Depressão e o Processo de Individuação
Depressão e o Processo de Individuação
Depressão e o Processo de Individuação
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM
PSICOLOGIA
DISSERTAÇÃO
2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM
PSICOLOGIA
Seropédica, RJ
Setembro de 2017
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Biblioteca Central / Seção de Processamento Técnico
This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
DISSERTAÇÃO APROVADA EM / /
Meus agradecimentos não poderiam se resumir àqueles que de alguma forma tiveram
influência direta na elaboração deste trabalho, mas a todos que tiveram importância na minha
caminhada até este ponto da minha vida. Minha memória seria incapaz de resgatar todos eles;
embora, estejam em algum lugar de meu ser. Suas sementes fizeram nascer algo em mim, que
guardo comigo com gratidão.
Um agradecimento especial deve ser feito ao Professor Dr. Nilton Sousa da Silva, que
orientou este trabalho. Minha vivência com o Prof. Nilton teve importância não somente para
a elaboração deste trabalho, mas fez com que eu lidasse com questões mais profundas. Todo o
processo do mestrado, suas vicissitudes e alegrias, e a relação com o professor foram
importantes em meu amadurecimento enquanto pessoa.
Alguém que não poderia deixar de expressar minha gratidão é o Professor Dr. Maddi
Damião Junior. Uma pessoa que tem grande importância na minha vida. Desde as aulas na
graduação em psicologia, na especialização em teoria e prática junguiana, assim como a
relação com o professor; vem semeando em mim algo da riqueza que ele traz em si. E estas
sementes fazem nascer algo que vai muito além do conhecimento acadêmico, mas que tem
importância fundamental no meu desenvolvimento espiritual.
À minha família, deixo meu mais profundo agradecimento. São como a terra de onde
brotei. Minha gratidão por minha mãe, Rosana, meu pai, Luís e minha irmã, Daniella, é
enorme. Sou grato a todos os momentos, a todos os tropeços que cometemos e ao amor que
compartilhamos; todo isso foi, e continua sendo, fundamental para minha vida. A meu filho
João, aquele que me ensina o significado mais profundo do que é amar, minha eterna gratidão
por tudo que me ensina e me faz transformar.
Finalmente agradeço a esse mistério sem nome que sopra em mim o caminho que
preciso seguir; impulsiona-me para sempre além daquilo que acredito me definir. Para um
lugar sempre mais amplo. Me aprisiona e me liberta numa eterna dança de descobrimento de
mim e do outro; me ensina o que é o viver. Que eu possa ser sempre capaz de escutar essa
sabedoria; e que quando meus ouvidos estiveram fechados, que me lembre de olhar para essa
estrela que está sempre lá pra me guiar.
RESUMO
LOPES, Luís Paulo Brabo. Depression and the individuation process: psychodynamic,
personal, collective and archetypal aspects of psychogenic depression. 2017. 107p.
Dissertation (master in psychology). Department of Psychology, Federal University Rural of
Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2017.
This work aims to build an understanding about the meaning and purpose of depression in
contemporary man; considering that the man must be understood in its context, that is to say,
taking into account its psychological aspects, its history of life and the culture in which it is
inserted. For this, we carry out a theoretical research, with a qualitative basis, based on the
constructive hermeneutic method and the Jungian theory. Through a bibliographical research
and theoretical articulations, we performed a conceptualization of depression based on
classical jungian theory and categorized three main types of depression: normal, neurotic and
psychotic. However, such considerations would be insufficient for an adequate
conceptualization of depression, and therefore a discussion about its collective, that is,
sociocultural aspects, became necessary for further study. The discussions about the cure of
depression performed in this study were necessary to provide certain clinical goals that can
help the psychotherapist in their practice. We chose to study depression in the second half of
life and its relation to the individuation process, and for this we discuss the relationship
between consciousness and the unconscious in this period of life. The relationship between
ego, persona, shadow and anima, are central focus of this work. The images of alchemy –
starting from the alchemical phase of the nigredo – were fundamental to amplify the
depression and to construct a more detailed understanding. We think it necessary to add a
discussion about the problem of suicide in depression, due to the great impact and importance
of this issue. The observations on this subject attempt to broaden the debate and provide
parameters to the psychotherapist who deals with depressive patients with suicidal ideation in
their daily clinical practice.
1
incidência é tão grande que a OMS estima que em 2030 seja a primeira no ranking – será a
doença mais comum em todo o mundo, superando as doenças cardiovasculares (ibidem).
2
pobreza; desvantagem social, como baixo nível educacional; e exposição à violência.
Considero que estes dados epidemiológicos, por si só, se apresentam enquanto informação
suficiente para que levemos seriamente em consideração tanto os aspectos sociais quanto os
psicológicos envolvidos na depressão.
3
descritos por Jung em analogia aos mitos de heróis, mostrou-se como ferramenta teórica
valiosa, utilizada ao longo de todo o trabalho. Graças ao qual, foi possível sugerir três
categorias distintas dentre as depressões psicogênicas: normal, neurótica e psicótica.
Nossa discussão finalmente nos levou à necessidade de uma discussão mais detalhada
sobre a cura da depressão; título do subcapítulo 3.4. Pois, modo geral, a literatura junguiana
sobre a depressão, tende a considerá-la como um fenômeno demasiadamente genérico, que
poderia levar os leitores à conclusão equivocada de que os caminhos terapêuticos mais
comentados pudessem ser extrapolados para todo e qualquer indivíduo deprimido. Nesse
sentido, as observações sobre os aspectos psicodinâmicos da depressão psicogênica trouxeram
alguns parâmetros objetivos para pensarmos, tanto o prognóstico, quanto o manejo clínico nos
diferentes tipos de depressão discutidos nesta pesquisa.
4
singularidade), por considerar um ponto central para o entendimento da depressão na segunda
metade da vida.
5
2.0 METODOLOGIA E FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
“Um símbolo emergente no Self Cultural nunca é realmente novo, pois suas
raízes, explicita ou implicitamente, se originam na história da cultura na qual ele
emerge. Nesse sentido, os grandes descobridores de novos fatos não são as raízes,
mas sim, os frutos da árvore cultural que se enraíza no passado longínquo. Esses
frutos funcionam como símbolos estruturantes do Self Cultural e, depois de
recebidos pela Consciência Coletiva, necessitam o cultivo do solo para poderem
funcionar como sementes de novas árvores. É que todo novo símbolo nasce sempre
indiscriminado e necessita ser elaborado pelo trabalho da Consciência Coletiva
através das gerações” (BYINGTON, 1984, p. 4).
6
Tal olhar ancora-se nas bases ontológicas do paradigma junguiano, pois "a noção de
totalidade – unidade e diversidade – é o fundamento básico dessa perspectiva, e permeia a
visão de mundo e de ser" (PENNA, 2014, p. 74) do pensamento junguiano. A partir da ideia
do unus mundus1, considera-se a multiplicidade enquanto aspecto intimamente relacionado à
totalidade através de relações causais e acausais. Segundo Penna (2014), este pressuposto
ontológico, implica em um pressuposto epistemológico específico, a saber: "a noção de
totalidade dinâmica consiste numa cosmovisão que não se limita à explicação de causas, mas
inclui as relações de significado na compreensão da psique" (p. 74). Estes pressupostos,
portanto, tem influência determinante sobre a metodologia, pois constituem a base a partir de
onde se observa o fenômeno. A própria elaboração da questão na raiz da presente pesquisa
parte de tais pressupostos, que também orientam a um caminho específico na construção de
uma resposta.
Pretendo, menos investigar possíveis causas da depressão, mas, antes, construir uma
compreensão acerca do fenômeno, partindo do pressuposto de que há uma indissociabilidade
entre indivíduo e mundo, para finalmente considerar o significado e a finalidade da depressão;
não somente no que diz respeito ao indivíduo e sua história de vida, ou para a cultura de
forma isolada. Mas, para integrar indivíduo e mundo; pois, ambos participam de um mesmo
processo fundamental de transformação no tempo, assentado em um substrato arquetípico
comum. Para tal, faz-se necessário observar a depressão em seus aspectos psicodinâmicos
(consciente e inconsciente), simbólicos e culturais; de forma que estes não permaneçam
enquanto instâncias separadas, mas estejam articulados entre si como elementos distintos, mas
interligados, de um mesmo e único fenômeno global.
"Como campo, a totalidade tem caráter 'todo abrangente', incluindo
consciente e inconsciente, psique e corpo, indivíduo, natureza e cultura. Como
sistema de relações implica uma dinâmica multivetorial de interações e
entrelaçamentos constantes entre todos os elementos que compõem a totalidade,
num processo de diferenciação e integração das partes rumo a uma complexidade
crescente. Esta dinâmica opera tanto no plano individual do ser humano como no
âmbito coletivo da humanidade – cultural e histórico" (PENNA, 2014, p. 75).
Por esse motivo, não considero o homem enquanto mônada fechada ou tábula rasa,
mas enquanto aspecto integrante do mundo, assim como a cultura e a natureza. Este enfoque,
portanto, leva em consideração não somente a história de vida, assim como nas psicologias
1
Jung utiliza a idéia metafísica do unus mundus da filosofia medieval de forma simbólica. Estabelece uma
relação analógica entre o unus mundus e a totalidade indissociável formada por microcosmos e macrocosmos;
entre homem e mundo.
7
demasiadamente personalistas, mas também a história do mundo e o estreito diálogo entre
homem e cultura; que opera um constante movimento de transformação (um processo) entre
ambos, fundamentado nas bases do inconsciente coletivo. É como se o homem não fosse uma
coisa, mas um processo no mundo e com o mundo. A questão da herança é, portanto, de
fundamental importância para compreender o indivíduo através do pensamento junguiano,
pois enquanto processo no mundo, o homem carrega consigo não somente as bases
arquetípicas que o definem enquanto tal, mas também dá continuidade ao processo histórico
de elaboração das imagens arquetípicas na cultura.
"No plano individual, o ser humano é concebido como uma totalidade única
(indivíduo) resultante de um potencial arquetípico que se atualiza num corpo
biológico inserido num ambiente natural e num contexto histórico e social (cultura) -
um microcosmo dentro de um macrocosmo que mantém com o macrocosmo uma
relação dinâmica de mútua interferência" (PENNA, 2014, p. 75).
