M23 - Aula 4
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Coletânea de textos
AULA 4
Objectivos da aprendizagem:
Bibliografia:
História I 46
A OESTE, O GRANDE SURTO DA EUROPA FEUDAL
Nos três séculos seguintes ao Ano Mil, o Oeste europeu passou por uma notável fase
de expansão demográfica e económica, organizou-se num sistema político e social
original - o do feudalismo - e iniciou, por motivos principalmente religiosos, um vasto
movimento de conquistas que o conduziram a terras pagãs e, para reconquistar o
túmulo do Cristo, às terras do Islão.
Os três séculos que medeiam entre os anos 1000 e 1300 foram os do surto inicial da
Europa Ocidental. Abrigada das invasões vindas de leste graças ao talude constituído
pelos novos Estados cristãos da Rússia, da Polónia e da Hungria, a Europa Ocidental
era já um meio protegido. Neste contexto privilegiado, dotado de estruturas sociais
originais e sustentado por um continuado crescimento demográfico, o Ocidente latino
já podia, simultaneamente, sair do subdesenvolvimento económico que o
caracterizara até então, tentar novas experiências políticas e passar, perante os
mundos que o rodeavam, de uma atitude defensiva a uma atitude conquistadora.
O feudalismo
História I 47
fortalecidos pela companhia germânica, pela vassalagem carolíngia e pela caução da
Igreja, que os sacralizava pelo juramento; o desaparecimento da noção romana de
Estado e, mais tarde, o seu ressurgimento em proveito do Império Carolíngio, seguido
do açambarcamento dos poderes públicos - assim reconstituídos por aqueles próprios
leigos e eclesiásticos que deveriam exercê-los em nome do soberano. A grande
propriedade, a autoridade sobre os homens e a privatização dos poderes estão na
origem da omnipotência dos senhores feudais, detentores de feudos e construtores de
castelos de uma a outra ponta da Europa Ocidental. As modalidades, as datas, o
vocabulário podem diferir: assim, por exemplo, o historiador R. Fossier chegou a
descrever «sete rostos do feudalismo». Mas o fenómeno da pulverização dos poderes
foi geral. Esse poder em migalhas estava, com efeito, à medida de uma reconstrução
social e económica realizada a partir da base.
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reencontrado numa versão cristianizada, o velho esquema indo-europeu da
trifuncionalidade: a posição de cada indivíduo na ordem geral corresponde a uma das
três funções que o homem pode desempenhar na sociedade: orar, combater ou
trabalhar.
A primeira destas funções cabia, nesta sociedade de ordens, aos clérigos e aos monges
- que asseguravam, pelo culto religioso e pela oração, a indispensável relação com
Deus e, portanto, a salvação de todos. A Igreja - renovada no século XI pela reforma
gregoriana e dominada pelo poder papal desde Gregório VII (1073-1085) até Inocêncio
III (1198-1216) - dedicou-se então à cristianização em profundidade da sociedade,
expressa em grandes concílios reunidos em Latrão. A poderosa influência da Igreja na
sociedade cristã foi reforçada por meio de grandes reformas monásticas ou religiosas
que assinalam os tempos fortes da história da instituição: a fundação de Cluny em
910, a fundação de Cister (Clteaux) em 1098, que teve novo ímpeto em 1112 com a
chegada de S. Bernardo -, a fundação das ordens mendicantes por S. Domingos (1170-
1221) e S. Francisco (1182-1226).
O bom andamento do mundo assentava na ordem dos guerreiros que, como senhores
da força e do poder, tinham o encargo de defender a ordem e a paz. A Igreja tentou
por todos os meios canalizar a violência do mundo dos guerreiros, dos feudos e dos
castelos - em particular criando e fomentando as instituições de paz e ajudando à
formação de um ideal que iria transformar, nos séculos XII e XIII, em cavaleiro-
cavalheiro o brutal cavalgador do Ano Mil. O cavaleiro knight, Ritter, cavaliere,
caballero..., dominava então a realidade social e a ficção poética das canções de gesta,
dos romances corteses ou dos Minnesdnger.
Mas a sobrevivência dos clérigos e dos guerreiros era assegurada pela terceira ordem,
a dos camponeses, que trabalhavam a terra no âmbito da aldeia, do senhorio e da
paróquia rural. Depois do desaparecimento da escravatura, já praticamente
inexistente no Ano Mil, o seu estatuto jurídico apresentava uma infinidade de
variações de grau entre a servidão e a liberdade; já o mesmo se não dava com a sua
condição económica, pois não havia comparação possível entre o mísero jornaleiro,
amarrado aos limites da sua aldeia, e o rico possuidor de charrua e de animais de tiro
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para puxá-la. Todos eles eram, porém, englobados num mesmo desprezo - o desprezo
que se dava a uma classe social deprimida e posta ao serviço dos senhores de quem
dependia por completo.
Das três grandes fases por que a Europa Ocidental teve de passar até chegar à
supremacia mundial, o período que medeia entre os anos 1000 e 1300 foi preenchido
pela primeira, a fase agrícola - preliminar indispensável para o renascimento comercial
do século XVI e para a revolução industrial dos séculos XVIII e XIX. Esse primeiro
período de crescimento assegurou aos homens da cristandade latina, cada vez mais
numerosos, o domínio da ocupação do solo e da produção rural.
