Fronteiras - Semântica e Pragmática - A.M.Lopes

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Ana Cristina M.

Lopes
Faculdade de Letras
Universidade de Coimbra

Fronteiras entre Semântica e Pragmática: algumas reflexões

l. Não é de todo fácil delimitar com rigor e de forma consensual as áreas de investigação

linguística algo movediças que os termos Semântica e Pragmática recobrem. O trabalho que aqui

se apresenta pretende ser apenas um contributo para uma discussão sobre essa problemática

delimitação de fronteiras, no quadro de uma reflexão teórica mais alargada sobre a significação e os

processos envolvidos na interpretação do discurso. Sem conclusões prematuras, este trabalho

inscreve-se, pois, numa linha de questionamento aberto, tributária de uma concepção de saber como

processo de indagação permanente.

Numa aproximação preliminar, diremos que a significação, ponto de partida e ponto de

chegada de toda a actividade linguística, mobiliza a pesquisa nas duas áreas referidas, sendo, no

entanto, distinta a circunscrição conceptual dos domínios de significação contemplados.1 Com

efeito, a Semântica constrói como objecto de conhecimento o significado constante das expressões

linguisticas, cuja apreensão apenas activa a competência linguística dos falantes de uma

comunidade. Assim, é à Semântica que compete descrever e formalizar o conhecimento (intuitivo)

que os falantes de uma língua têm acerca do significado explícito e convencional das expressões

dessa língua, bem como das relações de significado que sustentam entre si, nos planos lexical e

frásico (ou proposicional). Por outro lado, a Semântica procura ainda captar um outro aspecto

1 1
Sobre esta questão, vejam-se, entre outros, Gazdar (1979), Kempson (1975), (1977), Leech (1983), Levinson (1983),

Sperber & Wilson (1986), Davis (ed.) (1991), Fonseca (1994), Lappin (ed.) (1996).

1
relevante da construção do significado, que envolve a explicitação das regras combinatórias que

presidem à boa formação semântica de expressões complexas (sintagmas e frases); só é

interpretável uma estrutura semanticamente bem formada, sendo que essa boa formação é

assegurada pêlos recursos léxico-gramaticais do sistema linguistico. Perfila-se, desde já, uma opção

decisiva, do ponto de vista epistemológico: o significado que uma teoria semântica se propõe

modelizar é o significado invariante das expressões linguísticas, considerado independentemente

das situações em que a expressão é utilizada, das intenções e/ou objectivos comunicativos do

falante. Como afirma Leech, "meaning in semantics is defined purely as a property of expressions

in a given language, in abstraction from particular situations, speakers, orhearers"(1983:6).

É necessário sublinhar que esta perspectivação radica numa teoria do significado particular,

que privilegia a metafunção ideacional, informativa ou referencial da linguagem verbal, entendida

como sistema semiótico que permite representar entidades e situações do mundo2. Nesta óptica, as

estruturas semânticas codificam informação sobre o mundo, com base em convenções sígnicas de

carácter intersubjectivo. Segundo Chierchia e McConnell-Ginet, "informational signifiance is a

matter of aboutness, of connections between language and the world(s) we talk about" (1990: 11).

Assim, o significado de um item lexical é entendido como conjunto de traços semânticos inerentes,

propriedades do plano linguístico que correspondem a propriedades relevantes das entidades do

mundo que o item lexical representa. Os itens lexicais combinam-se e dão origem a estruturas que,

do ponto de vista semântico, configuram proposições; as proposições representam situações ou

estados de coisas do mundo e basicamente expressam a atribuição de uma propriedade a uma (ou

mais) entidades ou o estabelecimento de uma relação entre entidades. A interpretação das

expressões linguísticas, inteiramente determinada pelo nosso conhecimento da língua, constitui o

domínio em que opera a Semântica.

As teorias semânticas que privilegiam a dimensão informativa da significação são

habitualmente chamadas teorias referenciais; um tipo particular de teoria referencial é a semântica

verocondicional, que faz corresponder o significado das frases ao conhecimento das suas condições

2
O termo ‘ideacional’ aparece em Halliday (1970), no quadro de uma reflexão sobre as metafunções da linguagem

verbal.

2
de verdade, ou seja, à forma que o mundo teria de assumir para que a frase pudesse ser verdadeira.

Neste quadro, a semântica das línguas naturais é modelizada em termos de um sistema formal,

ancorado no princípio fregeano da composicionalidade, segundo o qual o significado de uma

expressão complexa é função do significado dos seus constituintes e do modo como se encontram

sintacticamente estruturados.3

Já no âmbito da Pragmática, uma língua natural é preferencialmente concebida, no quadro de

uma teoria da acção, como um instrumento de interacção social, o que implica a valorização das

metafunções interpessoal e textual da linguagem verbal4. Consequentemente, a significação que a

Pragmática focaliza como objecto preferencial de análise é aquela que se constrói no e pelo

discurso, prática social que envolve um contexto situacional, actores dotados de intencionalidade e

de capacidades inferenciais, universos de conhecimentos e crenças compartilhados ou em

dissimetria, princípios reguladores da própria interacção verbal. Essa significação incorpora

necessariamente uma dimensão accional ou ilocutória, já que a compreensão de um discurso

pressupõe a apreensão do que o falante faz ao dizer algo, ou seja, o reconhecimento do acto

discursivo intencionado pelo falante. Assim, uma investigação de índole pragmática acentuará

sempre as relações entre linguagem e contexto (de produção e recepção dos discursos),

evidenciando o grau de sub-determinação e a incompletude referencial e comunicativa do

significado computado exclusivamente a partir da competência léxico-gramatical dos falantes.

