Depressão e o Processo de Individuação

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UFRRJ

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM
PSICOLOGIA

DISSERTAÇÃO

Depressão e processo de individuação: aspectos psicodinâmicos,


pessoais, coletivos e arquetípicos da depressão psicogênica

LUÍS PAULO BRABO LOPES

2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM
PSICOLOGIA

DEPRESSÃO E PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO: ASPECTOS PESSOAIS,


COLETIVOS E ARQUETÍPICOS DA DEPRESSÃO PSICOGÊNICA

LUÍS PAULO BRABO LOPES

Sob a orientação do Professor

Dr. Nilton Sousa da Silva

Dissertação submetida como requisito


parcial para obtenção do grau de Mestre
em Psicologia, no Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, na Linha de
Pesquisa Processos Psicossociais e
Coletivos.

Seropédica, RJ

Setembro de 2017
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Biblioteca Central / Seção de Processamento Técnico

Ficha catalográfica elaborada


com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal


de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

LUÍS PAULO BRABO LOPES

Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em


psicologia, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, na linha de pesquisa de Processos
Psicossociais e Coletivos.

DISSERTAÇÃO APROVADA EM / /

Nilton Sousa da Silva (Prof. Dr.) DEPSI/PPGPSI/UFRRJ

Maddi Damião Junior (Prof. Dr.) DEPSI/IP/UFF

Marcus Vinícus de Araujo Câmara (Prof. Dr.) DEPSI/PPGPSI/UFRRJ


AGRADECIMENTOS

Meus agradecimentos não poderiam se resumir àqueles que de alguma forma tiveram
influência direta na elaboração deste trabalho, mas a todos que tiveram importância na minha
caminhada até este ponto da minha vida. Minha memória seria incapaz de resgatar todos eles;
embora, estejam em algum lugar de meu ser. Suas sementes fizeram nascer algo em mim, que
guardo comigo com gratidão.

Um agradecimento especial deve ser feito ao Professor Dr. Nilton Sousa da Silva, que
orientou este trabalho. Minha vivência com o Prof. Nilton teve importância não somente para
a elaboração deste trabalho, mas fez com que eu lidasse com questões mais profundas. Todo o
processo do mestrado, suas vicissitudes e alegrias, e a relação com o professor foram
importantes em meu amadurecimento enquanto pessoa.

Alguém que não poderia deixar de expressar minha gratidão é o Professor Dr. Maddi
Damião Junior. Uma pessoa que tem grande importância na minha vida. Desde as aulas na
graduação em psicologia, na especialização em teoria e prática junguiana, assim como a
relação com o professor; vem semeando em mim algo da riqueza que ele traz em si. E estas
sementes fazem nascer algo que vai muito além do conhecimento acadêmico, mas que tem
importância fundamental no meu desenvolvimento espiritual.

À minha família, deixo meu mais profundo agradecimento. São como a terra de onde
brotei. Minha gratidão por minha mãe, Rosana, meu pai, Luís e minha irmã, Daniella, é
enorme. Sou grato a todos os momentos, a todos os tropeços que cometemos e ao amor que
compartilhamos; todo isso foi, e continua sendo, fundamental para minha vida. A meu filho
João, aquele que me ensina o significado mais profundo do que é amar, minha eterna gratidão
por tudo que me ensina e me faz transformar.

Finalmente agradeço a esse mistério sem nome que sopra em mim o caminho que
preciso seguir; impulsiona-me para sempre além daquilo que acredito me definir. Para um
lugar sempre mais amplo. Me aprisiona e me liberta numa eterna dança de descobrimento de
mim e do outro; me ensina o que é o viver. Que eu possa ser sempre capaz de escutar essa
sabedoria; e que quando meus ouvidos estiveram fechados, que me lembre de olhar para essa
estrela que está sempre lá pra me guiar.
RESUMO

LOPES, Luís Paulo Brabo. A depressão e o processo de individuação: aspectos


psicodinâmicos, pessoais, coletivos e arquetípicos da depressão psicogênica. 2017. 107p.
Dissertação (mestrado em psicologia). Departamento de Psicologia, Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2017.

Este trabalho tem o objetivo de construir uma compreensão acerca do significado e da


finalidade da depressão no homem contemporâneo; considerando que o homem deve ser
entendido em seu contexto, quer dizer, levando-se em conta seus aspectos psicológicos, sua
história de vida e a cultura em que está inserido. Para tal, realizamos uma pesquisa teórica, de
base qualitativa, fundamentada no método hermenêutico construtivo e na teoria junguiana.
Através de uma pesquisa bibliográfica e da tessitura de articulações teóricas, realizamos uma
conceituação da depressão fundamentada na teoria junguiana clássica e categorizamos três
principais tipos de depressão: normal, neurótica e psicótica. Entretanto, tais considerações
seriam insuficientes para uma conceituação adequada da depressão, e, portanto, uma
discussão acerca de seus aspectos coletivos, isto é, socioculturais, se fez necessária para maior
aprofundamento. As discussões sobre a cura da depressão realizadas neste trabalho se
mostraram necessárias para fornecer certas balizas clínicas que podem auxiliar o
psicoterapeuta em sua prática. Optamos por aprofundarmo-nos na depressão na segunda
metade da vida e sua relação com o processo de individuação e, para isso, discutimos a
relação entre a consciência e o inconsciente neste período da vida. A relação entre ego,
persona, sombra e anima, constituem foco central deste trabalho e, as imagens da alquimia –
partindo da fase alquímica da nigredo – foram fundamentais para amplificarmos a imagem da
depressão e construirmos um entendimento mais detalhado. Julgamos necessário acrescentar
uma discussão acerca da problemática do suicídio na depressão, devido ao grande impacto e
importância desta questão. As observações sobre esta matéria intentam ampliar o debate e
fornecer parâmetros ao psicoterapeuta que lida com pacientes depressivos com ideações
suicidas em sua prática clínica diária.

Palavras-chave: Depressão, suicídio, individuação, melancolia, nigredo, psicologia


junguiana.
ABSTRACT

LOPES, Luís Paulo Brabo. Depression and the individuation process: psychodynamic,
personal, collective and archetypal aspects of psychogenic depression. 2017. 107p.
Dissertation (master in psychology). Department of Psychology, Federal University Rural of
Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2017.

This work aims to build an understanding about the meaning and purpose of depression in
contemporary man; considering that the man must be understood in its context, that is to say,
taking into account its psychological aspects, its history of life and the culture in which it is
inserted. For this, we carry out a theoretical research, with a qualitative basis, based on the
constructive hermeneutic method and the Jungian theory. Through a bibliographical research
and theoretical articulations, we performed a conceptualization of depression based on
classical jungian theory and categorized three main types of depression: normal, neurotic and
psychotic. However, such considerations would be insufficient for an adequate
conceptualization of depression, and therefore a discussion about its collective, that is,
sociocultural aspects, became necessary for further study. The discussions about the cure of
depression performed in this study were necessary to provide certain clinical goals that can
help the psychotherapist in their practice. We chose to study depression in the second half of
life and its relation to the individuation process, and for this we discuss the relationship
between consciousness and the unconscious in this period of life. The relationship between
ego, persona, shadow and anima, are central focus of this work. The images of alchemy –
starting from the alchemical phase of the nigredo – were fundamental to amplify the
depression and to construct a more detailed understanding. We think it necessary to add a
discussion about the problem of suicide in depression, due to the great impact and importance
of this issue. The observations on this subject attempt to broaden the debate and provide
parameters to the psychotherapist who deals with depressive patients with suicidal ideation in
their daily clinical practice.

Key words: Depression, suicide, individuation, melancholy, nigredo, Jungian psychology.


SUMÁRIO

1.0 Introdução ............................................................................................................................... 1

2.0 Metodologia e fundamentação teórica..................................................................................... 6

A depressão e a teoria junguiana............................................................................................. 10

O ponto de vista energético-finalista no estudo da depressão................................... 15

Aspectos psicodinâmicos da depressão psicogênica ................................................. 21

Aspectos coletivos da depressão psicogênica ........................................................... 29

Sobre a cura da depressão ......................................................................................... 36

A depressão na segunda metade da vida e o processo de individuação.................................. 44

O arquétipo do sacrifício no desenvolvimento da personalidade .............................. 46

Colapso da persona e a exigência da singularidade.................................................. 49

A nigredo alquímica e os aspectos iniciáticos da depressão..................................... 57

Transformações da anima no processo de individuação ........................................... 67

Suicídio e identificação com o coletivo .................................................................................. 82

Prevenção ao suicídio ................................................................................................ 86

6.0 Conclusão .............................................................................................................................. 91

7.0 Referências bibliográficas ..................................................................................................... 94


1.0 INTRODUÇÃO

A depressão é considerada como um transtorno mental pela Organização Mundial da


Saúde [OMS] (WHO, 2016) e é caracterizada pela Classificação Internacional de Doenças (CID-
10) como um transtorno do humor (OMS, 1993) que pode ser episódico ou recorrente. O
referido manual diagnóstico classifica os episódios depressivos de acordo com sua gravidade,
podendo variar entre leve (F32.0), moderado (F.32.1) e grave (F.32.2 e F32.3). O quadro
sintomatológico é diverso; mas, independente da gravidade dos episódios, é comumente
caracterizado por “humor deprimido, perda de interesse e prazer e energia reduzida levando a
uma fatigabilidade aumentada e atividade diminuída” (OMS, 1993, p. 117). Outros sintomas
comuns, de acordo com o CID-10, são: “concentração e atenção reduzidas, auto-estima e
autoconfiança reduzidas, ideias de culpa e inutilidade [...], visões desoladas e pessimistas do
futuro, ideias ou atos autolesivos ou suicídio, sono perturbado, apetite diminuído” (p. 117).

Cada categoria de episódio depressivo (leve, moderado ou grave) é caracterizada pela


presença ou ausência da “síndrome somática”; esta última, somente pode ser considerada
presente se o quadro sintomatológico apresentar pelo menos quatro “sintomas somáticos”; são
eles:
“Perda de interesse ou prazer em atividades normalmente agradáveis; falta
de reatividade emocional a ambientes ou eventos normalmente prazerosos; acordar
pela manhã duas ou mais horas antes do horário habitual; depressão pior pela
manhã; evidência objetiva de retardo ou agitação psicomotora definitiva (percebida
ou relatada por outras pessoas); marcante perda de apetite; perda de peso
(frequentemente definida como 5% ou mais do peso corporal no mês anterior);
marcante perda da libido” (OMS, 1997, p. 118).

A partir de estudos epidemiológicos, a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2016)


estima que, em todo o mundo, 350 milhões de pessoas sejam afetadas pela depressão. Os
dados da OMS chamam atenção para um problema social importante trazido por este
transtorno, pois, além da altíssima prevalência (número de casos), há também elevada taxa de
incidência (número de novos casos). Atualmente, cerca de 5 a 10% dos adolescentes e 10 a
15% dos adultos, em todo o mundo, são diagnosticados com depressão (WHO, 2012). Em
2004, a depressão representava 4,3% da prevalência total de doenças no mundo; o que a
deixava como terceira no ranking, considerando todos os tipos de doenças. Mas sua

1
incidência é tão grande que a OMS estima que em 2030 seja a primeira no ranking – será a
doença mais comum em todo o mundo, superando as doenças cardiovasculares (ibidem).

A depressão é um transtorno bastante incapacitante. Para determinar a gravidade de


um episódio depressivo, utiliza-se como parâmetro o grau de incapacitação em decorrência do
episódio. Nos episódios depressivos leves, o indivíduo experimenta dificuldade para realizar
suas tarefas diárias e atividades sociais; entretanto, é comum que não pare de realizá-las
completamente. Já nos episódios depressivos moderados, haverá uma dificuldade
significativa para que o indivíduo seja capaz de realizar suas usuais atividades sociais,
laborativas ou domésticas. Finalmente, nos episódios depressivos graves, é bastante
improvável que o indivíduo seja capaz de continuar com suas atividades usuais (OMS, 1997).
Além disso, pode haver presença de sintomas psicóticos, como delírios, alucinações ou
estupor depressivo.
“Os delírios usualmente envolvem ideias de pecado, pobreza ou desastres
iminentes, pelos quais o paciente pode assumir responsabilidade. Alucinações
auditivas ou olfativas são usualmente vozes difamatórias ou acusativas, ou de sujeira
apodrecida ou carne em decomposição. Retardo psicomotor grave pode evoluir para
estupor” (OMS, 1997, p. 121).

Se levarmos em consideração as altas taxas de prevalência e incidência da depressão,


junto com o potencial incapacitante de seu quadro sintomatológico, chegaremos a um
problema assustador. Atualmente, a depressão já é uma das principais causas de invalidez no
mundo, representando 11% de todos os anos vividos em invalidez (WHO, 2013). E, estima-se
que em 2020, dentre todas as doenças, a depressão seja a maior responsável por casos de
invalidez em todo mundo (WHO, 2012). Isto implica grandes prejuízos econômicos para
indivíduos, familiares e Estados, visto que sintomas depressivos como falta de atenção, perda
de memória, dificuldade com planejamento e tomada de decisões afetam cerca de 94% dos
pacientes deprimidos (ibidem) e tem enorme impacto sobre a capacidade de trabalhar.

Chama atenção a dificuldade no acesso a tratamentos, considerados adequados pela


OMS (WHO, 2012), dentre indivíduos deprimidos em todo o mundo. Em média, menos de
25% das pessoas diagnosticadas com depressão têm acesso a estes tratamentos. A situação é
ainda mais crítica em alguns países, onde esta porcentagem pode chegar a menos de 10%. De
modo geral, a depressão é de duas até três vezes mais comum dentre mulheres do que em
homens. A OMS (WHO, 2012) aponta alguns fatores que acentuam o risco de se desenvolver
um transtorno depressivo; dentre os quais se destacam: desvantagem econômica, como

2
pobreza; desvantagem social, como baixo nível educacional; e exposição à violência.
Considero que estes dados epidemiológicos, por si só, se apresentam enquanto informação
suficiente para que levemos seriamente em consideração tanto os aspectos sociais quanto os
psicológicos envolvidos na depressão.

A magnitude dos números acima apresentados justifica o esforço da presente pesquisa


em tentar compreender de forma mais aprofundada o significado e a finalidade da depressão
no indivíduo do mundo contemporâneo através da psicologia analítica de Carl Gustav Jung
[1875-1961]. O pensamento junguiano se apresenta enquanto uma possibilidade de olhar a
depressão a partir de um ponto de vista distinto daquele do saber médico tradicional; e parte
de pressupostos bastante diferentes do senso comum. Por isso, permite levar-nos a novas
conclusões que podem oxigenar o amplo debate sobre a depressão na sociedade. Para alcançar
os objetivos propostos, considero alguns pontos de partida que podem auxiliar no sentido da
construção de um novo entendimento sobre a depressão através de uma metodologia de
pesquisa típica do paradigma junguiano; apresentada no capítulo 2 (Metodologia e
fundamentação teórica).

No terceiro capítulo, apresento as informações mais relevantes sobre a depressão


presentes na obra de Jung. São informações relativamente escassas na obra junguiana, por um
lado, devido ao período histórico em que viveu o autor, e por outro, pela tendência do mesmo
em não criar categorias para transtornos específicos, mas, ao invés disso, priorizar uma
descrição geral dos processos psicológicos. Considerei também, trabalhos de outros autores
junguianos (ALVARENGA 2007; BYINGTON, 2007; HILLMAN, 2010; HOLLIS, 2011;
HUBBACK, 1983; JUNIOR, 2012; STEINBERG, 1995), para auxiliar na construção de um
entendimento geral sobre como a depressão costuma ser abordada pela psicologia analítica.
Ficou clara a presença de duas categorias gerais para descrever a depressão; endógena ou
psicogênica. Por motivos óbvios, são categorias fundamentais a todo psicoterapeuta. Dentre
as depressões psicogênicas, podemos observar a presença de uma subcategoria específica,
diferenciada entre depressão normal e patológica. Optei por aprofundar na questão dos tipos
de depressão neste capítulo, mas, para que pudesse seguir adiante, seria necessário, primeiro,
tecer algumas considerações teóricas que possibilitassem esse aprofundamento.

O conceito de energia psíquica mostrou-se fundamental para uma compreensão sobre a


depressão a partir do pensamento junguiano. Realizei esta discussão no subcapítulo 3.1 (O
ponto de vista energético-finalista no estudo da depressão). A ideia dos movimentos da libido,

3
descritos por Jung em analogia aos mitos de heróis, mostrou-se como ferramenta teórica
valiosa, utilizada ao longo de todo o trabalho. Graças ao qual, foi possível sugerir três
categorias distintas dentre as depressões psicogênicas: normal, neurótica e psicótica.

No subcapítulo 3.2 (Aspectos psicodinâmicos da depressão psicogênica), apresentei as


articulações teóricas, em termos psicodinâmicos, que justificam a criação destas três
categorias. Entretanto, considero que o olhar psicodinâmico é insuficiente para, sozinho,
caracterizar adequadamente o fenômeno da depressão. O que tornou necessário o
desenvolvimento, no subcapítulo 3.3 (Aspectos coletivos da depressão psicogênica), de um
entendimento sobre a depressão a partir da cultura; de forma a inserir o indivíduo deprimido
na cultura a qual pertence. Este cuidado parte das próprias bases ontológicas do pensamento
junguiano, e permite que analisemos a depressão não somente a partir de seus aspectos
pessoais, mas também coletivos.

Nossa discussão finalmente nos levou à necessidade de uma discussão mais detalhada
sobre a cura da depressão; título do subcapítulo 3.4. Pois, modo geral, a literatura junguiana
sobre a depressão, tende a considerá-la como um fenômeno demasiadamente genérico, que
poderia levar os leitores à conclusão equivocada de que os caminhos terapêuticos mais
comentados pudessem ser extrapolados para todo e qualquer indivíduo deprimido. Nesse
sentido, as observações sobre os aspectos psicodinâmicos da depressão psicogênica trouxeram
alguns parâmetros objetivos para pensarmos, tanto o prognóstico, quanto o manejo clínico nos
diferentes tipos de depressão discutidos nesta pesquisa.

No capítulo 4 (A depressão na segunda metade da vida e o processo de individuação),


introduzi a questão da depressão na segunda metade da vida e sua relação com o processo de
individuação. Em linhas gerais, a passagem entre a primeira e a segunda metade de vida é um
momento importante na vida do indivíduo, constituindo uma importante transição que
possibilitaria a passagem de uma vida orientada para o coletivo, para uma vida fundamentada
em quem realmente somos. Para adentrar na problemática da depressão neste período da vida,
precisei, antes, introduzir algumas considerações sobre o arquétipo do sacrifício no
desenvolvimento da personalidade no subcapítulo 4.1 (O arquétipo do sacrifício no
desenvolvimento da personalidade). Esta discussão se mostrou importante para entendermos a
questão da identificação com a persona que comumente acontece ao longo da primeira metade
da vida; mas, que precisaria ser sacrificada no curso do processo de individuação. Elaborei
este assunto detalhadamente no subcapítulo 4.2 (Colapso da persona e a exigência da

4
singularidade), por considerar um ponto central para o entendimento da depressão na segunda
metade da vida.

No subcapítulo 4.3 (A nigredo alquímica e os aspectos iniciáticos da depressão),


adentrei de forma mais aprofundada na questão da depressão na segunda metade da vida. As
imagens da alquimia possibilitaram uma amplificação do estado geral depressivo, ao mesmo
tempo em que os procedimentos e as fases alquímicas, permitiram-nos elaborar um
entendimento sobre a possibilidade de saída deste estado através da individuação. As
discussões de Jung sobre os três graus da coniunctio articulam tais imagens com a teoria
junguiana, permitindo uma compreensão do processo, em linhas gerais, do indivíduo
deprimido no mundo. Apesar disso, considerei que faltava abordar o papel da anima no
processo descrito até aqui. Optei por apresentar esta discussão, por motivos didáticos,
separadamente no subcapítulo 4.4 (Transformações da anima no processo de individuação).
Com isso, concluo que a questão tenha sido abordada de forma satisfatória a partir de
diferentes ângulos e tendo levando em consideração os principais conceitos do corpo teórico
junguiano.

Entretanto, antes de apresentar as conclusões no capítulo 6, me permiti algumas


observações acerca do problema do suicídio na depressão. Considero esta discussão
extremamente importante, realizada no capítulo 5 (Suicídio e identificação com o coletivo),
devido à grande quantidade de casos de suicídio associados à depressão. Após considerações
gerais sobre o problema apresentado, realizei uma discussão que pode ser útil ao
psicoterapeuta, sobre a questão da prevenção ao suicídio no contexto psicoterápico de
orientação analítica (subcapítulo 5.1). Tendo feito este adendo, esclareço que a presente
pesquisa apresentará novos olhares sobre a depressão, que dizem respeito ao significado e a
finalidade da mesma e, não somente, sobre suas possíveis causas; como ocorre comumente na
maioria dos trabalhos sobre este objeto de pesquisa. Espero que o conteúdo aqui presente seja
útil não somente ao psicoterapeuta de orientação junguiana, mas que possa ampliar o olhar
teórico da psicologia analítica e trazer novas ideias ao debate social mais amplo sobre a
depressão.

5
2.0 METODOLOGIA E FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O presente trabalho é constituído por uma pesquisa teórica de base qualitativa,


fundamentada na psicologia analítica de Carl Gustav Jung, que objetiva a construção de uma
compreensão acerca do significado e da finalidade da depressão que leve em consideração
tanto os aspectos individuais quanto os coletivos envolvidos neste fenômeno. Para tal, é
fundamental recorrer a uma pesquisa bibliográfica detalhada a fim de esclarecimento dos
pressupostos teóricos que serão utilizados, assim como para tecer articulações entre a teoria e
o objeto de pesquisa. Orientado pelo paradigma junguiano, optei por uma leitura sobre a
depressão que privilegiasse tanto seus aspectos clínicos e psicodinâmicos quanto os culturais
e históricos.

"A pesquisa em psicologia analítica situa-se no contexto da pesquisa


qualitativa, que se caracteriza, sobretudo, por uma abordagem interpretativa e
compreensiva dos fenômenos, buscando seus significados e finalidades. O método
qualitativo é necessariamente resultante da articulação das perspectivas ontológica e
epistemológica do paradigma" (PENNA, 2014, p. 73).

A abordagem de Jung não reduz a psicopatologia a componentes pessoais de um lado


e arquetípicos de outro. Entre esses fatores, e de modo determinante, estão os componentes
culturais. Por esse motivo, no que diz respeito à neurose, Jung (OC 7/1) chegou a considerá-la
como um problema do zeitgeist – espírito da época – que tenta ser solucionado pelo indivíduo.
Para Jung (OC 12), a irrupção arquetípica na consciência individual tem uma finalidade
ancorada na história do mundo e, como que, força a elaboração dos símbolos na consciência
coletiva. "A investigação psicológica de material de ordem cultural é tão possível quanto
apropriada para o paradigma [junguiano] e tem se mostrado uma tendência significativa na
produção de conhecimento em psicologia analítica" (PENNA, 2014, p. 71). Não poderíamos,
portanto, abordar a depressão a partir de seus componentes psicodinâmicos e da história
pessoal, sem consideramos o contexto socio-histórico em que está inserida.

“Um símbolo emergente no Self Cultural nunca é realmente novo, pois suas
raízes, explicita ou implicitamente, se originam na história da cultura na qual ele
emerge. Nesse sentido, os grandes descobridores de novos fatos não são as raízes,
mas sim, os frutos da árvore cultural que se enraíza no passado longínquo. Esses
frutos funcionam como símbolos estruturantes do Self Cultural e, depois de
recebidos pela Consciência Coletiva, necessitam o cultivo do solo para poderem
funcionar como sementes de novas árvores. É que todo novo símbolo nasce sempre
indiscriminado e necessita ser elaborado pelo trabalho da Consciência Coletiva
através das gerações” (BYINGTON, 1984, p. 4).

6
Tal olhar ancora-se nas bases ontológicas do paradigma junguiano, pois "a noção de
totalidade – unidade e diversidade – é o fundamento básico dessa perspectiva, e permeia a
visão de mundo e de ser" (PENNA, 2014, p. 74) do pensamento junguiano. A partir da ideia
do unus mundus1, considera-se a multiplicidade enquanto aspecto intimamente relacionado à
totalidade através de relações causais e acausais. Segundo Penna (2014), este pressuposto
ontológico, implica em um pressuposto epistemológico específico, a saber: "a noção de
totalidade dinâmica consiste numa cosmovisão que não se limita à explicação de causas, mas
inclui as relações de significado na compreensão da psique" (p. 74). Estes pressupostos,
portanto, tem influência determinante sobre a metodologia, pois constituem a base a partir de
onde se observa o fenômeno. A própria elaboração da questão na raiz da presente pesquisa
parte de tais pressupostos, que também orientam a um caminho específico na construção de
uma resposta.

Pretendo, menos investigar possíveis causas da depressão, mas, antes, construir uma
compreensão acerca do fenômeno, partindo do pressuposto de que há uma indissociabilidade
entre indivíduo e mundo, para finalmente considerar o significado e a finalidade da depressão;
não somente no que diz respeito ao indivíduo e sua história de vida, ou para a cultura de
forma isolada. Mas, para integrar indivíduo e mundo; pois, ambos participam de um mesmo
processo fundamental de transformação no tempo, assentado em um substrato arquetípico
comum. Para tal, faz-se necessário observar a depressão em seus aspectos psicodinâmicos
(consciente e inconsciente), simbólicos e culturais; de forma que estes não permaneçam
enquanto instâncias separadas, mas estejam articulados entre si como elementos distintos, mas
interligados, de um mesmo e único fenômeno global.
"Como campo, a totalidade tem caráter 'todo abrangente', incluindo
consciente e inconsciente, psique e corpo, indivíduo, natureza e cultura. Como
sistema de relações implica uma dinâmica multivetorial de interações e
entrelaçamentos constantes entre todos os elementos que compõem a totalidade,
num processo de diferenciação e integração das partes rumo a uma complexidade
crescente. Esta dinâmica opera tanto no plano individual do ser humano como no
âmbito coletivo da humanidade – cultural e histórico" (PENNA, 2014, p. 75).

Por esse motivo, não considero o homem enquanto mônada fechada ou tábula rasa,
mas enquanto aspecto integrante do mundo, assim como a cultura e a natureza. Este enfoque,
portanto, leva em consideração não somente a história de vida, assim como nas psicologias

1
Jung utiliza a idéia metafísica do unus mundus da filosofia medieval de forma simbólica. Estabelece uma
relação analógica entre o unus mundus e a totalidade indissociável formada por microcosmos e macrocosmos;
entre homem e mundo.
7
demasiadamente personalistas, mas também a história do mundo e o estreito diálogo entre
homem e cultura; que opera um constante movimento de transformação (um processo) entre
ambos, fundamentado nas bases do inconsciente coletivo. É como se o homem não fosse uma
coisa, mas um processo no mundo e com o mundo. A questão da herança é, portanto, de
fundamental importância para compreender o indivíduo através do pensamento junguiano,
pois enquanto processo no mundo, o homem carrega consigo não somente as bases
arquetípicas que o definem enquanto tal, mas também dá continuidade ao processo histórico
de elaboração das imagens arquetípicas na cultura.
"No plano individual, o ser humano é concebido como uma totalidade única
(indivíduo) resultante de um potencial arquetípico que se atualiza num corpo
biológico inserido num ambiente natural e num contexto histórico e social (cultura) -
um microcosmo dentro de um macrocosmo que mantém com o macrocosmo uma
relação dinâmica de mútua interferência" (PENNA, 2014, p. 75).

O inconsciente coletivo se apresenta como pressuposto ontológico central no


pensamento junguiano, pois se propõe como fundamento mais radical do mundo. Entretanto,
ao fazer referência ao mundo, não estou supondo a existência de um mundo independente da
psique, como se fosse uma coisa em si. Mas, ao mundo enquanto realidade psíquica. Jung
(OC 11/5) entende “que toda a nossa experiência da chamada realidade é psíquica” (§ 766). A
ideia de realidade psíquica constitui um importante limite epistemológico à psicologia
junguiana, que insiste constantemente no empirismo, pois se esta é a única realidade que
podemos ter acesso direto, qualquer suposição acerca de uma realidade que não seja psíquica,
material ou imaterial, seria metafísica. Pois, “a existência psíquica é a única que pode ser
demonstrada diretamente” (JUNG, OC 11/5, § 769), já que “nenhuma coisa pode ser
conhecida sem apresentar-se como imagem psíquica” (ibidem).

A unidade fundamental entre homem, natureza e cultura é entendida a partir das


mesmas bases arquetípicas quem compartilham; como se fossem ramos de um mesmo tronco.
"Em última análise, todos os acontecimentos psíquicos se fundam no arquétipo e se acham de
tal modo entrelaçados que é necessário um esforço crítico para distinguir com segurança o
singular do tipo" (JUNG, OC 11/1, § 146). Nesse sentido, torna-se fundamental a
consideração do conceito, denominado por Jung, como processo de individuação, para
construção de um caminho que leve a uma compreensão da depressão a partir das múltiplas
variáveis expostas até aqui. Pois a individuação articula homem, natureza e cultura em um

8
mesmo processo, permitindo um entendimento que leve em consideração não somente e
pessoa e sua história de vida, mas o devir do indivíduo com o mundo.

Seria demasiado extenso propor uma discussão mais aprofundada para delimitarmos o
conceito de processo de individuação2. Para os propósitos aqui descritos, considerarei a
individuação enquanto um processo que obedece um caminho arquetípico no sentido da
realização do Self na consciência; em que o indivíduo sustenta a própria singularidade em sua
relação com o mundo. Penna (2013) afirma que as pesquisas de Jung sobre a alquimia
medieval da Europa o levaram a estabelecer "o processo de individuação como um padrão de
desenvolvimento da personalidade, arquetipicamente orientado, que leva o indivíduo a se
tornar aquilo que ele de fato é" (p. 123). Cabe ressaltar, que este processo não se restringe a
algo como realização pessoal. Pois, conforme discutimos anteriormente, ao considerarmos a
perspectiva do unus mundus, observamos uma indissociabilidade fundamental entre homem e
mundo; de modo que, a individuação se refere a um processo, ao mesmo tempo, de
transformação pessoal e do mundo.

Para Jung (OC 8/1), a psique é um processo orientado para determinada finalidade; o
que traz implicações fundamentais para seu entendimento psicodinâmico, ancorado no
conceito de energia psíquica. O termo construtivo (ou simbólico), utilizado para definir sua
metodologia, diz respeito ao caráter finalístico da energia psíquica; e tem profunda influência
no modo como podemos considerar os conteúdos psicológicos, já que estes não precisariam
ser compreendidos unicamente a partir de suas causas, mas, também, de suas finalidades.
Além disso, a ideia de um inconsciente coletivo enquanto substrato comum para conteúdos
pessoais e coletivos permite a utilização do "método comparativo e hermenêutico como meio
de traduzir e desvendar o sentido universal das manifestações inconscientes" (PENNA, 2013,
p. 104). Assim sendo, o método hermenêutico construtivo, utilizado nesta pesquisa, é uma
consequência direta dos pressupostos ontológicos e epistemológicos do pensamento
junguiano; e nos possibilita avançarmos no sentido da uma pesquisa teórica com base na
psicologia analítica para a construção de uma compreensão sobre o significado e a finalidade
da depressão; nosso objeto de estudo.