História I 50
A ORDEM FEUDAL
1 - Os primeiros sinais de expansão
Os sintomas deste desenvolvimento surgem lentamente. É notório que os cronistas
que escreviam na Gália durante a primeira metade do século XI - homens como
Ademar de Chabannes ou Raul Glaber - não parecem ter consciência de qualquer
progresso na civilização material à sua volta. É claro que estes homens foram educados
nos mosteiros, e muitos nunca saíram as suas portas. Para mais, o mundo da carne não
merecia atenção, pois os verdadeiros elementos do mundo eram espirituais. A história,
tal como estes monges a concebiam, devia preocupar-se com o destino moral da
humanidade, a marcha em direcção ao fim dos tempos e à cidade celestial. Não
podemos, portanto, esperar que sejam testemunhas fidedignas sobre assuntos
económicos. De qualquer forma, o seu silêncio indica que essas mudanças na
economia se processavam muito lentamente e não tinham a natureza de uma ruptura.
Algumas facetas destas modificações foram postas em relevo por escritores da Igreja,
porque viram nelas sinais dos desígnios de Deus.
Eram sensíveis sobretudo a dois tipos de fenómenos. Por um lado, os desastres, que
interpretavam como expressões da ira divina ou das forças do mal que atrasavam o
Homem no caminho para a luz. Assim descreveram as grandes epidemias que
avassalavam a Europa Ocidental e que só podiam ser travadas por preces, actos de
penitência colectiva e o recurso ao poder protector das relíquias. Não há dúvida que a
disseminação da doença, e sobretudo do «mal dos ardentes», era favorecida pelas
deficiências alimentares. Um destes escritores também chama a atenção para a ligação
entre a epidemia que devastava o Norte da França em 1045 e a falta de comida: «Um
fogo mortal começou a devorar inúmeras vítimas... E ao mesmo tempo, a população
de quase todo o mundo sofria as fomes resultantes da falta de vinho e de cereais».
As pessoas descritas nestes relatos parecem ter vivido sob a ameaça constante da
fome. De vez em quando, a subnutrição crónica agravava-se, causando mortalidade
catastrófica; daqui a «maldição penitencial» que, a acreditar em Raul Glaber, flagelou a
Europa durante três anos, cerca de 1033.
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Não existe, contudo, nada que nos impeça de ver verdadeiros sinais de expansão nesta
fome permanente e nas crises periódicas que deixavam pilhas de cadáveres por
enterrar nos cruzamentos das estradas e que levavam os homens e as mulheres a
comer fosse o que fosse - terra e até carne humana. Elas por certo representam um
desequilíbrio temporário entre os níveis da produção, as deficiências técnicas duma
agricultura de sobrevivência ainda muito vulnerável ao mau tempo: «chuvas contínuas
alagaram toda a terra a ponto de durante três anos ser impossível abrir regos capazes
de receber semente» e o número de consumidores que aumentava com a população.
De qualquer modo, o retrato trágico que Raul Glaber pinta das fomes de 1033 mostra
que estes desastres ocorriam num clima que era já altamente volátil. Os actos de
canibalismo que ele condena ocorreram numa província onde os viajantes se
deslocavam ao longo de caminhos e faziam escala nas estalagens; onde a carne se
vendia habitualmente nos mercados; onde o dinheiro era utilizado normalmente para
obter comida («então os ornamentos eram tirados das igrejas para serem vendidos a
favor dos pobres») e os especuladores tiravam partido da miséria generalizada. Este
era um mundo em mudança e as calamidades que o afligiam eram, na realidade, o
preço da expansão demográfica, que se dava, possivelmente, a uma cadência
demasiado rápida e, de qualquer forma, não regulada, mas que pode ser encarada
como um dos primeiros frutos do crescimento económico.
Por outro lado, os cronistas foram impressionados por certas inovações.
Interpretavam-nas à luz de uma história que se centrava na salvação da humanidade,
mas eles próprios as consideravam marcas indubitáveis de progresso. Depois do
mistério da Paixão de Cristo, Raul Glaber regista as manifestações do que lhe parece
ser uma nova aliança, uma nova primavera para o mundo cuja floração era o resultado
da clemência divina. Entre os sinais que o impressionaram, havia três que
aparentemente envolviam o jogo das forças económicas. Em primeiro lugar, salienta o
tráfego desusado nas estradas. Os únicos viajantes a que este homem da Igreja se
refere especificamente são os peregrinos, mas parecem-lhe ser mais numerosos do
que nunca:
«…ninguém podia prever tal multidão: para começar, havia membros das classes mais baixas;
depois, as pessoas das classes médias; e depois os da mais alta linhagem, reis ou condes,
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marqueses ou prelados, e, por fim, algo que nunca sucedera, muitas mulheres, das mais
nobres às mais pobres, faziam o caminho de Jerusalém».
(…)
Uma segunda inovação, notada pelos historiadores e também apontada como
progresso espiritual, foi a construção de igrejas.
(…)
Sinais de uma terceira inovação, registada pelos cronistas dos inícios do século XI, são
o testemunho de uma nova ordem: o estabelecimento das instituições feudais.
2 – A ordem feudal
A utilização da palavra «feudalismo» (féodalisme), adoptada pelos historiadores
marxistas para definir uma das fases principais da evolução social e económica,
justifica-se pelo papel do «feudalismo» (féodalité) (no seu sentido mais lato,
recobrindo o exercício do poder na Europa Ocidental a partir do primeiro milénio) na
organização de novas relações entre as forças produtivas e aqueles que delas tiravam
proveito. Assim é essencial examinar em profundidade esta grande alteração que se
deu nas estruturas políticas.
