anti-
fascista. Mas também colaborou com temas culturais como uma interessante resenha
sobre o filme recém-lançado Scarface de 1933 em que ele aproveita para comparar a
prática dos gangsteres de Chicago com àquelas das burguesias de todos o mundo; uma
resenha do livro História do Brasil do poeta Murilo Mendes em que ele destaca a
importância dos poemas sobre Canudos, Palmares e a revolta da Chibata; e uma longa
resenha publicada ao longo de quatro números sobre a exposição em São Paulo de
pinturas da artista alemã Khäte Kollwitz e que é praticamente sua estreia como futuro e
brilhante crítico de arte.
Entre os vários artigos políticos, preocupados centralmente em analisar o avanço
do nazismo, aquele de maior importância pela lucidez de análise e das perspectivas que
oferece, talvez seja O Nacional socialismo e a crise econômica: lições da derrota do
proletariado alemão no mês de setembro de 1933 (O Homem Livre, 1933, 13). Nesse texto
Mário Pedrosa faz um balanço da crise econômica alemã sob o governo nazista, que se
iniciava com a subida de Hitler como chanceler em 30 de janeiro de 1933. Se seguem nos
meses seguintes medidas de fechamento de partidos, sindicatos e demais instituições
democráticas, o que abria caminho para a ditadura nazista. Ele cita as declarações
apaziguadoras tanto de socialistas como de comunistas, estes afirmando publicamente
que a crise e a miséria dos trabalhadores e da pequena burguesia alemã fariam em breve
cair o nazismo. Para Mário Pedrosa esta análise era completamente superficial e ignorava
a derrota sofrida pelos trabalhadores alemães. Indignado, ele escreve:
Para consolidar as suas posições dentro do país, viu-se o fascismo obrigado nos
primeiros tempos a apresentar-se com uma extrema prudência no lado de fora.
Foi mesmo preciso despir-se de seu caráter belicoso e chauvinista, anti-francês,
e dar as potências imperialistas outras garantias de suas boas intenções de
vizinhança. […] Mas eram estas apenas as premissas políticas para a ação ulterior
da burguesia imperialista da Alemanha. O capitalismo alemão, precisando de
novos mercados e novo campo de escoamento à sua produção, exige agora a
execução da outra etapa da "revolução" nazista. […] Hitler precisa armar-se para
lançar definitivamente a sua candidatura a chefe de uma cruzada capitalista
antissoviética (O Homem Livre, 1933, 17).
E prossegue:
O golpe do estado novo liquidou com as pretensões mais imediatas dos fascistas
brasileiros. Mas nos chama atenção o destaque que Pedrosa demarca a respeito dos
atalhos golpistas e das relações promíscuas entre os bandos fascistas e os setores
autoritários militares com os quais seria dependente para buscar acesso ao poder de
estado. Se em 1937 esse caminho foi obstado, em 1964 como veremos a frente, o problema
se colocou novamente na medida em que o fascismo não seria um fenômeno isolado, mas
parte integrante e excepcional – inclusive como ideologia - do funcionamento e
manutenção do capitalismo. Embora o integralismo na década de 1960 não possuísse
mais a mesma dimensão enquanto movimento fascista organizado, seguiu enquanto
ideologia e corrente de opinião capaz de galvanizar setores sociais específicos
radicalizados contra o movimento operário. Pedrosa afirma já neste mesmo texto de 1937
sobre as relações do fascismo com o capitalismo como elementos de um mesmo
componente químico, que foram posteriormente sistematicamente silenciadas e
combatidas pelos liberais como se fossem seres de universos distantes: “pensar que, nos
quadros do regime capitalista, o fascismo pode ser destroçado pela raiz, é pura insensatez.
Para extirpar o fascismo da face da terra é preciso extirpar com ele o capitalismo (…)”.
(PEDROSA apud KAREPOVS, 2015, p. 324).
Voltemos à década de 1930. Havia resistências evidentes e esperadas às ações da
FUA vindas não só dos fascistas, mas boicotes mais explícitos de empresários alemães e
A economia nacional exprimiu-se, pela primeira vez, sobre uma forma política
bastante nítida, em outubro de 1930, com a revolta de suas forças produtivas
contra a hegemonia da monocultura cafeeira. A tendência centralizadora tomou,
então, um grande impulso, transformando-se mesmo numa corrente política
que por algum tempo chegou a dar as cartas na política federal. […] A tendência
centralizadora é quase, nas condições atuais, uma imposição econômica
(PEDROSA apud KAREPOVS, 2015, p. 302).
Tanto a grande como a pequena burguesia brasileira não têm tradições políticas
e muito menos tradições democráticas: ao longo de sua história nunca foram
capazes de forjar qualquer coisa de parecido com o verdadeiro partido político
de existência nacional e vivendo sem os favores e bafejos oficiais. […] Apareceu
afinal, pela primeira vez, um tal partido de âmbito nacional. E, coincidência
decisiva, esse partido foi o integralismo, isto é, um fascismo nacional, montado
e pago pelos capitalistas para esmagar o proletariado brasileiro e sua futura
revolução (PEDROSA apud KAREPOVS, 2015, p. 285-286).
Sob a aparência de uma situação muito sólida, Getúlio sente-se fraco e inquieta-
se com futuro […]. É evidente que por mais que a grande burguesia nacional,
seguindo à risca as ordens dos patrões imperialistas, queira perpetuar o estado
atual de repressão, transformado em "forma normal" de governo a atual ditadura
policial burocrática, é impossível tornar estável e permanente esse "sistema"
governamental… falta um "árbitro" nacional elevado acima dos partidos, com
autoridade bastante para realizar a readaptação. Esse ‘árbitro’ seria o resultado
da neutralização de forças dos dois campos antagônicos irredutíveis - o
movimento de direita, burguês fascista, e o movimento de esquerda,
democrático proletário […] (KAREPOVS, 2017, p. 260).
períodos autoritários. Afinal, menos de vinte anos separavam o nascente governo militar
de 1964 da última ditadura, a de Getúlio Vargas.
3
Sobre o período exílio de Pedrosa nos EUA ver a recente pesquisa de Marcelo Ribeiro Vasconcelos:
VASCONCELOS, Marcelo Ribeiro. O exílio de Mário Pedrosa nos Estados Unidos e os New York
Intellectuals: abstracionismo na barbárie. Tese - Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2018.
Para Mário Pedrosa aqui está o ponto de intersecção do que ele conceitua como
totalitarismos nazistas e estadunidenses, com repercussões na conjuntura brasileira.
Havia uma linha de continuidade que se prolongava submersa por uma suposta guerra
fria: “A luta do ocidente democrático contra o oriente comunista é uma luta de dragões
de fábula para enganar os povos” (PEDROSA, 1966b, p. 234). E essas características
ganhavam impulso e densidade com a plena consolidação do poder imperial dos Estados
Unidos. E mesmo sobre o velho continente estava agora submetido: “A Europa não tem
escolha entre ser vassala política, social e economicamente subsidiária dos EUA ou um
sistema autônomo na base de uma economia superior, suscetível de ser a ponte entre a
economia capitalista ainda privativa americana e a economia pública socialista da Rússia
e aliados” (PEDROSA, 1966b, p. 123). A retórica democrática e anticomunista encobriria
tão somente a permanência do autoritarismo mais profundo e sofisticado dos Estados
Unidos. Não se trata aqui portanto, de uma virada tática, mas do aprofundamento de uma
orientação estratégica anterior de funcionamento do sistema capitalista, cada vez mais
centralizado e concentrado nas mãos do estado. A ideologia liberal democrática e
anticomunista encobria uma intervenção estatal autoritária, forjada como dispositivo
contrarrevolucionário de um estado total de concepção fascista com o qual a nova
ditadura brasileira vinha se alinhar.
mas um tipo peculiar de “bonapartismo militar”, algo sui generis4. Este seria produto das
condições igualmente peculiares como uma combinação das tendências e necessidades
mundiais do capitalismo internacional com a realidade nacional das classes dominantes
locais, acuadas frente a uma situação revolucionária produzida pela mobilização operária
e popular. Como assinalou Pedrosa:
Ora, em geral, todo bonapartismo é poder pessoal, é o poder por suas virtudes,
por seus atributos benéficos e maléficos, encarnado em um homem elevado
acima de todos, falando em nome da nação, quer dizer, das classes dominantes,
no momento de impasse político e social…. Pretendeu-se fazer do exército como
um todo, uma entidade bonapartista impessoal (PEDROSA, 1966a, p. 192).
4
Entre os estudos relativamente recentes sobre a obra de Mário Pedrosa se destacam pelo menos duas
pesquisas que abordaram com maior profundidade alguns dos aspectos aqui debatidos: a dissertação de
mestrado de Dirlene de Jesus Pereira Rocha (Mário Pedrosa e o estado bonapartista militarizado no Brasil
de 1964) defendida em 2004 na UEL e a de Josnei Di Carlo (A interpretação de Mário Pedrosa sobre a
Revolução de 1930 e o Golpe de 1964) defendida na UFSCar em 2013.
Conclusões
Referências
ABRAMO, Fúlvio. A revoada dos galinhas verdes. São Paulo: Veneta, 2014.
_____. Mário Pedrosa. In: PERICÁS, Luiz; SECCO, Lincoln. Intérpretes do Brasil:
clássicos, rebeldes e renegados, São Paulo: Boitempo, 2014.
KAREPOVS, Dainis. Pas de politique Mariô! Mário Pedrosa e a política. São Paulo:
Ateliê, 2017.
Documentos
Coleção de jornais O Homem Livre, maio de 1933 a fevereiro de 1934. A coleção completa
está disponível na página do CEMAP/CEDEM da Unesp e no endereço
https://www.marxists.org/portugues/tematica/jornais/homem/index.htm.
RESUMO
Este artigo analisa criticamente a trajetória intelectual de Mário Pedrosa ao longo da década de 1920 e
início da década de 1930, período em que o autor realiza suas primeiras apropriações do marxismo em
busca de uma análise do Brasil. Maior ênfase é dada para “Esboço de uma análise da situação econômica
e social do Brasil” (1931), texto de Pedrosa em parceria com Lívio Xavier. A identificação de um clima
incipiente de difusão e desenvolvimento do marxismo no Brasil, em parte combinado com os passos
incertos dos primeiros anos do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e com as mudanças teóricas da
Internacional Comunista, permite compreender as possibilidades concretas de elaboração de análises
originais como a que Mário Pedrosa realiza, bem como elucidar os significados mais profundos de sua
trajetória.
Palavras-chave: Mário Pedrosa; Trotskismo; Partido Comunista do Brasil (PCB); Internacional Comunista.
ABSTRACT
This article sought to critically understand the intellectual trajectory of Mário Pedrosa, along the 1920s
and in the early 1930s, when he made his first appropriations of marxism in order to develop an analysis
of Brazil. Special emphasis is given to “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil”
(1931), written by Pedrosa together with Lívio Xavier. The identification of an incipient climate of the
spread of marxism in Brazil, combined with the uncertain steps of the Partido Comunista do Brasil (PCB,
Communist Party of Brazil)’s first years and the theoretical changes of the Communist International,
allows us to understand the concrete possibilities of elaborating original marxisist analysis by Mário
Pedrosa, as well as elucidating the deeper meanings of his trajectory.
Keywords: Mário Pedrosa; Trotskyism; Communist Party of Brazil (PCB); Communist International.
Introdução
O presente artigo foi escrito a partir de uma pesquisa de iniciação científica com
apoio do CNPq, realizada entre 2018 e 2019. A pesquisa contou com a análise das
primeiras apropriações do marxismo realizadas por Mário Pedrosa ao longo década de
1920 e início da década de 1930, em um contexto também embrionário da história do
1
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista PIBIC-CNPq na pesquisa
“Mário Pedrosa e Caio Prado Jr. em suas primeiras apropriações do marxismo”, sob orientação do Prof.
Dr. Bernardo Ricupero. São Paulo. Brasil. Contato: [email protected].
coincidência que a trajetória política de Mário Pedrosa, obviamente não com a mesma
cronologia, é espelhada à de Clarté, passando do comunismo, pelo surrealismo, ao
trotskismo” (KAREPOVS, 2017, p. 39). Otília Arantes (2004, p. 14) também identifica no
contato com os surrealistas um importante passo na trajetória de Pedrosa, destacando a
viagem do autor a Europa em 1928, onde conheceu pessoalmente Pierre Naville, Louis
Aragon e André Breton.
Além da influência exercida pela Clarté, destaca-se a importância da Faculdade
de Direito do Rio de Janeiro – instituição frequentada por Pedrosa entre 1919 e 1923 –
para a conformação da trajetória do autor. Foi no curso de Direito que conheceu o
professor Castro Rebello, em torno do qual alguns estudantes se agrupavam, debatendo
questões de cunho social e político. Alguns anos mais tarde, quando procurado pelo
PCB, Pedrosa escreve, em carta para Lívio Xavier, que suspeitava ter sido o professor
Rebello quem o indicou ao Partido (PEDROSA, 1925a).
A adesão de Pedrosa ao PCB será, portanto, resultado de uma inflexão política
realizada no início da década de 1920, momento em que a atuação do Partido e o
desenvolvimento das interpretações da III Internacional consolidam-se como elementos
contextuais importantes. Assim, cabe mencionar os principais debates travados pelo
órgão e pela Internacional nesse momento.
De maneira geral, e especialmente em seus primeiros anos, a preocupação da
Internacional Comunista concentrava-se nas tarefas de incentivo à revolução nos países
europeus, encarados como lugares a partir de onde a revolução se espalharia. O primeiro
momento de diálogo direto da Internacional com a América Latina aconteceu em seu II
Congresso Mundial, em 1920, em que maior atenção foi dada para o problema da
revolução nos chamados países “coloniais e semicoloniais”. As teses finais desse
congresso preconizaram a conjugação da luta dos movimentos de libertação nacional
nos países coloniais e semicoloniais à luta da classe operária dos demais países, em
direção à derrota do capitalismo. Assim, nos países atrasados os movimentos burgueses
de libertação nacional deveriam ser apoiados pela IC e pela classe operária, na medida
em que representassem interesses genuinamente revolucionários. O caráter dessa
aliança, no entanto, assume formas ambíguas. Ao mesmo tempo em que se reconhece a
colaboração entre comunistas e burguesia nacional, adverte-se para que o movimento
penetrar nos espaços dominados por ela para, assim, aumentar sua influência entre a
classe operária. A estratégia indicada para a realização dessa nova tarefa passava a ser a
construção de uma “frente única” que unisse os operários – fossem eles comunistas,
socialistas ou social-democratas – contra a ofensiva do capitalismo (PINHEIRO, 1991, p.
49).
Quando, em 1924, durante o V Congresso da IC, o PCB conseguiu sua filiação
oficial à Internacional, o movimento comunista estava enfrentando uma nova
radicalização no que diz respeito à relação com a social-democracia, que passava a ser
identificada como uma ala moderada do fascismo. Ao mesmo tempo, contudo, essa
radicalização precisava ser conciliada com a tática de frente única, gerando a política
que ficou conhecida como “frente única nas bases” (PINHEIRO, 1991, p. 60).
As teses desenvolvidas pela IC foram absorvidas de maneira difusa nos primeiros
anos do PCB. Nesse primeiro período, a Internacional não exercia ainda um controle
direto sobre as demais seções nacionais, funcionando mais como um centro de
orientação. O PCB, por sua vez, lutava para organizar suas bases em meio à
clandestinidade, adequando-se precariamente às viradas teóricas dos Congressos
mundiais. De alguma maneira, o Partido foi capaz de incorporar a cisão com a social-
democracia, nos termos do II Congresso, não sem, no entanto, distanciar-se das bases
sindicais, comprometendo, na prática, a tática de frente única. As idas e vindas da
Internacional, bem como a imaturidade política do PCB, geraram interpretações
contraditórias e políticas imprecisas, que mais tarde culminaram em uma série de mal
entendidos.
Quando Mário Pedrosa entrou para o PCB, em setembro de 1925, o Partido havia
acabado de realizar o seu II Congresso, em que foram produzidas teses importantes que
permaneceriam no horizonte da organização nos anos seguintes. No que se refere à
situação nacional, as teses aprovadas pelo Congresso baseavam-se na concepção dualista
agrarismo-industrialismo, que identificava, na oposição entre o capitalismo agrário
semifeudal e o capitalismo industrial moderno, a principal contradição da sociedade
brasileira (PEREIRA, 2012, p. 94).
Essa concepção era dominante entre a direção do Partido e cabe destacar a
influência exercida por Octávio Brandão, autor de “Agrarismo e industrialismo”, que
apenas seria publicado em 1926, porém havia sido escrito entre 1924 e 1925. Nele,
Brandão utilizou a análise da luta de classes combinada às relações políticas
internacionais para caracterizar a economia brasileira dos anos 1920, concebendo-a
como profundamente dependente no cenário do mercado mundial. Por meio dessa
análise, o autor compreendeu que a sociedade brasileira se encontrava no centro de uma
disputa imperialista por influência e dominação econômica, estando de um lado o
imperialismo norte-americano, representando o industrialismo, e do outro o
imperialismo inglês, representando o agrarismo. Além disso, também estava presente
em no livro a caracterização do Brasil como predominantemente feudal. As teses do II
Congresso do PCB também refletiam o combate às tendências representadas pela social-
democracia – no tom dado pela Internacional – e pelos anarquistas, reforçando a cisão
entre comunistas e anarquistas, característica da formação do Partido (CARONE, 1982,
p. 39).
No que diz respeito à aliança com a pequena burguesia, as teses do II Congresso
do PCB reconhecem o potencial progressista dessa contra a grande burguesia industrial
e agrária, recomendando, no entanto, certo distanciamento político desses grupos,
neutralizando-os ou cooptando-os. Evidencia-se assim a preocupação com a
manutenção da autonomia do proletariado no movimento comunista, discussão
também nos termos do V Congresso da IC. É esse contexto que Mário Pedrosa
encontrará no Partido em 1925.
O primeiro contato de Mário Pedrosa com o PCB se deu pelo recebimento de
três números do jornal “A Classe Operária”, aos quais Pedrosa respondeu com uma carta
que, posteriormente, seria publicada na própria revista. Nessa carta, depois intitulada
“P. S. B.”, Mário Pedrosa felicita os companheiros comunistas pela redação da revista,
que classifica como “órgão legítimo dos interesses e das aspirações coletivas das vastas
massas trabalhadoras do Brasil” (PEDROSA, 1925b). Em seguida, o autor faz um alerta
para os perigos do reformismo:
2
No documento original, este texto foi publicado com assinatura de “A Redação”. A autoria à Mário
Pedrosa é atribuída por Dainis Karepovs, em KAREPOVS, 2017, p. 253.
Muita gente pensa que a greve geral na Inglaterra terminou porque os operários
quiseram. Não: hoje está provado que foi a traição dos chefes do Conselho Geral
dos Trade Unions que causou a terminação da greve. É preciso que o
proletariado brasileiro saiba o que se passou, para poder aproveitar a lição e não
consentir que suas organizações de classe, os seus sindicatos, caiam nas mãos
de homens fracos, sem consciência de classe e que tenham medo da luta
(PEDROSA, 1926d).
Como veremos, a crítica de Pedrosa aos dirigentes dos Trade Unions será
aprofundada, no início da década de 1930, de acordo com as ideias da Oposição de
Esquerda, estendendo-se à política do Comitê Anglo-Russo e, especialmente, à atuação
de Stalin diante do episódio. Por ora, cabe demonstrar que, já em 1926, o autor
acompanhava atentamente os acontecimentos internacionais e assumia diante deles
uma postura crítica, que mais tarde o levaria à identificação com o trotskismo. Assim, a
ruptura de Pedrosa com o PCB deve ser vista, de certa maneira, como a continuidade de
uma postura independente pela qual o intelectual comunista sempre prezou. Como
aponta Marques Neto, as cartas que Pedrosa trocou com Lívio Xavier em 1926
demonstram que:
Em novembro de 1927, Mário Pedrosa foi escolhido pelo PCB para ser enviado a
Moscou, a fim de frequentar a Escola Leninista Internacional, curso de formação para
militantes da Internacional. O intelectual comunista ficaria na Europa até 1929, nunca
chegando a realmente ir para Moscou. Inicialmente, Pedrosa permaneceu em Berlim e
foi ao longo dessa viagem que entrou em contato direto com os debates do Partido
Comunista da União Soviética (PCUS), que nesse momento enfrentava um agravamento
da tensão entre o grupo de Stalin e a Oposição de Esquerda russa. Assim, decidiu
permanecer na Alemanha, militando no Partido Comunista Alemão e aderindo
finalmente às propostas do grupo oposicionista. O período que Pedrosa passou na
Europa foi marcado por diversas crises no movimento comunista internacional e
brasileiro. Cabe mencionar, especialmente, as mudanças provocadas pelo V Congresso
da Internacional Comunista.
O VI Congresso da IC, em 1928, representou uma virada tática e teórica que
refletiu uma nova política para a América Latina. Nele, as teses sobre a revolução
burguesa nos países coloniais e semicoloniais sofreram mudanças, especialmente em
razão do fracasso da aliança entre comunistas e nacionalistas na China – movimento
encorajado pela Internacional nos termos do II Congresso. A partir da percepção do
fracasso da estratégia da revolução na China, a Internacional passa a compreender que
os erros cometidos pelo PC chinês partiram de uma avaliação incorreta acerca do caráter
essencialmente reformista dos movimentos encabeçados pela burguesia nacional (Teses
do VI Congresso da Internacional Comunista, 1977, p. 209).
Além disso, o reconhecimento da ligação entre as burguesias nacionais dos
países coloniais, semicoloniais e dependentes com os interesses da grande propriedade
rural, por um lado, e do imperialismo norte-americano, por outro, levou a IC ao
diagnóstico da incapacidade revolucionária dos movimentos nacionalistas burgueses.
Dessa maneira, ela considera que o movimento comunista não deveria depositar na
pequena burguesia a direção da revolução democrático-pequeno-burguesa,
participando e prezando pela sua hegemonia nos movimentos anti-imperialistas e de
libertação nacional (Teses do VI Congresso da Internacional Comunista, 1977, p. 218).
Por fim, com a identificação da revolução democrático-burguesa como principal
tarefa dos comunistas, a IC colocava a possibilidade de que a revolução socialista nas
tarefa foi reunir os militantes em torno dos argumentos apresentados pela Oposição de
Esquerda, formando um grupo de debates que pudesse homogeneizar os comunistas
dispersos e heterogêneos em direção a uma opção teórica comum. Os oposicionistas
brasileiros organizaram-se seguindo três questões principais: a política do comitê anglo-
russo; a Revolução Chinesa; e a crítica à teoria do “socialismo num só país”, que teve seu
contraponto na teoria da revolução permanente formulada por Trotsky em 1906 e
atualizada em 1930. (MARQUES NETO, 1993, p. 51).
Os oposicionistas fundaram então, em 1930, o Grupo Comunista Lênin, primeira
organização trotskista brasileira. Da mesma maneira que a Oposição Internacional de
Esquerda, o GCL colocava-se como fração do PCB, buscando reorientar sua política.
Imediatamente, o grupo apresentou-se ao Secretariado Internacional da Oposição de
Esquerda e lançou, em 8 de maio, o jornal “A Luta de Classe”, que funcionaria como
publicação oficial do órgão. Como aponta Karepovs (2017, p. 50), durante seus dez meses
de duração, o GCL dedicou-se, pelas páginas de “A Luta de Classe”, a debater a orientação
política do PCB, apresentar as posições da Oposição de Esquerda e, principalmente,
analisar e compreender a realidade nacional. Foi durante esse período que Mário
Pedrosa, junto a Lívio Xavier, escreveu “Esboço de uma análise da situação econômica e
social do Brasil3”, texto que consolidou as bases teóricas da Oposição brasileira. A seguir
são analisados os principais pontos abordados por Pedrosa e Xavier.
Mário Pedrosa e Lívio Xavier iniciam o “Esboço de uma análise da situação
econômica e social do Brasil” com uma interpretação do processo de colonização do
“Novo Mundo”. A argumentação dos autores evidencia a utilização da análise
desenvolvida por Marx no capítulo sobre a teoria moderna da colonização presente em
“O capital” (2013): diante da abundância de terras existentes nas colônias, a burguesia da
metrópole se vê obrigada a produzir a dependência do trabalhador em relação ao
capitalista de maneira artificial, isto é, se apropriando das terras livres de forma a
3
Este texto, datado de 12 de outubro de 1930, foi publicado no Brasil e na França, nas revistas A Luta de
Classe n. 6 e La Lutte de Classes n. 28-29, respectivamente, ambas de fevereiro/março de 1931. Nesta
pesquisa, optei por utilizar a versão publicada na revista brasileira, disponível para consulta no Centro
de Documentação e Memória da Unesp (Cedem). Versão publicada em livro pode ser encontrada em:
ABRAMO, Fúlvio; KAREPOVS, Dainis (orgs.). Na contracorrente da história: Documentos da Liga
Comunista Internacionalista (1930-1933). São Paulo: Editora Brasiliense, 1987 (tradução da versão em
francês por Fúlvio Abramo).
introduzir a propriedade privada. Como Marx (2013, pp. 835-844), é dessa maneira que
Pedrosa e Xavier descrevem a “colonização sistemática” (1931, p. 3).
No Brasil, esse processo artificial de colonização primitiva foi coroado, para os
autores, com a abolição da escravidão, responsável por transformar o escravo em
assalariado do campo e abastecer o mercado de trabalho de mão de obra livre para a
indústria cafeeira. Em nota de rodapé, desenvolvem uma interessante formulação no
sentido de que a abolição da escravidão é vista como “expressão jurídica de um processo
econômico de que podemos compreender claramente a evolução, a partir de 1884, época
em que a imigração aumentou progressivamente, apoiada em abundantes subsídios
dados pelo Império.” (PEDROSA; XAVIER, 1931, p. 3). Evidencia-se, nessa passagem, uma
interpretação de cunho marcadamente materialista, que identifica na Abolição a
expressão política de uma mudança de base econômica.
O resultado da implantação deste modelo colonial é apontado com clareza:
diante da inexistência de terras livres e da exploração de mão de obra escrava, o Brasil
constitui-se numa vasta exploração agrícola cujo produto destina-se aos mercados
externos. Assim, Pedrosa e Xavier identificam, na formação colonial brasileira, uma
“forma peculiar de feudalismo”, que se destaca por sua particularidade em relação às
demais colônias da América Latina, onde a inexistência de agricultura organizada levou
à luta contra o monopólio espanhol. A caracterização da formação econômica brasileira
no período colonial como um feudalismo peculiar dialoga com as interpretações da III
Internacional e do PCB. Mesmo que Pedrosa e Xavier afastem-se enfaticamente dessas
formulações, questionando a identificação absoluta do esquema feudal para o Brasil, é
evidente que a analogia com o desenvolvimento europeu encontra ecos em pontos
frágeis do texto.
No entanto, o pequeno texto não deixa de fazer alguns apontamentos pioneiros,
identificando no caráter exportador e agrícola da economia colonial a fonte de uma
formação social e política de caráter particular, em que o processo de desenvolvimento
do capitalismo se alimenta da abolição da escravidão para proclamar burgueses, os
grandes latifundiários. Pedrosa e Xavier identificam no desenvolvimento da agricultura
cafeeira o próprio desenvolvimento capitalista no Brasil, resultado do esgotamento do
sistema colonial de base escravocrata.
Considerações finais
forma, estabelecendo os limites dos exames a serem realizados pelos comunistas a partir
de então. De certa maneira, esse ambiente engendrou as possibilidades concretas de
elaboração de análises marxistas originais por Mário Pedrosa. Por outro lado, a
flexibilidade encontrada por Pedrosa no seio do movimento comunista foi acentuada
pelo distanciamento da Internacional Comunista, que em seus primeiros anos
concentrou-se nos países que compunham o centro do mundo, relegando à América
Latina uma atenção imprecisa.
Em conclusão, no que diz respeito aos significados particulares de “Esboço…” na
trajetória de Mário Pedrosa, é importante mencionar que, ao mesmo tempo em que o
texto inicia uma tradição teórica que será seguida pelas vertentes trotskistas após 1931,
ele foi uma das últimas contribuições intelectuais de Pedrosa na primeira fase de sua
carreira. Isso porque a partir de 1933 se dedicará à crítica de arte, sem, no entanto, se
desligar da militância política.
Referências
ARANTES, Otília B. F. Mário Pedrosa: itinerário crítico. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
KAREPOVS, Dainis. Pas de politique mariô! Mário Pedrosa e a política. São Paulo:
Ateliê Editorial/Fundação Perseu Abramo, 2017.
marxismo no Brasil: partidos e organizações dos anos 1920 aos 1960. São Paulo: Editora
da Unicamp, 2007. Vol. 5.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013. Livro
I.
Carta de Mário Pedrosa a Lívio Xavier, São Paulo, 8 jul. 1925a. Original encontra-se no
acervo do Centro de Documentação e Memória da Unesp (Cedem).
PEDROSA, Mário. P.S.B. Periódico A Classe Operária. Rio de Janeiro, n. 12, 18 jul. 1925b.
A transcrição do texto foi gentilmente fornecida pelo Prof. Dr. Dainis Karepovs, diante
da impossibilidade de localizar o documento original que se encontra no Centro de
Documentação e Memória da Unesp (Cedem).
_____. (assinado “A Redação”) Aos proletários. Revista Proletária. São Paulo, n. 1, 21 jan.
1926a, p. 3. O original encontra-se no Centro de Documentação e Memória da Unesp
(Cedem).
_____. (assinado M.P.) Por que foi suspensa a greve geral na Inglaterra. Periódico O
Internacional, São Paulo, n. 107, 29 jul. 1926d. O original encontra-se no Centro de
Documentação e Memória da Unesp (Cedem).
RESUMEN
Mário Pedrosa constituye una figura clave en la historia cultural de Brasil. En este artículo analizamos en
clave histórico-crítica su faceta de crítico de arte y su propuesta teórica de articulación de la
Gestalttheorie y el arte y su circulación en el arte concreto argentino en las décadas de 1940 y 1950. Para
ello, se analizan dos trabajos fundamentales sobre el tema teniendo en cuenta la centralidad del primero
y la función de apéndice del segundo. Se trata de su tesis de 1949 Da natureza afetiva da obra na arte y
Forma e personalidade de 1951. Mostramos cómo a partir de los intercambios surgidos entre Brasil y
Argentina, sus ideas formaron parte del acervo de los artistas del último país aunque con diferencias en
el enfoque del tópico de la forma: mientras Pedrosa reforzaba sus aspectos expresivos, los argentinos
justificaban la universalidad en relación a los aspectos objetivos o racionales de la misma. Por último, se
sugiere la importancia de analizar la circulación del ideario Pedrosa para situar sus aportes y
originalidad en el campo de una historia de la psicología que canoniza la figura de Arnheim y olvida las
propuestas surgidas en las periferias.
RESUMO
Mário Pedrosa é uma figura-chave na história cultural do Brasil. Neste artigo analisamos em um tom
histórico-crítico sua faceta como crítico de arte e sua proposta teórica para a articulação da
Gestalttheorie e a arte e sua circulação na arte concreta argentina nas décadas de 1940 e 1950. Para tanto,
são analisadas duas obras fundamental sobre o assunto levando em conta a centralidade do primeiro e a
função de apêndice do segundo. Trata-se de sua tese de 1949 Da natureza afetiva da obra na arte e
Forma e personalidade de 1951. Mostramos como a partir das trocas que surgiram entre o Brasil e a
Argentina, suas idéias passaram a fazer parte do acervo de artistas do último país, embora com
diferenças em a abordagem ao tema da forma: enquanto Pedrosa reforçava seus aspectos expressivos, os
argentinos justificavam a universalidade em relação aos aspectos objetivos ou racionais dela. Por fim,
sugere-se a importância de analisar a circulação da ideologia de Pedrosa em pesquisas futuras para situar
1
Este artículo se basa en uno de los capítulos de mi tesis titulado “La traducción de la traducción: la
Gestalttheorie a través de Grete Stern, los Bauhausbücher y Mário Pedrosa” (Grassi, 2019). A su vez, se
enmarca en el Proyecto de Investigación “Psicología y Orden Social: Controversias teórico políticas en
las intervenciones de la Psicología en la Argentina (1900-1990)”, UNLP dirigido por la Dra. Ana María
Talak.
suas contribuições e originalidade no campo de uma história da psicologia que canoniza a figura de
Arnheim e esquece as propostas que surgiram nas periferias.
ABSTRACT
Mário Pedrosa is a key figure in Brazilian cultural history. In this article we analyze in a historical-
critical key his facet as an art critic and his theoretical proposal of articulation of Gestalttheorie and art
and its circulation in Argentinean Concrete art in the 1940s and 1950s. For this, two fundamental works
on the subject are analyzed taking into account the centrality of the former and the function of
appendix of the latter. These are his thesis from 1949 Da natureza afetiva da obra na arte and Forma e
personalidade from 1951. Based on the exchanges that emerged between Brazil and Argentina, we show
how his ideas became part of the document collection of artists from the last country, although with
differences in the approach to the topic of form: while Pedrosa reinforced its expressive aspects,
Argentinean artists justified universality in relation to the objective or rational aspects of it. Finally, as a
suggestion for future research, we point out the importance of analyzing the circulation of the Pedrosa
ideology to place his contributions and originality in the field of a history of psychology, which in
general canonizes the figure of Arnheim and forgets the proposals that emerged in the peripheries.
Introducción
justificaba tanto las prácticas artísticas de sus integrantes como sus elaboraciones
teóricas. En una investigación previa hemos calificado como “latente” a la presencia de
estos discursos psicológicos en el arte concreto argentino debido a la forma particular
de inclusión en los textos, manifiestos y demás escritos realizados por los artistas de
los diferentes movimientos. Esta latencia que se refleja en la ausencia de referencias
bibliográficas o en las menciones de ideas o conceptos pero no de sus autores, daría
cuenta de regímenes estéticos de circulación epistémica específicos que muestran la
presencia de la Gestalttheorie a la vez que ocultan las fuentes o los autores a los que se
apela (GRASSI, 2019).
Enfocados en las vías de recepción y de traducción por fuera del circuito
académico que se establecieron entre la Gestalttheorie y el arte abstracto argentino
durante las décadas de 1940 y 1950, en este artículo abordaremos los contactos de los
artistas concretos argentinos con Mario Pedrosa en los años ´50 y cuáles fueron las
ideas de Pedrosa que pasaron a formar parte de la retórica de los primeros. De las
múltiples facetas de Pedrosa, aquí consideraremos su rol como crítico de arte y en
especial sus desarrollos sobre los vínculos entre arte y Gestalttheorie.
En 1951, Tomás Maldonado y Lidy Prati, ambos artistas abstractos argentinos,
viajaron a Brasil y estuvieron en contacto con Pedrosa y con artistas abstractos
brasileños como Geraldo De Barros y Waldemar Cordeiro. En ese encuentro y en
sucesivos intercambios (que incluyeron cartas y publicaciones cruzadas) (GARCÍA,
2011) es que situamos el aporte de Pedrosa a las búsquedas argentinas ligadas a la
Gestalttheorie en artistas como Prati, Alfredo Hlito o Raúl Lozza.
El material analizado en clave histórico-crítica a raíz de esos intercambios,
consiste dos escritos de Pedrosa sobre el tema para mostrar la originalidad y la solidez
de un planteo que articuló Gestalttheorie y arte y que en la historia de la psicología es
un tópico aún poco indagado. Se trata, en orden cronológico, de Da natureza afetiva da
forma na obra de arte (1949) y Forma e personalidade (1951). Aunque otras psicologías
hayan sido consideradas por Pedrosa, analizaremos Da natureza afetiva… como texto
fuente principal y Forma e personalidade como complemento en función de las
continuidades en los temas de la Gestalttheorie en ambos.
Da natureza afetiva da forma na obra de arte fue la tesis que defendió en el
2
Cabanas (2018) considera que en 1951 hay un “giro fisionómico” en el pensamiento de Pedrosa en
cuanto a la comprensión de la forma y la expresión. Nosotros entendemos que en realidad el tema de
la fisionomía está presente desde 1949 cuando Pedrosa analiza los desarrollos de Koffka sobre las
cualidades terciarias o fisionómicas.
3
El catálogo de esta muestra fue escrito por Léon Degand, director artístico del MAM-SP quien, como
parte del circuito regional en ciernes, publicó un artículo en la revista cultural porteña Saber vivir. En
“Breve psicología del arte abstracto” (1949) planteaba el condicionamiento ambiental del gusto estético
y la necesidad de desarrollar una psicología del lenguaje plástico. Degand sostenía que la emoción
artística era un reflejo condicionado. La educación recibida por parte de los espectadores respecto del
gusto estético explicaba la incomprensión o la prohibición de la emoción frente a una obra de arte
abstracta (Grassi, 2018).
Creemos que esta noción de unidad total está en sintonía con la idea de gestalt
4
Este texto titulado en portugués “As relações entre a ciência e a arte” fue escrito en París y presentado
en el IV Congreso de AICA en Dublin en julio de 1953.
de Río de Janeiro (MAM-RJ) y el Museu de Arte de São Paulo (MASP). Otro hito en esta
disputa por la hegemonía cultural, fue la creación de la Bienal de São Paulo en 1951,
cuyo primer premio fue para una escultura constructivista del suizo Max Bill.
(GARCÍA, 2011).
En este marco de renovación e intercambios culturales en donde lo abstracto
se había transformado en sinónimo de moderno, se produjo un encuentro que
posibilitó una nueva vía de acercamiento de los artistas concretos porteños con la
Gestalttheorie5. Como ya mencionamos al comienzo, nos referimos concretamente al
crítico de arte Mário Pedrosa y la visita que le hicieron Tomás Maldonado 6 y Lidy Prati
en Río de Janeiro en el año 1951. En esa ocasión, Pedrosa le obsequió al matrimonio el
libro Forma e personalidade (GARCÍA, 25 de agosto de 2009). A partir de ese entonces,
quedaron establecidas vías de intercambio que, como analizamos antes, derivaron en
publicaciones de Pedrosa en revistas argentinas y también (aunque no nos centremos
en ellas aquí) comunicaciones por correspondencia con artistas y con críticos
argentinos como Jorge Romero Brest.
Pedrosa apoyó e impulsó la abstracción geométrica y el neoconcretismo en
Brasil. Sus escritos devinieron referencias teóricas para artistas miembros del Grupo
Frente (de Río de Janeiro), como Lygia Clark (1920-1988), Ivan Serpa (1923-1973),
Abraham Palatnik (1928-), Lygia Pape (1927-2004)7 y del Grupo Ruptura8 de San Pablo
(véase por ejemplo el contacto De Barros- Pedrosa en García, 2011). Pedrosa
5
En un trabajo anterior fijamos como otras vías de circulación y recepción de la Gestalttheorie en el
ámbito artístico argentino el encuentro con Grete Stern y los Bauhausbücher (Grassi, 2019).
6
Tomás Maldonado había sido invitado e dar un curso de enseñanza musical y artística organizado en
Teresópolis por el músico dodecafonista alemán Hans-Joachim Koellreutter (García, 2011). Para
profundizar en los contactos entre los concretos argentinos y este músico puede consultarse Rossi, C.
