(Peça) CÂMARA, Isabel - As Moças
(Peça) CÂMARA, Isabel - As Moças
(Peça) CÂMARA, Isabel - As Moças
ISABEL CÂMARA
PERSONAGENS
A situação deve parecer violenta, mas disso não há, sendo-se delicado no
tratamento dos personagens.
E levar em conta que toda ficção ainda é pouco pra tantas realidades.
Viram-se pela primeira vez no dia em que Tereza foi escalada para
entrevistar Ana. Dois dias depois Ana estava instalada no apt°. de Tereza.
Esta carta faz parte do espetáculo. Será lida pela atriz que representar Tereza que
dirá, ser esta, a responsável por toda a farsa que se mostrará a seguir.
Araruna, 29-9-1965
Com satisfação estou respostando tua amável carta como uma agradável
conversação com tua pobre tia que nunca te esqueceu, e daqui para diante es-
pero conversarmos sempre, mesmo privada pelo médico, que fez exame demo-
rado em meus olhos e disse-me que se não quiser cegar de vez nem leia, nem
escreva, nem faça trabalhos manuais... que necessite não levantar a vista e nem
precise demorar no que estiver fazendo. Mas tudo faço por ter precisão de fazer.
Não li bem tua carta, mas lendo quatro vezes sem ser seguidas,
compreendi. Se escrevesses a máquina eu gostaria bem, porque letras de meus
livrinhos de oração leio com facilidade. Clarinda estava presente quando o Dr.
Alberto, Wanderlei fez o exame prolongadíssimo e disse-lhe que eu desde
menina gostava de trabalhar a noite, e de 1er, e ele acrescentou: cansou a vista
de vez, e está com um começo de catarata. Passou a receita mas não sinto
melhora. É aquela neve pardacenta e uma água grossa nos olhos, que vezes
abro os olhos em água serenada dos depósitos que tenho no quintal, mas é
sempre a mesma coisa: a vista turva! Você esteve aqui em minha casa e eu
estava & demorou horas (fumou seu cigarrinho) e lembro-me bem de você...
Como você promete em sua cartinha que de outra vez manda mais e desta
vez vinha a importância que veio porque gasta com bobagem... vou fazer um pe-
dido (se possível for): É você não mandar 10 mil cruzeiros durante 2 meses e
Página 3 de 43
olhões de muitos?!!
... duas coisas tinha vontade de ter, uma já tenho que era um Guarda-
Roupas, a minha vizinha mudou-se para Maceió e não podendo levar o
Guarda- Roupas deu-me. Que coisa boa hein? Só falta o relóginho. E conto
com ele dado por você minha querida: e repetindo ainda — é se for possível. Se
for sacrifício e for mais de 20 mil acabou-se a história viu? As vezes em segunda
mão, isto é, usado, compram por aqui de 3 mil e tem um senhor aqui que
indireita tudo usado, mas eu nunca sei quem quer vender. Encarreguei uma
minha amiga e ela só faz dizer-me que tem especulado e não acha quem queira
vender. E isto faz é tempo!
... já levantei-me umas dez vezes para descamar a vista, mais vou avante
ainda...
ATO ÚNICO
Do lado de fora, alguém fala com o vizinho do lado, Fada, que adora
televisão.
FADA (explicativa) — Autógrafo... Diz pra ela que é pra minha sobrinha.
Ela coleciona...
Ana já sabe que Tereza vem chegando, então corre, pega um livro fingindo
que lê; põe disco na vitrola fingindo que ouve; senta/levanta, etc. Barulho
de chave, alguém quer entrar, mas passaram o trinco na porta.
Campainha.
Ana que estava toda pronta pra começar, voa pra porta, uma fúria.
ANA — Nem pensar. Espera aí, você só entra de olho fechado, tenho uma
surpresa procê.
ANA — Não ficou? Gostou? Daqui pra frente tudo vai ser diferente. Só
que fiquei de tanga.
Página 6 de 43
TEREZA — Se você não arrumasse ficava do jeito que eu botei, até criar
mofo.
