(SOLER, COLETTE) O Que Resta Da Infância - CONFERÊNCIA

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conferência

O que resta da infância


Colette Soler

II Conferência – XIV Encontro Nacional da EPFCL – Brasil


Belo Horizonte, 26/10/2013

O que eu vou falar hoje tem, implicitamente, algo a ver com as marcas, porque
não vou falar disso propriamente, e se relaciona com o passe e o final de análise.
De fato, eu queria repercutir o que trabalhei no ano passado no meu curso em
Paris. Eu havia escolhido como título “O que resta da infância”. Portanto, é uma
questão sobre as marcas da história própria de cada um.
Evidentemente, existe uma questão sobre a relação entre as marcas e a estrutu-
ra. E, no fundo, há um ponto em comum entre a estrutura e as marcas. Refiro-me
às marcas da história. E, no final das contas, as aventuras das quais falava Patrícia
Muñoz, começam muito cedo na vida. Então, existe um ponto em comum entre
a estrutura e as marcas, que é o fato de não podermos fazer nada com isso. E não
podemos fazer nada no sentido de que sofremos essas marcas. Não são exata-
mente a mesma coisa – estrutura e marcas, elas, porém, possuem esse ponto em
comum, que evidentemente coloca o problema do limite da psicanálise, limite na
operação psicanalítica, limite da operação psicanalítica, que não vai poder mudar
nada nem na estrutura nem nas marcas.
Vou fazer algumas observações gerais sobre esse tema, entre as marcas e a estru-
tura. Primeiro, quando eu digo estrutura, não estou falando da estrutura de lingua-
gem. Há uma estrutura de linguagem, claro. No fundo, é isso que a linguística toma
como objeto, mas, quando nós dizemos com Lacan “a estrutura”, o que estamos
falando é da estrutura como efeito da linguagem. Vocês encontrarão isso explici-
tamente em Radiofonia (LACAN 1970/2003, p. 405), quando Lacan diz no começo
da questão dois: “seguir a estrutura é certificar-se do efeito da linguagem”. É aí que
vocês encontram a diferença assinalada por Lacan entre linguística e linguesteria.
A linguesteria implica tanto a linguagem quanto aquilo que não é linguagem,
ou seja, o corpo; o corpo imaginário ou como substância de gozo. O maior efeito
de linguagem é o objeto a. Eu digo maior porque o $ (sujeito barrado) é outro
efeito de linguagem. Efetivamente, sem essa estrutura do objeto a construída por
Lacan, não se poderia conceituar nem o desejo nem o gozo. Em particular, não
seria possível conceituar os gozos da repetição e do sintoma. Há um traço da
estrutura aqui salientado: a estrutura é para todos, é universal, universal dos fa-