(2007) “Vanguardia concreta rioplatense: acerca del arte concreto y la música” Recuperado de:
http://icaadocs.mfah.org/icaadocs/Portals/0/WorkingPapers/No1/Cristina%20Rossi.pdf)
7
Frente (1954-56) fue un grupo abstracto carioca que articuló la experimentación con los materiales y la
función social del arte. No consideraban al objeto artístico como el resultado de un ejercicio racional,
cuya ejecución debía ser previamente guiada por leyes claras e inteligibles, preferentemente vinculadas
a la matemática. En ese sentido puede decirse que privilegiaban la libertad de creación. Si bien se los
vinculaba con el arte concreto, no era el único estilo que practicaban.
8
Ruptura fue un grupo de abstracción constructiva paulista creado en 1952, adherían a la abstracción
constructiva y a la reelaboración del neoplasticismo europeo realizada por Bill. Consideraban al arte
como un medio de conocimiento regido por principios objetivos y a la obra como una realidad en sí
misma, no representacional. Algunos de sus integrantes fueron Luis Sacilotto (1924-2003), Geraldo De
Barros (1923-1998), Waldemar Cordeiro (1925-1973) y Lothar Charoux (1912-1987).
reivindicaba un lugar propio para el arte brasileño y pretendía ponerlo en diálogo con
el panorama internacional. Su visión desjerarquizada del arte se basaba en la idea de
que no existía un estilo o un lenguaje superior a otro: simplemente era necesario situar
las creaciones artísticas en el contexto histórico de origen para comprender sus
condiciones de producción y de circulación (PEDROSA, 2017).
Pedrosa desafiaba la clásica oposición en el arte moderno entre la defensa de la
diversidad de opciones estéticas y la lucha ideológica para defender una propuesta
estética por encima del resto. Él constituía una excepción a estos planteos típicos de la
modernidad (con los que los concretos argentinos estaban muy identificados), ya que
si bien apoyó a los primeros artistas abstractos de Río de Janeiro nunca cayó en la
defensa acérrima de un lenguaje por encima de otro. Este dato no resulta menor
porque su filiación política -era marxista y trotskista- nunca fue un obstáculo para
defender esta postura pluralista en el arte. De hecho, siempre criticó que la URSS
apoyara exclusivamente el realismo socialista como el único arte revolucionario.
Coherente con su posición, el apoyo que Pedrosa brindó a la nueva generación de
artistas abstractos de los años ´50 del Grupo Frente no fue exclusivo ni incondicional.
Los integrantes del grupo reconocían su influencia por dos vías: los textos de Pedrosa
sobre sus obras rescataban el potencial de ese lenguaje artístico y significaban un
reconocimiento en el medio de muchas críticas. Y además, Pedrosa constituía una
fuente de información sobre las teorías del arte e incluso muchos de esos artistas
reconocían que las tesis de Pedrosa sobre la Gestalttheorie habían influido
decisivamente en su obra y en sus ideas (por ejemplo Clark, Serpa y Oiticica) (PÉREZ-
BARREIRO, 2017).
En 1925 Pedrosa había ingresado al Partido Comunista y en 1927 había sido
enviado a la Escuela Leninista de Moscú. Cuando emprendió ese viaje, llegó primero a
Berlín y por razones de salud no pudo arribar al destino final. Instalado allí entre 1927 y
1929, tomó contacto en la Universidad de Berlín con los desarrollos de la Gestalttheorie
gracias a su incursión en la Sociología y la Filosofía (ARANTES, 1995; GARCÍA, 2011).
Este acercamiento permitió a Pedrosa profundizar en el estudio subjetivo de los
procesos de la percepción y de la creación artística, y descubrir que el potencial
revolucionario del arte radicaba en el hecho de ser un fenómeno subjetivo individual y
visuales9. El arte abstracto no era un ejercicio de pura racionalidad, sino que debía
considerarse dentro de la esfera del arte que, para Pedrosa, era un sistema de
significación más complejo que la pura razón (PÉREZ-BARREIRO, 2017).
En esa suerte de apéndice a la tesis de 1949 que conformó Forma e
personalidade (1951), el debate giraba en torno a los sustratos emocionales del placer
estético. Para Pedrosa, quien retomaba esta idea de la intervención del crítico inglés
Roger Fry en la Sociedad de Psicoanálisis de Londres, el fenómeno artístico escapaba a
la pura interpretación psicoanalítica (sea freudiana o jungiana) porque no daba con los
auténticos impulsos estéticos que impulsan al artista. Cuando se percibía una obra, la
tarea de la psicología era desentrañar las fuentes del placer obtenido en el
reconocimiento de un orden y de cierto tipo de relaciones en un sistema determinado.
Para Fry existía un tono o cualidad afectiva que no serían de carácter inmediato. El arte
tendría acceso a algo mucho más profundo en el ser humano, algo así como el sustrato
de todos los colores emotivos de la vida y algo más allá de cualquier experiencia
cotidiana10.
Por lo tanto, para develar el secreto de la emoción estética indiscutiblemente
había que sopesar primero las cualidades plásticas y formales de una obra. Cuando el
psicoanálisis interpretaba la obra de arte como manifestación de un deseo reprimido y
deducía que el mecanismo activo era el mismo que en la formación de un síntoma, no
distinguía, no aislaba, ni explicaba en absoluto, según Fry, la obra misma como objeto
de arte, su razón de ser o la fuente de las emociones que despertaba sobre los que la
percibían.
En este punto puede establecerse un acuerdo entre Fry y Pedrosa (1995 [1951]),
dado que para ambos la obra de arte era una cosa en sí misma, su forma tenía un
sentido propio y la contemplación de la misma provocaba en ciertas personas una
emoción espacial que no dependía de la asociación de esas formas con cualquier otra
9
Cabe recordar que la Gestalttheorie no es la única teoría psicológica utilizada por Pedrosa en sus
escritos. Los desarrollos sobre el inconsciente y en particular la obra de Henry Wallon La conscience et
la vie Subconsciente, París, PUF, 1942, fueron incorporados y están claramente expuestos en la
conferencia pronunciada en 1947 a propósito del cierre de una exposición de pintura de los internos
organizada por el Centro Psiquiátrico Nacional en Río de Janeiro, en el salón del Ministerio de
Educación y Salud, entre el 21 de febrero y el 31 de marzo de 1947.
10
Aquí Pedrosa realiza una comparación con el concepto de Jung de imágenes o experiencias
arquetípicas. Dado que excede los objetivos de nuestro trabajo no profundizaremos en ello.
argentinas.
que construían para lograr ciertos efectos, basados en esos aspectos del mundo de la
visión (distancia, semejanza, buena forma). En el marco de la teoría alemana, la
percepción no era fruto, como en el asociacionismo, de la actividad intelectual. El
poder de cohesión dentro de toda unidad estructural, de todo complejo figural, se
ejercía interiormente, gracias a fuerzas dinámicas autónomas que se manifestaban por
la “dialéctica” (sic) del todo y de las partes en el integradas y a él subordinadas
(PEDROSA, 1995 [1949]).
En la psicología y en el arte: la buena forma por doquier:
Como muestra esta cita, el concepto de forma podía aplicarse más allá de los
límites de los campos sensoriales. En el arte como en la psicología, las exigencias de la
buena forma estaban presentes. Para Pedrosa (1995 [1949]) la creación artística
consistía en segregar un todo material o imaginario; el artista decidía cuál de sus partes
quedaban, determinaba las posiciones de las mismas y a su vez recibía de estas las
irradiaciones o las presiones necesarias para que el todo fuese dotado de su cualidad
vital. En ese proceso también se cumplía la premisa de la Gestalttheorie de un máximo
de simplicidad y un mínimo de energía en la conformación de la totalidad. El arte era
un fenómeno en sí mismo, con sus leyes internas, su autonomía, su escala intrínseca de
valores y su poder emocional derivado de su propio drama formal.
Gracias a los desarrollos de las teorías psicológicas de esos años, para Pedrosa,
la autonomía de la obra de arte podía justificarse científicamente. El arte como
actividad esencial del ser humano, perdía de ese modo su complejo de inferioridad y
pasaba a estar en pie de igualdad con otras actividades humanas como la ciencia, la
religión o la política. A partir de la Gestalttheorie, Pedrosa destacaba la importancia de
considerar los problemas fenomenológicos asociados a la actividad artística, sin olvidar
la independencia de la forma en la obra de arte ni entregarse a un subjetivismo
abstracto e intelectual basado en el atomismo asociacionista del siglo XIX.
Pedrosa (1995 [1949]) planteaba que el ser humano solo percibe a través de
diferenciaciones y tomaba de Guillaume los experimentos de Metzger sobre el campo
homogéneo y su percepción. La experiencias de Metzger descriptas en “Optische
Untersuchungen am Ganzfeld” (1930) y el libro Gesetze des Sehens (1936) consistían en
colocar sujetos delante de una gran pantalla blanca débilmente iluminada por un
proyector que llenaba todo el campo visual. De esta manera, la pantalla no era vista
como una superficie localizada a cierta profundidad. El color parecía llenar el espacio
por completo y parecía que se condensaba si se aumentaba la intensidad luminosa del
proyector. Ahora bien, cuando la intensidad aumentaba más todavía, la impresión de
superficie se precisaba al mismo tiempo que la de distancia. La explicación del
fenómeno consistía en que había un progreso de la percepción al diferenciarse en un
comienzo la textura superficial del papel de la pantalla, es decir, se hacía visible la
trama del papel. Además se concluía que no era posible la percepción del objeto si no
existían diferencias de intensidad entre las excitaciones provenientes de varias partes
del campo (GUILLAUME, 1984 [1937]).
En una obra pictórica, la posibilidad de establecer una diferenciación de
superficie generaba una sensación de espacio. De este modo, un diseño tipográfico,
garabatos en un papel, puntos de color en una tela, juegos de luz, manipulaciones
lineales se expresaban espacialmente:
unidades ópticas del modo más económico posible respecto al medio circundante. En
el caso de un cuadro, las unidades no solo vivían sino que crecían dentro de un molde
o de un marco de un cuadro y se fundían en un todo vitalizado por el equilibrio
dinámico más logrado.
Ahora bien, el campo visual se organizaba siempre a partir dos elementos
opuestos: una figura contra un fondo. Toda imagen se presentaba así en ese dualismo
dinámico como la unidad de dos contrarios. En este punto de la exposición de sus
ideas, Pedrosa apelaba a la filosofía oriental11, especialmente a Lao-Tse. Para ello
retomaba lo que planteaba el historiador de arte británico Laurence Binyon (1869-1943)
en The spirit of Man in Asian Art (1935). Según Binyon los sabios chinos, antes de
Cristo, tenían registro del sentimiento de la vitalidad espacial. Mientras “vacío” y
“hueco” eran palabras rechazadas en la mentalidad occidental, Lao-Tse era partidario
de la idea de espacio como vacío. Al modelarse un vaso en barro, su utilidad dependía
de su interior hueco. Para hacer una casa se abren puertas y ventanas: su utilidad
dependía por ende, de los espacios vacíos. De este modo, Pedrosa destacaba que lo
inexistente, lo que no estaba -en fin, el vacío- era lo que le daba utilidad a las cosas.
A propósito de las propiedades de los contornos de la cosas percibidas y las
relaciones figuras-fondo, otro de los temas que Pedrosa (1995 [1949]) abordaba eran las
experiencias sobre la inversión óptica de Erich von Hornbostel (1877-1935) (véase “Über
optische Inversion” de 1922). A partir de las mismas concluía que la convexidad y la
concavidad eran propiedades "totales"12.
11
La filosofía oriental y sus relaciones con el arte occidental es un tópico recurrente a lo largo de la
historia del arte. A propósito de nuestro tema señalamos el debate de Bodenwijnse et al.(2012) sobre
las relaciones entre la Gestalt y la Bauhaus y las ideas del artista Tomás Maldonado (1997 [1951]) quien
sostenía que ocupar el vacío era fácil (arte tradicional): “la dificultad empieza –es la dificultad del arte
concreto- cuando con sutiles elementos queremos organizar estéticamente el vacío” (p. 79. El
destacado es nuestro).
12
Para tal demostración, Hartmann (1935) diseñó un experimento en el que algunos modelos de alambre
de figuras sólidas eran sostenidos ante un espejo en varias posiciones. Cuando una figura de este tipo
se giraba en diferentes planos, se "caía" de una forma aparente a otra, semejante a las inversiones
figura-fondo, salvo que con un objeto tridimensional se abrían más posibilidades. La figura utilizada,
por ejemplo, podía aprehenderse mínimamente de cuatro maneras. Cuando ocurrían las inversiones,
estas se daban como un solo movimiento completo y unificado: una parte no se "inclinaba” y luego
otra, y así sucesivamente. A su vez estas inversiones cuasi sólidas no eran "construcciones" ilusorias ni
ideacionales, sino cosas que el sujeto era capaz de percibir en condiciones especiales. Las propiedades
fenomenales de una percepción "convexa" eran típicamente distintas de una "cóncava". Lo convexo se
definía como lo cerrado, excluía al observador, proyectaba hacia delante y no podía ser penetrado
visualmente debido a su opacidad ni tampoco manipulado debido a su impenetrabilidad. Así definido,
los "objetos visuales" eran convexos. En contraposición, un elemento cóncavo se consideraba como
abierto, abarcaba al observador, permitía la exploración visual y manual y poseía las características de
un fondo vacío. Los "espacios" eran cóncavos. Todo el proceso de inversión implicaba hacer de algo
convexo algo cóncavo y viceversa, aunque por alguna razón, normalmente era más difícil invertir un
objeto convexo que uno cóncavo. Los objetos convexos, tomaban por asalto al sujeto e iban hacia él,
eran los que más notaba y no ocurría lo mismo con los huecos que se abrían entre ellos (Hartmann,
1935).
variación a lo largo del tiempo, con el espectáculo de una vasija con agua hirviendo.
Antes o después de la ebullición, el elemento agua no cambiaba. Lo único que
cambiaba era que pasaba de calmo a movedizo, de perceptible a imperceptible.
Análogamente, en la historia del arte había existido hegemonía figural en el estilo
clásico y predominancia del fondo, durante el barroco pero de alguna forma, el
elemento no cambiaba en su “esencia”, sino en su “estado”. Para Pedrosa (1995 [1949]),
la relación de la figura y el fondo y cómo un estilo privilegiaba a la primera o al
segundo, le permitían a Wölfflin trazar una historia del arte. Estos desarrollos habían
inspirado a la Gestalttheorie y fueron traducidos a un lenguaje psicológico. Como
consecuencia de esta operación, la percepción de la figura y el fondo en la obra de arte
(pintura, arquitectura) aportaba al problema de la percepción de la figura y el fondo en
el mundo circundante y ampliaba el espectro del problema al redefinir la percepción
del mundo en esos términos como hecho psicológico general.
Koffka hizo en “Problems in Psychology of Art” (1940) cuando decía que la obra de arte
como un objeto fenoménico del presente constituía un todo que poseía ciertas
cualidades. La obra como objeto fenoménico era redondo, anguloso, simétrico, abierto
y todos esos aspectos pertenecían a todos completos. También había cualidades como
rápido, lento, áspero, liso, gracioso, torpe. Todas ellas eran cualidades de orden
temporal o espacio-temporal. Por último, estaban las cualidades como alegre,
fulgurante, radiante, sombrío que eran las cualidades terciarias o fisonómicas (que
mencionamos en la Introducción). Pero ¿cómo explicar los ejemplos de este último
grupo de cualidades?
En primer lugar Pedrosa (1995 [1949]) realizaba una aclaración respecto del
método de la investigación. Sus propósitos apuntaban a la obra de arte en tanto objeto
que existía independientemente, con sus cualidades intrínsecas y sus propiedades
formales que la distinguían como un todo aparte. Por esa razón, para él, el trabajo de
Koffka resultaba esclarecedor en lo metodológico. Para resolver el problema de la obra
de arte Koffka se preguntaba por la necesidad de hacer foco en el proceso del creador y
sus estados anímicos, o en el espectador ¿Cambiará esencialmente una experiencia de
oír un scherzo de Beethoven si el oyente está en un estado irascible o triste? ¿No se
trataba de escuchar un scherzo de cualquier manera? Para Koffka lo esencial para el
psicólogo, era eso último, en tanto entendía el término esencial en el sentido de hacer
de la experiencia, una experiencia de arte.
Lo que debía importarle entonces a la psicología era la obra de arte entendida
como fenomenológicamente objetiva y funcionalmente subjetiva (el destacado es
nuestro). La Gestalttheorie poseía la virtud de abordar el problema artístico sin caer en
el unilateralismo subjetivo. Para Pedrosa (1995 [1949]) la distinción entre subjetivo y
objetivo era incompleta; existían grados de objetividad y subjetividad. Desde ese punto
de vista, una mesa era objetiva, no dependía del sujeto que la observaba para existir.
Subjetivo era por ejemplo el sentimiento de miedo, o el dolor que podía sentirse ya que
sucedía en la interioridad del sujeto.
Pero en el caso de los colores y los sonidos ocurría algo peculiar. Ambos eran
clasificados como subjetivos porque dependían de los organismos para ser percibidos,
mientras que la luz y las ondas entraban en la categoría de objetivo. Aparecía aquí otro
criterio de designación de dos conceptos. Como efecto, los colores y los sonidos eran
en un caso subjetivos porque dependían de los organismos, pero también eran
objetivos cuando los hallábamos en los objetos (luz y ondas). Según este último
sentido, los colores de los objetos estaban en la misma categoría de una mesa, una flor.
En ese sentido, se trataba de los colores de objetos.
Cuando se observaba el color marrón de un sombrero o el azul de las tapas de
un libro estos no eran del sujeto, así como tampoco ni el sombrero ni el libro. Por lo
tanto, según esta clasificación, eran categorías objetivas porque existían con
independencia del sujeto; pero también eran subjetivas en otro sentido. En la medida
en que se tomaba conocimiento de los objetos coloridos (el sombrero marrón o las
tapas azules del libro), eran subjetivos pues dependían del funcionamiento de nuestro
sistema nervioso. Sin embargo, nadie podría negar su carácter objetivo ya que ninguno
precisaba de un sujeto para continuar existiendo.
De todas esas elaboraciones se desprendía que había dos categorías de
subjetivo y dos categorías de objetivo. Según la primera definición, había cosas o
cualidades que se clasifican como pertenecientes o no al sujeto. En una segunda
definición, las cualidades se dividen en subjetivas porque dependen del organismo y
objetivas porque no dependen de él. Toda vez que un objeto entraba en la primera
definición, fuese como subjetivo u objetivo (conforme pertenezca o no al sujeto),
también necesariamente entraba en una segunda definición, pero esta vez apenas en la
categoría subjetiva (la segunda definición clasifica objetividad y subjetividad, según
dependa o no del organismo). El dolor, por ejemplo, pertenecía a la categoría de
subjetivo en los dos casos (pertenece al sujeto y depende del organismo). Un color, sin
embargo, entraba en la categoría de objetivo de la primera definición, pero también en
la categoría de subjetivo de la segunda definición porque cuando el organismo toma
conocimiento de él, depende del sistema nervioso de ese organismo. Una mesa entraba
en la columna de objetivo de la primera definición (no depende del sujeto para existir),
en la columna de subjetivo de la segunda definición (existe para el organismo que la
percibe), y en la columna de objetivo (no depende del organismo para existir) de esa
segunda definición también.
Ahora bien, la mesa era sustituida por la obra de arte, nos encontramos con
sujeto en relación a un objeto en dos sentidos; en un caso, era el artista y la obra creada
y en el otro, el espectador y la obra percibida. No se trataba de analizar vía
introspección las emociones ocasionadas por la obra para entender su naturaleza o su
sentido profundo; esas emociones eran solamente estados producidos por el sujeto. Lo
que había que considerar era que esas emociones eran el resultado de la indudable
correlación entre el sujeto y ese objeto.
Para Pedrosa (1995 [1949]) la clave de la emoción artística estaba en las
propiedades del objeto de arte. Era imperioso considerar la relación funcional de la
emoción y el objeto, y que constituía un dato fenomenológico. Justamente, la
Gestalttheorie se apoyaba en datos de este tipo para sostener que la relación emocional
no era una relación cualquiera, contingente o automática. Ella era un resultado
“inteligente” de las propiedades del objeto. En el gozo artístico, esa era la característica
vital: la reacción específica, personal e intransferible del yo al llamado de las cualidades
propiamente exclusivas del objeto de arte.
Pedrosa recordaba que Koffka en Bases de la evolución psíquica (1926) afirmaba
que los estímulos más influyentes en la percepción del niño no eran especialmente los
simples. Las primeras reacciones diferenciadas al rostro humano se producían hacia el
segundo mes, el bebé recibía el influjo del rostro humano y hacia la mitad del primer
año, reaccionaba de manera diferente frente a un rostro “afable” y uno “malo”. Lo dado
fenomenológicamente era un rostro con tal o cual característica, no un caos de
sensaciones. Por ende, fenómenos como “afabilidad o amabilidad” o “rechazo” eran
primitivos, inclusive más que una mancha azul o que la distribución amorfa de luz y
oscuridad.
Pedrosa recordaba que para Max Scheler, la expresión era lo que primero que
el ser humano aprehendía por fuera de él. Así definida, la expresión era la traducción
fenomenológica de las primeras estructuras y formas que el bebé recién nacido distingue.
Cuando se afirmaba que ciertos fenómenos eran primitivos, no era porque se
dividiesen en afectivos y objetivos, ni se yuxtapusiesen; el mundo primitivo como
fenómeno implicaba no solo determinaciones afectivas sino también las que se
denominaban usualmente objetivas (1995 [1949]).
Entonces ¿por qué afirmar o por qué dudar que hubiese puntos de semejanza,
El aspecto fisonómico era parte del objeto, estaba en su naturaleza como una
consecuencia de su forma. Wertheimer descartaba la tesis de la separación de cuerpo y
experiencia o cuerpo y alma, y afirmaba que en la danza se hallaban la gracia y la
alegría. No podíamos aislar los movimientos de los miembros por un lado y una
experiencia psíquica consciente por el otro. En todo caso, se trataba de una identidad
formal.
Para la Einfühlung (empatía) de Lipps, al contrario, las cualidades sensibles
eran una proyección del yo. Toda esa “vida” que le otorgamos a las cosas que nos
rodean solo puede darse en la medida en que atribuimos a las cosas exteriores nuestro
propio sentimiento de fuerza, de lucha o de voluntad. Para esta teoría, la experiencia
estética era de origen puramente subjetivo, en el sentido de que pertenecía al yo o al
sujeto. Para Pedrosa (1995 [1949]) esta teoría era objetable: si se yergue el brazo delante
de la columna dórica, la teoría de la empatía no explica la razón de esos sentimientos o
gestos.
Él aportaba a favor de su posición los desarrollos de Naum Gabo, quien no
dudaba en atribuir a la existencia misma de la obra de arte todas esas cualidades que
nos afectan delante de ella. Pedrosa citaba entonces el texto publicado por el escultor
constructivista ruso, aparecido en la revista Circle con el título “Sculpture: Carving and
Construction in Space” (1937) en donde planteaba que toda forma que se había tornado
“absoluta” adquiría vida propia, hablaba su propia lengua y representaba un único
embate emocional atrapado en ella misma. Es decir que para Gabo, las formas
actuaban, influenciaban nuestra psique; eran, en sí mismas, acontecimientos y cosas
(PEDROSA, 1995 [1949]).
En síntesis, la forma tenía en sí misma una fuerza emocional que era
irresistible y universal. De ahí que fuese imposible aprender el contenido de una forma
absoluta solamente por medio de la razón. Nuestras emociones eran una verdadera
manifestación de ese contenido. Pedrosa (1995 [1949]) afirmaba que esos caracteres
terciarios y fisonómicos de los objetos que habían sido un misterio para la psicología,
ya no lo eran porque se había llegado a la conclusión de que eran cualidades
inherentes al objeto fenomenal. Nuestra tarea consistía en consentir y verificar la
presencia de esas cualidades terciarias donde las veíamos: en otro sujeto, en un
13
No obstante, puede pasar que no toda obra de arte nos emocione, pero es debido a otras razones. Las
cualidades terciarias inherentes a todo objeto fenomenal no son todas de orden artístico. Pero la
función del artista consiste precisamente en fabricarlas.
14
Téngase en cuenta también la inclusión por parte de Pedrosa del arte producido por pacientes
psiquiátricos y sus interesantes elaboraciones al respecto. Puede consultarse sobre el tema Learning
from Madness (2018) de K. Cabanas.
el mundo de esos años era más pobre en caracteres fisonómicos comparado con las
civilizaciones primitivas. Nuestra civilización utilitaria había lanzado un importante
descrédito sobre las propiedades fisonómicas, estructurales de los objetos. Pero el arte
era el modo específico de las más puras y desinteresadas de esas cualidades de las
cosas. Esta diferencia había mutado en una incompatibilidad entre el sistema racional
y científico por un lado, y el sistema cualitativo dominante en la estética por el otro
(PEDROSA 1995 [1949]).
Finalmente, Pedrosa cerraba su tesis con la idea de que el acto de percibir era
un acto de creación. La forma perceptual obedecía, en lo rudimentario de su
organización, a las mismas leyes de la buena forma que regían el mundo y la obra de
arte. Esta idea aparecería unos años después (en 1954) en el libro de Arnheim Arte y
percepción visual. Psicología de la visión creadora. Para muchos, esta obra era el primer
intento de aplicar las leyes de la Gestalttheorie al arte visual (Herbert Read creía esto,
por ejemplo). Sin embargo, Pedrosa ya había presentado su original tesis en Río de
Janeiro e incluso Arnheim había publicado antes un libro sobre cine (ARNHEIM, 1933).
No obstante, aún cuando haya considerado desarrollos teóricos sobre el arte
de la Gestalttheorie (tal es el caso del artículo de 1940 de Koffka “The problems of the
Psychology of Art” para hablar de las propiedades fisonómicas), la propuesta teórica y
metodológica del crítico brasilero, constituyó un aporte tanto para el arte como para la
psicología al lograr articular ambos y dar respuesta a planteos cruciales como la
significación, la expresión y aspecto relacional de la apreciación artística a partir de
considerar a la obra como un objeto fenomenológico.
Reflexiones finales
publicados en revistas culturales argentinas y dan cuenta del “ideario Pedrosa” que
circuló entre los artistas concretos argentinos quienes, a su vez, escribieron textos y
crearon sus obras en el marco de una variedad de discursos científicos y estéticos.
Mencionamos en el caso argentino, la “latencia” de la Gestalttheorie –manifiesta en la
cuestión de la citabilidad- que no ponderamos como un déficit o una falta de rigor ya
que eso significaría confundir regímenes científicos de circulación epistémica con lo
que denominamos regímenes estéticos de circulación epistémica. Consideramos que
señalar esto simplemente contribuye a pensar la diferencia en la modalidad de
circulación de la teoría respecto al caso del arte abstracto brasileño.
La investigación de Pedrosa fue una de las vías de la psicologización del
estudio de la forma y el color a través de la articulación Gestalttheorie-arte que destacó
el carácter expresivo de la forma. Si bien este último no constituyó el argumento más
fuerte de los concretos argentinos para justificar el carácter universalista de su
propuesta estética (estaban volcados a una concepción más racionalista), Pedrosa
estuvo presente y fue un autor que circuló en el ámbito argentino. Queda pendiente
analizar la circulación a nivel internacional que lograron este texto y otros elaborados
en aquellos años. Un análisis futuro más detallado, permitirá situar mejor la
originalidad de Pedrosa y la innovación que supuso su enfoque respecto a los
desarrollos de Arnheim sobre arte y Gestalttheorie mundialmente conocidos. Para ello,
será necesario cuestionar la mainstream de la historia de la psicología y dejar que las
“periferias” nos sorprendan como lo hizo Pedrosa con sus desarrollos en aquellos años.
Referencias
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Delivered in Harvard University, Cambridge: The Harvard University Press. 1935.
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2020.
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Percepção Estética. Textos Escolhidos II. San Pablo: Editora da Universidade de São
Paulo. 1995 [1949]). p. 107-177.
THURSTON, C. The Structure of Art. Chicago: The University of Chicago Press. 1940.
RESUMO
Escrever sobre este assunto é extremamente cativante, já que se trata do Mário Pedrosa que transitou
como militante político e grande crítico de arte. Nesse ano de 2020, relembro que se comemora não só os
cento e vinte anos de seu nascimento mas também de seus estudos, artigos em jornais, mostras de artes e
de lutas e resistência ao establishment brasileiro, cuja sociedade persistiu desde sempre em não tolerar
que as mesmas chances e oportunidades de trabalho, cultura, entre outros direitos do cidadão fossem
dadas para a camada mais popular da população em todo o país. Contudo, este artigo irá percorrer um
caminho complexo daquele momento, vivido por Mário Pedrosa na década de sessenta, e da
indissociabilidade da arte com a política, precisamente representada nesse contexto.
1
Graduado em História, no Departamento de História e Licenciatura na Faculdade de Educação, ambos
na Universidade de São Paulo - USP. Mestrando em História Econômica no Programa de Pós-Graduação
em História Econômica na USP.
2
Establishment: substantivo masculino - a ordem ideológica, econômica, política e legal que constitui
uma sociedade ou um Estado.: "o e. brasileiro"; - a elite social, econômica e política de um país. - "o e.
no Brasil sempre apoia os políticos vitoriosos".
3
PEDROSA, M. A opção brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
4
PEDROSA, M. A opção imperialista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
Em 1926, entra no Partido Comunista Brasileiro (PCB), ganha o prêmio para estudar na
Escola Leninista de Moscou. Entretanto, não chegou a estudar lá, primeiro por motivo
de saúde, e depois por entender que o momento que atravessava a União Soviética não
seria propício a ele. Com a morte de Lenin em 1924, Stálin chegava ao poder e sua
condução para com a nação não era compreendida por Mário Pedrosa. Neste momento
ele se aproxima do pensamento trotskista, e de Leon Trotsky, da internacionalização do
socialismo nos demais países, e assim dissemina as ideias da teoria da Revolução
Permanente que é diferente e contrária ao socialismo em um país só, modelo defendido
por Stalin. Instala-se em Berlim, Alemanha, e fica por um tempo estudando filosofia,
estética e economia.
De volta ao Brasil no final da década de vinte, após as turbulências ocorridas na
União Soviética, e do fortalecimento político em alguns países pelo fascismo e o nazismo
na Europa, passa a integrar grupo trotskista que combatia o Estado Operário
Degenerado. Segundo a definição de Trotsky, era a burocracia stalinista que toma o
protagonismo do Estado Operário, e do Partido Bolchevique 5, criando uma categoria
para este setor social, e não uma nova classe social. Por isso era chamado pelos
trotskistas de estado operário degenerado, e assim criou divergência política
irremediável com Partido Comunista Brasileiro (PCB), apoiador e vinculado à Teoria
Stalinista.
Chega à cidade de São Paulo, e funda a Editora Unitas com alguns conhecidos,
com o intuito de publicar textos referentes ao marxismo. Em 1933, mesmo sendo
advogado, faz a opção pelo jornalismo; por conhecer o que ocorria naquele momento na
Alemanha e Itália, participa e ajuda a fundar um jornal de massas, conhecido por “O
Homem Livre”. Foram quase dois anos de vida desse veículo de comunicação, voltado
5
Bolchevique: origina-se na doutrina da ala esquerda majoritária do Partido Operário Social-Democrata
Russo, adepta do marxismo revolucionário pregado por Lênin, que tinha como compromissos para os
componentes do partido a militância e o engajamento político, implementação integral do programa
socialista, liderança proletária e centralizada.
6
Fascismo: substantivo; masculino, movimento político e filosófico ou regime (como o estabelecido por
Benito Mussolini na Itália, em 1922), que faz prevalecer os conceitos de nação e raça sobre os valores
individuais e que é representado por um governo autocrático, centralizado na figura de um ditador.
7
Nazismo: substantivo masculino; doutrina e partido do movimento nacional-socialista alemão fundado
e liderado por Adolph Hitler 1889-1945; hitlerismo, nacional-socialismo. Perseguia minorias políticas,
religiosas (6 milhões de judeus mortos), estimulava a apologia ao novo reich e a raça ariana.
8
ANDRADE, E. O. Mário Pedrosa, antifascista. 2020 jun 12. Disponível em:
<https://aterraeredonda.com.br/Mário-pedrosa-
antifascista/?fbclid=IwAR3JfaBDgTfXhfRGdirqjRZ7sw9B9Z_-cJd0yfJW691hfSzaYwbQO_liRew>. Acesso
em: 29 ago. 2020.
9
U.R.S.S.: abreviação para União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1917- 1991).
10
Estado Operário degenerado: Leon Trotsky, desenvolve o termo em A Revolução Traída - Global Editora,
Brasil, 1980; que para ele, o Estado Operário e o Partido Bolchevique haviam sido "tomados" pela
burocracia stalinista, que era um setor que tinha origem no proletariado, mas que, por seus privilégios
com os próprios interesses, e era inimigo ao conjunto da classe trabalhadora, tornando-se autônomo em
relação à mesma. Para Trotsky, este setor social gerou uma "casta" uma vez que sem ser uma nova classe
social por não ter um papel qualitativamente distinto do proletariado no processo de produção, usurpou-
lhe o poder político.
tem a obrigação de deixar o país, o que faz indo para os Estados Unidos e trabalhando
na União Pan-Americana. Em 1942, publica artigo referente aos painéis de Cândido
Portinari11, instalados na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em Washington.
A partir de 1943 trabalha em Nova York na seção de cinema do Escritório de Coordenação
de Negócios Interamericanos, sendo também correspondente do jornal Correio da
Manhã de 1943 a 1945.
Com o fim do governo de Getúlio Vargas em 1945, volta ao Brasil, participa do
início da União Socialista Popular e também da criação do semanário A Vanguarda
Socialista.
À época entre 1949 e 1951, torna-se professor da antiga Universidade do Brasil
(UB), atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na cátedra de História da
Arte no departamento de Arquitetura, que influenciou muitos artistas em começo de
carreira por seu trabalho em arte com Gestalt, e que no século XX, nas décadas de 50 e
60, Mário estimulou grandes nomes da arte concreta e do neoconcretismo. Ainda teve
tempo para criar no Correio da Manhã em 1949, a seção de artes plásticas. Foi também
responsável pela criação do primeiro grupo de vanguarda denominados, artistas
concretos no Rio de Janeiro, com Ivan Serpa, Abraham Palattinik, e também dos
neoconcretistas, Lígia Clark, Hélio Oitica, Lygia Pape, e Ferreira Gullar. Segundo a
professora Otília Beatriz Fiori Arantes, que afirma em seu livro sobre os aristas, que
“considera Mário Pedrosa que a tendência expressiva que se encontrará nestes artistas,
à exemplo da pintura do artista plástico russo Kandinsky, é a origem de toda a arte, e
que a união da sensibilidade com a inteligência teria produzido as obras de arte "mais
vivas" da modernidade”.12
Organizador do programa artístico da II Bienal de São Paulo em 1953, e
secretário-geral da IV Bienal Internacional de São Paulo no ano de 1957, Mário estava
acostumado a andar em todas as esferas, manteve relação profissional com o empresário
que era considerado por muitos como mecenas e incentivador das artes plásticas,
11
Cândido Portinari: nascido em Brodowski, em 1903, pintou mais de cinco mil obras, de pequenos esboços
e pinturas de proporções padrão, como O Lavrador de Café, até enormes murais, como os painéis, Guerra
e Paz, presenteados à sede da ONU em Nova Iorque em 1956. Considerado pela crítica internacional,
como um dos mais importantes pintores brasileiros de todos os tempos, sendo o pintor brasileiro a
alcançar maior projeção internacional.
12
ARANTES, O. B. F. Mário Pedrosa: itinerário crítico. São Paulo. Cosac. Naify, 2004.
13
DI CARLO, J. O desenvolvimentismo na crítica de Mário Pedrosa. MovimentAção, v. 5, n. 8, p. 18-37,
2018.
Segundo ainda Marcia Basseto Paes, que por anos trabalhou e o ajudando a
organizar seus livros, arquivos e peças de arte nessa época para Mário Pedrosa, e com
que tive a oportunidade de trocar alguns e-mails sobre o assunto, ela relatou que a
grande percepção a que Mário pode nos trazer, foi de um processo através da concepção
da proposta de criação do Museu das Origens foi publicada no Jornal do Brasil do dia
seguinte e em Arte Hoje de outubro de 1978. O Museu das Origens se comporia de cinco
museus – do Índio; de Arte Virgem, Museu do Inconsciente; do Negro; de Arte Moderna
e de Artes Populares. O novo Museu de Arte Moderna deveria reconstituir um acervo
“representativo da arte brasileira”, no entender de Mário.
Essa busca pela superação à dominação ideológica das Nações Imperialistas para
com outras que já tinham identidade cultural própria, já se vê desde muito cedo, nos
anos de 1930, segundo nos informa Marcelo Ribeiro Vasconcelos em sua tese de
doutorado, conforme cito abaixo:
[...] pressão dos acontecimentos políticos e sociais e que se fez sentir de tal
forma no ambiente artístico e cultural do Brasil que artistas, escritores e
intelectuais começaram a participar mais ativamente da política” (...). “A
política passava a ter maior relevância do que a discussão centrada sobre a
legitimidade ou não da arte moderna ou, como diria Mário Pedrosa, as
polêmicas deixavam de ser artísticas para se tornarem políticas.
desenvolvimentismo, e que inicia uma nova e amarga fase neoliberal, que a longo prazo
arrastará o país para uma crise inflacionária e de uma dívida externa colossal. E como
Marx disse, “o capitalismo necessita das crises cíclicas nas políticas econômica, e social
para sobreviver, sendo provocadas pelas próprias leis do funcionamento capitalista no
sistema econômico liberal.”.
A influência trotskista também é proeminente, o internacionalismo é a grande
marca para essa arte, já que não se aceita o regionalismo defendido pelos partidos
comunistas. Cito Marcelo Mari, que a mensagem e a intervenção da arte para Mário
Pedrosa estavam na área de: “como lutar por um tipo de internacionalismo nas artes que
fizesse frente à divisão internacional do trabalho resultante da perpetuação das relações
desiguais e combinadas entre centro e periferia no Capitalismo.”.
Mário sempre teve essa antevisão com o assunto, e mesmo que ele não seja um
economista de formação, e projetando algo de fora da “bolha do economês”, através de
sua ‘práxis’, com os estudos marxistas, e experiências em outros países, ele teve a
oportunidade de conhecer, e comutar informações com inúmeros estudiosos do assunto
em questão, para alcançar um objetivo, e que fosse de um início através de um país
socialista, voltado mais para as questões humanas e menos para as questões do mercado,
em um sistema capitalista mundial.
Nesse caso se torna importante que o respaldo do estudo e da pesquisa necessite
não só do meu entendimento, mas também do conhecimento de outros historiadores
que conseguiram de forma correta e segura apresentar os fatos da História Econômica.
No artigo “História econômica: algumas questões metodológicas” da professora
Luciana Lamblet Pereira de História Contemporânea da Universidade Federal
Fluminense (UFF), para o XXII Simpósio Nacional de História, em Londrina, em 2005.