8
mesmo processo, permitindo um entendimento que leve em consideração não somente e
pessoa e sua história de vida, mas o devir do indivíduo com o mundo.
Seria demasiado extenso propor uma discussão mais aprofundada para delimitarmos o
conceito de processo de individuação2. Para os propósitos aqui descritos, considerarei a
individuação enquanto um processo que obedece um caminho arquetípico no sentido da
realização do Self na consciência; em que o indivíduo sustenta a própria singularidade em sua
relação com o mundo. Penna (2013) afirma que as pesquisas de Jung sobre a alquimia
medieval da Europa o levaram a estabelecer "o processo de individuação como um padrão de
desenvolvimento da personalidade, arquetipicamente orientado, que leva o indivíduo a se
tornar aquilo que ele de fato é" (p. 123). Cabe ressaltar, que este processo não se restringe a
algo como realização pessoal. Pois, conforme discutimos anteriormente, ao considerarmos a
perspectiva do unus mundus, observamos uma indissociabilidade fundamental entre homem e
mundo; de modo que, a individuação se refere a um processo, ao mesmo tempo, de
transformação pessoal e do mundo.
Para Jung (OC 8/1), a psique é um processo orientado para determinada finalidade; o
que traz implicações fundamentais para seu entendimento psicodinâmico, ancorado no
conceito de energia psíquica. O termo construtivo (ou simbólico), utilizado para definir sua
metodologia, diz respeito ao caráter finalístico da energia psíquica; e tem profunda influência
no modo como podemos considerar os conteúdos psicológicos, já que estes não precisariam
ser compreendidos unicamente a partir de suas causas, mas, também, de suas finalidades.
Além disso, a ideia de um inconsciente coletivo enquanto substrato comum para conteúdos
pessoais e coletivos permite a utilização do "método comparativo e hermenêutico como meio
de traduzir e desvendar o sentido universal das manifestações inconscientes" (PENNA, 2013,
p. 104). Assim sendo, o método hermenêutico construtivo, utilizado nesta pesquisa, é uma
consequência direta dos pressupostos ontológicos e epistemológicos do pensamento
junguiano; e nos possibilita avançarmos no sentido da uma pesquisa teórica com base na
psicologia analítica para a construção de uma compreensão sobre o significado e a finalidade
da depressão; nosso objeto de estudo.
2
O conceito de processo de individuação será delimitado e elaborado mais detalhadamente no decorrer da
pesquisa.
9
A DEPRESSÃO E A TEORIA JUNGUIANA
Embora Jung jamais tenha construído algo como uma teoria geral da depressão, é
possível traçar as alusões feitas ao longo de sua obra para tentarmos compreender a maneira
como considerava esta que atualmente é chamada de "mal do século XXI". No que diz
respeito à etiologia, Jung (OC 18/1) considerava a possibilidade de depressões por causas
orgânicas3 ou psicológicas. Quanto a isso, é bastante óbvio que ambas tragam não somente
prognósticos distintos, mas, também, que as intervenções terapêuticas através da psicologia
analítica devam apresentar possibilidades diferentes. Quanto a isto, Jung (OC 7/2) afirma que
é importante diferenciar a depressão psicogênica de uma melancolia genuína. No primeiro
caso, o humor depressivo seria derivado de fantasias ignoradas pelo paciente; enquanto que
no segundo, as fantasias se derivariam do próprio humor deprimido.
Não é possível afirmarmos, com absoluta certeza, que o que Jung chamou de
melancolia genuína refira-se, em todo e qualquer caso, à depressão com etiologia orgânica,
pois não nos deixou explicações mais precisas. Mas, somos levados a crer que sim,
principalmente pelo fato de esta se diferenciar da depressão com etiologia psicológica
(psicogênica); e por ser posta ao lado de aspectos estritamente somáticos como excesso de
trabalho (exaustão) ou envenenamento. Tratar-se-ia, pois, de uma depressão originada no
corpo, e não a partir das imagens anímicas.
3
Sobre o diagnóstico diferencial entre doenças orgânicas e psicológicas através dos sonhos; Jung foi perguntado
(conferências de Tavistock) se um de seus diagnósticos, que apontava para etiologia orgânica, teria sido feito a
partir dos sonhos do paciente. A que respondeu: "Sim, porque o problema orgânico perturbou a função mental.
Houve uma depressão muito séria e presumivelmente uma perturbação profunda do sistema simpático" (JUNG,
OC 18/1, § 302).
10
fisiológicas que não pudessem ser consideradas oriundas de processos psicológicos. Para o
presente estudo, interessa-nos as depressões psicogênicas; e, portanto, ao me referir à
depressão, o farei sempre em alusão a este tipo específico de depressão.
Hollis (2011) considera três tipos de depressão: reativa (ou ambiental), endógena e
intrapsíquica. A depressão reativa ou ambiental "é uma reação perfeitamente normal a uma
perda ou desapontamento" (HOLLIS, 2011, p. 92). Trata-se, portanto, de um processo natural
de luto, que só pode ser considerado patológico "quando perturba profundamente o
funcionamento normal da pessoa ou quando o impacto debilitante da experiência se prolonga
11
além de um período razoável" (ibidem). A depressão endógena, por outro lado é caracterizada
como tendo "uma base desconhecida porém presumivelmente biológica" (p. 93); o que
equivaleria à depressão somatogênica já discutida anteriormente. A depressão intrapsíquica,
finalmente, estaria relacionada a situações ocorridas na infância e cuja regressão tentaria
resgatar na vida adulta. Para o autor, haveria a possibilidade de que mais de uma forma de
depressão ocorresse simultaneamente; o que traria a necessidade da utilização de mais de uma
forma de tratamento.
Esta análise do autor, entretanto, revela certa fragilidade em seu argumento. Supõe que
uma depressão reativa se origine em alguma causa ambiental, como uma causa
exclusivamente externa; sem considerar os recursos psicológicos do indivíduo para lidar com
tal situação. Cabe a pergunta: porque determinado indivíduo deprime e outro não diante do
mesmo fator ambiental? Poderíamos tentar compreender essa situação através dos
movimentos da libido4 proposto por Jung; pois, uma regressão energética só aconteceria caso
a atitude da consciência não fosse adequada para lidar com a nova exigência imposta pelo
mundo ambiente. Nesse caso, a energia regrediria para o inconsciente para que uma nova
atitude pudesse nascer a partir da integração do oposto inconsciente. A questão, portanto, não
é o ambiente, mas a atitude da consciência e a desagregação entre os opostos. O mesmo fato
estaria na base daquilo que Hollis chamou de depressão intrapsíquica, pois, a regressão que
acontece na vida adulta (principalmente na passagem para a segunda metade da vida)
acontece exatamente pelo mesmo motivo5; para resgatar aqueles conteúdos rejeitados ao
longo do processo adaptativo.
"O animus das mulheres é antes uma resposta ao espírito que governa o
homem. Tem sua origem na mente do pai e mostra o que a jovem recebeu de seu
encantador, gentil e incompetente pai. Por outro lado, o pai deve sua fraqueza dentro
da família ao animus de sua mãe e, assim, o mal se propaga de geração em geração”
(JUNG, 2002, p. 86).
A regressão energética, que visa à integralidade, passa pela história pessoal, mas não
pretende manter-se aí; visto que vai além, e busca a sabedoria profunda; isto é, a regressão
não pretende alcançar o inconsciente pessoal, mas atravessa este para chegar ao inconsciente
6
A relação entre a depressão e a energia psíquica será discutida mais detalhadamente adiante.
13
coletivo7. "O perder-se de si mesmo, fundamento do processo depressivo, encontra respostas,
num segundo momento da vida, pela via do conhecimento, por meio de um logos
espiritualizado e veiculado pela sabedoria profunda" (ALVERENGA, 2007, p. 25). Um
exemplo sobre a finalidade de regressão energética indo além da história pessoal pode ser
observada no caso do paciente com depressão hipocondríaca e, já mencionado anteriormente,
atendido por Jung:
Tendo em vista as afirmações feitas até aqui. Considero adequado tomarmos a divisão
entre dois tipos de depressão: somatogênicas e psicogênicas. Dentre as depressões
psicogênicas, proponho outros três tipos: depressão normal (conforme proposto por Byington)
e patológica. E, finalmente, dentre as depressões patológicas, poderíamos considerar a
depressão neurótica (similar à depressão patológica de Byington) e a depressão psicótica.
Seria possível classificar outros tipos de depressão neurótica de acordo com a suas
especificidades, mas este não é o objetivo deste trabalho. Concentrar-nos-emos unicamente na
7
"O 'depositum fidei' [depósito da fé], corresponde na realidade empírica ao tesouro dos arquétipos, ao
'gazophylacium' (tesouro) dos alquimistas e ao inconsciente coletivo da psicologia moderna" (JUNG, OC 14/2, §
399).
14
discussão das depressões psicogênicas de forma mais geral e aprofundaremos somente nos
tipos de depressão normal e neurótica. Abordaremos a depressão psicótica somente a nível de
diferenciação, mas sem nos aprofundarmos de forma mais detalhada. Esta delimitação é
necessária, pois depressão é um assunto demasiadamente amplo; e não trataremos aqui sobre
depressão infantil, por exemplo, mas nosso foco se manterá sobre a depressão no adulto que
se aproxima da segunda metade da vida.
O ponto de vista energético finalista proposto por Jung, segundo Steinberg (1989), é a
principal ferramenta teórica que o autor nos deixou para compreender a depressão. Para Jung
(OC 8/1), a energia psíquica deve ser entendida primeiramente a partir de seu aspecto
quantitativo; isto significa que não se deve atribuir qualquer qualidade a priori à libido. A
teoria junguiana da libido, historicamente, foi um marco importante que distanciou Jung de
Freud; já que Jung (OC 5) desde o início não relacionava a libido à sexualidade, mas a
considerava como energia, pura e simplesmente, em movimento de progressão, represamento
e regressão.
