Artigo - Cordão Da Bicharada
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Resumo Abstract
Este artigo é resultante das coletas de dados This article is the result of data collection sums
realizadas na localidade de Juaba, na cidade de carried out in the city of Juaba, in the city of Cametá
Cametá no período de 2018-20191, vinculadas ao in the period 2018-2019, linked to the project
projeto “Festas, Brincadeiras, cortejos, procissões "Parties, Games, processions, processions and
e Atos Devocionais: estudos sobre manifestações Devotional Acts: studies on popular manifestations
populares na Amazônia paraense”, cujo objetivo se in the Amazon of Pará", whose objective focuses
centra na investigação da atuação dos brincantes no on the investigation of the participation of
cordão da bicharada no carnaval de Juaba. O Cordão pranksts in the cordon of bicharada in the Juaba
da Bicharada é considerado um bloco carnavalesco carnival. Cordão da Bicharada is considered
que homenageia a fauna da Amazônia através do uso a carnival block that honors the fauna of the
de fantasias confeccionadas pelos moradores locais. Amazon through the use of costumes made by
A apresentação do cordão da bicharada é marcada local residents. The presentation of the bicharada
pelo entusiasmo e alegria dos participantes e com cord is marked by the enthusiasm and joy of the
uma visualização estética totalmente peculiar. Toda participants and with a totally peculiar aesthetic
a fundamentação teórica utilizada na construção visualization. All the theoretical foundation used
dos argumentos reflexivos sobre o tema advém da in the construction of reflexive arguments on the
etnocenologia, acionando as categorias conceituais theme comes from ethnocenology, triggering
espetacularidade e teatralidade como mote na the conceptual categories spectacularity and
compreensão da participação dos integrantes no theatricality as a motto in the understanding of
cordão da bicharada. the participation of the members in the cord.
Palavras-chave: Keywords:
Cênicas 131
Esses distritos historicamente trazem importantes performático desenvolvido pelo corpo-brincante e a
contribuições econômicas e Culturais à região alegria contagiante gera uma visualização estética
tocantina. A comunidade de Juaba ascendeu à capaz de agradar aqueles que assistem à evolução do
condição de vila distrital através da Lei no 1530 cordão da bicharada, na condição de expectadores.
de 05 de outubro de 1916. Como Vila Distrital,
A estrutura organizativa deste artigo parte de uma
Juaba comporta um conjunto de comunidades
reflexão epistemológica na área da Etnocenologia,
quilombolas, formado pelos quilombos do Mola,
para descrever o cortejo do cordão da bicharada
Porto Alegre, Laguinho e Tomázia.
e seus elementos estéticos no campo conceitual
De acordo com Gomes (2006), o Distrito do Juaba da teatralidade e da espetacularidade. Ao lado
apresenta extrema importância para Cametá, destas questões, o artigo também procura revelar
através da produção de farinha e de outros o envolvimento dos brincantes do cortejo.
derivados oriundos do plantio da mandioca, cuja
O CORDÃO DA BICHARADA EM JUABA
logística é realizada pelos próprios ribeirinhos,
que agenciam o beneficiamento comercial da O Cordão da Bicharada do Juaba, segundo seu
farinha para o município tocantino. Toda produção precursor e idealizador, mestre Zenóbio Ferreira2,
das comunidades quilombolas é comercializada tem sua origem no seu imaginário infantil,
no próprio Distrito ou Vila do Juaba, que nessa quando ouvia histórias que seu pai, Raimundo
perspectiva recebem compradores das regiões Inácio Ferreira (seu Mimico), lhe contava sobre os
próximas e, sobretudo de Cametá. animais e o meio ambiente onde vivia. Também
se inspirou nos livros que leu em sua infância,
A importância do Rio Tocantins no município de
particularmente, de uma frase lida em um desses
Cametá, e particularmente na vila distrital de Juaba,
antigos livros e nunca esqueceu. Sobre essa
é enfatizada pela ligação que essas localidades
memória, seu Zenóbio diz:
mantêm com inúmeros furos, além dos igarapés e
braços de rios, que se interpenetram nas dezenas Estava lendo um livro, no qual tinha uma frase que
de ilhas que compõem povoados e aglomerações me chamou bastante atenção que dizia assim: ‘as
aves não tem onde pousar’[...] Passou vários anos,
relativamente habitados.
encontrei um livro na biblioteca por nome Mundo
Animal que tinha várias figuras de animais. Era
O Município de Cametá - assim como toda região animal de tudo que era canto. Foi daí que surgiu
tocantina - é rico em manifestações populares, a ideia de construir as vestimentas dos animais
como as festas de devoção a santos do catolicismo (MESTRE ZENÓBIO, 2019).
popular, festas juninas e também as de carnaval.
