Evolução Do Princípio Inteligente - Três Reinos
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R ESUMO
Na formulação do Espiritismo como ciência de obser-
vação, Allan Kardec sempre se preocupou em apre-
sentar os conceitos doutrinários associados às idéias
científicas aceitas na sua época, visando integrá-lo à
cultura vigente. E buscava atualizar-se, consolidando
a doutrina de modo que a confiança nela pudesse “en-
frentar a razão face a face, em todas as épocas da hu-
manidade”. Em O Livro dos Espíritos, Kardec menci-
ona uma classificação dos seres da Natureza em três
reinos, incluindo os minerais, com base em divisão
científica aceita desde o século XVIII. O presente traba-
lho analisa a evolução dessa concepção biológica após
Kardec, quando ela passou a incluir apenas os seres
vivos, derivando para o evolucionismo das espécies e
do ser humano (darwinismo), aprofundado e consoli-
dado com o desenvolvimento, no século XX, da bio-
logia evolucionista e com o mapeamento do genoma
humano. Nesse livro, Kardec aborda com cuidado o
terreno da ciência biológica das espécies. Após a publicação de A Origem das Espécies por Charles Darwin em
1859, Kardec, em vários artigos na Revista Espírita, avançaria os conceitos da Doutrina em consonância com o
desenvolvimento da Ciência da evolução. Em A Gênese, em 1868, Kardec formularia a hipótese sobre a origem do
corpo humano em que nossa descendência biológica dos primatas apareceria como a conclusão mais provável. No
entanto, diferentemente da preocupação de Kardec, a evolução dessa concepção biológica não tem sido levada em
conta pela maioria dos divulgadores do Espiritismo, que continuam a ensinar os mesmos Três reinos ainda hoje,
comprometendo a própria credibilidade da Doutrina na sociedade. Por outro lado, O Livro dos Espíritos introduz a
ideia de que os Espíritos humanos se desenvolveram e individualizaram em várias existências nas espécies ditas in-
feriores da Natureza. Em A Gênese, a hipótese da evolução espiritual através das espécies vivas seria desenvolvida,
confirmando-se que “nesse primeiro período a alma se elabora e ensaia para a vida”. Ali, Kardec avançaria também
na compatibilização entre a evolução do princípio espiritual e a teoria da evolução das espécies vivas, analisando
que, na época do surgimento dos primeiros hominídeos na Terra, os corpos de macaco existentes teriam sido muito
adequados para a encarnação dos primeiros Espíritos humanos que vieram habitar a Terra. As conclusões atuais da
biologia evolucionária e da paleontologia têm sido bastante compatíveis com essas teses espíritas. A análise aqui
apresentada confirma que o Espiritismo e a Ciência se completam e se fortalecem um ao outro, e que a divulgação
adequada desses dados irá certamente contribuir para fortalecer e arejar nossa fé raciocinada.
Palavras-Chave: Evolução; princípio inteligente; reinos da natureza; evolucionismo; espiritismo; criacionismo.
DOI: 10.22568/jee.v8.artn.010205
científicos daquela época como se fossem os mesmos ainda Química, já que tanto os seres animados (vivos) quanto
hoje. Resultado: contaminam os conceitos atualíssi- os inanimados (inertes) podem ser compostos de substân-
mos da Doutrina Espírita com um dogmatismo científico cias orgânicas ou inorgânicas. Ex.: Nossas células contêm
injustificável. Neste artigo, particularmente, nos propo- compostos inorgânicos (sais minerais, água) e orgânicos
mos a analisar sinteticamente a questão do caráter evolu- (proteínas, vitaminas, lipídeos); por outro lado, uma taça
cionista presente no Espiritismo, desde 1857 até o século de vinho contém álcool, uma substância orgânica1 .
atual. Mais tarde, no capítulo XI da 2a parte de O Livro
Em O Livro dos Espíritos, Allan Kardec analisa, já dos Espíritos, Kardec ensaiaria uma classificação dos
na 1a parte, a visão espírita da Criação universal, abor- seres da Natureza, que analisamos a seguir neste texto.