Em síntese, poderíamos dizer, nesta primeira aproximação, que a divisão de trabalho entre

Semântica e Pragmática radica na assunção de que há um nível autónomo de descrição linguística -

o nível do significado dos itens lexicais e das frases/proposições entendidas como objectos

abstractos não contextualizados -, distinto do estudo dos aspectos da significação cujo

processamento convoca parâmetros contextuais que transcendem a gramática da língua. Por outras

3
O paradigma semântico que privilegiamos neste trabalho poderia ser contestado por semanticistas que trabalham
noutros quadros teóricos, nomeadamente, no quadro da Linguística cognitiva. No entanto, o nosso próprio percurso de
investigação e o reconhecimento de que o trabalho desenvolvido no âmbito da semântica referencial tem contribuído de
forma consistente para um tratamento rigoroso de fenómenos linguísticos ligados a questões de referência nominal e
temporal levam-nos a centrar a reflexão em tomo deste paradigma.
4
Retomamos a terminologia de Halliday (1970).

3
palavras, o domínio da Semântica seria o estudo do significado dos lexemas e das frases, e o

domínio da Pragmática seria o estudo da. significação do enunciado/discurso. É recorrente na

linguística contemporânea a oposição conceptual "significado da frase" v s. "significado do

enunciado" ("sentence-meaning"vs."utterance-meaning"), sendo a frase, repetimo-lo, uma unidade

abstracta definida no quadro de uma teoria da gramática e o enunciado o produto resultante da

enunciação da frase (ou de um fragmento de frase) num dado contexto interaccional. No entanto,

esta delimitação estrita (e estreita) de fronteiras é, porventura, demasiado redutora e enfrenta

diversos escolhos. Nos parágrafos que se seguem, proponho-me aflorar alguns aspectos da

significação que tomam não linear a 'divisão de trabalho' entre Semântica e Pragmática:deixis e

anáfora, inferências e actos ilocutórios.

2. Em primeiro lugar, não é difícil constatar que há expressões linguísticas cuja interpretação

é clara e directamente determinada pelo contexto enunciativo. Refiro-me, naturalmente, às

expressões deícticas ou indexicais, que codificam/gramaticalizam coordenadas da situação

enunciativa e localizam entidades a partir dessas mesmas coordenadas. Como afirma Levinson,

"the singie most obvious way in which the relationship between language and context is reflected in

the structure of languages themselves, is through the phenomenon of deixis (...) Essentially, deixis

concerns the ways in which language encode or grammaticalize features of the context of utterance

or speech event, and thus aiso concems ways in which the interpretation of utterances depends on

the analysis of that context of utterance" (1983:54). Note-se que o funcionamento semântico destas

expressões deícticas é substancialmente distinto do dos itens lexicais de conteúdo

descritivo-representativo. Com efeito, os deícticos contêm apenas uma instrução sobre o modo

como deve ser seleccionada a entidade por eles designada num determinado contexto enunciativo5.

Assim sendo, funcionam como variáveis que só o contexto situacional permite preencher.

O valor destas expressões contribui decisivamente para a construção do significado

verocondicional das frases em que ocorrem; no entanto, esse valor não pode ser computado de

5
Não vamos discutir aqui a diferença substancial entre, por exemplo, os pronomes pessoais de 1a e 2a pessoas, que fixam
de forma directa e transparente o seu valor referencial , e um qualquer demonstrativo, cuja dependência contextuai é mais
complexa. Apenas nos interessa sublinhar que a interpretação dos deícticos é sempre contextualmente dependente.

4
forma autónoma, num módulo 'informacionalmente encapsulado' 6 : porque apontam para

coordenadas situacionais, a sua interpretação convoca necessariamente dados contextuais, que aliás

só podem ser processados por um sistema de input perceptivo. Poderíamos então dizer que um

deíctico especifica o elemento contextual/situacional que deve ser tomado em consideração para

que a interpretação da frase seja cabalmente determinada.7

Parece, pois, que a especificidade do funcionamento semântico dos deícticos põe em causa a

suposta autonomia contextuai da Semântica. Por outro lado, dado que as instruções que

convencionalmente codificam permitem computar um valor referencial, estas expressões não

podem ser excluídas do domínio descritivo que a Semântica se propõe modelizar. Assim, a deixis

(pessoal, espacial e temporal) questiona uma demarcação rígida entre Semântica e Pragmática,

evidenciando o papel fulcral do contexto (situacional) no processo da construção de conteúdos

preposicionais completos ou saturados.8

Por outro lado, verifica-se uma espécie de contínuum entre o domínio da deixis e o da

anáfora.9 Tanto a deixis como a anáfora envolvem questões de referência: uma expressão é deíctica

quando o cálculo do seu valor referencial faz intervir, como vimos, o contexto de enunciação da sua