Concordo que para uma pesquisa unificadora com duas disciplinas, sendo a
Economia e a História, para se compreender a História Econômica, é preciso entender
como se relacionam e conversam entre si. Assim desde o Século XIX, existe o conflito de
ideias entre a Escola Histórica, que é uma corrente que reforça os aspectos individuais
do desenvolvimento econômico, defendendo as especificidades do mesmo em vários
países, que difere das ideias de Smith e Ricardo, que eram concepções mais
generalizantes.
14
PEREIRA, L. L. História econômica: algumas questões metodológicas. ANPUH - XXIII Simpósio
Nacional de História, 2005. Disponível em: <https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-
01/1548206369_3be6a0a0bbcc555958194da64a18d92c.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2020.
15
HOBSBAWM, E. J. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
minhas fontes.
Essa análise passa a partir da obra de Rancère, de como foram as relações entre
a arte e a política em uma época de um passado recente – o golpe de 64, e que tanto foi
importante para a cultura nas relações que as instituições nacionais (ABI, CNBB, OAB,
entre outras) se mobilizaram por proteção ao Estado de Direito da população
desprotegida.
A Ditadura Militar Brasileira teve o enfrentamento e resistência de alguns
setores da sociedade com o golpe civil / militar de 1964 e, mesmo que tivesse
inicialmente o apoio dessa sociedade, o que ocorreu foi que muitos grupos se
estruturaram para combater o que era a perda do estado democrático de direito. Esse
processo de um “contragolpe” de alguns setores da sociedade, como por exemplo,
sindicatos de trabalhadores, estudantes, artistas, professores, começa em primeiro de
abril de 1964 e sobrevive, atinge e ultrapassa com muita luta, o treze de dezembro do
ano de 1968 com o Ato Institucional nº5 decretado pelo governo autocrata.
Os setores ligados a arte, cultura, educação, que eram a princípio, os artistas,
escritores, estudantes, não contava com a simpatia e apoio de algumas instituições
(citadas a dois parágrafo acima) que se tornaram no final da década de 70 em pilares da
redemocratização com a mudança de comportamento e da opinião da sociedade
brasileira já no fim da ditadura, que já se prenunciava seu final para o começo da década
de 80.
Instituições16 como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), e Confederação Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), que
somente com o processo, e do andamento de medidas autocráticas do golpe, foram
percebendo com o tempo, e a luz, o que realmente tinham em mente os militares. Em
parceria com alguns setores da elite empresarial, pois no início, essas instituições sociais
e políticas até deram apoio ou silenciaram ao que para eles seriam como uma salvação
do comunismo que, assim diziam, que o movimento popular de esquerda estava
16
ROLLEMBERG, D. As trincheiras da memória. A Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-
1974). In: ROLLEMBERG, D.; QUADRAT, S. V. (Org.). A construção social dos regimes autoritários:
legitimidade, consenso e consentimento no Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. v. 2:
Brasil e América Latina; ROLLEMBERG, D. Memória, opinião e cultura política. A Ordem dos Advogados
do Brasil sob a Ditadura (1964-1974). In: REIS, D. A.; ROLLAND, D. (Orgs.). Modernidades
alternativas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2008, p. 57-96.
17
RIDENTI, M. Intelectuais e artistas brasileiros - nos anos 1960/70: “entre a pena e o fuzil”. ArtCultura,
v. 9, n. 14, p.185-195, jan./jun. 2007.
18
MICELI, S. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
19
RODRIGUES, L. M. O PCB: os dirigentes e a organização. In: FAUSTO, B (org.). História geral da
civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1981.
dois sentidos que se fazem compreender em primeiro lugar a aquilo a que me pertence,
e é depois também, aquilo em que eu compartilho. Assim se encontra com o Mário
Pedrosa um intelectual, mas engajado politicamente que por acreditar que a revolução
em partilha com a arte será benéfica para a nação.
No livro “A Opção Brasileira”20 em seu capítulo quatro, ele aponta que a opção
é mesmo de revolução já que primeiro o presidente João Goulart trai todas as
expectativas e não consegue governar, assim se instalando o caos. E também as elites
que até esse momento jamais conseguiram a sobrevivência sem a ajuda do Estado, e que
sua única preocupação é a subserviência ao Imperialismo estadunidense. Entretanto,
esse sistema econômico criado pelo governo ditatorial brasileiro de cunho neoliberal,
será depois de alguns anos muito criticado pelos empresários “tupiniquins”.
Pedrosa não comete deslize na sua análise, e sabe que um novo Imperialismo
dirigido pelo Estado, ainda existindo com o velho imperialismo, que nada mais era que
a união do capital estatal que financia projetos do setor estrutural e o capital privado e
estrangeiro que financia setores da indústria, dando suporte para alavancar os Estados
Unidos da América como a superpotência imperialista no século passado “Foi a época
do apogeu do desenvolvimentismo, marca JK”.21
O comum também se encontra nele, e não é só na estética, mas também na
política, pois Mário Pedrosa pretende a popularização cada vez maior, mesmo depois de
ser considerado o maior crítico brasileiro de artes plásticas, e oriundo de família
oligárquica nordestina em decadência, como nos lembra Marcelo Ridenti.
Mário Pedrosa enfim busca dentro desse contexto que a transformação aconteça
com a consciência de classe da população trabalhadora, e sendo que o fruto do trabalho
deve continuar através das conquistas sociais, com uma evolução econômica,
intelectual, e na vida cotidiana, que assim numa dialética, termina coma subserviência
de quem não concorda com o que é o parasita nessa engrenagem da meritocracia
capitalista. Assim o homem novo surgirá e terá a possibilidade de alcançar a libertação,
com ajuda e parceria do Estado, Conselhos e Sindicatos, em uma próxima etapa entre a
passagem do capitalismo para o socialismo.
20
PEDROSA, M. A opção brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1966, p.181- 245.
21
PEDROSA, M. A opção brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1966, p. 203.
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alternativas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2008, p. 57-96.
Do museu de reproduções ao
Museu das Origens: reflexões sobre
projetos institucionais de Mário
Pedrosa
Sabrina Parracho Sant’anna1
RESUMO
O artigo faz uma análise sobre a proposta de Mário Pedrosa para o Museu de Brasília (1958). O projeto,
apresentado por Pedrosa por meio de uma carta enviada a Oscar Niemeyer, se caracteriza pela recusa
em constituir um acervo próprio de obras de arte e pela intenção de utilizar em suas exposições e
projetos didáticos reproduções de obras de arte. O artigo procurou estabelecer entendimentos sobre
papel desempenhado por tal instituição dentro do projeto de Brasília, mas também como parte de um
projeto estético mais amplo, em que eram privilegiadas as potencialidades comunicativas das artes
visuais não figurativas, como o abstracionismo geométrico Para compreender como o projeto do museu
de reproduções responderia às demandas históricas identificadas por Pedrosa a partir de sua
interpretação sobre a função da arte moderna na construção de novas sensibilidades, foram
estabelecidas comparações com outros dois projetos institucionais realizados e idealizados por Pedrosa:
o Museo de la Solidaridad e o Museu das Origens.
ABSTRACT
The article analyzes the proposal of Mario Pedrosa for the Brasília Museum (1958). The project was
presented by Pedrosa through a letter sent to Oscar Niemeyer and was characterized by the refusal to
create its own collection of works of art and by the intention to use reproductions of works of art in its
exhibitions and didactic projects. The article sought to establish understandings about the role played
by such an institution within the Brasilia project, but also as part of a broader aesthetic project, in which
the communicative potential of non-figurative visual arts, such as geometric abstractionism, was
privileged. In order to understand how this museum of reproductions would respond to the historical
demands identified by Pedrosa from his interpretation of the role of modern art in the construction of
new sensibilities, comparisons were established with two other institutional projects carried out and
idealized by Pedrosa: the “Museo de la Solidaridad” and the “Museu das Origens”
1
Professora associada do Departamento de Ciências Sociais da UFRRJ e professora permanente do
Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da mesma instituição. E-mail: [email protected]
2
Professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagem da Universidade
Federal de Juiz de Fora. Doutor em sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (IFCH-
UNICAMP). E-mail:[email protected].
Introdução
3
Even during COVID-19, art ‘brings us closer together than ever’ – UN cultural agency.
https://news.un.org/en/story/2020/04/1061802
sentido, vale a pena retomar o projeto de Pedrosa, do ponto de vista da rede discursiva
que acionava no momento de sua formulação e, sobretudo, dos projetos de arte e
educação que formulava então.
grandes centros culturais” e “só muito dificilmente poderia aproximar-se do nível dos
congêneres das duas velhas capitais, apesar de enormes somas, a serem contadas por
milhões e milhões, que o governo quisesse ou pudesse investir, continuamente, para
constituir-lhe o acervo” (PEDROSA, 1995a, p.288). Não eram apenas os obstáculos
concretos, no entanto, que ordenavam as preocupações de Pedrosa. Como discutido
em outras ocasiões, Pedrosa concebera “Brasília como uma continuidade do projeto
estético que procurava defender no Brasil” (RIBEIRO VASCONCELOS, 2019, p.36) O
projeto de fundação da nova capital, ao lado do projeto construtivo de Pedrosa,
possibilitava “melhorar a qualidade artesanal e mesmo estética de nossas artes” em
razão de uma “autodisciplina” e de um “espírito menos complacente consigo mesmo”
(PEDROSA, 1959a).
Assim também, o museu digno da nova capital não poderia ser construído “nos
moldes tradicionais, caracterizado por sua coleção de obras originais”. Ao contrário,
seria “todo ele um museu de cópias, reproduções fotográficas, moldagens de toda
espécie, maquetes, etc.” (PEDROSA, 1995a, p.288). Orientado para a maior completude
possível, o museu se dedicaria à apresentação de “todos os ciclos da história da arte
mundial”. Sem falhas ou omissões se voltaria “às manifestações artísticas das diversas
civilizações e culturas históricas e aos diversos movimentos que definem a arte
contemporânea” (Idem). Acompanhadas de projeções de slides e textos explicativos
gravados, as exposições de ciclos históricos estariam também integradas a uma
filmoteca e cursos de iniciação artística.
Em 1958, Pedrosa ecoava discussões que grassaram no debate sobre o uso das
técnicas de reprodução na democratização do acesso à arte, a partir dos projetos de
reconstrução pela cultura que se seguiram às duas grandes guerras (COSTA, 2015).
Pioneiro no Brasil nesse debate, Mário de Andrade publicara em 1938, texto sobre
museus populares em que defendia que: “Em vez de tortuosos museus de belas-artes,
cheios de quadros verdadeiros de pintores medíocres, com menos dinheiro abramos
museus populares de ótimas reproduções feitas por meios mecânicos” (ANDRADE,
1938). Escrito no período em que atuava como diretor do Departamento Municipal de
Cultura de São Paulo, o texto de Mário de Andrade, com quem Pedrosa travou intensa
correspondência em seus anos de formação (FORMIGA, 2014), expressa algumas das
Mas é que o verdadeiro museu não ensina a repetir o passado, porém a tirar
dele tudo o quanto ele nos dá dinamicamente para avançar em cultura dentro
de nós, e em transformação dentro do progresso social (ANDRADE, 1938).
A ideia de formação e transformação social pela arte, de fato, era cara também
a Pedrosa e aparecia em outros projetos baseados em técnicas de reprodução com que
o crítico havia tido contato. São, decerto, dignas de nota as experiências do MoMA de
Nova York na difusão da arte moderna a partir da exposição itinerante What’s Modern
Painting, que circulou pelos Estados Unidos na década de 1940. De fato, o
departamento educativo do Museu de Arte Moderna nova iorquino, do qual Victor
D’Amico esteve à frente a partir de 1937, serviria, por exemplo, de inspiração para o
projeto de Pedrosa e Niomar Moniz Sodré para o MAM carioca, a partir de 1951. Ainda
que a questão da formação do artista, negligenciada por D’Amico, estivesse no cerne
do projeto sediado no Rio de Janeiro, a transformação pela arte, e sobretudo pela arte
moderna, era questão central para os dois museus (SANT’ANNA, 2011).4
Ainda com respeito às exposições itinerantes, cabe ressaltar o papel da
UNESCO na consolidação do uso das técnicas de reprodução para difusão da arte.
Helouise Costa ressalta, por exemplo, a primeira exposição itinerante da UNESCO,
montada entre 1948 e 1949 com 50 reproduções coloridas, “From Impressionism to
Today”, e chama a atenção também para o “Catálogo de reproduções coloridas de
pinturas a partir de 1860”, publicado em 1950 e que seria o primeiro de uma série
4
Decerto a crença no papel formativo dos museus e num poder transformador da arte moderna também
eram elementos presentes no projeto do Museu de Brasília e nos demais projetos institucionais citados
aqui. Tendo em vista a participação de Pedrosa no MAM-RJ ao longo da década de 1950 e sua atuação
como diretor do MAM-SP (1961-1963), parece pertinente abordar possíveis confluências entre tais
experiências e o projeto de Pedrosa para Brasília. Mas como já foi apontado anteriormente, a carta de
Pedrosa a Niemeyer procurou exatamente marcar a diferença entre o museu de reproduções e
instituições museais já estabelecidas, enfatizando as condições únicas enfrentadas pelo museu
planejado para a nova capital. Como o intuito do artigo é compreender o sentido de um museu de
reproduções no contexto de Brasília e em um projeto estético pedrosiano, privilegiou-se o
estabelecimento de comparações com outros projetos institucionais idealizados por Pedrosa.
(COSTA,2015). De fato, em sua carta a Niemeyer, Pedrosa remetia, por sua vez, ao
museu de reproduções em Beirute, organizado pela UNESCO, e retomava ainda a
tentativa de construir uma instituição congênere em São Paulo, projetada, em 1953,
para as comemorações do IV Centenário da cidade. O projeto para o IV Centenário
contara, segundo Pedrosa, com participação de Herbert Read e Ernesto Rogers, mas
não fora levado adiante por “motivos de ordem financeira” (PEDROSA, 1995a, p.292).
Com efeito, em 1953, nos registros do IV Congresso da Associação de Críticos
de Arte, em Dublin, ao qual Pedrosa comparecera com comunicação sobre as relações
entre arte e ciência, James Johnson Sweeney fizera longa defesa dos filmes de arte
como meio de difusão da crítica. Também Jean Leymarie mencionara expressamente o
conceito de museu imaginário que dizia, então, em voga. O congresso de 1953 chama,
portanto, a atenção para o uso das técnicas de reprodução na difusão da arte e da
cultura, uma questão que seria cara a Pedrosa no projeto de Brasília.
Também na imprensa brasileira, o debate sobre museus de reproduções se
alargava pela recepção da obra de André Malraux. Publicado em 1947, o Museu
Imaginário de Malraux difundia pelo mundo, juntamente com o nome do autor que
ganhava crescente notoriedade, o uso intensivo das reproduções para difusão do
conhecimento da arte. Diante dos museus sempre incompletos, Malraux argumentava
que as reproduções das obras de arte criavam um museu imaginário capaz de
“aprofundar ao máximo o incompleto confronto imposto pelos verdadeiros museus”.
Segundo ele, respondendo ao apelo por estes lançado, “as artes plásticas inventaram a
sua imprensa” (MALRAUX, 2000, p.14).
Em levantamento no Correio da Manhã o nome de Malraux é recorrentemente
citado, ao lado de Camus, como um dos principais expoentes das letras na França.
Como Ministro da Informação (1945-1946) e mais tarde Ministro de Assuntos Culturais
(1959-1969) de De Gaulle, o nome de Malraux alcançava ainda com maior frequência as
manchetes dos jornais. Por exemplo, em 1956, Murilo Mendes, em entrevista a Jayme
Maurício por ocasião da Campanha Internacional de Museus, promovida pela
UNESCO, fazia referência explícita ao projeto de Malraux. A manchete que encabeçava
a coluna de Jayme Maurício, “Museu, necessidade vital”, coincidia com a célebre
conferência de Pedrosa “Arte, necessidade vital”, proferida quase uma década antes no
fato de Pedrosa e Malraux estarem à época em polos opostos de tal clivagem ajuda a
compreender o tom mais cauteloso de Pedrosa ao descrevê-lo naquela ocasião.
No artigo, Pedrosa descreve Malraux como alguém que impõe a si mesmo a
necessidade de dar explicações. Situado, no início do artigo, em comício diante da
multidão entusiasmada de gaullistas que o ouvem, o Malraux descrito por Pedrosa é,
em seguida, caracterizado pela guinada biográfica de quem deve satisfações à própria
história: “Sente entretanto ser preciso dar ‘satisfações’, e isso o aborrece. Talvez
humilhe.”. O afastamento da causa operária e a aproximação de um governo à direita
fazem transparecer a decepção de Pedrosa e suas divergências em relação ao autor.
Descrevendo as sucessivas incursões de Malraux na vida política internacional – na
causa anticolonial na Indochina, na Guerra Civil Espanhola, na Resistência francesa –
Pedrosa lhe atribui uma personalidade movida pela ação e entregue ao destino. Em
lugar da decisão deliberada e humana que define o domínio sobre a natureza e dá
forma ao curso da própria vida, Malraux estaria entregue às moiras e ao sabor dos
acontecimentos históricos:
Desde o seu encontro com Malraux em Paris até suas proposições sobre o
museu de Brasília, Pedrosa estabeleceu uma profícua trajetória na crítica de arte.
Desde 1945, ano de seu retorno ao Brasil após cerca de sete anos de exílio, Pedrosa
produziu um pensamento em artes visuais que impactou artistas e instituições
brasileiras. Mas como o projeto de museu para a Brasília se encaixaria em tal projeto?
Um primeiro ponto que deve ser considerado é que a proposta de um museu
de reproduções parece, à primeira vista, divergir da produção crítica de Pedrosa no
período. Tal impressão é reforçada, principalmente, se for observada apenas a tese de
1949, “Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte”. Nesta, Pedrosa enfatizou a
análise dos elementos objetivos que conduziriam a experiência artística, estabelecendo
como um dos princípios de tais experiências uma homologia entre as qualidades
formais da obra e as estruturas cognitivas dos sujeitos impressas no próprio sistema
nervoso do indivíduo. A partir de tal perspectiva baseada na Gestalttheorie, as reações
afetivas do espectador da arte poderiam e deveriam se manifestar sem a mediação de
preocupações analíticas e significativas, que acabariam por embotar a força das
impressões estéticas (ARANTES, 1979).
Mas tal preocupação com uma fundamentação biológica do fenômeno artístico
não determinaria nem a psicologia da forma e nem abordagem pedrosiana sobre as
artes visuais. Sobre a Gestalt, Paul Guillaume deixa claro em La psychologie de la forme
(1937), uma das obras citadas por Pedrosa em sua tese, que tal teoria não ignora “a
5
O surgimento e o desenvolvimento do expressionismo abstrato no pós 2ª Guerra Mundial pode ser
relacionado ao processo de “de-marxização” de artistas e críticos participantes dos círculos da esquerda
anti-stalinista norte-americana (GUILBAUT, 1983). Em um esforço de se distanciar tanto das ideologias
de esquerda e de direita, estes teriam estabelecido um movimento de vanguarda que afirmava a recusa
modernista ao mercado e colocava como único “comprometimento” radical possível ao artista
moderno a liberdade individual e a expressão de impulsos subjetivos que só se manifestariam diante da
alienação do artista em relação ao restante da sociedade. De acordo com Harold Rosenberg, um dos
principais críticos vinculado à nova pintura norte-americana, esta nova postura estabelecia a pintura
enquanto um “ato” que se constitui enquanto arte na medida em que “traduz o que é fornecido
psicologicamente para o intencional, para um ‘mundo’ e, deste modo, o transcende” (ROSENBERG,
1951).
6
Foi em sua defesa sobre o caráter artístico da produção dos internos do Ateliê do Engenho de Dentro
que Pedrosa demonstrou suas posições sobre a ordenação objetiva da experiência estética e sua
universalidade, assim como a sua recusa a uma concepção de arte como uma projeção livre de
emoções. Tais crenças ampararam, de diferentes maneiras, os projetos institucionais idealizados por
Pedrosa. Sobre a relação entre Mário Pedrosa e o Ateliê do Engenho de Dentro, ver VILLAS BÔAS,
2008.
7
A principal polêmica em torno da defesa do caráter artístico da produção dos internos que
participavam do ateliê se deu entre Pedrosa e o crítico Quirino Campofiorito. Sobre tal polêmica, ver
DIONISIO, 2012.
8
Tal termo foi utilizado por Pedrosa em 1947 para descrever a realidade enfrentada pelos intelectuais e
artistas do seu tempo. Ao utilizá-lo, Pedrosa parece, em primeiro lugar, identificar uma crise na cultura
ocidental estabelecida pelo avanço de um processo de barbárie que se tornou evidente com a 2ª Guerra
Mundial. Contudo, tal termo também parece remeter ao fato de tal crise estar intimamente ligado à
ideia de progresso estabelecido pela tradição ocidental e a consequente hipertrofia da burocracia e da
técnica. Na mesma entrevista, Pedrosa diz: “o Estado nacional totalitário, no seu desenvolvimento
perfeito, como na Rússia, ou ainda em evolução, como nos Estados Unidos, tem sua lógica impessoal,
implacável que funciona com a perfeição da técnica moderna. Os cientistas vão sendo cada vez mais
arregimentados tanto num país como no outro, e posto a serviço do ‘grande patrão’. Este os quer para a
fabricação de novas superatômicas e novíssimos gases venenosos” (PEDROSA, 1947).
9
Pedrosa mobiliza aqui a noção de “simbolismo presentativo” em referência à Susanne K. Langer, que
definiu tal conceito como um simbolismo sem palavras, não discursivo e intraduzível e que “não
permite definições dentro de seu próprio sistema e não pode transmitir generalidades diretamente”.
Neste tipo de simbolismo, “os significados de todos os outros elementos simbólicos que compõem um
símbolo maior e articulado são compreendidos apenas por meio do significado do todo, por meio de
suas relações dentro da estrutura total”, de modo que o funcionamento de tais símbolos depende do
fato de estarem “envolvidos em uma apresentação integral e simultânea”. Langer estabelece tal
conceito com o intuito de caracterizar a distinção essencial entre o simbolismo presentativo e o
simbolismo discursivo, ou seja, da “linguagem” propriamente dita.(LANGER, 1954, p.78-79).
Neste novo modo o conhecimento vem por descobertas; com efeito, deve-se
descobrir, entre suas partes constituintes, entre suas estruturas parciais,
ligações, aproximações súbitas, inesperadas ou impossíveis de atingir pelo
desenvolvimento lógico, mas que nos dão, só elas e de uma vez, a significação
do pensamento simbólico global presente. Este pensamento, esta ideia, não é
demonstrativo e não apresenta nenhuma solução que se possa transferir, não
sendo nunca, por outro lado, desmontável em suas partes. Mas é uma
verdade, a verdade do nascimento de um novo ser. A contribuição deste
conhecimento novo não é nunca uma lei, nem um conceito puro, está claro;
mas, mais do que uma imagem, é um acontecimento. Assim, por este outro
modo de pensamento simbólico, o campo do cognoscível é ampliado, e nós
nos aproximamos um pouco mais da natureza das coisas, ou antes, do
misterioso trabalho de elaboração formativa da natureza (PEDROSA, 1996,
p.249).
Para Pedrosa, a força motriz de Brasília seria o espírito da utopia, capaz de, a
partir do centro mesmo do país, criar uma nova região que fosse de fato
moderna, construída “de alto a baixo” como “produto acabado da vontade
consciente do homem”, capaz de estabelecer uma nova forma de colonização
que suplantasse aquele “espírito mercantilista do rei colonizador” que marcara
a formação brasileira até então. Brasília se estabeleceria como marco e
exemplo de uma nova geração no Brasil, que deveria povoar essa nova região
sob o signo do ideal que levara à construção da nova capital (RIBEIRO
VASCONCELOS, 2019, p.35).
atenção para a independência entre arte e ciência como meios de conhecimento rivais
e também para a distinção de interpretações no interior dos grupos concretistas
sediados no Rio e em São Paulo (SANT’ANNA, 2004).
O que vale chamar a atenção, no entanto, é que se, dentro do projeto de
Pedrosa para o museu, o passado histórico se erigia para concluir-se no núcleo da arte
moderna, o advento do neoconcretismo e outras sucessivas rupturas na história da arte
e da política brasileiras colocariam em questão o modelo sugerido para o Museu de
Brasília em 1958. De fato, naquele ano, quando escrevia a Oscar Niemeyer, Pedrosa
propunha que os núcleos históricos, que incluíam da “Pré-História” à “Época Moderna”
e à “Arte dos Povos Primitivos Contemporâneos”, se concluíssem na etapa
contemporânea incluindo uma forma de arte que para Pedrosa se sintetizava na
própria cidade. Ainda que trajetórias alternativas pudessem ser percorridas pelos
visitantes, o percurso antevia um traçado que o levava inexoravelmente ao
contemporâneo. Um contemporâneo que, para Pedrosa se inscrevia no destino da
abstração (REINHEIMER, 2013) e cuja necessidade o crítico já atribuíra em 1953 ao
percurso em direção à autonomia. Dizia ele, então:
idealizado por Pedrosa. Como afirmado por ele em entrevista realizada pela FUNARTE
cerca de um ano depois da proposta de Museu das Origens, Pedrosa aponta que sua
intenção ao apresentar o projeto estava ligada ao seu entendimento sobre a crise da
arte moderna. Nesse sentido, esse novo museu não deveria despender um esforço
colossal para comprar novos Picassos e Matisses, mas sim procurar constituir um
acervo que “que realmente fosse representativo do que havia de cultura ou de criativo
neste país” e que fosse capaz de mostrar aos brasileiros e aos visitantes estrangeiros
que o Brasil “não é um país anônimo, um país que segue as regras do que se faz em
Nova Iorque ou Paris sem nenhum mais respeito de ligação com as raízes deste país”
(PEDROSA, 1979b). Pedrosa via tais raízes não como uma bravata patriota, mas como
um elemento de iniciação e de identidade que poderia ter mais importância no
presente contexto do que qualquer modernismo, que, segundo ele, deveriam ser
esquecidos para que o Brasil pudesse “baixar ao chão e tirar lá de dentro os tesouros
que estão lá e que nós não soubemos mostrar nem utilizar” (PEDROSA, 1979b).
A defesa de tais artes “originais” entre as inquietações presentes na crítica de
Pedrosa não é uma novidade. Mas o que parece ocorrer ao final da década de 1970 é
uma profunda mudança de ênfase, em que as pesquisas sobre a capacidade
comunicativa da arte moderna a partir das experiências estéticas não mediadas por
uma tradição eurocêntrica perdem lugar para um retorno às “raízes” de uma arte
brasileira intocada. Tal mudança de perspectiva já pode ser observada pela primeira
vez nos planejamentos para a exposição “Alegria de Viver, Alegria de Criar”, proposta
por Pedrosa logo após seu retorno ao Brasil, em 1977, (REINALDIM,2019) e que pode
ser entendida como fruto das experiências de seu exílio no Chile. Mas mesmo
enquanto esteve envolvido na construção do Museo de la Solidaridad, Pedrosa ainda
não atribuía a este um papel de resgate de nenhuma “origem” ou tradição em especial.
O Museo de la Solidaridad foi concebido como uma forma de angariar atenção mundial
e apoio ao projeto socialista idealizado por Allende. Isso foi feito, sobretudo, pela
doação de artistas modernos de todo o mundo, sem estabelecer uma divisão entre arte
moderna e artes originais.
Em 1971, quando Pedrosa já estava envolvido na construção do projeto
socialista chileno, ele ainda afirmava que o ponto de entrecruzamento entre a arte e o
socialismo estaria no esforço para “recriar as condições para que a arte seja outra vez
como foi em épocas remotas, nas velhas sociedades pré-capitalistas, uma necessidade
coletiva, o que hoje, sobretudo nas sociedades de economia de mercado não, sendo
simplesmente uma atividade elitista” (PEDROSA, 1995b, p.320). Ainda perdurava no
período uma crença no poder transformador da arte moderna semelhante àquela
presente no projeto do museu de reproduções. Tais obras não serviriam apenas como
uma propaganda do governo Allende, assim como o museu de reproduções de Brasília
não pretendia ser uma propaganda do governo Kubitschek. Vislumbrava-se uma real
contribuição ao potencial criativo do povo chileno, possibilidade esta que só se
cumpriria na medida em que estas obras se tornassem um patrimônio do povo chileno,
acessível a todos e distribuído em um espaço construído com o único intuito de
potencializar as experiências comunicativas e a possibilidade de reflexão10 sobre aquilo
que foi vivenciado através das obras dos artistas modernos irmanados com a causa
socialista chilena. Como colocado por Pedrosa em maio de 1972, em ocasião da
inauguração do Museo de la Solidaridad:
10
Como colocado por Cáceres, o “Museu de Arte Moderna e Experimental” imaginado por Pedrosa para
receber as obras dos artistas que colaborassem como o projeto chileno “consistia na concepção de
museu como espaço reflexivo onde o público e o artista teriam um espaço de aprendizagem em
contato com as obras de diversos períodos históricos e, a partir da criação de um ambiente reflexivo
seriam levados a perscrutar as novas formas possíveis que a arte poderia adquirir mantendo certo
sentido originário da atividade: dar forma ao mundo ao mesmo tempo em que se dá forma à
sensibilidade humana (CÁCERES, 2010, p.97).
11
Segundo o sentido atribuído ao termo por Lowy e Sayre, romantismo pode ser definido uma “visão do
mundo [que] constitui-se enquanto forma específica de crítica da ‘modernidade’” (LOWY & SAYRE,
1995, p.35) em que o teor de tal crítica está ligada à “convicção dolorosa e melancólica de que o
presente carece de certos valores humanos essenciais que foram alienados” (LOWY & SAYRE, 1995, p
40). Assim, tal atitude romântica é marcada por uma nostalgia que “incide sobre um passado pré-
capitalista” que pode ser “inteiramente mitológico ou legendário” (LOWY & SAYRE, 1995, p 40-41).
– vista como aquela que “reivindica para si toda a criatividade toda a criatividade
humana”, transformando-os “em valores de troca” – e os museus inseridos em sua
lógica - que colaboram com tal intento ao “consagrar” as obras neles expostas para
assim “subir às nuvens” seus preços e de outras do mesmo autor ou estilo, aos modos
de um mercado de ações (PEDROSA, 1995c, p.322). Em suas acusações, Pedrosa
atribuía ao informal e à pop art o fim da arte moderna, pois estabeleciam uma recusa
aos valores plásticos, formais e estéticos que a caracterizavam (PEDROSA, 1995c,
p.325). Nesta nova fase de seu pensamento estético, no entanto, sua recusa à arte
burguesa não recai apenas sobre tais tendências, já que ele colocava não apenas estas,
mas também a arte minimalista, a arte conceitual e até mesmo as expressões
contemporâneas da arte abstrata como expressões de um consumo conspícuo, fruto de
uma “mistificação cultural” que se reproduz e se projeta como “bens supremos que os
grandes monopólios (...) transnacionais levam para todo o mundo, principalmente
para os países da periferia, como os emblemas, os símbolos da civilização cosmopolita
do global shopping center a que os sumo-sacerdotes das gigantescas empresas
monopolistas querem reduzir o planeta” (PEDROSA, 1995c, p.326).
Mas em contraponto a tal visão pessimista sobre a possibilidade emancipatória
da arte moderna, Pedrosa também reforça aquilo que chamamos aqui de um
“romantismo” em relação às práticas artísticas que remetem às sociedades pré-
capitalistas, que se manifestam nas práticas dos povos tradicionais denominadas em
sua maioria como “arte popular” ou “artesanato”. A partir desse ponto de vista, o artista
recupera uma posição transformadora e revolucionária na medida em busca de um
“retorno (...) à condição de artesão” (PEDROSA, 1995c, p.326) que não deve ser
confundida como uma resposta ao gosto pelo exótico e folclórico do colonizador, mas
sim como um artesanato que “contribui para romper a estrutura de classes e põe em
questão o monopólio da atividade criadora da burguesia” (PEDROSA, 1995c, p.328). Tal
artesanato de caráter revolucionário é exemplificado nas cooperativas de artesãos
formadas no Chile durante o governo Allende, que teriam estabelecido não apenas
novas formas de renda para estes trabalhadores, mas também uma nova autonomia na
organização do trabalho, um restabelecimento da liberdade criadora, a criação de um
novo público e a transformação dos gostos. Na medida em que avança em direção à
cumpriria não apenas sua função comunicativa, mas também sua função social, ao
convidar o público que deseja compreendê-la, a “pôr de lado o aparelho um tanto
rígido ou especializado de nossos conceitos lógicos” para tornar possível o acesso a
uma “atitude mental e espiritual diferente da que governa as relações intelectuais e
sociais dos homens em nossa sociedade ocidental” (PEDROSA, 1956).
Neste sentido, o museu desempenharia, em primeiro lugar, o papel de
estabelecer meios de acesso facilitado às obras a que eram atribuídas uma capacidade
comunicativa privilegiada, seguindo a narrativa linear idealizada por Pedrosa. Isso só
foi possível em razão dos avanços tecnológicos que tornaram possível reproduzir
imagens dos diferentes períodos históricos de maneira fiel. Mas o museu de
reproduções também desempenharia uma outra função, baseada na sua espacialidade
apartada dos fluxos contínuos da vida e na sua potencialidade para servir como espécie
de “função ritual”. Nesse sentido, o museu também deveria ser um espaço de ruptura
com a vida urbana, com o “mecanismo do cotidiano” que impede a apreciação das
coisas “direta e imediatamente percebidas” (PEDROSA, 1961). Seja no dia-a-dia da vida
do trabalhador, na apreciação da cultura de massas e até mesmo nos típicos museus e
suas visitas guiadas, há, segundo Pedrosa, a predominância da inferência lógica como
modo de apreciação dos fenômenos estéticos. As exigências para que um dado objeto
seja percebido artisticamente envolvem certo isolamento e concentração e são as
instituições como os museus, apesar de sua precariedade e heterogeneidade, aquelas
que melhor cumprem tal função no mundo ocidental.
Não é nova a ideia de que os museus possuem a potencialidade de servir como
um espaço de formação moral e espiritual. É um lugar-comum a afirmação de que os
museus foram construídos, arquitetonicamente e ideologicamente, como espaços de
contemplação de uma arte que, apesar de secular, ganhava contornos de “sagrada” pelo
poder imbuído a tais espaços. Mesmo que tais museus, típicos do século XIX, tenham
desempenhado um importante papel na sacralização de uma noção de “cultura”
combatida por Pedrosa, há um elemento que os aproxima não apenas do caso do
Museu de Brasília, mas também dos outros dois projetos museais desenvolvidos por
Pedrosa citados aqui: o papel do museu – ou qualquer outra instituição congênere
nomeada de maneira distinta – enquanto espaço de liminaridade ritual, elemento
fundamental para que a experiência possa ser deslocada das expectativas cotidianas
(DUNCAN, 2008). A necessidade de o museu ser capaz de cumprir tal função parece
ainda mais fundamental nos três projetos pedrosianos, na medida em que todos eles
compartilham a noção do museu enquanto forma institucional que é pensada
enquanto “lugar privilegiado para essa reeducação não-lógica, mas perceptivo-
estética”, em que cumpriria a sua finalidade na medida em que fosse capaz de “ensinar
os visitantes a perceber, direta e imediatamente tudo: quadro, escultura, gravura,
espaço, cor, arquitetura” (PEDROSA, 1961). Tal finalidade da forma institucional museu
estaria no cerne dos projetos do Museu de Brasília, do Museo de la Solidaridad e do
Museu das Origens, alterando-se em cada um dos casos a pertinência dos conteúdos
considerados por Pedrosa como necessários de acordo com as demandas de seu tempo.
No caso específico do Museu de Reproduções, Pedrosa propõe que o caráter
ritual proporcionado pelo museu seja deslocado, deixando de servir como força para a
construção do valor de culto da obra. Em razão do fenômeno que Walter Benjamin
chamou de “metamorfose do modo de exposição pela técnica da reprodução”
(BENJAMIN, 1987, p.183), os usos sociais do museu poderiam deixar de operar como
elemento de reforço da unicidade e de autenticidade da obra de arte – ou seja, como
elemento de reforço de sua “aura” – para operar no sentido de possibilitar os
deslocamentos necessários para o tipo de experiência estética e pedagógica idealizada
por Pedrosa para tal museu. Nesse sentido, as possibilidades políticas vislumbradas por
Benjamin ao abordar as artes tecnicamente reprodutíveis parecem aqui transfiguradas
por Pedrosa para o caso das artes visuais. Ao mobilizar a função ritual do museu e as
técnicas de reprodução tendo em vista o cumprimento do papel pedagógico das artes,
não é apenas a arte e a política que se entrecruzam, pois, ao permitir uma experiência
direta de comunicação com as obras mais significativas da arte moderna até ali, essa
experiência também seria entendida por Pedrosa como um momento de vivência,
ainda que breve e fugidio, de uma síntese entre arte e vida.
Referências
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O incêndio do MAM-RJ e as
respostas de Mário Pedrosa às
crises artísticas, museológicas e
políticas da época
André Leal1
RESUMO
O incêndio do MAM-RJ, em 1978, foi o maior desastre patrimonial brasileiro até aquele momento,
destruindo praticamente todo seu acervo. Ao acompanharmos os escritos e a atuação do crítico de arte
Mário Pedrosa antes e depois do incêndio, muitas de suas ideias sobre arte e curadoria vêm à tona. Iremos
aqui apresentar três momentos do pensamento “museal” de Pedrosa em torno desse evento: a proposta
de exposição de arte indígena “Alegria de viver, Alegria de criar”, prevista para o MAM-RJ antes do
incêndio, sua proposta de reconstrução do museu depois do incêndio como “Museu das Origens” e sua
atuação junto ao Museu da Solidariedade Salvador Allende, no Chile. Esses três eventos não apenas
demonstram o pensamento museológico de Pedrosa, mas também expressam o potencial de atuação do
crítico frente a diferentes momentos de esgotamentos e crises de modelos: da arte moderna e ocidental,
da tragédia patrimonial e da política internacional, respectivamente.
The MAM-RJ fire and Mário Pedrosa’s answers to the artistic, museological and
politic crises of the period
ABSTRACT
The great fire of the MAM-RJ, in 1978, was the biggest Brazilian patrimonial disaster until that moment,
destroying almost its entire collection. As we follow the writings and practice of art critic Mário Pedrosa
before and after the fire many of his curatorial and artistic ideas emerge. We will here present three
moments of Pedrosa’s “museal” conceptions around this event: the proposal for the indigenous art
exhibition “Joy of living, Joy of creating”, planned for MAM-RJ before the fire, his proposal for the
reconstruction of the museum after the fire as the “Museum of Origins” and his work in creating the
Salvador Allende Solidarity Museum, in Chile. These three events not only demonstrate Pedrosa’s
museological thought, but also express the potential of the critic’s responses in face of different moments
of exhaustion and model crises: of modern and western art, of heritage tragedy, and of international
politics, respectively.