O feudalismo caracterizava-se, em primeiro lugar pela decadência da autoridade real e
vimos já que a incapacidade dos Carolíngios para conter os ataques do exterior tinha
acelerado a dispersão do seu poder no decurso do século IX. A defesa da terra - a
função primeira da realeza - passou rápida e irreversivelmente para as mãos dos
príncipes locais. Estes assumiram os direitos reais que neles tinham sido delegados e
incorporaram-nos no património duma dinastia cujas fundações iam sendo lançadas
como parte do mesmo processo. Depois, a maior parte dos grandes principados foi-se,
por sua vez, desintegrando, tal como os reinos. Os senhores de média linhagem,
primeiro os condes e depois, por volta do ano 1000, os comandantes das fortalezas
obtiveram a sua independência dos príncipes. Estes acontecimentos, ocuparam todo o
século X na Gália, afectaram a monarquia inglesa e penetraram em Itália, embora aqui
fossem alterados pela força das cidades. Foram lentos a chegar à Germânia, onde as
instituições políticas carolíngias sobreviveram até ao alvorecer do século XII. Esta
subdivisão em unidades territoriais cada vez mais pequenas do direito de punir,
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comandar e assegurar a paz e a justiça constituiu um ajustamento às possibilidades
concretas do exercício da autoridade num mundo rural e bárbaro, onde era difícil
comunicar à distância. A organização política ia sendo adaptada às condições da vida
material. Mas importa frisar que esta mudança só se realizou quando a memória das
guerras de pilhagem sazonais, anteriormente conduzidas por todo o corpo de homens
livres contra inimigos de outras tribos, se apagou da memória dos camponeses.
Coincidiu com a adopção de um novo tipo de guerra e com a criação de um novo
conceito de paz.
O desenvolvimento da ideologia da «paz de Deus» caminhou de mãos dadas com as
últimas fases da feudalização. Foi pela primeira vez expressa pouco antes do ano 1000
no Sul da Gália, região onde se deu primeiro o colapso da autoridade real. Lentamente
esta ideia foi ganhando uma certa consistência, embora se tenha espalhado por toda a
cristandade latina sob diversos aspectos. Os seus princípios eram muito claros: Deus
tinha delegado nos reis ungidos a tarefa de manter a paz e a justiça; os reis já não
eram capazes de a levar a cabo; assim, Deus tinha-lhes retirado esse poder de
comandar que de novo passou para as suas mãos e investira-o noutros seus
servidores, os bispos, com a ajuda dos príncipes locais. Assim, os concílios, convocados
pelos prelados, reuniam-se em cada distrito, e os magnatas e os seus guerreiros
participavam neles. Estas assembleias, baseando-se em princípios de ordem moral e
espiritual, procuravam refrear a violência e estabelecer regras de conduta para todos
os que usavam armas: por meio de um juramento colectivo, todos os guerreiros
profissionais se obrigavam a cumprir e respeitar certas proibições, sob pena de
excomunhão. Este sistema não se revelou muito eficaz. Durante os séculos XI e XII, os
caminhos do Ocidente foram constantemente devastados por grupos profissionais de
guerreiros. Mesmo assim, a instituição da paz de Deus teve profundas repercussões
sobre o comportamento os homens e sobre as bases elementares da vida económica.
Para começar, estabelecia pela primeira vez uma moral coerente de guerra. Na
primeira sociedade medieval, a luta era considerada uma actividade normal e aquela
em que a liberdade legal atingia a sua expressão mais elevada. Nenhum ganho era
considerado mais justo do que o conseguido pela guerra. De agora em diante, e de
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acordo com os preceitos dos concílios de paz, já não era permitido lutar (nem
manipular dinheiro, ou ter relações sexuais) a não ser dentro de limites específicos.
Definiram-se campos de acção fora dos quais o recurso às armas era condenado como
mal e contrário aos desígnios de Deus e à ordenação natural do mundo. Toda a
violência militar foi proibida em certas áreas (perto dos locais de culto, marcados.
pelas cruzes erguidas nas estradas), durante certos períodos, correspondentes às
ocasiões mais sagradas do calendário litúrgico e contra certos grupos sociais
considerados vulneráveis (os clérigos e os «pobres», ou massas populares). Estes
princípios morais existiam já em forma embrionária nas regras de paz e justiça que os
reis carolíngios tinham tentado fazer respeitar. Mas por serem agora da
responsabilidade da Igreja latina que as amalgamou num código uniforme, válido para
todos os seguidores de Cristo, eram agora muito mais fáceis de impor à comunidade
cristã, e isto numa altura em que os grandes Estados, recém-formados pela conquista
se desintegravam numa multidão de pequenos potentados rivais. A fragmentação da
Europa em inumeráveis unidades políticas poderia ter criado condições para o
aumento dos confrontos militares, para o fortalecimento das guerras tribais e para que
se restaurasse, no coração da Europa, uma ordem económica baseada na pilhagem
permanente. As determinações da Paz de Deus afastaram do mundo cristão as forças
agressivas próprias da sociedade feudal. Contra os inimigos de Deus, «os infiéis» não
só era permitido como até francamente salutar pegar em armas. Os homens da guerra
eram, assim convidados a praticar as suas actividades fora da cristandade. O espírito
de cruzada, que emanava directamente duma nova ideologia de paz, guiava-os para as
guerras no exterior, para as prósperas regiões fronteiriças onde a guerra era um
estímulo poderoso para a circulação da riqueza.