6
Utilizamos analogicamente a conhecida expressão de Fodor (1983), que, na sua abordagem da mente, defende a
existência faculdades mentais que funcionam em termos de módulos cognitivos, que, para além (fe serem inatos e
especializados ("domain-specific"), são ainda computacionalmente autónomos e informacionalmente encapsulados, ou
seja, não têm acesso a informação exterior, mesmo que essa informação esteja mentalmente representada e seja acessível
aos sistemas cognitivos centrais.
7
Referimo-nos apenas à deixis pessoal, temporal e espacial. No entanto, na perspectiva de alguns autores (Lyons (1977),
Levinson (1983)), a deixis não se restringe a estas categorias; daí a utilização da expressão 'deixis social', que abarca a
codificação linguística da identidade social dos interlocutores e das relações sociais (horizontais ou verticais, de
proximidade ou distância) que mantêm entre si. Nas línguas naturais, a deixis social manifesta-se paradigmaticamente nas
formas de tratamento. Esta dimensão social da significação fica fora do escopo de uma análise semântica
verocondicional, uma vez que em nada afecta as condições de verdade da frase. A deixis social é uma área de investigação
que tem vindo a ser partilhada pela Pragmática e pela Sociolinguística interaccional.
8
Há soluções, no âmbito da Semântica verocondicional, para a questão da deixis. Veja-se, por exemplo, Lewis (1972),
que define a intensão de uma frase como uma função de índices para valores de verdade, sendo os índices assimilados a
coordenadas 'contextuais' (locutor, interlocutor, tempo e lugar da enunciação). Assim, uma frase pode expressar
diferentes proposições em diferentes situações de uso. As expressões deícticas são variáveis para parâmetros pragmáticos
que só o contexto situacional permite preencher. Como se pode verificar, basta alargar o número de parâmetros em
relação aos quais se define o valor de verdade de uma frase, incorporando no modelo as coordenadas contextuais, para se
resolver a questão da denotação dos deícticos no quadro da semântica verocondicional.
9
Sobre a anáfora, vejam-se, entre outros, Lyons (1977), Reinhart (1983), Partee (1984), Kleiber e Tyvaert (1990), Fiengo
e May (1996) e bibliografia aí incluída. A leitura da bibliografia disponível mostra que também neste domínio não há
definições consensuais do fenómeno. No quadro teórico gerativista, o termo anáfora é normalmente usado para designar
expressões nominais (nomeadamente pronomes reflexos e recíprocos) que são c-comandadas por um antecedente (a
relação de c-comando verifica-se entre dois constituintes distintos, a e P, sendo que a não domina P e o primeiro nó
ramifícante que domina a domina igualmente p) e esse antecedente está necessariamente co-indexado com a expressão
relevante, num dado domínio sintáctico local, o que traduz uma relação de dependência referencial. A nossa concepção de
anáfora é mais ampla, já que engloba também o domínio do discurso.
5
própria ocorrência; uma expressão é anafórica quando a sua interpretação depende do valor

referencial de uma outra expressão presente no contexto discursivo, e normalmente designada pelo

termo 'antecedente'.10 Assim, um termo anafórico é um termo referencialmente não autónomo;

juntamente com o antecedente, forma uma cadeia de referência cujo domínio pode ser a frase

(simples ou complexa) ou o discurso. Neste sentido, o domínio da anáfora é amplo: engloba as

anáforas pronominais, os SNs definidos que retomam referentes discursivos normalmente

introduzidos por SNs indefinidos, as anáforas temporais, e ainda as anáforas associativas (também

designadas pela expressão "bridging cross-reference").11 Neste momento, interessa-nos evidenciar

que alguns itens linguísticos que podem funcionar como puros indexicais podem também ser

usados anaforicamente: o exemplo prototípico é o dos pronomes demonstrativos. Neste caso,

parece plausível afirmar que a anáfora é a contrapartida textual da deixis, na medida em que se

transpõe para o espaço textual/discursivo o modo de funcionamento mostrativo característico da

deixis. O discurso funciona como elemento contextuai crucial na afectação de valores referenciais

aos demonstrativos anafóricos, que apenas comportam uma instrução de vizinhança num espaço

topológico. Deste modo, tanto as expressões deícticas como as anafóricas são referencialmente

10
Adoptamos aqui basicamente a definição de Levinson: "Anaphora is the phenomenon whereby one linguistic element,
lacking clear independem reference, can pick up reference through connection with another linguistic element"
(1987:379). É idêntica a definição adoptada por Kleiber (1990).
11
Sem qualquer pretensão de delimitar a especificidade de cada um destes sub-tipos de anáforas no quadro deste artigo,
darei apenas um exemplo para cada caso, de modo a clarificar a metalinguagem através de dados empíricos:
(i) O João apanhou uma pneumonia. Ele não tem cuidado nenhum com a saúde.
Neste exemplo, verifica-se uma relação de co-referência entre o pronome pessoal 'ele' e o SN antecedente ('OJoão'). Sem
a consideração do contexto discursivo, o pronome não teria um valor referencial preciso, apenas veicularia uma instrução
no sentido de se procurar informação contextuai acessível e saliente susceptível de o saturar semanticamente. Dado que o
pronome comporta os traços inerentes [+singular] e [+masculino], o antecedente terá que os verificar igualmente: esta é a
única restrição semântica imposta pelo pronome.
(ii) Entrou um homem no café. O homem trazia um chapéu preto de abas largas.
Tal como no exemplo anterior, é a representação do conteúdo semântico da primeira frase que vai funcionar como
contexto de interpretação da segunda; assim, o referente discursivo não identificado introduzido pelo SN indefinido passa
a integrar o domínio (parcial) do discurso e pode ser retomado pelo SN definido, sendo novamente estabelecida uma
relação de co-referência. Note-se que, contrariamente ao pronome, o SN definido comporta um conteúdo descritivo; o
estabelecimento da cadeia anafórica é legitimado por esse conteúdo e pelo valor de unicidade do artigo, relativizado a um
contexto específico de enunciação.
(iii) O Pedro nasceu em 1939. Vivia-se então o início da guerra.
Este exemplo ilustra um caso de anáfora temporal: o adverbial 'então' retoma anaforicamente o intervalo de tempo
identificado pelo adverbial temporal referencialmente autónomo 'em 1939'.
(iv) Chegámos à aldeia. A igreja estava fechada.
A anáfora associativa aqui exemplificada é um caso particular de dependência referencial: de facto, também neste
exemplo a frase inicial constrói o domínio de interpretação que legitima o uso da descrição definida 'a igreja' na frase
subsequente (a igreja referida é, naturalmente, a igreja da aldeia); no entanto, o referente discursivo que o primeiro SN
introduz não é retomado pelo segundo; o estabelecimento de um nexo de conectividade/de uma ponte entre os valores
referenciais dos dois SN envolve a activação de uma assunção partilhada pelos interlocutores, que integra o conhecimento
de common ground sobre o mundo (neste caso, a assunção de que uma aldeia tem uma, e uma só, igreja).

