DISSERTAÇÃO - EstudoDiscursivoCartas
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DISSERTAÇÃO - EstudoDiscursivoCartas
Mariana
2012
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Mariana
2012
Q79e Quintino, Sara Helena.
Um estudo discursivo de Cartas Chilenas [manuscrito]: construção retórica
e representações da memória / Sara Helena Quintino - 2012.
148f.: il. quadros.
AGRADECIMENTOS
Penso que agradecer é uma prática linguageira que pressupõe uma rememoração
de todo o processo de elaboração deste trabalho. Assim, minhas lembranças comportam
vários personagens que foram fundamentais neste enredo acadêmico que está ainda
atrelado a uma narrativa maior de vida, marcada por sonhos, expectativas, aprendizados,
desafios, conquistas, feridas, felicidades, amizades, reencontros. Por isso, para não
incorrerem falhas de memória, presto meus agradecimentos aos grupos de pessoas que
me acompanharam nessa trajetória.
Com o mesmo sentimento familiar, agradeço ao Instituto Prisma por ter mantido
suas portas abertas para mim. A afetividade da acolhida faz com que todo o conhecimento
que construo encontre espaços dialógicos para se efetivar em prol da prática educativa.
Nesse sentido, todos os membros desta escola são agentes no meu fazer acadêmico, em
especial meus queridos alunos.
Por fim, em tom de oração, agradeço ao tempo, esse senhor tão bonito. Creio
mesmo que ele seja o grande compositor de destinos, tambor de todos os ritmos. Sentir-
me na fluidez do tempo fez com que eu acreditasse que não há verdades na grande prosa
do mundo, e que somos verdadeiramente mutatis mutandis. E quando eu tiver saído para
fora do teu círculo, não serei nem terás sido, tempo, tempo, tempo, tempo...
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Essas palavras porosas, carregadas de discursos que elas têm incorporados e pelos
quais elas restituem, no coração do sentido do discurso se fazendo, a carga
nutriente e destituinte, essas palavras embutidas, que se cindem, se transmudam
em outras, palavras caleidoscópicas nas quais o sentido, multiplicado em suas
facetas imprevisíveis, afasta-se, ao mesmo tempo, e pode, na vertigem, perder-se,
essas palavras que faltam, faltam para dizer, faltam por dizer – defeituosas ou
ausentes – aquilo mesmo que lhes permitem nomear, essas palavras que separam
aquilo mesmo entre o que elas estabelecem o elo de uma comunicação, é no real
das não-coincidências fundamentais, irredutíveis, permanentes, com que elas
afetam o dizer, que se produz o sentido. Assim é que, fundamentalmente, as
palavras que dizemos não falam por si, mas pelo ... “Outro”: Outro que abre o
discurso sobre sua exterioridade interdiscursiva interna, a nomeação sobre a perda
relativamente à coisa, a cadeia sobre o excesso de sua “significância”, a
comunicação sobre a abertura intersubjetiva, e, no total, a enunciação sobre a não-
coincidência consigo mesmo do sujeito, dividido, dessa enunciação.
RESUMO
RÉSUMÉ
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
1. Exame da crítica 18
INTRODUÇÃO
Neste sentido, três narrativas cruzam-se neste trabalho: Cartas Chilenas, o Mito
da Inconfidência e a História oficial da Nação. A questão que se coloca a priori é
compreender como a relação discursiva entre elas produz sentidos no plano da
representação da memória cultural da Região dos Inconfidentes, que compreende cidades
mineiras como Ouro Preto, Mariana, Acaiaca, Congonhas, Ouro Branco, Catas Altas e
Santa Bárbara. Todas essas narrativas partem do macro projeto político traçado por
republicanos para fundar uma narrativa histórica do país que legitimasse uma grande
nação e subsidiasse também um empreendimento identitário.
espírito militante da República, de tal forma que o crime, arquivado em Autos de devassa,
passa a significar uma luta digna pela liberdade que deve ser lembrada, preservada,
transmitida e comemorada por todos brasileiros.
Para a efetivação simbólica das narrativas que fundam esse mito, foram
articuladas complexas expedições intersemióticas capazes de transformar qualquer rastro
daquela sociedade em elementos históricos que atestassem o nascimento de uma gloriosa
nação, que se queria fraterna, igualitária e libertária. Artistas, escritores, jornalistas,
literatos, historiadores, críticos, viajantes, pintores, políticos são alguns componentes do
diversificado grupo de aventureiros que dá voz a todo o universo simbólico do mito,
inscrevendo na história da nação discursos pela liberdade.
O que instiga nessas narrativas oficiais é a forma como os fios da memória são
costurados. Se recorrermos à experiência rotineira de rememorar fatos vivenciados para
constituir uma narrativa do eu, sabemos que um feixe de lembranças surge, umas se
sobrepondo às outras, de forma que as imagens do passado são reagrupadas numa ordem
imagética que é por natureza fragmentada e fluída, como a própria memória. Em
contrapartida, as narrativas históricas comportam bem as lembranças numa linha
contínua no tempo e no espaço, o que nos leva a investigar esse processo de seleção e
inscrição de fatos passados nas narrativas oficiais referentes ao período colonial,
operações subjacentes ao fazer histórico.
mudados os nomes, o que temos é uma narrativa que versa contra o período da
administração de Luís da Cunha Menezes, governador da Capitania de MinasGerais entre
1783 e 1788. Perdidos no tempo, os manuscritos foram gradualmente reunidos por
pesquisadores e impressos pela primeira vez nos anos de 1826 e 1845. Hoje, conhecemos
uma estrutura composta de 13 cartas, acrescida da “Epístola a Critilo” – impressa em
1863, conforme dados da edição organizada por Joaci Pereira Furtado.
A esta corrente teórica que mantém o passado em certa linearidade opõe-se outra
que, numa tônica descontínua, pretende rever a própria forma de conceber a escrita do
passado. Na História, este movimento é organizado no escopo teórico da Historiografia,
que passa em revista uma série de representações sobre o passado, situando suas
reflexões, mesmo que de forma indireta, no campo da memória, reapropriada pela
historiografia, a exemplo, nos estudos de Paul Ricoeur (2007). Em consonância com a
Historiografia, outras importantes pesquisas foram sendo articuladas em torno das
narrativas sobre o passado, como a História Literária e a Historiografia literária, cujos
desdobramentos recaem na temática da construção simbólica das identidades nacionais,
pensada na relação entre memória e poder no plano das ações políticas.
dos indivíduos que compõe uma nação, desejo que deve ser conformado por um passado
coeso.
Diante dessas ações no tempo, esta pesquisa não pretende discutir factualmente a
veracidade ou não dessas leituras, nem mesmo sustentar uma verdade histórica sobre as
sátiras e a sublevação contra a metrópole, mas sim verificar as movimentações discursivas
que possibilitam que elas sejam lidas como manifestação literária da nacionalidade
brasileira e do desejo por liberdade. Por isso, nossa volta ao arquivo orienta-se pela
discursividade que permeia o texto, compartilhando com Pêcheux (1994, p.53) a ideia de
que é a “relação entre língua como sistema sintático intrinsecamente passível de jogo, e
a discursividade como inscrição de efeitos linguísticos materiais na história, que constitui
o nó central de um trabalho de leitura de arquivo”. Assim, partimos do princípio de que
as sátiras, enquanto documento do século XVIII, carregam em seu arranjo linguístico
índices que apontam para o jogo de sentidos possíveis, sendo estes orientados no interior
das condições de produção do discurso em correlação com a instância de recepção do
mesmo.
De forma geral, projetamos uma linha de análise espiral que, tendo o discurso
como polo, possibilite-nos girar em torno do nosso objeto observando sua materialidade
semiológica e as representações que dela se faz. Assim, ressaltamos a discursividade nos
processos de produção e recepção dos discursos como procedimento que nos possibilita
analisar como os sentidos alteram-se no contínuo do tempo. Neste sentido, apresentamos
a seguir um exame da crítica a fim de balizarmos algumas proposições teóricas em torno
de Cartas Chilenas desenvolvidas nos campos da História e da Literatura, a partir das
quais estabelecemos o fio discursivo que tece este estudo.
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1. Exame da crítica
Para a autora, esse conflito identitário estaria assentado na posição social do poeta
na estrutura administrativa da colônia: há a figura do poeta letrado que, tendo estudado
na Europa e vivenciado os prazeres do ambiente cultural que efervescia na Corte, ocupa
um posto relevante, mas ainda é o colonizado, do que decorre o sentimento de exílio na
colônia somado a uma submissão estética alheia a sua realidade imediata. Esse conflito
permearia então os versos dos poetas inconfidentes num tom confessional e
universalizante, de forma que as obras seriam um “esforço de superação de um estado de
coisas cada vez mais difícil, chegando ao insuportável, na ordem seja do político, do
afetivo, seja do estético”, tal como aponta Aguiar (2007, p.354).
[...] os letrados na colônia estavam fora de seu lugar por excelência. Eram
indispensáveis à empresa colonizadora, é verdade, mas esta atendia apenas a
um espectro limitado de suas aspirações sociais e espirituais. Se a vida citadina
mineira, na sua singularidade, permitiu-lhes o vislumbre de uma sociedade
polida, a cotidiana frustração desse ideal de civilidade acentuava ainda mais
seu desconforto. (ALCIDES, 2003, p. 127)
Diante dessas formulações sobre o conflito identitário vivido pelos poetas árcades,
interessam-nos, sobretudo, os aspectos sociais envolvendo a participação dos mesmos no
campo político. Conhecendo-os, teremos possivelmente uma janela que dá acesso aos
jogos de imagens figuradas pela persona satírica – Critilo, enquanto características
discursivas ou ethos colado ao enunciador das cartas, que possivelmente girariam em
torno do pólo letrado-colonizado. Ressalta-se ainda o caráter universalizante: em que
medida ele se associaria ao plano da memória? Essas questões reforçam a pertinência
entre os apontamentos de Melânia Aguiar (2007) e Sergio Alcides (2003) e os objetivos
dessa pesquisa, direcionados para análise dos discursos políticos subjacentes às sátiras.
Assim, ambos os trabalhos oferecem significativas perspectivas de análise das
composições literárias, principalmente nas interpretações sobre o universo cultural e
político de Vila Rica no século XVIII.
O livro de Jorge Ruedas faz lembrar que no século XIX houve uma espécie de
transferência de obsessões, deslocando quase inteiramente o nosso interesse
em matéria de cultura de Portugal para a França, em parte devido à necessidade
de sublinhar a separação política. Isso levou, muitas vezes, a esquecer as
ligações orgânicas com a antiga Metrópole, atitude que os críticos hispano-
americanos evitaram assumir em relação à Espanha e os norte-americanos
nunca assumiram em relação à Inglaterra. (CÂNDIDO apud RUEDAS DE LA
SERNA, 1995, p. 2)
figura do poeta na constituição das biografias célebres que deveriam dizer sobre
sociedade mineira.
O primeiro, que iria de 1845 a 1880, estaria orientado por uma crítica romântica
que demarcaria em suas leituras o prenúncio de uma consciência nacional
empenhada em manifestar a indisposição dos colonos à subordinação exercida
pela Coroa.Assim, o historiador tece os comentários relativos a essa fase no
capítulo intitulado metaforicamente “Retrato”, no qual ele discute o estatuto de
fonte documental atestado para os versos.