O roubo de riquezas pertencentes às igrejas e aos camponeses por meio da violência
militar contra o povo de Deus era assim visto cada vez mais claramente pelos que
tinham vocação para a luta como um perigo para a salvação da alma. No entanto, a
aquisição de riquezas podia-se fazer por outros meios, desde que fossem «pacíficos» -
e estes eram permitidos pela instituição do senhorio. Ao condenar a pilhagem pela
violência, a ética da paz de Deus, em compensação, legitimou a exploração senhorial.
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Esta era apresentada como o preço que tinha de ser pago pela segurança que o novo
regime garantia aos trabalhadores.
A exploração senhorial obedecia a um padrão sociológico que provavelmente se
ajustava à realidade das relações económicas e que, ao mesmo tempo, lhes dava uma
maior solidez. À medida que se afastava o ano 1000, os concílios de paz começaram a
invocar a teoria das três ordens, que tinha germinado lentamente num estreito círculo
de intelectuais: desde a Criação, Deus tinha distribuído tarefas específicas a cada
homem; uns deviam orar pela salvação de todos, outros deviam lutar para proteger o
povo; cabia aos membros do terceiro estado, de longe o mais numeroso, alimentar,
com o seu trabalho, os homens de religião e da guerra. Este padrão, que rapidamente
marcou a consciência colectiva, apresentava uma forma simples e em conformidade
com o plano divino e assim sancionava a desigualdade social e todas as formas de
exploração económica. No interior de uma estrutura mental tão clara e rígida podiam
existir livremente as diversas relações de dependência desde há muito estabelecidas
entre os trabalhadores camponeses e os proprietários rurais e que definiam o
mecanismo dum sistema económico que na generalidade pode ser apelidado de
«feudal».
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ainda mais generosamente no leito de morte - mesmo com o risco de deixar os
herdeiros em má situação - para o funeral e para obter a intercessão dos santos antes
do dia do juízo. Davam o que podiam, principalmente terras, uma vez que estas eram
as formas mais valiosas de riqueza, especialmente quando tinham trabalhadores para
a cultivar. Todas as fontes escritas deste período ao dispor dos historiadores provêm
de arquivos eclesiásticos: são na sua maioria escrituras garantindo aquisições das
igrejas, fazendo assim luz sobre este fenómeno e fazendo-nos correr o risco de
exagerar a sua importância. Contudo, esta enorme transferência de propriedades em
terra - de que os mosteiros beneditinos eram os principais beneficiários, com as igrejas
episcopais em segundo lugar - era a mudança mais dinâmica que afectava a economia
europeia desta época e colocou a Igreja do Ocidente numa posição temporal
absolutamente ímpar. Contudo, não tardou a ser alvo de críticas dos que supunham
compreender melhor a mensagem do Evangelho e, em meados do século XI, começam
a levantar-se vozes que pretendem libertar os servos de Deus de preocupações
demasiado materiais. A riqueza enorme da Igreja criava uma inquietação que agia
como fermento da propaganda de heresias e um ponto de partida para sucessivas
tentativas de reforma. Também originou um aumento constante no número de
monges e clérigos durante os séculos XI e XII.
Estes homens não estavam totalmente afastados dos processos de produção. O clero
rural, em maioria, vivia como o campesinato, donde provinha e cujos costumes
partilhava. As igrejas e capelas rurais eram servidas por padres que trabalhavam no
campo com as suas famílias (muitos eram casados), cultivavam os pedaços de terra
que lhe eram dados pelos senhores do domínio, em paga dos seus serviços. As
comunidades de monges e cónegos reformados, que se tornaram frequentes no século
XI, exortavam os seus membros ao trabalho manual. Este ascetismo rígido recaía
sobretudo nos de origem rústica, que não participavam inteiramente no ofício
litúrgico. Nas suas penosas circunstâncias materiais, estes «irmãos leigos» (conversi)
assemelhavam-se ao campesinato. No entanto, muitos dos prelados mais ricos, como
recebedores de ofertas mais substanciais, eram simples consumidores. Os que
residiam próximo das catedrais gozavam duma situação social semelhante à dos
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seculares mais ricos. Nem lhes ocorria que o seu papel de servidores de Deus pudesse
ser cumprido sem ostentação. Das riquezas que recebiam em quantidade utilizavam
uma parte para assistir aos pobres. A sua hospitalidade fazia-se em grande escala. Os
pedintes recebiam dinheiro ou alimentos às portas das igrejas e estas esmolas rituais
eram alargadas em tempo de calamidades. Esta função de redistribuição,
cuidadosamente definida nas regras financeiras das grandes fundações monásticas,
não era decerto negligenciável; contribuía de facto para manter a miséria dentro de
limites, numa sociedade que era ainda muito subdesenvolvida, e continha em si uma
massa crescente de homens miseráveis e desenraizados. Contudo, a caridade vinha em
segundo lugar, depois do preceito antigo de celebrar o ofício divino com o luxo mais
aparatoso. A melhor função, que os chefes dos mosteiros e catedrais achavam que a
riqueza podia ter era a de decorar, embelezar e reconstruir o local de oração e
acumular à roda dos altares e das relíquias dos santos o mais brilhante esplendor.
Certos dos recursos que a generosidade dos fiéis continuava a aumentar, tinham uma
única atitude económica: gastar, para glória de Deus.
Este ponto de vista era partilhado pelos membros da segunda ordem da sociedade, os
especialistas da guerra. Também eles gastavam, mas no interesse da sua própria glória
e pelos prazeres da vida. Dando à Igreja todos os seus administradores,
monopolizando a força das armas e usando-a com dureza, não obstante as proibições
da ética da Paz de Deus, esta categoria social constituía a classe dirigente, a despeito
do maior valor atribuído ao clero e da maior riqueza e superioridade numérica deste.