2
O conceito de processo de individuação será delimitado e elaborado mais detalhadamente no decorrer da
pesquisa.
9
A DEPRESSÃO E A TEORIA JUNGUIANA

Embora Jung jamais tenha construído algo como uma teoria geral da depressão, é
possível traçar as alusões feitas ao longo de sua obra para tentarmos compreender a maneira
como considerava esta que atualmente é chamada de "mal do século XXI". No que diz
respeito à etiologia, Jung (OC 18/1) considerava a possibilidade de depressões por causas
orgânicas3 ou psicológicas. Quanto a isso, é bastante óbvio que ambas tragam não somente
prognósticos distintos, mas, também, que as intervenções terapêuticas através da psicologia
analítica devam apresentar possibilidades diferentes. Quanto a isto, Jung (OC 7/2) afirma que
é importante diferenciar a depressão psicogênica de uma melancolia genuína. No primeiro
caso, o humor depressivo seria derivado de fantasias ignoradas pelo paciente; enquanto que
no segundo, as fantasias se derivariam do próprio humor deprimido.

"Como se tratava de uma depressão psicogênica, esta era devida a fantasias


totalmente ignoradas pelo paciente. Na melancolia genuína, no esgotamento pelo
excesso de trabalho, no envenenamento etc., a situação pode ser inversa: o paciente
é sujeito a tais fantasias por encontrar-se numa condição depressiva. Mas no caso de
uma depressão psicogênica, sente-se deprimido porque tem tais fantasias" (JUNG,
OC 7/2, § 344).

Não é possível afirmarmos, com absoluta certeza, que o que Jung chamou de
melancolia genuína refira-se, em todo e qualquer caso, à depressão com etiologia orgânica,
pois não nos deixou explicações mais precisas. Mas, somos levados a crer que sim,
principalmente pelo fato de esta se diferenciar da depressão com etiologia psicológica
(psicogênica); e por ser posta ao lado de aspectos estritamente somáticos como excesso de
trabalho (exaustão) ou envenenamento. Tratar-se-ia, pois, de uma depressão originada no
corpo, e não a partir das imagens anímicas.

Na atualidade, ao considerarmos etiologias orgânicas para transtornos mentais, somos


imediatamente levados a pensar em distúrbios neurológicos; portanto, considero apropriado,
para evitar equívocos, diferenciarmos essas duas formas de depressão descritas por Jung
como: depressão psicogênica e depressão somatogênica. Esta última englobaria uma vasta
gama de possibilidades, desde alterações anatômicas no cérebro, até quaisquer alterações

3
Sobre o diagnóstico diferencial entre doenças orgânicas e psicológicas através dos sonhos; Jung foi perguntado
(conferências de Tavistock) se um de seus diagnósticos, que apontava para etiologia orgânica, teria sido feito a
partir dos sonhos do paciente. A que respondeu: "Sim, porque o problema orgânico perturbou a função mental.
Houve uma depressão muito séria e presumivelmente uma perturbação profunda do sistema simpático" (JUNG,
OC 18/1, § 302).
10
fisiológicas que não pudessem ser consideradas oriundas de processos psicológicos. Para o
presente estudo, interessa-nos as depressões psicogênicas; e, portanto, ao me referir à
depressão, o farei sempre em alusão a este tipo específico de depressão.

É possível observar na obra de Jung que há variadas possibilidades de prognóstico


para a depressão. Jung, ora considera a depressão como o início de um processo que poderia
culminar na ampliação da consciência, como um momento de escuridão que prepara a nova
luz; ora como uma patologia cuja possibilidade de cura é muito difícil ou até mesmo
impossível. Sobre um paciente atendido por Jung e diagnosticado com depressão
hipocondríaca, o autor afirmou que "o caso estava avançado demais para que se pudesse
contar com uma perspectiva de cura" (JUNG, OC 7/1, § 75) e, portanto, "só lhe restava
continuar o tratamento até a morte" (ibidem). Tal fato nos remete à diferenciação proposta por
Byington (2007) entre depressão normal e patológica. A primeira é tratada como uma função
estruturante, necessária para "elaborar e integrar o sofrimento oriundo de símbolos feridos"
(BYINGTON, 2007, p. 8), e, portanto, "trata-se de uma condição essencial da vida
psicológica" (ibidem). Enquanto que a segunda se instalaria caso a primeira não obtivesse
sucesso no resgate dos conteúdos sombrios do inconsciente.

"Quando a depressão, que acompanha normalmente o desapego na


elaboração simbólica, encontra uma regressão, ela é ainda mais ativada para resgatar
os símbolos fixados, isto é, os complexos patológicos presentes na sombra. Nessa
empreitada, a função da depressão alia-se e é reforçada pela função estruturante da
ética. Caso esse resgate não seja bem sucedido, e as funções da depressão e da ética
sejam absorvidas pelas fixações e suas defesas, instala-se a depressão patológica,
caracterizada pelo desânimo improdutivo compulsivo-repetitivo, acompanhado pelo
catastrofismo e pela ideação autodestrutiva" (BYINGTON, 2007, p. 10).

Vale a ressalta de que a depressão patológica, proposta por Byington, não é


necessariamente incurável. Essa discussão visa somente considerar os diferentes prognósticos
para a depressão através da categorização da mesma. A discussão sobre a possibilidade de
cura da depressão será feita mais adiante neste trabalho. Por ora, cabe ainda observarmos a
categorização da depressão proposta por James Hollis, embora o autor não se aprofunde na
discussão sobre prognóstico.

Hollis (2011) considera três tipos de depressão: reativa (ou ambiental), endógena e
intrapsíquica. A depressão reativa ou ambiental "é uma reação perfeitamente normal a uma
perda ou desapontamento" (HOLLIS, 2011, p. 92). Trata-se, portanto, de um processo natural
de luto, que só pode ser considerado patológico "quando perturba profundamente o
funcionamento normal da pessoa ou quando o impacto debilitante da experiência se prolonga

11
além de um período razoável" (ibidem). A depressão endógena, por outro lado é caracterizada
como tendo "uma base desconhecida porém presumivelmente biológica" (p. 93); o que
equivaleria à depressão somatogênica já discutida anteriormente. A depressão intrapsíquica,
finalmente, estaria relacionada a situações ocorridas na infância e cuja regressão tentaria
resgatar na vida adulta. Para o autor, haveria a possibilidade de que mais de uma forma de
depressão ocorresse simultaneamente; o que traria a necessidade da utilização de mais de uma
forma de tratamento.

"Embora estivesse claro que o impacto do câncer e seu prolongado


tratamento tinham fornecido causa suficiente para uma depressão reativa, ele
também tivera uma infância de maltratos e teria carregado a depressão intrapsíquica
de qualquer modo. Quando eu soube que ele apresentara padrões depressivos mesmo
antes do câncer, e que havia certos padrões biológicos familiares presentes, eu o
persuadi a experimentar um antidepressivo. No vigésimo terceiro dia do
medicamento, ele acordou se sentindo mais leve e soube que estava pronto
novamente para a vida, com todas suas desgraças normais" (HOLLIS, 2011, p. 93-
94).

Esta análise do autor, entretanto, revela certa fragilidade em seu argumento. Supõe que
uma depressão reativa se origine em alguma causa ambiental, como uma causa
exclusivamente externa; sem considerar os recursos psicológicos do indivíduo para lidar com
tal situação. Cabe a pergunta: porque determinado indivíduo deprime e outro não diante do
mesmo fator ambiental? Poderíamos tentar compreender essa situação através dos
movimentos da libido4 proposto por Jung; pois, uma regressão energética só aconteceria caso
a atitude da consciência não fosse adequada para lidar com a nova exigência imposta pelo
mundo ambiente. Nesse caso, a energia regrediria para o inconsciente para que uma nova
atitude pudesse nascer a partir da integração do oposto inconsciente. A questão, portanto, não
é o ambiente, mas a atitude da consciência e a desagregação entre os opostos. O mesmo fato
estaria na base daquilo que Hollis chamou de depressão intrapsíquica, pois, a regressão que
acontece na vida adulta (principalmente na passagem para a segunda metade da vida)
acontece exatamente pelo mesmo motivo5; para resgatar aqueles conteúdos rejeitados ao
longo do processo adaptativo.

Do mesmo modo, não poderíamos considerar que a resposta (remissão de sintomas) a


antidepressivos servisse como diagnóstico diferencial e indicasse a presença de uma
depressão endógena (somatogênica); pois a experiência clínica mostra que os antidepressivos
podem atuar, igualmente, sobre sintomas de depressões psicogênicas. Até mesmo a
4
O termo libido é utilizado neste trabalho como sinônimo de energia psíquica.
5
A depressão na segunda metade da vida será discutida em detalhes no quarto capítulo: "depressão na segunda
metade da vida e o processo de individuação".
12
constatação sobre a presença de fatores genéticos através da anamnese (outros casos de
depressão na família) é apressada e, portanto, frágil. A família é como um organismo vivo e a
relação entre seus membros é em grande parte inconsciente; fenômeno descrito por Jung (OC
18/1) como participação mística. De tal modo, que a simples constatação de que há outros
casos de depressão em uma mesma família não pode ser considerado, inequivocamente, como
sinal da presença de um elemento genético de base. Uma análise acurada da novela familiar se
faria necessária para afastar a possibilidade de um padrão herdado através do inconsciente
familiar.

"O animus das mulheres é antes uma resposta ao espírito que governa o
homem. Tem sua origem na mente do pai e mostra o que a jovem recebeu de seu
encantador, gentil e incompetente pai. Por outro lado, o pai deve sua fraqueza dentro
da família ao animus de sua mãe e, assim, o mal se propaga de geração em geração”
(JUNG, 2002, p. 86).

Oponho-me também à visão de Hollis de que uma depressão intrapsíquica, como


denominou, se originaria nas vivências da infância, como se fosse uma marca devido a
alguma situação do passado que teria perturbado um suposto desenvolvimento ideal. É
verdade que um fenômeno comum na depressão é a constelação de complexos; que
compulsivamente trazem imagens de situações vividas na infância. É igualmente verdadeiro o
fato de que nas depressões patológicas (utilizando a categoria proposta por Byington) há
fixação nestas imagens do inconsciente pessoal. Pois, “o primeiro efeito da regressão é em
geral reviver métodos e atitudes infantis” (JUNG, OC 18/2, § 1312). No entanto, não
deveríamos considerar estas situações da infância como sendo as causas de uma depressão,
mas somente como um estágio da regressão energética6.

Alvarenga (2007) considera que a individuação impõe sobre o homem a necessidade


de dar resposta à pergunta: quem sou eu? Tal pergunta seria "a condição imprescindível para a
estruturação de nossa identidade e pressuposto básico para o processo de individuação"
(ALVARENGA, 2007, p. 24). E que para sermos capazes de respondê-la, precisaríamos saber
de nossas origens e ancestralidade; precisamos revisitar nossa história pessoal e familiar, pois
as respostas coletivas, como os papéis sociais que exercemos, são insuficientes.

A regressão energética, que visa à integralidade, passa pela história pessoal, mas não
pretende manter-se aí; visto que vai além, e busca a sabedoria profunda; isto é, a regressão
não pretende alcançar o inconsciente pessoal, mas atravessa este para chegar ao inconsciente

6
A relação entre a depressão e a energia psíquica será discutida mais detalhadamente adiante.
13
coletivo7. "O perder-se de si mesmo, fundamento do processo depressivo, encontra respostas,
num segundo momento da vida, pela via do conhecimento, por meio de um logos
espiritualizado e veiculado pela sabedoria profunda" (ALVERENGA, 2007, p. 25). Um
exemplo sobre a finalidade de regressão energética indo além da história pessoal pode ser
observada no caso do paciente com depressão hipocondríaca e, já mencionado anteriormente,
atendido por Jung:

"A energia tem o inconveniente de exigir um fluxo adequado para se


produzir; caso contrário, fica represada e torna-se destrutiva. Regride a situações
anteriores: no presente caso, à lembrança de uma infecção sifilítica que contraíra 25
anos antes. Mas isto também não passava de uma das etapas de reviver as
reminiscências infantis, que nesse meio tempo se haviam praticamente esvaído.
Tratava-se de um 'mecanismo' para despertar o interesse da mãe (há muito falecida).
E esta não foi a última etapa, pois a meta era obrigá-lo a voltar ao próprio corpo,
depois de ter vivido só com a cabeça desde a juventude. Um dos lados de seu ser se
diferenciara, deixando o outro retido num estado de torpor corporal. Precisava desse
outro lado para poder 'viver'. A depressão hipocondríaca forçava-o, por assim dizer,
a tomar conhecimento do corpo, que sempre havia ignorado" (JUNG, OC 7/1, § 75).

Na base da depressão, portanto, está a questão dos opostos e os movimentos da libido;


poderíamos considerar, genericamente, que a causa da depressão psicogênica é a
desagregação dos pares de opostos, enquanto que sua finalidade seria a reunião dos mesmos.
É aquilo que falta à consciência que busca a energia em regressão. Mas ainda assim, essa
constatação seria insuficiente para compreendermos a depressão especificamente, visto que a
questão energética está na base não somente da depressão, mas da psicopatologia de uma
maneira bastante geral, assim como dos processos psicológicos que não são considerados
patológicos; e uma discussão que vá além do indivíduo e se lance para o mundo far-se-á
necessária para compreendermos as especificidades da depressão. Mas, por ora, voltemos a
nos concentrar sobe a questão da classificação dos tipos de depressão e suas implicações
clínicas.

Tendo em vista as afirmações feitas até aqui. Considero adequado tomarmos a divisão
entre dois tipos de depressão: somatogênicas e psicogênicas. Dentre as depressões
psicogênicas, proponho outros três tipos: depressão normal (conforme proposto por Byington)
e patológica. E, finalmente, dentre as depressões patológicas, poderíamos considerar a
depressão neurótica (similar à depressão patológica de Byington) e a depressão psicótica.
Seria possível classificar outros tipos de depressão neurótica de acordo com a suas
especificidades, mas este não é o objetivo deste trabalho. Concentrar-nos-emos unicamente na
7
"O 'depositum fidei' [depósito da fé], corresponde na realidade empírica ao tesouro dos arquétipos, ao
'gazophylacium' (tesouro) dos alquimistas e ao inconsciente coletivo da psicologia moderna" (JUNG, OC 14/2, §
399).
14
discussão das depressões psicogênicas de forma mais geral e aprofundaremos somente nos
tipos de depressão normal e neurótica. Abordaremos a depressão psicótica somente a nível de
diferenciação, mas sem nos aprofundarmos de forma mais detalhada. Esta delimitação é
necessária, pois depressão é um assunto demasiadamente amplo; e não trataremos aqui sobre
depressão infantil, por exemplo, mas nosso foco se manterá sobre a depressão no adulto que
se aproxima da segunda metade da vida.

O PONTO DE VISTA ENERGÉTICO-FINALISTA NO ESTUDO DA


DEPRESSÃO

O ponto de vista energético finalista proposto por Jung, segundo Steinberg (1989), é a
principal ferramenta teórica que o autor nos deixou para compreender a depressão. Para Jung
(OC 8/1), a energia psíquica deve ser entendida primeiramente a partir de seu aspecto
quantitativo; isto significa que não se deve atribuir qualquer qualidade a priori à libido. A
teoria junguiana da libido, historicamente, foi um marco importante que distanciou Jung de
Freud; já que Jung (OC 5) desde o início não relacionava a libido à sexualidade, mas a
considerava como energia, pura e simplesmente, em movimento de progressão, represamento
e regressão.

Tal como o sol que todas as manhãs nasce no oriente e sobe ao topo do céu para
finalmente iniciar seu mergulho às profundezas da terra, onde precisará vencer provas
fantásticas para que possa renascer no dia seguinte; a energia psíquica em seu movimento
progressivo garante a adaptação ao mundo ambiente, até que retorne na direção regressiva do
inconsciente buscando aqueles aspectos rejeitados pela consciência, a fim de ampliar a
consciência no sentido da totalidade. Jung (OC 5) comenta a relação entre o movimento
circular do sol e os mitos de heróis, e considera o herói como representante da energia
psíquica; portanto, uma consideração acerca do mitologema do herói se faz útil para
compreendermos o conceito junguiano de energia psíquica.

Para Campbell (2007), a jornada do herói pode ser dividida em três principais fases: a
separação, que se refere a “um afastamento do mundo” (p. 40); a iniciação, que se refere a
“penetração em uma fonte de poder” (ibidem); e o retorno, “que enriquece a vida” (ibidem).

15
Segundo o autor, o mitologema do herói se expressa na fórmula dos ritos de iniciação
baseados nas fases de separação-iniciação-retorno (Figura 1). Estas fases se referem, de
início, à partida do herói do mundo cotidiano; em seguida ocorre a sua entrada em uma região
onde se depara com forças sobrenaturais e obtém uma vitória importante; e posteriormente
ocorre o retorno do herói ao mundo cotidiano, com o poder de beneficiar os demais mortais.

Figura 1: Fórmula dos ritos de iniciação separação-iniciação-retorno (BRANDÃO, 1989, p. 24).

No diagrama acima, a linha reta representa o limiar da aventura, isto é, a separação


entre o mundo cotidiano e o mundo de forças desconhecidas e sobrenaturais. O “X”
representa a separação do herói de sua terra natal e sua entrada em regiões obscuras e
inexploradas; o “Y” representa o que Campbell (2007) denominou como caminho das provas,
o momento da iniciação do herói, onde deverá vencer poderosas forças sombrias; o “Z”
finalmente, representa o retorno do herói ao mundo cotidiano ou sua terra natal, que só poderá
ser realizado caso vença as provas do mundo subterrâneo. Este caminho circular, que alterna a
noite e o dia pode ser visto em analogia aos movimentos da energia psíquica propostos por
Jung.

Para Jung (OC 8/1), a progressão da energia psíquica está relacionada aos esforços de
adaptação do indivíduo ao mundo exterior e, por esse motivo, “consiste em satisfazer as
exigências das condições do mundo” (§ 60). No entanto, uma adaptação completa é
impossível de ser alcançada, já que novas situações sempre confrontarão o indivíduo, de
16
forma ininterrupta, e exigirão atitudes diferentes das anteriores. Jung afirma que a consciência
é, por natureza, “determinada e dirigida” (§ 134); isto é, na progressão, os elementos
psíquicos adequados à adaptação ao mundo exterior são, por assim dizer, incorporados à
consciência gradativamente, enquanto que os inadequados ou incompatíveis (opostos) sofrem
uma “inibição ou bloqueio” (ibidem) e por esse motivo mergulham no inconsciente.

O constante fluir do mundo exterior impõe sempre novas exigências adaptativas e,


com frequência, o indivíduo necessita incorporar na consciência exatamente aqueles
conteúdos que mergulharam no inconsciente, ou que nunca estiveram próximos dela durante o
processo de adaptação. Quando isto acontece, a progressão da energia entra em colapso, pois
a consciência não é mais capaz de dar uma resposta adaptativa adequada diante das novas
exigências do mundo; já que a nova atitude necessária dependeria de conteúdos que jazem no
inconsciente. Jung exemplifica esta situação da seguinte forma:
“Assim, a atitude sensível, que procura atender às exigências da realidade
por meio da intuição, pode facilmente deparar com uma condição que só pode ser
satisfeita mediante uma atitude mental, isto é, uma anterior compreensão racional.
Neste caso, a atitude intuitiva é ineficiente. E assim também cessa a progressão da
libido”. (JUNG, OC 8/1, § 61).

Com a interrupção do movimento progressivo, a energia fica estagnada e inicia-se o


represamento da libido; caracterizado pela “desagregação dos pares de opostos” (JUNG, OC
8/1, § 61). Neste caso, consciência e o inconsciente não são mais capazes de qualquer ato
coordenado e “quanto mais durar o represamento, tanto mais se elevará o valor das posições
opostas [inconscientes], [...] incorporando sempre novos territórios do material psíquico”
(ibidem). Há, portanto, uma elevação da tensão entre os opostos, que resulta em conflito.
Nesta situação, a consciência tende a suprimir o oposto inconsciente através de eufemismos
e/ou gestos apotropaicos para assim afastar o conflito. Quando o conteúdo inconsciente é
finalmente suprimido, “instala-se a dissociação, a cisão da personalidade, [...] criando assim a
possibilidade da neurose” (ibidem).
"Aquilo que você enterrou engorda enquanto você emagrece. Se você se
livra das qualidades que não aprecia negando-as, você se torna cada vez mais
inconsciente do que você é, você se declara cada vez mais inexistente, e seus
demônios engordam cada vez mais" (JUNG, 2014A, p. 71).

Este estado de coisas anuncia a inevitável regressão da libido; em que a energia


psíquica move-se, por assim dizer, na direção do inconsciente, tendo como alvo os conteúdos
necessários ao processo de adaptação; que, por gerar conflito, foram suprimidos pela

17
consciência e assim não puderam se incorporar nela para criar a atitude adaptativa exigida
pelo mundo exterior. Ao contrário, o oposto se dissociou da consciência; saiu de seu “raio de
visão”; ao mesmo tempo em que a regressão aumenta seus valores energéticos, fazendo com
que seja capaz de romper o limiar da consciência na forma de sintoma. Desaparece o conflito,
surge o sintoma. É justamente a regressão da energia, compreendida em seu contexto global,
que nos possibilita lançar novos olhares sobre a questão da depressão8; objeto do presente
estudo.

Andrew Solomon, autor que conhece a depressão através da vivência, a descreve como
“o sofrimento emocional que se impõe sobre nós contra a nossa vontade e depois se livra de
suas circunstâncias exteriores” (SOLOMON, 2014, p. 16). Esta afirmação permite-nos
compreender o caráter autônomo e aparentemente sem objeto (causal) da depressão. A
autonomia do processo é decorrente do fato de que a regressão da energia não depende da
vontade e, ao contrário, significa uma espécie de morte das intenções egóicas em se firmar
numa postura entendida como socialmente desejável, isto é, a energia psíquica mergulha no
mundo noturno do inconsciente.

Solomon (2014) afirma que “o que acontece na depressão é horrível, mas parece muito
envolvido pelo que está prestes a acontecer. Entre outras coisas, você sente que está prestes a
morrer” (p. 28). Isso é bastante significativo, pois a morte, no sentido simbólico, é a
consequência inevitável de uma regressão energética que encontra seu alvo no inconsciente.
Neste caso, entretanto, não nos referimos a uma morte literal, mas à morte do que costumo
chamar de identidade parcial; da identificação da consciência com a persona à custa do Self
enquanto singularidade radical.

Assim sendo, a presença da depressão significa que esta morte não foi realizada; mas
somente que a torrente energética regressiva permanece a conduzir a experiência individual
para o inconsciente; como se almejasse esta morte. Daí a experiência de Solomon em estar
face a face com a morte; numa sensação de permanente iminência, sem, no entanto, morrer
definitivamente. “Morrer não seria tão ruim, mas viver à beira da morte, nesta condição de
não estar exatamente caindo no abismo geográfico, é horrível” (SOLOMON, 2014, p. 28). Ele
ainda recorre à metáfora “estar à beira do abismo” para descrever esta experiência. A
regressão energética impõe ao homem uma exigência, de que realize sua individualidade;

8
"Os melancólicos mergulham numa espécie de condição embrionária" (JUNG, OC 18/1, § 63).
18
seria preciso, pois, saltar neste abismo. Um sacrifício autoinfligido – soltar a mão daquilo em
que nos agarramos, de nossa identificação com a persona, para que os conteúdos da sombra
tenham seu lugar na ordem do dia.

Para Jung (OC 5), os mitos de heróis nos ensinam que aceitar a morte inevitável,
através de um gesto de sacrifício, é o clímax da narrativa heroica. Mas a depressão nos ensina
que se atirar voluntariamente do abismo é um ato dificílimo.
“Se nos recordarmos agora de que a causa do represamento da libido era o
malogro da atitude consciente, compreenderemos que germes valiosos são ativados
pela regressão: eles contêm, com efeito, os elementos necessários para aquela outra
função excluída pela atitude consciente e que estaria capacitada para complementar
ou substituir eficazmente a atitude consciente que não produz resultado” (JUNG, OC
8/1, § 44).

Segundo Jung (OC 8/1), portanto, no fundo do abismo descrito por Solomon, estariam
os meios necessários à morte da identidade parcial acima referida – da identificação com a
persona. Entretanto, o medo da morte ou do desconhecido não parece ser o único, nem tão
pouco o principal obstáculo ao sacrifício. Pois, se estes “germes valiosos” descritos por Jung,
que jazem no fundo do abismo, fossem reconhecidos pelo indivíduo como o tesouro que são,
não haveria tanta relutância em saltar para a morte. Mas, na experiência depressiva não há
qualquer vislumbre de glória no fundo deste enorme buraco escuro; ao invés disso, o
indivíduo é confrontado com a face terrível e grotesca daqueles aspectos psíquicos renegados
que compõem a sombra.
“Como se [os sonhos] pretendessem trazer de volta todas as coisas velhas e
primitivas das quais a mente se livrou durante o curso de sua evolução: ilusões,
fantasias infantis, formas arcaicas de pensar e instintos primitivos. Este é na verdade
o caso, e ele explica a resistência, até mesmo o horror e medo de que alguém é
tomado quando se aproxima dos conteúdos inconscientes. [...] [os conteúdos
inconscientes] produzem até mesmo pânico e, quanto mais reprimidos forem, mais
perpassam toda a personalidade na forma de uma neurose” (JUNG, OC 18/1, § 591).

Jung (OC 8/1) afirma que, ao contrário da progressão (relacionada à adaptação ao


mundo exterior), a regressão da energia psíquica impõe ao indivíduo a exigência de adaptação
ao mundo interior; que significa a integração dos aspectos sombrios da personalidade à
consciência. Assim sendo, “a regressão [...] faz com que a consciência se defronte com o
problema da alma” (JUNG, OC 8/1, § 66). A teoria junguiana, portanto, permite-nos observar
a depressão a partir de sua finalidade, e não somente supormos suas causas. Haveria uma
finalidade específica na depressão, que exige do indivíduo o desenvolvimento da
personalidade no sentido da totalidade. Embora o confronto com esses conteúdos sombrios

19
seja algo inicialmente difícil à pessoa, por estar orientada aos ditames da consciência coletiva,
seriam eles mesmos aqueles capazes de produzir uma personalidade mais ampla; cuja
singularidade define aquilo que Jung chama de individualidade.
“O repugnante e rejeitado sapo ou dragão do conto de fadas traz a bola do
sol na boca; pois o sapo, a serpente, o rejeitado, é o representante daquela profunda
camada inconsciente [...] em que são guardados todos os fatores, leis e elementos da
existência rejeitados, não admitidos, não reconhecidos, desconhecidos ou
subdesenvolvidos. Essas são as pérolas dos palácios submarinos das fábulas, cheios
de gênios, tritões e guardiães das águas; as joias que iluminam as cidades
demoníacas do mundo interior; as sementes de fogo do oceano da imortalidade, que
suporta a terra e a cerca como uma cobra; e as estrelas do firmamento da noite
imortal” (CAMPBELL, 2007, p. 62).

Apesar destas observações, devemos estar atentos ao fenômeno da depressão em si


mesmo; para não supormos que toda e qualquer depressão estaria relacionada a um processo
normal que, embora difícil, poderia ser atravessada sem maiores complicações através de uma
atitude adequada. Seria preciso tomar cada caso individualmente para que fossemos capazes
de compreender as complicações que podem surgir a partir do fenômeno da depressão. Jung
insiste na manutenção de uma atitude clínica diante do paciente e, isso significa que, embora
possamos fazer algumas generalizações sobre um transtorno específico, não se pode
considerar o indivíduo a partir de preceitos gerais.

"Um diagnóstico seguro é bom para o clínico geral, [...] mas para o
psicoterapeuta é muito melhor que conheça o menos possível de um diagnóstico
específico. [...] De um modo geral, quanto menos o psicoterapeuta souber de
antemão, melhores as perspectivas para o tratamento. Nada mais deletério do que
um 'já entendi' de rotina" (JUNG, OC 16/1, § 197).

Não haveria, portanto, algo como uma depressão enquanto fenômeno isolado do
indivíduo e do mundo. Há sim, a depressão daquele indivíduo no mundo. Nossos esforços
para criar categorias e generalizações devem ser entendidos, portanto, em termos didáticos e
de conhecimento e não enquanto verdades gerais. É verdade que os mitos de heróis podem ser
vistos em analogia aos movimentos da libido, e que a depressão pode ser compreendida a
partir do movimento regressivo da energia psíquica, mas considerar que a apoteose do herói é
algo que teria a possibilidade de acontecer em todo e qualquer caso de depressão seria uma
suposição pobremente sustentada no empirismo e, portanto, é necessário que possamos
aprofundar nosso entendimento sobre a depressão para além desta única imagem; no sentido
da ampliar o fenômeno da depressão em sua complexidade.

20
ASPECTOS PSICODINÂMICOS DA DEPRESSÃO PSICOGÊNICA

Conforme vimos anteriormente, é fundamental consideramos os movimentos da libido


e o aspecto finalístico do inconsciente para que possamos compreender os aspectos
psicodinâmicos da depressão. Alvarenga (2007) utiliza o mito de Orfeu para lançar luz sobre
essa questão. Partindo do pressuposto de que a depressão, em sentido simbólico, é "a melhor
expressão da dor da alma que se perdeu de sua própria natureza" (ALVARENGA, 2007, p.
19); e que "acessar a sabedoria profunda e alcançar a compreensão simbólica do texto da
própria vida" (ibidem), possibilitaria o caminho de saída deste estado noturno. A autora,
finalmente, compreende a depressão através das imagens da individuação; como sendo um
momento iniciático salutar que prepara uma nova vida.

Segundo nos conta, Orfeu teria encontrado sua esposa, Eurídice, morta pela picada de
uma serpente quando retornou para casa após sua aventura como tripulante da nau comandada
por Jasão. Eis que decide descer até o reino subterrâneo de Hades – o mundo dos mortos –
para resgatá-la. Em sua katabasis9 iniciática, canta e toca sua lira de forma quase divina;
encantando a todos que o escutam, inclusive Perséfone e Hades. Graças a este feito heroico –
encantar os deuses do submundo não é tarefa para um humano comum –, consegue permissão
para o retorno de Eurídice ao mundo diurno; mas, contrariando as advertências recebidas,
titubeia e olha para trás, fazendo com que Eurídice se perca novamente no mundo dos mortos.
Retorna sozinho, derrotado – não toca sua lira e não canta mais. Retornou ao mundo do dia,
mas perdeu sua alma. "A perda de energia do consciente, é um fenômeno que se manifesta de
maneira mais drástica nas 'perdas de alma' dos primitivos" (JUNG, 16/2, § 372). Esta perda de
alma – abaissement du niveau mental – aumenta o valor energético de conteúdos
inconscientes compensatórios.

