Quem Tem Medo Da Arte Contemporanea
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Marcos Beccari1
Introdução
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seja em relação ao realismo clássico.2 Não obstante, boa parte dos críticos do modernis-
mo e/ou do pós-modernismo cultiva um ideal perdido, muitas vezes não declarado, a
partir do qual o presente possa ser condenado.
Esse tropo de tragédia seguida por farsa é sedutor [...], mas não basta
como modelo teórico, quanto menos como análise histórica. No entan-
to, impregna as atitudes em relação à arte e à cultura contemporâneas,
em que primeiro constrói o contemporâneo como pós-histórico, um
mundo de simulacros feito de repetições malogradas e pastiches paté-
ticos, e então o condena como tal a partir de um ponto mítico de escape
crítico para além de tudo isso. No final das contas, este ponto é pós-
histórico, e sua perspectiva é mais mítica onde pretende ser mais crí-
tica. (Foster, 2014, p. 32-33).
Examinando com maior acuidade, o impacto cultural e social das vanguardas foi
consideravelmente mais limitado do que dá a entender o historicismo que o sustenta. Em
primeiro lugar, porque o esteticismo da “arte pela arte”,3 principal alvo dos artistas de
vanguarda, nunca foi hegemônico na arte oitocentista, tampouco expressava qualquer
tradição vagamente definida como clássica, acadêmica ou realista (Cf. Cassagne, 1997). O
culto esteticista da arte como esfera superior à vida, afinal, parece indicar uma conduta
mais idealista do que realista.
Em segundo lugar, ainda no século XIX artistas como Gustave Courbet na pintura
e Gustave Flaubert na literatura defendiam o realismo em oposição, respectivamente, ao
2. Mesmo Bürger procurava solucionar um debate entre a arte realista defendida por Lukács e a vanguar-
da histórica defendida por Adorno. Sua saída foi considerá-las como partes dialéticas que lhe permitiam
“[...] inferir o sentido do todo” (ibidem, p. 162). A isso é interessante acrescentar que, de acordo com Eva
Cockroft (2000), a difusão global do expressionismo abstrato nos anos 1950-60 fez parte de uma estraté-
gia política de propaganda norte-americana que incluía, entre outras coisas, o combate ao avanço do rea-
lismo socialista no ocidente.
3. Vertente oitocentista que reivindicava autonomia total da arte em relação à moral, à política, à ciência
e às convenções em geral. Equivalente ao “Movimento Estético” britânico (Aestheticism), representado
principalmente por Oscar Wilde, a escola da “arte pela arte” (L’art pour l’art) designa parte da produção
literária francesa entre, aproximadamente, as décadas de 1850 e 1870, incluindo autores como Charles
Baudelaire, Théophile Gautier, Edmond e Jules de Goncourt, Leconte de Lisle e Ernest Renan.
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como decretou Jürgen Habermas (1992), pois ela foi de fato eficaz em revelar, num tempo
e lugar específicos, tanto os limites convencionais da arte quanto os do próprio enunci-
ado vanguardista. Por isso não havia ingenuidade alguma por parte de Duchamp quando,
em 1917, ele assinou com um pseudônimo um urinol virado de cabeça para baixo: o
ready-made funcionou tanto para desmistificar a arte quanto para remistificá-la. Se já
não era novidade o fato de que a regra do jogo é arbitrária, alguém só precisava admitir
e expor tal arbitrariedade como obra.
O que se costuma denominar, não sem dissenso, arte contemporânea são os movi-
mentos que surgem após a Segunda Guerra Mundial. Segundo o crítico Leo Steinberg
(2008, p. 107), em Outros critérios, tornava-se cada vez mais capciosa a presunção histo-
ricista de um avanço progressivo da arte, sendo necessário, em vez disso, “[...] redefinir a
área de sua competência testando seus limites”. Isso implicou, como resume Foster (2014,
p. 42-43), decompor os procedimentos da vanguarda
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É o que fica evidente em A arte depois da filosofia, onde Joseph Kosuth (2006, p. 217),
em 1969, opunha-se abertamente a Greenberg e sentenciou que “toda arte é conceitual”,
uma vez inaugurado por Duchamp o momento em que a arte seria capaz de questionar
sua própria natureza. Mas não para por aí. Partindo de um entendimento um tanto pe-
culiar de Wittgenstein, Kosuth acreditava que a filosofia, incapaz de dizer o indizível,
havia chegado ao fim e se deixado substituir pela arte conceitual, esta sim capaz de
“mostrar o indizível”. E para concluir de maneira magistral, Kosuth (ibidem, p. 225-226)
ainda conseguiu recuperar, embora com outro léxico e por outros caminhos, o antigo
culto esteticista: “Na verdade, a arte existe apenas para seu próprio bem. [...] A única exi-
gência da arte é com a arte. A arte é a definição da arte”.