6
dependentes: as primeiras, dependem directamente das coordenadas enunciativas, as segundas,

dependem de antecedentes discursivos. No plano interpretativo, ambas são dependentes do

contexto: situacional, no primeiro caso, textual/discursivo, no segundo.12

Então, parece plausível concluir que tanto nas frases em que ocorre uma expressão deíctica

como naquelas em que ocorre uma expressão anafórica, o significado linguístico é subdeterminado,

comporta variáveis que o interlocutor terá de preencher a fim de reconstituir a proposição

comunicada pelo falante. A subdeterminação a que nos referimos é contextualmente saturável,

sendo que as expressões deícticas e anafóricas "programam" o processo interpretativo no sentido de

um "enriquecimento" do significado linguístico, enriquecimento esse que implica a especificação

de valores referenciais. Por outras palavras, a representação do conteúdo linguisticamente

codificado constitui a base (parcial) para a interpretação; mas só a construção de uma representação

preposicional completai permite a explicitação do conteúdo verocondicional do enunciado. Como

afirma Levinson, "sentences in the abstract do not in general express definite propositions at ali; it is

oníy utterances of them in specific contexts that express specific states of affairs (...) " (1983:59).13

12
A dicotomia conceptual que acabámos de referir nem sempre se oferece com a nitidez atrás evidenciada; de facto,
há usos não estritamente deícticos de expressões que tradicionalmente se enquadram na categoria da deixis. Vejam-se os
seguintes exemplos:
(i) Ele está sempre a dizer que amanha vai ao médico.
(ii) Aqui vai ser construído o mercado (enunciado acompanhado por um gesto que indica uma determinada área num
mapa).
Em (i), amanhã não designa o dia imediatamente subsequente àquele em que o locutor fala, antes refere, por extensão
semântica, um tempo futuro próximo. Neste caso, a ocorrência do adverbial de frequência sempre parece responsável pelo
bloqueio da interpretação deíctica; em (ii), aqui não refere manifestamente o espaço ocupado pelo locutor, mas um espaço
circunscrito pelo dedo do locutor. Aliás, já Lyons (1977) e Fillmore (1975) tinham observado que pode haver usos
"derivados"de expressões deícticas, resultantes de "transposições" (shifts) das coordenadas enunciativas cuja explicação
envolve o recurso à noção de alteração de perspectiva ou ponto de vista.
Por outro lado, para além dos demonstrativos, encontramos outras expressões linguísticas bivalentes, que podem ser
usadas deíctica ou anaforicamente.Veja-se (iii):
(iii) Atenção, ele é muito perigoso! (enunciado de alerta proferido pela mãe, quando o filho se prepara para brincar com
um determinado cão).
Em (iii), a interpretação do pronome 'ele' não faz intervir um antecedente textual: o pronome pessoal de 3a pessoa, que
prototipicamente funciona como expressão anafórica, pode ser usado como mostrativo situacional.

13
Em Sperber e Wilson (1986), defende-se uma posição semelhante; os autores propõem um distinção entre 'forma
lógica' e 'forma preposicional': a forma lógica corresponde ao significado da frase, léxico-gramaticalmente determinado;
a 'fornia proposicional' resulta do enriquecimento da representação semântica linguisticamente codificada, envolve a
afectação de valores referenciais a expressões contextualmente dependentes e a resolução de eventuais ambiguidades, e
equivale a um conteúdo proposicional explícito e completo. Para os autores, a construção da forma proposicional integra
o processo de interpretação dos enunciados e é explicado por processos de natureza pragmática, ancorados no Princípio
da Relevância, definido em moldes estritamente cognitivos (cf. Sperber e Wilson, 1986: 118-171).
7
Importa realçar que a anáfora, ao mobilizar o contexto discursivo no processo interpretativo,

abre igualmente uma brecha na delimitação 'territorial' das disciplinas cujas fronteiras temos vindo

a questionar. Com efeito, se tradicionalmente a Semântica visa modelizar o "sentence meaning",

como se poderão afectar valores referenciais às expressões anafóricas cujo antecedente está fora

dos limites da frase em que essas expressões ocorrem? Será que a mera convocação do contexto

discursivo é razão suficiente para integrarmos a interpretação das expressões anafóricas no domínio

da Pragmática? Parece-me consensual que a anáfora é um fenómeno que opera ao nível do

significado denotativo/representativo/referencial, domínio tradicionalmente privilegiado pela

Semântica. Se pensarmos que o discurso, para além de ser a unidade básica da interacção verbal, e

como tal susceptível de uma caracterização eminentemente pragmático-comunicativa, é também

uma unidade dotada de uma estrutura sintáctica e semântica que põe em jogo fenómenos de

natureza transfrásica, facilmente concluímos que a anáfora tem de ser contemplada numa teoria

semântica que ultrapasse as fronteiras da frase/proposição. E de facto, hoje em dia, o papel do

contexto discursivo tem merecido uma atenção crescente por parte de semanticistas que se propõem

descrever o processo dinâmico e incremental subjacente à interpretação da linguagem natural. Cada

vez mais se impõe a ideia de que "the incremental nature of interpretation is closely connected with

a ubiquitous feature of discourse, its semantic cohesiveness. Typically the sentences that make up a

coherent piece of discourse are connected by various kinds of cross-reference. (...) to understand

what information is added by the next sentence of a discourse to what he hás leamed aiready from

the sentences preceding it, the interpreter must relate that sentence to the information structure he

hás aiready obtained from those preceding sentences" (Kamp e Reyle, 1993:59). Nesta nova

perspectiva, a Semântica dinâmica afasta-se da concepção clássica e estática do significado

circunscrito ao nível da frase, passando a contemplar o plano discursivo/textual, tendo em conta os

contextos parciais de interpretação, vistos como estados de informação prévia construídos pelo

8
discurso anterior.14 Nestas abordagens, a interpretação é, pois, um processo em contexto, o que

questiona de forma radical a tradicional distinção entre Semântica e Pragmática baseada na

oposição entre interpretação contextualmente autónoma e interpretação contextualmente

condicionada ou dependente.15

Surge, então, uma pergunta inevitável: esta abertura da Semântica ao discurso subsume e

anula o domínio de investigação da Pragmática? Na minha perspectiva, há um conjunto de

fenómenos que não são integráveis nos dados empíricos que uma Semântica dinâmica se propõe

descrever e explicar e que legitimam a Pragmática como domínio de investigação autónomo. É

sobre esses fenómenos que seguidamente incidirá a minha reflexão.

