ENSINO DE BIOLOGIA, Meio Ambiente e Cidadania, Olhares Que Se Cruzam

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Zélia Jófili e Argus Vasconcelos de Almeida (Orgs.

ENSINO DE BIOLOGIA,
MEIO AMBIENTE E CIDADANIA:
OLHARES QUE SE CRUZAM

2 ed
Revista e ampliada

Recife, 2010
CAPA: JUSCELINO
CRÉDITOS FOTOS DA CAPA:
1 2 3 4
5 6
7 8
9 10 11 12
Fotos 1, 2, 4, 5, 7, 8, 10, 11 de Guilherme Jófili
Foto 3 de Marcos Alexandre Barros
Foto 6 de Karla Euzébio
Foto 9 de Zélia Jófili
Foto 12 de Maria Tereza S Correia

Ficha Catalográfica

E56e III Encontro Regional de Ensino de Biologia - NE


(3. : 2008 : Recife, PE)
Ensino de Biologia, meio ambiente e cidadania: olhares que
se cruzam: [Mesas redondas ... do] / III Encontro Regional de Ensino
de Biologia da Região Nordeste (EREBIO-NE), I Encontro
Regional de Ensino de Biologia com as Escolas (I EREBEs);
Zélia Jófili, Argus Vasconcelos de Almeida (Orgs.). –
Recife: UFRPE: Sociedade Brasileira de Ensino de
Biologia/Regional 5, 2010.
266 p.

Inclui referências.
ISBN 978-85-7946-011-1

1. Biologia – Congressos 2. Meio ambiente – Congressos


3. Cidadania - Congressos I. Encontro Regional de Ensino de
Biologia com as Escolas (1.: 2008: Recife, PE) II. Jófili,
Zélia III. Almeida, Argus Vasconcelos IV. Título

CDD 574

ii
Conselho Editorial

Dr Argus Vasconcelos de Almeida (UFRPE)


Dr. Albérico Queiroz (UFAL)
Dra Ana Maria dos Anjos Carneiro-Leão (UFRPE)
Dra Margareth Mayer (UFRPE)
Dra Adriana Mohr (UFSC)
Dra Zulma Medeiros (FIOCRUZ/CP Aggeu Magalhães-PE)
MSc Marcos Alexandre de Melo Barros (IMIP/ FACULDADE
SENAC PE)
Dra Marília de França Rocha (UPE)
Dra Maria Cristina Pansera de Araújo (UNIJUÍ-RS)
MSc. Fernanda Muniz Brayner Lopes (SEDUC/PE)
MSc. Risonilta Germano Bezerra de Sá (SEDUC/PE)
MSc. Alba Flora Pereira (PPGEC-UFRPE)
Dra Elenita Pinheiro de Queiroz Silva (UFU-MG)
Dra Cláudia Ulisses de Carvalho Silva (UAG-UFRPE)
Dra Zélia Maria Soares Jófili (UFRPE)

iii
Comitê Organizador
Diretoria Executiva Nacional

Sandra Escovedo Selles (FE/UFF) - Presidente


Marcia Serra Ferreira (FE/UFRJ) - Vice-presidente
Marco Antonio Leandro Barzano (UEFS) - Secretário
Elenita Pinheiro de Queiroz Silva (UFU) – Tesoureira

Diretoria Executiva Regional 5

Marcos Alexandre de Melo Barros (FBV/SENAC) - Diretor


Edinaldo Medeiros do Carmo (UESB) - Vice-Diretor
Francisco Antônio Rodrigues Setúval (UEFS) - Secretário
Marsílvio Gonçalves Pereira (UFPB) - Tesoureiro

Conselho Deliberativo da Diretoria Executiva Regional 5

Ana Verena Madeira (UNIME/UFBA)


José Roberto Feitosa Silva (UFC)
Maria da Conceição Vieira de Almeida (UERN)
Marlécio Maknamara da Silva Cunha (UFSE)

iv
Comissão Organizadora Local

Zélia Maria Soares Jófili (PPGEC / UFRPE) - Presidente


Marcos Alexandre de Melo Barros (FBV/SENAC)
Edênia Maria Ribeiro do Amaral (PPGEC / UFRPE)
Marília de França Rocha (Dep. Bio / UPE)
Francimar Martins Teixeira (CE / UFPE)
Micheline Barbosa de Motta (CE / UFPE)
Paulo de Jesus (DED / UFRPE) - Diretor
Francinete Torres B. da Fonseca (DB / UFRPE) -
Ana Maria dos Anjos Carneiro-Leão (DMFA / UFRPE)
Rejane Jurema Mansur C. Nogueira (DB / UFRPE)
Cláudia Ulisses de Carvalho Silva (UAG / UFRPE)
Margareth Mayer (DMFA / UFRPE)
Gilvaneide Ferreira de Oliveira (DED / UFRPE)
Risonilta Germano B. de Sá (SEDUC-PE / SEC-PCR)
Fernanda Brayner Lopes (SEDUC-PE)
Alba Flora Pereira (PPGEC / UFRPE)
Mônica Lopes Folena Araújo (DED / UFRPE)
Iara da Glória Marcos da Silva (SEDUC-PE)
Karla Maria Euzebio da Silva (PPGEC / UFRPE)
Simone Gomes da Silva (CCS / UFRPE)

Realização

Associação Brasileira de Ensino de Biologia


Universidade Federal Rural de Pernambuco

v
vi
Sumário

Apresentação ..................................................................................................... 9
Prefácio ............................................................................................................ 11
Zélia Jófili
―Carta às futuras gerações‖- um outro mundo é possível! ...................... 17
Marcelo Pelizzoli
A práxis do consumo sustentável ................................................................ 25
Thomas Enlazador
Métodos de ação do movimento ambientalista no exercício da cidadania
planetária: o caso da ASPAN ....................................................................... 37
Andrea Quirino Steiner, Alexandre José Pereira de Araújo,
Maria Adélia Borstelmann de Oliveira
Os sentidos do prefixo ―etno-‖ no contexto da pesquisa etnocientífica:
reflexões epistemológicas e educacionais ................................................... 53
Ângelo Giuseppe Chaves Alves, Gilmar Beserra de Farias
Lições da etnobiologia para o ensino de ciências sensível a diversidade
cultural .............................................................................................................. 67
Geilsa Costa Santos Baptista
Darwinismo biológico e darwinismo social: existe uma linha divisória
relevante para o ensino de evolução? .......................................................... 81
Nelio Bizzo
O mecanicismo e a biologia .......................................................................... 93
Argus Vasconcelos de Almeida
Ensino de genética: desafios e perspectivas .............................................117
Marília de França Rocha, Marise Sobreira
Aplicação e teste de uma sequência didática sobre evolução no ensino
médio de biologia .........................................................................................131
Vanessa Perpétua Garcia Santana Reis, Charbel Niño El-Hani,
Claudia Sepúlveda

vii
Ensino de ciências e biologia e educação em saúde: análise das
proposições dos Parâmetros Curriculares Nacionais (Educação
Fundamental) ................................................................................................169
Adriana Mohr
Articulação entre a formação inicial e continuada de professores de
biologia: outro contexto de ação ................................................................179
Maria Cristina Pansera-de-Araújo
A reflexividade e o diálogo como elementos que possibilitam a
formação de professores profissionais autônomos e inovadores .........197
Gilvaneide Ferreira de Oliveira
A formação continuada dos professores que ensinam ciências naturais:
pressupostos e estratégias ...........................................................................207
Isauro Beltrán Núñez, Betania Leite Ramalho
EAD no Ensino de Biologia: o ensino semi-presencial como
alternativa? .....................................................................................................231
Marcelo Brito Carneiro Leão
Ensino a distancia (ead) em biologia: o ensino semi-presencial como
alternativa? .....................................................................................................241
Severino José Bezerra Filho
Mobile learning na educação em saúde: considerações iniciais.............247
Marcos Alexandre de Melo Barros
Ensinando biologia numa perspectiva de complexidade .......................257
Ana Maria dos Anjos Carneiro-Leão, Margareth Mayer e
Romildo Albuquerque Nogueira

viii
APRESENTAÇÃO

ENSINO DE BIOLOGIA, MEIO AMBIENTE E CIDADANIA:


OLHARES QUE SE CRUZAM

O III Encontro Regional de Ensino de Biologia da Região


Nordeste (EREBIO-NE) e o I Encontro Regional de Ensino de
Biologia com as Escolas (I EREBEs) tiveram como tema: ―Ensino de
Biologia, Meio Ambiente e Cidadania: olhares que se cruzam”
realizaram-se no período de 27 a 30 de abril de 2008 na Universidade
Federal Rural de Pernambuco, em Recife. Um ensino de Biologia
comprometido com a cidadania e o meio ambiente levou a equipe
organizadora a focar a temática em questão e a buscar o envolvimento
das escolas da região no evento, visando estreitar as relações entre a
pesquisa e o ensino. Neste sentido, além de científico e de congregar
pesquisadores na área de ensino de Biologia, o evento apresentou uma
programação voltada para as escolas da região (professores e alunos,
inclusive EJA) que tiveram um espaço para divulgar seus trabalhos e
participar de oficinas, filmes, atividades científico-culturais e de visitas
guiadas para setores de interesse didático-científico.
A realização do encontro teve o papel fundamental de manter
uma periodicidade de discussões e debates entre profissionais que
atuam nos diversos níveis, no ensino de Ciências e Biologia. O sucesso
alcançado nos encontros anteriores confirmou a existência de uma
demanda ―reprimida‖ de pesquisadores e de professores desejosos de
um espaço acadêmico-científico como esse. No primeiro caso, vimos
constituindo, especialmente a partir da década de 80 do século XX, uma
expressiva comunidade de pesquisadores em ensino de Ciências e
Biologia que, embora frequentemente dialogue em eventos acadêmico-
científicos, ainda não possuía um fórum nacional próprio. No segundo
caso, sabemos o quanto é numericamente expressivo o contingente de
professores com formação biológica, que, além de lecionarem Biologia
na Pós-graduação e no Ensino Superior e Médio, tradicionalmente
também atuam na disciplina Ciências no terceiro e quarto ciclos do
Ensino Fundamental e na modalidade de Educação de Jovens e Adultos
(EJA). O evento representa, assim, uma oportunidade de atender às
9
expectativas dos profissionais que, nas avaliações dos encontros
anteriores, já expressaram fortemente a necessidade de sua
continuidade. O III EREBIO e o I EREBEs acolheram,
respectivamente, 600 pesquisadores/professores (III EREBIO) e 960
alunos da Educação Básica (I EREBEs).
Com os objetivos de fortalecer as relações entre Educação,
Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente, no âmbito do ensino de
Ciências e Biologia, promover o intercâmbio entre pesquisadores da
área, fortalecer os vínculos entre pesquisadores e professores
interessados no ensino de Ciências e Biologia, oferecer subsídios
teórico-práticos e atualizar professores dos diversos segmentos de
ensino em torno das contribuições recentes da pesquisa em Ensino de
Ciências e Biologia, elegeu os seguintes temas nas oito mesas-redondas
apresentadas:
 Educação Ambiental, Bioética e Cidadania
 O Papel da História e Filosofia da Ciência no Ensino de Biologia
 Ensino de Conceitos Abstratos: Desafios do Ensino de Biologia
 Ensino de Biologia e Programas de Saúde
 EAD no Ensino de Biologia: o ensino semipresencial como
alternativa?
 Ensino de Genética: Perspectivas e Desafios
 Formação de Professores de Biologia para o novo milênio
 Relações entre Etnoecologia, Educação Ambiental e Ensino de
Ciências.

Os textos completos dos trabalhos discutidos nas mesas-


redondas compõem este livro.

10
PREFÁCIO
Zélia Jófili1

É com muita alegria que reunimos neste livro as contribuições de


professores e pesquisadores que atuam nas áreas de Ciências e Biologia
nas diversas regiões brasileiras enfocando temas extremamente
atualizados e relevantes enfocando a temática CTSA (Ciência-
Tecnologia-Sociedade e Ambiente).
O texto de abertura consiste num ensaio do filósofo-
ambientalista, Marcelo Pelizzoli, professor da Universidade Federal de
Pernambuco que nos fala de bioética através de uma carta às futuras
gerações reafirmando que um outro mundo é possível desde que a
humanidade pare ―[...] simplesmente pare, e faça cada coisa em seu
tempo, e esteja presente em tudo, e veja até que ponto estamos
dormentes, até que ponto somos marionetes de demandas que não são
saudáveis mental e biologicamente.‖ Ver o próprio niilismo e se dar
conta de que o futuro depende ―do que acontece em cada segundo de
nossa vida aqui‖ e agora.
Na mesma direção vem a contribuição do educador-
ambientalista, Thomas Enlazador, paulista radicado em Recife que
discorre sobre ―A Práxis do consumo sustentável‖. No texto chama a
atenção para a definição de desenvolvimento sustentável como ―um
desenvolvimento que satisfaça as necessidades do presente sem
comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer as suas‖ e
alerta para a importância da mudança de atitudes. A partir de questões
como: ―de que forma podemos caminhar para um mundo sustentável?
O que se tem feito para minimizar o impacto individual no campo do
consumo?‖ Sugere uma conduta alicerçada nos princípios da economia
solidária, ―como uma alternativa eficaz, pró-ativa e tangível‖.
Adélia Borstelmann de Oliveira, professora da UFRPE e primeira
secretária da ASPAN – Associação Pernambucana de Defesa da
Natureza discorre com riqueza de detalhes sobre os ―Métodos de ação
do movimento ambientalista no exercício da cidadania planetária‖,
destacando o importante papel da ASPAN ―na defesa intransigente da

1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências, UFRPE,


Presidente da Comissão Organizadora Local do III Erebio-NE ([email protected]).
11
natureza, dos recursos naturais e da qualidade de vida das populações...
visando o despertar da consciência ambiental e o exercício pleno da
cidadania para influir nas políticas públicas que afetem a saúde, a
segurança e o bem-estar social‖. Ressalta também a atuação das ONGs
brasileiras na fiscalização, monitoramento e articulação durante as
convenções nacionais e planetárias onde, em suma, são definidas as
políticas ambientais.
Ainda enfocando a questão ambiental, articulada com o ensino
temos a mesa que aborda as ―Relações entre Etnoecologia, Educação
Ambiental e Ensino de Ciências‖. Nela os etnobiólogos Ângelo
Giuseppe Chaves Alves - da UFRPE, e Gilmar Farias - da UFPE, nos
brindam com uma rica discussão a respeito dos ―Sentidos do prefixo
‗etno‘ no contexto da pesquisa etnocientífica‖. Trazem para a discussão
o confronto do saber local com a ciência formal e inserem o
conhecimento prévio dos estudantes numa abordagem ‗construtivista
contextual‘ que destaca a influência ―da cultura local no
desenvolvimento e organização das ideias dos alunos‖. Geilsa Baptista,
da UEFS, alimenta a discussão com as ―Contribuições da etnobiologia
para o ensino de ciências sensível à diversidade cultural‖. Sugere o
pluralismo epistemológico como uma posição intermediária onde o
conhecimento tradicional ecológico trazido pelo estudante é investigado
na sala de aula para ajudar o professor na compreensão dos ―diferentes
modos como as pessoas entendem a natureza‖, dessa forma
contribuindo para mudar a estrutura da educação científica e aproximar
os alunos da ciência.
Na mesa que debateu a história e a filosofia da ciência no ensino
de biologia, Nélio Bizzo, da USP, utilizou a teoria de Darwin e seus
desdobramentos em darwinismo biológico, social e impuro para sugerir
trazer essa discussão para os cursos de ciências numa tentativa de
superar a pseudo-história e a pseudociência que permeiam o ensino da
filosofia e da história das ciências. Explorou também uma explicação
marxista da teoria de Darwin por Robert Young, ressaltando ―o
profundo vínculo da pesquisa científica atual com padrões econômico-
sociais‖ e finaliza com a indagação: ―Por que não podemos oferecer
uma imagem mais real de nosso objeto de estudo?‖
Debatendo o mesmo tema, Argus Vasconcelos de Almeida,
professor da UFRPE, aborda com riqueza de detalhes a filosofia
mecanicista apontando suas origens, traçando sua evolução histórica e
expondo, como um dos modelos mecanicistas da biologia seiscentista, a
12
circulação sanguínea. Complementa destacando as suas consequências
para a biologia, como por exemplo, na fisiologia animal, na biologia
celular, na biologia molecular, na sociobiologia, na teoria da evolução e
na genética e finaliza, recomendando para a superação do reducionismo
mecanicista, a adoção de novos paradigmas e, citando Brener exorta:
―Talvez seja preciso ir além dos mecanismos do relógio‖.
Dando continuidade à discussão sobre temas palpitantes da
biologia, temos a contribuição de Marília da França Rocha e Marise
Sobreira Bezerra da Silva, ambas professoras da UPE que abordam as
perspectivas e desafios do ensino de genética. Por envolver conceitos
extremamente abstratos, o ensino de genética é dificultado pela escassez
de modelos didáticos que facilitem sua compreensão. Sugerem, como
alternativa, a revisão das estratégias para seu ensino com a produção e
utilização de jogos e softwares, bem como a integração da academia com
a sociedade e a mídia para a minimização de informações imprecisas
junto à população. Na mesma mesa, o Professor Charbel Niño El-Hani,
da UFBA, apresenta uma sequência didática sobre evolução no ensino
médio de biologia desenvolvido em parceria com as professoras
Vanessa Perpétua Garcia Santana Reis e Claudia Sepúlveda, da
Universidade Estadual de Feira de Santana, BA.
No tocante ao Ensino de Biologia e aos Programas de Saúde,
Adriana Mohr, da UFSC, debatendo o tema com Zulma Medeiros, do
Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães e Francimar Teixeira, professora
do Centro de Educação da UFPE, analisa a proposta dos PCN e indica
aspectos a serem melhor discutidos como, por exemplo, a subordinação
―dos conceitos ao desenvolvimento de hábitos, atitudes e valores‖.
Defende o ponto de vista de que a mera inversão de prioridades é uma
solução ―simplista e errônea‖. O que a escola tem a fazer é cumprir o
seu objetivo de ―desenvolver nos alunos conceitos, raciocínio e crítica‖
e que a aprendizagem de tais conceitos tem que ocorrer de forma
significativa. Critica, também, a ―ausência de orientações metodológicas
mais consistentes‖ devido às dificuldades inerentes ao trabalho com
fenômenos multidisciplinares, que caracterizam a Educação em Saúde.
Aponta alternativas e reforça a necessidade de melhor formação dos
professores, pois são estes, em última instância, os responsáveis pela
implementação, ou não, das mudanças curriculares.
A formação de professores de Biologia para o novo milênio foi o
tema da mesa que contou com as contribuições da professora Cristina
Pansera, da Universidade de Ijuí, RS em debate com Elenita Queiroz,
13
da Universidade Federal de Uberlândia, MG e Gilvaneide Oliveira, da
UFRPE. O texto de Cristina focou a importância da articulação entre a
formação inicial e a continuada, ressaltando a participação dos
estudantes de licenciatura nos programas de iniciação científica e nos
trabalhos de extensão onde, mediada pela universidade, há a integração
com professores da Educação Básica. Comenta e recomenda o
desenvolvimento de situações de estudo (SE) nas escolas, pelos
estagiários da universidade na interação com os professores da rede
básica de ensino, uma vez que esta atividade, vivenciada na Unijuí,
propiciou outros olhares e discussões entre os participantes, no que
tange ao conhecimento específico e educativo.
O artigo da professora Gilvaneide Oliveira, da UFRPE, focaliza a
reflexão e o diálogo como elementos que favorecem a formação de
profissionais autônomos e inovadores e recomenda aos programas de
formação de professores ―considerar uma participação efetiva dos
profissionais envolvidos‖. Esta participação, coletiva e numa
perspectiva crítica e transformadora, busca romper com os modelos
formativos pré-estabelecidos, na busca de formar profissionais
engajados com os desafios contemporâneos.
Finalmente, temos a oportuna contribuição de Isauro Beltran
Nuñez, professor cubano radicado no Brasil e de Betania Ramalho,
ambos do programa de pós-graduação em educação da UFRN, que
propõem pressupostos e estratégias para a formação de professores de
ciências. Segundo eles, ―a formação continuada deve buscar a
construção de uma identidade profissional voltada para o ensino da
Física, da Química, da Biologia como atividade profissional‖ e
recomendam focar a atenção na profissionalizacão; na profissionalidade,
associada aos saberes necessários para ensinar as ciências naturais; e na
reflexão, na pesquisa e na crítica, como atitudes que a formação
continuada deve desenvolver como elementos da identidade do
professor que ensina ciências. A reflexão, por si só, é insuficiente
quando se orienta para o desenvolvimento profissional, pois, sem a
crítica se torna limitada.
O ensino semipresencial como alternativa para a EAD foi
discutido na mesa redonda que contou com a participação dos
professores Marcelo Brito Carneiro Leão, da UFPE, Severino José
Bezerra Filho da UPE e de Marcos Alexandre de Melo Barros, da FBV
e SENAC-PE. O artigo de Marcelo, a partir da constatação da
―dissociação entre os diversos ambientes de aprendizagem‖, enfoca a
14
importância de ampliar a interação aluno-aluno e aluno-professor para
além da sala de aula física, utilizando multiambientes escolares e
extraescolares, bem como recomenda a discussão de instrumentos para
a mediação pedagógica. Para a implementação desse novo formato
alerta para a imperiosa necessidade de aprimorar a formação do
professor, introduzindo discussões sobre a adequada utilização das
tecnologias de informação e comunicação (TICs) na educação.
A contribuição do professor Severino José ressalta a importância
da EAD na superação dos obstáculos à democratização do acesso ao
ensino superior, enfatizando a contribuição da UPE no processo
pioneiro de disseminação do ensino a distância em Pernambuco.
Aponta, também, para a necessidade de formar quadros profissionais
aptos a lidar com as questões da EAD.
Finalmente, Marcos Alexandre, Coordenador do Programa de
Educação a Distância do IMIP, discute a utilização do mobile learning na
educação em saúde, como importante aliado na formação de
professores ao promover a facilitação do acesso às informações
Questões da maior importância para o ensino de Biologia são o
trato com a aprendizagem de conceitos abstratos e o extenso e
desarticulado conteúdo disciplinar ministrado desde a educação básica
até os níveis mais elevados de escolarização. Este tema é debatido pelos
professores Ana Maria dos Anjos Carneiro-Leão, Romildo Albuquerque
Nogueira e Margareth Mayer, todos do Departamento de Morfologia e
Fisiologia Animal da UFRPE e professores do Programa de Pós-
graduação em Ensino de Ciências.
A professora Ana Maria inicia relacionando, de forma cristalina, a
fragmentação dos currículos com o paradigma cartesiano da ciência.
Utilizando como exemplo um quadro de Picasso, demonstra os
problemas causados pela fragmentação dos conteúdos curriculares e
sugere como possibilidade de superação uma ruptura com esse
paradigma e a adoção de uma visão sistêmica da vida. O professor
Romildo estende a discussão para o estudo da ciência a partir da
perspectiva da complexidade, mostrando a importância da ―religação de
saberes‖ e a percepção de que ―o todo inclui não apenas as partes
segmentadas, porém também as complexas relações entre elas‖.
Finalmente, a professora Margareth conclui a discussão exemplificando
o ensino de Biologia numa perspectiva sistêmica utilizando a
metodologia das Oficinas Pedagógicas Interdisciplinares com o tema
―respiração pulmonar‖. Tais oficinas envolvem a contextualização e a
15
interdisciplinaridade a partir de situações-problema que possibilitem
articulações entre diferentes aspectos disciplinares e interdisciplinares.
É uma leitura que vale a pena por sua atualidade e pertinência
para o ensino de Ciências e Biologia!
Recife, setembro 2010

16
“CARTA ÀS FUTURAS GERAÇÕES”- UM OUTRO
MUNDO É POSSÍVEL!
Marcelo Pelizzoli1

Inspirada no olhar visceral de Sofia, e em resposta à reveladora


carta tecnocêntrica Nova Atlântida (1627), de Francis Bacon –
verdadeiro marco na história da utopia científica controladora e
manipuladora da natureza no Ocidente.

―Querida Sofia. Agradeço à vida por ter esse dom esporádico de


poder olhar pela fechadura do tempo e ver um pouco do futuro, a partir
das coisas ocultas no presente. Só assim pude escrever esta carta para
você, conseguindo ler o passado no presente e o futuro interligado a
estes. Fiquei realmente admirado em poder sentir um pouco de você,
filha de minha neta, através do que vocês têm explicado aí como visão
quântica da mente, nessa teia vital onde as ligações ultrapassam a
localidade fragmentada e o tempo linear. Para nós, em 2006, isso ainda
era uma coisa misteriosa demais, ou de cientistas meio complicados, de
filósofos e místicos, ou então das videntes que consultávamos de vez
em quando, com certo ar de surpresa. Estávamos no início da era da
mente e das neurociências e do novo paradigma, a grande virada de
consciência, da (des)sociedade industrial de consumo ilimitado para o
novo tempo.
Vocês sabem aí bem o que foi a ‗era cartesiana‘, e o modelo de
biotecnologia e de biossocialização que se expandiu, mas também foi
sendo desmascarado; é um pouco a história de uma cidade que vira uma
montanha de lixo. Que bom que há um novo renascimento cultural e a
ciência sistêmica e sustentável da humanidade cresce de fato,
incorporando grandes saberes e tradições do passado, indo além da
mera aplicação de técnicas e interesses econômicos lamentáveis que
penetraram na nossa vida e na nossa mente. Moça, talvez tudo seja
como um castelo de areia: afinal de contas, o que é que não muda?
Você sabe disso pelo estudo da história e principalmente de como se

1 Professor do Departamento de Filosofia da UFPE (Doutorado em Filosofia e


Mestrado em Gestão e Políticas Ambientais. Membro do CEP da UFPE). E-mail:
[email protected]
17
deram as décadas da crise - da qual vocês estão ainda se reerguendo.
Mas nós que vivemos naquele período dos primeiros anos do novo
século XXI, travamos uma luta dolorida, e tivemos infelizmente o
desprazer de contribuir para muitas catástrofes em cada ação que
fazíamos ou produto que usávamos e não tínhamos coragem de mudar;
mas também, por outro lado, começamos a contribuir para a visão
ecológica e humanista, que você minha bisneta está começando a viver.
Como foi isso?
É uma longa história. É a história de um paradigma ou padrão
cheio de fascínios e perigos, e de um modo de olhar o mundo que
estava contaminado com nossos medos e desejos, o olhar e o mundo
contaminados, de modo que agíamos mental e emocionalmente
enraizados numa cultura predominantemente destrutiva, que inclusive
comprava a cada momento nossos melhores cérebros e, por vezes, até a
alma e o coração de alguns. O filme Matrix, que deixei para sua avó,
mostra um pouco dessa metáfora, de como nós fomos ficando cegos de
tanto brilho, de tanto fascínio com as coisas que iam sendo
transformadas velozmente, uma avalanche de consumos e meios
artificiais, de mediações que nos impediam cada vez mais de viver o
presente. Querida, nós ficamos cegos e obsessivos, ansiosos e
deprimidos e solitários, e com uma produção vertiginosa de desejos,
com a ideia de que deveríamos a cada momento renovar, trocar de
produto, descartar e corrigir a natureza humana e não humana. Era a
chamada cultura de progresso material ilimitado e tecnocentrismo,
cultura do melhorismo artificial, os primeiros passos da biotecnologia
cartesiana, quando tentamos decifrar (e até eliminar!) todo poder e auto-
organização da natureza e do corpo, e ter um controle matemático-
físico sobre a própria mente, sobre o nosso próprio inconsciente, aquilo
que nos resguarda como seres humanos, ambíguos e abertos,
complexos no entendimento, mas simples para viver a vida. Graças a
muita luta e sofrimento, a grandes choques que algumas pessoas desta
geração tiveram que assumir já no século XX, vocês estão conseguindo
aí contornar esse padrão, e unir o passado com técnicas sustentáveis
cientificamente, politicamente, economicamente, ou seja, o social e o
ambiental. E acho incrível como vocês incorporaram o saber espiritual
para além de qualquer religião; a verdadeira Ciência da Vida não pode
mesmo se afastar disso.

18
Minha querida, apesar de ter entrado na humanidade na época do
século XVII, a visão materialista e reducionista e fragmentária, se
cristalizou propriamente apenas nos séculos XIX e XX. Havia um clima
de positivismo, apoiado numa pretensa objetividade dos fatos -
reforçado pelas técnicas que começavam a funcionar - e isso
impressiona não é? – fatos e objetos isolados que poderiam ser
manipuláveis até a essência (átomo, molécula, gene...), como peças de
um automóvel. Ao mesmo tempo, um clima de mal estar, que nos
levava também a um niilismo, a uma descrença na vida e no ser
humano. Você deve estar rindo disso, mas era assim que funcionava,
moça! O corpo era visto apenas por partes e de modo químico-fisico-
experimental, um pouco mais que uma máquina ou aglomerado de
células e elementos químicos que deveriam ser consertados e trocados.
As pessoas olhavam para os objetos como se eles não dependessem do
seu olhar, da sua mente. Fomos perdendo a ideia de Cosmos e
Natureza, e a crença na vida natural. Os nossos filmes de futuro tinham
um imaginário futurístico-tecnológico árido, seco, calculado e caótico ao
mesmo tempo, mas profundamente mitológico, e onde não havia mais
natureza humana ambígua e mundana, animal, ou espiritual, ou mesmo
a natureza natural. Chegávamos ao absurdo de pensar em colonizar
outros planetas porque o nosso poderia se tornar inviável! Imagine você
vivendo dentro de uma bolha artificial como um ET? Nossas angústias
existenciais foram aumentando tanto – na medida do próprio fascínio
tecnológico e transformação das cidades em consumo – tanto que
começamos a imaginar seres vindo à Terra, ou que havia outros
planetas com vida e que fariam algum contato. Inclusive lançamos
foguetes contendo arte, feitos e obras humanas para que outros seres
pudessem achar. Que louca e nostálgica angústia de evasão, não é
mesmo, minha filha? Parece que estávamos prevendo os momentos de
catástrofes que estavam acontecendo aos poucos.
Mas, minha amada, nunca perdemos a fé no amor; amei você -
acredite - nos olhos e no sorriso de sua avó, minha filha, que corria livre
e espontânea sem saber o mundo que a esperava, sem saber quanta dor
pairava no ar, quanta mentira e covardia, quanta falta de sensibilidade e
quanto falta de inteligência em nome da crença nas máquinas e no
mercado. Ela cutucava meu coração a cada palpitação, pois as crianças
todas reluziam no brilho de seus olhos; a extrema fragilidade que vi em
minha filha me evocava a nossa fragilidade, seres humanos e não-
19
humanos, e vi como somos facilmente fascinados e vencidos pelo
comodismo, pela autodefesa, pela inércia e pela preguiça. Via ali o
sofrimento das crianças do meu país; via ali sonhos lindos que mais
tarde iriam se despedaçar em nome da competitividade, em nome da
grande desordem da ordem burguesa vigente, em nome dos interesses
de poucos e de um estilo de vida destrutivo, que ―segurava as pontas‖
de um verdadeiro apartheid social. O olhar de Sofia me consumia por
dentro, pois quanto mais eu estudava e pesquisava, mais se abriam
coisas assustadoras na minha frente, e se tornava muito difícil
convencer as pessoas e lutar dentro da Matrix, ou prisão, pois às vezes,
era melhor fazer de conta que não enxergamos, e então dormir, dormir
e... morrer aos poucos. Mas o choro, os gestos frágeis e tão humanos
das crianças, como o olhar de Sofia, um apelo silencioso, uma extrema
fraqueza na força humana, uma alegria na tristeza e uma confiança
sincera e pueril no olhar e na palavra do pai e da mãe, e de cada pessoa
que encontrava, tudo isso me fazia arder o coração. Quando eu a
abraçava, sentia o palpitar de seu coração, e num sublime momento de
êxtase e dor, eu sentia como se o seu sangue estivesse em todo lugar
como a água do planeta, e como se os movimentos de sua respiração
fossem todo o ar que nos envolve e penetra, e como se o calor de seu
corpo fosse o calor de todas as pessoas, e um pouquinho do Sol dentro
da gente.
Sofia, tive que presenciar muita gente passando frio ou torrando
ao sol pedindo esmolas ou vendendo pequenas coisas, enquanto ‗os de
cima‘ andavam em carros importados com ar, se protegiam em
apartamentos com vigias, cachorros, câmeras e grades sem fim, e armas;
e iam do trabalho para casa e aos shoppings fechados no fim de semana:
mesmo assim, eles não aguentavam muito, e às vezes iam a um parque
aberto ou a uma praia com segurança semiprivada. Tive que presenciar
o tempo de acumulação de dinheiro de uma forma absurda e
completamente antiética, mas ao mesmo tempo tudo considerado legal!
Acompanhei as privatizações e a desmontagem do poder regulador dos
Estados, e como a Lei da produção e do Mercado acirraram todas as
contradições e invadiram quase todos os espaços da natureza e do
corpo, mercantilizando genes, ar, água, terras, ideias, e tudo o que se
possa imaginar. E vi ainda como tudo isso levou à catástrofe, da
violência social, da poluição química em todos os níveis, do uso da
doença para lucrar e de medicações não para ir às causas e à cura, e
20
quanto menos à prevenção, mas para manter as pessoas sempre com
doenças. Mas nunca duvidei de que: onde surgem grandes doenças,
surgem grandes curadores! Eis você aí! Eis meus colegas de luta aqui,
muitos deles sendo considerados radicais. Viva os radicais, filha! pois
eles têm raízes, eles sustentaram a seiva da vida futura, eles pensaram
além de si mesmos, de seus corpos e egos e assumiram a dor e a energia
do mundo e da verdadeira evolução.
Infelizmente, vi uma medicina baseada na evidência dos lucros
farmacêuticos e de equipamentos e suprimentos, buscando desacreditar
toda sabedoria e todas as práticas naturais e medicinas tradicionais, em
nome de uma falsa cientificidade. Buscando tirar a autonomia de saúde
que as pessoas e comunidades sempre tiveram o poder de desenvolver;
buscando ver o corpo fragmentariamente, e mais absurdo ainda:
menosprezando causalidades emocionais e psíquicas – mentais – das
doenças. Vi o crescimento dos gastos e pesquisas com grandes doenças,
que seriam curadas geneticamente, e que depois, você sabe,
desembocaria num grande golpe econômico que privilegiaria alguns,
uma verdadeira eugenia e algenia, e que para muitos traria efeitos
teratogênicos, e engodos, em nome do lucro, pois logo em seguida
começamos a lidar cientificamente com a complexidade e
interdependência de fatores, e a visão começou a mudar e pudemos
recuperar conjuntamente os saberes socioecológicos e a visão integral.
Cheguei a ver coisas fantásticas na Saúde, que me marcaram muito,
como estudar e conviver com medicinas e práticas tradicionais, e
mesmo orientais, onde as pessoas eram tratadas como seres humanos
integrais, onde se evitava e curava doenças ditas incuráveis, mas ao
mesmo tempo a luta com um modelo biomédico que se armava contra
tudo o que lhe ameaçava seu paradigma, suas técnicas e seus imensos
capitais. Vi países serem enforcados economicamente por causa da
medicina da doença e por condições de saneamento e ambientais
precárias.
Vi as universidades terem suas pesquisas quase todas financiadas
por grandes grupos econômicos de falsa ética, e reforçar uma
tecnociência que visava à produção contínua de consumo e mediações
artificiais infindáveis e não os modos de vida simples e sustentáveis; vi
laboratórios financiando pesquisadores, e invadirem os consultórios
médicos com fármacos novos, manuais, presentes e congressos, onde
pensamentos diferentes, alternativos ou mesmo tradicionais custavam
21
muito a penetrar. Era a época da imagem e do marketing. Você não
imagina, mas havia uma infinidade de estratégias disso, acadêmicas ou
fora da academia; havia uma avalanche de imagens e de simulacros tidos
como reais, de modo que não tínhamos mais tempo para pensar, para
sentar, meditar, para sentir o pulsar da vida e conversar, e até nos
relacionarmos como pessoas.
O que mais me entristecia nesse momento? A HIPOCRISIA; é
ver como os discursos que eram feitos em nome da moral ou mesmo da
bioética, eram na maioria das vezes inócuos, moralistas e faltavam
proposições práticas efetivas, que fossem além das formações
disciplinares e partidas, ou dos hábitos perniciosos da Matrix e do
modelo de consumo da elite. Não conheciam realmente a própria
contaminação do seu agir, ou se conheciam não conseguiam dar passos
significativos adiante, mudar o olhar e as práticas, ver de onde eles
mesmos se erguiam e levantavam a voz, ver o próprio niilismo. Os
melhoramentos empregados eram na maioria dos casos uma exigência
de certificação e justificação aos novos procedimentos e invasões do
mundo da vida e da cultura local com o poder das máfias mercantis. No
início do século XX, acredite, estávamos num tempo ainda de grande
conservadorismo e preconceitos, onde os desprovidos, os sem-terra, os
transviados, os loucos, os radicais, os rebeldes, os questionadores, os
desordeiros, os esquerdistas, os alternativos, tudo isso era sinônimo de
ameaça; onde tudo era rotulado e assim colocado dentro de uma
caixinha ou expulso da chamada vida econômica e do normal. Tempo
de normose, a patologia sutil e gigantesca da falsa normalidade e ordem.
Querida menina, hoje percebo um pouco melhor o quanto a
nossa corrida, não apenas a armamentista, mercadológica ou de
competitividade, mas a nossa corrida do dia a dia, não tinha um rumo
muito claro. É como o conto budista do cavalo corredor. ―Um homem
montado num cavalo passa correndo por outros e estes perguntam ao
homem: para onde vai com tanta pressa, desse jeito louco? E o cavaleiro
responde: por favor, pergunte ao cavalo!‖ É tragicômico, não é mesmo?
Percebi o quanto se corre de si mesmo, o quanto se foge para mundos
imaginários que se materializam em técnicas sobre fantasias, os
chamados objetos de desejo, e o quanto isso mesmo nos evita de estar
presente em cada momento e em viver a vida com intensidade. Filha,
não vivemos o presente, parece que estamos passando por ele; parece
que precisamos passar por um grande choque ou parada forçada, como
22
um ataque cardíaco, ou um câncer maligno, um aviso da natureza
humana e do planeta, para que a gente pare, simplesmente pare, e faça
cada coisa em seu tempo, e esteja presente em tudo, e veja até que
ponto estamos presos e dormentes, até que ponto somos marionetes de
demandas que não são saudáveis mental e biologicamente.
Eu não falo de esperança, Sofia. Comecei a olhar para mim e
para o presente, como me concebo como ser humano e como concebo
o outro. O Agora é o único que tenho, é o único que conta, sei que
vocês dependem dele, do que acontece em cada segundo de nossa vida
aqui.
Filha, comecei a recusar aos poucos a servir esse Senhor maldito.
Não comprava mais venenos químicos, não comprava mais
transgênicos, gordura trans; não comprava mais açúcar branqueado com
clorados ou sulforados, não comprava mais excessos de embalagens;
não comprava mais doces químicos e porcarias, como coca-cola, ou
margarinas e todo um monte de merda legitimada pelos órgãos de
proteção do consumidor idiotizado e dos lucros bestiais. Em todo caso,
sempre fui feliz e nunca isso me escravizou, e encontrei nas comidas e
coisas simples uma diversidade enorme e prazerosa, até numa boa
bebida nordestina. Aprendi a fazer pão integral em casa, a comer coisas
cruas cada vez mais, a comprar na feira ecológica e dos sem-terra, a
economizar água e energia de todo tipo. Aprendi a comer de modo a
evitar doenças; acima de tudo comecei a aprender a meditar e um
mundo novo se abriu para mim, e estava ali, bem dentro de mim e no
olhar das pessoas que, no fundo, são todas muito preciosas. E o que
fazia não era só para minha sobrevivência e qualidade de vida de meus
filhos, era a real efetivação de uma nova sociedade, a qual sobreviveu
graças a isso e outras coisas mais. Comecei a me organizar em ONGs e
na política local. Aprendi que poderia cultivar amor cada vez mais me
abrindo aos outros e diferentes, que poderia ceder lugar, que poderia ser
mais generoso e dar mais, que poderia ter respeito profundo pelos seres
humanos e não-humanos; que poderia usar bem menos drogas
químicas; que poderia sofrer sem culpa e sentir dor, pois sou um ser
humano como qualquer outro. Aprendi que poderia andar mais a pé,
respirar melhor, ajudar os necessitados, dar de meu tempo a minha filha
e às pessoas e não só ao meu trabalho formal; aprendi a duvidar de
tudo, tudo mesmo, e a me sentir de dentro para fora, e ser senhor das

23
minhas escolhas. Aprendi a pedir desculpas e dizer que também sou
fraco, mas cada vez mais ser sincero e dizer o que penso.
Um grande ensinamento para mim foi que, apesar de ir me
encaminhando para a raiz das coisas, vi que seria uma grande ilusão me
considerar um milímetro que seja a mais ou melhor que os outros.
Todos temos o mesmo valor, apesar das diferenças, todos temos e
somos deuses dentro da gente; todos temos o diamante que é nossa
mente-coração. E apesar disso, somos muito diferentes. Viva a
diversidade! Viva o amor. É ele no fundo que a tudo dissolve e ao
mesmo tempo nos mantém e motiva...‖

24
A PRÁXIS DO CONSUMO SUSTENTÁVEL
Thomas Enlazador1
INTRODUÇÃO
O substantivo Práxis, em grego, significa literalmente ação. Nesse
artigo referendamos a práxis como um processo cotidianamente
pedagógico. Amplia-se a visão, tendo a práxis como ação
transformadora. A Pedagogia da Práxis é entendida como uma
pedagogia para a educação transformadora. Analisando o aspecto
transformador de uma conduta sustentável no ato cotidiano de
consumir, busca-se aqui, apontar caminhos para aliarmos essa Práxis do
Consumo Sustentável, enlaçando os discursos ambientalizados com
ações coerentes, críticas e transformadoras, rumo a construção de
Outro Mundo Possível. (Gadotti, 1995).
A expressão ―desenvolvimento sustentável‖ surgiu em 1980, na
―Estratégia mundial de preservação‖, tendo recebido posição de
destaque no Relatório Brundtland (1987) na Comissão Mundial das
Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. A
expressão foi consagrada em 1992 pela Conferência das Nações Unidas
para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – ECO 92, realizada no
Rio de Janeiro. Agora nos preparamos para a Rio + 20, 20 anos depois
da maior reunião global sobre o meio ambiente. O panorama é bem
diferente. Pesa o compromisso de cada nação, refletindo diretamente na
vida de quase 7 bilhões de habitantes e em cada canto do Globo
Terrestre.
Com o passar dos anos, grandes transnacionais, governos,
programas de responsabilidade socioambiental, ONGs e afins, se
apropriaram do termo e deram distintas definições e usos para essa
terminologia. A prática adotada nas ações que envolvem a terminologia
Desenvolvimento Sustentável está longe de questionar com
profundidade as raízes das relações sociais e produtivas do sistema
capitalista. Essas relações geram tendências de comportamento com a
natureza, que lhe são particulares. A visão superficial sobre essas
relações e a ausência de um questionamento profundo, embasado na
1 Educador e Ambientalista participa da Rede PRODEMA - Programa de
Desenvolvimento e Meio Ambiente da UFPE e é Coordenador da RECON - Rede
Recife de Consumo Sustentável ([email protected])
25
Sustentabilidade Social, deixa janelas abertas para a continuidade desse
sistema já instalado, que adere a uma lógica degradante, onde o
―Desenvolvimento Sustentável‖ cai como uma luva, para justificar e
compensar (mitigar) sua cadeia de produção ilimitada e insustentável.
O SLOGAN DA AGENDA 21: “PENSAR GLOBAL E AGIR LOCAL”
Dois instrumentos importantes para a implementação de ―ações
sustentáveis‖ são a Agenda 21 e a Carta da Terra. Ambos foram gerados
na ECO 92 e a Agenda 21 foi subscrita por 179 países. A expressão
―Agenda‖ tem o sentido de planejar a participação de toda a sociedade
civil, setor privado e governo, convocando-os para participar e assumir
compromissos que visem solucionar problemas a curto, médio e longo
prazo. A Agenda 21 prevê a implantação de Agendas a nível nacional,
estadual e municipal, que podem ser aplicadas em escolas, empresas,
bairros e comunidades sendo um precioso instrumento para o
enraizamento de práticas sustentáveis onde vivemos, estudamos e
trabalhamos.
Mesmo diante de tantas evidências, ainda é pequeno o número de
ações para implementação de políticas públicas, projetos e diretrizes que
fomentem a consciência ambiental. Um grande avanço, que precisa ser
incorporado pelos estados e municípios, foi a Lei que instituiu a Política
Nacional de Educação Ambiental. O artigo 1º da Lei nº 9.795/99 assim
define o conceito de Educação Ambiental:
Entendem-se por educação ambiental os processos por meio
dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais,
conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas
para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do
povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade.
As Mudanças Climáticas Globais e Locais (GLOCAL), nunca
estiveram tão eminentes, e Recife se consolida como uma das cidades
litorâneas mais afetadas por esse quadro. O que as empresas
Socioambientalmente ―responsáveis‖ têm realizado concretamente para
mitigar ou modificar esse quadro pré-catastrófico?
O Relatório Planeta Vivo 2004, apresentado na Suíça pela Rede
WWF - World Wild Foundantion, difundiu indicadores que demonstram
que a humanidade está reduzindo a disponibilidade dos recursos
naturais do planeta. A pegada ecológica do ser humano - índice que
mede a sustentabilidade ambiental com base na demanda de recursos
26
naturais renováveis (Dias, 2002) - aumentou em 70% desde 1970 (5% a
mais do que o crescimento populacional) e é hoje de 2,2 hectares por
pessoa num mundo que só dispõe de 1,8 hectares por habitante, ou seja,
consomem-se 20% a mais do limite para ter-se uma relação saudável
entre crescimento e sustentabilidade. O capital natural está diminuindo
e pode acabar, e o alerta é para um consumo sustentável.
A MARÉ SOBE E OS MUROS CAEM, O CLIMA MUDA A CHEIA
ESVAI, O MANGUE SECA E O LIXO SAI...
Uma tendência global para mensurar (ao menos parcialmente) o
que consumimos é a análise da Pegada Ecológica. São diversos cálculos
que passam pelos quilômetros que percorremos em automóveis e
aviões, uso racional de eletrodomésticos, compra de alimentos
orgânicos, consumo de menos embalagens e sacolas plásticas entre
outras ações cotidianas. A partir de um cálculo sistêmico chegamos a
um X de emissão de gazes do efeito estufa e a um total de árvores que
devemos plantar para sequestrar o carbono emitido para ―compensar‖
nossa atitude antiecológica. Esse ―Eco X‖ do quanto estamos
colaborando ou não para a sustentabilidade planetária e como podemos
reverter e aprimorar nossa práxis diária poderá enriquecer a qualidade
de vida pessoal, coletiva e global.
Historicamente, o termo Desenvolvimento Sustentável, surge no
âmbito das discussões da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente,
em 1987, quando foi proposta a seguinte definição: ―Consumo
sustentável é o desenvolvimento que atende às necessidades do
presente, sem comprometer a capacidade das futuras gerações em
atenderem as suas‖ (Relatório Brundtland 1987, p. 87). Assim, observa-
se que o consumo sustentável está diretamente conectado às questões
que envolvem as práticas cotidianas que podem ou não, ser
consideradas como compatíveis com a capacidade da Terra de absorção
dos impactos ambientais produzidos pelas atividades antrópicas e
também de sua reposição.
Reafirmando a importância da mudança de postura em relação
aos padrões de consumo individuais e em macro escala, notamos a
relevância de interconectar conceitos que apontem para uma produção
e comercialização sustentáveis, tornando-se (ao menos, pontualmente,
nas regiões onde são realizadas), um contraponto às práticas alienantes,
massificadas e pasteurizadas de consumo, onde, pouco se questiona
27
sobre a procedência e impactos na produção e comercialização. Nesse
artigo, aponta-se a vertente do Consumo Sustentável, como forma de
implementação das práticas ambientais de conscientização e
sensibilização para a construção de Outro Mundo Possível.
Um consumo focado na conservação dos recursos naturais,
respeitador das normas trabalhistas e socialmente justo, tornou-se um
discurso amplamente difundido nos últimos 10 anos. No Brasil, o tema
é adotado por empresas, ONGs e instituições de ensino, mas ainda não
produz reflexos que elevem os índices de sustentabilidade de um país
no qual o consumidor consome sem questionar onde, como, e qual o
impacto daquilo que está sendo consumido, revelando uma dissonância
entre o discurso e a prática. Afinal, Consumimos ou Somos Consumi-
dos?
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Existem algumas linhas que refutam o termo desenvolvimento,
alegando que o (des) envolvimento deixa de integrar, e esse conceito
não inclui de forma participativa e democrática todos os envolvidos. O
autor deste artigo adota a terminologia Cultura da Sustentabilidade para
ilustrar a intenção de crescer e integrar harmoniosamente homem e
natureza.
Considerando a prática da sustentabilidade, Sachs (1993) chama
para o seu alcance a partir de cinco princípios da sustentabilidade:
social, cujo pressuposto é a equidade da renda econômica (diminuição
da desigualdade social); ecológica, para a manutenção dos recursos
naturais; econômica, que seria possível através da alocação do
"gerenciamento mais eficiente dos recursos e de um fluxo constante de
investimentos"; cultural, o que implica na continuidade das culturas em
cada sociedade, acrescendo-se às descobertas científico-tecnológicas; e
espacial, melhorando a distribuição dos assentamentos humanos.
O atual modelo de Desenvolvimento Sustentável (DS), festejado
pelos setores produtivos deve ser questionável e posto à prova
constantemente. Segundo Enlazador (2008) fazem-se necessárias a
criação e implementação de novos conceitos, amplos e críticos, substi-
tuindo gradativamente o desgastado DS. O conceito de Sustentabi-
lidade, ou melhor, a Cultura da Sustentabilidade, ao contrário do DS,
não deveria desconhecer as raízes da violência, injustiça social e fome,
as disparidades econômicas entre ricos e pobres, os perversos efeitos da
28
poluição do ar, terra, rios e mares, da exploração dos recursos naturais
em detrimento das comunidades locais e da dilapidação da
biodiversidade.
Fugindo de uma visão rasa do Consumo Sustentável, almeja-se
que o mesmo tenha a ousadia de questionar o Modelo de Produção
Social Capitalista e seus tentáculos desenvolvimentistas, abastecidos pela
Práxis Insustentável das Transnacionais Involutivas Não Resgatáveis
(TINRs),2 molas propulsoras do excludente e antiecológico modelo
econômico-fundamentalista, o malfadado Neoliberalismo, histórica-
mente um dos sistemas de organização socioeconômica mais
antipacífico que a humanidade já conheceu.
CONSUMO SUSTENTÁVEL
Desde 1992, a ONG – Instituto de Estudos da Religião (ISER),
conjuntamente com o Ministério do Meio Ambiente Brasil,
desenvolvem uma pesquisa nacional de opinião sobre O que o Brasileiro
pensa do meio ambiente. Na terceira etapa da pesquisa no ano de 2001, a
pesquisa inova, relacionando em um painel nacional, o tema do meio
ambiente com o consumo, sondando o comportamento da população
no contexto do que se pode chamar, aproximativamente, de consumo
consciente ou consumo sustentável. Os resultados da pesquisa indicam
que, gradativamente, a população brasileira vem incorporando práticas
de consumo que levam em consideração outros atributos que não
exclusivamente preço e qualidade dos produtos. A pesquisa mostra
claramente que o ―marketing verde‖ ou ecológico é eficiente,
aumentando a atratividade de produtos certificados como orgânicos,
não transgênicos, livres de testes em animais, feitos com material
reciclado, entre outros, o que sugere a existência de um consumo
sustentável por uma parcela da população brasileira.
O conceito de consumo sustentável tem sido interpretado no
Brasil apenas como redução de impacto ao meio ambiente, quando na
verdade envolve um compromisso mais amplo com as gerações futuras
2 O autor Thomas Enlazador, cunhou o termo TINRs, como demonstrativo das
extremas brutalidades socioambientais, culturais e econômicas cometidas por algumas
Corporações em detrimento da população em torno, dos recursos naturais e de toda a
Biosfera. Leva-se em conta o histórico de determinadas Corporações e o insustentável
percurso traçado de dilapidação dos recursos naturais e sociais. Enquadram-se na zona
investigativa de empresas não resgatáveis, ou seja, que já não conseguem mais reverter o
estrago realizado pelas suas atividades produtivas.
29
e com a redução da desigualdade social a partir de uma política de
justiça ambiental, social e redistributiva. Uma das definições adotadas
pela sociedade civil e incorporada nesse artigo sobre o consumo
sustentável é:
[...] a capacidade de cada pessoa ou instituição pública ou
privada, escolher e/ou, produzir serviços e produtos que
contribuam, de forma ética e de fato, para a melhoria de vida de
cada um, da sociedade, e do ambiente (Instituto Kairós, 2005).
Isto quer dizer que o consumo sustentável implicaria em um
modo de produção que busca minimizar desequilíbrios socioambientais
em todo o ciclo de vida de um produto. Na contramão de uma
tendência da sociedade de consumo, que é a de valorizar a
obsolescência programada, o consumo sustentável investe na reciclagem
e na reutilização dos resíduos da produção, no uso de embalagens e
produtos biodegradáveis, na economia solidária e no emprego de
tecnologias limpas que utilizam de forma inteligente os recursos
renováveis.
O Consumo é um ato de escolha e a opção por um produto que
no seu ciclo de produção e comercialização, tenha sido realizado de
forma sustentável, tem reflexos ambientais e sociais, sendo, através dele,
definidas as alternativas para um futuro sustentável. O cidadão-
consumidor é um ator político, podendo ser um protagonista que
intervém conscientemente na realidade social e ambiental que o cerca.
Não há decisões sobre compras que não implique em uma decisão
moral e não há, de fato, nenhuma comercialização que não tenha em
última instância uma natureza moral.
Tornar o consumidor protagonista e elemento articulador de
mudanças é basicamente um desafio de conscientização. É preciso
mostrar que a capacidade do consumidor em mudar seus hábitos de
consumo, tem reflexo em todos os outros segmentos da economia.
Se nos países desenvolvidos economicamente, o consumidor já é
um ator social propositor e articulador de mudanças3, no Brasil este
trabalho está principiando. Existem poucas experiências com resultados
científicos, que elucidem criticamente, o papel do consumo e sua
relação no campo predominantemente ambiental. Notamos que a

3 Ver a Rede Consumers International – Rede de Consumidores Internacional que


organiza consumidores e produtores, aliados a boas práticas de consumo
www.consumersinternational.org
30
ausência de informações qualificadas sobre a procedência dos produtos
e o compromisso ambiental das empresas, as contrastantes
terminologias sobre o consumo (consciente, sustentável, solidário, verde
etc.) e o crescente apelo mercado-ecológico das empresas, traduzidos
em grandiosas campanhas de marketing sedutoras e persuasivas de
grandes transnacionais como Monsanto, Bunge, Aracruz Celulose etc.,
acabam por confundir o consumidor, impedindo-o muitas vezes, de
realizar uma escolha verdadeiramente sustentável.
Portilho (2005), ao discutir Sustentabilidade Ambiental,
Consumo e Cidadania, explicita
[...] que os consumidores não são atores sociais privilegiados na
mudança da sociedade em direção à sustentabilidade. Também
não são vítimas passivas e manipuladas das forças dominantes
de produção. Mas, se considerarmos que a mudança social não
se dá apenas de forma radical e grandiosa, poderemos considerar
o campo do consumo como uma necessária extensão das novas
práticas políticas que surgem no centro da modernidade
contemporânea (Portilho, 2005, p.169).
A não-adesão a um consumo massificado e a busca por organizar
formas alternativas de produção e consumo e anticonsumo (boicote,
cooperativas de compras, comércio justo, etc.) podem ser consideradas
respostas efetivas às injustiças sociais e ambientais?
CONSUMO E ECONOMIA SOLIDÁRIA
A Economia Solidária é uma forma de produção, consumo e
distribuição de riqueza (economia) centrada na valorização do ser
humano e não do capital - de base associativista e cooperativista,
voltada para a produção, consumo e comercialização de bens e serviços,
de modo autogerido, tendo como finalidade a reprodução ampliada da
vida. Possui uma finalidade multidimensional, com dimensão social,
econômica, política, ecológica e cultural. As experiências de Economia
Solidária se projetam no espaço público no qual estão inseridas, tendo
como perspectiva a construção de um ambiente socialmente justo e
sustentável. No Brasil, o crescimento da Economia Solidária enquanto
movimento4 – ultrapassando a dimensão de iniciativas isoladas e
fragmentadas no que diz respeito a sua inserção nas cadeias produtivas

4No país existe uma Rede que congrega centenas de iniciativas ligadas à Economia
Solidária (Fórum Brasileiro de Economia Solidária) www.fbes.org.br
31
e nas articulações do seu entorno, cada vez mais se orienta rumo a uma
ação conjunta nacional, configurando redes locais e uma plataforma
comum.
O movimento da Economia Solidária deu um salto considerável
a partir das várias edições do Fórum Social Mundial5, espaço
privilegiado, no qual diferentes atores, entidades, iniciativas e
empreendimentos puderam construir uma integração que desembocou
na criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) e
no Fórum Brasileiro de Economia Solidária com representação em
todos os estados, inclusive Pernambuco. O Mercado de Trocas
Solidárias (MTS) com o uso de moeda social surgiu no país há poucos
anos, e hoje existem diversas iniciativas trabalhando e aplicando a
integração entre consumo sustentável e práticas ecopedagógicas
utilizando moedas sociais e integrando pequenos empreendimentos
sustentáveis.
SUSTENTABILIDADE E CONSUMO
Para alguns pensadores, como Capra (2006), o capitalismo global
vem se tornando insustentável e precisa ser reformulado desde a sua
base. Essa insustentabilidade teria por base as contradições entre
crescimento econômico e degradação ambiental. Consumo e
sustentabilidade buscam, juntos, respostas em referências teóricas de
autores que apontam alternativas à globalização hegemônica, que tem
sua mola propulsora no comércio global como um dos responsáveis
pelos desastres ecológicos atuais.
A fusão entre Sustentabilidade Ambiental, Consumo e Cidadania,
é, assim, entendida por Portilho quando:
[...] os consumidores não são atores sociais privilegiados na
mudança da sociedade em direção à sustentabilidade. Também
não são vítimas passivas e manipuladas das forças dominantes
de produção. Mas, se considerarmos que a mudança social não
se dá apenas de forma radical e grandiosa, poderemos considerar
o campo do consumo como uma necessária extensão das novas
práticas políticas que surgem no centro da modernidade
contemporânea. (Portilho, 2005, p. 169).