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lantes. Dito de outra forma, isso se parece com o destino. Ninguém escapa a isso.
As marcas são o contrário, elas correspondem a um por um, cada um tem as suas,
portanto, decorrem da contingência. Se começássemos a refletir sobre estrutura e
contingência, teríamos um título possível.
Constataríamos, imediatamente, uma trajetória de Lacan impressionante. Ele
construiu a estrutura, começou com isso e indicou muito bem que a estrutura não
excluía a história, ao contrário, a estrutura se inscrevia na diacronia. Isso ocorre
em todo o período de Lacan até o final dos Escritos, de certa forma. E quanto mais
ele avançou no seu ensino, mais frisou e destacou a questão da contingência, de
certo modo em todos os níveis e até mesmo no nível do final da análise. Mas este
é um pequeno parêntese que estou fechando.
As marcas da história individual infantil – inclusive isso começa desde a infân-
cia –, poderíamos dizer que é aquilo que cessou de não se inscrever, e que, a partir
daí, não cessa mais de se inscrever. Isso faz com que uma contingência, a marca
de uma contingência, se prolongue em necessidade, e que não cesse mais de se
inscrever. Essas marcas são sempre singulares, mesmo quando são as marcas de
um traumatismo coletivo. As próprias marcas são singulares, isso é muito impor-
tante porque as marcas singulares são conscientes em geral, o sujeito pode falar
sobre isso, não somente são conscientes, mas elas colam, aderem à pele. É aquilo
ao qual ele está mais ligado, amarrado, e no fundo é isso que está no coração do
sentimento da identidade pessoal, isso é muito sensível na vida.
Quando encontramos alguém, um desconhecido, e queremos conhecer essa
pessoa, não precisa de muito tempo nesse primeiro encontro para que um con-
te ao outro, e reciprocamente, a história da sua primeira infância, tal como ele
estaria contando essa história a si mesmo. Pelo contrário, a própria estrutura é
desconhecida, naturalmente desconhecida, é o que Lacan pôde dizer: a estrutura
é aquilo que não se aprende da experiência. É o que o faz dizer que ele construiu o
objeto a. E nesse sentido me parece que as marcas da história singular dissimulam
a estrutura. No entanto, postulo que as marcas se escrevem conforme a estrutura
e, nas marcas, a estrutura se torna efetiva. Isso é um problema para o passe, por-
que no passe alguém é suposto falar uma língua própria (“de son cru”), expressão
francesa que Lacan empregou e significa: próprio, de si mesmo; ninguém mais
poderia ter falado uma coisa dessas.
Voltarei um pouco mais com a questão das marcas, porque existe marca e marca.
E as únicas marcas que interessam à psicanálise são as marcas que inscrevem a es-
trutura, mas existem outras. Existem as marcas que provêm do fato de que alguém
nasceu em algum lugar, e ter nascido em algum lugar deixa marcas de identidade.
As pessoas nascem em uma língua, em um clima, em uma paisagem, em uma cul-
tura, em uma tradição, e tudo isso fabrica o sentimento de identidade, nutre um

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sentimento de exílio e nostalgia quando fica longe desse lugar de origem, o que
produz afetos muito fortes quando do retorno à terra natal. Mas existem as outras
marcas que são os acidentes verdadeiros da história e do nascimento: lutos, doenças,
deficiências, e quando alguém nasce deformado é uma marca. De certa forma, a
psicanálise não se ocupa dessas marcas. O analisando pode falar a respeito se isso
lhe satisfaz, e ele fala disso, mas não é isso que está em questão na psicanálise.
Parece-me que há dois tipos de marcas que interessam à psicanálise. Vou deixar de
lado a questão eventual da marca do analista no final da análise, uma questão muito
eventual. Falo das outras marcas. Há dois tipos de marca que interessam à psicanálise:
são, primeiramente, as marcas do trauma próprio de cada um; e, depois, as marcas que
inscrevem o gozo que está no âmago do sintoma. Eu vou desdobrar um pouco isso.
As marcas do trauma persistem, como sabemos, na forma da repetição; essa é a tese
de Freud repensada por Lacan, mas que ele mantém. O trauma perdura, não volta
como o recalque, não volta na cadeia significante como volta o recalcado; o trauma per-
dura, insiste na repetição, na forma da repetição do traço unário que indexa o trauma.
Existem as outras marcas, às quais Lacan deu o nome de letra do sintoma. São
dois tipos de marcas que participam do Um: o Um do traço unário, ou o Um
da letra de gozo. Não se trata do mesmo Um, mas os dois procedem do Um. Es-
sas marcas são indeléveis e se inscrevem na contingência, o que significa que são
incuráveis, por isso, inclusive, na última vez que estive no Brasil, em Fortaleza,
tomei como tema “Repetição e Sintoma”.1
Como o sujeito vai perceber a estrutura a partir dessas marcas sofridas? Pela
análise. Todas as fórmulas de Lacan sobre o final de análise implicam um saber
adquirido sobre a estrutura, porque os sujeitos já conheciam as marcas. É uma
questão. Devemos entender como um sujeito que seria totalmente ignorante dos
textos de Lacan e de Freud, que não teria aprendido a estrutura construída por
Lacan depois de Freud, que não falaria, portanto, como nós agora; como um sujei-
to, no entanto, que se engaja numa análise, porque tem sintomas, poderia chegar
a um fim que implicaria uma conclusão estrutural? Efetivamente, toda a questão
da operatividade da análise é que está em jogo nesta questão que estou levantando
sobre a marca, para, a partir da marca, chegar ao real da estrutura.
Queria lembrar algumas afirmações de Lacan a respeito do final de análise. Ele
diz: “passar da impotência ao impossível”, é um tema que implica a lógica; o im-
possível é alguma coisa que se demonstra. “Demonstrar o impossível da relação
numa análise.” Como se demonstraria alguma coisa numa análise? “Saber ser
um rebotalho”, saber adquirido, portanto. É uma expressão equívoca, “saber ser
um rebotalho, dejeto”, porque, em francês, no texto de Lacan, ela significa “saber