dando Deus e os elementos gerais do Universo. No 4o
capítulo, ele se propõe a abordar os seres vivos, sua vari- II R EINOS E D OMÍNIOS
edade e a causa de sua vitalidade. Logo no início, Kardec
define: 585. Que pensais da divisão da Natureza em três rei-
nos, ou melhor, em duas classes: a dos seres orgânicos
Os seres orgânicos são os que trazem em si uma e a dos inorgânicos? Segundo alguns, a espécie hu-
fonte de atividade íntima que lhes dá a vida; mana forma uma quarta classe. Qual destas divisões
nascem, crescem, reproduzem-se e morrem; são provi- é preferível?
dos de órgãos especiais para a realização dos diferen-
tes atos da vida e apropriados às necessidades de sua - Todas são boas, conforme o ponto de vista. Do
conservação. Compreendem os homens, os ani- ponto de vista material, apenas há seres orgânicos e
mais e as plantas. Os seres inorgânicos são os inorgânicos. Do ponto de vista moral, há evidente-
que não possuem vitalidade nem movimentos pró- mente quatro graus.
prios, sendo formados apenas pela agregação da ma-
téria: os minerais, a água, o ar, etc. (KARDEC, Esses quatro graus apresentam, com efeito, caracte-
2012, O Livro dos Espíritos, cap. IV, 1o parágrafo, res determinados, muito embora pareçam se confun-
grifos nossos). dir nos seus limites extremos. A matéria inerte, que
constitui o reino mineral, só tem em si uma força me-
Após a pergunta 71, Kardec define melhor essa con- cânica. As plantas, ainda que compostas de matéria
ceituação: inerte, são dotadas de vitalidade. Os animais, tam-
bém compostos de matéria inerte e igualmente do-
Podemos fazer a seguinte distinção: 1o - os seres tados de vitalidade, possuem, além disso, uma espé-
inanimados, formados somente de matéria, sem vi- cie de inteligência instintiva, limitada, e a consciência
talidade nem inteligência: são os corpos brutos; 2o de sua existência e de suas individualidades. O ho-
- os seres animados não pensantes, formados de mem, tendo tudo o que há nas plantas e nos animais,
matéria e dotados de vitalidade, mas desprovidos de domina todas as outras classes por uma inteligência
inteligência; 3a - os seres animados pensantes, especial, indefinida, que lhe dá a consciência do seu
formados de matéria, dotados de vitalidade e tendo futuro, a percepção das coisas extra-materiais e o co-
ainda um princípio inteligente que lhes dá a faculdade nhecimento de Deus. (KARDEC, 2012, O Livro dos
de pensar. (KARDEC, 2012, O Livro dos Espíritos, Espíritos, 2a parte, cap. IX).
cap. IV, questão 71, grifos nossos).
A divisão da Natureza mencionada por Kardec seria,
Nessa definição mais precisa, seres inanimados se- então:
riam os seres inorgânicos, mencionados no início do
capítulo, enquanto os seres animados (pensantes e não- A. Sob o ponto de vista material: - seres orgânicos e
pensantes) seriam os seres orgânicos citados antes. seres inorgânicos
Aqui, a preocupação foi apenas em separar os seres que B. Sob o ponto de vista moral: - reinos mineral, ve-
tem vida (seres vivos) daqueles que são inertes (hoje cita- getal, animal e (?) hominal.
dos mais como objetos, componentes, etc., do que como
seres). Mas essa é a divisão da Natureza proposta em 1735
Note-se ainda que as qualificações orgânico e inor- pelo botânico, zoólogo e médico sueco Carl von Linné
gânico, nesses textos, não se referem necessariamente às (1707-1778) (Fig. 1), na sua obra de vários volumes Sys-
definições atuais de compostos orgânicos e inorgânicos da tema naturae, e que era ainda aceita e ensinada no século
1 Possivelmente, a confusão que existe em relação às expressões orgânico e inorgânico (não somente no movimento espírita) deve-se,
pelo menos em parte, ao desconhecimento da evolução histórica da terminologia química. Em 1777, o químico sueco Torbern O. Bergman
(1735-1784) definiu química orgânica como aquela que estuda os compostos extraídos dos organismos vivos, enquanto a química inorgânica
trataria dos compostos existentes no então chamado “reino mineral”. No entanto, em 1828, o químico alemão Friedrich Wöhler (1800-1882)
demonstrou ser possível a síntese em laboratório de um composto orgânico, a ureia, a partir de um composto inorgânico. Em 1866, Marcelin
P. E. Berthelot (1827-1907) fez o mesmo ao sintetizar o benzeno, derrubando definitivamente a definição de Bergman. Então, o químico
alemão Friedrich A. Kekulé (1829-1896), em 1858, reformulou o conceito de química orgânica como sendo apenas “a química dos compostos
de carbono” (cf. aceito atualmente). No final do século XIX, seria, então, criado o termo Bioquímica, para denominar “a química dos seres
vivos”, que teve um grande avanço a partir de 1920. Atualmente, reconhece-se a existência de compostos orgânicos, inorgânicos e biomo-
léculas. As biomoléculas podem ser orgânicas (sintetizadas pelos seres vivos), inorgânicas (presentes em seres vivos e elementos inertes)
e organometálicas (espécie de composto intermediário, caracterizado pela ligação metal-carbono) (WIKIPEDIA: QUÍMICA ORGÂNICA,
2020; WIKIPEDIA: BIOQUÍMICA, 2020).