5 Maior encontro de movimentos organizados da Sociedade Civil em escala planetária


que reúne milhares de pessoas anualmente para discutir uma nova proposta de
globalização justa, socialmente solidária e ambientalmente justa.
32
Com relação ao modelo consumista baseado na exploração
econômica e ambiental, Gadotti enfatiza que:
[...] os paradigmas clássicos, fundados numa visão industrialista
predatória, antropocêntrica e desenvolvimentista, estão se
esgotando, não dando conta de explicar o momento presente e
de responder às necessidades futuras. Necessitamos de um outro
paradigma, fundado numa visão sustentável do planeta Terra. O
globalismo é essencialmente insustentável. Ele atende primeiro
às necessidades do capital e depois às necessidades humanas.
(Gadotti, 2005, p. 2).
A MUDANÇA DE ATITUDE
Existe uma visão puramente capitalista do desenvolvimento
sustentável e do meio ambiente que, por ser antiecológica, deve ser
considerada como uma "armadilha" (Boff, 2003). Mudar o mundo é
urgente, difícil e necessário (Freire, 1996). Essa mudança, na construção
desse outro mundo possível – lema do Fórum Social Mundial - passa
por uma profunda mudança de consciência de cada indivíduo. Para
transformar é preciso entender e ler o mundo, politicamente, ao lado de
conhecê-lo cientificamente, culturalmente e, sobretudo, intervir nele,
organizadamente alcançando, assim, a cidadania planetária. A
construção da Cidadania Planetária é alicerçada em valores como a
Cultura da Paz, Sustentabilidade e Solidariedade e hoje é um conceito
que se contrapõe propositivamente à Globalização, com a chamada
Planetarização6.
A Terra observada como um organismo vivo e em contínua
evolução é a casa da humanidade e, é a partir dela, que se promove a
educação, reeducando o olhar para a práxis da Cultura da
Sustentabilidade. A preservação e, principalmente, a recuperação do
meio ambiente, depende da consciência ambiental e, a formação dessa
consciência, depende prioritariamente de uma educação participativa,
ecologizada e socialmente solidária.
Como se dá a formação de cidadãs e cidadãos aptos a praticar o
consumo sustentável? Isso é possível em grande escala? A
Responsabilidade Socioambiental abarca e questiona o processo social
de produção e consumo? De que forma podemos caminhar para um

6 Ver o manifesto da planetarização seminário binacional luso-brasileiro 2005


promovido pelo Instituto Paulo Freire.
33
mundo sustentável? Como a sociedade tem se confrontado com o tema
consumo e o iminente risco de colapso ambiental? O que as pessoas
têm feito para minimizar o impacto individual no campo do consumo?
CONCLUSÃO REMETENDO À PRÁXIS DO CONSUMO
SUSTENTÁVEL
Vivenciamos um momento histórico, peculiar e crucial para a
manutenção das presentes e futuras gerações. Neste contexto vem à
tona a expansão do pensamento solidário e sistêmico e o nascimento de
uma nova modalidade social que requer estudo e aprofundamento:
Cidadania Planetária. É hora de repensar condutas dentro de um novo
paradigma. O paradigma do consumo ilimitado pode ser substituído por
outra práxis, onde a Terra – Gaia é vista como uma única comunidade,
onde todos pertencem a um mesmo projeto global e, toda e qualquer
ação antrópica, repercutirá nela. Os velhos paradigmas clássicos, com
tonalidades desenvolvimentistas e economicistas, esgotaram suas
possibilidades e hoje são co-autores do caos socioambiental apregoado
ao planeta.
A partir da "impregnação de sentido" do cotidiano individual e já
apontando para a práxis ecopedagógica como estratégica para se chegar
a uma conduta ambientalmente sustentável entendemos neste artigo o
consumo sustentável, alicerçado nos princípios da economia solidária,
como uma alternativa eficaz, pró-ativa e tangível em amplos setores da
sociedade, para materialização dos novos conceitos em jogo, como a
atitude individual perante a crise ambiental global.
A própria natureza do seu ―quefazer‖, a educação para a
formação de um Cidadão Planetário, supõe o reconhecimento de uma
comunidade global, de uma sociedade civil planetária. Trata-se de uma
realfabetização ecológica, que exige a mudança do olhar e do agir. A
implementação de tal sociedade deve ser trabalhada a partir da vida
cotidiana reestruturada, onde o interesse individual não pode extrapolar
o bem estar socioambiental comunitário. O ato de consumir, presente
quase que diariamente em nossas vidas, representa uma ação efetiva
para essa reestruturação.
O viés motivador ecopedagógico, nesse caso, seria o consumo
sustentável: uma alternativa eficaz, pró-ativa e tangível para transformar
a relação entre produção (atualmente insustentável) e consumo (na
maioria das vezes, massificado).
34
Interpretando o artigo terceiro da Carta da Ecopedagogia, notamos
a relação intrínseca entre consumo e sustentabilidade, já apontando para
a requalificação do processo educativo para se alcançar essa integração.
A sustentabilidade econômica e a preservação do meio ambiente
dependem também de uma consciência ecológica, e esta da
educação. A sustentabilidade deve ser um princípio
interdisciplinar reorientador da educação, do planejamento
escolar, dos sistemas de ensino e dos projetos político-
pedagógicos das escolas. Os objetivos e conteúdos curriculares
devem ser significativos para o(a) educando(a) e também para a
saúde do planeta. (Carta da Ecopedagogia, 1999, Art. 3°).
Assume-se então, a importância de reforçar o papel do
consumidor como protagonista e elemento articulador de mudanças.
Esse papel é um desafio de conscientização e sensibilização GLOCAL
(global e local). É preciso entender que a capacidade do consumidor em
mudar seus hábitos de consumo tem reflexos em todos os outros
segmentos da economia e da sociedade. Essa mudança poderá vir,
gradativamente, com um processo de requalificação do indivíduo para
com o seu papel de protagonista político cidadão. Neste contexto, a
Ecopedagogia amplia esse senso comum, trazendo à tona a figura do
Cidadão Planetário, comprometido e engajado com mudanças
estruturais que apontam para a construção de uma nova e paradigmática
Cultura da Sustentabilidade7.
A necessidade de uma ação contínua e participativa, buscando
soluções imediatas e em longo prazo, já são conhecidas e é chegada,
finalmente, a hora da implementação. A parceria entre sociedade civil,
poder público e setores privados (com determinado termômetro ético dessas
empresas) é a tônica principal para o enriquecimento e materialização dos
debates. Todos podem e devem se envolver com a temática
Socioambiental (lembrando que essa palavra composta se escreve junto
e sem hífen para jamais dissociar o Social do Ambiental).

7 O autor publicou em 2007 o Almanaque de Práticas Sustentáveis, e disponibilizou em


formato digital para dezenas de sítios ambientalistas na net. O Almanaque conta com
dicas que podem e devem ser incorporadas, modificadas, ampliadas, difundidas e
copiadas. Elas fazem parte de uma linha de ação propositiva que repercutirá na
construção de uma Cultura de Paz Sustentável. Link para Download -
www.amane.org.br/download/praticas_sustentaveis.pdf

35
REFERÊNCIAS

BOFF, L. Ethos mundial. Um consenso mínimo entre os humanos. Brasília:


Letra viva, 2003.
CARTA DA ECOPEDAGOGIA, Primeiro Encontro Internacional. São
Paulo: Instituto Paulo Freire, UNESCO. Brasil, 1999.
CAPRA, F. Alfabetização Ecológica. São Paulo, Cultrix, 2006.
DIAS, Genebaldo Freire. Pegada Ecológica e Sustentabilidade Humana. São
Paulo: Editora Paz, 2002.
ENLAZADOR, Thomas. Almanaque para práticas sustentáveis. Recife:
Unimed, 2007.
ENLAZADOR, Thomas. Sociedade de consumo solidariedade e paz – um
outro mundo possível. In: PELIZZOLI, Marcelo (Org.) Cultura de Paz –
educação do novo tempo. Brasil, 2008, p 185-204.
FREIRE, P. A pedagogia da autonomia: saberes necessários para a prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GADOTTI, Moacir. A Ecopedagogia como pedagogia apropriada ao processo da
Carta da Terra. Paper. Instituto Paulo Freire, 2005.
GADOTTI, Moacir. Pedagogia da práxis. São Paulo, Cortez, 1995.
INSTITUTO KAIRÓS, 2005. São Paulo. www.institutokairos.net
LEI Nº 9.795/99. Política Nacional de Educação Ambiental (BRASIL 99) .
PORTILHO, F. Sustentabilidade ambiental, consumo e cidadania. São Paulo: Ed.
Cortez, 2005.
RELATÓRIO BRUNDTLAN. Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente.
ONU, 1987.
SACHS, I. Estratégias de transição para o século XXI. In: BURSZTYN, M
(Org.) Para pensar o desenvolvimen,to sustentável. São Paulo: Brasiliense, 1993.

36
MÉTODOS DE AÇÃO DO MOVIMENTO
AMBIENTALISTA NO EXERCÍCIO DA
CIDADANIA PLANETÁRIA: O CASO DA ASPAN
Andrea Quirino Steiner1, Alexandre José Pereira de Araújo2,
Maria Adélia Borstelmann de Oliveira3

A Associação Pernambucana de Defesa da Natureza – ASPAN –


é uma entidade ambientalista, constituída por cidadãos e cidadãs,
autônoma, sem vinculação (dependência) político-partidária-religiosa ou
de grupos econômicos, com trabalho eminentemente voluntário e
multidisciplinar, registrada como pessoa jurídica, sem fins lucrativos e
isenta de imposto de renda, criada em 05 de junho de 1979, sendo a
mais antiga entidade ambientalista do Nordeste e uma das dez mais
antigas do Brasil (vide sítio na internet, www.aspan.org.br).
A ASPAN atua promovendo a defesa intransigente da natureza,
dos recursos naturais e da qualidade de vida das populações de um
modo geral, em particular das mais pobres e desprotegidas, visando o
despertar da consciência ambiental e o exercício pleno da cidadania para
influir nas políticas públicas que afetem, direta ou indiretamente, a
saúde, a segurança e o bem-estar social. Nesta perspectiva a ASPAN
trabalha, paralelamente, em sete grandes linhas de atuação: 1.
Fiscalização, denúncias e acompanhamento de grandes projetos e
problemas ambientais; 2. Campanhas e manifestações públicas; 3.
Sensibilização e educação ambiental; 4. Ações jurídicas e
aperfeiçoamento da legislação ambiental; 5. Documentação e
informação ambiental; 6. Articulação do movimento ambientalista; 7.
Desenvolvimento de projetos ambientais e pesquisas técnico-científicas.
UMA HISTÓRIA DE APRENDIZAGEM DE CIDADANIA
Em seus 27 anos de atividades ininterruptas, a ASPAN
defrontou-se com problemas de variadíssimas origens, gravidades,
formas, interesses, motivações e grandezas. Enfrentou, por exemplo, a
retirada de árvores de vias públicas e a destruição de centenas de

1 Doutoranda em Ciência Política pela UFPE e voluntária da ASPAN.


2 Coordenador Executivo da ASPAN.
3 Professora Associada I da UFRPE e Primeira Secretária da ASPAN.

37
hectares de Mata Atlântica e manguezais, a exemplo da proposta de
implantação de loteamento que destruiria os 190 ha da mata do
Engenho Uchôa, localizada no Recife (1979), o assentamento de sem-
terra em área de mata atlântica do Engenho Pitanga (Região
Metropolitana do Recife), quando conseguiu a preservação de mais de
1000 ha da área que seria ocupada (1989). Atua ainda, e o faz desde
1979, contra o corte e aterro de manguezais no município do Cabo,
para a instalação do Complexo Industrial-Portuário de Suape e, lutou
em 1990, contra a instalação do hotel do grupo Caesar Park na mesma
área. A luta pela preservação das áreas de manguezais predestinadas ao
aterro, quando da proposta de instalação do projeto chamado
―Memorial Arcoverde‖, entre as cidades de Recife e Olinda em 1993,
também merece registro. A ASPAN defrontou-se com a proposta de
deposição de rejeitos radioativos no Estado no ano de 1987, com o
projeto de ―urbanização‖ da orla marítima do Recife, denominado
―Cura Beira Mar‖ em 1989, e com a presença e expulsão, por via
judicial, de um submarino nuclear dos EUA em 1990 do mar territorial
brasileiro; com o despejo de resíduos industriais nos rios e a proposta
de instalação de um complexo de incineradores de lixo tóxico e
perigoso vindo dos países do "primeiro mundo" em 1991.
Além disso, a ASPAN recorreu à Procuradoria Federal para
acionar os responsáveis pela introdução ilegal do peixe Bagre-africano
no Brasil em 1993 e para conseguir a transferência do Peixe-boi "Chica"
da praça pública do Derby para o hoje Centro Mamíferos Aquáticos do
IBAMA em 1992. Fiel à defesa da natureza questionou a implantação da
refinaria de petróleo em 1987 no Complexo SUAPE e a implantação do
megaprojeto turístico do governo do Estado, Costa Dourada em 1990.
Nesse mesmo ano denunciou, em diversos momentos, a degradação do
Arquipélago de Fernando de Noronha e o crônico problema de
esgotamento sanitário da cidade ‗planejada‘ de Nova Petrolândia, dentre
outros inúmeros problemas.
Ao longo de 28 anos de existência, como instrumento para o
enfrentamento dessas questões, a ASPAN produziu dezenas de
documentos técnicos, pareceres e avaliações. Com base na Lei Federal
da Ação Civil Pública foi autora de mais de 20 denúncias de problemas
ambientais aos Ministérios Públicos e ingressou com 11 ações diretas na
Justiça. Requereu várias Audiências Públicas sobre projetos

38
impactantes, promoveu e/ou participou de centenas de debates e fez
mais de 1000 pronunciamentos pela imprensa.
A ASPAN, dentro de seus objetivos estatutários, promoveu
diversos cursos, seminários, oficinas, encontros e eventos públicos,
dentre os quais se destacaram: ―II Encontro Nordestino de Ecologia
(1981); ―Ciclo de Debates sobre as Propostas para a Constituinte
Federal‖ (1985); ―II Encontro de Entidades Ambientalistas do
Nordeste‖ (1986); ―I Curso de Ecologia e Jornalismo‖ (1989),
juntamente com o Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco e apoio do
Centro Luiz Freire; ―VII Encontro Nacional do Fórum Brasileiro
Preparatório para a ECO92‖ (1991); ―Encontro Nordestino
Preparatório para a CNUMAD - ECO92‖ (1991), com recursos do
DED; ―Debates Públicos sobre a proposta de Lei de Uso e Ocupação
do Solo da Cidade do Recife‖ (1995), ―Reunião Técnica sobre Erosão
Marinha em Pernambuco‖ (1996); ―X Encontro Nordestino de
Entidades Ecológicas - X ENECOLOGIA‖ (1997), com financiamento
da Fundação Francisco e ASW; ―Seminário sobre a Seca e o Projeto de
Transposição das Águas do Rio São Francisco‖ (1998); ―Fórum da
Sociedade Civil Paralelo a 3ª Conferência das Partes da Convenção de
Combate à Desertificação - COP3‖ (1999); ―Oficina de Pesquisa em
Ciência e Tecnologia para a Sustentabilidade do Semi-Árido do
Nordeste do Brasil‖, (1999) com o FBOMS e ASA/Brasil; ―Seminário
sobre o Controle da Poluição Industrial‖ (2000); ―Encontro dos
Núcleos de Desertificação do Semi-Árido Brasileiro‖ (2003) em parceria
com a RIOD/ALC, Rede Internacional de ONGs sobre Desertificação
para América Latina e Caribe; ―Curso de Extensão sobre Processos de
Desertificação no Brasil‖ (2004), em parceria UFRPE e RIOD/Brasil;
1ª Capacitação de Lideranças do Movimento dos Catadores de Materiais
Recicláveis no Estado de Pernambuco‖ (2005); ―Oficina sobre
Desertificação e Pobreza‖ (2005) durante o 5º Fórum Social Mundial; I
e II Curso de Atualização em Direito Ambiental, em parceria com a
OAB/PE e o IIEB – Instituto Internacional de Educação para o Brasil,
no primeiro ano (2001), e no segundo ano (2006), em parceria com os
Ministérios Públicos Estadual e Federal, e em 2007 o Seminário sobre
Resíduos elétrico-eletrônico, com o Porto Digital. Por ocasião da
Semana do Meio Ambiente, que sempre acontece em junho, a ASPAN
promoveu, em parceria com o CREA/PE e a Fundação Gilberto Freire,
uma extensa programação com seminários, exposições e oficinas, nos
39
anos de 2004 e 2006, além de inúmeras reuniões, encontros,
capacitações, oficinas, debates e atividades afins, em distintas temáticas
na área ambiental.
A ASPAN se fez representar em quase todos os encontros
nordestinos e nacionais de entidades ambientalistas, além dos
Encontros Nacionais do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos
Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento – FBOMS, tendo,
inclusive, integrado a Delegação Brasileira que participou da conferência
"As Raízes do Futuro" (Paris, dezembro/91) e Cúpula da Terra
(Juanesburgo/02). Integrou, como representante das Entidades do
Nordeste, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) de 1986 a
1990 e representou as entidades do Recife (1993/1995) e de
Pernambuco (1994/1996) nos respectivos Conselhos de Meio
Ambiente. Participou do Conselho Estadual de Saúde (1995/1997);
promoveu mais de 40 manifestações públicas e produziu diversos
folhetos e histórias em quadrinhos buscando sensibilizar a população
para a questão ambiental. Desde 2004 até o presente momento, no
segundo mandato agora como membro titular, integra o Conselho
Nacional de Biodiversidade – CONABIO, representando a Secretaria
das Entidades Ambientalistas do Nordeste (SEAN) e o FBOMS. Além
disso, foi a 1ª Secretária das Entidades Ambientalistas do Nordeste -
SEAN (1979) e coordenou por quase dois anos o Jornal Ambientalista
do Nordeste (1986).
A ASPAN participou ainda de diversas conferências nacionais e
internacionais. Nos últimos 10 anos, tem participado dos principais
momentos nacionais e internacionais das temáticas de resíduos sólidos,
combate à desertificação, mudanças climáticas e diversidade biológica,
como as conferências oficiais da ONU (COPs) e as articulações
paralelas da sociedade civil. Está credenciada na ONU para atuar junto
aos secretariados das principais convenções na área de meio ambiente, e
as suas respectivas conferências oficiais, tendo assento no Conselho
Econômico e Social (ECOSOC) e na Comissão de Desenvolvimento
Sustentável (CDS).
No período de 1992 a 2005, a ASPAN propôs e executou
projetos tais como: boletim informativo para a divulgação de notícias
sobre meio ambiente chamado ―Desenvolvimento e Meio‖; programa
de rádio realizado abordando a problemática ambiental nas
comunidades da Região Metropolitana do Recife (RMR); treinamento
40
de adolescentes visando à formação de uma consciência ecológica e do
exercício da cidadania, pesquisa sobre águas subterrâneas na RMR e
projeto de articulação de segmentos sociais, governamentais e não-
governamentais, visando maior integração dos diversos segmentos
sociais entre si e com a questão ambiental.
Desenvolve nos últimos cinco anos projetos de reciclagem e de
apoio à articulação e organização do movimento nacional dos catadores,
através de parceria com a organização não-governamental canadense
ACTION RE-BUTS (La Coalition Montréalaise pour une Gestion Écologique
et Économique des Déchets) com o apoio financeiro da Agência Canadense
de Desenvolvimento Internacional ACID/CIDA. Através desta
coalizão realiza a Feira dos 3Rs (Reduzir, Reutilizar e Reciclar), uma
atividade aberta ao público, com ocorrência conjunta de países como o
Canadá, a Bélgica, Cuba e Chile, em comemoração à Semana
Internacional da Redução com o objetivo de difundir atividades
relacionadas à redução, reciclagem, reaproveitamento de resíduos
sólidos e compostagem, bem como de despertar a consciência da
população quanto à adequada gestão dos resíduos. Nesta mesma linha
temática, mantém também parceria com a Fundação AVINA4.
Uma avaliação rápida do trabalho da ASPAN nos permite
afirmar que os seus objetivos têm sido alcançados plenamente.
Contudo, temos consciência de que "na luta ambiental toda vitória é
provisória, mas toda derrota é definitiva". Assim, já vivenciamos
algumas ―derrotas‖ e vitórias parciais que nos servem de lição e são,
ainda hoje, utilizadas para exemplificar as perdas da sociedade quando
não são observadas as variáveis ambientais.
Apesar da profunda crise ambiental, fruto também da
desagregação sócio-econômica e falta de controle governamental, a
ASPAN acredita na força da união e no trabalho articulado,
participando de diversos coletivos de entidades, tais como: o Fórum
Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e
Desenvolvimento – FBOMS, desde 1990, participando de sua
Coordenação Nacional nos últimos cinco anos; a SEAN; a Rede
internacional de ONGs sobre Desertificação – RIOD desde 1999
(tendo sido até 2007 o Ponto Focal Sub-Regional para o Cone Sul, que

4 Organização Suíça fundada para promover o desenvolvimento sustentável por meio de


alianças entre a empresa privada bem-sucedida e responsável e as organizações
filantrópicas que fomentam a liderança e a criatividade.
41
envolve Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai); a Articulação no
Semi-Árido Brasileiro – ASA como fundadora em 1999, tendo inclusive
integrado sua coordenação executiva e coordenado o seu Grupo de
Trabalho de Combate à Desertificação (GTCD); o Fórum de Entidades
Ambientalistas de Pernambuco (FEAPE), como fundadora e integrante
de sua Coordenação e a Djonga 21 (rede africana de combate à
desertificação), entre outras.
FORMAS DE ATUAÇÃO INTERNACIONAL, NO ÂMBITO DA
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU)
Existem vários métodos de ação que os Movimentos
Ambientalistas e outras Organizações Não-governamentais (ONGs)
podem utilizar para influenciar a política ambiental internacional, tanto
no local das reuniões da ONU quanto nos países de origem. Para
participar oficialmente nas atividades da Organização das Nações
Unidas (ONU), porém, é necessário ter status formal junto a um de seus
organismos ou permissão específica para tomar parte de uma
determinada reunião. No caso da ECOSOC, o chamado ―status
consultivo‖ é dado à ONGs recomendadas pelo Comitê de ONGs
deste conselho e pode ser Geral (para grandes ONGs, com agendas
extensas, que cobrem a maior parte das temáticas trabalhadas pela
ECOSOC ou Especial (para ONGs menores, com competências
especiais em apenas algumas das temáticas). ONGs com foco mais
reduzido ou de caráter estritamente técnico, que não se enquadram
nessas duas categorias, recebem o status denominado Cadastro (Roster).
Neste último caso, também podem ser incluídas ONGs com status
formal junto a outros organismos da ONU (UNDESA, 1997).
Segundo esse documento, quase meio século depois da adoção
do Artigo 71, o número de ONGs cadastradas estava quase 20 vezes
maior, em grande parte como resultado da Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD). A
CNUMAD, ou Eco-92, ocorrida no Rio de Janeiro em 1992, foi um
marco no que diz respeito a este tipo de participação na área de meio
ambiente. De fato, foi uma das maiores conferências já realizadas
dentro do âmbito da ONU, tanto no próprio tamanho (contou com a
presença de representantes de 172 países, 108 no nível de chefe de
estado) quanto na abrangência dos temas a serem tratados. Nesta
ocasião, 1.378 ONGs receberam permissão para participar da
42
conferência, das quais, posteriormente, 539 organizações sem status na
ECOSOC passaram a fazer parte do Cadastro da Comissão de
Desenvolvimento Sustentável (CDS). Essa comissão foi criada em
dezembro de 1992 para garantir que as deliberações da Eco-92 fossem
realizadas, além de monitorar e relatar a implementação dos acordos
nos níveis local, nacional, regional e internacional. O objetivo do
cadastro da CDS era permitir a participação destas ONGs nas
atividades da comissão sem que precisassem obter status consultivo
junto a ECOSOC5; os membros desse cadastro continuam os mesmos
desde sua criação. A CDS atua como uma comissão funcional da
ECOSOC e nasceu com o objetivo de monitorar o processo de
implementação dos acordos firmados na Eco-92. Possui 53 países-
membro que cumprem mandatos de três anos, reunindo-se anualmente.
No que tange às ONGs brasileiras, o banco de dados do
ECOSOC6 mostra que apenas nove possuem status consultivo na
mesma7, e apenas uma está cadastrada na CDS8. Assim, a atuação por
este caminho é impossível para a maioria, que busca outras formas de
ação. O próprio Serviço da ONU de Ligação das ONGs (UN Non-
Governmental Liaison Service – NGLS), em um guia para a sociedade civil
(NGLS, 2003), dá vários exemplos de atuação fora das reuniões oficiais,
conforme veremos adiante.
ATUAÇÃO NO LOCAL DAS REUNIÕES
No local de determinada conferência da ONU, a delegação de
uma ONG pode influenciar os debates participando de forma direta ou
indireta. A participação direta consiste em estar presente na reunião em
si, podendo ouvir os debates, emitir pronunciamentos quando
permitido e fazer lobby nos corredores junto a outros participantes,

5 Posteriormente, em 1996, uma resolução permitiu a obtenção do Cadastro da


ECOSOC por meio do preenchimento de um formulário simples. Essa decisão foi
revogada em 2001. Hoje o processo é lento e burocrático.
6 Disponível em http://www.un.org/esa/coordination/ngo/
7 A saber: ASPAN, Bem Estar Familiar no Brasil (BEMFAM), Fundação Museu do

Homem Americano (FUNDHAM), Instituto Brasileiro de Análises Sociais e


Econômicas (IBASE), Instituto de Ação Cultural, Instituto Qualivida, Legião da Boa
Vontade (LBV), Rede de Desenvolvimento Humano (REDEH) e Rede de Informações
para o Terceiro Setor (RITS).
8 ASPAN.

43
governamentais ou não, com o objetivo de contribuir com as resoluções
e encaminhamentos.
Para as ONGs que chegaram até o local da conferência, mas não
conseguiram se cadastrar para participar da reunião em si, a atuação é
semelhante à participação indireta citada acima. Neste tipo de atuação,
os participantes oficiais podem ser abordados fora dos espaços restritos
e/ou convidados para reuniões em fóruns paralelos, por exemplo, que
são conferências comumente organizadas por ONGs, para influenciar
as reuniões oficiais.
NO PAÍS DE ORIGEM
Como a maioria das ONGs sequer consegue chegar ao local das
reuniões, ou por falta de recursos financeiros, ou por falta de pessoal
fluente em outra(s) língua(s), as ONGs vêm desenvolvendo maneiras
diferentes de influenciar as políticas internacionais, muitas vezes tão
eficientes quanto à participação nas reuniões. O guia da NGLS (2003)
recomenda, inclusive, várias alternativas que podem ser desenvolvidas
no próprio país de origem, tais como: contato com outra(s) ONG(s)
que irá(ão) participar; contato com delegações governamentais;
campanhas educativas locais e nacionais para sensibilizar a população
quanto às questões em pauta; contato com parlamentares para fomentar
a discussão sobre as políticas governamentais; reuniões preparatórias
locais, nacionais, etc., com a preparação de documentos para enviar à
conferência por meio de outros participantes; monitoramento dos
resultados da conferência (sites, mídia, relatórios, contato com
delegações governamentais ou não-governamentais, etc.); monito-
ramento local acerca da implementação das decisões tomadas.
De fato, apesar das dificuldades mais óbvias como a falta de
recursos (materiais, financeiros, de infraestrutura, etc.), as barreiras
linguísticas e a dificuldade de se cadastrar em instâncias da ONU como
a ECOSOC, os casos que veremos a seguir mostram que, ao menos no
caso das ONGs brasileiras, a influência tem se dado independentemente
destes fatores. Edwards (1993), por exemplo, cita entre as verdadeiras
barreiras para o sucesso da atuação das ONGs questões como a falta de
uma estratégia clara, falhas na construção de alianças fortes e carência
de desenvolvimento de alternativas plausíveis às ortodoxias atuais.
Todos esses fatores não necessariamente dependentes de recursos.
Outra barreira substancial que poderia ser incluída nesta lista seria a
44
falta de conhecimento sobre o funcionamento da própria ONU e seus
canais de participação. Em seguida, veremos que estas fraquezas não
estão presentes entre as ONGs ambientalistas brasileiras de influência
no cenário político ambiental internacional.
O CASO DA CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA
A atuação das ONGs brasileiras no contexto das políticas
ambientais internacionais, porém, nem sempre tem resultados
favoráveis. Um exemplo distinto é o da Convenção sobre Diversidade
Biológica (CDB) e seu respectivo Protocolo de Biossegurança, ou
Protocolo de Cartagena. Sua última conferência (a COP 8, realizada em
Curitiba/PR, em 2006) foi marcada pelo forte lobby das ONGs e
movimentos sociais, reunidos em um grande fórum paralelo, contra os
transgênicos. Entretanto, apesar da pressão destes grupos e da atuação
semelhante àquela realizada em outras convenções, seus objetivos não
foram totalmente alcançados. As empresas Monsanto, Syngenta Seeds e
Dupont, entre outras, queriam acabar com a moratória (suspensão
temporária), que desautoriza as experiências e a produção de sementes
Terminator e abrir o caminho para a exploração de árvores
geneticamente modificadas. Em duas semanas, aconteceram cinco
manifestações em frente ao centro de convenções Expotrade, sede das
reuniões. A mobilização foi um precedente muito importante pra a
intervenção da luta popular dentro das Nações Unidas. A mobilização é
algo inusitado. O mundo real, ou seja, os camponeses e suas lutas foram
direto para o plenário da COP 8. Os delegados não puderam ficar só
falando de questões científicas que interessam somente às grandes
empresas. A diferença das outras COPs foi que naquela houve a
presença dos povos do mundo real que seriam os mais afetados no caso
dessas tecnologias terem sido aprovadas.
Um dos fatores influentes do sucesso parcial de lutas como esta
no âmbito da CDB é o caráter fortemente acadêmico desta convenção,
que tem a tendência de adiar as decisões por longos prazos, à espera de
evidências científicas. Ademais, os recursos para a CDB são muitas
vezes direcionados prioritariamente para a pesquisa, deixando de lado as
ações de implementação propriamente ditas. Assim, apesar das ONGs
serem bem vindas nas COPs, sua participação não consta do texto da
convenção (como é o caso da CCD) e, muitas vezes, as articulações
precisam se focar mais na academia que nas delegações governamentais.
45
O CASO DOS INCINERADORES DE RESÍDUOS TÓXICOS
Apesar de este caso ter ocorrido um pouco antes da Eco-92, sua
resolução se deu por ocasião de uma de suas reuniões preparatórias, a
Conferência Global de ONGs Raízes do Futuro, realizada em Paris em
dezembro de 1991. Na época, um grupo de empresas européias tentava
instalar incineradores de lixo no estado de Pernambuco. Pretendiam
incinerar o lixo produzido da população local em troca de autorização
para incinerar lixo advindo da Europa, ocultando, porém, o fato de que
o lixo importado seria composto por resíduos tóxicos e perigosos. A
ASPAN tentou chamar a atenção para a ameaça ambiental trazida por
este projeto, mas não havia espaço para denúncias locais: tanto o
governo estadual como os governos municipais, que ainda não sabiam
sobre os resíduos tóxicos e perigosos, eram favoráveis ao
empreendimento.
Para contornar estes obstáculos, a estratégia montada pela ONG
foi de participar da conferência de Paris para denunciar essas empresas
e chamar a atenção da mídia internacional, já que a importação desses
resíduos iria de encontro à Convenção sobre o Controle de
Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito
Final (mais conhecida como Convenção da Basiléia). Para tanto,
precisou apresentar-se em uma reunião preparatória do Fórum
Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e
Desenvolvimento – FBOMS, numa tentativa de ser escolhida para a
delegação das ONGs e integrar a lista do Itamaraty que seria enviada ao
governo da França. Após o sucesso desta etapa, uma representante da
ONG embarcou para Paris. Chegando à cidade, denunciou o caso na
própria conferência. A ONG convocou uma coletiva de imprensa e fez
a denúncia, baseada em investigações próprias e dados recebidos de
outros países onde as empresas já tinham tentado se instalar. Depois
que o caso apareceu na mídia internacional, a mídia local teve que
noticiar os fatos e o projeto foi inviabilizado.
Neste caso, fica evidente o papel conjunto de ações de menor
escala, envolvendo contatos entre pequenos grupos de pessoas (a
articulação no FBOMS para conseguir integrar a delegação de ONGs da
conferência em Paris) e ações com escopo maior (a denúncia num
evento de grande porte e a entrevista coletiva para a imprensa
internacional) para ir de encontro às forças governamentais do estado e
municípios.
46
O CASO DA IMPORTAÇÃO DE SUCATA DE BATERIAS
No ano de 1996, o então Ministro do Meio Ambiente, Gustavo
Krause, assinou a Resolução CONAMA n° 8, de 11/10/96, que
autorizava a importação de sucata de baterias automotivas por nove
empresas, para serem reutilizadas ou recicladas. Entretanto, devido à
forte pressão das ONGs ambientalistas, a resolução durou apenas
alguns dias, sendo definitivamente revogada em dezembro pela
Resolução CONAMA n° 22 (Lisboa & Rocha, 1997; CONAMA, 1999a,
1999b, 1999c). O Brasil já havia ratificado a Convenção da Basiléia
através do Decreto Legislativo n. 34 de 16/06/92, e com a Resolução
CONAMA n. 23 de 12/12/96 estabeleceu os mesmos critérios da
Convenção para a importação e exportação de resíduos perigosos e para
a classificação destes resíduos.
A articulação em torno do cancelamento da Resolução n° 8 se
deu da seguinte forma. O representante da sociedade civil da região NE
– o Grupo Ambientalista da Bahia (GAMBÁ) abriu espaço para outra
ONG: a ASPAN, que não integrava o CONAMA naquela época,
pronunciar-se durante uma plenária, o que não era permitido às ONGs
sem assento neste órgão. Na ocasião, a representante fez uma exposição
com fotos do caso do Grupo Moura, uma empresa de baterias que
estava listada na resolução. Investigações tinham mostrado
contaminações no solo, sedimentos e efluentes líquidos próximos a uma
de suas empresas (localizada em Belo Jardim/PE) e no seu entorno,
além de elevada contaminação por chumbo entre 63% dos
trabalhadores do local (Lisboa & Rocha, 1997). Um dossiê sobre o caso
também foi entregue ao ministro, que pouco depois revogou a
resolução.
Aqui, mais uma vez, uma junção de fatores micro (articulação em
pequenos grupos para conseguir voz na reunião do CONAMA) e
macro (denúncia nesta mesma reunião, com repercussão nacional) foi a
receita ideal para atingir os objetivos almejados.
CASOS EM TORNO DA CONVENÇÃO DE COMBATE À
DESERTIFICAÇÃO (CCD)
A atuação das ONGs brasileiras no âmbito da Convenção de
Combate à Desertificação (CCD) também evidencia a junção de ações
de pequeno e grande porte como fórmula eficaz na obtenção de
resultados positivos. Um exemplo é o da 3ª Conferência das Partes da
47
Convenção de Combate à Desertificação, ou COP3 da Desertificação,
ocorrida em novembro de 1999, em Recife/PE. À época, a articulação
de algumas ONGs resultou na realização do Fórum Paralelo da
Sociedade Civil à Conferência das Partes para o Combate à
Desertificação que, como diz o nome, desenvolveu atividades paralelas
ao longo das duas semanas em que a COP estava ocorrendo.
Caracterizou-se por um conjunto de eventos, atividades e exposições,
reunindo diversos segmentos da sociedade civil, para acompanhar e
intervir nas deliberações da COP3, e teve como principais objetivos:
acompanhar e influenciar as decisões da COP3; dar visibilidade às
potencialidades e alternativas de convivência sustentável com o
Semiárido; propor estratégias de implementação da Convenção; iniciar o
processo de mobilização para participação da Sociedade Civil na COP4;
oportunizar trocas de experiências, fortalecimento da solidariedade e
vínculos culturais entre os povos dos países presentes.
O Fórum mobilizou dezenas de integrantes de ONGs e
movimentos sociais de vários países, principalmente América Latina e
África. Os posicionamentos da sociedade civil, discutidos no Fórum,
eram repassados àqueles que estavam participando oficialmente da COP
para que pudessem fazer pronunciamentos, quando permitido no
evento, bem como lobby junto às delegações governamentais. Os
participantes governamentais também eram convidados a participar das
atividades do Fórum Paralelo.
Entretanto, é importante salientar que a Convenção de Combate
à Desertificação é um caso à parte. Diferente das outras grandes
convenções ambientais, como a de mudanças climáticas e a de
biodiversidade, esta convenção garante a participação das ONGs no
corpo do seu texto, conforme explicitado no item ―d‖ do seu Artigo 16:
[...] make full use of the expertise of competent intergovernmental and
nongovernmental organizations, particularly to disseminate relevant
information and experiences among target groups in different regions. (UN,
1994).
O documento delibera, ainda, que as partes signatárias envolvam
as ONGs no processo de elaboração dos Planos de Ação Nacionais –
PANs e que estas sejam informadas sobre fontes de financiamento para
implementar a Convenção.
Assim, não foi por acaso que um dos resultados mais
importantes da conferência ocorrida no Recife referia-se aos PANs.
48
Porém, aconteceu em decorrência da articulação promovida por apenas
três pessoas, integrantes de delegações oficiais de ONGs, a saber: Juan
Luiz, argentino da Rede Internacional de ONGs sobre Desertificação
da América Latina e Caribe – RIOD-ALC, Sílvio Sant‘Ana, brasileiro da
Fundação Esquel-Brasil e Tahirou Diao, africano da Sahel Dephis,
coalização entre França e Burkina Faso. Este grupo conseguiu organizar
uma manifestação dentro do espaço oficial da conferência, que
reivindicou um prazo para os países entregarem seus PANs, o que de
fato foi deliberado pela COP naquela ocasião.
Outro exemplo da influência das ONGs brasileiras no âmbito da
CCD se deu durante a COP6, ocorrida em Havana, Cuba, em 2003.
Para as ONGs participantes desta conferência, o direito à palavra foi
restrito às chamadas ―sessões abertas de diálogo‖:
By its decision 27/COP.1, the COP requested that open dialogue sessions
organized by nongovernmental organizations be included within the official
programme of work of the sessions of the COP, and that the secretariat
make all efforts to facilitate inclusion of at least two such half-day sessions
within the official programme of work (CCD, 2003).
Entretanto, estas sessões limitavam-se ao relato de experiências
exitosas, sem a possibilidade de pronunciamentos políticos. Por outro
lado, a delegação brasileira de ONGs conseguiu resultados positivos
influenciando a delegação oficial do governo do Brasil, que dialogava
com as mesmas antes de tomar quaisquer posicionamentos. Além disso,
as ONGs brasileiras tiveram uma posição de liderança entre a sociedade
civil da América Latina que, de forma geral, alinhava-se com os
posicionamentos dos representantes da sociedade civil brasileira. Neste
contexto, o grupo brasileiro conseguiu mediar uma questão entre a
África, a Europa e países desenvolvidos, que não concordavam com as
quantias que deveriam ser investidas no processo de implementação da
Convenção. Ao fim, os valores intermediários, propostos com a
mediação das ONGs brasileiras, foram muito próximos ao deliberado
pela plenária da conferência.
CONCLUSÕES
Com base nos casos analisados, pudemos observar que as ONGs
brasileiras têm como características marcantes seu papel na fiscalização
e monitoramento local das convenções e sua forte capacidade de
articulação. Na atuação durante os eventos da ONU, destaca-se o papel
49
do lobby de corredor, dos eventos paralelos e das apresentações em
plenária. Evidenciamos, também, a importância da dinâmica de
pequenos grupos, conforme as ideias de Hudson (2006), essenciais na
eficácia de algumas estratégias. E apesar de muitas vezes estas
articulações terem o caráter regional (entre ONGs de diversos estados,
por exemplo), os grupos que se intercomunicam são restritos, formados
por representantes de pequenas alianças de ONGs com filosofias
semelhantes e que atuam como uma verdadeira rede de apoio em
momentos cruciais.
Os resultados favoráveis, porém não foram obtidos por um
único método de ação em nenhum dos casos analisados, sendo
imprescindível a junção de ações de menor e maior escala. Por outro
lado, para uma avaliação mais profunda da posição das ONGs
ambientalistas brasileiras no complexo cenário internacional, fazem-se
necessários estudos mais aprofundados sobre o tema.
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(1999a). Autoriza a importação de sucata de chumbo na forma baterias
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revogada pela Resolução no 22/96. Resolução n° 8, de 11 de outubro de
1996. Terra Meio Ambiente: Resoluções do CONAMA. Disponível em:
http://www.ambienteterra.com.br/meioambiente/conama.php Acesso
em: 02 jul. 2007.
CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE – CONAMA.
(1999b). Revoga a Resolução CONAMA Nº 8 de 11 de outubro de 1996.
Resolução n° 22, de 13 de dezembro de 1996. MMA & CONAMA:
Resoluções do CONAMA: Resoluções vigentes publicadas entre julho de
1984 e maio de 2006. Brasília, 2006, 808 p. Disponível em:
<http://www.mma.gov.br/port/conama/> Acesso em: 02 jul. 2007.
CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE – CONAMA.
(1999c). Dispõe sobre as definições e o tratamento a ser dado aos resíduos
perigosos, conforme as normas adotadas pela Convenção da Basiléia sobre
o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu
Depósito. Resoluções do CONAMA: Resoluções vigentes publicadas entre
julho de 1984 e maio de 2006. Brasília, 2006, 808 p. Disponível em:
<http://www.mma.gov.br/port/conama/> Acesso em: 02 jul. 2007.
CONVENTION TO COMBAT DESERTIFICATION – CCD. (2003).
Adoption of the agenda and organization of work: Provisional agenda and
annotations. UN: Havana. 32 p. Disponível em: <http://www.unccd.int/>
50
Acesso em: 1 jul. 2007.
EDWARDS, Michael. Does the doormat influence the boot? Critical
thoughts on UK NGOs and international advocacy. Development in Practice,
v. 3, n. 3, p.163-175, 1993.
HUDSON, Valerie M. Foreign Policy Analysis: Classic and Contemporary
Theory. Rowman & Littlefield Publishers, Inc. 240p, 2006.
LISBOA, Marijane; ROCHA, Suzy. (1997). Chumbo Grosso: O Caso das
Baterias Moura. Relatório, Greenpeace & ASPAN. 15 pp. Disponível em:
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Nations: The NGLS Guide for NGOs. Genebra: NGLS. 107p.
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convention to combat desertification in countries experiencing serious
drought and/or desertification, particularly in Africa: Final text of the
Convention. Disponível em:
<http://www.unccd.int/convention/text/pdf/conv-eng.pdf> Acesso em:
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DEVELOPMENT – UN DESA. (1997). (CSD). Disponível em:
http://www.un.org/esa/sustdev/index.html Acesso em: 20 jun. 2007.
UNITED NATIONS. Charter of the United Nations and Statute of the
International Court of Justice. Nova Iorque: UN, 1945. 87p.

51
OS SENTIDOS DO PREFIXO “ETNO-” NO
CONTEXTO DA PESQUISA ETNOCIENTÍFICA:
REFLEXÕES EPISTEMOLÓGICAS E
EDUCACIONAIS
Ângelo Giuseppe Chaves Alves1, Gilmar Beserra de Farias2
Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem.
Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo
final. (Veloso, 1991).
ENTRE A ANTROPOLOGIA DA CIÊNCIA E A ANTROPOLOGIA DA
EDUCAÇÃO
A popularização crescente das pesquisas etnocientíficas faz com
que se torne necessário discutir de forma mais explícita e abrangente os
sentidos dados às denominações do tipo ―etno + ciência‖ (e. g.
etnoecologia, etnozoologia e similares). Se, por um lado, o contexto
epistemológico recente indica uma necessidade de expandir a
―porosidade‖ das fronteiras discursivas3 entre as disciplinas científicas (e
delas com os saberes não-científicos), é também desejado que se tenha a
maior clareza possível ao criar e (re)combinar termos e definições e
nomes para ―novos‖ campos de conhecimento (e.g. que significa
―etnofarmacobotânica‖?), evitando entropia desnecessária.
Uma leitura cuidadosa da literatura sobre etnografia e
etnociências mostra que sentidos diversos vêm sendo dados ao prefixo
―etno-‖ ao longo do tempo, conforme observado anteriormente por
alguns autores brasileiros (Campos, 2002; Alves e Marques, 2005; Alves
e Albuquerque, 2005). Essa variedade de sentidos parece indicar
diferentes ângulos ou abordagens na relação do pesquisador com o
―outro‖, aspecto central na pesquisa em antropologia, etnociências e
enfoques correlatos. Os processos educativos, por sua vez, requerem

1 Universidade Federal Rural de Pernambuco, Departamento de Biologia, Área de


Ecologia. ([email protected])
2 Universidade Federal de Pernambuco, Centro Acadêmico de Vitória.
([email protected])
3 O termo ―porosidade das fronteiras discursivas‖ foi usado por Michel Serres numa

entrevista que concedeu a Paulo Markun, no Programa Roda Viva, transmitido


originalmente pela ―TV Cultura‖ em 1999 (SERRES, 1999).
53
uma discussão semelhante a esta, no sentido de contribuir para uma
educação multicultural, na qual o poder geralmente atribuído ao docente
(assim como o do pesquisador) seja relativizado a partir de uma reflexão
sobre sua relação com o ―outro‖. Surge assim, uma possível
convergência entre a antropologia da ciência e a antropologia da
educação, tendo como pano de fundo, no caso deste artigo, algumas
atividades de pesquisa em etnociências e ensino de ciências
desenvolvidas pelos autores e outros pesquisadores. Em outras palavras,
exploram-se aqui as possibilidades de uma antropologia da pesquisa
etnocientífica, associando-as a uma discussão pedagógica, no sentido de
reduzir a distância (identificada por Latour, 2000) entre a etnociência e a
pedagogia, e também para enfrentar o desafio proposto por
D‘Ambrosio (1998) de trazer a diversidade cultural para dentro do
currículo escolar.
TRÊS SENTIDOS PARA O PREFIXO “ETNO-”
A chamada ―nova etnografia‖, ―etnociência‖ ou ainda ―etnografia
semântica‖ surgiu a partir de meados do século XX, propondo uma
nova abordagem antropológica, através da qual as culturas deixassem de
ser vistas como conjuntos de artefatos e comportamentos, e passassem
a ser consideradas como sistemas de conhecimentos ou de aptidões
mentais, tais como revelados pelas estruturas linguísticas. Os
etnocientistas consideravam o saber como um conjunto de aptidões
possíveis de ser transmitidas entre pessoas e pretendiam descobrir os
princípios que organizavam as culturas e determinar até que ponto eles
seriam universais. Entre seus principais expoentes destacam-se Conklin
(1954), Frake (1962) e Sturtevant (1964).
Conforme resumiu Sturtevant (1964), o prefixo ―etno-‖ adquiriu,
com a emergência da etnociência, um sentido diferente do que era
anteriormente empregado pelos cientistas sociais, passando a referir-se
ao ―sistema de conhecimento e cognição característico de uma
determinada cultura‖, isto é, ―à ‗redução do caos‘ elaborada por uma
cultura em particular‖. Para ele, a ―etnociência de uma sociedade‖ seria
representada pelas ―classificações ‗folk‘ características de uma sociedade,
seus modos particulares de classificar seu universo material e social‖.
Exemplificando a visão dos etnocientistas de seu tempo, ele considerou
que

54
[...] etno-história é a concepção compartilhada por membros de
uma dada cultura sobre eventos passados, ao invés (como seria
mais comum) de ser a história (em nossos termos) de ‗grupos
étnicos‘; etnobotânica é uma concepção cultural específica sobre
o mundo vegetal, ao invés (como também seria mais comum) de
ser uma descrição de usos das plantas organizadas com base na
nossa própria taxonomia binominal (Sturtevant, 1964).
Neste sentido, pode-se falar em ―etnociências‖, em referência a
essas abordagens mais específicas como etnobotânica, etnozoologia, etc.
Para demonstrar o modo como o prefixo ―etno‖ era usado por
seus antecessores, Sturtevant (1964) relatou um exemplo extremo,
baseado no estudo do etnólogo vitoriano Walter E. Roth (1897), que
deu o título de ―etno-pornografia‖ ao último capítulo de sua
monografia sobre a cultura aborígine de Queensland. Sturtevant (1964)
ressaltou que Roth chegou a inserir no texto um aviso de que o referido
capítulo ―não é digno de escrutínio ou leitura cuidadosa por parte do
leitor não especializado‖, e descreveu sob esse rótulo
(―etnopornografia‖) alguns itens como casamento, gravidez, parto,
menstruação, ―linguagem obscena‖ e, especialmente, mutilações genitais
e seu significado cerimonial. Para Sturtevant (1964), por outro lado, a
―etnopornografia‖ dos aborígines de Queensland é o que eles
considerarem pornografia – se de fato eles tiverem tal categoria – em
vez do que fosse considerado pornografia pelo etnólogo ocidental.
A partir dos anos 1980, quando houve uma intensificação da
associação entre as etnociências e o enfoque ambiental, a discussão
sobre o significado das denominações ―etno + ciência‖ vem sendo
retomado por autores como Williams e Ortiz-Solorio (1981). Em sua
definição pioneira de ―etnopedologia‖, percebe-se que deram ―um
sentido mais amplo‖ ao prefixo ―etno-‖ do que o usual naquele tempo:
Percepção ‗folk‘ de propriedades e processos do solo;
classificação e taxonomia ‗folk‘ de solos; teorias e explicações ‗folk‘
sobre propriedades e dinâmica de solos; manejo ‗folk‘ de solos;
percepção ‗folk‘ das relações solo-planta; comparações entre os
conhecimentos ‗folk‘ e técnicos sobre solos; e avaliação do papel da
percepção ‗folk‘ dos solos nas práticas agrícolas e em outros campos do
comportamento, tudo isso pode ser contemplado sob a denominação
‗etnopedologia‘. O termo é usado aqui num sentido mais amplo do que
usualmente se aplica em etnociência, ou nas denominações etno +

55
disciplina acadêmica (por exemplo: etnoictiologia, etnoornitologia,
etnobotânica) (Grifo nosso).
Nota-se que Williams e Ortiz-Solorio (1981) admitem que a
etnociência também envolve ―comparações entre os saberes ‗folk‘ e
técnicos sobre solos‖, abandonando explicitamente a ideia defendida
anteriormente por outros (e.g. Sturtevant, 1964) de que a ―etnociência‖
representava apenas o conhecimento possuído pelo ―outro‖, isto é,
pelos grupos sociais que eram pesquisados. Para Williams & Ortiz-
Solorio (1981), etnopedologia é algo mais que simplesmente uma
―pedologia do outro‖.
Enquanto Williams e Ortiz-Solorio (1981) citaram a possibilidade
de ―comparações‖, Barrera-Bassols (1988) considerou que um
etnocientista (etnoedafólogo, no caso) deveria analisar a percepção
camponesa das propriedades e processos no solo e ―também a sua
correspondência com aquilo que se considera ‗verdadeiramente
científico‘ no mundo ocidental‖. Já Marques (1995), em sua
―etnoecologia abrangente‖, defendeu a ―integração entre o
conhecimento ecológico tradicional e o conhecimento ecológico
científico‖. Winkler-Prins (1999), por sua vez, sugeriu ―combinar‖ as
―diferentes formas de conhecimento‖ (do solo, no caso), de modo a
permitir uma ―integração‖ e fazer surgir ―uma terceira forma de
conhecimento‖:
Para que o saber pedológico local seja incluído em estratégias de
manejo sustentável, os pesquisadores devem admitir a existência
de diferentes formas de conhecimento do solo. Dessa maneira,
as futuras pesquisas poderiam combinar conhecimento
pedológico local e científico, de modo a subsidiar a formulação
de políticas relacionadas ao manejo sustentável das terras. Os
cientistas devem se engajar num diálogo com as populações
locais e daí talvez possa emergir uma terceira forma de
conhecimento, que represente uma integração de conhecimento
local e científico e que sirva para informar a elaboração de
políticas (Winkler-Prins, 1999).
Os sentidos atribuídos ao prefixo ―etno-‖ nos textos de Roth
(1897), Sturtevant (1964) e Williams e Ortiz-Solorio (1981) serão aqui
considerados como prototípicos de três diferentes formas de abordar a
relação entre o pesquisador (etnocientista) e o ―outro‖. Assim, parece-
nos que Roth (1897) quis indicar em sua etnopornografia uma
―pornografia do outro‖ contada nos termos do observador externo,
56
sem tentativas aparentes de relativização por parte do pesquisador. O
discurso de Sturtevant (1964), surge, então, como uma proposta
explícita de mudança nesse contexto, quando afirma por exemplo, que
―etno-história é a concepção compartilhada por membros de uma dada
cultura sobre eventos passados‖. Neste caso, etno-história aparece
como ―história do outro‖, porém agora contada segundo a visão de
mundo vigente no interior da própria cultura pesquisada. Nota-se, neste
caso, uma tentativa de relativização, divergindo assim da visão mais
etnocêntrica de Roth (1897). O próprio Sturtevant (1964) mostrou ter
consciência da ruptura que propunha, nos seguintes termos:
„Ethnoscience‟ is appropriate as a label because it may be taken to imply
one interpretation of such terms as „ethnobotany‟, „ethnogeography‟, etc. –
although it is important to emphasize that the approach is a general
ethnographic one, by no means limited to such branches of ethnography as
are often called by the names of recognized academic „arts and sciences‟
coupled with the prefix „ethno-‟. This prefix is to be understood here in a
special sense: it refers to the system of knowledge and cognition typical of a
given culture.
Posteriormente, o artigo de Williams e Ortiz-Solorio (1981)
representou uma nova ruptura, pois definiram ―etnopedologia‖
declarando que ―o termo é usado aqui num sentido mais amplo do que
usualmente se aplica em etnociência, ou nas denominações etno +
disciplina acadêmica (por exemplo: etnoictiologia, etnoornitologia,
etnobotânica)‖. Assim, para eles, ―etnopedologia‖ não era apenas a
―pedologia do outro‖, uma vez que se propõem ―comparações entre os
saberes ‗folk‘ e técnicos sobre solos‖, numa abordagem nitidamente
―cross-cultural‖. Seguindo este raciocínio, o prefixo ―etno-‖ associado
ao nome de alguma disciplina científica pode indicar algo como
―tentativas de comunicar-se com e sobre o outro em relação a algum
tema anteriormente discutido no meio acadêmico‖.
A visão exposta por Williams e Ortiz-Solorio (1981) dá ao
prefixo ―etno-‖ uma abordagem que nos parece, de forma geral, mais
adequada do que aquela que observamos em Roth (1897) e Sturtevant
(1964). Assim, ―etno-‖ não indica somente ―do outro‖, de modo que
―etnozoologia‖ não deve ser vista apenas como ―zoologia do outro‖ e
sim ―interface ou cruzamento entre saberes sobre os animais‖, de modo
a valorizar articulações, comparações, conexões, integrações e, quem
sabe, aprendizagens multilaterais. Neste sentido, Marques (2002)

57
manifestou a necessidade de ―reconhecimento da etnoecologia como
um campo de cruzamento de saberes‖.
Entretanto esta nossa posição em favor da visão de Williams e
Ortiz-Solorio (1981) não deve ser totalmente excludente em relação às
demais, principalmente se considerarmos que a formação de paradigmas
(Kuhn, 2005) é algo bastante improvável no contexto aqui considerado.
Para Thomas Kuhn, dois paradigmas concorrentes são incomensuráveis
(incompatíveis entre si), mas esta visão kuhniana não parece coerente
com as tentativas de integração, conexão ou articulação que se deve
buscar, tanto na pesquisa etnoecológica quanto nos processos de
ensino-aprendizagem. Portanto, não é desejável (e talvez não seja
possível) ―implementar‖ a visão etnocientífica por meio de uma
revolução kuhniana, ou seja, por mudança de paradigma. Sendo assim, o
ideal (aliás, o inevitável) é aceitar as três visões de ―etno-‖, privilegiando
assim, a diversidade interna da ―comunidade‖ de pesquisadores
etnocientistas. Mas, sugerem (Alves e Albuquerque, 2005) que o uso dos
termos ―etno + ciência‖ venha acompanhado, sempre que possível, de
um posicionamento e reflexão explícita dos respectivos autores.
Apesar da visão de Williams e Ortiz-Solorio (1981) parecer
vantajosa, exige-se cautela, levando em conta também os perigos que
envolvem as tentativas de comparação-articulação-conexão, pois
diferentes relações de poder se estabelecem nessas interfaces, e o
etnocentrismo às vezes se manifesta na forma de cientificismo, mesmo
nas pessoas (pesquisadores, educadores) ―bem-intencionadas‖. Em
outras palavras: o que se vai comparar, articular, conectar? Com quê? E
em que termos? Se a ciência formal for mantida sempre como padrão
para ―validação‖ do saber local, então pouco terá sido feito para chegar
de fato ao ―outro‖ antropológico. No contexto da etnozoologia, por
exemplo, Sturtevant (1964) criticou as tentativas, feitas por alguns
autores, de avaliar conhecimento zoológico local nos termos da
zoologia científica, ou de investigar se as distinções e características
conhecidas pelos zoólogos científicos são localmente reconhecidas, em
vez de estudar a natureza e os princípios dos sistemas locais de
conhecimento zoológico. Mais recentemente, outros autores também
têm questionado tais comparações etnocêntricas no campo da
etnobotânica (Frazão-Moreira, 2001) e da etnopedologia (Winkler-Prins,
1999). Por outro lado, Alves et al. (2007), refletindo a partir de uma
pesquisa etnopedológica com camponeses no Agreste da Paraíba,
58
argumentaram que os estudos quantitativos e laboratoriais não buscam
apenas a ―validação científica‖ do saber local, pois representam também
oportunidades para o surgimento de uma linguagem integrada, que
contribua para reduzir a distância que separa o saber local (ou saber
camponês, naquele caso) daquele conhecimento que é aceito e praticado
formalmente na academia. Num contexto como esse, os estudos
comparativos podem, talvez, revalidar e retroalimentar o conhecimento
e as práticas daquelas pessoas que conduzem pesquisa científica formal,
reconectando-as com a experiência cotidiana dos camponeses (e de
outras populações rurais e/ ou locais).
QUANDO O SABER LOCAL SE ENCONTRA COM O
CONHECIMENTO PRÉVIO E A CIÊNCIA FORMAL
Quanto aos processos educativos, pode-se afirmar que uma
pesquisa com enfoque em etnobiologia se preocupa inicialmente em
saber como um determinado grupo de aprendizes define, classifica ou
se relaciona com determinados elementos da natureza. Inicialmente, o
professor-pesquisador trabalha com a ideia ―do outro‖, com as
concepções prévias de seus alunos. A essas concepções se atribui
grande importância por conta da tese construtivista (Baptista e El-Hani,
2006), pois estas ideias pré-concebidas poderiam ser o início de um
diálogo, o ponto de partida no processo de ensino-aprendizagem mais
eficiente. De forma geral, é muito comum entre os professores se falar
que para ser construtivista é importante conhecer a realidade do aluno e
as suas concepções prévias sobre determinado tema. Isso seria muito
importante para atividades de planejamento, pois conhecer uma turma
de alunos e como eles pensam são pré-requisitos fundamentais para a
construção, execução e avaliação de uma unidade didática. Em escolas,
parece óbvio dizer que trabalhos etnobiológicos já se enquadrariam
seguramente como uma abordagem construtivista, pois geralmente de
preocupam com o conhecimento prévio ou conhecimento do ―outro‖,
apenas. Mas um trabalho etnobiológico realizado em um ambiente
escolar seria mais apropriado e significativo (ou verdadeiramente
construtivista) se houvesse uma aproximação com o que se chama de
construtivismo contextual, no qual se destacam as influências sociais
sobre a aprendizagem e a investigação da cultura local no
desenvolvimento e organização das ideias dos alunos (El-Hani, 1999). A
cultura local, ou as pré-concepções dos alunos são construídas no grupo
59
social em que vivem e são muito estáveis e resistentes à mudança, pois
geralmente foram estabelecidas com base na experiência e funcionam
relativamente bem para a resolução de problemas (Rangel, 2002) do
cotidiano. Assim, o conteúdo a ser ensinado em sala de aula deve ser
entendido pelos professores como sendo uma ―segunda cultura‖ para
os estudantes (El-Hani E Bizzo, 2002). Portanto, trabalhos
etnobiológicos realizados em comunidades escolares podem ajudar o
professor-pesquisador a compreender e valorizar os intricados arranjos
sociais que determinam uma aprendizagem mais ou menos significativa
de determinados grupos.
Uma abordagem etnobiológica realizada com estudantes de uma
escola pública no município do Cabo de Santo Agostinho, Região
Metropolitana do Recife, Pernambuco, sobre uma espécie invasora, o
molusco-gigante-africano Achatina fulica, revelou a preexistência de
conhecimentos sobre esse animal, com destaque para os aspectos de
transmissão de doenças, taxonomia e impactos ambientais (Souza et al.,
2007). Os autores afirmaram que o mais importante não seria
determinar se esses conhecimentos locais e crenças estavam
academicamente "corretos", mas a possibilidade de utilizá-los como
guias para a realização de estudos científicos mais aprofundados, como
referências culturais para os que elaboram planos político-pedagógicos e
estratégias decorrentes da introdução de espécies invasoras, assim como
o processo de entrada e crescimento do molusco no corpo humano.
Uma abordagem etnobiológica como esta se aproxima um pouco mais
daquela apresentada por Williams e Ortiz-Solorio (1981), para o caso do
estudo sobre solos.
Na Galícia, uma pesquisa feita com estudantes primários,
utilizando-se uma aproximação etnobiológica sobre uma ave chamada
cuco (Cuculus canorus), apresentou além das muitas informações
biológicas, a importância da conscientização da transmissão oral como
elemento necessário para a manutenção da cultura local (Pim e
Krintensen, 2007).
Outra experiência etnoornitológica realizada com alunos de uma
escola pública no distrito de Três Ladeiras, zona rural do município de
Igarassu, Pernambuco, apresentou resultados ―esperados‖, como
aquelas concepções e esquemas mentais que promoveriam o
planejamento mais apropriado da unidade didática Aves, tais como:
hábito alimentar, comportamento, afinidade, morfologia, canto e
60
reprodução (Farias e Alves, 2007). Mas, um aspecto cultural se destacou
entre os conhecimentos prévios dos alunos: a diferença de gênero.
Nesse caso, as meninas atribuíram aos meninos um maior
conhecimento sobre as aves: ―quem sabe mais é o menino, ele vive atrás
do pássaro‖; ―eu tenho uma vizinha que tem, por que os meninos dela
caçam...‖ Esta tendência provavelmente está relacionada a uma
diferença de gênero, em termos de divisão do trabalho. A partir de
diferenças biológicas, são inferidas relações sociais desiguais entre os
sexos, seguindo-se uma divisão ―natural‖ dos trabalhos (Colpron, 2005).
Esta divisão é comum em sociedades rurais, proporcionando uma
distinção no conhecimento acerca de alguns elementos da natureza.
Geralmente, os meninos iniciam mais cedo o contato com a natureza,
acompanhando os pais em atividades de caça e coleta de elementos da
natureza, enquanto as meninas ficam em casa, auxiliando nas atividades
domésticas. Desta forma, meninos têm mais oportunidades de observar
e de aprender com os homens adultos sobre as aves. Neste contexto, as
diferenças socialmente construídas acabam sendo consideradas naturais,
como se fossem definidas apenas em termos biológicos, legitimando
uma relação de dominação (Sousa e Altmann, 1999), mas a escola deve
relativizar essas diferenças ideológicas evitando reproduzir preconceitos
de gênero, sendo o ponto de partida para diminuí-las (Auad, 2006). Na
medida em que esta relação desigual de poder e gênero se estabelece, a
escola deve estimular igualmente meninas e meninos para atividades
científicas, afastando a ideia socialmente construída e instituída,
segundo Auad (2006), de que os meninos gostam mais de ciências do
que as meninas. Esses estereótipos definem o que os homens e as
mulheres devem ser, e o lugar que cada um deve ocupar no mundo,
tornando-se um forte obstáculo à democratização da sociedade (Moro,
2001) e do conhecimento científico. Como foi observado, um trabalho
de etnoornitologia pode possibilitar um planejamento culturalmente
apropriado, estabelecer um diálogo entre a natureza e a cultura, além da
identificação de possíveis preconceitos nas relações de gênero.
Em Guiné-Bissau, numa floresta africana, investigou-se como se
processa a transmissão de conhecimentos para as novas gerações, quais
os mecanismos formais ou informais, escolares ou domésticos, que são
importantes na apropriação da cultura local e das percepções sobre as
plantas (Frazão-Moreira, 1997). Por meio do conhecimento sobre as
plantas, a autora verificou que as crianças participavam de forma plena
61
na vida social do grupo, aprendendo conhecimentos dos adultos e
interagindo com eles de acordo com o seu sexo e classe (faixa?) etária a
que pertenciam. Ainda nesta pesquisa, percebeu-se que o conhecimento
sobre as plantas trabalhado na escola formal ocorria de forma
descontextualizada, promovendo uma descontinuidade em relação à
cultura local. No Brasil, em outra investigação etnobiológica, Baptista e
El-Hani (2006) pesquisaram o conhecimento que jovens escolares
tinham sobre o processo de cultivo das plantas, classificação,
morfologia e técnicas de reprodução. Neste caso, o conhecimento
etnobiológico além de ampliar a visão de mundo dos aprendizes,
poderia servir como instrumento para construir uma prática pedagógica
que relacionasse conhecimento científico, conhecimento escolar e
cultural, permitindo um diálogo entre os diversos saberes. Portanto,
neste último exemplo, pode-se considerar que a etnobiologia
aproximou-se mais da proposta estabelecida por Williams e Ortiz-
Solorio (1981) para a etnopedologia, afastando-se da etnociência como
―ciência do outro‖, e corroborando Marques (2002), que defende um
cruzamento de saberes na etnoecologia. Fica então, a pergunta: será
possível (e desejável) uma etnopedagogia? E se for, como será
construída?
IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA DA PESQUISA E DA EDUCAÇÃO
CIENTÍFICA.
Do que foi exposto nos itens anteriores, nota-se a possibilidade e
viabilidade de se explorar com mais intensidade as conexões entre a
pesquisa etnobiológica e os processos educativos. Assim, uma pesquisa
etnoornitológica pode ser realizada a partir do ambiente escolar,
permitindo que os alunos busquem com seus familiares algumas
informações sobre o saber biológico local (Pim e Cristensen, 2007).
Deste modo, torna-se menos rígida a fronteira entre educação formal e
informal. A própria conexão entre os processos educativos formais e
informais, em relação ao ambiente natural, pode ser alvo de pesquisas
etnobiológicas, como demonstrou Frazão-Moreira (1997).
Refletindo sobre as relações entre antropologia da educação e
antropologia da ciência, tendo como pano de fundo a questão
ambiental, é possível observar que o ―outro‖ antropológico e o
―ambiente‖ estudado nas pesquisas (etno)biológicas têm muito em

62
comum. A noção de ―ambiente‖ difundida por Enrique Leff (2000)
representa adequadamente esta confluência:
O ambiente é a falta de conhecimento que impulsiona o saber. É
o outro – o absolutamente outro – diante do espírito totalitário
da racionalidade dominante. [...] O saber ambiental projeta-se até
o infinito do impensado – o que está por pensar –
reconstituindo identidades diferenciadas em vias antagônicas de
reapropriação do mundo.
O diálogo do pesquisador-educador com esse ―ambiente-outro‖
pode adquirir assim um sentido Nietszcheano, baseado na célebre frase
do filósofo alemão: ―Quando olhas para um abismo, o abismo também
olha para ti‖.
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65
66
LIÇÕES DA ETNOBIOLOGIA PARA O ENSINO DE
CIÊNCIAS SENSÍVEL A DIVERSIDADE
CULTURAL
Geilsa Costa Santos Baptista1

Debates na literatura em educação científica questionam se


culturas não-ocidentais possuem, ou não, sistemas de conhecimentos
sobre a natureza que podem ser considerados ciências e se esses
sistemas de conhecimentos devem ser inseridos no currículo escolar de
ciências. Trata-se de uma ampla discussão, conhecida como o debate
sobre o multiculturalismo e o universalismo. De um modo geral, os
universalistas defendem que a ciência, enquanto atividade e corpo de
conhecimentos, tem um caráter universal e não pode ser ensinada em
termos multiculturais (Matthews, 1994 e Siegel 1997). Os
multiculturalistas criticam essa posição, por acreditarem que a mesma
representa uma política de exclusão de outras formas de conhecimento
(Ogawa, 1995; Atwater 1996). Eles propõem como estratégia para
inclusão do conhecimento tradicional no currículo escolar a ampliação
do conceito de ciência, de maneira a abranger o conhecimento
ecológico tradicional (TEK - Traditional Ecological Knowledge).
Segundo Svennbeck (2000), as discussões sobre o ensino de
ciências devem ser mais pragmáticas, sobre quais os objetivos de ensinar
ciências aos jovens e suas consequências para as diferentes culturas.
Contudo, ainda segundo Svennbeck, essas questões exigem o
reconhecimento e o respeito das diferentes formas de conhecimento
existentes.
Sobre o reconhecimento e o respeito pela diversidade cultural no
ensino de ciências, uma posição tem se colocada intermediária no
debate entre universalistas e multiculturalistas: o pluralismo
epistemológico defendido por Cobern e Loving em 2001. Cobern e
Loving rejeitam o relativismo da ciência e defendem a inclusão do

1 Departamento de Educação – UEFS; Programa de Pós-Graduação em Ensino,


Filosofia e História das Ciências (UFBA-UEFS); Grupo de Pesquisa em História,
Filosofia e Ensino de Ciências (UFBA). E-mail: [email protected]

67
conhecimento tradicional ecológico no ensino de ciências2, desde que
seja diferenciado do discurso científico da ciência ocidental moderna.
Para estes autores, no ensino de ciências não deve haver relativismos e
nem defesa da superioridade de nenhuma forma de conhecimento, mas,
sim, uma clara demarcação dos diferentes saberes em diferentes
domínios das práticas humanas e um reconhecimento explícito de sua
construção em condições sócio-culturais distintas.
Comprometido com o Pluralismo Epistemológico, o
Construtivismo Contextual argumenta que no ensino de ciências não
deve haver tentativas de substituição dos conhecimentos culturais
trazidos pelos estudantes para as salas de aula, mas, sim, de ampliação
destes com ideias científicas (Cobern, 1996).
Todavia, para que seja possível a demarcação entre diferentes
formas de conhecimento nas salas de aula de ciências é necessário que
as relações entre a cultura da ciência e a cultura dos estudantes sejam
investigadas e compreendidas (Cobern & Loving, 2001). De acordo
com Cobern (1996), os estudantes demonstram desinteresses pela
aprendizagem dos conceitos científicos que são trabalhados nas salas de
aula. Cobern argumenta que se os professores de ciências investigarem e
compreenderem os diferentes modos como os estudantes entendem a
natureza, talvez a estrutura da educação científica possa ser mudada de
maneira a aproximar mais esses estudantes da ciência que está sendo
ensinada. Não com o objetivo de substituir as concepções dos
estudantes por ideias científicas, mas de estabelecer diálogos entre
saberes e ampliar as suas visões sobre a natureza, enriquecendo-a com
ideias científicas.
O diálogo, de acordo com Lopes (1999) é um processo
argumentativo no qual as razões que levam os indivíduos a pensarem
como pensam são expostas, consideradas e avaliadas por critérios de
validade e legitimidade que são próprios dos seus contextos. O diálogo
constitui uma relação horizontal entre professores e estudantes e não há
hierarquização, mas, sim, oportunidades para que as vozes sejam ditas,
escutadas e respeitas (Freire, 2005). Dialogar, portanto, significa criar
oportunidades para que os estudantes possam expressar livremente os
pensamentos que integram as suas visões de mundo, as quais têm
origem nos contextos socioculturais de onde são provenientes.