Neste conclusivo parecer, Furtado sugere então que a análise das diferentes
instâncias de recepção das Cartas Chilenas aponta para o deslocamento de uma leitura
romântico-positiva para uma científica, sendo esta mais aberta por considerar o estatuto
irrevogável do texto literário frente a outras fontes historiográficas. Esta suposta
maturidade da crítica científica, precisamente da Historiografia, foi duramente arrebatada
pelo crítico literário Alcir Pécora (2003) ao afirmar que a passagem de posições mais
antigas para as mais modernas não sinaliza nenhum tipo de “progresso intelectual”, tal
como faz parecer Furtado, mas “a passagem de leituras adequadas a diferentes momentos
históricos” (PÉCORA, 2003, p. 17). Portanto, compartilhamos com Pécora a prerrogativa
que:
25
[...] esses blocos de recepção procuraram responder, cada um, a cada vez, a
projetos críticos diferentes, o que impede a avaliação muito direta do
“progresso intelectual” obtido, a não ser que se entenda por progresso algo
muito mais modesto do que o nome dá a entender, isto é, o simples
reconhecimento de mudanças mais lentas ou mais rápidas de blocos de
significados interessantes no tempo. (PÉCORA, 2003, p.17)
Nessa linha de raciocínio, Pécora (2003, p.22) entende que as Cartas Chilenas “são
perfeitamente fidedignas em relação ao período histórico que constituem, enquanto
forem, ao mesmo tempo, recriações, reinvenções verossímeis para o período
contemporâneo de sua recepção”. Ainda no decorrer de sua crítica, assentada
principalmente na hermenêutica da fonte descrita por Joaci Pereira Furtado (1995),
Pécora discorre sobre as orientações metodológicas que julga serem necessárias para uma
pesquisa que se encerra na fronteira teórica entre Literatura, História e crítica
contemporânea, principalmente no que diz respeito aos estatutos de textos literários e não
literários1. Dentre elas, destacamos uma que, de certa forma, corrobora um procedimento
metodológico sistematizado na Análise do Discurso que considera a materialidade
discursiva imanente ao objeto de estudo: “a exigência de ajuste ao objeto em questão, que
poderia ser nomeada também como uma exigência de propriedade”, como aconselha
Pécora (2003, p. 22). Tal ajuste é para o autor senão um duplo ajuste que se articula em,
como ele mesmo propõe,
Esses ajustes exigidos por uma crítica em torno de um objeto literário equivalem
a, respectivamente, no exame discursivo proposto em nosso projeto: a) apontar os
aspectos psicossociais que constituem as condições de produção discursiva das sátiras,
evidenciando as condições persuasivas de enunciação que estruturam a própria prática
discursiva engendrada pelo autor ao se constituir pela persona satírica Critilo, visto como
sujeito situado historicamente e membro de um grupo social com o qual compartilha
1
Pécora (2003, p.20) admite que não é o caráter ficcional ou real que define um documento, até mesmo
porque o texto poético e o documento estão condenados à invenção de efeitos que não são “o real”, mas
que podem significar o real como verossímil.
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As sátiras sofreriam influência direta das regras de composição retórica, uma vez
que Gonzaga, tendo sido educado por jesuítas, estaria familiarizado com elas.
Villalta (2007) não se detém em examinar tais preceptivas, mas indica que elas
estariam ligadas diretamente ao vitupério do governador Cunha Menezes,
caracterizado então como tirano, cruel, e à irônica inversão do cenário criado pelo
poeta para situar e compor suas personagens e as ações narradas no espaço
colonial espanhol.
As imagens de bom governante, aquele que deve zelar pela felicidade dos povos
por ser depositário do poder divino, seriam compostas em convergências com
teorias corporativas de poder da Segunda Escolástica, fundadas sobre os
imperativos de Aristóteles e São Tomas de Aquino, sendo relidos no interior de
27
Em sua leitura sobre as Cartas Chilenas, Villalta (2000; 2002; 2007) apresenta
pontos extremamente relevantes que nos permitem insistir no pressuposto de que as
sátiras possuem uma memória de outros discursos, apresentados por ele como as origens
intelectuais e políticas articuladas. Para o pesquisador, a respeito das Cartas Chilenas,
Gonzaga teria sido um observador cuidadoso e crítico de seu tempo que, ao mesmo tempo
que declarava suas críticas à tirania, mostrava-se também ambíguo no que se referia ao
direito de insurgência. Isso o leva a demonstrar o especial vínculo entre as sátiras e a
vivência do seu autor. Ora, o que nos interessa pensar em relação a essa divergência
pressuposta pelos versos quanto ao direito do povo de insurgência é analisar os efeitos de
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sentido que tal ambiguidade acarreta no plano discursivo. Estaria de fato Gonzaga
contrário ao direito do povo, ou seria Critilo adequando seu discurso a outra
intencionalidade diferente dos anseios iluministas da época, ou ainda a outros discursos,
como o da Coroa?
[...] a sátira opera com o duplo ponto de vista da enunciação: Critilo, que não
é Gonzaga, compõe vícios e viciosos como mescla fantástica e, na deformação
produzida, encena o ponto de vista icástico das suas virtudes éticas e políticas.
No final do século XVIII, pressupõe-se que os vícios fracos são vergonhosos
e, logo, ridículos, sendo assunto de comédia; e que os fortes, por causarem
medo e horror, são temas de sátira. Fanfarrão Minésio, que não é Menezes, é
um tipo cômico composto pela aplicação de lugares-comuns dos dois
subgêneros recheados com metáforas dos discursos locais. Lugares-comuns de
nome, idade, sexo, aparência física, educação, hábitos, família, origem,
fortuna, posição, ocupações, inclinações de Fanfarrão e discurso das
instituições portuguesas e da murmuração informal de Vila Rica são fundidos
em vícios que encenam o ponto de vista tradicionalista da virtude que os avalia
e corrige, enfim, para Doroteu, que não é Claudio. (HANSEN apud
FURTADO, 1997, p.18)
Esse duplo espaço de enunciação, apontado por Hansen, constitui nosso substrato
de investigação a cerca das sátiras. Acreditamos que uma análise das tópicas discursivas
e desses lugares comuns de onde enuncia a persona satírica permite-nos situar a forma
como o imaginário da Inconfidência Mineira adentra Cartas Chilenas e faz da “obra” uma
bandeira igualitária, fraterna e libertária, processo este que, ao longo da experiência do
tempo a qual cada leitor está submetido, percorre também um duplo espaço persuasivo:
o da sátira enquanto prática sócio-discursiva do século XVIII e o do libelo prefático da
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[...] esta a razão porque os teatros, instituídos para a instrução dos cidadãos,
umas vezes nos representam a um herói cheio de virtudes, e outras vezes nos
representam a um monstro, coberto de horrorosos vícios. Entendo que V. Exas.
se desejarão instruir por um e outro modo. Para se instruírem pelo primeiro,
têm V. Exas. os louváveis exemplos de seus ilustres progenitores. Para se
instruírem pelo segundo, era necessário que eu fosse descobrir o Fanfarrão
Minésio, em um reino estranho! Feliz reino e felizes grandes que não têm em
si um modelo destes!(GONZAGA, 2005, p. 34)
Vale ressaltar também, como num breve parêntese, o modo como podemos
apreender as relações entre os interlocutores no quadro de análise proposto na Teoria
Semiolinguística, a qual os entende como sujeitos responsáveis pela produção e recepção
do discurso. Ambos estão submetidos a uma espécie de circuito do dizer que apresenta
um duplo espaço onde se cruzam os sentidos: (I) um externo, que abarca relações
psicossociais entre os sujeitos-parceiros históricos envolvidos no ato de linguagem, de
forma que o responsável pela iniciativa do ato é o sujeito comunicante (Euc), mantenedor
de uma identidade social reconhecida pelo seu parceiro, sujeito interpretante (Tui) a quem
se direciona o discurso; (II) outro interno, espaço no qual o sujeito enunciador (EUe)
lança seus dados semiológicos na direção de um sujeito destinatário(TUd) sobre o qual
se desenrola os efeitos de sentidos possíveis que devem culminar em uma ação. Mais do
que apontar para terminologias metodológicas de análise, esta disposição dos sujeitos em
relação aos processos de produção e recepção dos discursos revela também as projeções
ou jogos de imagens que os parceiros constroem discursivamente para si mesmos, de
forma a atingir o sucesso.
Logo que li estas Cartas, assentei comigo que as devia traduzir na nossa língua,
não só porque as julguei merecedoras deste obséquio pela simplicidade do seu
estilo, como, também, pelo benefício, que resulta ao público, de se verem
satirizadas as insolências deste chefe, para emenda dos mais, que seguem tão
vergonhosas pisadas.(GONZAGA, “Prólogo”, p. 35 – grifo nosso)
seja, cabe-nos investigar quais arranjos linguísticos são realizados pelo sujeito em seu
discurso para agir sobre o outro em função do quadro geral da situação de troca. Assim,
assumimos uma dupla perspectiva – colocada por Charaudeau (2008, p.60) numa relação
de reciprocidade: “que condições propiciam quais comportamentos linguageiros
possíveis, e quais comportamentos efetivos são propiciados por quais condições. ” É essa
correlação que nos leva a considerar que nos entrelaces das condições de produção e dos
comportamentos linguageiros está implicado um jogo de forças entre um corpo coletivo
e um indivíduo particular.
Apreendemos esse jogo de forças pelo discurso para fazer emergir os possíveis
interpretativos, sagazmente concebidos pelo linguista como as testemunhas das práticas
sociais que caracterizam um grupo ou uma comunidade humana. Portanto, os possíveis
interpretativos são depositários, enquanto representações linguageiras, das experiências
dos indivíduos pertencentes a esses grupos, enquanto sujeitos individuais e coletivos.
Numa perspectiva semiolinguística, os elementos linguageiros, semânticos e formais que
estruturam tais representações, constituem-se em um instrumento que serve para
interrogar o(s) texto(s), neles fazendo surgir os possíveis interpretativos, como aponta
Charaudeau (2008, p. 63). Por essa razão, nesta primeira parte da pesquisa, concentramo-
nos principalmente em aferir as relações interdiscursivas que constituem o discurso
político presente nas Cartas Chilenas e que orientam sua leitura enquanto prática
discursiva do século XVIII. Focamos também o discurso político materializado nas
sátiras, que irrompe num momento político, social, cultural e também econômico de
Minas Gerais e que constitui a base de um imaginário que conformaria os desejos de
nacionalidade.
Tantas são as histórias sobre Minas Gerais quantas foram as trilhas abertas neste
sertão para se chegar ao ouro. Os numerosos e diversos estudos dirigidos para se
compreender o universo das Minas setecentistas atestam a complexidade das relações
sociais estabelecidas na ocupação e administração da região aurífera que moveram o
singular processo de urbanização de Minas, em especial de Vila Rica, no século XVIII,
nosso cenário de referência. Neste sentido, o subtítulo efetiva-se como uma incursão
neste período histórico orientada em apreender as condições de produção discursiva das
sátiras que compõem Cartas Chilenas, movimento este que se concretiza a partir de
33
Ao tecer as linhas descritivas dessa sociedade, antes cientes das várias lacunas
interpretativas impostas por este período histórico, desviamo-nos da correlação imediata
com os fatos históricos relacionados à sublevação mineira contra a Coroa por insistirmos
na materialidade discursiva das sátiras. Assim, no recorte epistemológico estabelecido,
julgamos coerente nos centrar nas práticas sociodiscursivas características do arranjo
social próprio do cenário urbano constituído em Vila Rica, principalmente aquelas ligadas
ao fervilhar de uma cultura política marcada por interditos capazes de preservar ou alterar
a boa ordem do sistema monárquico.
Das Minase seus moradores bastava dizer o que dos do Ponto Euxino, e da
mesma região afirma Tertuliano: que é habitada de gente intratável, sem
domicílio, e ainda que está em contínuo movimento, é menos inconstante que
os seus costumes: os dias nunca amanhecem serenos: o ar é um nublado
perpétuo: tudo é frio naquele país, menos o vício, que está ardendo sempre. Eu,
contudo, reparando com mais atenção na antiga e continuada sucessão de
perturbações,que nela se vêem, acrescentando que a terra parece que evapora
tumultos: a água exala motins: o ouro toca desaforos: destilam liberdades os
ares: vomitam insolências as nuvens: influem desordens os astros: o clima é
tumba da paz e berço da rebelião: a natureza anda inquieta consigo, e
amotinada lá por dentro, é como no inferno”. (ASSUMAR apud SOUZA,
2004, p. 59)
relações sociais, já que os espíritos dos indivíduos que a habitavam eram guiados pela
ânsia da riqueza e monitorados pela metrópole, ansiosa também pela glória aurífera.