Tal como o sol que todas as manhãs nasce no oriente e sobe ao topo do céu para
finalmente iniciar seu mergulho às profundezas da terra, onde precisará vencer provas
fantásticas para que possa renascer no dia seguinte; a energia psíquica em seu movimento
progressivo garante a adaptação ao mundo ambiente, até que retorne na direção regressiva do
inconsciente buscando aqueles aspectos rejeitados pela consciência, a fim de ampliar a
consciência no sentido da totalidade. Jung (OC 5) comenta a relação entre o movimento
circular do sol e os mitos de heróis, e considera o herói como representante da energia
psíquica; portanto, uma consideração acerca do mitologema do herói se faz útil para
compreendermos o conceito junguiano de energia psíquica.
Para Campbell (2007), a jornada do herói pode ser dividida em três principais fases: a
separação, que se refere a “um afastamento do mundo” (p. 40); a iniciação, que se refere a
“penetração em uma fonte de poder” (ibidem); e o retorno, “que enriquece a vida” (ibidem).
15
Segundo o autor, o mitologema do herói se expressa na fórmula dos ritos de iniciação
baseados nas fases de separação-iniciação-retorno (Figura 1). Estas fases se referem, de
início, à partida do herói do mundo cotidiano; em seguida ocorre a sua entrada em uma região
onde se depara com forças sobrenaturais e obtém uma vitória importante; e posteriormente
ocorre o retorno do herói ao mundo cotidiano, com o poder de beneficiar os demais mortais.
Para Jung (OC 8/1), a progressão da energia psíquica está relacionada aos esforços de
adaptação do indivíduo ao mundo exterior e, por esse motivo, “consiste em satisfazer as
exigências das condições do mundo” (§ 60). No entanto, uma adaptação completa é
impossível de ser alcançada, já que novas situações sempre confrontarão o indivíduo, de
16
forma ininterrupta, e exigirão atitudes diferentes das anteriores. Jung afirma que a consciência
é, por natureza, “determinada e dirigida” (§ 134); isto é, na progressão, os elementos
psíquicos adequados à adaptação ao mundo exterior são, por assim dizer, incorporados à
consciência gradativamente, enquanto que os inadequados ou incompatíveis (opostos) sofrem
uma “inibição ou bloqueio” (ibidem) e por esse motivo mergulham no inconsciente.
17
consciência e assim não puderam se incorporar nela para criar a atitude adaptativa exigida
pelo mundo exterior. Ao contrário, o oposto se dissociou da consciência; saiu de seu “raio de
visão”; ao mesmo tempo em que a regressão aumenta seus valores energéticos, fazendo com
que seja capaz de romper o limiar da consciência na forma de sintoma. Desaparece o conflito,
surge o sintoma. É justamente a regressão da energia, compreendida em seu contexto global,
que nos possibilita lançar novos olhares sobre a questão da depressão8; objeto do presente
estudo.
Andrew Solomon, autor que conhece a depressão através da vivência, a descreve como
“o sofrimento emocional que se impõe sobre nós contra a nossa vontade e depois se livra de
suas circunstâncias exteriores” (SOLOMON, 2014, p. 16). Esta afirmação permite-nos
compreender o caráter autônomo e aparentemente sem objeto (causal) da depressão. A
autonomia do processo é decorrente do fato de que a regressão da energia não depende da
vontade e, ao contrário, significa uma espécie de morte das intenções egóicas em se firmar
numa postura entendida como socialmente desejável, isto é, a energia psíquica mergulha no
mundo noturno do inconsciente.
Solomon (2014) afirma que “o que acontece na depressão é horrível, mas parece muito
envolvido pelo que está prestes a acontecer. Entre outras coisas, você sente que está prestes a
morrer” (p. 28). Isso é bastante significativo, pois a morte, no sentido simbólico, é a
consequência inevitável de uma regressão energética que encontra seu alvo no inconsciente.
Neste caso, entretanto, não nos referimos a uma morte literal, mas à morte do que costumo
chamar de identidade parcial; da identificação da consciência com a persona à custa do Self
enquanto singularidade radical.
Assim sendo, a presença da depressão significa que esta morte não foi realizada; mas
somente que a torrente energética regressiva permanece a conduzir a experiência individual
para o inconsciente; como se almejasse esta morte. Daí a experiência de Solomon em estar
face a face com a morte; numa sensação de permanente iminência, sem, no entanto, morrer
definitivamente. “Morrer não seria tão ruim, mas viver à beira da morte, nesta condição de
não estar exatamente caindo no abismo geográfico, é horrível” (SOLOMON, 2014, p. 28). Ele
ainda recorre à metáfora “estar à beira do abismo” para descrever esta experiência. A
regressão energética impõe ao homem uma exigência, de que realize sua individualidade;
8
"Os melancólicos mergulham numa espécie de condição embrionária" (JUNG, OC 18/1, § 63).
18
seria preciso, pois, saltar neste abismo. Um sacrifício autoinfligido – soltar a mão daquilo em
que nos agarramos, de nossa identificação com a persona, para que os conteúdos da sombra
tenham seu lugar na ordem do dia.
Para Jung (OC 5), os mitos de heróis nos ensinam que aceitar a morte inevitável,
através de um gesto de sacrifício, é o clímax da narrativa heroica. Mas a depressão nos ensina
que se atirar voluntariamente do abismo é um ato dificílimo.
“Se nos recordarmos agora de que a causa do represamento da libido era o
malogro da atitude consciente, compreenderemos que germes valiosos são ativados
pela regressão: eles contêm, com efeito, os elementos necessários para aquela outra
função excluída pela atitude consciente e que estaria capacitada para complementar
ou substituir eficazmente a atitude consciente que não produz resultado” (JUNG, OC
8/1, § 44).
Segundo Jung (OC 8/1), portanto, no fundo do abismo descrito por Solomon, estariam
os meios necessários à morte da identidade parcial acima referida – da identificação com a
persona. Entretanto, o medo da morte ou do desconhecido não parece ser o único, nem tão
pouco o principal obstáculo ao sacrifício. Pois, se estes “germes valiosos” descritos por Jung,
que jazem no fundo do abismo, fossem reconhecidos pelo indivíduo como o tesouro que são,
não haveria tanta relutância em saltar para a morte. Mas, na experiência depressiva não há
qualquer vislumbre de glória no fundo deste enorme buraco escuro; ao invés disso, o
indivíduo é confrontado com a face terrível e grotesca daqueles aspectos psíquicos renegados
que compõem a sombra.
“Como se [os sonhos] pretendessem trazer de volta todas as coisas velhas e
primitivas das quais a mente se livrou durante o curso de sua evolução: ilusões,
fantasias infantis, formas arcaicas de pensar e instintos primitivos. Este é na verdade
o caso, e ele explica a resistência, até mesmo o horror e medo de que alguém é
tomado quando se aproxima dos conteúdos inconscientes. [...] [os conteúdos
inconscientes] produzem até mesmo pânico e, quanto mais reprimidos forem, mais
perpassam toda a personalidade na forma de uma neurose” (JUNG, OC 18/1, § 591).
19
seja algo inicialmente difícil à pessoa, por estar orientada aos ditames da consciência coletiva,
seriam eles mesmos aqueles capazes de produzir uma personalidade mais ampla; cuja
singularidade define aquilo que Jung chama de individualidade.
“O repugnante e rejeitado sapo ou dragão do conto de fadas traz a bola do
sol na boca; pois o sapo, a serpente, o rejeitado, é o representante daquela profunda
camada inconsciente [...] em que são guardados todos os fatores, leis e elementos da
existência rejeitados, não admitidos, não reconhecidos, desconhecidos ou
subdesenvolvidos. Essas são as pérolas dos palácios submarinos das fábulas, cheios
de gênios, tritões e guardiães das águas; as joias que iluminam as cidades
demoníacas do mundo interior; as sementes de fogo do oceano da imortalidade, que
suporta a terra e a cerca como uma cobra; e as estrelas do firmamento da noite
imortal” (CAMPBELL, 2007, p. 62).
"Um diagnóstico seguro é bom para o clínico geral, [...] mas para o
psicoterapeuta é muito melhor que conheça o menos possível de um diagnóstico
específico. [...] De um modo geral, quanto menos o psicoterapeuta souber de
antemão, melhores as perspectivas para o tratamento. Nada mais deletério do que
um 'já entendi' de rotina" (JUNG, OC 16/1, § 197).
Não haveria, portanto, algo como uma depressão enquanto fenômeno isolado do
indivíduo e do mundo. Há sim, a depressão daquele indivíduo no mundo. Nossos esforços
para criar categorias e generalizações devem ser entendidos, portanto, em termos didáticos e
de conhecimento e não enquanto verdades gerais. É verdade que os mitos de heróis podem ser
vistos em analogia aos movimentos da libido, e que a depressão pode ser compreendida a
partir do movimento regressivo da energia psíquica, mas considerar que a apoteose do herói é
algo que teria a possibilidade de acontecer em todo e qualquer caso de depressão seria uma
suposição pobremente sustentada no empirismo e, portanto, é necessário que possamos
aprofundar nosso entendimento sobre a depressão para além desta única imagem; no sentido
da ampliar o fenômeno da depressão em sua complexidade.
20
ASPECTOS PSICODINÂMICOS DA DEPRESSÃO PSICOGÊNICA
Segundo nos conta, Orfeu teria encontrado sua esposa, Eurídice, morta pela picada de
uma serpente quando retornou para casa após sua aventura como tripulante da nau comandada
por Jasão. Eis que decide descer até o reino subterrâneo de Hades – o mundo dos mortos –
para resgatá-la. Em sua katabasis9 iniciática, canta e toca sua lira de forma quase divina;
encantando a todos que o escutam, inclusive Perséfone e Hades. Graças a este feito heroico –
encantar os deuses do submundo não é tarefa para um humano comum –, consegue permissão
para o retorno de Eurídice ao mundo diurno; mas, contrariando as advertências recebidas,
titubeia e olha para trás, fazendo com que Eurídice se perca novamente no mundo dos mortos.