El incendio del MAM-RJ y las respuestas de Mário Pedrosa a las crisis artísticas,
museológicas y políticas de la época
1
Doutorando em Artes Visuais no PPGAV/EBA/UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil; bolsista FAPERJ Nota 10. Faz
parte da Rede Solidária de Pesquisadores do Arquivo do Museu da Solidariedade Salvador Allende. E-
mail: [email protected]
RESUMEN
El incendio del MAM-RJ, en 1978, fue el mayor desastre patrimonial brasileño hasta entonces, destruyendo
prácticamente toda su colección. A medida que seguimos los escritos y la actuación del crítico de arte
Mário Pedrosa antes y después del incendio, muchas de sus ideas sobre el arte y la curaduría pasan a
primer plano. Aquí presentaremos tres momentos del pensamiento “museístico” de Pedrosa en torno a
este evento: la propuesta de la exposición de arte indígena “Alegría de vivir, Alegría de crear”, prevista
para el MAM-RJ antes del incendio, su propuesta de reconstrucción del museo después del incendio como
“Museo de los Orígenes” y su actuación en el Museo de la Solidaridad Salvador Allende, en Chile. Estos
tres hechos no solo demuestran el pensamiento museológico de Pedrosa, sino que también expresan el
potencial de la actuación del crítico ante diferentes momentos de agotamiento y crisis de modelos: del
arte moderno y occidental, de la tragedia patrimonial y de la política internacional, respectivamente.
1. Introdução
2
O edifício-sede do MAM-RJ, projetado por Affonso Eduardo Reidy, foi inaugurado em etapas entre 1958
e 1967. A partir de então ali se estabelece um importante polo de arte experimental, com viés também
pedagógico e político, sendo um importante refúgio da repressão do governo ditatorial instalado no país
a partir do golpe militar de 1964. Para maiores informações sobre o MAM-RJ nas décadas de 1960 e 1970,
ver: GOGAN, Jessica (org.); MORAIS, Frederico. Domingos da criação: uma coleção poética do
experimental em arte e educação. Rio de Janeiro: Instituto MESA, 2017. E LOPES, Fernanda. Área
experimental: lugar, espaço e dimensão do experimental na arte brasileira dos anos 1970. São
Paulo: Prestígio editorial, 2013.
3
ver a esse respeito a pesquisa de mestrado de Pollyana Quintella, na qual ela analisa a questão do
“primitivismo” em Mário Pedrosa, com foco principal justamente nas propostas expositivas aqui
abordadas: QUINTELLA, 2018.
4
buscamos aqui citar o máximo possível as fontes primárias dos textos críticos de Pedrosa, a maioria
publicados em jornais diários e revistas.
5
Ver: PÉREZ-BARREIRO, 2017.
o crítico afirma que, frente aos desenvolvimentos tecnológicos recentes, o estilo já não
teria preponderância na produção industrial e artística. Faltariam “as qualidades
artesanais de perenidade e similitudes intrínsecas para criar unidade formal e estilística”,
além da “solidez de profundas tradições culturais capazes de fornecer o estrume para
uma criação coletiva super individual” (PEDROSA, 1966b, p. 10), levando os artistas e a
indústria a se submeterem aos caprichos sempre cambiantes do mercado de consumo.
Essa falta de “padrões preexistentes” também indicaria “que a Arte perdeu suas raízes
culturais, e foi subordinada a outros padrões necessariamente instáveis e aleatórios
como os dominantes no mercado consumidor” (PEDROSA, 1966b, p. 10). Mais uma vez,
Pedrosa conclui identificando uma nova atitude dos artistas frente à sua produção, que
já não poderia ser incluída nos modelos modernistas. Para o crítico, estaríamos diante
de “um fenômeno cultural e mesmo sociológico inteiramente novo”, que fugiriam “dos
parâmetros do que se chamou de arte moderna. Chamai a isso de arte pós-moderna,
para significar a diferença” (PEDROSA, 1966b, p. 10).
Em 1967, Pedrosa escreveria o artigo “Mundo em crise, homem em crise, arte
em crise”, no qual aprofunda sua análise da nascente “sociedade de consumo
espetacular” (LEAL, 2015, p. 65) e as possibilidades de alienação ou de emancipação que
esta nova situação permitiria, sempre movida pelos avanços tecnológicos. Segundo o
crítico, “para vencer a defasagem entre o acúmulo das transformações tecnológicas no
presente e o isolacionismo de fundo artesanal, não se vê, hoje, outro recurso senão em
tudo projetar, seja no domínio científico, técnico ou estético, em termos ambientais”
(PEDROSA, 1967, p. 3). Em sentido similar ao que colocara, em 1966, em relação às
pressões exercidas pelo mercado sobre os artistas, Pedrosa (1967, p. 3) segue afirmando
que “nessa grave encruzilhada em que se encontra a arte, o artista é excitado por mil
solicitações, vindas do mundo ambiente, cada vez mais amplo, mais complexo e
surpreendente”, daí também a exigência da arte em se reintegrar ao ambiente de modo
geral.
Se nestes textos podemos acompanhar as transformações pelas quais o campo
artístico estava passando nesse momento de transição do “moderno” para o
“contemporâneo”, Pedrosa já havia apresentado uma visão sobre a produção artística em
termos muito mais amplos que aqueles rigorosamente modernistas em 1947, em uma
conferência que teve o sugestivo título de “Arte, necessidade vital”. Proferida na abertura
da exposição de pinturas dos usuários do Setor de Terapêutica Ocupacional do Centro
Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, comandado por Nise da
Silveira, Pedrosa busca apresentar seu modelo de concepção artística como inerente à
humanidade, afastando-se das concepções acadêmicas e do primeiro modernismo
brasileiro então vigentes no país. Essa postura também está relacionada à sua tentativa
de ampliação do campo artístico para o abstracionismo, que vigoraria nas décadas
seguintes e cujo ápice foram os movimentos concreto e neoconcreto nos quais Pedrosa
teve participação fundamental.
Contrapondo-se aos excessos regulatórios e intelectuais do academismo e
explorando o papel do inconsciente na produção dos artistas – profissionais ou não –, o
crítico defende a abertura do campo artístico para produções “desviantes” como as das
crianças, dos povos “primitivos”, além da dos internos de hospitais psiquiátricos como o
do Engenho de Dentro. Segundo Pedrosa (1947, s/p), “a atividade artística é uma coisa
que não depende [...] de leis estratificadas, frutos da experiência de apenas uma época
na história da evolução da arte”, mas se estenderia “a todos os seres humanos”. Para ele,
“a vontade de arte se manifesta em qualquer homem de nossa terra, independente do
seu meridiano, seja ele papua ou cafuzo, brasileiro ou russo, negro ou amarelo, letrado
ou iletrado, equilibrado ou desequilibrado”.
A “necessidade vital” de criação artística escaparia, portanto, às regras
intelectuais elaboradas desde o Renascimento e as “modernas teorias psicológicas”
confirmariam isso. Para Pedrosa (1947, s/p), “cada indivíduo é um sistema psíquico à
parte, e também uma organização plástica e formal em potência”. Assim, o fenômeno
artístico teria que “ser entendido num sentido mais amplo que até ontem” (PEDROSA,
1947, s/p), chancelando nos círculos for mais das artes a exposição instalada no salão do
Ministério da Educação e Saúde, símbolo do modernismo arquitetônico brasileiro e que
já tinha abrigado e abrigaria muitas outras exposições de arte moderna. Para Pedrosa, a
arte seria “a linguagem das forças inconscientes que atuam dentro de nós” (PEDROSA,
1947, s/p). Vemos, assim, que o crítico já buscava dar um sentido mais abrangente à arte,
além dos círculos estreitos de iniciados, e a experiência com os internos do Engenho de
Dentro lhe abriu os olhos para produções que escapavam a esses círculos.
Outra indicação dessa visão ampliada da produção artística que Pedrosa tinha
está na citação à produção de “povos primitivos”, mesmo que ainda tratados como parte
de um passado arqueológico ou como uma cultura mais atrasada que a ocidental. Desde
um ponto de vista bastante eurocêntrico, Pedrosa (1947, s/p) afirma que reconhecer “os
povos bárbaros da América pré-colombiana, da Oceania, da África” como produtores de
arte digna de interesse faz com que esta deixe “de ser privilégio de raças superiores da
Europa ocidental”. Assim, “a arte não é mais produto de altas culturas intelectuais e
científicas. Povos primitivos também a fazem” e seus “produtos artísticos [...] são
formalmente tão legítimos e bons quanto os das civilizações super-requintadas da Grécia
ou da França” (PEDROSA, 1947, s/p). Apesar dessa sua visão ainda muito calcada na
experiência ocidental, vemos que há um esforço do crítico em incorporar essas
produções no circuito artístico formal, como estava a fazer com os internos do hospital
psiquiátrico. Tardariam algumas décadas, porém, para que Pedrosa ampliasse esse
esforço e vislumbrasse a produção indígena como possível saída para os impasses do
modernismo por ele identificados, mesmo que essa saída ainda contivesse suas próprias
contradições, como veremos adiante.
Mário Pedrosa foi também um entusiasta da arquitetura moderna brasileira e
viu em Brasília o ápice de sua realização, o termo final de sua profética frase de que o
Brasil seria um país “condenado a ser moderno” e também a culminação de sua ideia da
arquitetura moderna como síntese das artes. Muitas contradições estão presentes nessa
linha de raciocínio, nas quais não iremos adentrar aqui senão na que nos interessa para
o presente debate: a condenação ao moderno era também fruto de sua ideia do Brasil
como um país colonizado e sem passado próprio. Segundo Pedrosa, o Brasil teria “vindo
à civilização” com a chegada dos portugueses. Assim,
nosso passado não é fatal, pois nós o refazemos todos os dias. E bem pouco
preside ele ao nosso destino. Somos, pela fatalidade mesma de nossa formação,
condenados ao moderno. A nossa ‘modernidade’ é tão radical que, coisa rara
entre os Estados, temos a certidão do nosso batismo. Nascemos numa data
precisa: 22 de abril de 1500. Antes disso simplesmente não existíamos
(PEDROSA, 1959, p. 3, grifo do autor).
da arte brasileira – e distante, localizado num outro tempo, numa outra geografia”. Ou
seja, há um duplo movimento de abstração dessas populações que Pedrosa realiza,
apesar de seu louvável e precursor esforço em incorporar a produção indígena à história
da arte brasileira: os povos indígenas são reconhecidos como precursores de nossa
cultura, mas ao mesmo tempo estariam fadados ao desaparecimento dentro do
“progresso capitalista”.
Fica claro, portanto, que o que interessava ao crítico em última instância era o
contexto de produção da arte indígena brasileira como motor para uma revisão do papel
das vanguardas artísticas em um presente acossado pelas tecnologias da comunicação e
o status de mercadoria que tudo integra ao sistema capitalista. Argumento explicitado
na mesma entrevista de Pedrosa a O Pasquim:
não posso dizer: “a Arte Moderna acabou! Viva a Arte Primitiva!”. [...] Mas as
vanguardas acabaram, isto se considerarmos vanguarda aquilo que amplia o
repertório. O que amplia o repertório hoje não é vanguarda, pois não amplia
nada pelo qual o homem possa aumentar seu saber. No processo que está aí, a
Arte não se conjuga ao que se passa no mundo. Não é vanguarda aquilo que fica
de um lado da rua enquanto que do outro corre o drama do mundo de hoje
(PEDROSA, 1981b, p. 9).
“exercem fascínio sobre a sensibilidade moderna pelo que significavam, pela ação que
exerciam, pelo comportamento coletivo que impunham à sociedade de onde brotavam”
(PEDROSA, 1968, p. 4).
Vemos novamente Pedrosa voltar sua atenção para produções não-ocidentais
como resposta ao esgotamento dos preceitos modernistas e das mudanças sociais de sua
época. Uma arte participativa e ativa na coletividade era o que os melhores artistas
estariam produzindo, e a arte dos “primitivos” seria um momento anterior na genealogia
dessa atitude artística. Ou seja, aqui é que aparece pela primeira vez em seus escritos o
contexto da produção artística indígena como possível modelo para os artistas
experimentais contemporâneos.
Pedrosa, apesar de enfatizar o segundo projeto com seu “Museu das Origens” e
não mencionar a Área Experimental, importante polo de atuação dos jovens artistas até
o incêndio, parece buscar um equilíbrio entre os dois rumos apontados por Sant’Anna.
O crítico tinha uma relação muito próxima com as propostas artísticas experimentais e
estas eram parte de todo o debate sobre o esgotamento da arte moderna e suas possíveis
saídas. Também é emblemático que Pedrosa tenha representado o “Museu das Origens”
por meio de um diagrama no qual apresenta os cinco museus em círculo, demonstrando
que não haveria qualquer hierarquia entre eles, e, ao centro, reunindo todos eles, estão
as “atividades criativas e experimentais” (PEDROSA, 1978b, s/p).
Seriam tais atividades, portanto, que uniriam os cinco museus, traçando o plano
no qual se daria a “contaminação híbrida entre matrizes culturais brasileiras” junto com
a “contextualização sobre as imagens do inconsciente e da arte moderna” do qual nos
falam Ivair Reinaldim e Michelle Sommer (2020, p. 102). Logo, o “Museu das Origens”
seria uma maneira de trazer o passado à tona no presente, ampliando o repertório
artístico para aquelas produções que não tinham espaços à altura nos circuitos
institucionais. Do mesmo modo, podemos dizer que essa estrutura do “Museu das
6
Carta de Mário Pedrosa a Oscar Niemeyer datada de 24 de julho de 1958
Iremos agora nos dirigir a um evento ocorrido alguns anos antes das propostas
de “Alegria de viver, Alegria de criar” e do “Museu das Origens”, mas que informa essas
duas experiências. Em 1970, Pedrosa teve que fugir novamente do Brasil, pois estava
sendo perseguido pelo governo militar, e se exilou no Chile, então sob o governo
socialista da Unidad Popular de Salvador Allende. Rapidamente integrou-se nas
artesãos do país e suas cadeias econômicas. Pedrosa esteve bastante próximo dessa
construção, tanto que a relatou em conferência realizada no México em 1975, intitulada
“Arte culta e arte popular”. Novamente o crítico busca descrever historicamente a
inserção da arte na sociedade ocidental para chegar ao impasse da arte moderna na
sociedade capitalista daquele momento. Segundo Pedrosa, a “arte erudita” seria uma
forma de “mistificação cultural”, reproduzindo e projetando essa
Como coloca Carmen Palumbo (2018, p. 135), neste texto Pedrosa afirma sua
“opção terceiro-mundista” que se tornaria “projeto político, no qual a abolição do
neocolonialismo implantado com a ditadura militar seria possível apenas com um
projeto socialista democrático, em ruptura com o estado burguês”. Conjugam-se,
portanto, as questões sociais e artísticas que vinham mobilizando o crítico havia algumas
décadas e que aqui analisamos. E essa “opção terceiro-mundista” seria também o que
levaria Pedrosa a pensar na elaboração da exposição “Alegria de viver, Alegria de criar”,
como produção do sul para o sul global.
5. Considerações finais
Como pudemos ver, Mário Pedrosa, em sua longa trajetória crítica, curatorial e
política, buscou dar respostas aos principais impasses sociais e estéticos de seu tempo,
sintonizando mudanças que inclusive ainda demorariam alguns anos a se consolidarem.
Assim, acompanhamos três momentos emblemáticos da última década de sua vida, nos
quais ele busca responder a diferentes crises que se colocavam diante dele. Do mesmo
modo, pudemos acompanhar algumas reviravoltas em seu pensamento, principalmente
Referências
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Solidaridad. In: PÉREZ-BARREIRO, Gabriel; SOMMER, Michelle Farias (orgs.). Mário
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NELSON, Adele. Mario Pedrosa, el museo de arte moderno y sus márgenes. In: PÉREZ-
BARREIRO, Gabriel; SOMMER, Michelle Farias (orgs.). Mário Pedrosa – De la
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PAPE, Lygia. Catiti Catiti na terra dos Brasis [dissertação de mestrado]. 1980. 104 fls.
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_____. El modelo de Socialismo Chileno y el Frente del Arte. In: Pérez-Barreiro, Gabriel;
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p. 132-136
SOMMER, Michelle Farias. Nós, os bugres das baixas altitudes e adjacências. In:
REINALDIM, Ivair; SOMMER, Michelle Farias (orgs.). Experimentar o experimental:
onde a pureza é um mi(s)to, furor da margem. Rio de Janeiro: Circuito, 2020. p. 109-
143
RESUMO
O propósito deste estudo é inserir a questão hídrica e suas performances nos debates das Ciências Sociais,
a partir de sua entrada nos Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia (ESCT), tomando como principal eixo
teórico as contribuições dos autores e autoras da Pós-Teoria Ator-Rede (Pós-TAR). Buscou-se mapear
como as diferentes performances discursivas da água, em torno do recente contexto de escassez hídrica
pelo qual o Distrito Federal passou, entre os anos de 2016 e 2018, se distinguiram, quais atores e atoras
estiveram envolvidos nessa rede e de quais maneiras essas distinções estão presentes em seus discursos.
O objetivo do presente estudo é analisar a arena do conflito hídrico, mobilizado pelo contexto de escassez,
como um local de performatização de atores não humanos no mundo social. Conduzidas as análises de
conteúdo dos múltiplos atores e atoras sobre a questão, se buscou observar nessas performances
discursivas os modos de coordenação e descoordenação que permitem a performatização da água
enquanto parte de múltiplas realidades.
ABSTRACT
This paper aims to include water and the way it is performed in debates in the Social Sciences by using
approaches from the Social Studies of Science and Technology (SSST), more specifically, contributions
from Post-Actor-Network Theory (Post-ANT). To do so, we map out the discursive performances of water
during the water scarcity in Distrito Federal, Brazil, in the years of 2016 and 2018, which actors were
involved in these performances, and the ways water was performed by each group. By doing so, we
examine the conflicts surrounding the water as situations where non-human actors are performed in the
social world. By conducting a content analysis of the discourses of a number of diverse actors, we
examined how, through mechanisms of coordination and discoordination, water is performed as part of
multiple realities.
1
Uma versão preliminar do presente trabalho foi apresentada no VIII Simpósio Nacional de Ciência,
Tecnologia e Sociedade/VIII ESOCITE.BR e encontra-se disponível no endereço
<http://www.esocite8.cefetmg.br/anais-2/.
2
Mestranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia pela Universidade de Brasília
(PPGSOL/UnB). Bolsista de mestrado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). Integrante do Grupo de Pesquisa “Ciências, Tecnologias e Públicos” (CTP/CNPq).
E-mail: [email protected].
O campo dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT) é uma área que,
inicialmente, inspirou-se nos estudos de Émile Durkheim sobre as crenças religiosas e
sua relação com o mundo social (DUARTE, 2007). Durkheim afirmava que, sendo as
crenças religiosas um reflexo dos fundamentos sociais que organizavam uma sociedade,
elas deveriam ser explicadas pela sociologia a partir de fatores sociológicos
(DURKHEIM, 1973).
Baseado nisso, o Programa Forte em Sociologia (BLOOR, 1976/2009; BARNES et
al., 1996; SHAPIN, 1979) (Bloor, 1976/2009; Barnes et al., 1996; Shapin, 1979), fundado
em Edimburgo, na década de 1970, retomou as considerações de Durkheim sobre as
3
Como sugestão de leitura sobre a temática das normas e valores que orientam as práticas das cientistas,
ver o estudo de Robert K. Merton “Sociologia: Teoria e Estrutura” (1968).
4
É importante ressaltar que o posicionamento ontológico ao qual o presente trabalho faz referência é o
que Souza (2015) destaca como “empírico”. Neste esquema inicialmente proposto por Marres (2009),
leva-se em consideração não somente o aspecto teórico através do qual a existência de algumas entidades
são postas a prova; mas as multiplicações das realidades estão voltadas para as diferentes práticas e
discursos que se constituem e se articulam na produção desses mundos (SOUZA, 2015).
(2008) procura deixar claro que a ontologia se refere ao real, às reais condições de
possibilidade com a qual vivemos, que não nos são dadas à partida:
5
Em seu trabalho, Annemarie Mol (2008) esclarece que o conceito de “Política Ontológica” é uma criação
de John Law (2004). Para referência neste trabalho, entretanto, será utilizado o recorte teórico-
conceitual desenvolvido por Mol (2008).
exploratória do período de crise hídrica pelo qual o Distrito Federal passou entre os anos
de 2016 e 2018. Todas essas dimensões têm em comum a necessidade de performar uma
realidade discursiva bastante específica: de demanda por justiça hídrica que se traduz,
ao mesmo tempo, em segurança hídrica (ANAND, 2017).
Primeiramente, as performances discursivas da água enquanto recurso hídrico,
ou seja, vinculada às atividades econômicas, sejam elas industriais ou agropecuárias,
envolvem argumentos vinculados ao desenvolvimento econômico, à manutenção dos
padrões produtivos e dos modos de vida modernos. Os principais questionamentos que
envolvem essa performance resumem-se em: de que modo as atividades econômicas
podem ser afetadas com a restrição do uso da água? Martín (2015) argumenta que
contextos de crise hídrica podem ser vinculados às dinâmicas inflacionárias. Água é,
desse modo, articulada como um elemento da cadeia produtiva, na medida em que as
condições de vida na Terra, de modo geral, estão a ela vinculadas. O discurso de
preocupação com a escassez de água é performado pela impossibilidade da manutenção
das atividades econômicas nos mesmos padrões que os utilizados em um período de
afluência hídrica. Isso é operacionalizado através das respostas que o mercado poderia
dar em um novo contexto de produção, no qual o uso econômico da água seria
restringido:
uma realidade na qual ela é vista sob a ótica de seus usos, mecanismos, dinâmicas e
fluxos (BLASER, 2019). Ela é performada, nesse caso, como um recurso natural que está
se esgotando em razão das falhas humanas ao estabelecer mecanismos efetivos de
controle e comunicação com o meio natural. Cabe à agenda científica-tecnológica a
responsabilidade de produzir novas ferramentas de comunicação com os fluxos naturais
dos ciclos hidrológicos. São práticas do gênero que estabelecem uma performance dos
recursos hídricos cuja centralidade é deslocada para o elemento humano.
Essa performance científico-tecnológica da água, em alguma medida, cria uma
intersecção com a arena política, pois é frequentemente mobilizada como estratégia de
policymaking. O argumento científico tem potencial de transitar entre as mais distintas
realidades que são performadas, mas, na arena da política, há ocasiões em que ambas
podem se confundir.
Por fim, a performance da água enquanto direito, mais especificamente
enquanto direito humano, é traduzida nas dimensões de seu acesso como um critério de
construção de uma sociedade mais justa e sustentável. O argumento da equidade deixa
de lado algumas das recomendações técnicas e se vincula à noção de segurança hídrica,
que têm acionado estratégias jurídicas de legitimação de demandas. O princípio do uso
prioritário dos recursos hídricos para o consumo humano e a dessedentação de animais
(BRASIL, 1997) é uma tradução de demandas que são consideradas legítimas dentro das
performances da água.
Água performada enquanto um direito, além de acionar mecanismos jurídicos
formais, relaciona-se a elementos sociais estruturantes, considerando-se as dimensões
do acesso (ANAND, 2017). Quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) publica um
relatório que reporta 829.000 mortes por diarreia no ano de 2016, cujas condições de
contágio estão intimamente ligadas às condições (ou à ausência) de acesso à água,
saneamento e higiene, a performance da água como um direito adquire contornos de
interseccionalidade, considerando-se que o maior contingente de mortes se encontra
em países do Sul Global, mais especificamente no continente Africano (OMS, 2016).
6
A questão hídrica na região do Distrito Federal, ainda que tenha um histórico mais longo que o período
de contingenciamento de água, somente se materializou como uma realidade entre os anos de 2016 e
2018. A despeito do ciclo hídrico da região prever um longo e característico período de estiagem, entre
os meses de junho e outubro, no ano de 2016, a tendência de decréscimo do volume útil das barragens
que abastecem o DF não se reverteu iniciado o período de chuvas. Assim, em janeiro de 2017, após o
Reservatório da Barragem do Descoberto – o maior reservatório do DF e responsável pelo abastecimento
de mais de 50% da população - alcançar 20% de sua capacidade, excluindo-se o seu volume morto, a
Adasa, amparada pela Resolução nº 20, publicada em novembro de 2016 (Adasa, 2016), deu início ao
sistema de rodízio no fornecimento de água, que durou até junho de 2018.
7
A seleção desses três veículos se deveu a sua ampla circulação no Distrito Federal.
Um dos mais proeminentes discursos pelo qual a água foi performada como um
recurso componente da cadeia produtiva envolvia a manutenção dos padrões
produtivos, frente ao contexto de contingenciamento dos recursos. Nessa performance,
a presença de atores ligados ao setor produtivo do Distrito Federal é evidente. Não
somente de agentes individuais, como empresários e produtores rurais que aceitaram
falar em uma entrevista, mas iniciativas institucionais, como as confederações
relacionadas à indústria e institutos ligados ao comércio, que endossam o discurso das
perdas e da dependência hídrica como um elemento da cadeia produtiva.
Os discursos veiculados na mídia evidenciam, primeiramente, a dependência da
água em duas principais frentes: processos produtivos e manutenção de maquinário e
uso dos trabalhadores (IEL, 2018). A partir da dependência, o elemento do prejuízo
financeiro alia-se como uma segunda variável no quadro esquemático (MAIA, 2018a).
Por fim, vinculados aos discursos de perda e dependência, no contexto de crise pelo qual
o Distrito Federal passou, a água também foi performada como um recurso hídrico
através de mudanças de práticas de usos, vinculadas a um discurso de adaptação à nova
realidade materializada naquelas performances.
Primeiramente, as práticas discursivas recuperadas nos conteúdos jornalísticos
se interligam de maneira peculiar, seguindo uma ordem específica de exposição.
Primeiramente expõe-se a necessidade e a dependência do recurso para o
desenvolvimento da atividade produtiva:
Com um dia da semana sem água, o dono de uma marmoraria no SIA, Carlos
Roberto Oliveira Mourão, se adaptou: dobrou o armazenamento, recorre a um
caminhão-pipa a cada 15 dias e instituiu o reuso. “Uso o caminhão-pipa porque
a água da máquina que corta o mármore não precisa ser potável. Além disso,
reaproveito a água da chuva”, explica. Roberto Bontempo tem uma fábrica de
móveis em Taguatinga Sul. Ele reduziu o consumo em 30% ao trocar a caixa
d’água por outra menor. Além disso, colocou uma garrafa pet nas descargas dos
oito banheiros da empresa (MAIA, 2018a).
com a falta d'água, com dificuldades e privações, e a realidade de quem acredita no seu
próprio discurso" (POÇO, 2015).8
A fala de Rafael Poço na ocasião da premiação do então governador Geraldo
Alckmin começa a ilustrar como são distintas as realidades sobre o que se entende pela
garantia do direito à água e o que seriam violações a esses direitos em um contexto de
desabastecimento. Ao mesmo tempo em que, institucionalmente, afirma-se que a gestão
da crise hídrica em São Paulo tenha sido um sucesso, são denunciadas violações de
direitos:
8
Ver em: Soares, W. ONGs apontam violações de direitos humanos durante crise hídrica em SP.
São Paulo: Portal G1, 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/10/ongs-
apontam-violacoes-de-direitos-humanos-durante-crise-hidrica-em-sp.html> Acesso em 03 de setembro
de 2019.
racionamento. Aqui (em Brasília) não era para faltar água, mas,
infelizmente, até hoje não tivermos governo para fazer algo para a parte
hídrica”, criticou uma usuária (ZAMBON, 2017, grifo da autora).
3. Considerações finais
9
As regiões administrativas são subdivisões territoriais do Distrito Federal, cujos limites físicos,
estabelecidos pelo poder público, definem a jurisdição da ação governamental para fins de
descentralização administrativa e coordenação dos serviços públicos de natureza local.
realizadas através dos saberes e dos conhecimentos múltiplos de mundo (MOL, 2008;
LAW e MOL, 2002, 1995). Utiliza-se “ontologias”, no plural, para evidenciar seu aspecto
múltiplo. A noção de múltiplas realidades, entretanto, não é um aparato de escolha, mas
evidencia momentos de choque, tensão, sobreposição, produção conjunta e intersecção
entre as realidades performadas.
Mais especificamente, pensar a água e episódios de estresse hídrico no Brasil,
como ocorreu na região Sudeste entre os anos de 2014 e 2016, ou mesmo no Distrito
Federal, entre 2016 e primeira metade do ano de 2018, a partir da perspectiva de
realidades que são produzidas em torno dos usos da água, evidencia pontos de tensão e
as condições nas quais são situados os discursos sobre a água. Observando-se de modo
exploratório o contexto recente do Distrito Federal, percebeu-se que os atores humanos
que se viam envolvidos na questão – produtores, membros do governo e da comunidade
acadêmica, consumidores – mobilizam aparatos discursivos e argumentativos distintos,
mas sempre com o intuito comum de legitimar seu interesse em relação ao acesso à água.
A água, e a crise, em grande medida, eram performadas através de discursos econômicos,
científicos e, inclusive, jurídicos; performava formas de viver e experienciar realidades
muito distintas entre si (ANAND, 2017).
Se houvesse uma realidade comum a todos esses atores, a ver, a realidade da
crise hídrica, esta seria performada, ao mesmo tempo, pelas noções de escassez,
importância estratégica e de responsabilidade ética de todos os atores sociais envolvidos
nessa rede. Junto a isso, práticas e discursos múltiplos coexistem em torno da questão,
demonstrado que ontologias – no plural - se constroem nesses momentos de exercício
das práticas cotidianas locais, multiplicando as realidades ao mesmo tempo (SOUZA,
2015).
Desse modo, ainda que as performances de determinadas práticas adquiram
certa homogeneidade, como ocorre no caso da água enquanto um direito, quando
vinculada às noções de bem-estar nota-se pontos de conflito e de estranhamento frente
a fatores outros que não apenas a realidade da crise (MOL e LAW, 2002). Nesse ponto,
há o choque entre ontologias dentro de uma mesma realidade. O que não implica que o
choque e a tensão sejam constantes, uma vez que realidades tão distintas se sobrepõem.
Significa dizer que existem e cristalizam-se em coexistem (SOUZA, 2015). A fluidez das
Referências
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direitos humanos na gestão hídrica no estado de São Paulo (versão completa). São Paulo:
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pela-crise-hidrica-no-df/. Acesso em: 3 jul. 2019.
Modernidade e Racionalização:
Entre a Tragédia do Esclarecimento
e a Esperança no Agir Comunicativo
Renan Oliveira de Carvalho1
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a perspectiva de autores que construíram suas teorias da
Modernidade a partir do paradigma da racionalização. Para isso, pretende-se lançar um olhar para as
teorias de sociólogos como Weber, Adorno, Horkheimer e Habermas, e suas diferentes perspectivas acerca
do tema. O que se pretende nas páginas que seguem é apresentar as diferentes teorias da Modernidade
dos autores em questão e refletir sobre suas perspectivas, diagnósticos e projeções em torno da percepção
de que a Modernidade é fruto de um processo de racionalização da vida e do mundo pelo qual passou a
sociedade ocidental.
ABSTRACT
This paper aims to analyse the perspective of authors that built their theory of modernity from the
rationalization paradigm. To accomplish that, its intents to present the theory of sociologists as Weber,
Adorno, Horkheimer and Habermas, and their different perspectives about the subject. What is intended
in the following pages is to present their theories about modernity, and from that reflect on their
perspectives, diagnoses and projections around the perception that modernity is the result of a process of
rationalization of life and the world that Western society has gone through.
Introdução
1
Bacharel em Direito pela UFRJ e licenciado em Ciências Sociais também pela UFRJ. Mestre em Ciência
Política pela UFF. Doutorando em Sociologia pelo IESP-UERJ. Bolsista CAPES. Contato:
[email protected].
Max Weber foi sem dúvidas o principal dos sociólogos tidos como um dos
“clássicos da sociologia” a analisar e descrever a Modernidade a partir do paradigma da
racionalização — ao menos de forma mais explícita e sistemática.3 Para Weber a
característica distintiva da Modernidade seria o processo de racionalização da vida e
desencantamento do mundo que as sociedades ocidentais haviam experimentado. Em
linhas gerais, entende-se que o conceito de racionalização, como utilizado por Weber,
significa a redução à racionalidade de todos os aspectos da vida social. Quando trata do
processo de racionalização da vida, o autor busca descrever o processo por meio do qual,
nas sociedades ocidentais, as ações sociais dos indivíduos passam a ser orientadas não
mais a partir de motivações tradicionais e afetivas — baseadas nos costumes, tradições
ou sentimentos — mas a partir de uma lógica estritamente racional, seja quanto aos
valores ou, principalmente, em relação aos fins (WEBER, 1994). 4
Sobre o processo de racionalização em Weber, Habermas escreve:
O que Max Weber descreveu do ponto de vista da racionalização não foi apenas
a profanação da cultura ocidental, mas, sobretudo, o desenvolvimento das
sociedades modernas. [...] Weber entende esse processo como a
institucionalização de uma ação econômica e administrativa racional com
respeito a fins. À medida que o cotidiano foi tomado por esta racionalização
cultural e social, dissolveram-se também as formas de vida tradicionais, que no
início da modernidade se diferenciaram principalmente em função das
corporações de ofício (HABERMAS, 2000, p. 3).
2
Esta seção é uma versão modificada da seção de mesmo nome contida no artigo: CARVALHO, R. O. de.
A modernidade nos clássicos da sociologia: percepções acerca do mundo moderno em Tocqueville,
Durkheim e Weber, Sociologias Plurais, v.5 n.2, p. 194‒211, dez 2019.
3
Antes dele podemos perceber em Marx uma aproximação a essa abordagem, porém, de forma mais
residual e não sistemática – estando o conceito de racionalização em meio a sua teoria do capitalismo e
da revolução. Marx percebia de forma positiva os avanços que poderiam ser aferidos com o progresso da
razão e da técnica, e buscava, a partir de sua teoria da luta de classes e de suas projeções acerca de uma
futura sociedade comunista, imaginar um mundo onde a racionalidade conformasse uma sociedade
onde a humanidade tomasse as rédeas do seu próprio destino, sem a necessidade da dominação do
homem pelo homem.
4
Nesse sentido, a racionalização ofereceria as condições nas quais a ação social é exercida. A
racionalização é o processo que confere significado à diferenciação entre as linhas de ação.
5
Em parte, pois o processo de desencantamento do mundo seria anterior a este processo de racionalização
da vida no mundo ocidental. Uma vez que, como visto, tem início ainda na antiguidade com a
conformação das religiões judaicas e prossegue até a Modernidade. De certo modo, o processo de
racionalização é também anterior ao advento da Modernidade, uma vez que não se pode dissociá-lo
completamente do desencantamento do mundo. O que é característico da Modernidade é a
predominância cada vez mais acentuada de uma racionalidade instrumental, ligada a ação social com
relação aos fins.
6
Por “espírito do capitalismo”, devemos entender a conformação de um “ethos”, “uma ideia do dever que
tem o indivíduo de se interessar pelo aumento de suas posses com um fim em si mesmo” que se conforma
assumindo “o caráter de uma máxima de conduta de vida eticamente coroada” (Weber, 2004, p. 45).
Ninguém sabe ainda quem no futuro vai viver sob essa crosta e se ao cabo do
desenvolvimento monstro hão de surgir profetas inteiramente novos [...] Então,
para os ‘últimos homens’ desse desenvolvimento cultural, bem poderiam
tornar-se verdades as palavras: “Especialistas sem espírito, gozadores sem
coração: esse Nada imagina ter chegado a um grau de humanidade nunca
antes alcançado” (WEBER, 2004, p. 166, grifo do autor).
7
E para isso, a utilização da metáfora da “jaula de ferro” ou “crosta de aço” – conforme as diferentes
traduções - é realmente ilustrativa.
8
Por vezes também traduzido como “Ilustração”, o conceito de esclarecimento em Adorno e Horkheimer
se refere tanto ao iluminismo quanto ao processo de racionalização já salientado por Weber em sua obra.
Seus escritos exalam um desespero e uma asfixia que não são difíceis de
compreender, se nos pusermos naquela conjuntura, no dizer de Hannah
Arendt, de “tempos sombrios”, com o stalinismo de um lado, o nazismo e o
fascismo do outro, e ainda com a expansão que perceberam como assustadora
da cultura de massas nos Estados Unidos (DOMINGUES, 2001, p. 73).
9
“Mas os mitos que caem vítimas do esclarecimento já eram produto do próprio esclarecimento”.
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985).
10
Vale salientar aqui que a razão a que Adorno e Horkheimer se referem ao tratar do tema é a razão
instrumental, ou seja, aquela razão finalística ou teleológica, já criticada por Weber como a forma
prevalecente da racionalidade no processo de racionalização da vida na Modernidade.
11
Também denominado de “capitalismo administrado”, ou ainda, “capitalismo tardio”.
da política e da sociedade como um todo, agindo tanto para dirimir as possíveis causas
de insurreições e estabilizar os elementos disruptivos do capitalismo,12 quanto para
reforçar sua lógica,13 que o “capitalismo administrado” bloquearia as possibilidades de
sua superação. “O capitalismo administrado é um sistema que se fecha sobre si mesmo,
que bloqueia estruturalmente qualquer possibilidade de superação virtuosa da injustiça
vigente e paralisa, portanto, a ação genuinamente transformadora” (NOBRE, 2008, p.
47).
12
Como exemplo, temos o controle do governo sobre os sistemas de crédito e comércio exterior, as ações
empreendidas pelo Estado para evitar ou superar as crises econômicas, as polícias e departamentos de
inteligência empenhados em desarticular grupos ou movimentos de oposição ao sistema e as políticas
de assistência social que visam atenuar os efeitos da exclusão econômica e social conformados pelas
contradições próprias do capitalismo.
13
Entre os mecanismos desse mundo administrado que contribuem decisivamente para esse “reforço da
lógica” do capital, ou mesmo para conformação de uma subjetividade humana eminentemente
capitalista está a indústria cultural. Fenômeno que designa o processo de padronização e racionalização
tanto do processo produtivo quanto da difusão de bens culturais — através do cinema, do rádio, da
televisão e da imprensa — observado pelos autores nas sociedades modernas, que teria o efeito de
homogeneizar a cultura, e através dela, a própria consciência das pessoas. Ao implementar a lógica da
produção em massa da fábrica e do sistema capitalista para o campo da cultura, a indústria cultural se
estabelece como instrumento fundamental empregado para reproduzir a ideologia do sistema e integrar
os indivíduos à sua lógica.
Acredita Habermas que, desde Marx, passando por Simmel, Weber e Lukács, e
chegando a Adorno e Horkheimer, a razão tem sido concebida como
basicamente instrumental e referida ao indivíduo em si, ou então objetificado
em relações sociais reificadas. Habermas aceita, em parte, essa postulação e o
diagnóstico que veria na modernidade a apoteose da razão instrumental,
conceituando, em compensação uma outra racionalidade, a comunicativa
(DOMINGUES, 2001, p. 83).