Assim, queixas como as de Conde Assumar são recorrentes entre os governantes
designados para a nova capitania; elas ressaltam fundamentalmente os traços de rebeldia,
de insubordinação e de arrogância da população das Minas, que já atemorizava os
governadores justamente por sinalizar a dificuldade de imposição da ordem monárquica.
Tal mecanismo poderia até surtir efeito numa sociedade estamental de moldes
europeus. Mas nas Minasda época, os princípios estratificadores, ainda em fase
de constituição, mostraram-se compósitos, aliando o status e a honra a valores
novos, ditados pelo dinheiro e pelo mérito. (SOUZA, 2006, p. 156)
A reflexão proposta pelo historiador ao longo de sua obra recai num ponto central
para esta breve incursão nas Minas setecentistas: a fundamentação teórica dos embates
morais constitutivos das práticas discursivas do período. O historiador aponta a seguinte
base teórica para se pensar o projeto de colonização empreendida pelo Estado português
no setecentos: o modelo civilizador, o Reformismo, a mitologia orgânica e a Ilustração.
Tais elementos incidiram diretamente sobre a formação social de Vila Rica ao passo que
determinaram as matrizes ideológicas dos discursos sociais vigentes no período, como
também testemunharam a dinâmica do poder no interior do cenário político no qual as
sátiras são produzidas.
cortesia. Silveira (1996) destaca que o processo civilizatório desencadeado pelo governo
português na colônia foi centralizado na figura do homem honrado, aquele capaz de
empreender ações puras e nobres, a fim de se garantir uma harmonia entre as partes que
constituíam aquela sociedade. Esse desejo da metrópole apresentou-se então como um
desafio constante para o governo português, já que a discórdia era uma marca inerente à
população das minas, centrada em práticas financeiras que atendiam aos interesses
particulares, fator este que aponta para as regulares práticas de corrupção no interior dos
acordos financeiros e políticos.
Neste ponto, apesar de todo o incentivo a uma instrução baseada na nova teoria
política em voga, o estadista português não deixou de conceber a importância
de se preservar mecanismos tradicionais de afirmação da soberania nacional,
inseridos numa lógica própria ao Antigo Regime e que ainda faziam sentido
no contexto das relações internacionais da Europa setecentista. (SILVA, 2006,
p.57)
Assim, mais uma vez, torna-se explícito o modelo de vassalo que se adaptava
ao arranjo particular do “processo civilizatório” no Império português. O
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Em sua obra, O universo do indistinto (1996), Marco Antônio Silveira apresenta e discutes diversos
exemplos desses embates sociais, extraídos de arquivos da região que elucidam a dinâmica social do
período em questão; um cuidadoso e exaustivo trabalho arquivístico que não caberia na extensão deste
tópico, mas que tem sua importância ressaltada nestas linhas descritivas da sociedade mineira no século
XVIII.
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Se o modelo de vassalo, resultante das correlações entre as bases teóricas nas quais
se pensava erguer o novo eldorado, mostrou-se inoperante para grande parte da
população, ele chegou a seduzir um grupo específico: os letrados. Em geral, pertencentes
à camada superior, os letrados vinham de Portugal sob nomeação da coroa ou faziam
parte de famílias abastadas que proviam seus estudos na Europa, condições que os
encaminhavam para o exercício administrativo, médico ou jurídico, além de outros que
prosseguiam na atividade clerical. Filhos das reformas pombalinas, eles eram
indispensáveis à empresa colonizadora – principalmente em Minas, cujo aparelho
administrativo, político e fiscal apresentava-se mais complexo – em função de sua
formação científico-racional, sendo o grau de doutor e a profissão liberal suas únicas
formas de distinção social, como aponta Alcides (2003)3.
3
Em sua obra, Estes penhascos: Claudio Manuel da Costa e a paisagem das Minas/1753-1773, Sérgio
Alcides localiza os letrados no cenário urbano mineiro destacando o inconformismo do grupo em relação
ao choque cultural vivenciado por eles decorrente do afastamento dos hábitos da Corte: “em suma, pode-
se dizer que os letrados na colônia estavam fora de seu lugar de excelência. Eram indispensáveis à empresa
colonizadora, é verdade, mas esta atendia apenas a um espectro limitado de suas aspirações sociais e
espirituais. Se a vida citadina mineira, na sua singularidade, permitiu-lhes o vislumbre de uma sociedade
polida, a cotidiana frustração desse ideal de civilidade acentuava ainda mais seu desconforto. ”(2003 p.
127)
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Como uma grande metáfora do mundo desejável, por uma parte, e do mundo
existente, por outro, é natural à Arcádia a ambiguidade, pois o homem deve
discernir por si mesmo e exercitar seu engenho, para apreender as sutilezas da
arte e separar o bom do mau. A Arcádia, enfim, como mundo humano por
excelência, permite que nela se expresse o que, no mundo imperfeito e ainda
contaminado pelas paixões e pela injustiça, até hoje não tem lugar. (RUEDAS
DE LA SERNA, 1995, p. 51)
essa matriz é transfigurada nos acontecimentos discursivos, que, por sua vez, tornam-se
produtos históricos que testemunham sobre as regras do espaço público e político
características do período em questão. Podemos propor então como síntese descritiva do
cenário urbano da vila as seguintes palavras de Silveira:
Tal busca incessante por referências que norteassem as diversas esferas sociais
pode ser entendida como parte do empreendimento de colonização na medida em que a
região mineradora das gerais não representou somente o sonho da riqueza, mas também
um local auspicioso à instauração do novo, do diferente. Vila Rica, além de figurar como
uma nova região a ser administrada longe dos olhos da coroa, apresentou-se também
como um “cenário em branco” no qual se podia (re)desenhar relações sociais, políticas e
econômicas segundo intencionalidades próprias a cada grupo social constituído sem que
os interditos da metrópole alterassem significativamente os traços dessa sociedade
indistinta. No entanto, traçar o novo é uma atividade que pressupõe necessariamente o
velho, e é justamente sob essa ótica que podemos reconstituir o quadro de práticas
sociodiscursivas do período em questão de forma a situar Cartas Chilenas nesse cenário
de Vila Rica.
pela colonização. Neste sentido, as sátiras demarcam em seu discurso certos índices que
nos permitem recuperar a materialidade constitutiva que as revela no plano das práticas
discursivas do período, justamente por elas representarem certas leis definidoras da forma
histórica com que os indivíduos organizaram-se em sociedade.
sobre a qual um bom poeta discorreria segundo o objetivo maior de concorrer para a
harmonia social, ou ainda, cuidar de sua concórdia interna.
Nas MinasGerais, como ocorria por toda parte onde havia concentração de
letrados, circulavam livros e cartas, estas com frequência que hoje causa
espanto. O que chama a atenção, entretanto, é a importância que assume, como
forma de expressão artística e sociabilidade literária, a prática do versejar. Não
há como deixar de reconhecer que, entre os letrados, a poesia era um suporte
importante de sua sociabilidade, para o que basta recordar a grande quantidade
de poemas que contêm as muitas descrições de festas de autoria de coloniais.
(JANCSÓ,1998 p. 408)
e refinamento cultural guardada dos tempos de vida nos centros europeus. Acreditamos
que as palavras de Sergio Buarque de Holanda (1991) atingem uma descrição pontual
desses aspectos sociais e literários:
discursiva do gênero epidíctico incide sobre o modo como é reforçada uma espécie de
comunhão em torno de certos valores que se procura fazer prevalecer justamente por
orientarem uma ação para o futuro; logo, aquilo que se interpõe à consolidação de laços
de comunidade passa a ser tomado como objeto de teatralização epidíctica na medida em
que não há percepção de elos de pertencimento com os discursos dominantes. Neste
sentindo, pode-se dizer que na sociedade mineira setecentista, ainda em processo de
estratificação, o discurso epidíctico assume uma relevante dimensão utilitária e política
no plano das práticas sociodiscursivas por coadunar-se à necessidade de comunhão dos
valores que deveriam ser sedimentados na estrutura social da colônia.
O que queremos ressaltar nestas interpretações históricas em torno dos fatos que
cercaram as ações políticas empreendidas por Cunha Menezes são, fundamentalmente, as
reações decorrentes das rupturas causadas por seu governo na então confortável e
orgânica estrutura forjada pelos agentes de poder da metrópole. Acreditamos tratar-se de
46
posicionamentos considerados incoerentes pelo poder local, uma vez que colocavam em
choque não só os discursos dominantes como também os interesses particulares, na
medida em que rompiam com os laços comunitários de prestígios já estabelecidos sob a
égide de uma nobreza pretensamente estamental e de costumes, portanto, decorre disso
também a necessidade de se resguardar costumes e valores que foram colocados em
cheque pelo governador Cunha Menezes. O próprio ouvidor Gonzaga fizera uma
representação à Rainha discorrendo sobre o novo governador, pontuando que:
Resta-nos então conceber que o objeto de sátira estava situado no próprio acordo
entre súdito e Estado. Neste sentido, Hansen (1989a) discute que a sátira é genérica, ela
ataca pessoas não exclusivamente por alguma peculiaridade que as faça imorais, mas pelo
vício político que tal peculiaridade pode suscitar de forma a causar desordem na harmonia
de todas as partes e o todo do corpo político. Sendo assim, as Cartas Chilenas evidenciam
publicamente no monstro moral, representado na figura do Fanfarrão, que há um modelo
daquele que seria um bom governo, capaz de manter não só a concórdia entre as partes,
47
como também assegurar às camadas do poder local a distinção que mereceriam e que lhes
eram suas por direito.
Amigo Doroteu, prezado amigo, [...] Vestida uma vermelha e justa farda
Acorda, Doroteu, acorda, acorda; De cada bolso da fardeta, pendem
Critilo, o teu Critilo é quem te chama. Listadas pontas de dois brancos lenços;
Ouvirás, Doroteu, sucessos novos, Na cabeça vazia se atravessa
Estranhos casos, que jamais pintaram Um chapéu desmarcado, nem sei como
Na idéia do doente, ou de quem dorme Sustenta o pobre só do laço o peso.
Agudas febres, desvairados sonhos Ah !tu, Catão severo, tu que estranhas
Não és tu, Doroteu, aquele mesmo O rir-se um cônsul moço, que fizeras
Que pedes que te diga se e verdade Se em Chile agora entrasses e se visses
O que se conta dos barbados monos Ser o rei dos peraltas quem governa ?
Que à mesa trazem os fumantes pratos? [...] Os grandes do país, com gesto humilde
Não queres que te informe dos costumes. Lhe fazem, mal o encontram, seu cortejo;
Dos incultos gentios? [...] Ele austero os recebe, só se digna
Pois se queres ouvir notícias velhas Afrouxar do toutiço a mola um nada,
Dispersas por imensos alfarrábios, Ou pôr nas abas do chapéu os dedos.
Escuta a história de um moderno chefe. Ah! pobre Chile, que desgraça esperas!
Que acaba de reger a nossa Chile, Quanto melhor te fora se sentisses
Ilustre imitador a Sancho Pança. As pragas, que no Egito se choraram,
E quem dissera, amigo, que podia Do que veres que sobe ao teu governo
Gerar segundo Sancho a nossa Espanha![...] Carrancudo casquilho, a quem rodeiam
Ora pois, doce amigo, vou pintá-lo Os néscios, os marotos e os peraltas! [...]
Da sorte que o topei a vez primeira; Ajuntavam-se os grandes desta terra.
Nem esta digressão motiva tédio À noite, em casa do benigno chefe
Como aquelas que são dos fins alheias, Que o governo largou. Aqui, alegres,
Que o gesto, mais o traje nas pessoas Com ele se entretinham largas horas
Faz o mesmo que fazem os letreiros Depostos os melindres da grandeza,
Nas frentes enfeitadas dos livrinhos, Fazia a humanidade os seus deveres
Que dão, do que eles tratam, boa idéia.[...] No jogo e na conversa deleitosa.
Ainda me parece que o estou vendo A estas horas entra o novo chefe
No gordo rocinante escarranchado Na casa do recreio e, reparando
As longas calças pelo umbigo atadas, Nos membros do congresso, a testa enruga,
Amarelo colete e sobre tudo E vira a cara, como quem se enoja.