Durante a entrevista, mestre Zenóbio deixou
Aliás, o carnaval de Cametá é conhecido nos
transparecer sua enorme preocupação, já na
sites de turismo como o “carnaval das águas”,
década de setenta do século XX, com o meio
expressão usual que marca a circulação, na região
ambiente, sobretudo em decorrência das
das ilhas, de embarcações com brincantes e foliões
constantes depredações observadas por ele nas
caracterizados de bichos da fauna local e de tantos
regiões das ilhas e na área continental, provocadas
outros que compõem o imaginário fantástico da
por constantes queimadas e desmatamentos.
Amazônia paraense. Mas é importante considerar
Essa preocupação o levou a “matutar” sobre fazer
que o carnaval em Cametá não se restringe à
alguma coisa para alertar o pedido de socorro
estética do carnaval das águas. É frequente o
emitido pela natureza. Foi aí que teve a ideia de criar
desfile das escolas de samba, os bailes à fantasia
o cordão da bicharada: “[...] eu queria trazer uma
nos clubes locais, e os grupos de Fofós que, no
mensagem da floresta para as pessoas, mostrando
período de momo, se concentram na praça da
as dificuldades dos animais com a devastação
Cultura para a batalha da maizena.
das matas, com a poluição ambiental e como eles
Também na vila de Juaba existe o carnaval do sobrevivem” (MESTRE ZENÓBIO, 2019).
“Cordão da Bicharada” – bloco carnavalesco
Com o passar do tempo, e diversas apresentações
que homenageia os animais da Amazônia –
durante vários carnavais, o fundador do cordão
simbolicamente representados pelos personagens
acredita que a união entre o homem e natureza foi
de animais, com participações de moradores locais
alcançada. No começo, ele conta que o público ainda
– adultos e crianças. O colorido das fantasias, o ato
se assustava bastante com os animais gigantes objecto ou orgam, que tem semelhança com uma
que invadiam a cidade para animar a população. pequena corda” (FIGUEIREDO, 1889, p. 347).
Atualmente, segundo ele, é tudo bastante diferente. Já a versão atualizada do Novo Diccionário da
Língua Portuguesa (FIGUEIREDO, 1913), além das
Hoje em dia, aonde quer que a gente se apresente, é
uma felicidade. Crianças, jovens, adultos e idosos se definições da versão anterior, aparece também
unem aos bichos. As pessoas tinham medo da gente. a palavra cordão como manifestação ou grupo
Nós tínhamos uma regra de não tirar as máscara e carnavalesco. Nesse sentido, a definição de
fantasias após o desfile porque queríamos conquistar
o povo como bicho e não como gente (Idem). Figueiredo sobre corda é: “certo cortejo ou grupo
carnavalesco”. O autor destaca que essa definição
A Bicharada do Juaba é definida por seu fundador refere ao Brasil, Rio de Janeiro (FIGUEIREDO, 1913,
como cordão carnavalesco. No Nôvo Diccionário p. 455). Já no Dicionário do Folclore Brasileiro, de
da Língua Portuguêsa, de Candido de Figueiredo, Câmara Cascudo (2012), a definição de cordão é
publicado em 1889, há várias definições para a dividida em dois: uma manifestação carnavalesca
palavra cordão, mas como era de esperar, não há que, para o autor em uma definição rápida, pode
uma definição sobre cordão compreendido como ser entendida como “grupo de foliões com roupas
grupo ou manifestação carnavalesca. Figueiredo de fantasia, cantando e dançando, mais ou menos
define cordão como: “corda delgada; fileira; ritmicamente”; e uma manifestação de festa
série de postos militares para evitar contágio; religiosa (CASCUDO, 2012, p. 225).