Jung (2011) afirma que o Logos se manifesta primeiramente como serpente venenosa.
O que em termos psicológicos significaria a presença de um conteúdo inconsciente poderoso
que a consciência ainda seria incapaz de apreender. Quando tal conteúdo se manifesta, "existe
o perigo da consciência do eu ser inteiramente atraída para o inconsciente e ser dissolvida"
(JUNG, 2011, p. 368). Embora haja o risco do desenvolvimento de uma patologia, este
9
"Katabasis (κατά = baixo; βαίνω = ir para) é um movimento de descida, utilizado com frequência como
imagem mítica para implicar descida da alma a um plano ínfero. Está grandemente associado a rituais religiosos,
a partir de elementos e/ou símbolos que indicam uma imagem de descida a mundos subterrâneos como uma
caverna ou um inferno" (COUTINHO, 2015, p. 21).
21
fenômeno é natural do processo de individuação, pois em seu curso "novos conteúdos podem
se anunciar a partir dessa forma devoradora e obscurecer a consciência, o que sentimos como
depressão" (ibidem). Esta afirmação lança luz sobre o estado melancólico de Orfeu, pois
retorna ao mundo, mas perde sua vitalidade. Para Jung, este fenômeno, caracterizado pela
regressão da libido e a dissolução da consciência do eu, pode originar uma depressão
patológica.

"A consciência torna-se completamente vazia, pois seus conteúdos são


atraídos pelo inconsciente tal como se este fosse um imã. Esse processo causa uma
perda total do eu da pessoa de modo que ela seja somente um autômato. Uma pessoa
desse tipo simplesmente não está mais presente. Parece um pedaço de madeira que
podemos locomover para onde quisermos. Perdeu toda a sua capacidade de decisão
e sua espontaneidade, pois sua consciência foi dissolvida em função de um conteúdo
inconsciente" (JUNG, 2011, p. 368).

Estamos aqui no limiar entre o que chamamos de depressão normal e patológica. A


primeira diria respeito a uma regressão da libido, que embora se manifeste através de
sintomas muito semelhantes à depressão patológica (em menor intensidade), não produz uma
dissolução do eu ao ponto de criar grandes obstáculos ou até impossibilitar a função
transcendente. Na depressão normal, portanto, o ego mantém certa quantidade de energia que
possibilita uma relação dialética entre a consciência e o inconsciente.

Modo geral, é desta forma de depressão que a maioria dos autores junguianos se
referem ao acentuarem seus aspectos salutares e transformadores. Mas, conforme os mitos de
heróis e também os alquimistas constantemente advertem, a descida à escuridão traz riscos
reais; que são, estranhamente, pouco enfatizados na literatura pós junguiana sobre a
depressão. Partindo das imagens coletivas da individuação, a literatura pós junguiana tende a
manter sua ênfase na realização do Self. Entretanto, as mesmas imagens coletivas presentes
nos mitos acentuam, também, cenas de desmembramento, aprisionamento eterno e suplício
infernal. Imagens estas, que embora comumente consideradas, não costumam ser enfatizadas
como considero que deveriam; já que dizem respeito não somente ao processo de tomar
consciência de quem se é, mas, também, da "intrasponibilidade" patológica. Fato que deve
nos movimentar no sentido a pensar novas abordagens terapêuticas, tal como fez Nise da
Silveira [1905-1999] em seu trabalho com psicóticos.

Dentre as depressões patológicas estamos considerando dois grupos: as neuróticas e as


psicóticas. A diferenciação entre os tipos de depressão abordados neste capítulo deve ser
realizada através de dois critérios centrais; o primeiro diz respeito à intensidade da regressão
energética e o segundo ao estado geral do complexo do ego. Podemos, portanto, considerar a
22
possibilidade de um aprofundamento de uma depressão normal em patológica – seja neurótica
ou psicótica – através do aumento do valor energético do inconsciente; que devido ao
princípio da equivalência10, implica na perda de um quantum de energia de igual valor na
consciência. Por esse motivo, Jung considera que "os conteúdos anímicos autônomos [...] têm
uma ação desintegradora sobre a consciência" (JUNG & WILHELM, 2007, p. 48), já que
estes aumentam na mesma proporção em que a consciência do eu é dissolvida.

A transição de uma depressão normal para uma patológica – neste caso, uma
depressão neurótica –, portanto, acontece na medida em que a balança se desequilibra a tal
ponto em que a consciência do eu torna-se demasiadamente difusa, frente a um inconsciente
cada vez mais poderoso. O confronto entre a consciência e o inconsciente e, portanto, a
função transcendente, depende sempre de um papel ativo do ego; sem o qual não pode ocorrer
qualquer síntese entre os elementos opostos. Para Jung (OC 8/2), a confrontação entre o ego e
o inconsciente, isto é, "a aproximação dos opostos da qual resulta o aparecimento de um
terceiro elemento que é a função transcendente" (§ 181) é um momento de especial
importância para a síntese da personalidade; e "neste estágio, a condução do processo já não
está mais com o inconsciente, mas com o ego" (ibidem). Mas, em uma depressão neurótica o
ego pode estar demasiadamente dissolvido pelo inconsciente e, portanto, esta tarefa pode ser
muito dificultada ou até mesmo impossibilitada; dependendo da intensidade desta dissolução.

Sobre este aprofundamento patológico e as dificuldades que podem se originar dele,


remeto à observação de Jung, feitas anteriormente neste trabalho, sobre um paciente que não
considerava a possibilidade de cura devido ao grau avançado de adoecimento11. Pois o
prognóstico foi feito levando em consideração o avanço da doença, isto é, a intensificação da
regressão energética e a consequente dissolução do ego; de tal modo que este último foi
assimilado pelo inconsciente e, portanto, a possibilidade de síntese entre os opostos ficou
inviabilizada. Entretanto, ao falarmos em depressão neurótica, não devemos considerar este
prognóstico como único possível. Visto que, nestes casos, o prognóstico pode oscilar em um
gradiente de acordo com a intensidade da regressão da libido e da dissolução do ego,
derivadas do princípio da equivalência; podendo variar desde uma depressão com boas
possibilidades de cura até uma depressão neurótica crônica.

10
"O princípio da equivalência postula que para cada energia gasta, empregada para gerar uma condição em
algum lugar, surge, em outro lugar, uma quantidade igual da mesma, ou de outra forma de energia" (JUNG, OC
8/1, § 34).
11
"O caso estava avançado demais para que se pudesse contar com uma perspectiva de cura. Só lhe restava
continuar o tratamento até a morte" (JUNG, OC 7/1, § 75).
23
A depressão neurótica é caracterizada por uma fixação nos conteúdos do inconsciente
pessoal; que, pelo fato da consciência não poder assimilá-los, carregam-se cada vez mais de
energia; retirando, para isso, energia do ego. Isto equivale a dizer que a pessoa é dominada
pelos próprios complexos; e, assim, está criada a cisão neurótica da personalidade. "A cisão
pode desenvolver-se a partir de conteúdos espontâneos do inconsciente, que a consciência não
pôde assimilar" (JUNG & WILHELM, 2007, p. 48). Os conteúdos que não encontram lugar
na consciência são dissociados para o inconsciente. São os "afetos que, contra nossa vontade e
apesar das enérgicas tentativas de bloqueá-los, dominam o eu, mantendo-o sob seu domínio"
(ibidem). Mas, embora inconscientes, os complexos não permanecem inertes, como em estado
de inanição, pois o princípio da individuação12 busca sua integração através da regressão
energética; retirando energia do ego. "O complexo autônomo desenvolve-se usando a energia
retirada do comando consciente da personalidade" (JUNG, OC 15, § 123). Portanto,
influencia a consciência através da ameaça crescente de assimilação do ego. A consequência
deste fato é comentada por Jung:

"Surge aquilo que Janet qualificou de abaissement du niveau mental. A


intensidade de atividades e interesses conscientes diminui gradativamente, surgindo
ou uma apatia [...], ou um desenvolvimento regressivo das funções conscientes, isto
é, uma descida às suas condições infantis e arcaicas, algo como uma
desgenerescência. As parties inférieures des fonctions, como disse Janet, impõem-
se: o instintivo sobre o ético, o ingênuo-infantil sobre o ponderado, o adulto e a
inadaptação sobre a adaptação" (JUNG, OC 15, § 123).

Jung (OC 15) afirma que o processo de ampliação do complexo mediante a contínua
perda de energia do ego para o inconsciente "se desenvolve e se amplia mediante inclusão de
associações afins" (§ 123). O complexo carregado de energia cresce em tamanho - fica mais
rico em associações; e, "naturalmente, a energia necessária para este fim é retirada do
consciente, a não ser que este aconteça identificar-se com o complexo" (ibidem). O
abaissement du niveau mental tão característico da depressão só acontece enquanto não há
identificação da consciência com o complexo. Pois, no fenômeno da identificação há energia
na consciência e, embora a identidade do ego esteja temporariamente dissolvida, a experiência
é muito diferente da apatia depressiva. Há, ao contrário, uma experiência de possessão, em
que o complexo assume as rédeas com toda energia que estiver a sua disposição. A depressão

12
O princípio da individuação aqui exposto não deve ser confundido com o conceito de processo de
individuação. Pois, o primeiro diz respeito a um princípio geral, uma tendência a que a multiplicidade se reúna
em uma unidade; enquanto que o segundo diz respeito ao processo empírico de síntese da personalidade. O
princípio da individuação, portanto, pode ser considerado como uma tendência arquetípica que orienta o
processo de individuação.
24
neurótica é caracterizada, portanto, por um movimento que alterna entre a apatia e a
possessão.

A experiência da apatia depressiva pode se aprofundar em episódios de verdadeiro


deserto imagético nos casos mais graves; correspondendo a uma diminuição considerável das
imagens da fantasia; como se a energia retirada da consciência tivesse desaparecido por
completo. "Há casos em que uma quantia considerável de libido desaparece de todo, como se
o inconsciente o tivesse engolido por inteiro, sem que se localize um novo valor criado a
partir daí" (JUNG, OC 8/1, § 35); pois o quantum de energia perdido permanece abaixo do
limiar da consciência. Mas, na maioria do tempo, a apatia é acompanhada de pensamentos de
ruína, culpa ou inutilidade e de uma fixação em padrões de comportamento regredidos,
reativos e previsíveis; indicando a identificação da consciência com um complexo autônomo.
Pode-se observar também a presença de possessões tão poderosas, que trazem uma grande
quantidade de energia à consciência e, temporariamente, extinguem a apatia por completo;
como em ataques de fúria e irritabilidade na depressão neurótica, ou em experiências
numinosas no transtorno bipolar ou na depressão psicótica.

Embora a depressão psicótica possa ser resultado de um aprofundamento da depressão


neurótica através da acentuação da regressão, traz uma diferença importante no que diz
respeito ao estado geral do ego. Pois, enquanto que na depressão neurótica o ego é
temporariamente assimilado pelo inconsciente, na depressão psicótica há o fenômeno
denominado por Jung como fragmentação do ego. Para o autor, "de modo geral, o eu é um
complexo fortemente estruturado que, por estar fortemente ligado à consciência e à sua
continuidade, não pode nem deve ser facilmente alterado, sob pena de enfrentar sérias
perturbações patológicas" (JUNG, OC 8/2, § 430). Para o autor, tal fenômeno pode se dar no
encontro entre o ego e o inconsciente, e dependeria da quantidade de energia do conteúdo
inconsciente por um lado e, por outro, da força de coesão do ego. "Se [...] a estrutura do
complexo do eu é bastante forte para resistir ao assalto dos conteúdos inconscientes, sem que
se afrouxe desastrosamente sua contextura, a assimilação pode ocorrer" (ibidem). Mas, o
choque resultante deste encontro poderia resultar em uma fragmentação do ego, caso este não
fosse forte o suficiente para resistir à investida do inconsciente.

Entretanto, tal perspectiva parece ser insuficiente para explicar a fragmentação do ego
e o desenvolvimento de uma psicose, visto que há situações extraordinárias em que o
inconsciente irrompe na consciência com força tão avassaladora, que seria de se esperar uma

25
fragmentação imediata do ego; como em certas experiências religiosas ou através da
utilização de substâncias psicodélicas como o LSD ou a psilocibina. Se somente levarmos em
consideração a intensidade da irrupção do conteúdo inconsciente e a força de coesão do ego,
esperaríamos um altíssimo número de casos de psicose dentre as pessoas que utilizam estas
substâncias ou tem tais experiências. Entretanto, um estudo recente que relacionou a
utilização de substâncias psicodélicas a transtornos mentais não foi capaz de encontrar
qualquer relação entre eles. Os autores afirmaram: "não fomos capazes de encontrar
evidencias de que o uso de psicodélicos seja um fator de risco independente para problemas
relacionados à saúde mental13" (JOHANSEN & KREBS, 2015, p. 1). Levando este fato em
consideração, compreendo a possibilidade da fragmentação do ego a partir de um ponto de
vista um pouco diferente.

Sugiro que a força capaz de fragmentar o ego não esteja relacionada necessariamente à
intensidade da irrupção do conteúdo inconsciente na consciência, mas sim à presença de um
conflito demasiadamente desagregador para o ego. Assim sendo, um conteúdo inconsciente
poderia irromper com grande violência na consciência sem ameaçar a integridade do ego
desde que não origine um conflito muito desagregador. Enquanto que outro conteúdo, com
bem menos intensidade na irrupção, poderia gerar um conflito tão desagregador, que fizesse o
ego se partir em sua unidade. O foco, portanto, não recai sobre a força da irrupção do
conteúdo inconsciente, mas da força desagregadora de um conflito originado na emergência
de um conteúdo inconsciente, independente da intensidade de sua irrupção na consciência.

Parto do pressuposto de que o conflito exerce uma força desagregadora sobre o


complexo do ego. Na medida em que é o conflito quem prepara a ampliação da consciência
através da função transcendente, deveria ser esperado que exercesse alguma desagregação ao
ego precedendo a síntese entre os opostos. Pois, para que o novo seja criado, o antigo precisa
se desagregar a fim de encontrar uma nova configuração. Este efeito desagregador do conflito
sobre o ego, que aqui proponho, parece estar na raiz da própria tendência à dissociação da
psique. Entende-se assim, que a dissociação não é fruto exclusivamente de uma recusa de
caráter moral do ego diante da sombra; embora este aspecto moral seja um fato inegável. Mas,
a dissociação é um processo natural que acontece independente da abertura do ego em acolher
a sombra; e por esse motivo não é o mesmo que uma repressão. A dissociação diz respeito a
um princípio muito mais fundamental e anterior ao ego; que pode ser atribuído ao aspecto
13
"We failed to find evidence that psychedelic use is an independent risk factor for mental health problems"
(ibidem).
26
diabólico14 do Self. Este, enquanto ordenador da psique, compreende não somente tendências
simbólicas, que buscam a síntese entre aquilo que está separado; mas também possui
tendências diabólicas, que dissociam uma unidade estabelecida. Ambos estes aspectos são
fundamentais ao processo de individuação.

Quando determinado conteúdo inconsciente se aproxima da consciência e origina um


conflito; uma pressão é exercida sobre o ego, pois a irrupção do oposto na consciência gera
alguma desagregação ao ego. Em condições normais, isto é, quando a força de coesão do ego
é suficiente para suportar a desagregação gerada pelo conflito, pode-se suportá-lo e, o
confronto entre o ego o inconsciente pode acontecer, possibilitando a função transcendente.
No entanto, quando a força desagregadora gerada pelo conflito é superior à força de coesão do
ego ou ameaça fragmentá-lo, dá-se a dissociação; que elimina o conflito através da supressão
do oposto. O Self, através de seu aspecto diabólico é quem dissocia o oposto e assim a
integridade do ego é garantida. Uma neurose grave ou crônica, portanto, se estabelece no
sentido de garantir a integridade de um ego cuja força de coesão interna não é suficiente para
resistir a desagregação gerada pelo conflito que emergiria na presença do conteúdo
inconsciente.

A crescente potencialização energética do conteúdo inconsciente, ao retirar energia do


ego, previne igualmente a fragmentação do mesmo; pois sua dissolução, originada pelo
princípio da equivalência, faz com que nenhum conflito seja gerado na irrupção do
inconsciente. Se não há ninguém em casa, não há confronto com o invasor; e quando o
conteúdo inconsciente emerge na consciência, ao invés de haver um conflito, acontece uma
identificação – uma possessão. Não há um eu e um outro, e, portanto, não há tensão; pois, a
identidade do eu foi temporariamente dissolvida pelo complexo autônomo. Entretanto, neste
caso, esse outro é experimentado como se fosse eu; pois quando o complexo entra na casa
pela janela, o ego sai pela porta dos fundos. A consciência fica identificada com o complexo,
que toma as rédeas da situação e age de acordo com suas próprias inclinações. Não há
conflito, portanto não há confronto possível; não há risco de fragmentação do ego, mas
também não há possibilidade de integração do inconsciente.

14
"Uma sugestão para uma possível interpretação provém da derivação da palavra 'diabólico', do grego dia
(através) e ballein (lançar) (Oxford English Dictionary), donde, 'lançar através ou separado'. Disso deriva o
significado usual de 'diabolos' como o Diabo, isto é, aquele que atravessa, impede ou desintegra (dissociação). O
antônimo de diabólico é 'simbólico', de sym-ballein, que significa 'lançar reunido'. Sabemos que ambos os
processos - lançar separado e lançar reunido - são essenciais para a vida psicológica e que, em suas atividades
aparentemente antagônicas, temos um par de opostos que, quando idealmente equilibrados, caracterizam os
processos homeostáticos da autorregulação da psique" (KALSCHED, 2013, p. 38).
27
Entretanto, nem sempre este é o caso. Pois a fragmentação do ego e o
desenvolvimento da psicose que daí se deriva, é um fenômeno relativamente comum no
mundo contemporâneo. Não considero que a fragmentação do eu seja algo como uma falha
em um suposto sistema de defesa do ego; mas é algo que transcende a psicologia pessoal e
não pode ser considerado somente em termos psicodinâmicos. Já que sua finalidade visa a
integridade da cultura, e não a realização do Self no indivíduo. Mas, abordar este assunto aqui
seria demasiadamente extenso e não contribuiria para a presente pesquisa. Interessa-nos
compreender a depressão psicótica em termos psicodinâmicos e, para isso, precisamos
conhecer suas especificidades.

Os sintomas psicóticos mais comuns na depressão, segundo o CID 10 (OMS, 1993),


são alucinações auditivas e ideias delirantes relacionadas à culpa e ruína. Os conteúdos destes
sintomas não são muito diferentes das imagens e pensamentos que dominam a consciência na
depressão neurótica; a principal diferença, no que diz respeito ao conteúdo, está no fato de
que, na depressão psicótica se tratam de imagens coletivas, enquanto que na depressão
neurótica, embora haja comumente a mesma estrutura narrativa, o enredo é vivido através da
história pessoal. Desta forma, enquanto o neurótico deprimido se culpa por ser incapaz de
corresponder às expectativas sociais, por exemplo; o psicótico deprimido pode ter a ideia
delirante de que é culpado por um desastre natural. Isto acontece, pois, na psicose, "os
complexos [...] assumem, por autossimplificação, um caráter arcaico e mitológico e,
consequentemente, também uma certa numinosidade" (JUNG, OC 8/2, § 383). Há um
esvaziamento dos conteúdos pessoais – a cadeia de associações do complexo – que orbitavam,
por assim dizer, entorno do arquétipo; pois a regressão energética ultrapassou o inconsciente
pessoal e atingiu o inconsciente coletivo, fragmentando o ego no processo.

Entretanto, o humor deprimido é marcante e preponderante na psicose depressiva; o


que a diferencia, sem dúvida nenhuma, das demais psicoses. A apatia depressiva pode se
tornar um estado de profundo estupor e imobilidade. Fenômeno que pode ser adequadamente
compreendido, em termos psicodinâmicos, através do tipo de regressão15 anteriormente
mencionado para a depressão neurótica. Mas, na depressão psicótica, a regressão é tão
acentuada que a quantidade de energia retirada da consciência é suficiente para criar um
estado de estupor, bem mais profundo do que uma apatia. Quando o conteúdo inconsciente,
fortemente carregado, emerge na consciência dá se uma identificação de igual poder, que

15
"Há casos em que uma quantia considerável de libido desaparece de todo, como se o inconsciente o tivesse
engolido por inteiro, sem que se localize um novo valor criado a partir daí" (JUNG, OC 8/1, § 35).
28
emerge na forma de delírios ou alucinações, devido à fragmentação do ego, e com uma
tonalidade numinosa extraordinária.

A classificação das diversas formas de depressão aqui apresentada é fundamental,


tanto do ponto de vista teórico, quanto clínico. Pois depressão é um nome genérico atribuído a
fenômenos que reúnem características semelhantes, mas que apresentam diferenças
importantes em termos psicodinâmicos. Tais diferenças têm implicações diretas no manejo
clínico e, portanto, saber a forma da depressão manifestada em determinado paciente pode
orientar o psicoterapeuta em seu trabalho. Mas, embora a compreensão psicodinâmica dê
pistas importantes para o manejo clínico, há de se considerar outros fatores para um
entendimento mais completo sobre a depressão. É comum, por exemplo, a irrupção de
transtornos depressivos em indivíduos que se aproximam da segunda metade da vida; e, em
tais casos, há de se considerar algumas especificidades. Portanto, a relação do indivíduo com
o mundo, a constituição de sua persona, da sua sombra, e a abertura em relação ao outro são
fatores de grande relevância para esta matéria.

ASPECTOS COLETIVOS DA DEPRESSÃO PSICOGÊNICA

Modo geral, os autores junguianos abordam a depressão através de uma perspectiva


personalista. Alguns tentam encontrar suas causas no desenvolvimento da criança ou através
de uma abordagem focada no indivíduo. Judith Hubback (1983) faz sua análise sobre a
depressão a partir de estudos de casos de pacientes que tiveram privação da presença materna
na infância e conclui que estes pacientes sofreriam de uma séria ferida narcísica. Sua
abordagem terapêutica seria, a partir da transferência, ajudar o paciente a trabalhar as imagos
parentais negativas para possibilitar a emergência gradual de símbolos benignos e
unificadores e, assim, possibilitar a coniunctio16.

Na mesma linha, Steinberg (1995) considera que “pessoas passíveis de desenvolver


um distúrbio depressivo sofreram uma grave perda de amor no início da vida (normalmente
associado à mãe) e desenvolveram a ideia de que alguma característica pessoal negativa foi
responsável por esta perda” (p. 75). Apesar do desespero, estas pessoas, acalentariam

16
O termo coniunctio é derivado da alquimia medieval e sua utilização neste trabalho deve ser considerada como
sinônimo de união dos opostos.
29
inconscientemente a “ideia de não ter perdido irremediavelmente o outro” (ibidem), pois
poderiam restituir o amor perdido caso fossem capazes de se redimir do "pecado" que gerou a
separação. Assim sendo, a perda do amor estaria relacionada à aquisição de independência e,
portanto, o indivíduo procuraria restituir o amor perdido tornando-se novamente dependente
da pessoa ou de alguém que recebesse essa projeção.

Para James Hollis (2011) a depressão intrapsíquica teria suas raízes na infância e
imporia um sofrimento necessário para o crescimento pessoal. Francisco Purcotes Júnior
(2012), seguindo a mesma linha, considera a depressão como necessária ao desenvolvimento
do indivíduo, que teria suas raízes na infância e cujo sofrimento deveria ser atravessado
através de uma atitude de enfrentamento para que se produzisse uma transformação na
personalidade. Estas abordagens junguianas enquadram-se no que Samuels (1989) definiu
como desenvolvimentistas. Entretanto, a presente pesquisa se distancia destas abordagens por
considerar que, estas, não dão a devida importância à história do mundo; os aspectos socio-
históricos que por um lado transcendem a psicologia individual, e por outro, atravessam o
individuo de forma determinante.

Evidentemente, a infância é um momento de fundamental importância na vida de


qualquer indivíduo; há enorme plasticidade neural neste período da vida, e muitos dos
caminhos neurais que utilizaremos mais tarde são formados nessa fase da vida. As
experiências vividas neste período são, portanto, extremamente significativas. Para Jung
(2011), a criança está muito mais próxima do inconsciente coletivo do que o adulto, pois
ainda não tem um inconsciente pessoal plenamente formado; e, portanto, a experiência
infantil é comumente numinosa e mobilizadora de afetos intensos. Podemos concluir daí que
o magnetismo arquetípico atrai de forma intensa as primeiras associações que orbitarão "no
entorno do arquétipo" para formar os primeiros complexos do inconsciente pessoal. Portanto,
não se pode desconsiderar a tremenda importância da infância na constituição psíquica do
adulto; principalmente no que diz respeito à formação das camadas mais nucleares dos
complexos, que ao longo da vida receberão novas camadas, mais superficiais, de associações.

Estas primeiras experiências costumam ocorrer no seio da família e, por esse motivo é
comum que muitas psicologias mantenham seu foco na história pessoal e nas relações da
criança com as figuras parentais. Mas, apesar disso, não devemos desconsiderar o fato de que
toda e qualquer família tem uma história ancestral e que estão indissociavelmente inseridas
em um processo cultural mais amplo de elaboração coletiva das imagens arquetípicas. Para

30
Jung (OC 17), o inconsciente é sempre anterior à consciência; esta última se origina a partir
do primeiro, que carrega a priori não somente um arcabouço filogenético, mas também
ontogenético – a história do homem no mundo. "O inconsciente é mais antigo do que a
consciência. O homem primitivo vive prioritariamente na inconsciência [...]. O inconsciente é
aquilo que é dado originalmente, a partir do qual a consciência acaba sempre emergindo de
novo" (JUNG, 2011). Portanto, a consciência não emergiria como algo sempre igual,
independente do contexto cultural; mas, sua gênese se daria a partir de um substrato ao
mesmo tempo arquetípico e histórico.

"Isto soa um tanto miraculoso, mas teremos que nos acostumar com a ideia
de que esse tipo de coisas existe, de que conteúdos inconscientes, que se encontram
estranhamente em conformidade com fatos históricos, podem ser reproduzidos. A
explicação encontra-se vinculada ao fato de se tratar de conteúdos arquetípicos"
(JUNG, 2011, p. 27).

Devemos, também, ter em mente o aspecto finalístico do inconsciente para não sermos
tentados a pensar a psique como se fosse unicamente uma sucessão de eventos causais que
tenderia a reduzir a infância a uma espécie de etiologia comum para toda e qualquer formação
da personalidade. Pois, "por vezes, futuras formações da personalidade são antecipadas
durante os processos de desenvolvimento" (JUNG, 2011, p. 29). Jung dá como exemplo,
sonhos antecipatórios, e afirma que se tratam de conteúdos que "apontam para ações ou
situações futuras do sonhador que não se baseiam em absoluto na psicologia atual do
paciente" (ibidem). Este tipo de sonho seria comum em crianças e mostram que o indivíduo
não nasce como tábula rasa; e, também, que sua herança não estaria unicamente relacionada a
fatores instintivos e filogenéticos como a hipótese do inconsciente coletivo poderia
erroneamente nos levar a supor; mas, que haveria algo de coletivo e ao mesmo tempo singular
no destino individual.

"O indivíduo é desde o nascimento, poderíamos até dizer antes mesmo do


nascimento, aquilo que será. O esquema básico é delineado desde muito cedo. Estes
primeiros sonhos provêm da totalidade da personalidade e revelam diversos aspectos
seus que não encontramos mais adiante, quando a vida nos força a fazer
diferenciações unilaterais "(JUNG, 2011, p. 30).

Por essas razões, tendo a me afastar das abordagens desenvolvimentistas e


demasiadamente personalistas sobre a depressão trazidas por alguns autores pós-junguianos.
Considero a importância de retornarmos à obra de Jung a fim de construirmos um olhar sobre
a depressão que leve em consideração não somente os aspectos pessoais e arquetípicos, mas
também os socio-históricos do homem no mundo; já que este não é aqui considerado como
uma mônada cuja existência se daria independente do mundo. É preciso, portanto, retornar à

31
noção de unus mundus que Jung resgata da tradição ocidental; para considerarmos a
indissociabilidade entre arquétipo e fenômeno; vazio e forma, inconsciente coletivo a-
histórico e história do mundo; entre microcosmo e macrocosmo; deus e homem. Para Jung,
(OC 14/2) "o mandala simboliza, por meio de seu centro, a última unidade do todos os
arquétipos como também a multiplicidade do mundo dos fenômenos, e forma por isso a
correspondência empírica para o conceito metafísico do 'unus mundus' (mundo uno)" (§ 326).

A partir desta perspectiva, os fenômenos antecipatórios descritos anteriormente, e que


nos fazem abandonar uma perspectiva demasiadamente personalista para um entendimento da
depressão, podem ser mais adequadamente compreendidos. Pois "se a simbólica do mandala
representa a correspondência psicológica para a ideia metafísica de 'unus mundus' (mundo
uno), a sincronicidade será a correspondência parapsicológica" (JUNG, OC 14/2, § 327). O
pressuposto da causalidade, tão caro ao desenvolvimentismo, embora seja importante para a
construção do conhecimento científico, "tem a desvantagem de afrouxar a conexão universal
dos acontecimentos" (ibidem) ou, pior, de "torná-la invisível, pelo que o conhecimento das
grandes conexões, isto é, da unidade do mundo, fica progressivamente impedido" (ibidem).
Somente sem consideramos a unidade do mundo, poderíamos supor a ideia do homem como
mônada e construirmos um entendimento sobre a depressão que não considerasse a
indissociabilidade entre o indivíduo e suas heranças tanto arquetípicas quanto socio-históricas.

A abordagem sobre a depressão de Maria Zelia de Alvarenga (2007) se aproxima um


pouco mais da que estamos desenvolvendo nesta pesquisa. A autora não localiza a etiologia
da depressão na infância; a considera como sendo "a dor da alma que se perdeu de si mesma",
e que estaria relacionada a uma interrupção no processo natural de "crescimento" individual.
Embora não dê ênfase aos aspectos socio-históricos envolvidos na depressão, a consideração
de sua inserção em um contexto finalístico nos permitiria supor que o processo natural a que
se refere estaria inserido em um contexto mais amplo do que a pessoa; pois, para Jung (2006),
a individuação é um processo que não se restringe à psicologia pessoal, mas seria como um
devir em que mundo e homem fluem como se fizessem parte de um mesmo rio.

Para Carlos Amadeu Botelho Byington (2007), a depressão estaria relacionada a uma
função estruturante da psique, que se incluiu dentro de um processo cultural maior de
elaboração coletiva das imagens arquetípicas. Esta abordagem é a que mais se afina com a
nossa; pois deixa claro a indissociabilidade entre a elaboração coletiva e individual do
inconsciente; levando em consideração, portanto, o que chamou de inteireza do ser ou

32
trazendo implícita a ideia do unus mundus. O autor afirma que "podemos estudar a inteireza
do ser por meio do processo de individuação descrito por Jung no plano individual ou do
processo de humanização conceituado por Teilhard de Charin na dimensão coletiva"
(BYINGTON, 2007, p. 11). Assim como o fazemos nesta pesquisa, Byington considera que a
direção regressiva da libido na depressão visa alcançar e integrar a sombra à consciência.
Entretanto, esta sombra, embora surja com aparência de pessoal, não estaria relacionada
unicamente a história de vida da pessoa.