Retorna sozinho, derrotado – não toca sua lira e não canta mais. Retornou ao mundo do dia,
mas perdeu sua alma. "A perda de energia do consciente, é um fenômeno que se manifesta de
maneira mais drástica nas 'perdas de alma' dos primitivos" (JUNG, 16/2, § 372). Esta perda de
alma – abaissement du niveau mental – aumenta o valor energético de conteúdos
inconscientes compensatórios.
Jung (2011) afirma que o Logos se manifesta primeiramente como serpente venenosa.
O que em termos psicológicos significaria a presença de um conteúdo inconsciente poderoso
que a consciência ainda seria incapaz de apreender. Quando tal conteúdo se manifesta, "existe
o perigo da consciência do eu ser inteiramente atraída para o inconsciente e ser dissolvida"
(JUNG, 2011, p. 368). Embora haja o risco do desenvolvimento de uma patologia, este
9
"Katabasis (κατά = baixo; βαίνω = ir para) é um movimento de descida, utilizado com frequência como
imagem mítica para implicar descida da alma a um plano ínfero. Está grandemente associado a rituais religiosos,
a partir de elementos e/ou símbolos que indicam uma imagem de descida a mundos subterrâneos como uma
caverna ou um inferno" (COUTINHO, 2015, p. 21).
21
fenômeno é natural do processo de individuação, pois em seu curso "novos conteúdos podem
se anunciar a partir dessa forma devoradora e obscurecer a consciência, o que sentimos como
depressão" (ibidem). Esta afirmação lança luz sobre o estado melancólico de Orfeu, pois
retorna ao mundo, mas perde sua vitalidade. Para Jung, este fenômeno, caracterizado pela
regressão da libido e a dissolução da consciência do eu, pode originar uma depressão
patológica.
Modo geral, é desta forma de depressão que a maioria dos autores junguianos se
referem ao acentuarem seus aspectos salutares e transformadores. Mas, conforme os mitos de
heróis e também os alquimistas constantemente advertem, a descida à escuridão traz riscos
reais; que são, estranhamente, pouco enfatizados na literatura pós junguiana sobre a
depressão. Partindo das imagens coletivas da individuação, a literatura pós junguiana tende a
manter sua ênfase na realização do Self. Entretanto, as mesmas imagens coletivas presentes
nos mitos acentuam, também, cenas de desmembramento, aprisionamento eterno e suplício
infernal. Imagens estas, que embora comumente consideradas, não costumam ser enfatizadas
como considero que deveriam; já que dizem respeito não somente ao processo de tomar
consciência de quem se é, mas, também, da "intrasponibilidade" patológica. Fato que deve
nos movimentar no sentido a pensar novas abordagens terapêuticas, tal como fez Nise da
Silveira [1905-1999] em seu trabalho com psicóticos.
A transição de uma depressão normal para uma patológica – neste caso, uma
depressão neurótica –, portanto, acontece na medida em que a balança se desequilibra a tal
ponto em que a consciência do eu torna-se demasiadamente difusa, frente a um inconsciente
cada vez mais poderoso. O confronto entre a consciência e o inconsciente e, portanto, a
função transcendente, depende sempre de um papel ativo do ego; sem o qual não pode ocorrer
qualquer síntese entre os elementos opostos. Para Jung (OC 8/2), a confrontação entre o ego e
o inconsciente, isto é, "a aproximação dos opostos da qual resulta o aparecimento de um
terceiro elemento que é a função transcendente" (§ 181) é um momento de especial
importância para a síntese da personalidade; e "neste estágio, a condução do processo já não
está mais com o inconsciente, mas com o ego" (ibidem). Mas, em uma depressão neurótica o
ego pode estar demasiadamente dissolvido pelo inconsciente e, portanto, esta tarefa pode ser
muito dificultada ou até mesmo impossibilitada; dependendo da intensidade desta dissolução.
10
"O princípio da equivalência postula que para cada energia gasta, empregada para gerar uma condição em
algum lugar, surge, em outro lugar, uma quantidade igual da mesma, ou de outra forma de energia" (JUNG, OC
8/1, § 34).
11
"O caso estava avançado demais para que se pudesse contar com uma perspectiva de cura. Só lhe restava
continuar o tratamento até a morte" (JUNG, OC 7/1, § 75).
23
A depressão neurótica é caracterizada por uma fixação nos conteúdos do inconsciente
pessoal; que, pelo fato da consciência não poder assimilá-los, carregam-se cada vez mais de
energia; retirando, para isso, energia do ego. Isto equivale a dizer que a pessoa é dominada
pelos próprios complexos; e, assim, está criada a cisão neurótica da personalidade. "A cisão
pode desenvolver-se a partir de conteúdos espontâneos do inconsciente, que a consciência não
pôde assimilar" (JUNG & WILHELM, 2007, p. 48). Os conteúdos que não encontram lugar
na consciência são dissociados para o inconsciente. São os "afetos que, contra nossa vontade e
apesar das enérgicas tentativas de bloqueá-los, dominam o eu, mantendo-o sob seu domínio"
(ibidem). Mas, embora inconscientes, os complexos não permanecem inertes, como em estado
de inanição, pois o princípio da individuação12 busca sua integração através da regressão
energética; retirando energia do ego. "O complexo autônomo desenvolve-se usando a energia
retirada do comando consciente da personalidade" (JUNG, OC 15, § 123). Portanto,
influencia a consciência através da ameaça crescente de assimilação do ego. A consequência
deste fato é comentada por Jung:
Jung (OC 15) afirma que o processo de ampliação do complexo mediante a contínua
perda de energia do ego para o inconsciente "se desenvolve e se amplia mediante inclusão de
associações afins" (§ 123). O complexo carregado de energia cresce em tamanho - fica mais
rico em associações; e, "naturalmente, a energia necessária para este fim é retirada do
consciente, a não ser que este aconteça identificar-se com o complexo" (ibidem). O
abaissement du niveau mental tão característico da depressão só acontece enquanto não há
identificação da consciência com o complexo. Pois, no fenômeno da identificação há energia
na consciência e, embora a identidade do ego esteja temporariamente dissolvida, a experiência
é muito diferente da apatia depressiva. Há, ao contrário, uma experiência de possessão, em
que o complexo assume as rédeas com toda energia que estiver a sua disposição. A depressão
12
O princípio da individuação aqui exposto não deve ser confundido com o conceito de processo de
individuação. Pois, o primeiro diz respeito a um princípio geral, uma tendência a que a multiplicidade se reúna
em uma unidade; enquanto que o segundo diz respeito ao processo empírico de síntese da personalidade. O
princípio da individuação, portanto, pode ser considerado como uma tendência arquetípica que orienta o
processo de individuação.
24
neurótica é caracterizada, portanto, por um movimento que alterna entre a apatia e a
possessão.
Entretanto, tal perspectiva parece ser insuficiente para explicar a fragmentação do ego
e o desenvolvimento de uma psicose, visto que há situações extraordinárias em que o
inconsciente irrompe na consciência com força tão avassaladora, que seria de se esperar uma
25
fragmentação imediata do ego; como em certas experiências religiosas ou através da
utilização de substâncias psicodélicas como o LSD ou a psilocibina. Se somente levarmos em
consideração a intensidade da irrupção do conteúdo inconsciente e a força de coesão do ego,
esperaríamos um altíssimo número de casos de psicose dentre as pessoas que utilizam estas
substâncias ou tem tais experiências. Entretanto, um estudo recente que relacionou a
utilização de substâncias psicodélicas a transtornos mentais não foi capaz de encontrar
qualquer relação entre eles. Os autores afirmaram: "não fomos capazes de encontrar
evidencias de que o uso de psicodélicos seja um fator de risco independente para problemas
relacionados à saúde mental13" (JOHANSEN & KREBS, 2015, p. 1). Levando este fato em
consideração, compreendo a possibilidade da fragmentação do ego a partir de um ponto de
vista um pouco diferente.
Sugiro que a força capaz de fragmentar o ego não esteja relacionada necessariamente à
intensidade da irrupção do conteúdo inconsciente na consciência, mas sim à presença de um
conflito demasiadamente desagregador para o ego. Assim sendo, um conteúdo inconsciente
poderia irromper com grande violência na consciência sem ameaçar a integridade do ego
desde que não origine um conflito muito desagregador. Enquanto que outro conteúdo, com
bem menos intensidade na irrupção, poderia gerar um conflito tão desagregador, que fizesse o
ego se partir em sua unidade. O foco, portanto, não recai sobre a força da irrupção do
conteúdo inconsciente, mas da força desagregadora de um conflito originado na emergência
de um conteúdo inconsciente, independente da intensidade de sua irrupção na consciência.
14
"Uma sugestão para uma possível interpretação provém da derivação da palavra 'diabólico', do grego dia
(através) e ballein (lançar) (Oxford English Dictionary), donde, 'lançar através ou separado'. Disso deriva o
significado usual de 'diabolos' como o Diabo, isto é, aquele que atravessa, impede ou desintegra (dissociação). O
antônimo de diabólico é 'simbólico', de sym-ballein, que significa 'lançar reunido'. Sabemos que ambos os
processos - lançar separado e lançar reunido - são essenciais para a vida psicológica e que, em suas atividades
aparentemente antagônicas, temos um par de opostos que, quando idealmente equilibrados, caracterizam os
processos homeostáticos da autorregulação da psique" (KALSCHED, 2013, p. 38).
27
Entretanto, nem sempre este é o caso. Pois a fragmentação do ego e o
desenvolvimento da psicose que daí se deriva, é um fenômeno relativamente comum no
mundo contemporâneo. Não considero que a fragmentação do eu seja algo como uma falha
em um suposto sistema de defesa do ego; mas é algo que transcende a psicologia pessoal e
não pode ser considerado somente em termos psicodinâmicos. Já que sua finalidade visa a
integridade da cultura, e não a realização do Self no indivíduo. Mas, abordar este assunto aqui
seria demasiadamente extenso e não contribuiria para a presente pesquisa. Interessa-nos
compreender a depressão psicótica em termos psicodinâmicos e, para isso, precisamos
conhecer suas especificidades.
15
"Há casos em que uma quantia considerável de libido desaparece de todo, como se o inconsciente o tivesse
engolido por inteiro, sem que se localize um novo valor criado a partir daí" (JUNG, OC 8/1, § 35).