Cênicas 133
É pertinente considerar que embora a Bicharada Quando chega o momento da comédia (fala dos
do Juaba seja considerada cordão carnavalesco, animais) em forma de círculo, no intervalo de uma
música e outra e quando acionado pelo domador,
ele difere sobremaneira dos cordões carnavalescos o animal se manifesta em forma de diálogo e fala
existentes nas mais diferentes regiões do Brasil. Em o boi e o cavalo contando sua trajetória de vida,
Juaba, ao invés dos foliões representarem através depois vem o leão se apresentando como rei dos
animais que por se considerar o rei da selva, deixa
de suas vestimentas, reis, rainhas, bobos da
sua mensagem de protesto (Idem).
corte, índios, caçadores, as fantasias representam
animais dos mais diferentes tamanhos. São várias Cabe ao domador comandar o jogo entre os animais
araras, jacarés, cobras, macacos, jabutis, tucanos, e é interessante perceber que o jogo cênico contido
botos e tantos outros que compõem a fauna no cordão da Bicharada, ao mesmo tempo em
amazônica, além de outros animais de outros que permite a jocosidade, a brincadeira, também
continentes como girafa, urso, hipopótamo. propicia aos expectadores momento reflexivo sobre
Durante a festa do Momo, este cordão de bichos a necessidade de preservação do meio ambiente,
se apresenta nos trapiches das residências, às de sua flora e fauna. A seguir algumas comédias
margens do Rio Tocantins, ao toque de músicas dos animais narradas no Cordão
próprias do grupo, em ritmos de marchinhas e
também com o uso de comédias.
COMÉDIA DO REI LEÃO
Segundo Arnoud (2018), nas apresentações,
Sou o rei dos animais
os animais são os protagonistas de atos
A selva é o meu Reinaldo
performáticos, exibindo-se ao som de marchinhas
Como carne todo dia
de carnaval criadas por integrantes do próprio
Gosto muito de veado
grupo, como seu Raimundo Inácio Ferreira (pai
Às vezes, também da zebra
do mestre Zenóbio) e Afonso Aragão. A figura 1
E o banquete é adiado
ilustra a chegada do cordão no trapiche de uma
Nas planícies africanas
das ilhas em Cametá. Nela, é possível observar Eita visão gostosa
o condutor do cordão com o estandarte do O pôr do sol nem se fala
grupo, a marchinha com instrumentos de sopro e Que coisa maravilhosa
percussão e os animais, performatizados para o Eu ao lado da rainha
início do cortejo. Que é bastante dengosa
Cênicas 135
cordão da Bicharada, a teatralidade é visualmente NÃO ESTÁ COM NADA
perceptível no campo das subjetividades, ou seja, Quem faz devastação
Refrão: Não está com nada
na relação íntima que o brincante tem com o Zombando da floresta
cordão. Nas várias apresentações do cordão, que Fazendo queimada
acontecem em várias comunidades das regiões Não está com nada
Quem não ara a terra
das ilhas, o jogo cênico que se estabelece entre
Não está com nada
olhante e olhado, é marcado pela interação entre Quem gosta da guerra
ambos no ato das apresentações. E rapidamente Não está com nada
quem está na condição de olhado, passa para
Quem gosta de droga
olhante e vice versa. Esse jogo cênico de ir e vir, Não está com nada
de vir a ser, marca a apresentação do cortejo e Quem não reparte o pão
estabelece uma conexão forte entre todos os Não está com nada
Quem ama a natureza
envolvidos neste jogo cênico. Também ama a Bicharada
(Autor: Afonso Aragão)
A Sociologia do Cotidiano ou do Drama
Social de Erving Goffman também ajuda no
exercício de pensar a teatralidade no cordão POMBINHA
da Bicharada. Para Goffman, no estudo das Pombinha que voa
representações sociais há que se considerar Pombinha que voa
Não pode parar de voar
a perspectiva da representação teatral e os
Toda a flora destruída
princípios dramatúrgicos, ou seja: a presença do Toda a flora destruída
ator, observadores, personagem, espetáculos, As aves não podem pousar
desempenho de papéis. Para ele, a representação Não sei se é flora ou se é devastação
Não sei se é fauna ou se é poluição
consiste em “toda atividade de um indivíduo
Todo homem tem cabeça
que acontece num período caracterizado por Todo homem tem cabeça
sua presença contínua diante de um grupo de Mas não tem bom coração
observadores e que tem sobre estes alguma (Autor: Afonso Aragão)
influência” (GOFFMAN, 1989, p. 35). Para que
a representação ocorra, é necessário o cenário
S.O.S À NATUREZA
– partes cênicas de equipamento expressivo Natureza, natureza!