"Trata-se da realização ou da disfunção da atualização do potencial de cada


ser humano ou de cada sociedade na sua trajetória em direção à plenitude de sua
capacidade. Desta maneira, os conceitos de Self individual e Self cultural podem ter
o mesmo embasamento arquetípico para formar a consciência por meio da
elaboração dos símbolos e funções estruturantes e para expressar suas disfunções na
sombra" (BYINGTON, 2007, p. 11).

Pareceria confuso relacionarmos o inconsciente pessoal ao inconsciente cultural se não


considerássemos a ideia de participação mística do modo como é utilizada por Jung; e
substituída por alguns pós-junguianos pelo termo identidade inconsciente17. Todo grupo de
pessoas está unido através desta identidade inconsciente em maior ou menor grau; de modo
que, um complexo, por exemplo, diz respeito a determinado arquétipo que não encontra
espaço para ser elaborado pela consciência coletiva em determinado período histórico. O que
nos permite pensar que os complexos pessoais formam uma unidade anterior, compartilhada
de forma inconsciente por um grupo específico, formando um complexo cultural; que por sua
vez, agrupa associações em torno de um "deus recusado" (arquétipo) por este mesmo grupo.

Se considerássemos a depressão como algo que dissesse respeito unicamente à história


pessoal, concluiríamos que esta traz aqueles aspectos do inconsciente pessoal que precisam
ser integrados à consciência. Isso é verdade até certo ponto. Mas, a história pessoal – e,
portanto, a sombra – sempre está inserida em um contexto cultural que atravessa e transcende
o indivíduo. De modo que, aqueles conteúdos que emergem na consciência e confrontam o
ego dizem respeito à história pessoal; mas, antes, à história do homem no mundo. Portanto, ao
falarmos sobre a integração do inconsciente pessoal no decorrer deste trabalho, estamos
considerando não somente como se dissesse respeito à história pessoal. Pois, a integração
destes conteúdos refere-se, ao mesmo tempo, à integração do próprio inconsciente, mas
também dá curso à elaboração histórica das imagens arquetípicas rejeitadas pela cultura.

17
(HUBBACK, 1983).
33
"As tendências à dissociação caracterizam a psique humana e são inerentes
a ela; sem isto, os sistemas psíquicos parciais nunca as teriam cindido, ou melhor,
não teriam gerado espíritos ou deuses. A dessacralização de nossa época tão profana
é devida ao nosso desconhecimento da psique inconsciente, e ao culto exclusivo da
consciência. Nossa verdadeira religião é o monoteísmo da consciência, uma
possessão da consciência, que ocasiona uma negação fanática da existência de
sistemas parciais autônomos. [...] Isto representa um grande perigo psíquico, pois os
sistemas parciais se comportam como quaisquer outros conteúdos reprimidos. [...]
Tal fato, evidente nos casos de neurose, também o é no campo dos fenômenos
psíquicos de caráter coletivo" (JUNG & WILHELM, 2007, p. 49).

Ao considerarmos a depressão a partir de uma perspectiva socio-histórica, não nos


seriam estranhos os dados estatísticos da OMS que apontam para seu crescimento vertiginoso.
As estimativas da Organização Mundial da Saúde indicam que a depressão será a doença de
maior prevalência no ano de 2030 (WHO, 2012); isto indica um problema de ordem social,
que embora atravesse o indivíduo, não pode ser observado unicamente através de sua história
de vida. Devemos, pois, recorrer ao espírito da época (zeitgeist) para tentar lançar luz sobre
esse fenômeno. Pois, trata-se de um fenômeno psíquico de caráter coletivo que traz à cultura
um deus, por assim dizer, que não encontraria lugar na consciência coletiva de outra maneira.
No caso da depressão, um deus sem nome, que se relaciona à noite, à inércia, à falta de
vontade, à derrota e à morte.

"Uma psiquiatria fenomenológica, voltada não apenas para a explicação


(quantitativa), mas para a compreensão, poderia lançar o seu olhar para além da
classificação, simplesmente, e se perguntar qual seria o significado do fato de a
melancolia, e sua variante mais light, a depressão, estarem se tornando a doença
deste século" (GRINBERG, 2005, p. 47).

Podemos compreender isso a partir dos ideais heroicos da consciência coletiva


contemporânea, pois o herói enquanto modelo moral diz respeito a "impulso à atividade,
exploração externa, responsividade ao desafio, pegar, agarrar, estender" (HILLMAN, 2010, p.
34). Acompanhado por "sentimentos de independência, força, realização, em ideais de ação
decisiva, luta, planejamento, virtudes e conquistas" (ibidem). A depressão, por outro lado,
confronta a cultura com qualidades opostas a este ideal inflado. De tal forma que poderíamos
repetir o mesmo modelo, mas em negação, para caracterizar a depressão: falta de impulso à
atividade (inatividade), falta de exploração externa (empuxo à interiorização), incapacidade
de vencer desafios, não pegar (soltar), não agarrar (largar), não estender (espremer).
Acompanhado por sentimentos de dependência, fraqueza, falta de realização, em ideias de
falta de ação (inércia), incapacidade em lutar (derrota), incapacidade em planejar, ausência de
virtudes e ausência de conquistas.

"A cultura espera que sejamos maníacos: hiperatividade, gasto, consumo,


desperdício, que sejamos eminentemente verbais, um fluxo de ideias, não se ater
34
demais a coisa alguma – o medo de ser chato – e assim perdemos o sentido da
tristeza. [...] Essa qualidade [maníaca] da psique é o nosso desenvolvimento egóico.
Está tão identificada com o ego que nem se quer a encaramos como síndrome! Para
nós síndrome é tristeza, lentidão, secura, espera. Isto nós chamamos de depressão, e
temos uma indústria farmacêutica gigantesca para lidar com ela" (HILLMAN, 1989,
p. 23).

Talvez não precisemos rememorar a infância do indivíduo deprimido para


compreendermos a presença de sentimentos de culpa18 persistentes, como se tentássemos
encontrar uma experiência primal no desenvolvimento que a justificasse; pois, no aqui e agora
do deprimido há a culpa pela identificação com a sombra coletiva. Em uma cultura maníaca,
não poderíamos esperar nada menos do que a emergência, em escala epidêmica, de algo como
a depressão. Não a toa, Hillman (2013) considera que a "depressão de nossa civilização é
parcialmente uma resposta da alma a seu mundo das trevas perdido" (p. 117). Concordo com
o autor quando afirma que "a depressão tem nos conscientizado da dependência cultural de
uma superficialidade maníaca de crescimento" (HILLMAN, 2010, p. 84), mas também de um
certo ideal de identidade narcísico de independência e autossuficiência.

"Cada momento de enegrecimento é um arauto da mudança, de descoberta


invisível e de dissolução das ligações com tudo aquilo que foi tomado como verdade
e realidade, fato sólido ou virtude dogmática. Ele escurece e sofistica o olhar de
forma que ele pode enxergar através" (HILLMAN, 2011A, p. 136).

Ao pensarmos em cura da depressão, normalmente o fazemos sob a perspectiva solar


de eficiência; pois, uma pessoa curada da depressão deveria ser alguém capaz de encarnar
novamente aquelas virtudes coletivas que a depressão a privou com sua mão pesada. Mas é a
depressão que pretende curar, por assim dizer, no sentido de integrar aquilo que falta à
consciência coletiva; e, portanto, talvez ela não seja exatamente aquilo que deva ser curado.
As observações de Jung acerca da importância coletiva da obra de arte nos ajudam a
compreender o que estamos aqui propondo:

"É aí que está o significado social da obra de arte: ela trabalha


continuamente na educação do espírito da época, pois traz à tona aquelas formas das
quais a época mais necessita. Partindo da insatisfação do presente, a ânsia do artista
recua até encontrar no inconsciente aquela imagem primordial adequada para
compensar de modo mais efetivo a carência e unilateralidade de espírito da época”
(JUNG, OC 15, § 130).

Assim como, a partir da pessoa do artista, e pela identidade inconsciente em que este
se encontra com seus contemporâneos, a libido encontra a imagem arquetípica que confronta
a unilateralidade do espírito da época; na depressão ocorre exatamente a mesma coisa.
Entretanto, na arte, é a obra em si, através da pessoa do artista, que traduziria esta imagem

18
“Indivíduos depressivos sofrem de sentimento de culpa excessiva e irracional" (STEINBERG, 1995, p. 76).
35
primordial para uma linguagem adequada ao espírito da época; já na depressão, é a possessão
pelo arquétipo, que tinge a vida da pessoa deprimida com sua própria tonalidade; impondo a
necessidade de elaboração do drama coletivo de seu tempo através da integração do
inconsciente pessoal. É, pois, a vida da pessoa em depressão que deve ser realizada como se
fosse uma obra de arte; a fim de que uma resposta individual seja dada a um problema
coletivo que flui através da história do mundo.

SOBRE A CURA DA DEPRESSÃO

Uma questão que deve permanecer em aberto diz respeito sobre a possibilidade de
cura da depressão. Embora haja diversos casos de remissão completa, há ainda tantos outros
em que, apesar da utilização de variadas formas de tratamento, a sintomatologia persiste
incansável. Ao considerarmos as imagens alquímicas em analogia ao processo de
individuação, e ao relacionarmos a depressão à fase alquímica da nigredo - início da grande
obra; não devemos ser tentados a supor que a depressão seria sempre um caminho pelo qual a
travessia fosse possível. Como se todo é qualquer indivíduo tivesse a possibilidade de, através
de uma atitude adequada, avançar através da escuridão depressiva em direção a um
renascimento renovado. Fazer com que essa questão permaneça em aberto não é somente
importante do ponto de vista teórico, mas principalmente no manejo clínico com indivíduos
depressivos, e principalmente sobre aqueles em que a depressão se apresenta como um muro
intransponível. Pois se o terapeuta parte do pressuposto de que toda depressão é passível de
cura, poderá acabar por dizer isso a seu paciente; mesmo que não o diga em palavras, mas
através de seu manejo clínico. Esta situação de nada ajudaria seu paciente e, ao contrário,
imporia um peso a mais sobre ele; acentuando o argumento moral19 do senso comum que
frequentemente faz com que a pessoa com depressão sinta-se culpada por não ser capaz de
superar o estado em que se encontra.

19
"Na teologia cristã, a pesada indolência da depressão, o desespero seco da melancolia, era o pecado da acedia
[preguiça] (como era chamado na igreja)" (HILLMAN, 2010, p. 207).
36
Essa questão é bastante antiga. Robert Burton (2011), ainda no século XVII, dizia que
há possibilidade de diversos prognósticos na melancolia20; dependendo de seu tipo. Os
prognósticos variam em uma escala de intensidade, desde casos em que há grande esperança
de cura, até casos incuráveis. Mas, apesar desta variação de prognósticos, Burton considerava
que há um axioma comum: "aut difficulter curabilis, segundo os otimistas, dificilmente
curável" (p. 396). Chama atenção que apesar da passagem dos séculos, o conselho de
Montano, um abade italiano do século XVI, permanece válido até os dias de hoje – como
podemos confirmar pelo relato contemporâneo de Solomon (2014) sobre sua própria
depressão. "Tal moléstia comumente os acompanha até a cova; os médicos podem aliviá-la, e
ela pode até se ocultar por um tempo, mas eles são incapazes de curá-la, pois que ela retorna
ainda mais violenta e aguda que no início, e pelo menor motivo" (MONTANO apud
BURTON, 2011, p. 397). Não devemos, portanto, tomar as imagens coletivas do processo de
individuação como uma trilha que poderia levar, inequivocamente, todo e qualquer indivíduo
da noite escura até a claridade do dia.

Até onde pudemos avançar, não temos possibilidade de confirmar a ideia de Paracelso
[1493-1541] de que toda e qualquer doença é passível de cura; e a dúvida deve permanecer
como sinônimo de sensatez. As imagens arquetípicas do processo de individuação são um
recorte de um emaranhado de imagens muito maior. Não podemos considerar, por exemplo, a
figura mitológica do herói – e seus incansáveis ciclos de morte e renascimento – como sendo
análoga ao ego em contínuo desenvolvimento. Quanto a isso, Hillman (2010) nos deixou
preciosa contribuição ao discutir a tendência contemporânea em relacionar o ego ao herói, e
tomar os mitos e estórias de heróis como modelo de homem ideal. Para Jung (OC 8/1), a
figura do herói deve ser vista em analogia aos movimentos da libido, mas não ao ego.
Devemos, pois, considerar que ao lado do herói encontram-se diversos outros personagens
que não encontram o mesmo destino apoteótico daquele e que a libido encontra muitas outras
possibilidades de realização.

“A confrontação com a sombra também para a psicologia moderna não é


uma coisa qualquer desprovida de perigo; por isso ela é contornada ocasionalmente
com astúcia e cuidado. Somente a contragosto é que permitimos que a sombra se
aproxime de nós, e em geral nos contentamos com a ilusão de nossa probidade civil”
(JUNG, OC 14/2, § 398).

20
A melancolia descrita por Robert Burton não pode ser considerada análoga ao conceito contemporâneo de
depressão, pois, embora sua descrição englobe sintomas bastante semelhantes ao que chamamos atualmente
como depressão; descreve também sintomas diversos que não se enquadram neste diagnóstico.
37
Quantos homens sucumbiram ao enigma da Esfinge até que Édipo a afastasse de
Tebas? Quantos jovens foram oferecidos como tributo e devorados pelo Minotauro até que
Teseu o derrotasse? Quantos foram petrificados pelo olhar da Medusa até que Perseu a
decapitasse? Certamente, no mito, muitos mais encontraram um destino trágico àqueles que
venceram as provas impostas pelos deuses. Todos esses personagens míticos – todas essas
possibilidades de realização da libido – formam o grande drama coletivo que impulsiona a
transformação do mundo. Os indivíduos, portanto, são como atores de um drama que os
transcende e se desenrola ao longo da história. Por esse motivo, a depressão não deve ser vista
unicamente como um desafio imposto ao indivíduo por sua própria história pessoal; mas, ela
mesma (a depressão) confronta a consciência coletiva com aquilo que precisa ser integrado no
processo coletivo de elaboração histórica das imagens arquetípicas na cultura.

Do ponto de vista psicodinâmico, poderíamos supor que há a possibilidade de que o


ego de determinado indivíduo não tenha suficiente força de coesão interna que possibilite a
integração de certos conteúdos inconscientes; estes poderiam exercer um efeito desagregador
tão poderoso sobre o ego que uma catástrofe seria inevitável; e mais valeria a permanência de
uma neurose crônica. A essa possibilidade, não poderíamos relacionar à falta de força de
vontade, pois, a vontade consciente não tem qualquer influência de causalidade sobre a coesão
do ego; esta última é, antes, derivada de uma série de atravessamentos na gênese do próprio
ego que não dependem, em absoluto, da pessoa, mas de sua história pessoal e familiar, que se
inserem em um contexto ainda maior – a história da cultura. Nesse sentido, não poderíamos
atribuir tal situação a outro fator que não ao destino.

Do mesmo modo, poderíamos supor uma possibilidade em que o conteúdo


inconsciente tornar-se-ia tão poderoso que o conflito gerado seria demasiado, mesmo para um
ego com uma força de coesão considerada adequada para a média. Aquilo que precisa ser
integrado não diz respeito exclusivamente ao indivíduo, como vimos, mas a toda uma
coletividade que vive, invariavelmente, em algum grau de participação mística. De modo que
o indivíduo é convocado a dar uma resposta individual a um problema coletivo. Pode
acontecer de no momento histórico em que determinado indivíduo esteja inserido, a
elaboração cultural do conteúdo inconsciente que o confronta ainda não tenha possibilitado
uma síntese sem maiores complicações ao indivíduo. Estes indivíduos que recebem um
chamado a um confronto pioneiro na cultura, poderiam não ter a possibilidade de integrar tal
conteúdo apesar de uma constituição egóica média; e a psicose poderia surgir enquanto

38
possibilidade de emergência do conteúdo arquetípico através da pessoa – e à custa de sua
singularidade – para que fosse elaborado pelo coletivo.

Sejam quais forem os motivos, os fatos insistem em nos lembrar acerca dos limites da
cura. Para Jung (OC 16/2), "o médico sabe que sempre e em qualquer lugar o homem se
defronta com o destino" (§ 463); e, por esse motivo, "às vezes a arte do médico ajuda, outras
não" (ibidem). Esta afirmação não invoca o destino enquanto causalidade sobrenatural, mas,
antes, enquanto algo que foge as possibilidades de explicação racional e causal por um lado;
ou que nossa ignorância é incapaz de apreender por outro – o destino é, pois, o domínio do
inconsciente. Por isso, "no domínio psíquico, em especial, onde ainda sabemos tão pouco,
deparamos frequentemente com o imprevisível, o inexplicável, cujas causas e efeitos é difícil
ou impossível descobrir" (ibidem).

No que diz respeito à psicoterapia, portanto, "é melhor ter sempre presente ao espírito
que nosso saber e as nossas possibilidades são limitados" (JUNG, OC 16/2, § 463). Ao
psicoterapeuta, Jung aconselha que mantenha a paciência para que se aguarde o desfecho
natural da situação; levando em consideração que tal desfecho nem sempre será aquilo que
gostaríamos que fosse. Neste caso, o problema estaria no fato ao qual nos deparamos? Ou em
nossas expectativas de que o fato não fosse aquilo que ele é, mas aquilo que esperássemos que
fosse? Não podemos sobrepor nosso entendimento aos fatos; mas, cultivar uma atitude de
ignorância e humildade que possibilite criarmos um entendimento a partir dos fatos; e sempre
levando em consideração que mesmo isso, nem sempre será possível para construirmos um
entendimento mais ou menos completo dos fatos.

Não se trata, portanto, de considerar um desenvolvimento ideal de cuja psicopatologia


teria se desviado desastrosamente; mas, de que isto que chamamos de patológico são formas
possíveis nas quais a psique se organiza; de acordo com suas próprias regras e através de
finalidades que desconhecemos. Jung (OC 16/2) dá um exemplo para afirmar que nem "nem
tudo pode ou deve ser curado" (§ 463). Um paciente que sofria de depressão e uma fobia
estranha à Paris, curou-se da depressão; mas, a fobia permanecia. Apesar disso, sentia-se bem
pela melhora em seu estado de humor e decidiu ir à Paris, contrariando o medo irracional que
sentia do lugar; no dia seguinte a que chegou à capital francesa, morreu em um acidente de
carro. Aquilo que consideramos como psicopatologia pode ocultar problemas que
desconhecemos, pois "é frequente que obscuros problemas morais ou inexplicáveis
complicações do destino se ocultem por trás de uma neurose" (ibidem).

39
"Apoiado em minha longa experiência, gostaria de fazer uma séria
advertência àqueles que se deixam levar por um excesso de entusiasmo terapêutico.
O trabalho com a alma pertence às coisas mais difíceis, mas é justamente neste
campo que se aventuram os incompetentes. [...] A ignorância certamente nunca foi
uma recomendação, mas muitas vezes nem mesmo o maior saber é suficiente. Por
isso, é bom que não se passe um único dia sem que o psicoterapeuta se lembre
humildemente de que ainda tem tudo a aprender" (JUNG, OC 16/2, § 464).

Devemos, portanto, tratar uma doença, "esse morbus sacer (mal sagrado) de acordo
com o que é" (JUNG, OC 16/2, § 465), e não como gostaríamos que fosse, ou como
acreditamos que seja. Isso significa que não somos capazes de compreender plenamente os
limites da cura em relação à depressão; muito menos supor que determinado método
terapêutico ou determinada visão teórica poderia conduzir todo e qualquer caso no sentido da
cura. "O médico tem que consolar-se com o fato de que, como todos os seus colegas, ele não
tem somente pacientes curáveis, mas de que também existem os crônicos – dos quais trata,
sem esperança de cura" (ibidem). Esta afirmação de Jung é importante, pois subentende que
independente da possibilidade de cura, a psicologia junguiana pode oferecer um tratamento.
Quer dizer, a perspectiva de cura não é um imperativo na clínica junguiana.

Embora esta afirmação pareça óbvia; cabe aqui uma ressalva, principalmente quando o
assunto diz respeito à depressão. Pois a relação comumente feita dentre autores junguianos, e
que também faremos nesta pesquisa, entre depressão e a fase alquímica da nigredo, poderia
nos levar à interpretação errônea de que se trata sempre de uma possibilidade de
transformação no sentido da ampliação da consciência. Mas, apesar desta visão se aplicar a
muitos casos, não se aplica a tantos outros. É por esse motivo que Byington (2007) tem o
cuidado em diferenciar a depressão normal da patológica e utilizar somente aquilo que
considerou como depressão normal para relacionar com a individuação. Mas apesar disso, o
autor peca ao escrever somente algumas poucas linhas sobre o tratamento da depressão
patológica, dando a entender que toda depressão patológica poderia ser convertida em uma
depressão normal através da psicoterapia. Fato cuja universalidade não é observada
empiricamente e, portanto, não pode ser considerado como uma possibilidade factível para
todo e qualquer caso de depressão patológica.

A perspectiva do inválido, de Guggenbühl-Craig (1983), enquanto espécie de baliza


clínica, parece adequada ao psicoterapeuta junguiano; para que leve em consideração as
advertências de Jung acerca dos limites da cura e da atitude do psicoterapeuta diante deste
problema. Através desta perspectiva, entende-se que "os profissionais entusiastas que se
propõem a ajudar seus pacientes" (GUGGENBÜHL-CRAIG, 1983, p. 98), estariam "sujeitos

40
a se tornar deprimidos, cínicos ou resignados" (ibidem), por não considerarem os limites da
cura ou por se orientarem através de uma ideia de saúde que é irreal e/ou inalcançável. Borch-
Jacobsen e Shamdasani (2012) acusam o próprio Freud e a escola de psicanálise de Viena
deste cinismo no qual Craig se refere. Os autores sugerem, através de um estudo
historiográfico, que algumas das curas descritas por Freud em sua obra teriam sido
temporárias e que a escola de Viena teria feito muitos esforços para ocultar do público estes
pacientes considerados curados por Freud, mas que teriam recaído novamente nos velhos
sintomas neuróticos algum tempo depois.

Craig afirma, por exemplo, que esta situação é bastante comum no que diz respeito a
doenças psicossomáticas; pois, modo geral, estes pacientes não são curados completamente.
"Comumente eles pioram para depois melhorarem um pouquinho e frequentemente o médico
bate em suas próprias costas dizendo: 'agora está resolvido'. Contudo, no dia seguinte a
mesma dor, a mesma irrupção, o mesmo cansaço, aparece novamente" (GUGGENBÜHL-
CRAIG, 1983, p. 98). Apesar de nossa ignorância acerca dos motivos pelos quais essas
tentativas de cura são por vezes frustradas; o autor afirma que a partir deste fenômeno, surge
uma possibilidade básica de vida humana; uma possibilidade arquetípica que denominou
como arquétipo do inválido. "Ter que viver com e reagir a partir de uma deficiência é
certamente uma situação humana, em muitos aspectos uma situação arquetípica"
(GUGGENBÜHL-CRAIG, 1983, p. 100). A invalidez é aqui considerada como uma
possibilidade de existir; uma experiência fundamentalmente humana que marca a todos nós
em maior ou menor grau.

A observação de Jung (OC 16/2) de que a arte do médico nem sempre é suficiente para
promover alguma cura e de que nem tudo pode ou deve ser curado e, a constatação de que
uma neurose pode se cronificar conforme sua própria evolução; se referem aos fatos que, para
Craig, estariam sob influência do arquétipo do inválido. "O que está em ação nesses estados
crônicos de deficiência é o arquétipo do inválido" (GUGGENBÜHL-CRAIG, 1983, p. 100).
Tal arquétipo, apesar de impor dificuldades, pode também ter um efeito positivo que pode ser
explorado na psicoterapia, pois, "ele se opõe à soberba e promove a modéstia. A fraqueza
humana é compreendida em sua plenitude por essas pessoas e assim torna-se possível um tipo
de espiritualização" (GUGGENBÜHL-CRAIG, 1983, p. 102). Além disso, a vivência do
inválido pode promover alguma compreensão sobre a profunda dependência que temos em
relação às demais pessoas. "Dependência unilateral e mútua tem sua razão de ser no arquétipo

41
da invalidez. Ele contrabalança a imagem arquetípica do herói independente ou do viajante,
sempre livre, não ligado a alguém" (ibidem). Estas observações nos remetem imediatamente à
discussão realizada anteriormente neste trabalho acerca dos aspectos coletivos da depressão.

A ênfase dada ao arquétipo do inválido é importante, principalmente por vivermos


tempos em que o homem-herói perfeito é tido em alta estima pela consciência coletiva. Mas, o
inválido é uma possibilidade arquetípica dentre muitas e, portanto, não pode ser tomado
unanimemente em nosso trabalho terapêutico, sob o risco de "criar uma disposição do tipo 'o
inválido nos acompanhará para sempre', um tipo de atitude fatalística, passiva"
(GUGGENBÜHL-CRAIG, 1983, p. 103), em que nada poderia ser feito. Deve-se considerar,
portanto, a invalidez e a cura como dois polos em eterna tensão; sem que um ou outro seja
suprimido ao longo do processo terapêutico. Cabe ressaltar que a psicoterapia junguiana não
visa necessariamente a cura ou o bem-estar, mas, principalmente o significado; e, por isso, a
possibilidade de cura não deveria servir como alvo da psicoterapia, nem tão pouco como
critério para indicação terapêutica. Por esse motivo Jung certa vez afirmou que o objetivo da
psicoterapia não seria transportar o paciente para um estado de felicidade impossível, mas
auxiliá-lo a adquirir firmeza e paciência diante do sofrimento; e que o sofrimento se torna
suportável na medida em que adquire significado.

Não quero, com estas considerações acerca dos limites da cura, fazer espécie de
apologia a uma atitude resignada diante do sofrimento psíquico. Ao contrário, estas
considerações ajudam a prevenirmo-nos de uma atitude demasiadamente ingênua, que
desconsidera os fatos, e que tende a não dar a devida importância ao tremendo mistério que é
o inconsciente. Trata-se de observações que considero necessárias, tendo em vista a tendência
a se considerar a depressão, dentre os autores junguianos, a partir de seu aspecto iniciático e
potencialmente transformador. Pretendo, portanto, trazer à pauta o outro lado deste problema;
aquele tantas vezes advertido pelos alquimistas quando salientam os riscos envolvidos na
nigredo. Mas, apesar destes riscos, há, evidentemente, em muitos casos, a possibilidade de se
atravessar este período no sentido da ampliação da consciência.

Além disso, caberia uma discussão sobre a possibilidade do surgimento de novos


métodos para o tratamento da depressão no futuro, que possibilitassem uma remissão
completa dos sintomas em casos que, atualmente, não há qualquer esperança de cura; o que
poria a questão sobre a cronicidade da depressão em questão. Há, por exemplo, pesquisas
bastante promissoras que utilizam uma classe de substâncias, chamadas de psicodélicas, no

42
tratamento da depressão que apontam para efeitos significativos no sentido da remissão e/ou
diminuição dos sintomas21. Embora ainda não haja estudos conclusivos neste sentido, tal fato
mostra, no mínimo, que há possibilidade de que novas metodologias terapêuticas surjam para
o tratamento da depressão, que apontem para possibilidades outras, que não vislumbramos
atualmente.

Apesar de toda discussão realizada até aqui, há, sem dúvida, vários casos de depressão
que podem ser vistos enquanto processos iniciáticos que apontam para reais possibilidades de
serem atravessados no sentido da ampliação da consciência e do alargamento da
personalidade. Na meia idade, por exemplo, o surgimento de depressões psicogênicas não é
um fato incomum. Nas páginas que se seguem, tentaremos compreender detalhadamente
alguns aspectos deste fenômeno.

21
Um exemplo de estudo neste sentido foi divulgado por McCorvy at. al. (2016).
43
DEPRESSÃO NA SEGUNDA METADE DA VIDA E O PROCESSO DE
INDIVIDUAÇÃO

Ao nos referirmos à depressão na segunda metade da vida enquanto fenômeno


relacionado ao processo de individuação, estaremos tratando especificamente da depressão
psicogênica neurótica ou normal. Quer dizer, nosso enfoque a partir deste momento estará
voltado à depressão enquanto um momento fundamental que integra um processo mais amplo
de realização da personalidade. Momento esse que, embora importante, traz também riscos ao
indivíduo. Seu desenrolar no sentido da totalidade segue uma trilha arquetípica, conforme
demonstrado por Jung através das imagens da alquimia. Mas, apesar disso, o papel do ego no
processo é de importância fundamental para seu desfecho. Cabe ao ego o confronto com tudo
aquilo que é trazido durante a regressão energética que caracteriza o momento da vida que
aqui discutimos. Esse lodo trazido à superfície diz respeito àqueles aspectos sombrios,
desconsiderados ao longo do processo adaptativo; mas que se referem à singularidade mais
radical do indivíduo. E que, portanto, sua integração à ordem do dia, apesar de poder ser
complicada e penosa, constitui um esforço indispensável no sentido da realização de quem
realmente somos.

"Durante a passagem do meio22, a revolta da sombra faz parte de um


esforço neutralizante realizado pelo Si-mesmo para devolver o equilíbrio à
personalidade. A chave para a integração da sombra, a vida não vivida, é
compreender que as exigências dela provêm do Si-mesmo, que não deseja mais a
repressão ou uma representação não autorizada" (HOLLIS, 1995, p. 61-62).

Ao longo do desenvolvimento, somos em grande medida atravessados pela


consciência coletiva; que exerce em nós um efeito constitutivo. Isto é, durante a juventude e o
primeiro momento da vida adulta, modo geral, a consciência coletiva se apresenta enquanto
possibilidade de entrada no mundo da cultura. Entretanto, conseguimos isto à custa de quem
nós somos de fato. É como se gradativamente nos esquecêssemos daquela singularidade
fundamental que trouxemos conosco desde nossos nascimentos e, portanto, na passagem do
meio somos pressionados sobre nós mesmos para que ela se realize em nossa consciência. Há,
como que, um novo ser em gestação que começa a forçar caminho no sentido do próprio
nascimento. Sabemos que todo nascimento é um processo que envolve dor e risco, mas que
também anuncia uma vida nova. Cabe sempre à parturiente uma atitude que facilite o

22
James Hollis se refere à passagem entre a primeira e a segunda metade da vida pelo termo "passagem do
meio".
44
processo em seu sentido natural para que a criança não perca a vida em seu ventre; o que
poderia significar também a sua própria morte.

"Na vida humana existem os momentos de virar a página. Aparecem


tendências até então não cultivadas; ou se anuncia uma mudança da personalidade
(chamada mudança de caráter). Durante o período de incubação de tais mudanças é
frequente verificar-se uma perda de energia do consciente: a nova evolução retirou
do consciente a energia de que necessitava" (JUNG, OC 16/2, § 373).

A perda de energia descrita por Jung ocasiona aquele rebaixamento do nível mental
que discutimos anteriormente e que caracteriza a depressão. Podemos, portanto, entender a
depressão, neste contexto, enquanto uma regressão energética que visa forçar o nascimento da
vida nova; autenticamente ancorada na singularidade. Aquela vida que subterraneamente
acompanhava a vida diurna do homem coletivo ao longo de sua adaptação ao mundo; do
desenvolvimento de sua persona e a da fatal sedução em se identificar com esta23, assim como
de sua separação em relação aquilo que é considerado inadequado, dispensável ou repugnante
pelo espírito de sua época.