3. Um dos terrenos cruciais na delimitação de fronteiras entre Semântica e Pragmática

prende-se com a questão das inferências. No âmbito da Semântica, as inferências

lógico-semânticas, dedutivas e determinadas exclusivamente pelo conteúdo verocondicional das

frases ('entailments' ou implicações), sempre ocuparam um lugar central. Tais inferências fazem

parte das relações semânticas entre proposições intuitivamente apreendidas pêlos falantes,

constituindo assim um componente da base empírica da semântica.

A partir da reflexão teórica de Grice (1975), a noção de inferência assume novos contornos e

passa a constituir um dos domínios centrais da investigação Pragmática. Como é sabido, Grice

distingue claramente entre o dito e o comunicado, ou seja, entre o "sentence meaning" e o

"speaker's meaning", e põe em relevo o papel dos cálculos inferenciais no processo de interpretação

14
Referimo-nos concretamente aos trabalhos de Kamp e Ryle (1993), Heim (1989), entre outros. Veja-se também
Langages, 123, 1996.
15
Groenendijk, Stokhof e Veitman vão ainda mais longe na sua formulação das interdependências entre entre contexto e
interpretação: "On prend en compte non seulement le fait que 1'interprétation depend du contexte, mais aussi le fait que le
processus d'interprétation crée lui-même du contexte. (...) En prenant en compte à la fois la dépendance contextuelle et ll
changement de contexte, les approches dynamiques pour aborder la signification rejoignent le cercle herméneutique. Ce
n'est pas l’observation de l’interdépendance du contexte qui est originale, mais bien plutôt son incorporation au sein d'un
cadre de sémantique logique" (1996: 8). Creio que o caso da anáfora associativa, referida na nota 11, pode ser analisado
justamente no quadro de uma 'criação' de contexto efectuada pelo próprio processo interpretativo, já que há uma
proposição que tem de ser inferida para que se possa estabelecer uma relação de dependência referencial entre o SN
anafórico e o antecedente.
Se é verdade que se desenham alguns pontos de convergência entre Semântica e Pragmática, no que toca ao relevo
concedido ao contexto no processo de interpretação, não é menos verdade que as soluções para os diversos problemas que
a interpretação do discurso- e, nomeadamente, da anáfora- levanta não são consensuais. As teorias semânticas
contemporâneas privilegiadas ao longo deste artigo procuram soluções formais que tendem a preservar o princípio da
composicionalidade, realçando o papel das constrições gramaticais no processo interpretativo. Já no âmbito das teorias
pragmáticas contemporâneas, são invocados princípios de natureza cognitiva ou conversacional para explicar como se
9
de um qualquer fragmento de linguagem natural: são esses cálculos que permitem ao interlocutor

colmatar o fosso tantas vezes existente entre o que o locutor disse e o que ele quis efectivamente

comunicar. Para se entender cabalmente o papel da inferência na lógica conversacional griceana,

importa evidenciar o travejamento teórico que alicerça o modelo. Grice defende uma concepção

racional da comunicação humana, perspectivada em termos de "shared goal-oriented enterprise of

speaker and hearer" (Horn, 1996:310), e constrói uma teoria do significado cuja fundamentação

epistemológica basilar é a noção de intenção do falante.16 É precisamente para explicar como se

acede à intenção comunicativa do falante que Grice explora a noção de inferência pragmática,

designada pelo termo 'implicatura'. O processamento da inferência, por parte do ouvinte, tem como

correlato a assunção de que o falante implicitou uma determinada informação, que corresponde

afinal à sua intenção comunicativa e que pode ser reconstituída. Grice distingue dois tipos de

implicaturas, as implicaturas conversacionais e as implicaturas convencionais. As primeiras são

inferências calculadas em função do significado linguístico da frase, de um conjunto de assunções

específicas sobre a natureza cooperativa da interacção verbal (as máximas conversacionais

subsumidas no Princípio da Cooperação, que estipulam de forma genérica a quantidade, qualidade

e pertinência da informação a transmitir, bem como o modo de apresentar) 17 e de eventuais

assunções contextuais partilhadas pêlos falantes; as segundas são inferências que não dependem da

dinâmica conversacional nem são determinadas pelo conteúdo verocondicional da frase, mas antes

legitimadas pelo significado convencional de um determinado item linguístico presente na frase.18

Centrando a atenção nas implicaturas conversacionais, pelo relevo que adquiriram na

literatura pragmática post-griceana,19 diremos que elas são (re)construídas pelo interlocutor com

base na assunção de que as máximas estão a ser observadas, mas podem também ser activadas por

processa a afectação de um valor referencial específico a uma expressão anafórica (cf. Kempson, 1990; Levinson, 1987).
16
Para a definição griceana de meaning-nn (non natural meaning, correspondente à comunicação intencional, ao querer
diwr), veja-se Grice (1971). Em termos simplificados, a ideia central é a seguinte: o falante A quer dizer algo ao enunciar
X sse (i)A tem a intenção de produzir, graças à enunciação de X, um determinado efeito no interlocutor e (ii) esse efeito
resulta do reconhecimento, pelo interlocutor, da intenção de A.
17
Sobre o Princípio de Cooperação e as máximas conversacionais, cf. Grice (1975).
18
O exemplo clássico prende-se com a implicatura desencadeada pelo conectar 'mas', que activa um contraste entre
conteúdos preposicionais. Cf. Grice, 1975.