48
Porque os mais, junto dele não se assentem A quem os tristes pretendentes cercam,
Se deixa em pé ficar a noite inteira. Quando no régio tribunal se apeia,
Não se assenta, civil, da casa o dono Que, bem que humildes em tropel o sigam,
Não se assenta, que é mais, a ilustre esposa; Não pára, não responde, não corteja ?
Não se assenta, também, um velho bispo Tu já viste o casquilho, quando sobe
E a exemplo destes, o congresso todo. A casa em que se canta e em que se joga,
Pensavas, Doroteu, que um peito nobre, Que deixa à porta as bestas e os lacaios,
Que teve mestres, que habitou na corte Sem sequer se lembrar que venta e chove?
Havia praticar ação tão feia Pois assim nos tratou o nosso chefe:
Na casa respeitável de um fidalgo, Mal à porta chegou, de chefe antigo,
Distinto pelo cargo que exercia Com ele se recolhe e até ao mesmo
E, mais ainda, pelo sangue herdado? Luzido, nobre corpo do senado
Pois inda, caro amigo, não sabias Não fala, não corteja, nem despede.[...]
Quanto pode a tolice e vã soberba.[...] À vista desta ação indigna e feia,
Chegou-se o dia da funesta posse: Todo o congresso se confunde e pasma.
Mal os grandes se ajuntam, desce a escada Sobe às faces de alguns a cor rosada,
E, sem mover cabeça, vai meter-se Perdem outros a cor das roxas faces;
Debaixo do lustroso e rico pálio. Louva esta o proceder do chefe antigo,
Caminham todos juntos para o templo, Aquele o proceder do novo estranha,
Um salmo se repete, em doce coro, E os que podem vencer do gênio a força
A que ele assiste, desta sorte inchado, Aos mais escutam, sem dizer palavra.
Entesa mais que nunca o seu pescoço. São estes, louco chefe, os sãos exemplos
Em ar de minuete o pé concerta Que, na Europa, te dão os homens grandes?
E arqueia o braço esquerdo sobre a ilharga. Os mesmos reis não honram aos vassalos?
Eis aqui, Doroteu, o como param Deixam de ser, por isso, uns bons monarcas?
Os maus comediantes, quando fingem Como errado caminhas! O respeito
As pessoas dos grandes, nos teatros. Por meio das virtudes se consegue
Acabada a função, à casa volta; E nelas se sustenta. Nunca nasce
(Os grandes o acompanham, descontentes), Do susto e do temor, que aos povos metem
Co’a mesma pompa com que foi ao templo. Injúrias, descortejos e carrancas.
Tu já viste o ministro carrancudo (GONZAGA, 2005, p. 49-64 – grifos nossos)
fidalgo e distinto pelo cargo que exercia, e do novo – indigno, louco, descortês,
carrancudo, o representante dos incultos gentios. Vale ressaltar ainda que a locução
adjetiva cabeça vazia parece, a nosso ver, representar a deficiência racional daquele que
substitui um governador simpatizado por todos. Dessa forma, as referências, ou fundo
comum, que sustentam tal oposição são justamente aqueles discursos que constituem a
matriz ideológica do Estado português, já elucidados.
Tais discursos são marcados de diversas formas no plano enunciativo das sátiras,
e entendemos que a atualização deles atende à intenção persuasiva do poeta de promover
o vitupério do Fanfarrão, aquele que representa os vícios políticos que atentam contra a
ordem do Estado. No empreendimento político que é a sátira, a notoriedade literária
decorreria do manejo artificioso dos acontecimentos cotidianos que seriam teatralizados
e principalmente da revitalização dos princípios valorativos ensejados pelos grandes e
pela Coroa, como pode ser observado nos trechos negritados. De todos os discursos
marcados, destacamos o seguinte, que congrega em si uma série de índices relevantes
para a recuperação da historicidade das sátiras: “Pensavas, Doroteu, que um peito nobre,
Que teve mestres, que habitou na corte/Havia praticar ação tão feia/Na casa respeitável
de um fidalgo,/Distinto pelo cargo que exercia/E, mais ainda, pelo sangue herdado?”. Este
excerto nos apresenta símbolos de distinções fulcrais que nos soam como a legitimação
dos discursos conclamados pelos agentes de poder: a nobreza dos costumes, a formação
acadêmica, o prestígio advindo dos cargos ocupados e ainda a defesa da herança genética.
Portanto, podemos concordar com Sérgio Buarque de Holanda ao admitir que os
espetáculos literários deleitavam-se com o fulgor das próprias paixões, do desejo por
distinção, transpostos para o plano superior da arte.
representativo do campo político cuja intencionalidade pode ser situada no âmbito dos
discursos do poder vigente.
palavra do outro. Essas três dimensões entrecruzam-se no sujeito, o que acaba por revestir
a linguagem de uma aura heteroglóssica, uma camada densa e tensa de discursos.
Para tal, selecionamos como objeto de análise os três paratextos que constituem
as cartas em obra, conforme a edição de Furtado utilizada neste estudo: o “Título ementa”,
52
Cartas Chilenas
___________________________________________________
Dedicatória
Beija as mãos
De V. Exas o seu menor criado.
______________________________________________________
Prólogo
4
Consideramos os textos apresentados na edição organizada por Joaci Pereira Furtado (GONZAGA, 1995,
p.32 -36).
53
Logo que li estas Cartas, assentei comigo que as devia traduzir na nossa
língua, não só porque as julguei merecedoras deste obséquio pela simplicidade
do seu estilo, como, também, pelo benefício, que resulta ao público, de se
verem satirizadas as insolências deste chefe, para emenda dos mais, que
seguem tão vergonhosas pisadas.
Um Dom Quixote pode desterrar do mundo as loucuras dos cavaleiros
andantes; um Fanfarrão Minésio pode também corrigir a desordem de um
governador despótico.
Eu mudei algumas coisas menos interessantes, para as acomodar
melhor ao nosso gosto. Peço-te que me desculpes algumas faltas, pois, se és
douto, hás de conhecer a suma dificuldade, que há na tradução em verso. Lê,
diverte-te e não queiras fazer juízos temerários sobre a pessoa de Fanfarrão.
Há muitos fanfarrões no mundo, e talvez que tu sejas também um deles, etc.
Outra noção que pode ser correlacionada àquilo que buscamos definir como
memória discursiva é a de memória social, proposta por Paul Connerton, em Como as
sociedades recordam (1999), obra na qual o autor discute as formas de transmissão de
memória no interior de um grupo, abordando para tal as cerimônias comemorativas e
práticas corporais entendidas como performances através das quais são transmitidos e
conservados os conhecimentos recolhidos das imagens do passado. O autor parte de duas
considerações axiomáticas que dizem respeito à memória em geral e à memória social.
memória social mesmo que seus membros não estejam em presença, e dela decorre aquilo
que chamamos de comunidades virtuais, associação possível se pensarmos que:
A primeira pista que nos direciona para a análise da memória discursiva inscrita
nas sátiras é justamente a designação chilenas, presente no título, que direciona o leitor
para o cenário no qual os sucessos do Fanfarrão Minésio desenredam-se: o Chile, que,
historicamente, esteve sob o domínio colonial espanhol. Considerando o fato de o Estado
português ter se mostrado contrário às formas de colonização do Estado espanhol,
57
Tais fragmentos são instigantes para refletirmos sobre a intencionalidade que pode
ser recuperada por meio das expressões destacadas. Ao caracterizar o cavalheiro como
instruído nas Humanas Letras, o sujeito comunicante põe em relevo a notoriedade de
uma formação acadêmica no período colonial, porém, esta construção discursiva parece
estar orientada para a figuração do próprio poeta, para quem não foi dificultoso selar
amizade com tal cavalheiro, como também aquele que enfatiza a dificuldade da tradução
que pode ser averiguada por quem é douto, assim, o poeta pode vislumbrar seu
59
refinamento cultural por meio de seu próprio discurso. O que gostaríamos de pontuar é
justamente o valor que a instrução racional assume como caminho para a distinção nas
Minas setecentista.
Para entender a regra desse jogo que combina gêneros distintos, faz-se necessário
retomar o caráter de crônica associado às representações literárias do período colonial.
Ele elucida o peso informacional das práticas literárias que tinham como matéria os
acontecimentos cotidianos ocorridos na região, principalmente aqueles que envolviam
embates morais decorrentes de conflitos que recobriam os limites e fronteiras das esferas
públicas e privadas das classes mais altas na defesa dos valores capazes de os distinguirem
dos demais. Inclusive, tal caráter de crônica é efetivado com a memória do gênero carta,
que pressupõe um emissor que deseja (ou precisa, ou tem a obrigação) contar algo para
alguém, além do fato desse gênero constituir-se uma prática social na comunicação entre
a metrópole e colônia. Diante disso, podemos identificar Critilo como o remetente dos
sucessos que cercaram o governo de Fanfarrão Minésio e os Grandes de Portugal como
os destinatários, lugar coerente a quem compete o dever de zelar pela felicidade e paz de
seus súditos, como prescreve a metáfora do corpo uno regido pelo Rei, discurso
característico também dos princípios neoescolásticos.
Uma vez que a memória de situações foi acionada, podemos dirigir-nos para a
encenação que é enfim conduzida pelo sujeito e manifesta-se no nível da mise-en-scene
discursiva, lugar em que ele, “tendo mergulhado nos imaginários sociodiscursivos, e
levando em conta as restrições do quadro situacional e de suas instruções, procede à
organização de seu discurso. ” (2009, p. 324). Esse nível exige do sujeito as competências
discursiva e semiolinguística, desenvolvidas a partir daquilo que Charaudeau (2004)
chama de memória das formas de signos por meio da qual o sujeito habitua-se, pela
rotina, com a organização das maneiras de dizer (que podem ser de ordem estética, ética,
pragmática), instituídas por comunidades semiológicas que reúnem, também
61
Aquilo que Achcar (2004) aponta como uso tradicional equivale para nós à
memória semiológica das tópicas discursivas disponíveis no velho baú da poesia clássica,
que também constitui uma memória discursiva formadora do imaginário sóciodiscursivo
dos poetas. No plano de organização discursiva das sátiras, percebida nos objetos
colocados em análise, cruzam-se duas importantes referências da prática poética e retórica
no fazer satírico que conduzem sua leitura: as tópicas referentes ao estilo próprio das
construções árcades e as intertextualidades marcadas pelas alusões às composições de
Horácio e Cervantes.
5
Cabe ressaltar que nossa análise discursiva não encobre a elucidação das técnicas métricas de composição
literária vigente no período, trabalho exaustivo que exige um estudo literário dos elementos formais da
tradição literária, normalmente concentrado em áreas de pesquisa que tem como objeto fulcral as
disposições prescritivas dos gêneros clássicos.
62
no “Prólogo” no instante em que o poeta assume: “eu mudei algumas cousas menos
interessantes para acomodar melhor ao nosso gosto.” Outro aspecto que merece destaque
são as recorrentes designações voltadas para a forma dos versos – “eloquência com que
estão escritas e simplicidade do seu estilo” (“Prólogo”, grifo nosso) – a qual Holanda
propõe que seja vista dentro do quadro das virtudes conclamadas pelos árcades:
simplicidade, ordem, exatidão, sistema, lucidez e poder de bem julgar com clareza. O
conjunto dessas virtudes pode ser associado ao pendor racional que afeta as práticas
letradas, que para Ruedas de laSerna:
Este crítico literário levanta uma questão pertinente para o estudo discursivo
proposto: a prática do anonimato. Consideramos que seja fulcral encarar o anonimato
como um elemento preciso no encaixe da historicidade inócua nas sátiras, justamente por
ele exercer uma função congregadora, visto que a prática de adotar nomes pastoris
permitia àqueles poetas despojarem-se “transitoriamente das diferenças de posição social
para confraternizar em um âmbito de fantasia democrática e de aristocracia literária”, tal
como brilhantemente propõe Ruedas de la Serna (1995, p. 57). Entendemos, portanto, que
o anonimato representou para os poetas a possibilidade de comungar no mesmo banquete
com os clássicos, vislumbrando a universalidade que sua poesia conseguiu alcançar.