1 Disponível em Stylus: Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 23, p. 15-32, 2011.

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que se é um dejeto”. Dito de outra forma, que alguém não está inscrito no Outro
a partir do significante. A expressão equívoca em francês pode também querer
dizer “saber fazer com isso”, “saber se virar com isso, que é ser um dejeto”. E,
obviamente, a questão é como se passa da experiência particular a uma conclusão
para a qual Lacan dá uma fórmula generalizante.
Em uma época, eu dizia, é necessário um analisante lógico; é verdade, mas é
insuficiente, geral demais, porque, mesmo em lógica e em matemática, nenhuma
conclusão pode acontecer sem um ato que coloque essa conclusão. Mesmo para
dizer dois mais dois igual a quatro é preciso um sujeito que consinta dizer que
dois mais dois é igual a quatro. Dito de outra forma, a ordem de dedução nunca
é suficiente para fundar uma ordem de conclusão. Por outro lado, Lacan, ao lado
dessas fórmulas que eu lembrei e entre muitas outras evidentemente, insiste sobre
o caráter singular de um final de análise. Na Nota Italiana (LACAN, 1973/2003,
p. 313), ele diz que é necessário que o sujeito tenha cingido o seu horror de saber
de uma forma geral; ele é, acrescenta, da sua própria, destacado de todos. Cingir
a causa de seu horror de saber, isso é uma aquisição de saber, no entanto singular,
que não combina muito com o intercâmbio, o compartilhar. Este é todo o proble-
ma dos cartéis do passe: reconhecer uma estrutura num saber singular.
Então, como a análise vai tocar nisso? Vocês podem notar, em tudo que estou
dizendo, que há dois tipos de real implicado: de um lado, há o real que se demonstra
como impossível, que é a grande definição de Lacan do real. O real é o impossível,
mas o impossível se demonstra. E quando ele avança com o “não há relação sexual”,
é a fórmula do real que deve se demonstrar numa análise. Por outro lado, há um
real que se encontra, mas não se demonstra. O real da repetição e o real da letra do
sintoma constituem algo do real que se encontra na contingência, nos dois casos.
São esses “Uns”, da repetição e da letra do sintoma, que fazem existir o incons-
ciente no real. Dessa forma, talvez possamos distinguir o que a análise faz em
relação a esses dois reais. Primeiro, como uma análise demonstra o impossível
da relação sexual? Lacan respondeu a essa pergunta, portanto não preciso pro-
curá-la no texto, está no texto Introdução à edição alemã dos Escritos (LACAN,
1973/2003, pp. 553-556). No fundo, a análise demonstra o impossível da relação
sexual pelo que ela escreve, e o que ela escreve é sempre o Um. “Há Um” (“Y a
d’l’Un”) é uma fórmula que, evidentemente, responde ao “não há relação sexual”,
mas que Lacan produziu alguns anos depois.
É uma demonstração fraca, não tão fundamentada; portanto, diz Lacan, pelo
fato de que uma análise, por mais que avance, só vai produzir Uns, e não apenas
o Um das marcas, mas o Um fálico. Vocês encontrarão essa referência no texto
O Aturdito (LACAN, 1972/2003, pp. 449-497). A análise coloca a função propo-
sicional ɸ (x), o que traz a ideia de que, pela associação livre, pelo deciframento,