ANA — Tinha muito mais, mas me deu uma sapituca e dei uma porção pra
vizinha.
TEREZA — Não quero beber (mas bebe) (e desconversa). Que que você
fez hoje?
ANA — Fiquei em casa. Você queria que eu fizesse o quê? Fiquei em casa,
mudei sua velharia toda de lugar, fiz flor, não é muito?
TEREZA — É...
ANA — Rodrigo, santinha? Escrever o quê pro Rodrigo? Ele não está
vivendo na mesma cidade que eu? Então?
TEREZA — Pensei.
Página 7 de 43
ANA — Você disse que não tinha dinheiro pra continuar o tratamento?
TEREZA — Disse.
ANA — E ele?
TEREZA — Disse que não quero fazer o tratamento, por isso não dou
jeito de arrumar dinheiro. Mandou eu trabalhar mais.
ANA — Esses melecas acham que a gente tira dinheiro pra pagar análise,
do rabo da mãe deles. Fiz um mexido ótimo quer?
ANA — Não.
TEREZA — Sei.
TEREZA — Nada...
ANA — Que mulher chata aquela tal de Arminda. Também com esse nome
só pedindo a Deus que mate.
ANA — Fala.
TEREZA — O que aconteceu com Rodrigo. Pra mim é muito difícil. Acho
bacana tanto pra você quanto pra ele. Vocês são duas pessoas que eu gosto
muito... mas mesmo assim... sei lá. Você contou pra Arminda morrendo de
rir.
TEREZA — Certas coisas eu acho que a gente ainda tem que cuidar delas
direito... Esse negócio do Rodrigo não dormir com ninguém há um ano eu
acho muito sério.
ANA — Seríssimo.
Silêncio.
TEREZA — Não.
ANA — Eu estou péssima, você sabe disso. Bem que podia ter resolvido o
negócio pra mim.
ANA — Eu sei.
TEREZA — Sabe...
ANA — O quê?
TEREZA — O quê?
TEREZA — Eu ouvi.
ANA — Mas pra ser contratada vou ter que dar praquele veado.
Página 11 de 43
Pausa.
ANA — Rodrigo vem aqui amanhã, vamos jantar fora. Você quer ir com a
gente?
ANA — O mexido tá genial, você jura que, não quer um pouquinho? Tem
uma pimenta do cacête.
ANA — Não.
ANA — Não.
ANA — Depois...
TEREZA — Agora.
ANA — E o filme?
TEREZA — Desisti.
ANA — Genial.
TEREZA — Não tou aqui pra vender nada pra ninguém. Quem sabe meu
preço sou eu!
ANA — Genial
ANA — Não estar aí pra vender nada pra ninguém. Mais uma birita
madame Satã?
TEREZA — Põe.
TEREZA — Namorada?
jacaré!
TEREZA — Escreveu dizendo que Brasil já era... aqui só pra boi dormir...
Que o quente agora é Paris!
ANA — Besta ela, né? Você vai ficar triste se eu for embora?
TEREZA — Claro.
TEREZA — É mesmo?
TEREZA — Hummmmm
ANA — Eu já te perguntei uma vez: você pagava pra gente ir trepar num
hotel?
ANA — Da próxima vez ninguém vai fazer bobagem aqui não. Ou será que
você tá apaixonada pelo Rodrigo hein? (Jogando verde). Ah, acho que é
por mim.
ANA — Claro, você não explica nada direito. Tua cuquinha já fundiu
inteira.
TEREZA — Olha, eu não estou chateada, nem tou na fossa. Não acredito
em fossa, pronto. Fiquei deprimida, sei lá...
ANA — Que conversa amanhã meleca nenhuma. E nem vou fazer amor
com Rodrigo, não gosto.
TEREZA — Juro.
Tereza se deita, coloca; o copo no chão, apaga a luz grande. Ana senta
perto da cama. Silêncio absoluto. Tereza virada pra parede. Ana começa a
chorar baixinho.
Como uma criança que quer chamar atenção o choro vai aumentando.
Tereza nem se vira.
Vai aumentando até chorar mesmo Tereza se levanta e vai até ela.