XIX. Linné (ou Carolus Linnaeus, como foi latinizado, 1969, Robert Whittaker (1920-1980) (Fig. 2) incluiu os
ou simplesmente Lineu), em sua classificação, baseou-se fungos numa nova classificação dos organismos em cinco
nas diferenças morfológicas externas das várias espécies reinos, classificação ainda adotada e ensinada em várias
conhecidas dos seres da Criação. Orgulhoso do seu tra- escolas brasileiras. Esses reinos, que se diferenciam pelo
balho, afirmava, em latim, que “Deus criou, Lineu orga- tipo de nutrição do ser vivo e pela organização de suas
nizou”. células, são: (unicelulares) Monera e Protista, e (multi-
celulares) Fungi, Plantae e Animalia.
comum universal para bactérias, archaea e eucariotas. Em 2010, Douglas L. THEOBALD (2010) publicou um estudo na revista Nature
avaliando a probabilidade de que toda a vida descendia ou de vários organismos ou de um único. Os seus resultados indicam que a
probabilidade de uma origem comum universal é 102860 maior do que a hipótese de haver mais do que um ancestral comum. Atualmente,
acredita-se que o mais recente ancestral comum universal (denominado LUCA – do inglês last universal common ancestor) de todos os
organismos vivos modernos tenha surgido há cerca de 4 bilhões de anos, um organismo de uma única célula, que não precisava de oxigênio,
alimentando-se de nitrogênio (WIKIPEDIA: ORIGEM COMUM, 2020).
Figura 5: Esquema didático da sequência cronológica dos sistemas de classificação dos seres vivos propostos desde
Carl Linné. Adaptado de WIKIPEDIA: REINO EM BIOLOGIA (2020).
III C RIACIONISMO VS . E VOLUCIONISMO lace (1823-1913), Darwin estabeleceu a ideia que todos
NOS SÉCULOS XIX E XX os seres vivos descendem de um ancestral em comum -
argumento agora amplamente aceito e considerado um
Desde o século XVIII, a partir das descobertas da conceito fundamental no meio científico - e propôs a te-
Paleontologia e das hipóteses evolucionistas do natura- oria de que os ramos evolutivos são resultados de seleção
lista Georges L. L. Buffon (1707-1788), do filósofo Ja- natural e sexual. (WIKIPEDIA: CHARLES DARWIN,
mes Burnett (1714-1799) e outros, diferentes pontos de 2020) (Fig. 6).
