FELIX - Intercom 2022
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RESUMO
Neste artigo discutimos a importância da aplicação da lei 10.639, que tornou obrigatória
a educação para as relações étnico-raciais no Brasil, e a urgência da curricularização
desta temática para a formação de jornalistas comprometidos com a luta antirracista.
Partimos de uma análise documental, tendo como corpus as leis, diretrizes e resoluções
sobre o tema, e de uma pesquisa bibliográfica, tomando como referência autores e
autoras da intelectualidade e da militância negra e jovens pesquisadoras da graduação
em Jornalismo e da pós-graduação em Mídia e Cotidiano (PPGMC/UFF), com as quais
vimos dialogando. Concluímos que, considerando a realidade das universidades
brasileiras, é imprescindível a incorporação de disciplinas obrigatórias aos currículos,
como forma de garantir o acesso dos e das estudantes aos conteúdos e combater o
racismo na prática jornalística.
INTRODUÇÃO
Celebrada como conquista de uma luta histórica dos movimentos negros pela
valorização da contribuição de africanos e afrodescendentes na formação da sociedade
brasileira, a criação da lei 10.639 (BRASIL, 2003) tornou obrigatório o ensino da
história e da cultura da África e a educação para as relações étnico-raciais no ensino
básico em todo o país. No caso do ensino superior, o parecer do Conselho Nacional de
Educação, homologado pela Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004, reiterou a
obrigatoriedade de cada instituição incluir “nos conteúdos de disciplinas e em atividades
curriculares dos cursos que ministra, de Educação das Relações Étnico-Raciais, de
conhecimentos de matriz africana e/ou que dizem respeito à população negra”
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Trabalho apresentado no GP Comunicação Antirracista e Pensamento Afrodiaspórico, XXII Encontro
dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 45º Congresso Brasileiro de Ciências
da Comunicação
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Professora Associada do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Mídia e
Cotidiano na Universidade Federal Fluminense. Coordena, atualmente, o Curso de Jornalismo na
instituição, e-mail [email protected]
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45º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – UFPB – 5 a 9/9/2022
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prático, caso o estudante não opte pela disciplina terá seu direito ao ensino negado.
Percebe-se, portanto, que há uma dissonância entre o objetivo da norma e a forma da
sua aplicação. Isso fica evidente quando se analisam as estruturas dos cursos.
A pesquisadora Bruna Pereira Rodrigues3 (RODRIGUES, 2021) investigou os
Planos Políticos Pedagógicos e as matrizes curriculares dos quatro Cursos de Jornalismo
oferecidos por universidades públicas do Rio de Janeiro. O levantamento mostra que há
apenas uma disciplina obrigatória ligada à educação para as relações étnico-raciais,
“Cultura e Relações Étnico-Raciais”, oferecida pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), cujo currículo foi atualizado em 2018.
Na Universidade Federal Fluminense, só em 2021 foi criada a primeira
disciplina optativa exclusiva para o tema, “Comunicação e Relações Étnico-Raciais”4 no
currículo do novo curso de Jornalismo, em funcionamento desde 2016. A Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) também não tinha disciplinas obrigatórias no
currículo aprovado em 2014, mas oferecia duas optativas ligadas à questão: “Nação,
Raça e Etnicidade” e “Educação e Relações Étnicorraciais na Escola”.
Por fim, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), primeira instituição
de ensino superior do país a adotar cotas étnico-raciais para as populações negra e
indígena nos processos de seleção para graduação, não oferecia disciplinas optativas ou
obrigatórias voltadas ao tema de forma específica no currículo de Jornalismo.
Examinando disciplinas cujo conteúdo pudesse tangenciar as questões de raça e
etnicidade, como História do Jornalismo e Comunicação e Cultura, também não
encontrou menção ao tema nas ementas, embora esta última traga, como referência
bibliográfica, o livro “A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria”, de
Antônio Jorge Gonçalves Soares, Hugo Rodolfo Lovisolo e Ronaldo Helal, três homens
brancos.
Podemos argumentar, portanto, que a obrigatoriedade, prevista em lei, não vem
sendo cumprida à risca. Ela depende tanto do percurso acadêmico definido pelos e pelas
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Agradeço à Bruna Rodrigues, a quem tive a alegria de orientar durante o Trabalho de Conclusão de
Curso, por ter me aberto os olhos para a necessidade de criar uma disciplina voltada à educação para as
relações étnico-raciais no Curso de Jornalismo da UFF.
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A disciplina foi criada durante o processo de elaboração do TCC, por isso não aparece no levantamento.
Atualmente, o curso está realizando um ajuste curricular para inserir a disciplina Jornalismo e Relações
Étnico-Raciais como obrigatória, no 4º período.
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pelo fato de viverem uma outra experiência num país periférico e tratarem de problemas
aos quais muitas das teorias canônicas não se aplicam.