28
emerge na forma de delírios ou alucinações, devido à fragmentação do ego, e com uma
tonalidade numinosa extraordinária.
16
O termo coniunctio é derivado da alquimia medieval e sua utilização neste trabalho deve ser considerada como
sinônimo de união dos opostos.
29
inconscientemente a “ideia de não ter perdido irremediavelmente o outro” (ibidem), pois
poderiam restituir o amor perdido caso fossem capazes de se redimir do "pecado" que gerou a
separação. Assim sendo, a perda do amor estaria relacionada à aquisição de independência e,
portanto, o indivíduo procuraria restituir o amor perdido tornando-se novamente dependente
da pessoa ou de alguém que recebesse essa projeção.
Para James Hollis (2011) a depressão intrapsíquica teria suas raízes na infância e
imporia um sofrimento necessário para o crescimento pessoal. Francisco Purcotes Júnior
(2012), seguindo a mesma linha, considera a depressão como necessária ao desenvolvimento
do indivíduo, que teria suas raízes na infância e cujo sofrimento deveria ser atravessado
através de uma atitude de enfrentamento para que se produzisse uma transformação na
personalidade. Estas abordagens junguianas enquadram-se no que Samuels (1989) definiu
como desenvolvimentistas. Entretanto, a presente pesquisa se distancia destas abordagens por
considerar que, estas, não dão a devida importância à história do mundo; os aspectos socio-
históricos que por um lado transcendem a psicologia individual, e por outro, atravessam o
individuo de forma determinante.
Estas primeiras experiências costumam ocorrer no seio da família e, por esse motivo é
comum que muitas psicologias mantenham seu foco na história pessoal e nas relações da
criança com as figuras parentais. Mas, apesar disso, não devemos desconsiderar o fato de que
toda e qualquer família tem uma história ancestral e que estão indissociavelmente inseridas
em um processo cultural mais amplo de elaboração coletiva das imagens arquetípicas. Para
30
Jung (OC 17), o inconsciente é sempre anterior à consciência; esta última se origina a partir
do primeiro, que carrega a priori não somente um arcabouço filogenético, mas também
ontogenético – a história do homem no mundo. "O inconsciente é mais antigo do que a
consciência. O homem primitivo vive prioritariamente na inconsciência [...]. O inconsciente é
aquilo que é dado originalmente, a partir do qual a consciência acaba sempre emergindo de
novo" (JUNG, 2011). Portanto, a consciência não emergiria como algo sempre igual,
independente do contexto cultural; mas, sua gênese se daria a partir de um substrato ao
mesmo tempo arquetípico e histórico.
"Isto soa um tanto miraculoso, mas teremos que nos acostumar com a ideia
de que esse tipo de coisas existe, de que conteúdos inconscientes, que se encontram
estranhamente em conformidade com fatos históricos, podem ser reproduzidos. A
explicação encontra-se vinculada ao fato de se tratar de conteúdos arquetípicos"
(JUNG, 2011, p. 27).
Devemos, também, ter em mente o aspecto finalístico do inconsciente para não sermos
tentados a pensar a psique como se fosse unicamente uma sucessão de eventos causais que
tenderia a reduzir a infância a uma espécie de etiologia comum para toda e qualquer formação
da personalidade. Pois, "por vezes, futuras formações da personalidade são antecipadas
durante os processos de desenvolvimento" (JUNG, 2011, p. 29). Jung dá como exemplo,
sonhos antecipatórios, e afirma que se tratam de conteúdos que "apontam para ações ou
situações futuras do sonhador que não se baseiam em absoluto na psicologia atual do
paciente" (ibidem). Este tipo de sonho seria comum em crianças e mostram que o indivíduo
não nasce como tábula rasa; e, também, que sua herança não estaria unicamente relacionada a
fatores instintivos e filogenéticos como a hipótese do inconsciente coletivo poderia
erroneamente nos levar a supor; mas, que haveria algo de coletivo e ao mesmo tempo singular
no destino individual.
31
noção de unus mundus que Jung resgata da tradição ocidental; para considerarmos a
indissociabilidade entre arquétipo e fenômeno; vazio e forma, inconsciente coletivo a-
histórico e história do mundo; entre microcosmo e macrocosmo; deus e homem. Para Jung,
(OC 14/2) "o mandala simboliza, por meio de seu centro, a última unidade do todos os
arquétipos como também a multiplicidade do mundo dos fenômenos, e forma por isso a
correspondência empírica para o conceito metafísico do 'unus mundus' (mundo uno)" (§ 326).
Para Carlos Amadeu Botelho Byington (2007), a depressão estaria relacionada a uma
função estruturante da psique, que se incluiu dentro de um processo cultural maior de
elaboração coletiva das imagens arquetípicas. Esta abordagem é a que mais se afina com a
nossa; pois deixa claro a indissociabilidade entre a elaboração coletiva e individual do
inconsciente; levando em consideração, portanto, o que chamou de inteireza do ser ou
32
trazendo implícita a ideia do unus mundus. O autor afirma que "podemos estudar a inteireza
do ser por meio do processo de individuação descrito por Jung no plano individual ou do
processo de humanização conceituado por Teilhard de Charin na dimensão coletiva"
(BYINGTON, 2007, p. 11). Assim como o fazemos nesta pesquisa, Byington considera que a
direção regressiva da libido na depressão visa alcançar e integrar a sombra à consciência.
Entretanto, esta sombra, embora surja com aparência de pessoal, não estaria relacionada
unicamente a história de vida da pessoa.
17
(HUBBACK, 1983).
33
"As tendências à dissociação caracterizam a psique humana e são inerentes
a ela; sem isto, os sistemas psíquicos parciais nunca as teriam cindido, ou melhor,
não teriam gerado espíritos ou deuses. A dessacralização de nossa época tão profana
é devida ao nosso desconhecimento da psique inconsciente, e ao culto exclusivo da
consciência. Nossa verdadeira religião é o monoteísmo da consciência, uma
possessão da consciência, que ocasiona uma negação fanática da existência de
sistemas parciais autônomos. [...] Isto representa um grande perigo psíquico, pois os
sistemas parciais se comportam como quaisquer outros conteúdos reprimidos. [...]
Tal fato, evidente nos casos de neurose, também o é no campo dos fenômenos
psíquicos de caráter coletivo" (JUNG & WILHELM, 2007, p. 49).
Assim como, a partir da pessoa do artista, e pela identidade inconsciente em que este
se encontra com seus contemporâneos, a libido encontra a imagem arquetípica que confronta
a unilateralidade do espírito da época; na depressão ocorre exatamente a mesma coisa.
Entretanto, na arte, é a obra em si, através da pessoa do artista, que traduziria esta imagem
18
“Indivíduos depressivos sofrem de sentimento de culpa excessiva e irracional" (STEINBERG, 1995, p. 76).
35
primordial para uma linguagem adequada ao espírito da época; já na depressão, é a possessão
pelo arquétipo, que tinge a vida da pessoa deprimida com sua própria tonalidade; impondo a
necessidade de elaboração do drama coletivo de seu tempo através da integração do
inconsciente pessoal. É, pois, a vida da pessoa em depressão que deve ser realizada como se
fosse uma obra de arte; a fim de que uma resposta individual seja dada a um problema
coletivo que flui através da história do mundo.
Uma questão que deve permanecer em aberto diz respeito sobre a possibilidade de
cura da depressão. Embora haja diversos casos de remissão completa, há ainda tantos outros
em que, apesar da utilização de variadas formas de tratamento, a sintomatologia persiste
incansável. Ao considerarmos as imagens alquímicas em analogia ao processo de
individuação, e ao relacionarmos a depressão à fase alquímica da nigredo - início da grande
obra; não devemos ser tentados a supor que a depressão seria sempre um caminho pelo qual a
travessia fosse possível. Como se todo é qualquer indivíduo tivesse a possibilidade de, através
de uma atitude adequada, avançar através da escuridão depressiva em direção a um
renascimento renovado. Fazer com que essa questão permaneça em aberto não é somente
importante do ponto de vista teórico, mas principalmente no manejo clínico com indivíduos
depressivos, e principalmente sobre aqueles em que a depressão se apresenta como um muro
intransponível. Pois se o terapeuta parte do pressuposto de que toda depressão é passível de
cura, poderá acabar por dizer isso a seu paciente; mesmo que não o diga em palavras, mas
através de seu manejo clínico. Esta situação de nada ajudaria seu paciente e, ao contrário,
imporia um peso a mais sobre ele; acentuando o argumento moral19 do senso comum que
frequentemente faz com que a pessoa com depressão sinta-se culpada por não ser capaz de
superar o estado em que se encontra.
19
"Na teologia cristã, a pesada indolência da depressão, o desespero seco da melancolia, era o pecado da acedia
[preguiça] (como era chamado na igreja)" (HILLMAN, 2010, p. 207).
36
Essa questão é bastante antiga. Robert Burton (2011), ainda no século XVII, dizia que
há possibilidade de diversos prognósticos na melancolia20; dependendo de seu tipo. Os
prognósticos variam em uma escala de intensidade, desde casos em que há grande esperança
de cura, até casos incuráveis. Mas, apesar desta variação de prognósticos, Burton considerava
que há um axioma comum: "aut difficulter curabilis, segundo os otimistas, dificilmente
curável" (p. 396). Chama atenção que apesar da passagem dos séculos, o conselho de
Montano, um abade italiano do século XVI, permanece válido até os dias de hoje – como
podemos confirmar pelo relato contemporâneo de Solomon (2014) sobre sua própria
depressão. "Tal moléstia comumente os acompanha até a cova; os médicos podem aliviá-la, e
ela pode até se ocultar por um tempo, mas eles são incapazes de curá-la, pois que ela retorna
ainda mais violenta e aguda que no início, e pelo menor motivo" (MONTANO apud
BURTON, 2011, p. 397). Não devemos, portanto, tomar as imagens coletivas do processo de
individuação como uma trilha que poderia levar, inequivocamente, todo e qualquer indivíduo
da noite escura até a claridade do dia.