- e aparência - estímulos que funcionam no Sempre foste depredada
momento de se revelar o status social do ator. Vamos salvar a terra
Protegendo a bicharada
Esses elementos são indispensáveis para que no
evento ritual ocorra a realização dramática, cuja Vamos salvar a terra
eficácia é instaurada na presença do outro, de Enquanto é tempo
Ta na hora de agir
quem assiste o evento. Neste sentido, no cortejo
Pensamento positivo
do cordão da Bicharada, o cenário e a aparência Não deixa esse tema cair
são importantes para instaurar a ambiência Faça tudo, meu irmão!
necessária para a teatralidade. A figura 2 captura Essa é a razão
Dos nossos ideais
um dos muitos momentos de interação entre Não destrua as nossas matas
brincante e expectador. Nossos rios
Nossas cascatas
A estrutura ritual do cordão da Bicharada permite, Proteja os animais
nos intervalos das apresentações dos animais, Trate bem da natureza
Com amor e com nobreza
que a marchinha entre em cena para tocar suas
E os problemas sociais
composições musicais. As letras das músicas se
constituem em chamadas reflexivas para todos Meio ambiente
Não se deve poluir
os participantes do cortejo, por tratarem de
Bote fé nesta mensagem
temas bem atuais e caros à região Amazônica; Fale a mesma linguagem
a preservação de sua mata, sua fauna e flora. A Vamos todos reflorir.
seguir, algumas letras: (Autor: Afonso Aragão)
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Figura 3 - Momento da apresentação do Cordão da Bicharada.
Fonte: arquivo pessoal da autora (2018).
[...] a fantasia é pesada. Essa parte de cabeça que pesa que dura em média quatro horas, o brincante adulto
porque é feita a partir de uma armação de arame para não poderá tirar nenhuma parte da fantasia, também
dar sustentação. A roupa da fantasia também pesa.
Essa aqui é do macaco. A gente primeiro veste o corpo, não poderá atender a chamada de seu nome, muito
e antes de colocar a cabeça, vai bem umas geladas menos parar de executar os movimentos e sons de
pra gente aguentar tudo, porque, depois que veste só seu animal. A figura 3 ilustra os corpos alterados no
tiramos a roupa quando tudo termina (SILVA, 2019)3.
instante da apresentação.
Na apresentação, o corpo do animal fantasiado Para a brincante Cintia Dias4, o corpo performatizado
assume a cena. O som e o movimento corpóreo do animal, no momento da apresentação, é
feito pelo brincante é do jacaré, jabuti, pavão, cobra, grandioso, porque: “ao me caracterizar de tucano,
arara, tucano, boto, macaco, e tantos outros animais percebo que naquele momento, é como se fosse
da fauna amazônica ou de outros lugares, como é real. Durante as apresentações é como se meu
o caso do camelo, girafa, leão. Neste momento, o corpo se transformasse, o eu mulher deixo de
brincante deixa de ser ele para dar passagem ao existir, me sinto livre e leve, como em um passe
animal performatizado. Durante a apresentação, de mágica não sinto calor nem sede” (DIAS, 2019).
Cênicas 139
FIGUEIREDO, Candido de. Novo Dicionnário da Católica de São Paulo (2010); Mestre em
Língua Portuguesa. Lisboa: Livraria Clássica Antropologia Social pela Universidade Federal do
Editora, vol. II, 1913. Pará (1998). É professora Adjunta da Universidade
Federal do Pará (UFPA), lotada no Instituto de
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na
Ciências das Artes (ICA), vinculada à Escola de
vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1989.
Teatro e Dança (ETDUFPA). Compõe o quadro de
GOMES, F. S. “No labirinto dos rios, furos e professores do Programa de Pós-Graduação em
igarapés”: camponeses negros, memória e pós- Artes em Rede Nacional (UFPA) e do Programa de
emancipação na Amazônia, c. XIX-XX. História Pós-Graduação em Artes (Mestrado e Doutorado)
Unisinos, vol. 10, no 3, 2006, p. 281-292. PPGARTES-UFPA, vinculada à linha 2 – Artes
e Interfaces Epistêmicas. Coordena projeto
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles (Org.). de Pesquisa “Festas, Brincadeiras, Cortejos,
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio Procissões e Atos Devocionais: Estudos sobre
de janeiro: Objetiva, 2001. Manifestações populares na Amazônia”. Integra
o grupo de pesquisa TAMBOR/UFPA/CNPq.
PRADIER, Jean-Marie. Etnocenologia. In: GREINER,
E-mails: [email protected] e [email protected]
Christine e BIAO, Armindo. (Org.). Etnocenologia:
textos selecionados. São Paulo: Annablume,1999.
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