vista foram formulados com o objetivo de conciliar a ci- O Livro dos Espíritos foi publicado por Kardec na
ência da evolução com a narrativa de criação do Gênesis, França em 1857 e, em sua 2a edição, em 1860. A Origem
da Bíblia. Nessa época, aqueles que acreditavam que as das Espécies e a Seleção Natural, de Darwin, foi publi-
espécies tinham sido criadas separadamente eram geral- cada em 1859, tendo muita repercussão e alimentando
mente chamados de “defensores da criação”, ou ocasio- uma “efervescência cientificista” na Europa. As idéias
nalmente “criacionistas”. Nos séculos seguintes, surgiram da obra dividiram os expoentes da Igreja católica e cau-
várias correntes, religiosas ou não, de criacionistas. O saram espanto na sociedade e na comunidade científica
termo “criacionismo” é mais comumente usado para se da época, mas conseguiram grande aceitação nas déca-
referir à rejeição, por motivação religiosa, de certos pro- das seguintes, superando a rejeição dos próprios cientis-
cessos biológicos, particularmente a evolução (WIKIPE- tas. “No início da década de 1870 a evolução se tor-
DIA: CRIACIONISMO, 2020; WIKIPEDIA: HISTÓRIA nou a principal explicação para a origem das espécies em
DO PENSAMENTO EVOLUTIVO, 2020). países de língua inglesa. (...) No entanto, a aceitação
Kardec foi contemporâneo do naturalista, geólogo e da evolução entre cientistas de países não anglo-saxões,
biólogo britânico Charles R. Darwin (1809-1882), céle- como França, países do sul da Europa e América Latina
bre por lançar as bases do evolucionismo das espécies foi mais lenta.” (WIKIPEDIA: HISTÓRIA DO PENSA-
nas ciências biológicas. Juntamente com Alfred R. Wal- MENTO EVOLUTIVO, 2020).
J. Est. Esp. 8, 010205 (2020). 010205 – 4 JEE
Terini, R. A.
Figura 6: Charles Darwin e suas principais obras, A Origem das Espécies (1859) e A Origem do Homem (1871), em
tradução para o português. Adaptado de WIKIPEDIA: CHARLES DARWIN (2020).
N’O Livro dos Espíritos, Kardec avançou com cui- quen até o carvalho, e desde o zoófito, o verme da
terra e do oução até o homem. Sem dúvida, entre
dado no terreno da ciência biológica das espécies, tra-
o verme da terra e o homem, não se conside-
tando inclusive de questões hoje superadas, mas presen-
rando senão os dois pontos extremos, há uma
tes na Ciência da época, como é o caso da hipótese da diferença que parece um abismo; mas quando
geração espontânea (ver p. ex., a pergunta 46)3 . Atento a se aproximam todos os anéis intermediários,
um posicionamento mais positivo dos pesquisadores, ele acha-se uma filiação sem solução de continui-
preocupou-se mais com os aspectos espirituais da Natu- dade. (KARDEC, 1868a, Revista Espírita, julho de
reza, deixando em aberto certas questões científicas para 1868, grifos nossos. Similar em A Gênese, cap. X,
o futuro. Mas o fundamento da posição da Doutrina apa- itens 25 e 28).
recia já claro: No mesmo ano, Kardec lançaria A Gênese, os mi-
... tudo se encadeia, tudo é solidário na Natu- lagres e as predições. O capítulo sobre A Gênese ma-
reza. (KARDEC, 2012, O Livro dos Espíritos, trecho terial deixa claro que, desde O Livro dos Espíritos, as
de comentário de Kardec após a questão 132). conclusões da Ciência haviam progredido, com base nas
novas descobertas, e que o Espiritismo a acompanharia
Durante os anos seguintes, Kardec acompanhava e co-
pari passo, enfrentando os preconceitos, e incluindo o ser
nhecia os trabalhos de Darwin, como o demonstram algu-
humano na linha de evolução biológica:
mas citações, por exemplo, na Revista Espírita de junho
de 1868, onde Kardec transcreveu um texto que analisa Verificado que o corpo do homem está em condi-
ções idênticas aos outros corpos, que ele nasce, vive e
as hipóteses da obra de um certo Sr. Herrenschneide:
morre da mesma maneira, deve ter sido formado nas
Como se vê, o autor adota os princípios científicos mesmas condições.
do progresso dos seres, emitidos por Lamarck,
Geoffroy Saint-Hilaire, e Darwin, com esta di- Embora isso fira seu orgulho, o homem deve se resig-
ferença de que a ação moderadora das formas e dos nar a ver em seu corpo material o último elo da ani-
órgãos animais não é mais somente o resultado da malidade sobre a terra. O inexorável argumento dos
seleção e da concorrência vital, mas é também, fatos aí está, e será em vão levantar protestos contra
e sobretudo, o efeito da ação inteligente do espírito tal situação. (KARDEC, 2010a, A Gênese, cap. X,
animal... (KARDEC, 1868a, Revista Espírita, junho itens 28 e 29).
1868, grifos nossos).