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pelo fio das ideias que se desdobram, pela re- petitio, da demanda, há o Um que se
impõe subjetivamente, como conclusão subjetiva, se assim podemos dizer. Esse é
um primeiro eixo da resposta.
Eu poderia ter feito um seminário apenas sobre esse ponto, mas me parece que
foi convincente, muito próximo da nossa experiência. Inclusive, é por isso que a
fase final de uma análise, antes do final, não é uma fase alegre, na medida em que
o sujeito estava esperando uma solução para a sua solidão, ao Um dos seus sin-
tomas, ao Um da repetição, aos impasses do amor. Ele, então, começa a perceber
que não é a análise que lhe vai dar isso. Nesse sentido, existe um afeto, nessa fase
do final de análise, que atesta ter o sujeito aprendido alguma coisa, que ele está se
dirigindo para essa conclusão, e, portanto o “Há o Um” se demonstrou para ele.
No entanto, concernindo ao outro lado do real, o real que se encontra, que se
encontrou e deixou sua marca, suas marcas, como o sujeito vai chegar a uma con-
clusão, como dizia Freud? E aqui invoco Freud: como o sujeito vai concluir que
sua infelicidade, que ele achava única, era, no final das contas, uma infelicidade
banal, ou seja, procedia de uma estrutura que vale para todos?
Voltei a me interrogar sobre as marcas da repetição e as marcas do sintoma, e so-
bre o que eu chamei de “as suas variáveis”, porque é certo que o que Freud escreveu
no Além do Princípio do Prazer (FREUD, 1920/1980), ou seja: um traumatismo, na
relação com o Outro (Ⱥ) e que persiste depois, na forma da repetição, e o trauma-
tismo que Freud escreveu como traumatismo infantil, não somente para os neu-
róticos, mas para todas as crianças, é uma maneira de dizer: estrutural. Freud não
usa essa palavra, mas já é uma maneira de dizer isso: traumatismo para todos, fra-
casso das aspirações do amor, do desejo de saber e do desejo de criar uma criança.
Lacan encontrou um termo para nomear esse traumatismo, que não pode não
se produzir, dizendo, troumatisme, em vez de traumatismo, que vem do (trou)
furo. É um idiomatismo que não tem tradução. É uma maneira de dizer que esse
troumatisme, no fundo, provém do Outro, dessa marca do Outro que forçosa-
mente é furado. O matema desse troumatisme é S(Ⱥ).
A questão é que o analisante tem de perceber isso, dar-se conta disso, e consta-
tamos que isso é possível, embora não ocorra em todos os casos; temos um signo
clínico, sem que o sujeito necessite dizê-lo, a cada vez que vemos um analisante,
que vem de anos e anos de análise, depois de ter denunciado aos gritos as respos-
tas que ele obteve, de seu pai, de sua mãe e de todos os outros, acabar por dizer:
“Bem! Eles fizeram o que eles puderam”.
É uma coisa muito simples, mas que indica que, naquele Outro Ⱥ do discurso, não
havia a fórmula para me responder. E é encorajador saber que é possível acontecer isso,
mesmo que não se trate de todos os casos. Acabei por me perguntar se este isso poderia
provir das diferenças do trauma singular de cada um, porque trauma para todos, sim,