Sobre essa afetação, Holanda (1991) discute que, em relação ao ideal arcádico perseguido
pelos poetas:
intertextualidade. Esta não se restringe apenas a uma citação no nível do texto, como um
puro ornamento, mas a uma incorporação sólida do próprio discurso que engendra.
Passemos a palavra a Francisco Achcar (2004), que discorre sobre os contornos formais
dessa prática:
Por ser uma prática, a interpretação também inscreve uma intervenção do analista
enquanto leitor que investiga o processo de significação de seu objeto de pesquisa. Sendo
assim, considero legítimo inscrever aqui minha leitura do jogo entre a persona satírica e
o satirizado por meio dos seguintes versos: “Um Dom Quixote pode desterrar do mundo
as loucuras dos cavaleiros andantes; um Fanfarrão Minésio pode também corrigir a
desordem de um governador despótico (“Prólogo”). ” A alusão às figuras de Dom Quixote
e de Fanfarrão Minésio – Ilustre imitador a Sancho Pança – acaba por abrir espaço para
lembrarmos, por meio da encenação satírica, os dois grandes personagens dos clássicos
literários e suas aventuras. Imageticamente, vejo o poeta como um dom Quixote que “põe
em efeito o seu pensamento, estimulando-o a lembrança da falta que estava já fazendo ao
mundo sua tardança, segundo eram os agravos que pensava desfazer, sem-razões que
endireitar, injustiças que reprimir, abusos que melhorar, e dívidas que satisfazer. E assim,
sem a ninguém dar parte de sua intenção, e sem que ninguém o visse” ((Miguel de
Cercantes, in: Dom Quixote de la Mancha)), apercebeu-se de todas as suas penas, qual
armas, montou-se no seu Rocinante fantasmagórico, embraçou sua adarga permeada de
gêneros que lhes seriam úteis, “e se lançou ao campo, com grandíssimo contentamento e
alvoroço, de ver com que felicidade dava princípio ao seu bom desejo.” (Miguel de
Cercantes, in: Dom Quixote de la Mancha)
65
Numa transposição deste convite poético para o campo dos estudos discursivos, a
ação de transver pode ser pensada no interior do conjunto das operações discursivas
desencadeadas pelos sujeitos na produção de sentidos para os diversos discursos sociais
que os interpelam. Tal pensamento encontra lugar, por exemplo, nos princípios teóricos
que sustentam a Teoria Semiolinguística, cujo percurso de análise parte daquilo que
Patrick Charaudeau desenvolveu como o duplo processo de semiotização do mundo: há
um sujeito intencional portador de um projeto de influência social que, diante de um
mundo a significar, aciona o processo de transformação por intermédio de variados
sistemas semiológicos que o permitem chegar a um mundo significado; este será
convertido, agora pelo processo de transação, em um objeto de troca confiado a um sujeito
destinatário, sob o qual recaí alguma ação, quer direta ou indiretamente. Dessa forma,
transver pode ser pensado como uma ação de (re)significar o mundo, ação que envolve
sujeitos que veem, lembram e imaginam.
longo dos processos históricos de constituição dos sujeitos psicossociais. Assim, o que
Charaudeau (2005) chama de mundo a significar poderíamos também conceber como
memória de discursos a ser significada uma vez que a intervenção humana no próprio
sistema linguístico, que oferece ao sujeito as condições materiais de base do processo
discursivo, prevê a retomada do já-dito – o efeito metafórico de uma palavra sob a outra.
Portanto, a dependência fulcral entre os processos de semiotização do mundo ressaltada
por Charaudeau (2005) justifica-se pelo fato de que um discurso – o objeto de troca entre
os sujeitos – constitui-se efetivamente como o eco de outro,fato este que pressupõe dos
sujeitos o domínio de uma memória discursiva que tende a ser compartilhada no interior
de uma comunidade discursiva, como já foi discutido anteriormente. Assim, a ação de
transver equivale, a nosso ver, à própria ação do sujeito que se inscreve na história para
significar, para produzir arte; ao fazê-lo, um novo discurso emerge na dinâmica
interdiscursiva que cinge sujeitos e sentidos.
6
Essa descrição dos pasquins é registrada nos Autos da devassa na descrição final da condenação de
Claudio Manoel da Costa in: ADIM, 1980,v.5,p.36.
7
A noção de Eni Orlandi é fundamentada ao longo de seus projetos de pesquisa e recai na problemática
geral sustentada em torno do conceito de formação discursiva.
67
8
No esboço a ser apresentado sobre as dimensões históricas do período republicano brasileiro, é importante
ressaltar que recorremos a noções conceituais mais abrangentes e que atendessem ao objetivo de uma
análise discursiva. Não se trata, portanto, de uma demarcação historiográfica sobre o referido período
histórico.
69
[...] é que ele cria uma nova tradição, ele re-significa o que veio antes e institui
aí uma memória outra [...]. Instala-se outra “tradição” de sentidos nesse lugar
[...] Instala-se uma nova filiação. Esse dizer irrompe no processo significativo
da tal modo que pelo seu próprio surgir produz sua memória” (ORLANDI,
2001, p.13)
9
Connerton (1999) discorre sobre a Revolução Francesa destacando as implicações performáticas ocorridas
na França após os atos revolucionários utilizando como exemplo algumas mudanças significativas nas
práticas sociais dos franceses, como o vestuário, os cortes de cabelo e as cerimônias comemorativas.
70
possibilidade de criar um lugar na história, um lugar particular. Lugar que rompe o fio da
história para reorganizar os gestos de interpretação (ORLANDI, 2001, p. 16).
organizam tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos, e,
consequentemente, as concepções que outras culturas têm da nossa. A constituição dos
sentidos e dos sujeitos – amalgamados pela identidade nacional – estaria então submetida
ao imperativo do imaginário sociodiscursivo que terá os contornos imaginados pelo poder
político, lugar de onde partem as representações. Dessa forma, torna-se forte para nós o
argumento de Hall (2002) de que a nação não se constitui apenas numa entidade política,
mas em algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural. “As pessoas
não são apenas cidadãos legais de uma nação; elas participam da ideia da nação tal como
representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica. ” (HALL,
2002, p. 48)
Nos termos colocados por Hall (2002), para se instituir como um sistema de
representação cultural é necessário que a nação possua símbolos para serem representados
como seus elementos constituintes. Neste aspecto, a tarefa que se apresentava ao governo
republicano era a de recordar um momento na história que pudesse ser imaginada como
o início, o começo de toda a luta pela liberdade da nação e de seus indivíduos, uma luta
travada por grandes homens dos quais descenderiam aqueles que finalmente poderiam
tornar real o sonho de uma nação independente e livre: os republicanos. Ao mesmo tempo,
a base genealógica do governo republicano deveria coadunar-se ao discurso da Revolução
Francesa de forma a facultar elementos históricos que pudessem ser transvistos em
símbolos potenciais no plano da representação da Nação.
A dinâmica entre aquilo que será lembrado ou esquecido desse passado está
submetida então às finalidades narrativas postas pelo Estado. Vale ressaltar que tais
narrativas estão cercadas por uma visão de mundo que expande e reproduz uma espécie
de consciência de unidade, particularidade e co-pertencimento entre os membros de um
grupo, ação que Jan Assmann (2008a, p. 58) designa como “recordar para pertencer”. Tal
movimentação no tempo é descrita pelo pesquisador em termos do estabelecimento de
uma memória cultural enquanto uma institucionalização das formas por meio das quais
um mundo simbólico de sentido é possível de ser comunicado e transferido, graças ao
poder da escrita de transmitir um saber cultural que está atrelado a uma organização social
que parte do Estado. Para o autor, a escrita assumiria uma dupla função: a de
armazenamento, que produz uma exteriorização da nossa memória, e a de comunicação,
que produz uma exteriorização da voz que alcança a interlocutores perdidos no tempo e
no espaço; assim, a escrita passa a ser a transmissora de sentidos oriundos de um mundo
de símbolos e referências comuns que amalgama os indivíduos no quadro nacional
imaginado. Portanto, sobre o projeto identitário, vale destacar as palavras de Assmann
(2008a):
11
No horizonte da escritura, a tradição se torna complexa, já não afeta só a memória senão que absorve
com os meios de armazenamento externo também novas formas do esquecido e do recordado, da
externalização e da recuperação, da latência e do regresso, do renascimento. Com as incríveis possibilidades
que oferece o armazenamento, a cultura letrada abre um lugar de latência cultural que transforma o processo
da cultura em um verdadeiro drama da recordação, na mesma medida em que o trabalho da tradição se
emancipa da memória. (Tradução nossa)
76
Esta disciplina, profundamente marcada por uma nova concepção de tempo no século
XIX, fundou-se no cientificismo ocidental característico do período e pautou-se numa
universalidade epistemológica responsável por constituir uma cultura histórica que, como
propõe Guimarães (1988):
Neste quadro geral que traçamos sobre as circunstâncias discursivas que cercaram
o projeto republicano de nação, estabelecemos algumas das regras que fazem funcionar o
jogo mnemônico empreendido pelo Estado a fim de promover o sentimento de
pertencimento: recordar para pertencer. Resta-nos apresentar algumas considerações
sobre os elementos que incidiram diretamente na escolha do passado colonial mineiro
como quadro de fundo sobre o qual pintaram (o Estado e a História) as glórias e sucessos
da República para então analisar a inscrição discursiva de Cartas Chilenas naquela que
seria a biografia oficial da nação.
79
Podemos admitir para este enunciado uma organização discursiva que revoga um
saber governar tanto as riquezas quanto o espaço/território que pode ser estendido à ação
de por em liberdade. Depreendemos desse breve exemplo a defesa por uma liberdade
econômica e política. Esta matização no conteúdo da ideia de liberdade materializado nos
documentos judiciais parecia não manter uma relação tão incisiva com as prerrogativas
políticas que compunham a memória discursiva da Revolução Francesa, ao contrário da
sublevação baiana. Essa contradição aparente instiga-nos ainda mais, pois nos possibilita
inferir o forçoso trabalho de composição do Mito da Inconfidência que reúne em sua
narrativa arquivos materiais e imateriais da região.
Vale ressaltar ainda a mobilização social em torno dos valores que orientavam os
espíritos, ou os bons vassalos. Ao abordarmos o modo de organização social das Minas
setecentistas, salientamos que a sociedade mineira conviveu com um modelo de
comportamento que fincou suas bases em valores que convocavam foros de nobreza e
ainda um vínculo com a ordem religiosa, tais como: honra, justiça, coragem, entre outros
que foram materializados na maioria das produções literárias do período, que eram
compostas de acordo com os topoi da antiguidade clássica admitidos pelo arcadismo.
Dessa forma, a virtude também é convocada como elemento mnemônico no plano das
representações culturais da nacionalidade.
A nosso ver, o Mito da Inconfidência foi paulatinamente constituído por meio das
diversas representações históricas dos fatos que cercaram a tentativa de sublevação contra
a Coroa portuguesa: a biografia dos envolvidos, o estabelecimento de uma cronologia dos
fatos, a figura do herói Tiradentes. No conjunto dessas representações, Cartas Chilenas
tornou-se objeto de profícuas pesquisas justamente porque narrava/contava
acontecimentos fundamentais da vila que condensavam o clima de agitação política cujo
conteúdo era importante para a reconstrução histórica imaginada pelos republicanos. Seus
versos desenhavam os cenários gloriosos, nomeavam e descreviam membros de destaque
no corpo político, postulavam virtudes, além de desnudarem um governo tirano, que não
se ocupava do bem comum, enfim, eles sintetizavam o retrato de uma época.
significativas sobre as Cartas Chilenas, que são assinados por membros notáveis da elite
política então sensível ao jogo mnemônico engajado pelo Estado, por acreditarmos que
há no interior dos discursos oriundos dos institutos históricos um dispositivo enunciativo
fulcral para o dinamismo da memória discursiva que se atrela ao Mito da Inconfidência.
Entendemos que para compreender esse processo de significação é necessário perceber
como se organizavam os institutos históricos, como produziam e faziam circular os
sentidos então construídos por seus sujeitos.