2 Por ensino de ciências entende-se o ensino das ciências naturais, no nível fundamental,
e de física, química e biologia, no nível médio.
68
Para a investigação das visões de natureza dos estudantes, sejam
em comunidades urbanas, rurais e/ou tradicionais, a etnobiologia pode
oferecer para os professores de biologia importantes contribuições. No
presente trabalho apresento essas contribuições partindo de alguns
resultados da pesquisa desenvolvida durante a realização de mestrado
junto ao Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História
das Ciências (UFBA-UEFS): A contribuição da etnobiologia para o ensino e a
aprendizagem de Ciências: estudo de caso numa escola pública estadual da Bahia
(Baptista, 2007).
A ETNOBIOLOGIA: CONCEITOS E METODOLOGIA DE PESQUISA
Não existe um único conceito para a etnobiologia, contudo, a
maioria dos autores concorda que se trata de uma ciência que busca
investigar e compreender as diversas relações que são estabelecidas
entre as sociedades humanas e a natureza ao seu redor. Para Berlin
(1992), a etnobiologia é uma ciência que busca compreender as
concepções sobre o ambiente, as formas de percepção, a classificação e
a nomenclatura dos seres vivos, o uso e o aproveitamento das plantas e
dos animais pelos diferentes sistemas culturais. Posey (1997, p.1) define
a etnobiologia como ―[...] o estudo do conhecimento e das
conceituações de qualquer sociedade a respeito da biologia‖ e Berlin
(1992) ―[...] como um campo de investigação se dedica ao estudo, no
sentido mais amplo possível, do conjunto complexo de relações de
plantas e animais com as sociedades humanas, tanto no passado quanto
no presente‖.
Segundo Méndez & Ramírez (1995), vários campos podem ser
definidos dentro da etnobiologia, como, por exemplo, etnobotânica,
etnozoologia, etnoentomologia, etnomicologia etc. Martin (1995), o
enfatiza que o prefixo grego éthno tem sido utilizado por sintetizar o
modo como as sociedades compreendem o mundo. Quando utilizado
antes de uma área acadêmica que denota um determinado objeto de
estudo, como, por exemplo, a etnozoologia, implica que os
pesquisadores desta área estão investigando a percepção de uma
população culturalmente diferenciada sobre aquele objeto, no caso, os
animais.
As pesquisas etnobiológicas vêm contribuindo para solução de
diversos problemas, como, por exemplo, de problemas ecológicos em
vastas regiões do mundo, por revelarem conhecimentos milenares que
69
ainda permitem a conservação do equilíbrio ecológico em diversas
regiões (Ribeiro, 1997). Bandeira (2004) acrescenta que os estudos
etnobiológicos podem contribuir para a elaboração de políticas públicas
de meio ambiente que incluam a diversidade cultural, e não apenas a
biológica, como elemento fundamental dessas políticas. As pesquisas
etnobiológicas podem contribuir, ainda, para preservação de saberes
locais, os quais constituem um patrimônio da humanidade (Posey,
1997).
Para que seja possível a realização de estudos etnobiológicos é
necessário que o pesquisador tenha conhecimento específico
sobre seu campo de atuação bem como conhecimento teórico
das técnicas e ferramentas metodológicas utilizadas na
etnobiologia (Bandeira, 2004).
As pesquisas etnobiológicas podem ter caráter tanto quantitativo
(Albuquerque & Lucena, 2004; Peroni, 2002), quanto qualitativo (Berlin,
1992; Silverman, 2000) e serem desenvolvidas com base nos estudos
etnocientíficos e nas técnicas etnográficas. Os estudos etnocientíficos,
segundo Toledo (1990), se dedicam à investigação da soma total dos
conhecimentos que um determinado grupo cultural tem sobre o
universo social e natural, bem como sobre si mesmo. As técnicas
etnográficas buscam descrever as experiências, os pensamentos e as
reflexões dos participantes. Correspondem ao trabalho de campo, de
observação e participação em atividades de um determinado grupo
social para a descrição das culturas (Lévi-Strauss, 1970). Nesse sentido,
podem ser utilizadas as entrevistas, os questionários, observações,
fotografias, filmagens e desenhos esquemáticos, dentre outras técnicas.
Como em qualquer pesquisa envolvendo seres humanos, nos
estudos etnobiológicos é importante que o pesquisador esteja atento às
questões éticas (ver diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas
envolvendo seres humanos em Brasil, 2006). Tais questões apontam
para a relevância de o pesquisador buscar, durante todo o seu
procedimento, o respeito pelo outro, evitando menosprezar o
conhecimento tradicional a partir de uma ideia de superioridade de sua
própria cultura ou, em outras palavras, do etnocentrismo, isto é, a
ideologia na qual uma cultura, sociedade ou civilização defende sua
superioridade frente a outras (Bandeira, 2001). Também é importante o
retorno para a comunidade com a qual foi realizada a pesquisa na
forma, por exemplo, de publicações, materiais didáticos, repartição de
70
possíveis benefícios advindos do uso comercial e/ou industrial. Isso
pode significar para o grupo estudado evidência de agradecimento e
respeito pela sua cultura.
A PESQUISA: OBJETIVOS, JUSTIFICATIVA, PROCEDIMENTOS
A pesquisa ora relatada teve por objetivo geral investigar qual a
contribuição da etnobiologia para o ensino e a aprendizagem de ciências
e avaliar intervenções pedagógicas baseadas no diálogo entre o
conhecimento tradicional e o científico escolar em salas de aula de
biologia de uma escola pública estadual do município de Coração de
Maria, estado de Bahia, Brasil. A pesquisa foi desenvolvida em 2005 e
2006 e envolveu estudantes agricultores que frequentaram o segundo
ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Dom Pedro II. É
importante informar que o município de Coração de Maria sobrevive
principalmente da agricultura, seguido da pecuária e do comércio.
Também é importante informar que no ano em que foi desenvolvido o
estudo apenas o colégio Dom Pedro II atuava no Ensino Médio,
atendendo tanto estudantes da zona urbana quanto rural do município.
A maior parte dos estudantes que frequentaram o supracitado colégio
em 2005 era de agricultores.
A ideia de realização do referido estudo surgiu a partir de uma
experiência vivenciada pela autora em 2001, como professora de
biologia do colégio onde foi realizada a pesquisa ora relatada. Nessa
experiência, a autora investigou os conhecimentos tradicionais agrícolas
dos seus estudantes através dos procedimentos metodológicos das
pesquisas etnobiológicas e pode perceber que tal iniciativa facilitou a
elaboração e aplicação de sequências didáticas sobre os conteúdos da
botânica, contribuindo naquele momento para a facilitação do ensino e
da aprendizagem (Baptista & El-Hani, 2006).
Com base na experiência vivenciada em 2001, a autora resolveu
desenvolver um estudo mais aprofundado, e assim o fez: adotou a
abordagem qualitativa, baseada em estudo de caso, buscando amparo
nos referenciais teóricos e metodológicos da pesquisa etnobiológica
(Posey, 1997; Marques, 2001; Campos, 2002) e da pesquisa em educação
(Ludke & André, 1986 e Bogdan & Biklen, 1994).
Inicialmente, foram identificados os sujeitos interessados em
participar da pesquisa no próprio ambiente escolar. Após terem
assinado um termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Brasil,
71
2006), foram realizadas observações das atividades desenvolvidas pelos
estudantes nos seus espaços agrícolas. Então, foram investigados os
seus conhecimentos tradicionais a partir de duas técnicas utilizadas pelas
pesquisas etnobiológicas, a saber: entrevistas semi-estruturadas e
desenhos esquemáticos. Os resultados dessas entrevistas foram
comparados aos conteúdos de ensino da biologia contidos em livros
didáticos. Com os dados dessas comparações foram elaboradas Tabelas
de Cognição Comparada (Marques, 2001). É importante destacar que o
objetivo desta comparação não foi a hierarquização destas formas de
conhecimento, mas buscar oportunidades adequadas para intervenções
pedagógicas.
Com base nestas comparações e nos desenhos feitos pelos
estudantes sobre as plantas por eles cultivadas foi possível, então,
elaborar um material didático contendo estratégias de ensino com o
objetivo de orientar o diálogo entre o conhecimento tradicional agrícola
e o conhecimento científico escolar no contexto do ensino de biologia,
acompanhado da delimitação dos contextos de aplicação de cada uma
destas formas de conhecimento. Tais estratégias de ensino foram
empregadas em intervenções pedagógicas conduzidas por uma
professora de biologia da escola investigada.
Os resultados das entrevistas e dos desenhos esquemáticos
indicam que os estudantes agricultores compartilham um corpo
significante de conhecimentos e práticas influenciadas por suas
tradições culturais (Figura 1).

Figura 1 - Conjunto de desenhos elaborado por um estudante agricultor


de 18 anos do Colégio Estadual Dom Pedro II, em 2005, sobre o
crescimento e desenvolvimento da mandioca (Manihot esculenta).

72
Tais conhecimentos apresentam relações de semelhanças (Ver
exemplo no quadro 1) e de diferenças com relação às ideias científicas
apresentadas em livros didáticos de biologia (Ver exemplos no quadro
2).
Conhecimento tradicional Comparação aos conteúdos dos
agrícola livros didáticos de biologia
É bom dizer que pra plantar o abacaxi Se as partículas do solo são grandes, a
o terreno tem que ser de bem areia e água da chuva infiltra-se rapidamente e
reto pra que a planta não fique pouca umidade fica retida (Amabis &
sufocada e também pra que a água da Martho, 2004, p. 365)
chuva consiga passar bem.
O feijão [...] pode ser plantado com a As leguminosas podem ser plantadas
mandioca [...], no mesmo terreno e no junto com plantas não-leguminosas,
mesmo tempo ou com o milho e o nas chamadas plantações consorciadas
abacaxi da mesma forma. [...] (Amabis & Martho, 2004:310 p.).

Quadro 1 - Exemplos de semelhanças encontradas entre trechos das


entrevistas sobre as plantas cultivadas e explicações de conteúdos
específicos em livros didáticos de biologia do Ensino Médio.

Nas intervenções pedagógicas, ocorreram discriminações na sala


de aula que poderiam e deveriam ter sido mediadas pela professora,
para dar lugar ao diálogo entre aquelas duas formas de conhecimento,
mas não o foram. Serve como exemplo um episódio no qual um
estudante tentava explicar a sua experiência com a agricultura: ―Gente,
eu planto abacaxi com meu pai. Pra cultivar o abacaxi a gente [...]‖.
Antes que esse estudante terminasse a sua explicação, a maior parte dos
seus colegas começou a rir e um deles gritou: ―Sai daí da roça. Tu não
sabe nada‖. Nesse momento, a professora não emitiu nenhum
comentário e, após esse fato, foi interessante observar como esse
estudante agricultor permaneceu calado por toda a sequência didática,
dando a impressão que as ações desrespeitosas e excludentes que lhes
foram impostas pelos seus colegas baixaram a sua auto-estima
deixando-o tímido o suficiente para não continuar participando da aula.
Segundo Currie (2006), as discriminações em sala de aula podem
interferir na aprendizagem. Dito em outras palavras, a discriminação,
por levar os estudantes a um sentimento de inferioridade, pode inibir as

73
suas participações nos processos de ensino e aprendizagem nas salas de
aula.
Conhecimento tradicional Comparação aos conteúdos dos
agrícola livros didáticos de biologia
E o abacaxi é simples porque tem as Os pseudofrutos são estruturas
folha, a soca, as sementes e a fruta que carnosas, contendo reservas nutritivas
dá no meio dele. de forma semelhante aos frutos.
Desenvolvem-se, no entanto, de
outras partes da flor que não o ovário.
Dentre os tipos de pseudofrutos
existem os Múltiplos ou
Infrutescências, que são provenientes
do desenvolvimento de inflorescência.
Ex: amora, abacaxi e figo (Lopes,
2004, p. 275).
[...] o enxerto é a parte do caule que A enxertia é o transplante de uma
usa pra plantar. No caso da mandioca muda, chamada cavaleiro ou enxerto,
[...] se pega a maniva inteira e depois em outra planta, provida de raízes
de tirar os pedaços deita ela no solo e (Lopes, 2004, p. 252)
ai ela vai se desenvolver.

Quadro 2 - Exemplos de diferenças encontradas entre trechos das


entrevistas sobre as plantas cultivadas e explicações de conteúdos
específicos em livros didáticos de biologia do Ensino Médio.

No momento das discriminações, as falas dos estudantes, tanto


dos agricultores como dos não-agricultores, não foram exploradas de
modo que fosse possível a argumentação entre os interlocutores. A
professora poderia ter aproveitado as falas dos estudantes como
oportunidades para dialogar com eles, permitindo-lhes a apresentação
das razões que lhes conduzem à discriminação dos indivíduos residentes
na zona rural do município e, do mesmo modo, das explicações dadas
pelos estudantes que são agricultores. Tal iniciativa por parte da
professora poderia, ainda, contribuir para reflexão e posicionamento
crítico dos sujeitos envolvidos no diálogo, podendo-se levar os
estudantes a perceberem que cada cultura vê e julga o mundo através de
pressupostos que lhes são próprios. Consequentemente, poderia
também estar contribuindo para a redução do preconceito em sala de
aula. Todavia, é importante considerar a possibilidade de a professora
74
não ter uma formação docente sensível à diversidade cultural presente
nas salas de aula, no sentido de tentar reduzir as discriminações
preparando os estudantes para enfrentar situações dessa natureza.
Como bem afirma Candau (2002), a redução da discriminação
representa uma das dimensões que caracterizam a educação sensível à
diversidade cultural.
Outro problema percebido durante as intervenções pedagógicas
foi que muito dos questionamentos realizados pelos estudantes não
foram respondidos pela professora. O seguinte episódio serve como
exemplo:
A professora levantou uma questão sobre o tema da aula: ―Será
que os nomes dos vegetais ou das partes dos vegetais são os mesmos
que a ciência chama?‖. Esse questionamento instigou os alunos a
elaborarem questionamentos sobre o significado do termo ―ciência‖: ―E
o que é ciência professora?‖; ―A biologia é ciência?‖. A resposta dada
pela professora permite a afirmativa de que ela concebe a ciência como
um conjunto de saberes que pertence à comunidade dos cientistas: ―A
ciência é a atividade dos cientistas, que constroem conhecimentos
científicos‖. Quanto ao significado da biologia, a professora não
apresentou qualquer explicação.
A ausência de uma resposta por parte da professora sobre se a
biologia é uma ciência pode significar limitação do conhecimento sobre
história e filosofia da ciência na sua formação docente. O conhecimento
sobre história e filosofia da ciência lhe permitiria um interessante
diálogo com os estudantes sobre o significado do termo ―biologia‖,
como os conhecimentos são produzidos por esta ciência, os seus
processos de trabalho, as influências dos fatores sociais, culturais e
históricos sobre as suas atividades.3
Apesar dos problemas ocorridos, alguns estudantes
perceberam as diferenças encontradas entre o conhecimento
tradicional agrícola e o científico contido no material didático. Uma
estudante, fazendo referências ao milho (Zea mays), respondeu:
Sim professora, a gente chama de cabelo de milho mesmo agora
a gente não sabia que também se chama de inflorescência. Esse

3Segundo Martins (1998), o estudo da natureza da ciência pode contribuir para tornar o
ensino de biologia, e de outras disciplinas, mais interessante e facilitar a sua
aprendizagem, por permitir que o estudante tenha uma visão mais crítica sobre os
métodos, as limitações da ciência etc.
75
nome Zea mays também a gente não conhecia. Agora nós já
sabe que pode chamar de duas maneira.
Na fala dessa estudante é possível perceber uma tendência de
manter as nomeações tradicional e científica, e não de abandonar a
primeira. Ela parece disposta, assim, a ampliar o espectro de
conhecimentos que tem à sua disposição, a partir da incorporação do
conhecimento científico escolar, mas sem uma ruptura com seus
próprios conhecimentos, conforme propõe o construtivismo contextual
(Cobern, 1996).
Os estudantes também perceberam a importância do contexto
de aplicação dos saberes tradicionais. Isso pôde ser percebido, por
exemplo, quando Edna questionou onde os conhecimentos tradicionais
poderiam ser utilizados e um estudante respondeu: ―Na nossa
comunidade, se não ninguém entende‖.
CONTRIBUIÇÕES DA ETNOBIOLOGIA PARA O ENSINO DE
CIÊNCIAS
Levando em conta a metodologia utilizada para investigar os
conhecimentos tradicionais agrícolas dos estudantes é possível afirmar
que a etnobiologia pode contribuir para a investigação dos
conhecimentos que os estudantes possuem sobre a natureza. A
etnobiologia pode contribuir para a compreensão da visão de mundo
dos estudantes, não só em culturas indígenas e tradicionais, mas,
também, nos meios urbanos. Isto desempenhará um importante papel
na construção de uma prática de ensino de ciências que tenha na devida
conta as relações entre conhecimento científico, conhecimento escolar e
culturas (Baptista & El-Hani, 2006).
Como consequência da investigação dos conhecimentos
tradicionais dos estudantes, os professores poderão elaborar estratégias
de ensino nas quais os saberes etnobiológicos sejam incluídos e
considerados no diálogo cultural entre os saberes empíricos dos
estudantes e os conteúdos de ensino.
A inclusão dos conhecimentos etnobiológicos nas aulas de
biologia abriu possibilidades para o diálogo entre os saberes empíricos
dos estudantes e os conteúdos do ensino de biologia. Contudo, o
diálogo entre saberes nas salas de aula é uma questão complexa, como
mostram as dificuldades com as quais a professora se deparou, e coloca
demandas específicas para a formação docente.
76
A partir das experiências vivenciadas no estudo aqui relatado, a
autora encontra-se desenvolvendo uma pesquisa no seu doutorado, no
Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das
Ciências (UFBA-UEFS), com o objetivo geral de contribuir para a
formação docente sensível ao ensino de ciências multicultural.

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79
80
DARWINISMO BIOLÓGICO E DARWINISMO
SOCIAL: EXISTE UMA LINHA DIVISORIA RELEVANTE
PARA O ENSINO DE EVOLUÇÃO?

Nelio Bizzo4
INTRODUÇÃO
Há uma crença muito difundida que dá notícia da existência de
um ―darwinismo biológico‖ ideologicamente neutro e distanciado das
disputas que ocorriam no seio do contexto social, e uma suposta
corrupção dele, o chamado ―darwinismo social‖. Este avançaria a linha
da prudência ao aplicar as teorias darwinistas ―às raças humanas‖, o que
teria dado origem a um darwinismo ―impuro‖, ideologicamente
comprometido, que em nada se relacionaria com os formuladores
originais no campo biológico.
Essa forma de estampar as aplicações do darwinismo ao contexto
humano é muito difundida e popular até mesmo na tradição das
ciências humanas. Alguns autores localizam na tradição determinista do
século XIX, em especial no determinismo geográfico, a origem do
―darwinismo social‖ como verdadeira contrapartida (Schwarcz, 1993, p.
58).
Embora admitam um amplo espectro de ―desvios do perfil
originalmente esboçado por Charles Darwin‖, que incluiriam a
sociologia de Herbert Spencer, a ―ciência histórica‖ de Henry Thomas
Buckle e outros (idem, p. 56), diversos autores falam de ―corrupções‖
do darwinismo, em numerosas sínteses e reconstruções históricas das
ciências explicitamente dedicadas ao contexto do ensino.
No contexto do ensino da ciência, muito se argumentou sobre a
forma distorcida de sua apresentação para finalidades educacionais, que
resulta em ―pseudo-história‖ e ―pseudo-ciência‖ (Allchin, 2004), mesmo
se a simples menção à História e Filosofia da Ciência já tenha se
constituído em ―lugar comum‖ do ensino de ciências (Greca e Freire Jr,
2004).
A tradição da Biologia, sobretudo norte-americana, se empolgou
com certas formas de reconstrução histórica do darwinismo, em
especial a de oposição entre Darwin e Lamarck, como uma espécie de

4 Faculdade de Educação da USP.


81
―história darwinista do darwinismo‖ (Bizzo e Molina, 2004). Pretende-
se aqui explorar uma escola de pensamento que tem tido reduzida
penetração na área do ensino de biologia, que é a tradição marxista
representada, sobretudo por Robert Maxwell Young. No passado, essa
tendência, sobretudo em estudos de História Social da Ciência, foi
frequentemente confundida com a perspectiva externalista, na qual a
origem das tensões transformadoras dos paradigmas científicos é
buscada fora do estrito âmbito da ciência. O questionamento da
tradição internalista, sobretudo em meados da década de 1960, teve, é
certo, um forte componente marxista, mas não se pode hoje afirmar
que ele tenha subsumido inteiramente as perspectivas externalistas, nem
tampouco que ele tenha se esgotado com elas.
De fato, embora a importância da ciência para o
desenvolvimento da sociedade tenha sido crescentemente relativizada, a
tradição marxista lhe tem dedicado atenção de maneira constante, desde
Marx e Engels, principalmente por ver na base material da produção um
componente essencial para a compreensão da transformação histórica
da sociedade (Porter, 1990). Ao analisar o desenvolvimento da ciência e
o desenvolvimento da sociedade, há diversas tradições historiográficas e
métodos de trabalho que têm reconhecimento diverso. Entre eles o
anacronismo é apontado como vício metodológico, que é difícil de
escapar pelo menos no contexto da História da Ciência.
A CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Por que o trabalho do historiador é tão susceptível ao
anacronismo, que no contexto anglófono se consagrou com a expressão
"whiggismo"? O termo não existe no vernáculo. No entanto, qualquer
tradução distorceria seu significado. O termo se refere à frase "A
interpretação whig da história da ciência", uma provável alusão ao livro
de Herbert Butterfield, "The Whig Interpretation of History" (1931),
onde é denunciada a forma de encarar os acontecimentos passados
apenas em função de sua contribuição para o estabelecimento do
sistema político britânico sob a hegemonia dos whigs (em oposição aos
tories, mais conservadores). Foi criada uma saga de heróis whigs e vilões
tories. Robert Maxwell Young (1985) classificou o whiggismo, no contexto
da história do darwinismo, em diversos matizes.
O "whiggismo primário" que parece ser a tendência de traçar uma
linha reta entre passado e presente, sem nenhum espaço para as
82
questões candentes de cada período, tampouco para os "perdedores da
história". O "whiggismo secundário" parece a tendência de conceber as
"concepções imaturas" de um cientista como estágio obrigatório
antecedendo sua "maturidade científica". Obviamente, as "concepções
maduras" se constituem apenas naquelas que o historiador seleciona
como válidas na atualidade. Além disso, nos diz Young, existe sempre o
risco de rotular as teorias superadas de um cientista admirado por nós
como "concepção imatura" e, assim, esquecê-las. Poder-se-ia ainda
traçar um "whiggismo terciário", no qual os cientistas criadores de
concepções alternativas desapareceriam junto com as "concepções
imaturas" de nosso herói, de forma que todo o resto se transformaria
na teoria vitoriosa do passado conduzida em direção ao modelo aceito
até então.
Permito-me propor um "whiggismo" adicional, que parece ter
escapado a Young. Como certos pensadores defendem as ideias de
nosso cientista e, por isso, passam a ser considerados inconvenientes,
difunde-se a notícia de que, apesar de sua formação intelectual e do
convívio direto com o mestre, eles simplesmente não o entenderam.
Desta forma, os "defensores" só poderiam ser levados a sério quando
não oferecessem oportunidades para crítica do mestre.
O caso de Thomas Huxley é bastante ilustrativo. Apesar de seu
sugestivo apelido de "buldogue de Darwin", muitos especialistas
afirmam que ele jamais compreendeu Darwin. O mesmo, talvez, seja
dito de Leonard Darwin, sua obra, suas campanhas políticas e, como
veremos adiante, sua comprometedora dedicatória de ―The Eugenic
Reform‖ (1926).
Isso para não citar o argumento, segundo o qual, os críticos das
ideias de certo cientista o fazem simplesmente porque não o
compreendem. O contexto da crítica é desconsiderado, como se apenas
uma única interpretação fosse possível, como se a importância relativa
das várias classes de fatos que sustentam uma teoria devesse obedecer
sempre a um rigoroso e inalterável balanço.
O DARWINISMO É SOCIAL?
A posição de Young, de certa forma inovadora, emergia, já em
1969, de uma tese comentando a influência de Malthus sobre Darwin,
como algo muito mais relativo do que se pensava. Segundo ele, o
impacto da lei da população, cunhada em 1798 junto com a expressão
83
"struggle for existence", na obra de Darwin, é mais aparente do que real.
Uniria os dois pensadores, sobretudo o ideário burguês, as categorias
sociais compartilhadas pelos teorizantes de tudo o que viam a sua volta,
fossem plantas sedentas no deserto ou operários doentes nas fábricas.
Certas afirmações, mesmo se apresentadas por renomados cientistas
como resultantes de conclusões científicas, serão vistas por Young
como simples exercícios ideológicos, como por exemplo: ―os processos
pelos quais as sociedades humanas evoluem são, desse modo, em
princípio, os mesmos que atuaram nos estágios pré-humanos da
evolução‖. Trata-se simplesmente de uma máxima de Cyril Dean
Darlington (1903-1981), o biólogo inglês que descobriu o cross-over e o
papel das mutações cromossômicas na evolução, mas que também
defendeu ideias eugênicas e ―naturalizou‖ diversas construções sociais,
em especial as ligadas à ideia de raça (Young, 1969).
Young insistirá com tenacidade naquilo que o darwinismo está
sendo, sua repercussão social, seu efeito concreto sobre a forma como as
pessoas percebem o mundo circundante. Não tem tanta importância o
que o darwinismo pretende ser e, muito menos, o que seus fundadores
originais queriam com ele.
Por esta razão, Young ao dar pouco valor aos apelos dos
darwinistas e do próprio Darwin, sobre o caráter metafórico de certas
expressões, pretende estudar as formas como semelhantes metáforas
são vistas e interpretadas e suas repercussões sociais concretas. A "luta
pela existência", a "sobrevivência do mais apto" e tantas outras metáforas de
Darwin, não foram entendidas como tal, no contexto social onde
emergiram. Preocupa-o também o uso do termo "trabalho" para
designar qualquer ação realizada por qualquer ser vivo, mais uma dessas
metáforas que inundam os textos de sociobiologia. Desse modo,
escreveu Darwin's metaphor: does nature select? (1971), texto que integra a
coletânea de textos Darwins's Metaphor. Nature's place in Victorian culture
(1985b).
As passagens presentes no Descent of Man sofreram meticuloso
estudo de Young para mostrar que as mesmas "leis" vistas por Darwin
influindo nos seres vivos, eram as mesmas atuando sobre o Homem.
Young (1985) reproduz, por exemplo, o seguinte trecho de Darwin, que
ele diz estar baseado em trabalhos de William R. Greg (1809-1881),
Alfred R. Wallace (1823-1913) e F. Galton (1822-1911):

84
Nos selvagens, os fracos de corpo ou mente são logo
eliminados; os que sobrevivem geralmente exibem um vigoroso
estado de saúde. Nós, homens civilizados, por outro lado,
fazemos de tudo para impossibilitar o processo de eliminação,
construímos asilos para os imbecis, inválidos e doentes,
instituímos leis para os pobres, e nossos médicos dão tudo de si
para salvar a vida de qualquer um até o último momento. É
difícil acreditar que a vacinação tenha salvado milhares que, por
terem uma constituição fraca, teriam morrido de varíola. Assim,
proliferam os membros fracos das sociedades civilizadas.
Ninguém que tenha se dedicado à criação de animais domésticos
duvidará que isso é absolutamente prejudicial para a raça
humana. É surpreendente ver como os cuidados excessivos, ou
incorretamente aplicados, conduzem rapidamente à degeneração
de uma raça doméstica, e ninguém, exceto o homem, é tão
ignorante ao ponto de permitir que seus piores animais procriem
(p. 161) Darwin (1982 p.168, 1871).
Nas páginas seguintes, em outros trechos reproduzidos, um tanto
quanto surpreendentes, Darwin defende o acúmulo de capital, a
necessidade de diferentes classes sociais, a explicação do progresso nos
Estados Unidos ("apenas os mais bravos foram para lá"), etc. O artigo
de William Greg, mencionado no rodapé por Darwin, fora publicado
em 1868, e começava por citar o argumento de Wallace, publicado em
um controvertido artigo de 1864. Ele terminava por alertar para o efeito
―perverso‖ dos avanços da filantropia, da assistência social e da
medicina que, ao prolongar a vida dos doentes, eternizava a doença.
Young nos desafia a encontrar qualquer tipo de metáfora na citação
acima.
Embora os pais não possam ser diretamente culpados pelo
pensamento, palavras e ações dos filhos, em particular quando se trata
de algo reprovável, um exemplo ilustrativo parece escapar aos olhos de
Young. Leonard Darwin, filho de Charles e Emma, como presidente da
Sociedade Britânica de Eugenia, além de opinar sobre a legislação municipal,
em especial, quanto às leis de amparo aos pobres (propondo sua
extinção), escreveu um livro a respeito da necessidade da reforma
eugênica.
No capítulo dedicado à proposta de "eliminação dos menos
adaptados" (XXI), Leonard Darwin escreveu:
Se a raça está se deteriorando agora devido à multiplicação dos
menos adaptados, e se, como é certo, esforços adicionais estão
85
continuamente sendo feitos para diminuir a taxa de mortalidade
dos tipos inferiores, a velocidade dessa deterioração está
provavelmente aumentando, e a necessidade de ação é cada dia
maior. [...] seria benéfico para a raça se todas as famílias que
vivem de forma incivilizada, e aumentando em número apesar
de todos os avisos contra isso, fossem segregadas, a menos que e
enquanto o pai não consentisse em ser esterilizado, quando
então a assistência pública poderia ser dada ou renovada.
(Darwin, 1926, p. 388-390).
O capítulo seguinte, ―A multiplicação dos mais bem adaptados‖,
recomendava medidas inversas. Os menos necessitados em limitar o
número de filhos, reconhecia Leonard, eram os que mais o faziam,
sendo o contrário, igualmente verdadeiro.
Porém, a dedicatória do livro do filho de Charles Darwin trazia
revelação não menos comprometedora para os oponentes das teses de
Young:
Dedicado à memória de meu pai, pois se eu não acreditasse que
fosse seu desejo que eu desse tal contribuição para que o
trabalho de sua vida fosse colocado a serviço da humanidade eu
nunca teria sido levado a escrever este livro (Darwin, 1926, v).
Assim como os "menos-adaptados" são apontados como vítimas,
nas obras de Darwin selecionadas por Young (1985), as mulheres não
encontram melhor destino. O homem (do sexo masculino)
continuamente selecionava as mais belas e perfeitas, de forma que a
seleção sexual, tema tão caro a Darwin, estaria sendo realizada às
avessas na espécie humana.
Ensaios de Huxley são também transcritos, como "Emancipation
- Black and White", opúsculo de 1865, na qual podemos encontrar
argumentos bastante originais a favor da abolição da escravatura (Huxley,
1893). Huxley comenta a guerra civil americana dizendo que a questão
da igualdade racial será finalmente resolvida do outro lado do Atlântico.
Huxley argumentava que as capacidades intelectuais do homem branco,
"com maior cérebro e mandíbula menor", superariam as dos negros, e,
portanto, não haveria razão para se opor à liberdade destes, pois
permaneceriam submetidos à superioridade do branco, por seus
atributos biológicos naturais. Ele concluía seu argumento dizendo que
nosso ―parente prognata‖ poderia finalmente competir com seu ―rival
portador de maior cérebro e mandíbula menor”, numa contenda que deve ser
―resolvida com tirocínio e não com mordidas‖. Não podendo se queixar de sua
86
condição social, porque "toda a responsabilidade dali em diante será uma
questão a resolver entre eles e a Natureza", a abolição da escravatura nos
Estados Unidos revelaria a verdadeira condição natural das duas raças
(Huxley, 1893).
Em conclusão, Young, mostra nas inúmeras passagens nos
escritos de Darwin e Huxley, a inexistência de distinção clara entre
darwinismo e darwinismo-social, da mesma forma que ciência e ideologia são
indissociáveis.
Young (1985) dirige suas atenções para as formas assumidas, em
anos recentes, pelas ideias biológicas ligadas a Darwin, e demonstra que
uma série de livros escritos por biólogos profissionais, quando não
cientistas reconhecidos, re-elabora as teorias darwinistas, utilizando-se
de categorias sociais como: divisão de trabalho, hierarquia, competição,
dominação, submissão, casta, papel social, trabalhador, escravo,
soldado, territorialidade, liderança, doutrinabilidade etc, referindo-se, é
claro, aos etologistas-pop, como os chama Richard Lewontin, e aos
sociobiologistas.
Quando vemos alguma formiga a carregar uma folha, nossa
primeira sensação consiste em estar ela realizando atividade útil para si e
para sua coletividade. Inclinamo-nos a associar tal atividade àquela de
um homem a transportar carvão numa mina, isto é, tanto o homem
como a formiga "trabalham". Embora a natureza física do trabalho, em
ambas as situações, possa ser mensurada pela relação entre força e
distância, se esgota precisamente aqui qualquer tipo de equiparação
rigorosa entre as duas situações.
A mina de carvão é propriedade de outrem: o dono tem uma
intenção precisa com sua mina de carvão; os mineiros produzem
excedentes apropriados pelo dono da mina; os mineiros têm consciência
da situação na qual estão imersos; os mineiros se organizam em
sindicatos e lutam para que a parcela de riqueza deles expropriada seja
menor; os mineiros fazem greves; a classe dos proprietários procura
fontes alternativas de energia ao carvão, quando os mineiros conseguem
reduzir aquela parcela de riqueza que lhes é expropriada. Como se vê,
não existe em tudo isso nenhum paralelo com o mundo das formigas!
Em suma, embora não haja identificação mais direta, imediata,
singela e inocente entre o trabalho de um mineiro e o "trabalho" de uma
formiga, emerge claramente a limitação formal da analogia. As
metáforas são recursos literários que se prestam a diferentes utilidades.
87
Neste caso, a metáfora do trabalho será utilizada para construir a
ideologia do trabalho. São duas etapas distintas, mas Young parece
entendê-las como um único processo.
Quem constrói a metáfora está ciente do que fez. Quem ouve a
metáfora, por outro lado, nem sempre a interpreta como tal. A
possibilidade de sua utilização ideológica reside justamente nessa
dissonância, onde novos significados emergem sem a evidência da
distorção da qual se originam.
Quando se elaboram teorias sobre as formigas a partir do modo
como os donos de minas gostariam que seus mineiros se comportassem
e, a partir delas, se procura ensinar os mineiros a trabalhar com a perfeição
e harmonia das formigas ou de acordo com as leis da natureza, a função
ideológica das teorias biológicas, inocentes ou singelas, transparece com
clareza.
Nunca é demais lembrar as palestras públicas para operários que
Thomas Huxley se empenhava em realizar nos idos de 1859-60
(Desmond, 1997, p. 252). Não havia diferença entre o ser humano e os
demais primatas! Muito se poderia dizer sobre o uso de outras
categorias sociais, como escravagismo, espírito empresarial, dominação,
doutrinabilidade etc. (a lista é extensa). As expressões luta pela existência,
sobrevivência do mais apto, seleção realizada pela natureza, talvez tenham sido
apenas as primeiras de uma lista que, hoje em dia, a sociobiologia se
esmera em dilatar.
De onde poderia ter surgido a luz para essas teorias se não da
própria sociedade na qual se encontram imersos os pensadores? Esta
pergunta, Young dirige em particular a Edward Wilson, de Harvard, e
Richard Dawkins, de Oxford. Os textos por eles produzidos guardam
uma grande analogia com o debate do século passado e fornecem mais
evidências para acabar com a distinção entre os assim chamados livros
puramente biológicos e os puramente ideológicos. Na sociedade nós moldamos
nossa concepção de natureza, a qual, por sua vez, parece estar de
maneira intrínseca ligada à nossa concepção de natureza humana.
(Young, 1985).
Como lembravam Levins e Lewontin, "evolucionismo", apesar
de estar intimamente ligado à evolução orgânica, desenvolveu-se nos
últimos duzentos anos como uma ideologia a permear todas as ciências
naturais e sociais, inclusive a biologia, a antropologia, a cosmologia, a
linguística, a sociologia e a termodinâmica. As elaborações teóricas
88
servem-se de conceitos de mudança e ordem e, no campo biológico e
social, utilizam ainda os conceitos de progresso e perfeição (Levins e
Lewontin, 1985, p.9).
A SALA DE AULA, A CIÊNCIA E O SOCIAL
É compreensível que, à primeira vista, se tente (des)qualificar a
tentativa de traçar relações entre ciência e sociedade como uma crítica
genérica à ciência. Mais recentemente, ao evidenciar essas relações, tem
se acusado a ciência de ser um construto teórico equivalente à ideologia.
É necessário enxergar limites e possibilidades nesse debate, com vistas a
explorar a profundidade da contribuição da ciência e sua história para a
educação.
A ciência não pode ser vista como uma empreitada purificada e
purificadora em si, contra os ―males‖ da sociedade, como os interesses
econômicos e de classe. Ao contrário, ao levá-los em consideração,
pode-se antever a real imbricação social da ciência. Por outro lado,
talvez possa parecer que a imagem que se deseja transmitir seja a de
cientistas gastando sua existência à procura de evidências empíricas
adaptáveis às convicções da moda vigente, ao beneplácito dos
poderosos. Esta não é, de forma alguma, a intenção desta exposição.
Concordar com a influência das ideias dominantes de um tempo
sobre as elaborações científicas que ali brotaram e foram aceitas pode
parecer estranho aos nossos olhos. No entanto, caberia indagar a razão
do mesmo espanto não ocorrer quando analisamos uma obra do ponto
de vista literário ou artístico. Os escritores, os artistas e as obras que
produzem são comumente interpretados à luz da sociedade na qual
apareceram. Nem mesmo o mecenato consegue diminuir a importância
das obras de um artista, enquanto expressões espontâneas e legítimas de
uma época. Quantas vezes os nobres se fizeram reproduzir em telas a
óleo? Isso transforma pintores geniais como Goya em meros
mercenários? O mesmo poderia ser dito dos temas sacros que forram a
Capela Sistina, de Michelângelo e Botticelli?
Poderemos então, pretendendo o extremo oposto, dizer que
Goya, apesar de pintor da corte de Carlos IV, nunca permitiu que sua
condição social influenciasse seu trabalho? Ou que Michelângelo e
Botticelli eram simples devotos tementes a Deus?
Se as obras artísticas não perdem seu brilho quando
reconhecemos o quanto devem ao meio físico e social no qual
89
emergiram, até pelo contrário, por que devemos considerar uma ofensa
a um cientista apontar uma inspiração que não seja outra coisa senão
terrena?
Quando apontamos o meio competitivo no qual Charles Darwin
estava imerso como uma fonte inspiradora para suas teorias, isso não
significa que elas fossem erradas ou ilegítimas. A teoria fagocítica, por
exemplo, derivou, em linha reta, da metáfora liberal criada por Darwin,
e isso não a diminui em nada. Até hoje dizemos que os glóbulos
brancos lutam contra micróbios invasores, e que devemos esse
conhecimento ao russo I. I. Mechnikov (1845-1916) que, aliás, ganhou
um prêmio Nobel por isso. Mas ele mesmo admitia que o responsável
indireto era Darwin. Poderia ter sido até mesmo Thomas Hobbes e seu
Leviatan, e isso não diminuiria a fúria dos leucócitos contra os invasores,
tampouco o mérito de Mechnikov em receber um Nobel.
Quando localizamos no mundo concreto a inspiração de uma
teoria qualquer, isso não significa que estejamos procurando
ridicularizá-la, nem ofuscar a genialidade de seu criador.
Hoje temos um vívido debate entre a utilização de células-tronco
embrionárias para a pesquisa médica. Não podemos rotular os cientistas
que defendem a posição de liberação de seu uso como mercenários a
soldo das indústrias multinacionais farmacêuticas (como, aliás, insistem
alguns). No entanto, não se pode deixar de levar em consideração os
interesses reais que existem nesse debate, que pode alterar práticas
sociais, elas mesmas frutos de certa atividade econômica.
Os embriões congelados à disposição da pesquisa científica
derivam de novas práticas sociais, engendradas pelo desenvolvimento
científico-tecnológico e econômico. As práticas de fertilização assistida
abriram um novo campo na reprodução humana que teve como
subprodutos estoques de embriões congelados.
Sem entrar na esfera moral do debate, não se pode deixar de
reconhecer o profundo vínculo da pesquisa científica atual com padrões
econômico-sociais. E nada nos indica que no passado tenha sido
diferente, seja com Galileu, seja com Darwin. A questão é: por que isso
não deve fazer parte dos cursos de ciências? Por que não podemos
oferecer uma imagem mais real de nosso objeto de estudo? Por que a
defesa da alienação política é tão bem vista no ensino da ciência?

90
REFERÊNCIAS
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91
92
O MECANICISMO E A BIOLOGIA
Argus Vasconcelos de Almeida1

ORIGENS E CARACTERÍSTICAS
A filosofia mecanicista nasceu como uma reação ao naturalismo
renascentista (ou magia natural) na interpretação dos fenômenos da
natureza. Sua explicitação ocorreu no início do século XVII, postulando
que todos os fenômenos naturais deveriam ser explicáveis por
referência à matéria em movimento; pois a realidade física manifesta-se
como um conjunto de partículas que se agitam e se entrechocam. O
mundo se apresenta, portanto, como uma espécie de sistema mecânico
ou como uma gigantesca acumulação de partículas agindo umas sobre
as outras, como uma engrenagem de um relógio. Daí porque esta
máquina é a sua metáfora central (Japiassú, 1991).
De acordo com Frezzati Jr. (2003) para o mecanicismo a matéria
era perfeitamente inerte e desprovida de toda e qualquer propriedade
misteriosa ou de forças ocultas, porque desprovida de espírito e
pensamento. Os fenômenos naturais só poderiam ser explicados em
termos de tamanho, de forma e velocidade das partículas. Sua única e
exclusiva característica era a extensão. No entanto, o mecanicismo não
se apresenta de modo uniforme e progressivo, mas com uma variedade
de significados. Numa visão muito ampla, o mecanicismo é identificado
com o determinismo, ou seja, com a ideia de que os fenômenos vitais se
produzem segundo uma ordem determinada e que as condições de sua
aparição seguem a lei da causalidade. Ainda numa visão ampla, o
mecanicismo pode significar simplesmente a negação a causas
transcendentes.
Nenhum homem criou a filosofia mecanicista. Em todos os
círculos científicos do século XVII na Europa, durante a primeira
metade do século, aparece como um movimento espontâneo de
concepção mecanicista da natureza como uma reação ao naturalismo
renascentista, que se assentava fundamentalmente na convicção de que
a natureza é um mistério cuja profundidade a razão humana nunca
poderia entender; a matéria era sempre encontrada com vida e

1 Professor Associado do Departamento de Biologia da UFRPE.


93
percepção, possuindo virtudes ocultas tais como simpatias e antipatias,
sendo uma projeção da psique humana (Westfall, 1980).
PERSONAGENS
Os principais inspiradores da abordagem mecanicista dos
fenômenos da natureza foram Kepler, cujas leis já definiam em termos
matemáticos o movimento dos astros; e, sobretudo Galileu, que fez a
junção das deduções matemáticas com a experiência, tornando-se assim
o fundador da ciência quantitativa moderna; com ele os astros perderam
sua divindade (Japiassú, 1991) e o espaço mítico dos céus torna-se um
espaço físico. É claro que Galileu não foi o único criador da ciência
moderna, mas foi seu grande inspirador, com ele o mecanicismo se
impõe como abordagem privilegiada dos fenômenos da natureza. Como
pensadores e pesquisadores experimentais, vários amigos e discípulos de
Galileu se destacam no estabelecimento da ―nova filosofia‖, entre eles:
Gassendi, Mersenne e Hobbes, que provocam com seus escritos uma
verdadeira revisão dos valores intelectuais vigentes.
Segundo Japiassú (1991), é um erro de interpretação histórica
considerar Descartes como fundador da filosofia mecanicista. Quando
ele começou a defender uma posição mecanicista no Discours de la
méthode (1637), outros já a defendiam há bastante tempo. Assim, pode-se
escrever a história do nascimento do mecanicismo sem falar de
Descartes. No dizer de Koyré a influência de Descartes sobre os seus
contemporâneos era muito pequena. No domínio da interpretação da
natureza, ele não inventou a abordagem mecanicista, apenas
sistematizou e articulou conhecimentos e termos já correntes em seu
momento histórico. Muito mais conhecido que ele era Gassendi, que,
segundo Koyré, forneceu os fundamentos da nova ciência, libertando-a
do aristotelismo escolástico e, com o seu atomismo renovado, forneceu
uma base ontológica à ciência moderna.
Já Westfall (1980), considera Descartes como um verdadeiro
porta-voz da ―nova filosofia‖ mecanicista, dotando-a de um rigor
filosófico necessário. Com o famoso dualismo cartesiano, argumentava
que toda a realidade estava composta de duas substâncias: o espírito era
uma substância caracterizada pelo ato de pensar e o reino material, uma
substância cuja essência era a extensão (res cogitans e res extensa), que se
tornaram separadas e distintas. A substância pensante não pode possuir
nenhuma propriedade da matéria, nem extensão, nem lugar e nem
94
movimento. Como resultado dessa dicotomia ocorreu a rígida exclusão
de qualquer característica psíquica na natureza material, que
caracterizava o naturalismo renascentista. Portanto, a natureza física da
ciência acabava de nascer, com o mundo como uma máquina composta
de corpos inertes movidos por necessidade física, indiferente à
existência de seres pensantes.
Entretanto, a filosofia cartesiana não era a única alternativa do
mecanicismo, uma pelo menos, manteve-se como viável e atrativa: o
atomismo de Pierre Gassendi (1592-1655), que apresentava algumas
divergências básicas com o cartesianismo, como por exemplo, na
questão da matéria que Descartes considerava como infinitamente
divisível e Gassendi sustentava a realidade dos átomos como as últimas
partículas indivisíveis. O universo de Descartes era um plenum;
Gassendi, ao contrário, argumentava a existência de vazios, de espaços
sem nenhuma matéria. Gassendi (citado por Westfall, 1980) acreditava
que a natureza não era completamente transparente à razão humana; o
homem pode conhecê-la apenas externamente, só como fenômeno.
Assim, a única ciência possível era a descrição dos fenômenos. Esta
posição, entretanto, não encontrou fácil aceitação entre os mecanicistas
que continuaram a construir imaginariamente mecanismos invisíveis
para dar conta dos fenômenos da natureza. Gassendi, sem dúvida, só
encontrou um seguidor em Newton que, com o Philosophiae naturalis
principia mathematica (de 1687), atingiu o triunfo cosmológico da
inteligibilidade mecanicista.
ASPECTOS SOCIOPOLÍTICOS
De acordo com Japiassú (1991), o ideal instaurado pelo
mecanicismo reflete uma realidade produzida por um conjunto social
bastante preciso de práticos: arquitetos, artesãos, relojoeiros,
engenheiros, fabricantes de máquinas. Estes práticos exerciam os seus
ofícios e possuíam representação social graças a um conjunto de
condições econômicas e sociais do final do século XVI e início do
XVII, cuja expressão técnica já não podia ser ignorada. As chamadas
―artes mecânicas‖ começam a desfrutar de grande prestígio. O termo
―mecânico‖ deixa de ser um insulto na sociedade européia ocidental. O
próprio método experimental da nova ciência nasceu da experiência do
lucro, de condições econômicas determinadas por novas necessidades
das trocas e da produção. Assim, o próprio mecanicismo constituiu-se
95
num poderoso instrumento nas mãos da burguesia nascente na luta pelo
poder contra a velha aristocracia. A metáfora da ―máquina do mundo‖
não nasceu nas bibliotecas dos mosteiros e universidades, mas na
prática do mundo da produção e das trocas comerciais.
Assim, a filosofia mecanicista, apesar do cartesianismo, abre a
perspectiva para a instauração do materialismo mecanicista do século
XVIII, tornando-se emblemático na obra de La Metrie: O Homem-
máquina.
A BIOLOGIA E O MECANICISMO DO SÉCULO XVII
Causa estranheza entre os filósofos e historiadores da ciência que
o mecanicismo, uma abordagem tão grosseira dos fenômenos da
natureza, tenha tido algum papel na explicação dos complexos e
delicados processos dos seres vivos.
Em fins do século XVI e início do século XVII uma grande
torrente de novos fatos invadiu a História Natural, com um mundo de
novas informações provenientes de animais e plantas recolhidos das
grandes navegações, que entulharam os armários, estantes e jardins dos
nascentes museus da Europa. Acrescente-se a isto, o desenvolvimento
da microscopia, que revelou uma nova dimensão do mundo vivo, sendo
análogo ao desenvolvimento do telescópio para a astronomia.
Como escreve Westfall (1980), ao contrário da Física que
desenvolveu novas perspectivas para considerar velhos fatos, a Biologia
apresentou uma enorme expansão de seu corpo de informação factual e,
o que era mais sério, não tinha o poder de assimilá-lo imediatamente,
tendo que reconstruir todas as suas categorias de análise e pensamento.
Assim, é compreensível que a taxonomia tenha adquirido enorme
importância na História Natural da época.
No século XVII inúmeros sistemas classificatórios foram criados
para ordenar o caos de novas plantas e animais que chegavam do Novo
Mundo. Na Botânica, destacavam-se os de Garspar Bauhin, John Ray e
Tournefort, enquanto a Zoologia apresentou enormes dificuldades para
superar a tradição aristotélica. Assim, Aldrovandi, Moufet, Johnston,
Ray e Willoughby, geralmente em suas obras apresentaram grandes
compilações aristotélicas.
A fisiologia de Descartes, descrita na obra Traité de l‟homme,
forneceu três ideias consideradas fundadoras do mecanicismo na
biologia: 1) as mesmas leis mecânicas aplicam-se aos engenhos humanos
96
e aos organismos vivos; 2) a causa da ação das partes está dentro do
próprio corpo; 3) o automatismo, ou seja, uma resposta permanece a
mesma se as condições de sua manifestação permanecerem as mesmas
(Frezzatti Jr., 2003).
MODELOS MECANICISTAS DA BIOLOGIA SEISCENTISTA
A CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA
Segundo a predominante fisiologia galênica, o fígado era o
principal órgão do corpo humano. Nele o alimento sofria a sua primeira
transformação convertendo-se em sangue que, associado a espíritos
naturais, migrava do fígado, através das veias, até os órgãos e partes do
corpo, que o absorvia como alimento. Parte deste sangue passava ao
ventrículo direito do coração e passava através dos poros do septum,
para passar ao ventrículo esquerdo, onde sofria uma segunda elaboração
em presença do ar que chegava dos pulmões. O que emergia do
ventrículo esquerdo era conduzido através das artérias para o resto do
corpo, eram espíritos vitais. Parte destes ascendiam ao cérebro,
sofrendo uma terceira elaboração e se convertendo em espíritos
animais, que seriam distribuídos aos nervos.
Esta fisiologia galênica, aqui brevemente apresentada,
permaneceu aceitável num período pré-mecanicista, pois coincidia com
os fatos observados até então, até que o anatomista Vesálio assinalou a
ausência de poros no septum. Entretanto, o modelo galênico foi salvo
por pequenas revisões: os anatomistas estabeleceram que o sangue
passava do ventrículo direito para o esquerdo através dos pulmões,
considerando este trânsito como uma rota alternativa e a fisiologia
galênica permaneceu intacta. Tampouco foi modificado pelo
descobrimento de Fabricius de cavidades membranosas nas veias, as
suas válvulas, como hoje são conhecidas.
Um dos mais brilhantes discípulos de Fabricius de
Aquapendente, em Pádua, centro predominante do aristotelismo em
anatomia, foi William Harvey (1578-1657) que ali cursou seus estudos
médicos. Após muito tempo de estudos surgiram dúvidas em Harvey
sobre a função e o funcionamento do coração. Em fisiologia,
Aristóteles havia afirmado a primazia do coração em contraste com a do
fígado na fisiologia galênica. Os aristotélicos de Pádua há muito
discutiam comparando o coração no corpo humano com o Sol no
cosmos: pois o calor da vida manava de ambos; o movimento circular
97
do Sol ao redor da Terra desempenhava um papel significativo nos
processos cósmicos; não haveria então uma circulação similar no
coração? O termo ―circulação‖ tinha, então, diversos significados: um
relacionava-se a um movimento cíclico repetido; outro, químico,
associado com a destilação, sugeria que o sangue era aquecido no
coração e condensado nos pulmões. A grande proeza de Harvey (citado
por Westfall, 1980) então, consistiu em aplicar o conceito de circulação
aos fatos conhecidos em anatomia e em insistir numa explicação
mecanicista da circulação.
Harvey (citado por Westfall, 1980) em sua obra Exercitatio
anatomica de motu cordis et sanguinis, começa por inverter a imagem do
movimento ativo do coração: era a sua contração, a sístole. Ao
contrário da fisiologia galênica que considerava a diástole como
movimento do coração. Em seguida argumentou sobre as necessidades
mecânicas do coração, medindo a sua capacidade e chegando a
conclusão de que um ventrículo continha mais de cinquenta e seis
gramas de sangue, supondo uma capacidade máxima de cinquenta e seis
gramas e que uma quarta parte era expulsa em cada contração,
estabelecendo-a mais alta que em um oitavo. Supôs, finalmente, que o
coração batia umas mil vezes em cada meia hora, uma medida
deliberadamente baixa. Em cálculo atual, a medida de Harvey de sangue
expulso era menor em três por cento da real, usou, portanto um
argumento quantitativo deliberadamente rebaixado para argumentar que
o coração descarregava mais sangue nas artérias em meia hora do que o
volume de sangue do corpo inteiro: de onde poderia vir tal volume se
não através de uma circulação? Reforçando esta hipótese, para
demonstrar que o sangue passava das artérias para as veias,
experimentou sobre si mesmo através de uma ligadura perfeita em seu
braço e concluiu demonstrando que o coração funcionava como uma
bomba que move um fluido através de um circuito fechado de vasos,
um sistema que recordava as obras hidráulicas das fontes dos jardins
reais.
Apesar da demonstração mecanicista do movimento do coração,
Harvey considerava-o como um ―sol do microcosmo‖, além do que,
como Aristóteles, a circulação tinha múltiplos significados,
reproduzindo a geração cíclica da natureza, que era o meio de
preservação dos cosmos e de todos os seres. Assim, considerava o