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mas cada um com o seu. Aí, de novo, a estrutura avança no particular de cada caso,
portanto, quais são os fatores que fazem variar essa fixação ao traumatismo?
Eu acho que existe, em primeiro lugar, o que chamo as figuras do Outro. Com
efeito, falamos do Outro com maiúscula, o Outro do discurso onde o sujeito foi re-
cebido, acolhido, mas são os outros pequenos a que dão vozes e corpo a este grande
Outro A. E, neste assunto, há uma grande variedade entre cada sujeito, inclusive
com o fator de que o valor social, a questão social, entra na psicanálise, de acordo
com a configuração das famílias, a cultura, a ausência de cultura e todos os fatores
que a diferenciam. Isso vai das formas moderadas até o oposto, as formas de exces-
so, que nós conhecemos como transgressões, violências, negligências, e também
que um sujeito nasceu em algum lugar; e ter nascido aqui ou lá não é a mesma coisa.
Essas diferenças são as questões que interessam mais a todos os serviços sociais
e educativos, um serviço que se interessa pelas formas singulares do traumatismo,
especificamente as formas desfavoráveis aos sujeitos. É óbvio que a psicanálise
tem de se haver também com essas questões, assim como Lacan nomeou “pais
traumáticos”, porque, dependendo desses “pais traumáticos”, o furo pode ser
mais ou menos perceptivo, e há algumas famílias em que o furo é quase tampado
pela obscenidade do Outro, pela violência e excitação. É por isso que eu criei outro
neologismo, tropmatismo,2 para expressar o furo tampado por um excesso.
A respeito do Outro com o qual o analisante teve de se haver, estou falando do Ou-
tro real e não do Outro fantasmático, a análise nada pode a respeito disso; e, quando
há realmente um excesso, um tropmatismo, com certeza é mais difícil, não impossível,
mas é mais difícil para o sujeito perceber e apreender que é uma infelicidade banal.
Isso é um primeiro fator de variável, mas existem outros pelos quais me interesso
muito, que são os fatores nativos; são os fatores que não vêm do simbólico, nem da
história nem do imaginário; são fatores que vêm do início, e a que Freud chamava
de constituição. É muito relevante constatar como Freud, depois de ter desdobra-
do e desenvolvido todos os aspectos possíveis da determinação, retorna para um
fator de origem, a constituição, que não dá para captar, apreender, no entanto está
presente. Lacan não deu muita atenção a esta questão da constituição, no entanto
eu gosto muito desta expressão que ele usou – as armas que o sujeito tem por sua
natureza. Ele não desenvolveu isso, mas nós poderíamos escrever um capítulo, de-
senvolver esse tema, sobre quais são essas armas que o sujeito tem da sua natureza.
Apesar de se chamar isso de constituição ou por outro nome, trata-se aqui
de um fator que não provém nem da estrutura, nem dos acidentes da história.
Chamei de nativo, mas talvez não seja a melhor forma de nomear, pois, se eu

2 Tropmatisme – neologismo criado por Soler a partir do deslocamento da palavra traumatisme,


para troumatisme (neologismo de Lacan que significa o trauma produzido pelo furo), para trop
(demais/ excesso) matisme. [Nota do tradutor].