ANA — Vou escrever uma carta pra mãe. Posso ficar com a luz acesa?
TEREZA — Pode.
Ana abre uma máquina de escrever. Tereza relaxa. Ana bate na máquina e
bebe. Tereza recita uma poesia de Holderlin.
TEREZA — Você e eu, a mesma pessoa Minha vida, minha morte a nossa
dor é a mesma. E mesma a infância e mesma, a dor revelada pela infância.
ANA — Você não imagina que delícia. Uma história horrível que a
Arminda me contou. (Debochada dá gargalhadas gostosíssimas).
ANA — Que é isso agora de rir baixo? Esses merdas lá de cima vivem
dando porrada um no outro.
ANA — Disse que na sauna onde ela vai tem umas mulheres enormes,
gordíssimas, que vão peladonas. A gordura escorre e elas não têm a menor
vergonha. Arminda disse que é cada peito que bate na coxa. Sabe do pior?
Disse que as gigantas ficam fazendo ginástica e que cada uma tem cada
uma... pois é... enorme. Arminda disse que parece planta carnívora. Se a
gente chega perto NECO! Arrancam a mão da gente. MASTIGAM!
ANA — Primeiro porque tou na lona, segundo porque mulher não faz filho
em mulher e terceiro porque o meu caso é mulher, sabia?
TEREZA — (no espelho) Ela sabe sim... eu sei que ela sabe. Tô cheia, não
aguento mais. O quê? Sei lá? Um reloginho de pulso... Você vai ficar
igualzinha a ela: feia, solteirona e neurastênica.
TEREZA — Tou falando sozinha sim. Você não sabe que eu sempre falo
sozinha? Que eu adoro falar sozinha?
TEREZA — Que fia coisa nenhuma... Não posso... Tenho que trabalhar.
Trabalhar. .. E adianta?
ANA — O quê?
ANA — Eu também.
ANA — A diferença é que eu não preciso dormir, daí não tenho sono.
Reportagem.
ANA — 22.
TEREZA — É feliz?
ANA — Não.
TEREZA — Profissão?
ANA — Atriz.
TEREZA — Sucesso?
ANA — Gostam.
TEREZA — E as mulheres?
ANA — Gostam.
ANA — Durmo.
TEREZA — Gosta?
ANA — 20.
TEREZA — Da mãe?
ANA — Primário.
TEREZA — Do pai?
ANA — Ginásio.
ANA — Leu.
TEREZA — Pois manda mais um anjinho pro céu... Você não já mandou
um?
Página 22 de 43
TEREZA — De quem?
ANA — Dela.
ANA — Besta besta minha filha. Eu tentei com 20, todo mundo tentou.
ANA — Já sei. Não precisa dizer que eu estou vivendo às suas custas não.
Quando começo a ganhar dinheiro eu ganho o triplo de você. Este mês
pode deixar que eu pago inteiro.
ANA — E daí?
ANA — Vamos voltar agora pro papo da viagem é? Não se preocupe que
eu não demoro muito na sua casa não. Já tou aqui mais tempo do que
devia... Vou mudar amanhã, viajando ou não viajando. Pode deixar que eu
não atrapalho mais o teu soninho...
ANA — Merda.
Página 24 de 43
ANA — Azar pra Rodrigo, quero que ele faleça. Eu disse que não podia
mais de tanta saudade não foi de Rodrigo, você sabe muito bem.
ANA — Acabou é?
ANA — Vai começar com o papo furado é? Olha aqui minha filha, esse
negócio de achar que tá matando um anjinho acabou faz muito tempo.
TEREZA — E dai?
Página 25 de 43
ANA — Daí que você fica dizendo essas coisas porque não dá. E quando
dá nem pega tá?
ANA — Pois então merda pra elas também. E sabe de que mais? Estou
cheia de você ficar querendo me dar lição ouviu? Não preciso. Ainda mais
vindo de quem vem.
ANA — Preciso? Basta você olhar no espelho que você vê. Mofada, mal
vestida deprimida. Parece uma velha. Chega a ser indecente sabia?