Desnecessário fixar que a arte conceitual não se resume ao manifesto de Kosuth,
bem como a arte contemporânea não se limita à arte conceitual. Mas os casos menciona-
dos servem para ilustrar como parte da arte contemporânea tornou senão mais estáveis
as categorias tradicionais, por certo mais hermético o discurso artístico. Não surpreende,
com efeito, que um historiador como Ernst Gombrich (2007, p. 304-329) tenha pratica-
mente ignorado, em seu esquema evolutivo da representação visual, a arte abstrata e tudo
que a sucede. Pautado na matriz moderna da história da arte (de Wölfflin a Panofsky),
Gombrich limita-se a identificar no período pós-guerra uma tendência iconoclasta
mediante o avanço das mídias de massa (demonizadas por Guy Debord e exaltadas por
McLuhan), situando assim uma guinada abstrata da arte contra o fotorrealismo popular.
Eis nada menos que, novamente, historicismo: algo como pensar que a fotografia simples-
mente veio a substituir a arte realista.
Quanto a isso vale assinalar que, por um lado, o discurso abstracionista não se
reduz, como se costuma pensar, a uma oposição direta ao realismo pictórico. Artistas
como Malevitch ou Yves Klein colocavam-se no limiar de qualquer sintaxe, mas sem
abdicar de certa literalidade (seja das sensações ou dos conceitos) ao investigarem, em
suas obras, a imagem de uma realidade última. Por outro lado, o realismo pictórico não
apenas “sobreviveu” às vanguardas, como também foi amplamente desenvolvido na
arte contemporânea: inicialmente com a arte pop, passando pela arte abjeta, pela arte
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5. Ursula Uchoa (2014) identificou os dez recursos historicamente mais utilizados na arte de performance:
a nudez, a indumentária vermelha, a carne crua, o sangue, a “pintura vaginal”, alimentos ou líquidos,
mordaças ou amarras, o gelo e a action painting (pintura com o corpo).
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6. “By nature I am a skeptic. I don’t dare to think my paintings are great. I can’t understand the arrogance of
someone saying, ‘I have created a big, important work.’ I want to reject this pathetic behavior, this notion of
the heroic artist” (Richter apud Kimmelman, 2002, s. p.).
7. Sua pintura Abstraktes Bild (1994) foi leiloada, em outubro de 2012, por 26,4 milhões de euros. Notícia
disponível em: <https://www.theguardian.com/artanddesign/2012/oct/13/gerhard-richter-paintingrecord-
price>. Acesso em 26 jul. 2017.
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isso buscar a reconstituição de uma história, mas apenas indicar que sua própria histó-
ria, quando transformada em arte, se torna estranha e fragmentada. Penso que a arte
contemporânea talvez nos pareça difícil e obscura por ocasião de um excesso de proxi-
midade, de repetições e rupturas. Talvez algumas coisas possam se tornar mais claras a
uma distância não tanto histórica, mas, como a de Richter, cética em relação à própria
arte. “Para acreditar, é preciso ter perdido Deus. Para pintar, é preciso ter perdido a arte”
(Richter in Storr, 2002, p. 86, tradução minha).