98
sangue como um fluido espiritual, portador do princípio vital do qual
dependia a vida (Westfall, 1980).
Quando da publicação em 1628 da obra de Harvey sobre o
movimento do coração, Descartes já trabalhava na sistematização de
suas ideias. O trabalho do ―médico inglês‖ imediatamente o interessou,
pois reforçava a sua exposição do movimento em um plenum. Dez anos
depois, incluiu uma exposição da circulação sanguínea como exemplo
de um processo fisiológico puramente mecânico, no seu Discurso do
Método, apropriando-se da descoberta de Harvey, porém eliminando
sistematicamente todo o vitalismo nele contido.
Descartes no seu Tratado do Homem descreve uma máquina que
realiza todas as funções fisiológicas do homem: circulação, digestão,
nutrição e crescimento e percepção. Para ele não era necessário
imaginar um princípio de vida. Esta era mesmo uma presença estranha
em um mundo mecânico. Os autômatos, fabricados pelos artesãos a
partir do Renascimento, forneceriam um novo modelo explicativo dos
organismos: um ser vivo não passa de uma mecânica aprimorada por
um artesão divino. Este é o objetivo ideal do Traité de l‟homme. Em
relação a sua fisiologia da circulação sanguínea, ao tentar mecanizá-la ao
máximo, retrocedeu até à fisiologia galênica, quanto ao papel da sístole e
diástole e do papel dos ―espíritos‖ circulantes. Ao vulgarizar a obra de
Harvey, para poder mecanizá-la, perdeu os elementos principais do seu
tratamento mecanicista.
De acordo com Canguilhem (1977), enquanto para Harvey o
coração era um músculo cujas contrações expulsava o sangue para a
periferia dos vasos, para Descartes, o coração era uma víscera cujos
movimentos manifestavam passivamente os efeitos que o calor próprio
do sangue determinava no sangue que caía em suas cavidades. Por isso,
à medida que admitia ser o coração a sede de um calor que dilata e
vaporiza o sangue no organismo, Descartes acreditava na mitologia do
fogo vital e revelava-se infiel ao mecanicismo afirmado por Harvey.
Entretanto, a obra de Descartes teve uma influência decisiva nos
estudos dos seres vivos no final do séc.XVII e desenvolveu uma escola
de Biologia mecanicista conhecida como a iatromecânica.
A IATROMECÂNICA
A iatromecânica tornou-se o aspecto distintivo da Biologia do
séc.XVII. Um dos seus mais legítimos representantes foi Borelli (1608-
99
1679), antigo discípulo de Galileu, que escreveu a famosa obra De motu
animalium (de 1680), onde primeiro no homem e depois em outros
animais, incluindo aves e peixes, os princípios de máquinas simples
utilizados para análise dos seus movimentos.
Os iatromecânicos calcularam a velocidade do sangue e a
resistência dos vasos e se propuseram a explicar o calor animal pelo
atrito do sangue nas paredes das artérias. Construíram uma teoria das
secreções baseada na velocidade de circulação dos fluidos e encheram o
corpo de filtros porosos que separavam as partículas segundo a sua
forma e tamanho. Como afirmava Richard Mead, citado por Westfall
(1980), o corpo do homem era
[...] uma máquina hidráulica pensada como a arte mais esquisita,
onde há incontáveis tubos ajustados propriamente e dispostos
para o transporte de fluidos de classes e naturezas diferentes. A
saúde consiste, sobretudo nos movimentos regulares dos fluidos,
junto com um apropriado estado dos sólidos e, suas aberrações,
constituem as enfermidades (Mead citado por Westfall, 1980,
p.65).
Foi com esta visão dos seres vivos que os primeiros
microscopistas começaram a observar o mundo vivo muito pequeno.
A MICROSCOPIA CELULAR
Os primeiros microscopistas começaram a observar a estrutura
celular dos vegetais. Um dos primeiros foi Robert Hooke (1635-1703), a
quem alguns autores de livros didáticos atribuem a ―descoberta‖ da
célula. Em sua obra Micrographia (de 1665), observando um corte de
cortiça ao microscópio, denominou o que viu de poros ou células que
pereciam e escreveu: ―que sejam os canais ou tubos através dos quais o
sucus nutritius, ou sucos naturais dos vegetais, são transportados, e
parecem que correspondem às veias, artérias e outros vasos das
criaturas racionais‖ (Hooke citado por Westfall, 1980, p.122). Como se
vê, a imagem que mais correspondia a sua interpretação era a de poros e
não de células, pois seriam como cortes transversais de pequenos tubos.
Para reforçar esta interpretação, até buscou válvulas que controlariam a
direção em que deveriam fluir os líquidos circulantes.
O paradigma mecanicista do séc. XVII direcionou as
observações dos microscopistas a ver neste fenômeno tubos
apropriados para transportar fluidos no lugar da unidade morfo-

100
fisiológica de todos os seres vivos. Assim, a afirmação de Nehemiah
Grew, (citado por Westfall 1980, p.123), sobre a fisiologia vegetal: ―para
que fim estão feitos os vasos, senão para o transporte de licores?‖.
Todos os microscopistas que observaram células ou organismos
unicelulares, tais como, Leeuwenhoek (1632-1723) que observou
protozoários, bactérias, rotíferos, globos sanguíneos e os ―animálculos‖
do líquido espermático; Malpighi (1628-1694), que efetuou vários
trabalhos sobre tecidos vegetais e animais e Swammerdam (1637-1680),
que fez primorosas dissecações de insetos, moluscos e outros
invertebrados, em nada adiantaram sobre a teoria celular que só viria a
ser desenvolvida no século XIX.
A PREFORMAÇÃO EMBRIOLÓGICA
Até o século XVII a Biologia não havia desenvolvido nenhuma
teoria consensual sobre a geração dos seres vivos. Havia diferentes
teorias para diferentes classes de seres vivos. A geração dos
quadrúpedes vivíparos diferia grandemente dos ovíparos. Sustentava-se
que os insetos e toda a classe de ―vermes‖ tinham origem por geração
espontânea e a reprodução vegetal estava iniciando a ser compreendida
como uma reprodução sexual através dos trabalhos de Camerarius e
Tournefort. A noção geral era a teoria de semente dupla para a
formação do embrião, herdada dos gregos como Empédocles,
Hipócrates e do próprio Aristóteles, que foi depois assumida por
Galeno e mais tarde até por Descartes.
Esta situação nem mesmo foi abalada, pelo menos
temporariamente, pelos trabalhos de Redi (1668) que negava a
possibilidade da geração espontânea dos insetos.
Também foi William Harvey, um dos maiores embriologistas do
mundo moderno, que intentou compreender a geração de todos os
animais, apresentando uma teoria unificadora: o frontispício do seu
livro De generatione animalium (de 1651) apresenta uma gravura onde
aparece a mão de Zeus abrindo um ovo de onde saem todos os animais,
incluindo o homem, onde se lê a expressão latina ex ovo omnia, tal como
a ideia exposta em seu trabalho de que ―um ovo é a origem comum de
todos os animais‖. O termo ―ovo‖, entretanto, no trabalho de Harvey,
possui um significado extremamente ambíguo; para os animais ovíparos
estava muito bem definido; para os vivíparos, porém, Harvey nunca
compreendeu a função de órgãos como ovários. Para ele o ovo não
101
significava o produto do ovário feminino e sim uma espécie de
primordium, uma matéria prima inicial ou um primeiro princípio
produzido. Isto implicava em uma considerável generalização. Em suas
observações sobre o desenvolvimento de um pinto no ovo, conclui não
encontrar nenhum traço de sêmem masculino: evidentemente nenhum
papel o sêmem do macho poderia desempenhar na geração. Harvey
descreveu a sua ação como uma espécie de contágio, uma influência
imaterial que estimulava o ovo adormecido. Cunhou o termo
―epigênese‖ para o processo que observou na geração do pinto no ovo,
como natural expressão do seu vitalismo, de uma geração criativa guiada
pela virtude formativa, que implicava na ideia divina da origem dos
seres vivos (Westfall, 1980, p.124).
Para Gassendi (citado por Westfall, 1980), entretanto, o ato
fundamental da geração era a produção de uma semente. Tanto nos
vegetais como nos animais, a semente era um pequeno corpo que
continha partículas de todas as partes do indivíduo. Na semente, as
partículas semelhantes se juntavam e atraiam outras partículas
semelhantes, até formar o alimento disponível. Portanto, o produto da
geração estava sempre presente na semente, como escreveu: ―a semente
contém a coisa em si, porém a contém como rudimento ainda por
desenvolver‖. Daí, o termo ―preformação‖ ter se ligado a esta
concepção de geração. Ao contrário da epigênese, que considerava a
geração como um processo criador, durante o qual a virtude formativa
moldava e alterava o material presente, evocando a heterogeneidade a
partir da homogeneidade, a preformação, afirmava a heterogeneidade
presente desde o início e que a geração era meramente o processo de
sua evolução (revelação) ou desenvolvimento (emersão dos
envoltórios). A preformação foi assumida pelo mecanicismo que
considerava a formação das coisas individuais como um processo de
aglutinação de partes preexistentes.
Malpighi (citado por Westfall, 1980), ao introduzir o microscópio
na embriologia, examinou cuidadosamente o desenvolvimento de um
pinto no ovo e concluiu que no próprio ovo já havia um animal quase
formado. Em seus estudos sobre o desenvolvimento do bicho-da-seda,
já havia observado todas as partes preformadas do corpo de um inseto
adulto nas lagartas e crisálidas. Já, Swammerdam, declarava que os ovos
não se transformavam em pintos e sim ―crescem por expansão de

102
partes preformadas‖, não havendo, portanto ―geração na natureza e sim
unicamente uma extensão ou crescimento de partes já formadas‖.
O padre cartesiano Nicolas Malebranche (1638-1715) imaginou a
ideia de uma sucessão de gerações pré-ordenadas e para sempre
imutáveis que combinava com a sua teologia, cuja única causa universal
é a ação de Deus, que ama a ordem do encaixotamento das gerações
(Pinto-Correia, 1999, p.87).
No final do séc. XVII, a embriologia produziu uma teoria de
encaixamento que sustentava, por exemplo, que a humanidade inteira
estaria já presente nos ovos de Eva, estando, pois, justificado o dogma
do pecado original.
Descobrimentos da época pareciam confirmar a teoria do
encaixamento: em 1667, Stenon registrou ovários, cheios de ovos, no
leão marinho, um animal vivíparo; Regnier de Graff tomou como ovos
as ―vesículas‖ dos testículos (como se chamavam então) de fêmeas de
coelhos, cadelas, vacas e seres humanos. O aforismo de Harvey adquiriu
então um significado mais preciso: os mamíferos vivíparos também
nasciam de ovos.
Essa teoria de geração preformacionista foi conhecida por ovismo,
que durou exatamente cinco anos, até quando Leeuwenhoek, em 1677,
observou e descreveu os espermatozóides, que passaram a ser
considerados como os agentes verdadeiros da reprodução, os ―vermes
espermáticos‖ eram vivos e ativos, além do mais, a doutrina do
animalculismo estava mais de acordo com ―a dignidade do homem‖. A
nova doutrina, entretanto, não descartou a preformação, como escrevia
Hartsoeker: ―pode dizer-se que cada animal, realmente em miniatura,
contém e resguarda em uma tenra e delicada membrana um animal
macho ou fêmea da mesma espécie, como ele que se encontra no semen
do que procede‖. O mesmo fez publicar a famosa figura de um
homúnculo espremido dentro da cabeça de um espermatozóide.
A defesa da teoria do encaixamento foi continuada no séc. XVIII
por Albrecht von Haller (1708-1777) e por Charles Bonnet (1720-1793),
enquanto seus principais opositores foram os médicos alemães Georg
Ernst Stahl (1660-1734) em sua principal obra Theoria medica vera (1708)
e Caspar Fredrich Wolff (1734-1794) em diversas obras de embriologia
(Gierer, 1996).

103
CONSEQUÊNCIAS DA ABORDAGEM MECANICISTA NA
BIOLOGIA - O PROBLEMA DO REDUCIONISMO
Um dos principais problemas herdados da abordagem
mecanicista dos seres vivos é a visão reducionista que é um ponto de vista
segundo o qual só se compreende verdadeiramente um fenômeno
quando o dividimos até as suas últimas partes, isto é, quando os
fragmentamos até o mais baixo nível da sua organização acessível à
análise. Assim, as propriedades dos conjuntos complexos (como uma
célula, por exemplo) são apreendidas através das partes de que são
compostos. Ou como afirma Capra (1982):
[...] a crença no fato de que todos os aspectos dos organismos
vivos podem ser entendidos se reduzidos aos seus menores
constituintes, e estudando-se os mecanismos, através dos quais
eles interagem, está na própria base do pensamento biológico
contemporâneo (Capra, 1982, p.115).
Segundo El-Hani e Pereira (1997), o reducionismo é uma
perspectiva metodológica que sustenta que para se explicar todo e
qualquer predicado de um sistema complexo, deve-se proceder no
sentido de uma redução ao nível das propriedades de e das relações
entre as partes. Para os autores citados, os antirreducionistas, em
contraste com os holistas, reconhecem a relevância das descrições de
micromecanismos para a explicação de processos pertinentes a níveis
complexos de organização e, ao mesmo tempo, sustentam a
irredutibilidade das teorias de nível ―superior‖. O ponto crucial no
problema da explicação não é a necessidade de se rejeitar as
microdescrições, mas antes a compreensão de como as suas
propriedades e as relações entre partes e todo podem ser alinhavadas
em uma única explicação. Assumir a relevância explanatória dos
micromecanismos não equivale a uma aceitação do reducionismo, pois
se pode sustentar, sem qualquer contradição, que as propriedades de um
sistema complexo são, ao mesmo tempo, supervenientes e irredutíveis
às propriedades de seus componentes.
Em Biologia, Kawasaki e El-Hani (2002) afirmam que, na busca
de padrões comuns na diversidade da vida, uma tendência reducionista
pode ser percebida à medida que a unidade da vida é destacada nos
níveis celulares e moleculares, sem esforço similar de unificação da
compreensão dos seres vivos em níveis de organização acima do celular.
A ênfase sobre a microestrutura dos sistemas biológicos usualmente
104
resulta numa abordagem que isola estruturas celulares e moleculares dos
contextos organísmico e ambiental. Outra tendência reducionista é
encontrada na associação íntima entre o fenômeno da vida e o nível
bioquímico ou molecular.
A maioria dos biólogos concorda que os processos físico-
químicos subjazem aos fenômenos da vida, notadamente ao nível
molecular. Elementarmente, as leis da Física e da Química aplicam-se
inteiramente aos processos biológicos. Todos os vitalismos estão hoje
em extinção na filosofia da Biologia, desde que se reconheceu que os
―princípios‖ não materiais não servem para explicar cientificamente os
processos biológicos. Mas, a questão se complica quando se consideram
níveis superiores de integração orgânica, nas quais as leis físicas e
químicas não conseguem explicar processos biológicos como a seleção
natural, a adaptação, o funcionamento do sistema nervoso central, a
embriogênese, problemas ambientais e tantos outros.
A BIOLOGIA CELULAR
De acordo com Theodoridés (1984), uma das mais poderosas
generalizações em toda a Biologia foi o reconhecimento de que todos os
vegetais e animais são formados por células. Isto representou uma
abertura para que os biólogos compreendessem a estrutura anatômica
do corpo, os processos da hereditariedade, a fertilização,
desenvolvimento e diferenciação, a evolução e muitos outros processos
biológicos. O termo ―célula‖, criado por Hooke no séc. XVII,
naturalmente não correspondia ao conceito da unidade morfo-
fisiológica dos seres vivos, cuja teoria só foi desenvolvida no século
XIX por Shleiden e Shwann. Daí em diante, todas as funções dos
organismos vivos tinham que ser entendidas a partir das células. Em vez
de refletirem a organização do organismo como um todo, as funções e
processos biológicos passaram a ser vistos como resultado das
interações entre os componentes celulares básicos.
A organização de uma célula tem sido frequentemente
comparada (sobretudo em livros didáticos de Biologia) à de uma
fábrica, onde diferentes peças são manufaturadas em diferentes locais,
armazenadas em instalações intermediárias e transportadas para linhas
de montagem, a fim de serem combinadas em produtos acabados, que
são consumidos pela própria célula ou exportados para outras células. A
Biologia celular realizou enormes progressos na compreensão das
105
estruturas e funções das organelas celulares, mas não consegue dar
conta das atividades coordenadoras que integram essas operações no
funcionamento da célula como um todo.
Os biólogos cada vez mais se dão conta de que as células são
organismos em si e, as atividades integrativas desses sistemas vivos,
especialmente o equilíbrio de seus ciclos metabólicos interdependentes,
não podem ser entendidas por uma análise reducionista.
FISIOLOGIA ANIMAL
No final do séc. XVIII, os modelos mecânicos simplistas dos
organismos vivos foram abandonados, porém a essência do
mecanicismo cartesiano permaneceu, os organismos continuaram a ser
considerados como máquinas, embora mais sofisticadas do que relógios
mecânicos, uma vez que abrangiam fenômenos químicos e elétricos.
No século XVIII o materialismo mecanicista de La Metrie havia
abandonado o dualismo cartesiano mente-corpo para afirmar que o
homem e todos os animais eram essencialmente máquinas. Estas
afirmações provocaram debates e controvérsias que atingiram até o séc.
XX: na década de 20, o biólogo Joseph Needham deixou claro que a
Biologia como ciência deveria identificar-se com a abordagem
mecanicista para ser consequente: ―Em ciência, o homem é uma
máquina; ou, se não é, então não é absolutamente nada‖ (Canguilhem,
1977, p.121).
Durante o século XIX, a fisiologia animal desenvolveu pelo
menos uma teoria alternativa ao mecanicismo predominante. As
pesquisas de Claude Bernard, mesmo sem romper definitivamente com
o mecanicismo, desenvolveram uma noção duradoura entre o
organismo e o seu meio ambiente. Bernard foi o primeiro a assinalar a
existência de um meio interior, no qual atuavam os órgãos e tecidos do
organismo, observou também que num organismo saudável esse meio
interior permanecia constante, mesmo quando o meio externo era
alterado. Afirmava que a constância do meio ambiente interno é a
condição essencial da vida independente. A importância da sua teoria
somente foi redescoberta no século XX, quando os fisiologistas
adquiriram maior consciência do papel fundamental do meio interno
nos fenômenos fisiológicos e culminou no conceito central da
homeostase, desenvolvido pelo neurologista Walter Cannon, para designar

106
a tendência dos organismos vivos a manter um estado de equilíbrio
interno (Canguilhem, 1977).
A TEORIA DA EVOLUÇÃO E A GENÉTICA
A teoria da evolução representa a teoria mais unificadora da
Biologia moderna, rompendo com a visão estática do mundo vivo e
apresentando a realidade biológica como movimento e transformação.
Um dos problemas centrais do evolucionismo foi desenvolver uma
compreensão da hereditariedade. Lamarck, um dos seus mais
destacados fundadores, entendia que as modificações acontecidas em
uma geração de indivíduos eram transmitidas aos seus descendentes.
Darwin tinha clara consciência, que a hereditariedade era um dos
pontos mais frágeis da sua teoria. As noções sobre a hereditariedade no
século XIX baseavam-se na herança por ―mistura‖ dos pais,
contribuindo igualmente com partes mais ou menos iguais na herança
biológica do filho. Isto significava que o filho de um genitor com uma
variação aleatória útil herdaria apenas cinquenta por cento das novas
características e estaria apto a transmitir apenas vinte e cinco por cento
delas à geração seguinte. Isto significaria que as novas características
seriam rapidamente diluídas, com muito pouca probabilidade de se
estabelecer através da seleção natural. Darwin tentou superar este
problema apelando para uma teoria provisória da ―pangênese‖, que se
constituiu num verdadeiro desastre teórico no amplo e sólido conjunto
da teoria da evolução
A solução para este problema tinha sido desenvolvida apenas
alguns anos depois da publicação da Origem por um obscuro monge
agostiniano num esquecido mosteiro no interior do império austríaco.
O trabalho de Mendel, entretanto, permaneceu ignorado até a sua
redescoberta na virada do século. Baseando-se em cuidadosos
experimentos quantificados com ervilhas, Mendel concluiu pela
existência de ―unidades de hereditariedade‖ que, mais tarde receberiam
a denominação de genes, que não se misturavam no processo de
reprodução e que não se diluíam, mas ao contrário, eram transmitidas
de geração para geração. Com esta descoberta, poder-se-ia supor que as
modificações não desapareceriam dentro de algumas gerações, mas
seriam preservadas para serem reforçadas ou eliminadas pelo processo
de seleção natural.

107
O trabalho de Mendel foi decisivo no estabelecimento da teoria
da evolução e inaugurou um novo campo de pesquisa da
hereditariedade, através da investigação da natureza química e física dos
genes. Bateson batizou o novo campo de pesquisa biológica com o
nome de Genética, que no século XX, tornou-se a área mais ativa da
pesquisa biológica e proporcionou um forte reforço à abordagem
mecanicista dos organismos vivos. Quando os biólogos reduzem o
organismo como um todo aos seus constituintes fundamentais, como
células, genes ou partículas elementares, na tentativa de explicar todos
os fenômenos biológicos em função desses elementos, eles perdem a
capacidade de entender as atividades coordenadoras do sistema como
um todo.
Como escreve Capra (1982), sobre a falácia da abordagem
reducionista da genética na crença de que os traços do caráter de um
organismo são determinados unicamente por sua composição
hereditária; este determinismo genético é uma consequência direta de se
considerar os organismos vivos como máquinas controladas por cadeias
lineares de causa e efeito.
A BIOLOGIA MOLECULAR
No que diz respeito à Biologia, é importante registrar que a
redução desta ciência às ciências físico-químicas não é possível no
estado atual dos conhecimentos sobre a natureza viva. É certo que a
base da existência de todos os seres vivos é constituída por certas
moléculas, como o DNA, o RNA e enzimas. Isto geralmente acarreta
na crença de que só o estudo molecular dos seres vivos é suficiente para
explicá-los. Ou seja, que a biologia molecular seria toda a Biologia, e
com ela poderemos obter respostas no entendimento de todos os
processos biológicos. Na verdade, existem numerosos problemas e
conceitos biológicos que não são explicados e nem entendidos por uma
abordagem físico-química e nem dela poderão vir soluções adequadas.
Por exemplo, a seleção natural, a adaptação, o conceito de espécie, as
populações mendelianas, o comportamento, a relação predador-presa,
os ecossistemas, os níveis tróficos e outros (Sacarrão, 1989).
Enquanto as células eram consideradas os componentes dos
seres vivos durante o século XIX, o enfoque transferiu-se das células
para as moléculas em meados do século XX, quando os biólogos
moleculares começaram a explorar a estrutura molecular dos genes.
108
Suas pesquisas culminaram na elucidação da estrutura física do DNA,
que se tornou uma das maiores realizações da ciência no século XX.
Este êxito da biologia molecular levou os biólogos a acreditarem que
todos os processos biológicos podem ser explicados em termos de
estruturas e mecanismos moleculares.
Como resultado dessa abordagem, os biólogos conhecem a
estrutura de uma série de genes, mas sabem muito pouco dos processos
integrativos dos genes no desenvolvimento de um organismo. Como
afirma Capra (1982), embora os biólogos conheçam o alfabeto do
código genético, não possuem ideia de sua sintaxe.
A SOCIOBIOLOGIA
A sociobiologia nasceu como forma de explicação do
comportamento social dos animais e do homem na década de 70, tendo
como principal inspirador o zoólogo Edward O. Wilson, da
Universidade de Harvard, atribuindo-se a si mesmo como continuador
do evolucionismo darwinista.
A sociobiologia, entretanto, tornou-se o exemplo de uma
ideologia científica como uma nova versão do darwinismo social. As
ideologias fascistizantes, racistas e totalitárias, encontram neste novo
biologismo determinista-reducionista o suporte e a justificação para
todas as formas de dominação. A sua transposição para a sociedade
humana acabou por traduzir-se, como fez o darwinismo social, em
conceitos de ―superioridade‖ e ―inferioridade‖, em afirmações que as
diferenças de classes correspondem a diferenças genéticas, que culturas
diferem por fatores hereditários, que a inteligência e o comportamento
dos homens é responsabilidade exclusiva dos genes e muito pouco
devem ao meio físico-social, enfim, que se pode reduzir a política e a
moral à Biologia. A partir destes pressupostos alguns filósofos já falam
de uma nova ―biologização‖ da sociedade: veja-se como exemplo, o
ambicioso projeto ―Genoma Humano‖ e as novas realizações de
clonagem animal. Pode-se imaginar o que vem por aí.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: OS LIMITES DA ABORDAGEM
MECANICISTA EM BIOLOGIA
Os problemas que a Biologia não pode hoje resolver, ao que
parece em consequência de uma abordagem estreita e fragmentada,
estão todos relacionados com a função dos sistemas vivos como
109
totalidade e com suas interações com o meio ambiente. Tome-se como
exemplo a Neurobiologia, onde a ação integradora do sistema nervoso
continua ignorada. Embora se tenha noções muito claras do
funcionamento cerebral, não se compreende como os neurônios
operam conjuntamente como um sistema integrador.
Outro exemplo de processo biológico não compreendido é o
fenômeno da embriogênese, que envolve uma série ordenada de
processos através dos quais ocorre a especialização de células e tecidos
para formar os diferentes órgãos do corpo. Por outro lado, as atividades
integrativas do organismo e suas interações com o meio ambiente, são
precisamente as funções fundamentais para a saúde do organismo.
Como a Medicina ocidental adotou também a abordagem reducionista
da Biologia, secundarizando a visão do paciente como um todo, a
maioria dos médicos com as suas altas especializações são incapazes de
entender, ou curar, muitas das mais importantes das doenças que
afligem a humanidade; veja-se, por exemplo, o caso do câncer e mais
recentemente da AIDS, em que se trata de pesquisar exclusivamente os
mecanismos celulares e moleculares dos organismos.
Essa crença foi expressa com muita clareza por Jacques Loeb, em
seu livro The mechanistic conception of life, citado por Capra (1982), quando
escreveu: ―Os organismos vivos são máquinas químicas que possuem a
peculiaridade de se preservar e reproduzir‖ e mais adiante,
[...] o objetivo fundamental das ciências físicas é a visualização
de todos os fenômenos em termos de agrupamentos e
deslocamentos de partículas básicas, e, como não há
descontinuidade entre a matéria que constitui o mundo vivo e o
não-vivo, a meta da Biologia pode expressar-se do mesmo modo
(Loeb, apud Capra, 1982, p.68).
Apesar da clara filiação teórica mecanicista, os neurobiólogos
chilenos Maturana e Varela (1997), vêm desenvolvendo um campo de
reflexões teóricas em relação aos seres vivos, que supera uma visão
estritamente mecanicista, como a sua concepção de que os seres vivos
não são definidos pela essência comum de suas propriedades, mas por
uma particular forma de organização - conceito insistentemente
defendido por Stahl no séc. XVII e formalmente acusado de vitalismo -
e denominado pelos dois cientistas de organizacionismo.
As reflexões de Maturana e Varela (1997) representam uma das
mais sofisticadas visões mecanicistas da Biologia quando desenvolveram
110
a teoria da autopoieses, no início da década de 70, como a metáfora
mais representativa da sua visão da circularidade dos fenômenos
biológicos, ou seja, como
[...] uma rede de produção de componentes, que resulta fechada
sobre si mesma, porque os componentes que produz a
constituem ao gerar as próprias dinâmicas de produções que a
produziu e ao determinar sua extensão como um ente
circunscrito, através do qual existe um contínuo fluxo de
elementos que se fazem e deixam de ser componentes segundo
participam ou deixam de participar nessa rede (Maturana; Varela,
1997, p.77).
É com base nesta difícil definição que os autores constroem a sua
concepção de seres vivos como ―sistemas autopoiéticos moleculares‖,
que não devem ser compreendidos como um conjunto molecular, mas
como uma dinâmica molecular.
Os autores fazem profissão de fé mecanicista, quando enaltecem:
[...] do impulso decisivo do pensamento cartesiano, emerge um
enfoque diferente, em que o mecanicismo ganha
progressivamente o mundo biológico ao insistir em que os
únicos fatores operantes na organização dos sistemas vivos são
os fatores físicos, negando a necessidade de alguma força
imaterial organizadora do vivo (Maturana; Varela, 1997, p.77).
Mais adiante, admitem que ―esta maneira de pensar não é nova, e
se relaciona explicitamente com o próprio nome de mecanicismo. Nós
sustentamos que os sistemas vivos são máquinas‖ (Maturana; Varela,
1997, p.80).
Para os autores, os seres vivos são máquinas autopoiéticas:
organizadas como um sistema de processos de produção de
componentes, concatenados de tal forma que produzem componentes
que: (a) geram os processos (relações) de produção que os produzem
através de suas contínuas interações e transformações, e (b) constituem
a máquina como uma unidade no espaço físico, logo, ―podemos dizer,
então, que uma máquina autopoiética é um sistema auto-homeostático
que tem a sua própria organização como a variável que mantém constante‖
(Maturana; Varela, 1997, p.82)
Entretanto, os autores divergem de certos princípios atuais do
moderno mecanicismo em Biologia, como por exemplo, o da teleonomia,
defendido por Monod. Afirmam que: ―como máquinas autopoiéticas, os
sistemas vivos carecem, então, de finalidade‖. Outro princípio
111
questionado por eles é o do determinismo genético e o consequente
reducionismo ontológico, tão relevante para a Sociobiologia:
[...] ao não fazermos completamente claro o caráter sistêmico
dos fenômenos celulares, não falamos adequadamente dos seres
vivos, e geramos um discurso reducionista enganador, como
acontece com a noção de determinismo genético, e que oculta o
caráter sistêmico da geração dos aspectos fenotípicos (Maturana;
Varela, 1997, p.100).
Para os autores: ―o fenótipo surge numa epigênese [...] o caráter
epigênico do operar sistêmico em geral, e em particular do acontecer de
qualquer ser vivo, exclui toda e qualquer pré-determinação.‖ (Maturana;
Varela, 1997, p.100).
Por outro lado, a teoria da autopoiésis, defendida pelos autores,
como necessária e suficiente para caracterizar a organização dos seres
vivos, apresenta dificuldades de compatibilização com o paradigma
evolucionista, na medida em que o seu enfoque fenomenológico passa
da espécie, como unidade evolutiva, para o indivíduo. Pois, como
afirmam:
A fenomenologia biológica é determinada pela fenomenologia
individual, e sem indivíduo não há fenomenologia biológica alguma. [...]
A espécie somente existe como unidade no domínio histórico, enquanto
que os indivíduos que constituem os nós da rede histórica existem no
espaço físico. A rigor, portanto, na medida em que uma rede
reprodutiva fica definida como rede histórica por todos e cada um dos
indivíduos que constituem seus nós em seu acontecer histórico, a
espécie como conjunto observável de nós contemporâneos, não evolui,
somente tem história de mudanças. O que evolui é um modelo de
organização auto-poiético, materializado em muitas variáveis
particulares, em um conjunto de indivíduos transitórios que juntos
definem uma rede histórica reprodutiva. Os indivíduos são, então,
indispensáveis, porque representam a única existência física da rede que
eles definem. A espécie tem um caráter puramente descritivo e, ainda
que represente um fenômeno histórico, não constitui um componente
causal na fenomenologia evolutiva (Maturana; Varela, 1997, p.122).
Diante disso, os autores dirigem a principal objeção às aplicações
teóricas da Biologia na vida social:
Assim a biologia já não pode ser empregada para justificar a
qualidade de prescindíveis dos indivíduos em benefício da

112
espécie, da sociedade ou da humanidade sob o pretexto de que
seu papel é perpetuá-los, biologicamente, os indivíduos não são
prescindíveis (Maturana; Varela, 1997, p.122).
Outro aspecto teórico que não se compatibiliza com o
neodarwinismo é a sua negação de gradações ou níveis intermediários
na origem do fenômeno da autopoiésis, como escrevem os autores: ―O
estabelecimento de um sistema autopoiético não pode ser um processo
gradativo: o sistema autopoiético ou existe, ou não existe. [...] Em
consequência, não há nem pode haver sistemas intermediários‖
(Maturana; Varela, 1997, p.123).
De acordo com Luz (1998), a hegemonia que esta concepção
exerceu não constituiu impedimento para uma tomada de consciência
das dificuldades em reduzir os fenômenos do mundo vivo ao modelo
matematizante da física. Assim, as doutrinas animistas e vitalistas
procuraram compreender como é que a multiplicidade de funções que
um ser vivo realiza não atinge a sua integridade, mas antes lhe confere
uma configuração homogênea e um desenvolvimento contínuo. A linha
que a investigação biológica seguiu acabou por ligar a ordem que os
seres do mundo vivo apresentam ao seu próprio funcionamento
orgânico.
Tem sido designado por emergência o fenômeno de aparecimento
de novas propriedades nos sistemas, que não se manifestam nas partes
respectivas. Popper (1972) diz que vivemos num universo de novidades
emergentes, num mundo de evolução emergente, em que as inovações
surgidas não podem ser reduzidas a quaisquer estados precedentes. Foi,
provavelmente, o que aconteceu com a origem da vida.
Para o biólogo e psicólogo inglês Conway Lloyd Morgan em sua
obra Emergent evolution (1923) evolução é o nome que damos ao plano
completo da sequência de todos os eventos naturais. Mas a sequência
ordenada parece apresentar, de tempos em tempos, algo genuinamente
novo, chamada aqui de evolução emergente, quando a ênfase recai sobre
este advento do novo. Eventos emergentes são relacionados à
expressão de um novo tipo de estado de interrelação entre eventos
preexistentes. Quais as razões para qualificar uma propriedade ou
estrutura como emergente? Primeiro, deve tratar-se de algo novo, que
não tenha ocorrido antes na evolução. Segundo, deve tratar-se de algo
intimamente relacionado a um novo tipo de estado de interrelação de

113
coisas que existiam anteriormente. Terceiro, deve mudar o modo como
a evolução ocorre.
Assim, o todo pode ser mais que a soma das partes, que por sua
vez integram um sistema de categoria superior cujo funcionamento
incide sobre cada uma delas. Os sistemas, formados de partes, ganham
propriedades que as partes separadas não possuem. Deste modo surgem
novas propriedades previamente inexistentes. Desta forma, é possível
explicar determinados fenômenos que o mecanicismo não pode
explicar.
De acordo com Emmeche e El-Hani (1999) é uma intuição
razoável a de que a autonomia da biologia em relação às ciências físicas
está baseada na emergência observacional de propriedades específicas
dos sistemas biológicos, tal como a autoreprodução das células vivas.
[...] A emergência de princípios especiais de organização (por
exemplo, o código genético e, portanto, a informação biológica)
pode conferir à biologia autonomia conceitual e, aos
organismos, uma ontologia e modo de ser especiais (Emmeche;
El-Hani, 1999).
Desta forma, as alternativas ao reducionismo mecanicista não são
vitalistas. Muitas das críticas atuais não defendem princípios imateriais
para explicar os fenômenos biológicos. São materialistas, holísticas ou
emergentistas. A alternativa já não é entre o reducionismo mecanicista e
o vitalismo.
Para resolver o problema do reducionismo mecanicista em
Biologia precisamos de novos paradigmas, ou como escreve Brenner,
citado por Capra (1982, p.92):
Talvez seja preciso ir além dos mecanismos do relógio.
REFERÊNCIAS
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Edições 70, 1977. 126p.
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mutação. São Paulo: Cultrix, 1982. p. 95-115.
EL-HANI, C. N.; PEREIRA, M. Níveis de explicação e ensino de
biologia. In: BIZZO, N.; TRIVELATO, S. L. F.; MARANDINO, M. &
AMORIM, A. C. R. VI ENCONTRO PERSPECTIVAS DO ENSINO
DE BIOLOGIA, FE-USP, 1997. Coletânea... São Paulo: Sociedade
Brasileira de Ensino de Biologia. pp. 68-71.

114
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Ciência e Memória, CNPq/ON, Coordenação de Informação e
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<http://www.nbi.dk/~emmeche/>.
FREZZATTI JR. W. A. Haeckel e Nietzsche: aspectos da crítica ao
mecanicismo no século XIX. Scientiae Studia, v.1, n.4, 2003, p.435-461.
GIERER, A. Organisms - Mechanisms: Stahl, Wolff, and the case against
reductionist exclusion. s.l. Science in Context, v.9, n.4, 1996. p.511-528.
JAPIASSÚ, H. A gênese da filosofia mecanicista. In: JAPIASSÚ, H. As
paixões da ciência: estudos de história da ciência. São Paulo: Letras & Letras,
1991. p. 93-122.
KAWASAKI, C. S.; EL-HANI, C. N. Uma análise das definições de vida
encontradas em livros didáticos de biologia do ensino médio. VIII Encontro
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LUZ J. L. B. O homem e a vida em Jean Piaget. Separata de Arquipélago,
Revista da Universidade dos Açores, Série Filosofia, n.6, 1998.
MATURANA, H.; VARELA, F. De máquinas e seres vivos - autopoiesis: a
organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
MORGAN, C.L. Emergent evolution. London: Williams and Norgate, 1923.
PINTO-CORREIA, C. O ovário de Eva: a origem da vida. Rio de Janeiro:
Campus, 1999.
POPPER, K.R. A lógica da pesquisa científica. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 1972.
SACARRÃO, G.F. Biologia e sociedade: crítica da razão dogmática. Lisboa:
Europa-América, 1989.
THÉODORIDES, J. História da biologia. Lisboa: Edições: 70, 1984.
WESTFALL, R.S. La filosofia mecanicista; la biologia y la filosofia
mecanicista. In: WESTFALL, R.S. La construccíon de la ciencia moderna:
mecanismos y mecánica. Barcelona: Editorial Labor, 1980. p.45-67; p.121-
150.

115
116
ENSINO DE GENÉTICA: DESAFIOS E
PERSPECTIVAS
Marília de França Rocha1, Marise Sobreira2
A CIÊNCIA NO BRASIL: A SITUAÇÃO
O Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) aplica
uma Avaliação internacional padronizada, feita pela organização para a
Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Essa avaliação
abrange os domínios de Leitura, Matemática e Ciências, tanto no que se
refere ao currículo quanto aos conhecimentos relevantes e habilidades
necessárias na tomada de decisões como cidadãos. A cada três anos, as
avaliações são realizadas e cada ciclo analisa em profundidade uma das
áreas de domínio, a que se dedicam dois terços do tempo nas provas
(Leitura em 2000, Matemática em 2003 e Ciências em 2006). Em um
ranking de 57 países, 30 membros da Organização e 27 convidados, o
Brasil ficou em 52º lugar em Ciências3. O resultado é um alerta para um
problema crônico, a baixa qualidade da educação no Brasil e a
necessidade de uma reforma no ensino de Ciências. Por todo o país,
educadores, estudantes e a população em geral buscam saídas para esses
problemas. No sistema público, a violência e os índices de repetência e
evasão são críticos. No ensino privado, a qualidade é inferior à média
dos países desenvolvidos. Num mundo globalizado, em que a educação
adquiriu um papel estratégico para o desenvolvimento das nações,
estamos aumentando a distância intelectual em relação aos países
desenvolvidos e comprometendo o futuro de nossa produção científica.
O país precisa investir na formação de professores, divulgação,
valorização e democratização da Ciência.
Com o grande avanço do conhecimento na área das Ciências
Biológicas e em especial na Genética, extensivamente evidenciado
através da mídia e do meio científico, o sistema educacional necessita de
uma adaptação a essa nova realidade, aproximando a escola e a

1 Universidade de Pernambuco, Instituto de Ciências Biológicas, Departamento de


Biologia, Laboratório de Biodiversidade e Genética de Insetos.
([email protected])
2 Universidade de Pernambuco, Faculdade de Formação de Professores de Nazaré da

Mata. Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães - Fiocruz. ([email protected])


3 <(http://www.inep.gov.br/internacional/pisa/Novo/oquee.htm)>.

117
comunidade desses novos conceitos. A atividade científica entra em
cena como produtora de novos dados e novos saberes, adquire o status
de conteúdo escolar ao elaborar formas de conhecimento, realizando
uma substituição contínua das representações que se tem de mundo.
Dessa forma, esta atividade encontra-se vinculada a um projeto social
que lhe fornece especial significado e coerência. Enquanto o papel da
ciência é a produção do conhecimento, o da escola é o de criar formas
adequadas para a compreensão desse conhecimento, que deverá ser
significativo (Pomeroy, 1993; Jófili, Geraldo & Watts, 1999; Jófili,
2002). Embora próximo dos impactos das novas descobertas científicas,
o cidadão comum sabe muito pouco sobre como se realiza Ciência. Sua
divulgação é necessária para consolidar a democracia e evitar que o
conhecimento seja sinônimo de poder, discriminação e dominação, pois
o exercício de uma cidadania democrática depende essencialmente da
habilidade dos cidadãos de entender, criticar e utilizar afirmações e
ideias científicas.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Em uma simples definição, a genética estuda a hereditariedade e a
variação de características dos organismos. No estudo de uma
característica, precisamos esclarecer se essa é herdável, ou seja,
determinada genicamente, e onde o gene ou genes que expressam a
característica estão localizados. Envolve conhecer, também, as
interações entre os alelos dos genes que as determinam, e entre genes
não-alélicos, se a característica for condicionada por mais de um loco
gênico; compreender como os genes determinantes de uma
característica se expressam e como são regulados e qual o papel do
ambiente na expressão do fenótipo.
O INÍCIO: O MONGE E AS ERVILHAS
As bases da hereditariedade foram estabelecidas por
experimentos realizados por um monge chamado Johann Mendel
(1822-1884; o nome Gregor foi acrescentado ao tornar-se religioso) na
metade do século XIX, em Brünn, atual Brno na República Tcheca.
Mendel iniciou seus trabalhos com variedades de ervilha de jardim,
Pisum sativum, P. quadratum, P. umbellatum e P. saccharatum, cujos
resultados foram apresentados em 1865, em um congresso local e
publicados no ano seguinte nos Anais da Sociedade de Pesquisas em Ciências
118
Naturais de Brünn, sob o título de ―Experiências sobre híbridos em
plantas‖ (Freire-Maia, 1986; Mayr, 1998).
Segundo Mayr (1998), na época de Mendel, predominava a ideia
da herança por mistura dos caracteres dos ancestrais, e o critério aceito
era de que a herança não poderia ser estudada de modo científico ou
estatístico. Mendel contribuiu de forma efetiva, para a erradicação da
herança tênue ou por mistura. Ele enfatizou que, se os fatores paternos
e maternos diferiam, eles jamais se fundiriam, mas se separariam sempre
de novo, durante a formação da célula germinativa. Era a descoberta de
que as partículas existem em conjunto (genes e seus alelos), o que
reforçou a ideia da herança sólida ou particulada. Além disso, a
constância da proporção 3:1 refutou o postulado de partículas múltiplas
e afirmou o de uma única partícula. As conclusões de Mendel
construíram os alicerces para o desenvolvimento da Genética.
1900-1945: NASCE A GENÉTICA
Nesse período não havia conhecimentos químicos e
embriológicos detalhados, mas estávamos começando a dar os
primeiros passos para a compreensão dos genes, desde as moléculas até
as populações. Podemos destacar duas fases: a primeira, do ano de 1900
até 1909, na qual ocorreu a redescoberta do trabalho de Mendel e do
início da validação da hereditariedade mendeliana por cientistas como
Hugo De Vries, Karl Correns, Erich von Tschermack e William
Bateson; a segunda, a partir de 1910, quando tiveram início os estudos
da natureza e arranjo dos genes nos cromossomos. Sabíamos que os
genes eram particulados e dispostos nos cromossomos. Embora
simples, a teoria cromossômica da herança criou meios de correlacionar
os resultados de experimentos de cruzamento com a genética de
transmissão e a evidência citológica. Nascia uma nova disciplina, a
citogenética, criada por Montgomery, Correns, Wilson, Sutton e Boveri
e que lançaria uma ponte para o mecanismo da hereditariedade trazendo
aplicações importantes para a análise genética, até os dias atuais, em
vários campos como medicina, agricultura e evolução (Mayr, 1998).
As pesquisas da equipe de Morgan sobre o olho branco da mosca
das frutas (Drosophila melanogaster) evidenciaram a linearidade dos
cromossomos, posteriormente associada à estrutura linear do ácido
desoxirribonucléico (DNA). Além disso, descobriram diferentes
mutações e suas reversibilidades. A descoberta das mutações não
119
significou um enfraquecimento da hereditariedade sólida, mas uma
confirmação do caráter constante do material genético (Griffiths et al.,
2006; Snustad & Simmons, 2008). Dessa forma sabíamos que a mutação
permitia a mudança evolutiva necessária para a ação da seleção natural,
no entanto, estávamos longe de responder a pergunta: O que é um
gene? Todavia podíamos discorrer sobre exceções às leis de Mendel,
cromossomos sexuais e determinação sexual, poliploidia, mapas de
ligação e começávamos a enveredar pela Genética Bioquímica e a de
Populações.
Na primeira metade do século XX, o resultado de vários
experimentos como os de Frederick Griffith (transformação de
Streptococcus pneumoniae, em 1928); Phoebus Levene (composição
nucleotídica do DNA, em 1929); Beadle e Tatum (hipótese um gene
uma enzima, em 1940) e Oswald Avery, C. M. MacLeod e M. McCarty
(DNA como fator transformante, em 1944) seriam essenciais para a
compreensão do DNA, como material genético e da funcionalidade dos
genes (Griffiths et al., 2006; Snustad & Simmons, 2008). Em seu clássico
de 1944, O que é vida? o físico e filósofo austríaco Erwin Schrödinger
inspirou toda uma geração de cientistas. A vida - definiu ele - é uma
matéria que, tal como um cristal (um estranho ―cristal aperiódico‖),
repete sua estrutura ao crescer (Schrödinger, 1997). Estava lançada a
semente...
1945-2008: O MUNDO DE DNA
Por ser uma molécula simples feita de apenas quatro blocos
estruturais diferentes - os nucleotídeos adenina (A), guanina (G),
citosina (C) e timina (T) - os cientistas do início do século XX não
acreditavam que o DNA fosse capaz de ser o material genético. O
principal candidato eram as proteínas. Os experimentos iniciados antes
da primeira guerra mundial e aqueles realizados por Erwin Chargaff
(regra da composição de bases A=T e G=C) e Rosalind Franklin e
Maurice Wilkins (análise da difração de raios X do DNA) auxiliaram
James Watson e Francis Crick a construir um modelo tridimensional, a
dupla hélice do DNA, dando início a uma nova era da Biologia. A
estrutura proposta (bifilamentar, complementar e antiparalela) sugeria
como o DNA poderia servir de molde para a produção de novas cópias.
Contudo, ficava a dúvida de como ocorria a replicação, a qual foi
retirada por um dos experimentos mais bonitos dentro da Biologia,
120
onde Matthew Meselson e Franklin Stahl, em 1958, descrevem que o
DNA se replica separando os dois filamentos originais (velhos) da dupla
hélice que servem de molde para a formação de dois novos filamentos
complementares a esses. A replicação do DNA continua sendo fonte
ativa de pesquisas até os dias atuais (Watson, 2005).
Estavam todos felizes, porém a partir desse momento a genética
avançou a uma velocidade alarmante e inesperada. Após o
desenvolvimento da tecnologia do DNA recombinante nos anos 1970,
os laboratórios clonaram e sequenciaram vários genes. No início da
década seguinte, Kary Mullis, que na época trabalhava para a Cetus
corporation, desenvolve a técnica da reação em cadeia da polimerase
(PCR), e no final dessa tem início o projeto Genoma Humano
coordenado por Watson e com a participação de diversos países,
incluindo o Brasil (Watson, 2005).
Mapas genéticos clássicos (mapeamento de ligação por
recombinação) de espécies, como Drosophila melanogaster (díptero) e Mus
musculus (roedor), são baseados em genes e sofrem refinamento
contínuo, sendo obtidos pelo esforço colaborativo de grupos de
pesquisa em todo o mundo. Ao contrário desses, o mapa genético
humano não poderia ser baseado em genes, pois a frequência de
cruzamentos entre dois indivíduos, sofrendo de diferentes desordens
genéticas, é extremamente baixa. Muitas mudanças ocorreram, e os
mapas de alta densidade que, atualmente, integram os mapas: genético,
citológico e físico dos cromossomos estão sendo construídos, não
apenas para humanos mas também para vários outros Organismos
modelo, como Escherichia coli (bactéria), Saccharomyces cerevisiae (levedura),
Arabdopsis thaliana (planta), permitindo uma melhor compreensão da
evolução dos genomas e uma visão holística sobre a constituição dos
Organismos (http://www.ncbi.nlm.nih. gov).
Essa foi a fase do uso das técnicas de genética de
microorganismos, e do início da compreensão molecular da Biologia do
Desenvolvimento e da Neurobiologia.
2008 - O FUTURO
O conceito de gene continua a sofrer transformações, entretanto,
ponderamos sobre genes superpostos, pseudogenes, realizamos
comparações entre genes de diferentes organismos, aprendemos que a
variabilidade pode ocorrer devido não apenas às mutações, segregação
121
cromossômica e crossing-over, mas também através da recomposição
alternativa. Palavras e/ou expressões como RNA antissentido,
imprinting, transposons e reparo de DNA fazem parte do vocabulário de
qualquer estudante de graduação em Biologia, que tenha um mínimo
contato com a Genética.
O que você gostaria de estudar em genética? Origem da vida,
História evolutiva dos animais, Envelhecimento, Câncer,
Desenvolvimento, Mente? Sobre estas questões temos muito ainda a
aprender.
Estamos na era da aplicação prática da genética molecular que
engloba áreas diversas como agricultura, medicina, biotecnologia,
ecologia e até arqueologia. A Clonagem, por exemplo, é um assunto
bem difundido na mídia e amplamente debatido na sociedade, por
envolver diversos questionamentos éticos. Na TV e no cinema temos
como exemplo, a novela ―O Clone‖ (Perez, 2001) e filmes como: Os
meninos do Brasil (Gould, 1978), Blade Runner, O sexto dia (Wibberley,
2000), Minority Report – a nova lei (Frank & Comen, 2002), A ilha (Bay,
2005), dentre outros.
Quando tratamos de clonagem podemos estar nos referindo a
diferentes tipos: (1) natural - observada no nascimento de gêmeos e no
processo de estaquia ou cultura in vitro em plantas; (2) gênica - pelo uso
do DNA recombinante através de vetores de clonagem, com diferentes
aplicações como no sequenciamento de genomas, na regulação gênica
de doenças (câncer), na produção de proteínas, na ciência forense de
DNA; (3) terapêutica - em destaque na mídia devido ao uso cada vez
mais frequente de células tronco adultas (CTA) ou embrionárias (CTE)
no tratamento de doenças; e, por fim, (4) a reprodutiva - trazendo uma
verdadeira revolução. Em 1997, Ian Wilmut clonou o primeiro
mamífero, a ovelha Dolly, a partir de uma célula somática adulta. Após
esse episódio vários outros animais foram produzidos de forma
semelhante como o camundongo Cumulina, a bezerra Penta, a gata Copy
Cat, além de cabra, cavalo, veado e porco (Brown, 2003). Todo o
conhecimento traz consigo vantagens e desvantagens. O uso de CTEs
levaram a população ao debate e a criação de novas leis e vários dilemas
éticos surgiram à medida que a tecnologia foi se aperfeiçoando.
Estamos também na era da informação, mas precisamos ter
cuidado com as fontes. Não podemos esquecer que as informações na
web são muito diferentes daquelas contidas em um periódico científico.
122
Ela pode ser boa, pobre, ruim ou até mesmo enganosa, por ignorância
do assunto ou propositadamente com o intuito de confundir. Os
geneticistas possuem bases de dados de alta qualidade, no entanto a
população leiga não tem conhecimento do jargão técnico, o que
dificulta a compreensão de muitos processos em Genética. Essa ciência
pode trazer inúmeros benefícios à sociedade, como por exemplo, o
aumento da produção e qualidade de alimentos de origem vegetal e
animal, bem como o maior conhecimento sobre as doenças genéticas e
a base para o tratamento preventivo e cura.
GENÉTICA NA ESCOLA: A SITUAÇÃO
CIÊNCIA FORMAL E CONHECIMENTO PRÉVIO: O ENCONTRO
Dentro das Ciências Biológicas, o ensino da Genética pode ser de
difícil aprendizado, devido ao alto nível de abstração envolvido. Essa
situação é agravada pelos poucos recursos disponíveis nas instituições
educacionais para a realização de aulas práticas demonstrativas desse
assunto, não apenas nas escolas como também nas universidades,
privando o futuro profissional de conhecê-los de uma forma mais
interativa. Além disso, o grande volume de informações e a velocidade
dos avanços nessa área podem tornar o professor inseguro frente às
novas abordagens desses temas. Com a facilidade de acesso ao
conhecimento, especialmente via internet, inverte-se a relação que se
estabelece comumente na sala de aula. Os alunos são detentores de
notícias e questionam os professores sobre essas. O professor não tem a
obrigação de saber todas as questões, mas deve ao seu aluno um
posicionamento ético e um retorno sobre o assunto abordado.
As Ciências Biológicas trazem um imenso cabedal de
conhecimento, sendo humanamente impossível para um biólogo e/ou
professor saber tudo sobre Biologia, mesmo na sua área específica seja
no aspecto de conteúdo (frequentemente linear) ou numa concepção
mais ampla (não linear) (Capra, 2002). Dessa forma, será papel da escola
trabalhar com essas informações "top de linha?" A genética atual tem
trazido novos conhecimentos, mas será que esses estão sendo agentes
de transformação no ensino de biologia? Mais importante é fazer com
que o conhecimento seja significativo para o aluno e isso pode ser
conseguido através da discussão, reflexão e crítica, para haver mudança
de conceitos e entendimento do mundo (Cachapuz, 1999; Rocha e
Jófili, 2005).
123
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) orientam que no
ensino de Biologia devem ser utilizados modelos para auxiliar a
explicação tanto do que podemos observar diretamente, quanto do que
só podemos inferir a partir da realidade (Brasil 1999; Brasil 2001).
Assuntos que envolvem a compreensão de conceitos que exijam
abstração, como a abordagem molecular da Genética, bem como os de
evolução são de difícil apresentação para o alunado e população leiga,
devido à escassez de modelos didáticos, objetivos e práticos que
facilitem a sua explanação. Mesmo conceitos, mais próximos da
realidade, como os de herança são permeados por ideias incorretas,
mostrando o não entendimento por falta da base celular. Para a maioria
dos leigos muitas das representações biológicas e, em especial, genéticas
ficam distantes da realidade e algumas vezes são inadequadas, gerando
desatualização e incorporação de erros conceituais no aprendizado
(Bishop & Anderson, 1990; Desmastes Settlage & Good 1995; Mayer et
al., 2001).
A Sociedade Brasileira de Genética (SBG), fundada em 5 de julho
de 1955, é uma entidade civil sem fins lucrativos e tem como principais
finalidades: congregar pessoas e instituições interessadas em propiciar o
progresso e a difusão das diferentes áreas da Genética, formar
geneticistas, realizar pesquisas, editar revista científica (Revista Genetics
and Molecular Biology editada trimestralmente) e outras publicações (E-
books, monografias, livros), promover eventos científicos, dentre outras.
Além disso, visa orientar e supervisionar as atividades relacionadas ao
exercício profissional na área, assessorar órgãos governamentais e
outras instituições em assuntos relacionados à Genética. Nas palavras
de Salzano (presidente da SBG gestão 2004-2006), observamos a
participação dessa entidade no ensino de Genética, através do seguinte
trecho:
A Sociedade Brasileira de Genética vem se preocupando
bastante, ao longo dos anos, com o ensino desta disciplina
(Genética). Muitos eventos a respeito foram programados em
nossos congressos, e atualmente existem duas comissões
permanentes, uma de ensino em geral e a outra voltada
especificamente para o ensino de pós-graduação. A promoção
―Genética na praça‖ já tem também um passado respeitável.
Mas, faltava um periódico no qual experiências diversas fossem
relatadas. Esta lacuna foi agora preenchida com o surgimento da
Genética na Escola [...] (<http://www.sbg.org.br>)
124
O ensino da genética tem sido tratado pelos educadores como
um grande desafio (seja à distância ou presencial), visto que, alunos
necessitam de conhecimentos básicos de outras disciplinas como a
citologia, embriologia, microbiologia, zoologia, botânica e algumas de
cunho probabilístico. Dessa forma, a elaboração de novas metodologias
é importante para que o aprendizado torne-se mais prazeroso, numa
forma de esclarecer e tirar dúvidas de forma lúdica como, no caso, da
utilização de jogos ou brincadeiras, fazendo com que estudantes possam
demonstrar um maior interesse pela disciplina. Atualmente existem
novas maneiras de abordar o assunto, tanto sob a forma de softwares para
a Genética (Cruz, et al., 2000) como através de jogos didáticos, como
―Evoluindo Genética‖ e ―Embaralhando o DNA: Operando um
Terminal Genômico‖, ambos visando uma melhoria no ensino
(PAVAN, 1998; 2000). Outros jogos e modelos foram apresentados em
diversos congressos e encontros de Genética, embora não tenham sido
lançados no mercado (Dória & Rocha, 2005; Fittpaldi & Rocha, 2005;
Rocha & Rocha, 2005; Fittpaldi & Rocha, 2006; Rocha, Rocha &
Queiroz, 2006). A transposição do saber, também pode ser realizada
através de práticas na forma de exercícios e experimentos, bem como
em atividades discursivas em plenárias de filmes ou textos, dentre
outros, que tornam significativo o aprendizado (Jófili, 2002).
A ciência formal tem o papel de informar, mas se faz necessário a
―validação‖ do saber local, para esse conhecimento ser significativo para
o aluno. Barbosa et al. (2007), refletindo a partir das dificuldades que os
professores enfrentam em produzir aulas práticas que contribuam para
a compreensão da genética, e pela carência de modelos didáticos que
favoreçam a concretização dos conceitos básicos da genética clássica,
desenvolveram um modelo cromossômico prático, interativo, de
simples produção encurtando a distância entre o conhecimento prévio
daquele aceito e praticado formalmente nas universidades. Esse modelo
foi construído a partir de material reaproveitado (tampas de garrafa
―PET‖ de diversas cores e fios para instalação elétrica, número 12 com
fios de cobre revestido), e permite trabalhar conceitos essenciais, como:
gene, genótipo, fenótipo, alelos, lócus, cromátides, homozigose,
heterozigose, dominância e recessividade, mitose e meiose. Possibilita
também simular a duplicação cromossômica e separação das cromátides
irmãs, ou seja, as estruturas e eventos que norteiam a Teoria
Cromossômica da Herança. Segundo Barbosa et al. (2007), modelos
125
dessa natureza e metodologias adequadas, proporcionam avanços na
aprendizagem, quando estabelecem conexão entre o conceito científico-
teórico (em seus níveis de abstração) e a representação pelo concreto-
prático, numa construção interativa de conhecimento. De acordo com
El-Hani e Bizzo (2002), essas concepções prévias poderiam representar
o ponto de partida para um processo de ensino-aprendizagem mais
eficiente e o conteúdo trabalhado em sala de aula entendido pelos
educadores como uma ―segunda cultura‖ a ser apreendida pelos
estudantes.
Nem sempre as iniciativas de divulgação da ciência precisam
partir de universidades ou escolas. Alguns exemplos vêm de ONGs
(Organização não Governamental). A ONG ―O DNA vai à Escola‖ é
um consórcio internacional socioeducacional que integra diferentes
profissionais com o objetivo de informar pessoas sobre o
desenvolvimento da biomedicina, e tem como seu maior objetivo a
educação. Na página dessa organização (http://www.odnavaiaescola.
com/) estão disponibilizados cursos, atividades online, textos para
debates, e atividades para a sala de aula. No início dessa década
recebemos o contato e o convite, dessa ONG para auxiliar na atividade
―O DNA vai ao supermercado‖, na primeira Semana Nacional da
Ciência e Tecnologia (www.mct.gov.br/semanact2004). Essa atividade
foi realizada em várias capitais do país, incluindo Recife. Foi utilizado o
Protocolo da Carnegie Academy for Science Education: Extraindo DNA de
morango. Tal atividade vem sendo utilizada na Universidade de
Pernambuco (UPE) tanto em eventos de extensão como em salas de
aula, mesclada com extrações mais complicadas, a título de comparação.
Em 2007, o DNA foi ao zoológico (Semana Nacional C&T - 2007) e
também a algumas escolas (através de um bolsista BIA-FACEPE), onde
trabalhamos adicionalmente com o jogo ―Evoluindo Genética‖. Esse
jogo fez parte, anteriormente, de uma grande Olimpíada Nacional de
Genética, cujo vencedor foi um aluno de Recife.
A mídia traz constantemente reportagens relacionadas à Genética
e, dessa forma, os leigos são bombardeados com dados sobre clonagem,
sequenciamento de genomas e desenvolvimento de organismos
geneticamente modificados ou transgênicos. Rodrigues e Sobreira
(2005) realizaram um estudo com 121 pessoas de oito municípios do
estado de Pernambuco com diferentes graus de instrução com relação
ao conhecimento acadêmico (alunos e professores do ensino
126
fundamental, médio e superior; além de feirantes) e obtiveram através
de um questionário, na forma de teste, resultados mostrando que a
percepção pública sobre esta tecnologia é bastante confusa e conflitante
indicando haver necessidade de uma maior informação sobre o tema
nos diferentes segmentos da sociedade.
Atualmente, o maior desafio a vencer é a ignorância. Precisamos
que os núcleos de ensino e pesquisa, a mídia e a sociedade se integrem
em debates sobre questões polêmicas, disseminando informações com
precisão, contextualização e crítica. Provavelmente ninguém gostaria de
imaginar um mundo onde nossos filhos e netos estivessem vivendo sob
o tipo de tirania genética vivenciada no filme Gattaca, de Andrew Nicols
(1997), no qual uma população obcecada pela perfeição genética
classifica os seres humanos como: (1) válidos, classe dominante e
geneticamente aprimorada, concebida em laboratório e (2) ―in-válidos‖,
subclasse com o tipo de reprodução comum, gerando seres humanos
imperfeitos como os atuais. Os filmes mais recentes retratam o medo
oculto da população através da clonagem humana, produção de
superbactérias ou vírus mortal. No filme ―A ilha‖ de Michae Bay (2005),
pessoas são clonadas e seus clones condenados a ―vidas de mentira‖
esperando o prêmio de sair da ilha, sem saber, no entanto, que seriam
mortos e seus órgãos utilizados por suas matrizes. Precisamos trabalhar
―os medos‖ da população e chegar a um equilíbrio onde não se proíba
tudo, sob pena da ciência não poder avançar e nem se permita tudo, sob
pena de perdermos a noção do que é ser humano e parte integrante de
uma cadeia. Dessa maneira, as instituições de ensino e pesquisa e as
sociedades científicas possuem um importante papel e uma grande
responsabilidade tanto no desenvolvimento de novas tecnologias, como
na correta avaliação de risco e, aliadas à mídia, na divulgação da
informação e envolvimento da população em geral.
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130
APLICAÇÃO E TESTE DE UMA SEQUÊNCIA
DIDÁTICA SOBRE EVOLUÇÃO NO ENSINO
MÉDIO DE BIOLOGIA
Vanessa Perpétua Garcia Santana Reis1, Charbel
Niño El-Hani2, Claudia Sepúlveda3