Não se trata portanto de uma discussão a respeito de “quem pode falar sobre o
quê” na universidade, mas de reconhecer que o lugar social do intelocutor importa na
sua perspectiva sobre o assunto. Como afirma a artivista, psicóloga e professora
portuguesa Grada Kilomba (2019), o racismo é um problema das pessoas brancas,
porque este é o grupo étnico beneficiado. Educar para as relações étnico-raciais exige,
portanto, que pessoas brancas nos racializemos, para que reconheçamos nosso lugar de
privilégio e o que isto implica em termos da nossa prática docente.
Isto não anula a necessidade de valorizarmos um “ponto de vista negro” sobre as
dinâmicas raciais e suas implicações dentro da prática jornalística. Ao contrário, a
objetificação de pessoas negras, que justificou o processo de escravização, continua a
operar no nível simbólico e no cotidiano vivido. Como argumentam as feministas
negras (COLLINS, 2019, HOOKS, 1989) enquanto objeto, a população negra teve
negado o direito de contar sua própria história, que foi definida a partir de um ponto de
vista branco. É contra essa objetificação que “o lugar de fala” se contrapõe,
reivindicando para as pessoas negras “o direito de definir sua própria realidade,
estabelecer sua própria identidade, dar nome a sua própria história” (HOOKS, apud
COLLINS, 2019, p. 138).
Esta perspectiva implica em reconhecer o racismo implícito na prática da
pesquisa acadêmica, uma vez que o processo de “objetificação” consiste, também, numa
operação intelectual que define quem é sujeito e quem é objeto da investigação.
Significa, também, apontar para a necessidade de “enegrecer” o referencial teórico a
partir do qual se analisam os problemas e as dinâmicas do campo.
O “epistemicídio” dentro da academia, produto do que o artista, intelectual,
professor, político e ativista abdias Abdias Nascimento (1978) nomeou como genocídio
do negro brasileiro, se coloca como outro entrave ao ensino das relações étnico-raciais.
Chamamos de epistemicídio o apagamento da contribuição e a invisibilização de
intelectuais negros no campo acadêmico de forma ampla, e no Jornalismo, em
particular.
Na experiência da UFF, nota-se uma ausência de referências negras tanto no
eixo de formação geral quanto nos de formação específica, como se pode apreender
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pelos títulos das disciplinas, pelas ementas e pela bibliografia básica. Por exemplo,
numa disciplina obrigatória como “Antropologia I”, embora se abordem a diversidade
étnico-racial e a noção de raça na ementa, não há referência a autores e autoras negras.
Da mesma forma, Comunicação e Cultura, optativa para o currículo, não traz
intelectuais negros e negras entre suas referências bibliográficas. Apenas a optativa
Comunicação e relações étnico-raciais e o projeto de extensão Dissemina Lab,
conduzido por uma docente do Curso de Comunicação Social – Publicidade e
reconhecida como optativa do curso de Jornalismo, privilegiam a contribuição de
intelectuais negros e negras nas abordagens pedagógicas e no marco teórico.
A professora Safyia Noble (2020) denuncia como ideias a respeito de uma
suposta cegueira de cor (color-blind ideology) mascaram a relutância da branquitude em
enfrentar a discussão sobre as relações entre raça e desigualdades sociais. Trazendo para
o contexto acadêmico, alegando que não percebem a influência da raça na prática
docente, docentes se eximem da culpa branca (KILOMBA, op. Cit) pelas consequências
do racismo que opera na definição do conhecimento válido e que merece ser ensinado.
Ressaltamos, em consonância com o argumento da autora, a dificuldade de
defender essa ideologia frente a uma universidade pública que enegrece mais a cada
ano, a partir da implantação das políticas afirmativas.
UNIVERSIDADES PÓS-POLÍTICAS AFIRMATIVAS
Ainda que o argumento sobre o “lugar de fala” não justifique a ausência das
questões raciais nos currículos dos cursos de Jornalismo, a constatação de há um déficit
de docentes negros e negras é real. Conforme já apresentado, apenas 16,4% dos e das
docentes das universidades públicas e privadas do país são pessoas autodeclaradas
negras (2% são pretas/os e 14,4%, pardas/os), ao passo que pessoas brancas respondem
por 52,9% dos profissionais.
A despeito do fato de ⅓ dos entrevistados no ano em que o Inep realizou a
pesquisa (2018) não terem declarado sua raça, dificultando a análise do problema, os
dados fornecidos nos permitem constatar de modo sistematizado o que de maneira
empírica verificamos cotidianamente nas salas de aula, ou seja, a baixa
representatividade de pessoas negras na docência superior. A adoção de políticas
afirmativas, tanto na graduação quanto na pós-graduação, a longo prazo pode produzir
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A Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, estabelece que as Universidades Federais devem oferecer, no
mínimo, 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas
públicas e vem sendo implantada de forma gradativa. Para ver um balanço dos 10 anos de sua
implantação na UFF, consultar
<https://www.uff.br/?q=informes/planejamento/alunos-cotistas-da-uff-apresentam-melhor-desem
penho-que-os-ingressantes-por> Acesso em: 08 jun 2022.
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