Entretanto, com o tempo, esses sistemas passam a ganhar cada vez mais
preponderância em relação ao mundo da vida estruturado simbolicamente, e não só se
destacam dele como o relegam a um “segundo plano”. Dessa forma, um agir teleológico
orientado pelo sucesso e controlado pelos cálculos egocêntricos do lucro e com vistas à
consecução de fins individuais ganha cada vez mais preponderância em face do agir
orientado pelo entendimento. É nesse sentido que Habermas (2012, p. 355) vai afirmar
14
Como na obra intitulada “Direito e democracia: entre a facticidade e validade”, de 1992.
sistemas funcionais do “dinheiro” e do “poder”, uma vez que em sua estrutura estariam
presentes tanto a racionalidade instrumental — através de sua utilização como meio de
se atingir objetivos — quanto a comunicativa — uma vez que o debate e o discurso, e,
portanto, a ação comunicativa, são elementos constitutivos do direito.15 Para que se
possa alcançar esse resultado, entretanto, é fundamental a existência de um ambiente
livre de coerções na esfera pública, onde se possa debater livremente as ideias na busca
pelo consenso, garantindo assim a legitimidade das deliberações — e do próprio direito.
Só através de uma sociedade que estimule a busca pelo consenso, através de uma
forma de sociabilidade mais pautada no diálogo e na argumentação com vistas a chegar
ao entendimento que, com o tempo, o agir comunicativo poderia retomar o espaço
perdido pela colonização dos sistemas autorreferidos do “poder” e do “dinheiro” e passar
a reorientar as interações entre os indivíduos na busca pelo entendimento, reordenando
assim a sociedade.
Considerações finais
15
Estando presentes tanto em sua elaboração através dos debates legislativos — que por sua vez são
influenciados pelo debate existente na esfera pública — quanto na prática judiciária.
16
No caso de Adorno e Horkheimer.
17
A despeito do debate em relação a emergência ou não de uma pós-modernidade — o que não se propõe
aqui debater.
18
A despeito dos problemas que já são observados e podem advir nesses novos espaços, como a
proliferação das fake news e a possibilidade de manipulação da população via redes sociais, por exemplo,
a influenciar eleições, podemos perceber também esses espaços como uma nova arena aberta para a ação
comunicativa, onde as vozes de grupos antes relegados ao silêncio passam a ressoar e novos repertórios
de ação passam a integrar o espaço público. Como exemplo, podemos citar a Primavera Árabe como
fenômeno de mobilização proporcionado pela liberdade de circulação de ideias propiciada pelas redes
sociais.
Referências
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Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
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SELL, Carlos Eduardo. Max Weber e a racionalização da vida. Petrópolis: Vozes, 2013.
A dinâmica da recepção: a
intelectualidade brasileira e o
ingresso do pensamento europeu
do século XIX
Maxmiliano Martins Pinheiro1
RESUMO
Este artigo apresenta uma discussão teórica sobre a sociologia pós-colonial e sua crítica ao pensamento
eurocêntrico que procura obliterar a potencialidade científica dos países latino-americanos. Tendo como
base a teoria social de Boaventura de Sousa Santos que se desdobra na defesa das “Epistemologias do Sul”,
o texto almeja dialogar com a tese defendida por Angela Alonso, posteriormente transformada em livro,
que sustenta a dinamicidade da intelectualidade brasileira, no século XIX, durante a transição do período
monárquico ao republicano, que concebeu nas matrizes do pensamento europeu, personificadas no
liberalismo político e no positivismo, chaves para uma reconstrução sócio-política do Brasil. A partir disso,
essa abordagem tem como pressupostos analisar a interação da sociologia pós-colonial de Sousa Santos
com as de outros autores que ressaltam a problemática da condição pós-colonial em diferentes países e
etnias, e em seguida, apresentar a análise histórica de Alonso, mediante o papel das elites intelectuais
brasileiras, no processo de recepção das ideias européias, dialogando com a teoria de Sousa Santos.
ABSTRACT
This article introduces a theoretical discussion about postcolonial sociology and its criticism towards
Eurocentric thought which endeavors to obliterate the scientific potentiality from Latin-American
countries. Based on Boaventura de Sousa Santos’ social theory that unfolds itself in the defense of
“Epistemologies form South”, this text aims at establishing a dialogue with Angela Alonso’s thesis, which
was subsequently transformed in a book, which supports the dynamics of Brazilian intellectuality, in the
nineteenth century, during the transition from monarchical to republican period which envisages in the
matrices form European thought, keys to reconstruct Brazilian social-politics. From this point, this
approach has as assumptions analyzing the interaction between Sousa Santos’ postcolonial sociology and
other authors who stand out the problems from postcolonial condition in other countries and ethnicities,
and thus, presenting the Alonso’s historic analysis through the roles from Brazilian intellectual elites in
the process of reception of European ideas in dialogue with Sousa Santos’ theory.
1
Mestrando em Sociologia Política pela UCAM/IUPERJ. Mestre em Literaturas de Língua Inglesa pela
UERJ. Especialista em Sociologia, Política e Cultura pela PUC-Rio. Especialista em Literaturas de Língua
Inglesa pela UERJ. Contato: [email protected].
Introdução
A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade, torna-
se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa
não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo
que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque
permanece exterior ao universo que a própria concepção de inclusão considera
como sendo o Outro. A característica fundamental do pensamento abissal é a
impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. Este lado da linha só
prevalece na medida em que se esgota o campo da realidade relevante. Para
Fanon (2008) que, ao analisar a condição do negro sob o prisma pós-colonial, afirma que
a inferiorização que o colonizado imputa em si mesmo é o “correlato nativo da
superiorização européia”, pois o agente racista cria o indivíduo inferiorizado. Enquanto
o branco retira do negro qualquer valor ou originalidade, o negro, por sua vez, procura
fazer-se branco como meio de adquirir reconhecimento no lugar de lutar pela sua voz
(FANON, 2008). Em síntese, o pensamento sociológico de Sousa Santos interage com as
teorias pós-coloniais contemporâneas uma vez que ressalta a impossibilidade das
sociedades que foram impedidas em exprimir suas vozes em contraposição ao poder
cultural investido do Ocidente.
Dissecando o confinamento que o pensamento abissal eurocêntrico imputa aos
povos subalternizados, Sousa Santos (2009) ressalta o quanto o conhecimento científico
e o direito moderno expressam o domínio cultural desse pensamento. Sendo assim, eles
representam as duas principais linhas abissais globalizantes dos tempos modernos,
mesmo operando de forma diferenciada. Com efeito, cada uma erige uma lógica de
distinções visíveis e invisíveis em que estas últimas fundamentam a existência das
primeiras. No que tange ao conhecimento, o pensamento abissal atribui à ciência
moderna o status de legitimar universalmente o que é considerado verdadeiro ou falso.
Por conseguinte, as sociedades eurocêntricas produzem a validade universal da ciência
moderna baseada nos fatos e na observação, enquanto as nações “do outro lado da linha”,
presas na teologia e na metafísica, não constroem conhecimento real, apenas crenças,
opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos (SANTOS, 2009). Quanto ao
direito, “este lado da linha” o legitima como aquilo que é legal ou ilegal segundo os
paradigmas do direito oficial do Estado moderno. Portanto, o território “do outro lado
da linha” onde não é reconhecida sua capacidade de construir seu sistema jurídico
próprio é um espaço sem lei, ou seja, o local do a-legal ou ilegal, de acordo com direitos
não oficialmente legitimados (SANTOS, 2009).
Edward Said (2019) assevera a forte influência que a Grã-Bretanha, a França e,
mais tarde a Alemanha e os EUA, exerceram sobre os estudos orientais a ponto de essas
nações consolidarem uma espécie de autoridade intelectual sobre o Oriente inserido na
cultura ocidental. Por essa razão, além de vedar aos povos subalternizados a
possibilidade de construção do saber científico e do direito institucional, nega-se
liberais e dos positivistas à ordem imperial vigente no final do século XIX, e como
emergiram as propostas políticas modernizadoras por meio do contato da
intelectualidade brasileira representada por esses grupos com as referidas vertentes do
pensamento europeu.
Toda ação do movimento da geração 1870 decorreu da exclusão política de
grupos sociais devido à dominação da elite saquarema2 durante o Segundo Reinado. Para
Angela Alonso (2002), o ponto de interseção entre segmentos tão diferenciados era a
experiência compartilhada de marginalização política que acarretava no impedimento
ao ingresso das instituições políticas fundamentais, uma vez que esses grupos estavam
alijados pelo status quo saquarema.
Por conseguinte, esse movimento foi uma resposta coletiva de grupos sociais
que se configurou na produção de escritos e associações intelectuais, visando uma forte
crítica às instituições políticas do Segundo Reinado e aos valores da tradição imperial.
Foram realizados debates públicos tendo como base um novo repertório intelectual que
propiciava a esses segmentos uma compreensão crítica da conjuntura brasileira no final
do século XIX e armas para a luta política. Sendo assim, a adoção de teorias científicas e
liberais durante a crise do império pode ser redefinida como um movimento político-
intelectual de refutação constituído por grupos sociais díspares em origem social, mas
consensuais em seus objetivos, já que se encontravam politicamente marginalizados
(ALONSO, 2002).
Dessa forma, podemos constatar que essa reação coletiva à ingerência da elite
saquarema na monarquia desvela, em certo grau, um caráter pragmático já que as
instituições políticas não propiciavam uma participação política efetiva desses grupos
que constituíam um movimento de elite. Cumpre ressaltar que os movimentos
intelectuais brasileiros do século XIX eram essencialmente elitizados uma vez que seus
membros tinham acesso ao ensino superior, em uma sociedade em que o diploma sendo
um recurso demasiadamente escasso simbolizava status e possibilidade de carreira
pública. Por outro lado, podemos igualmente perceber que esses mesmos segmentos
2
Segundo Ilmar Rohloff de Barros (2004): “A elite saquarema era uma classe senhorial que englobava,
durante o Segundo Reinado, a alta burocracia imperial composta por senadores, magistrados, ministros,
conselheiros do Estado e parte do clero, assim como proprietários rurais de diversas regiões que
sustentavam o poder vigente, por meio dos princípios da ordem e da civilização.
legitimidade por estar imbuída das expressões da “razão e justiça” ou “ciência” oriundas
da mentalidade européia. É importante inserir as observações de Florestan Fernandes
sobre a escravidão. Para esse autor, ao longo da segunda metade do século XIX, a
sociedade brasileira passa por um processo de desagregação do regime servil. Dessa
forma, a escravatura gradativamente desaparece por causas das novas condições de
existência social. Tal dissolução do regime servil se desdobra desde o fim do tráfico
africano, em 1850, até a abolição da escravatura, em 1888, atravessando quatro décadas,
até chegar à década de 1880, em que a agitação abolicionista atinge as senzalas e as
camadas populares, propiciando ao próprio escravo, uma ação decisiva no solapamento
do sistema laboral vigente, por meio de fugas em massa que desarticulavam os trabalhos
nas fazendas (FERNANDES, 2008). Com isso, pode-se compreender a necessidade dos
liberais e dos positivistas em pleitear projetos sociais reformistas que respondessem à
crise que se encontrava o regime de trabalho no Brasil no final do século XIX.
Cumpre primeiramente elucidar que o pensamento abissal, nas palavras de
Boaventura de Sousa Santos (2009), mostra-se capaz de produzir e radicalizar distinções
que por mais drásticos que sejam os resultados elas são produto de uma mentalidade
ocidental “deste lado da linha”. Por isso, devemos ter em mente que tanto o liberalismo
quanto o positivismo, apesar de serem manifestações da mentalidade eurocêntrica, não
desejam a perene subalternidade dos povos “do outro lado da linha”. Antonio Paim
(1987) assevera a conotação antimonárquica e libertária do liberalismo brasileiro,
durante a inconfidência mineira, mesmo esse estando bem distanciado dos propósitos
maiores do pensamento liberal; assim como as intenções igualitárias atribuídas à
revolução baiana contra as autoridades da época. Ivan Monteiro de Barros Lins (1967)
destaca a repercussão que o positivismo difuso exerceu no Brasil consoante suas
manifestações de uma política internacional anticolonialista propugnando os princípios
da não-intervenção e da autodeterminação dos povos. Basta lembrar que, segundo
Augusto Comte, todas as nações atravessam a lei dos três estados em fases sucessivas
(teológica/militar, metafísica/jurídica e científica/industrial) alcançando suas
autonomias efetivas. O que a sociologia de Sousa Santos reivindica através de uma
ecologia de saberes é a possibilidade de a América Latina encontrar sua própria
autonomia por meio de uma contra-epistemologia universal baseada na
a todos os indivíduos que passam a ser vistos como cidadãos segundo a universalização
dos direitos até então desconhecida pela tradição imperial. Nota-se assim uma profunda
ingerência do contratualismo europeu nessa prerrogativa democrática. Ribeiro (2012)
analisa o liberalismo político de Nabuco como uma perspectiva política de viés
democrático, propagado por uma nova elite intelectual que assumia de forma
consistente um renovado repertório de opinião pública na defesa de uma cidadania
ampliada, do sufrágio universal e dos partidos políticos. Tal crédito ao liberalismo como
rumo para civilização moderna acarretava prerrogativas de modernização econômica e
descentralização administrativa. Na verdade, alguns liberais do período monárquico já
supunham que o liberalismo econômico pudesse exercer funções normativas, devendo
resultar de sua influência soluções para o problema institucional (PAIM, 1987). A nova
geração liberal concebia o modelo estadunidense como trajetória econômica a ser
trilhada onde a descentralização da política, do Estado e dos negócios surgiria como
princípio norteador. Além da cidadania plena num regime de liberdades públicas,
haveria divisão do trabalho e imigração proletária de chineses patrocinada pelo Estado
(ALONSO, 2002). Defendeu-se também a criação do imposto territorial rural e o fim dos
incentivos fiscais e das linhas de credito ao latifúndio considerado improdutivo. Enfim,
um americanismo restrito ao liberalismo econômico e à lei de terras (ALONSO, 2002).
Com isso, observa-se que o liberalismo advogado pela geração 1870 revelava maiores
preocupações de ordem política apesar de defender questões sociais como o trabalho
livre. O grande entrave deixado pelo legado liberal foi essa confiança desmedida no
modelo estadunidense como parâmetro nacional-desenvolvimentista, estreitando a
criação de um projeto nacionalista no Brasil.
Já o positivismo, por sua vez, compreendia a questão social como uma
prerrogativa bem mais importante que a reforma política. Por conseguinte, o cerne do
reformismo social empreendido pelos positivistas da geração 1870 reside na luta pela
inclusão social dos setores mais periféricos do sistema imperial, isto é, os negros, na
condição de ex-escravos e cidadãos. Alonso ressalta que o núcleo de pauta de reformas
deste grupo, principalmente os positivistas ligados ou relacionados com a Religião da
Humanidade, é a causa escravista. Enquanto as dissidências heterodoxas procuraram
compensar o fim da escravidão, positivistas abolicionistas como Miguel Lemos e Teixeira
Comte não elabore uma teoria econômica propriamente dita, se consagrou como o
precursor do Estado social brasileiro. Ribeiro ressalva o esforço dos positivistas,
principalmente Teixeira Mendes, em instituir uma legislação trabalhista para
reorganizar a indústria e o serviço doméstico com o fim da escravidão. O projeto
assegurava a regulação social do trabalho com salário, número de horas de trabalho,
descanso semanal, férias, aposentadoria, criação de escolas de instrução básica, entre
outros (RIBEIRO, 2012). É oportuno inserir a observação de Eric Hobsbawm (1988)
quando afirma que o positivismo de Comte figurou uma doutrina modernizadora que
inspirou os governos do Brasil e do México no século XIX, pois combinava a fé na ciência
e na modernidade com o equivalente secular religioso, o progresso não democrático e
um planejamento sócio-econômico vertical. Este pensamento persuadiu as elites
modernizadoras do poder para que esses países latinos alcançassem a marcha prevista
para o século XX. A grande mazela deixada pela mentalidade autoritária positivista foi
precisamente o temor ao empoderamento da população diante dos impasses sociais,
propondo em seu lugar soluções de caráter paternalista e autocrático.
Na esfera política, os positivistas ortodoxos sustentaram um bom governo de
moralidade pública por meio de uma ditadura sociocrática em que a transparência das
contas públicas estatais e a completa liberdade de expressão drenariam a voz do povo
diretamente para o ditador encarregado do executivo. Ocorreria um modo de
participação política direta da população por meio de plebiscitos ou aclamações
populares, substituindo e reduzindo a representação do parlamento, cuja função seria
estritamente orçamentária com a fiscalização das despesas e dos impostos (ALONSO,
2002). Com isso, podemos inferir que o positivismo no Brasil assumiu um viés bem mais
humanista que o “cientificista e mecanicista” ao qual Sousa Santos (2009) se refere.
Por fim, devemos salvaguardar que tanto os liberais como os positivistas, apesar
de suas diversificações grupais, advogaram em consenso o reformismo social em
detrimento da revolução. Segundo Alonso (2002), os intelectuais da geração 1870 eram
contestadores, não revolucionários. Marginalizados pela elite saquarema, esses
membros se apresentaram como os novos mediadores entre a sociedade moderna e as
instituições políticas. Continuavam o elitismo da sociedade imperial ao se intitularem
como os portadores de uma política científica capaz de regular e regrar
Considerações finais
conceberem sua própria epistemologia para que assim possam se tornar co-presença e
encarar os grandes centros ocidentais numa relação mais igualitária, constataremos que
a própria incursão das matrizes desse pensamento já denota complexidade.
No caso do Brasil, percebemos que o ingresso do liberalismo político e do
positivismo, na obra de Angela Alonso, desvelou uma dinâmica no próprio processo de
assimilação. Desse modo, a intelectualidade brasileira, no século XIX, foi impulsionada
pela exclusão social da elite imperial e, prosseguindo tal prerrogativa pragmática,
preferiu antes investir numa projeção política que criar sociologias nativas, embora
possamos considerar que determinados membros da geração 1870, como Joaquim
Nabuco, Sílvio Romero, Tobias Barreto, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes,
conforme suas trajetórias, mostraram aspirações acima do pragmatismo e quiseram
deixar um legado intelectual e simbólico. O fator mais nevrálgico, não explorado pelo
texto de Sousa Santos, deve-se precisamente ao fato de que as propostas socializantes
do liberalismo político e do positivismo, que são expressões da mentalidade abissal, por
mais que salvaguardassem um modelo conservador e hierárquico, foram frustradas pelas
novas elites sócio-econômicas que sucederam ao regime monárquico no Brasil, o que fez
com que elas fossem gradativamente incorporadas pelo coletivo político da população.
Basta lembrar que o Estado social apregoado pelos positivistas germinou nos períodos
da Era Vargas e da República Populista, e a ampla representatividade sustentada pelos
liberais só foi confirmada na Constituição de 1988. Não se pretendeu aqui fazer um
contraponto à sociologia pós-colonial de Boaventura de Sousa Santos, apenas
problematizar a forma como as matrizes do pensamento abissal foram assimiladas pela
intelectualidade brasileira do século XIX, ressaltando que o ingresso tanto do liberalismo
político quanto do positivismo não foi um processo passivo desprovido de uma
dinamicidade.
Referências
FERNANDES, Florestan. “Do Escravo ao Cidadão”. In: BASTIDE, Roger & FERNANDES,
Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Global, 2008, p. 27-90
HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
PAIM, Antonio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. São Paulo: Convívio, 1987.
SANTOS, Boaventura de Sousa. “Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a
uma ecologia dos saberes”. In: SANTOS, Boaventura de Sousa & MENESES, Maria Paula.
Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009, p. 23-72
RESUMO
Federal Public Ministry and Federal Police: an analysis on the contents of the
oficial facebook pages
ABSTRACT
This article analyzed the communication strategies used by the institutions involved in the Lava Jato
operation, the Federal Public Ministry and the Federal Police on Facebook, in order to understand one
aspect of the symbolic struggle for power by the bureaucratic institutions. With this study, we sought to
answer the following questions: Do the two institutions involved in using Facebook as a communication
strategy? Is corruption the main topic addressed or are other themes prioritized in the institutions'
publications? Is the reaction of users on the pages similar for the two institutions? In order to achieve the
desired goals, a survey of posts on the official Facebook pages of the two institutions was carried out
during 2018, with the purpose of ascertaining the quantity, frequency, and content of publications. It was
1
Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no X Seminário Nacional Sociologia & Política, na
UFPR em 2019. Agradecemos os valiosos comentários dos debatedores que contribuíram para o
aperfeiçoamento do trabalho.
2
Mestranda em Sociologia - UEL. Graduada em Direito - UEL. Especialista em Direito e Processo Penal.
Especialista em Direito Constitucional Contemporâneo. Este estudo foi financiando com recursos da
CAPES. E-mail: [email protected].
found that although the two institutions routinely use Facebook, their strategies on the social network
are different. While the Federal Police prioritizes publications related to institutional capacity, the Public
Ministry highlights issues related to its constitutional attributions. In addition, even though they are part
of the same operation with great media attention, the publications on corruption and the reactions of
users differ considerably on the pages of the two institutions.
Keywords: Facebook; Federal Police; Federal Public Prosecution Service; symbolic struggles.
1. Introdução
busca pela legitimidade do poder constitui uma luta simbólica, em que se buscam os
instrumentos de legitimação que decorrem do poder estatal. Esses instrumentos são
distribuídos desigualmente entre os atores, havendo uma constante busca de ratificação
do poder, como forma de impor seu posicionamento institucional sobre os demais atores
do sistema. Neste sentido, têm-se a hipótese que a utilização dos aparatos midiáticos
pelos órgãos dos sistemas judiciários tem por objetivo angariar apoio popular para
legitimar suas ações. As estratégias de comunicação são mobilizadas para aumentar o
poder simbólico decorrente do Estado, e garantir a continuidade do cumprimento de
suas funções.
Dentre essas estratégias utilizadas, as redes sociais online se constituem um
importante instrumento de comunicação para esta finalidade, visto que as pessoas
utilizam a rede para “formar novos padrões de interação e criar novas formas de
sociabilidade e novas organizações sociais” (RECUERO, 2009, p. 89). Esta pesquisa visa
elucidar um dos aspectos da comunicação utilizada pelas instituições, a partir da
comparação de suas páginas oficias no Facebook, com o propósito de responder aos
questionamentos seguintes.
As duas instituições envolvidas na operação Lava Jato utilizam o Facebook como
estratégia de comunicação? Tem-se a hipótese que, por meio de estratégias diversas nas
mídias sociais, dentre elas o Facebook, as instituições visam angariar apoio popular para
a realização de suas atribuições institucionais, com a utilização de publicações
frequentes que atraiam a atenção do público, como um aspecto da competição no
ciberespaço. A corrupção é o principal tema abordado ou outras temáticas são
priorizadas nas publicações? Como a operação Lava Jato possui grande repercussão,
outra hipótese é que as instituições nela envolvidas visam divulgar assuntos relacionados
ao combate à corrupção, a fim de ratificar sua atuação nesta seara. A reação dos usuários
nas páginas é semelhante para as duas instituições? Como as duas instituições estão
envolvidas na operação, que ganhou grande destaque midiático, uma hipótese é que os
usuários reajam com a mesma frequência nas páginas das duas instituições. Para atingir
os objetivos almejados, foi realizado um levantamento das publicações nas páginas
oficiais das duas instituições, Ministério Público Federal e Polícia Federal, durante o ano
2. Metodologia
estado civil, arquivos de natureza notarial, etc) e documentos públicos não arquivados
(ex. jornais, revistas, periódicos, publicidade, anúncios, etc). Os privados se dividem em
arquivos privados (ex. documentos de organizações políticas, sindicatos, igrejas,
empresas, etc) e documentos pessoais (ex. diários, correspondências, documentos de
família, etc). Assim, as postagens nas páginas oficiais no Facebook das instituições
analisadas podem ser consideradas documentos públicos não arquivados, conforme a
divisão de Cellard (2008).
3. Principais resultados
3.1 O Ministério Público Federal no Facebook
37
32
24 27
22 21 21 19 21
15
11 10 9 11
6 7 5 4
21/11/2018 - “Já ouviu falar em Viaduto Vegetado? É uma passagem de fauna para
preservar espécies de animais. No Brasil, o primeiro será no RJ.”
28/11/2018 - “Você sabia que o Brasil é um dos países maior número de cesarianas?
Ação do MPF pede regulamentação dos serviços obstétricos realizados por consultórios
médicos e hospitais privados.”
10/12/2018 - “O que é a declaração Universal de Direitos Humanos? É um
documento que ajudou a regular direitos básicos, como condições dignas de trabalho,
liberdade, igualdade, saúde, educação e direito de propriedade.”
no Facebook: Pra Cego Ver. Assim, as imagens publicadas na página do MPF possuem
uma descrição do seu conteúdo, para facilitar o acesso de deficientes visuais que utilizam
programas de leitura automática. Essa estratégia também reforça o posicionamento do
MPF como defensor dos interesses sociais e individuais indisponíveis, conforme
preceitua a Constituição de 1988. Ademais, as postagens quase não utilizam outras
hashtags, diferente da página da PF, que faz amplo uso do artifício.
3
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se a: I
- apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses
da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática
tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho,
sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III -
exercer as funções de polícia marítima, aérea e de fronteiras; IV - exercer, com exclusividade, as funções
de polícia judiciária da União.
54 69
34 48 38 35 33
24
2 3 2 3
primeira categorização, como ocorre na página do MP, o assunto integra várias das
publicações de outras categorias. Assim, o conteúdo coletado foi re-categorizado de
acordo com os objetos principais das operações ou atividades da PF publicadas na rede
social, conforme a figura abaixo:
99 87
48 19
Assim, dentre os principais objetos das atividades deflagradas pela PF, destaca-se
que a corrupção é uma das principais categorias abordadas na página oficial no
Facebook, representando 17% do total de publicações. Logo após estão as publicações
com foco na apreensão de drogas e combate ao tráfico, com 15 % do total de postagens.
A categoria “Outros” engloba as postagens meramente institucionais que não
representam operações diretas do órgão no combate à criminalidade (como fotos de
agentes, por exemplo), datas comemorativas, ou categorias com menos expressividade
numérica que as demais.
Com relação às interações dos usuários, a média geral de curtidas por postagem
na página da PF é de 1113, a média de comentários é de 74, e a média de
compartilhamentos é de 171. Sobre as interações dos usuários com a página, verifica-se
que o número médio de curtidas e comentários por postagem é bem maior que o
verificado na página do MPF, indicando que os usuários se relacionam mais na página
da PF. No entanto, a média de compartilhamentos é menor, indicando que o conteúdo
se mostra menos relevante aos usuários do que os conteúdos da página do MPF para que
compartilhem em sua página pessoal. Ao aferirmos a média de interações de acordo com
cada temática, temos o gráfico a seguir:
na instituição, o que explica a grande interação nas publicações sobre o tema por parte
dos chamados “concurseiros” e seus conhecidos.
Com relação ao conteúdo, uma forte característica das publicações na página
oficial da PF no Facebook é a divulgação de operações deflagradas e demais atividades
policiais, como apreensão de drogas e cumprimentos de mandados de prisão. As
postagens possuem textos mais curtos em relação ao conteúdo publicado na página do
MPF, e possuem o condão de informar principalmente sobre as atividades desenvolvidas
pela PF. Raramente encontram-se informações gerais que não estejam vinculadas às
atividades policiais rotineiras da instituição. Além disso, 57% das postagens remetem os
usuários ao site oficial da PF, que contem informações mais detalhadas sobre as
operações e atividades realizadas. A título de comparação, na página do MPF apenas 21%
das postagens remete o leitor ao site oficial da Instituição.
As publicações com imagens estritamente institucionais, com agentes, veículos
e cachorros não remetem ao site oficial da PF, e possuem o condão de gerar empatia e
identificação com a instituição. Além disso, a PF faz amplo uso de hashtags em suas
publicações, como por exemplo “EuConfionaPF”, “BoaTarde”, “Brasil”, dentre outras. Os
nomes das operações realizadas também aparecem com o uso de hashtags. As hashtags
podem ser colocadas no início ou final da frase, ou mesmo no meio da oração, seja no
texto de referência ou na própria imagem da publicação, como nos exemplos a seguir:
maior oscilação nesta última. Assim, ainda que a PF tenha realizado mais postagens ao
longo do ano de 2018, as publicações na página do MPF apresentam maior regularidade.
Após a primeira categorização das postagens das páginas do MPF e PF no
Facebook, conforme exposto acima, uma segunda categorização foi feita, de acordo com
a finalidade institucional das postagens. Assim, as postagens foram divididas em
“Institucionais”, de “Atribuição”, ou “Outros”. Neste momento, foram consideradas
como Institucionais as postagens em que o texto e a imagem visam reforçar a
diretamente a imagem da Instituição, como fotos dos agentes, veículos, atividades
desenvolvidas diretamente pelos órgãos, esclarecimentos sobre seus serviços etc. Foram
consideradas como de Atribuição as postagens relacionadas às atribuições
constitucionais de cada órgão, que também possuem a finalidade de reforçar a imagem
da instituição, mas comunicando aos receptores da mensagem que o órgão está
cumprindo suas funções institucionais com êxito. Na categoria “Outros” foram incluídas
as publicações com conteúdo de seleção de estagiários, concursos públicos, concursos
de artigos, datas comemorativas que não se relacionam diretamente à atividade do
órgão.
344 367
191
40 22 35
4. Considerações finais
Referências
BAUER, M.; GASKELL, G. (ed.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um
manual. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
BOURDIEU, P. O poder simbólico. 11ª Edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
FRAGOSO, S.; RECUERO, R.; AMARAL, A. Métodos de pesquisa para internet. Porto
Alegre: Sulina, 2011.
PINOTTI, M. C. (org.). Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas. 1ªEd.. São Paulo:
Portfolio-Penguin, 2019.
RESUMO
As práticas de violência contra as populações dissidentes de gênero e sexualidade são uma realidade
cotidiana em todo o território brasileiro, marcada pela apreensão, sofrimento, insegurança e medo. Tal
realidade social se expressa por estatísticas através dos relatórios que dizem respeito a práticas de violência
voltadas ao público LGBTs. A questão da violência suscita uma interlocução com outros temas, tais como
da mobilidade urbana que envolve o caminhar, explorando territórios, experiências e vivências. Nesse
percurso, o estudo objetiva realizar uma reflexão sobre a caminhabilidade de pessoas dissidentes de
gênero e sexualidade, com foco no público LGBTs, em seu entrelaçamento com a violência.
Metodologicamente busca-se uma ampliação e maiores discussões a partir do campo socioantropológico
da Teoria da Caminhabilidade, e assim, caracteriza-se por uma revisão de literatura em torno de uma
hermenêutica problematizadora na qual faremos a confluência em teorias e conceitos. Com isso
1
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor do curso de Psicologia do
Centro Universitário Vale do Salgado (UniVS) e da Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central
(FACHUSC). Discente de Licenciatura em Sociologia pela UNIFAVENI. E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2230-4315.
2
Mestrando em Psicologia na Universidade Federal do Ceará- UFC (Bolsista CAPES). Licenciado em
Sociologia, Bacharel em Humanidades e Especialista em Gestão Pública Municipal na Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Pesquisador e colaborador na Rede de
Estudos e Afrontamentos as Pobrezas, Discriminações e Resistências (ReaPODERE/UNILAB-UFC). E-
mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5696-2255.
3
Mestrando em Sociologia na Universidade Federal do Ceará (UFC). Licenciado em Sociologia e Bacharel
em Humanidades na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).
Membro do Grupo de Pesquisa e Extensão em Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos
(SEJUDH/UNILAB). E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0997-
391X.
4
Doutoranda e Mestre em Psicologia na Universidade Federal do Ceará - UFC - (Bolsista FUNCAP-CE),
Fortaleza-CE, Brasil. Especialista em Saúde Mental pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Integrante do Grupo de Pesquisa e Intervenções sobre Violências, Exclusão Social e Subjetivação
(VIESES/UFC). E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5384-0896.
5
Doutorando e Mestre em Psicologia. Universidade Federal do Ceará - UFC (Bolsista FUNCAP-CE),
Fortaleza-CE, Brasil. Especialista em Docência do Ensino Superior e Tutoria de Educação à Distância
(IPEMIG). Pós-graduando Latu Sensu em Gênero, Diversidade e Direitos Humanos (UNILAB).
Colaborador do Laboratório em Psicologia, Subjetividade e Sociedade (LAPSUS). Extensionista no
Projeto É da Nossa Escola que falamos (UFC). Membro do Corpo Editorial da Revista África e
Africanidades. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2687-1894.
esperamos estabelecer maiores compreensões sobre os/as dissidentes sexuais e de gênero e as situações
de vulnerabilidades em suas caminhadas nas cidades.
And when gay, truck drivers, locks and trans walk the streets? the social
emblems of walkability in Brazil
ABSTRACT
The practices of violence against dissident populations of gender and sexuality are a daily reality
throughout the Brazilian territory, marked by apprehension, suffering and fear of being victims. This
reality is expressed by statistics through reports that refer to violence practices aimed at the LGBTs public.
The issue of violence raises an interlocution with other themes, such as urban mobility that involves
walking, seeking to explore territories and their experiences. This study aims to reflect on the Walkability
and gender issues in Brazil, focusing on gender and gender dissident people and populations. In this sense,
methodologically looking for an expansion and greater discussions from the socio-anthropological field
of the Theory of Walkability, the present study is characterized by a literature review in which we will
make the confluence in theories and concepts. With this we hope to establish greater understandings
about sexual and gender dissidents and the situations of vulnerabilities in their walks through the cities.
RÉSUMÉ
Les pratiques de violence contre les populations dissidentes de genre et de sexualité sont une réalité
quotidienne sur tout le territoire brésilien, marquée par l'appréhension, la souffrance, l'insécurité et la
peur. Cette réalité sociale est exprimée par des statistiques à travers des rapports faisant référence à des
pratiques de violence à l'encontre du public LGBTs. La question de la violence soulève une interlocution
avec d'autres thèmes, comme la mobilité urbaine qui implique la marche, l'exploration de territoires,
d'expériences et d'expériences. Dans cette voie, l'étude vise à réfléchir sur la marchabilité des personnes
dissidentes de genre et de sexualité, en se concentrant sur le public LGBTs, dans leur entrelacement avec
la violence. Méthodologiquement, une expansion et des discussions plus approfondies sont recherchées
dans le champ socio-anthropologique de la théorie de la marche, et ainsi, elle se caractérise par une revue
de la littérature autour d'une herméneutique problématique dans laquelle nous ferons la confluence des
théories et des concepts. Avec cela, nous espérons établir une meilleure compréhension des dissidents
sexuels et de genre et des situations de vulnérabilité lors de leurs promenades dans les villes.
6
Elegemos a noção de dissidência sexual e de gênero ao invés de diversidade sexual e de gênero, como
tentativa de reiterar o caráter subversivo e de fugir das capturas políticas, masculinista e normalização
em torno do termo diversidade. De maneira semelhante, também não utilizamos o termo queer por este
não ter o mesmo teor político que representa nos países norte-americanos (COLLING, 2015).
7
Entendemos a caminhabilidade como uma prática social produzida que permite ou obstaculiza o direito
de caminhar, ou seja, de ir e vir na cidade, e sobretudo, de ocupar a via pública das ruas, e cuja
intervenção se aplica de diferentes formas nos corpos da cidade.
Desse modo, caminhar pelas ruas brasileiras envolve uma série de fatores, desde
os que vão do planejamento urbano e da infraestrutura, até os aspectos de ordem social
e cultural. Nesse sentido, realiza-se uma reflexão sobre a Teoria Geral da
Caminhabilidade, com base nas concepções do urbanista norte-americano Jeff Speck
(2016) e as questões de gênero no Brasil, principalmente no que tange a
interseccionalidade (GONZÁLEZ, 1984; LIMA, 2018; RIBEIRO, 2018), em especial
relacionado à violência urbana contra as pessoas e grupos dissidentes sexuais e de gênero
(TREVISAN, 2018; MELO, 2018; PRADO; MACHADO, 2012). Busca-se um processo
dialógico entre a teoria apresentada, e uma ampliação no campo socioantropológico,
uma vez que compreendemos que os/as dissidentes sexuais e de gênero encontram-se
em maior vulnerabilidade em suas caminhadas pelas/na cidades.
Temos como objetivo refletir sobre a caminhabilidade e seu entrelaçamento
com a violência urbana. Faz-se o uso de uma metodologia qualitativa com base em uma
revisão bibliográfica e de cunho hermenêutico (GAMSON, 2006; GIL, 2009).
Ressaltamos que o estudo se debulha a partir da Teoria Geral da Caminhabilidade
(SPECK, 2016), na qual se apresenta uma discussão geral, e como esta reflete uma
condição de caminhada segura no espaço urbano. Ademais, no presente estudo,
apresentamos sob o prisma interseccional uma discussão sobre as violências sofridas no
território por aqueles/as que não seguem os padrões estabelecidos para os gêneros e as
sexualidades construídas histórica e socialmente no Brasil. Por último, apresentamos as
considerações finais, pontuando algumas conclusões iniciais sobre o tema, bem como
indagações que podem ser alvo de novos estudos.
economicamente ativas.8 Desse modo, “[...] há mais coisas para encorajar as caminhadas
do que apenas criar espaços bonitos e seguros” (SPECK, 2016, p. 20).
As cidades e seus caminhantes são perpassados por múltiplas dinâmicas que
agenciam os modos como suas práticas e subjetividades são constituídas. E,
infelizmente, a violência, em aspecto difuso (BARREIRA, 2013) nos contextos urbanos
brasileiros, acaba acionando operações que colocam suas práticas e subjetividades numa
linha tênue de subalternidade, de criminalização e negação de si. Se partirmos numa
perspectiva interseccional, que veremos mais adiante, os processos de criminalização
afetam majoritariamente pessoas negras em espaços periféricos em condição de
vulnerabilidade social. Assim, buscaremos brevemente um diálogo transversal sobre
questões de gênero, frente a noção da interseccionalidade e da violência urbana,
especificamente a violência contra a população LGBTs.
Para Butler (2018), gênero é um dado normativo que exerce uma função
importante (ontológica) no enquadramento da humanidade. Desse modo, o gênero é
entendido como um ato performativo que produz e sustenta significados e relações de
poder-saber na sociedade moderna. Butler (2018), discorre que o gênero é constituído
por conjuntos de atos que dizem estar em conformidade com as normas sociais vigentes,
com a produção de sujeitos e subjetividades, àqueles(as) que se rebelam a esta norma,
subvertem o gênero e a heterossexualidade compulsória, tidas como “vidas abjetas”
(BUTLER, 2020). Nesse sentido, apresentamos a sexualidade como uma importante
tecnologia de controle (FOUCAULT, 1998) que historicamente e socialmente tem
sustentando as relações de poder-saber que colocam o feminino como subalternizado e
em condições de vida mais precarizadas (BUTLER, 2018; SPIVAK, 2010; FACCHINI;
CARMO; LIMA, 2020).
8
Destaca-se que a retenção de novas gerações, está correlacionado a saída de jovens norte-americanos de
suas cidades natais, em especial as do interior para os grandes centros urbanos. Pode-se apontar que
esse processo de (i)migração também se faz presente no Brasil.
científica são falsas, posto que essas matrizes de poder-saber silenciam, invisibilizam e
naturalizam as violências que pessoas fora de suposto universal sofrem (BARROS, et al.,
2019).
A discussão da universalidade é central para compreender as dinâmicas de
matabilidade para determinadas existências, posto que, havendo um sujeito universal,
mascarado como masculino mencionado anteriormente como branco, burguês e
eurocentrado, os sujeitos dissidentes estão à mercê da “necropolítica de gênero”
(SAGOT, 2013).