TEREZA — Mas foi aqui, na minha frente, na minha casa que você veio
dormir com o Rodrigo. Porque não foram pra um hotel? Foi pra se excitar
com meu mofo, foi?
ANA — Isso mesmo. Já que você disse que é porque é. Vim dormir em
baixo da sua cama pra me excitar, sua moralista de meia tigela. Vim, sabe
porque também? Porque tou cheia. Cheia de Rodrigo, de mim, de você da
sua casa. Vim porque sabia que você não ir dormir coisa nenhuma, que ia
ficar aí em cima da cama fingindo que não ouviu nada sem reclamar como
você faz sempre.
Página 26 de 43
ANA — Não calo não. E quer saber mais? É bom. É bom fazer amor
mesmo que a gente não sinta nada. Pelo menos a gente sacode a poeira
menina. Vai lá no espelho e se olhe. Você está um horror. Um horror de
tanto trabalhar de tanto dar duro o dia inteiro sem conseguir fazer merda
nenhuma tá ouvindo? Merda nenhuma. Nem trepar. Isso mesmo, trepar,
com todas as letras. É a única coisa que sobra né? Procê é assim não é?
Vim, vim dormir com Rodrigo aqui pra te dar uma lição. E outra coisa:
escuta bem. Escuta porque dagora em diante você não abre mais a
boquinha: se eu estiver grávida você vai comigo pra tirar. Vai pra ver. Nem
que seja olhar, ficar com nojo. Ver como é que a gente tira um negócio de
dentro da gente até podia gostar, mas não gosta. E nem pode.
ANA — Agora é sujeira é? Antes você dizia que eu tinha ajudado você a
botar um pouco de vida aqui dentro desse museu. Isso aqui antes parecia
uma casa de velório.
ANA — É maravilhoso sabia? Nunca vi uma coisa fazer tão bem pruma
pessoa. Até ontem você não era capaz de dizer nada disso do que tá
dizendo. Era sé “desculpa”... “sabe, pode ser que eu esteja errada...” Dói,
amizade, uma trepada na cara por exemplo...
TEREZA — Tou com sono Ana. SONO. Tenho que acordar amanhã cedo.
ANA — Mas eu não tenho que acordar amanhã cedo. Só acordo se quiser.
Você não, tá sempre preocupada em arrumar seu dinheirinho pra viver
Página 27 de 43
como uma moca muito bem comportadinha. Pois eu faço o que quero, na
hora que quero e como eu quero.
Ana olha com toda insolência da raça pra Tereza e começa a arrumar as
malas.
TEREZA — E por acaso você sabe o quanto eu, eu estou sofrendo? Você
sabe se Rodrigo também não está? Você sabe o quanto ele está sofrendo?
Ou você não sabia que a mulher dele se matou?
ANA — Não tenho nada com a mulher dele, sabia? Nada. Matou azar dela.
Eu não trepei com nenhum defunto. E você Você teria coragem de dar pra
ele se, ele quisesse? Não, nem isso você tem coragem de fazer porque você
é uma covarde. Uma covarde está ouvindo? Ou você pensa que eu não sei
que você teve vontade de dormir comigo, de dormir com Rodrigo, de
dormir com o Chico e na hora morreu de medo hein?
TEREZA — Pára com isso Ana. Você não tem a menor idéia de nada do
que está falando e além do mais não tem o direito tá ouvindo? Não tem o
direito.
ANA — Em compensação os teus amigos são todos uns babacas feito você.
O que é que vocês fazem o dia inteiro, a noite inteira? Conversam é? Pra
Página 28 de 43
salvar o quê? Gente feito eu? Sou vulgar, grossa, suja! Mas tou viva.
Vivinha da Silva.
ANA — Eu sabia, pensa que eu não sabia? Por isso mesmo quando batem
eu nem abro. Respondo da janela: Tereza não está e não sei quando volta!
Assim dá papo tá sabendo? Pelo menos papo! Devem dizer, “Tereza agora
é outra, está se destruindo mais ainda, deixando aquela mulher morar na
casa dela”.