Em 1871, DARWIN (2019) publicaria outro livro
No mesmo ano, em consonância com o progresso das significativo, intitulado A Origem do Homem e a Sele-
ideias científicas, aparecia na Revista Espírita uma opi- ção Sexual, em que estabeleceria, a partir de numerosas
nião mais amadurecida sobre a questão da geração e evo- fontes de dados, a descendência dos humanos em relação
lução dos diferentes seres vivos: aos animais, mostrando a continuidade de seus atributos
físicos e mentais a partir dos primatas, e enfatizando que
Os seres não procriados formam, pois, o primeiro es-
calão dos seres orgânicos, e contaram provavelmente
todos os humanos são da mesma espécie. Sua conclusão
um dia na classificação científica. Quanto às espécies foi que:
que se propagam por procriação, uma opinião que não ... o homem, com todas as suas qualidades nobres,
é nova, mas que se generaliza hoje sob a égide com a simpatia que sente por todos aqueles menos
da ciência, é que os primeiros tipos de cada favorecidos, com a benevolência que se estende não
espécie são o produto de uma modificação da somente aos outros homens, mas também com a cri-
espécie imediatamente inferior. Assim é estabe- atura mais humilde, que com seu intelecto espelhado
lecida uma cadeia ininterrupta desde o musgo e o lí- ao divino penetrou nos movimentos e constituições do
3 Veja uma interessante discussão de Kardec sobre a geração espontânea num artigo da Revista Espírita de 1868 (KARDEC, 1868b).
sistema solar – com todos seus poderes, o homem 607-a. Parece que, assim, se pode considerar a alma
ainda traz em sua estrutura física a marca indelével como tendo sido o princípio inteligente dos seres in-
de sua origem primitiva. (DARWIN, 2019). feriores da criação, não?
A Ciência avançou muito desde então e, no século - Já não dissemos que tudo na Natureza se encadeia
XX, a estrutura do DNA foi elucidada (1953) e, no ano e tende para a unidade? Nesses seres, cuja totali-
2000, concluiu-se o audacioso Projeto Genoma Hu- dade estais longe de conhecer, é que o princípio
mano (PGH), que envolveu laboratórios de vários paí- inteligente se elabora, se individualiza pouco a
ses, sequenciando todo o genoma (sequência genética do pouco e se ensaia para a vida, conforme acabamos
DNA) da espécie humana. de dizer. É, de certo modo, um trabalho preparatório,
como o da germinação, por efeito do qual o princípio
Hoje, com o sequenciamento gênico de diversas ou- inteligente sofre uma transformação e se torna Espí-
tras espécies, sabemos, por exemplo, que a nossa rito. Entra então no período da humanização, come-
sequência difere cerca de 1% da informação dos chi- çando a ter consciência do seu futuro, capacidade de
panzés. (CECHETI, 2018). distinguir o bem do mal e responsabilidade dos seus
atos. (KARDEC, 2012, O Livro dos Espíritos, grifos
Como, então, hoje em dia, se pode negar que nós, hu- nossos).
manos, temos uma descendência biológica comum com os
outros primatas? Logo de início, os Espíritos confirmam que muitos se-
Além disso, os dados mais recentes demonstram que res vivos ainda seriam descobertos, como, de fato, ocor-
o genoma de uma pessoa é igual a 99,5% da com- reu, propiciando o desenvolvimento das taxionomias bi-
posição do DNA de qualquer outro indivíduo na ológicas modernas: hoje, mesmo sem contar bactérias e
face da Terra, seja qual for sua etnia ou origem. Essa vírus, reconhecem-se pelo menos 8,7 milhões de espécies
diferença é considerada insuficiente para caracterizar bi- vivas na Terra, incluindo a espécie humana!4 Nessa per-
ologicamente diferentes raças na espécie humana... “Um gunta, Kardec, como de costume em sua época, se refere
duro golpe no orgulho vão!” (WIKIPEDIA: PROJETO às demais espécies, vegetais e animais, como “inferiores”
GENOMA HUMANO, 2020). à espécie humana, e a resposta confirma que a alma só
atinge a condição humana após várias existências nes-
ses seres, em que “se elabora, se individualiza pouco a
IV E VOLUÇÃO DO PRINCÍPIO INTELI -
pouco e se ensaia para a vida” (KARDEC, 2012, O Livro
GENTE PELAS ESPÉCIES VIVAS dos Espíritos, questão 607-a). Só depois desse processo
Em paralelo com a análise da evolução das espécies evolutivo é que ela entra no “período da humanização,
biológicas, Kardec analisa, nas obras básicas do Espiri- começando a ter consciência do seu futuro, capacidade
tismo, a evolução do princípio espiritual, cuja análise tem de distinguir o bem do mal e responsabilidade dos seus
escapado às demais ciências. atos” (KARDEC, 2012, Idem).