A noção de necropolítica de gênero, diz respeito, a produção discursiva e de
práticas indutoras de letalidade aos corpos femininos e marginalizados, sobretudo, a
construção de um regime de gestão e terror que produz uma “pena” de morte a
determinadas mulheres (SAGOT, 2013). Consoante Margareth Sagot, com base em
Achille Mbembe acerca do conceito de necropolítica e de Michel Foucault sobre
biopolítica, conseguimos traçar uma linha de compreensão para tratarmos de
necropolítica de gênero. Contudo, o contexto brasileiro, para além das práticas sexistas,
LGBTfóbicas e racistas, amplia-se tal noção teórica-analítica para pensar esse dispositivo
de morte em corpos feminizados de LGBTs, especificamente aqueles que se encontram
interseccionados ao racismo por estarem mais suscetíveis a necropolítica de gênero. Por
tanto, a compreensão da noção de feminizados, se constitui a todos àqueles que não
performatizam uma masculinidade hegemônica ou são fabricadas como pertencentes ao
“campo feminino”, ou seja, estas existências-corpóreas são atravessadas pelo feminino
ou pela feminilidade.
Desse modo, na tentativa de compreender as práticas de violência em torno da
população LGBTs, o Atlas da Violência em parceria com o Grupo Gay da Bahia e a
Associação Nacional de Travesti e Transsexuais (ANTRA), apresentam alguns
indicadores tomando como base o número de denúncias de lesão corporal, homicídios
e tentativa de homicídio. Com isso, destaca-se que o Brasil é um dos países que mais
mata LGBTs no mundo, tendo pico de 88% entre os anos de 2017 e 2018 (CERQUEIRA,
et al., 2020). De modo geral, o número de vidas interrompidas são alarmantes. Dados da
população geral, apenas no último Altas da Violência, apontam para 57.956 homicídios,
isso quer dizer uma taxa de 27,8 mortes por 100 mil habitantes (CERQUEIRA, et al.,
2020).
Pontua-se que o avanço neoconservador e neoliberal tem influenciando e
consequentemente aumentado o número de violências homofóbicas, lesbofóbicas,
bifóbicas e transfóbicas à essa comunidade, bem como valores neopentecostais (SILVA;
MIRANDA; SANTOS, 2020), entrelaçado as veias que estruturam o sistema “necro-
neoliberais” (VALENCIA, 2018), subsidiada por uma compreensão da necropolítica9
(MBEMBE, 2017) de matriz neocolonial no país. Tomamos aqui como exemplo as
eleições de 2018, vista como um marco do avanço neoconservador, neoliberal e
neofacista no Brasil, desde o início da campanha do atual presidente é notável o aumento
de violências LGBTfóbicas no país (BRASIL, 2019). As violências de gênero e a LGBTfóbia
nunca deixou de existir no Brasil, contudo, parece que uma tornou-se mais permissiva a
"chacotas", discriminação sexual e violências às alteridades após o representante
máximo do governo proferir palavras de ódio aos LGBTs, assim como também aos povos
originários, quilombolas e étnico-raciais e até mesmo aos nordestinos. A campanha
presidencial e tudo que esse governo representa é o fortalecimento da extrema direita,
do conservadorismo de base religiosa, sobretudo neopentecostal, e também de um
nacionalismo extremista e fascista. São vetores sócio-políticos que acionam a
necropolítica de gênero.
Os dados de mortalidade correlacionada pelo discurso de ódio põem em xeque
a escassez de indicadores da violência contra pessoas LGBTs, como também nos faz
pensar as dinâmicas da opressão difusa nos espaços urbanos de modo estrutural e
simbólica, assim deve-se partir uma análise histórica crítica (MARTÍN-BARÓ, 2017). Isto
é, a violência não pode ser investigada como um caso isolado ou tomado por uma análise
reducionista dos dados estatísticos. A partir de uma dimensão polifónica,
multidimensional e multifacetada, a violência difusa “[...] configura claramente o
incontrolável e o imponderável” (BARREIRA, 2013, p. 239). Com isso, destaca-se a
importância de estudá-la como um fenômeno complexo em um cenário mais amplo.
9
Com o avanço do neoliberalismo, segundo Mbembe (2017), o regime biopolítico se atualiza para a
necropolítica, em que não se trata mais de gerir como e quem deve viver, mas quem e como deve morrer
em larga escala. Trata-se do uso do poder pessoal e político de ditar quem e como determinadas pessoas
devem morrer.
Essa configuração atinge, em grande escala, grupos sociais que não se enquadram nas
vigências morais culturais e por conjunto de operação de poderes que regem o
patriarcado, o machismo, e o sexismo. Assim, se produz uma economia simbólica da
violência que intensifica o medo, tornando-se “[...] um sinal de alerta que previne as
pessoas acerca de perigos, mas é também um elemento propulsor de ansiedade e ações
irracionais” (BARREIRA, 2013, p. 233).
Quando vidas LGBTs são linchadas, decapitadas, carbonizadas, torturadas, a
exemplo, o caso de Dandara,10 não há comoção pública, mas um processo de
criminalização como personificação da abjeção dessas existências (NUNES, 2020). Além
do contexto político, os processos de exacerbação da violência urbana, numa
configuração difusa, têm corroborado para o avanço de violências contra pessoas LGBTs,
denunciando não somente a incapacidade estatal de proteger essas vidas, mas
negligenciando-as por não serem contabilizadas em análise de forma crítica. Há,
portanto, uma “[...] despreocupação do Estado brasileiro no que tange à mensuração e
incidência sobre o fenômeno da violência LGBTfóbica.” (CERQUEIRA, et al., 2020, p.
54), assim, inviabilizando a construção de políticas públicas de modo contextual,
intersetorial e interseccional.
Destaca-se que ao mesmo tempo que há humanização de corpos que devem ser
protegidos, há um processo de desumanização dos que são inteligíveis, logo
negligenciados pelo Estado. Trata-se, portanto, de uma condição social e politicamente
construída, em que determinados corpos estão em condições mais precárias que outros
devido às opressões simultâneas que atravessam suas vidas, sobretudo de pessoas
dissidentes de gênero. Nesse sentido, nem todas as vidas são passíveis de proteção
10
Dandara foi brutalmente filmada enquanto era torturada e assassinada em 2017, na cidade de Fortaleza,
no Ceará. Seu caso foi emblemático devido à brutalidade com que aconteceu, apesar dos movimentos
que lutam por direitos LGBTs viralizaram na internet, anos depois do crime, o que aconteceu segue
sendo qualificado como homicídio sem determinação transfóbica. Antes de alcançar essa visibilidade,
agentes de segurança pública se esquivavam do caso justificando que levantaria o antecedente criminal
de Dandara, de modo a justificar seu assassinato (MARTINELLI, 2019). Essa lógica criminalizante tem
sido corriqueira no Ceará em que “envolvidos/as”, categoria nativa que enquadra jovens como sujeitos
perigosos e atuantes no tráfico de drogas, personifica o/a inimigo/a à ser aniquilado/a e, desse modo,
sua morte não ser considerada importante (NUNES, 2020). Recentemente a Câmara Municipal de
Fortaleza aprovou um Projeto de Lei que denomina uma rua do bairro Bom Jardim de Dandara Ketley
como forma de memorizar a história e vida dela e também de conscientizar as pessoas e incentivar
políticas de proteção às pessoas LGBTs (G1 CE, 2020).
tocante de uma caminhabilidade “segura” na cidade, sobretudo, presente nos corpos que
maximizam os estereótipos do preconceito, da indiferença e de uma feminilidade
performativa (ORTON, 2017).
Não obstante, destacamos notícias veiculadas em jornais e sites de grande
repercussão nacional que exemplificam nossa discussão sobre o espaço público, a saber:
1) Casal gay é espancado com pá após abraço e alega homofobia: 'bichinhas';11 2) Travesti
Dandara foi apedrejada e morta a tiros no Ceará;12 3) Pai e filho são confundidos com
casal gay e agredidos por grupo em São João da Boa Vista, SP;13 4) Acusado de atropelar
e matar vendedor de tapiocas é condenado a medidas cautelares - Victor de Carvalho
Alves, que atropelou um motociclista enquanto tentava atingir uma travesti, em abril,
terá que usar tornozeleira eletrônica até o final do processo.14 Como pode se observar, o
espaço público não se apresenta como um lugar seguro para os dissidentes sexuais e de
gênero.
Corroborando com a reflexão de que a violência letal recrudesce a via pública
como não segura, Góis e Soliva (2017) aponta que somado a performatividade do corpo,
são comumente desencadeadores de ódio e intolerância expressões de afetos e
inconcordância com as posições individuais de mudança de sexo, na grande maioria das
queixas das vítimas. Esse enclausuramento das condições singulares das pessoas tende
a produzir o medo social e aspectos de constrangimento nas interações e relações
interpessoais, e que estão tão legitimadas nas violências físicas, psicológicas e morais.
Conforme Góis e Soliva (2017), “[...] a porta da boite [boate], a própria boite [boate],
assim como outros estabelecimentos comerciais, mesmo que de frequência
marcadamente gay, são locais em que o preconceito se expressa por meio de diferentes
formas de violência” (GÓIS; SOLIVA, 2017, p. 13).
11
Disponível em: http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2017/03/casal-gay-e-espancado-com-
pa-apos-abraco-e-alega-homofobia-bichinhas.html - Acesso em: 10. Mar. 2020.
12
Disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2017/03/apos-agressao-dandara-foi-morta-com-tiro-
diz-secretario-andre-costa.html - Acesso em: 10. Mar. 2020.
13
Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/pai-filho-sao-confundidos-com-casal-gay-agredidos-
por-grupo-em-sao-joao-da-boa-vista-sp-2714592 - Acesso em: 10. Mar. 2020.
14
Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/seguranca/online/acusado-de-
atropelar-e-matar-vendedor-de-tapiocas-e-condenado-a-medidas-cautelares-1.1774396 - Acesso em: 10.
Mar. 2020.
Considerações finais
À guisa de uma conclusão, buscamos com este texto não propor um fechamento
da temática ou de uma análise fatalista sobre a caminhabilidade dos corpos LGBTs.
Nossas análises apontam que a caminhabilidade segura dos corpos dissidentes de gênero
e sexualidade são recrudescidas pela violência urbana de gênero e de intolerância às
dissidências sexuais e de gênero. Isso implica dizer que a violência letal é intensa e, se
mostra ainda não representativa da população LGBTs no Brasil, uma vez que as políticas
públicas não possuem um monitoramento efetivo de dados com esse segmento
populacional ou mesmo políticas preventivas eficazes, e diversas vezes, os dados obtidos
partem de iniciativas não-governamentais e de movimentos sociais.
Referências
G1 CE. Rua de Fortaleza homenageia Dandara dos Santos e será a 1ª do Ceará com nome
de uma travesti. G1 CE. 2020. Disponível em:
<https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/12/09/rua-de-fortaleza-sera-a-primeira-
do-estado-a-ter-nome-de-travesti.ghtml> Acesso em: 12 dez. 2020.
JOAS, H.; KNÖBL, W. Teoria Sociais Feministas. In: Teoria Social: vinte lições
introdutórias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. p. 436-493.
MARTINELLI, A. Caso Dandara ainda espera respostas do poder público dois anos após
sua morte brutal. Huffpostbrasil, 16 fev. 2019. Acesso em: 25 dez. de 2019. Disponível
em: <https://www.huffpostbrasil.com/entry/dandara-dois-anos-travesti-
assassinato_br_5c67742ee4b01757c36bb716>.
PERES, M. C. C.; SOARES, S. F.; DIAS, M. C. Dossiê sobre lesbocídio no Brasil: de 2014
até 2017. Rio de Janeiro: Livros ilimitados. 2018.
RIBEIRO, D. Quem tem medo de feminismo negro? São Paulo: Companhia das
Letras, 2018.
SOLIVA, T. B. The street and fear:reflections on the violence experienced by Young gay
men in public spaces. Revista Latino-americana de Geografia e Gênero, v. 2, n. 1, p.
122-132, 2011.
Individualismo Moral e a
Sociologia Clássica
Raphael de Oliveira Soares1
RESUMO
A sociologia clássica, não obstante tenha, como uma de suas características principais, a pluralidade de
abordagens e de paradigmas, partilha, entre seus autores, de uma normatividade comum, isto é, de um
mesmo ideal de sociedade justa. Argumentaremos, ao longo do texto, que a partir de um individualismo
moral, tanto Marx, quanto Weber, Durkheim, Simmel e Tocqueville, fornecem, por diferentes vias, teorias
cujo objetivo se dirige a formulação de diretrizes práticas para o pleno desenvolvimento das capacidades
e liberdades individuais. O indivíduo universal, e não o grupo, é a meta. Portanto, a sociologia clássica faz
o diagnóstico das fontes de exploração e dominação que impedem o livre desenvolvimento da liberdade
humana. Nosso intuito, nesse texto, além da identificação e definição das bases normativas do
pensamento dos clássicos, será o de reconstruir os traços das circunstâncias apontadas por eles como
impeditivas à concretização do projeto do individualismo moral. Ao mesmo tempo, buscaremos ressaltar
a perene relevância do enfoque sociológico do individualismo moral nas análises contemporâneas sobre
o desenvolvimento humano, como o do economista Amartya Sen, centradas no enfoque dos pré-requisitos
sociais indispensáveis ao desempenho individual.
ABSTRACT
The Classical sociology, even though has, among its main traits, a plurality of approaches, shares,
nonetheless, a common normativity, a common perspective about what is a fair society. We argue,
throughout the text, that departing from an individualistic normativity, Marx, Weber, Durkheim, Simmel
and Tocqueville give us, by different ways, theories whose aim is to provide us practical knowledge on
how to free individual capacity from social constraints. The universal individual is the goal. Not the group.
Classical sociology, therefore, makes the diagnosis of the sources of exploitation and domination that
prevent the free development of human freedom. Our aim, in this text, besides identifying the common
normative ground that lies underneath the classical thoughts, is to reconstruct the social environments
identified by them as blocking the project of individualistic self-development. At the end, we shall argue
about the contemporality of the sociological approach on individualistic normativity in actual analysis on
human development, as that of Amartya Sen, which focus on the social prerequisites of individual
accomplishment.
1
Doutorando no programa de pós graduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte
Fluminense (UENF Darcy Ribeiro). E-mail: [email protected]
Introdução
meramente como meio para um outro fim. Assim, diz ele: “Os seres racionais... chamam-
se pessoas, porque a natureza deles os distingue como fins em si mesmos, isto é, como
algo que não deve ser utilizado meramente como meio, e por conseguinte impõe limites
a todo arbítrio” (KANT, 2002, p. 97). O filósofo alemão, portanto, argumenta que a
natureza humana se constitui como a suprema condição limitante a todos os outros fins
postulados por outros indivíduos ou pela ordem social.
A ideia kantiana do individualismo moral, portanto, da noção de justiça que tem
como fundamento a autonomia do indivíduo, sua igualdade como ser humano e a
liberdade de sua vontade para decidir quais os caminhos lhe são adequados, é o alicerce
a sustentar todas as diversas vertentes clássicas do pensamento sociológico. Mesmo em
teorias macrossociológicas, pautadas em compreensões positivistas das ciências
humanas, aderem a esse paradigma normativo. Anthony Giddens (1998, p. 147),
dissertando sobre esse aspecto ambivalente da obra de Durkheim, argumenta que tem
como intuito “...conectar sua discussão analítica (e sua rejeição) do individualismo como
abordagem metodológica para a teoria social com sua concepção desenvolvimentista da
emergência do individualismo como moralidade nascida do crescimento da divisão do
trabalho diferenciada.” A argumentação durkheimiana, em Da divisão do trabalho social
(2010), parte da ideia de que a transição das sociedades tradicionais, segmentares, para
as sociedades modernas, orgânicas, é um processo concomitante à individualização, de
modo que a especialização do indivíduo de acordo com seus talentos e capacidades é o
que deverá definir o lugar que cada um ocupará na sociedade, sobretudo na estrutura
ocupacional.
Karl Marx, no mesmo sentido, em sua crítica a sociedade burguesa, a classifica
como o último estágio da pré-história do Homem, isso é, a última sociedade estratificada
antes que os indivíduos se tornassem livres para se autodeterminar e fazer, de fato,
através de sua práxis, a História, e não serem meros objetos passivos dos imperativos da
natureza e de estratos dominantes da sociedade. A existência das classes circunscreveria
o limite real da liberdade do indivíduo, limitando o espaço de ação e as oportunidades
abertas ao que cada um pode ou não alcançar. Segundo Marcuse (2004, p. 245), em
Razão e Revolução, “O indivíduo é a meta. Esta tendência ‘individualistica’ é uma
característica fundamental da filosofia marxista.”
Para nós, modernos, a crítica nos parece estranha, tendo em vista que a
autonomia do indivíduo, sua capacidade de agência para decidir sobre o caminho que
lhe é mais adequado, é um dos pilares normativos de nossas sociedades. As liberdades
de ação, de escolha e de pensamento, são fundamentais em nossas sociedades
contemporâneas, centradas nos pressupostos morais do individualismo filosófico, em
contraposição às cosmovisões antiga e medieval, cuja compreensão orgânica da
sociedade estabelece a priori a posição que cabe a cada categoria de indivíduos. No
mundo antigo, a autonomia subjetiva é sempre limitada. O que é possível ao ser humano
está fixado pela ordem cósmica que define o lugar a ele reservado. A sociedade é vista
como um elemento integrante do mundo natural circundante.
Na ordem feudal, a sociedade estruturava-se em torno de uma ética paternalista
cristã, de modo que a sociedade se equiparava a uma família, com relações recíprocas de
obrigatoriedade entre seus diversos elementos desiguais (HUNT e SHERMAN, 2013).
Segundo Tocqueville (1987, p. 387), “A aristocracia fizera de todos os cidadãos uma longa
cadeia que ia do campônio ao rei; a democracia rompe a cadeia e põe cada elo à parte.”
A nobreza e o clero, nesse contexto, constituíam as duas vertentes da classe dominante,
que, no entanto, possuíam um amplo leque de obrigações para com a manutenção dos
servos sob os seus domínios. Karl Polanyi, em seu clássico A grande transformação
(2000), nos mostra todas as regulações tradicionais, que normatizavam a utilização do
trabalho e da terra, e que tiveram que ser rompidas pelo Estado absolutista para que a
força de trabalho humana pudesse ser transformada em mercadoria, isso é, para que o
indivíduo se desprendesse de todas as relações de dependência que o prendiam a terra
e às relações de vassalagem.
O processo de cercamento dos campos, nesse sentido, aparece na história
inglesa como o início da ruptura com o modo de produção feudal. A revolução agrícola
precedeu a revolução industrial. Ao transformar as terras que eram de uso comum em
pastagens, os lordes e nobres, aburguesando-se, abalaram profundamente os alicerces
daquela ordem social, assentada no campesinato e na ligação umbilical que havia até
então entre o homem e o campo. O mesmo se passava nas cidades, sob o domínio das
guildas, que dominavam o acesso às profissões artesanais e aos mercados urbanos. As
corporações dos ofícios urbanos absorviam por completo os indivíduos, não apenas
como associações de indivíduos buscando vantagens econômicas, mas sim como fato
social total. De acordo com Simmel (2014, p. 24):
Para Robert Nisbet (2009) as antigas relações entre grupos de homens e parcelas
de terra, entre comunidades organizadas e unidades territoriais, constituíam o
fundamental da história política desde tempos imemoriais. A modernidade, assentada
no Estado moderno e no capitalismo, não só provocou devastadores efeitos de
desenraizamento, culminando na expulsão em massa dos camponeses de terras
habitadas desde antanho, como já exposto, como erodiu as bases da estrutura patriarcal
2
Segundo Nisbet (2009, p. 74), foi “…la unión de las fuerzas legislativas y económicas que trabajaban por
la destruición de grupos y asociaciones nacidos en la edad media”.
[...] a divisão do trabalho progride tanto mais quanto mais houver indivíduos
suficientemente em contato para poderem agir e reagir uns em relação aos
outros. Se conviermos em chamar de densidade dinâmica ou moral essa
aproximação e o intercambio ativo que dele resulta, poderemos dizer que os
progressos da divisão do trabalho são diretamente proporcionais à densidade
moral ou dinâmica da sociedade (DURKHEIM, 2010, p. 252).
[...] eis a prova de que a maioria de nossos males é obra nossa e de que os
teríamos evitado quase todos conservando a maneira de viver simples, uniforme
e solitária que nos era prescrita pela natureza. Se ela nos destinou a sermos sãos,
quase ouso assegurar que o estado de reflexão é um estado contrário à natureza
e que o homem que medita é um animal depravado (ROUSSEAU, 2005, p. 169).
Para Tocqueville, como grande pensador liberal que foi, a ameaça à liberdade
que a igualdade poderia constituir sempre esteve no centro de suas indagações. Como
dito, a destruição dos mecanismos tradicionais de moderação do poder central, como
eram os estamentos feudais e as corporações de ofício, por exemplo, propiciaram uma
hipertrofia e centralização do poder, mediados por mecanismos burocráticos de
organização, jamais antes atingido pelos estados pré-modernos. O poder social se
3
“Só no século XVIII, na ‘sociedade burguesa’, as diferentes formas do conjunto social passaram a
apresentar-se ao indivíduo como um simples meio de realizar seus objetivos particulares, como uma
necessidade exterior. Mas a época que dá origem a este ponto de vista, o do indivíduo isolado, é
precisamente aquela em que as relações sociais atingiram o seu máximo de desenvolvimento. O homem
é, no sentido mais literal, um dzoon politikhon, não só um animal sociável, mas uma animal que só em
sociedade pode isolar-se” (MARX, 2011, p. 226).
formas de organização social que possam libertar os indivíduos das fontes de exploração
e dominação que os impedem de auto realizar-se.
A ambivalência da sociedade descrita nos clássicos é resgatada,
contemporaneamente, por linhas teóricas que enfatizam o indispensável suporte
fornecido pela sociedade à realização das liberdades individuais. Marx e Engels, na
Ideologia Alemã (2007, p. 92), nos ensinam que “[...] é somente na comunidade que cada
indivíduo possui os meios de desenvolver suas faculdades em todos os sentidos; é
somente na comunidade que a liberdade pessoal é possível.” Amartya Sen (2010), Nobel
de economia, é um dos proponentes contemporâneos dessa acepção de justiça que
reconhece, na liberdade individual, o fundamento do bem-estar social e do
desenvolvimento das nações. De acordo com suas palavras: “[...] temos de considerar a
liberdade individual um comprometimento social” (SEN, 2010, p. 10).
O foco que o economista indiano concentra nas capacidades (capabilities)
abrange, principalmente, a pluralidade de instituições que são necessárias para a
realização das capacidades individuais. Nem a supressão de liberdades políticas e civis,
em proveito do desenvolvimento econômico, nos parece mais adequado, nem,
tampouco, a garantia de liberdades abstratas, sem levar em devida conta a infraestrutura
de serviços públicos com a qual os indivíduos contam para promover seu próprio
desenvolvimento. Assim:
dadas pelos sistemas políticos nacionais para as incertezas que dominam atualidade, o
olhar sobre o indivíduo enquanto tal, suas capacidades e suas responsabilidades, pode
ser um antidoto contra a procura por “salvadores da pátria”, proponentes de soluções
radicais e supostamente miraculosas. A moralidade do indivíduo é o resgate da força do
homem simples, de sua capacidade de decidir e de agir sobre o mundo com o qual se
defronta, abrindo possibilidades para formas menos violentas e excludentes de vida
social. É a negação das “respostas vindas de cima”. Como nos recorda Amartya Sen (2010,
p. 361), “[...] o argumento do apoio social para expandir a liberdade das pessoas pode ser
considerado um argumento em favor da responsabilidade individual, e não contra ela.”
Conclusão
Referências
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2010.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro 1. 20.ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
_____; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
SANDEL, Michael. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro, 10ª edição,
civilização brasileira, 2013.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, Companhia das letras,
2010.
_____. O dinheiro na cultura moderna. In: SOUZA, Jesse e OELZE, Berthold. Simmel e
a modernidade. Brasília, editora universidade de Brasília, 2ªed., 2014.
_____. O conceito e a tragédia da cultura. In: SOUZA, Jesse e OELZE, Berthold. Simmel
e a modernidade. Brasília, editora universidade de Brasília, 2ªed., 2014.
RESUMO
O ano de 1968 foi um marco para o mundo, o momento era de contestação sobre a ordem vigente. O
movimento iniciado neste ano se estendeu para vários países, constituindo-se como um dos mais
importantes do século XX. O Brasil também não se isolou do contexto mundial, embora estivesse em um
regime militar. O presente trabalho, por meio de pesquisa bibliográfica e documental, tem como
objetivo realizar uma reflexão, fundamentada na perspectiva da memória e esquecimento (CARDOSO,
1999; 2001) e do conceito de “justa memória” de Paul Ricouer (2007), sobre a necessidade de manter
presente a rememoração do que representou o ano de 1968, principalmente no Brasil. Para tanto,
daremos ênfase à invasão da Universidade de Brasília, ocorrida em agosto deste ano, partindo da
hipótese de Valle (2018), de que a partir deste episódio é concretizado o fechamento do regime por meio
do Ato Institucional 5.
Struggle and resistance: the importance of keeping the memory of 1968 alive
ABSTRACT
The year of 1968 was a milestone for the world, the moment was of contestation on the prevailing order.
The movement started this year extended to several countries, constituting itself as one of the most
important of the twentieth century. Brazil was not isolated from the world context, although it was in a
military regime. The present work aims to build a reflection, based on the perspective of memory and
forgetfulness (CARDOSO, 1999, 2001) and the concept of "just memory" by Paul Ricouer (2007) on the
need to keep the memory of what represented the year of 1968, mainly in Brazil. In order to do so, we
will emphasize the invasion of the University of Brasilia, which occurred in August 1968, starting from
the hypothesis of Valle (2018), that from this episode the closing of the regime through the Institutional
Act 5 was accomplished.
O ano de 1968 foi marcado por vários acontecimentos, que não se restringiram a um
local específico. Havia movimentos de protestos e contestação da ordem vigente em
vários países, tais como França, Alemanha, Japão, Bélgica, Espanha, Egito, Estados
1
Doutoranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Faculdade de
Ciências e Letras – Unesp Araraquara. Mestra em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em
Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Arte e Comunicação- Unesp Bauru. Bacharel-licenciada
em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências e Letras – Unesp Araraquara. Bolsista da Capes.
Contato: [email protected].
2
Entre os países pode-se destacar principalmente os países do cone sul: Brasil, Paraguai, Argentina,
Bolívia e Peru.
É uma grande diversidade, mas mesmo assim há uma grande unidade dentro
dele. Creio que essa unidade se deve ao fato de que 1968, em todos os países,
combina três grandes aspirações, realiza três grandes avanços: a primeira é
uma grande aspiração democrática e libertária. O movimento de 1968 é
dirigido contra todas as formas autoritárias de poder, em todas as instituições:
na escola e na universidade, é claro, mas também na família, no casamento,
nas empresas, em todas as organizações e, evidentemente, na sociedade
política. É a rejeição de toda forma de poder legítimo do que for baseado no
consentimento dos indivíduos, seja porque eles reconheçam o poder como
competente, seja porque eles mesmos o designaram mediante eleições. É a
aspiração ao direito de participação para todos igualmente, à tomada de
decisões. Essa é a grande aspiração de maio de 1968, grande avanço
democrático (WEBER, 1999, p. 22).
O Brasil, desde 1964, vivia sob uma ditadura militar que, no seu início, contou
com amplo apoio tanto da classe dominante quanto da classe média. Num primeiro
momento, a ditadura assumia um caráter provisório, necessária apenas para livrar o
Brasil do “perigo” comunista. No entanto, com o passar do tempo, sua face permanente
fica evidente, pois a repressão passa a atuar de forma mais violenta, tendo o seu ápice
no Ato Institucional de número 5 decretado pelo governo no final de 1968. Os
episódios que antecederam esse ato aconteceram no decorrer desse ano. Com a
explosão dos movimentos estudantis, instaurou-se um clima de ruptura e
combatividade, marcado por cenas de violência e repressão, tornando a resistência
mais latente e necessária.
Nacionalmente, o início de 1968 foi marcado por manifestações de estudantes,
que reivindicavam ensino público e gratuito para todos, a democratização do ensino
superior e a melhora na sua qualidade, bem como o aumento na participação dos
estudantes nas decisões e mais verbas para as pesquisas. Embora a pauta estivesse
voltada para melhorias educacionais, os estudantes também contestavam a ditadura
implantada e a restrição das liberdades. Vale a pena contextualizar que, no ano de
1967, os estudantes se mostraram extremamente insatisfeitos com a Política
Educacional do Governo, cujas diretrizes ficariam mais claras no ano seguinte. Entre os
objetos de críticas realizadas pelos estudantes estão os acordos MEC-USAID3, estes
sofreram forte oposição do movimento estudantil, que se colocou contra as políticas de
cunho imperialista na educação e a intervenção do governo americano no Brasil, pois
sua influência colocava em risco o ensino público e gratuito. Assim, ficou latente a
tensão entre governo e os estudantes, estes foram colocados no âmbito da segurança e
os seus problemas tratados como questão militar.
Em 28 de março de 1968, no restaurante estudantil Calabouço, no Rio de
Janeiro, ocorreu a morte do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto. O
restaurante foi invadido pela polícia para reprimir os estudantes que exigiam melhorias
em sua estrutura e a ampliação de vagas nas universidades. Este foi um dos primeiros
casos, marcando a passagem do movimento estudantil ao enfrentamento (VALLE,
2008). Diversos estudantes ficaram feridos, o assassinato de Edson Luís gerou comoção
por todo Brasil, várias passeatas aconteceram e milhares de pessoas compareceram ao
seu enterro.
3
Firmados entre o Ministério da Educação e Cultura e a United Status Agency for International
Development, tinham como objetivo reestruturar o ensino superior no país através do enfoque na
formação técnica e estimulando a privatização do ensino.
de São Paulo. Todos os que estavam presentes foram presos, ou seja, mais ou menos
700 universitários e os líderes do movimento. Embora os líderes estivessem presos,
ocorreram manifestações do movimento estudantil em diversos estados.
4
Serviço Nacional de Informação.
5
Honestino Guimarães ingressou na UnB em 1965, com 17 anos, e foi o primeiro lugar geral do
vestibular. Foi uma liderança estudantil importante, sendo presidente do Diretório Acadêmico de
Geologia, vice-presidente da Federação dos estudantes da Universidade de Brasília (FEUB) em 1966, foi
eleito presidente da FEUB em 1967 durante uma de suas prisões, mesmo sem ter se candidatado. No
decorrer da ditadura, foi perseguido e indiciado várias vezes, sendo preso no dia 29/08/1968.
Honestino, após passar vários anos na clandestinidade, foi preso pela última vez em outubro de 1973,
estando desaparecido desde então.
Mais uma vez notamos a tentativa da “linha dura” de criar “fatos políticos”
buscando inverter a sua autoria. Tanto que, em nota oficial, a Polícia Federal
justifica a invasão com o fato de autoridades da universidade, até mesmo o
reitor Caio Benjamin Dias, estarem cedendo salas para reuniões de “caráter
altamente subversivo”. Os conflitos ocorrem, segundo esta fonte, em virtude
do fato de os agentes federais ser recebidos com pedras e outros objetos
lançados pela “turma de segurança” dos estudantes e ser alvos de disparos de
“armas de fogo”. Por outro lado, a infiltração de agentes do DOPS incitando
estudantes à violência a fim de ter um pretexto para que a repressão policial
seja intensificada, segundo depoimento de vários professores presentes no
campus, confirma também nossa hipótese (VALLE, 2008, p. 171).
O decorrer deste fato gera uma crise entre o poder Executivo e o Congresso,
pois alguns parlamentares fazem discursos inflamados contra o governo e são
convocados a depor na polícia. Em protesto, o MDB se retira da CPI da Universidade
de Brasília, que acaba sendo arquivada.
O episódio da invasão da UnB deixa evidente a postura do governo, no qual os
militares radicais passavam a agir abertamente; aqueles que não faziam parte dessa ala
e, porventura, criticaram a invasão foram punidos, demonstrando explicitamente a
disposição das forças armadas para a escalada repressiva (VALLE, 2018). Para Ventura
(1988), ao longo dos anos, foram armazenados indícios de que nesta altura as forças
radicais não deixariam de utilizar medidas de exceção e a própria invasão à
Universidade de Brasília estava dentro desse plano que geraria um impasse cuja
solução seria o endurecimento. Este foi concretizado no Ato Institucional n°5 de 13
dezembro de 1968, marcando o início da fase mais sangrenta da ditadura. Assim, saem
de cena os “anos rebeldes” para a entrada dos “anos de chumbo” (RIDENTI, 1999).
Assim, memória deixa de ter um caráter individual, visto que uma lembrança
não pode coexistir isolada de um grupo social. Para que ela ocorra é necessária a
existência de uma comunidade afetiva, portanto, uma lembrança individual está
baseada nas lembranças dos grupos que os indivíduos estão inseridos.
De acordo com Le Goff (2013), os fenômenos da memória, considerando
aspectos biológicos e psicológicos, são resultados dos sistemas dinâmicos de
organizações e existem na medida em que a organização os mantém ou os reconstitui.
Ainda, para este autor as perturbações da memória devem ser esclarecidas também à
luz das ciências sociais.
Por outro lado, num nível metafórico, mas significativo, a amnésia é não só
uma perturbação no indivíduo, que envolve perturbações mais ou menos
graves da presença da personalidade, mas também a falta ou a perda,
voluntária ou involuntária, da memória coletiva nos povos e nas nações, que
pode determinar perturbações graves da identidade coletiva (LE GOFF, 2013,
p.389).
De acordo com Ventura (1999), deve-se ter cautela ao olhar para o passado.
Num país como o Brasil, que ainda possui muitos fatos obscuros, principalmente
A memória como ideia de justiça deve ser problematizada, pois, pode ocorrer
um abuso da manipulação, transformando a memória em um projeto. Para o autor, é
necessário desvencilhar o dever da memória de seu abuso, para que esta tenha um uso
consciente e adequado. Deve-se ter em questão que lembrar e esquecer não são atos
involuntários, mas estão condicionados aos usos que se faz no presente, os quais
podem apagar, reforçar ou até suprimir um passado a partir de interesses particulares.
Segundo Lucília Delgado (2006) não há uma neutralidade em qualquer forma
de abordagem do passado. Para esta autora, a expressão da memória, através da
recordação não se constitui num processo linear e contínuo, possui marcas de tensão e
é caracterizada por diferentes manifestações. Na sua perspectiva, o lastro da memória
coletiva é fundamento não só da história da humanidade, mas também das histórias
específicas (nacionais, étnicas e educacionais). Nesse sentido, “transcende o intervalo
da existência individual e possibilita ao ser social reviver e redimensionar significados e
experiências” (DELGADO, 2006, p.61).
Considerações finais
ataques aos direitos dos trabalhadores, minorias, meio ambiente – a partir da proposta
de flexibilização das leis ambientais –, a ampliação do conservadorismo, a
desqualificação de professores e a repetição de ataques às universidades públicas, sob a
alegação de que são antros da ideologia e doutrinação de esquerda, são a tônica de um
governo que afirma representar o novo na política e que, por isso, colocaria fim ao viés
ideológico disseminado anteriormente.
Neste cenário obscuro, lembrar 1968 é dar continuidade às reivindicações que
pautaram o movimento estudantil, rememorar que é possível contestar a dominação
existente, aprofundando a democracia, garantindo as liberdades; é compreender que os
protestos e as manifestações são legítimos e demonstram a força que uma articulação
pode assumir; é também não se submeter e reivindicar sempre que for necessário.
Portanto, diante todos os acontecimentos atuais, a luta e a resistência expressas no ano
de 1968 devem estar presentes na memória coletiva, não se pode reeditá-lo, mas a
atualidade de suas reivindicações ainda permanece.
Referências
CARDOSO, I. Há uma herança de 1968 no Brasil? In: GARCIA, Marco Aurélio; VIEIRA,
Maria Alice (orgs.). Rebeldes e Contestadores – 1968 Brasil, França, Alemanha. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,1999. p.135-142.
CARDOSO, I. Para uma Crítica do Presente. São Paulo: Editora 34, 2001.
GARCIA, M. A. Em busca de 1968. In: GARCIA, Marco Aurélio; VIEIRA, Maria Alice
(orgs.). Rebeldes e Contestadores – 1968 Brasil, França, Alemanha. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 1999. p. 7-17.
LE GOFF, J. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão [et al]. 7° edição revista –
Campinas, SP: Editora Unicamp, 2013.
VENTURA, Z. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
_____. A nostalgia do não vivido. In: GARCIA, Marco Aurélio; VIEIRA, Maria Alice
(orgs.). Rebeldes e Contestadores – 1968 Brasil, França, Alemanha. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 1999. p.129-134.
WEBER, H. Um balanço de 1968. In: GARCIA, Marco Aurélio e VIEIRA, Maria Alice
(orgs.). Rebeldes e Contestadores – 1968 Brasil, França, Alemanha. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 1999. p. 21-26.
RESUMO
Este artigo analisa qual é a opinião de parte dos estudantes que ingressaram na Universidade Federal do
Paraná em 2018 sobre a situação da democracia no Brasil, assim como os posicionamentos do referido
alunato sobre temas que geram controvérsias no debate público nacional, a saber, a descriminalização do
aborto, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo e a proibição do comércio de armas de fogo e
munição no país. Busca-se responder as seguintes indagações: (1) De que maneira os novos estudantes da
UFPR avaliam a atual situação da democracia no Brasil? (2) Como os novos discentes se posicionam diante
temas controversos? (3) Em que medida as posições assumidas pelos discentes estão relacionadas com
variáveis individuais? Com base em 474 entrevistas empreendidas junto aos estudantes e fazendo uso de
estatística descritiva e bivariada, percebe-se uma avaliação negativa dos discentes sobre a situação do
regime democrático brasileiro. Em se tratando dos temas controversos, o alunato se
mostra majoritariamente favorável a todas as proposições. Defende-se que estudos que enfatizam o
comportamento da população jovem oferecem relevantes indícios sobre o futuro da democracia e das
condições de vida em sociedade.
Youth, Social Values and Democracy: the case of students at the Federal
University of Paraná
ABSTRACT
This article analyzes the opinion of the freshmen of 2018 from the Federal University of Paraná (UFPR)
about the situation of democracy in Brazil, and their positions related to issues that generate controversies
in the national public debate, such as the decriminalization of abortion, the adoption of children by
homosexuals and the prohibition of trade in firearms and ammunition in the country. The focus is on
answer the following questions: (1) How do new students at UFPR assess the current situation of
democracy in Brazil? (2) How do they position themselves in front of controversial issues? (3) To what
extent are students’ positions related to individual variables? Based on 474 interviews analyzed with
descriptive and bivariate statistics, it was perceived a negative evaluation by the students about the
situation of the Brazilian democratic regime. In the case of controversial topics, the student body was
mostly favorable to the proposals. It is advocated that investigations that focus on youth population
behavior can offer relevant evidence about the future of democracy and the living conditions of different
sectors of society.
1
Este artigo é um recorte da monografia do autor, apresentada em 2019 na Universidade Federal do Paraná.
Agradeço os comentários feitos ao trabalho pelo Prof. Dr. Francisco Paulo Jamil Marques e pelos
pesquisadores Andressa Kniess e Fellipe Herman.