Diante destas prerrogativas que orientam o fazer histórico nesse período político,
as sátiras parecem ter provocado um efeito inebriante na elite intelectual: versos
anônimos, episódios fragmentados, sequências cronológicas perdidas, elogios, ataques,
pastores, antiguidades clássicas, narrativas, escárnios, nomes, eventos, enfim, uma
pintura minuciosa, uma narrativa densa e sem lugar no tempo e no espaço, carecente de
uma ordem lógica e de sentimentos que a vivificassem. Cremos não ser possível mensurar
o número de pesquisadores e estudiosos que se envolveram no complexo trabalho de
catalogação da obra a que hoje temos acesso nem mesmo a exatidão de publicações sobre
as Cartas Chilenas, mas uma leitura sumária dos resultados de busca nos sites dos
institutos históricos nos permite apontar que o eixo central dos debates consiste na
investigação histórica, estética, literária, filosófica, entre outras áreas cientificas, em torno
da autoria dos versos, bem como a data em que foram escritas.
87
Uma vez assentada a autoria dos versos, intensifica-se o trabalho histórico pela
estabilização dos sentidos que amalgamam Cartas Chilenas e Inconfidência Mineira em
torno da expressão do desejo por liberdade. Encaramos como pertinente a colocação de
Assmann (2008a) ao se referir a essa estabilidade como uma função da memória cultural,
das formas simbólicas e institucionais por meio das quais se objetiva, se prolonga e se
pratica essa visão de mundo que transvê nosso passado colonial no plano da representação
cultural de uma identidade que se congrega a um desejo político de dissipar as diferenças
em prol da ordem e do progresso. Assim, a inconfidência passa a ser representada como
a ação moral de vários personagens. Pensamos ser coerente analisar os contornos dessa
estabilidade no interior dos prefácios, até mesmo porque a circulação dos sentidos estava
fortemente presente na editoração das obras de referência sobre o tema.
A enunciação, então, deve ser tomada, não como advinda de um locutor, mas
como operações que regulam o encargo, quer dizer, a retomada e a circulação
de discursos. Entre outras consequências desta concepção, levaremos em conta
o fato de que um texto dado trabalha através de sua circulação social, o que
supõe que sua estruturação é uma questão social, e que ela se diferencia
seguindo uma diferenciação de memórias e uma diferenciação das produções
de sentido a partir das restrições de uma forma única. (ACHARD, 2007, p.17)
ser encaradas como índices desse reconhecimento, como no caso dos Autos da Devassa,
importante referência arquivística no campo das ciências sociais.
ele continua ainda hoje sendo material de referência para pesquisas sobre o tema tanto na
perspectiva histórica como na literária. Dessa permanência no tempo decorre o vigor
discursivo dessa obra no processo de regularização dos sentidos atestados para as sátiras.
cada um. Há um fragmento que evidencia o acordo firmando entre eles diante das tensões
geradas por tais discordâncias num plano geral de organização discursiva do próprio
“Prefácio”:
Creio também que não saio da norma, que me foi traçada, ao assinalar a
significação de ter ficado, convencidamente, com a atribuição das Cartas a
Gonzaga um mestre que durante tantos anos tem convivido com o Poeta e sua
obra, sendo, talvez, o mais competente dos gonzaguianos atuais. (LAPA,1958,
p. VII)
Estou muito longe de convir em que ‘essa espécie de escritos fazem-se frente
a frente, em combate arriscado, pegando o touro à unha’. [referindo a
proposição de Rodrigues Lapa] A história da sátira em todos os tempos e
lugares aí estavam para mostrar que a presença ou ausência do satirizado foi,
quase sempre, indiferente ao satirista.” (LAPA, 1958, p.XIII – grifo nosso)
Das diversas releituras em torno dessa noção, acreditamos que o esboço teórico
desenvolvido por Dominique Maingueneau ajusta-se às especificidades do nosso objeto
de análise: a demonstração do ethos de Gonzaga via Cartas Chilenas que se firma
segundo a atribuição de autoria às sátiras, logo, imagens incorporadas. Maingueneau
(2005, p.72) parte do princípio que todo discurso possui uma vocalidade específica que o
remete a uma fonte enunciativa, o que implica numa indicação do corpo do enunciador,
“assim a leitura faz emergir uma origem enunciativa, uma instância subjetiva encarnada
que exerce o papel de fiador”, que será investido de um caráter e de uma corporalidade,
sendo que:
97
É importante destacar ainda que a incorporação do ethos que ata Gonzaga e Critilo
permite-nos lançar uma hipótese sobre a própria constituição do estereótipo dos
inconfidentes. Nas reconstruções históricas, principalmente aquelas orientadas para a
construção heroica de Tiradentes, os principais personagens envolvidos na revolta contra
98
a Coroa, com destaque para os poetas, são representados como fortes intelectuais que
lutaram corajosamente pela liberdade e contra a opressão da metrópole num
empreendimento político que se imaginava revolucionário. Contudo, o estereótipo do
inconfidente condensaria em si todos os valores que se julgavam fundamentais para a vida
política do país, logo, ele seria um elemento corroborante do jogo mnemônico colocado
em questão justamente por conter uma força persuasiva que decorre da sua sedimentação
no plano da memória cultural da “Região dos Inconfidentes”. Podemos sintetizar essa
breve alusão à noção dos estereótipos da seguinte maneira:
É provável que tenha lido, há 183 anos as Cartas Chilenas. Sátira amarga do
intelectual mofando da prepotência e das mentiras convencionais. CRITILO,
seu autor, as ofereceu aos Grandes como lição e aviso. Certamente as
ofereceria, como legado de gratidão, a TIRADENTES. Foi quem, gotejando
sangue, as transformou em epopéia no alvorecer da liberdade latino-americana.
(OLIVEIRA, 1972, p.09)
99
A última palavra sobre o enigma das Cartas Chilenas talvez não possa ser dita
nunca. Mas este depoimento será ouvido sempre e o esforço pela decifração
do mistério não será perdido no debate enterreirado e que se prolongará através
dos tempos. (OLIVEIRA, 1972, p.11-12).
Gostaríamos ainda de destacar uma formulação fulcral para esta análise em torno
dos mecanismos de regularização discursiva: “atirou-se animosamente – para usar um
101
15. Me parece um pouco canalha a gente conhecer Anatole France e não ter
lido as Cartas Chilenas. (ANDRADE, 1981. p. 45)
16. (...) poema satírico Cartas Chilenas valiosos como poesia e fonte histórica.
(IGLESIAS, 1976, p. 66)
20. Cartas Chilenas ...esta obra será lida enquanto houver governos fanfarrões
e homens fátuos nos altos postos. (BURTON, RICHARD)
admitimos que as sátiras, em seu estatuto máximo de prova documental do clima político
típico de Vila Rica no século XVIII, são incorporadas interdiscursivamente ao mito da
Inconfidência como discurso constituinte, posto que elas conferem sentido aos atos de
fala de uma coletividade, de uma comunidade discursiva guiada por intencionalidades
políticas bem específicas, como já discutimos. Na perspectiva que assumimos:
inconfidentes, homens destemidos que lutam pela liberdade de sua pátria, opondo-se a
qualquer injustiça. Indivíduos patriotas.
Nosso estudo discursivo direciona-se agora para a estrutura retórica das sátiras.
Nosso objetivo é perceber quais elementos característicos das sátiras permitiriam o ajuste
de lente efetuado pelos agentes do poder de modo que os sentidos estabelecidos por uma
comunidade discursiva específica sejam efetivados na leitura dos versos. Nosso ponto de
partida são justamente as paráfrases identificadas nos prefácios: em que circunstância é
possível aferir o discurso libertário? De que modo a persona satírica mostra-se humana,
compreensiva, corajosa, entre outras imagens representadas de Critilo? Sobre o que se
delibera nas sátiras? Estes questionamentos exigem uma observação cuidadosa das
engenhosidades presentes no plano retórico de Cartas Chilenas, para o qual deslocamos
nossa análise.
107
Nos capítulos anteriores, o estudo discursivo que propomos debateu sobre duas
historicidades distintas em torno de um mesmo conteúdo: as Cartas Chilenas.
Primeiramente, cercamos alguns dos aspectos sócio-históricos que nos permitiram
conceber as sátiras como um acontecimento discursivo do século XVIII que irrompeu de
práticas sociodiscursivas próprias à sociedade das Minas setecentistas justamente por
invocar uma memória discursiva dos elementos que mantinham unido o iluminado corpo
místico do Estado Português. Em seguida, discorremos sobre a questão do jogo
mnemônico empreendido já no período republicano a fim de compor uma narrativa oficial
da nação no interior da qual as sátiras ressurgem como acontecimento discursivo que
refletiria o clima revolucionário que teria impulsionado a Inconfidência Mineira. Ao
discutir as operações discursivas implicadas nesse retorno, evidenciamos alguns gestos
de interpretações responsáveis por fazer circular os sentidos pretendidos para os versos
satíricos que transmutam as Cartas Chilenas em libelo da Inconfidência.
O universo de sentido que o discurso libera impõe-se tanto pelo ethos quanto
pela “doutrina”; as ideias apresentam-se por uma maneira de dizer que remete
a uma maneira de ser, a uma participação imaginária em um vivido. O texto
não é pra ser contemplado, ele é enunciação voltada para um co-enunciador
que é necessário mobilizar para fazê-lo aderir “fisicamente” a um certo sentido.
O poder de persuasão de um discurso decorre em boa medida do fato de que
109
próprio movimento que o discurso desenrola no momento em que é encenado num espaço
instituído e definido pelo gênero discursivo. Assim, a noção de cena é empregada para
representação que um discurso faz de sua própria situação de comunicação, o que nos
permite falar em uma encenação discursiva.
Que fez o nosso herói geral meirinho, Que em defesa do trono se derrama.
Remetem, nas correntes, povo imenso. 285 – Aos pobres açoitados manda o chefe
Parece, Doroteu, que temos guerras; Que, presos nas correntes dos forçados,
225 – Que, para recrutar as companhias, Vão juntos trabalhar. Então se entregam
De toda a parte vêm chorosas levas. Ao famoso tenente, que os governa
Aqui, prezado amigo, principia Como sábio inspetor das grandes obras.
Esta triste tragédia, sim, prepara, 290 – Aqui, prezado amigo, principiam
Prepara o branco lenço, pois não podes Os seus duros trabalhos. Eu quisera
230 – Ouvir o resto, sem banhar o rosto Contar-te o que eles sofrem, nesta carta,
Com grossos rios de salgado pranto. Mas tu, prezado amigo, tens o peito,
Nas levas, Doroteu, não vêm somente Dos males que já leste, magoado,
Os culpados vadios; vem aquele 295 – Por isto é justo que suspenda a história,
Que a dívida pediu ao comandante; Enquanto o tempo não te cura a chaga.
235 – Vem aquele, que pôs impuros olhos (GONZAGA, 1995, p.131- grifos nossos)
Na sua mocetona e vem o pobre,
Que não quis emprestar-lhe algum negrinho, Carta 4ª Em que se continua a mesma matéria
Para lhe ir trabalhar na roça e lavra.
Estes tristes, mal chegam, são julgados Mal o duro inspetor recebe os presos
240 – Pelo benigno chefe a cem açoites. Vão todos para as obras; alguns abrem
Tu sabes, Doroteu, que as leis do reino Os fundos alicerces, outros quebram,
Só mandam que se açoitem com a sola 55 – Com ferros e com fogo, as pedras grossas.
Aqueles agressores, que estiverem. Aqui, prezado amigo, não se atende
Nos crimes, quase iguais aos réus de morte. Às forças nem aos anos. Mão robusta
245 – Tu também não ignoras que os açoites De atrevido soldado move o relho,
Só se dão, por desprezo, nas espáduas, Que a todos, igualmente, faz ligeiros.
Que açoitar, Doroteu, em outra parte 60 – Aqui se não concede de descanso
Só pertence aos senhores, quando punem Aquele mesmo dia, o grande dia
Os caseiros delitos dos escravos. Em que Deus descansou e em que nos manda
250 – Pois todo este direito se pretere: Façamos obras santas, sem que demos,
No pelourinho a escada já se assenta, Aos jumentos e bois, algum trabalho.