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digo nativo, estou postulando que isso não vai mudar. Em todo o caso, o que
Freud chamou de recursos do sujeito, inclui no traumatismo um fator desse tipo.
O traumatismo é o encontro com uma experiência do real, o encontro do real
numa experiência de desamparo, mas o desamparo em função dos recursos do
sujeito. Freud não explica muito também quais seriam esses recursos, mas é uma
indicação de que os sujeitos são mais ou menos traumatizáveis, há os encontros
com o real e também o fator pessoal. Isso está presente em Freud de uma maneira
muito forte, e evidentemente em Lacan mais ainda. Freud diz, textualmente, que
o traumatismo inclui a avaliação das fraquezas e de nossas forças ante um perigo.
Há uma tese que circula muito hoje em dia, não sei se aqui no Brasil também,
que é a noção de resiliência. Detesto essa invocação da resiliência porque, de certa
forma, é invocada frequentemente para sugerir ao sujeito que ele seja um pouco
mais corajoso. Porém, existe algo de verdadeiro nessa noção, e Lacan diz isso de
outra forma. Ele fala simplesmente da maneira como o sujeito responde ao real,
e nessa fórmula não se trata do real que deve ser demonstrado, mas do real que
se encontra, e o nome dessa maneira de o sujeito responder a esse real é a ética
do sujeito. A definição que eu acabei de citar está no Seminário 7: a ética da psi-
canálise (LACAN, 1959-60/1991). Lacan diz que a ética não tem de se relacionar
com as normas do Outro, a ética é a relação com o real, especificamente a ética
individual, é a maneira como o sujeito responde ao real. Compreendemos então
que, com essa definição Lacan pode falar da ética da psicanálise, de um discurso,
e da mesma maneira, poderíamos falar da ética do mestre, do universitário, da
histérica; e isso seria denotar a maneira como em cada discurso se responde ao
real, ou melhor, a maneira como cada discurso trata o real, na medida em que o
discurso já é justamente um tratamento do real.
Quando Lacan se refere à ética enquanto aquilo que responde ao real, eviden-
temente está falando sobre o real do gozo. A ética da psicanálise (LACAN, 1959-
60/1991) é um seminário sobre o gozo, um primeiro seminário sobre o gozo.
Portanto, esse fator individual, ético, está em jogo na questão das marcas, da re-
petição e do sintoma, que são as duas grandes modalidades do gozo, prescritas
pela estrutura de linguagem. Freud falou da escolha da neurose, embora o neu-
rótico não tenha precisamente a impressão de que tenha escolhido a sua neurose;
mas Freud indica com exatidão que essa escolha é a respeito do gozo, embora ele
não empregue o termo gozo, mas, quando ele diz que, na raiz da histeria, está a
aversão à carne, se isso não for uma escolha de origem, o que é isso? E quando ele
fala do obsessivo, esse excesso de prazer, se não se trata aí de uma captação pelo
gozo, o que é então? Portanto, em nossos termos, isso é como uma resposta ética.
Chegamos, então, a uma questão crucial: será que uma psicanálise, uma aven-
tura da psicanálise pode mudar a opção ética de um sujeito? A questão se desdo-

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bra, podemos desdobrá-la, eu a desdobro porque Lacan a desdobrou. Podemos,


às vezes, mudar a opção diante do real do inconsciente, isso que é evocado por
Lacan, quando invoca a mudança no horror do saber, de novo na Nota italiana
(LACAN, 1973/2003, p. 313). Minha leitura desse texto encontrou diversas fases,
e a última me fez perceber algo que não havia percebido antes: essa carta é uma
distinção entre o desejo do saber e o desejo de saber. O desejo do saber é necessá-
rio para entrar em análise, e a marca do desejo do saber não é a marca do desejo
de saber, isto é: a tese de Lacan, na Nota aos Italianos, em que ele, inclusive, aplica
Freud, já que Freud tinha a marca do desejo do saber, e o desejo do saber é o de-
sejo do significante, de desdobrar significante após significante, após significante.
E produzir assim pequenos mais de saber, mais de saber e avançar sobre esses
pequenos mais de saber. E como parar? Como parar quando alguém é tomado
pelo desejo do saber? É necessário o desejo de saber, e Lacan diz que isso faltou a
Freud, faltou a marca de saída; Lacan não formula assim, ele fala dos amores de
Freud com a verdade, a verdade que corre depois do significante, e é isso que tem
de cair para que haja um analista.
Então, não vamos confundir as marcas do desejo do saber com as marcas do
desejo de saber, marca de saber é saber o quê? É saber as consequências do incons-
ciente, da estrutura, é saber o destino da repetição e do sintoma que faz para nós
o inconsciente. É isso que faz o horror, não é o significante que faz o horror; ele
alivia, faz esperar o Outro, é uma esperança.
Em relação ao horror do saber, primeiro passo do texto, a humanidade não quer o
saber, então é necessário uma marca para detectar o desejo de saber, o qual a humani-
dade não quer. E, no final, é necessária outra marca, não do desejo de saber, que seria
muito forte, mas, em todo caso, de uma ultrapassagem do horror de saber das con-
sequências da estrutura. E Lacan é extremista neste texto, se o horror de saber não
foi ultrapassado, não existe analista. Ou antes, não há analista digno de ser analista
da Escola. Isso não vai impedir muitos analistas de funcionar, isso é muito extremo.
Na verdade, Lacan parece pensar, nesse momento, que a análise permite que o
sujeito ultrapasse, leve em conta, constate, o horror ao saber. Alguns seriam até
levados ao entusiasmo, um afeto que eleva, que entusiasma.
Portanto, quais são as consequências desse primeiro real, do inconsciente real?
Sim, a análise tem um efeito certo, isso não quer dizer que esse efeito aconteça
em todos os casos, mas ocorre suficientemente para que se diga que é possível.
Podemos modificar a relação ética com o saber real, e dito de outra forma, a aná-
lise permite que o sujeito seja um pouco mais corajoso em relação àquilo que não
queria saber na particularidade do seu caso, sempre.
E agora, o que vamos dizer sobre a ética do sintoma de gozo, em relação à ética da
relação com o gozo? Será que iremos lograr que uma histérica modere sua aversão à