"As estatísticas mostram que as depressões mentais nos homens são mais
frequentes por volta dos quarenta anos. Nas mulheres, as dificuldades neuróticas
começam geralmente um pouco mais cedo. Observamos que nesta fase –
precisamente entre os trinta e cinco e os quarenta anos – prepara-se uma mudança
muito importante, inicialmente modesta e despercebida; são antes indícios indiretos
de mudanças que parecem começar no inconsciente” (JUNG, OC 8/2, § 773).

A perda de energia descrita acima surge enquanto uma experiência de ameaça à vida
da consciência orientada para o coletivo que caracteriza, geralmente, a primeira metade da
vida. "É como se o consciente ameaçasse desfalecer" (JUNG, OC 16/2, § 374). Entretanto,
esta ameaça indica que houve um importante desvio em relação a nossa própria natureza. Por
esse motivo, Jung afirma que "a força dos conteúdos inconscientes é sempre sinal de uma
fraqueza correlativa do consciente e de suas funções" (ibidem). A regressão, portanto, é aquilo
que visaria corrigir a atitude da consciência, de modo a produzir novos desdobramentos da
personalidade no sentido do caminho arquetípico natural que caracteriza o destino humano. E,
por esse motivo, a atitude diante da depressão não pode estar relacionada ao fortalecimento da
consciência; pois seria como tentar retornar ao estado que necessita ser corrigido. "Nada
conseguimos, reprimindo este estado de depressão ou depreciando-o racionalmente" (JUNG,
OC 8/2, § 166).

23
A identificação com a persona e suas consequências serão discutidas mais adiante no tópico: "O colapso da
persona e a exigência da singularidade".
45
Ao contrário deveríamos levar o inconsciente seriamente em consideração. Para Jung
(OC 8/2), o indivíduo deve tomar consciência "do estado de animo em que se encontra" (§
167); permitindo o desenrolar das fantasias, que enriquecem o afeto inicial e o aproxima
gradualmente à consciência na medida em que novas associações passam a orbitá-lo. Trata-se
de um enriquecimento ilustrativo do afeto que o tornaria mais perceptível e inteligível à
consciência. Dessa forma, "o afeto, anteriormente não relacionado, converte-se em uma ideia
mais ou menos clara e articulada, graças precisamente ao apoio e à cooperação da
consciência" (ibidem). Este procedimento dialético cria as condições à função transcendente,
isto é, à síntese entre o inconsciente e a consciência; permitindo a ampliação da personalidade
no sentido da totalidade.

A depressão na passagem para a segunda metade da vida, portanto, diz respeito a um


afastamento do indivíduo em relação a sua própria natureza; através da identificação da
consciência com os ideais da consciência coletiva. Por isso, "justamente no caso de uma
pessoa altamente civilizada, existe a possibilidade de esta continuar com sua vida abstrata e
irreal e todo desenvolvimento ocorrer de modo inconsciente” (JUNG, 2011, p. 320). Este
desenvolvimento que ocorre no inconsciente e, portanto, sem a participação da consciência,
retira a energia que antes estava à disposição do ego no processo de adaptação ao mundo
exterior, até que força seu próprio nascimento. "Este desenvolvimento, no entanto, acaba se
manifestando na consciência, por exemplo na forma de um colapso nervoso ou fases de
depressão" (ibidem). Que, embora surjam como real ameaça ao ego, constituem também a
possibilidade de realização do Self. A passagem entre a primeira e a segunda metade da vida,
portanto, se refere a um momento fundamental para o homem, na medida em que marca a
transição da identificação com o coletivo à necessidade íntima de orientação ao Self.

O ARQUÉTIPO DO SACRIFÍCIO NO DESENVOLVIMENTO DA


PERSONALIDADE

O termo sacrifício, derivado do latim sacer (sacro, sagrado) e facere (fazer),


literalmente significa tornar um ato sagrado. Este termo é usado comumente para designar o
ato de abrir mão de uma coisa por outra. Para Jung (OC 5), um sacrifício só pode ser assim
considerado se aquilo que abrimos mão é algo valioso. Do ponto de vista psicológico, a

46
constelação do arquétipo do sacrifício é decisiva para o desenvolvimento da personalidade. É
necessário, em cada transição da vida, abrir mão de nosso “velho eu” para dar lugar a um
novo; ou melhor, é necessário que nos desapeguemos de nossas identificações e fixações,
daquilo que o eu pensa ser, para caminharmos em direção daquilo que realmente somos.

O mito de Abraão (BÍBLIA, 2004) nos ajuda a entender a dificuldade e a importância


do sacrifício para o desenvolvimento da personalidade. No mito, Jeová exige que Abraão lhe
ofereça seu único e amado filho em sacrifico para que prove sua devoção. A questão que se
coloca a Abraão é a obediência a deus, ou melhor, a virtude exigida dele é a confiança apesar
da incerteza. Abraão deve oferecer aquilo que mais ama em sacrifício apesar de não saber o
que isso significa, pois, seu deus lhe fez uma exigência sem oferecer nada em troca. Ele
precisa dar um importante salto no escuro, sem qualquer garantia; e é aqui que a coisa se torna
ainda mais difícil, pois se Abraão soubesse que deus pouparia seu filho e lhe traria
prosperidade, não haveria qualquer dificuldade. Para agravar a situação, Abraão teve um
único filho e já em idade avançada; isto quer dizer que sacrificá-lo significaria por fim a sua
linhagem familiar, pois sabia que não seria capaz de ter um segundo filho.

Do ponto de vista psicológico, sacrifício significa abrir mão, para sempre, de algo
muito valioso por uma exigência da individuação24, sem que vislumbremos com precisão
qualquer benefício em troca. Quando o jovem precisa sacrificar a infância – sua identificação
inconsciente com os pais – para entrar na vida adulta, deve abrir mão da segurança uterina
familiar e lidar com a ansiedade provocada pelo desconhecido e as incertezas do mundo;
precisa cair de um paraíso para poder ingressar na comunidade humana, compartilhando de
suas angústias e incertezas. Ao nos lançarmos nesta direção, “nos afastamos da guia segura
dos instintos e ficamos entregues ao medo, quando nos deparamos com a possibilidade de
caminhos diferentes, porque a consciência agora é chamada a fazer tudo àquilo que a natureza
sempre fez a favor de seus filhos” (JUNG, OC 8/2, § 750). Diante de situações como estas,
costumamos hesitar até que a exigência se torne tão poderosa que não possamos mais ignorá-
la.

Permanecer estacionado na vida não é uma opção, pelo menos não uma opção
confortável e sem maiores consequências; pois recusar pagar aos deuses os tributos que
exigem, sempre atrai a cólera divina. Em termos psicológicos, isto pode significar o

24
O termo individuação, neste contexto, se refere ao processo arquetípico de desdobramento da personalidade e
não necessariamente à realização e do Self.
47
estabelecimento de uma psicopatologia. “Todos os distúrbios neuróticos, bastante frequentes,
da idade adulta têm em comum o fato de quererem prolongar a psicologia da fase juvenil para
além do limiar da chamada idade do siso” (JUNG, OC 8/2, § 776). O que era regozijo em uma
fase da vida, torna-se maldição se for mantido além do momento que lhe cabe.

Um exemplo interessante é a constelação da imagem da Mãe Terrível no curso do


desenvolvimento da consciência juvenil. Neumann (1995) afirma que a consciência dos
opostos se inicia na infância com a divisão da “imagem da Grande Mãe em imagens opostas
da mãe boa e da mãe terrível” (NEUMANN, 1980, p. 89), e que “esta ambivalência é a
primeira aparição das atitudes humanas em relação ao exterior e ao interior necessárias para a
experiência do mundo” (p. 90). O colo materno urobórico, aconchegante e protetor de outrora,
se transforma gradualmente em constrição sufocante, do qual o jovem precisa se libertar
através de um ato heroico para finalmente nascer para o mundo coletivo.

Cabe ressaltar que este fenômeno não se restringe exclusivamente à passagem da


infância à vida adulta, mas, de modo geral, a todo e qualquer sacrifício exigido pelo constante
fluir anímico. Embora a imagem do paraíso seja associada comumente à infância, podemos
considerá-la como sendo análoga a todo e qualquer estado de inconsciência. Por isso, o
desenvolvimento da personalidade se constitui em uma alternância entre estados paradisíacos
de inconsciência que se convertem em expulsões deste paraíso para que um novo nível de
consciência seja alcançado; para que, por sua vez, se converta em um novo estado de
inconsciência. As culturas antigas sabiam desta verdade arquetípica com bastante clareza e
rituais de sacrifício sempre eram realizados, segundo Campbell (2008), para que o mundo
pudesse ser restaurado e permanecesse fluindo de acordo com sua natureza cíclica.

“No sacrifício, o consciente renuncia à posse e ao poder, a favor do


inconsciente. Isto torna possível uma união de opostos cuja consequência consiste
numa liberação de energia. O ato do sacrifício tem ao mesmo tempo o sentido de
fecundação da mãe; a serpente ctônica bebe o sangue, que é a alma do herói. Com
isto a vida se conserva imortal, pois como o Sol, também o herói se recria através de
sua autoimolação e sua penetração na mãe” (JUNG, OC 5, § 671).

Para Jung (OC 8/2), os dois momentos mais difíceis ao longo do desenvolvimento
humano se referem à passagem da juventude para a vida adulta e, finalmente, o momento
crucial da passagem da primeira para a segunda metade da vida. Na presente pesquisa nos
concentraremos na transição do meio da vida, associada por Jung ao magnum opus (grande
obra) da alquimia; que exige um importante sacrifício, a renúncia à identificação com a

48
persona25 e aos ideais virtuosos da consciência coletiva, para que a sombra possa ser integrada
à consciência e nasça um ser que sustente a própria singularidade. Entretanto, comumente
esquecemo-nos da importância do sacrifício e da renúncia e tentamos continuamente
cristalizar o fluir ininterrupto da vida através de um ato de vontade. Iludimo-nos como se
fossemos senhores de nós mesmos, e pretensiosamente tentamos aprisionar o devir, como se
fosse possível segurar um rio com as próprias mãos. Mas, sempre que isso acontece, o
inconsciente se encarrega de trazer à consciência tudo aquilo que lhe falta; e isso não acontece
sem maiores complicações.

COLAPSO DA PERSONA E A EXIGÊNCIA DA SINGULARIDADE

Jung (OC 14/2) considera a persona em contraposição à anima, pois enquanto a


persona funciona como ponte entre o eu e o mundo ambiente, a anima seria a ponte entre o eu
e o inconsciente coletivo. "O oposto da persona é a anima" (JUNG, 2014A, p. 90). No teatro
clássico, a persona é a máscara que indica o papel representado pelo ator. "Na terminologia
junguiana é o rosto oficial, profissional ou social que apresentamos ao mundo" (JUNG,
2014A, p. 36 [rodapé 11]). A persona, portanto, é fundamental para que estabeleçamos nossas
relações sociais, e seu desenvolvimento inadequado pode significar o que Jung (OC 16/1)
denominou como neurose de “individualistas de atrofiada adaptação ao coletivo” (§ 5). Isto
quer dizer que a construção da persona é de fundamental importância na caminhada
individual.

“[a persona] é o sistema de adaptação ou estilo de nossa relação com o


mundo. [...] O mundo exige um certo tipo de comportamento e os profissionais se
esforçam por corresponder a tal expectativa. O único perigo é identificar-se com a
persona [...]. É preciso determinação desesperada de um Hércules para arrancar do
corpo a túnica de Nesso e entrar no fogo da imortalidade, a fim de transformar-se
naquilo que verdadeiramente é” (JUNG, OC 9/1, § 221).

Deve-se considerar o duplo aspecto da persona no desenvolvimento humano. Por um


lado, é ela quem garante ao homem viver de forma satisfatória em comunidade; mas por
outro, é também ela quem aparece como a primeira instância psíquica a exigir um desafio
para a realização do Self. Ao obtermos algum sucesso na adaptação ao mundo exterior,

25
O sacrifício da identificação com a persona será discutido em detalhes no tópico: "o colapso da identificação
com a persona e a exigência da singularidade".
49
através do desenvolvimento adequado da persona, e tendo encontrado um lugar na
comunidade humana, podemos ser atraídos a um novo paraíso: a identificação com a persona.
Quando isso ocorre, perdermos contato com parte de nossa humanidade, pois não somos e
nunca seremos o papel social que exercemos. "Se eu tivesse que acreditar que sou exatamente
aquilo que faço, isso seria um terrível engano, eu não caberia nesse sujeito" (JUNG, 2014A, p.
89). Todo papel social é menor do que o indivíduo; é, invariavelmente, somente um recorte
estreito da multiplicidade humana.

Uma relação adequada com a persona deveria permitir ao ego transitar entre as
diversas possibilidades de existir, sem que este permanecesse identificado a um papel social
específico que lhe trouxesse algum ganho imediato. "Eu preciso saber que por enquanto estou
desempenhando o papel de César; mais tarde eu me torno bem pequeno, um mero nada, sem
importância" (JUNG, 2014A, p. 89). Quando não há identificação com a persona, portanto, há
possibilidade de trânsito entre os diversos papéis sociais; como se estes fossem roupas que
pudéssemos usar nas situações que as exigissem. Do mesmo modo, poderíamos nos despir
quando estivéssemos em casa; livres da ilusão de que somos aquilo que vestimos.

Isto, no entanto, não é tarefa simples, pois a persona traz sempre um ganho imediato; o
coletivo recompensa com atribuição de valor social àqueles que correspondem às suas
expectativas. É justamente este o motivo pelo qual identificar-se com a persona pode ser algo
bastante sedutor. Jung (2014A) afirma que a "persona pode ser algo muito atraente" (p. 90) e
que a pessoa que possui uma persona muito atrativa, certamente "se identificará e acreditará
ser ela, e então se tornará vítima dela mesma" (ibidem). Tais pessoas, identificadas com esta
camada mais superficial, "se tornam neuróticas e o demônio as dominará" (ibidem); quer
dizer, provocarão um movimento compensatório no inconsciente que visará confrontar o ego
com aqueles conteúdos sombrios, privados da luz do dia. Ao contrário das pessoas incapazes
de estabelecer uma relação satisfatória com o coletivo, estas se enquadrariam no grupo das
neuroses dos "homens coletivos, de individualidade subdesenvolvida" (JUNG, OC 16/1, § 5);
cujo destino estaria relacionado ao sacrifício da identidade com o coletivo para que o
individual pudesse vir à luz.

Nossa relação com o mundo é sempre mediada pela persona, pois "quando você se
volta para o mundo consciente com o propósito de executar qualquer tipo de atividade, você o
faz por meio da máscara ou persona, por meio desse sistema de adaptação que você construiu
com tanto sacrifício ao longo de toda uma vida" (JUNG, 2014A, p. 90). Mas quando não

50
estamos mais no mundo das relações pessoais, e nos encontramos sozinhos conosco, "as
coisas das quais devemos ter ciência parecem exercer pressão sobre o inconsciente coletivo e
a acentuar suas qualidades excepcionais" (ibidem). Tal situação, invariavelmente, opera
alguma influência sobre o indivíduo; que pode variar de acordo com sua intensidade. Em um
grau pouco elevado, é o incomodo em estar sozinho ou sem nada para fazer, como uma leve
ansiedade que nos faz procurar sempre alguma ocupação para evitar que estejamos sozinhos
conosco. Seria essa solidão, entretanto, aquela que, segundo Jung (2014A), nos empurraria
sobre nós mesmos a fim de que nos comprometêssemos com a conscientização de nossa
história; nosso inconsciente pessoal. Isso implica a necessidade de sacrificar nossa
identificação com a persona, em benefício do movimento (energético) regressivo que
atravessará não somente nosso inconsciente pessoal, mas que visa alcançar o inconsciente
coletivo.

Este sacrifício, no entanto, não é algo que pode ser feito sem grande esforço. Pois, é
como se tivéssemos que sacrificar os ideais mais elevados do homem civilizado, aos quais
julgamo-nos eméritos representantes; aquelas virtudes coletivas que pensamos não somente
possuir, mas que chegamos a confundir-nos com elas. Jung (OC 14/2) afirma que a
identificação com a persona é sempre um ato egoísta que tenta tirar alguma vantagem; já que
através dela recebemos admiração, segurança, um lugar de valor no mundo. O prestígio
pessoal, entretanto, é como o canto da seria, já que atrai para si aqueles que buscam alguma
diferenciação do coletivo, ao mesmo tempo em que dissolve na psique coletiva os que o
alcançaram; pois "a pessoa se torna uma verdade coletiva e isto sempre é o começo do fim"
(JUNG, OC 7/2, § 238). Com isso, ingressamos no paraíso da inconsciência; no alto de um
platô sobre nuvens, onde não é possível ver o que há mais abaixo – aqueles vultos sombrios
do mundo dos mortos.

"Em benefício de uma imagem ideal, a qual o indivíduo aspira moldar-se,


sacrifica-se muito de sua humanidade. Indivíduos desse tipo, extremamente
pessoais, costumam ser muito sensitivos, já que é tão fácil ocorrer-lhes algo que traz
à consciência certos detalhes indesejáveis de seu verdadeiro caráter ('individual')"
(JUNG, OC 7/2, § 244).

Por um lado, é importante que correspondamos às expectativas do coletivo em algum


nível; do contrário seríamos, como que, impedidos de ingressar na comunidade humana; a
qual pertencemos e somos profundamente dependentes. Mas por outro lado, ao darmos ao
mundo aquilo que espera de nós, corremos o risco de sermos seduzidos pelo valor social que
recebemos em retribuição e, nos distanciemos de nossa singularidade. Esse é o caminho para

51
a identificação com aquilo que o coletivo considera bom e pelo qual somos valorizados, à
custa de quem somos. Jung (2014A) afirma que, comumente, "as pessoas preferem uma
persona segura" (p. 36), que afirme "este sou eu", pois "de outro modo elas não sabem quem
realmente são" (ibidem). Paradoxalmente, ao permitirmos sermos definidos pela persona,
ganhamos uma resposta imediata à pergunta: "quem sou eu?"; ao mesmo tempo em que nos
esquecemos de quem somos verdadeiramente.

Identificados com a persona, tentamos espremer o mundo para que caiba dentro de
nossa própria cosmovisão e, assim, imaginamos o mundo como se fosse imutável e previsível;
ao mesmo tempo, supomos haver descoberto e encarnado o significado último de ser um
homem civilizado. Protegidos da insegurança que anda de mãos dadas à eterna
impermanência do fluir da vida através do tempo, evitamos cautelosamente a amarga
consciência de estarmos perdidos em território misterioso e inexplorado. Livres dos conflitos
morais que emergiriam implacáveis caso tivéssemos consciência de que o mal que
combatemos no outro é o mal de nosso tempo, do qual estamos imersos até o pescoço.
Acreditando cegamente que somos aceitos por inteiro, mesmo quando oferecemos ao mundo
nossa face bela e ocultamos a terrível, e assim alienamo-nos da inexorável solidão inerente à
condição humana e do abandono irrevogável que nos marca a todos no instante em que
nascemos. Em suma, nos protegemos de quem somos ao confundirmo-nos com o tributo
temporário que devemos pagar ao coletivo; perdemo-nos de nós mesmos, num regozijo
paradisíaco, ao crermos ser unicamente aquilo que o mundo espera que sejamos.

Pois é este paraíso que devemos sacrificar a fim de nos encontrarmos com nós mesmos
em nossa dolorosa ambiguidade; é como abrir os braços à dor que nos sustenta, mas da qual
fugimos assustados sempre que espreita – a dor de ser. Embora experimentemos este
sacrifício como autoimolação, fundamentalmente não se trata de negar a si próprio, mas de
negar a sedução paradisíaca de ser inteiramente definido pelo mundo. Eis o paradoxo: ao
oferecermo-nos em sacrifício, damos vida a quem somos. "Aquele que se aprofundou em si
mesmo está como que encovado na terra; um morto a bem dizer, que retorna à mãe terra; [...]
um homem que, arquejante, carrega a pesada carga de si mesmo e de seu destino" (JUNG, OC
5, § 460).

Embora este sacrifício não seja algo desejável ou prazeroso, pode acabar por se tornar
uma extrema necessidade, imposta pelo processo de individuação. Pois, o estado paradisíaco
de identificação com a persona é sempre temporário; independe se a pessoa é capaz ou não de

52
se oferecer voluntariamente em sacrifício. Pois, quanto mais cresce a identificação com o
coletivo, mais o inconsciente pressiona a consciência a se confrontar com a singularidade. "O
maior medo do inconsciente é que esqueçamos quem somos" (JUNG, 2014A, p. 36), e quanto
maior for a identificação com nosso papel, mais nos tornaremos inconscientes do Self. Por
isso, a individuação passa a exigir a dissolução da identificação com a persona em favor da
integridade individual. É como se fossemos pressionados a sacrificar aquilo que pensamos
ser; o que, à primeira vista pareceria uma autoimolação – uma experiência de negar a si
próprio; mas que, fundamentalmente trata-se de negar o mundo – negar ser inteiramente
definido pela consciência coletiva.

“Chamando a multidão, juntamente com seus discípulos, [Jesus] disse-lhes:


Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.
Pois aquele que quiser salvar sua vida, a perderá; mas, o que perder sua vida por
causa de mim e do Evangelho, a salvará. Com efeito, que aproveita ao homem
ganhar o mundo inteiro e arruinar sua própria vida [perder a própria alma 26]? Pois,
que daria o homem em troca de sua vida [alma]? De fato, aquele que, nesta geração
adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e de minhas palavras, também o Filho
do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai com os santos
anjos” (MARCOS 8:34-38 in BÍBLIA, 2014, p. 1772).

Embora o sacrifício surja como uma necessidade interna e sejamos pressionados a


realizar tal façanha, há de se considerar que este só pode ocorrer através de um ato voluntário;
pois, no confronto com o inconsciente, a atitude da consciência sempre exerce papel decisivo.
Cabe ao ego a decisão ética de realizar ou não o autossacrifício; que como vimos,
fundamentalmente, se refere ao sacrifício da identificação com a persona. A partir desta
perspectiva, podemos lançar uma nova compreensão às palavras atribuídas a Jesus na
passagem acima. O homem que ganha o mundo, isto é, aquele que se identifica com seu papel
e prestígio social; necessariamente torna-se um homem coletivo e perde sua individualidade –
que encerra tudo aquilo de si que é incapaz de considerar. Portanto, negar ser definido
inteiramente pela persona é o mesmo que carregar a própria cruz; é aceitar o peso de quem se
é e abraçar o próprio destino.

O homem incapaz de carregar a própria cruz é aquele que se envergonha da própria


sombra. Nesse sentido, Cristo, enquanto símbolo do Self, seria experimentado como uma
figura sombria, percebido como algo vergonhoso pelo fato da consciência se recusar a tudo
aquilo que não é considerado adequado pelo coletivo. Aquele que se envergonha da sombra,
portanto, envergonha-se também da própria singularidade – da radicalidade de quem se é.
26
Em colchete está uma tradução alternativa, comum em outras traduções da bíblia. O grego psyche é
equivalente do hebraico nefesh, que pode ser traduzido como vida, alma ou pessoa. Consideramos que a tradução
de nefesh (psyche) para, no português, alma é mais adequada para a finalidade da presente discussão.
53
Jung (OC 5) fala sobre duas formas de sacrifício, exemplificando através das imagens do
sacrifício animal e do autossacrifício do herói. "Enquanto o primeiro simboliza a renúncia aos
instintos biológicos, o último tem o sentido mais profundo e eticamente mais elevado do
autossacrifício humano, da renúncia à pura concentração sobre si mesmo" (§ 675). Estamos,
portanto, falando de um fenômeno típico da entrada na segunda metade da vida. É preciso
primeiro ganhar o mundo para que se possa posteriormente renunciar a ele.

O mito de Édipo, deixado por Sófocles, é bastante ilustrativo deste processo, chamado
por Jung de individuação. Em Édipo Rei (SOFOCLES, 2002), o herói foge do próprio
destino, anunciado pelo oráculo de Delfos. No entanto, de forma totalmente inconsciente
realiza tudo aquilo que lhe estava destinado, pois a individuação impõe ao homem seu destino
independente de sua vontade. Em sua hýbris27, Édipo mata o próprio pai, e afasta a Esfinge
através de um ato inflado. Sua inflação é necessária e pode ser vista, analogamente, como um
momento de consolidação de uma nova dominante na consciência através de um ato
unilateral; livrando o ego do perigo de ser engolido pelo inconsciente na forma da mãe
terrível. Édipo Rei é como a libido em progressão, em pleno movimento de adaptação ao
mundo ambiente através da construção da persona.

Mas, ao livrar Tebas da ameaça da Esfinge, Édipo é coroado e se casa, sem que tenha
conhecimento, com a própria mãe. Jung (OC 5) não interpreta o incesto através da literalidade
do ato sexual entre parentes, pois "mãe" e "filho" são considerados por ele como símbolos da
libido. A base do incesto estaria relacionada, portanto, à "ideia de voltar a ser criança, retornar
ao abrigo dos pais, penetrar na mãe para novamente dela renascer" (§ 332). A identificação
com a nova dominante da consciência, gerada a partir do assassinato do pai e do afastamento
da Esfinge, faz com que ingressemos em um novo paraíso; pois tornamo-nos inconscientes
daqueles conteúdos sombrios ao mesmo tempo em que nos consideramos ser inteiramente
nosso papel social.

Assim, uma praga assola Tebas, a cidade se torna estéril; as colheitas são escassas, os
rebanhos magros e as crianças nascem natimortas. Esta situação força o herói a encontrar o

27
Segundo Fernandes (2010), a hýbris do herói, isto é, a transgressão do métron (limite imposto pelos deuses aos
mortais), apresenta uma ambivalência simbólica, já que, por um lado, é caracterizada por um ato de transgressão
passível, em alguns casos, de punição divina; e, por outro lado, pode ser compreendida como um ato de criação
sem o qual seria impossível a realização dos feitos heroicos que trazem benefícios ao coleti vo. “De um lado a
hýbris se manifesta como uma desmedida criminosa, no entanto, de outro, ela configura uma função renovadora,
quando não francamente redentora” (p. 1-2).

54
assassino de Laio, seu próprio pai; até que, com muita relutância percebe ser ele mesmo a
causa da praga que assola a cidade. O confronto com a sombra não é tarefa fácil e
normalmente é somente com muita relutância e pressionados pelo insuportável que somos
capazes da decisão ética pelo autossacrifício da identificação com a persona para
mergulharmos no desconhecido a fim de descobrirmos quem nós somos através do lodo
negro.

O suicídio de Jocasta, mãe de Édipo, e sua cegueira autoinfligida marcam um novo


momento no mito. É Édipo quem abdica do trono de Tebas a Creonte, seu tio e cunhado, e
ordena que este o exile da cidade. O exílio como um ato voluntário ilustra o que estamos aqui
chamando de autossacrifício. Abrir mão da sedução da identificação com a persona e o
confronto voluntário com a sombra, é o mesmo que o exílio em relação àquilo que o mundo
espera de nós; é aceitar a solidão inerente à condição humana, para sermos capazes de escutar,
neste silêncio, uma outra voz que nos mostra nosso próprio caminho. Em Édipo em Colono
(SÓFOCLES, 2006), o herói finalmente encontra a própria redenção – opera-se um grau mais
elevado da coniunctio –, pois no jardim das Erínias (divindades relacionadas à maldição
familiar), Édipo tira as roupas que usava e veste roupas novas antes de penetrar, caminhando,
na fenda da terra (Gaia) que encerra seu túmulo.

"Em geral, as vestes simbolizam uma disposição interior tornada manifesta,


ou um comportamento psíquico que repercute sobre o ambiente ou dele se protege.
A mudança de vestes nos mistérios simboliza, pois, a transformação interior da
atitude espiritual; por exemplo, o despojamento inicial significa muitas vezes o
abandono da atitude anterior imprópria da pessoa (máscara); as vestes da solificatio
significam o novo comportamento religioso, ativado a um nível superior da
consciência" (JUNG, OC 14/3, § 419).

Através deste mito podemos perceber que trocar de vestes, isto é, abandonar a
identificação com a persona e encontrar uma nova atitude ancorada em quem somos
verdadeiramente, não é tarefa simples. Pois o autossacrifício exigido a nós pela individuação
significa não somente abrir mão de que o mundo nos defina, mas nos bota diante da nossa
própria sombra. Isso significa que o sacrifício da nossa identidade moralmente adequada e
socialmente reconhecida deve ser feito ao mesmo tempo em que somos confrontados com
nossos aspectos moralmente condenáveis; um exercício de humildade sem precedentes! "Mas,
nesses momentos de humildade, começamos a melhorar o mundo que habitamos, e damos
origem às condições que favorecem a cura de nossos relacionamentos e de nós mesmos"
(HOLLIS, 1995, p. 61).

55
Hollis (1995) afirma que a individuação "conduz invariavelmente a um embate entre
persona e sombra" (p. 58) e, que este embate visa "um equilíbrio necessário da personalidade
entre a Realpolitik da sociedade e a verdade do indivíduo" (ibidem). Pois a persona
"representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade" (JUNG, OC 7/2, § 246);
compromisso no qual os "outros podem ter uma quota maior do que a do indivíduo em
questão" (ibidem). As novas vestes, portanto, não deixam de levar em consideração as
exigências do mundo – do contrário, tratar-se-ia de uma atitude individualista –, mas
diferenciam a pessoa do mundo a fim de que esta possa se relacionar com ele a partir da
própria singularidade.

"Quando uma figura tão vital como um ideal se prepara para a


transformação, é como se fossem morrer. Ela produz então no indivíduo
pressentimentos de morte e sentimentos melancólicos dificilmente compreensíveis,
aparentemente infundados. [...] É fato conhecido que o ponto culminante da vida é
representado pela simbólica da morte, pois o crescer-além-de-si-mesmo significa
uma morte" (JUNG, OC 5, § 432).

Os mitos de heróis e as observações clínicas concordam com o fato de que "o


desmoronar do domínio do ego, da ilusão de que sabemos quem somos e que estamos no
controle" (HOLLIS, 1995, p. 58) é um fenômeno irrevogável, que, para Hollis (ibidem) se dá
comumente na passagem para a segunda metade da vida. Apesar de o processo impor ao
indivíduo a necessidade de um sacrifício voluntário, a identificação com a persona entrará em
colapso mesmo que não se realize esse sacrifício. Pois, seu colapso se realiza
involuntariamente, por uma questão de economia energética; já que obedece a um "roteiro"
arquetípico que associamos aos movimentos da libido. Entretanto, embora o colapso da
identificação com a persona ocorra independente do sacrifício; a integração da sombra só
poderá ocorrer com a renúncia aos ideais coletivos que constituem a persona. Isso quer dizer,
nesse caso, que renunciar ao desejo de retornar ao antigo estado de coisas é um passo
fundamental para que se possa atravessar a fase escura que vem após o colapso da
identificação com a persona.