19
Referimo-nos, concretamente, aos trabalhos de Levinson (1983), Hom (1972), (1989) e Gazdar (1979), e também à
Teoria da Relevância de Sperber e Wilson (1986).
10
20
uma derrogação intencional e aberta dessas máximas . Contrariamente às implicações

lógico-semânticas, as implicaturas conversacionais são canceláveis, embora não destacáveis. 21

Grice distingue ainda, no conjunto das implicaturas conversacionais, dois sub-tipos: as implicaturas

conversacionais generalizadas, que constituem a base daquilo a que Levinson chamou

"utterance-type meaning" (1995) e que se caracterizam pelo facto de serem absolutamente

preditíveis e induzidas em qualquer contexto de interacção, funcionando como um nível adicional

de informação comunicada pelo falante 22 , e as implicaturas conversacionais particulares, cuja

activação depende da especificidade dos contextos de interacção e que correspondem ao que o

falante quis de facto dizer.23 Tanto as implicaturas generalizadas (ou implicaturas standard, na

terminologia de Levinson (1983)), como as particulares são inferências cuja caracterização envolve

uma teoria do uso da linguagem, isto é, que só podem ser calculadas se se admitir que há princípios

reguladores da interacção verbal responsáveis pelo processamento de informação linguisticamente

não explicitada. No caso das implicaturas particulares, é mais acentuado o carácter contingente da

inferência: o interlocutor constrói uma hipótese ad hoc acerca da intenção comunicativa do falante,

hipótese supostamente controlada pela lógica conversacional e pela mobilização de assunções

contextuais de tipo diverso, no qual se inclui conhecimento de background compartilhado. O

processo de interpretação parece nestes casos assimilável a uma tarefa de resolução de problemas,

sendo activados processos cognitivos não necessariamente de natureza dedutiva, que comportam

20
Os usos indirectos e não-literais da linguagem podem ser analisado num quadro teórico griceano. É ainda a crença de
que o locutor respeita o Princípio de Cooperação que leva o interlocutor a considerar que uma determinada máxima foi
infringida ao nível do dito, mas respeitada ao nível do comunicado, o que o conduz a reconstituir aquilo que foi
conversacionalmente implicitado.
21
Veja-se um exemplo simples: se o falante disser (i) 'A Ana tem dois filhos', a implicatura conversacional, gerada pela
assunção de que a máxima da quantidade está a ser respeitada, é a seguinte proposição 'A Ana só tem dois filhos'. Mas esta
inferência pode ser cancelada, bastando para isso que o falante acrescente ao seu discurso informação adicional,
inconsistente com a inferência activada. É o que acontece na sequência discursiva 'A Ana tem dois filhos, talvez até
três/se é que não tem mais'. A propriedade da não-destacabilidade prende-se com o facto de expressões com o mesmo
significado linguístico, ou seja, com o mesmo conteúdo literal, gerarem as mesmas implicaturas. Retomando o exemplo
dado, o enunciado (i) poderia ser substituído por (ii) A Ana é mãe de duas crianças, mantendo-se a implicatura. Nestes
exemplos, a implicatura é calculada a partir da assunção de que o falante está a observar a máxima da quantidade. Para
uma visão crítica desta propriedade da não-destacabilidade das implicaturas, veja-se Levinson (1983).
22
As implicaturas escalares regulares estudadas por Gazdar (1979) e Hom (1972, 1973) são um bom exemplo deste tipo
de inferências. Nestes casos, a implicatura introduz níveis adicionais de significação.
23
Para ilustrar este üpo de inferência, veja-se o elucidativo exemplo adaptado de Grice: (i) O João tem uma óptima
caligrafia e nunca faltou às aulas (numa carta de recomendação para uma vaga de filosofia). O autor da carta de
recomendação implícita conversacionalmente que o João não é um bom filósofo. É a derrogação da máxima da relevância
que activa o cálculo da implicatura: o interlocutor reconstrói a proposição implicitada que permite repor a rackmalidade
do acto comunicativo, assente no Princípio da Cooperação. implicatura. Veja-se Lopes e Santos (1993) e bibliografia aí
citada.
11
sempre uma margem de risco.

Podemos, então, dizer que o cálculo das implicaturas integra o processo de interpretação do

enunciado/discurso produzido; assim, a compreensão da linguagem verbal não é redutível à mera

descodificação do material verbal, que apenas envolve a competência léxico-gramatical dos

falantes. Numa outra formulação, diremos que a significação globalmente transmitida por um

enunciado não se esgota na mera computação composicional do significado das formas linguísticas

que o integram. O processamento das inferências pragmáticas, como atrás se assinalou, activa

muitas vezes assunções de background, que configuram o contexto partilhado pêlos interlocutores,

e envolve frequentemente a construção criativa de hipóteses interpretativas. Na opinião de vários

autores, opinião que partilhamos, o domínio por excelência da investigação pragmática é

justamente o domínio da significação não explícita, calculada em função de processos inferenciais

não-lógicos: "non-demonstrative inference, as spontaneousiy performed by humans, might be less a

logical process than a form a suitably constrained guesswork. If só, it should be seen as succesfui or

unsuccessfui, efficient or inefficient, rather than as logically valid or invalid"(Sperber e Wilson,

1986:69). Parece, pois, possível, manter uma fronteira entre Semântica e Pragmática, sendo este