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carne, será que iremos lograr que um obsessivo seja menos capturado pelo seu gozo?
Acho que, neste ponto, Lacan não produziu uma resposta, mas formulou uma
questão, embora não se reconheça sempre uma questão nessa fórmula. A meu
ver, ele formula a seguinte questão: será que a análise de uma histérica pode fazer
uma mulher? Vocês conhecem a fórmula? É impressionante, mexe muito com as
mulheres especialmente, mas vamos ver o que queria dizer, quando Lacan disse
isso. É que ele, assim como Freud, distingue o sujeito histérico da mulher a partir
do traço da relação com o gozo carnal, a aversão na histeria; e Lacan considera
que uma mulher não está nesta aversão, é a ideia dele. Mas, quando ele diz: será
que podemos fazer de uma histérica uma mulher? – é isso que quer dizer, pode-
mos levantar essa aversão. Não é uma questão que indique um desejo de retificar
a histeria, é uma questão a respeito do alcance, do impacto da psicanálise, e sobre
a ética em relação ao gozo. Inclusive, vou terminar com isto: quais razões teria
um analista para querer transformar uma histérica em mulher? Não estamos hie-
rarquizando os sintomas, porque seria melhor ser uma mulher sem a aversão à
carne, do que uma histérica que teria a aversão? Cuidado! Temos de levar a sério
essa questão, de que a psicanálise não tem de cuidar das normas, mas tentar não
se preocupar com a norma, portanto concluo com isto: no que diz respeito à ética
da relação com o gozo carnal, eu não vejo nenhuma indicação nos textos de Lacan
que indiquem que a análise produziu uma mudança, mas ele colocou a questão.
É isso!

Tradução: Dominique Fingermann


Transcrição e Revisão:
Bárbara Cristina da Silva, Pollyana Silveira de Almeida,
Conrado Ramos e Ida Freitas
Revisão Final: Solange Fonsêca

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SOLER , Colette

referências bibliográficas
FREUD, S. (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de S. Freud, v. XXVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
LACAN, J. (1959-60). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Versão brasileira
Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.
LACAN, J. (1970). Radiofonia. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ri-
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LACAN, J. (1972). O Aturdito. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ri-
beiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 449- 497.
LACAN, J. (1973). Nota Italiana. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 311-315.
LACAN, J. (1973). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escri-
tos. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 553-556.

resumo
A autora examina as diversas marcas deixadas pelas experiências da infância e sua
repercussão no nível da repetição e do sintoma. Ela destaca diferentes abordagens
do real, seja como impossível, seja como contingência indelével e se pergunta sobre
as respostas éticas dos sujeitos e os efeitos possíveis da análise sobre esse ponto.

palavras-chave
Marca, repetição, sintoma, ética do final da análise.

abstract
The author examines the several marks left by childhood experiences and their re-
percussion at the level of repetition and symptom. She stresses different approaches
to the real, be it as impossible or the indelible contingence, and asks herself about the
ethical answers of the subjects and the possible effects of the analysis on this issue. 

keywords
Mark, repetition, symptom, ethics final analysis.

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