Foi nos termos do poder e da conduta destes laicos que a teoria das três ordens se
estabeleceu e que se formaram as instituições que procuravam estabelecer a paz. Foi a
sua posição e comportamento que governaram toda a economia feudal dos séculos XI
e XII. Eles eram os donos da terra, à parte aquela que o medo da morte os obrigava a
ceder a Deus, aos seus santos e aos que O serviam. Viviam na ociosidade e
consideravam o trabalho uma actividade indigna da má linhagem e da liberdade
sobranceira com que reclamavam os seus privilégios. Como a decadência da
autoridade real tinha acabado por colocar os membros desta ordem numa posição de
independência e lhes tinha dado uma mentalidade digna de reis, não aceitavam
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restrições à sua liberdade, nem nenhum serviço que eles próprios não tivessem
escolhido, e que, por não assumir o aspecto de dever material, não lhes parecesse
desonroso. Assim, recusavam-se a qualquer pagamento a que não tivessem dado
consentimento e só condescendiam a separar-se dos seus bens sob a forma de ofertas
e actos de generosidade mútua. A sua vocação era combater, e o principal fim da sua
riqueza era adquirir os melhores meios de combate, através do treino físico, ao qual
dedicavam muito tempo, e de outros investimentos de que só esperavam um lucro -
maior força militar. Na economia doméstica dos homens desta classe, uma proporção
significativa dos seus rendimentos, e que parece ter aumentado durante os séculos XI
e XII, destinava-se a aperfeiçoar o equipamento dos guerreiros, melhorar a qualidade
dos cavalos e obter as melhores armas ofensivas e defensivas. O cavalo tomou-se a
arma principal do homem de guerra e o símbolo da sua superioridade; estes guerreiros
passaram a chamar a si próprios «cavaleiros» (milites). Nos fins do século XI, a cota de
malha já se tinha tomado tão complexa que valia tanto como uma boa quinta. A ânsia
de melhorar as armaduras esteve na raiz do contínuo progresso do trabalho do ferro.
O rápido progresso da arquitetura militar durante o século XII conduziu à abertura de
mais estaleiros de construção de castelos, muitas vezes perto dos das igrejas. Havia um
segundo motivo para despesas, entre os membros deste grupo social, governado pelo
espírito de emulação e para os quais o mérito pessoal se media não só em termos de
bravura e habilidade no manejo das armas mas também em termos de luxo,
ostentação e extravagância. No ethos a que se dedicavam estes nobres, uma das
virtudes mais prezadas era a generosidade e o prazer do desperdício. Como os antigos
reis, o cavaleiro devia ser sempre generoso, lançando riqueza à sua volta. Os
banquetes e as festas, onde se comia e bebia em excesso e onde os frutos da terra
eram destruídos colectivamente no meio de orgias em que se competia para ver quem
se excedia mais, eram, além da guerra, o padrão de vida da nobreza. Do ponto de vista
económico, a cavalaria representava na sociedade do seu tempo o saque por razões
profissionais e o consumo pela prática tradicional.
Resta-nos o terceiro estado, os trabalhadores, a camada de base formada pela maioria
da população, em que cada membro estava convencido que devia alimentar as duas
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elites de oratores e belatores, os que rezavam e os que combatiam, e dar-lhes meios
de sustentar a sua preguiça e prodigalidade. A sua função específica, segundo os
ditames da Providência condenava-os inexoravelmente a uma vida de trabalho
manual, considerado degradante e privava-os da liberdade plena. Enquanto os últimos
elementos da escravatura desapareciam (a palavra servus desaparece de quase toda a
França no princípio do século XII), o campesinato, no seu conjunto, cada, vez mais
sobrecarregado pela pressão dos que monopolizavam o poder, parece ter sucumbido à
exploração das outras classes em virtude da própria situação. Uns propiciavam-lhes a
salvação pela prece; outros, em teoria, eram responsáveis pela sua segurança e
defendiam-nos dos agressores. Como preço destes favores, a sua capacidade
produtiva estava totalmente subordinada aos senhores.
(b) O senhorio.
Do ponto de vista económico, o feudalismo caracterizava-se não só pela hierarquia das
condições sociais que o ordenamento esquemático das três ordens tentava
representar; caracterizava-se também pela instituição do senhorialismo. Isto não era
novo, mas tinha-se modificado lentamente pelo desenvolvimento do poder político.
A despeito da estrutura social racionalizada, cuja simplificação levou ao seu
reconhecimento após o primeiro milénio, a barreira que separava os trabalhadores do
clero e dos guerreiros não correspondia exactamente à que colocava os senhores dum
lado e os que estavam sujeitos à exploração senhorial do outro. Muitos padres, como
já vimos, faziam parte da mão-de-obra do domínio. Sob as ordens do senhor que
utilizava a sua especialização profissional, realizavam serviços de forma análoga ao que
faziam os moleiros ou os que coziam pão. Até ao fim do século XII, muitos cavaleiros,
particularmente na Germânia e nos países do litoral do Mar do Norte, continuavam na
situação de dependentes domésticos junto dum senhor que os empregava e mantinha.