A nigredo alquímica, portanto, opera uma metanóia, uma mudança de orientação da


psique do ego para o Self, e anuncia a transformação dos ideais da primeira metade da vida,
forjados sobre a égide da consciência coletiva. Hillman (2011A) afirma que o preto (alusão à
nigredo) é aquilo que quebra paradigmas, e que esta seria a razão "de aparecer a todo instante
na vida e na obra, a fim de desconstruir (solve et coagula) aquilo que se tornou uma
identidade" (p. 137). A transformação da personalidade, portanto, precisa passar pelo preto,

56
para que as antigas estruturas sejam postas abaixo a fim de propiciar o nascimento do
indivíduo.

A NIGREDO ALQUÍMICA E OS ASPECTOS INICIÁTICOS DA


DEPRESSÃO

“Nan requiri aditus nimis est coarctatus, neque ad illam quisquam potest
ingredi, nisi per animae afflictionem (Pois a entrada para o procurado foi muito
estreitada, e ninguém pode chegar a ela, a não ser pela aflição da alma)”
(MORIENUS apud JUNG, 2011, OC 14/2, § 158).

Os estudos de Jung sobre a alquimia, a partir de um olhar simbólico28, foram de


fundamental importância para a construção de sua psicologia, pois, através deles, chegou à
conclusão essencial de "que não poderia existir psicologia, e muito menos psicologia do
inconsciente, sem base histórica" (JUNG, 2006, p. 245); isto é, não seria possível pensar o
homem como se fosse uma entidade isolada da cultura a qual pertence, nem tão pouco dos
processos históricos que formaram sua cultura. Por esse motivo, a psicologia junguiana não se
restringe à história de vida do indivíduo; mas se lança também sobre a história da cultura e
seu imaginário. Embora Jung já tivesse chegado à conclusão acerca do caráter arquetípico do
material empírico no qual trabalhara em sua clínica através dos mitos, somente quando
estudou a fundo a alquimia, começou "a perceber o que significava tais conteúdos numa
perspectiva histórica" (ibidem).

Através da alquimia, Jung teve clareza de que o inconsciente é um processo cujas


transformações dependem da relação que a consciência estabelece com seus conteúdos. Tal
processo poderia ser observado nos indivíduos "através de sonhos e fantasias" (JUNG, 2006,
p. 248) e, no mundo coletivo estaria "inscrito nos diferentes sistemas religiosos e na
transformação de seus símbolos" (ibidem) no decorrer da história. Jung afirma que foi
"mediante o estudo das evoluções individuais e coletivas, e mediante a compreensão da

28
"O que a alquimia tenta para sair de seu dilema é uma operação química, que hoje poderíamos designar como
símbolo. O processo que ela segue é manifestadamente uma alegoria de sua pressuposição de uma substantia
coelestis (substância celeste) e da possibilidade de sua representação química. Sob esse aspecto, a operação não é
simbólica para eles, mas adequada e racional. Para nós, porém, [...] o processo é meramente fantástico, quando
tomado verbalmente" (JUNG, OC 14/2, § 404).
57
simbologia alquimista" (ibidem) que chegou ao conceito básico de sua psicologia, o processo
de individuação.

Portanto, o autor não se refere à individuação como um processo de desenvolvimento


unicamente pessoal – como se estivesse ancorado exclusivamente sobre a história de vida da
pessoa –, mas como um processo de desenvolvimento ao mesmo tempo individual e coletivo.
O indivíduo é como que "tomado pelo lento movimento de elaboração de metamorfoses
arquetípicas que se processam através dos séculos" (JUNG, 2006, p. 245). Trata-se de "um
processo suprapessoal, o grande sonho do mundus archetypus" (ibidem); em que a história do
mundo se reatualiza na experiência individual e, através desta, continua avançando em novos
desdobramentos e transformações.

Figura 2: Fases alquímicas da nigredo, albedo e rubedo respectivamente.

A alquimia permitiu que Jung descrevesse o processo de individuação, em seus


aspectos essenciais, através de um simbolismo elaborado no decorrer dos séculos; servindo
como espécie de paradigma para a compreensão do processo de ampliação da personalidade.
Os estágios do magnum opus (grande obra) são vistos em analogia às fases do processo de
individuação. Os principais estágios do opus alquímico para a fabricação da Lapis (pedra) são
nigredo, albedo e rubedo (Figura 2); e representados respectivamente pelas cores preto,
branco e vermelho. Partindo do preto, através de uma série de operações, cada alquimista

58
precisava descobrir o caminho necessário para transformar sua prima materia na Pedra rubra
e, realizar a finalidade da obra. Em analogia, no processo de individuação é tarefa de cada
indivíduo encontrar um caminho próprio a desdobrar a personalidade no sentido do Self.

"M. [melancolia] passou também por Küsnacht, Suíça, onde Jung [1875-
1961] ajudou-a a compreender que seu sofrimento poderia ser parte dos processos
psicológicos de transformação de sua personalidade, à semelhança das mutações
sofridas pelos alquimistas durante a busca da pedra filosofal. Sob essa ótica, ela
estaria vivendo a fase inicial do processo de individuação – a chamada nigredo –,
que corresponderia ao encontro com a própria sombra" (GRINBERG, 2005, p. 47).

O caráter solitário e o pioneirismo exigido a tal tarefa são condições sine qua non para
a realização do processo, visto que as fórmulas coletivas só nos levam até o início da grande
obra, mas nunca além da nigredo29. O preto é, pois, a transição entre a pequena e a grande
obra; que, segundo Hillman (2011A), não é alcançado sem esforço, mas que deve ser
conquistado através da vontade consciente. Do mesmo modo, é preciso que sejamos capazes
de ingressar no mundo coletivo, através da construção de uma persona adequada, para
somente depois nos diferenciarmos deste mesmo coletivo no processo de individuação. É por
esse motivo que Jung (OC 8/2) afirma que a adaptação ao mundo coletivo, em um primeiro
momento do desenvolvimento, aparece como solução para os problemas da juventude.
Embora seja crucial para o ingresso na vida adulta, esta solução "só é válida temporariamente,
e no fundo dura muito pouco" (JUNG, OC 8/2, § 771); pois, logo chegará o momento em que
a consciência será confrontada por tudo aquilo que rejeitou ao longo do processo adaptativo.

"Atente-se para o fato de que na alquimia não raro a nigredo, ou seja, o


obscuro estado inicial, já é produto de uma operação anterior, não constituindo,
portanto, pura e simplesmente o ponto de partida. O paralelo psíquico da nigredo é
assim o resultado de uma conversa preliminar e introdutória que em dado momento
– muitas vezes este momento sobrevém depois de uma longa espera – toca o
inconsciente" (JUNG, OC 16/2, § 376).

Tal fato aparece através do imaginário ocidental não somente através da alquimia, mas
também do tarô de Marselha (popularizado no período histórico da renascença); pois há uma
clara transição entre duas fases distintas na ordenação dos arcanos maiores deste tarô. A
primeira é caracterizada principalmente por figuras humanas e a segunda por seres
sobrenaturais ou eventos celestiais. Os arcanos I à IX dizem respeito ao mundo coletivo,
como um caminho que leva até o arcano X (a roda da fortuna); onde há uma virada na sorte –
como quando Édipo se torna rei de Tebas – para o arcano XI (a força). A partir deste
momento inicia-se a grande obra, marcada pelos arcanos XII (o pendurado) e XIII (a morte).

29
"É com razão que o magnum opus (grande obra) principia aqui, pois é realmente uma questão irrespondível
como se deverá enfrentar a realidade nesse estado de divisão e ruptura interiores" (JUNG, OC 14/2, § 367).
59
É quando o mundo das figuras cotidianas se escurece, como se o sol mergulhasse nas
profundezas da terra, e o caminho através de um mundo sombrio e extraordinário começa a se
descortinar no sentido da reunião dos quatro elementos em uma única e mesma figura – o
arcano XX (o mundo).

"O caminho para a vida interior ou inconsciente começa com a descoberta


da sombra. [...] A sombra, escura e densa, corresponde às mesmas qualidades do
chumbo. Por isso, os alquimistas viam o chumbo como o mais baixo dos metais e
sugeriam que o trabalho começasse no nigredo, o negro primeiro estágio"
(CAVALLI, 2005, p. 187).

A nigredo, portanto, marca a transição entre a pequena e a grande obra; a transição do


homem natural ao homem espiritual. O preto é associado ao chumbo e ao corvo, e também à
escuridão e ao isolamento. Trata-se de um estágio cheio de perigos, que Jung (OC 14/2)
associa ao confronto com a sombra e, afirma que é relacionado pelos alquimistas à
melancolia30. O risco principal deste estágio da obra estaria na possibilidade de não se
conseguir avançar além dele. Fato denominado por Hillman (2011A) como a armadilha da
identificação com o preto. Por isso o alquimista adverte que se deve ter cuidado para que as
crias dos corvos não retornem ao ninho após o deixarem; o que, para Hillman, é o mesmo que
retornar "ao conforto protetor das queixas tão familiares, o ninho do status quo ante"
(HILLMAN, 2011A, p. 136). Estar aprisionado no preto é uma possibilidade, descrita pelos
alquimistas, que pode ser vista em analogia ao que chamamos neste trabalho como depressão
patológica. Pois, “a nigredo não apenas colocava visível diante dos olhos do experimentador a
decomposição, o sofrimento, a morte e o suplício infernal, mas também recobriria a alma
solitária dele com sua melancolia” (JUNG, OC 14/2, § 158).

Cavalli (2005) afirma que a depressão faz a psique retornar às próprias profundezas e,
que "embora sejam dolorosos, os episódios depressivos nos forçam a confrontar as figuras
sombrias dos medos inconscientes" (p. 133). Vista em analogia à melanosis31 da simbologia
alquímica, a depressão não se restringiria unicamente a um conjunto de sintomas, mas
revelaria um sentido mais profundo. Embora seu caráter sombrio e a aflição por ele provocada
sejam evidentes na descrição da nigredo, poderia haver um caminho não somente possível,
mas potencialmente transformador através dela. Para Jung (2014A), "só quando estamos
horrorizados, aflitos e caóticos é que chamamos por um salvador" (p. 36). Do mesmo modo,

30
"A confrontação com a sombra causa primeiramente um equilíbrio morto ou uma parada que impede decisões
morais, e torna ineficazes as convicções, e mesmo as impossibilita. Tudo se torna duvidoso, e por isso os
alquimistas denominam adequadamente esse estado inicial como nigredo (negrura), tenebrositas (escuridão),
caos e melancolia" (JUNG, OC 14/2, § 367).
31
O termo melanosis se refere, na alquimia, ao escurecimento da obra.
60
somente quando estamos encurralados diante da sombra, sem possibilidade de retornar ao
antigo estado de coisas, é que somos capazes de aceitar o lodo sombrio que rejeitamos tão
meticulosamente ao longo de nossas vidas.

"A sombra contém tudo o que é vital, porém problemático - a raiva e a


sexualidade, com certeza, mas também a alegria, a espontaneidade e a chama
criativa não aproveitada. [...] As exigências da sociedade, começando com a nossa
família de origem, divide os conteúdos psíquicos e a sombra se estende. Esta última
representa a mortificação da natureza da pessoa em favor dos valores sociais
coletivos. Consequentemente, a confrontação com a sombra e sua integração
favorecem a cura da divisão neurótica e uma programação de crescimento"
(HOLLIS, 1995, p. 59).

Referindo-se aos episódios depressivos, Cavalli (op. Cit.) afirma que "a memória se
transforma em peso morto nesses períodos, imbuída de recordações sombrias de tempos ruins.
O processo de rememorar transforma esse chumbo miserável em algo novo e muito mais
significativo" (p. 133). Entretanto, eu diria que o processo de rememorar, por si só, não seria
capaz de garantir a transformação desse chumbo, pois a memória sombria por ele mencionada
emerge de forma espontânea na consciência; trazida pela regressão da libido. Nesse sentido,
rememorar, pode ser um ato completamente involuntário, em que a consciência se transforma
em mera vítima das imagens trazidas pela regressão. Há, não somente, que se rememorar, mas
levar seriamente em consideração estas imagens, e permitir ser confrontado por elas. É
preciso cultivar o que Jung (OC 11/1) chamou de atitude religiosa diante do próprio processo;
religio, para considerar cuidadosamente, e pistis, para permanecer leal e se fixar nas próprias
experiências, e assim estas possam prosseguir desdobrando-se.

"Encaro a religião como uma atitude do espírito humano, atitude que de


acordo com o emprego originário do termo: religio, poderíamos qualificar a modo
de uma consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos
concebidos como 'potências': espíritos, demônios, deuses, leis, ideias, ideais, ou
qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores; dentro de seu mundo
próprio a experiência ter-lhe-ia mostrado suficientemente poderosos, perigosos ou
mesmo úteis, para merecerem respeitosa consideração, ou suficientemente grandes,
belos e racionais, para serem piedosamente adorados e amados" (JUNG, OC 11/1, §
8).

Confrontar a sombra, portanto, não é um rememorar involuntário; isto seria a origem


da insônia - ser assediado pelos conteúdos que não permitimos entrada em nossas casas.
Diferente disso, o confronto exige certa reverência ao processo e um papel ativo do ego; exige
sustentar o conflito que de outro modo trataríamos com eufemismos, deixaríamos que fosse
dissociado, e seguiríamos nossas vidas cegos sobre quem somos. Entretanto, o escurecimento
da obra impede-nos de seguir adiante como se nada estivesse acontecendo, pois, a noite, o
isolamento e a imobilidade depressivos impõem-se sobre nós, independente de nossas

61
vontades. É como se não houvesse mais como não levar em consideração àqueles conteúdos
incômodos e repugnantes; pois estes se impuseram sobre nós de forma autônoma. Nenhuma
saída é possível a não ser seguir adiante, e isso significa ir através deles. Pois são justamente
esses conteúdos difíceis de lidar que se apresentam como possibilidade de renovação da vida
através da ampliação da consciência32.

“Ser subjugado pelo inconsciente é comparável a uma inundação do Nilo


que aumenta a fertilidade do solo. [...] À primeira vista, não se entende como
justamente este estado de trevas pode merecer tão especial louvor, pois a nigredo
costuma ser considerada um estado de ânimo melancólico e sombrio que evoca
morte e sepultura” (JUNG, OC 16/2, § 479).

"Nesse sentido, a melancolia [...] poderia ser considerada um chamado para a entrada
num processo que admite uma escuta do inconsciente e o acesso a estruturas criativas
adormecidas ('deprimidas') na personalidade". (GRINBERG, 2005, p. 47). Seria preciso, pois,
libertar a anima, aprisionada no lodo escuro, pela presença de um inconsciente pessoal pouco
integrado. Para Jung (OC 14/2), o problema da sombra na fase alquímica da nigredo deve ser
atravessado, primeiramente a partir da decapitação. Como símbolo, a decapitação faz alusão a
"uma separação da 'intelligentia' (inteligência) da 'passio magna et dolor' (grande sofrimento
e dor), que a natureza causa à alma" (§ 387). Equivaleria dizer que é preciso desapegar da
própria dor33, ou de deixar de se identificar com o complexo, para que o pensamento pudesse
considerar o mundo e o indivíduo a partir de uma perspectiva distinta da narrativa arquetípica
constelada pela nigredo. Enquanto a cabeça estiver presa ao corpo, ou melhor, enquanto
houver identificação com o complexo, o pensamento estará subordinado a ele; e surgirá como
imagens que obedecem à mesma narrativa arquetípica que está na base do complexo; mas
nunca além dela.

Esta situação impede que a consciência estabeleça qualquer relação com o


inconsciente, pois a possessão que caracteriza esta identificação dissolve o ego ao mesmo
tempo em que o complexo emerge na consciência. O aprisionamento no estado regressivo,
portanto, equivale à possessão por uma narrativa arquetípica, que irrompe na consciência
através de imagens do inconsciente pessoal, dissolvendo a consciência do ego. "Quem desiste
do trabalho de adaptação e regride ao seio da família, em última análise da mãe, espera ser ali
não somente aquecido e amado, mas também alimentado" (JUNG, OC 5, § 519). Sacrificar a

32
Em alusão à nigredo, Jung afirma que esta fase "é o tempo da incubação ou da gravidez" (JUNG, OC 14/, §
386).
33
Para Hillman, a decapitação é "um ato que separa a compreensão de sua identificação com o sofrimento"
(HILLMAN, 2011A, p. 141).
62
identificação com o complexo é, portanto, o caminho para que se realize a decapitação. "A
reivindicação de ser alimentado é substituída pelo jejum voluntário" [...]. Por tal atitude “a
libido é obrigada a desviar-se para um símbolo ou um equivalente simbólico da 'alma mater',
para o inconsciente coletivo" (ibidem); libertando o ego do aprisionamento no passado.

Figura 3: Arcanos XII (O pendurado) e XIII (A morte) do Tarô de Marselha

Estas considerações nos remetem à passagem entre os Arcanos XII (o pendurado) e


XIII (a morte) do Tarô de Marselha (Figura 3). O pendurado está sem qualquer possibilidade
de atuação, com suas pernas amarradas para o alto, é incapaz de andar pelo mundo. Esta
imagem faz alusão a uma punição pública, ele é como o bode expiatório pendurado em praça
pública, tal qual a sombra diante da consciência coletiva. Neste estado de identificação com o
inconsciente pessoal, há uma paralisação da libido em regressão, pois não se pode estabelecer
relação entre o ego e o conteúdo sombrio que a regressão traz à tona. É como se a imagem
estivesse demasiadamente aderida à consciência. A solução para este problema surge no
Arcano que se segue; o anjo da morte decapita rei e rainha. Como numa operação de moagem,
semeia a terra preta com as partes cortadas de ambos para preparar uma nova colheita.

63
Por esse motivo, a decapitação "é uma emancipação do pensar residente na cabeça,
que é a 'cogitatio' (cogitação) ou uma libertação da alma das cadeias da natureza" (JUNG, OC
14/2, § 387). A alma, liberta de sua identificação com a matéria, pode assim seguir sua
jornada. A possibilidade dialógica criada a partir da decapitação dá início à unio mentalis
(união mental). A alma, agora liberta do corpo, ascende para se unir ao espírito. Para Jung
(OC 14/2) esta é a primeira etapa da coniunctio que, mais tarde, culminará com a reunião
entre a cabeça e o corpo. Esta primeira etapa corresponde à "confrontação da consciência (isto
é, da personalidade do eu) com o que se acha no fundo da cena, a chamada sombra" (§ 366) e
diz respeito à "relação do adepto com seu spiritus familiaris" (ibidem). A unio mentalis,
portanto, pode ser vista analogamente ao sacrifício da identificação com o complexo, espécie
de renúncia à sedução de permanecer no passado, e o estabelecimento de uma relação
dialógica entre o ego e o inconsciente – o confronto com a sombra.

"Quando agora, na linguagem da psicologia moderna, designamos a


libertação da alma 'e compedibus corporis (dos grilhões do corpo), de acordo com as
alusões de Dorneus, como sendo um recuo das projeções ingênuas, por meio das
quais modelamos a realidade que nos circunda e a própria imagem de nosso caráter,
então chegamos de uma parte à 'coginitio sui ipsus' (conhecimento de si próprio,
autoconhecimento), e de outra parte também a uma intuição e a uma concepção de
mundo exterior, que é realista e aproximadamente livre de ilusões" (JUNG, OC
14/2, § 396).

Este procedimento indica, por um lado, a integração do inconsciente pessoal através


do confronto com a sombra e, por outro, o estabelecimento de um relacionamento com o
inconsciente coletivo através da anima liberta de sua contaminação com a sombra34. O
inconsciente coletivo, tal qual o spiritus veritatis (espírito da verdade) dos alquimistas, passa
a animar o mundo anímico possibilitando novas formulações imagéticas dos arquétipos "em
correspondência com o espírito da época" (JUNG, OC 14/2, § 399)35. Não se tratam,
entretanto, de formulações meramente intelectuais; embora o pensamento intelectual possa
estar envolvido nesse processo, sua eficácia decorre do fato de a partir dele emergir uma ideia
viva. "A ideia viva é sempre perfeita e numinosa. A formulação humana nada acrescenta e
nada tira, pois o arquétipo é autônomo, e a questão é apenas se o homem é ou não empolgado
por sua plenitude" (JUNG, OC 14/2, § 401). Emerge, portanto, uma experiência em que um

34
A função da anima enquanto mediadora entre o ego e o inconsciente coletivo, assim como as complicações
geradas pela sombra e sua relação com a anima serão discutidas em profundidade no tópico: "as transformações
da anima no processo de individuação".
35
Para Jung, a finalidade deste procedimento seria a reanimação dos arquétipos que perderam sua eficácia na
cultura e/ou para o indivíduo. "A exigência que surge em tais situações é a de uma nova interpretação dos
arquétipos em correspondência com o espírito da época, que represente a respectiva compensação da situação
modificada da consciência" (JUNG, OC 14/2, § 399).
64
novo sentido é dado ao mundo e a si próprio, a partir da irrupção e da comoção oriundas da
multiplicidade arquetípica do inconsciente coletivo. A unio mentalis, portanto, se caracteriza
pela integração da sombra por um lado, e pela reanimação das imagens arquetípicas que
estavam mortas e ineficazes na cultura na consciência individual.

"Todas as possibilidades chamadas razoáveis já foram experimentadas e se


mostraram imprestáveis. Então não poucas delas se lembram da fé em que
cresceram, e encontram o caminho de volta para ela, mas nem todas. Elas sabem,
talvez, como tudo deveria ser, mas já experimentaram até a saciedade quão pouco se
alcança apenas com a vontade e a intenção, quando o inconsciente não toma parte.
Para garantir para si a ajuda indispensável do inconsciente, as religiões já desde
sempre recorrem ao mito, ou melhor, o mito já sempre formou a ponte entre a
consciência desamparada e as atuantes 'idées-forces' do inconsciente. Mas ninguém
pode crer artificialmente e com esforço da vontade no teor do mito, se já a priori (de
antemão) não estiver empolgado por ele" (JUNG, OC 14/2, § 406).

Essas considerações nos permitem compreender que a vontade consciente não é capaz
de servir como ferramenta única para atravessar o estado depressivo; isto é, não há caminho
possível pela acentuação da antiga dominante da consciência. Ao contrário, o processo exige a
participação do inconsciente coletivo em um relacionamento dialógico com o ego para que
possa realizar sua finalidade. É necessário que outra força, maior que o ego, entre em cena
para ajudar a conduzir o processo a partir de onde a vontade consciente não tem mais
condições de fazê-lo devido a sua unilateralidade. E para tal, torna-se fundamental uma
formulação individual das imagens coletivas que perderam sua eficácia na cultura; já que
somente assim, o indivíduo poderia ser animado por elas.

Tendo a alma se unido ao espírito no primeiro grau da coniunctio, precisa retornar a


sua origem. A cabeça precisa ser novamente aderida ao corpo para que o indivíduo possa
nascer. A unio mentalis (alma unida ao espírito) deve agora mergulhar novamente no corpo
(na matéria) a fim de animá-lo. O segundo grau da coniunctio equivale a um processo de
reanimação, e representa a reunião da alma (unida ao espírito) novamente ao corpo. Para Jung
(OC 14/2) este estágio da coniunctio estaria relacionado com a realização do Self e se
expressaria na aquisição não somente de autonomia, mas também de segurança interior em
sustentar a própria singularidade.

É como se a alma não corresse mais o risco de retornar ao estado da nigredo, pois o
processo foi não somente definitivamente ultrapassado, mas o ego encontrou uma atitude
capaz de lidar com futuros problemas. Ou melhor, trata-se, menos de se ter ultrapassado uma
dificuldade, mas de, a partir das complicações geradas pela atitude consciente, ter-se
encontrado uma nova atitude capaz de se relacionar com o inconsciente de modo a não serem

65
produzidas grandes complicações futuras. Equivale ao momento em que os olhos se abrem
definitivamente "ou, como dizem os alquimistas, lhe apareçam os oculi piscium (olhos de
peixe) ou as scintillae, as faíscas luminosas, na solução escura" (JUNG, OC 14/2, § 406).
Jung relaciona os olhos de peixe dos alquimistas a um estado de atenção permanente, pois
estão sempre abertos e enxergam sempre36.

"Da mesma forma descobre e ganha o tesouro, 'aquela preciosidade difícil


de conseguir', somente aquele que ousa a confrontação com o dragão e não perece.
Tal pessoa tem verdadeiro direito à autoconfiança, pois enfrentou a profundeza
escura do próprio si-mesmo e desse modo conquistou para si o seu si-mesmo. Esta
experiência interna lhe dá força e confiança, a pístis, na capacidade de sustentação
de si-mesmo, pois tudo o que o ameaçava provindo do interior, ele tomou como
coisa própria sua, adquirindo desse modo certo direito de crer que será capaz de
dominar com os mesmos meios tudo o que no futuro ainda possa ameaçá-lo"
(JUNG, OC 14/2, § 410).

O terceiro e último grau da coniunctio descrito por Jung (OC 14/2) significa "a união
do homem total com o unus mundus" (§ 414). O segundo grau da coniunctio, a realização do
Self, seria como uma simples antecipação da realização; que para ser plenamente efetivada
necessitaria da participação do indivíduo plenamente realizado no mundo. Entretanto, não se
trata de um simples estar no mundo, mas da ligação entre o indivíduo e a unidade do mundo;
o mundo potencial ou mundus archetypus. "Poderíamos exprimir isso, do ponto de vista
psicológico, como uma síntese da consciência com o inconsciente" (JUNG, OC 14/2, § 425).
Entretanto, não devemos considerar o inconsciente, neste contexto, como algo que dissesse
respeito exclusivamente ao indivíduo, mas como algo que mergulha além dele; passando pela
história do homem na cultura para chegar ao fundamento arquetípico da própria realidade. Em
termos gerais, considero que o mais alto grau da coniunctio descrito por Jung diz respeito à
participação consciente do indivíduo (que sustenta a própria singularidade) num rio maior e
muito mais antigo; o processo histórico da formulação arquetípica pelo homem na cultura;
que por sua vez, repousa sobre o fundamento último do mistério transcendente.

A nigredo alquímica, portanto, não pode ser vista unicamente como um estágio do
desdobramento da personalidade no sentido da própria integralidade, mas fundamentalmente
do enraizamento do homem no mundo. Entretanto, devemos levar em consideração os
diversos perigos envolvidos nesta empreitada; dentre os quais, o desenvolvimento de uma
depressão crônica. O fato das imagens da alquimia concordarem, segundo Jung (2006), com a
psicologia empírica, está longe de indicar que a depressão psicogênica é um processo que

36
"Os olhos de peixe estão sempre abertos, e por isso devem enxergar sempre, razão pela qual os alquimistas os
empregam como símbolo para a atenção permanente" (JUNG, OC 14/2, § 406).
66
deveria caminhar naturalmente para um desfecho favorável ao indivíduo. Ao contrário, os
exemplos trágicos são muitos para serem ignorados, assim como as constantes advertências
dos alquimistas sobre os riscos envolvidos no processo.

"Em outras palavras, a cor [preta] necessária à mudança priva-se a si


mesma da mudança, tendendo a se tornar cada vez mais literal, redutiva e severa. De
todas as cores alquímicas, o preto é a mais densamente inflexível e, portanto, o mais
opressivo e perigosamente literal estado da alma" (HILLMAN, 2011A, p. 140).

Por esse motivo Jung (2002) considera a individuação, ao mesmo tempo, enquanto
tragédia e realização37. Invariavelmente todos estamos navegando no mesmo rio ancestral que
constitui o mundo desde o início dos tempos; entretanto, estar participando nele de forma
consciente é algo muito menos comum. Trata-se de um só e mesmo rio, em que alguns
navegam, enquanto outros se afogam.

TRANSFORMAÇÕES DA ANIMA NO PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO

O conceito de anima ocupa uma posição bastante central na teoria junguiana. Seria a
anima, em última análise, aquela instância psíquica que serviria como ponte entre a
consciência e o inconsciente coletivo; possibilitando, portanto, o estabelecimento de uma
relação consciente entre o ego e as demais imagens arquetípicas. Entretanto, a própria anima é
também um arquétipo, cuja excepcionalidade se expressa no fato de estar envolvida nos
principais processos psíquicos descritos por Jung. Enquanto personificação do inconsciente
do homem, a anima está relacionada a priori a tudo aquilo que é inconsciente. Portanto, para
compreendermos o conceito de anima, é fundamental levarmos em consideração sua natureza
arquetípica, assim como o modo como as imagens arquetípicas são continuamente elaboradas
ao longo da história.

37
“[...] na perspectiva psicológica, não se pode designar o conceito de si-mesmo como summum bonum [bem
maior]. Eu nunca fiz isso em parte alguma. Seria uma contradictio in adiecto [contradição em termos], uma vez
que, por definição, o si-mesmo representa uma união virtual de todos os opostos. Nem no sentido metafórico
podemos designá-lo como summum bonum, pois ele não é um summum desideratum [algo altamente desejável],
mas antes uma dira necessitas [extrema necessidade] que assim é caracterizado por todas as qualidades
desagradáveis. A individuação é tanto fatalidade quanto realização. A psicologia do si-mesmo não é filosofia,
mas um processo empiricamente constatável que, enquanto processo natural, poderia transcorrer
harmoniosamente, se não recebesse uma conotação trágica no ser humano pela colisão com a consciência”
(JUNG, 2002, p. 136).

67
"Examinando estas imagens [arquetípicas] mais detalhadamente,
constataremos que elas são, de certo modo, o resultado formado por inúmeras
experiências típicas de toda uma genealogia. Elas são, por assim dizer, os resíduos
psíquicos de inúmeras vivências do mesmo tipo. Elas descrevem a média de milhões
de experiências individuais apresentando, desta maneira, uma imagem da vida
psíquica dividida e projetada nas diversas formas do pandemônio mitológico”
(JUNG, OC 15, § 127).

Para Jung (OC 7/1), as imagens arquetípicas atuam no indivíduo impelindo-o a repetir
sempre e de novo estas experiências incessantemente vividas pela humanidade ao longo da
história; são, portanto, reatualizadas no tempo presente através da experiência individual e
adquirem novas tonalidades de acordo com o espírito da época. Podemos concluir com isso,
que apesar de um substrato comum, tais imagens podem sofrer inúmeras variações
dependendo da cultura e do tempo. Por esse motivo não se pode considerar que as associações
em torno do masculino e do feminino, ou seja, aquilo que define os gêneros sexuais em
determinado lugar e tempo, sejam arquetípicas; mas somente a tendência geral de que
masculino e feminino sejam diferenciados de alguma forma em qualquer tempo e lugar –
marcando sempre e de novo a experiência da alteridade.

Do mesmo modo, não poderíamos supor uma arbitrariedade nestas associações, como
se qualquer associação pudesse se relacionar ao masculino ou ao feminino sem a influência
específica do espírito da época. O ser humano não pode ser considerado como uma mônada
fechada, como se existisse independente de seu contexto. E as associações que gravitam, por
assim dizer, no entorno dos arquétipos dizem respeito a conteúdos elaborados ao longo de
períodos históricos específicos.