Até onde pudemos avançar, não temos possibilidade de confirmar a ideia de Paracelso
[1493-1541] de que toda e qualquer doença é passível de cura; e a dúvida deve permanecer
como sinônimo de sensatez. As imagens arquetípicas do processo de individuação são um
recorte de um emaranhado de imagens muito maior. Não podemos considerar, por exemplo, a
figura mitológica do herói – e seus incansáveis ciclos de morte e renascimento – como sendo
análoga ao ego em contínuo desenvolvimento. Quanto a isso, Hillman (2010) nos deixou
preciosa contribuição ao discutir a tendência contemporânea em relacionar o ego ao herói, e
tomar os mitos e estórias de heróis como modelo de homem ideal. Para Jung (OC 8/1), a
figura do herói deve ser vista em analogia aos movimentos da libido, mas não ao ego.
Devemos, pois, considerar que ao lado do herói encontram-se diversos outros personagens
que não encontram o mesmo destino apoteótico daquele e que a libido encontra muitas outras
possibilidades de realização.
20
A melancolia descrita por Robert Burton não pode ser considerada análoga ao conceito contemporâneo de
depressão, pois, embora sua descrição englobe sintomas bastante semelhantes ao que chamamos atualmente
como depressão; descreve também sintomas diversos que não se enquadram neste diagnóstico.
37
Quantos homens sucumbiram ao enigma da Esfinge até que Édipo a afastasse de
Tebas? Quantos jovens foram oferecidos como tributo e devorados pelo Minotauro até que
Teseu o derrotasse? Quantos foram petrificados pelo olhar da Medusa até que Perseu a
decapitasse? Certamente, no mito, muitos mais encontraram um destino trágico àqueles que
venceram as provas impostas pelos deuses. Todos esses personagens míticos – todas essas
possibilidades de realização da libido – formam o grande drama coletivo que impulsiona a
transformação do mundo. Os indivíduos, portanto, são como atores de um drama que os
transcende e se desenrola ao longo da história. Por esse motivo, a depressão não deve ser vista
unicamente como um desafio imposto ao indivíduo por sua própria história pessoal; mas, ela
mesma (a depressão) confronta a consciência coletiva com aquilo que precisa ser integrado no
processo coletivo de elaboração histórica das imagens arquetípicas na cultura.
38
possibilidade de emergência do conteúdo arquetípico através da pessoa – e à custa de sua
singularidade – para que fosse elaborado pelo coletivo.
Sejam quais forem os motivos, os fatos insistem em nos lembrar acerca dos limites da
cura. Para Jung (OC 16/2), "o médico sabe que sempre e em qualquer lugar o homem se
defronta com o destino" (§ 463); e, por esse motivo, "às vezes a arte do médico ajuda, outras
não" (ibidem). Esta afirmação não invoca o destino enquanto causalidade sobrenatural, mas,
antes, enquanto algo que foge as possibilidades de explicação racional e causal por um lado;
ou que nossa ignorância é incapaz de apreender por outro – o destino é, pois, o domínio do
inconsciente. Por isso, "no domínio psíquico, em especial, onde ainda sabemos tão pouco,
deparamos frequentemente com o imprevisível, o inexplicável, cujas causas e efeitos é difícil
ou impossível descobrir" (ibidem).
No que diz respeito à psicoterapia, portanto, "é melhor ter sempre presente ao espírito
que nosso saber e as nossas possibilidades são limitados" (JUNG, OC 16/2, § 463). Ao
psicoterapeuta, Jung aconselha que mantenha a paciência para que se aguarde o desfecho
natural da situação; levando em consideração que tal desfecho nem sempre será aquilo que
gostaríamos que fosse. Neste caso, o problema estaria no fato ao qual nos deparamos? Ou em
nossas expectativas de que o fato não fosse aquilo que ele é, mas aquilo que esperássemos que
fosse? Não podemos sobrepor nosso entendimento aos fatos; mas, cultivar uma atitude de
ignorância e humildade que possibilite criarmos um entendimento a partir dos fatos; e sempre
levando em consideração que mesmo isso, nem sempre será possível para construirmos um
entendimento mais ou menos completo dos fatos.
39
"Apoiado em minha longa experiência, gostaria de fazer uma séria
advertência àqueles que se deixam levar por um excesso de entusiasmo terapêutico.
O trabalho com a alma pertence às coisas mais difíceis, mas é justamente neste
campo que se aventuram os incompetentes. [...] A ignorância certamente nunca foi
uma recomendação, mas muitas vezes nem mesmo o maior saber é suficiente. Por
isso, é bom que não se passe um único dia sem que o psicoterapeuta se lembre
humildemente de que ainda tem tudo a aprender" (JUNG, OC 16/2, § 464).
Devemos, portanto, tratar uma doença, "esse morbus sacer (mal sagrado) de acordo
com o que é" (JUNG, OC 16/2, § 465), e não como gostaríamos que fosse, ou como
acreditamos que seja. Isso significa que não somos capazes de compreender plenamente os
limites da cura em relação à depressão; muito menos supor que determinado método
terapêutico ou determinada visão teórica poderia conduzir todo e qualquer caso no sentido da
cura. "O médico tem que consolar-se com o fato de que, como todos os seus colegas, ele não
tem somente pacientes curáveis, mas de que também existem os crônicos – dos quais trata,
sem esperança de cura" (ibidem). Esta afirmação de Jung é importante, pois subentende que
independente da possibilidade de cura, a psicologia junguiana pode oferecer um tratamento.
Quer dizer, a perspectiva de cura não é um imperativo na clínica junguiana.
Embora esta afirmação pareça óbvia; cabe aqui uma ressalva, principalmente quando o
assunto diz respeito à depressão. Pois a relação comumente feita dentre autores junguianos, e
que também faremos nesta pesquisa, entre depressão e a fase alquímica da nigredo, poderia
nos levar à interpretação errônea de que se trata sempre de uma possibilidade de
transformação no sentido da ampliação da consciência. Mas, apesar desta visão se aplicar a
muitos casos, não se aplica a tantos outros. É por esse motivo que Byington (2007) tem o
cuidado em diferenciar a depressão normal da patológica e utilizar somente aquilo que
considerou como depressão normal para relacionar com a individuação. Mas apesar disso, o
autor peca ao escrever somente algumas poucas linhas sobre o tratamento da depressão
patológica, dando a entender que toda depressão patológica poderia ser convertida em uma
depressão normal através da psicoterapia. Fato cuja universalidade não é observada
empiricamente e, portanto, não pode ser considerado como uma possibilidade factível para
todo e qualquer caso de depressão patológica.
40
a se tornar deprimidos, cínicos ou resignados" (ibidem), por não considerarem os limites da
cura ou por se orientarem através de uma ideia de saúde que é irreal e/ou inalcançável. Borch-
Jacobsen e Shamdasani (2012) acusam o próprio Freud e a escola de psicanálise de Viena
deste cinismo no qual Craig se refere. Os autores sugerem, através de um estudo
historiográfico, que algumas das curas descritas por Freud em sua obra teriam sido
temporárias e que a escola de Viena teria feito muitos esforços para ocultar do público estes
pacientes considerados curados por Freud, mas que teriam recaído novamente nos velhos
sintomas neuróticos algum tempo depois.
Craig afirma, por exemplo, que esta situação é bastante comum no que diz respeito a
doenças psicossomáticas; pois, modo geral, estes pacientes não são curados completamente.
"Comumente eles pioram para depois melhorarem um pouquinho e frequentemente o médico
bate em suas próprias costas dizendo: 'agora está resolvido'. Contudo, no dia seguinte a
mesma dor, a mesma irrupção, o mesmo cansaço, aparece novamente" (GUGGENBÜHL-
CRAIG, 1983, p. 98). Apesar de nossa ignorância acerca dos motivos pelos quais essas
tentativas de cura são por vezes frustradas; o autor afirma que a partir deste fenômeno, surge
uma possibilidade básica de vida humana; uma possibilidade arquetípica que denominou
como arquétipo do inválido. "Ter que viver com e reagir a partir de uma deficiência é
certamente uma situação humana, em muitos aspectos uma situação arquetípica"
(GUGGENBÜHL-CRAIG, 1983, p. 100). A invalidez é aqui considerada como uma
possibilidade de existir; uma experiência fundamentalmente humana que marca a todos nós
em maior ou menor grau.
A observação de Jung (OC 16/2) de que a arte do médico nem sempre é suficiente para
promover alguma cura e de que nem tudo pode ou deve ser curado e, a constatação de que
uma neurose pode se cronificar conforme sua própria evolução; se referem aos fatos que, para
Craig, estariam sob influência do arquétipo do inválido. "O que está em ação nesses estados
crônicos de deficiência é o arquétipo do inválido" (GUGGENBÜHL-CRAIG, 1983, p. 100).
Tal arquétipo, apesar de impor dificuldades, pode também ter um efeito positivo que pode ser
explorado na psicoterapia, pois, "ele se opõe à soberba e promove a modéstia. A fraqueza
humana é compreendida em sua plenitude por essas pessoas e assim torna-se possível um tipo
de espiritualização" (GUGGENBÜHL-CRAIG, 1983, p. 102). Além disso, a vivência do
inválido pode promover alguma compreensão sobre a profunda dependência que temos em
relação às demais pessoas. "Dependência unilateral e mútua tem sua razão de ser no arquétipo
41
da invalidez. Ele contrabalança a imagem arquetípica do herói independente ou do viajante,
sempre livre, não ligado a alguém" (ibidem). Estas observações nos remetem imediatamente à
discussão realizada anteriormente neste trabalho acerca dos aspectos coletivos da depressão.
Não quero, com estas considerações acerca dos limites da cura, fazer espécie de
apologia a uma atitude resignada diante do sofrimento psíquico. Ao contrário, estas
considerações ajudam a prevenirmo-nos de uma atitude demasiadamente ingênua, que
desconsidera os fatos, e que tende a não dar a devida importância ao tremendo mistério que é
o inconsciente. Trata-se de observações que considero necessárias, tendo em vista a tendência
a se considerar a depressão, dentre os autores junguianos, a partir de seu aspecto iniciático e
potencialmente transformador. Pretendo, portanto, trazer à pauta o outro lado deste problema;
aquele tantas vezes advertido pelos alquimistas quando salientam os riscos envolvidos na
nigredo. Mas, apesar destes riscos, há, evidentemente, em muitos casos, a possibilidade de se
atravessar este período no sentido da ampliação da consciência.