INTRODUÇÃO
O ensino da teoria darwinista da evolução tem sido
considerado fundamental não só para a compreensão de muitos dos
modelos explicativos da biologia, mas também para a educação para a
cidadania, em particular, para a tomada de decisões em situações
sócio-científicas (Sadler, 2005). Afinal, a compreensão satisfatória de
diversos processos biológicos que têm impacto social depende do
pensamento evolutivo, a exemplo da resistência bacteriana a
antibióticos e das pandemias provocadas por vírus emergentes
(Futuyma, 2002; Meyer & El-Hani, 2005) ou do melhoramento
genético de plantas e animais utilizados pelos seres humanos (Bull &
Wichman, 2001; Futuyma, 2002). Além disso, por meio da
filogenética, a teoria darwinista se tornou em tempos recentes um dos
fundamentos do monitoramento de doenças e da identificação de
espécies para finalidades médicas, farmacológicas e de conservação
(Bull & Wichman, 2001). Também recentemente, estudos de
bioinformática baseados na aplicação do pensamento darwinista se
tornaram centrais no planejamento de protocolos biotecnológicos
usados na produção de novos medicamentos e enzimas industriais, na
defesa contra pragas agrícolas e microorganismos patogênicos

1 Universidade Estadual de Feira de Santana/ Departamento de Ciências Biológicas.


Instituto de Educação Gastão Guimarães (SEC-BA), Feira de Santana-BA,
[email protected]
2 Universidade Federal da Bahia/Instituto de Biologia, Programa de Pós-Graduação

em Ensino, Filosofia e História das Ciências (UFBA/UEFS), Programa de Pós-


Graduação em Ecologia e Biomonitoramento (UFBA), [email protected]
3 Universidade Estadual de Feira de Santana/ Departamento de Educação, Programa
de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências (UFBA/UEFS),
[email protected]

131
resistentes, e até mesmo no desenvolvimento de novas tecnologias
computacionais (Bull & Wichman, 2001; Meyer & El-Hani, 2005).
Não obstante a importância do pensamento darwinista, os
resultados disponíveis acerca de seu ensino e aprendizagem são
relativamente desanimadores. Desde a década de 1980, tem sido
constatada a persistência de dificuldades por parte dos alunos para
resolver problemas e interpretar fenômenos biológicos em termos
darwinistas, mesmo após instrução formal sobre o tema (Clough &
Wood-Robinson, 1985; Bishop & Anderson, 1990; Bizzo, 1994;
Demastes, Settlage & Good, 1995; Jensen & Finley, 1996; Sinclair,
Pendarvis & Baldwin, 1997; Alters & Nelson, 2002). Entre os fatores
citados como capazes de explicar a prevalência de tais dificuldades,
temos: a incompreensão de conceitos centrais que estruturam a teoria
darwinista da evolução (Ferrari & Chi, 1998); a rejeição aos aspectos
metafísicos desta teoria, em virtude seus conflitos com concepções de
natureza importantes na visão de mundo de estudantes, como aquelas
pautadas nas religiões cristãs (Cobern, 1994, 1996; Smith, 1994; Brem,
Ranney & Schindel, 2003; Sepulveda & El-Hani, 2004, 2006); e a
frequência de visões inadequadas sobre a natureza da ciência entre
estudantes e professores (Smith, Siegel & McInerney, 1995; Sinclair,
Pendarvis & Baldwin, 1997; Rutledge & Warden, 2000; Sinatra et al.,
2003; Dagher & Boujaoude, 2005). Diante deste quadro, o
desenvolvimento e teste de inovações educacionais que possam levar
a melhorias do ensino e aprendizagem de evolução são altamente
desejáveis, em particular, se estas inovações forem capazes de
transpor resultados da pesquisa educacional para o planejamento e a
ação pedagógica.
Este trabalho relata alguns resultados de uma iniciativa de
desenvolvimento e teste de uma inovação educacional com as
características acima. Trata-se de uma sequência didática para o
ensino da teoria da evolução por seleção natural, que foi desenvolvida
e avaliada no contexto do ensino médio público, sob uma perspectiva
sócio-histórica da aprendizagem, fundamentada na abordagem
vygotskyana do desenvolvimento cognitivo (Vygotsky, 1981; 2001) e
na concepção dialógica da compreensão desenvolvida por Bakhtin
(Bakhtin, 1981; Volochinov, 1992). Foi utilizado também um modelo
de perfil conceitual de adaptação como ferramenta teórico-

132
metodológica para investigar os aspectos epistemológicos envolvidos
na compreensão do pensamento darwinista em sala de aula.
A sequência didática foi construída e testada por uma equipe
colaborativa que reunia professores e pesquisadores, no âmbito de
um projeto de pesquisa-ação implementado numa comunidade virtual
de prática (Lave & Wenger, 1991; Wenger, 1998) focada no ensino de
biologia, a ComPratica. A comunidade reúne professores do ensino
médio, licenciandos, pesquisadores e estudantes de graduação e pós-
graduação e inclui fóruns e chats sobre assuntos relacionados ao
ensino de biologia, assim como o desenvolvimento de projetos de
pesquisa-ação, como o discutido no presente artigo.4 A ComPratica
tem sido usada como ferramenta para diminuir a lacuna pesquisa-
prática no ensino de ciências (sobre lacuna pesquisa-prática, ver Gatti,
1992; Pekarek et al., 1996; Kennedy, 1997; Pena & Ribeiro Filho,
2008). Como argumenta McIntyre (2005, ver tb. El-Hani & Greca,
2009), a superação da lacuna pesquisa-prática depende de um duplo
movimento: do conhecimento produzido pela pesquisa rumo às
particularidades das salas de aula, através do desenvolvimento e da
implementação gradual de propostas para a prática pedagógica, e do
conhecimento pessoal dos professores rumo a um maior grau de
generalidade e, portanto, a uma maior facilidade de ajuste a novas
situações, a partir da reflexão docente. Estes movimentos são mais
poderosos e empoderadores se professores e pesquisadores estiverem
reunidos em equipes colaborativas, nas quais todos atuem como
pares, sem hierarquias verticais. Este duplo movimento, da pesquisa
para a prática, e da prática para a pesquisa, pode culminar com
proveito na execução de projetos de pesquisa-ação situados nas salas
de aula dos professores e construídos em consonância com seus
interesses e suas preocupações.
O desenvolvimento da sequência didática ocorreu no contexto
da participação de uma comunidade escolar em um projeto de
pesquisa acerca do ensino de evolução por seleção natural visto sob a
perspectiva da abordagem dos perfis conceituais (Mortimer, 1995,

4Para maiores informações sobre a ComPratica, ver El-Hani & Greca (2009, ver tb.
http://sites.google.com/site/philosteaching/projetos-de-extensao). Professores de
biologia do ensino médio de qualquer estado brasileiro interessados em participar da
comunidade devem escrever para Prof. Charbel El-Hani, pelo email
[email protected]
133
2000). Contudo, o planejamento da sequência foi fruto de um diálogo
entre os objetivos de investigação dos pesquisadores e as
preocupações pedagógicas da professora responsável pelas aulas
ministradas, primeira autora deste trabalho. A partir deste diálogo,
foram definidos três eixos orientadores: (1) o desenvolvimento de
estratégias que diminuíssem as rejeições a priori ao ensino de
evolução, decorrentes do fato de este ser visto como uma ameaça à
visão de mundo de grupos culturais aos quais pertencem muitos
estudantes; (2) a implementação de uma abordagem que tornasse o
ensino de evolução significativo do ponto de vista de sua aplicação
em situações do cotidiano, ligadas à cidadania; e (3) a promoção da
compreensão da teoria da seleção natural através da significação do
conceito darwinista de adaptação.
Na segunda seção deste trabalho, apresentaremos de que
modo a perspectiva sócio-histórica de Vygotsky e Bakhtin foi
empregada na elaboração e avaliação da sequência didática, a qual será
descrita na seção seguinte. Na quarta seção, apresentaremos as fontes
de dados e as ferramentas metodológicas que nos auxiliaram na
análise dos avanços dos estudantes na apropriação da perspectiva
darwinista e da linguagem social da ciência escolar. Com base nos
resultados apresentados e discutidos na quinta seção, abordaremos
em nossa conclusão algumas diretrizes para o desenvolvimento de
sequências didáticas para o ensino da teoria darwinista da evolução,
segundo uma abordagem sócio-histórica do ensino e da
aprendizagem.
UMA ABORDAGEM VYGOTSKYANA-BAKHTINIANA DA
SIGNIFICAÇÃO
De acordo com a lei genética de desenvolvimento cultural de
Vygotsky, a aprendizagem tem origem em situações sociais, ou seja,
as funções mentais superiores, a exemplo da formação de conceitos,
aparecem primeiro entre as pessoas, como uma categoria
interpsicológica e, através da internalização de experiências dirigidas
socialmente, se transformam numa categoria intrapsicológica
(Vygotsky, 1981). Entendemos esta internalização em termos da
constituição de potencialidades de emergência de funções mentais
similares, sempre produzidas na interação socialmente situada entre
um indivíduo e alguma situação externa, e não como a produção de
134
estruturas mentais estabilizadas de modo inteiramente interno
(Mortimer, Scott & El-Hani, 2009). Dito de outra maneira, o aspecto
de permanência em processos mentais como o pensamento
conceitual pode ser entendido como uma tendência ou potencialidade
de tais processos, quando plenamente desenvolvidos, operarem de
maneira similar diante de experiências que percebemos como
similares. O pensamento conceitual, como processo emergente em
cada interação social, tende a repetir-se em aspectos que nos parecem
centrais, e é isso que nos permite usar conceitos repetidamente, de
modo similar, e, assim, pensar através de conceitos e comunicarmo-
nos uns com os outros de maneira efetiva por meio dos signos da
linguagem. Assim, podemos manter a estrutura dialética do
pensamento de Vygotsky intacta, entendendo a internalização não
como a geração de alguma estrutura interna à mente do sujeito que
reproduz ou representa alguma estrutura externa, mas como uma
internalização que só pode manifestar-se numa tensão dialética com a
externalização, com uma retomada da experiência social que
incorpora uma potencialidade de emergência das mesmas classes de
processos mentais, no caso que aqui nos interessa, do mesmo modo
pensar conceitualmente diante de experiências similares. A relação
entre os planos inter- e intrapsicológico se encontra fundada no fato
de que, em ambos, são utilizados mediadores construídos social e
culturalmente para pensar, a exemplo da linguagem (Wertsch, 1985).
Assim como Vygotsky, Bakhtin também enfatiza o papel da
interação social na formação da consciência individual e o caráter
dialógico do processo de compreensão. Na concepção bakhtiniana,
qualquer processo de compreensão ou significação é dialógico por
natureza e um indício de que houve compreensão do discurso alheio
é o fato de o indivíduo conseguir povoar o discurso a ser
compreendido com o seu próprio discurso (Volochinov, 1992). Esta
abordagem bakhtiniana da compreensão tem implicações muito
importantes para a avaliação no contexto da educação científica
(assim como da educação em termos mais gerais). Se seguirmos a
Bakhtin na ideia de que encontramos as palavras na linguagem como
palavras dos outros e só as tornarmos nossas próprias palavras, só
nos apropriamos delas quando as povoamos com nossas próprias
vozes, um estudante só poderá ser bem sucedido na aprendizagem
das ideias científicas mediante a negociação dos significados de tais
135
ideias com os significados de outras ideias presentes em sua ecologia
conceitual (El-Hani & Sepulveda, 2010). Contudo, a mera repetição
mecânica da linguagem e dos conceitos científicos é frequentemente
colocada em primeiro plano nas expectativas sobre a aprendizagem
dos estudantes e, por conseguinte, na avaliação. Mas ela constitui, de
uma perspectiva bakhtiniana, evidência de que não houve apropriação
das ideias científicas, mas apenas a repetição do discurso do outro
como discurso citado, sendo preservadas as fronteiras entre o que
constitui o discurso próprio do aluno e o discurso da ciência, mantido
como discurso de um outro. Não será provável que este discurso,
mantido como pertinente ao outro, seja empregado pelos estudantes
na interpretação de suas experiências e na construção de suas ações
no mundo social.
Isso coloca uma situação bastante curiosa: o discurso dos
estudantes mostrará, desta perspectiva, indícios de apropriação das
ideias científicas se eles forem capazes de dizer tais ideias em
enunciados povoados por sua própria linguagem e suas próprias
perspectivas (nos termos de Bakhtin, suas vozes próprias).
Naturalmente, na construção de tais enunciados, haverá uma
tendência de ressignificação das ideias científicas. Isso não deverá ser
motivo de preocupação, por si só, se admitirmos que as ideias
cientificas, para serem apropriadas pelos estudantes, devem ganhar
significado à luz de sua ecologia conceitual, não a despeito dela
(Cobern, 1996). Então, nossa tarefa, como professores, não seria
avaliar se os estudantes estão repetindo o discurso da ciência, mas se
os significados das ideias científicas estão preservados em seus
aspectos mais centrais nas ressignificações feitas pelos estudantes.
Esta é, sem dúvida, uma tarefa mais complexa, que demanda do
professor uma compreensão profunda dos significados das ideias que
ensina. Contudo, não é isso que devemos esperar dos professores,
exatamente, e não é a oportunidade de desenvolver tal compreensão
que devemos, como formadores de professores, propiciar em sua
educação para a construção da identidade e das práticas da profissão
docente?
Mortimer e Scott (2003) buscaram nas ideias de Bakhtin
parâmetros para investigar o modo como os estudantes progridem na
compreensão da perspectiva da ciência escolar a ponto de se
tornarem hábeis em sua aplicação, não somente em situações
136
acadêmicas, mas também em situações cotidianas. Estes autores
identificaram e caracterizaram três estágios na apropriação gradual e
progressiva de significados pelos estudantes, a partir da introdução de
novas ideias no plano social da sala de aula (Mortimer & Scott, 2003,
p. 113-114).
O primeiro estágio é proporcionado pelas primeiras fases das
sequências de ensino, quando os professores propõem problemas,
exploram as ideias dos estudantes e introduzem e desenvolvem a
estória científica.5 Durante este período, os estudantes ainda
consideram as ideias científicas como constituintes de um discurso
alheio, do outro, estranhas às suas próprias visões e experiências.
O estágio seguinte é alcançado quando os estudantes começam
a conceber as novas ideias como em parte pertencentes ao outro,
alheias, e em parte pertencentes a eles mesmos. É comum nessa fase
que os estudantes comecem a usar as ideias da ciência escolar, mas
ainda de modo incerto e hesitante, um indício de que as ideias ainda
não foram completamente apropriadas. É mais provável que esta fase
seja atingida quando é proporcionada aos estudantes a oportunidade
de trabalhar com as ideias científicas, com os professores fornecendo
orientações durante este processo, de modo a sustentar a apropriação.
O estágio final da apropriação progressiva do significado
ocorre quando os estudantes se apropriam completamente das novas
ideias. Um indício de que este processo está ocorrendo é o uso de
ideias da ciência escolar pelos estudantes para construir seus próprios
argumentos, assim como o emprego com fluência da linguagem social
da ciência. Não se deve esperar, contudo, que os estudantes falem
apenas nos termos dessa linguagem. Como vimos acima, a
apropriação do discurso do outro, nesse caso, o discurso científico, se
dá pelo povoamento dos enunciados com um discurso que tem um
acento, uma voz própria, e no qual as ideias dos outros são
ressignificadas de modo a tornarem-se mais compatíveis com as
perspectivas próprias do aprendiz. Este estágio é mais provavelmente

5 Mortimer e Scott (2003, p.18) usam a expressão ―estória científica‖ para designar o
modo como a perspectiva da ciência é narrada para os estudantes no espaço social da
sala de aula, de maneira a torná-la acessível a eles. Eles se baseiam na ideia de
Ogborn e colaboradores (1996) de que a ciência escolar oferece uma abordagem dos
fenômenos naturais que se expressa em termos de ideias e convenções próprias da
linguagem da ciência escolar, de modo a compor uma espécie de roteiro, semelhante
a uma estória.
137
alcançado à medida que os estudantes têm oportunidades de aplicar a
perspectiva da ciência na interpretação de uma diversidade de
fenômenos e situações, coincidindo com momentos em sequências
didáticas nos quais os professores colocam para os estudantes novas
situações nas quais possam empregar as ideias que estão aprendendo,
transferindo-lhes a responsabilidade por este uso.
Um aspecto muito interessante nesta descrição do progresso
dos estudantes na compreensão da perspectiva da ciência escolar é o
de que ela relaciona estágios da significação das ideias científicas pelos
estudantes com intenções e intervenções pedagógicas dos
professores. Ela tem, portanto, uma dimensão heurística – que foi
explorada na construção de nossa sequência didática –, na medida em
que orienta metodologicamente tanto o planejamento do trabalho
pedagógico, quanto a investigação dos seus resultados com relação à
compreensão dos conceitos e das explicações científicas e à
apropriação da linguagem social da ciência.
A SEQUÊNCIA DIDÁTICA
A sequência didática foi estruturada em quatro momentos: (1)
introdução ao pensamento evolutivo, suas implicações para o
pensamento ocidental e aplicações sociais; (2) construção do
problema da diversificação da forma orgânica e introdução dos
princípios que estruturam a seleção natural; (3) apresentação formal
da teoria darwinista da evolução: descendência comum, seleção
natural e conceito de adaptação, especiação; (4) aplicação da teoria da
seleção natural na interpretação de problemas sócio-científicos.6
No primeiro momento, a intenção era explorar as ideias dos
estudantes acerca do tema ―evolução biológica‖. Buscando minimizar
a rejeição ao tema e mobilizar os estudantes, planejamos uma
estratégia em que, ao mesmo tempo, antecipávamos os possíveis
conflitos entre as ideias darwinistas e suas visões de mundo, e
investíamos no reconhecimento da importância da teoria para a

6 Neste artigo, fornecemos uma descrição sucinta da sequência didática. No futuro, a


mesma será disponibilizada no site do Grupo de Pesquisa em História, Filosofia e
Ensino de Ciências Biológicas, IB-UFBA (http://www.gphfecb.ufba.br/). Por ora,
leitores interessados podem solicitar os materiais que compõem a sequência didática
a Claudia Sepulveda ([email protected]) e Vanessa Reis
([email protected]).
138
humanidade, em termos culturais e na melhoria da qualidade de vida.
Foi oferecido aos estudantes um conjunto de cinco textos que
versavam sobre (1) a recepção da obra A Origem das Espécies pela
sociedade inglesa vitoriana; (2) aplicações contemporâneas das ideias
darwinistas; (3) o impacto da teoria darwinista no pensamento
ocidental; (4) a biografia de Darwin e a construção de sua teoria; e (5)
a importância de estudar a biologia evolutiva. Cada um dos textos foi
lido e discutido em pequenos grupos. Em seguida, a discussão de
cada grupo foi relatada e sistematizada para toda a turma.
No segundo momento, criamos cenários que permitissem
explorar os modelos explicativos dos estudantes para a diversificação
da forma orgânica, ao tempo em que a ―estória científica‖ era
introduzida. Para tanto, usamos duas estratégias. A primeira foi a
análise do caso da diversificação dos tentilhões das Galápagos. Foram
fornecidos dados sobre a distribuição geográfica das espécies de
tentilhões no arquipélago, bem como dados sobre a relação entre o
tamanho dos bicos desses pássaros, o tipo de recurso alimentar
explorado pelos mesmos e as estratégias usadas para sua exploração,
com base nas investigações de Grant e Grant (1995). À medida que
os dados eram analisados na turma, a professora solicitava aos
estudantes que formulassem explicações para a diversidade
morfológica dos bicos e para a origem das espécies de tentilhões das
ilhas Galápagos, bem como que fizessem previsões acerca do
comportamento de populações distintas destes pássaros em situações
de mudança ambiental, como a escassez de alimento provocada por
secas prolongadas.
A segunda estratégia consistiu na realização do Jogo
―Clipsitacídeos‖.7 Simulamos um processo de mudança populacional

7 O nome original do jogo é Clipbirds. Uma descrição detalhada dos procedimentos e


materiais empregados na realização do mesmo é disponibilizada no site
www.ucmp.berkeley.edu/education/lessons/clipbirds, que é parte do site
Understanding evolution (http://evolution.berkeley.edu/), desenvolvido pela
Universidade da Califórnia-Berkeley para apoiar professores no ensino de evolução.
Foi empregada na sequência didática uma adaptação do jogo desenvolvida e testada
por Ana Maria Rocha de Almeida e Marta Vargens, pesquisadoras do Grupo de
Pesquisa em História, Filosofia e Ensino de Ciências Biológicas (IB-UFBA). Uma
descrição dos materiais e procedimentos para a realização da atividade de acordo
com esta adaptação, assim como as instruções do jogo, são encontradas em Vargens
(2009). Esta autora relata resultados obtidos numa avaliação empírica da eficácia do
139
decorrente de mudanças no regime seletivo, mais especificamente, na
oferta de alimento, num contexto de separação geográfica e
isolamento reprodutivo de uma população inicial de pássaros com
variação fenotípica em seus tamanhos de bicos. O jogo possibilita
trabalhar a noção de variação intra-populacional e simular processos
de competição intra-específica, sobrevivência e reprodução
diferenciais, bem como de mudanças de frequências de características
numa população, em um contexto ecológico específico.
Desse modo, a atividade tem o potencial de dar acesso aos
princípios do mecanismo de seleção natural. Assim, no terceiro
momento, a intenção foi sistematizar, a partir da discussão dos
resultados do jogo, a compreensão cientificamente aceita destes
princípios, bem como apresentar formalmente a teoria da seleção
natural, como uma das teorias que estruturam o pensamento
evolutivo darwinista. Pretendia-se, portanto, desenvolver a estória
científica, apresentando o modelo darwinista para explicar a origem e
adaptação das espécies.
No quarto momento, procuramos criar contextos para que os
estudantes pudessem aplicar o modelo explicativo baseado na
adaptação por seleção natural a novas situações, relativas a problemas
sócio-científicos. Planejamos explorar duas situações-problema: o
surgimento de resistência de pragas agrícolas a inseticidas e de
resistência bacteriana a antibióticos. Devido ao tempo de que
dispusemos no teste realizado em sala de aula, trabalhamos apenas
com o primeiro problema. Para introduzir a atividade, foi realizada a
leitura coletiva de um texto curto a respeito dos dois fenômenos,
propositalmente selecionado de um livro didático de biologia
destinado ao ensino médio (Silva Júnior & Sasson, 2005, p. 218). A
partir desta atividade, foram explorados e mapeados os modelos
explicativos dos estudantes. A professora buscou questionar alguns
dos pressupostos que sustentavam estes modelos e oferecer apoios
para que pudessem aperfeiçoá-los. Em seguida, foi fornecido aos
estudantes um roteiro contendo a descrição de um cenário de
combate a pragas com uso de inseticidas por um agricultor, em uma
lavoura experimental. No cenário, é mostrado o surgimento de uma
linhagem resistente após aplicações frequentes do mesmo inseticida

jogo, no contexto do ensino médio, com adolescentes de uma escola da rede pública
estadual de ensino, na cidade de Salvador-BA.
140
(figura 1). Ao final do roteiro, solicitava-se aos estudantes que
construíssem uma narrativa que explicasse como a praga agrícola
havia se tornado resistente ao inseticida, procurando, para tanto,
utilizar os termos ―organismo‖, ―população‖, ―variação‖, ―adaptação‖
e ―seleção natural‖.
Esta sequência foi aplicada a uma turma do terceiro ano da
formação geral do turno noturno do Instituto de Educação Gastão
Guimarães, um dos maiores estabelecimentos de ensino público
estadual do município de Feira de Santana, a segunda cidade mais
populosa do estado da Bahia.
METODOLOGIA
Na pesquisa-ação aqui relatada, empregamos critérios de
justificação a priori e de validação a posteriori ou empírica da
sequência didática construída para o ensino de evolução (Méheut,
2005; Nascimento, Guimarães & El-Hani, 2009). Os critérios de
justificação a priori incluem três dimensões: 1) uma dimensão
epistemológica, de acordo com a qual a sequência didática é
justificada no que concerne aos conteúdos a serem aprendidos, aos
problemas que eles podem resolver e à sua gênese histórica; 2) uma
dimensão psicocognitiva, na qual a justificação ocorre mediante a
consideração das características cognitivas dos estudantes; e 3) uma
dimensão didática, que analisa as restrições do próprio
funcionamento da instituição de ensino (programas, cronogramas
etc.).
Em termos epistemológicos, a construção da sequência foi
justificada com base no papel central da teoria darwinista na estrutura
do conhecimento biológico e na relevância dos problemas sócio-
científicos que podem ser abordados de maneira mais crítica e
poderosa com base no pensamento evolutivo. Além disso, a
construção do perfil conceitual de adaptação utilizado na construção
da sequência didática envolveu substancial atenção à gênese histórica
e a aspectos epistemológicos do pensamento darwinista (Sepulveda,
Mortimer & El-Hani, 2007; Sepulveda, 2009). Foram também levadas
em consideração as características cognitivas dos estudantes do nível
de escolaridade no qual a sequência didática foi testada, atentando-se,
em particular, para o fato de que se tratava de estudantes do turno
noturno de uma escola pública de ensino médio. Por fim, a sequência
141
foi construída tendo em vista as restrições próprias da instituição
escolar, em particular, as limitações do tempo escolar e sua inserção
na organização dos conteúdos ao longo do ano letivo.
Os critérios de validação a posteriori, por sua vez, consideram
duas dimensões diferentes, mas complementares. De um lado, deve
ser feita uma avaliação externa ou comparativa, tipicamente realizada
através da aplicação de instrumentos de coleta de dados em situações
de pré- e pós-testes (e, muitas vezes, também testes de retenção), a
fim de avaliar os efeitos da sequência didática sobre a aprendizagem
dos estudantes. Esta avaliação pode envolver ou não uma
comparação entre grupos experimentais, nos quais a sequência é
aplicada, e grupos controle, nos quais ela não é aplicada. De outro
lado, uma validação interna também é necessária, sendo realizada
através da análise dos efeitos da sequência didática em relação aos
seus objetivos, por exemplo, comparando-se as vias de aprendizagem
que os estudantes efetivamente desenvolveram através da sequência
didática com vias de aprendizagem esperadas, identificadas com base
no planejamento pedagógico.
As duas dimensões de validação a posteriori foram
consideradas em nossa investigação. A avaliação externa da sequência
didática foi realizada com base nas narrativas sobre a evolução da
resistência de pragas agrícolas a inseticidas construídas pelos
estudantes. Os resultados relativos a esta avaliação não serão
discutidos neste trabalho, mas apenas os dados concernentes à
validação interna.
Para a validação interna da sequência didática, foi realizada
uma análise das interações discursivas ocorridas entre a professora e
os estudantes em episódios de ensino selecionados. Os episódios de
ensino constituem um conjunto de enunciados produzidos por
professores e estudantes, selecionados a partir do registro de
observação em vídeo de uma sequência de aulas, segundo objetivos e
critérios da pesquisa. Procuramos investigar de que modo a
professora e os estudantes falavam a respeito das mudanças
evolutivas e faziam uso da linguagem social da ciência escolar, ao
longo do desenvolvimento da estória científica em sala de aula. Foi
gravado um total de cinco horas e trinta minutos de interações
discursivas em sala, das quais foram selecionados episódios que, em

142
conjunto, permitiam contar como a estória científica foi desenvolvida
ao longo da sequência.
Para analisar o progresso dos estudantes na compreensão da
perspectiva da ciência e sua relação com a dinâmica discursiva da sala
de aula, nos amparamos nas seguintes ferramentas teórico-
metodológicas: (1) a descrição dos estágios de apropriação de
significados propostos por Mortimer e Scott (2003) a partir da teoria
de Bakhtin; (2) um modelo de perfil conceitual de adaptação; e (3) a
estrutura analítica do discurso em salas de aula de ciências
desenvolvida por Mortimer e Scott (2003).
De acordo com a abordagem dos perfis conceituais (Mortimer,
1995, 2000), perfis são construídos para cada conceito, contendo
zonas estabilizadas por compromissos epistemológicos e ontológicos
que fundamentam uma perspectiva de significação de um dado
conceito. A despeito de cada indivíduo apresentar seu próprio perfil
conceitual, as zonas em si são potencialmente compartilhadas por
todos os indivíduos de um mesmo contexto sócio-cultural (Mortimer,
1995, 2000; Mortimer, Scott & El-Hani, 2009). A variação entre os
indivíduos diz respeito à frequência de uso de distintos modos de
pensar construídos socialmente e modelados nas zonas do perfil.
No Quadro 1, apresentamos uma caracterização ontológica e
epistemológica das quatro zonas que compõem o perfil conceitual de
adaptação que empregamos em nossa análise. O discurso da ciência
escolar sobre a mudança evolutiva compartilha a maior parte dos
compromissos da zona variacional, os quais coincidem em grande
parte com a perspectiva darwinista.

143
Um agricultor tinha uma plantação de feijão e observou que ela estava sendo atacada por uma
praga de besouros. Resolveu isolar algumas mudas de plantas já infestadas pela praga numa
estufa com tela que não permitia a entrada de insetos, e tentar estudar um modo de eliminar
esta praga com uso de inseticidas.
12 1.Esta era a composição original da
população desta espécie de besouros
na plantação experimental da estufa
antes de ser aplicado qualquer
inseticida.

1
2

1
2.Acima está representada a composição
3 da população desta mesma espécie de
besouros, na mesma plantação
experimental, após uma aplicação do
inseticida diazinon.

3.Após um tempo suficiente para que a


2
população anterior de besouros se 4
reproduzisse em duas gerações, foi observada
esta composição na população da referida
espécie daninha de besouros nas mudas de
feijão.

4.Diante deste aumento no número de


5 besouros daquela praga, o agricultor
resolveu fazer mais aplicações do inseticida
diazinon. Após alguns meses, observou-se
esta composição na população destes insetos
entre as mudas de feijão

5.Ao final de dois anos em que o agricultor esteve aplicando o


mesmo inseticida, diazinon na plantação experimental, na tentativa
de exterminar aquela espécie daninha de besouro, observou-se a
seguinte proporção e composição da população destes insetos
encontrados entre as mudas de feijão.
Figura 1 - Caso de resistência a inseticidas por uma praga agrícola
analisado pelos estudantes em pequenos grupos na última aula da
sequência didática.

144
ZONAS Compromissos ontológicos e epistemológicos
A existência de traços adaptativos é explicada preferencial ou
Mecanicismo exclusivamente pelo apelo a causas próximas, particularmente,
Intra-orgânico processos fisiológicos e biomecânicos, tidos como suficientes para
explicar a organização da estrutura orgânica.
A adaptação é concebida, em termos ontológicos, como um
Ajuste estado de ser ou propriedade do organismo de se encontrar
Providencial ajustado às suas condições de vida. Em termos causais, este ajuste
é explicado apelando-se ao princípio da economia natural e a uma
perspectiva teleológica de ordenação da forma orgânica.
A adaptação é interpretada como um processo de mudança
evolutiva. Esta mudança resulta de uma transformação da essência
Perspectiva da espécie em direção a um estado ótimo de ajuste às condições
Transforma- ambientais, e é explicada por meio das transformações pelas quais
cional cada organismo individual da população passa.
Este modo de pensar está fundado em uma perspectiva etiológica
de interpretação da adaptação, no pensamento essencialista e tem
como foco o organismo individual.
Perspectiva A adaptação é concebida como um processo de mudança
Variacional evolutiva, ou como uma característica dele resultante. Esta
mudança é consequência da propagação seletiva e fixação de
variantes numa população em determinado regime seletivo.
A evolução biológica é concebida como o resultado das mudanças
na proporção de organismos variantes na população.
Este modo de pensar está fundado em uma perspectiva etiológica
de interpretação da adaptação, no pensamento populacional e tem
como foco as relações dos organismos com seu entorno
ecológico.
Quadro 1 - Caracterização ontológica e epistemológica das zonas do
modelo de perfil conceitual de adaptação usado no presente trabalho.
Para maiores detalhes, ver Sepulveda (2009).

O objetivo da sequência didática era promover a compreensão


do significado do conceito de adaptação estabilizado pelos
compromissos ontológicos e epistemológicos que fundamentam a
zona variacional. Ao final da sequência, esperava-se que os estudantes
que, inicialmente, interpretavam a mudança adaptativa em termos de
compromissos próprios das zonas geneticamente anteriores à
perspectiva variacional fossem capazes de empregar a forma de
pensar e o modo de falar variacional sobre adaptação para interpretar
problemas sócio-científicos.

145
Para tornar mais claro, os compromissos que fundamentam e
distinguem as duas perspectivas evolutivas de significação do
conceito de adaptação, designadas em nosso modelo zonas
transformacional e variacional, apresentamos esquematicamente, na
Figura 2, como se estruturam explicações transformacionais e
variacionais da mudança adaptativa.

Mudança
ambiental Mudança ambiental
Cria novas necessidades
adaptativas

População
sobrevivente

Reprodu
ção Reprodução
População de
progenitores
População de progenitores
parcialmente adaptados

Figura 2 - Representação esquemática de uma explicação variacional


(à esquerda) e de uma explicação transformacional (à direita) para a
mudança evolutiva de uma população, em decorrência de uma
mudança ambiental. Cada elipse representa um indivíduo da
população e as cores sinalizam estados diferentes de um caráter
fenotípico. Na explicação transformacional, a evolução do sistema é

146
resultante das transformações ocorridas em seus componentes
individuais. Nas perspectivas variacionais, por sua vez, as mudanças
no sistema são explicadas como uma consequência das mudanças nas
proporções de seus componentes, ou seja, a evolução biológica é
concebida como o resultado das mudanças na proporção de
organismos variantes na população.

A estrutura analítica proposta por Mortimer e Scott (2003)


compreende três dimensões relativas à interação em sala de aula: o
foco de ensino, contemplando dois aspectos, as intenções do
professor e os conteúdos; a abordagem comunicativa; e as ações,
considerando-se as intervenções do professor e os padrões de
interação em sala. A abordagem comunicativa é o elemento central da
análise, dado que é através dela que compreendemos como são
trabalhados os focos de ensino pelo professor, as ações que são
desenvolvidas para este fim, as diferentes intervenções pedagógicas,
as quais resultam, por sua vez, em diferentes padrões de interação.
A abordagem comunicativa é analisada em termos de dois
aspectos que caracterizam a comunicação docente com os estudantes:
(1) se há interação entre professor e estudantes, com trocas de turnos
de fala, e (2) se o professor leva em conta as ideias dos estudantes na
construção de significados em sala de aula. Estes aspectos definem
duas dimensões, a partir das quais a abordagem comunicativa pode
ser caracterizada: interativa–não-interativa e dialógica–de autoridade.
Uma sequência de interação discursiva é dita dialógica se diferentes
perspectivas são consideradas na interação entre professor e
estudante. Quando apenas uma perspectiva é contemplada,
tipicamente, a da ciência escolar, estabelece-se uma abordagem
comunicativa de autoridade.8 É importante ter na devida conta que as
quatro classes de abordagens comunicativas identificadas por
Mortimer e Scott a partir destas duas dimensões têm, todas, papéis a
desempenhar na sala de aula. Não se trata, pois, de dar preferência a
certo tipo de abordagem em detrimento de outra, mas de organizar o
trabalho de sala de aula em torno destas abordagens de modo a
maximizar as potencialidades de apropriação da perspectiva da ciência

8 É importante não confundir abordagem comunicativa de autoridade, termo usado


por inspiração bakhtiniana, com a ideia de autoritarismo. A expressão ‗de autoridade‘
significa apenas que o discurso contempla apenas uma perspectiva ou voz, nada
informando sobre a natureza das relações de poder ou afetivas em sala de aula.
147
escolar pelos estudantes. Transições de uma abordagem a outra
desempenham papel central na construção e apropriação da estória
científica na sala de aula (Scott, Mortimer & Aguiar, 2006).
Por fim, estas diferentes abordagens comunicativas são
construídas através de alguns padrões de interação entre professor e
estudantes. Mortimer e Scott (2003) citam duas categorias mais
comuns: o padrão triádico I-R-A, correspondendo a tríades de
iniciação do professor, resposta do aluno e avaliação do professor, e
as cadeias não-triádicas de turnos, nas quais o professor realiza uma
ação discursiva que permite que o aluno dê prosseguimento sua fala
(I-R-P-R-P...; P, de prosseguimento), ou introduz alguma informação
adicional, oferecendo um feedback para que o aluno elabore mais sua
resposta (I-R-F-R-F...., F, de feedback).
RESULTADOS
Por razões de espaço, não incluímos neste trabalho os
conjuntos de enunciados que compõem cada um dos episódios de
ensino examinados, nem tampouco a análise em si de cada um deles.9
Em lugar disso, apresentamos o que a análise discursiva destes
episódios de ensino, à luz do perfil conceitual de adaptação, nos
permitiu concluir acerca do progresso dos estudantes na
compreensão e apropriação da perspectiva da ciência escolar, no
decorrer do desenvolvimento da estória científica em sala de aula.
A seguir, descreveremos algumas etapas que conseguimos
identificar no processo de compreensão e domínio da forma de
pensar e do modo de falar darwinistas pelos estudantes. Esta
descrição será estruturada de modo a relacionar a elaboração
conceitual dos estudantes com as estratégias enunciativas articuladas
pela professora, assim como com os diferentes contextos discursivos
e pedagógicos constituídos ao longo da sequência didática.
O primeiro episódio de ensino que analisamos foi produzido
durante a primeira aula, no momento em que a professora procurou
explorar as ideias dos estudantes acerca da origem da diversidade da
vida. O episódio teve início com a seguinte indagação feita pela

9 Exemplos de análise do discurso produzido em sala de aula através da articulação


entre uma proposta de perfil conceitual e a estrutura analítica desenvolvida por
Mortimer e Scott (2002; 2003) podem ser encontrados em Amaral e Mortimer (2006)
e Sepulveda (2009).
148
professora: ―Vocês conhecem como estudantes de biologia/ da
diversidade/ da BIODIVERSIDADE /do número de organismos
que tem na Terra. E aí, eu pergunto/ Por que esses seres vivos se
apresentam em tamanha diversidade?‖10 Através da afirmação que
precede a pergunta e da ênfase dada ao termo biodiversidade, um
vocábulo próprio da linguagem social da biologia, a professora situou
os estudantes num determinado grupo social de falantes, o de
estudantes de biologia, e invocou a linguagem social que deveria ser
usada. Foi estabelecido também que o fenômeno da diversidade
deveria ser interpretado a partir da perspectiva da ciência escolar.
Alguns estudantes se mostraram surpresos com a questão,
indicando que este era um problema sobre o qual nunca haviam
pensado, ou, ao menos, sobre o qual não pensavam com frequência.
Outros reagiram deixando a entender que não viam sentido na
questão colocada pela professora, uma vez que consideravam a
questão da diversidade orgânica algo dado, que não demandava
explicação.
Ambas as reações traduzem a dimensão do desafio de ensinar e
de aprender ciências, tal como reconhecido por Mortimer e Scott
(2003, p. 15). Do ponto de vista da linguagem cotidiana, não está
claro por que requerem explicação muitos eventos e fenômenos que
motivaram, ou motivam, a elaboração de modelos explicativos que
estruturam o conhecimento científico. Muitos dos fenômenos
naturais, como a diversidade orgânica, a adaptação, a queda livre dos
corpos, só têm existência, como problemas a serem resolvidos, da
perspectiva da ciência, ou seja, na linguagem social da ciência. Assim,
o primeiro desafio, ao ensinar sobre a explicação darwinista para a
origem e diversificação da forma orgânica, é construir estes
fenômenos como problemas a serem explicados.

10 Usamos sinais para indicar pausas e entonações expressivas nas transcrições dos
turnos de fala. O sinal de interrogação é usado para indicar entonações interrogativas.
A barra invertida (/) é usada para sinalizar pausas curtas no meio das falas e
truncamento bruscos entre dois turnos de fala. Pausas mais longas são representadas
pelo sinal (+), sendo que uma maior quantidade de tais sinais é usada
proporcionalmente ao tempo da pausa. O uso de letras maiúsculas sinaliza ênfases
importantes dadas pelo falante a termos e expressões. Os comentários dos
pesquisadores são indicados pelo seguinte sinal, (( )).

149
Esta foi a intenção da professora, na segunda aula, ao analisar
com os estudantes um caso específico de diversificação, relativo às
treze espécies de tentilhões que habitam as ilhas Galápagos. Ao longo
da apresentação e análise do caso, a professora buscou introduzir
alguns conceitos e princípios que estruturam uma explicação
darwinista para este fenômeno, a exemplo da noção de descendência
comum.
A partir daquele momento, os estudantes passaram a
reconhecer a origem da diversidade orgânica como um problema
legítimo. Inicialmente, procuraram interpretá-la à luz do princípio da
economia natural, ou evocando a agência de alguma força ou
processo que manteria os organismos ajustados harmonicamente às
condições ambientais, compromissos epistemológicos que sustentam
a forma de pensar representada pela zona do ajuste providencial em
nosso modelo de perfil de adaptação, apresentado na tabela 1.
Naquele momento da aula, o termo ―adaptação‖ foi trazido
para o plano social da sala de aula pelos estudantes, que o
empregaram com o significado estabilizado na linguagem social
cotidiana. A expressão ―se adaptar‖ foi usada como uma espécie de
princípio que explica este ajuste harmônico e necessário do
organismo ao ambiente, em decorrência do qual a diversidade tem
origem. Em lugar de figurar como um fenômeno a ser explicado,
como no pensamento darwinista, a adaptação era vista como um
fenômeno auto-explicativo, que dispensava a explicitação de qualquer
mecanismo causal.
Ao final desta aula, os estudantes começaram a se apropriar de
elementos da linguagem da ciência escolar, mais especificamente, da
noção de descendência comum. Ao fazê-lo, adotaram a narrativa
como forma de explicação. Nesta fase, o termo adaptação passou a
ser empregado para designar um processo ativo de transformação do
organismo em direção ao ajuste às condições ambientais vigentes.
Portanto, houve uma mudança na forma de pensar e falar sobre
adaptação no que diz respeito ao caráter ontológico deste conceito: o
termo deixou de ser empregado para designar uma capacidade de
ajustar-se ou o estado de estar ajustado, passando a designar um
processo de mudança. Este novo compromisso ontológico propiciou
o desenvolvimento de uma perspectiva evolutiva de interpretação da
diversidade orgânica. Nesta fase, os estudantes formulavam
150
explicações em que as mudanças evolutivas eram protagonizadas
pelos próprios organismos e dirigidas pelas necessidades de
sobrevivência. Os enunciados dos estudantes eram produzidos em
uma linguagem teleológica, sendo frequente o uso da expressão ―teve
de se adaptar para‖. Este é um modo de falar típico da perspectiva
transformacional de interpretação do processo evolutivo. O
segmento de episódio de ensino transcrito a seguir ilustra este
processo de construção de uma narrativa evolutiva, porém a partir de
uma perspectiva transformacional, e não variacional, darwinista.

1. Professora: Se a gente trabalha com a ideia de um ancestral


comum. O que é um ancestral comum? É uma espécie que
origina/ que está ali a partir de outras. Como é que a gente
pode explicar isso. O que é que ocorreu? Se essas treze são
originadas do ancestral comum/ como é que isso pode ter/
2. Estudante 2: Do continente foi lá para as ilhas/
3. Professora: Sim.
4. Estudante 2: E acabou ele se adaptando lá. E lá ele/
5. Professora: Sim. Do continente/ a ocupação vai para as ilhas
((gesto que auxilia a ideia de migração)) e chegando lá/ o que é
que ocorre?
6. Estudante 2: Ele teve que se alimentar/ então ele vai/
(...)
8. Estudante 2: Ele vai se adaptando/
(...)
10. Estudante 1: Então/ é que ele mudou do continente/ ele teve
que aprender/
11. Professora: Ele saiu do continente para a ilha/ a população foi
para lá. Chegando lá/ ele encontrou?
12. Estudante 2: Os alimentos/
13. Professora: Alimentos diferentes. Está mostrando aí/ que nas
ilhas a gente encontrava aí uma diversidade grande de
alimentos e de ambiente/ né? E aí?
14. Estudante 2: E aí teve que se adaptar para sobreviver.
15. Professora: Tiveram que se adaptar para sobreviver.
16. Estudante 2: E isso teve a mudança dos bicos.

151
Durante a discussão dos resultados do jogo dos clipsitacídeos,
realizada na terceira aula, ficou claro que os estudantes reagiram a esta
atividade de duas maneiras diferentes. Um grupo de estudantes,
reconhecendo o gênero de discurso da sala de aula de ciências,
entendeu a proposta do jogo como uma estratégia pedagógica de
simular um fenômeno natural e gerar um contexto para analisá-lo.
Estes estudantes adotaram a proposta de interpretar o resultado do
jogo como um fenômeno que ocorre em populações naturais em
determinados contextos ecológicos possíveis no mundo real. Eles
buscaram empregar conceitos científicos ao propor interpretações, à
medida que a professora introduzia a linguagem da ciência escolar.
Outro grupo de estudantes, no entanto, claramente não se descolou
da situação lúdica do jogo, explicando os resultados mediante
possíveis ―roubos‖ na conduta de uma das equipes, ou em termos da
performance diferencial de alguns estudantes. De um modo geral,
estes estudantes atribuíam qualidades humanas aos organismos das
populações naturais representados pelos estudantes no jogo e
interpretavam os resultados através de uma linguagem teleológica e
uma perspectiva antropomórfica. A estudante 16, por exemplo,
atribuiu a sobrevivência diferencial de uma das variantes fenotípicas
ao fato de alguns pássaros serem ―mais gulosos‖ que outros, em lugar
de citar a eficiência na exploração dos recursos disponíveis e a
competição.
Ao longo da negociação em torno do significado do termo
adaptação, promovida pela professora nesta terceira aula, os
estudantes conceberam a adaptação como a capacidade ou
propriedade de um grupo de organismos de sobreviver com maior
facilidade por apresentarem determinado fenótipo.
Na quarta aula, os estudantes passaram a empregar com maior
frequência termos da linguagem social da ciência, a exemplo dos
termos ―evolução‖, ―geração‖, ―espécie‖, ―herança‖ ―herdar‖
―descendente‖. Estas palavras foram usadas, naquele momento, de
modo incerto e hesitante, assumindo uma função mais nominativa,
ou seja, para se comunicar, do que propriamente conceitual. Nesta
mesma aula, a noção de que a diversidade tem origem em um
processo evolutivo de natureza gradual alcançou grande grau de
univocidade entre os estudantes. Em termos linguísticos, um indício
deste fato foi o uso frequente do gerúndio para descrever eventos de
152
mudança adaptativa que deram origem às diferentes espécies de
tentilhões das Galápagos: “eles foram evoluindo”, “eles foram alterando”, “ele
foi mudando”, “foram se adaptando”.
Entre a segunda e a quarta aulas, os estudantes foram se
apropriando de algumas noções da ciência escolar, a exemplo da ideia
de que tanto fatores ambientais como genéticos têm papel causal na
origem e diversificação da forma orgânica, e a noção de que as
mudanças fenotípicas nas populações ocorrem ao longo de gerações.
Em consequência desta apropriação, eles foram sofisticando suas
explicações, mantendo, no entanto, o compromisso com uma
perspectiva transformacional. Estas explicações podem ser descritas,
em termos genéricos, como narrativas em que os organismos se
transformam no espaço de tempo de uma geração, em resposta direta
às mudanças nas condições ambientais e, então, esta transformação é
transmitida às novas gerações, através da reprodução. Este novo
fenótipo tem sua proporção aumentada na população a cada geração,
a ponto de, com o decorrer do tempo, toda população passar a
apresentá-lo.
A quinta aula constituiu um momento bastante conspícuo no
que diz respeito à construção de univocidade em torno da perspectiva
da ciência escolar. O estudante 3, que até o momento não havia se
disposto a compartilhar da perspectiva evolutiva em desenvolvimento
na sala de aula, mantendo-se compromissado com uma perspectiva
mais próxima à forma de pensar própria da zona do ajuste
providencial, propôs e colocou em negociação uma perspectiva
transformacional para explicar a mudança fenotípica da população de
clipsitacídeos simulada no jogo. Este estudante fez esta proposição
no contexto em que a professora estava construindo uma explicação
narrativa variacional para descrever e explicar teoricamente esta
mudança adaptativa.
Naquele momento, um grupo de quatro estudantes, que, até
então, haviam desenvolvido explicações também de natureza
transformacional, reagiram negativamente à proposta do estudante.
Eles argumentaram contra dois pressupostos sugeridos e postos em
negociação por ele: (1) de que poderíamos partir da situação
hipotética de que a população inicial de clipsitacídeos era composta
de pássaros com o mesmo tamanho de bico, ou seja, sem variação
fenotípica intrapopulacional; e (2) de que uma alimentação diferencial
153
poderia ocasionar o crescimento dos bicos dos pássaros, ou seja, a
ideia de que a ação direta do ambiente, através de mecanismos
eficientes, poderia gerar transformações fenotípicas nos organismos,
as quais, por sua vez, seriam acumuladas de modo a levar à mudança
evolutiva.
Os estudantes 5 e 20 argumentaram que toda população
natural apresenta variação fenotípica entre seus membros, em relação
a uma série de características (estudante 5), e que não é possível
ocorrer mudanças fenotípicas de grande monta, a exemplo do
desenvolvimento de uma estrutura ao longo da vida adulta de um
organismo, em decorrência apenas de uma mudança na alimentação
(estudante 20). Os estudantes 1 e 2, por sua vez, procuraram
argumentar contrariamente à proposta do estudante 3, construindo
uma narrativa que tratava dos eventos que ocorreram ao longo do
jogo. Esta narrativa, diferentemente das explicações
transformacionais, descrevia a mudança de proporção de variantes
fenotípicas em uma população, pássaros de bicos grandes e pequenos,
em decorrência da sobrevivência e reprodução diferenciais. Ainda que
tenha sido construída empregando uma linguagem cotidiana, a
narrativa produzida por estes estudantes apresentava a característica
distintiva de uma explicação variacional: a mudança de um sistema
estava sendo explicada pela mudança na proporção de seus
componentes (ver figura 2).
Estes mesmos estudantes, entre a segunda e a quarta aula,
tinham proposto explicações transformacionais, após terem sido
apresentados mais formalmente às noções que estruturam o
pensamento darwinista. Na quinta aula, diante de uma análise do jogo
dos clipsitacídeos, fortemente ancorada em dados empíricos e no uso
da linguagem social da ciência escolar, desenvolveram uma explicação
narrativa de natureza variacional, ainda que de modo bastante
rudimentar.
No entanto, após apresentarem este avanço na direção da
perspectiva da ciência escolar, os estudantes 1 e 2, quando solicitados
a interpretar um novo caso de mudança adaptativa – a resistência de
insetos a inseticidas – voltaram a expressar compromissos
epistemológicos próprios da perspectiva transformacional. Foi o caso,
por exemplo, da noção de que a variação intrapopulacional é
resultante de um processo dirigido de transformação dos organismos,
154
visando responder a desafios impostos por condições ambientais
adversas. Ao longo da sexta aula, os enunciados sobre a mudança
evolutiva voltaram a ser produzidos por estes estudantes a partir de
uma linguagem teleológica, apresentando como marca discursiva o
uso das expressões ―se tornaram mais fortes‖, ―cria uma defesa‖,
―possui variações para se adaptarem‖.
Após a exploração do novo problema pela professora, ao final
da sétima e última aula, os estudantes 2 e 5 e as estudantes 6 e 7
construíram narrativas em que o surgimento da resistência de uma
praga agrícola a inseticidas foi explicado a partir de uma perspectiva
variacional. De um modo geral, estas narrativas foram construídas a
partir da descrição empírica e teórica do cenário observado pelos
estudantes em uma prancha ilustrativa distribuída pela professora
(figura 1). Esta prancha apresentava uma sequência de quadros que
ilustravam mudanças numa população de besouros que infestava uma
lavoura experimental de feijão, em consequência de aplicações de
inseticida. Os estudantes começaram a narrativa reconhecendo, na
população inicial, a existência de duas variedades fenotípicas, uma
mais resistente e outra mais susceptível à ação do inseticida. A partir
daí, narraram eventos de cruzamentos entre os indivíduos que
sobreviveram às aplicações de inseticida e explicaram as mudanças de
composição da população a cada quadro tendo em vista a
sobrevivência e reprodução diferenciais das variantes. A conclusão a
que chegaram foi a de que este processo levou ao aumento de
proporção dos indivíduos resistentes a cada geração, culminando na
predominância de insetos resistentes ao final do experimento.
Estas narrativas variaram no grau com que referentes
empíricos e teóricos11 foram empregados para descrever e explicar os
acontecimentos ilustrados na prancha (Figura 1) e no grau e
propriedade com que a linguagem social da ciência escolar foi
empregada. A seguir transcrevemos a narrativa desenvolvida pelo

11 Designamos de referentes empíricos elementos constituintes ou propriedades de


um sistema ou objeto que são diretamente observáveis, e de referentes teóricos,
constituintes ou propriedades que não são observáveis em um sistema ou objeto, mas
são entidades criadas por meio do discurso teórico da ciência (Mortimer & Scott,
2003, p. 131). Assim, por exemplo, a cor verde ou vermelha dos besouros que
infestam a plantação de feijão da figura 1 é um referente empírico, enquanto as
variantes fenotípicas ou a competição entre elas são referentes teóricos.