Já se ligam dos réus os pés e os braços, 65 – Tu sabes, Doroteu, que um tal serviço
Já se descem calções e se levantam Por uma civil morte se reputa.
Das imundas camisas rotas fraldas, Que peito, Doroteu, que duro peito
255 – Já pegam dois verdugos nos zorragues, Não que deve ter um chefe, que atormenta
Já descarregam golpes desumanos, A tantos inocentes por capricho?
Já soam os gemidos e respingam
Miúdas gotas de pisado sangue. Dirás tu, Doroteu, que o nosso chefe
Uns gritam que são livres, outros clamam Não quer que os inocentes se maltratem;
260 – Que as sábias leis do rei os julgam brancos, Que o fero comandante é quem abusa
Este diz que não tem algum delito 95 – Dos poderes que tem. Prezado amigo,
Que tal rigor mereça, aquele pede Quem ama a sã verdade busca os meios
Do justo acusador, ao céu, vingança. De a poder descobrir e o nosso chefe
Não afrouxam os braços os verdugos, Despreza os meios de poder achá-la.
265 – Mas, antes, com tais queixas, se duplica Qu’é deles, os processos, que nos mostram
A raiva nos tiranos, qual o fogo 100 – A certeza dos crimes? Quais dos presos
Que aos assopros dos ventos ergue a chama Os libelos das culpas contestaram?
Às vezes, Doroteu, se perde a conta Quais foram os juízes, que inquiriram
Dos cem açoites, que no meio estava, Por parte da defesa e quais patronos
270 – Mas outra nova conta se começa. Disseram, de direito, sobre os fatos?
Os pobres miseráveis já nem gritam. 105 – A santa lei do reino não consente
Cansados de gritar, apenas soltam Punir-se, Doroteu, aquele monstro
Alguns fracos suspiros, que enternecem. Que é réu de majestade, sem defesa.
Que é isso, Doroteu, tu já retiras E podem ser punidos os vassalos
275 – Os olhos do papel? Tu já desmaias? Por aéreos insultos, sem se ouvirem
Já sentes as moções, que alheios males 110 – E sem outro processo, mais que o dito
Costumam infundir nas almas ternas? De um simples comandante, vil e néscio?
Pois és, prezado amigo, muito fraco, Um louco, Doroteu, faz mais, ainda,
Aprende a ter o valor do nosso chefe Do que nunca fizeram os monarcas;
280 – Que à janela se pôs e a tudo assiste Faz mais que o próprio Deus, que Deus, querendo
Sem voltar o semblante para a ilharga. 115 – Punir, em nossos pais, a culpa grave
E pode ser, amigo, que não tenha Primeiro lhes pediu, que lhe dissessem,
Esforço, para ver correr o sangue, Qual foi, do seu delito, a torpe causa.
113
340 – Ora pois, louco chefe, vai seguindo O primeiro derrama sobre a terra,
A tua pretensão, trabalha, e força Por bocas de serpentes escamosas,
Por fazer imortal a tua fama. Dois puros chorros de água; no segundo
Levanta um edifício em tudo grande, Se levantam, alegres, doces vozes,
Um soberbo edifício, que desperte 355 – Que vários instrumentos acompanham.
345 – A dura emulação na própria Roma. Aqui, entre os que tocam, se divisa
Em cima das janelas e das portas Um triste rosto, que se alaga em pranto.
Põe sábias inscrições, põe grandes bustos, Não sabes, Doroteu, quem este seja ?
Que eu lhes porei, por baixo, os tristes nomes Pois é, prezado amigo, aquele triste
Dos pobres inocentes, que gemeram 360 – Que tem a mulher morta sobre a cama.
350 – Ao peso dos grilhões, porei os ossos O nosso grande chefe mal conhece
Daqueles que os seus dias acabaram, Ao pobre do viúvo, compassivo
Sem Cristo e sem remédios, no trabalho. Mete a mão no seu bolso e dele tira
E nós, indigno chefe, e nós veremos Um famoso cartucho, que lhe entrega.
A quais destes padrões não gasta o tempo. 365 – O néscio rebequista, que a ação nota,
(GONZAGA, 1995, p.97- grifos nossos) Um pouco suaviza a sua mágoa,
E, enquanto não recebe o tal embrulho,
Carta 6ª Em que se conta o resto dos festejos Consigo assim discorre: "Que ditosa,
Que ditosa violência, que socorre,
Já chega, Doroteu, o novo dia 370 – Em tal ocasião, a minha falta!
O dia em que se correm bois é vacas. Já tenho com que pague ao meu vigário,
Amigo Doroteu, é tempo, é tempo Já tenho com que pague a cera, a cova,
315 – De fazer-te excitar, no peito brando A mortalha, o caixão, e mais os padres."
Afetos de ternura, de ódio e raiva. Assim o bom viúvo discorria,
No dia, Doroteu, em que se devem 370 – Quando pega no embrulho, e mal o rasga,
Correr os mansos touros, acontece Encontra, Doroteu, confeitos grandes,
Morrer a casta esposa de um mulato, Encontra manuscriti e rebuçados.
320 – Que a vida ganha por tocar rabeca; Que é isso, Doroteu, de novo pasmas?
Dá-se parte do caso ao nosso Chefe: De novo desconfias da verdade?
Este, prezado amigo, não ordena, 380 – Amigo Doroteu, o nosso chefe
Que outro músico vá em lugar dele Estudou medicina, e como alcança
A rabeca tocar no pronto carro; Que o chorar faz defluxo, providente
325 – Ordena que ele escolha ou a cadeia Ministra rebuçados a quem chora,
Ou ir tocar a doce rabequinha Para, com eles, acudir-lhe ao peito.
Naquela mesma tarde pela praia.
Que é isto, Doroteu, estás confuso? Com estes maus festejos, que aborrecem,
Duvidas, que isto seja, ou não,verdade ? 415 – Se gastam muitos dias. Já o povo
330 – Então que hás de fazer, quando me ouvires Se cansa de assistir na triste praça
Contar desordens, que inda são mais calvas? E, ao ver-se solitário, o bruto chefe
Indigno, indigno chefe, as Leis Sagradas Nos trata por incultos, mais ingratos.
Não querem se incomodem alguns dias Soberbo e louco chefe, que proveito
Os parentes chegados dos defuntos, 420 – Tiraste de gastar em frias festas
335 – Ainda para cousas necessárias; Imenso cabedal, que o bom Senado
E tu, cruel, violentas um marido Devia consumir em coisas santas ?
A deixar sobre a terra o frio corpo Suspiram pobres amas e padecem
Da sua terna esposa, sem que tenhas Crianças inocentes, e tu podes
Ao menos uma honesta, e justa causa 425 – Com rosto enxuto ver tamanhos males?
340 – Bárbaro, tu praticas tudo junto Embora! sacrifica ao próprio gosto
Quanto obraram, no mundo, os maus tiranos! As fortunas dos povos que governas;
Mezêncio ajuntava os corpos vivos Virá dia em que mão robusta e santa
Aos corpos já corruptos, e tu segues Depois de castigar-nos, se condoa
Outros caminhos, que inda são mais novos; 430 – E lance na fogueira as varas torpes.
345 – Separas dos defuntos os que vivem, Então rirão aqueles que choraram,
Não queres que os parentes sejam pios, Então talvez que chores, mas debalde.
Dando as últimas honras aos seus mortos! Que suspiros e prantos nada lucram
Chega-se, finalmente, a tarde alegre A quem os guarda para muito tarde.
Do festejo dos touros. Já no curro (GONZAGA, 1995, p.131)
350 – Aparecem os dois formosos carros.
114
atingir a felicidade por meio do bem comum. Assim, o objetivo da ação moral consiste
na justiça enquanto a ação intelectual dirige-se para a verdade. Em termos de atualização
da memória discursiva dessas proposições, podemos destacar os seguintes excertos
discursivos de Cartas Chilenas (GONZAGA, 1995, p.101):
quem governa/ Um chefe tão soberbo e tão estulto/ Que, tendo já na testa brancas repas,/
Não sabe, ainda, que nasceu vassalo.” (GOZAGA, 1995, p. ) A lamentação expressa pela
persona satírica parece decorrer do posicionamento de um sujeito que avalia os valores
assumidos pelo satirizado no interior da doutrina do corpo místico do Estado Monárquico,
no qual a condição de vassalo vincula-se a figura de um poder real superior. O não
reconhecimento dessa posição por parte do Fanfarrão reforça sua imagem contrária a
qualquer virtude partilhada por aquela comunidade discursiva.
4.1.2 Cenografia
Das três cenas enunciativas propostas por Maingueneau em seus estudos sobre os
discursos literários, a cenografia é aquela que mais recebe desdobramentos teóricos. Ela
consiste na construção progressiva de uma cena discursiva responsável por situar o leitor
como co-enunciador na medida em que lhe atribui um lugar específico. Por isso, a
terminologia grafia é enfatizada pelo autor como quadro e processo fundador da inscrição
legítima de um texto em sua dupla relação com a memória de uma enunciação que se
situa na filiação de outras enunciações e que reivindica um certo tipo de reemprego
(MAINGUENEAU, 2006, p. 253). Assim, a cenografia estabelece uma unidade com a
obra a que sustenta e que a sustenta no interior de um processo no qual:
epistolar que também se conjugam aos aspectos enunciativos das crônicas12: observa-se
nas sátiras um compromisso do enunciador em relatar e comentar fatos a um destinatário
cujo interesse pela narrativa pode decorrer de uma certa proximidade com seu
interlocutor, como em: “Acorda, Doroteu, acorda, acorda/Critilo, o teu Critilo é quem te
chama e Escuta a história de um moderno chefe/ Que acaba de reger a nossa Chile.”
(GONZAGA, 1995, p.49). Há uma série de elementos linguísticos que indiciam tal
cenografia dos quais destacamos dois: (I) a regular interpelação de Critilo a Doroteu por
meio de certos vocativos: doce amigo, prezado amigo, meu Doroteu, ou o próprio nome
do poeta; (II) a própria descrição em torno das circunstâncias narradas que intitula cada
carta sendo frequente o emprego de verbos significativos em torno mesmo da predicação
que se fazem do ato de relatar episódios, tal como em: Em que se descreve a entrada que
fez Fanfarrão em Chile, Em que se mostra a piedade que Fanfarrão fingiu no princípio do
seu governo, para chamar a si todos os negócios, Em que se contam as injustiças e
violências que Fanfarrão executou por causa de uma cadeia, a que deu princípio. Reunidos
e ainda associados a elementos linguísticos próprios da organização discursiva das
sequências narrativas e descritivas, esses dados semiolinguísticos efetivam e mantêm o
leitor numa cenografia discursiva que o remete à prática de se comunicar por intermédio
de cartas, de tal forma que o leitor sente-se também como um possível destinatário
daqueles enredos.
Logo que li estas Cartas, assentei comigo que as devia traduzir na nossa língua,
não só porque as julguei merecedoras deste obséquio pela simplicidade do seu
estilo, como, também, pelo benefício, que resulta ao público, de se verem
satirizadas as insolências deste chefe, para emenda dos mais, que seguem tão
vergonhosas pisadas.
12
Há uma relação direta entre a noção de cenografia e a de memória discursiva, tal como tratamos no
primeiro capítulo, por isso, nossa análise nesta parte da pesquisa busca destaca as cenografias convocadas
na própria construção discursiva das sátiras.
119
encenação discursiva, uma vez que já está instalada no universo do saber e de valores
daquela comunidade discursiva.
Juiz: acreditamos que esse lugar institucional seja ocupado pelos grandes de
Portugal na figura da Coroa. Aliás, a eles foram dedicadas as sátiras, por serem os
responsáveis por conduzir ao fim de um acertado governo, tal como é expresso na
dedicatória das Cartas Chilenas. Ora, como cabeça do corpo político, cabe à
Coroa Portuguesa deliberar ou não sobre a permanência de um Chefe tirano e
indigno.
Réu: este coincide com o satirizado, que tem não só todo o seu sistema de governo
sob o julgo de avaliação moral e administrativa, como também os próprios valores
que ele encena em sua vida pública, como governante, como cristão, como
participante da elite política, entre outros papeis sociais que ele assume naquela
organização social.