Não possuindo terras, embora beneficiassem dos lucros do senhor, não exerciam
qualquer autoridade. Em contrapartida, havia camponeses que tinham conseguido
acumular mais terras do que as que podiam trabalhar sozinhos e que cediam parcelas
a vizinhos menos afortunados a troco de uma renda de tipo senhorial. Entre os servos
de origem humilde a quem os senhores tinham delegado a administração das
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propriedades, havia alguns que também enriqueciam - e muito rapidamente.
Aproveitando-se do poder que lhes fora cedido, podiam explorar os inferiores, criando
fora do circuito do seu senhor uma rede de rendas que guardavam para si e que
constituíam virtualmente o seu domínio pessoal. No entanto, a sociedade feudal
estava disposta em duas classes, uma das quais, a dos senhores, compreendia clérigos
e cavaleiros. Para eles, parecia escandaloso, para não dizer pecaminoso, que um
trabalhador se elevasse da sua classe, a ponto de partilhar os privilégios dos clérigos e
dos guerreiros, vivendo na ociosidade graças ao trabalho de outros. Durante o período
em que as instituições feudais atingiam a maturidade, isto é, durante os anos a seguir
ao ano 1000, a tensão no interior da estrutura social levou à consolidação da posição
senhorial dos clérigos e dos cavaleiros e a um alargamento do fosso que os separava
das pessoas comuns, no campo das relações económicas.
DUBY, Georges – Guerreiros e camponeses, Lisboa: Editorial Estampa, 1980. p. 174-
185.
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PORTUGAL
AS ESTRUTURAS DO FINAL DA IDADE MÉDIA
O Portugal feudal
O Portugal feudal, como a Castela feudal, exibia assim aspetos do maior interesse, que
só em comparação com os demais países europeus e com os estados islâmicos podem
ser cabalmente interpretados e compreendidos. Foi por, em geral, se recusarem a
fazê-la que quase todos os historiadores portugueses (com muitos dos seus colegas
espanhóis) vieram a criar e a defender um Portugal artificial, «senhorial, não-feudal»,
espécie de «avis rara» de incerta origem e difícil descrição. Uma vez posta de parte a
ideia de um feudalismo monolítico e geograficamente delimitado, a interpretação do
Estado português da Idade Média e dos começos da era moderna deixa de se
apresentar como enigma, embora continuando a levantar numerosos e inevitáveis
problemas.
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maiores proprietários dele explicam o número relativamente grande de vassalos
diretos e a consequente força do rei.
«Dom Dinis, pela graça de Deus, rei de Portugal e do Algarve. A quantos esta carta virem faço
saber que eu, querendo fazer graça e mercê a micer Manuel, meu vassalo, faço-o meu
Almirante-mor. E depois sa morte, mando que o seja o seu filho mor que ai ficar que herdar o
feu que eu dou ao dito micer Manuel; e assim os outros seus sucessores todos que o feu
herdarem segundo é conteúdo nas cartas que são feitas entre mim e ele e que assim em como
houverem o feu, que assim hajam o almirantado por linha direita pela maneira e condições
que são conteúdas nas ditas cartas. E mando a tôdolos meus vassalos, corsários e alcaides de
galés e arraises e oficiais que a este ofício pertencem e a tôdolos outros homens de mar que
com eles forem em frota ou em armada ou em outra corsaria de mar, que lhes sejam
obedientes e mandados e que façam por eles como por meu Almirante-mor. [...]»
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ou francos» da Europa transpirenaica, quase implicavam plena propriedade na
concessão, como recompensa de serviços prestados. O rei, todavia, conservava
sempre um certo número de direitos, tais como o de justiça ao nível superior,
interferindo também em matéria de sucessão. O termo honra (e, por vezes, couto)
parece ter-se aplicado às senhorias de qualquer tipo, e até aos alódios. No Portugal da
Idade Média, como em França, senhoria queria dizer o mesmo que feudum. Referia-se
geralmente aos feudos mais importantes, em especial aos de maior antiguidade, para
norte do rio Mondego. As concessões régias à Igreja denominavam-se geralmente
coutos, palavra que traduzia o complexo dos privilégios e das imunidades do território.
Em todas as senhorias, definia-se imunidade como a proibição de entrada de
funcionários régios, a inexistência de impostos da Coroa e o exercício, pelo senhor, da
autoridade pública, com autonomia administrativa, judicial e financeira.
Entre os feudos detidos por vassalos laicos e pelo próprio rei, contavam-se igrejas
paroquiais, mosteiros e capelas. Os senhores respetivos, frequentemente fundadores
ou descendentes de fundadores dessas instituições pias, recebiam as rendas da dízima
e as dotações da Igreja, incluindo por vezes rendimentos que resultavam de ofertas
dos fiéis, de direitos eclesiásticos, etc. Tão rendosos se mostravam esses feudos
(padroados) que tinham larga procura e eram muito apreciados.
«A lei de D. Afonso III de Março de 1261 - o primeiro diploma régio tendente a reprimir as
usurpações e violências que se praticavam - esclarece-nos relativamente aos direitos de que os
padroeiros usavam e abusavam. Os seus naturais ou herdeiros, sendo legítimos, podiam
aposentar-se (pousadia) nas igrejas e mosteiros do seu padroado e receber aí alimento
(comedoria, comedura, colheita, jantar). As pousadias e comedorias podiam também ser
exigidas pelos filhos ilegítimos, no caso de estarem equiparados aos legítimos na sucessão dos
bens dos pais. Os padroeiros tinam ainda o direito de cobrar um subsídio para o casamento
das filhas (casamento), para armar os filhos cavaleiros (cavalaria) ou para os tirar do cativeiro.