155
estudante 2, ao interagir com a professora e a pesquisadora para
apresentar sua interpretação do caso ilustrado:

1. Estudante 2: É professora/ meu exemplo é assim/ que o (+)/ o


besourinho vermelho é mais forte/ foi dada a primeira aplicação
do inseticida/ então morreu quase a população toda do/ dos
verdes/ E na primeira figura a gente tá vendo que só tem um
vermelho/ porque ele sobreviveu/ então ele é forte. Então ele vai
fazer um negócio/ ele vai se entrosar com esse/ vai conversar
direitinho (risos)/ e vai conseguir ter filhotes. E esses filhotes
podem nascer/ como a professora falou/ podem nascer verde ou
vermelho/ no caso aqui/ nasceu verde e vermelho. Mas o que
acontece? Deixa eu ver como explico/
(...)
11. Estudante 2: Não. No caso/ que a senhora falou/ que pode
nascer filho verde e filho vermelho/ e aqui nasceu filho verde e
filho vermelho/ não foi? Então/ no que nasceu filho verde/
morreu de novo.
12. Pesquisadora: Morreu de novo.
13. Estudante 2: Resistiu o que nasceu vermelho.
14. Pesquisadora: Exato.
15. Estudante 2: E começou/ aí agora/ vermelho com vermelho/ e
de novo vermelho com vermelho/ nasceu mais vermelho/ e tá
aqui hoje/
16. Professora: No final? Aconteceu o que?
17. Estudante 3: Predominou vermelho. E aí agora o homem tem
que procurar outro inseticida para matar esse povo. Agora não sei
escrever isso não.
Ao construir a explicação narrativa variacional, o estudante 2
fez uso de uma linguagem antropomórfica cotidiana, quando, por
exemplo, descreveu o evento de cruzamento dos besouros que
sobreviveram à aplicação do inseticida. Foi atribuído aos besouros
um comportamento humano no modo como cortejavam os
parceiros. É notável também o fato de os eventos serem descritos e
explicados geralmente com base em referentes empíricos, e raramente
em referentes teóricos. Um dado muito interessante, no entanto, é
que este mesmo estudante, ao transcrever a narrativa produzida
oralmente em uma narrativa escrita, no contexto de uma atividade em
156
que foram oferecidos termos da ciência, conseguiu sistematizá-la na
linguagem social da ciência:
É que os organismos de uma mesma população têm variações
diferentes entre eles, algumas mais fracas e outras mais fortes,
podendo sofrer uma seleção natural para então se adaptar a
um novo ambiente.
Este fato pode ser uma evidência de que os conceitos
propostos, como população, seleção natural e adaptação, foram
usados como instrumentos de pensamento pelo estudante.
CONCLUSÕES
Consideramos que houve avanços na apropriação da
perspectiva da ciência escolar pelos estudantes, ao longo da sequência
didática. Estudantes que não tinham clareza acerca do significado do
termo evolução nas ciências biológicas passaram a empregá-lo para
descrever mudanças fenotípicas que ocorrem em populações de
organismos ao longo do tempo e que levam à diversificação.
Podemos dizer que, de um modo geral, as ideias de evolução e de
ancestralidade comum foram apropriadas pelos estudantes.
Os estudantes tiveram menor sucesso, contudo, no domínio
do modelo explicativo da seleção natural. A principal explicação para
a evolução contemplada por eles se baseou na ideia de que os
organismos se transformam numa geração, como uma resposta direta
às condições ambientais, e então a característica modificada é
transmitida às novas gerações.
Este modelo está ancorado na noção denominada por Mayr
(1998, p. 766) ‗hereditariedade tênue‘ (soft inheritance), a ideia de que
o material genético é em si ―plasmável‖, ―flexível‖, podendo mudar
por indução direta do ambiente, ou por uso e desuso. Segundo a
análise de Mayr, esta ideia fundamentou muitos modelos
transformacionais, como aqueles propostos pelo neo-lamarckismo do
fim do século XIX.
O modelo explicativo proposto por estes estudantes incorpora,
portanto, alguns princípios do pensamento darwinista – o aumento
de frequência de variantes fenotípicas mais aptas como resultado da
sobrevivência e reprodução diferenciais dos organismos que as
portam – a uma perspectiva transformacional de explicação da
adaptação. Ele pode representar uma fase transitória na compreensão
157
e apropriação do modelo darwinista, ou um modelo híbrido e, por
isso, relativamente problemático, que os estudantes passarão a
empregar para tratar de evolução.
Apenas quatro estudantes (estudantes 2, 5, 6 e 7), ao final da
sequência didática, desenvolveram explicações de natureza
variacional, ao construírem uma narrativa para o surgimento da
resistência a inseticidas em uma população de uma praga agrícola.
Estas narrativas foram construídas a partir de um discurso híbrido,
em que tanto a linguagem cotidiana quanto a linguagem social da
ciência participam na enunciação.
Com base na análise dos episódios à luz da abordagem dos
perfis conceituais, podemos apontar alguns fatores que dificultaram a
compreensão do modelo darwinista por estes estudantes. De acordo
com a noção de perfil conceitual, a aprendizagem de um conceito
envolve, primeiro, a aquisição de novas zonas de um perfil, ou seja,
de novas perspectivas de significação de um conceito e, segundo, a
tomada de consciência do perfil e da demarcação entre suas zonas
(El-Hani & Mortimer, 2007). Cada uma das zonas se encontra
fundamentada em compromissos epistemológicos e ontológicos que
estruturam um modo de entender e representar a realidade. Para que
uma nova perspectiva se mostre plausível e possa ser apropriada
pelos estudantes, é preciso que ele compreenda os compromissos que
a sustentam. Caso contrário, ele tenderá a julgá-la contra-intuitiva.
No caso das aulas aqui analisadas, os estudantes tiveram
dificuldade em compreender o pensamento populacional, um
compromisso epistemológico fundamental para as perspectivas
variacionais. Além disso, eles se encontravam muito apegados a
compromissos ontológicos que estruturam as zonas do ajuste-
providencial e das perspectivas transformacionais, a exemplo das
noções de harmonia no mundo natural e do princípio de economia da
natureza. Assim, ainda que tenham se apropriado de alguns princípios
darwinistas, eles continuavam considerando mais intuitiva a ideia de
que a evolução é um processo em que a espécie muda ao longo do
tempo a partir da transformação individual de cada organismo. Eles
não haviam construído uma compreensão da ideia menos intuitiva,
mas cientificamente aceita, da evolução como um processo
populacional, no qual são as populações que mudam ao longo do
tempo, na frequência de distribuição de suas características.
158
Um dado importante a ser contemplado é o fato de os
estudantes 1 e 2, que na quinta aula haviam apresentado uma
explicação variacional para descrever a mudança adaptativa simulada
no jogo dos Clipsitacídeos, voltarem a propor explicações
transformacionais na sexta aula, diante de um novo problema, o
surgimento da resistência de pragas agrícolas a inseticidas.
Este dado, lado a lado com o fato de os estudantes terem
construído modelos transformacionais que incorporam alguns
princípios variacionais, nos leva a concluir que uma zona do perfil, a
perspectiva variacional, não foi construída nas interações discursivas
em sala com consistência suficiente para que emergisse uma tomada
de consciência de sua demarcação em relação a outros modos de
pensar.
A tomada de consciência acerca do perfil conceitual, ou seja, a
consciência de que existem diferentes perspectivas de interpretação
da adaptação, as quais estão sendo negociadas nas interações
discursivas, e a compreensão dos aspectos que as distinguem, foi
dificultada, em grande parte, pelo curto tempo disponibilizado para a
abordagem do tema. Este é um aspecto de central importância, em
virtude da ubiquidade das restrições relativas ao tempo escolar.
Contudo, algumas características da dinâmica discursiva
estabelecida também não favoreceram tal tomada de consciência. No
contexto de uma abordagem comunicativa de autoridade, a
professora remodelou, em várias ocasiões, os enunciados dos
estudantes de modo a torná-los condizentes com a perspectiva da
ciência escolar, uma estratégia que foi produtiva para os objetivos de
introduzir e desenvolver a estória científica. Todavia, ao fazê-lo, ela
não delimitou claramente as fronteiras entre as perspectivas trazidas
pelos estudantes, na maioria dos casos mobilizando compromissos
que fundamentam visões transformacionais, e a perspectiva da ciência
escolar. Desse modo, ela não deixou claro em quais aspectos as
explicações deles não se ajustavam à explicação variacional que estava
sendo desenvolvida e disponibilizada em sala de aula.
De modo semelhante, ao estabelecer uma abordagem
comunicativa mais dialógica, em momentos em que pretendia guiar
os estudantes na aplicação das ideias científicas, a professora não
contrastou, ao menos de modo sistemático e explícito, as diferentes

159
perspectivas que estavam dialogando e os pressupostos que as
fundamentavam.
Em algumas circunstâncias, ela evitou fornecer avaliações
negativas que seriam estratégicas para o desenvolvimento da estória
científica, bem como para a tomada de consciência mencionada
acima. Um exemplo emblemático consistiu num episódio ocorrido na
segunda aula, em que o estudante 2 questionou se o modelo
explicativo apresentado por ele, fundamentado numa hereditariedade
tênue, estava de fato equivocado, conforme havia sido indicado pela
estudante 6. Naquele momento, a professora poderia ter assumido
uma abordagem de autoridade mais clara, explicitando os problemas
relativos à noção de hereditariedade tênue pressuposta pelo estudante
e introduzindo a noção de hereditariedade dura, para usar a distinção
sugerida por Mayr (1998, p. 766). Neste caso específico, mais uma
vez o problema da gestão do tempo escolar pode ter sido um fator
preponderante na tomada de decisão da professora.
A despeito disso, consideramos que a performance da
professora propiciou um avanço notável na apropriação da
perspectiva da ciência escolar pelos estudantes. É preciso ter em vista
que este avanço ocorreu em um espaço de tempo bastante curto,
tendo em vista a natureza dos desafios a serem enfrentados na
compreensão do pensamento darwinista, tal como apontado pela
literatura sobre concepções alternativas e mudança conceitual no
ensino de evolução (Jensen & Finley, 1995, 1996; Demastes, Settlage
& Good, 1995; Demastes, Good & Peebles, 1996).
Podemos destacar algumas estratégias enunciativas empregadas
pela professora que propiciaram o desenvolvimento de uma
perspectiva evolutiva de interpretação da adaptação e explicação da
diversificação orgânica: (1) a introdução do conceito de descendência
comum e a ação docente de marcá-lo como uma ideia chave, a partir
de uma abordagem comunicativa de autoridade; (2) o uso de recursos
fraseológicos que sugeriam a ocorrência de uma sequência de
eventos, a exemplo da indagação ―o que ocorreu?‖, de modo a
estimular aos estudantes a construírem narrativas; (3) o apoio dado
aos estudantes na elaboração de narrativas para explicar a origem das
treze espécies de tentilhões das Galápagos e na proposição de
previsões para o que aconteceria com uma população hipotética de
pássaros, frente a uma situação de escassez de alimento.
160
Algumas estratégias contribuíram para o desenvolvimento de
uma perspectiva variacional de explicação da mudança evolutiva no
plano social da sala de aula: (1) a introdução do conceito de variação
intra-populacional através de uma abordagem comunicativa de
autoridade e o esforço para torná-lo mais inteligível e plausível para
os estudantes ao longo da sequência; (2) a insistência para que a
mudança adaptativa fosse interpretada a partir de uma perspectiva
populacional; (3) o esclarecimento de que tanto forças internas ao
organismo, relativas à variabilidade genética, quanto forças externas,
concernentes aos fatores ambientais, participam da causalidade da
forma.
No que diz respeito à apropriação da linguagem social da
ciência escolar e ao reconhecimento do gênero de discurso da sala de
aula de ciências, foram fundamentais os seguintes movimentos
discursivos realizados pela professora: (1) substituir referentes
empíricos citados nas falas dos estudantes por referentes teóricos; (2)
reconstruir enunciados elaborados pelos estudantes em linguagem
teleológica e antropomórfica em um modo de falar mais próximo da
linguagem social da ciência escolar; (3) tornar claro o papel
pedagógico do jogo, ao propor uma generalização a partir da
discussão de seus resultados.
Diante dos resultados obtidos no estudo relatado no presente
trabalho, sugerimos algumas diretrizes para o ensino da evolução por
seleção natural. Em termos conceituais, consideramos fundamental
investir no desenvolvimento do que Mayr (1998) designou
pensamento populacional. Este investimento deve ser contínuo ao
longo da formação do estudante e demanda não só contribuições da
genética, mas também de outras áreas, como, por exemplo, a
ecologia.
Em termos pedagógicos, ficou clara a importância de
situações-problema que explorem cenários de diversificação das
espécies. A análise de dados relativos à distribuição geográfica, à
eficácia diferencial de variantes fenotípicas e a mudanças
demográficas favorece a introdução de noções que estruturam o
pensamento darwinista, bem como sua apropriação pelos estudantes.
Este resultado é coerente com o reconhecimento de Vygotsky (2001)
acerca do papel da resolução de problemas na formação de conceitos.

161
Para Vygotsky (2001), mais determinante ainda para este
processo é o uso funcional do signo. Portanto, em termos
discursivos, duas estratégias são fundamentais: a introdução de
termos próprios do discurso científico e a precisão conceitual no seu
emprego – o que implica uma seleção do vocabulário estritamente
necessário para a apropriação da estória científica, em contraste com
o amontoado de termos técnicos que muitas vezes caracteriza o
ensino de biologia. No nosso caso específico, merecem bastante
atenção os termos variação, variante, adaptação, espécie, população,
evolução, desenvolvimento, ancestralidade e seleção. Ainda em
termos discursivos, é importante conduzir os estudantes no domínio
de modos de falar mais próximos da perspectiva variacional, através,
por exemplo, da produção de enunciados em que os organismos
figurem como objetos do processo evolutivo, como na afirmação ―as
bactérias resistentes foram favorecidas‖, em lugar de enunciados em
que os organismos figuram como sujeitos da mudança evolutiva, a
exemplo de ―as bactérias desenvolveram (ou evoluíram) resistência‖.
Certamente, estas diretrizes não podem ser consideradas
exaustivas no que tange ao ensino de evolução no nível médio de
escolaridade. Muitos outros aspectos merecem atenção, como, por
exemplo, a construção de uma compreensão adequada do tempo
geológico pelos estudantes (Dodick & Orion, 2003; Hidalgo & Otero,
2004; Dodick, 2007), a consideração não somente da micro- mas
também da macro-evolução em sala de aula (Catley, 2006), a
abordagem das relações entre desenvolvimento e evolução no âmbito
da biologia evolutiva do desenvolvimento (evo-devo) (Gilbert, 2003),
as relações entre ensino de genética e ensino de evolução (Bizzo &
El-Hani, 2009a,b), ou a construção de uma compreensão apropriada
do papel do pensamento teleológico na biologia (Zohar & Ginossar,
1998; Nunes-Neto & El-Hani, no prelo), entre outros. Destacamos os
aspectos acima apenas por terem sido aqueles que foram salientados
pelo estudo que realizamos, em seu contexto específico.
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167
168
ENSINO DE CIÊNCIAS E BIOLOGIA E
EDUCAÇÃO EM SAÚDE: ANALISE DAS PROPOSIÇÕES
DOS PARAMETROS CURRICULARES NACIONAIS
(EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL)12
Adriana Mohr13
OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS PARA O
ENSINO FUNDAMENTAL
A Lei de Diretrizes e Bases promulgada em 1996 define em seu
artigo 9º parágrafo IV, que cabe à União
[...] estabelecer, em colaboração com os Estados, Distrito
Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a
educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio,
que nortearão os currículos e os seus conteúdos mínimos, de
modo a assegurar a formação básica comum (BRASIL, 1996,
p. 9).
Assim, em 1998 são estabelecidas as Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Ensino Fundamental (DCN). Estas Diretrizes têm
força normativa de lei e estabelecem, nos seus incisos IV e V:
IV - Em todas as escolas deverá ser garantida a igualdade de
acesso para alunos a uma base nacional comum, de maneira a
legitimar a unidade e a qualidade da ação pedagógica na
diversidade nacional. A base comum nacional e sua parte
diversificada deverão integrar-se em torno do paradigma
curricular, que vise a estabelecer a relação entre a educação
fundamental e
(a) a vida cidadã através da articulação entre vários dos seus
aspectos como:
(1) a saúde, (2) a sexualidade, (3) a vida familiar e social, (4) o
meio ambiente, (5) o trabalho, (6) a ciência e a tecnologia, (7)
a cultura, (8) as linguagens.

12 Este resumo expandido foi elaborado a partir de meu texto (MOHR, 2000).
Agradeço aos organizadores do 3º EREBIO Nordeste, principalmente à colega Zélia
Jófili (UFRPE) por permitir e incentivar a sua divulgação em língua portuguesa.
13 Departamento de Metodologia de Ensino, Programa de Pós-graduação em

Educação Científica e Tecnológica, UFSC.

169
(b) as áreas de conhecimento:
(1) Língua Portuguesa, (2) Língua Materna, para populações
indígenas e migrantes, (3) Matemática, (4) Ciências, (5)
Geografia, (6) História, (7) Língua Estrangeira, (8) Educação
Artística, (9) Educação Física, (10) Educação Religiosa, na
forma do art. 33 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
V - As escolas deverão explicitar em suas propostas
curriculares processos de ensino voltados para as relações
com sua comunidade local, regional e planetária, visando à
interação entre a educação fundamental e a vida cidadã; os
alunos, ao aprenderem os conhecimentos e valores da base
nacional comum e da parte diversificada, estarão também
constituindo sua identidade como cidadãos, capazes de serem
protagonistas de ações responsáveis, solidárias e autônomas
em relação a si próprios, às suas famílias e às comunidades.
(BRASIL, 1998, art. 3º, p.)
Em 1997 e 1998 são editados os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) (Brasil, 1997; 1998a) que, ao contrário das DCN,
não são legalmente normativos e propõem-se a ser orientação para a
elaboração de projetos pedagógicos na escola.
Contudo, na prática, os PCN passaram a ser referência para
inúmeros projetos de avaliação de âmbito nacional (exames da
educação fundamental, iniciados em 1990 e avaliações de livros
didáticos, em 1996), e/ou orientações curriculares regionais e locais.
Assim, por influenciarem, direta ou indiretamente, a atividade
docente em sala de aula é interessante analisar mais detidamente
como a Educação em Saúde (ES) é concebida e orientada nos PCN.
Os PCN resultam do trabalho de um grupo de técnicos,
pesquisadores e professores. O ponto de partida para o trabalho foi
um estudo encomendado em 1995 pelo Ministério da Educação
sobre as orientações curriculares dos Estados Brasileiros (Fundação
Carlos Chagas, 1995).
Tanto nos PCN para as séries iniciais (1ª a 4ª), quanto naqueles
destinados às séries finais (5ª a 8ª) a ES é um dos Temas Transversais.
Estes são assuntos atuais de interesse social que necessitam da
compreensão e da participação do cidadão. Os temas transversais
constituem-se em um dos elementos fundamentais dos PCN com
relação a seu objetivo principal: fazer da escola um instrumento de
cidadania e democracia. O seu papel é ajudar a construir e reforçar a
170
cidadania nos alunos, que é vista como a mais importante missão da
escola.
Os temas transversais devem ser objeto de desenvolvimento e
consideração por todas as disciplinas escolares, mas o texto brasileiro
apresenta diferenças importantes na forma como as disciplinas
escolares relacionam-se com ele (Mohr, 2002), se comparadas a sua
proposição original (Busquets, 1999).
Os PCN destinados a orientar a formulação dos programas da
1ª a 4ª série compõem-se de dez volumes: Introdução, Língua
Portuguesa, Matemática, Ciências Naturais, História e Geografia,
Arte, Educação Física, Apresentação dos Temas Transversais, Meio
Ambiente e Saúde, Pluralidade Cultural e Orientação Sexual. Também
são em número de dez os volumes destinados à etapa de 5ª a 8ª série:
Introdução, Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Naturais,
História, Geografia, Arte, Educação Física, Língua Estrangeira e
Temas Transversais. Este último volume compõe-se de capítulos
destinados aos temas da Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente,
Educação em Saúde, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo.
A EDUCAÇÃO EM SAÚDE NOS PARÂMETROS CURRICULARES
NACIONAIS
Os volumes relativos à ES para ambas as etapas da
escolarização se apresentam, divididos em duas partes. A primeira é
uma fundamentação e justificação da escolha conceitual e
metodológica dos conteúdos e proposições apresentadas na segunda
parte. Nessa fundamentação há uma discussão sobre o conceito de
saúde e sobre a relação saúde e condições de existência do ser
humano; uma apresentação do sistema de saúde brasileiro; o
panorama de morbidade e mortalidade do país; e elementos do
fenômeno saúde-doença e sua significação segundo as diferentes
culturas e épocas.
Na segunda parte, são apresentados os conteúdos e objetivos
que compõem a ES, além de algumas orientações metodológicas e
questões voltadas à avaliação dos alunos.
Os conteúdos de ES estão organizados em dois grandes
―blocos‖: ―autoconhecimento para o autocuidado‖ e ―vida coletiva‖,
conforme quadro 1.

171
Segundo o texto, o desenvolvimento dos blocos permite
estabelecer relações entre eles e os diversos conteúdos que os
compõem (anexo 1).

Blocos de conteúdo: 1ª-4ª séries


Autoconhecimento para o autocuidado
 corpo humano
 higiene corporal
 alimentação
Vida coletiva
 doenças transmissíveis
 acidentes
 consumo de drogas

Blocos de conteúdo: 5ª-8ª séries


Autoconhecimento para o autocuidado
 corpo humano
 higiene corporal
 alimentação
 os serviços de saúde disponíveis
 saúde e atividade física
doenças crônico-degenerativas
Vida coletiva
 correlações entre ambiente e saúde
 acidentes
 drogas
 relações sociais, acordos e limites

Quadro 1 – Blocos de conteúdos de educação em saúde presentes nos


PCN (1ª a 4ª e 5ª a 8ª séries)

Nos volumes destinados a ambas as fases da escolaridade, os


PCN estabelecem alguns conceitos e ideias como diretrizes
fundamentais ao desenvolvimento da ES na escola. São elas:
 Saúde não é oposto de doença.
 As ações no campo da saúde devem ser de caráter a promover a
saúde, ao invés daquelas que dizem respeito ao tratamento das
doenças.

172
 A promoção da saúde é o resultado de políticas públicas que têm
por objetivo a melhoria da qualidade de vida. Neste sentido, educar
para a saúde é fazer com que o aluno tenha consciência de sua
necessidade para poder reivindicá-la.
 O objeto principal da ES é o desenvolvimento de valores, de
hábitos e de atitudes que permitirão ao cidadão reivindicar e
desfrutar de uma vida saudável.
Apesar de pontos muito positivos presentes nos PCN, existem
importantes questões que merecem ser discutidas e revistas para o
desenvolvimento da ES na escola.
Sob meu ponto de vista, a mais importante delas diz respeito à
subordinação, preconizada pelo texto, dos conceitos ao
desenvolvimento de hábitos, atitudes e valores. Os PCN apresentam
uma pequena cronologia da ES no Brasil e concluem que ela não tem
sido efetiva até o momento em função do excessivo peso que
apresentam, na sua abordagem, conceitos e conhecimentos
principalmente nas aulas de ciências naturais e biologia. A solução
apontada é aquela de inverter as prioridades.
Tal solução parece bastante simplista e errônea. Em primeiro
lugar porque, via de regra, não é o desenvolvimento de conceitos e
conhecimentos que ocorre nas salas de aula de ciências, mas
principalmente a memorização de fatos e dados apresentados de uma
maneira fragmentada e sem sentido para o aluno. Além disso,
atitudes, comportamentos e valores não são opostos ao
desenvolvimento de conceitos e conhecimentos. A partir do
momento em que a escola renuncia a um de seus objetivos principais
(aquele de desenvolver nos alunos conceitos, raciocínio e crítica), não
há mais a necessidade desta instituição na sociedade. Deve-se ter
muito claro como princípio, que valores, comportamentos e hábitos
devem ser desenvolvidos e praticados a partir da possibilidade de
escolha e de conhecimentos e conceitos tornados significativos. Caso
contrário, condena-se a escola a ser uma instituição destinada apenas
à propaganda e à modelagem de comportamentos.
Os PCN apresentam também uma incoerência no que diz
respeito aos princípios apresentados e aos conteúdos sugeridos, uma
vez que conceitos constituem a maior parte destes últimos. Mais uma
vez a oposição conteúdos versus atitudes é falsa: o verdadeiro

173
problema que se coloca é o porquê dos conceitos e o que fazer com
eles no processo de ensino-aprendizagem.
Outro grande problema apresentado pelos PCN é a ausência
de indicações metodológicas mais consistentes que pudessem orientar
o professor desejoso de modificar sua prática. Principalmente se
considerarmos a dificuldade implícita do trabalho com fenômenos
multidisciplinares – caso da saúde e dos aspectos correlatos –
constata-se que o texto é pobre e tímido no que concerne às
indicações de como transformar em realidade didática o que é
indicado.
As ilhotas de racionalidade (Fourez, 1994) e a grade de análise
para a educação ambiental desenvolvida juntamente com a biologia
proposta por Astolfi (1994) são recursos teóricos e metodológicos
que poderiam responder a esta problemática (Mohr, 2002).
Por fim, é necessário lembrar que proposições curriculares
inovadoras como os PCN exigem, para sua consecução, novos
procedimentos didáticos, e estes não surgem através de uma simples
recomendação escrita: são necessários professores preparados e
dispostos a criá-los e utilizá-los. Quando se pensa na falta de
formação inicial e continuada as quais está submetido grande parte
dos professores no Brasil, este aspecto assume contornos dramáticos.
Novas orientações curriculares devem ser, pois, pensadas em estreita
ligação com a formação (inicial e continuada) dos professores que
darão vida (ou não) a elas nas escolas.
REFERENCIAS
ASTOLFI, J.P. Didactique de la biologie et éducation à l‟environement: quelles
sont relations à établir? Seminario Internacional La dimension ambiental y
la escuela. Bogotá. 1994.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei 9.394 de 20 de
dezembro de 1996. Rio de Janeiro: Casa Editorial Pargos, 1996.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais - 1° e 2° ciclos. 10 volumes.
Brasília: MEC/Secretaria de Educação Fundamental, 1997.
BRASIL. Resolução CEB/CNE Nº 2, de 7 de abril de 1998: institui as
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, 1998.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos. 10
volumes. Brasília, MEC/Secretaria de Educação Fundamental, 1998a.
BUSQUETS, M.D. et al. Temas transversais em educação. São Paulo: Ática,
174
1999.
FOUREZ, G. Alphabétisation scientiphique et technique. Bruxelles: De
Boeck, 1994.
FUNDAÇÃO Carlos Chagas. As propostas curriculares oficiais. Projeto
MEC/UNESCO/FCC. São Paulo, 1995. 144p.
MOHR, A. L‘éducation à la santé dans les programmes scolaires
brésiliens: analyse des nouvelles propositions. In: Giordan, A;
Martinand, J.-L. e Raichvarg, D. Actes des XXII Journées Internationales sur
l‟Éducation, la Comunication et la Culture Scientifiques et Industrielles , 2000.
MOHR, A. 2002. A natureza da educação em saúde no ensino fundamental e os
professores de ciências. Tese (Educação), Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 409p. 2002.

175
Anexo 1: Conteúdos de Educação em Saúde listados nos
PCN (1ª a 4ª e 5ª a 8ª série)

Conteúdos de Educação em saúde: 1ª a 4ª séries


Corpo humano
- identificação das características pessoais (semelhanças e diferenças).
- estudo do crescimento e do desenvolvimento humano.
- localização e função dos principais órgãos e aparelhos
- adoção de uma postura física adequada.
- identificação e expressão de sensações de dor ou desconforto.
- valorização de exames de saúde periódicos como fator de proteção à saúde.
Higiene corporal
- noções gerais de higiene dos alimentos.
- reconhecimento das doenças associadas à falta de higiene alimentar, medidas
simples de prevenção e tratamento.
- identificação das doenças associadas ao consumo de água contaminada,
procedimentos e tratamento de água em casa.
- aprender a não consumir água não-potável.
- higiene corporal: utilização dos sanitários, higiene das mãos, da boca e do
corpo.
- valorização da prática cotidiana e autônoma de hábitos de higiene corporal.
- responsabilidade pessoal com a higiene corporal como fator de proteção da
saúde individual e coletiva.
- respeito às potencialidades a aos limites de seu próprio corpo e aos de outros.
Alimentação
- finalidades da alimentação (biológica, sociocultural e emocional).
- identificação dos alimentos disponíveis na comunidade e seus valores
nutritivos.
- valorização de uma alimentação adequada ao crescimento, ao
desenvolvimento e à prevenção de doenças.
Doenças transmissíveis
- conhecimento do calendário de vacinação e da sua própria situação vacinal.
- principais sinais e sintomas, formas de contágio, de prevenção e de
tratamento precoce de doenças transmissíveis comuns na realidade de vida do
aluno.
- os fatores do ambiente e a saúde (tratamento da água, de esgotos, lixo e
defensivos agrícolas).
Acidentes
- conhecimento de normas simples de segurança para a manipulação de
instrumentos, no trânsito e nas atividades físicas.
- primeiros socorros (medidas simples)
Consumo de drogas
176
- problemas ocasionados pela utilização de drogas (tabaco, álcool e
estupefacientes)
Outros
- conhecimento e formas de acesso às atividades e serviços disponíveis para a
criança visando a promoção e a recuperação da saúde.
- formas de participação da criança em atividades coletivas na sua comunidade.
- relação entre preservação e recuperação do ambiente e melhorias da qualidade
de vida e de saúde.
- rejeição de atos de destruição do equilíbrio sanitário da natureza.
- participação ativa na conservação de um ambiente limpo e salubre (casa,
escola e locais públicos).
- solidariedade face a problemas e necessidades de saúde de terceiros (atitudes
de ajuda e de proteção a pessoas com deficiências ou doenças).
Conteúdos de Educação em saúde: 5ª a 8ª séries
Corpo humano
- funcionamento e transformações na adolescência.
- valorização e cuidado do corpo.
- sexualidade (anatomia e fisiologia do aparelho reprodutor, emoções).
- reconhecimento e aceitação da diversidade humana.
Higiene
- higiene e alimentação (condições da água, produção e manipulação de
alimentos).
Alimentação
- diversidade de hábitos alimentares.
- finalidades (necessidades corporais, socioculturais e emocionais).
- fenômeno da nutrição.
- nutrientes (diferentes tipos, necessidades orgânicas, sua presença nos
alimentos).
- caminho do alimento desde sua produção ao seu consumo.
- hábitos alimentares (dietas, carências nutricionais, obesidade).
Serviços de saúde disponíveis
- os recursos disponíveis para os jovens.
- valorização de exame periódico de saúde.
Saúde e atividade física
- riscos, benefícios, contra-indicações e indicações das atividades físicas.
- medidas de segurança na prática de atividades físicas.
- atividades físicas, transformações corporais e relações de grupo.
Doenças crônico-degenerativas
- incidência na família do aluno.
- câncer de pele, da mama e do solo do útero.
Correlações ambiente-saúde
- indicadores e analise da qualidade de vida e de saúde
177
- doenças transmissíveis.
- panorama epidemiológico brasileiro.
- fatores que comprometem a saúde do ambiente.
Acidentes
- primeiros socorros.
- identificação de riscos.
- regras de segurança e prevenção de acidentes no trabalho e no trânsito.
Drogas
- abuso e dependência.
- riscos e fatores ligados ao consumo de drogas.
Relações sociais, acordos e limites
- tomada de decisão coletiva: necessidade e respeito.
- solidariedade face a problemas e necessidades de saúde de terceiros ( atitudes
de ajuda e de proteção a pessoas com deficiência ou doenças).
Outros
- identificação e expressão de sensações de falta de conforto, dor e de
necessidades pessoais não satisfeitas.

178
ARTICULAÇÃO ENTRE A FORMAÇÃO INICIAL E
CONTINUADA DE PROFESSORES DE BIOLOGIA:
OUTRO CONTEXTO DE AÇÃO
Maria Cristina Pansera-de-Araújo1
INTRODUÇÃO
A formação de professores de Ciências da Natureza em geral e
de Biologia, em particular, vem sendo tematizada em diversas pesquisas
(Santos e Grecca, 2006), tais como: i) processo de ensino e
aprendizagem; ii) conhecimento específico (El-Hani e Videira, 2000) e
pedagógico (Gauthier et al, 1998); iii) organização curricular que capacite
a licenciada ao exercício profissional (Lopes e Macedo, 2002; Macedo e
Lopes, 2002; Moraes e Mancuso, 2004); iv) fundamentação teórica que
articula o diálogo entre os diferentes saberes (Gauthier et al, 1998;
Tardiff, 2002); v) conteúdos, procedimentos, atitudes e valores a serem
sistematizados no âmbito escolar (Marandino et al, 2005); vi)
importância do conhecimento biológico para os cidadãos (Carvalho,
2005); vii) livros didáticos (Megid Neto & Fracalanza, 2003; Martins,
2006). Estas e outras questões têm merecido olhares atentos de
pesquisadores sobre o ensino de Ciências da Natureza e suas
Tecnologias (CNT) e suscitado análises criteriosas quanto à formação
profissional qualificada.
A atenção para uma grande quantidade de perguntas, que
emergem das observações cotidianas, mostra que muitas delas
continuam presentes revelando dúvidas e insatisfações, apesar dos
esforços e estudos realizados por diferentes pesquisadores. Para
referendar esta afirmativa, exemplifica-se com algumas delas: i) o que se
ensina? ii) qual a relevância do ensino de Ciências, Biologia? iii) quem
deve ensinar? iv) como se preparar para ensinar? v) como se aprende?
vi) quando se aprende? vii) quais são os temas essenciais e os
periféricos? viii) quais, e como se relacionam com a Ciência, Tecnologia
e Sociedade?
No que concerne à sociedade, como responder às dúvidas
levantadas sobre os diversos avanços científicos, entre os quais, na área
biológica, vale salientar: a) quem vai ter acesso à tecnologia de células-

1 Universidade de Ijuí. E-mail: [email protected]


179
tronco para cura de paraplégicos ou de doenças genéticas; b) será
possível trocar os genes ruins por bons? c) plantas e animais
transgênicos causam mal à saúde humana e ambiental? d) a redução no
uso de agrotóxicos em plantações transgênicas é real e benéfica para
quem? e) insulina produzida em bactérias pode ser usada por seres
humanos, sem causar problemas? Estas compõem uma pequena parcela
das inúmeras questões colocadas frequentemente pelos estudantes, pela
comunidade escolar e extra-escolar ou, ainda, pelos meios de
comunicação, e que entram sem qualquer cerimônia na sala de aula e
repercutem no entendimento do que seja conhecimento científico
construído e desenvolvimento tecnológico produzido pela Sociedade
Humana.
Por isso, apresenta-se outra maneira de olhar estes tópicos e
alternativas constituídas, já que são ao mesmo tempo renovados e
reincidentes com diferenças sutis, ao invés de enfatizar uma perspectiva
nova, como se aquilo que foi realizado anteriormente tenha sido inútil e
inadequado, portanto descartável. Algumas possibilidades de
organização curricular que articule a formação inicial e continuada dos
docentes, a partir de um olhar fundamentado na pesquisa que busca
compreender os limites, possibilidades e proposições desse contexto, na
perspectiva histórico-cultural, e da compreensão dos conceitos
científicos nos diferentes espaços-tempos, serão descritas e analisadas.
Uma formação continuada efetiva e autônoma dos professores da
Educação Básica ou Superior, só ocorrerá se durante a formação inicial
desses sujeitos for criada a expectativa e a necessidade de sempre
continuar aprendendo e estudando, como um fundamento importante
da constituição do professor pesquisador e reflexivo sobre sua prática
(Schön, 2000).
As atividades realizadas no âmbito do Gipec-Unijuí2, no
desenvolvimento de currículo e formação docente acompanhada pela
pesquisa, subsidiarão as afirmativas feitas a seguir. O grupo constitui-se
de professores da Educação Básica e das Licenciaturas em Ciências da
Natureza e suas Tecnologias (CNT), licenciandos de Biologia, Física e
Química e mestrandos em educação. A organização curricular,
denominada Situação de Estudo (SE), considera a vivência dos
estudantes da Educação Básica e da Universidade e (re)contextualiza o
conhecimento científico, mostrando potencialidades de formação inicial
2 Grupo Interdepartamental de Pesquisa sobre Educação em Ciências da Unijuí.
180
e continuada desses profissionais, numa parceria colaborativa e co-
responsável entre os diferentes níveis e redes de ensino. Também, se
caracteriza pela interdisciplinaridade, que integra os conceitos das
diversas áreas do conhecimento, num espaço de significação amplo,
inter-complementar e inter-relacional (Maldaner & Zanon, 2001; 2004).
Na elaboração, desenvolvimento e sistematização da SE, muitas
questões foram formuladas, com especial atenção para a constituição de
um processo que crie um espaço-tempo de diálogos e interações entre a
formação inicial e continuada e que repercuta na atuação profissional do
licenciado. No Gipec-Unijuí, diferentes modalidades de interação entre
estas formações vêm sendo propostas, acompanhadas de pesquisa,
refletidas e disponibilizadas em vários momentos na forma de palestras,
seminários e artigos, que asseguram às licenciandas e licenciadas outras
capacitações, compreensões e significações do processo ensinar e
aprender (quadro 1).
Essas modalidades serão analisadas, neste artigo, na perspectiva
de organização de um currículo que propicie a constituição de um
profissional qualificado e sensibilizado para conscientizar-se do que é
ser professor-pesquisador reflexivo (Schön, 1992 e 2000).
Para tanto, é preciso assumir a investigação como recurso
cotidiano da atividade docente e princípio metodológico diário de aula,
em torno de questionamentos (re)construtivos de conhecimentos já
existentes que, não só ultrapassam o senso comum, mas também
englobam e são enriquecidos com outros tipos de conhecimento dos
estudantes e da construção de novos argumentos validados em
comunidades criticamente fundamentadas. (Moraes, Ramos & Galliazzi,
2004).
MODALIDADES DE FORMAÇÃO DOCENTE INICIAL ARTICULADA
COM A CONTINUADA
O reconhecimento destas diferentes modalidades e de suas
interações assinala uma dentre tantas possibilidades de perceber como é
constituído, ao longo da licenciatura, o reservatório de saberes, que
capacita os graduandos para a docência. Considera-se aqui o
Reservatório de Saberes Disciplinares; Curriculares; da Ciência da
Educação; da Tradição Pedagógica; Experienciais e da Ação
Pedagógica, proposto por Gauthier (1998), que constituem as docentes
em formação inicial e continuada, como algo dinamicamente
181
mobilizado frente a novas articulações impostas pela realidade vivida.
Além desses, Tardiff (2006) enfatiza que os saberes dos professores
podem ser: pessoais ou provenientes da formação escolar anterior; da
formação profissional para o magistério; dos programas e livros
didáticos usados no trabalho e de sua própria experiência na profissão,
na sala de aula e na escola, e se caracterizam pelo sincretismo
complementar das diversas contribuições que podem ou não ter um
único fundamento teórico ou algum tipo de padronização exclusivo.
INICIAÇÃO CIENTÍFICA
A construção de um reservatório de saberes a ser mobilizado, no
exercício profissional futuro, a partir do saber que sabe, ocorre por
meio da interlocução entre acadêmicos presentes na sala de aula da
Educação Básica (EB) e a pesquisa em curso. Propicia-se aos
graduandos um ambiente de interações, cujo foco é a pesquisa e que
sensibiliza os sujeitos a observar cientificamente o processo, mediante
participação em projetos e diálogos privilegiados com pesquisadores
qualificados (orientadores) e literatura especializada. As bolsas de
iniciação científica (BIC) são fornecidas pelos órgãos de fomento a
licenciandos que desejam teorizar, aprender método e técnicas,
desenvolver o pensamento científico e a criatividade, partindo de
problemas identificados nas observações registradas. É uma experiência
única na vida profissional do estudante, que ao estabelecer uma relação
mais próxima com o orientador amplia e aprofunda o conteúdo
estudado em sala de aula, relacionado ao foco da pesquisa, além de
outros tópicos essenciais ao seu curso de licenciatura.
Na área da educação, esse vínculo é muito importante, já que o
aluno passa a ter uma percepção mais crítica de sua prática em sala de
aula, a partir de suas reais potencialidades como professor. O vínculo
estabelecido entre orientador e bolsista no processo de conhecer,
também, acaba criando nesse último uma responsabilidade maior com
seus estudos, que o identifica como alguém preocupado com sua
qualificação.

182
Modalidade Descrição
1) Iniciação Licenciandos como pesquisadores iniciantes da linha
Científica: ―Desenvolvimento de currículo e formação de
professores‖
2) Disciplinas de Discutem teorias de ensino de ciências e propostas
Metodologia do curriculares. Estão organizadas como Práticas de Ensino
Ensino de que possibilitam aos licenciandos estreita articulação entre
Ciências da a sua formação e o exercício profissional, vivenciando
Natureza e suas atividades em espaços educativos, a partir do segundo
Tecnologias semestre do curso. Os diferentes componentes
curriculares intercomplementam-se, procurando a
inserção dos estudantes na realidade escolar e,
denominam-se de Prática de Ensino: I. Fundamentos
Teóricos e Práticos em Ciências; II. Políticas, Estrutura e
Gestão da Educação Básica (NCL); III. Pesquisa em
Ensino de Ciências I; IV. Pesquisa em Ensino de Ciências
II; V. Didática (NCL); VI. Prática de Pesquisa Biológica;
VII. Trabalho de Sistematização em Ensino de Biologia.
3) Estágios Curri- Integram o currículo da licenciatura em diferentes
culares momentos e propõem interações com escolas de
Educação Básica a partir de observações do ambiente
físico e de aulas de Ciências da Natureza; conhecimento
do projeto político pedagógico da escola e da área;
planejamentos coletivos com regentes das turmas das
escolas; monitoramento de aulas de Ciências; entrevistas
com estudantes, professores e equipe diretiva; exercício
de docência. Estas interações descritas, sistematizadas,
analisadas e fundamentadas no diálogo com
pesquisadores são apresentadas em seminários,
congressos e encontros de pesquisa sobre ensino.
4) Estágios Extra- Vivências e/ou experiências docentes em espaços
curriculares educativos formais ou não formais, que são relatadas
reflexivamente e validadas como horas de práticas de
ensino previstas na legislação.
5) Extensão Disseminação dos resultados de pesquisa como os modos
Universitária de desenvolver currículo e de formar docentes,
envolvendo professores e licenciandos.

Quadro 1 - Algumas modalidades de articulação entre a formação inicial


e continuada nas licenciaturas em Ciências da Natureza

183
Na área da educação, esse vínculo é muito importante, já que o
aluno passa a ter uma percepção mais crítica de sua prática em sala de
aula, a partir de suas reais potencialidades como professor. O vínculo
estabelecido entre orientador e bolsista no processo de conhecer,
também, acaba criando nesse último uma responsabilidade maior com
seus estudos, que o identifica como alguém preocupado com sua
qualificação.
As pesquisas sobre as características inovadoras das SE: a
significação conceitual alcançada, as aprendizagens propiciadas e a
interação na formação docente inicial e continuada da educação básica e
superior resultou em vários indicativos, que iluminaram a organização
curricular proposta a partir de então (Pansera-de-Araújo et al, 1999;
Auth e Strieder, 2003; Auth et al, 2004; Hames, 2004; Boff e Araújo,
2004; Araújo et al, 2005, entre outros...).
As vivências da pesquisa de Iniciação Científica (IC) e as
influências na formação inicial e continuada das licenciandas e
professora permitem aos estudantes ter outro entendimento sobre o
que é ser professor, porquanto contatam com pesquisadores e
professores das escolas; dialogam com diferentes autores; relatam
observações; analisam questões; elaboram artigos e constituem-se
pesquisadores que interagem no seu fazer cotidiano de maneira
diferenciada. Esta experiência provocou na maioria dos iniciantes a
continuidade no aprimoramento em nível de mestrado e doutorado,
além de propiciar uma compreensão de que a pesquisa os capacita a
refletirem criticamente sobre a realidade e, portanto interferirem,
quando necessário, com conhecimento (Mezalira et al, 2008).
No entanto, é preciso propiciar a participação de outros
estudantes com a criação de espaços que os incentivem a se
constituírem pela pesquisa. Na Unijuí, a produção de novos
conhecimentos pela pesquisa vem acompanhando disciplinas com
objetivos de fundamentar e discutir metodologias do Ensino Ciências
no Fundamental (disciplinas da licenciatura denominadas Ciências I, II,
III e IV) e de Instrumentação para o Ensino de Biologia ou Química,
no Médio, pertencentes ao currículo até 2002. A partir de então, foram
criadas as disciplinas de pesquisa em ensino de ciências (PEC- quadro 1,
item 2), que geram outras possibilidades de aprender. A proposição de
articular ensino, formação e prática, na defesa do ―fazer pesquisa‖ como
iniciação científica, em que cada futuro professor se torne pesquisador
184
em sua própria prática de formação, atuando crítica e interativamente,
não é uma tarefa fácil, nem impossível de realizar, porquanto,
[...] pesquisar é um fardo praticamente improvável de se
carregar. [...] Há enormes resistências entre os acadêmicos e
formadores de professores em admitir essa possibilidade. Se a
pesquisa do professor se baseia no modelo científico tradicional,
acusam-na de ser positivista e ultrapassada; se a pesquisa do
professor parte para outras abordagens, acusam-na de ser pouco
científica. (Lüdke, 2001, p. 30).
Disciplinas de Metodologia do Ensino de Ciências da
Natureza e suas Tecnologias: discutem teorias e propostas
curriculares, desde os fundamentos teórico-práticos, políticas e gestão,
pesquisas em ensino de ciências e biologia e didática. Isso possibilita
interlocuções com diversos autores e reflexões sobre as ações propostas
e vivenciadas, que são pesquisadas ao longo da implantação e
desenvolvimento a partir de diferentes metodologias. Ao longo dos
semestres, os estudantes aprofundam as questões sobre que tipo de
ensino existe, o que pode ser modificado e que teorias balizam essas
proposições, constituindo assim um referencial próprio e reconhecido
por eles, o que lhes garantirá autoria e autonomia nas escolhas
realizadas.
A formação de professores capazes de trabalhar o ensino de
maneira contextualizada e significativa inicia-se na graduação e deve ser
incentivada e continuada durante todo o seu exercício profissional. É,
portanto, durante esse período que o(a) professor(a) deve estar aberto
para conhecer as diversas maneiras (já existentes e aquelas em
elaboração) de ensinar ciências, bem como as pesquisas que as
acompanham, seja no entendimento dos processos de implantação ou
de outras tantas questões identificadas. As novas propostas de ensino,
que pretendem superar os estrangulamentos reconhecidos, podem estar
em debate e/ou sendo sugeridas por diversos grupos de pesquisa, que
procuram contribuir para o aprimoramento da educação básica. Assim,
quando esse debate transita pelas diversas disciplinas metodológicas, é
possível garantir a pesquisa como fundamento da formação.
Estágios Curriculares: realizados, em sala de aula da Educação
Básica (EB), abrem espaços para que os licenciandos possam efetivar
sua prática, assumindo a responsabilidade pela condução de uma turma,
experimentando metodologias variadas para desenvolver os conteúdos e
enfrentar situações inevitáveis e imprevisíveis. Os cursos de licenciatura
185
têm privilegiado, ainda, nas disciplinas específicas das Ciências da
Natureza e suas Tecnologias, uma visão teórica formal com poucas
relações com o cotidiano dos sujeitos envolvidos na aprendizagem,
como se a sua principal característica fosse ser um modo único e
próprio de explicar e entender o mundo, ou seja, uma verdade
inquestionável.
São realizados cinco estágios supervisionados com
desenvolvimento de situações de estudo na universidade e elaboração
de novas para serem desenvolvidas no ensino fundamental e médio. A
proposta curricular ―Situação de Estudo‖ (Maldaner e Zanon, 2004) foi
trabalhada, produzida e sistematizada visando preparar os estudantes
para a Prática de Ensino sob a forma de Estágio Supervisionado para a
Educação Básica, oportunizando a experiência de sala de aula, já numa
perspectiva diferenciada que exige a reflexão na e sobre a prática
(Schön, 1992).
A participação de licenciandos em grupo de pesquisa que
organiza propostas curriculares imprimiu-lhes um compromisso
diferenciado. Por isso, a experiência, aqui relatada, fundamentou-se na
prática docente com o desenvolvimento de SE, na sétima série do
ensino fundamental. Para garantir uma das inovações dessa proposta,
ocorreu um contato prévio com a direção da escola e com a professora
da turma na qual foi realizado o estágio, que apontou a sexualidade
humana e os aspectos anatômicos e fisiológicos do sistema reprodutor
como tema a ser explorado.
O planejamento e elaboração da SE ―Reprodução Humana e
Sexualidade‖ foram realizados na universidade pela estagiária com a
colaboração da professora regente da escola, das professoras
responsáveis pela disciplina de estágio e do Gipec-Unijuí. A SE
estruturada (atividades, textos, filmes e visitas) foi discutida com a
equipe diretiva e com a professora regente para análise, sugestões e
autorização para abordá-la na sétima série. Segundo o relato da
estagiária, o trabalho realizado na escola foi muito proveitoso e
contribuiu para o seu crescimento profissional, pedagógico e pessoal.
Perceber-se como mediadora do conhecimento científico existente bem
como perceber a forma como os conceitos foram significados pelos
estudantes, a partir dos objetivos nomeados, são observações que
repercutem, ainda hoje, na formação profissional. Constituiu-se, assim,
um conhecimento científico escolar em que a contextualização da
186
realidade de cada local é o conteúdo que estimula a interação das
pessoas em um processo de intervenção crítica, que mobiliza e exercita
a cidadania.
O desenvolvimento de SE, nos espaços escolares pelos
estagiários da universidade (licenciandos) na interação com os
professores da rede básica de ensino propiciou outros olhares e
discussões entre os graduandos (docentes em formação), os docentes
das escolas (campos de estágio) e da universidade, no que tange ao
conhecimento específico e educativo.
Algumas das SE já elaboradas, desenvolvidas e sistematizadas
desde 2002, estão sumarizadas no quadro 2 (Bianchi et al, 2007; Galiazzi
et al, 2007).
Em várias situações de estudo listadas no quadro 2, o conceito
energia é evidenciado nas suas diferentes formas (elétrica, luminosa,
química, potencial, cinética, nuclear, mecânica...), transformações e
conservação e as relações possíveis com a manutenção da vida nos seus
aspectos biológicos, físico-químicos, tecnológicos e de sustentabilidade
ambiental. Daí a necessidade de organizar esse tema e/ou suas
diferentes abordagens, de maneira sistemática na Educação Básica, a fim
de constituir uma consciência crítica quanto ao desenvolvimento
almejado da Sociedade Humana.
Essa organização curricular caracteriza-se pela interdisci-
plinaridade (relação entre ciências naturais, sociais, econômicas e a
cultura), riqueza conceitual sob o ponto de vista da ciência, perspectiva
CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade) e articulação da vivência dos
estudantes e professores, na formação inicial e continuada (Araújo et al,
2005). As questões abordadas visam à formação de uma nova
consciência sobre a interação sociedade humana-natureza. Por exemplo,
os professores e licenciados desenvolveram esta SE ―Geração e
gerenciamento...‖ numa turma de 8ª série de uma Escola Estadual,
acompanhada por registros nos cadernos de campo. Essa pesquisa
identificou conceitos científicos, tais como: substância, material,
mistura, pH, umidade, temperatura, energia, seres vivos, cadeia e teia
alimentar, população, comunidade e ecossistema. A contextualização
efetivou-se a partir do seguinte encaminhamento: estudantes trouxeram
resíduos sólidos produzidos em suas residências, que foram analisados e
separados em úmidos e secos e depois como materiais ou substâncias,
segundo sua composição química. Os resíduos úmidos foram usados na
187
montagem de uma composteira, monitorada quanto aos fatores bióticos
(fungos, bactérias, larvas de moscas, besouros...) e abióticos (umidade,
temperatura e pH). A conceitualização construída permitiu inter-
relacionar os fenômenos biológicos, físicos e químicos, sob o ponto de
vista da ciência. Os conceitos cotidianos dos estudantes foram re-
significados cientificamente constituindo o conhecimento escolar.

Titulo SE Nível Parceria Ano


Ensino Colaborativa
Geração e Gerenciamento dos Resíduos Fund. SMEd-Ijuí; 2002
Sólidos (lixo) Provenientes das Atividades Unijuí
Humanas 36 CRE
Estudo de uma Microbacia Hidrográfica: Fund. SMEd-Ijuí; 2002
ocupação do espaço e biodiversidade Unijuí
36 CRE
Estudo de Propriedade (Empreendimento) Fund. SMEd-Ijuí; 2003
Rural: organização do espaço e dos recursos Unijuí
naturais 36 CRE
Ser Humano e Ambiente: percepção e Fund. SMEd-Ijuí; 2003
interação Unijuí
36 CRE
Alimentos: Produção e Consumo Fund SMEd-Ijuí; 2002
Unijuí
36 CRE
Energia nos Fenômenos Biológicos, Físicos Fund. SMEd-Ijuí; 2003
e Químicos Unijuí

Ar Atmosférico Médio EFA; Unijuí 2000


Água e Vida Médio EFA; Unijuí 2002
De alguma forma tudo se move Médio EFA; Unijuí 2001
Água: fator determinante para a vida Médio Unijuí; 36 2005
CRE
Conhecendo o Câncer: um caminho para a Médio Unijuí; 36 2005
vida CRE
Aquecimento Global: o que tenho a ver Médio Unijuí; 36 2005
com isso? CRE

Quadro 2 - Algumas Situações de Estudo desenvolvidas e/ou publicadas


para o ensino fundamental e médio

188
Desse modo, os estagiários após vivenciarem na universidade
algumas SE são instigados a produzirem outras em parceria colaborativa
com as escolas e que serão desenvolvidas nos seus estágios
supervisionados na EB. Com isso, são fomentadas duas atitudes: a
autonomia e a autoria dos licenciandos e professoras na organização do
currículo escolar que, por sua vez, se fundamenta na produção e
sistematização de novos textos que propiciam outras aprendizagens e
significações.
Estágios Extracurriculares: ocorrem em espaços de educação
formal, não formal e informal. O relato refere-se às atividades docentes
exercidas por uma licencianda de Ciências Biológicas da Unijuí, como
substituta voluntária, em escola de ensino fundamental e médio, de
professores regentes das turmas, quando os mesmos se afastavam para
participar em eventos de qualificação profissional. A interação
estabelecida contribuiu para uma formação diferenciada, a partir das
reflexões sobre as ações efetivadas: a) iniciativa da estudante em entrar
na sala de aula, como colaboradora de professores regentes, em sua
presença ou não; b) submissão ao crivo dos educandos, que aceitavam
bem esse ―professor temporário/substituto‖; c) confronto com olhares,
provocações e falas dos estudantes que instigavam a substituta a reagir;
d) roteiros de aulas propostos pelas regentes com análise das reações
dos estudantes, frente ao conhecimento disponibilizado. Dessa maneira,
o conhecimento do espaço docente, por meio de experiências e estudos,
coloca em relevo o quanto são problemáticas para os professores a
formação (Paquay et al, 2001), as novas metodologias de ensino e
pesquisa e a formação continuada. Ser professor gera muitos desafios
tanto na atualização teórica constante quanto nas metodologias de
ensino, na (re) significação e reestruturação das ideias. Deste modo,
realizam-se, inúmeras reflexões sobre a formação e o ensino, sejam elas
teóricas ou práticas, dentro e fora da sala de aula, que mostram,
também, quão importante é adquirir conhecimentos e experiências,
respeitar os educandos e professores bem como, participar dos eventos
da escola e colaborar com a mesma na construção do currículo.
As dificuldades consideradas referem-se à própria relação
professor-estudante que precisa ser bem consistente, discutida e
repensada. Na maioria das vezes, mesmo cursando uma licenciatura,
prevalece ainda a ideia de que é o estudante o responsável ou não pelos
seus estudos, é ele quem provoca e desafia o professor com
189
brincadeiras, com vivências externas ao componente curricular em
questão, ou à escola como um todo. Esse imaginário nos desafia a
entender que como profissionais estaremos no outro lado dessa relação
- seremos professores.
Nas escolas, os próprios professores regentes têm dificuldades de
manter bom relacionamento com os estudantes, e essas percepções
impõem aos licenciandos a busca pelo entendimento e estabelecimento
de novas maneiras de ensinar e interagir, sem criar atritos com o
processo estabelecido pelos regentes. Marques (2006) coloca que nessa
relação, não se ensinam ou aprendem coisas, mas sim conceitos, que
por sua vez são construções históricas, isto é, nunca dadas de vez,
sempre retomadas por sujeitos em interação e movidos por interesses
práticos no mundo em que vivem.
Os futuros professores, estudantes de graduação, mesmo tendo
disciplinas pedagógicas, não se sentem suficientemente seguros para
exercer a sua função profissional. A experiência como professora
colaboradora-substituta, muitas vezes apenas para garantir a execução
de tarefas/atividades previstas e propostas pelo regente, suscitou novas
reflexões e buscas de respostas adequadas às questões emergidas na sala
de aula.
A interação estabelecida mediante a substituição de professores,
ainda que colaborativa e voluntária, em qualquer área de conhecimento,
auxilia de alguma maneira a constituição da experiência docente - o
saber experencial (Gauthier et al, 1998), pois, no momento em que esse
professor entra na escola, na sala de aula, é responsável pelos seus atos e
tem a autoridade imposta pela escola para exercer essa função. Em
qualquer situação, agradável ou não, é quem está em sala de aula, e
deverá organizar as atividades, e as soluções demandadas. A
identificação desses espaços-tempo de aprender e ensinar, fora da
estrutura curricular oficial, propicia vivências da realidade escolar com
estudantes, professores, corpo diretivo e auxiliares administrativos, não
mais como estudante, mas sim como profissional em qualificação.
Ainda foi possível perceber que, nem todas as turmas reagiam da
mesma maneira: algumas receberam muito bem e, ao terminar a aula,
perguntavam: ―Quando que a profe vai vir de novo dar aula pra nós?‖; outras
tentavam fazer com que a substituta cedesse coisas que a regente não
permitia; ou, faziam perguntas absurdas para ouvir as respostas e testar
o conhecimento da substituta. A realidade enfrentada é bem diferente
190
do imaginário construído na graduação e é preciso preparar-se para as
diversas reações dos estudantes: aceitação incólume, rejeição simples e
direta, testagem quanto ao domínio do conteúdo, sobre temas já
estudados, brincadeiras e piadinhas (algumas de mau gosto). A empatia
estabelecida nem sempre é a almejada, mas isso não impede que a
atividade colaborativa se torne, ao final, satisfatória e interessante, pois
cria novas possibilidades de aprendizado na formação inicial.
Extensão Universitária: atividades disseminadoras das
pesquisas sobre desenvolvimento de currículo e formação docente vêm
sendo realizadas em parceria com as redes de ensino municipal, estadual
e particular. A participação dos licenciandos como auxiliares na busca
de informações, atividades práticas, organização das propostas
elaboradas e executadas produzem novos diálogos com os professores
em serviço, inclusive facilitando os esclarecimentos pedidos por eles
quanto a algumas informações veiculadas pela mídia.
ALGUMAS REFLEXÕES
É possível perceber, nas cinco modalidades de articulação entre
formação inicial e continuada relatadas, um fortalecimento do
licenciando quanto às possibilidades de inovar, de reconhecer sua
capacidade de argumentação, de desenvolver conteúdos significativos,
de enfrentar diferentes turmas da educação básica, de buscar novas
explicações, tarefas, de preparar-se para o novo e, mais do que isso,
refletir sobre sua prática. Um diálogo constante com os professores da
educação básica em exercício, que disponibilizam o saber da ação
pedagógica e retomam os saberes curriculares e disciplinares (Gauthier
et al, 1998) trazidos pelos estudantes, que lhes permite atualizações, é
observado.
No Gipec-Unijuí, a inserção do estudante de graduação como
iniciante na pesquisa torna o aprendizado e a experiência vivida mais
sólida, rica e produtiva, pois os mesmos atuam em diversas áreas do
conhecimento interagindo com outros professores, além de terem a
oportunidade de auxiliar no planejamento e desenvolvimento das SE
propostas. O acompanhamento pela pesquisa dessas experiências
curriculares proporciona o contato direto com a escola e professores de
educação básica, permitindo a troca de conhecimentos, além de ser um
incentivo para os próprios professores regentes a continuarem sua
formação procurando novas metodologias e aprendizados.
191
Enfim, a organização curricular (Situação de Estudo) proposta e
desenvolvida em diferentes espaços educativos formais tem mostrado
possibilidades e limites, na articulação entre as subáreas das Ciências da
Natureza, na formação inicial e continuada e na formação do
pensamento consciente, que só poderão ser explicitados e
compreendidos a partir das pesquisas realizadas (Arends, 1995).
A integração que há entre professores da Educação Básica e
estudantes de licenciatura bem como com a universidade enquanto
instituição de ensino pode ser melhorada quando ocorre a disposição do
grupo de enfrentar novos desafios e de colocar-se como alguém que
sabe e precisa aprender mais. É fundamental ainda reconhecer que o
ensino tradicional poderia ser inovado tanto na graduação, quanto na
educação básica, principalmente se forem incorporados os
apontamentos encontrados nas diferentes pesquisas.
Estas reflexões e observações criaram um espaço-tempo
ampliado de formação profissional ao permitirem o entendimento de
algumas das práticas efetivadas, dos medos e resistências enfrentados ao
encarar as turmas de estudantes, o que contribui com as reflexões
teóricas sobre as vivências práticas e a articulação dessas interações. Isto
possibilita outra percepção do ensino e da aprendizagem e, mais ainda,
da formação profissional inicial que, também, influi na continuidade
dessa formação em serviço, ou seja, a prática proposta por Schön (2000)
categorizada como o conhecer-na-ação (desempenho profissional), a
reflexão-na-ação (perceber o pensamento presente na ação) e conhecer
na prática (ações em ambientes institucionalizados). E, assim, identificar
como estão inter-relacionados os saberes docentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em cada modalidade foi possível compartilhar a pesquisa que
permitiu significação de novos conceitos e modos de perceber a
realidade, já que o referencial teórico histórico-cultural (Vigotski, 2001)
adotado fundamenta e credita à interação entre os sujeitos e destes com
o ambiente, a formação da consciência e do saber que sabe.
Esse conjunto de proposições articuladoras da formação inicial e
continuada poderá contribuir significativamente para a gênese de
professores reflexivos e provocadores, que garantam, nas suas salas de
aula, espaços para pesquisa como algo intrinsecamente colocado e que
fundamentam as novas organizações curriculares, de modo a permitir a
192
compreensão das possibilidades de superação de estruturas estagnadas e
de incorporação das inovações existentes. As atitudes em que os
sujeitos se colocavam como meros observadores, sem responsabilidade
pelos procedimentos, valores e conceitos, foram questionados ao longo
da pesquisa nas cinco modalidades apresentadas no quadro 1, de modo
que outras reflexões fossem desencadeadas e permitissem aos cidadãos
apropriarem-se das ferramentas, objetos e metodologias da ciência de
modo consciente para assegurar um mundo melhor para todos.
As experiências vivenciadas na formação inicial por meio da
pesquisa, durante um período considerável da vida acadêmica
universitária, trouxeram contribuições muito importantes para o ser
professor, em tempos em que considerar a educação como ação que
sensibiliza para o novo e para as mudanças, na interação entre os
sujeitos, é fundamental para a formação continuada.
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195
196
A REFLEXIVIDADE E O DIÁLOGO COMO
ELEMENTOS QUE POSSIBILITAM A FORMAÇÃO
DE PROFESSORES PROFISSIONAIS
AUTÔNOMOS E INOVADORES
Gilvaneide Ferreira de Oliveira1
INICIANDO UMA DISCUSSÃO...
Repensar a formação docente torna-se um exercício obrigatório
para aqueles que estão de uma forma direta ou indireta envolvidos com
os cursos de formação de professores. É dever deste processo
formativo gerar repercussões cada vez mais interventivas nos espaços
educativos, podendo uma delas ser representada pela reflexão docente a
partir das propostas curriculares que norteiam os referidos cursos. Tais
propostas devem considerar os currículos, prescritos e vivenciados,
favorecendo o desenvolvimento de uma visão crítico-reflexiva, que
proporcione ao professor um pensamento autônomo e,
consequentemente, uma autoformação, resultado de um investimento
pessoal, com vistas à construção de sua identidade profissional, pois o
exercício da reflexividade é fundamental para o desenvolvimento da
autonomia dos professores (Nóvoa, 1992).
No viés da reflexividade, mesmo sem ter originalmente atentado
para a formação de professores, os estudos de Schön (1995) estão na
base da discussão sobre o professor reflexivo. Partindo da constatação
de que há uma crise de confiança nos profissionais, o referido autor, em
suas pesquisas sobre a formação profissional, busca entender como se
dá a aquisição dos saberes que os profissionais carregam, em particular,
os que são denominados de bons profissionais.
Schön (1995) considera que o profissional, no seu fazer
cotidiano, traz um conhecimento que utiliza para a solução de diferentes
questões. É um conhecimento tácito ou um conhecimento na prática.
Neste sentido, ele formula sua perspectiva teórica em torno de alguns
aspectos: primeiro, o conhecimento na prática ocorre na medida em que
o profissional coloca para si as questões do cotidiano como situações
problemáticas, reflete e busca uma interpretação para aquilo que é

1Departamento de Educação, UFRPE. Bióloga, Doutoranda em Ciências da Educação,


Uma, Portugal.
197
vivenciado; segundo, a reflexão na prática ocorre quando o profissional
reflete ao mesmo tempo em que está vivenciando uma determinada
situação, assim, ele faz uma reflexão sobre a ação que permite uma
reorientação desta no momento em que se está vivendo; e, por fim, em
terceiro, a reflexão sobre a reflexão na ação, em que se dá um processo
mais elaborado, no qual o próprio profissional busca a compreensão da
ação, elabora sua interpretação e tem condições de criar alternativas
para aquela situação reflexiva na prática, sobre a prática.
Zeichner (1993) também discute em seus estudos a reflexão do
professor como um elemento da formação docente. Para ele, o conceito
de professor reflexivo reconhece a riqueza da experiência que reside na
prática dos professores, porém, enfatiza que essa reflexividade sobre a
prática deve acontecer numa dimensão coletiva, considerando o
contexto sócio-institucional no qual a mesma acontece. Nesta
perspectiva, reconhece que o processo de aprender a ensinar prolonga-
se por toda a carreira docente.
Considerar uma formação docente que priorize o exercício
crítico-reflexivo faz-nos promover a articulação de elementos que
historicamente foram tratados como opositores ou antagônicos, uma
vez que havia os que se interessavam por uma reflexão mais teórica e
outros que preferiam ―pôr a mão na massa‖, ou seja, consideravam mais
as questões ligadas às experiências e suas realizações. Hoje, somos
desafiados a estabelecer e vivenciar uma articulação entre as dimensões
teóricas e práticas, de tal forma que sejam expressas em um só corpo de
entendimento. Como diz Macedo (2002, p.13),
[...] pensar o conhecimento e a reflexão sobre ele como um
corpo que caminha com duas pernas, uma que expressa sua
dimensão prática ou procedimental e a outra que representa sua
dimensão compreensiva ou explicativa. Neste sentido, se faz
necessário considerar a relação cooperativa que se estabelece
entre estas duas dimensões.
Sobre a relação cooperativa entre teoria e prática podemos
resgatar uma discussão que a determina de modo bastante simples se
tomarmos, como prática, a ação educativa em todos os seus
relacionamentos práticos e, como teoria, as ciências da educação em
suas configurações teóricas, em que a teoria investiga a prática e sobre a
qual retroage, mediante os conhecimentos adquiridos.