42
tratamento da depressão que apontam para efeitos significativos no sentido da remissão e/ou
diminuição dos sintomas21. Embora ainda não haja estudos conclusivos neste sentido, tal fato
mostra, no mínimo, que há possibilidade de que novas metodologias terapêuticas surjam para
o tratamento da depressão, que apontem para possibilidades outras, que não vislumbramos
atualmente.
Apesar de toda discussão realizada até aqui, há, sem dúvida, vários casos de depressão
que podem ser vistos enquanto processos iniciáticos que apontam para reais possibilidades de
serem atravessados no sentido da ampliação da consciência e do alargamento da
personalidade. Na meia idade, por exemplo, o surgimento de depressões psicogênicas não é
um fato incomum. Nas páginas que se seguem, tentaremos compreender detalhadamente
alguns aspectos deste fenômeno.
21
Um exemplo de estudo neste sentido foi divulgado por McCorvy at. al. (2016).
43
DEPRESSÃO NA SEGUNDA METADE DA VIDA E O PROCESSO DE
INDIVIDUAÇÃO
22
James Hollis se refere à passagem entre a primeira e a segunda metade da vida pelo termo "passagem do
meio".
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processo em seu sentido natural para que a criança não perca a vida em seu ventre; o que
poderia significar também a sua própria morte.
A perda de energia descrita por Jung ocasiona aquele rebaixamento do nível mental
que discutimos anteriormente e que caracteriza a depressão. Podemos, portanto, entender a
depressão, neste contexto, enquanto uma regressão energética que visa forçar o nascimento da
vida nova; autenticamente ancorada na singularidade. Aquela vida que subterraneamente
acompanhava a vida diurna do homem coletivo ao longo de sua adaptação ao mundo; do
desenvolvimento de sua persona e a da fatal sedução em se identificar com esta23, assim como
de sua separação em relação aquilo que é considerado inadequado, dispensável ou repugnante
pelo espírito de sua época.
"As estatísticas mostram que as depressões mentais nos homens são mais
frequentes por volta dos quarenta anos. Nas mulheres, as dificuldades neuróticas
começam geralmente um pouco mais cedo. Observamos que nesta fase –
precisamente entre os trinta e cinco e os quarenta anos – prepara-se uma mudança
muito importante, inicialmente modesta e despercebida; são antes indícios indiretos
de mudanças que parecem começar no inconsciente” (JUNG, OC 8/2, § 773).
A perda de energia descrita acima surge enquanto uma experiência de ameaça à vida
da consciência orientada para o coletivo que caracteriza, geralmente, a primeira metade da
vida. "É como se o consciente ameaçasse desfalecer" (JUNG, OC 16/2, § 374). Entretanto,
esta ameaça indica que houve um importante desvio em relação a nossa própria natureza. Por
esse motivo, Jung afirma que "a força dos conteúdos inconscientes é sempre sinal de uma
fraqueza correlativa do consciente e de suas funções" (ibidem). A regressão, portanto, é aquilo
que visaria corrigir a atitude da consciência, de modo a produzir novos desdobramentos da
personalidade no sentido do caminho arquetípico natural que caracteriza o destino humano. E,
por esse motivo, a atitude diante da depressão não pode estar relacionada ao fortalecimento da
consciência; pois seria como tentar retornar ao estado que necessita ser corrigido. "Nada
conseguimos, reprimindo este estado de depressão ou depreciando-o racionalmente" (JUNG,
OC 8/2, § 166).
23
A identificação com a persona e suas consequências serão discutidas mais adiante no tópico: "O colapso da
persona e a exigência da singularidade".
45
Ao contrário deveríamos levar o inconsciente seriamente em consideração. Para Jung
(OC 8/2), o indivíduo deve tomar consciência "do estado de animo em que se encontra" (§
167); permitindo o desenrolar das fantasias, que enriquecem o afeto inicial e o aproxima
gradualmente à consciência na medida em que novas associações passam a orbitá-lo. Trata-se
de um enriquecimento ilustrativo do afeto que o tornaria mais perceptível e inteligível à
consciência. Dessa forma, "o afeto, anteriormente não relacionado, converte-se em uma ideia
mais ou menos clara e articulada, graças precisamente ao apoio e à cooperação da
consciência" (ibidem). Este procedimento dialético cria as condições à função transcendente,
isto é, à síntese entre o inconsciente e a consciência; permitindo a ampliação da personalidade
no sentido da totalidade.
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constelação do arquétipo do sacrifício é decisiva para o desenvolvimento da personalidade. É
necessário, em cada transição da vida, abrir mão de nosso “velho eu” para dar lugar a um
novo; ou melhor, é necessário que nos desapeguemos de nossas identificações e fixações,
daquilo que o eu pensa ser, para caminharmos em direção daquilo que realmente somos.
Do ponto de vista psicológico, sacrifício significa abrir mão, para sempre, de algo
muito valioso por uma exigência da individuação24, sem que vislumbremos com precisão
qualquer benefício em troca. Quando o jovem precisa sacrificar a infância – sua identificação
inconsciente com os pais – para entrar na vida adulta, deve abrir mão da segurança uterina
familiar e lidar com a ansiedade provocada pelo desconhecido e as incertezas do mundo;
precisa cair de um paraíso para poder ingressar na comunidade humana, compartilhando de
suas angústias e incertezas. Ao nos lançarmos nesta direção, “nos afastamos da guia segura
dos instintos e ficamos entregues ao medo, quando nos deparamos com a possibilidade de
caminhos diferentes, porque a consciência agora é chamada a fazer tudo àquilo que a natureza
sempre fez a favor de seus filhos” (JUNG, OC 8/2, § 750). Diante de situações como estas,
costumamos hesitar até que a exigência se torne tão poderosa que não possamos mais ignorá-
la.
Permanecer estacionado na vida não é uma opção, pelo menos não uma opção
confortável e sem maiores consequências; pois recusar pagar aos deuses os tributos que
exigem, sempre atrai a cólera divina. Em termos psicológicos, isto pode significar o
24
O termo individuação, neste contexto, se refere ao processo arquetípico de desdobramento da personalidade e
não necessariamente à realização e do Self.
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estabelecimento de uma psicopatologia. “Todos os distúrbios neuróticos, bastante frequentes,
da idade adulta têm em comum o fato de quererem prolongar a psicologia da fase juvenil para
além do limiar da chamada idade do siso” (JUNG, OC 8/2, § 776). O que era regozijo em uma
fase da vida, torna-se maldição se for mantido além do momento que lhe cabe.
Para Jung (OC 8/2), os dois momentos mais difíceis ao longo do desenvolvimento
humano se referem à passagem da juventude para a vida adulta e, finalmente, o momento
crucial da passagem da primeira para a segunda metade da vida. Na presente pesquisa nos
concentraremos na transição do meio da vida, associada por Jung ao magnum opus (grande
obra) da alquimia; que exige um importante sacrifício, a renúncia à identificação com a
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persona25 e aos ideais virtuosos da consciência coletiva, para que a sombra possa ser integrada
à consciência e nasça um ser que sustente a própria singularidade. Entretanto, comumente
esquecemo-nos da importância do sacrifício e da renúncia e tentamos continuamente
cristalizar o fluir ininterrupto da vida através de um ato de vontade. Iludimo-nos como se
fossemos senhores de nós mesmos, e pretensiosamente tentamos aprisionar o devir, como se
fosse possível segurar um rio com as próprias mãos. Mas, sempre que isso acontece, o
inconsciente se encarrega de trazer à consciência tudo aquilo que lhe falta; e isso não acontece
sem maiores complicações.
25
O sacrifício da identificação com a persona será discutido em detalhes no tópico: "o colapso da identificação
com a persona e a exigência da singularidade".
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através do desenvolvimento adequado da persona, e tendo encontrado um lugar na
comunidade humana, podemos ser atraídos a um novo paraíso: a identificação com a persona.
Quando isso ocorre, perdermos contato com parte de nossa humanidade, pois não somos e
nunca seremos o papel social que exercemos. "Se eu tivesse que acreditar que sou exatamente
aquilo que faço, isso seria um terrível engano, eu não caberia nesse sujeito" (JUNG, 2014A, p.
89). Todo papel social é menor do que o indivíduo; é, invariavelmente, somente um recorte
estreito da multiplicidade humana.
Uma relação adequada com a persona deveria permitir ao ego transitar entre as
diversas possibilidades de existir, sem que este permanecesse identificado a um papel social
específico que lhe trouxesse algum ganho imediato. "Eu preciso saber que por enquanto estou
desempenhando o papel de César; mais tarde eu me torno bem pequeno, um mero nada, sem
importância" (JUNG, 2014A, p. 89). Quando não há identificação com a persona, portanto, há
possibilidade de trânsito entre os diversos papéis sociais; como se estes fossem roupas que
pudéssemos usar nas situações que as exigissem. Do mesmo modo, poderíamos nos despir
quando estivéssemos em casa; livres da ilusão de que somos aquilo que vestimos.
Isto, no entanto, não é tarefa simples, pois a persona traz sempre um ganho imediato; o
coletivo recompensa com atribuição de valor social àqueles que correspondem às suas
expectativas. É justamente este o motivo pelo qual identificar-se com a persona pode ser algo
bastante sedutor. Jung (2014A) afirma que a "persona pode ser algo muito atraente" (p. 90) e
que a pessoa que possui uma persona muito atrativa, certamente "se identificará e acreditará
ser ela, e então se tornará vítima dela mesma" (ibidem). Tais pessoas, identificadas com esta
camada mais superficial, "se tornam neuróticas e o demônio as dominará" (ibidem); quer
dizer, provocarão um movimento compensatório no inconsciente que visará confrontar o ego
com aqueles conteúdos sombrios, privados da luz do dia. Ao contrário das pessoas incapazes
de estabelecer uma relação satisfatória com o coletivo, estas se enquadrariam no grupo das
neuroses dos "homens coletivos, de individualidade subdesenvolvida" (JUNG, OC 16/1, § 5);
cujo destino estaria relacionado ao sacrifício da identidade com o coletivo para que o
individual pudesse vir à luz.