Agora ela já está pronta pra sair de mala na mão e, tudo, tem até uma
garrafa de champanhe em baixo do braço. Pega a mala empunha a garrafa
e
ANA (Da porta) — Você é muito sabida. Muito sabida mesmo. Se você
diz que eu volto é porque eu volto. E já que eu volto, eu nem vou. (Volta) E
já que eu não vou, eu vou ficar. E vou te comer. Você não disse que eu sou
lésbica?
Tereza, sentada na cadeira de balanço parece até que desistiu. Ana voa
pra ela.
TEREZA — (Num desabafo existencial) Já falou tudo que tinha que falar
tá ouvindo Ana. Você já disse o que tinha que dizer, agora é a minha vez.
Estou com os olhos vermelhos sim e sabe por quê? Porque não tenho onde
cair morta, não tenho vontade, não tenho coragem e vai ver que eu nem
quero.
Saber disso, até agora não mudou nada, nada. Onde é que vai me levar tudo
isso? Você pode responder? Não. Porque você é melhor do que eu e nem
pergunta. Você sabia que eu acho você melhor do que eu?
Página 30 de 43
Tenho até inveja de você, uma inveja... Da sua coragem de nada... é... da
sua coragem de nada. Um trapinho. Um trapinho que dá e acha que dar é o
suficiente.
Pois eu não. Não tenho coragem nem pra isso. E sabe por quê? Porque
tenho medo de ter mau hálito, porque não tenho dinheiro pra ir ao dentista,
porque meu dinheiro não dá pra nenhuma alegria, porque eu não tenho ne-
nhuma alegria trabalhando, porque odeio o meu trabalho, porque tenho
medo quando alguém chega perto de mim e vê que tenho os dentes
falhando... que ouve que eu não tenho nada pra dizer. Que eu vejo que
afinal tudo o que eu queria não passa de um montinho de merda... Depois
eu só quero ter o que, vale a pena de ter e aí falta coragem, porque eu não
sei se vale tanto assim.
Já imaginou se você chega perto de mim e vê que tenho mau hálito? E só
porque tenho mau hálito desiste de passar a mão na minha cabeça? Já
imaginou? Mau hálito... porque trabalho feito uma doida e não tenho
dinheiro pra ir a um dentista. Só por isso Ana. Não é bobagem?
As vezes eu chego em casa, olho no espelho e digo pra mim: “Como é que,
pode Tereza, como é que pode, você tão merda, tão coisa nenhuma, ter tido
vontade de fazer alguma coisa da tua vida."
Sabe quantas cartas eu escrevi no ano passado, sabe? 358. Isso mesmo.
358. Quase uma carta por dia. E sabe por que eu escrevia cartas? Por medo.
Medo de ter de encarar as pessoas que queriam tanta coisa da vida, tanta. E
eu não queria nada.
E eu queria que os outros gostassem de mim, gostassem de mim feito
loucos.
Todo mundo quer a mesma coisa. Você, eu, todo mundo... e eu não sei se
vale a pena querer tanto. Depois eu tava cansada de levar porrada. Isso
porrada. Não por causa de Rodrigos, Anas, Abortos. Não. Por causa da
minha covardia, só isso, por causa do meu medo. Eu não queria incomodar
Página 31 de 43
ANA — Dormir o quê minha lindinha? Você até que estava ótima
encenando sua vidinha íntima... Continua. Eu estava começando a me
emocionar.
ANA — Ah, coitadinha! Ela nunca fez isso na vida dela... Está tão
cansadinha. Taí, descobri uma coisa: você deve ser péssima de cama. Vive
tão cansada que é capaz até de dormir no meio. Até de roncar. Deve ser en-
graçado ver você, míope, dormindo no meio. Quando a gente pensa que vai
ficar bom ela ronca, dorme.
Tereza fica muda e não olha para Ana. Ana coloca champanhe na boca e
fica esguichando champanhe nas paredes até chegar no poster de Rodrigo.
Página 32 de 43
ANA — Você é um chato. Um chato igual a ela. Dois chatos. Quer saber
de uma coisa? O mundo tá todo errado. Quem devia ter ficado com ele era
você e não eu. Podia funcionar melhor. Afinal os dois são muito parecidos:
medrosos e covardes.