É interessante analisar como Kardec compatibiliza es- Continuando, os Espíritos afirmam o caráter contí-
ses dois processos de evolução: a biológica (das espécies) nuo e gradativo desse progresso do princípio inteligente,
e a espiritual, até chegar ao estágio hominal. mesmo quando já na espécie humana:
O processo da evolução espiritual foi apenas esboçado
em O Livro dos Espíritos, quando as ideias de evolução Durante algumas gerações, ele pode conservar um
biológica das espécies ainda eram controversas em todo reflexo mais ou menos pronunciado do estado primi-
o mundo. Ela é inserida no mesmo capítulo XI em que tivo, porque nada na Natureza se faz por transição
Kardec aborda os “três reinos” (concepção de Lineu). brusca (...). Os primeiros progressos se realçam
lentamente, porque não são ainda secundados
607. Dissestes que o estado da alma do homem, na pela vontade, ... (KARDEC, 2012, O Livro dos Es-
sua origem, corresponde ao estado da infância na vida píritos, questão 609, grifos nossos).
corporal, que sua inteligência apenas desabrocha e se
ensaia para a vida. Onde passa o Espírito essa pri- O processo evolutivo espiritual, como um todo, envol-
meira fase do seu desenvolvimento? veria, assim, não só os seres vivos do nosso planeta:
- Numa série de existências que precedem o período a
que chamais Humanidade. (KARDEC, 2012, O Livro A Terra não é o ponto de partida da primeira encar-
dos Espíritos). nação humana. O período de humanidade co-
meça, em geral, nos mundos ainda mais inferi-
Os Espíritos inquiridos afirmam, então, que nem só a ores. (KARDEC, 2012, O Livro dos Espíritos, ques-
espécie humana serve para a encarnação das almas; que tão 607-b, grifos nossos).
a inteligência do Espírito se desenvolve antes de atingir
a condição de Humanidade e que, para isso, renasce em Anos depois, em A Gênese, Kardec confirmaria e deli-
outras espécies (palingênese). Continuando, Kardec pro- nearia melhor o processo evolutivo do princípio espiritual
põe: antes de entrar para a espécie humana:
4 Planeta tem 8,7 milhões de espécies conhecidas, aponta levantamento. 2011. Veja este link. Acessado em 10.06.2020.
Ser, do Destino e da Dor (DENIS, 1985), e não a versão mais comumente divulgada, que afirma que “A alma dorme na pedra, sonha no
vegetal, agita-se no animal e acorda no homem”, mencionada por J. Herculano Pires (1914-1979), na obra Mediunidade: vida e comuni-
cação (PIRES, 2015). Essa última frase, está mais de acordo com a tradição oriental e é defendida também pelo advogado J. B. Roustaing
(1805-1879), em sua polêmica obra Os Quatro Evangelhos (ROUSTAING, 2008). À parte a diferença de tradução, a possibilidade da alma
passar/estagiar no reino mineral, endossada por alguns autores, não é respaldada por A. Kardec (veja-se, por exemplo, a questão 136-a d’O
Livro dos Espíritos e o artigo A alma da Terra, na Revista Espírita de setembro de 1868) além de outros autores, como Gabriel Delanne
(1857-1926) e Ary Lex (1916-2001) (SOBRINHO, 2014).