Como os padroeiros se multiplicavam por descendência, sucedeu, por exemplo, que o
mosteiro de Grijó chegou a ter 208, o de S. Gens de Monte Longo 273 e o de Rio Tinto 514.»
(Rui de Abreu Torres)
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A Igreja, claro está, fazia o que podia para os extinguir ou reduzir-lhes o número,
devido aos abusos que sempre implicavam e ao considerável empobrecimento que
traziam para os curas e seus meios de acção.
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castigar os culpados e, com tudo, receber o mais que pudesse. Ao mesmo tempo se ia
constituindo um cadastro muito imperfeito da propriedade, da distribuição
demográfica e dos rendimentos gerais, que não sabemos até que ponto terá
aproveitado à administração pública e militar do Reino.
As inquirições principiaram em 1220, sob D. Afonso II. A área sobre que incidiram
respeitava a parte dos territórios de Entre Douro e Minho; de Trás-os-Montes e do
Norte da Beira. Se a analisarmos do ponto de vista administrativo-religioso, incluí-Ia-
emos no âmbito da diocese de Braga. Por isso, Herculano supôs que as contendas do
rei com o arcebispo fossem outro motivo determinante do acto de inquirir, «tanto
mais que entre os delegados régios figuram dois antigos adversários do arcebispo, os
piores dos mosteiros augustinianos de Santa Marinha da Costa e de S. Torquato».
Ainda durante o mesmo reinado, mas em data incerta, se prosseguiram as inquirições,
agora na Beira Baixa, além de algumas outras particulares. Com D. Sancho II, fizeram-
se inquirições aos bens que possuíam no termo de Lisboa diversas ordens religiosas, na
Beira Alta (Sátão), e várias particulares. D. Afonso III intensificou os inquéritos. Em
1258 percorreram os seus agentes as regiões de Entre Douro e Minho (Entre Cávado e
Minho, Entre Douro e Ave, Entre Cávado e Ave), Trás-os-Montes (Entre Douro e
Tâmega, terras de Barroso e Chaves, região de Bragança) e Beira Alta (Seia, Gouveia,
bispados de Lamego e de Viseu, até Trancoso). Foram seguidas, durante todo o
reinado, por inquirições particulares a vários reguengos, termos, concelhos e julgados.
D. Dinis ordenou as suas primeiras inquirições gerais em 1284. Respeitaram a Entre
Douro e Minho e a parte da Beira Baixa. Quatro anos mais tarde, de novo os
funcionários régios percorreram o Minho, Trás-os-Montes e a Beira, preocupando-se
sobretudo com as honras recém e indevidamente criadas. O inquérito repetiu-se com
idêntico objectivo em 1301 (quase todo o Minho e uma pequena parte da Beira), 1303
(Minho e Trás-os-Montes) e 1307 (Minho, Trás-os-Montes e Beira). Passamos por alto
as diversas inquirições de carácter local. Sob D. Afonso IV foram inquiridas as regiões
de Trás-os-Montes (1335) e Entre Douro e Minho (1343), além de muitos julgados,
aldeias e povoados objecto de diligências específicas. Mas as mais importantes e
inéditas inquirições do reinado foram as que respeitaram à cidade do Porto (1339-48)
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e se inserem na já antiga luta entre o rei e o bispo local. Podem ainda registar-se
inquéritos fernandinos no Alto Alentejo (1373) e, mais tarde, em 1395, em boa parte
da região beirã (Trancoso, Guarda, Pinhel, etc.).
Durante o século XIV, outras decisões régias tenderam a travar a expansão do regime
senhorial. O monarca preveniu a nobreza Contra abusos de jurisdição (1317), mandou
os seus funcionários impedirem a criação de novas honras (1321) e obrigou todos os
nobres a provarem todos os seus direitos feudais (1325). Com D. Fernando o direito de
justiça feudal foi negado às honras constituídas a partir de 1325, com excepção de
uma dúzia de senhorias. Restringiram-se também as concessões régias aos
descendentes legítimos (desde 1384) e, depois, aos filhos varões apenas (1389). D.
João I seguiu certo número de regras nas doações que fez, medida que seu filho e
sucessor D. Duarte passou a lei (1434) com o título de lei mental: todas as doações
régias só se poderiam transmitir dentro da linha legítima e não seriam consideradas
feudais. Porque esta lei se aplicava ao passado, como ao futuro, muitas terras
reverteram para a Coroa. Algumas famílias nobres protestaram e conseguiram eximir-
se oficialmente ao estabelecido, nomeadamente a mais poderosa de todas, a do conde
de Barcelos, futuro duque de Bragança.
Apanágios e doações
Contudo, foram os próprios monarcas os primeiros a prejudicar os seus interesses com
generosas concessões, que as circunstâncias ou a irresponsabilidade do poder
determinavam. Aos príncipes reais, por exemplo, doaram-se importantes apanágios
que, de tempos a tempos, os levantavam por rivais do soberano. Isso já acontecera à
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morte de Sancho I, quando os extensos legados feitos à filharada deram origem a uma
quase guerra civil e à vitória final do primogénito, o rei Afonso II. Com D. Dinis (1279-
1325), seu irmão Afonso esteve na posse de grande parte do Alentejo, à que acarretou
a luta permanente entre os dois. No reinado de D. João I (1385-1433) os apanágios
ainda se tornaram maiores e mais opulentos. A seus filhos legítimos, Pedro, Henrique,
João e Fernando, bem como ao bastardo Afonso de Barcelos, doaram-se enormes
quinhões do solo e da fortuna de Portugal. O século XV foi um século de turbulência
civil, em parte por causa de tais doações e da concentração final de propriedade
fundiária nas mãos de uma só família, os descendentes de Afonso de Barcelos
(Braganças).