198
Assim, o exercício da reflexividade, que toma como objeto as
dimensões teoria e prática, é difundido por Silva (2004), a qual alerta
que a ação reflexiva não deve se restringir a um acontecimento isolado
entre o sujeito e o objeto, em que o sujeito não reflete sobre a
complexidade dos fatos em sua totalidade, mas faz recortes deste
complexo, simplificando e isolando a problemática de ordem social.
Nesta perspectiva, a reflexividade na formação de professores, implica
numa ação desencadeada pela problematização da prática pedagógica,
sendo esta realizada pelo professor através dos elementos que emergem
de seu exercício docente.
Na perspectiva de formarmos professores inseridos e
comprometidos com a interação cooperativa entre a teoria e a prática, é
necessário considerar o exercício constante do diálogo na sala de aula,
devendo pautar-se na dimensão humanizadora de ser e, por isso, de
dialogar. Neste sentido, Freire (1987) nos assinala que, sem o diálogo, o
processo de humanização não pode ocorrer. A relação humana só se
completa na busca permanente da plenitude (nunca alcançada) e na
busca sempre dialógica em dois níveis: o do diálogo entre os seres em
processo de conscientização e o do diálogo com o mundo.
Para Freire (1987, p. 78), ―o diálogo é este encontro dos homens,
mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando,
portanto, na relação eu-tu‖. Neste sentido, faz-se necessário estabelecer
relações que se nutram das interações entre os elementos aparentemente
dicotômicos, na busca de aproximá-los para melhor compreendê-los,
sem deixar de perceber os elementos que os diferenciam. A relação
teoria-prática na ação pedagógica é um exemplo significativo desse
exercício.
Assim, estabelecer uma formação docente que se nutre do
diálogo entre a teoria e a prática pedagógica e ao mesmo tempo o
alimenta é considerar o quanto de enriquecedor podemos encontrar
neste exercício formativo e o quanto esta relação irá fortalecer a ação
docente, possibilitando o desenvolvimento da autonomia do professor
que a adota.
No entanto, o processo de formação de professores,
principalmente o vivenciado nos cursos de Licenciatura, responsáveis
pela formação inicial destes profissionais, apresenta uma estrutura que
distancia a teoria da prática, dicotomizando-as, sendo este
distanciamento materializado na estrutura curricular que edifica os
199
referidos cursos. Nestes, temos componentes curriculares que
raramente passam pelo processo da transposição didática necessária,
para que o enfoque educativo seja incorporado.
É comum, no processo formativo da docência, os alunos
receberem primeiro as informações teóricas voltadas para os saberes
específicos da disciplina a ser lecionada e, depois, receberem e
vivenciarem algum tipo de contato teórico e prático com as questões
relacionadas ao contexto escolar, vindo a interagir com o ambiente da
sala de aula através dos estágios, percebendo, enfim, de forma reflexiva,
as particularidades da prática pedagógica e da relação didática que
envolve a teoria e a prática docente.
Na perspectiva de se formar para a docência, tendo como base o
exercício de um ensino reflexivo, os formadores dos professores devem
se sensibilizar quanto à importância de vivenciarem junto aos futuros
professores, durante a formação inicial, o desafio de interagir, de forma
cooperativa, a teoria e a prática. Este desafio interioriza a disposição e a
necessidade de um exercício reflexivo dos docentes sobre as demandas
de uma sala de aula, a maneira como ensinam e as proposições
interventivas necessárias no contexto desta formação, de modo que os
levem a reconhecer a necessidade de melhorar a prática docente com o
passar do tempo, como também, de serem os próprios responsáveis
pelos seus desenvolvimentos e atualizações profissionais.
Neste sentido, faz-se necessário que tenhamos clareza dos
desafios que as práticas reflexivas devem enfrentar, possibilitando, com
isso, um exercício efetivo da sua execução. Dentre estes desafios,
Macedo (2002, p.13) sinaliza para a necessidade de voltar nossa atenção
para as ações didáticas e suas consequências:
Aprender a refletir sobre a ação a realizar e sobre a ação
realizada;
Saber considerar simultaneamente os processos de
exteriorização e interiorização inerente à tomada de consciência;
Aprender a refletir com a mediação de alguém ou de um
recurso;
Conviver com a dupla função da reflexão: auto-observação ou
descrição e, simultaneamente transformação e emancipação;
Incluir o antes e o depois da ação, possibilitados pela reflexão
em seu durante.

200
Assim, percebemos a necessidade que o professor tem de
reconhecer que o seu aperfeiçoamento profissional dependerá do
encaminhamento dado a sua formação profissional e que nem sempre
poderá contar com uma política de formação em serviço, materializada
em propostas de formação continuada que, de fato, sejam
representativas para esse desenvolvimento profissional. Como diz
Garcia, a formação continuada representa
[...] toda a atividade que o professor em exercício realiza com a
finalidade formativa – tanto de desenvolvimento profissional
como pessoal, individualmente ou em grupo – para um
desempenho mais eficaz das suas tarefas atuais ou que o
preparem para o desempenho de suas novas tarefas (1999, p.
136).
Desta forma, as ações identificadas como reciclagem, atualização,
aperfeiçoamento, capacitação, dentre outras, não podem ser
consideradas similares à formação continuada, uma vez que estas são
pontuais para a ação docente. Segundo Garcia (1999), as atividades de
uma formação continuada devem atender ao caráter de continuidade,
repercutindo no desenvolvimento integral do professor. Estes
elementos nos conduzem a uma reflexão sobre a identidade que devem
assumir os atuais programas de formação aos quais os professores são
chamados a participar.
Estes programas raramente consideram que as vivências nas salas
de aula devem dar subsídios para a identificação de objetos de estudos,
investigações e discussões coletivas, pois, como assinala Garcia (1999), é
do contexto escolar que devem emergir as questões e os problemas de
estudo, proporcionando elementos que favoreçam a construção de
propostas de intervenções significativas, sendo estas implantadas e
implementadas nos contextos que lhes deram origem, expressando,
assim, desejos e intenções coletivas. Deste modo, constrói-se uma
autonomia em relação ao fazer docente, caracterizado por ações que o
direcionam para o desenvolvimento de sua identidade profissional e de
seu saber docente, representado através da intervenção que esse venha a
ter nos espaços escolares e na vivência da sala de aula.
No processo de construção desta autonomia, como enfatiza
Freire (1996), o professor precisa desenvolver as mesmas competências
e habilidades previstas para o aluno, pois não se pode pensar em formar
alunos com autonomia intelectual, se não forem criadas condições para
201
que os professores tenham essa mesma autonomia. ―Autonomia
intelectual, se aprende, se constrói, não se nasce com ela‖. Esta citação
de Melo (1999, p.51) nos direciona a uma reflexão sobre os elementos
da formação docente visando à construção da autonomia. Sobre isso,
destacamos a relevância dessa autonomia para a proposição de práticas
pedagógicas inovadoras.
Este processo de formação para a autonomia deve constituir-se,
segundo Macedo (2002), num exercício coletivo, rompendo com as
ações singulares, individualizadas e pouco significativas para uma
formação profissional expressiva, vencendo as perturbações causadas
pelas pressões que atingem as escolas, oriundas das diversificadas
tarefas e expectativas sociais. Não significa dizer, com isso, que as
questões sociais não sejam relevantes para os contextos escolares e para
os processos de formação profissional, muito pelo contrário, é
imprescindível que a prática reflexiva da docência esteja inserida nas
relações institucionais e sociais, pois é a partir dessas que serão
pensados os projetos de intervenção inerentes ao processo de inovação
na prática docente. Para Correia (1991, p.36), ―[...] a inovação por mais
modesta que seja, rompe um equilíbrio, cria uma situação de crise‖ e,
nesse contexto de crise, geram-se os conflitos que nos levam à inovação
nos contextos de ação, devendo ser essa uma expressão da autonomia
docente.
O processo inovador a que estamos nos referindo apresenta-se
comprometido com a complexidade do fenômeno da inovação, uma
vez que esse exige um esforço sistematizado e coletivo de reflexão
sobre a problemática da qual a inovação emergiu. Considerando o
contexto escolar, Correia (1991) diz que é necessário considerar a
estrutura das relações que a escola estabelece com o seu contexto social,
a estrutura das relações de poder entre os diferentes intervenientes do
processo inovador e as estruturas da relação de poder que a inovação
visa institucionalizar, sendo, muitas vezes, necessário estabelecer crises e
rupturas com modelos já institucionalizados para que surjam
proposições inovadoras instituintes.
Nesta perspectiva, pensar num programa de formação para
professores que atenda às necessidades de formação de sujeitos críticos,
criativos, éticos, competentes e autônomos, é pensar num profissional
que vive em constante construção e mutação movidas pelas relações
sociais, constituídas num cenário histórico. Ao considerar essa ação
202
formativa, percebemos que se faz necessário pensar o professor numa
dimensão diferente da que habitualmente vemos em nossa rotina no
ambiente educacional, dimensão essa marcada por elementos que
caracterizam esse docente como técnico, que se limita a cumprir o que
lhe ditam ou definem nos afazeres da sala de aula, na qual muitas vezes
os professores são meros participantes passivos e aplicadores de
métodos e técnicas de ensino previamente repassadas. Esse perfil se
distancia de uma postura que leve o professor a desempenhar um papel
ativo de profissional autônomo, que formula os próprios propósitos e
objetivos referentes ao seu trabalho, bem como os meios para atingi-los.
Estes elementos apontam para uma discussão relacionada à
autonomia docente, como também às consequências dessa para o fazer
deste profissional. Neste sentido, pode-se dizer que a autonomia faz
parte da própria natureza da educação. Ela é "real", diz Snyders (1977,
p.109), "mas a conquista incessantemente [...] é muito menos um dado a
constatar do que uma conquista a realizar". Snyders insiste que essa
"autonomia relativa" tem que ser mantida pela luta e "só pode tornar-se
realidade se participar no conjunto das lutas das classes exploradas"
(ibidem). A escola precisa preparar o indivíduo para a autonomia pessoal,
mas também para a inserção na comunidade e para a emancipação
social.
Castoriadis (1982) opõe autonomia à alienação. Para ele, "a
autonomia seria o domínio do consciente sobre o inconsciente", em que
o inconsciente é o "discurso do outro". A alienação ocorre quando "um
discurso estranho que está em mim, me domina, fala por mim" (p.123-
124). Portanto, a educação enquanto processo de conscientização
(desalienação) tem tudo a ver com a autonomia.
Semanticamente, a palavra autonomia provém do grego autonomi:
autos – significando ―por si mesmo‖, ―por ele mesmo‖, ―ele mesmo‖ ou
―o mesmo‖ e nomos – significando ―lei‖, ―uso‖ ou ―compartilhamento‖.
Assim, a autonomia refere-se ao autogoverno, à autodeterminação da
pessoa para tomar decisões que afetem sua vida e suas relações sociais.
Na atualidade, para que o homem possa se adaptar e saber
conviver em uma sociedade complexa, caracterizada por profundas
desigualdades sociais e por uma política capitalista e individualista, é
necessário implementar um sistema educativo voltado para o
desenvolvimento da autonomia. Somente é possível desenvolvê-la por
meio de uma atividade educacional direcionada para este fim, uma vez
203
que se trata de uma ação consciente do processo educativo, seja na
dimensão pessoal ou profissional.
Para que sujeitos autônomos sejam formados nos espaços
escolares, é necessário que tenhamos professores autônomos. Nesta
perspectiva, Gadotti (1999) assinala para as dimensões de aprender,
caracterizadas por: aprender a conhecer, a fazer, a viver juntos e a ser.
Aprender a conhecer significa o prazer em compreender, descobrir,
construir e reconstruir o conhecimento. Aprender a fazer compreende a
competência pessoal que torna a pessoa apta a enfrentar novas situações
de emprego e a trabalhar em equipe, não sendo restrita à pura
qualificação profissional, ou seja, são as qualidades humanas que se
manifestam nas relações interpessoais mantidas no trabalho. Enquanto
que, aprender a viver juntos é viver com os outros: compreender o
outro, desenvolver a percepção da interdependência, da não-violência e
administrar os conflitos. Aprender a ser significa o desenvolvimento
integral da pessoa: inteligência, sensibilidade, sentido ético e estético,
responsabilidade pessoal, espiritualidade, pensamento autônomo e
crítico, criatividade, iniciativa, dentre outros (ibidem).
O professor deve ser formado para o exercício de uma
autonomia que signifique a capacidade de refletir acerca do seu
aprendizado e da sua atuação profissional, assumindo a
responsabilidade pelo seu desenvolvimento profissional. Neste sentido,
Vasconcellos (2002) afirma que é função primordial do professor
provocar e propiciar o ensino rumo à construção da autonomia do
aluno (futuro professor) em conduzir seus estudos. Desta forma, o
professor deve trabalhar a partir dos erros e dos obstáculos à
aprendizagem, ou seja, deve tomar como base o postulado simples de
que aprender não significa primeiramente memorizar, estocar
informações, mas reestruturar seu sistema de compreensão de mundo.
Aprender é ser capaz de ir à busca do conhecimento de forma
autônoma.
Na história das ideias pedagógicas, o exercício do diálogo, da
reflexividade e da autonomia sempre foram associados ao tema de
liberdade individual e social, ruptura com esquemas centralizadores e,
recentemente, com a transformação social. Na perspectiva atual, as
ideais pedagógicas estão relacionadas ao desenvolvimento do ser
humano de uma forma integral. Com isso, as universidades e os cursos
de formação de professores precisam objetivar a busca pela autonomia
204
profissional. A formação docente consiste em um processo que
pretende ensinar ao aluno (futuro professor) a conhecer e reconstruir
esse conhecimento, a manifestá-lo nas relações, a conviver e a dialogar
pacificamente com os outros e a aprender a ser, pensar, exercer a
responsabilidade, enfim, ser um indivíduo reflexivo e autônomo.
Neste sentido, desenvolver uma formação docente, assente na
reflexividade, no diálogo e na autonomia, não consiste, simplesmente,
em o professor ter um domínio e um bom exercício de suas funções de
planejar e ensinar, com vistas à aprendizagem de seus alunos, mas
também, conduzir-se no espaço escolar nas diferentes instâncias que
compõem a escola, como, por exemplo, na organização e elaboração de
seu projeto político pedagógico. É organizar o pensamento profissional,
estabelecendo relações com a realidade, relações essas, comprometidas
com as transformações das condições sociais, em busca de uma
sociedade que apresente melhores condições de vida. Assim, por
intermédio do incentivo da formação docente nessa perspectiva, é
possível formar verdadeiros cidadãos críticos, reflexivos, criativos,
éticos e autônomos, capazes de lutar por seus sonhos e seus objetivos
de vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão que acabamos de fazer revela-nos o quanto
precisamos estar atentos aos fatores que interferem na formação
docente, marcando assim, fortes indícios para uma possível inovação no
processo de formação dos professores, tendo como parâmetro o
exercício da reflexividade, da dialogicidade e da autonomia: marcas
relevantes para essa formação.
Ao considerar estes parâmetros, os programas de formação de
professores devem levar em conta uma participação efetiva dos
profissionais envolvidos, participação essa, sendo coletiva e envolvida
por uma perspectiva crítica e transformadora, rompendo com os
modelos formativos pré-estabelecidos, caracterizando um estágio de
crise e rupturas com o referido modelo. Este processo alimenta o
surgimento de propostas inovadoras e expressa a autonomia
profissional dos sujeitos envolvidos, tendo como base o exercício
dialógico e reflexivo da prática docente.

205
REFERÊNCIAS
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Paz e terra, 1982.
CORREIA, J. A. Inovação Pedagógica e Formação de Professor es. Coleção
Biblioteca Básica de Educação e de Ensino. 2 ed. Portugal: Editora ASA,
1991.
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Coleção Ciência da Educação. vol. 2. Porto: Porto Editora, 1999.
GADOTTI, M. Perspectivas atuais da educação: idéias para um debate.
Seminários em Revista. Blumenau, v. 2, nº 5, p. 9-24, maio, 1999.
MACEDO, L. Desafios à prática reflexiva na escola. São Paulo: Revista
Pátio, ano: VI, nº 23 set/out, 2002. pp. 12-16.
MELO, M. T. L. Programas oficiais para a formação dos professores da
educação básica. In: Revista Educação e Sociedade: revista quadrimestral de
Ciência da Educação/Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes)
Educação Formação de Profissionais da Educação – Políticas e Tendências
– n. 68 especial, dezembro, Campinas, SP, 1999. p. 45-60.
NÓVOA, A. Profissão Professor. Coleção Ciência da Educação. 2 ed.
Portugal: Porto Editora, 1992.
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dos currículos em Portugal e no Brasil. 2004. 435 f. Tese (Doutorado em
Educação) Faculdade de Psicologia Ciência da Educação, Universidade do
Porto, Portugal, 2004.
SNYDERS, G. Para onde vão as pedagogias directivas. Lisboa: Morais
Editores, 1977.
SHÖN, Donald. A Formação de professores como profissionais
reflexivos. In: NÓVOA, A. Os professores e a sua formação. Lisboa:
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VASCONCELLOS, C. dos S. Construção do conhecimento em sala de aula. 13
ed. São Paulo: Libertad, 2002.
ZEICHNER, K. M. O professor como Prático Reflexivo In: A Formação
Reflexiva de Professores: idéias e práticas. Lisboa: Educa, 1993.

206
A FORMAÇÃO CONTINUADA DOS PROFESSORES QUE
ENSINAM CIENCIAS NATURAIS: PRESSUPOSTOS E
ESTRATEGIAS

Isauro Beltrán Núñez1, Betania Leite Ramalho2

INTRODUÇÃO
O ensino das ciências naturais no Brasil, assim como em outros
países, se configura como uma problemática do sistema educacional. A
falta de professores, a inadequada preparação de muitos deles, as
condições materiais caracterizadas pela ausência de espaços/tempos
adequados para o trabalho experimental e prático, a excessiva
quantidade de conteúdos estruturados de forma fragmentada, os
métodos de ensino baseados na transmissão do conhecimento ou no
pseudoconstrutivismo, são alguns dos elementos que concorrem para
essa problemática. Nessas circunstâncias, diferentes esforços no plano
político, configurados nas referências educacionais, procuram melhorar essa
situação.
Como sabemos, qualquer transformação significativa no ensino
das ciências naturais no ensino médio exige uma adequada reconstrução
da profissão docente e dos espaços e tempos das escolas, como
contexto do ser e viver essa profissão.
Devemos reconhecer a dinâmica e a dialética das transformações
desejadas nos projetos das políticas educativas, em relação às
necessidades e motivações das escolas e dos professores para que
possam participar de forma construtiva nessas transformações. Nesse
sentido, são várias as dimensões que podem influenciar e, de fato
influenciam, na reconfiguração das escolas do ensino médio. Do
conjunto dessas influências, uma delas, a formação continuada dos
professores de Química, Física e Biologia, é objeto de reflexão na
presente discussão.

1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Programa de Pós-Graduação em


Educação ([email protected])
2 Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Programa de Pós-Graduação em

Educação.
207
Nesse caso, uma questão se impõe: Que tipo de formação
continuada é necessária aos professores de Física, Química e Biologia
do ensino médio?
Consideramos que deve ser produzida uma ruptura no sentido da
dialética, com a formação inicial, deficiente no componente
profissionalizante, para se constituir em novas oportunidades de se
potencializar a condição de professor profissional, como especialista na
Didática das Ciências Naturais, com especificidade na disciplina em
questão.
A compreensão dos processos de formação continuada dos
professores de ciências naturais nos leva a pensar as distintas etapas e
dos fatores que facilitam ou obstaculizam esse processo e que são
chaves para se repensar em vias e contextos que possam contribuir para
a formação dos docentes.
Como deve ser pensada a formação continuada dos professores?
Segundo as demandas gerais e impessoais que emergem das reformas
educativas ou segundo as necessidades deles? Os interesses,
necessidades e possibilidades dos professores são convergentes ou
divergentes em relação às necessidades formativas dos cursos oferecidos
pelas instituições universitárias? Como deve ser trabalhada essa
problemática?
A formação continuada dos professores que ensinam ciência não
deve estar em função de uma visão academicista, baseada na
transmissão de conteúdos acadêmicos e na valorização da cultura da
homogeneidade, imposta pela concepção das universidades sobre a
formação do licenciando nem tampouco das prescrições impostas pelas
reformas. As propostas de formação continuada devem obedecer às
necessidades da educação do Ensino Médio, uma vez que, em geral, a
lógica da formação continuada geralmente não obedece aos ―problemas
reais‖ das escolas e das práticas profissionais dos professores.
Os professores que ensinam ciências devem ter uma sólida
formação no conhecimento das disciplinas científicas, na didática das
ciências naturais, na sociologia e na historia das ciências, que lhes
possibilite aplicar variadas estratégias de ensino, que contribuam para a
educação científica dos alunos.
A formação continuada do professor não pode ser concebida
como conjuntos justapostos de cursos pontuais, sem uma organização
articulada à prática docente atual e prospectiva, fora dos projetos
208
orientados para o desenvolvimento profissional dos professores. Esses
cursos, na maioria, são organizados considerando-se os professores
participantes como uma "massa homogênea" sem levarem as fortes
influências das suas concepções em relação a seu trabalho e a suas
necessidades de formação. Essas concepções são idiossincráticas,
construídas no contexto social e na sua experiência como indivíduo.
Embora existam concepções compartilhadas, os sentidos que os
professores atribuem às suas práticas passam também pela
individualidade de cada um deles. Essas concepções são bases para a
construção ou reconstrução de novos saberes e de competências.
Os resultados das pesquisas apontam para a necessidade de se
compreender e se organizar a formação continuada dos professores de
ciências além da participação em cursos extensos e bem desenhados. É
necessário que esses cursos façam parte de uma política do
desenvolvimento profissional docente que preste atenção à diversidade
docente. Essa política não deve representar um retorno ao modelo de
formação de professores de orientação pessoal (Feiman-Nemser, 1990),
que concebe a formação do professor, e todo ato de aprendizagem,
como um processo de aprender a compreender, de acrescentar e de
utilizar o próprio desenvolvimento pessoal.
É necessária uma reflexão aprofundada para uma compreensão
dos processos que podem contribuir para a reforma educacional,
especialmente no que se refere à formação de professores, a fim de se
romper o círculo do ―mudar para não mudar". A reconceitualização dos
processos formativos à luz da educação científica dos alunos do ensino
médio nos obriga a novas buscas, baseadas nas experiências acumuladas
durante anos de pesquisas.
Na sociedade do conhecimento, a dinâmica da formação
contínua do professor passa a ter outra dimensão, pensada a partir desse
novo contexto. A atualização das competências profissionais e dos
saberes profissionais são exigências de uma nova ótica do
desenvolvimento profissional do professor, como uma especificidade da
educação permanente, conforme é preconizado no Relatório Faure. Isso
exige uma nova compreensão dos processos de aprendizagem dos
professores.
Este trabalho tem como finalidade apresentar algumas reflexões e
fundamentos desenvolvidos na Linha de Formação e Profissionalização
Docente da UFRN, coordenada pela professora Betânia Leite Ramalho,
209
da qual somos parte integrante. As ideias apresentadas nasceram de
diversas reflexões nas discussões sobre a formação de professores em
especial, a formação de professores para ensinar Biologia, Física e
Química, formados nos cursos de licenciatura.
As reflexões a respeito da profissionalização da docência que
temos realizado no grupo de Formação e Profissionalização Docente,
do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, nos levam a considerar essa profissionalização
processo e produto, na construção de identidades da própria docência.
Dessa forma, a formação continuada deve buscar a construção de uma
identidade profissional voltada para o ensino da Física, da Química, da
Biologia como atividade profissional.
DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL E FORMAÇÃO
CONTINUADA
Iniciaremos nossas reflexões discutindo duas categorias-chave na
perspectiva da profissionalização da docência, particularmente para os
professores que ensinam ciências naturais. São elas: o desenvolvimento
profissional e a formação continuada.
Desenvolvimento profissional – Processo de maturação e
consolidação das potencialidades pedagógicas do professor, nas suas
relações com as influências formativas. Expressa-se no trânsito do
professor em diferentes estágios de generalização de todos os aspectos
sócioprofissionais que estruturam a sua identidade profissional.
O desenvolvimento profissional é um processo dialético, que se
dá através de sucessivos estágios de superação dialética, baseados na
reflexão crítica da prática assim como na compreensão e na capacidade
de decidir e de teorizar sobre essa prática de forma consciente e
autorregulada. Ele se produz na interação com os colegas profissionais,
no contexto da atividade profissional.
É importante compreender o desenvolvimento profissional dos
professores como um processo amplo, dinâmico, flexível, evolutivo e
pessoal, caracterizado por diferentes etapas. Nesse sentido, Day (1997,
p. 36) afirma:
É importante conceitualizar o desenvolvimento profissional
como um elemento multidimensional, dinâmico, entre diferentes
etapas da experiência biográfica, dos fatores ambientais, da
formação, da vida e das fases de aprendizagem ao longo da vida.

210
O desenvolvimento profissional é um processo contínuo que não
acontece de forma isolada. Constitui um projeto de vida, que combina a
interação de diferentes modalidades formativas. O desenvolvimento
profissional conjuga profissionalidade (aquisição e renovação do saber
fazer pedagógico) com profissionalismo, no qual questões de ordem
salarial, de condições de trabalho, da autonomia intelectual, da ética, da
participação em diferentes espaços profissionais, sindicais, questões
acadêmicas, dentre outras, convergem para um status da profissão.
O desenvolvimento profissional dos professores pode ser
analisado em duas dimensões: uma social e outra individual, que
interagem como uma unidade dialética. A dimensão social diz respeito a
novas necessidades formativas que emergem das mudanças e dos
aperfeiçoamentos do próprio campo profissional. Assim, uma reforma
educacional impõe novas exigências à formação de competências
profissionais dos docentes. A dimensão individual diz respeito à
condição do professor como pessoa, sua história, suas necessidades, seu
ritmo próprio de aprendizagem, seu projeto de formação profissional.
Nessa dialética das dimensões (social e individual) do desenvolvimento
profissional, situa-se a relação homogeneidade/heterogeneidade
(diversidade) na formação contínua de professores.
Formação continuada, entendida como processo de apropriação
sistemática da cultura profissional, no contexto formal, que se orienta
para o desenvolvimento profissional e para a identidade profissional. A
formação continuada é mais que instrução ou aprendizagem de
conhecimento, pois inclui interesses, intenções, motivações, caráter,
capacidades, condutas, atitudes, valores, dentre outros que levam a um
novo estágio, qualitativamente diferente, no desenvolvimento
profissional. A formação continuada, portanto, está associada ao
desenvolvimento profissional. Essa associação não é só uma
possibilidade, mas sim uma necessidade, para se atingirem os objetivos
dos projetos de formação profissional. Dessa forma, constitui-se num
espaço de representação e construção da identidade profissional da
atividade de ensinar ciências.
De forma geral, podemos considerar que a formação continuada
é:
 um processo orientado para o desenvolvimento profissional,
estruturado a partir de necessidades formativas dos professores e da
escola, o qual deve promover a apropriação, a reconstrução de
211
saberes, de competências, de valores e atitudes, ressignificados no
interior do espaço da prática profissional. (É nesse espaço que o
conhecimento se faz conhecimento profissional);
 um processo que objetiva o desenvolvimento de competências para o
ensino de ciências, integradas ao compromisso político, à ética e à
autonomia intelectual;
 uma prática sócioprofissional produzida no contexto de uma cultura
profissional, dependente de vários fatores, tais como: as necessidades
individuais, as do grupo e as das instituições escolares às quais os
professores pertencem, das políticas educacionais, entre outras;
 um processo transcultural;
 uma prática que se desenvolve em espaços formais, orientada por
pressupostos explícitos (por vezes implícitos);
 uma oportunidade de aprendizagem e de desenvolvimento
profissional, de realização ou de frustração;
 uma atividade norteada por objetivos e motivos diversos, relacionada
às exigências das políticas educacionais. Essa relação não é sempre o
motivo fundamental, assim como não se apresenta numa relação
isomórfica com as necessidades formativas dos professores;
 um dos elementos do desenvolvimento profissional, pois os novos
saberes, as novas competências só têm sentido no contexto da
atividade profissional no qual se legitimam os mesmos;
 um elemento catalisador do profissionalismo. Uma melhor formação
deve levar à busca de melhores condições de trabalho, da estrutura e
organização da atividade profissional.
Nesse processo, devem ser integrados os conhecimentos
profissionais, as concepções, as atitudes e os valores da prática de
ensino, tomando-se como eixo da formação a Didática das Ciências,
pois as finalidades da educação científica e o conteúdo a ser ensinado
condicionam a ação docente e as estratégias de ensino.
A formação continuada deve estar relacionada com a formação
inicial. Como se têm discutido, a formação inicial prepara para o início
da atividade profissional na docência, e a formação continuada
potencializa o desenvolvimento profissional, subsidiando a
consolidação/reconstrução das identidades dos professores que
ensinam ciências. A formação continuada implica uma ação profunda

212
dos e sobre os professores, orientada para a transformação do ser e do
saber da profissão, com consequências positivas no contexto da escola.
OS FUNDAMENTOS PARADIGMÁTICOS DO MODELO
FORMATIVO DA FORMAÇÃO CONTINUADA DOCENTE
A formação docente deve-se fundamentar em pressupostos e
princípios de diferentes naturezas que, a modo de ―hipóteses de
progressão‖, norteiem esse processo. Para Zeichner (1993, p. 67), um
paradigma de formação de professores se constitui ―numa matriz de
crenças e supostos acerca da natureza e dos propósitos da escola, do
ensino, dos professores e de sua formação, que conformam práticas
específicas na formação do professorado‖.
O referencial emergente, identificado como o ―modelo
emergente da formação‖ Ramalho; Nuñez; Gauthier (2003), que vem
sendo assumido em nosso grupo de pesquisa, para se pensar de forma
crítica aquilo de que tratam as atuais políticas, conforma-se a partir das
contribuições teóricas seguintes:
a) a profissionalização da função docente é chave nos processos de
construção de novas identidades dos professores do ensino médio nos
contextos da atividade profissional. O estado da arte da educação em
Ciências mostra que o ensino de ciências é uma atividade profissional;
b) a profissionalização é resultado da dialética de duas dimensões:
a profissionalidade e o profissionalismo. A profissionalidade se
relaciona com o saber do professor, enquanto o profissionalismo com o
ser professor;
c) a convergência de referências ou modelos que se expressam
através de metáforas do professor identificado como reflexivo, investigador e
crítico. Essas referências convergem para o fazer profissional competente
do professor e são ferramentas para a sua formação continuada. Assim,
defendemos a ideia da convergência desses referenciais teóricos,
representada na figura 1.

213
Figura 1 - Convergência de perspectivas teóricas no modelo da formação
continuada.
Dessas dimensões, focaremos a atenção:
 na profissionalidade, associada aos saberes necessários para
ensinar ciências naturais;
 na reflexão, na pesquisa e na crítica como atitudes e estratégias
da formação continuada;
 no contexto da formação continuada, como dimensão do
profissionalismo;
 nos fundamentos epistemológicos da aprendizagem docente.
A PROFISSIONALIDADE E OS SABERES DOCENTES PARA
ENSINAR CIÊNCIAS
A profissionalidade diz respeito aos processos de produção dos
saberes e das competências profissionais. Nessa dimensão, centraremos
nossa atenção nos saberes para o ensino das ciências naturais.
O saber docente será compreendido aqui segundo os pressupostos
teóricos defendidos por Shulman (1986); Lessard; Lahaye (1991);
Perrenoud (1993, 1999); Therrien (1998); Tardif (1999), os quais o
consideram como uma categoria que permite focalizar as relações dos
professores com os saberes que dominam para poderem ensinar. Essas
214
relações são consideradas fundamentais para a configuração da
identidade e das competências profissionais.
Existem diferentes tipologias de saberes/conhecimentos
docentes relacionados à atividade profissional, segundo variados
autores. Utilizaremos a tipologia de saberes de Shulman que, apesar de
algumas críticas, são referências importantes para se compreender a
profissionalidade do professor de ciências naturais. Segundo o autor, os
conhecimentos profissionais para a docência são os seguintes:
a) Conhecimento do conteúdo, que é o conhecimento próprio da
disciplina. A formação continuada deve discutir o conhecimento da
disciplina, da sua estrutura, lógica e psicológica, as atualizações e os
avanços, assim como propiciar reflexões críticas em relação aos
conteúdos dos livros didáticos. Os professores devem ter um bom
domínio do conteúdo e dos problemas e processos que originaram
os conhecimentos científicos, assim como as relações entre Ciência,
Sociedade e Tecnologia. A formação continuada deve prestar
atenção à atualização do conteúdo disciplinar, de forma a fazer dos
conteúdos escolares uma proposta da ciência atual e prospectiva.
b) Conhecimento do currículo, que diz respeito ao domínio dos
programas e matérias dos projetos pedagógicos da escola. O
programa oficial da disciplina, articulado ao projeto pedagógico da
escola, às orientações curriculares, como os PCNEM, deve ser do
domínio dos professores, uma vez que ele norteia os processos de
ensino e aprendizagem. O domínio das discussões sobre o ensino
da Química, da Biologia e da Física, nos PCNEM, se constitui em
ferramenta essencial para o trabalho docente.
c) c) Conhecimento pedagógico geral, que inclui a Pedagogia, a
Didática Geral, a Psicologia da aprendizagem, entre outras
disciplinas. Esses conhecimentos se mobilizam como referentes
para teorizar, executar e justificar a prática, de forma geral e para se
organizar, planejar a prática de ensino de ciências, como também
para se refletir de forma crítica sobre ela. É importante enfatizar
que se devem adequar esses conhecimentos às especificidades da
natureza dos conteúdos das disciplinas científicas, uma vez que não
existe um enfoque único para o ensino das ciências;
d) Conhecimento dos aprendizes e de suas características. Esse tipo de
conhecimento possibilita ensinar segundo a heterogeneidade e a
diversidade que supõem os grupos de alunos, com diferentes estilos
215
e ritmos de aprendizagem, interesses, motivações, etc. É necessário
que o professor possa conciliar os interesses individuais com os
interesses do grupo na educação em ciências;
e) Conhecimento dos contextos - possibilita uma aproximação à
realidade da escola, dos alunos, para se pensar nas ações da
educação científica;
f) Conhecimento dos fundamentos, objetivos, fins e valores
educacionais - em especial as finalidades e o significado da
educação científica no ensino médio, atrelada às finalidades da
educação básica;
g) Conhecimento pedagógico do conteúdo. Inclui conteúdos de
disciplinas como Filosofia das Ciências, Epistemologia, Didática das
Ciências Naturais, História das Ciências. Shulman considerou o
conhecimento pedagógico do conteúdo, dentre as diversas
categorias de saberes, como a mais importante. Segundo ele,
[...] é uma categoria de saber que emerge da combinação entre o
conhecimento do conteúdo e a forma de ensiná-lo,
compreendendo as formas mais úteis de representação das
idéias, analogias mais importantes, ilustrações, exemplos,
explicações e demonstrações (Shulman, 1998, p. 8).
Em outras palavras, seriam as formas de representar e formular o
conteúdo de um modo tal que se torne mais compreensível para o
aluno. Dessa forma, o autor levantou uma importante questão didática,
embasada no estudo dos conhecimentos do professor sobre os
conteúdos e sobre como estes se transformam em conteúdos de ensino.
Para ele, no conhecimento pedagógico do conteúdo, estão incluídas
estratégias específicas para se ensinar um conteúdo dado, como o
ensino por analogias, demonstrações, experimentação, explicações e
problemas de aprendizagem. Essa categoria de saber é classificada como
um elemento essencial que diferencia um especialista de uma área de
conhecimento de um professor da área de conhecimento, ou seja, o
técnico do profissional em ensino de ciências.
Os saberes docentes constituem parte da base de conhecimentos,
como um componente da identidade profissional. Para Dubar (1991),
são quatro os saberes que estão ligados à configuração da identidade
profissional e às combinações de espaço-tempo, que estruturam a
identidade profissional. Dentre esses saberes, estão: os saberes práticos
que resultam da experiência, são estruturantes da identidade e baseados
216
numa dada lógica instrumental de um trabalho que tem que ser
remunerado; o saber profissional no qual se articulam os saberes
práticos e os técnicos como centro da identidade estruturada pelo ofício
ou tarefa; o saber da organização, dependente das estratégias
organizacionais específicas das instituições escolares, ligado à lógica da
responsabilidade, e os saberes teóricos, os quais estruturam um tipo de
identidade que proporciona autonomia intelectual.
A REFLEXÃO, A PESQUISA E A CRÍTICA COMO ATITUDES E
ESTRATÉGIAS DA FORMAÇÃO DOCENTE CONTINUADA
Como dissemos anteriormente, as diferentes reflexões críticas
sobre os modelos racionalista e academicista na formação de
professores e o contexto atual da formação exigem teorizações que
norteiam os processos de formação continuada. Diversos são os
modelos que contribuem para a profissionalização da docência.
Segundo Ramalho; Nuñez; Gauthier (2003), a reflexão, a pesquisa e a
crítica são três atitudes que integram a ação profissional e,
consequentemente, devem ser objeto e estratégia da formação
continuada.
A reflexão como estratégia formativa é caracterizada por Schön
(2000) de várias formas, e aponta para a reconstrução da prática
profissional, a partir da própria prática. Esse componente da formação
docente procura construir ―uma epistemologia da prática‖, ao
considerar a docência como uma profissão que se constrói na própria
prática. A reflexão da prática, na prática e sobre a prática possibilita a
conscientização sobre os processos de construção da atividade
profissional, características do trabalho desse novo professor.
Refletir é o processo pelo qual o sujeito examina seus pontos de
vista ―em e sobre‖. É pensar sobre algo que se vai fazer ou foi feito.
Esse processo pode direcionar a ação e examiná-la após a sua
realização. Dessa forma consideramos que a reflexão na formação
continuada não é só após e/ou durante a ação, é também antes da ação.
O agir competente exige do professor a capacidade de refletir sobre
suas escolhas, estratégias a fim de ter consciência do agir, com
possibilidades de justificar teoricamente esse agir.
Quando o professor planeja suas atividades, ele antecipa a ação,
de forma teórica, fundamentado nos conhecimentos da profissão.
Quando age, a reflexão profissional também se justifica teoricamente.
217
Refletir após a ação possibilita constatar e melhorar a prática, e é ponto
de continuidade na compreensão e na teorização crítica das novas ações
profissionais. A formação continuada deve oferecer aos professores
instrumentos de interpretação e análise da situação na qual eles
desenvolvem sua atividade como profissionais. Mas a reflexão é
também uma característica do trabalho científico, com o qual o
professor que ensina ciências deve estar familiarizado.
Refletir é pensar sobre o que se vai fazer, o que se faz ou o que
foi feito. A reflexão é a mudança de direção de um ato mental e,
especificamente de um ato intelectual pelo qual o ato original inverte a
direção do objeto e o volta para si mesmo. Para Talízina (1993), a
reflexão como característica da atividade supõe a revisão e a consciência
do saber fazer. Uma ação reflexiva permite a construção de um saber
fazer, de forma a se poder compreender o próprio saber fazer. Mas a
reflexão, por si só, é insuficiente quando se orienta para o
desenvolvimento profissional. A reflexão sem a crítica se torna limitada.
Como se tem discutido, a reflexão sobre a prática é insuficiente
quando não se orienta por novas referências que possibilitam uma visão
crítica da prática e quando não se dispõe de ferramentas metodológicas
para sistematizar os resultados das reflexões a fim de superar o que Gil
chama de "metodologia da superficialidade". Essa metodologia
apresenta as seguintes características:
 tendência a generalizar acriticamente, com base nas observações;
 observações geralmente não controladas;
 respostas rápidas e seguras, baseadas em evidências do senso
comum;
 raciocínio numa sequência causal e linear.
Na formação continuada, a reflexão crítica tem um papel
essencial a partir de campos disciplinares diversos, como a história e a
filosofia das ciências, a sociologia das ciências, as ciências cognitivas e a
psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento, a didática das
ciências, dentre outros.
A pesquisa, como atividade profissional, proporciona recursos
metodológicos para, junto à reflexão sobre a prática e da visão crítica,
avançar-se no desenvolvimento da profissão. Nessa perspectiva, a
pesquisa constitui também um objetivo da formação continuada, como
exigência da atividade profissional. Na formação continuada do
professor de ciências ela tem um duplo papel, como ferramenta, na
218
construção de conhecimentos profissionais e como saber fazer ciências,
para educar os alunos em relação à ciência.
No caso dos professores, superar a "metodologia da
superficialidade" supõe incorporar-se a pesquisa como componente da
formação continuada. A pesquisa como ferramenta da reflexão crítica
sobre prática contribui para a construção de novos saberes, para se
alcançar uma autonomia profissional, que se constrói no coletivo do
trabalho. Ela não está separada da reflexão sobre a prática, conforme
colocado, sobre a crítica da prática; ela é organizada em torno dos
problemas da prática, na qual os professores participam, numa atitude
de colaboração, de projetos de reflexão/pesquisa/crítica, sob a
assessoria de pesquisadores "experts" ou tutores.
A pesquisa, como ferramenta da reflexão crítica sobre a prática,
contribui para a formação de novos saberes assim como para se
alcançar a autonomia profissional. A pesquisa não se separa da reflexão
sobre a prática, na qual os professores participam, numa atitude de
colaboração, de projetos, de reflexão/pesquisa/crítica, sob a ação
mediadora de formadores tutores, no processo de construção de uma
autonomia do grupo. Ela se orienta também para a construção de uma
forma de debate em relação às experiências vividas e de outras
experiências de pesquisas, para se refletir sobre o trabalho profissional
dos coletivos, como categoria (levar o professor a discutir sobre o que
faz). (Nuñez; Ramalho, 2006).
Na formação continuada dos professores que ensinam ciências
naturais, a pesquisa como estratégia formativa se torna vital, nos
processos de aproximação à natureza da própria ciência e dos processos
de construção do conhecimento científico. Os professores de Física, de
Química, de Biologia devem ter um profundo conhecimento da
filosofia das ciências naturais, da epistemologia científica e dos
procedimentos do fazer ciência. Nos processos de ensino e
aprendizagem, eles devem mediar o trabalho experimental e prático dos
estudantes, educá-los em relação às ciências, o que supõe o ensino dos
procedimentos das ciências e a formação de atitudes positivas para as
ciências naturais.
A crítica, numa perspectiva mais ampla, é considerada como
uma atitude, uma forma de aproximação, reformulação e recriação da
realidade, na qual estão, como elementos básicos, o esforço para o
conhecimento da realidade e a superação das práticas iniciais, a
219
reconstrução de ideias próprias, tomando-se como referência os
resultados das pesquisas, os conhecimentos das disciplinas científicas
assim como as experiências próprias dos docentes. O pensamento
crítico se apresenta como a capacidade do profissional de analisar,
reelaborar e elaborar conteúdos, discursos, reflexões e experiências,
baseado em critérios explícitos que libertam e que emancipam, no
processo de desenvolvimento profissional.
Como explicam Ramalho; Nuñez; Gauthier (2004), a crítica se
constitui numa atitude que possibilita a (re)leitura da realidade
educativa, sob referências que possibilitem compreender e transformar
essa realidade educativa. Transformar a realidade educativa supõe a
superação de práticas exclusivas e reprodutoras no contexto da sala de
aula e clareza no papel que deve ter a escola como espaço de construção
de cidadania. O conteúdo da crítica que possibilita dimensionar o
sentido da ―transformação da realidade educativa‖ deve ser construído
pelos professores, como profissionais, a partir das diferentes referências
teóricas, a fim de criarem suas próprias ferramentas teóricas para o agir
crítico.
Para Freire (1996), a reflexão do professor sobre a prática não se
limita a uma teorização para explicar ou compreender a prática. Essa
reflexão deve ser ―crítica‖, como exigência da relação teoria-prática, sem
a qual a teoria pode virar um discurso ―vazio‖ e, a prática, mero
―ativismo‖.
Uma das tarefas essenciais dos projetos formativos é
compreender/construir o sentido da crítica como condição para
profissionalização dos professores no marco dos projetos pedagógicos.
A atitude crítica, ligada à reflexão e à pesquisa, supõe a reconstrução das
categorias pelas quais os professores explicam os fenômenos
educacionais, como processos sociais, políticos, econômicos,
ideológicos, complexos, na busca da superação de práticas educativas.
Dessa forma ela contribui para os projetos educativos que procuram
―transformar a sociedade‖ e, consequentemente, a escola, como
instituição da democratização de saberes, valores, atitudes que possam
contribuir para a formação cidadã dos alunos e dos próprios
professores, como profissionais em desenvolvimento. (Ramalho;
Nuñez; Gauthier, 2004).
O pensamento crítico é um pensamento que tem um propósito:
provar um ponto de vista, recriar o significado de algo, solucionar um
220
problema. Pensar de forma crítica implica acionar um conjunto de
habilidades mentais e atitudes, entre as quais estão incluídas:
interpretação, análise, avaliação, inferência, explicação e autorregulação.
Significa também poder explicar o que se pensa e explicitar como se
chega a um dado pensamento. É o que Galperin chama grau de
consciência como característica de uma habilidade dada. A formação se
desenvolve de forma consciente, quando tem como características a
reflexão, a crítica e a autorregulação das ações.
A reflexão, a pesquisa e a crítica são atitudes que a formação
continuada deve desenvolver como elementos da identidade do
professor que ensina ciências, numa educação em ciências que exige
atitudes essenciais não apenas do ponto de vista da docência como
também das ciências naturais e de seu ensino. Uma educação científica
exige essas atitudes.
OS FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS DA APRENDIZAGEM NA
FORMAÇÃO CONTINUADA DOS PROFESSORES DE CIÊNCIAS
NATURAIS
A aprendizagem dos professores implica na mudança de
conhecimento, habilidades, condutas, experiências no processo de
aperfeiçoamento das suas competências profissionais, para a integração
de elementos que configuram e reestruturam suas identidades e seu
desenvolvimento profissional, face às novas necessidades, e aos novos
motivos e perspectivas. A aprendizagem é favorecida pelos processos
que facilitam a reconstrução crítica sobre a prática a partir das
experiências anteriores e por vezes contra elas. A aprendizagem dos
professores se ativa em face de situações-problema que criam motivos,
necessidades, interesses sócioafetivos em busca de novos recursos para
o desenvolvimento das competências profissionais. Essas situações-
problema criam necessidades e motivações para a formação, associadas
às demandas do contexto da atividade profissional.
A formação continuada do professor de Ciências Naturais se
produz no marco teórico da aprendizagem, nas perspectivas da teoria
Histórico-Cultural de L. S. Vigotsky, a Teoria da Atividade de A. N.
Leontiev e da Teoria da Assimilação das ações mentais de P. Ya.
Galperin. Esse marco teórico procura uma alternativa, diferenciada do
―Construtivismo clássico‖, uma vez que a aprendizagem não é
considerada como uma atividade individual do professor com o objeto
221
do conhecimento, na construção de novas representações sobre a
atividade profissional.
Esse enfoque permite pensar-se a aprendizagem como um tipo
específico de atividade, dirigido à apropriação da cultura profissional do
ensino de ciências. Supõe uma atividade, como práxis, ou seja, uma
atividade que transforma não só o objeto do conhecimento como
também o professor como sujeito dessa atividade. Nesse processo,
devem ser criadas Zonas de desenvolvimento Proximal (ZDP) para que
os professores avancem de formas de aprendizagem cooperativas para a
autonomia intelectual, com forte implicação no desenvolvimento
profissional. As novas aquisições intelectuais, volitivas, atitudinais e
éticas possibilitam outras ZDPs, num movimento, em espiral dialética,
de formação continuada.
Reconhecemos que os professores de Química, de Física e de
Biologia, como docentes, possuem crenças, ideias, concepções,
conhecimentos, atitudes sobre as ciências naturais, sobre o ensino e
sobre a sua aprendizagem que são resultado de vários fatores, em
especial, de suas experiências durante muitos anos como professores do
ensino médio. A formação continuada deve questionar de forma crítica
essas referências e contrastá-las com os saberes da ―base de
conhecimento da profissão para o ensino de ciências‖. Esse
questionamento supõe a ―superação dialética‖ dessas ideias, em função
das necessidades e motivações para uma formação continuada atrelada
ao contexto do exercício da prática profissional.
A aprendizagem dos professores deve basear-se em conteúdos
significativos que lhes possibilitem construir saberes e desenvolver
atitudes e valores sobre a sua prática profissional, num processo
sustentado na experiência e na prática, na qual os saberes são
mobilizados (Ramalho; Nuñez; Gauthier, 2000) sob as condições das
suas necessidades, expectativas, interesses, etc. É fundamental, na
aprendizagem do professor, passar-se do caráter declarativo e implícito
dos conhecimentos procedimentais a conhecimentos explicativos e
explícitos (esses últimos formam, dentre outras referências, a base de
conhecimento da profissão), de forma tal que se desenvolva a
capacidade de teorizar a prática, como elemento das competências para
o ensino.
Os processos de aprendizagem dos professores acontecem na
interação com os outros, no contexto de projetos pessoais e do grupo,
222
nos quais aparecem múltiplos fatores. São processos mediados pelos
formadores e por ferramentas (materiais ou simbólicas). As nossas
experiências de trabalho de formação com professores nos ajudam a
assinalar outras características desse processo, tais como:
 os interesses e necessidades, no grupo, são heterogêneos, embora se
observem e possam ser negociados objetivos comuns. Isso implica a
diversificação de estratégias formativas;
 Existe uma grande preocupação com o fracasso, e com o erro,
porque os docentes aspiram sempre ao sucesso na realização de cada
tarefa. A desconstrução do saber, por vezes, implica ―violências
simbólicas‖ para os professores;
 a experiência que os professores têm é a referência inicial para a
(re)leitura da prática. Essa experiência, por vezes, frustra a
intencionalidade da aprendizagem;
 quando motivados, eles têm uma maior concentração, o que facilita a
aprendizagem. Essa motivação tem uma forte relação com as
necessidades formativas;
 a preferência pelo trabalho em grupo, é uma forma de se validarem
suas experiências e novos saberes em espaços que possibilitem
compartilhar-se o processo;
 os interesses profissionais de formação também estão ligados a
interesses de ascensão e de valorização profissional;
 há susceptibilidade à fadiga e ao cansaço em horários noturnos e nos
últimos dias da semana;
 as representações que os professores têm sobre sua formação e sobre
a atividade profissional influenciam a aprendizagem. Dessa forma,
devem-se promover reflexões críticas sobre essas representações da
aprendizagem e da formação.
Na aprendizagem dos professores é necessário prestar-se atenção
a suas características específicas por se tratar de adultos, que têm uma
experiência no exercício do ensino.
Pintrich (1975, apud Marcelo, 1992, p. 102) tem enumerado
particularidades do desenvolvimento cognitivo das pessoas adultas que
podem contribuir para explicar a necessidade de se prestar atenção à
diversidade na aprendizagem dos professores que ensinam ciências.
Dentre essas particularidades, podemos citar:

223
 o desenvolvimento é um processo que se produz ao longo de toda a
vida não está limitado a certas idades;
 o desenvolvimento pode ser qualitativo ou quantitativo;
 o desenvolvimento é multidimensional, pois as mudanças acontecem
em muitas dimensões: biológica, social e psicológica;
 o desenvolvimento é multidimensional, na medida em que podem
existir diferentes modelos e trajetórias para atingi-lo,
independentemente das dimensões e do indivíduo;
 o desenvolvimento está determinado por muitos fatores;
 os indivíduos são sujeitos que constroem e organizam ativamente
suas próprias histórias pessoais, de forma que o desenvolvimento
não é só função dos diferentes acontecimentos pelos quais passa, e
sim de um processo dialético entre os múltiplos fatores ambientais e
a construção pessoal que os sujeitos fazem desses fatores.
OS CONTEXTOS DA PRÁTICA PROFISSIONAL COMO ESPAÇO E
COMO DIMENSÃO DO PROFISSIONALISMO
As necessidades formativas estão associadas a insatisfações dos
professores em relação a sua atividade profissional. As novas exigências
para a educação científica dos estudantes do ensino médio podem gerar
contradições relativas ao saber fazer, com segurança. Essas contradições
podem ser um forte estímulo às mudanças e à busca de novos estágios
do desenvolvimento profissional. Mas essas insatisfações, por vezes,
mais que estimular mudanças, provocam frustrações nos professores.
Dessa forma, a escola deve gerenciar as contradições de forma a
transformá-las em motivos para a formação docente.
A cultura docente, no ensino médio, tem se caracterizado pela
balcanização dos saberes. A estrutura disciplinar do trabalho e da
identidade docente é uma marca nesse nível de escolaridade. Assim, os
professores se identificam com a disciplina que ensinam, seja Biologia,
Física, Química. O ressurgimento da ―ideologia do profissionalismo‖ se
orienta para a construção de uma autonomia docente, resultado de
ações de colaboração entre os docentes. Essa situação deve ser uma
diretriz nos processos de formação continuada na escola, no intuito de
atender as necessidades específicas dos professores das disciplinas, no
diálogo construtivo e necessário com os professores das outras
disciplinas e das áreas de conhecimentos.

224
Devemos considerar que as necessidades formativas surgem no
contexto do exercício da atividade profissional. Como princípio, a
escola na qual se trabalha deve ser o ―lócus‖ a privilegiar para a
formação continuada, articulada ao desenvolvimento das competências
expressas e necessárias ao desenvolvimento profissional. Esse contexto
e suas problemáticas, das quais emergem as necessidades formativas,
são fatores decisivos na aprendizagem dos professores. A importância
de se considerarem os contextos nos leva a prestar atenção à
diversidade de necessidades, expectativas, desejos, etc. dos professores.
Os contextos são os espaços nos quais a formação se torna
objetiva, uma vez que neles é onde se significam os sentidos dos saberes
e se desenvolvem as competências, valores, motivações, etc.
O contexto da atividade profissional se configura em diversos
espaços/tempos, entre os quais a escola ocupa um lugar privilegiado.
Pertencem a esse contexto: a escola, as associações profissionais, as
associações científicas, o sindicato, as agências formadoras, dentre
outros. Esses espaços devem colaborar para a formação continuada dos
professores.
A formação centrada na escola, como uma dimensão do contexto
da atividade profissional, deve articular-se com uma forte rede de
formação oferecida em diferentes modalidades, tais como:
 as redes nacionais e internacionais para a formação continuada dos
professores das ciências, nos espaços virtuais. Os professores de
ciências devem estar organizados em redes multidisciplinares de
pesquisa tanto local, como regionais, nacionais e internacionais como
espaços de reflexão crítica sobre a atividade de ensino de ciências;
 os cursos oferecidos pelas universidades, que devem responder às
exigências dos projetos de formação das escolas;
 os cursos oferecidos nos congressos e eventos científicos;
 espaços no quais os professores tenham acesso a revistas, anais de
eventos e congressos sobre o ensino das ciências naturais;
 as associações profissionais de professores do ensino médio devem
orientar-se para propiciar espaços de formação continuada, assim
como os sindicatos devem ter essa preocupação, e participar da
organização e da oferta de atividades formativas;
 uma ampla oferta de formação continuada, em diferentes
espaços/tempos, à qual os professores possam ter acesso.