6 Também nesse aspecto, desde a época de Kardec, as conclusões científicas se refinaram, com base na análise dos fósseis descobertos,
e aceita-se hoje que humanos (sapiens e seus parentes extintos), chimpanzés e bonobos tiveram um ancestral comum, que teria vivido há
pelo menos 5,5 milhões de anos (BBC NEWS BRASIL, 2019; WIKIPEDIA: ANCESTRAL COMUM ENTRE HUMANO E CHIMPANZÉ,
2020). Esse fato, entretanto, não afeta a conclusão proposta por Kardec sobre a encarnação inicial dos Espíritos humanos na Terra, e seria,
talvez, um indicativo da época aproximada em que esse processo teria se iniciado.
ao desenvolvimento de uma linguagem elaborada e versá- obtidas gradativamente dos Espíritos. Em A Gênese,
til, de tecnologias mais aperfeiçoadas de caça e plantio, além disso, Kardec formulou sua arrojada hipótese sobre
à invenção de meios de transporte, iluminação, defesa, a origem do corpo humano, em que nossa descendência
arte e conservação mais eficazes, nos acostumamos, desde biológica dos primatas apareceria como a conclusão mais
cerca de 10.000 anos atrás, a considerar nossa espécie, plausível.
Homo sapiens, como a única espécie humana da Terra. Em paralelo, pontuamos que O Livro dos Espíri-
São os próprios especialistas que reconhecem: tos introduziu a ideia de que os Espíritos, antes de se
A maioria dos pesquisadores acredita que essas con- qualificarem para a espécie humana, se desenvolveram em
quistas sem precedentes foram produto de uma re- várias existências nas outras espécies da Natureza. Em
volução nas habilidades cognitivas dos sapiens. (HA- A Gênese, essa ideia foi desenvolvida, compatibilizada
RARI, 2017, cap. 2). com o processo paralelo de evolução biológica das espé-
cies, sugerindo-se inclusive que, na época do surgimento
A evolução espiritual das espécies vivas acarreta
dos primeiros hominídeos na Terra, os corpos dos pri-
modificações na forma desses seres atuarem no ambiente
matas mais desenvolvidos existentes teriam sido os mais
(que inclui a diversidade das próprias espécies, em geral).
adequados para a encarnação dos primeiros Espíritos hu-
Isso acaba produzindo uma adaptação do ecossistema a
manos que vieram habitar o planeta. A reprodução e
esses modos de atuação que, em média, tendem a torná-
a fixação de novos caracteres oriundos da atuação des-
lo cada vez mais harmônico, em resposta a uma atuação
ses Espíritos em seus corpos materiais, juntamente com
cada vez mais equilibrada e responsável. As desarmonias
a influência dos fatores ambientais e genéticos, permiti-
e altos e baixos provocados principalmente pelo mau uso
riam a formatação da espécie humana, como a entende-
do livre-arbítrio pela espécie humana são compensados,
mos hoje. O Espiritismo trata então da interação entre
a longo prazo, pelo aprendizado que advém do enfren-
a evolução espiritual e a evolução biológica.
tamento das consequências adversas dessas ações. Em
O Evangelho segundo o Espiritismo, Kardec deixa bem Na elaboração do trabalho, utilizamos artigos e obras
clara essa interdependência entre nós e o ecossistema em científicas, de acesso geral físico ou via Internet, além
que vivemos: das obras básicas de Kardec. Não são conhecimentos
herméticos. Boa parte desse conhecimento científico já
Ao mesmo tempo em que todos os seres vi- é ensinado, mesmo que sinteticamente, no Ensino Básico
vos progridem moralmente, progridem materi- brasileiro. Como queremos que o Espiritismo seja levado
almente os mundos em que eles habitam. Quem
a sério pelos próprios jovens se ele não for divulgado em
pudesse acompanhar um mundo em suas diferentes
concordância com as noções científicas básicas que apren-
fases, desde o instante em que se aglomeraram os
primeiros átomos destinados e constituí-lo, vê-lo-ia dem na escola?
a percorrer uma escala incessantemente progressiva, O desenvolvimento do Espiritismo se deu a partir das
mas de degraus imperceptíveis para cada geração, e progressivas informações obtidas dos Espíritos ao longo
oferecer aos seus habitantes uma morada cada vez do trabalho de Kardec e colaboradores, mas, como um
mais agradável, à medida que eles próprios avançam dos critérios de aceitação de novas informações doutri-
na senda do progresso. Marcham assim, paralela- nárias é o “seu confronto com as verdades científicas de-
mente, o progresso do homem, o dos animais, monstradas” [J. H. Pires, Introdução a O Livro dos Es-
seus auxiliares, o dos vegetais e o da habita- píritos, in O Livro dos Espíritos, Ed. LAKE], era im-
ção, porquanto nada na Natureza permanece
prescindível que houvesse sintonia com o progresso das
estacionário. Quão grandiosa é essa ideia e digna da
majestade do Criador! (KARDEC, 2010b, O Evange-
ciências da Natureza.