As vivências de Jung com a imaginação ativa, registradas no livro vermelho, tiveram


profunda influência na elaboração do conceito de anima/animus. O vocábulo anima foi
empregado em referência a "alma, no sentido primitivo do termo" (JUNG, 2006, p. 222). Jung
(2006) considera a anima como a imagem da mulher no homem, enquanto que o animus como
a imagem do homem na mulher; estes emergiriam na experiência individual como
personificações do inconsciente de forma bastante ampla e, portanto, estariam envolvidos de
forma decisiva em praticamente todos os processos psíquicos significativos. Os estudos de
Jung sobre a alquimia foram de fundamental importância para a compreensão de
anima/animus a partir do imaginário histórico da cultura ocidental; ancorando suas
observações sobre as bases socio-históricas de nossa cultura. A relação estabelecida entre as
imagens da alquimia com sonhos e fantasias de indivíduos de seu tempo foram cruciais para a

68
elaboração de um entendimento sobre as influências específicas das diversas variações destas
imagens na psicologia do indivíduo.

Através do método de amplificação, Jung (OC 16/2) categorizou certas possibilidades


típicas de variações da anima ao longo do desenvolvimento do homem ocidental
contemporâneo. Tratam-se, portanto, de diferentes imagens arquetípicas do feminino; que,
como tais, exercem certas influências sobre a consciência quando consteladas. É notória a
diferença, por exemplo, das influências exercidas sobre o indivíduo quando a imagem
arquetípica da grande mãe ou da mulher sedutora estão consteladas. As variações da anima
estariam, por um lado, relacionadas às etapas arquetípicas do desenvolvimento humano; mas
por outro lado, à atitude da consciência em relação ao inconsciente e ao grau de ampliação da
consciência. Consideramos, portanto, que, modo geral, a questão da alteridade é um fato
fundamental na compreensão das diferentes imagens da anima que emergem na experiência
individual; e que suas variações típicas estão relacionadas ao modo como o ego se relaciona
com tudo aquilo que é diferente dele próprio, o que inclui tanto o mundo, quanto as imagens
do inconsciente.

No que diz respeito aos desdobramentos possíveis das imagens da anima, Jung (OC
16/2) categoriza quatro diferentes graus; cada qual caracterizado por formas típicas do
feminino, que exercem influências específicas na psicologia do indivíduo. Qualls-Cobert
(1990) considera que “a cada um desses estágios, o homem vai travando conhecimento com
um aspecto diferente de sua própria natureza feminina” (p. 138). Entretanto, nós diríamos que
o desenrolar das imagens da anima não traz ao indivíduo, unicamente, a questão da relação
com o sexo oposto; mas, primariamente versa sobre a questão da alteridade em sua forma
mais ampla. Conforme o desdobramento das imagens da anima se aprofunda na experiência
individual, o ego é confrontado com questões que transcendem o gênero, e que dizem respeito
ao Eros de modo geral; trata-se, portanto, da ética do relacionamento com o outro,
independente de este outro ser homem, mulher, uma imagem do inconsciente ou uma
instituição social.

Qualls-Corbertt (1990) afirma que as transformações das imagens da anima dependem


da constante ampliação da consciência do indivíduo. Isto é, a transição de um grau da anima
para outro depende, portanto, da integração de conteúdos inconscientes à consciência e,
consequentemente é acompanhado de mudanças qualitativas na atitude do ego em relação ao

69
outro. No que diz respeito à problemática da alteridade trazida pela anima, a ampliação da
consciência implica na progressiva constelação de diferentes formas de relacionamento com o
outro; cada qual circunscrita na narrativa arquetípica específica de cada grau da anima. Tais
estágios (ou graus) da anima são exemplificados por Jung através das figuras de Chawwa
(Eva), Helena, Maria e Sofia.
“O primeiro grau da Chawwa, Eva, Terra é apenas biológico, em que a
mulher=mãe não passa daquilo que pode ser fecundado. O segundo grau ainda diz
respeito a um Eros predominantemente sexual, mas em nível estético e romântico,
em que a mulher já possui certos valores individuais. O terceiro grau eleva o Eros ao
respeito máximo e à devoção religiosa, espiritualizando-o. Contrariamente a
Chawwam trata-se da maternidade espiritual. O quarto grau explicita algo que
contraria as expectativas e ainda supera esse terceiro grau dificílimo de ser
ultrapassado: é a sapientia. [...] Este grau representa a espiritualização de Helena,
portanto, do próprio Eros” (JUNG, OC 16/2, § 361).

Os quatro graus da anima descritos por Jung podem, portanto, ser adequadamente
considerados como estágios que podem ocorrer ao longo do desenvolvimento humano e,
portanto, como níveis de realização do arquétipo. Partindo da mãe natural, passa pela amante,
pela mãe celestial e finalmente chega à sabedoria ou ao eterno feminino. Os dois últimos
estágios referem-se à espiritualização dos dois primeiros; quer dizer, o terceiro grau da anima
corresponde à espiritualização do primeiro, enquanto que o quarto grau corresponde à
espiritualização do segundo.

Através das próprias vivências, o homem “é conduzido, por assim dizer, por uma
imagem da anima a outra” (QUALLS-COBERT, 1990, p. 138). A transformação da anima na
psicologia do indivíduo inicia-se em dois graus naturais, por assim dizer, e se desdobra em
outros dois graus espirituais. Os dois primeiros graus dizem respeito à vivência concreta do
instinto, enquanto que nos dois segundos “a atividade concreta do instinto assume por assim
dizer um caráter simbólico” (JUNG, OC 16\2, § 361). A passagem dos graus naturais para os
espirituais tem enorme repercussão na psicologia do indivíduo, visto que, passa a prevalecer a
satisfação simbólica do instinto ao invés de sua atuação impulsiva; condição intrínseca ao
processo de individuação.

Nos dois primeiros graus, a realização do arquétipo acontece pela via da atuação,
como se fosse uma encarnação ou encenação, que orienta o processo psíquico no sentido do
destino arquetípico constelado; mas, no entanto, não pode se tornar consciente – constituindo
um fato natural. Já nos dois segundos graus, a realização do arquétipo ocorre através do
símbolo, que agrega sentidos ao que antes era somente natureza e, desta forma, torna possível
70
o estabelecimento de uma relação entre o ego e o conteúdo inconsciente. Qualls-Cobert
(op.cit.) afirma que, idealmente, a realização máxima do arquétipo incorporaria à consciência
do indivíduo todo o continuum de suas energias instintivas e suas respectivas formas
espirituais; e que isto culminaria com a imagem do “hieros gamos, o matrimônio sagrado ou a
união dos opostos” (p. 138).

Embora as raízes arquetípicas de cada um desses estágios pareçam evidentes, já que se


pode observá-los em toda parte, como em sonhos, fantasias, cinema, literatura, mitologia, etc.;
é importante ressaltar seu caráter cultural. Não à toa, Jung (OC 16/2) considera este gradiente
de imagens da anima como os “quatro estágios culturais do Eros38” (§ 361). São formas
típicas, isto é, imagens arquetípicas, cujo desenvolvimento e elaboração se deram através do
processo histórico de transformação da cultura. O desdobramento da anima em diferentes
imagens, portanto, depende da relação entre o indivíduo e o espírito de sua época, e tem,
invariavelmente, o inconsciente coletivo como substrato mais radical. Por este motivo, Jung
(OC 14/2) considera que o limite do autoconhecimento “é posto em geral pelo espírito da
época” (§ 397). Os graus de realização da anima, portanto, se relacionam a imagens
arquetípicas, encarnadas ou vivenciadas sempre e de novo pelos indivíduos na cultura. É
como se o arquétipo buscasse sua máxima realização, delimitada pela ancestralidade, através
da experiência individual.
“Quando tais trilhas [ancestrais] chegam à consciência do indivíduo, o que
só pode ser feito através de processos mentais, e, se esses processos só podem
tornar-se conscientes pela experiência individual – com a aparência, portanto, de
aquisições pessoais –, elas não deixam de ser trilhas preexistentes que foram apenas
„preenchidas‟ pela experiência individual” (JUNG, OC 8/1 § 100).

Jung (OC 8/1) atribui grande importância à carga hereditária do homem. Podemos
considerar o desenvolvimento anímico ou o processo psíquico como algo ancorado no
desdobramento das imagens do instinto através do processo histórico e reatualizado na
experiência individual. Para o autor, a ancestralidade cria trilhas, ou seja, tendências que
orientam a transformação da energia psíquica para determinadas imagens arquetípicas
culturalmente elaboradas. Este princípio ativo e dinâmico que, como um sopro, impulsiona o

38
Jung associa anima ao Eros em contraposição ao animus, relacionado ao Logos. Tal observação deve ser
considerada a partir de uma perspectiva sócio-histórica, isto é, do conjunto de associações relacionadas ao
feminino e ao masculino através da história. Visto que o autor considera o arquétipo como forma sem conteúdo,
ou melhor, como tendência a que sejam produzidas formas, não poderíamos supor que conteúdos específicos –
Eros e Logos – dissessem respeito à natureza do arquétipo, mas somente ao modo como este se manifesta através
do espírito da época.
71
desdobramento das imagens através do leito de rio cravado pela ancestralidade é chamado por
Jung de Espírito. “O espírito, como princípio ativo da carga hereditária, consiste na somatória
dos espíritos ancestrais, dos pais invisíveis, cuja autoridade nasce com a criança” (§ 101). Os
quatro estágios culturais do Eros descritos por Jung, portanto, referem-se a este leito de Rio
Ancestral; cujas possibilidades de realização dependem do sopro do Espírito que desdobra as
imagens na experiência individual.

É importante ressaltar o papel do ego para o curso do desdobramento das imagens


arquetípicas da anima em seus diferentes graus. Visto que, apesar do Espírito impulsionar o
processo no sentido de sua realização, a atitude da consciência em relação ao inconsciente é
fator crucial neste processo; o que traz ao primeiro plano, de forma bastante evidente, a
questão da alteridade e as diversas possibilidades de relacionamento entre ego e inconsciente.
É notório o fato de que o inconsciente influencia a consciência, mas é igualmente verdade que
a consciência influencia o inconsciente; fazendo com que as imagens do inconsciente reajam,
por assim dizer, de acordo com a atitude do ego em relação a elas. Jung (2006) compreende o
inconsciente como um processo “e que as relações do ego com os conteúdos inconscientes
desencadeiam um desenvolvimento ou uma verdadeira metamorfose da psique” (p. 248).
Podemos considerar, portanto, que todo estanque no fluir das imagens anímicas ocorre sempre
em paralelo a um enrijecimento da atitude do ego, ou a uma recusa deste em relação ao
inconsciente.

Esta situação pode ser compreendida em analogia ao mito da renovação do rei39. Onde
este experimenta um período de fertilidade pujante, que se estende a todo seu reino, mas que
invariavelmente declina em infertilidade; fato que exige sua renovação. Jung (OC 14/2)
afirma que “a decadência do rei se deriva de sua imperfeição ou de sua doença” (§ 131);
imagem associada ao rei que reina sobre uma terra estéril. O poder do rei consiste no fato da
sua atitude ser capaz de “perceber simbolicamente a oposição contida no ser” (§ 136); ao
contrário, sua doença consiste na incapacidade de considerar o oposto inconsciente. Na
progressão da libido, enquanto “os pares de opostos estão unidos no decorrer coordenado dos
processos psicológicos” (JUNG, OC 8/1, § 61), o poder do rei é atuante e, portanto, há
possibilidade de uma vida criativa no mundo – a fertilidade solar do rei pode se estender
magicamente a todo seu reino. No entanto, tal estado é sempre temporário, e invariavelmente,

39
Análogo ao mitologema do herói e os movimentos da libido discutido com mais profundidade no tópico: "o
ponto de vista energético-finalista no estudo da depressão".
72
o poder do rei minguará conforme o alastramento de sua doença; e sua renovação tornar-se-á
necessária.

“A tendência para a separação maior possível dos opostos [...] é


absolutamente necessária para reestabelecer a consciência clara, pois a
discriminação faz parte da essência dela. Quando, porém, a separação vai tão longe
que se perde de vista o oposto respectivo e já não se enxerga o preto e o branco, o
mal e o bem, o profundo do alto etc., então surge a unilateralidade, que é
compensada pelo inconsciente, sem nossa participação” (JUNG, OC 14/2, § 135).

Embora a progressão da libido dependa de uma relativa separação entre consciência e


inconsciente, só pode ser sustentada enquanto essa separação não for suficiente para
desagregar os pares de opostos; a partir deste momento ocorre o que Jung (OC 8/1) denomina
como represamento da libido. Nesse caso, a consciência não seria mais capaz de levar em
consideração o ponto de vista do inconsciente e ficaria enrijecida na univocidade de sua
própria posição. Mas a univocidade, embora pareça com um estado perfeito e sem
ambiguidade, é incompleta; pois falta a ela tudo aquilo que não considera. Gera um
empobrecimento da vida, pois a relação entre diferentes – a alteridade – é a condição do
surgimento do novo. Por esse motivo, o inconsciente precisa inundar a terra infértil – afogar
o rei – com o lodo capaz de fertilizá-la e garantir que a vida brote deste solo.
“A natureza existente no homem, isto é, o inconsciente, procura
imediatamente compensar tudo o que é muito contrário a esse estado extremo [...].
Não se pode fazer outra coisa se não conceder que esse estado é ideal, mas que
apesar disso é imperfeito, porque expressa apenas em parte o ser vivo: este não quer
ser apenas límpido, mas também turvo; não apenas claro, mas também escuro; quer
mesmo que a todos os dias sucedam as noites, e até que a sabedoria festeje também
seu carnaval [...] Por isso o rei necessita sempre e de novo de uma renovação”
(JUNG, OC 14/2, § 136).

A regressão da libido, em um primeiro momento significa morte do rei, pois é um


movimento que, segundo Jung (OC 8/1), visa alcançar aquele lodo fétido que, no entanto,
guarda novas possibilidades de vida. Por esse motivo, quando plenamente realizada, é capaz
de reestabelecer o poder perdido do rei. Trata-se de um movimento da energia psíquica no
sentido do oposto inconsciente, rejeitado ou não considerado pela consciência no curso do
processo adaptativo, que visa a integração deste à consciência. Este movimento regressivo é
associado à imagem da anima sombria, que assim como a serpente, desce até as profundezas
da terra. "A serpente é a personificação da tendência a entrar nas profundezas e entregar-se ao
sedutor mundo das sombras" (JUNG, 2014B, p. 135); é o movimento de descida ao mundo
dos mortos – o inconsciente – para o confronto com aquilo que foi rejeitado. As núpcias
fúnebres do rei com a rainha antecedem, necessariamente, sua apoteose e novo esplendor.

73
As transformações imagéticas da anima variam de acordo com a atitude do ego em
relação ao outro (inconsciente). Para Jung (OC 12), “a máscara do inconsciente não é rígida,
mas reflete o rosto que voltamos para ele. A hostilidade confere-lhe um aspecto ameaçador, a
benevolência suaviza seus traços” (§ 29). Através desta afirmação, podemos compreender a
ambiguidade da anima, já que essa se apresenta à consciência tanto através de imagens
benevolentes quanto ameaçadoras.

"A anima é a consumação da plena adaptação do homem às coisas


desconhecidas ou parcialmente desconhecidas. Foi muito tardiamente que cheguei à
conclusão de que a anima é a contrapartida da persona, e sempre aparece como uma
mulher de certa qualidade porque ela está em conexão com a sombra específica do
homem" (JUNG, 2014A, p. 70).

Neste ponto, torna-se crucial termos em mente a relação entre ego, persona e sombra,
abordadas anteriormente nesta pesquisa; já que, justamente esta relação, influencia
diretamente a atitude do ego em relação ao inconsciente e, portanto, a constelação das
imagens da anima. É a identificação com a persona e a recusa pela sombra que faz com que as
imagens sombrias da anima sejam consteladas. E é exatamente por esse motivo que a
depressão é caracterizada por imagens da anima sombria; pois, conforme já observado nos
tópicos anteriores deste mesmo capítulo, é a anima sombria aquela que pretende afogar a
consciência do ego para dissolver determinada visão e mundo e de si próprio (melanosis), em
benefício de uma nova atitude que leve a sombra e o inconsciente coletivo em consideração.
Assim sendo, o primeiro grau da coniunctio, a partir da melanosis, é responsável por libertar a
anima de sua contaminação com a sombra e abre caminho para a constelação da anima
enquanto condutora (ponte entre o ego e o inconsciente coletivo); e, finalmente, o terceiro
grau da coniunctio seria aquele capaz de produzir uma nova e definitiva transformação na
imagem da anima – Sophia, o eterno feminino.
“A figura da anima (isto é, o inconsciente personificado) separada da
consciência do eu, portanto inconsciente, significa que a existência de uma camada
isoladora do inconsciente pessoal está intercalada entre o eu e a anima. A existência
de um inconsciente pessoal demonstra que conteúdos de caráter pessoal poderiam de
fato tornar-se conscientes, mas são ilegitimamente mantidos no inconsciente.
Estamos portanto, na presença de uma consciência insuficiente ou inexistente da
sombra. A sombra corresponde a uma personalidade do eu negativo, compreendendo
portanto todas as características cuja existência é desagradável e deplorável. Neste
caso, a sombra e a anima, por serem ambas inconscientes, contaminam-se
mutuamente [...]” (JUNG, OC 12, § 120 [rodapé 120]).

A sombra pessoal, quando pobremente integrada à consciência, se apresenta como


uma espécie de camada isoladora entre o ego e a anima; impedindo que esta última torne-se

74
consciente. Jung afirma que “a anima tem função de mediadora entre a consciência e o
inconsciente coletivo” (JUNG, OC 14/2, § 163 [rodapé 390]), entretanto, enquanto a sombra
se interpuser entre o ego e ela, permanecerá incapaz de ser integrada a consciência e, portanto
de mediar qualquer relação com o inconsciente coletivo. A anima contaminada pela sombra se
caracteriza por um feminino sombrio, que intenta afogar o rei; pois este, dominado por sua
doença – a unilateralidade – distanciou-se de sua própria escuridão e, assim, o indivíduo perde
também a possibilidade de uma vida criativa. Esta imagem sombria da anima, portanto,
intenta trazer o lodo rejeitado da sombra, rico em novas possibilidades de vida, para a
consciência.

Jung (OC 9/2) ressalta "que a integração da sombra, isto é, a tomada de consciência do
inconsciente pessoal constitui a primeira etapa do processo analítico, etapa sem a qual é
impossível qualquer conhecimento da anima e do animus" (JUNG, OC 9/2, § 42). Por esse
motivo, considera que a sombra representa "como que a ponte que leva à figura da anima"
(JUNG, OC 14/1, §125 [rodapé 65]). Daí a importância crucial da fase alquímica da nigredo
ao processo de individuação. A contaminação mútua entre anima e sombra, portanto, é um
fato extremamente importante para o processo analítico; pois influencia diretamente as
imagens consteladas no curso do processo psíquico.

Os conteúdos da sombra, modo geral, são percebidos pelo ego como inapropriados,
indesejados ou desagradáveis. Jung (OC 16/2) afirma que, para o indivíduo, a sombra é
“aquilo que ele não queria ser” (§ 470), ou seja, suas características inferiores que, ele
próprio, não aceita ou repugna – os “traços obscuros do caráter” (JUNG, OC 9/2, § 15).
Entretanto, Jung (OC 16/1) adverte que o lado sombrio pertence à totalidade do indivíduo e é
um dos fatores que nos caracteriza enquanto humanos; sem ele estaríamos privados de nossa
própria humanidade e reduzidos há algo muito menor do que somos de fato; frequentemente
identificados com nosso papel social ou a persona.
“O lado sombrio pertence à minha totalidade, e ao tomar consciência da
minha sombra, consigo lembrar-me de novo de que sou um ser humano como os
demais. Em todo caso, com essa redescoberta da própria totalidade – que a princípio
se faz em silêncio – fica restabelecido o estado anterior, o estado do qual derivou a
neurose, isto é, o complexo isolado. O isolamento pode prolongar-se com o silêncio,
e a reparação dos danos ser apenas parcial. Mas pela confissão lanço-me novamente
nos braços da humanidade, livre do peso do exílio moral” (JUNG, OC 16/1, § 134).

A relação entre ego, persona, sombra e anima é fundamental para compreendermos as


raízes culturais e arquetípicas da singularidade humana; isto é, para uma compreensão que vá

75
além de uma psicologia demasiadamente personalista, cujo foco permanece no núcleo
familiar. Pois tanto a persona quanto a sombra estão intimamente relacionadas ao espírito da
época; já que se constituem a partir da consciência coletiva e da sombra coletiva. Neste
sentido, a família pode ser vista, como uma entidade que encarna o espírito da época;
transmitindo a seus novos membros os complexos culturais nos quais se encontra imersa,
assim como as imagens arquetípicas elaboradas pela cultura ao longo do processo histórico.
Por esse motivo Jung (OC 7/1) considera que "a neurose está intimamente entrelaçada com o
problema do próprio tempo e representa uma tentativa frustrada do indivíduo de resolver
dentro de si um problema universal" (§ 18). O foco, portanto, não recai sobre a família, mas
sim sobre até onde a cultura caminhou na elaboração das imagens arquetípicas e para onde
deve continuar caminhando.

“Jung escreveu que era tarefa difícil distinguir entre psique pessoal e psique
coletiva. Um dos fatores que o indivíduo se defrontava era a persona – nossa
„máscara‟ ou „papel‟. Esta representava o segmento da psique coletiva que era
erroneamente considerada individual” (SHAMDASANI in JUNG, 2012, p. 208).

A persona, portanto, não é uma aquisição pessoal, mas antes, um segmento da psique
coletiva – da consciência coletiva – que, modo geral, agrega aquelas características
consideradas desejáveis pela cultura na constituição de seus membros. Serve como modelos,
mais ou menos prontos, de papéis sociais adequados para situações específicas. Jung (OC 8/2)
considera que na passagem da infância para a vida adulta, estes ideais de eficiência e utilidade
(da consciência coletiva), que constituirão a persona, são como "estrelas que nos guiarão na
aventura da ampliação e consolidação de nossa existência física" (§ 769); auxiliando
decisivamente na constituição de indivíduos bem adaptados a seu tempo.

Entretanto, embora a consciência coletiva nos auxilie, através da persona, "a fixar
nossas raízes neste mundo" (JUNG, OC 8/2, § 769), não seria capaz de "nos guiar no
desenvolvimento da consciência humana” (ibidem). Surge assim o perigo da identificação
com a persona, em que há uma fixação no papel coletivo em detrimento à singularidade.
Enquanto houver identificação com aquilo que o espírito da época considera bom e adequado,
invariavelmente, haverá forte recusa por parte do ego àquilo que é considerado mal e
inadequado. Estes traços considerados inferiores, portanto, privados da luz da consciência,
constituirão a sombra, a camada do inconsciente pessoal que irá se impor entre o ego e a
anima; e que contaminará esta última enquanto não for suficientemente integrada.

76
Para Jung (OC 14/2), enquanto a sombra não for integrada à consciência, a anima
também não poderá ser; e exercerá um papel possessivo sobre o sujeito. "Os sintomas
principais dessa possessão são de uma parte caprichos cegos e confusões compulsivas, e de
outra parte isolamento, frio e sem nenhum relacionamento" (§ 204). Portanto, embora o ego
identificado com a persona considere a dominante da consciência como algo extremamente
positivo, esta, "de modo nenhum, é uma ideia „querida por deus‟, mas sim o mais alto
propósito egoístico de usar uma máscara determinada para representar certo papel e para
aparecer como algo vantajoso" (ibidem). Assim, o ego identificado com a persona, que
outrora encarnava as virtudes coletivas de seu tempo, sob a influência possessiva da anima
sombria, acaba por ser confrontado pela própria sombra; a fim de encontrar no lodo a própria
singularidade.

"A anima que corresponde a esse posicionamento é uma pessoa intrigante,


que seduz sempre mais o eu para representar seu papel, ao passo que no fundo da
cena escava todas aquelas covas, nas quais está destinado a cair aquele que se
enamorar de seu papel” (JUNG, OC 14/2, § 204).

A anima sombria, portanto, possibilita o confronto entre o ego e a sombra, na medida


em que traz à consciência aqueles aspectos obscuros da personalidade; cujo ego preferiria que
não existissem. Esta qualidade da anima, portanto, estabelece um conflito, e possibilita a
função transcendente; que é caracterizada por uma síntese entre a consciência e o
inconsciente, e “torna possível [...] a passagem de uma atitude para outra, sem a perda do
inconsciente” (JUNG, OC 8/2, § 145). O confronto entre o ego e a consciência é um momento
crítico e ao mesmo tempo salutar, que depende de uma atitude ativa por parte do ego. “Trata-
se de uma maneira de libertar-se pelo próprio esforço e encontrar a coragem de ser ele
próprio” (§ 193). Em outras palavras, é preciso suportar o conflito, através da vontade, até que
este produza a própria solução.
"A confrontação entre as posições contrárias gera uma tensão carregada de
energia que produz algo vivo, um terceiro elemento que não é um aborto lógico, [...]
mas um deslocamento a partir da suspensão entre os opostos, e que leva a um outro
nível de ser, a uma nova situação” (JUNG, OC 8/2, § 189).

Na medida em que o ego confronta a sombra e a integra, a anima é como que


exorcizada, para utilizar a expressão de Von Franz (2002); e no lugar de um feminino sombrio
que intenta afogar o rei, emerge um feminino que guia o ego no caminho da individuação – a
anima como guia ou condutora. "Esse posicionamento psíquico mais nobre significa também
elevação da anima [...], ao abandonar a posição de sedutora e ascender à de condutora"

77
(JUNG, OC 14/2, § 205). A passagem dos graus naturais da anima para os graus espirituais,
portanto, é intercalada por um período de "enegrecimento40", caracterizado pelo aumento de
energia dos conteúdos inconscientes negligenciados pela consciência no curso do processo
adaptativo.

A anima sombria, tal qual a serpente, surge como aquela que atrai o mundo sombrio à
consciência. Em analogia ao conceito de regressão da libido, este processo teria como
finalidade a renovação da consciência através da integração dos conteúdos necessários à
continuidade da vida solar da consciência. É como um rito de passagem, em que o ego
autocentrado é enclausurado no mundo noturno, onde deverá concluir as provas iniciáticas
para que finalmente renasça orientado às instâncias transpessoais do inconsciente coletivo.
“A nigredo (negrura) corresponde à escuridão do inconsciente, que encerra
em primeira linha a personalidade inferior ou a sombra. Esta é uma personalidade
feminina, que de certo modo está por trás dela e a domina, isto é, a anima, cuja
representação esclarecedora e característica é a Sulaminta. [...] A Sulamita, a
servidora de Ishtar, significa terra, natureza, fertilidade, tudo o que cresce bem sob a
luz úmida da Lua, também a pretensão natural de nada além da vida” (JUNG, OC
14/2, § 312).

Levando em consideração este estágio de enegrecimento, crucial para a psicologia e


tão familiar à psicopatologia, é importante a observação de Jung (2014B) de que “se
conseguirmos derrubar aquela parede divisória construída pelo consciente pessoal, a sombra
pode ser unida ao eu e o indivíduo se torna um mediador entre dois mundos" (p. 170). Pois
aquilo que estamos aqui considerando como homem espiritual, em contraposição ao homem
natural, é caracterizado por uma relação entre a consciência e o inconsciente coletivo,
mediada pela anima. Neste ponto, "todas estas figuras serão projetadas no mundo externo
consciente e os objetos do inconsciente começam a corresponder a objetos existentes no
mundo exterior" (ibidem), o que significa um influxo de sentido na vida cotidiana; já que o
mundo passa a ser experienciado através da numinosidade do inconsciente coletivo. Isto é,
não mais como algo ordinário, mas com a extraordinariedade que caracteriza a experiência do
sagrado.

“Ela [anima] é desprovida de toda diversidade individual; ela possui a


essência do si-mesmo da humanidade toda, e pelo poder de sua sabedoria produz até
os próprios objetos [imagens]. Essa descrição parece convir muito mais à „anima
mundi‟ do que à „anima vagula‟ pessoal de cada homem” (JUNG, OC 14/1, § 90).

40
Alusão à melanosis da alquimia.
78
A anima enquanto mãe celestial, Maria – terceiro grau da anima –, é aquela que traz o
filho de Deus em seu ventre. "Esta imagem corresponde ao psicologema da anima grávida,
que ocorre com frequência; seu filho corresponde ao si-mesmo, ou respectivamente é
distinguido pelos atributos do filho herói” (JUNG, OC 14,1, § 211). Jung (OC 14/2) considera
a imagem da Lua como intermediária "entre o conceito de mãe-virgem e o de filho, o qual é
redondo, são e perfeitamente provido" (§ 164). A relação entre o redondo e a mãe estaria no
fato de que esta carrega em seu ventre a criança divina. A imagem da criança, na forma de
unidade (redondo), é análoga a "uma síntese da personalidade inconsciente que já se
completou provisoriamente, a qual, na prática, como tudo o que é inconsciente, não significa
mais do que uma possibilidade" (JUNG, OC 9/1, § 280). Isto é, a anima enquanto mãe de
Deus, ou Maria, é ao mesmo tempo arauto e portadora da síntese entre o consciente e o
inconsciente – é quem gesta a totalidade em seu próprio ventre – e traz a possibilidade, ainda
não alcançada, da união entre o homem completo com o unus mundus (terceiro grau da
coniunctio).
“O fato que o redondo, por assim dizer, está de certo modo contido na
anima e que por ela é anunciado, confere a ela aquele significado extraordinário e
fascínio que é próprio do „feminino-eterno‟, tanto no bom sentido como no mau. Em
certa etapa aparece, pois, o feminino como o verdadeiro suporte da totalidade
almejada e, de modo absoluto, de quem deve ser salvo” (JUNG, OC 14/2, § 165).

É, portanto, Sofia – quarto grau da anima –, aquela que emerge de forma concomitante
à apoteose definitiva do rei. Sofia é a própria sapientia; a sabedoria do homem plenamente
realizado enraizado no mundo. "Ela lhe é mãe [do artífice], amada e filha ao mesmo tempo, e
em sua arte e em suas alegorias se desenrola seu próprio drama psíquico, seu processo de
individuação" (JUNG, OC 14/2, § 208). Neste ponto, a sapientia, não se relaciona à anima
pessoal, ou à imagem de mulher no homem, mas ao aspecto feminino de Deus – o Eterno
Feminino. "Ela atua, portanto, de modo transpessoal, isto é, além do indivíduo, e indica a este
último o caminho, como um princípio de ordem" (JUNG, OC 14/3, § 70).

Por esse motivo, Jung (OC 14/2) considera a vivência do Self como uma "derrota do
eu" (§ 433), pois significa que as pretensões egóicas são sobrepujadas por ele. Para o autor
(JUNG, OC 9/2), a personalidade é ampliada, e surge um novo centro de gravidade que não
converge necessariamente com o ego. "Este acontecimento revoluciona a psique orientada ao
eu, colocando ao lado dele ou – melhor – contrapondo a ele outra meta e outro centro”
(JUNG, OC 9/2, § 296); e é a sapientia – a anima mundi – aquela responsável por indicar o

79
caminho a esta nova meta. O Self, enquanto novo centro de gravidade, faz com que o
indivíduo deixe de se orientar unicamente a partir das dominantes coletivas da consciência e
passe a se orientar a partir de sua singularidade mais radical.