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, Brasil. Bolsista Capes. E-mail: <[email protected]>.
Introdução
3
A amostra que fundamenta este artigo se refere a indivíduos que, em média, possuem 21 anos.
Além disso, nos dias atuais, as instituições públicas de ensino superior são as
principais responsáveis pela produção de conhecimento no país4, elencando, dentre suas
diretrizes e princípios, a necessidade de promover atividades de ensino, pesquisa e
extensão que se relacionem com vários campos da produção científica e em sintonia com
os interesses da sociedade. Tais atividades promovidas por essas instituições as colocam
em uma posição de destaque na esfera pública, sobretudo por atuarem enquanto um
espaço fundamental ao debate sobre temas relevantes que permeiam as reflexões de
diferentes grupos sociais. Em razão disso, elaborar análises levando em consideração os
jovens universitários que compõem tais organizações consiste em uma atividade
essencial.
Segundo dados de 2016 do INEP5 relativos ao perfil dos ingressantes em cursos
do ensino superior no Brasil, mais da metade dos novos estudantes são jovens com 24
anos ou menos – cerca de quatro milhões de indivíduos, sendo que, destes, mais de um
milhão são de calouros de universidades públicas. Logo, o estudo de caso sobre a
juventude universitária vinculada à UFPR pode ser uma importante fonte de
informações, ainda mais quando se leva em conta a posição desta entidade entre as
maiores e melhores instituições de ensino do país6.
Vale salientar, por fim, que o público alvo da presente pesquisa se concentra no
estrato da juventude brasileira pertencente a camadas mais privilegiadas da população.
Afinal, apenas 18% dos jovens em idade universitária hoje, no Brasil, de fato, estão em
uma universidade7. Mesmo assim, a investigação sobre tal grupo se mostra relevante por
contemplar uma parcela da sociedade associada às instituições responsáveis pela maior
parte da produção de conhecimento científico no Brasil. Ou seja, compreender a forma
como esses indivíduos se posicionam frente a temas como os elencados nesta
investigação se trata de uma atividade pertinente porque são justamente eles que
potencialmente se dedicarão a produzir conhecimento e a debater tais assuntos, dado o
4
Disponível em: <https://jornal.usp.br/ciencias/fabricas-de-conhecimento/>. Acesso em: 26 out. de 2020.
5
Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/web/guest/sinopses-estatisticas-da-educacao-superior>.
Acesso em: 26 out. de 2020.
6
Disponível em: <https://ruf.folha.uol.com.br/2019/ranking-de-universidades/principal/>. Acesso em: 26
out. de 2020.
7
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2018/09/ensino-superior-volta-a-crescer-no-
pais-mas-so-na-modalidade-a-distancia.shtml>. Acesso em: 26 out. de 2020
contexto intelectual no qual estão inseridos. Não obstante, a presente proposta está
alinhada a estudos que acentuam o papel da universidade enquanto espaço institucional
para o desenvolvimento político (COSTA et al., 1994) e a trabalhos interessados em
investigar os sistemas de valores e de participação política entre jovens universitários
(SPOSITO; TARÁBOLA, 2016; PEREIRA; TORRES; BARROS, 2004).
Portanto, a presente pesquisa busca se inserir nesse campo de investigações, em
um esforço para contribuir não somente para o melhor entendimento das dinâmicas e
práticas por trás dos valores e hábitos que circundam o regime democrático, mas
também oferecendo informações sobre um importante segmento social para o
aperfeiçoamento e consolidação das instituições e valores democráticos no país: a
juventude.
Estratégias metodológicas
Métodos de coleta
8
A Pólis – Empresa Júnior de Consultoria Política é a EJ do curso de Ciências Sociais da UFPR. Seus
trabalhos abrangem desde a realização de sondagens de opinião até o desenvolvimento de pesquisas de
cunho puramente qualitativo. O autor é grato à empresa pela disponibilização dos dados que
fundamentam a presente pesquisa. Para mais, ver: <https://www.facebook.com/polisufpr>.
Os dois setores elencados acima estão entre as áreas que mais ofereceram vagas
no vestibular 2017/2018 da universidade em questão10. Aliás, avaliar a percepção dos
discentes assim que entram na universidade pode ser uma maneira de contornar
eventuais efeitos que a experiência universitária pode exercer sobre o alunato,
permitindo a futuros estudos a realização de comparações entre os momentos de início
e final desta trajetória. Pode-se considerar, ademais, que a presente pesquisa se aproxima
de um quase-experimento, podendo ensejar futuras investigações com o público jovem,
semelhantemente a outros trabalhos nessa seara (FUKS; CASALESCCHI, 2016). Por fim,
tratando-se da relevância do ano de 2018, ressalte-se o fato de ter sido um ano eleitoral,
o que implica crescimento e acirramento das discussões e disputas entre variados grupos
9
No caso específico do curso de Estatística, os estudantes foram instruídos por dois integrantes da
empresa a responderem às perguntas diretamente no questionário.
10
Disponível em: <http://portal.nc.ufpr.br/documentos/ps2018/editais/Guia%20do%20Candidato.pdf>.
Acesso em: 26 out. de 2020.
Métodos de análise
A avaliação dos dados foi desenvolvida com o auxílio do software SPSS, utilizado
para a realização das análises descritivas e bivariadas (CERVI, 2019; FIELD, 2009). As
variáveis dependentes do estudo são representadas pelas seguintes perguntas do
questionário:
1) Considerando uma escala de 1 a 10, pedimos para que você avalie o quão democrático é
o Brasil, tendo em mente que o 1 quer dizer “não democrático” e 10 quer dizer “totalmente
democrático”;
2) Qual a sua opinião acerca da descriminalização do aborto? (1=a favor | 2=contra);
3) Qual o seu posicionamento sobre a adoção de crianças por casais homoafetivos? (1=a
favor | 2=contra);
4) Em sua opinião, o comércio de arma de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?
(1=sim, deve ser proibido | 2=não deve ser proibido).
11
Mais informações sobre o questionário e sobre resultados adicionais do estudo podem ser encontradas
no link a seguir: <http://www.ponte.ufpr.br/dados/monodemocraciaevalores/>.
Variável Codificação
Escolaridade da mãe 0=sem ensino superior | 1=com ensino
superior
Escolaridade do pai 0=sem ensino superior | 1=com ensino
superior
Renda Ordinal, indo de até 1 salário mínimo (1) até
Mais de 15 salários mínimos (7)12
Sexo 0=feminino | 1=masculino
Tipo de escola em que cursou o ensino 0=maior parte ou integralmente particular |
médio 1=maior parte ou integralmente pública
Posicionamento ideológico Escala de 7 pontos, indo da extrema-
esquerda (1) a extrema direita (7)
Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados coletados pela Pólis (2018).
Resultados
12
O salário mínimo, à época, era de R$954,00.
36,11
33,12
20,73
10,04
GRÁFICO 2 – Posição dos discentes sobre aborto, adoção por casais homossexuais e
proibição do comércio de armas de fogo (%)
Contra A favor
13
Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/09/estados-tem-protestos-contra-michel-
temer-no-7-de-setembro.html>. Acesso em: 26 out. de 2020.
14
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/metade-das-mulheres-mortas-em-2016-foram-
vitimas-de-armas-de-fogo-23374188>. Acesso em: 26 de jun. 2020.
15
Tal afirmação, para ser de fato generalizável, requer estudos mais amplos. Todavia, oferece indicativo
importante para futuras investigações sobre os valores de jovens universitários.
Referências
ALMOND, Gabriel A.; VERBA, Sidney. The civic culture: political attitudes and
democracy in five nations. Newbury Park: SAGE Publications, 1989.
COSTA, Joseli B; TORRES, Ana R. R.; BURITY, Marta H. L.; CAMINO, Leôncio.
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DAHL, Robert A. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Editora da USP, 2015.
FIELD, Andy. Descobrindo a estatística usando o SPSS. Porto Alegre: Artmed, 2009.
HOOGHE, Marc. Political socialization and the future of politics. Acta Politica, v. 39,
n. 4, 2004, p. 331–341.
NORRIS, Pippa. October 1-2, 2004. Young People & Political Activism: From the
Politics of Loyalties to the Politics of Choice? Paper for the conference ‘Civic
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OLIVEIRA, Renata A.; AYRES, Carla S.; HANSEN, Jaqueline R.; BORBA, Julian. Política
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PEREIRA, Cícero; TORRES, Ana, R. R.; BARROS, Thaís S. Sistema de valores e atitudes
democráticas de estudantes universitários. Psicologia: teoria e pesquisa, v. 20, n. 1,
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RUSSO, Guilherme A.; AZZI, Roberta Gurgel; FAVERI, Charlene. Confiança nas
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brasileira. Opinião Pública, v. 24, n. 2, 2018, p. 365-404.
SLOAM, James. Diversity and voice: The political participation of young people in the
European Union. The British Journal of Politics and International Relations, v. 18
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WAISELFISZ, Julio J. Mapa da violência 2016: Homicídios por armas de fogo no Brasil.
[S.l.]: Flacso, 2016.
YUEN, Celeste Y. M. Perceptions of Social Justice Among the South Asian and
Mainstream Chinese Youth from Diverse Cultural Backgrounds in Hong Kong. Peabody
Journal of Education, v. 93, n. 3, 2018, p. 1-13.
RESUMO
Este artigo oferece uma reavaliação crítica do processo de elaboração de O fantasista e o flagelo: sentidos
de si e de África para Günther Theodor Tessmann (1884-1969), uma monografia de graduação que se
debruça sobre a trajetória de vida de um etnólogo alemão. Por uma perspectiva de bastidores, a abordagem
da análise se dará em primeira pessoa, tratando a fundo as vias sinuosas que originam certas escolhas
metodológicas, interrogando seus fundamentos subjetivos e suas consequências objetivas para a artesania
de um texto que se apresenta como uma contribuição para o campo das ciências sociais.
ABSTRACT
This article provides a critical revaluation of the elaboration process of O fantasista e o flagelo: sentidos de
si e de África para Günther Theodor Tessmann (1884-1969), a graduation monograph which sets out to
study the lifepath of a German ethnologist. From an insider’s point of view, the analysis’ first-person
approach will cover in depth the winding paths at the origin of certain methodological choices,
questioning their subjective foundations and their objective consequences for the crafting of a text which
presents itself as a contribution to the field of the social sciences.
Introdução
Quando estas linhas forem publicadas, a monografia que originou este artigo já
terá completado seu primeiro aniversário. Numa das salas do 9º andar do prédio da
reitoria da UFPR, O fantasista e o flagelo: um estudo de sentidos de si e de África para
Günther Theodor Tessmann (1884-1969), orientado pelo Prof. Dr. Paulo Renato Guérios,
1 Graduado em Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia, pela Universidade Federal do Paraná. Sua
atividade como pesquisador na graduação alicerçou-se no estudo de trajetórias de vida, tangenciando
aspectos da história da antropologia e do colonialismo na Alemanha. Contato:
[email protected]
foi defendido a 12 de dezembro de 2019 com arguições do Prof. Dr. Rafael Faraco
Benthien e da Prof. Dra. Simone Meucci, ambos professores da casa.
Na introdução daquele trabalho, escrita por último, há fragmentos que parecem
denotar antes uma justificação que um prenúncio auspicioso, como que dizendo ao
leitor: “desculpe qualquer coisa”. Escrevo ali sobre convicções “talvez algo ingênuas”
(ELLENDERSEN, 2019, p. 12) e premissas que, “entre outras, apresento [...] menos para
defender sua infalibilidade que como uma franca reavaliação a posteriori do texto, dando
ao leitor a satisfação [...] de suas potenciais forças e também de suas potenciais
limitações” (p. 11) – elementos que tampouco passariam despercebidos na avaliação da
banca.
A oportunidade de escrever para um periódico discente trouxe consigo o desejo
de, a partir do ponto de vista privilegiado do presente, aprofundar aquela reavaliação
expondo circunstâncias internas da pesquisa e algumas das razões pelas quais talvez seja
possível encarar o texto, hoje, menos como uma contribuição sólida a seu campo que
como um registro de uma etapa de minha incipiente trajetória enquanto pesquisador –
o que não significa, claro, esvaziá-lo de seu valor.
No que diz respeito ao método, talvez se trate de voltar o feitiço contra o
feiticeiro – ou, para ser mais verossímil, contra o aprendiz – e converter-me no objeto da
aventura da qual fiz vítima um pesquisador de outra era, debruçando-me sobre as falhas
de percurso responsáveis por vícios metodológicos que, à época tão sedutores e
enganosamente inescapáveis, hoje enxergo plenamente. Num esforço intelectual de
Epimeteu – isto é, em que o agir já precedeu há muito o pensar –, volto ao passado com
a presunção de que, bem além de uma autoanálise, o leitor possa encontrar aqui
considerações de valia também para outros tipos de pesquisa aos quais se dedique ou
venha a se dedicar. Considerações estas que, asseguro, se revelarão de imediato menos
impressionistas que esses parágrafos iniciais.
2
Uma vez dispostos os 12 volumes em ordem cronológica, o diário iniciado em 1922 se tornaria o volume
VIII, complementado em 1928 pela redação do volume IX, que cobre o restante de seu trabalho de campo
peruano (1923-1926). As memórias de vida de Tessmann, armazenadas desde o fim da década de 1960 no
acervo da Völkerkundesammlung dos Museus de Lübeck, foram academicamente trabalhadas pela
primeira vez por Klockmann em sua dissertação König im weißen Fleck (1988). Mais recentemente,
Templin e Dinslage esforçaram-se pela edição comentada integral dos volumes que, até o presente
momento, foram publicados pelos Museus de Lübeck até o volume VII (DINSLAGE e TEMPLIN, 2012;
TEMPLIN, 2015; DINSLAGE, 2015). Os documentos originais foram integralmente digitalizados pelos
Museus de Lübeck e estão disponíveis para acesso no link: <https://vks.die-luebecker-
museen.de/tessmann-tagebuch> Acesso em 24/10/2020, 23h09.
3
Em 1950, Tessmann publica em livro um sistema de correspondências numéricas entre dados
astronômicos e fenômenos terrestres (i.e. desde processos biológicos até o “ciclo vital” de culturas
humanas). O esquema, que Tessmann batizaria O plano da criação [Der Schöpfungsplan], teria sido
concebido ainda em 1924 e aperfeiçoado ao longo dos anos até sua publicação em Curitiba, no Paraná.
Seu esforço totalizante numa época em que as disciplinas se ensimesmavam com rapidez, aliado ao
apego a modelos científicos datados e uma intenção tácita de respaldar cientificamente a cosmogonia
cristã, fariam com que O plano da criação enfrentasse o silêncio tanto da comunidade científica quanto
da eclesiástica, tornando vãos seus esforços quase obcecados para ter reconhecidos, no fim da vida, os
méritos do que entendia como seu “trabalho de vida” [Lebenswerk]. Toda a produção intelectual de
escrevia e lia sobre si mesmo, como que prestando contas sobre uma trajetória de glórias
e também de fracassos.
Nascido na cidade portuária de Lübeck, no norte da Alemanha, o etnólogo
autodidata foi prática e intelectualmente produtivo na disciplina durante,
aproximadamente, as três primeiras décadas do século XX. Menções à etnologia em sua
obra tardia, como aponta Fischer (1991, p. 101) em comentário ao seu O plano da criação
(1950), já davam sinais de uma desatualização crítica no que toca às não negligenciáveis
transformações teóricas e metodológicas que havia sofrido a disciplina nos anos
precedentes, mesmo no âmbito da produção em língua alemã — sintoma, talvez, de um
período de sua vida em que a ciência cultural já não figurava entre suas primeiras
preocupações.
Antes disso, contudo, Tessmann publicaria uma vasta obra etnográfica que,
permitindo-se dividir grosseiramente em uma fase africana (1904-1921) e outra
amazônica (1921-1933), teve entre seus leitores e comentadores nomes da competência
de Frazer, Boas, Lévy-Bruhl, Kroeber, Nimuendajú, Eliade e Lévi-Strauss.4
A década de 1930 era aguardada por Tessmann com promissoras expectativas:
com sua defesa de um método que batizou de culturologia sistemática [systematische
Kulturkunde], Os indígenas do nordeste peruano5 se propunha o marco inaugural de uma
nova era metodológica para a antropologia, acompanhada do projeto de fundação de um
instituto de pesquisa etnológica em Berlim que teria Tessmann como seu diretor
(MILDBRAED, 1930). No mesmo ano de 1930, a Universidade de Rostock concederia a
Tessmann, que não havia atravessado qualquer percurso acadêmico formal, um título
doutoral honorífico que, abrindo portas para cátedras universitárias para as quais era
exigido, ofertaria a possibilidade de uma ansiada estabilidade profissional, passadas
décadas de idas e vindas entre a Alemanha e diversos destinos tropicais.
As circunstâncias, contudo, se delineariam de maneira menos auspiciosa. Sua
culturologia sistemática encontraria insuficientes entusiastas, e sua etnografia sobre os
Shipibo-Konibo, Homens sem Deus, muitos críticos. Se, em razão de seus comentários
depreciativos sobre indígenas sul-americanos, se desgastava sua imagem entre figuras
influentes do cenário etnológico difusionista alemão, como Pe. Wilhelm Schmidt (1868-
1954), seus textos sobre a homossexualidade africana e sua amizade com o venereologista
judeu Hans Haustein (1894-1933) fariam dele persona non grata também entre os
nazistas, a despeito do manifesto racialismo expresso em etnografias africanistas suas
como Os fangues (1913) e Os bubi de Fernando Pó (1922). Enquanto a perspectiva da
almejada posição universitária se tornava pouco a pouco menos nítida, o início da
década de 1930 marcaria também o fim de um relacionamento duradouro com Eduard
Pape (1903-?), seu companheiro de vida. Como relataria vinte anos mais tarde,
[...] infelizmente, o destino procedeu de modo duro comigo outra vez, fazendo
um largo risco sobre os meus cálculos. Esse ano [1931] foi, em absoluto, um dos
mais terríveis que já vivi, e o infortúnio que me perseguia jamais havia sido tão
grande como nesse maldito ano, o ponto mais profundo da decadência dessa
época da vida. (X: 856).7
Talvez fosse sintomático que, logo entre 1930 e 1935, solitário, desempregado e
“totalmente empobrecido” (III: 187), Tessmann tivesse escrito os seis volumes (II-VII) de
diários cobrindo precisamente o que entenderia em retrospecto como os anos áureos de
6
Como foi o caso na monografia de conclusão de curso O fantasista e o flagelo (2019), as memórias de vida
serão referenciadas neste artigo seguindo o modelo já adotado por Klockmann (1988) de indicar em
algarismos romanos, entre parênteses, o número do volume separado por dois pontos da indicação de
sua página.
7
A monografia que baseia o presente artigo opera com fontes primárias em língua alemã e alguma
bibliografia secundária em alemão ou inglês, que optamos por trazer ao leitor em tradução livre,
adicionando entre colchetes trechos do original quando a tradução oferece possíveis ambiguidades.
sua vida, quais sejam: os de sua primeira partida à África Equatorial, em 1904; de sua
primeira expedição etnológica de grande porte, a Expedição-Fangue de Lübeck (1907-
1909); da publicação da primeira obra científica de sua autoria, Os fangues (1913), e de
sua primeira expedição a serviço do Ministério Colonial Alemão na então colônia de
Camarões, a Expedição Ssanga-Lobaje (1913-1916), o “ápice de minha vida” (V: 55).
Em paralelo a tais insígnias curriculares, a década inaugural do século XX seria
também particularmente rememorada por Tessmann por uma “proeza” extraoficial, a
saber, a de sua escalada autoritária em Río Muni, região continental da Guiné Equatorial
predominantemente ocupada pela etnia Bantu fangue. Num território à época
virtualmente inexplorado por cartógrafos, Tessmann afirma ter edificado, aos 22 anos de
idade, uma existência autônoma valendo como autoridade política, ou ainda, segundo
seu relato, como deidade entre os indígenas, experiência que sustentaria sua leitura
futura de um passado de grandes aventuras nos trópicos e que, já no Brasil, ele
reconstituiria em forma de romance em seu autoinspirado manuscrito, O rei na mancha
branca (1940).
Com a interrupção da Expedição Ssanga-Lobaje em razão da Primeira Guerra
Mundial, com o desfecho do Tratado de Versalhes e a consequente derrocada do poder
colonial germânico em 1918, sofria os primeiros baques uma carreira que, até então, havia
sido construída em estreita vinculação com a rede ultramarina nacional. Mais tarde,
como atestado da postura acrítica que retinha diante do colonialismo europeu,
Tessmann faria do período de vigência do império colonial alemão um frequente objeto
de nostalgia: um “tempo inesquecível” no qual, “então jovem e pura, [minh’alma] vive e
tece”, e “hoje canta dele outra vez” (TESSMANN, 1940, p. 64).
O caráter seletivo da memória, que, como ressalta Pollak (1992), se constrói na
seleção consciente ou inconsciente da dimensão da experiência vivida que se toma por
significativa no momento da rememoração, se verifica sem demora em Tessmann na
hipertrofia patente de suas memórias africanas.
A “decadência” dos anos 1930 encontraria uma aparente salvação na Berlinische
Boden-Gesellschaft, sociedade negociadora de terras que, gerida por judeus em fuga do
nazismo e almejando investir seu capital no exterior (STIER e KRAUß, 2005), apostaria
em Tessmann e em seus anos de experiência amazônica (1921-1926) para empregá-lo
[...] pretende durante suas excursões não só pelo Brasil como pela America do
Sul, proceder a estudos ethnologicos dos indigenas americanos. O dr.
Tessmann, é de opinião, que os estudos sobre os nossos indios deveriam ser
sobremaneira intensificados, porque, o desaparecimento das populações
autoctonas, é progressivo, no passo que a civilização européa, vae absorvendo-
as rapidamente. Si continuar assim, um grande manancial de estudos e
observações interessantissimas do ponto de vista scientifico, ficará perdido para
sempre. [...] (20/11/1936)
8
Reinhard Maack (1892-1969) foi um geólogo autodidata e explorador alemão. Formado agrimensor, viaja
em 1911 para a colônia alemã Deutsch-Südwestafrika, atual Namíbia, onde trabalha no levantamento
topográfico da região até seu recrutamento voluntário para o exército alemão durante a Primeira Guerra
Mundial. Após seu retorno à Alemanha, viaja em 1923 a Minas Gerais, no Brasil, para colaborar nas buscas
por ouro na região, e no início da década de 1930 por diamantes no norte do Paraná. Destacando-se por
estudos geológicos comparativos envolvendo a África e a América do Sul no âmbito da teoria da deriva
continental, estabelece-se a serviço do Museu Paranaense e do IBPT em Curitiba, onde falece em 1969.
Disponível em: <http://reinhardmaack.de/lebensstationen.html> Acesso: 21/10/2020, 16:17.
9
Eram estes 1) a venda de exsicatas de plantas paranaenses a museus nacionais e estrangeiros, 2) a
possibilidade de uma efetivação tardia dos negócios da sociedade de terras e 3) os rendimentos da venda
dos produtos de seu trabalho no sítio em Apucarana (X: 306-308).
1977), para que ocupasse uma posição de assistente de botânica no museu da capital do
Paraná.
Passados dois anos em que teria conferido “uma moderna e racional organização
à secção de botânica, e sobretudo ao incipiente herbário” (STELLFELD, 1949), Tessmann
se transfere para o Instituto de Biologia e Pesquisas Tecnológicas (IBPT), onde exerce
função similar pelos 5 anos subsequentes até sua aposentadoria, em 1955 — ano de sua
única e amarga visita à Alemanha pós-guerra.
O início da década de 1950 traria consigo dois novos volumes de memórias de
vida: o número I — de autoria de um Tessmann que, aos 65 anos em meio a uma rotina
de coleção botânica extensiva, remonta a época da infância em sua cidade natal
enfatizando a descoberta do mundo natural e sua “pura pulsão colecionista” (I: 70) — e
o número X — no qual, numa etapa de sua vida em que se descreveria como “finalmente,
no alto outra vez” (XII: 121) em razão da alcançada estabilidade profissional, grava no
papel a decadência dos desafortunados anos 1930 em Berlim. Após um período de
residência fixa na Ilha do Mel, no litoral paranaense, Tessmann vive, em 1958, um último
ano em seu sítio em Apucarana antes de se restabelecer em Curitiba, onde viria depois
a falecer aos 85 anos de idade.
A promessa de que procederia a “estudos ethnologicos dos indígenas
americanos”, feita em 1936 a’O Jornal, não viria a se concretizar e, depois de sua chegada
ao Brasil, a etnologia não tornaria a merecer qualquer atenção mais expressiva que a de
poucas palestras informais entre círculos de colonos em Rolândia (XI: 82) — mesmo a
despeito da alegada intenção, expressa ainda em 1942 em carta a Loureiro Fernandes, de
publicar um artigo antropológico inédito nos arquivos do Museu Paranaense
(TESSMANN, 1942).
Seus últimos anos de vida seriam marcados por uma dedicação exaustiva e quase
obcecada à popularização das correspondências planetárias e terrestres que anunciara
em seu livro O plano da criação (1950), paralela de um lado ao aprofundamento de seu
evangelismo cristão através de cartas e manifestos, e de outro à redação descontínua dos
dois volumes restantes de memórias de vida (XI e XII) até sua morte.
Liberal demais para os nacional-socialistas, racista demais para os progressistas,
demasiadamente diletante para os acadêmicos e exageradamente naturalista para os
etnólogos, Günther Tessmann nunca pareceu ter encontrado para si um lar no interior
de sua constelação histórica. Como se pode depreender dos parágrafos acima, trata-se
de um sujeito que se permite ler a partir de uma miríade de recortes e pontos de vista.
Discutiremos, agora, o recorte feito para a monografia de conclusão de curso O
fantasista e o flagelo, bem como alguns dos processos por detrás da formatação final que
o trabalho acabaria por assumir.
O fantasista e o flagelo
ponderáveis descaminhos que, muito mais que preciosas anedotas acadêmicas, nos
trazem ensinamentos para o futuro.
Desde logo, é importante mencionar que O fantasista e o flagelo foi o primeiro
grande resultado de uma pesquisa que se iniciou ainda em 2017, quando, na condição de
orientadora de meu estágio no Setor de Arqueologia do Museu Paranaense (MUPA), a
Dra. Claudia Parellada me introduziu a esse esquecido personagem da história
paranaense – e que havia sido, conforme descobri em seguida, amigo pessoal de meu avô
João Rodolfo Jucksch (1914-2006). Uma vez feita a escolha de torná-lo tema de TCC, o
comprometimento com a pesquisa passou a ser, à minha maneira, absoluto: uma caça
incansável por PDFs sobre assuntos tangenciais ao tema – separados por pastas para sub-
temas –, aquisição de livros, fotografias, artigos, visitas a arquivos públicos brasileiros,
e-mails a arquivos estrangeiros, a diferentes instituições pelas quais Tessmann passou e
a autores de diferentes gerações que escreveram sobre ele – além de, em paralelo, um
esforço de recuperação do domínio da língua alemã, com a qual tive contato desde berço,
ainda que mais tarde o tenha perdido, e na qual haviam sido redigidas a maior parte de
minhas fontes.
Entre 2018 e 2019, a pesquisa se desenvolveria ainda no âmbito do PIBIC
(Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica), também sob orientação do
Prof. Dr. Paulo Renato Guérios, abarcando este período também – num “desvio de rota”
em meio a uma viagem de férias – uma visita a Lübeck, cidade natal de Tessmann, onde,
além da pesquisa em arquivos, também ofertou-se a possibilidade de uma conversa
pessoal com Dr. Thomas Klockmann (1954-), autor da primeira publicação de peso
dedicada à vida do etnólogo alemão. Descendentes de parentes e de amigos próximos
de Tessmann também foram identificados e contatados em ambos os lados do Atlântico,
permitindo acesso a todo outro corpo de materiais empíricos, além de constituírem
vínculos extremamente valiosos por si sós.
São dados que trago não apenas como um relato de bastidores, mas como sinais
de que, por várias razões, eu havia abraçado o projeto do TCC com uma garra, até então
para mim, descomunal. Talvez a principal razão fosse – não tão diferente do próprio
Tessmann quando publicava sua obra inaugural aos 29 anos – que eu o concebesse
menos como um simples trabalho de conclusão de curso que como uma oportunidade
para, ainda em “tenra idade”, publicar um trabalho denso, que exprimisse maturidade,
articulasse com propriedade uma vasta e complexa gama de episódios e de perguntas, e
até pudesse, quiçá, suscitar de imediato importantes consequências rumo à conquista
de um espaço no campo das ciências humanas. Vencido o calendário de disciplinas, optei
por estender ainda por seis meses minha graduação para dedicá-los exclusivamente à
escrita do que, eu imaginava, seria “mais” que um TCC. Porém, por vezes, é preciso antes
dar o passo para então dar-se conta do tamanho da própria perna, motivo pelo qual me
volto agora aos perdoáveis deslizes por detrás de um – bom – TCC – e tão somente isso.
históricas testando sua eficácia a partir do “nível do chão” (REVEL, 1996) – ou, em outros
termos, do nível dos dados, e até mesmo dos mais singelos. Porém, aquele preceito que,
não há dúvida, oferecia um ponto de partida muito agudo para a construção de uma
análise, viria a tornar-se, pouco a pouco, um fim em si mesmo em meu modus operandi
cada vez mais absorto em revolver os dados em busca de um sentido que, propriamente,
em derramar sobre eles alguma luz.
Isso se deu por múltiplos fatores. Um deles era certamente o obstáculo da
língua, que tornava por vezes moroso o esforço de superar as fontes primárias. Se, por
um lado, e talvez não sem razão, eu me atinha à busca incessante por novos dados que
pudessem (e o faziam) revelar novas facetas do objeto sobre o qual me debruçava, o
volume sempre crescente de materiais para processar e compreender numa língua
estrangeira freava o ímpeto por grandes saltos analíticos – os coágulos de polissemia,
que se formavam com rapidez, tornavam traiçoeiro o terreno, tão importante para uma
análise de fôlego, das sutilezas semânticas; ou assim me parecia. Isso significa dizer,
talvez, que a tarefa estipulada de levantar os problemas começando de baixo me
resultava menos fácil do que antes se havia me apresentado, embora eu não me desse
conta disso o bastante para recorrer a socorro externo, ou mesmo para tomar, enquanto
havia tempo, a mais simples e manifesta das vias: reduzir, e drasticamente, o escopo da
pesquisa.
Ao contrário: conforme eu percorria os diários, as muitas obras etnográficas, os
artigos, a correspondência privada, os textos de comentadores e o restante daquilo que
instituía um verdadeiro acervo sobre aquele etnólogo (cuja história se entrelaçava na
brasileira em tão franco contraste com seu oblívio na literatura local), mais eu me
convencia de que a profusão de materiais tão diversos constituía não a fraqueza, mas
sim a força do trabalho que eu vinha gestando, seduzindo-me a ideia de compartilhar
com o público tantos dados de valor quanto fosse possível.
Diante disso, o empenho para mobilizar as fontes a serviço de um texto analítico
– informado fundamentalmente também por fontes secundárias e textos teóricos –, se
deslocava gradualmente para segundo plano, empalidecendo diante do compromisso de
dar àquele disforme acúmulo de informações uma mera organização, separando-o por
categorias, identificando seus eixos centrais, na esperança de que, uma vez destacadas
10 “Not only does the sociological ‚shift‛ from Bourdieu to Ricœur lead from a sociology of habitus to a
‚psychological sociology‛ of plural individual singularities but also it leads from a critical sociology to a
sociology of critics, that is, a moral and a political sociology.” (TRUC, 2011, p. 161)
11
Como resultado da abordagem, o trabalho de conclusão de curso acabou por privar o leitor da ciência,
até mesmo superficial, de aspectos tão importantes de seu testemunho de vida quanto: 1) os
fundamentos de sua teoria etnológica em suas diferentes fases, 2) sua homossexualidade e o trato da
sexualidade em sua obra, 3) sua busca platônica pelo “princípio originário” do universo, 4) a relação que
construiu com seus pares na etnologia alemã e as razões para o desgaste institucional que motivaria sua
emigração para o Brasil, 5) as razões por trás da percepção particularmente desfavorável que construiu
sobre a América e os indígenas sul-americanos, e 6) a postura que assumiu como um alemão no Brasil e
as implicações dessa postura para a compreensão de aspectos de sua obra tardia.
Referências
GINZBURG, Carlo. Clues: Roots of a Scientific Paradigm. Theory and Society, Vol. 7,
No. 3, pp. 273-288. Springer. 1979.
STIER, Bernhard e KRAUß, Martin. Drei Wurzeln – ein Unternehmen. 125 Jahre.
Bilfinger Berger AG. 2005.
_____. „O Mensch, erkenne Dich selbst“ – Richard Karutz (1867-1945) und sein Beitrag
zur Ethnologie. Lübecker Beiträge zur Ethnologie, Band 1. Lübeck: Schmidt-Römhild,
2010.
_____. Menschen ohne Gott. Ein Besuch bei den Indianern des Ucayali.
Veröffentlichung der Harvey-Bassler-Stiftung, Völkerkunde, Band I. Stuttgart: 1928.
_____. König im weißen Fleck. Manuscrito de 1940 com alterações posteriores. Acervo
da família Zeidler, Curitiba.
_____. Der Schöpfungsplan und seine Entwicklung im Aufbau unserer Welt. Zwei
Bände. Curitiba: Impressora Paranaense, 1950.
Colonização e descolonização:
fundamentos da dominação
Ocidental e perspectivas de
transformação
Guilherme Lassabia de Godoy1
RESUMO
Neste artigo busca-se apresentar, discutir e definir os principais termos de alguns dos debates clássicos e
contemporâneos sobre colonização e perspectivas de descolonização. Esse é um tema fundamental para
compreensão dos diversos impasses, conflitos e contradições do atual mundo globalizado existentes
especialmente nos países que foram vítimas desse processo de dominação, mas que também são parte
importante das relações sociais no chamado centro do mundo capitalista. O debate que será apresentado
reflete e aponta para questões profundas da realidade social, possibilitando entender a colonialidade como
uma dimensão da dominação no presente. O texto será dividido em dois grandes blocos que estão
intrinsecamente relacionados: o primeiro discutirá mais profundamente a dominação colonial, os seus
instrumentos, a sua infraestrutura e as suas consequências; o segundo apresentará diferentes perspectivas
teóricas de descolonização. Os principais autores cujas reflexões guiarão o debate são: Frantz Fanon,
Achille Mbembe, Edward Said, Aníbal Quijano e Lélia Gonzalez.
ABSTRACT
This article seeks to present, discuss and define the main terms of some of the classic and contemporary
debates about colonization and prospects for decolonization. This is a fundamental theme for
understanding the various deadlocks, conflicts and contradictions of the current globalized world that
exists especially in the countries that have been victims of this domination process, but which are also an
important part of social relations of the so-called center of the capitalist world. The debate that will be
presented reflects and points to deep questions of the social reality, making it possible to understand
coloniality as a dimension of the present domination. The text will be divided into two major blocks that
are intrinsically related: the first one will discuss more deeply the colonial domination, its instruments,
infrastructure and consequences; the second will present different theoretical perspectives of
decolonization. The main authors whose reflections will guide the debate are Frantz Fanon, Achille
Mbembe, Edward Said, Aníbal Quijano and Lélia Gonzalez.
1
Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, bolsista de treinamento
técnico nível III vinculado à FAPESP no projeto “O legado teórico de Waldisa Rússio para a museologia
internacional”, sediado no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. É da cidade de São Paulo, Brasil. E-
mail: [email protected]
Introdução
2
Para pensar essa questão de forma mais aprofundada ver o capítulo 2 “A disputa em torno de Fanon: uma
primeira aproximação”. In: FAUSTINO, 2015.
O objeto da reflexão a seguir é como alguns dos autores que estão dentro do
espectro das três correntes apresentadas realizam suas críticas à dominação colonial e
sugerem perspectivas de descolonização da sociedade. Assim, teremos uma visão mais
ampla de como o regime colonial e a alienação racial são fundamentais e estruturantes
da sociedade contemporânea e quais são as consequências disso para os problemas que
enfrentamos.
colocado no lugar do Outro que deve sempre provar ser portador da igualdade universal
da condição de humano, mas que nunca será aceito como tal. As formações racistas
atuam na esfera subjetiva dos indivíduos produzindo patologias que estruturam toda sua
sociabilidade, unindo a visão exterior a si racializada com os sentimentos mais interiores
dos sujeitos. Como é o racista quem cria o inferiorizado, a inferiorização dos nativos é
correlata à superioridade dos brancos colonizadores (FANON, 2008).
Utilizando a gramática hegeliana da luta por reconhecimento, a tese
apresentada é a de que há uma impossibilidade do reconhecimento recíproco entre o
colonizador/branco e colonizado/negro se realizar enquanto a dominação racial for a
formação constitutiva do sujeito oprimido. O argumento é de que o reconhecimento é
intersubjetivo, pois depende da relação com o outro, e a colonização é um tipo de
dominação na qual a relação que se estabelece entre os dois polos é de completa
dominação do colonizado pelo colonizador. Existe no negro o desejo de ser reconhecido
diante do outro que o inferioriza e impede que esse desejo se concretize, essa
impossibilidade faz com que o colonizado crie sua identidade partir da lente do
colonizador, que o enxerga de forma redutiva à categoria desumanizadora “negro”.
Portanto, nesse contexto não há luta por reconhecimento uma vez que a imagem que o
colonizador faz do colonizado é naturalizada por esse último. As consequências desse
processo são as diversas patologias produzidas no negro durante essa dinâmica em que
ele fica aprisionado ao reconhecimento do outro em uma realidade de extrema violência
racial que o impede de se enxergar como humano apesar de ele ter a consciência de que
o é. A aceitação da cultura e identidade do europeu/branco como legítima seria a
possibilidade de obter o reconhecimento.
Nesse contexto surge uma das principais questões de Fanon em “Pele negra,
Máscaras Brancas” (2008) que é entender a resposta do negro a essa realidade violenta
de negação de sua humanidade: tentar se fazer branco para ser reconhecido como igual,
como humano. Esse desejo de ser branco reflete o complexo de inferioridade que
fundamenta as relações sociais (FANON, 2008), porém, para as estruturas racistas
funcionarem esse reconhecimento não pode ser verdadeiramente efetivo:
3
Sobre o conceito de acumulação por espoliação e a relação com o conceito marxiano de acumulação
primitiva ou originária ver HARVEY, David. Acumulação por espoliação. In: O Novo Imperialismo. Rio
de Janeiro: Loyola, 2003.
que é um discurso que permanece hegemônico por séculos. O que sustenta essa solidez
é a ideia de uma identidade europeia superior à de todos os povos não europeus.