lho Segundo o Espiritismo, cap. 3, item 19, grifos O movimento espírita não pode ignorar o progresso
nossos). sério das ciências, sob o risco de repetir o que ocorreu
com a Igreja cristã que, até há pouco tempo, teimava que
V C ONCLUSÃO a Terra era o centro do Universo e que os métodos anti-
concepcionais eram de inspiração diabólica, sendo atro-
No presente trabalho procuramos sintetizar a evolu- pelada pelo progresso e reduzindo seu protagonismo na
ção da taxionomia biológica dos seres da Natureza após sociedade. Se queremos que a Doutrina Espírita, monu-
Kardec, a qual, dos três reinos de Lineu, passou a incluir mento de coerência e luz para a humanidade, não seja
apenas os seres vivos, derivando para o evolucionismo guardado apenas nas estantes, como obra histórica, é ne-
das espécies e do ser humano (darwinismo), aprofundado cessário lembrar o alerta de Allan Kardec:
e consolidado com o desenvolvimento, no século XX, da
bioquímica e da biologia evolucionista e a complemen- O Espiritismo e a Ciência se completam um ao ou-
tação do mapeamento do genoma humano no limiar do tro: a Ciência, sem o Espiritismo, se encontra impo-
século XXI. tente para explicar certos fenômenos somente pelas
Analisamos também de que forma Kardec, a partir da leis da matéria; ao Espiritismo, sem a Ciência, falta-
publicação de O Livro dos Espíritos, avançou, em artigos ria o apoio e o controle. (KARDEC, 2010a, A Gênese,
na Revista Espírita, a conceituação da Doutrina sobre a cap. I, item16).
evolução das espécies, em consonância com o desenvolvi-
mento da Ciência da época, além das novas informações
Abstract: In the formulation of Spiritism as a science of observation, Allan Kardec has always been concerned with presenting
its concepts associated with the scientific ideas accepted at his time, aiming to integrate it into the current culture. And
he sought to update himself, consolidating the doctrine so that confidence in it could “face reason face to face, in all ages
of mankind”. In The Spirits’ Book, Kardec mentions a classification of the beings of Nature into three kingdoms, including
minerals, based on a scientific division accepted since the 18th century. The present work analyzes the evolution of this biological
conception after Kardec, when it started to include only living beings, drifting towards the evolutionism of species and human
being (Darwinism), deepened and consolidated with the development, in the 20th century, of evolutionary biology and with the
mapping of the human genome. In this book, Kardec carefully addresses the field of biological science of species. After the
publication of The Origin of Species by Charles Darwin in 1859, Kardec, in several articles in the Spiritist Magazine, would
advance the concepts of the Doctrine in line with the development of the Science of evolution. In The Genesis, miracles and
predictions, in 1868, Kardec formulated the hypothesis about the origin of the human body in which our biological primate
descent appeared as the most likely conclusion. However, unlike Kardec’s concern, the evolution of this biological conception
has not been considered by most of the disseminators of Spiritism, who continue to teach the same Three kingdoms today,
compromising the Doctrine’s own credibility in society. On the other hand, The Spirits’ Book introduced the idea that human
Spirits have developed and individualized in many existences in the so-called lower species of Nature. In The Genesis, the
hypothesis of spiritual evolution through living species has been developed, confirming that “in this first period the soul is
elaborated and rehearses for life”. There, Kardec would also advance the compatibility between the evolution of the spiritual
principle and the theory of the evolution of living species, analyzing that, at the time of the appearance of the early hominids
on Earth, the existing monkey bodies would have been very suitable for the incarnation of the first human Spirits who came
to inhabit the Earth. The current conclusions of evolutionary biology and paleontology have been quite compatible with these
spiritist theses. The analysis presented here confirms that Spiritism and Science complement and strengthen each other, and
that the adequate disclosure of these data will certainly contribute to strengthen and airing our reasoned faith.
Keywords: Evolution; intelligent principle; kingdoms of nature; evolutionism; spiritism; Spiritist science.