último domínio responsável pela descrição/explicação dos processos que permitem aceder à

significação comunicada de forma implícita ou indirecta.. O campo das implicaturas

conversacionais particulares, cujo cálculo parece assimilável a um processo de formulação de

hipóteses interpretativas probabilísticas, oferece-se como uma área fértil de pesquisa, onde

porventura interferem mecanismos cognitivos de tipo abdutivo mobilizados por princípios

conversacionais e objectivos interaccionais.24

Acontece, porém, que também na área da Semântica se tem vindo a assistir a um incremento

do interesse por processos inferenciais não redutíveis aos esquemas dedutivos clássicos da lógica

preposicional. Com efeito, o tratamento de subáreas específicas no campo da referência nominal e

temporo-aspectual (pensamos, concretamente, na questão' da genericidade), bem como a descrição

do valor semântico de construções condicionais genéricas, vieram pôr em relevo o papel das

24
A Teoria da Relevância de Sperber e Wilson (1986), que propõe uma explicação inferência!, de base cognitiva, da
comunicação humana, constitui, a nosso ver, uma teoria que visa enquadrar as implicaturas particulares construídas no
processo interpretativo dos enunciados. No entanto, reconhecendo embora o papel da formação de hipóteses criativas
neste processo, os autores não lhe conferemum papel central, na medida em que propõem um sistema dedutivo formal que
controla o cálculo da implicatura.
12
inferências não monótonas (baseadas no' raciocínio por defeito) na caracterização semântica de

certas estruturas linguísticas25. Entende-se por inferência não monótona a inferência que, deduzida

de um dado conjunto de premissas, pode deixar de ser válida se se adicionar informação a essas

premissas. Dito de outro modo, a inferência só é válida na ausência de informação excepcional. A

título de exemplo, face aos enunciados (i) e (ii), inferimos por defeito (iii):

(i) Os trasmontanos são reservados.

(ii) (ii) O João é trasmontano.

(iii) (iii) O João é reservado.

No entanto, se ao enunciado (ii) acrecentarmos a informação 'mas é muito extrovertido', a

inferência registada em (iii) é automaticamente anulada.

Ora, se reobservarmos atentamente o exemplo aduzido na nota (23), e que aqui reproduzimos em (i

v), verificamos que a implicatura calculada (iv') é basicamente numa inferência por defeito:

(iv) A Ana tem dois filhos.

(v) (iv') A Ana só tem dois filhos.

Com efeito, se adicionarmos uma premissa suplementar como a que ocorre em (v), a implicatura é

automaticamente cancelada:

(v) A Ana tem dois filhos, ou talvez até três.

Surge, então, uma pergunta, que deixo em aberto: qual a relação entre inferência

não-monótona e inferência pragmática? Haverá alguma diferença substancial, uma

descontinuidade, entre a inferência não monótona e as inferências pragmáticas que configuram

implicaturas conversacionais generalizadas? Uma outra pergunta que deixamos igualmente em

aberto é a seguinte: no caso do cálculo das implicaturas conversacionais particulares, que tipo de

processo cognitivo entra em jogo? Será por abdução que se forma a hipótese criativa que,

adicionada à proposição expressa, conduz à conclusão correspondente ao speaker's meaning.

25
Veja-se Lopes e Santos (1993) e bibliografia aí citada.

13
4. O último domínio problemático que pretendo abordar prende-se com os fenómenos que relevam
da força ilocutória dos enunciados ou, de modo mais genérico, da dimensão accional da linguagem
verbal. Trata-se, como é sabido, de uma área que germinou no campo da filosofia da linguagem,
com a reflexão seminal de Wittgenstein em torno dos jogos de linguagem, entendidos como
práticas sociais, e que veio a estruturar-se numa, teoria de actos discursivos graças,
fundamentalmente, às propostas de Austin (1962) sobre a performatividade inerente ao uso das
línguas, subsequentemente aprofundadas e sistematizadas por Searle (1969). Na sua formulação
clássica, esta teoria não ultrapassa as fronteiras da frase, suporte linguístico básico dos actos
ilocutórios, o que aliás se compreende e justifica na medida em que o que está em jogo é a definição
das regras constitutivas de cada tipo de acto. A ideia central da teoria dos actos discursivos (speech
acts) é a de que a actividade linguística é um tipo de comportamento intencional governado por
regras. Assim, a enunciação de uma frase constitui sempre a realização de um acto por parte do
falante, graças à força ilocutória convencionalmente associada ao enunciado produzido. Para além
de um conteúdo preposicional, um enunciado comporta sempre uma força ilocutória,
convencionalmente associada a determinados marcadores linguísticos, nomeadamente os tipos de
frase, os modos verbais, as curvas entoacionais e os verbos performativos. Trata-se, pois, de uma
teoria da significação linguística entendida ou perspectivada como parte de uma teoria geral da
acção humana. A dimensão ilocutória, sendo um aspecto crucial da significação linguística, é
irredutível a uma análise semântica verocondicional. Os actos ilocutórios são descritos em termos
de condições de felicidade, que são especificações das condições de uso adequadas. A formulação
das condições de felicidade para cada tipo de acto ilocutório corresponde à explicitação das suas
regras constitutivas.
Tal como Grice, também Searle considera que há uma íntima relação entre intenção e
meaníng (querer dizer): compreender o que o falante quis dizer implica reconhecer que o falante
teve a intenção de produzir um determinado efeito no interlocutor. Mas Searle acentua que há
regras convencionais que vinculam as expressões linguísticas utilizadas à produção de
determinados efeitos: "Na realização de um acto ilocutório, o falante pretende produzir um certo
efeito, levando o ouvinte a reconhecer a sua intenção de produzir esse efeito e, além disso, (...)
pretende que esse reconhecimento se efective em virtude de as regras para empregar as expressões
que ele profere associarem as expressões com a produção desse efeito" (Searle, 1983:73).
O estudo dos actos ilocutórios e dos seus suportes linguísticos é habitualmente

contemplado na Pragmática, o que se compreende se pensarmos que a dimensão accionai da

significação não é captável por uma teoria semântica referencial. Identificar o acto ilocutório

realizado na e pela enunciação de uma frase X equivale a responder à pergunta 'O que é que o

falante quis dizer/fazer com X?