Considerações finais
As artes visuais podem ser compreendidas como formas de olhar que nos conectam
ao mundo, aproximando-nos de certas questões ao mesmo tempo em que nos distanciam
de outras. O caráter vago e genérico dessa definição parece ser condizente não apenas com
a dispersão artística que marca a nossa época, mas antes com a premissa contemporânea
de que “[...] não há continuidades ou descontinuidades na história, mas somente nas expli-
cações históricas” (Crary, 2012, p. 16). Descrever o que é arte contemporânea, com efeito,
só faz sentido em prol de alguma coesão discursiva. É no âmbito dessa coesão que, de
modo sumário e seletivo, procurei traçar um amplo panorama acerca de algumas con-
tradições que balizaram a arte contemporânea. Nesse sentido, conforme sintetiza Artur
Freitas (2007, p. 21), “[...] ela foi a panaceia da própria ideia de autonomia – uma espécie de
apelo genérico, utópico e contraditório à capacidade de intervenção da arte sobre o real”.
Se iniciei este ensaio aludindo à noção nietzscheana de vida como obra de arte,
problematizando em seguida a dicotomia entre ruptura e conciliação, cabe-me retomar
a questão da relação entre arte e vida. Para tanto, o enunciado do fim da arte pode servir
como anteparo a ser falseado, conduzindo-nos ao mote da vida como obra de arte.
De início, se o pretexto das rupturas vanguardistas era o da conciliação entre arte
e vida, o que entrou em cena na segunda metade do século XX, de acordo com Giulio
Carlo Argan (1995), foi a intrincada relação entre arte e crítica: de um lado, uma crítica
que orientava diretamente a produção artística e, de outro, uma arte que absorvia em si
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a função da crítica, dispensando-a. Com base nesse esquema, Argan lançou a hipótese de
que arte e crítica se tornariam uma coisa só, posto que as questões da arte, segundo ele,
estavam migrando ao registro da pura reflexão teórica.
De maneira similar, alguns críticos e filósofos contemporâneos insistem em noti-
ciar que a arte morreu, conforme Hegel já sentenciara em meados do século XIX. Para
o filósofo Arthur Danto (2006), a tese hegeliana de que a arte perderia importância em
favor da filosofia se confirma na arte contemporânea, que teria deixado de se preocupar
em representar o mundo para tratar de representar a própria arte, isto é, os sentidos e
limites do fazer artístico. E a partir da arte pop, segundo o autor, a arte deixa de se im-
por limites, uma vez que qualquer objeto pode vir a ser obra de arte. Isso implica, para
Danto, o fim da arte enquanto narrativa histórica (como acúmulo progressivo de seus
meios), mas também o estabelecimento de uma arte pós-histórica amparada numa su-
posta liberdade artística sem precedentes.
Ora, mesmo desconsiderando o historicismo e o essencialismo em que Danto
declaradamente se ampara, sua noção de fim de arte depende da aceitação pacífica e
unânime de que qualquer objeto pode vir a ser obra de arte. Só que quando as pessoas
vão aos museus, por mais que já estejam predispostas a aceitar como arte aquilo que lá
estiver exposto, nada garante a complacência: uma obra poderá passar despercebida, ou
mesmo ser reduzida, por leigos ou especialistas, a um embuste sem nenhum valor. Do
mesmo modo, se um original de Da Vinci for vendido na banca de jornal, arrisca não
obter credibilidade alguma. Logo, o imperativo de que “tudo é possível” é ao mesmo
tempo mais restrito e mais abrangente do que presumia Danto: tudo pode ser arte na
mesma medida em que nada pode ser arte.
O que está em jogo no fim da arte é, no fundo, a persistência de um velho impulso
esteticista: Kosuth reivindicou a supremacia da arte conceitual sobre a filosofia, ao
passo que Danto reivindicou a supremacia da filosofia sobre a arte. Mas se nem mesmo
a crítica de arte, a despeito do que prenunciava Argan, tornou-se autônoma – o herme-
tismo nunca eximiu a massa de emitir juízos –, como fica a história da arte? Alguém se
encarregou de salvá-la: em O fim da história da arte, Hans Belting (2006) propôs que a
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história da arte renuncie ao status de campo autônomo para que possa se inserir numa
história mais geral das imagens (portanto, mais digna de autonomia). Troca-se o nome e
mantém-se a mesma disputa pela verdade artística (ou das imagens).