(Pra Tereza) Sabe que ele não apareceu mais? Nem convidou pra jantar
coisa nenhuma. Vai ver que ficou com medo também.
(Aí Ana já não pára mais. — Imitando Tereza Down)
“Pára Ana, pára, eu não quero ouvir”. Mas se você não me ouvir quem é
que vai me ouvir? Só tenho você no mundo agora. Todo mundo sumiu e só
tem você e vocêzinha vai me suportar muitos anos. Muitos séculos. Séculos
e séculos. Você vai ficar durinha, virar uma pedra de 500 séculos e eu lá te
aporrinhando. Te aporrinhando até você ficar menos chata, menos mole. E
tem outra coisa que eu quero dizer pra você de uma vez por todas. Não
suporto os teus gemidinhos, não suporto. Nem tua mania de ficar quieta,
quietinha, feito fosse o Juiz do Mundo. Se eu grito, se eu berro, berra você
também... (irritada) Ela não consegue, ela não consegue.
(Esquece tudo) Aninha, o que é que você ia dizer pra moça ali? Lembre-se.
Concentre-se. Ah, já sei: aquele retrato do cara que você disse que morreu
não sei onde (Pega um porta retrato do armário) Pois é, não acredito. Você
deve ter inventado até isso só pra ver se eu mostrava o jogo. Aposto que
você nunca viveu com ele. Aposto que você comprou o retrato só pra dizer
que teve um amante, aposto que ele devia ser bicha, aposto!
(Imita Tereza) Você não sabe Ana, é uma coisa da gente. Só que o braço
não alcança. Ele morreu longe. Na hora que a gente ia se encontrar..
Sua besta, ele nunca existiu!
Ana enche novamente a boca com a champanhe e roda pelo quarto. Tereza
levanta o rosto e, olha pra ela, fica olhando. Tereza espera que ela acabe
de esvaziar a boca.
Página 33 de 43
TEREZA — Ana.
ANA — Tê!
TEREZA — Engraçado, eu sempre pensei que você fosse bonita, mas não
é. Está com os olhos inchados, a pele cansada, até a boca está machucada,
mas não tem importância, eu gosto. Eu gosto de gente esquisita. Você não é
homem, não é mulher, não é lésbica, não é nada. E acha que dar é o
suficiente. Você é tão inocente Ana, tão inocente. Anda! Eu quero que você
me dê um beijo e fique sabendo que não é um beijo de sacanagem não. Eu
quero ouvir você dizer “Olha, Tereza, eu aqui.” Só isso. Isso você não
compreende está ouvindo? Não compreende. Anda, vem! Não, assim não.
Página 34 de 43
TEREZA — Pode vir. Eu vou gostar de sentir o teu cheiro. O teu cheiro
humano, bom.Vem Aninha, vem.
TEREZA — Ana!
TEREZA — Não adianta fingir que não tá me vendo. Olha pra mim.
Página 35 de 43
Silêncio.
ANA — Você tá cansada Tereza, precisa dormir. Amanhã você não vai
acordar cedo?
ANA — Pára com isso Tereza. Eu não tenho nada a ver com essa história,
pára.
TEREZA — Tem sim Aninha. Você pensava que não tinha mas tem. E eu
sei que tem porque você é igualzinha a mim, só que começou pelo meu
avesso... é elementar. E não demora muito a gente troca. Porque você é
igual a minha metade, igual a todas as metades que existem no mundo.
Você veio trepar aqui com Rodrigo pra me provar uma coisa. Uma coisa
mínima: que você só aguentava o Rodrigo se eu te ajudasse a aguentar o
Rodrigo. E ele topou pela mesma razão. Pra gente ficar eternamente numa
coisa sem nexo sem sentido, sem sexo! Essa coisa que é feita de uma
espécie de esmola, uma esmola que a gente mesmo se dá pra brincar de
estar vivo. Inveja, pedaço, culpa. No fundo é ingratidão. Ingratidão com o
mundo que a gente devia amar e não ama, que devia odiar e, não odeia.