Jung (OC 9/2) afirma que, no homem há uma autoridade interna em contraposição à
autoridade externa da consciência coletiva; são impulsos, que devem ser considerados como
"vontade de Deus41", aos quais devemos aprender a conviver corretamente. Caberia ao
homem, portanto, a decisão ética sobre obedecer ou rejeitar tal autoridade. O desenvolvimento
da personalidade, e a consequente ampliação da consciência, traz ao homem um problema
ético que versa sobre manter-se fiel à própria lei. "A fidelidade à sua própria lei significa
confiar nessa lei, perseverar com lealdade e esperar com confiança; enfim, é a mesma atitude
que uma pessoa religiosa deve ter para com Deus" (JUNG, OC 17, § 296). Não se trata, como
se poderia supor, da vontade, nem tão pouco da lei imposta por uma autoridade externa; mas a
própria lei, significa a lei de quem realmente somos – o Self enquanto singularidade radical.

A variação das imagens da anima ao longo do desenvolvimento do homem traz


consigo a questão primordial da relação com o outro – a alteridade. Como pudemos verificar,
as possibilidades de desdobramento da anima em seus quatro graus (mãe, amante, mãe
celestial e sapientia) estão indissociavelmente ligadas a mudanças qualitativas da consciência
através de sua progressiva ampliação. A cada grau de realização do arquétipo, é constelada
certa narrativa arquetípica que atua como fundamento da experiência individual e, portanto,
determina uma certa imagem de mundo em que eu e outro ocupam papéis específicos. Estas
imagens arquetípicas impulsionam o indivíduo através do leito de rio encravado pela
experiência ancestral da humanidade e possibilitam, mas não necessariamente garantem, a
realização do Self.

Embora haja este rio que tende a levar cada indivíduo ao destino arquetípico do
homem; este último constantemente adentra em reentrâncias, se agarra em pedras ou se afoga
tragicamente. Motivo pelo qual Jung (2002) considera que "a individuação é tanto fatalidade
quanto realização" (p. 136). Para o autor, enquanto processo natural, a individuação é uma
tendência que leva a vida a seu próprio destino, mas adquire uma conotação trágica no
homem, na medida em que colide com a consciência. O decisivo, portanto, está na atitude da

41
Jung não considera a palavra Deus, utilizada neste contexto específico, em seu sentido cristão. Mas como um
daimon, um poder que transcende o ego e vem de encontro a este.
80
consciência diante do fluir das vida anímica; é a própria questão da alteridade. Na medida em
que o ego recusa o outro, que ora aparece enquanto imagem do inconsciente, ora projetado no
mundo, abre mão de sua própria integralidade e definha, como o rei doente, na
unilateralidade.

É preciso, pois, sustentar o conflito trazido pela anima sombria através de um ato da
vontade. Suportar e tolerar até que o conflito produza uma solução, tal como uma síntese entre
os opostos. No encontro entre dois, os dois se transformam. A consciência se amplia e a
anima se desdobra em seu próximo grau; revelando que seu aspecto horrendo não se
relacionava a sua própria natureza, mas que esse horror dizia respeito àquilo que era rejeitado
em si próprio. Ao aceitar o outro, portanto, aceita-se a si próprio ou vice e versa. Por esse
motivo Jung considera que o melhor trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é
parar de projetar nossas sombras nos outros. A integração da sombra, possibilitada através da
relação com a anima sombria, tem, portanto, uma tremenda influência na forma como o
indivíduo se relaciona com o mundo.

81
5.0 SUICÍDIO E IDENTIFICAÇÃO COM O COLETIVO

O suicídio é considerado um importante problema de saúde, presente de forma


significativa em todos os continentes do planeta. A Organização Mundial da Saúde (WHO,
2002) define o suicídio como um ato intencional em que um indivíduo atenta contra a própria
vida. Em uma publicação recente, a OMS (WHO, 2014) estima que, todo ano, ocorram
804.000 suicídios em todo o mundo, o que significa uma morte por suicídio a cada quarenta
segundos. E para cada suicídio efetivado, a OMS (idem) estima que são realizadas outras
vinte tentativas malsucedidas. Este número representa uma taxa anual de 11,4 mortes por
suicídio por 100.000 habitantes em todo o globo (15,0 para homens e 8,0 para mulheres).
Embora estes números sejam bastante significativos, a OMS (idem) sugere a possibilidade de
que o número de suicídios seja ainda maior devido a provável subnotificação de casos em
países que não possuem bons sistemas de registros para este tipo de dados.

Uma estimativa da OMS (WHO, 2002) para mortes violentas ocorridas no ano 2000,
em todo o mundo, indica que 31,3% foram causadas por homicídios, 18,6% por guerras e
49,1% por suicídios. Assim sendo, o suicídio ocupa o topo do ranking mundial em se tratando
de mortes violentas. Ainda de acordo com a OMS (WHO, 2014), em todo o mundo, o suicídio
representa 50% do total de mortes violentas para homens e 71% para mulheres. Embora haja
diferenças significativas na proporção de mortes por suicídio entre homens e mulheres em
diferentes países, é invariável o fato de que há mais suicídios entre homens do que entre
mulheres em todas as regiões do planeta; e dentre indivíduos na faixa etária de quinze a vinte
e nove anos, o suicídio representa a segunda maior causa de morte em todo o mundo.

O termo suicídio é derivado do latim sui (de si, si mesmo) e caedere (golpear, matar),
literalmente matar a si próprio. Trata-se, portanto, de um termo bastante genérico que poderia,
do ponto de vista etimológico, ser empregado para designar toda e qualquer situação que
envolvesse o ato de tirar a própria vida. Entretanto, o ato suicida é uma questão complexa que
não deve ser tratada de forma tão generalista. Muitos são os contextos socioculturais,
religiosos, situacionais e psicológicos que podem levar uma pessoa a tirar a própria vida; em
cada um deles poderíamos observar diferenças profundas naquilo que é designado
genericamente como suicídio. Neste trabalho, não pretendemos desenvolver uma pesquisa

82
ampla sobre a questão do suicídio, mas somente tecer algumas considerações acerca da
emergência das ideações suicidas nos indivíduos depressivos.

Embora os estudos epidemiológicos sejam de fundamental importância para que


pensemos sobre esta questão, são incapazes de levar em consideração a subjetividade. Jung
(OC 18/1) disse, certa vez, que quando a estatística entra pela porta do consultório, a alma sai
pela janela. No entanto, não se trata de desconsiderar a epidemiologia. Estudos estatísticos de
fatores de risco ao suicídio podem identificar importantes questões e são fundamentais para
elaborações de políticas públicas, por exemplo. Mas, segundo Hillman (2011B), a partir da
perspectiva da alma, promover vida não pode se restringir à manutenção da vida biológica,
mas sim à promoção de uma vida viva, uma vida com significado. Assim sendo, evitar mortes
não é necessariamente uma forma de promover vida; a não ser que reduzamos a vida
exclusivamente à fisiologia do corpo.

O mundo contemporâneo, de modo geral, desconsidera a realidade da alma.


Decretamos sua irrealidade como se o coração pudesse não sentir aquilo que os olhos se
recusam a ver. Mas a alma insiste em se mostrar real e permanece impondo a necessidade de
que lhe paguemos seus tributos com sangue e sacrifício. Todos aqueles deuses que
consideramos atualmente como superstições infantis, despojados de suas imagens, emergem
com uma nova terminologia: doenças mentais.
“Congratulamo-nos por haver atingindo um tal grau de clareza, deixando
para trás todos esses deuses fantasmagóricos. Abandonamos, no entanto, apenas os
aspectos verbais, não os fatos psíquicos responsáveis pelo nascimento dos deuses.
Ainda estamos possuídos pelos conteúdos psíquicos autônomos, como se estes
fossem deuses. Atualmente eles são chamados: fobias, compulsões, e assim por
diante; numa palavra, sintomas neuróticos. Os deuses tornaram-se doenças” (JUNG
& WILHELM, 2007, p. 50).

Entretanto, no que diz respeito à caminhada humana, o decisivo não parece se


relacionar ao nome que damos a estes conteúdos anímicos, mas a como nos relacionamos com
eles. Pois, independente do nome que dermos, podemos nos relacionar com eles de forma
literal, projetando eles no mundo e atuando seu destino arquetípico de forma completamente
inconsciente. Este parece ser o caso dos mártires que tiram a própria vida em benefício de um
deus ou uma causa coletiva; o tipo de morte autoinfligida que aqui estamos classificando
como sacrifício em oposição ao suicídio.

83
Um homem-bomba, por exemplo, está tão fascinado pela imagem arquetípica do
salvador cuja renovação do estado original do mundo depende do próprio sacrifício, que não
tem outra escolha a não ser atuar inconscientemente este destino arquetípico. Isto é, a
constelação do mitologema do herói, mais especificamente do mitema do sacrifício, e a
fascinação da consciência ocasionada por essas imagens anímicas, projetam no mundo seu
enredo e levam o indivíduo a atuar o destino arquétipo do herói de forma totalmente
inconsciente. Neste caso, a constelação do mitema do sacrifício organiza a experiência
individual em suas próprias bases arquetípicas; de modo que a morte é percebida como um
dever inevitável do indivíduo diante da salvação do mundo e oferecida a algo maior do que
ele (um deus ou uma ideologia, por exemplo). Trata-se de uma morte com sentido ou pelo
sentido; diferente da morte do suicida, pelo desespero ou a desesperança da falta sentido.

Naquilo que estamos considerando como suicídio, há igualmente uma exigência de


morte sobre o eu por parte da individuação. Entretanto, o mitema do sacrifício não chega a ser
constelado na consciência. Paradoxalmente, seria justamente a constelação deste mitema e o
estabelecimento de uma relação dialética com o inconsciente, que poderiam prevenir o
suicídio concreto. É como se Abraão fosse ordenado por deus para que sacrificasse o próprio
filho sem que tivesse nenhuma relação com deus. Desta forma, seu espírito seria incapaz de se
imantar de confiança e estaria completamente indisposto a aceitar tal sofrimento; pois
sacrificar o filho não teria nenhum significado especial. Mas quando o mitema do sacrifício é
constelado, pode-se aceitar voluntariamente caminhar em direção ao sofrimento causado por
abrir mão de algo extremamente precioso, pois a situação é envolta por um sentido
proveniente de algo maior do que o eu. Trata-se de uma experiência numinosa que confere
sentido à caminhada individual.

No entanto, esta experiência parece não acontecer entre as pessoas que se suicidam.
Há uma exigência interior por uma morte, mas o indivíduo é incapaz de sacrificar quem ele
pensa ser; quer dizer, sua identificação com a persona. Termos em mente o conceito de
persona é importante neste caso, pois a morte exigida pela individuação equivale a uma
transgressão ao coletivo em benefício do indivíduo. Analogamente, assim como Abraão
precisava sacrificar sua descendência, isto é, o imperativo social masculino de seu contexto
cultural; o indivíduo precisa sacrificar o valor que o mundo lhe atribui por ser aquilo que o
coletivo exige dele.

84
Em linhas gerais, é possível observar que em adultos e idosos, há uma estreita relação
entre o suicídio e a inadequação individual às normas coletivas. Cavalcante & Minayo (2012),
em uma pesquisa sobre autópsias psicológicas e psicossociais de idosos no Brasil, observaram
que:
“Chama atenção como a dor e sofrimento físico desempenham papel
importante na fragilização do idoso e no desencadeamento suicídio, associada ao
agravamento de transtornos físicos. Ressalta-se, também, o papel da depressão
interagindo com outras variáveis. Ela aparece ora como coadjuvante de
complicações físicas e mentais, ora como principal causa quando associada a perdas,
quedas abruptas na vida socioeconômica, aposentadoria, endividamento ou
processos existenciais de tristeza e melancolia” (CAVALCANTE & MINAYO,
2012, p. 1953).

Através desta observação, é possível perceber que a perda de um antigo lugar na


sociedade é um importante fator de risco ao suicídio. Tanto as limitações físicas, quanto a
aposentadoria e a queda de nível socioeconômico significam que o indivíduo perdeu o lugar
que tinha, não somente na comunidade; mas principalmente perdeu a própria identidade de
alguém capaz de encarnar os valores coletivos.

Neste contexto, chama atenção o fato de que o principal fator de risco ao suicídio
analisado pela pesquisa esteja relacionado ao isolamento social, tanto entre mulheres quanto
homens. A consideração sobre este fator de risco é importante, dado sua relevância e
prevalência. É preciso que tentemos compreender o isolamento social em seus aspectos
subjetivos, para que não tiremos a conclusão precipitada de que a simples presença de pessoas
pudesse ajudar a amenizar este fator de risco. Pois, é possível que o indivíduo permaneça
isolado apesar dos esforços da família e da comunidade; pois o isolamento, antes de ser um
comportamento visível, é um estado de espírito subjetivo. Trata-se de um estado de
fechamento ao outro, que pode estar profundamente influenciado pelo modo como ele se
percebe, e pela perda de valor a ele atribuído pelo coletivo. A identificação da consciência
com a persona faz com que o próprio ego acredite que aqueles valores coletivos são o ideal de
pessoa que ele próprio deveria ser. Com a dissolução da identificação da persona há
consequente perda de valor social; o indivíduo pode fechar-se ao coletivo por ele mesmo se
perceber como alguém que não tem valor. Assim sendo, caminhar para um estado de abertura
social que rompa o isolamento pode estar relacionado diretamente à necessidade de que o
indivíduo sacrifique os valores coletivos e descubra seu valor individual.

85
Na pesquisa de Cavalcante & Minayo (2012), o segundo principal fator de risco ao
suicídio entre homens idosos diz respeito à invalidez, interrupção do trabalho e limitação da
capacidade funcional, seguido por tentativas anteriores de suicídio ou outros suicídios na
família, e finalmente a abusos físicos, verbais e desqualificações familiares. Em mulheres, o
segundo principal fator de risco relaciona-se às tentativas anteriores de suicídio e outros
suicídios na família, seguido de doenças incapacitantes e finalmente ao impacto provocado
por mortes ou doenças na família. Fica evidente a relevância da perda do lugar social
associado à maioria dos fatores de risco ao suicídio entre idosos observados no estudo. A
perda de produtividade e capacidade funcional entre os homens é um grave desvio das normas
coletivas atribuídas ao homem pela cultura patriarcal; assim como a perda de familiares tira
das mulheres o lugar doméstico a elas imposto pelo coletivo.

Tendo isso em vista, em termos psicológicos, consideramos que, dentre os adultos, o


principal fator de risco associado ao suicídio está relacionado a uma dissolução abruta da
persona e a dificuldade do sacrifício dos valores coletivos em favor da individualidade. Trata-
se de um fracasso, imposto pela vida, de nossa aspiração de superioridade moral. Um fracasso
salutar do ponto de vista da caminhada humana. Cedo ou tarde chega o momento em que a
vida exige que sacrifiquemos nossa própria identidade, ou melhor, nossa identificação com a
persona, para que a individualidade tome seu lugar no palco da vida. A dificuldade em ir
adiante, frente a este chamado, retira a vida do viver – vida sem alma – e nos coloca diante do
problema do sacrifício e da morte; e em casos extremos, isto tragicamente significa suicídio.

5.2 PREVENÇÃO AO SUICÍDIO

A prevenção ao suicídio é um tema pouco problematizado atualmente, pois esbarra em


uma questão tabu do mundo ocidental – a morte. De um modo geral, a questão sobre a
necessidade da prevenção ao suicido é respondida praticamente em consenso com um “sim”.
A vida deveria ser preservada a qualquer custo. Tal afirmação, segundo Hillman (2011B),
revela um medo profundo que nossa cultura tem do destino inevitável de tudo que é vivo.
Entretanto, não se pode considerar tal afirmação como se fosse uma posição ética, já que esta

86
posição não permite reflexão mais profunda, por estar fundamentada em um preceito moral
que se pretende inquestionável; de que a morte deva ser evitada a qualquer custo.

Assim sendo, as discussões sobre o direito à própria morte iniciam-se em tribunais ou


a partir de manchetes policiais, seja através de pedidos judiciais para que equipamentos
médicos que prolongam a vida sejam desligados ou prisões de pessoas que ajudaram
procedimentos de suicídio assistido de forma ilegal. Entretanto, tais discussões parecem
pouco penetrar no ambiente acadêmico da área da saúde, cuja circulação poderia levar a uma
discussão ética mais profunda; mas que ao mesmo tempo ameaçaria as próprias bases da ideia
contemporânea de saúde, cujo lema principal parece ser salvar vidas.

As discussões de Hillman sobre o suicídio em seu livro Suicídio e alma são de uma
coragem ímpar, por questionar aquilo que é considerado como certo, sem permitir
questionamentos. A posição do autor frente ao suicido e à morte difere radicalmente daquela
preconizada pela medicina e pelo senso comum, pois aborda a interioridade como principal
referencial para se pensar a questão. Há, portanto, uma inversão sobre as considerações sobre
a morte realizadas comumente, que somente levam em conta seu aspecto exterior (o corpo),
para que se leve em conta as imagens da morte, isto é, a alma.

Ao fazer isso, o autor, tece observações valiosas não somente para o psicoterapeuta
que lida com o problema do suicido em seu cotidiano e que, portanto, pode facilmente ser
capturado pela ideia de que a vida deva ser preservada a qualquer custo; mesmo que isso
signifique a perda da alma (algo impensável ao psicoterapeuta); mas contribui para um debate
mais profundo sobre a morte e o morrer no mundo contemporâneo. As reflexões de Hillman
apontam o suicido como questão que revela a pobreza da educação anímica no mundo
ocidental contemporâneo; questão tentas vezes denunciada por Jung e que se imporia como
estanque ao processo natural de ampliação da consciência do homem, denominado como
processo de individuação.

Hillman considera que toda e qualquer forma de prevenção exterior ao suicídio, como
internação hospitalar, proteção e vigilância, privilegiariam o corpo em detrimento da alma.
Pois se tratam de medidas preventivas que em nada auxiliariam na extração de significado a
partir das próprias feridas e, portanto, manteriam o indivíduo exatamente no mesmo lugar.
Quer dizer, tal medida poderia agravar a crise suicida, pois “a resistência apenas torna o
impulso mais arrebatador e a morte concreta mais fascinante” (HILLMAN, 2011B, p. 100). O
87
tratamento médico tradicional protegeria o paciente em momentos críticos e paralelamente
prescreveria medicamentos objetivando a extinção do sintoma, ou melhor, do sofrimento.
Seguindo este raciocínio, o autor, tece importantes críticas ao modelo de saúde fundamentado
no saber médico, que lutaria contra a morte e se esqueceria da alma; um problema não
somente da medicina, mas uma questão importante da contemporaneidade, no qual ela está
inserida.

Embora consideremos as observações de Hillman (2011B) sobre o suicídio como


extremamente valiosas para o psicoterapeuta, não somente de orientação junguiana, mas das
diversas escolas psicológicas que levam em consideração o inconsciente; não posso deixar de
observar que sustentar a postura analítica, proposta pelo autor, a qualquer custo, diante do
paciente potencialmente suicida me parece de uma passividade perigosa não somente diante
da vida deste último, mas do processo terapêutico e da própria alma. Esta afirmação, em si
mesma, talvez pudesse revelar exatamente o ponto de vista, criticado por Hillman, que
privilegia o corpo em detrimento da alma e que tenta prolongar a vida do corpo a todo custo,
mesmo que isto implique uma vida sem a alma. Entretanto, considero que, pelo contrário,
suspender a postura analítica temporariamente, visando a prevenção, embora envolva riscos
ao processo terapêutico (que devem ser cuidadosamente levados em consideração), pode
constituir um ato importante no sentido de possibilitar a experiência da morte simbólica sem a
qual nenhuma transformação seria possível, conforme o próprio Hillman defende.

Hillman tece críticas importantes sobre a vinculação entre a ideia de prevenção ao


suicídio e abordagens que privilegiam exclusivamente o exterior em detrimento do interior.
Segundo o autor:
“Quando olhamos para a natureza, este ponto de vista [das ciências naturais]
parece correto. A morte mostra decomposição e repouso. O mundo vegetal queda-se
no silêncio depois do amadurecimento e da produção da semente. A morte completa
um ciclo. Qualquer morte anterior ao ciclo é obviamente prematura. Quando se
chama o suicídio de „antinatural‟, isso significa que o suicídio vai contra o ciclo
vegetal da natureza que o ser humano também partilha. [...] Todos os julgamentos
sobre processos vitais não humanos são feitos a partir do exterior, de modo que
devemos fazer um esforço enérgico para nos afastarmos das metáforas das ciências
naturais. Elas jamais serão completamente válidas para a vida humana e para a
morte, que adquirem sentido somente pelo fato de terem um lado interior”
(HILLMAN, 2011B, p. 69).

A abordagem de Hillman conduz o psicoterapeuta à alma em sua radicalidade;


condição sine qua non da análise do inconsciente e atitude cujo resgate torna-se fundamental
em uma cultura que considera a alma como um “nada mais do que”. A depreciação da alma,
88
ou melhor, nossa má formação anímica, constitui um problema contemporâneo da maior
importância que, segundo Jung (OC 12), nos manteria aprisionados em uma forma de
mentalidade superficial, impedindo-nos de atingir as profundezas a fim de caminharmos no
sentido de nossa própria totalidade. Isto é, desconsiderar a realidade anímica, o mundo das
imagens do inconsciente, estancaria o processo de desenvolvimento da personalidade; e isso
não aconteceria sem custos ao indivíduo, pois a individuação continuaria se impondo como
uma exigência irresistível; no caminho da morte inevitável.

Apesar do ponto de vista de Hillman apontar exatamente para este sentido e ter o
cuidado para que o suicídio não seja julgado precipitadamente por um ponto de vista que se
fundamente na rejeição da realidade da alma, pensar abordagens preventivas além das
propostas pelo autor em seu livro “Suicídio e Alma” não se relaciona necessariamente à
perspectiva na qual o suicídio seria considerado como antinatural ou que deveria ser impedido
a qualquer custo por violar um suposto ciclo apreendido através de observações do mundo
exterior, seja através das ciências naturais, da sociologia, do direito ou da teologia. Ao invés
disso, é a partir do próprio substrato anímico que podemos supor que atos não analíticos
podem estar a favor do processo analítico em pessoas com ideações suicidas.

Assim sendo, considero que a suspensão temporária da postura analítica por parte do
psicoterapeuta é justificada como medida preventiva em casos particulares. E isso significa
lançar mão do processo analítico para uma atitude concreta no mundo exterior. No entanto,
este ato por parte do psicoterapeuta não é necessariamente idêntico ao do profissional de
saúde ou leigo que não leva em consideração a interioridade. Não se trata de considerar que a
vida deva ser mantida a qualquer custo, e que isto justificaria uma suspensão temporária da
postura analítica a favor do corpo (vida sem alma); pelo contrário, trata-se de um ato a favor
da manutenção da tensão geradora do conflito, que produz as imagens através das quais o
indivíduo tem a possibilidade de resgatar sua alma.

Para Hillman, no entanto, qualquer ato preventivo ao suicídio que não seja através da
postura analítica, isto é, que não atue levando em consideração exclusivamente a
interioridade, seria classificado automaticamente no outro oposto; isto é, como um ato
exterior que ignora a alma. Entretanto, uma postura preventiva exterior não atuaria
necessariamente em detrimento da interioridade, ou a favor de uma vida sem alma. Pelo
contrário, eventualmente esta pode ser a única postura possível a favor da alma em momentos

89
críticos, que embora suspenda a problemática da subjetividade de forma imediata, atuaria para
garantir a continuidade do processo terapêutico. A prevenção exterior, portanto, não pode ser
considerada como um ato analítico, no entanto, é um ato a favor da análise (e não da vida) se
levado a cabo dentro do processo analítico; já que intenta sustentar o conflito – a tensão – do
qual é feita a própria análise. Sobre a postura da medicina em relação à alma, recorro ao
próprio Hillman.

“De todas essas derivações linguísticas, a mudança de significado que sofreu a


palavra “patologia” é das mais reveladoras. Literalmente, patologia significa o logos
do pathos, cuja melhor tradução talvez seja estudo do sofrimento. A raiz indo-
germânica de pathos é spa, que se encontra na palavra alemã moderna spannen,
spannung = prolongado, estriado, como a tensão de uma corda de arco. Da mesma
raiz vem “paciente” e “paciência”. Ambos têm grande capacidade de suportar e,
como diziam os alquimistas, “em sua paciência está sua alma”. A erradicação da
patologia no sentido moderno de acabar com a doença, quando aplicada à psique,
significa igualmente acabar com a tensão e com o sofrimento, com a paciência para
suportar e, no final das contas, com a alma” (HILLMAN, 2011B, p. 131-132).

Adotar medidas de prevenção ao suicido não analíticas, quando expressamente


necessárias, não deve, portanto, ser equiparado à postura médica que tem a morte como arqui-
inimiga e que tenta evitá-la a todo custo; numa batalha que já se inicia perdida. Em um
contexto exclusivamente psiquiátrico isto seria verdade, pois a prevenção da vida a qualquer
custo se daria independente de um movimento terapêutico de resgate da alma. Entretanto, no
contexto psicoterapêutico, a prevenção exterior constitui uma postura que objetiva exatamente
o contrário das melhores pretensões médicas, isto é, a manutenção da tensão e do sofrimento
sobre os quais psicoterapeuta e paciente devem se debruçar com paciência. Isto é, tal postura
por parte do psicoterapeuta intenta sustentar aquilo que o médico insiste, com a melhor das
intenções, em silenciar – o mundo das imagens.

90
6.0 CONCLUSÃO

As considerações sobre a depressão a partir da teoria junguiana realizadas na presente


pesquisa nos permitem tê-la enquanto algo que integra um todo maior; quer dizer, não se pode
considerar a depressão sem que se observe tanto os aspectos psicodinâmicos e arquetípicos
que a caracterizam, quanto o indivíduo e a cultura. As articulações acerca dos aspectos
psicodinâmicos da depressão permitiram classificar três principais tipos de depressão
psicogênicas; todas integrando um único o mesmo processo que inclui o indivíduo e o mundo.
Entretanto, as três classificações aqui propostas (depressão normal, neurótica e psicótica) se
diferenciam basicamente através do grau da regressão energética por um lado e da integridade
do ego por outro. Como se fosse um gradiente em que conforme a regressão energética
aumentasse, a integridade do ego pudesse estar mais ameaçada caso o conteúdo inconsciente
não pudesse ser integrado à consciência. Esta classificação é fundamental para pensarmos o
prognóstico e o manejo clínico com pacientes em depressão.

Desta forma, é possível entender que não há algo como depressão dada genericamente,
mas há o indivíduo deprimido no mundo. Cada situação deve ser avaliada individualmente
para que compreendamos o que se trata em cada caso. Considero que esta avaliação é de
fundamental importância para a clínica junguiana, e que as discussões sobre os aspectos
psicodinâmicos das depressões psicogênicas, realizadas nesta pesquisa, fornecem alguns
parâmetros objetivos que podem auxiliar o psicoterapeuta neste sentido. Cabe a este, estar
advertido de que o manejo clínico exigido para um caso de depressão pode ser bastante
distinto de outro. Do mesmo modo, não se deveria considerar que por ser vista em analogia à
nigredo alquímica e, portanto, a uma fase do processo de individuação, a depressão teria
invariavelmente uma possibilidade de cura através da ampliação da consciência. A psicologia
analítica não é uma ferramenta infalível, nem tão pouco, a individuação é uma panaceia para
toda e qualquer situação.

Ao contrário, a psicologia analítica não pretende a cura ou intenta produzir


individuação em todos os casos; mas se apresenta enquanto corpo teórico capaz de fornecer
parâmetros para que compreendamos situações distintas e elaboremos diferentes ferramentas
terapêuticas com objetivos específicos de acordo com as particularidades de cada caso.
Considero estas observações de fundamental importância, visto que boa parte da bibliografia
de autores junguianos em relação à depressão privilegiam sua potencialidade em produzir

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uma transformação individual; o que poderia levar o psicoterapeuta a considerá-la
genericamente desta forma. Embora esta advertência seja importante aos psicoterapeutas e
vise preveni-los de uma ingenuidade clínica, concordamos com o fato, já exposto por Jung, de
que a depressão pode se apresentar enquanto caminho necessário à individuação. É preciso,
entretanto, avaliar cada caso a partir de suas próprias particularidades.

Abordei a depressão na segunda metade da vida por se tratar de uma situação não tão
incomum. Nesse sentido, a analogia com a fase alquímica da nigredo se torna importante, pois
possibilita um entendimento geral do fenômeno; isto é, seus aspectos típicos. A identificação
com a persona e a recusa pela sombra, nesta fase da vida, costuma forçar a libido em seu
movimento regressivo para desfazer a imagem equivocada que a pessoa faz de si mesma e do
mundo, integre sua sombra e realize quem de fato é. Este é o caso específico em que a
individuação surge enquanto possibilidade de saída da depressão, através da ampliação da
consciência. As imagens da anima tornam-se sombrias enquanto houver grande quantidade de
conteúdos pessoais a serem integrados pela consciência; forçando o movimento regressivo da
libido e o rebaixamento da consciência característicos dos episódios depressivos.

Entretanto, a integração do inconsciente pessoal livra a anima de sua contaminação


sombria e possibilita a emergência de imagens da anima enquanto condutora; funcionando
enquanto ponte entre a consciência e o inconsciente coletivo. O processo de individuação a
partir da nigredo é discutido por Jung através de três graus da coniunctio. O primeiro,
caracterizado pela integração da sombra (inconsciente pessoal), é exatamente a etapa que
exorciza a anima dos aspectos sombrios que a contaminavam e, por esse motivo, antecede a
reunião da alma com o espírito. O segundo grau da coniunctio, diz respeito à realização do
Self e o estabelecimento de uma atitude que sustenta a singularidade na relação do indivíduo
com o mundo. Para finalmente no terceiro grau da coniunctio, o indivíduo tomar sua
participação no processo de elaboração histórica das imagens arquetípicas na cultura de forma
consciente.

Ficou claro que a depressão é um fenômeno complexo, atravessado por múltiplos


vetores. O crescimento vertiginoso dos casos de depressão pode ser adequadamente
considerado a partir de uma perspectiva cultural, visto que a depressão confronta a
consciência coletiva com aquilo que esta rejeita. Entretanto, este movimento coletivo de
transformação das imagens arquetípicas acontece através da experiência individual. De modo
que, o indivíduo é convocado a dar uma resposta pessoal ao problema de sua época. Em tese,

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a individuação poderia se apresentar genericamente enquanto possibilidade de cura da
depressão e de transformação individual e coletiva; entretanto, ao consideramos os aspectos
psicodinâmicos da depressão, observamos que a integridade egóica do indivíduo pode sofrer
variações que impossibilitam a individuação no sentido clássico; fato observado
empiricamente. De modo que, se torna necessário um olhar clínico mais apurado para que
possamos compreender cada caso de depressão individualmente e, determinar as
possibilidades e os objetivos das intervenções terapêuticas.

93
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