Concessões a favoritos ou simplesmente fraqueza e generosidade reais para com os
nobres e o clero vinham de par com a política dos apanágios. D. Afonso IV, D. Pedro I,
D. Fernando e D. Afonso V contaram-se entre os mais generosos dos reis medievais. A
família Meneses nos finais do século XIV e três ou quatro outras (incluindo os mesmos
Meneses e os Braganças) durante o século XV podiam bem comparar-se, em riqueza,
prestígio e força militar, a alguns senhores feudais típicos da França ou da Alemanha. É
verdade que o seu poderio não durou, mostrando-se até uma aberração em país tão
pequeno, uma espécie de «finale» desesperado do período feudal.
Prazos
O sistema dos aforamentos ou emprazamentos, com sua forma precária de concessão
de bens, cobria todo o reino e afectava quase toda a população. Grandes proprietários
doavam herdades maiores ou menores a vilãos, do mesmo modo que as haviam
recebido do rei. Alguns concelhos nasceram até deste tipo de concessão, feita a um
grupo de pessoas. Integravam-se na hierarquia feudal, dependendo dos seus senhores
e não do monarca. Na maioria dos casos, porém, os aforamentos ou emprazamentos
faziam-se a agricultores individuais (foreiros), perpetuamente, com diversas condições,
como fossem o pagamento de um foro de parte da produção do solo (1/4 a 1/3
geralmente), a prestação de serviços no paço senhorial, diversos tributos ocasionais, e
os típicos monopólios feudais dos meios de produção (forno, lagar, moinho, etc.).
Outros prazos, comuns nos séculos XIV e XV, eram feitos temporariamente, em três,
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duas ou uma vidas, ou até em períodos menores. Implicavam condições mais duras,
sendo, evidentemente, preferidos por muitos senhores, nomeadamente pela Igreja.
Em todos os casos, mesmo quando a origem da tenência se não revelava tipicamente
feudal, os resultados práticos eram-no sem sombra de dúvida.
Características demográficas
A população de Portugal no século XIII não excedia provavelmente o milhão de
habitantes. De Norte a Sul mostrava-se muito irregular a sua distribuição. Até ao vale
do Tejo, com excepção de Braga, Porto, Guimarães (que crescera consideravelmente
desde o século XII), Coimbra e talvez Bragança, não havia grandes cidades, até para os
padrões medievais.
O povoamento era denso no Minho, no vale do Douro e ria Beira Alta, mas
dispersando-se em numerosos pequenos núcleos de habitantes. Os grandes centros
populacionais continuavam a existir no Sul, graças à tradição romana e muçulmana:
Lisboa, Santarém, Évora, Estremoz, Elvas, Silves, Beja, Faro, Tavira e outros menores.
Mas as vastas regiões quase desabitadas que os separavam - à excepção do baixo
Algarve - conferiam ao Sul um aspecto semidesértico.
Um regulamento dos tabeliães para os finais do século XIII dá-nos achegas muito
interessantes para o estudo da população nessa época.
MARQUES, A. H. de Oliveira – História de Portugal, Lisboa: Palas Editores, 1983. Vol. I,
p. 151 – 159.
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CONCEITOS
BAN: Termo de origem germânica que designa a autoridade de quem
detém o poder militar.
A partir de finais do século X, na Europa Ocidental, o poder de
banus, o ban, alarga-se passando a incluir o poder político e
administrativo, judicial e fiscal.
Igualmente se verifica a sua difusão entre grandes e pequenos
senhores.
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No início era composto pelos membros da família real e outros
nobres que circulavam na Corte.
Com o processo de centralização régia, passam a ganhar
importância os letrados dotados de competências técnicas e
confiança do rei.
MONARQUIA FEUDAL: Organização dos poderes dos reinos europeus até inícios do
século XIII, caracterizado pelo exercício do poder do rei sobre os
demais senhores, não havendo distinção da autoridade pública,
do poder e autoridade privada.
História I 71
REINO: Estado ou nação cujo chefe é um rei. Na época medieval, os
reinos eram unidades territoriais, agregando várias pequenas
unidades regionais.
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LOCALIZANDO NO TEMPO
218 a.C. O exército romano, comandado por Cneio Cornélio Cipião, entra pela 1ª
vez na Península Ibérica, respondendo à tomada de Sagunto por Aníbal.
570-574 Leovigildo rei dos Visigodos inicia acções militares que lhe garantem
inteira supremacia na Península Ibérica.
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1139-1140 Batalha de Ourique com a primeira grande vitória de D. Afonso
Henriques sobre os muçulmanos.
1169 Doação por D. Afonso Henriques aos templários de 1/3 das terras que
conquistassem no Alentejo.
1231 Morre em Pádua, Santo António de Lisboa, uma das mais notáveis
figuras da Igreja e da Cultura do seu tempo.
1250 Nas cortes de Guimarães, Afonso III ouve queixas do clero contra as
interferências dos oficiais régios.
1254 – 1256 Afonso III, estrategicamente, coloca bispos de sua confiança à frentes
das dioceses.
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1267 Tratado de Badajoz entre Portugal e Espanha garantindo para o primeiro
a posse definitiva do Algarve.
1276 O português Pedro Hispano é eleito Papa com o nome de João XXI
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