225
A escola, como contexto de formação, deve redefinir sua cultura
escolar, que inclui a reorganização dos espaços e tempos, os tipos de
gestão, a colaboração - como estratégia de relação entre os professores e
como filosofia de trabalho -, a reflexão crítica e a pesquisa como
dimensões da atividade profissional. A escola, como lócus da formação
implica a construção de uma nova cultura da docência. A formação na
escola se realiza na dinâmica da intencionalidade de projetos de
desenvolvimento profissional dos professores, para uma melhor
educação em ciências. Assim, não se pode associar a formação à prática
cotidiana, mediada pela rotina e pelos hábitos.
As novas formas de se pensar a formação continuada dos
professores de ciências devem acontecer sob novas formas de
organização da atividade docente. É ingênuo pensar-se em mudanças
no ensino, conservando-se a cultura atual das escolas.
Considerar as necessidades formativas que emergem do contexto
da atividade profissional exige considerar-se não só o presente, mas
também as perspectivas de desenvolvimento da educação em ciências, e
da própria dinâmica da profissão docente. A formação continuada não
deve ser consequência absoluta das reformas educacionais ou de
carências da formação inicial. Ela deve antecipar-se e influir nas
Reformas e na reformulação da própria formação inicial.
ALGUMAS REFLEXÕES FINAIS. PARA SE PENSAR A FORMAÇÃO
CONTINUADA
A modo de conclusão podemos sistematizar alguns princípios
que consideramos básicos na formação continuada dos professores de
ciências:
 a unidade dialética entre atividades de formação e problemas da
atividade profissional, mediada pelas necessidades de formação;
 a formação continuada como agente do desenvolvimento profissional
e a configuração de identidade profissional;
 o isomorfismo entre a formação continuada e o exercício da
profissão. A formação continuada, em função de seus propósitos e
formas de trabalho, deve ter uma relação isomórfica com o contexto
do exercício da atividade profissional, ou seja, deve contribuir para o
desenvolvimento das competências, atitudes e valores docentes, deve
ser interdisciplinar, baseando-se em trabalho em situações-problema,
em estratégias de aprender a aprender, de forma contextualizada, com
226
uma reflexão crítica sobre a epistemologia docente que respeite as
particularidades da aprendizagem de adultos;
 o vínculo indissociável entre o cognitivo e o afetivo, da personalidade
do professor, como profissional, como pessoa. O professor aprende
não só para acumular conhecimento, informações, mas também para
melhorar a condição de professor profissional. A formação
continuada tem impacto da esfera socioafetiva do professor, como
sujeito que tem uma história de vida, sentimentos, valores, atitudes. O
agir profissional é valorativo, ético, intencional. O sucesso desse agir
profissional não depende só de se ter conhecimento, informações,
mas também da disposição, da orientação, a mobilização de forças e
energias para se trabalhar segundo os objetivos propostos. O afetivo
representa os elementos psicológicos complexos, que expressam a
dimensão indutora da personalidade, como regulação e
autorregulação. Como explica Day (1999) a mudança é um assunto da
cabeça, mas também do coração. Dificilmente acontecerão mudanças
se os professores não se envolverem afetivamente e se não
contribuírem para a satisfação pessoal no trabalho. As mudanças
exigem prestar-se atenção à dimensão pessoal do professor.
 a flexibilidade que dê conta do caráter sistêmico da formação como
sistema aberto a novas condicionantes externas e internas, resultante
das mudanças inerentes ao desenvolvimento dos sistemas educativos
e da profissão docente;
 a socialização das experiências, dos saberes, como possibilidade de
contribuir com a construção coletiva da profissão, respeitando a
autonomia e o coletivo, nas suas interações diversas. Considerar os
conhecimentos sobre como os professores como adultos aprendem e
como e por que utilizam os novos recursos da formação, no seu
desenvolvimento profissional. Essa estratégia contribui para a
sensibilização como forma de aprendizagem colaborativa, que se
oriente para a autonomia. Reconhecemos que a autonomia intelectual
do professor é um dos resultados da formação;
 a formação continuada é um processo a longo prazo. Geralmente não
acontecem mudanças imediatas, pois elas implicam na reconstrução,
reformulação e às vezes até no abandono de situações estereotipadas,
de ideias e concepções consolidadas no pensamento docente, as quais
não mudam com facilidade. Dessa forma, devemos prestar atenção
aos processos que: a) fornecem ―receitas‖ sobre o ensino, b) são de
227
caráter fragmentado, orientados para soluções provisórias, c) geram
discursos renovadores que mascaram o saber fazer argumentado.
É importante lembrar a advertência de Ferry: mais formação não
implica necessariamente melhores profissionais.
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228
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ZEICHNER, K. M. A formação reflexiva de professores: idéias e práticas.
Lisboa: Educa. 1993.

229
EAD NO ENSINO DE BIOLOGIA: O ENSINO SEMI-
PRESENCIAL COMO ALTERNATIVA?

Marcelo Brito Carneiro Leão1


A realidade atual de nossas escolas demonstra uma completa
dissociação entre os seus diversos ambientes de aprendizagem. A sala de
aula é distante, fisicamente e metodologicamente, dos outros ambientes
de aprendizagem, como os laboratórios experimentais, os audiovisuais e
os de multimídia. A ―nova‖ sala de aula terá de ser multisensorial,
dinâmica e, principalmente, permitir uma maior interação entre
professor-aluno, aluno-aluno. Talvez consigamos este objetivo, se
tivermos em um mesmo espaço, recursos que permitam ao aluno
trabalhar em grupo, utilizando-se dos diversos instrumentos que ajudam
na mediação pedagógica, como por exemplo, o vídeo, o computador, os
equipamentos experimentais.
O grande desafio que deveremos enfrentar nos próximos anos,
residirá em trilhar caminhos dentro destes novos ambientes que
redundem em uma aprendizagem significativa para nossos alunos. Os
nossos cursos terão que incorporar formatos novos que permitam que o
processo de ensino-aprendizagem seja construído de maneira síncrona e
assíncrona, com maior liberdade de interação, associando formas
multissensoriais de aquisição das informações.
Neste sentido é importante analisar, que não podemos utilizar
estes novos formatos apenas em momentos presenciais. A distância,
apesar de não ser em si educativa, permite uma extensão maior dos
momentos importantes para a aprendizagem. Em síntese, será
imperativo que os cursos caminhem para um formato semipresencial,
permitindo ao aluno ampliar, além do momento em sala de aula, a
interação entre ele e o professor, bem como entre ele e outros colegas.
Esta ampliação poderá acontecer com a interação entre os
multiambientes escolares com outros ambientes extra-escolares, como a
nossa casa, o nosso trabalho, através principalmente dos recursos de
redes informáticas.

1Programa de Pós-Graduação em Ensino das Ciências - Departamento de Química,


UFRPE.

231
O FRACASSO DO E-LEARNING
Depois do entusiasmo inicial, o e-learning ou como conhecemos
no Brasil ―ensino a distância‖, vivemos hoje um processo de relativa
frustração traduzida numa crescente redução no número de matrículas
nos cursos a distância, bem como em uma porcentagem reduzida de
alunos que repetem cursos neste formato. Segundo a Asociación de
Proveedores de e-Learning (APeL) da Espanha, está ocorrendo uma
paralisação dos grandes projetos e dos investimentos em infra-estrutura
voltados para o ensino a distância, tendo como consequência o
abandono por parte das empresas do formato de formação
exclusivamente on-line.
ENSINO SEMIPRESENCIAL
Como alternativa ao ―fracasso‖ da modalidade exclusivamente a
distância, tem surgido nos últimos anos um novo conceito com força
no âmbito da formação, o chamado ―Blended Learning‖. Literalmente
poderíamos traduzi-lo como ―aprendizagem mesclada‖ ou ―ensino
semipresencial‖. Não podemos mais acreditar no processo de ensino-
aprendizagem com hora e local predeterminados. Necessitamos ampliar
nossas estratégias didáticas por meio da proposição de novos recursos
que possam ser utilizados neste novo contexto de ensino
semipresencial.
Por fim, a discussão da importância dos novos ambientes de
aprendizagem terá que ser revista e ampliada da mera discussão e análise
das novas ferramentas incorporadas ao processo de ensino-
aprendizagem, para uma proposta de uma ―Escola‖ multilocal e
multitemporal. Não podemos mais conceber uma proposta escolar, por
mais paradoxal que seja, onde somente o prédio de uma escola detenha
a primazia do processo de ensino-aprendizagem. Busquemos um
processo de aprendizagem que se dê ―em qualquer lugar e em qualquer
momento‖.

232
ALGUMAS SUGESTÕES DE ESTRATÉGIAS PARA O ENSINO
SEMIPRESENCIAL EM CIÊNCIAS.

HIPERMÍDIAS

Figura 1 - Hipermídia Cinética Química

A hipermídia Cinética Química (figura 1) foi desenvolvida para


auxiliar no processo de ensino e aprendizagem onde o assunto
envolvido é Cinética Química. Foi levado em consideração como seriam
abordados os textos, as figuras, as simulações, gráficos, filmes e sons a
serem utilizados nas multimídias de forma a estimular o aluno a
construir a sua aprendizagem. A interação com o usuário foi uma
questão de fundamental importância na elaboração da hipermídia. Ela
foi elaborada para permitir ao usuário manipular através do mouse do
computador e através dos botões e links, várias opções e animações que
o ajudam a visualizar e experimentar virtualmente como se realizam os
processos na Cinética Química.

Figura 2 - Hipermídia Modelos Atômicos

A Hipermídia ―Modelos Atômicos‖ (figura 2) foi atrelada aos


aspectos pedagógicos que envolvem a construção de uma multimídia a
partir das características principais da Teoria da Flexibilidade Cognitiva.
A partir do tema Modelos Atômicos foram abordados, desde o modelo
filosófico do átomo, passando pelos modelos científicos de Dalton,
233
Thomson, Rutheford, Bohr, até o modelo matemático atual. Cada
modelo teve uma imagem representativa das ideias gerais apresentadas
nestes modelos. Esta escolha teve como intuito usar a imagem na
construção dos modelos mentais iniciais por parte dos alunos.

Figura 3 - Hipermídia Eletrólise

A hipermídia ―Eletrólise‖ (figura 3) foi planejada para atingir


estudantes do ensino médio e estudantes do ensino superior. A partir
do tema Eletrólise, foram abordadas a definição de eletrólise e sua
classificação (Aquosa e Ígnea), destacando exemplos de cada uma. A
interação com o usuário foi uma questão de fundamental importância
na elaboração da hipermídia. A figura destaca a hipermídia sobre
eletrólise, os menus dão acesso a outras partes dela, permitindo a
navegação do aluno mediante sua capacidade cognitiva.
ESTRATÉGIA WEBQUEST
WebQuest são atividades preparadas pelos professores para serem
―resolvidas‖ pelos alunos na Web. Idealizada por Bernie Dodge e Tom
March, a estratégia webquest é definida pelos autores como ―uma
atividade orientada para a pesquisa em que algumas, ou todas as
informações com que os alunos interagem provêm de recursos na
Internet‖

Figura 4 - Webquest “remédio amargo”

234
O nome da WebQuest ―Remédio Amargo‖ (figura 4) nasceu a
partir do livro do autor Britânico Arthur Hailey, best seller lançado nos
anos 70, de onde partiram os conteúdos e atividades incorporados à
WebQuest. A mesma encontra-se disponível na Internet no endereço
http://remedioamargo.vilabol.uol.com.br, onde encontramos a
estrutura da WQ disposta da seguinte forma: ao lado esquerdo da figura
temos um menu de opções com links para a Introdução, Processo,
Tarefas, Recursos, Avaliação, Conclusão e Créditos. Ao centro, público
alvo destinado e nome dos professores envolvidos no projeto e suas
respectivas disciplinas. Ao lado direito da tela links para instituições
sociais que atendem portadores de deficiências físicas. Os links são para
Associação de Assistência a Criança com Deficiência (AACD) e
Associação Brasileira de Portadores de Síndrome de Talidomida
(ABPST). Os links para essas instituições eram importantes visto que as
mesmas trabalham com pessoas portadoras de necessidades especiais,
tema que também seria abordado na WebQuest.
ESTRATÉGIA FLEXQUEST
A FlexQuest é uma modificação da estratégia webquest para níveis
avançados e complexos do conhecimento, dentro de uma perspectiva
construtivista, a partir da incorporação da Teoria da Flexibilidade
Cognitiva (TFC) em sua estrutura.

Figura 15: Tela principal da


FlexQuest ―Remédio Amargo‖
Figura 5 – Estratégia Flexquest “remédio amargo”

A FlexQuest tem como princípio norteador uma teoria de ensino


e aprendizagem chamada de Teoria da Flexibilidade Cognitiva (TFC)
baseada em casos e mini-casos existentes na Internet e não de
explicações e interpretações sobre conteúdos. A mesma encontra-se
disponível na Internet no endereço http://paginas.terra.com.br
235
educcao/flexquest, onde encontramos a estrutura da FQ disposta da
seguinte forma: ao lado esquerdo da figura temos um menu de opções
com links para a Introdução, Recursos, Processos, Tarefas, Avaliação,
Conclusão e Créditos. Após os botões do menu, logomarca e link da
instituição AACD. Ao centro, público alvo destinado e nome dos
professores envolvidos no projeto e suas respectivas disciplinas. Acima,
links para os diversos casos onde os alunos irão navegar (caso 1, caso 2,
caso 3, caso 4 e caso 5).
ESTRATÉGIA PODCASTING
O termo ―podcasting‖ apareceu como o acrônimo das palavras
em inglês ―public on demand‖ (demanda de público) e ―cast‖ (molde).
Esta é a ideia geral de um podcasting: uma emissão pública
―descarrregada‖ segundo uma demanda. Trata-se inicialmente de áudio
que se pode escutar com qualquer reprodutor compatível com vários
formatos existentes: mp3, ogg, wma etc. Um equívoco comum é
acreditar que a palavra foi criada pela Apple a partir da combinação das
palavras iPod e broadcasting. Isto não é verdade, pois os podcasts já
existiam antes dos iPod‘s. Um podcast é parecido com uma espécie de
subinscrição a uma revista em áudio que podemos receber através da
Internet. Seus conteúdos podem ser extremamente diversos. Podemos
escutar um podcasting a partir de programas especiais que lêem
arquivos de índices, descarregam música e as transferem
automaticamente a reprodutores mp3. Também se pode escutar um
podcasting diretamente de um computador, ou copiá-lo para CDs a
partir dos arquivos mp3 e ogg. Outras ferramentas podem ser utilizadas
para se escutar um podcast como: Odeo, Doppler, Juice e iTunes
(Apple).

Figura 6 - Podcasting Pilhas Eletrolíticas


236
No início do podcasting ocorre um momento de apresentação, em
que os apresentadores buscam interagir com o ouvinte. Após a
apresentação é dado um breve esclarecimento sobre pilhas
eletroquímicas, que é o estudo das relações existentes entre os
fenômenos elétricos e as reações químicas, sendo introduzido o
conceito de reações de óxido-redução (figura 6). No podcasting é
mostrada, passo a passo, a montagem de uma pilha eletroquímica. Este
podcasting, por usar materiais simples, pode ser reproduzido pelo usuário.
Devemos salientar que além de conter textos explicativos sobre os
experimentos realizados proporcionando uma melhor compreensão, o
podcasting conta com uma trilha sonora regional que o torna mais
interativo, dinâmico e agradável ao usuário. Nele foram feitas imagens
com vários ângulos de um mesmo experimento, possibilitando ao
usuário uma boa visualização, destacando as etapas dos experimentos,
proporcionando ao usuário a reprodução do mesmo com melhor
precisão. Este podcasting pode ser facilmente visualizado na Internet,
podendo ser baixado diretamente no computador através de diversos
agregadores, sendo reproduzido também em celulares, mp4, ipod e
outros formatos.

Figura 7 - Podcasting Reações de Síntese e decomposição

No início do podcasting ocorre um momento de apresentação,


buscando uma maior interação com o ouvinte de forma dinâmica. Após
a apresentação é dado um breve esclarecimento sobre reações químicas,
seus tipos (tipos de combustão: simples troca, dupla troca,
decomposição, síntese, dentre outros) e como identificá-las no dia-a-dia
(pela mudança de coloração, liberação de gás, formação de precipitado,
237
etc.). Neste podcasting foram mostrados dois tipos de reação: a de síntese
e de decomposição, no qual antes do experimento é falada a definição
desses dois tipos de reação. O podcasting conta com uma trilha sonora
regional que o torna mais interativo, dinâmico e agradável ao usuário.
Nele foram feitos inserts (imagens com vários ângulos) de um mesmo
experimento, possibilitando ao usuário uma boa visualização,
destacando as etapas dos experimentos e proporcionando ao usuário a
reprodução do mesmo com melhor precisão (figura 7).
BLOG
O Blog ―Uma conversa sobre coisas da Química‖
(http://marceloufrpe.blogspot.com) tem por objetivo trazer diversas
curiosidades da química no nosso cotidiano, muitas vezes não
encontradas em livros didáticos, como por exemplo: "Por que a água
esfria em um pote de barro?‖ ou "Esqueci a cerveja no congelador e ela
estourou!‖. O blog traz postagens semanais sobre temas da Química e do
Ensino da Química. Além disso, cada postagem vem acompanhada de
um Vídeo sobre o respectivo tema e um artigo científico selecionado
pela equipe, cujo objetivo é o aprofundamento pelo aluno do tema
proposto.
AMBIENTES VIRTUAIS DE APRENDIZAGEM

Figura 8 - Portal Interativo do Núcleo SEMENTE

O Portal SEMENTE (www.semente.pro.br) abriga informações


sobre o núcleo SEMENTE (Estrutura física, consultorias, materiais
didáticos), projetos como o Quimicasting (disponibilização de
podcastings de química), Webquests, SEMENTE móvel (que
disponibiliza materiais para dispositivos móveis), acesso a blogs
(cadastrados no portal) que envolvem o ensino de química, fórum
238
SEMENTE (contendo discussões sobre diversos temas), descrição de
materiais multimídias (hipermídias de Química e Ciências) e meios de
ensino com uso das TIC. O Portal SEMENTE conta com um ambiente
virtual chamado ―Portal SEMENTE Interativo‖ caracterizado por
transformar o espaço físico do Núcleo SEMENTE num sítio
totalmente interativo, repleto de recursos, e cadastro de todos os
usuários deste núcleo, via Internet, de maneira simples e objetiva (figura
8).
CONCLUSÕES
Para finalizar gostaríamos de deixar algumas questões para
reflexão: As TICs e os cursos semipresenciais necessitam de novos
professores de ciências? Os professores de ciências podem ser
desenvolvedores de multimídias e de cursos semipresenciais? Qual o
melhor modelo: presencial, a distância ou semipresencial?
Em relação à primeira questão, acreditamos ser imperiosa a
incorporação, nos cursos de formação de professores, da discussão da
adequada utilização das TICs na educação e, como consequência, da
formação de docentes que possam mediar nestes novos ambientes. Por
outro lado, esta nova concepção na formação de professores permitirá
ao docente elaborar materiais e estratégias didáticas mais adequadas a
este novo contexto educacional. Por fim, cremos que a definição do
modelo a ser utilizado em um determinado curso deverá levar em conta
as características próprias do contexto no qual o mesmo esteja inserido,
porém buscando uma forma em que o processo de ensino-
aprendizagem seja o mais amplo possível, sem barreiras de tempo e
espaço físico.

239
ENSINO A DISTANCIA (EAD) EM BIOLOGIA: O ENSINO
SEMI-PRESENCIAL COMO ALTERNATIVA?

Severino José Bezerra Filho1


INTRODUÇÃO
No Brasil, o acesso ao conhecimento, tanto no nível básico
quanto no nível superior, é garantido pela Carta Magna, a Constituição
Federal de 1988, em seu artigo 208. Ela determina que seja dever do
Estado propiciar educação de boa qualidade para todos os brasileiros,
independentemente de onde se encontrem, quais sejam o seu status
econômico e as suas crenças religiosas, políticas e culturais. Assegura,
ainda, o direito ao conhecimento a todos aqueles que portem quaisquer
necessidades especiais por serem portadores de deficiência (Brasil,
1988). No entanto, tal Constituição existe há 20 anos e ainda não se
conseguiu aplicá-la integralmente.
Temos assistido, nos últimos anos, uma tentativa audaciosa de
democratizar o ensino superior, a partir de um processo de
interiorização das universidades públicas, em vários estados brasileiros.
Em Pernambuco, a UPE (Universidade de Pernambuco) é pioneira
nesse processo de interiorização, pois há mais de quarenta anos, quando
ainda era Fundação de Ensino Superior de Pernambuco (FESP),
instalou-se em Nazaré da Mata, Garanhuns e Petrolina, já reconhecendo
sua missão social.
A implantação da nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) tornou
obrigatório o nível superior para todos aqueles que exerçam o
magistério (Brasil, 1996; Saviani, 1997). Com o propósito de ajudar a
cumprir o determinado nos seus artigos 62 e 63, a UPE decidiu instalar
polos presenciais, a partir de suas faculdades de formação de
professores, criando um Programa Especial de Graduação em
Pedagogia (PROGRAPE). Com esta iniciativa, a UPE passou a atender
mais de 120 municípios, em um verdadeiro processo de interiorização
do ensino superior. Tal processo iniciou-se em 1999 com o objetivo de
atender os quarenta e dois mil professores que já se encontravam em
sala de aula, porém, sem habilitação. Desde então, a UPE já formou,
aproximadamente, treze mil professores em Pedagogia e espera chegar

1 Núcleo de Estudos em Educação a Distância (NEED) ([email protected])


241
aos vinte mil professores formados até 2010, quando deve encerrar o
projeto.
Em 2004, com a intenção de ajudar a resolver outra lacuna
existente no magistério, mais uma vez, em atitude pioneira, a UPE
concorreu ao Edital do Ministério da Educação e Cultura (MEC) para
implantação de cursos superiores a distância. Consorciando-se com
outros estados do Nordeste, como membro da UNIREDE, a UPE
abriu um curso de Licenciatura em Ciências Biológicas a distância.
Inicialmente foram implantados seis polos que, em um segundo
momento, em convênio com o Governo do Estado, foram ampliados
para dez. Nove deles estão em Pernambuco e um, em Campina Grande.
Além disso, foram implantados mais quatro cursos em parceria com a
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN): Licenciaturas
em Física, Matemática e Química e Administração de Empresas para
funcionários de bancos estatais. Estava iniciada uma nova modalidade
de ensino no Estado de Pernambuco.
DADOS DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Como já mencionado, a Constituição de 1988 garante que o
acesso ao conhecimento seja direito de todos. No entanto, dez anos
após ser promulgada, o percentual de estudantes no ensino superior
estava em torno dos 9%. Vinte anos depois, essa taxa é de 12,1% para
estudantes dos 18 aos 24 anos, muito distante ainda, da meta dos 30%,
em 2011. Enquanto na região Sul, a taxa de escolarização superior fica
no patamar dos 17,1%, no Nordeste essa taxa cai para abaixo dos 7%.
O crescimento registrado acima, embora ainda muito tímido, teve uma
grande aliada nos últimos anos: a educação a distância. Embora
signifique apenas 4,4% do total de alunos da educação superior, a
educação a distância cresceu em torno dos 315% entre 2003 e 2006.
Enquanto isso, o número de cursos a distância, somente em 2006,
cresceu a uma taxa de 571%, segundo censo da Educação Superior
divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP) (Brasil, 2007). Mas, o que significam mesmo
estes dados? Significam que a educação a distância, no Brasil, possui um
importante papel a cumprir, uma vez que se trata de um país
continental, com grande diversidade. O processo de interiorização das
universidades federais que vem sendo implementado pelo Governo
Federal, certamente, não será suficiente, pois seriam necessários muitos
242
anos para alcançar todos os brasileiros que desejam chegar à
Universidade. Assim, a EAD parece ser uma importante alternativa para
minimizar tal situação-problema.
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA NO ENSINO DE BIOLOGIA
A EAD não é uma modalidade de ensino recente. Há registros de
que, no Brasil, essa atividade tenha se iniciado já no início do século
XX, portanto, mais ou menos na mesma época em que surgiu nos
países ocidentais (FRANCO, 2006). Países de vários continentes têm
investido em EAD, como uma possibilidade de democratizar a
educação de modo mais rápido e com menor custo. (Preti, 2000; Lobo
Neto, 2001). No Brasil, fala-se na quarta geração da EAD: a primeira
geração representa a era dos cursos por correspondência; a segunda está
associada às Universidades Abertas; a terceira vincula-se aos cassetes de
vídeos e à televisão; a quarta associa-se às novas tecnologias:
computadores multimídias, interatividade e ―e-Learning‖ (Mundim,
2006). A partir de 2003, surge a proposta da Universidade Aberta e a
Distância, através de edital de chamada pública convocando as
universidades públicas. Tais ações inspiraram os programas Pró-
Licenciatura I e II (Franco, 2006) que tiveram como principal objetivo
habilitar professores em serviço, sem dúvida um dos problemas cruciais
da educação brasileira.
O ensino de Biologia, como o de outras ciências - Física e
Química, por exemplo - em Pernambuco, padece de um grande deficit e
constitui-se em um dos graves problemas da educação, uma vez que os
cursos de Licenciatura nessas áreas, nas universidades pernambucanas,
são em pequeno número. A UPE, além dos três cursos de Licenciatura
presenciais, decidiu implantar um curso de Licenciatura em Ciências
Biológicas a distância. De início, com investimentos do MEC e agora,
também, com investimento do Governo Estadual. Atualmente com 960
alunos distribuídos em 10 polos: Ilha de Fernando de Noronha, Nazaré
da Mata, Surubim, Palmares, Garanhuns, Floresta, Ouricuri, Tabira e
Petrolina e um polo em Campina Grande, consorciada com a
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
Muitas têm sido as dificuldades, uma vez que foram necessários
investimentos altíssimos na implantação de laboratórios em cada polo,
infraestrutura física dos polos para apoios presenciais aos alunos, salas
de informática para minimizar as dificuldades daqueles alunos que não
243
dispõem de computadores, além da implantação de Bibliotecas básicas
mínimas. A maior parte dos recursos advém do tesouro nacional (MEC)
e estadual (Governo Estadual), contando também com a contrapartida
de algumas Prefeituras que investiram em espaços físicos e até mesmo
em recursos humanos. É importante lembrar que, a cada semestre, há
sempre novos desafios a serem vencidos, o que tem ocorrido, inclusive,
a partir das críticas e reflexões dos coordenadores, professores, tutores
e, especialmente, dos alunos que são os interessados diretos.
A EAD é, nos dias atuais, uma realidade que vem dando certo,
embora muitos sejam, ainda, os desafios e obstáculos a serem vencidos.
No NEED da UPE tem-se discutido a necessidade da formação de um
quadro de profissionais que possa disponibilizar certa carga horária para
as discussões que a EAD exige, a exemplo da realidade de outras
Instituições da região Sul brasileira. O volume de trabalho já é muito
grande e as ações desenvolvidas começam a despertar a atenção de
pessoas envolvidas para o campo da investigação. Há, também,
propostas de trabalho de investigação na Pós-Graduação Strictu Senso,
sendo pensadas a partir das ações pedagógicas desenvolvidas no curso
de Licenciatura em Ciências Biológicas a distância da UPE. A EAD no
ensino de Biologia é hoje uma realidade em Pernambuco. Como a
legislação vigente exige uma carga horária presencial de 20%, para os
cursos de nível superior a distância, tal carga horária fica disponível para
avaliações presenciais e para aulas práticas de laboratório. Isto significa,
também, que os 80% da carga horária não presencial permite uma
flexibilização dos horários de estudo, para que pessoas de regiões mais
afastadas das sedes, ou pessoas que trabalham nos horários de
funcionamento dos cursos presenciais ou, inclusive, pessoas que moram
nas regiões rurais possam, enfim, estudar.
Por outro lado, a qualidade da educação que se pretende no
campo da EAD não pode prescindir da pesquisa na área, uma vez que a
própria pesquisa se encarregará de apontar correções a serem realizadas,
bem como novos caminhos e metodologias a serem seguidos. A
pesquisa, normalmente, possui início, meio e fim. Portanto, através dela
é possível avaliar bem o referencial teórico que norteará o processo, a
metodologia adotada e os recursos que darão suporte às ações
pedagógicas, principalmente lembrando que a EAD tem se utilizado de
um recurso que se desenvolve com uma rapidez extraordinária. Trata-se
da tecnologia informática educacional que, bem utilizada, poderá ser
244
uma grande aliada. A UPE, por exemplo, além das salas de informática,
montou, também, 10 salas para vídeo-conferência, uma em cada polo,
que serão postas em ação em breve. Outra grande dificuldade é a
preparação das pessoas envolvidas. No caso da UPE, as primeiras
pessoas passaram por uma preparação a partir de um curso de
Especialização voltado para refletir sobre possíveis questões da EAD.
CONCLUSÃO
Deste modo, a UPE vem mostrando que a EAD pode sim ser
uma alternativa para o ensino da Biologia, uma vez que, neste primeiro
semestre de 2008, já estão em funcionamento turmas de quinto período.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Presidência da República. Constituição da Republica Federativa do
Brasil de 1988. Brasília: Governo Federal, 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm#i
ndice>. Acesso em: 28 fev. 2008.
BRASIL. Presidência da República. Lei N 0 9.394, de 20 de Dezembro de
1996. Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional. Brasília: Governo
Federal, 1996. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L9394.htm>. Acesso em: 28
fev. 2008.
BRASIL. Ministério da Educação. INEP. Educação a Distância cresce mais
ainda entre os cursos superiores. Brasília: MEC/INEP. 2007. Disponível em:
<http://www.inep.gov.br/imprensa/noticias/censo/superior/news07_01.
htm>. Acesso em: 28 fev. 2008.
FRANCO, Sergio Roberto Kieling. O Pró-Licenciatura: gênese,
construção e perspectivas. In: Desafios da Educação a Distância na Formação de
Professores. Brasília: MEC/SEED, 2006.
LOBO NETO, Francisco José da Silveira (Org.). Educação a distância;
referências e trajetórias. Rio de Janeiro: ABT; Brasília: Plano, 2001.
MUNDIM, Kleber Carlos. Ensino a distância no Brasil: problemas e
desafios. In: Desafios da Educação a Distância na Formação de Professores.
Brasília: MEC/SEED, 2006.
PRETI, Oreste (Org.). Educação a distância: construindo significados.
Cuiabá: NEAD/IE – UFMT; Brasília: Plano, 2000.
SAVIANI, Dermeval. A Nova Lei da Educação: Trajetória, Limites e
Perspectivas. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 1997.

245
246
MOBILE LEARNING NA EDUCAÇÃO EM SAUDE:
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Marcos Alexandre de Melo Barros2


INTRODUÇÃO
Diante das transformações que vêm acontecendo em nossa
sociedade torna-se difícil negar a influência das Tecnologias da
Informação e Comunicação na configuração do mundo atual, repleto de
profundas transformações em diversos segmentos: político, econômico,
cultural, tecnológico, social e cultural. Na emergência dessas mudanças,
o conhecimento, assume um papel de destaque, exigindo um
profissional da educação reflexivo, crítico, criativo, que seja capaz de
lidar com diversos desafios que surgem no exercício de sua profissão.
Por seu caráter intelectual, a atividade docente exige que o
professor esteja em constante processo de formação. Numa troca de
vivências que ultrapassam as paredes da sala de aula, saberes que
emergem no seu cotidiano docente mobilizam-se configurando sua
prática. Ao tratar do ofício docente, Tardif (2003), a partir de suas
pesquisas e reflexões, situa os saberes dentro de um contexto amplo,
considerando que esses saberes são construídos na história de vida;
fazem parte da identidade dos professores, compondo-se, também, nas
diversas relações profissionais que travam na ação educativa.
Segundo Weisz (2001), a formação do professor necessita de uma
bagagem de conhecimento que o curso de formação inicial não dá e
será adquirida em sala de aula. No decorrer de sua trajetória, o docente
vai se apropriando dos saberes referentes à realidade do ato de ensinar
de acordo com suas concepções idiossincráticas. Esse entendimento
aponta para uma compreensão e enfrentamento dos novos desafios
colocados à prática docente, numa visão crítica a partir do seu próprio
fazer, considerando que os saberes pedagógicos têm importante
contribuição à prática, se forem mobilizados a partir dos problemas
colocados por esta.

2 Coordenador do Programa de Educação a Distância do IMIP. Coordenador do


Programa de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão da Faculdade Senac Pernambuco.
(www.marcosbarros.com.br / [email protected])
247
À medida que o tempo vai passando, ocorrem mudanças na
compreensão do papel do professor. Atualmente ele não é a única
fonte de saber dos alunos, os mecanismos diversificados de transmissão
de informação vêm ganhando cada vez mais espaço. Na sociedade
vigente, o ensino precisa estar vinculado à formação do indivíduo e ser
capaz de contribuir significativamente para ela. O professor é hoje um
profissional que precisa manter-se atualizado sobre as novas
metodologias de ensino e desenvolver práticas pedagógicas mais
eficientes que auxiliem seus alunos no processo de construção do
conhecimento, de habilidades e formação de valores de forma interativa
e mediadora para que os mesmos possam ser sujeitos críticos e atuantes
na sociedade contemporânea. Esses são alguns dos principais desafios
subjacentes à profissão de educador.
Para Mercado (1999), a necessidade de formar professores para o
uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) se dá
principalmente pelo espaço que as mesmas ocupam na atualidade.
Fazendo do conhecimento algo mais provocador, questionador que
coloca o aluno no papel de protagonista e não mais de mero receptor de
informações. Neste contexto as TICs assumem papel fundamental na
educação, proporcionando diferentes possibilidades para que alunos e
professores possam lidar com os conhecimentos e aprender de forma
mais dinâmica e interativa.
Moran (2002) enfatiza que as tecnologias são meio, apoio, mas
com o avanço das redes da comunicação em tempo real e dos portais de
pesquisa, transformaram-se em instrumentos fundamentais para
introduzir mudanças na educação. Nesse sentido as tecnologias de
informação e comunicação, principalmente o computador e a Internet
ganham maior inserção no âmbito educacional, desempenhando uma
função preponderante na universalização e qualidade do ensino. Todo
esse panorama configura numa mudança no perfil profissional dos
docentes que são chamados a enfrentar esses novos desafios, ou seja, o
ensino deixa de ser unilateral para ser algo mais exploratório que
potencialize a capacidade dos alunos e criando assim um ambiente de
aprendizagem.
De acordo com Kenski (2003), as TICs proporcionam um novo
tipo de interação do professor com os alunos, possibilitando a criação
de novas formas de integração do professor com a organização escolar
e com outros professores.
248
Diante de todo esse contexto, muitas tecnologias que foram
pensadas para o universo corporativo, hoje estão favorecendo o
processo de ensino-aprendizagem para muitos profissionais. Uma
dessas novas tendências compreende as Tecnologias da Informação
Móveis e Sem Fio (TMSF) que consistem em dispositivos
computacionais portáteis tais como PDAS, palmtops, laptops, smartphones,
dentre outros que utilizam redes sem fio (Graziola Junior, 2009).
O termo bastante utilizado pela mídia compreende o Mobile
Learning que significa aprendizagem em movimento. Para Marçal et al
(2005) apud Graziola Júnior (2009), o Mobile Learning pode potencializar
o processo de ensino-aprendizagem pelo fato do aluno contar com um
dispositivo computacional móvel para execução de tarefas, anotação de
ideias, consulta de informações via internet, registro de fotos através de
câmeras digitais, gravação de sons, etc. Além disso, poderá prover
acesso a conteúdos em qualquer lugar e a qualquer momento,
desenvolvimento de métodos inovadores de ensino e de treinamento e
expandir os limites internos e externos da sala de aula.
O objetivo deste artigo consiste em apresentar o papel do mobile
learning na educação em saúde.
EDUCAÇÃO EM SAÚDE
A Educação em Saúde no Brasil tem precedentes na criação do
Sistema Único de Saúde desde sua regulamentação no ano de 1988 pela
Constituição Federal, a qual estabelece no Artigo 200, Inciso III, que
cabe ao SUS ―ordenar a formação de recursos humanos na área de
saúde‖ (Moraes, 2002).
Sob a luz do processo de consolidação do SUS, o Ministério da
Saúde vem regulamentando políticas relacionadas ao fortalecimento da
Educação em Saúde, a qual é entendida como:
Processo educativo de construção de conhecimentos em
saúde que visa à apropriação sobre o tema pela
população em geral. É também o conjunto de práticas do
setor que contribui para aumentar a autonomia das
pessoas no seu cuidado e no debate com os profissionais
e os gestores do setor, para alcançar uma atenção de
saúde de acordo com suas necessidades. A educação em
saúde potencializa o exercício da participação popular e
do controle social sobre as políticas e os serviços de
Saúde, no sentido de que respondam às necessidades da
249
população. A educação em Saúde deve contribuir para o
incentivo à gestão social da saúde (Brasil, 2006, p.104).
Esse entendimento fortalece a tese de Martini (1993 apud Silva,
2001), que determina que a educação em saúde pode ser desenvolvida a
partir de um amplo conjunto de atividades, as quais visam discutir
questões de saúde como, alimentação, higiene, habitação e saneamento
de forma crítica, no contexto da realidade da situação em que a
comunidade produz sua existência e, consequentemente, suas condições
de saúde/doença.
Com vistas ao fortalecimento da Educação em Saúde e como
estratégia para a formação e o desenvolvimento dos trabalhadores do
SUS, o Ministério da Saúde aprovou a Portaria N0 198, de 13 de
fevereiro de 2004, que institui a Política Nacional de Educação
Permanente em Saúde (PNEP), que tem como princípios:
Articulação entre educação e trabalho no SUS, produção
de processos e práticas de desenvolvimento nos locais de
serviço; mudança nas práticas de formação e de saúde,
tendo em vista a integralidade e humanização; articulação
entre ensino, gestão, atenção e participação popular e
controle social em Saúde e produção de conhecimento
para o desenvolvimento da capacidade pedagógica dos
serviços e do sistema de saúde (Brasil, 2006, p.187).
Após a constituição da PNEP foram formados os Polos
Estaduais de Educação Permanente, os quais são instâncias de
articulação interinstitucional, portanto, de fundamental importância
para o desenvolvimento de novas estratégias de articulação entre as
práticas dos serviços e o processo de educação permanente e
continuada dos profissionais que atuam no SUS (Brasil, 2006).
MOBILE LEARNING: ASPECTOS PRELIMINARES
O crescimento da Internet e dos telefones celulares foi bastante
pontual nos últimos anos. Em 2004, 700 milhões de pessoas tinham
acesso à Internet. Nesse mesmo ano, 1.752.183.600 pessoas usavam
telefones celulares. Em 2005, esse número chegou a 2 bilhões de
aparelhos. A previsão é que em 2010, 3 bilhões da população mundial,
(que compreende 6,5 bilhões de pessoas), utilizem celulares no seu dia a
dia. Para Bulcão (1999), o mobile learning pode ser definido como
aprendizagem móvel ou aprendizagem em movimento, compreendendo

250
aprendizagem a partir de telefones celulares, pequenos computadores
pessoais (PDAs) e muitas vezes laptops em redes sem fio. Esses
recursos estão se inserindo em várias propostas metodológicas,
cobrindo, por sinal, muitas áreas de ensino.
Muitas experiências têm sido desenvolvidas nos países europeus.
É comum as grandes instituições de ensino disponibilizarem em seus
portais objetos de aprendizagem (learning objects) para seus alunos. São
lições adaptadas da Internet que podem ser baixadas em celulares e
PDAs. O School Learning Technology possui projetos em países como
Inglaterra, Irlanda e Suécia. Na Inglaterra, ainda, o curso Learning and
Skills Development tem insistido na utilização de mensagens via SMS para
melhorar a alfabetização de jovens e adultos (Bucão, 1999).
Paralela a toda essa análise, pesquisas têm mostrado que a
utilização de celulares, com uma combinação de texto e fala, tem
auxiliado os jovens que apresentam dificuldades de comunicação e
expressão na interação com seus pares. Na faixa etária entre 16 e 24
anos, que compreende um grupo que começa a se preparar para o
mercado de trabalho, o telefone celular aparece como uma necessidade,
despertando grande interesse tanto para a utilização referente às
questões pessoais como profissionais. Para Kikin-Gil (2005) apud Bucão
(2009), a comunicação através do celular tem exercido um papel
importante no planejamento, agendamento e reflexo das atividades
individuais e de grupo. Sendo assim, esses aparelhos têm exercido uma
função primordial na rede de relacionamentos: a comunicação.
Entretanto, um grande entrave tem sido a indisponibilidade de
aparelhos mais sofisticados para aproveitar todas as possibilidades que
os objetos de aprendizagem têm permitido aos usuários. Além disso,
pesquisas no exterior têm demonstrado que a utilização dos celulares
entre adolescentes tem servido principalmente para estabelecer
encontros e enviar mensagens de amor.
Para Bucão (2009), os experimentos iniciais têm sido
direcionados para a extensão de cursos formais, aprendizagem durante
visita a museus e espaços científicos em geral, aquisição de informação
médica, principalmente sobre acesso ao serviço de saúde. Os projetos
têm sido planejados levando em consideração que os aprendizes podem
se utilizar de aparelhos móveis, assim como ter acesso a equipamentos
fixos em seu ambiente de aprendizagem.

251
Para Saanchez e Tangney (2006, apud Herrington, 2009), várias
possibilidades têm sido visualizadas com o mobile learning no cotidiano
das pessoas, entre elas uso de calendários, dicionários, quizzes,
simulações, jogos, podcasting, mensagens instantâneas, vídeos e
fotografias.
Para Herrington (2009), é necessário investigar como os
estudantes têm se utilizados dos aparelhos móveis nas situações
pedagógicas e que estratégias didáticas têm sido percebidas nesse
público.
FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UMA NECESSIDADE CONSTANTE
A evolução dos recursos midiáticos disponíveis para potencializar
o processo de ensino aprendizagem exige uma nova postura do
educador. O professor é hoje um profissional que precisa manter-se
atualizado sobre as novas metodologias de ensino e desenvolver
práticas pedagógicas mais eficientes que visem auxiliar seus alunos no
processo de construção do conhecimento, de habilidades e formação de
valores; de forma interativa e mediadora para que os mesmos possam
ser sujeitos críticos e atuantes na sociedade contemporânea. Esses são
alguns dos principais desafios que são subjacentes à profissão de
educador.
Nesse sentido concluir uma Licenciatura é apenas uma das etapas
do longo processo de formação docente, que não pode ser considerado
completo e esgotado uma vez que o professor trabalha diretamente com
o conhecimento, cuja dinâmica faz com que o processo educativo
assuma seu caráter permanente de renovação. Weisz (2001, p.118)
salienta que:
A formação do professor necessita mais do que um curso
preparatório, pois a bagagem de conhecimento com que ele sai
de um curso de formação inicial será sempre insuficiente para
desempenhar sua tarefa em sala de aula.
Corroborando com essa ideia, Nóvoa (2002, p.10) destaca:
O aprender contínuo é essencial em nossa profissão. Ele deve se
concentrar em dois pilares: a própria pessoa do professor, como
agente, e a escola, como lugar de crescimento profissional
permanente. [...] A formação é um ciclo que abrange a
experiência do docente como aluno, como aluno-mestre, como
estagiário, como iniciante e como titular.

252
Esse pensamento se opõe à ideia tradicional de que a formação
continuada se dá apenas por decisão individual em ações solitárias. Para
Nóvoa (2002, p. 11) ―esse trabalho é coletivo e depende da experiência
e da reflexão como instrumentos contínuos de análise‖.
De acordo com o pensamento do autor, a formação continuada
não pode ser um ato isolado que depende unicamente da pessoa, mas
um ato coletivo que depende da experiência e reflexão de todos os
partícipes do coletivo escolar. E para isso, seria ideal que tivéssemos um
trabalho com formação contínua de professores remunerada para que
os mesmos não precisassem depender de seus salários para dar
continuidade a sua formação. Com isso, salientamos a crença na
inseparabilidade da relação teoria-prática, uma vez que para Nóvoa, a
construção do saber docente se dá à medida que o professor trabalha e
reflete sobre sua prática buscando aperfeiçoá-la sempre que possível.
Esses novos saberes não podem ser tratados de forma
indissociável, mas sim relacionados em torno da experiência de cada
um. Tudo isso em sua dimensão político-histórico-social. Essa maneira
de entender a formação deve estar centrada na figura do educador,
valorizando seus saberes da prática, da experiência profissional, bem
como na reflexão acerca dos problemas educacionais que estão
intimamente ligados a forma como o ensino é trabalhado nas escolas.
Desse modo, ressaltamos a importância da formação continuada
discutida a luz do que acontece na sala de aula, através de trocas de
experiências e do olhar investigativo sobre o fazer pedagógico. A
mudança na forma de ensinar tem que ser feita com consistência,
sempre partindo de uma análise do fazer individual para o coletivo.
Hernández e Sancho (2007, p.11) enfatizam que ―hoje, mais do
que nunca, os professores precisam rever o que constituiu o
fundamento de sua prática e criar novos meios de conhecer e de
relacionar-se com o conhecimento e seus aprendizes‖. Isso nos remonta
a ideia de superação de limites, de transgredir barreiras e repensar os
desafios da formação docente como forma de construir uma
aprendizagem mais significativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As novas realidades sociais e econômicas, sobretudo os avanços
tecnológicos na comunicação e informação na chamada era do
conhecimento que caracterizam os dias atuais, conferem à educação um
253
papel relevante na formação e na vida social. Por sua vez, o trabalho de
formar sujeitos para o mundo globalizado, marcado por incessantes
mudanças e imerso numa cultura digital, requer novas formas de pensar,
de produzir e de divulgar o conhecimento por parte dos atores sociais.
Diferentemente do que muitos professores pensam, o recurso
tecnológico não veio para substituí-lo, mas para auxiliá-lo em sua
prática cotidiana. A ação do professor não será substituída pelas
tecnologias, uma vez que estas ampliam o seu campo de atuação
profissional, quebrando paradigmas da escola tradicional. O espaço
profissional dos professores num mundo em rede tende a ampliar-se
cada vez mais. Para tanto, são exigidas novas qualificações para esses
docentes e, como consequência, surgem novas oportunidades de
ensino.
Com as tecnologias, a ação docente pode ocorrer de forma
partilhada por meio de interações que podem gerar novas descobertas e
aprendizagens. Sabe-se que a instrumentação técnica não é suficiente ao
aprendizado docente para a mediação entre a educação e as tecnologias.
A questão maior não é apenas quanto ao domínio para o uso das TICs
por parte dos professores. O maior desafio encontra-se no fato de saber
de que maneira as TICs podem ser viabilizadas no processo de ensino-
aprendizagem, no quadro dos currículos atuais, das condições
profissionais dos docentes e da situação concreta de cada escola para o
uso dessas tecnologias.
Diante desse novo quadro, a utilização do mobile learning será um
forte aliado na formação de professores no momento em que
promoverá a facilitação do acesso às informações; a possibilidade de
compartilhamento das inovações; a troca de informação entre serviços e
a promoção de educação e requalificação permanentes dos profissionais
da área de saúde.
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255
256
ENSINANDO BIOLOGIA NUMA PERSPECTIVA DE
COMPLEXIDADE

Ana Maria dos Anjos Carneiro-Leão, Margareth Mayer e


Romildo Albuquerque Nogueira1
FUNDAMENTANDO O TEMA
A despeito de todo o esforço desenvolvido desde a promulgação
da LBD (BRASIL, 1996) e das orientações disponibilizadas através dos
documentos oficiais (PCN, 1999; PCN+, 2002 e OCEM, 2006),
sobrevive ainda a dificuldade prática em desenvolver estratégias
didáticas para uma compreensão mais contextualizada e sistêmica da
Biologia.
Um aluno de Ensino Médio ou de Graduação defronta-se com
um panorama assustador: conteúdo específico muito amplo,
apresentado em diferentes níveis de detalhamento, exigindo um
conhecimento enciclopédico. Os conceitos são fragmentados pela
estrutura curricular, de tal forma que parecem desconectados entre si.
Mesmo considerando que cada área conceitual tenha suas
especificidades, é possível estabelecer conexões, identificando aspectos
comuns entre Botânica, Zoologia, Bioquímica e Genética, entre outros.
Apesar disso, no aspecto cognitivo persistem lacunas entre as diferentes
áreas conceituais da Biologia que dificultam ao educando perceber que
está diante de uma única realidade, que é o estudo da vida. Uma
consequência disso é que os professores, nos diferentes níveis de
escolaridade, enfatizam um ensino voltado para a memorização de
estruturas e processos em detrimento de uma real compreensão dos
conceitos biológicos, só possível de ser desenvolvida por meio de uma
abordagem sistêmica de ensino.
Do ponto de vista histórico-filosófico, a visão epistemológica do
início do século XX foi fortemente marcada pelo cartesianismo. O
pensamento cartesiano fundamenta-se na retomada de paradigmas pré-
socráticos: (1) o conhecimento científico é caracterizado por uma

1 Professores do Departamento de Morfologia e Fisiologia Animal da Universidade


Federal de Pernambuco, atuando na área de Bioquímica (A.M.A.C.L.) e Biofísica (M.M.
e R.A.N.). Docentes dos Programas de Pós-Graduação no Ensino das Ciências e
Biociência Animal, ambos da UFRPE.
257
abordagem racional, discursiva e demonstrativa; (2) o objeto é
focalizado a partir da visão de racionalidade; (3) a forma de ver o
mundo aceita como certeza tudo que pode ser comprovado
experimentalmente. Assim, exclui-se o subjetivo, o sensível e o mundo
das percepções. Submetendo-se à razão, a natureza deve ser
compreendida apenas em sua essência, sem considerar as circunstâncias
e o contexto. Estas ideias foram resgatadas por Descartes (1999), cuja
proposição é a de que os fenômenos só podem ser analisados e
compreendidos se forem reduzidos às partes que os constituem. Ao
conhecer uma parte de um sistema, o pesquisador chegará ao
conhecimento de seu funcionamento.
A perda de contexto, quando se realiza uma análise fragmentada,
será exemplificada aqui com a obra de Picasso: Les Demoiselles d‟Avignon.
Podem-se estabelecer conexões entre este quadro e os paradigmas
cartesiano e sistêmico no ensino de Biologia. A Figura 1 ilustra a
impossibilidade de compreensão da obra quando somente partes dela
são evidenciadas. De maneira semelhante, os currículos vigentes nos
Cursos de Biologia (Licenciatura e Bacharelado) e no Ensino Médio
fundamentam-se na disciplinarização e no detalhamento enciclopédico
de cada subárea específica, de tal maneira que o aluno ―mergulha‖ no
estudo de cada parte. Contextualizando com o quadro, se a natureza
morta (Figura 1B) pudesse ser comparada a uma única disciplina, o
currículo iria valorizar questões como: quais e quantas são as frutas?
Onde e como estão arrumadas? Há diferenças entre os graus de
maturação dessas frutas? Assim, o foco do estudo passaria a ser a
natureza morta isoladamente, deixando-se de perceber que esta é parte
de um contexto maior e mais amplo. Perde-se até a questão central
abordada no quadro que são as cinco mulheres retratadas e que dá
nome ao quadro Les Demoiselles d‟Avignon. De maneira semelhante as
disciplinas, ao longo da malha curricular, tendem a esta mesma
perspectiva de fragmentação e perda de contexto. Dessa forma,
pressupõe-se que o aluno, concluída sua aprendizagem, seja
espontaneamente capaz de interrelacionar as diferentes disciplinas e
traçar um esboço da realidade. Isto é um pressuposto irreal e torna o
ensino da Biologia inócuo, descontextualizado e sem a sua principal
essência que é entender o ser vivo e a sua relação com o meio ambiente.

258
A E

D
F

Figura 1 – Paralelo entre o currículo de Ciências Biológicas e Les


Demoiselles d’Avignon.

Os problemas relacionados ao ensino da Biologia comportam


uma complexidade intrínseca que é a inseparabilidade do ser humano
como ente natural e, ao mesmo tempo, social. A disciplinaridade,
baseada na visão cartesiana, que fragmenta a realidade para poder
conhecê-la (análise) e pressupõe que a junção de suas partes
corresponda ao todo fragmentado (síntese), não parece ser adequada
para dar as respostas aos grandes problemas da Biologia. A principal
falha nesse pensamento é que o todo inclui não apenas as partes
segmentadas, porém também as complexas relações entre elas, que são
perdidas neste processo de fragmentação. Um conhecimento
fragmentado, através das diferentes disciplinas, como o ministrado nas
escolas brasileiras é totalmente inadequado para a abordagem da
biologia.
A educação em uma perspectiva da complexidade não pretende
reduzir os conteúdos disciplinares, nem extinguir as disciplinas. O que
Morin (2002) e outros teóricos chamam a atenção é para o perigo da
―hiperespecialização‖ favorecida pela instituição escolar disciplinar e na
259
qual o objeto da disciplina pode ser percebido como algo
autossuficiente, negligenciando-se as ligações e solidariedades desse
objeto com outros objetos estudados por outras disciplinas. Nesse
contexto, a abordagem complexa pode ter uma contribuição importante
no desenvolvimento desse novo tipo de educação, pois, para se
desenvolver tantas competências no indivíduo faz-se necessário, como
Morin (2000) propõe, uma religação entre os saberes, fato que a
disciplinaridade, por si só, não contempla.
O ensino da Biologia, como de todas as outras ciências, deve ser
focado na religação dos saberes, com o objetivo de conectar, articular e
interligar informações ao longo da escolarização, favorecendo o
desenvolvimento de competências necessárias ao pleno exercício
profissional e da cidadania.
EXPERIMENTANDO EM SALA DE AULA: IMPLEMENTANDO UMA
OPI.
Ensinar Biologia na perspectiva complexa exige uma prática que
envolve, necessariamente, a contextualização e a interdisciplinaridade
(Bastos et al., 2001). Uma das formas de implementar esse modelo de
ensino seria por meio da realização de oficinas pedagógicas
interdisciplinares (OPI), a partir de situações-problema Um aspecto
importante dessa metodologia é permitir o estabelecimento de relações
entre teoria e prática, principalmente quanto à aplicação de princípios e
leis teóricas às situações do cotidiano. Além disso, possibilita aos
participantes a realização de diferentes atividades, favorecendo a tomada
de consciência de seus conhecimentos do senso comum, promovendo
oportunidades para a introdução do conhecimento científico. Essa
forma de trabalhar os conhecimentos científicos, através de um
processo de reflexão-ação-reflexão, desenvolve habilidades e favorece a
construção de competências. Uma OPI, portanto, é uma metodologia
que, ao abordar situações reais, contextualizadas, através de questões a
serem respondidas e atividades práticas diferenciadas que busca a
articulação entre diferentes conceitos disciplinares e interdisciplinares
estabelece uma visão sistêmica da realidade.
Além disso, utilizar uma metodologia interdisciplinar pressupõe
adotar uma abordagem construtivista, integrando as disciplinas e
priorizando as interações sociais. Essa metodologia permite que sejam
trabalhados em articulação os conhecimentos concretos de senso
260
comum e os científicos abstratos que são extremamente difíceis de
serem compreendidos pelos alunos favorecendo, aos primeiros, maior
abstração e aos segundos, maior concretude (Vigotsky, 2000).
A metodologia aqui descrita está fundamentada na nossa
experiência em programas de formação continuada de professores e nas
Ilhas Interdisciplinares de Racionalidade (IIR) propostas por Fourez
(1997), na perspectiva de uma alfabetização científica e técnica.
A proposta metodológica se constitui de uma modelização
adequada para uma situação específica e a construção de respostas a
questões que envolvem Ciência e contexto. Um contexto real necessita,
para sua melhor compreensão, da contribuição de conhecimentos de
diversas disciplinas do currículo escolar ou mesmo de outras áreas.
Assim, a metodologia favorece a articulação das diversas disciplinas e
saberes da vida cotidiana. Busca uma relação com o cotidiano que os
alunos tomem como seu. Esse modelo é denominado ensino por
projeto e o que determina os critérios sobre o corpo de conhecimentos
a ser trabalhado é o projeto, para o que e para quem ele se destina, e é
elaborado por uma equipe multidisciplinar de professores (Almeida;
Bastos, 2005; Fourez, 1997; Pietrocola, 2000).
Uma intervenção na perspectiva de uma IIR é composta de oito
etapas. Descreveremos algumas a seguir:
1 - Na primeira etapa o professor apresenta o tema e a situação-
problema e solicita aos alunos que construam uma representação
pictórica da situação para depois, em pequenos grupos, construírem
uma representação consensual da situação-problema a resolver. Busca
acessar os conhecimentos espontâneos dos alunos sobre a situação.
2 - Na etapa seguinte, os alunos buscarão conceitos relevantes para
resolver essa situação, a fim de que, em conjunto, negociem e
construam uma lista, com os conceitos considerados importantes para a
resolução do problema. Nessa fase o professor questiona os
conhecimentos espontâneos colocando em cheque as concepções dos
alunos levando-os a fornecerem explicações. Fazem uma lista das
questões mais relevantes para resolver o problema e relacionam
conceitos que podem ser organizados na forma de mapas conceituais e
compartilhados com o grande grupo. Nesse momento, o professor
conduz o processo, buscando os conceitos e as interrelações que são
estabelecidas entre esses conceitos.

261
3 – Nessa etapa são explicitadas que disciplinas estão envolvidas na
resolução do problema e, das especialidades que precisamos buscar para
resolvê-los.
4 – A etapa da realização de atividades práticas e experimentais é um
momento definidor de uma OPI. É aquela em que são realizadas as
atividades práticas que envolvem um ou mais conceitos e, permite aos
alunos, confrontar suas ideias com as situações concretas desenvolvidas
nas atividades práticas planejadas em consonância com os objetivos
específicos. Na oficina que descreveremos utilizamos, nas atividades
práticas, materiais alternativos (seringas, garrafas PET, canudos).
5 – Após ou durante as atividades práticas os conceitos e princípios
disciplinares relevantes para a solução do problema são aprofundados e
as questões levantadas pelos alunos vão sendo resolvidas. Portanto, é
feita uma análise das questões criadas nas atividades práticas e da sua
relação com a situação-problema.
6 – Ao final, os alunos fazem uma síntese do que foi trabalhado e
podem expressar o que aprenderam refazendo o mapa conceitual.
Aplicamos todos os conceitos trabalhados nas diferentes disciplinas ao
contexto biológico. Esse novo mapa vai acrescentar conceitos e relações
que não apareceram no mapa inicial e pode também funcionar como
um mecanismo de avaliação da OPI.
Este tipo de metodologia possibilita trabalhar conteúdos
conceituais, procedimentais e atitudinais, proporcionando uma
aprendizagem significativa, a fim de formar cidadãos que tenham uma
visão sistêmica e complexa da realidade (Coll et al., 1998). Tal formação
prepara o aluno para exercer seu papel social de transformação da
realidade na qual se encontra inserido.
Para melhor compreensão dos aspectos metodológicos
salientados acima, apresentaremos a seguir exemplos de algumas etapas
de uma OPI desenvolvidas tanto com professores em cursos de
formação continuada, quanto com alunos de graduação e de Ensino
Médio (Bastos et al., 2003; Mayer et al., 2001).
Necessitamos, inicialmente, escolher um tema que permita
articulação dos conteúdos a serem trabalhados durante a oficina. Tendo
como exemplo as Ciências da Natureza, o tema deve permitir relações
de conteúdos de Biologia, Química, Física, Matemática e, se possível,
disciplinas de outras áreas. Outro aspecto importante é a pertinência do
tema em relação à comunidade escolar onde a oficina vai ser realizada.
262
Em seguida, elaboramos uma situação-problema relacionada ao tema.
Existe, portanto, uma situação a ser analisada e um problema que pode
ser resolvido no desenvolvimento da sequência didática planejada pelo
professor para realizar com os seus alunos.
No nosso exemplo, planejamos construir conceitos,
procedimentos e atitudes interdisciplinares de Ciências relacionados ao
tema Respiração Pulmonar. Portanto, foi proposta a temática da
respiração pulmonar e criada uma situação-problema que permitisse
também a compreensão dos malefícios causados pela poluição
atmosférica à saúde humana.
1ª etapa - Tema: respiração pulmonar
Situação-problema:
A poluição ambiental vem provocando modificações nos
constituintes do ar atmosférico que envolve a Terra. Todos os
seres vivos estão imersos nessa camada gasosa Você acha que
essa mudança na composição do ar pode provocar modificações
na qualidade e quantidade dos gases que correm nas nossas
veias? (Bastos et al., 2003).
Num segundo momento, questões foram propostas para
definição dos objetivos geral e específicos, permitindo planejar
estratégias de transposição didática que envolva diferentes atividades
tais como: experiências, pesquisas, uso de softwares, trabalhos de campo
etc., para aprofundar cada conceito de forma contextualizada, utilizando
materiais nos quais esses conceitos sejam explorados. No exemplo aqui
citado, para explorar o movimento da caixa torácica foi utilizada uma
seringa hipodérmica graduada como modelo da estrutura biológica que,
ao ser manipulada, explicita princípios ou relações entre grandezas. No
caso específico foi explorada a função matemática que expressa a
relação pressão/volume, possibilitando calcular empiricamente valores
dessas grandezas que também estão envolvidas no processo da
ventilação pulmonar.
2ª etapa
Objetivo geral: Identificar os efeitos da poluição atmosférica nos
seres vivos.
Objetivos específicos:
 construir os conceitos de pressão e densidade dos fluidos e
relacioná-los com a Respiração Pulmonar;

263
 construir o modelo dos gases utilizando-o para explicar o
fenômeno da Respiração Pulmonar;
 reconhecer e aplicar as leis dos gases às diversas situações
contextualizadas e à Respiração Pulmonar;
 relacionar a concentração dos gases na atmosfera com a sua
concentração no corpo;
 compreender que o pulmão não se constitui numa barreira de
impedimento para a passagem de gases poluentes.
O ensino utilizando OPI, ao construir modelos de situações
específicas, através de conteúdos/conceitos de diferentes disciplinas,
permite o desenvolvimento de competências como:
 desenvolver visão sistêmica das situações em estudo, aprofundando
e relacionando conceitos necessários à compreensão do campo
conceitual.
 articular conceitos de diferentes disciplinas relevantes para explicar
o fenômeno a estudar utilizando como instrumento a construção de
mapas conceituais.
Nessa OPI, em particular, foram explorados os conceitos de:
pressão atmosférica, pressão e volume de gases (Física), teoria cinética,
densidade, solubilidade e concentração de gases (Química), anatomia
pulmonar, permeabilidade dos gases, gradientes de concentração e de
pressão dos gases entre os alvéolos e o sangue (Biologia) e poluição
atmosférica (Educação Ambiental).
No desenvolvimento da oficina foram usados materiais de fácil
acesso para o professor e seus alunos. Assim, essa metodologia não
necessita de laboratórios equipados, mas sim de planejamento entre os
componentes do grupo de professores, podendo ser realizada em
qualquer espaço pedagógico.
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