Por fim, outro ponto fundamental é que assumindo a visão de Said (2007) de
que a transformação de saberes sobre o Oriente em capacidade de controle de
movimentos políticos, dominação colonial e realização de missões civilizacionais do
homem branco nos territórios não europeus, cumpre exatamente o oposto do que a
sociedade ocidental-liberal promete. Dentro de uma cultura autoidentificada como
liberal, que tem como valores fundamentais a liberdade, universalidade, igualdade,
pluralidade e justiça, utilizar essa mesma gramática para legitimar o direito de julgar o
Oriente nos termos do Orientalismo prova que liberdade se concretizou em nada mais
que uma forma de opressão e preconceito mental (SAID, 2007, p.341). O autor propõe
que a humanidade reconheça as premissas orientalistas das ações do
imperialismo/colonialismo como um marco para alteração da consciência do nosso
tempo, assim como o Holocausto foi reconhecido, pois, ele alimenta uma arma perigosa:
Assim, um dos principais desafios levantados por Quijano para a periferia global
é romper com a ideia eurocêntrica de que todos os países não-europeus são pré-
europeus, ou seja, estão no caminho da sequência histórica de se modernizar e um dia
alcançar a Europa. Essa forma de enxergar o mundo opera formando um espelho que
distorce a imagem que reflete. Ao se ver a partir desse reflexo, esses países se deparam
com uma imagem de si que não corresponde à realidade e, por isso não conseguem
diagnosticar os verdadeiros conflitos e propor soluções que efetivamente funcionem.
O autor discute como esse espelho opera em relação à questão nacional e na
formação dos estados nacionais na América Latina. O Estado-Nação é definido como
uma sociedade nacionalizada politicamente organizada por um Estado, o que implica
necessariamente em instituições modernas e democracia política. A democracia é parte
essencial uma vez que todo processo de nacionalização nos tempos modernos se deu a
partir de uma limitada, mas real, democratização da sociedade. Foram processos de
consolidação da cidadania como direito de igualdade civil, política e legal para pessoas
desigualmente localizadas no processo de distribuição de recursos e bens que
garantiram essa democratização. Esse processo também é importante, pois estabelece
uma identidade comum aos cidadãos, formando uma comunidade imaginada que
expressa sua identidade comum justamente na participação política efetiva e
democrática no processo de distribuição e controle do poder.
No continente latino-americano o processo de formação dos Estados Nacionais
se deu a partir de uma homogeneização social pensada a partir da visão eurocêntrica de
mundo, o que ocorreu não por meio da integração democrática de todos os cidadãos,
mas sim pela exclusão e eliminação de parte significativa deles: os negros, indígenas e
mestiços. Segundo Quijano, essa condição é determinante para concluir os porquês da
democracia latino-americana ser tão frágil e os porquês da colonialidade do poder se
manter como mediadora da distribuição dos poderes na América Latina. Assim, nessas
regiões o Estado é independente, mas as sociedades permanecem coloniais, pois os
processos de independência levaram a uma metamorfose da colonialidade do poder sob
novas bases institucionais.
No ensaio é apontado que toda memória colonial, composta por uma história
de sangue, massacres e talvez de alguns dos episódios mais horríveis do mundo
moderno, deve ser tratado como memória comum do mundo inteiro, e não
apenas dos participantes diretos da história. Se for vista como uma questão que
envolve certos grupos e não a Humanidade inteira, a lógica segregacionista que
baseia as relações do presente e baseou as do passado vai se manter
hegemônica: "Enquanto formos incapazes de assumir memórias de Todo o
Mundo, será impossível imaginar um mundo comum e uma humanidade
verdadeiramente universal (Ibidem, p.168).
os caminhos para libertar os povos colonizados da alienação que lhes foi imposta e
conseguir realizar um encontro saudável entre o negro e o branco. O pressuposto para
isso é que a luta antirracista deve ser luta pela igualdade universal, pelo fim da concepção
a partir da qual a cor de pele produz inferioridade ou qualquer diferença essencialmente
racial. Isso sugere uma ruptura com a ideia de raça, ou seja, a abolição da raça como
elemento de diferenciação entre seres humanos, o que só se pode realizar quando se
tornar verdade que o negro é um ser humano igual ao branco e quando o negro for
reconhecido como apenas um homem entre outros homens. A similaridade entre os
homens e uma cidadania universal é o princípio fundamental para a realização da
abertura do mundo, ou seja, o objetivo da luta pela descolonização e pela autonomia
humana4 (FANON, 1980). Vale destacar que a afirmação estratégica da identidade racial
de forma positiva é parte importante desse processo, não como a finalidade, mas um dos
meios para se se lutar contra a dominação racial e se alcançar a emancipação.
Para Fanon o reconhecimento universal só seria possível quando as condições
da dominação colonial fossem destruídas. Em seu pensamento, as únicas forças capazes
de vencer o racismo e a alienação colonial são as lutas radicais, revolucionárias e
emancipatórias de descolonização. Em seu contexto histórico essas lutas foram
concretizadas nos movimentos anticoloniais de libertação nacional, dos quais o autor foi
um grande defensor e participante, principalmente no contexto argelino.
Assim, a questão para Fanon não é modernizar a sociedade, pois esse projeto
significaria o povoamento destrutivo que o colonizador exerce através de relações
estruturadas na dominação racista. A questão, na realidade, é partir de uma resolução
violenta positiva (no sentido de criar o novo) que reinvente o futuro de todas colônias e
ex-colônias, sendo capaz de transformar e resolver as tensões do presente — sair da
grande noite é a metáfora desse momento histórico para o martinicano (FANON, 1968).
Segundo Mbembe (2014a), as questões que Fanon coloca são pertinentes na
contemporaneidade, pois apesar de o nosso mundo não ser o mesmo que o dele, também
não é outro, uma vez que a colonialidade do poder é estruturante da realidade social.
Sair da grande noite exigiria uma ação consciente de provincializar a Europa, ou seja,
4
Essas ideias estão mais desenvolvidas no ensaio: FANON, Frantz. Racismo e Cultura. In: Defesa de
Revolução Africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980.
retirá-la do lugar a ser seguido e do centro ao redor do qual resto do mundo deve girar,
pois, essa Europa que fala tanto do homem universal ao mesmo tempo, o massacra em
todos os cantos do mundo.
No raciocínio de Fanon, para sair da realidade colonial é necessário o processo
pelo qual o colonizado passa a falar por si em primeira pessoa, apropriando-se do seu
eu, o que não tem a finalidade apenas de despertar a autoconsciência individual, mas
sim a ascensão da humanidade, a abertura do mundo. Essa tomada de consciência se
inicia com uma retomada crítica e dinâmica da cultura tradicional pelo colonizado. Ela
é o motor da consciência dos oprimidos, uma vez que permite a identificação dos
inimigos e dos porquês das opressões sofridas, possibilitando a geração de uma revolta
que, se organizada na forma de luta pela libertação nacional, seria capaz de gerar a
consciência nacional e a efetivação do projeto descolonizador que garantisse o real poder
democrático para todos (FANON, 1968), condição necessária para a formação de
Estados-Nação como vimos na teoria de Quijano.
Dentro de um contexto em que a colonialidade do poder é a regra, há uma
violência desmedida cometida pelo colonizador direcionada ao colonizado, trata-se de
uma realidade tão violenta que esvazia o passado e restringe as possibilidades de futuro
do oprimido, é uma sistemática fábrica de feridas. Já a violência vinda do colonizado tem
início como uma reação espontânea e individual contra essa realidade de insuportável
sofrimento, mas aos poucos ela se torna uma reação coletiva que ressignifica o mundo
com o objetivo de produzir vida, ou seja, produzir transformações, e assim, o que era
uma insurreição se torna um processo revolucionário. A linguagem da colonização
sempre foi a violência e o não o reconhecimento, logo essa violência é a resposta à
sociedade e a única possibilidade de sua transformação e destruição, afinal não há
possibilidade de comunhão em uma sociedade que se define por ser compartida,
fragmentada. Além disso, essa violência tem a potencialidade de criar laços nacionais,
pois mobiliza os colonizados em torno da luta por sua libertação, gerando uma
consciência e identidade nacional, porque passam a se reconhecer como agentes da
história e do destino em comum, o que facilita o passo seguinte, a construção de um
Estado-nação. Ou seja, a violência é fruto de um processo de libertação nacional gerador
de consciência (FANON, 1968).
Para Mbembe (2017), o conceito de violência de Fanon tem uma dimensão tanto
política quanto clínica, pois pela violência realizada em vez de sofrida, o colonizado
percebe-se em pé de igualdade com o colonizador, passando por um processo de
recuperação, requalificação e reaprendizagem sobre si que implica em uma cura
individual e em uma cura política, coletiva. Logo a descolonização modifica
fundamentalmente o ser, ela humaniza, cria homens novos pelo processo que os liberta.
A violência, portanto, possui o papel de poder instituinte de uma nova ordem
social que surja dos escombros da antiga realidade colonial produtora de dor,
sofrimento, medo e morte. Logo ela só faz sentido se pensada dentro de um processo de
elevação da humanidade, que permita transformar a realidade de subjugação colonial e
racial em uma realidade na qual haja a possibilidade de diálogo entre iguais, na qual
existam as condições para a realização do reconhecimento recíproco:
Considerações Finais
dos elementos coloniais que são a base de grande parte das desigualdades do mundo
contemporâneo.
Nesse sentido, é possível reivindicar as respostas e o legado de Fanon para os
desafios das lutas de hoje, uma vez que a diferença entre o mundo atual e o de Fanon é
mais de intensidade do que de espécie, pois as principais contradições continuam as
mesmas, mas hoje não há uma resposta à altura das lutas de libertação do século XX
(FAUSTINO, 2018, p.125). Dessa forma, a contribuição teórica e prática do martinicano
para pensar em uma clínica do sujeito e da sociedade na atualidade é de grande valor.
Pensando também na continuidade dos conflitos estruturais que se reproduzem no
presente e que têm origem na dominação colonial e na consolidação do capitalismo
global, Quijano (2005) opera o conceito colonialidade do poder como chave para
entender e superar a sociedade fundada na violência e exclusão, consolidando uma
verdadeira democracia. Parte desse processo de “saída da grade noite” é o desafio
colocado por Said (2007) de diluição dos essencialismos criados durante a dominação
colonial que formam o imaginário e as categorias de representação do Outro não
ocidental. Sem que haja uma ruptura com essas ideias que se materializam em práticas
de violência, discriminação, espoliação, exploração e exclusão não há como existir o
reconhecimento de uma humanidade em comum, como afirma Mbembe. Já para o
desenvolvimento de uma identidade e um imaginário descolonizado, Lélia Gonzales
aponta para a afirmação da identidade amefricana pelos movimentos sociais como forma
de explicitar a fundamentalidade da cultura negra, africana e indígena para toda
dinâmica cultural latino-americana, além de recuperar o legado de toda resistência dos
povos negros e originários contra a dominação colonial.
Portanto, a partir das diversas reflexões dos autores cujas ideias foram
abordadas no artigo fica evidente que o caráter colonial da atual dominação ocidental-
branca apresenta múltiplas faces e é essencial para a manutenção das desigualdades de
redistribuição e de reconhecimento que se materializam em processos de injustiça
social, violência e exclusão. Apesar das divergências existentes entre as perspectivas
apresentadas, é consenso entre elas a crítica ao projeto universalista da modernidade
que, contraditoriamente, se realizou a partir de processos de violência e exclusão de
grande parte dos habitantes do mundo, sobretudo aqueles que viviam nas colônias,
Referências
_____. Por que Fanon? Por que agora? Fanon e os fanonismos no Brasil. 2015. 261
f. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015.
GONZALEZ, Lélia. Lélia Gonzalez: primavera para as rosas negras. São Paulo: UCPA
Editora, 2018.
_____. Sair da Grande Noite: ensaios sobre a África descolonizada. Luanda: Edições
Mulemba da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, 2014b.
1 Autoras e autores de alguns trabalhos não puderam ser contatados e por isso não figurarão na lista.
Contudo suas pesquisas devem ser mencionadas por representarem importante contribuições para o
Programa de Pós-Gradução em Sociologia da UFPR: Aline Maria Da Silva Almeida (Da “doutrinação
Marxista” À “ideologia De Gênero”: Uma análise Sociológica Dos Repertórios Do Movimento “escola Sem
Partido”), Andréia Pereira Zanella (Conselho Nacional De Justiça – Cnj: Compreendendo Os Atores Por
Trás De Uma Instituição No Período De 2005 À 2020), Fernando Marcelino Pereira (Famílias E Poder Nos
Tribunais De Contas: Uma Sociologia Política Dos Herdeiros Das Classes Dominantes), Kaue Barreiros
Correa Pessoa Guimaraes (Agriculturas E Territorialidades Em Disputas: a Jornada De Agroecologia
Como Expressão De Um Projeto Agroecológico No Paraná), Marcus Roberto De Oliveira (Agentes,
Campos E Capitais: Uma Prosopografia Dos Conselheiros Do Conselho De Administração (Cad) Da
Companhia De Saneamento Do Paraná (Sanepar) Entre 1998 e 2010), Roberto Jardim da Silva (A
invisibilidade do antropólogo haitiano Joseph Anténor Firmin, no pensamento Francês) e Sergio Mario
Orellano Narvaez (Procesos Sociales, Educacionales Y Formación De Profesores De Educación Regular en
Servicio en El Siglo Xxi: Una Pesquisa Comparada Entre Bolivia Y Brasil).
RESUMO
Este trabalho investiga narrativas de agentes sociais sobre suas conquistas em um
contexto de desigualdade e vulnerabilidade social na periferia de Curitiba-PR. A
pesquisa se utiliza dos pressupostos teóricos da Teoria do Reconhecimento Social para
orientar a análise acerca sentidos e racionalizações sobre suas autorrealizações. Através
da observação participante e análise em profundidade procurou-se conhecer como os
três agentes elaboram sua trajetória, como reconhecem a si e aos outros em suas relações
afetivas, sociais e institucionais. Verificamos que o sentimento do próprio valor, isto é, a
busca por dignidade é representada nas narrativas de experiência de vida que realçam o
sentimento do seu próprio valor como pessoas guerreiras, vitoriosas e voluntaristas.
RESUMO
Esse trabalho estuda as relações possíveis entre a sociologia de Guerreiro Ramos, os
jornais e os intelectuais na década de 1950, destacando temas de relevância para o autor
baiano e a forma como foram debatidos por outros colaboradores dos periódicos. São
temas abordados aqui a questão racial, a questão nacional e o papel dos intelectuais.
Metodologicamente, são utilizados principalmente a perspectiva do contextualismo
linguístico de Quentin Skinner, o conceito de atos de fala de John Pocock. Na conclusão,
destaco as afinidades existentes entre a sociologia de Guerreiro Ramos e o jornal como
espaço de escrita, exercidas por meio da busca de consagração das ideias do autor
perante um público mais amplo que o acadêmico. Tais posturas foram possibilitadas
pelo fato de o jornal ter se apresentado como um espaço legítimo de circulação de ideias
e realização de debates públicos. Além disso, argumento acerca da relevância das formas
de conciliação entre as categorias de universal e particular no desenvolvimento das
discussões nos jornais selecionados acerca das temáticas abordadas.
RESUMO
A proposta desta dissertação se orienta dentro do vasto campo dos estudos da temática
dos intelectuais e, observando a necessidade de uma convergência teórico-
metodológica para o seu tratamento, busca conduzir o trabalho analítico através das
importantes contribuições de Raymond Williams para a sociologia dos intelectuais.
Reflexão esta que toma como objeto a elaboração e publicação da Coleção História Nova
entre os anos de 1963 e 1964, projeto organizado no âmbito das atividades do Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) por um grupo de intelectuais constituído em
torno do historiador, militar, militante comunista e crítico literário Nelson Werneck
Sodré (1911-1999), então professor do referido instituto. Entendendo a centralidade deste
intelectual para a realização da coletânea, partimos do estudo de aspectos de sua
trajetória e pensamento social para examinar a realização do projeto no âmbito das
relações intelectuais que deram origem ao grupo e que criam as condições para sua
intervenção intelectual abordando-a em sua relação com a brasilidade revolucionária
como estrutura de sentimento que marcou a produção cultural e intelectual dos anos
1960 no Brasil (Marcelo Ridenti). Tomando esta obra como fonte documental e objeto,
nosso estudo busca propor uma interpretação sobre sua realização, seu significado e seu
destino: sobrevindo o golpe de 1964, seus volumes foram apreendidos pelas forças
militares, seus autores foram presos ou se exilaram, dissipando-se o grupo que a
concebeu; em 1966, na tentativa de uma reedição, foi submetida a Inquérito Policial
Militar, jamais vindo a ser publicada integralmente. Ainda, com este estudo procuramos
contribuir com as pesquisas que abordam a trajetória e o pensamento social de
intelectuais que marcaram a formação, o desenvolvimento e a consolidação da plural
tradição marxista brasileira.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo compreender o tipo de relação estabelecido entre os
grupos empresariais do transporte de Curitiba com a administração pública do serviço
desde 1955, ano em que iniciou a formalização do serviço. A consolidação de um
monopólio e a permanência do grupo empresarial Gulin na concessão do serviço de
transporte coletivo de Curitiba é um fenômeno econômico e político observado pelo
menos desde 2013, entretanto, ganhou maiores proporções após a divulgação da
Operação Riquixã, em 2018. Segundo a investigação realizada pelo GAECO, o grupo
conseguiu interferir sobre o Edita n° 005/2009 a fim de que fosse beneficiados com a
concessão do serviço. O relatório da investigação demonstrou haver uma relação de
favorecimento entre diretores da Urbanização de Curitiba SA - a URBS - com os
empresários do Sindicato de Empresas de Ônibus de Curitiba e Região Metropolitana -
SETRANSP - hegemonizado pelo grupo Gulin. Tal acontecimento, levou a presente
pesquisa a trabalhar com a hipótese de que a institucionalização do serviço de
transporte coletivo na capital se assentou por meio de relações clientelistas ao longo de
mais de 65 anos. Para isto, a pesquisa se propôs a abordar teorias que tratam do
fenômeno clientelista; analisar o relatório final da operação; realizar a revisão histórica
da institucionalização do sistema e analisar a biografia de agentes públicos e privados
por meio da Prosopografia, a fim de encontrar padrões entre campos e capitais sociais
comuns que ambos atores.
RESUMO
A presente dissertação examina a prática da exposição de imagens e vídeos sexuais (com
conteúdo explícito ou não) sem o consentimento e seus desdobramentos na sociedade
midiatizada. Como objetivo principal, apresento a disseminação não consensual de
conteúdo sexual a partir da narrativa de mulheres que passaram por essa experiência.
Com base nessas interlocuções, a presente pesquisa captura como se desenvolve o
processo que inicia com a produção inicial desses materiais até o momento em que, após
serem divulgados sem autorização, mulheres que passaram por essa experiência
decidem incorporar em suas vidas a luta contra a divulgação não autorizada. Nesta
dissertação, utilizei das contribuições de Paula Sibilia que possibilitam reflexões acerca
dos paradoxos do ‘espetáculo do eu’ na contemporaneidade. Abordei também, questões
relacionadas à reflexividade e agência postuladas por Anthony Giddens. Ademais, se
dialoga com Michel Foucault, Maria Filomena Gregori e outras teóricas e teóricos que
tensionam questões relacionadas à sexualidade. Além de serem relevantes no sentido de
problematizar como as questões de gênero aparecem na “posta em cena” do sexo. Assim,
por meio das reflexões e interlocuções elaboradas, intento apreender como essas
mulheres se localizam em meio a este processo que as transforma em vítimas, mas
também em agentes, de maneira simultânea.
RESUMO
A presente dissertação tem como tema de pesquisa o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) devido a sua importância no contexto de
diferentes períodos da história da economia nacional. Analisa-se as biografias dos 19
presidentes do BNDES desde o período da redemocratização, seus capitais sociais,
culturais e familiares como condutores da ocupação dos referidos cargos. A
prosopografia foi adotada como um método de análise, num contexto de tecnocracia
nacional, com o objetivo de dirigir um olhar sociológico a respeito das conexões entre os
capitais sociais e indicações a órgãos públicos. Esse período compreende o governo de
José Sarney até o final do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff. A opção pela
proposta de pesquisa do NEP (Núcleo de Estudos do Paraná) deve-se as suas
contribuições com o estudo da genealogia, constituindo-se nos parâmetros aos quais as
pesquisas aqui realizadas se pautam. O foco principal desse estudo são as biografias
coletivas sendo as leituras da sociologia elementos interpretativos que apontam para a
desnaturalização da meritocracia. O destaque dado na história política e econômica do
país é analisada através dos conceitos de campo e subcampo, desenvolvidos por Pierre
Bourdieu, pois entende-se a conformidade do banco com a efetivação das políticas do
governo. As fontes utilizadas para o levantamento das biografias são as disponíveis no
site da Fundação Getúlio Vargas – arquivos CPDOC, referente aos biografados.
RESUMO
O presente trabalho surge do interesse em pensar como a interface do cuidado pode
ajudar a acessar os sentidos institucionais e trajetórias individuais entremeados na
maneira como voluntárias e voluntários oferecem escuta e apoio emocional através do
Centro de Valorização da Vida (CVV). Dessa maneira, o objetivo desta dissertação é
compreender como o modelo de cuidado do CVV, em suas práticas e discursos, se
relaciona com questões de gênero, sexualidade e outros marcadores sociais da diferença
e, ao mesmo tempo, entender como esse modo de cuidar se configura nas narrativas
individuais de mulheres e homens que se voluntariam ou já se voluntariaram pela
entidade. Para isso, foram organizados três objetivos específicos: 1) investigar os
componentes discursivos contidos na filosofia, visão de mundo e base teórica que
informam a prática de cuidado dentro do CVV; 2) conhecer como o cuidado voluntário
dentro da entidade se entrelaça às histórias individuais de homens e mulheres que
fazem ou fizeram parte da entidade; e 3) analisar as formas como esses sujeitos dão
sentido a essa prática, buscando evidenciar como ela os afeta. O primeiro capítulo se
dedica ao delineamento dos lugares metodológicos e epistemológicos dos quais parto
para a produção dessa pesquisa; em seguida, constrói-se uma revisão de literatura a
respeito das pesquisas realizadas sobre o Centro de Valorização da Vida, sobre estudos
do cuidado e sobre as questões gendrificadas do voluntariado; no terceiro capítulo, são
analisados dos perfis, narrativas e trajetórias das mulheres e homens que se voluntariam
ou já se voluntariaram através do CVV a fim de compreender como se relacionam com a
atividade da oferta de escuta e apoio emocional; o quarto e o quinto capítulo focam,
respectivamente, na análise dos componentes discursivos que informam a visão de
RESUMO
Considerando a implementação da lei federal 12.527/2011 no Brasil dentro do cenário
internacional de difusão recente das Leis de Acesso à Informação (LAI), discutimos
nesta tese a prenoção de que a ampliação deste tipo de controle social leva à
democratização dos governos. Se isto de fato ocorre, qual o sentido das resistências
identificadas durante esse processo e em que grau elas ressignificam o próprio direito de
acesso à informação? Partimos de uma abordagem construtivista, que combina técnicas
da Teoria Crítica da Tecnologia e da Análise Sociológica do Discurso, no marco teórico
da democracia monitória, para analisar arquivos da Controladoria Geral da União que
documentam disputas administrativas entre cidadãos e governo federal, relacionadas à
divulgação de informações públicas, entre maio de 2012 e agosto de 2016 - o primeiro
ciclo político-administrativo da LAI no Brasil. Concluímos que, na sua implementação,
a LAI ganhou características secundárias não previstas na sua criação, que
indeterminam a democratização associada à fruição do direito à informação. Pareando
esse achado com a revisão das pesquisas sobre o tema na Biblioteca Digital Brasileira de
Teses e Dissertações, e com a trajetória do direito de acesso à informação dentro e fora
do Brasil, entendemos que há falta de instrumentos qualitativos para o aprofundamento
desse debate. Assim, a tese sugere uma abordagem para o problema, na qual caracteriza
as resistências à democratização em um conjunto de figurações analiticamente
operacionais, pelas quais esperamos ser possível repensar a instrumentalização da LAI e
o sistema de garantias ao direito de acesso à informação. Com isso, a tese faz uma crítica
às análises que desconsideram a importância do contexto nacional na sistematização
desses debates.
RESUMO
Nas últimas décadas do século XXI, o fenômeno de contratação flexível de docentes se
faz cada vez mais presente no sistema de ensino público do Brasil. No estado do Paraná,
foco desta tese, a contratação de professores temporários é largamente utilizada pelo
Estado para atender demandas, tanto na rede estadual de ensino médio quanto no
ensino superior. A partir de um dispositivo previsto, para regular a contratação de
pessoal temporário para atender as demandas emergenciais de excepcional interesse
público, a administração pública aciona a contratação flexível para a manutenção da
oferta dos serviços públicos. Com metodologias que articulam abordagens qualitativas e
quantitativas, a presente pesquisa se propõe a analisar as condições e relações de
trabalho engendradas pelas contratações flexíveis de docentes temporários no ensino
superior público paranaense. A pesquisa reúne dados do período de 2002 a 2017, sobre a
composição do quadro de docentes das sete universidades estaduais existentes no
Paraná. Com base em tais dados, identificamos um aumento exponencial da inserção de
temporários, quando comparado com a evolução do quadro de docentes estatutários. A
composição diversa, encontrada na pesquisa, acerca do quadro de docentes em cada
universidade evidencia particularidades que remetem a uma interpretação sociológica
sobre o fenômeno. As análises relativas à modalidade de vínculo – se estatutário ou
temporário – evidenciam diferenças de acesso aos direitos advindos do trabalho e aos
benefícios previstos para a categoria docente. A partir de entrevistas semiestruturadas
realizadas com docentes temporários e representantes das seções sindicais das sete
universidades estaduais, foi possível compreender as relações e condições de trabalho
que são decorrentes dessa forma de vínculo de trabalho. Entre os achados deste estudo,
destaca-se que a modalidade contratual, na qual os docentes temporários estão
RESUMO
Esse trabalho trata da constituição da Agência de Projetos Avançados de Pesquisa em
Defesa (DARPA) e da instituição recente do Escritório de Tecnologias Biológicas (BT0)
em 2014. A DARPA é uma organização de financiamento a pesquisa, conhecida por ser
relativamente horizontal em sua hierarquia. São apenas 3 camadas de autoridade, o
Diretor da Agência, os Diretores dos Escritórios e os Gerentes mais o pessoal
administrativo. Os Gerentes são a maioria nessa burocracia, eles são os atores
responsáveis por criar os Programas de financiamento e selecionar os parceiros que irão
performar a pesquisa para a DARPA. Buscaremos compreender os critérios de seleção
desses Gerentes a partir de um estudo histórico, baseado em documentos oficiais e
extra-oficiais, relacionando-os com os principais acontecimentos políticos que
condicionavam a ação do Estado dos Estados Unidos da América, especialmente a
formação do “Complexo Militar-Industrial” no pós-Guerras e suas transformações
recentes. Também problematizamos a narrativa oficial da Agência, apontando para
certas inconsistências ou tópicos que, em razão das polêmicas que suscitam, foram
pouco exploradas. Com isso, nós contextualizamos a instituição do BTO, indicando para
os fatos que o precederam, relacionando-os com a agenda do Governo Federal para
ciência e tecnologia, acontecimentos políticos importantes como as Guerras travadas e a
percepção de que o poderio econômico e militar dos EUA estaria em declínio relativo às
potências emergentes. Tendo isso em vista, tentamos explicar o fato de que, atualmente,
são as Universidades o conjunto mais notável de parceiros no BTO, recebendo a maior
parte dos recursos e da atenção dos Gerentes, seguidas das empresas emergentes
(startups) e as subsidiárias de grandes corporações que comercializam tecnologias para
uso-dual (que servem tanto para os militares quanto para os civis). Tal padrão,
característico ao BTO, implica que atualmente o Departamento de Defesa (DoD) dos
EUA têm se aproximado de setores da economia que anteriormente, nos anos Bush,
eram marginais. Consequentemente os fornecedores tradicionais (a indústria militar
stricto senso) hoje ocupam espaços específicos e oportunidades. Ou seja, a partir do
estudo do BTO e seus gerentes, apontamos para um processo de diversificação, no qual o
Departamento de Defesa têm reforçado suas relações com organizações civis, delegando
à elas algumas responsabilidades. Ao mesmo tempo, O DoD promove novos negócios
em Biotecnologia através do financiamento direto às atividades de universidades e
startups, reduzindo com isso os custos financeiros dos possíveis fracassos no
desenvolvimento de tecnologias viáveis.
RESUMO
A escola é uma instituição complexa, carregada de contradições. No Brasil, a história das
instituições escolares é marcada por profundas dificuldades de democratização dos
direitos, o que muitas vezes é o reflexo das expressivas e históricas desigualdades sociais
existentes no país. No presente trabalho, analisamos alguns mecanismos que permitem
a reprodução destas desigualdades dentro do espaço escolar, especificamente no que se
refere ao estabelecimento da nomenclatura de certas instituições. Para tanto,
trabalhamos com um recorte espacial que engloba a cidade de Curitiba, enfocando as
escolas estaduais de grande porte, ou seja, aquelas que atendiam um público discente
igual ou maior do que mil alunos no ano de 2018. O recorte temporal abarca os anos
entre 1985 e 2009, período inserido na fase da redemocratização brasileira, com baliza
final na data mais recente de inauguração de uma escola estadual na capital paranaense.
Trabalhamos de antemão com a hipótese de que os processos de nomeação das
instituições escolares que compõem o referido recorte, são permeados por mecanismos
de dominação elitista, entendendo que as elites integram um grupo complexo de
agentes que acumulam, reconvertem e reproduzem capitais individuais e familiares por
gerações, desde o período colonial. Nesse sentido, os conceitos de Pierre Bourdieu nos
serviram como referencial teórico, bem como os estudos mais recentes da prosopografia,
propostos por autores como Ricardo Costa de Oliveira, e demais pesquisadores
contemporâneos. As análises foram centradas na contextualização dos espaços escolares
estudados, no levantamento das biografias individuais dos agentes homenageados, na
interpretação das biografias coletivas pelo método prosopográfico, e na investigação da
legislação vigente nos processos de nomeação. As fontes consultadas abarcaram
registros advindos de arquivos de imprensa, documentos oficiais, comunicações verbais,
além de outros recursos que contribuíram para o levantamento de informações. O
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo debater o processo de hipermilitarização da
segurança pública no Brasil. Partindo de uma trajetória pessoal e profissional de vida,
em um contexto cultural baseado em valores cultuados, em uma sociedade que tem por
base o ethos militar e guerreiro, facilitando que os valores castrenses se tornem o
elemento condutor da nação, deixando de lado a possibilidade de consolidação da
democracia. A guerra também foi utilizada como ponto de análise para verificar essa
herança cultural que o ser humano utiliza através dos tempos e que até hoje se faz
presente, que influencia na transformação de uma sociedade militarizada para uma
hipermilitarização da vida e do cotidiano, com intensos reflexos nas instituições
policiais e nos corpos e mentes dos seus integrantes e também da sociedade. Essa
análise parte da ideia de continum sócio-histórico proposto por Marcel Mauss, numa
complementação da definição de Émile Durkheim de fato social, que se constituiu como
total. Esse processo demonstra claramente que as sociedades não apresentam grandes
avanços em suas formas de relação, ou seja, mantém aspectos como a guerra e a
violência em um espiral sem fim, mudando apenas as formas tecnológicas como esses
fatos ocorrem. Na introdução, a trajetória de vida deixa claro a militarização do
cotidiano e da vida, que resultou na escolha de uma profissão militar, aliada ao processo
de educação familiar e escolar com objetivo de um lugar no mercado de trabalho. O
capítulo dois concentra a genealogia da militarização, demonstrando como o ser
humano tem na militarização e na guerra a sua contribuição social e histórica mais
evidente e que se mantém de forma ativa e muito valorizada. A parte três, e a última,
coloca algumas características do processo de hipermilitarização, partindo da fala de
alguns operadores de segurança pública, militares e civis, demonstrando um ápice do
processo de capilarização desse fato social total na vida cotidiana.
RESUMO
Essa pesquisa teve por objeto os acervos documentais de Cecília Maria Westphalen
(1927- 2004), historiadora, e Pórcia Guimarães Alves (1917-2005), educadora. Seus
arquivos foram confeccionados durante suas vidas e doados, postumamente, ao arquivo
do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (Pórcia) e ao arquivo do Departamento de
Arquivo Público do Estado do Paraná (Cecília). Ambas foram professoras da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná (FFCLPR) de 1950 até finais da década de 1980,
quando se aposentaram. Meu interesse esteve na compreensão de suas memórias sobre
a FFCLPR no período de 1950 a 1970. Através de etnografias nos arquivos, os considerei
como dotados de lógicas de intenção autobiográfica. Isto é, tomei os respectivos acervos
como espaços de fabricação retrospectiva do eu, nos quais estiveram em jogo atribuições
de sentidos às suas vidas. Por isso, e baseando-me em meu campo etnográfico, mobilizei
a ideia de gestão da memória, de Michel Pollak, no contexto de uma pesquisa em
acervos pessoais. Busquei compreender como, na amálgama de fatores existentes nos
referidos arquivos, circulavam interesses na evocação de determinadas memórias em
detrimento de outras. Para compreender essa seletividade, atinei primeiramente aos
locais de depósito, a fim de examinar os vínculos entre as professoras e as instituições
que conservam suas memórias arquivadas; posteriormente, observei a seleção
documental segundo a qual se baseou a produção desses acervos, com vistas a perceber
aquilo que foi guardado sobre a FFCLPR face aos demais temas, atores e eventos
anunciados ao longo dos acervos. Dessa análise, considerei haver duas formas de
recordação da FFCLPR nos citados acervos: tática e desconexão. A primeira, relativa às
lembranças de Cecília, anunciava a FFCLPR como espaço de realização, recursos e
RESUMO
Esta dissertação trata da construção da Educação em Direitos Humanos no Brasil, no
período de 1987 a 1995. Neste texto, reconstituiu-se os objetivos, as motivações e as
estratégias que orientaram as primeiras iniciativas desta nova perspectiva educativa no
país. Os primeiros empreendimentos foram conduzidos pela Comissão Justiça e Paz de
São Paulo, instituição paulistana de origem eclesiástica, criada em 1972, dedicada à
defesa dos direitos humanos no país. Dada esta centralidade, os registros de atividades
da instituição, arquivados no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, foram as
principais fontes desta investigação. A demanda pelo tema dos direitos humanos em
ambientes educativos foi forjada, neste momento, como um conteúdo necessário aos
novos rumos democráticos brasileiros. Neste registro, encarada como núcleo da
reestruturação da ação pedagógica, a Educação em Direitos Humanos foi lida como a
ferramenta fundamental para a transformação dos vínculos societários, para o
reconhecimento generalizado da dignidade humana e para constituição de uma
perspectiva social promotora dos Direitos Humanos.
RESUMO
O Brasil recebeu uma grande leva de imigrantes a partir da segunda metade do século
XIX, entre os diversos grupos étnicos que entraram no país, estavam os alemães. Com a
entrada destes imigrantes, o Estado brasileiro desejava aumentar a oferta de mão de obra
para agricultura, povoar regiões do interior e ainda promover o progressivo
branqueamento da população. Intelectuais e autoridades brasileiras, influenciadas por
teorias raciais, relacionavam a entrada do imigrante branco a um ideal de progresso para
o Brasil. Já no início do século XX, os imigrantes, que seriam a solução esperada por
autoridades e intelectuais, passam a inspirar cuidado e preocupação, a formação de
colônias homogêneas e a não assimilação esperada, transformam, principalmente os
alemães em perigo para a soberania nacional, preocupação que ganha força com a
inauguração do Estado Novo, em 1937. As medidas nacionalizantes tomadas pela
ditadura varguista exacerbam-se com entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em
1942, transformando o cotidiano de regiões que receberam grandes levas de imigrantes
oriundos de países do Eixo, como o caso de Curitiba. Este trabalho tem como propósito
discutir de que maneira estes imigrantes e descendentes se aproximaram do Nazismo an
capital paranaense, e se a perseguição promovida contra alemães e teuto-brasileiros
refletia uma ação contra um possível perigo político ou seria motivada por questões que
dizem mais sobre o regime e o próprio processo imigratório no Brasil. Para tal,
utilizamos os inquéritos abertos pela DOPS contra alemães e teuto-brasileiros.
RESUMO
A partir da observação de um microcosmo escolar, e buscando compreender o porquê
uma escola, que foi campo dessa investigação, era estigmatizada na cidade de Rafaela,
Santa Fé, Argentina, sendo conhecida como uma “escola de negros”, nos debruçamos
sobre o processo de produção das distâncias sociais e da construção da categoria negro
na Argentina, de forma geral, e em Rafaela, de forma específica. Também nos dedicamos
a enumeração de alguns dos principais elementos classificatórios estigmatizantes e
contemporâneos na cidade, procurando compreender de que forma o estigma afetou a
vida escolar das/os estudantes da escola. A pergunta de pesquisa que nos orientou e que
procuramos responder nessa tese é: em que medida, e de que forma, a categoria negro
influenciou na construção dos sentidos da escola e nas experiências escolares dessas/es
estudantes? Nossa hipótese é que a condição social de negro das/os estudantes afetou
em grande medida suas vidas escolares. A importância de tal discussão reside na
contribuição que o trabalho traz para a compreensão dos processos de racialização da
classe na América Latina.
RESUMO
O presente trabalho surgiu a partir da necessidade de expandir e complementar os
estudos que abrangem as relações entre as diferentes áreas da produção cultural,
destacando o intenso diálogo estabelecido entre o teatro e a canção nos anos 1960. Nos
diferentes campos das ciências humanas, já foram realizadas algumas análises sobre os
pontos de contato estabelecidos entre as obras dos diferentes artistas que foram
identificadas, historicamente, como Tropicalistas. A partir da bibliografia existente,
verificou-se a inexistência de uma análise pormenorizada sobre os processos históricos
que desencadearam a emergência dessas produções, bem como as afinidades temáticas
existentes entre suas principais obras. Analisando o panorama das obras tropicalistas de
José Celso e Caetano Veloso, pinçaremos as encenações de O Rei da Vela (1967), Roda
Viva (1968), a apresentação de Alegria, alegria no III Festival de Música Popular
Brasileira e o álbum-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis (1968) – trabalhando,
especificamente, as canções assinadas por Caetano. De um lado, pretendemos analisar
como essas obras partilham sentidos, suas afinidades e seus afastamentos em relação às
produções nacionais-populares. De outro, buscamos examinar como alguns temas
abordados no teatro de José Celso se projetam, em grande medida, na canção de
Caetano Veloso.
Nominata de Pareceristas
Anderson Deo
Anderson Trevisan
Benito Maeso
Fabíola Lucena
Felipe Amaral
Flávia Novaes
Francisco Januário Pereira
Gabriel Graton Roman
Gabriela Abraços
Gabriela Bandeira
Hernandez Vivan Eichenberger
Isabela Simões Bueno
Kamille Mattar
Luiz Fernando Villalba Santos
Maiara Raquel Campos Leal
Marcelo Ribeiro Vasconcelos
Marcelo Ridenti
Marco Antonio Perruso
Marco Antonio Rossi
Maria José Justino
Maria Pilar Cabanzo Chaparro
Matheus Hatschbach Machado
Matheus Silva
Mauricio Priess da Costa
Pedro Marchioro
Patrícia Corrêa
Paulo Reis
Ramiro Garcia
Ricardo Gaspar Müller
Ricardo Ramos Shiota
Rodrigo Czajka
Tarcila Soares Formiga
Vinícius de Souza Sturari