Advogado de acusação: equivale à própria encenação epidíctica da persona
satírica: aquele que aprecia, que julga, que aponta, que elogia, que censura, que
vitupera. Seus argumentos representam o próprio imaginário sociodiscursivo que
organiza a comunidade a qual pertence, como já discutimos.
Corpo de jurado: acreditamos que este se relaciona à figura de Doroteu pelo fato
de a persona satírica construí-lo como uma espécie de representante das verdades
que são comungadas e partilhadas. É possível pensar ainda que o leitor, situado
em qualquer temporalidade, componha este corpo de jurados porque a ele também
se impõe uma determinada ação, mesmo que indireta, visto o forte quadro de
persuasão característico de Cartas Chilenas.
Outro aspecto que pode vir a validar tal cenografia seria o efeito expressivo da
designação aplicada às sátiras como libelo da Inconfidência no plano da representação da
memória, como já nos referimos. Esse termo combina em si duas potenciais projeções
de sentido: uma que se aplica ao campo jurídico como um gênero discursivo no qual se
apresenta uma dedução indicativa da essência da acusação ou da defesa antes de se iniciar
o processo; outra que circunda uma acusação difamatória organizada discursivamente em
tons satíricos. Ao serem representadas na fronteira entre a História e a Literatura, Cartas
Chilenas condensaria em seus versos tanto a nuance jurídica, quanto a literária: do latim
libellus, um livrinho que sintetizaria em si as principais causas da contestação à Coroa
portuguesa.
124
Pensar nos objetos de deliberação subjacentes à fusão entre o discurso jurídico das
sátiras e o discurso político dos republicanos exige uma análise da relação direta entre a
cenografia proposta com aqueles valores depreendidos na investigação dos prefácios.
Essa reflexão pode ser realizada ainda no esteio das elaborações de Maingueneau (2006)
sobre as formas de incorporação do ethos a dada cenografia, ao passo que elas
possibilitam vislumbrar os movimentos de interpretação do leitor em direção ao texto que
promovem a identificação entre eles. Desta forma, compartilhamos com o autor que:
Logos: esta prova centra-se no próprio discurso que evidencia uma racionalidade
coordenada como a ordem do verossímil, assim, seu poder persuasivo decorre da
demonstração da verdade ou do que parece verdade. Nos códigos da cenografia
estabelecida, este meio de persuasão torna-se imprescindível ao sujeito
comunicante, já que, ao figurar como advogado de acusação, ele deve apresentar
um conhecimento profícuo das verdades que sustenta em seu discurso, o que pode
ser aferido na disposição das leis jurídicas, tributárias, políticas e sagradas
transgredidas pelo Fanfarrão para então evidenciar sua inaptidão em governar e
cumprir com sua condição de vassalo, como pode ser observado nos seguintes
versos, como em tantos outros:
Pathos: esta tem como referência central a disposição do auditório cuja ação
pretendida recai no despertar da emoção via discurso. Para tal, é necessário ao
sujeito comunicante um conhecimento daquelas que seriam as potencialidades
emotivas de determinado público. Na cenografia de tribunal, esse procedimento
ocorre de maneira instigante: como há um conhecimento partilhado entre as partes
127
O ouvidor da comarca
Thomas Antonio Gonzaga (Grifos nosso)
Por se tratar de uma carta que responde a uma primeira, a análise fica um pouco
restrita, pois não se sabe se algum termo ou expressão é uma retomada da primeira carta.
No entanto, esse texto traz elementos importantíssimos sobre as imagens que Gonzaga
constrói de si no papel de ouvidor, já que prevê uma relação contratual na qual os
indivíduos envolvidos na situação de comunicação ocupam igualmente cargos
administrativos. Gonzaga, os vereadores e outros oficiais da câmara detêm o direito de
13
Carta do ouvidor Tomás Antônio Gonzaga ao juiz, vereadores e oficiais da Câmara de Vila Rica sobre a
necessidade da construção de uma nova cadeia. CC – Cx.10 – 10201. Belo Horizonte, Arquivo Público
Mineiro.
130
poder fazer ou dizer, ou seja, todos estão legitimados pelo mesmo órgão, a Coroa. Para
inscrever sua individualidade, Gonzaga adota uma posição de neutralidade sobre o que
diz em relação ao pedido feito pelos vereadores – referente à utilização dos forçados para
cortar gastos com a obra – e busca nas leis os argumentos para se posicionar em relação
ao pedido, já que competia ao ouvidor deliberar ou não, como exemplifica o trecho: “fica
manifesto, que este meio, inda que pareça oposto ao rigor das palavras, lê contudo mais
conforme com o seu verdadeiro espirito. ”
O uso da expressão concessiva inda que estabelece no texto a ideia de que mesmo
não sendo uma ação prevista por lei, o pedido deve ser aceito. Pode-se dizer que há uma
preocupação em Gonzaga de não criar atritos com os vereadores, uma atitude diplomática
que garante a ele o reforço de sua credibilidade. Portanto, pode-se dizer que nesse
discurso também figuram os ethé de competência (ele conhece as leis e sabe aplicá-las)
de inteligência e de solidariedade. Transpostos para o jogo social entre o ser e o parecer
comum à sociedade daquele período, tais ethé ainda pairam sobre a opacidade do dizer.
seu espírito pelas cartas de Critilo, cuja autoria foi remetida a Claudio Manoel da Costa,
pode ser percebida como uma leitura de um sujeito que participava da mesma
historicidade das sátiras, podendo também ser considerada uma representação da
memória de Cartas Chilenas, na qual se coloca o seguinte:
impulsos. Igualmente/ Me sinto vacilar entre os combates /Da raiva e do prazer”. Assim,
obtemos a representação amalgamada de um ethos de coragem e potência para questionar,
contestar e julgar no exercício jurídico de um logos inclinado à verdade e à justiça que se
constitui de efeitos de pathos de indignação, de antipatia em relação à figura do
governador, de prazer pelo riso fruto das formas aplicadas à ridicularização de
personagens, ao mesmo tempo em que promove outras reações patêmicas: de dor e
tristeza advindas dos trágicos episódios narrados, inclusive de uma esperança depositada
na luta histórica pela liberdade. Ao circularem, tais efeitos subjacentes às Cartas Chilenas
coadunam-se ao estereótipo de inconfidente que foi sendo solidificado pela força da
memória cultural que cinge a Região dos Inconfidentes, ainda mais de um poeta
inconfidente que sofreu os males do cárcere longe de sua amada, Marília de Dirceu, e que
teve então sua trajetória de vida imortalizada nas páginas da Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB) na seção de “Biographias dos Brasileiros distinctos por
lettras, armas, virtudes, etc”.14
Não há uma palavra que seja a primeira ou a última e não há limites para um
contexto dialógico (ele se estira para um passado ilimitado e para um futuro
ilimitado). Mesmo os sentidos passados, isto é, aqueles que nasceram no diálogo
dos séculos passados, não podem nunca ser estabilizados (finalizados,
encerrados de uma vez por todas) – eles sempre se modificarão (serão
renovados) no desenrolar subseqüente e futuro do diálogo. Em qualquer
momento do desenvolvimento do diálogo, existem quantidades imensas,
ilimitadas de sentidos contextuais esquecidos, mas em determinados momentos
do desenrolar do diálogo eles são relembrados e receberão vigor numa forma
renovada (num contexto novo). Nada está morto de maneira absoluta: todo
sentido terá seu festivo retorno. O problema da grande temporalidade.
(BAKHTIN, apud FARACO, 2009, p. 53)
14
RIHGB:Biografia dos brasileiros distintos por letras, armas, virtudes, etc. : Tomás Antônio Gonzaga. T.
12, p. 120-136, 1849; 2.ed., p. 120-136. Rio de Janeiro : IHGB
135
CONSIDERAÇÕES FINAIS
em seus discursos paráfrases que convocam os discursos políticos que se deseja legitimar,
por isso, Critilo é destemeroso, humano e compreensivo. Esses sentidos, que circulam
pelo imaginário que cinge a memória cultural da Região dos Inconfidentes, foram
apreendidos ao analisarmos os “Prefácios” das obras dedicadas especialmente às sátiras.
memória cultural da nação, em especial, da Região dos Inconfidentes. Para tal, são
convocadas as memórias discursivas daqueles sentidos estabelecidos para os diversos
símbolos nacionais que circulam em discursos sociais, que buscam a adesão dos
indivíduos por meio de estratégias persuasivas que desencadeiem emoções, pois são elas
as melhores informantes do nosso mundo interior e exterior.
A respeito desse fundo emocional, Assmann (2008a) sugere que haja uma base
afetiva na constituição das memórias que se deseja compartilhar no interior dos grupos,
observação que parte de duas referências discutidas por ele: (I) os estudos sobre a
memória coletiva de Halbwachs, para quem o princípio que trabalha na criação da
memória é o amor, de tal forma que o pertencimento de um indivíduo a diferentes
constelações sociais e a pertença interna destes grupos se representam como uniões
afetivas; (II) aos de Warburg, que acredita que as memórias coletivas são transmitidas
afetivamente, assumindo uma função de liberação do indivíduo das pressões exercidas
pela realidade. Como síntese a esses pensamentos, Assmann (2008a, p. 129) aponta que
o “poder e a duração das ‘recordações’ não provem da tradição, mas do sentimento, da
necessidade que tem o indivíduo de pertencer aos grupos”.
Ainda que o evento tenha apresentado certas fragmentações desde sua primeira
realização em 1967, o Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana – Fórum das Artes
configura-se como uma significativa prática sociodiscursiva que exprime a vontade de
pertencimento à memória da nossa região: “O Festival ocupa ruas, praças, prédios
históricos e áreas externas das cidades, configurando-se como um dos mais importantes
do calendário mineiro no campo da cultura, sendo o propulsor do debate sobre as
manifestações artísticas das duas primeiras capitais de MinasGerais15.” A prerrogativa
manifestada em consonância com o poder político permite-nos pensar o evento como
aglutinador de discursos vinculados a redes de formulações subjacentes aos campos do
conhecimento científico e artístico e ao discurso político-patrimonial, uma vez que
entendem que a arte, o conhecimento e a cidadania libertam. Vale ressaltar que nessa
construção sintática, o emprego da forma verbal libertam foge a própria transitividade do
verbo libertar, cuja regência requer um objeto que determine a ação. Entendemos que a
marcação desta intransitividade discursiva aponta para um efeito de sentido que é o da
amplitude da liberdade: arte, conhecimento e cidadania libertam todos de tudo, posto que
libertar apresentaria um significado lexical referente a uma realidade tão concreta que
não necessitaria ser especificada.
15
Disponível em: http://www.festivaldeinverno.ufop.br/2012/paginas.php?titulo=O%20Festival
141
Toda cultura trava uma batalha contra o esquecimento. Essa parece ser mesmo
uma reflexão relevante no interior deste estudo discursivo sobre as representações de
memórias. Nessa dinâmica mnemônica, as memórias discursivas são constantemente
convocadas para serem transvistas por outros sujeitos que, em diferentes temporalidades,
incorporaram-se a elas para inscreverem sua subjetividade, suas emoções, seus conflitos,
seus anseios, suas performances. Em razão dessa dinâmica entre tempo e discurso, é que
(re)afirmamos que sujeitos e sentidos constroem-se mutuamente, de forma com que os
arquivos podem atestar sobre temporalidades, não sobre verdades, dando formas a
acontecimentos discursivos que apontam para um sujeito que (re)significa dados do
mundo e os oferece a outro sujeito um olhar transvisto. Nesse sentido, este estudo inscreve
e representa a memória das Cartas Chilenas, na medida em que as institui como objeto
precipitador de outros discursos em um campo específico que é o dos estudos da
linguagem, constituindo-se igualmente como outro acontecimento discursivo.
Por fim, a única verdade que pode ser atestada como conclusão neste estudo
remonta ao poder de transformação do tempo, o grande alquimista que tudo gere. Por
isso, faço minhas as palavras de Manoel de Barros: é preciso transver o mundo.
142
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