Na sequência do trabalho de Austin e Searle, parece-me que é possível apontar (pelo menos)
14
duas linhas divergentes de reflexão em tomo da dimensão ilocutória da significação.26 Uma delas

propõe-se unificar parcialmente a teoria dos speech acts com a semântica verocondicional clássica,

pela construção de uma semântica formal capaz de conectar e caracterizar as condições de verdade

e as condições de sucesso de enunciados (utterances) literais. Referimo-nos ao trabalho de

Vanderveken (1990), norteado pela seguinte hipótese central: "it is pari of the maning of every

sentence that its literal utterance in appropriate contexts of use, constitutes the performance by the

speaker of certain illocutionary acts" (1990:8).27 A outra propõe-se estender e reelaborar a teoria

clássica dos actos discursivos através do estudo empírico dos usos da linguagem. Nas interacções

conversacionais autênticas, das mais espontâneas e informais às mais ritualizadas e submetidas a

constrições institucionais, os actos discursivos articulam-se sequencialmente, sendo a sua função

comunicativa específica condicionada pelo lugar que ocupam na sequência (uma frase declarativa é

o suporte por excelência de um acto ilocutório assertivo ou representativo; no entanto, a sua

ocorrência num par adjacente iniciado por uma pergunta confere-lhe automaticamente o estatuto de

'resposta'). É também na articulação sequencial/interactiva que se desenham processos de mitigação

ou reforço dos actos discursivos, enquadráveis pelo principio de cortesia e pela teoria de gestão

adequada das faces28. Por outro lado, a consideração do speech event e dos papéis sociais que nele

desempenham os interlocutores podem exercer fortes constrições na distribuição dos turnos de fala

e condicionar significativamente a realização de determinado tipo de actos discursivos (pense-se,

por exemplo, no contexto pedagógico, fortemente assimétrico, onde a efectivação de actos

directivos de ordem está praticamente vedada aos alunos).

São diversos os trabalhos produzidos nesta linha de investigação; correndo porventura o

26
Embora consciente de que os importantes trabalhos de Ducrot se inscrevem numa orientação que é tributária da teoria
clássica dos actos discursivos, parece-me que se trata de uma construção teórica que a reelabora profundamente e que
mereceria, por si só, um destaque incompatível com as limitações deste texto.
27
Nesta perspectiva, a força ilocutória entra na caracterização recursiva do valor semântico das frases. Veja-se o exemplo
seguinte:
(i) Por favor, come uma maçã ou uma pera!
(ii) (ii) Por favor, come uma maçã!
A frase (i) expressa uma injunção disjuntiva e implica a frase (ii). Trata-se de uma relação de implicação ilocutória,
similar às relações de implicação semântica. 28 Cf. Brown e Levinson (1987).

28
Cf. Roulet et alii (1985), Sinclair & Coulthard (1975), Sacks et alii (1978).

15
risco de reduzir, por um excesso de síntese, a relevância contemporânea da pesquisa sobre as regras

que presidem à combinatória dos actos discursivos, assinalaremos, como pontos de referência que

nos parecem consistentes, a Escola de Genève, a Escola de Birmingham, o trabalho dos

conversacionalistas norte-americanos .29

Verifica-se, pois, que também neste domínio há tensões contraditórias: por um lado, uma

tentativa de alargamento da Semântica, com a incorporação num quadro unificado e formal das

dimensões referencial e accionai da significação, no âmbito restrito da frase enunciada em contexto

zero; por outro, a afirmação irredutível de domínio autónomo de investigação, vinculado a um

paradigma sociocomunicativo no qual o estudo da linguagem é sempre, necessariamente, o estudo

do discurso enquanto instrumento de interacção social.

5. No prototípico espaço de uma conclusão, apenas algumas considerações finais sem

carácter definitivo. Se elegermos como objecto de investigação o discurso, verificamos- e cremos

que o que se segue é hoje consensual na comunidade linguística - que a sua interpretação mobiliza

diferentes e heterogéneos domínios de análise no plano da. significação, o que parece apontar para

a produtividade de uma interface semântica-pragmática. Na mesma linha argumentativa, diríamos

que a analise do discurso convoca. uma abordagem integrada, susceptível de contemplar e articular

as diferentes dimensões da significação, explícita e implícita, referencial, interpessoal e textual.

Dada a progressiva incursão da Semântica em territórios transfrásicos e enunciativos, as

fronteiras entre as duas áreas de investigação interrogadas neste trabalho aparecem hoje como mais

fluidas e difíceis de delimitar. Resta-nos uma atitude aberta de receptividade crítica às distintas, e

por vezes concorrenciais, teorias disponíveis.

A linguagem verbal é um fenómeno complexo, e em função do ponto de vista adoptado e dos

objectivos da investigação, constróem-se objectos de conhecimento que implicam sempre a

consideração parcelar do objecto empírico. É consabido que correlações e interacções que são

irrelevantes numa determinada investigação podem ser abstraídas como objecto de estudo numa

outra linha de investigação. O confronto entre Semântica e Pragmática parece demonstrar

claramente que distintos pontos de vista sobre a natureza da linguagem verbal e distintos objectivos

de investigação originam delimitações "territoriais" cuja tensão é real. A valorização da

16
arquitectura da língua natural, perspectivada como sistema discreto e combinatório, desemboca

numa engenharia da linguagem com implicações ao nível do processamento

automático/computacional; a vinculação da linguagem às condições sociais do seu uso abre outras

vias de conhecimento, que inegavelmente iluminam aspectos relevantes da actividade linguística.

Há, porém, uma evidência incontomável: qualquer teoria que vise integrar os diferentes

níveis por que se reparte a significação terá de se confrontar com a incontomável dependência

contextuai da interpretação da linguagem natural.

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