Você é igualzinha a mim, igualzinha à minha metade, porque você é tão
insignificante que tem que vir trepar com Rodrigo aqui e eu sofrer com
isso. Com coisas insignificantes... É um modo de ter importância não é?
Tanto pra mim quanto pra você. A gente existe e não existe ,a gente quer e
finge que não sabe o que quer. Mas aí a gente ama, e aí a gente vê que no
fundo continua fazendo careta na frente do espelho.
TEREZA — Trinta.
ANA — Profissão?
TEREZA — Não adianta Ana. Você sabe que a profissão não vem ao
caso.
TEREZA — Você viu a carta Ana? Viu a carta? Só isso, a carta. Você
viu?
ANA — Vi.
TEREZA — Repete.
ANA — 74
ANA — Porque um dia, em Araruna, quando era muito moça viu um rapaz
mandar um relóginho de pulso pra noiva que morava muito longe. Ela
nunca se esqueceu... Passou a vida inteira esperando um relógio de pulso, a
vida inteira.
TEREZA — Repete.
TEREZA — Isso, você viu? Que a minha tia passou a vida inteira
querendo só um relóginho de pulso?
TEREZA — E saiu?
ANA — Saí.
Página 38 de 43
veneno nenhum, elas queriam viver. Não eram pela metade como você,
como eu... Pelo menos elas sabiam o que queriam.. Mas lá no hospital tinha
outras pessoas que tinham tomado o mesmo veneno que eu, só que não
tinham nada a ver comigo. Eu lembro que eram sujos, que fediam, mas teve
um que perguntou se eu aguentava aquilo porque tinha fé. Ele tinha. E não
podia entender porque não conseguia engolir o barbante antes de mim.
Nem ele nem nenhum dos outros engoliam o barbante antes que eu
chegasse... Eu. Eram quatro, cinco, seis, dez, sei lá, com os pedacinhos de
barbante pendurados no canto da boca esperando a hora de engolir aquele
ferro que descia até o estômago para poderem, um dia, ficarem bons e
viver. Viver. Eles esperavam por mim e eu tinha medo deles porque sabia
que não podia mais me queixar. Foi assim que eu aprendi o mundo: na
ponta de um barbante.
ANA— (Se, sentindo bem pobre) Lá em casa a gente às vezes não tinha
dinheiro pra comer...
TEREZA— (Sem emoção) Sabe qual a única coisa boa que eu tenho,
sabe? É o meu medo. Medo que aprendi com eles. Medo. Medo do que
você nem eu a gente é. Tenho medo da tia Emília, que queria uma só coisa
do mundo, um relóginho de pulso. Aliás queria duas. A outra era um
guarda-roupas. Tenho medo porque no fundo eu ainda não quero nada, só
pedir que me amem, e até isso está fora da moda. E está fora da moda
porque DAR é uma coisa que se aprende!
TEREZA — Você finge quê não está, só isso. Me mostra uma alegria sua,
só sua.
Página 40 de 43
ANA — Rodrigo.
TEREZA — Mentira.
TEREZA — Mentira.
ANA — Eu eu eu.
ANA — E daí? E daí? Você... (Chora) E daí? Você pensa que eu não penso
um pouquinho aqui dentro de mim? Penso sim. E daí? A gente vai tirar
alegria de onde?
TEREZA — E sair um pouco mais. Faz bem. Acho que vou ao oculista.
Meus olhos estão vermelhos não estão? Ter os livros nas estantes... os
vestidos arrumados pra sair e a máquina dentro de mim, me fabricando, me
fabricando...
ANA — E agora?
ANA — Amanhã vou procurar uma casa pra mim, não precisa se
preocupar. .
outra pessoa e outra, e outra e pode ser que eu até descubra que você Ana e
eu Tereza, ou existimos mesmo ou é pura ilusão.
TEREZA — Claro.
TEREZA — As nove.
TEREZA — Chamo.
As atrizes se beijam.
FIM
RIO, 1967
Página 43 de 43