O que pouco se costuma valorizar, quando não sumariamente se ignora, é o simples
fato de que as artes visuais se alastraram no plano mundano, não no sentido ingênuo
de que tudo tornou-se potencialmente arte, mas no sentido tácito da ampliação do aces-
so, da produção e da partilha artístico-visual. A recusa em admitir esse cenário tende a
reservar algum juízo prévio sobre ele – o de que, por exemplo, cada vez mais não é de
arte que se trata, e sim de entorpecimento da boa e velha indústria cultural confinada
ao lucro. Sem entrar no mérito da questão, o que me parece estar em jogo na dimensão
cotidiana não é a arte enquanto categoria qualquer, mas a fruição estético-visual8 atre-
lada ou não às obras de arte.
Do grafite aos gifs animados, mas também do Louvre ao Instagram, propagam-
se obras e experiências sem o menor compromisso com os rigores da arte ou com a
consciência de sua história. Não se trata de vanguardas, não se trata de naïfs, é antes um
processo heterogêneo e desordenado que revigora as sensações afetivas que estabelece-
mos com o mundo. Como assinalou Celso Favaretto (2011, p. 105), “É no deslocamento
assim produzido que se localiza [...] o nexo entre arte e vida”, não mais em termos de
conciliação, e sim de “[...] vida como arte; a constituição de modos de existência, de esti-
los de vida”.
Vida como obra de arte significa, no léxico nietzscheano, tornar-se artista de sua
própria existência, é a arte de criar a si mesmo como obra de arte. Esse conceito, ao con-
trário do que apressadamente se poderia supor, não corresponde a nenhum tipo de este-
ticismo: não se trata de contemplar a existência tal como se contempla uma obra de arte
(algo como “a vida imita a arte”), e sim de afirmar a vida fazendo dela uma obra de arte.
8. Cf. a esse respeito o artigo O cotidiano estético: considerações sobre a estetização do mundo (Beccari;
Almeida, 2016), que problematiza o diagnóstico de uma “estetização do mundo” (Gilles Lipovetsky, Jean
Serroy, Byung-Chul Han) e descreve uma abertura horizontal a um cotidiano estético.
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Pensada desse modo, a arte não é um fim em si; a bem dizer, nada é “em si”, pois nada
está fora da vida. E o que é a vida? Tudo o que temos. Com esse pressuposto, não obstan-
te, Rodrigo Rabelo (2013, p. 152) assevera que “[...] a finalidade da arte [para Nietzsche]
é retornar para a vida que a engendrou, tonificando-a”. Essa capacidade estimulante in-
dica, portanto, que o centro de gravidade da arte não reside na arte, mas na vida.
Não faria sentido, nesse viés, querer distinguir o que é e o que deixa de ser arte,
ou onde ela começa e quando ela termina. Pois refletir sobre a arte na chave da intensi-
ficação da vida implica considerar a relação que alguém, em particular, estabelece com
uma obra e como isso afeta a sua lida existencial com vida. Colocada assim de maneira
simples e direta, a questão não apresenta novidade alguma. Mas essa é a questão: não
há novidade. Porque a arte nunca esteve apartada da vida, mesmo quando se lhe coloca
como algo excepcional, sublime e sem respaldo no plano ordinário. O que pode haver
de novo hoje, como creio, é a facilidade com que acessamos, produzimos e partilhamos
arte, que assim se alastra no cotidiano.
Desse modo, certa confusão de fronteiras quanto aos lugares enunciativos tem se
tornado condição intrínseca da arte, cuja dispersão se furta às explicações históricas,
filosóficas e mesmo artísticas. Isso não invalida, evidentemente, a reflexão sobre a arte,
posto que o exercício coletivo da interpretação humana – bem como um de seus subs-
tratos, a expressão artística – subsiste criativa e inexoravelmente em aberto.
Se for verdade que, por um lado, o discurso contemporâneo sobre a arte ainda se
direciona predominantemente à abstração teórico-conceitual, também é factível que,
por outro, parte da produção artística se encaminhe na direção de um, digamos assim,
realismo nietzscheano. Em vez de literalidade visual, trata-se de um olhar transitório
sem pontos de partida ou de chegada, mas apenas de desvio e hibridização, adepto que
é da multiplicidade dos modos de existir. Mais do que nunca, enfim, a arte expressa o
modo como as pessoas narram o mundo e a si mesmas, dotando a vida de sentido e a
intensificando.
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