Nossa relação com o mundo é sempre mediada pela persona, pois "quando você se
volta para o mundo consciente com o propósito de executar qualquer tipo de atividade, você o
faz por meio da máscara ou persona, por meio desse sistema de adaptação que você construiu
com tanto sacrifício ao longo de toda uma vida" (JUNG, 2014A, p. 90). Mas quando não
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estamos mais no mundo das relações pessoais, e nos encontramos sozinhos conosco, "as
coisas das quais devemos ter ciência parecem exercer pressão sobre o inconsciente coletivo e
a acentuar suas qualidades excepcionais" (ibidem). Tal situação, invariavelmente, opera
alguma influência sobre o indivíduo; que pode variar de acordo com sua intensidade. Em um
grau pouco elevado, é o incomodo em estar sozinho ou sem nada para fazer, como uma leve
ansiedade que nos faz procurar sempre alguma ocupação para evitar que estejamos sozinhos
conosco. Seria essa solidão, entretanto, aquela que, segundo Jung (2014A), nos empurraria
sobre nós mesmos a fim de que nos comprometêssemos com a conscientização de nossa
história; nosso inconsciente pessoal. Isso implica a necessidade de sacrificar nossa
identificação com a persona, em benefício do movimento (energético) regressivo que
atravessará não somente nosso inconsciente pessoal, mas que visa alcançar o inconsciente
coletivo.
Este sacrifício, no entanto, não é algo que pode ser feito sem grande esforço. Pois, é
como se tivéssemos que sacrificar os ideais mais elevados do homem civilizado, aos quais
julgamo-nos eméritos representantes; aquelas virtudes coletivas que pensamos não somente
possuir, mas que chegamos a confundir-nos com elas. Jung (OC 14/2) afirma que a
identificação com a persona é sempre um ato egoísta que tenta tirar alguma vantagem; já que
através dela recebemos admiração, segurança, um lugar de valor no mundo. O prestígio
pessoal, entretanto, é como o canto da seria, já que atrai para si aqueles que buscam alguma
diferenciação do coletivo, ao mesmo tempo em que dissolve na psique coletiva os que o
alcançaram; pois "a pessoa se torna uma verdade coletiva e isto sempre é o começo do fim"
(JUNG, OC 7/2, § 238). Com isso, ingressamos no paraíso da inconsciência; no alto de um
platô sobre nuvens, onde não é possível ver o que há mais abaixo – aqueles vultos sombrios
do mundo dos mortos.
51
a identificação com aquilo que o coletivo considera bom e pelo qual somos valorizados, à
custa de quem somos. Jung (2014A) afirma que, comumente, "as pessoas preferem uma
persona segura" (p. 36), que afirme "este sou eu", pois "de outro modo elas não sabem quem
realmente são" (ibidem). Paradoxalmente, ao permitirmos sermos definidos pela persona,
ganhamos uma resposta imediata à pergunta: "quem sou eu?"; ao mesmo tempo em que nos
esquecemos de quem somos verdadeiramente.
Identificados com a persona, tentamos espremer o mundo para que caiba dentro de
nossa própria cosmovisão e, assim, imaginamos o mundo como se fosse imutável e previsível;
ao mesmo tempo, supomos haver descoberto e encarnado o significado último de ser um
homem civilizado. Protegidos da insegurança que anda de mãos dadas à eterna
impermanência do fluir da vida através do tempo, evitamos cautelosamente a amarga
consciência de estarmos perdidos em território misterioso e inexplorado. Livres dos conflitos
morais que emergiriam implacáveis caso tivéssemos consciência de que o mal que
combatemos no outro é o mal de nosso tempo, do qual estamos imersos até o pescoço.
Acreditando cegamente que somos aceitos por inteiro, mesmo quando oferecemos ao mundo
nossa face bela e ocultamos a terrível, e assim alienamo-nos da inexorável solidão inerente à
condição humana e do abandono irrevogável que nos marca a todos no instante em que
nascemos. Em suma, nos protegemos de quem somos ao confundirmo-nos com o tributo
temporário que devemos pagar ao coletivo; perdemo-nos de nós mesmos, num regozijo
paradisíaco, ao crermos ser unicamente aquilo que o mundo espera que sejamos.
Pois é este paraíso que devemos sacrificar a fim de nos encontrarmos com nós mesmos
em nossa dolorosa ambiguidade; é como abrir os braços à dor que nos sustenta, mas da qual
fugimos assustados sempre que espreita – a dor de ser. Embora experimentemos este
sacrifício como autoimolação, fundamentalmente não se trata de negar a si próprio, mas de
negar a sedução paradisíaca de ser inteiramente definido pelo mundo. Eis o paradoxo: ao
oferecermo-nos em sacrifício, damos vida a quem somos. "Aquele que se aprofundou em si
mesmo está como que encovado na terra; um morto a bem dizer, que retorna à mãe terra; [...]
um homem que, arquejante, carrega a pesada carga de si mesmo e de seu destino" (JUNG, OC
5, § 460).
Embora este sacrifício não seja algo desejável ou prazeroso, pode acabar por se tornar
uma extrema necessidade, imposta pelo processo de individuação. Pois, o estado paradisíaco
de identificação com a persona é sempre temporário; independe se a pessoa é capaz ou não de
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se oferecer voluntariamente em sacrifício. Pois, quanto mais cresce a identificação com o
coletivo, mais o inconsciente pressiona a consciência a se confrontar com a singularidade. "O
maior medo do inconsciente é que esqueçamos quem somos" (JUNG, 2014A, p. 36), e quanto
maior for a identificação com nosso papel, mais nos tornaremos inconscientes do Self. Por
isso, a individuação passa a exigir a dissolução da identificação com a persona em favor da
integridade individual. É como se fossemos pressionados a sacrificar aquilo que pensamos
ser; o que, à primeira vista pareceria uma autoimolação – uma experiência de negar a si
próprio; mas que, fundamentalmente trata-se de negar o mundo – negar ser inteiramente
definido pela consciência coletiva.
O mito de Édipo, deixado por Sófocles, é bastante ilustrativo deste processo, chamado
por Jung de individuação. Em Édipo Rei (SOFOCLES, 2002), o herói foge do próprio
destino, anunciado pelo oráculo de Delfos. No entanto, de forma totalmente inconsciente
realiza tudo aquilo que lhe estava destinado, pois a individuação impõe ao homem seu destino
independente de sua vontade. Em sua hýbris27, Édipo mata o próprio pai, e afasta a Esfinge
através de um ato inflado. Sua inflação é necessária e pode ser vista, analogamente, como um
momento de consolidação de uma nova dominante na consciência através de um ato
unilateral; livrando o ego do perigo de ser engolido pelo inconsciente na forma da mãe
terrível. Édipo Rei é como a libido em progressão, em pleno movimento de adaptação ao
mundo ambiente através da construção da persona.
Mas, ao livrar Tebas da ameaça da Esfinge, Édipo é coroado e se casa, sem que tenha
conhecimento, com a própria mãe. Jung (OC 5) não interpreta o incesto através da literalidade
do ato sexual entre parentes, pois "mãe" e "filho" são considerados por ele como símbolos da
libido. A base do incesto estaria relacionada, portanto, à "ideia de voltar a ser criança, retornar
ao abrigo dos pais, penetrar na mãe para novamente dela renascer" (§ 332). A identificação
com a nova dominante da consciência, gerada a partir do assassinato do pai e do afastamento
da Esfinge, faz com que ingressemos em um novo paraíso; pois tornamo-nos inconscientes
daqueles conteúdos sombrios ao mesmo tempo em que nos consideramos ser inteiramente
nosso papel social.
Assim, uma praga assola Tebas, a cidade se torna estéril; as colheitas são escassas, os
rebanhos magros e as crianças nascem natimortas. Esta situação força o herói a encontrar o
27
Segundo Fernandes (2010), a hýbris do herói, isto é, a transgressão do métron (limite imposto pelos deuses aos
mortais), apresenta uma ambivalência simbólica, já que, por um lado, é caracterizada por um ato de transgressão
passível, em alguns casos, de punição divina; e, por outro lado, pode ser compreendida como um ato de criação
sem o qual seria impossível a realização dos feitos heroicos que trazem benefícios ao coleti vo. “De um lado a
hýbris se manifesta como uma desmedida criminosa, no entanto, de outro, ela configura uma função renovadora,
quando não francamente redentora” (p. 1-2).
54
assassino de Laio, seu próprio pai; até que, com muita relutância percebe ser ele mesmo a
causa da praga que assola a cidade. O confronto com a sombra não é tarefa fácil e
normalmente é somente com muita relutância e pressionados pelo insuportável que somos
capazes da decisão ética pelo autossacrifício da identificação com a persona para
mergulharmos no desconhecido a fim de descobrirmos quem nós somos através do lodo
negro.
Através deste mito podemos perceber que trocar de vestes, isto é, abandonar a
identificação com a persona e encontrar uma nova atitude ancorada em quem somos
verdadeiramente, não é tarefa simples. Pois o autossacrifício exigido a nós pela individuação
significa não somente abrir mão de que o mundo nos defina, mas nos bota diante da nossa
própria sombra. Isso significa que o sacrifício da nossa identidade moralmente adequada e
socialmente reconhecida deve ser feito ao mesmo tempo em que somos confrontados com
nossos aspectos moralmente condenáveis; um exercício de humildade sem precedentes! "Mas,
nesses momentos de humildade, começamos a melhorar o mundo que habitamos, e damos
origem às condições que favorecem a cura de nossos relacionamentos e de nós mesmos"
(HOLLIS, 1995, p. 61).
55
Hollis (1995) afirma que a individuação "conduz invariavelmente a um embate entre
persona e sombra" (p. 58) e, que este embate visa "um equilíbrio necessário da personalidade
entre a Realpolitik da sociedade e a verdade do indivíduo" (ibidem). Pois a persona
"representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade" (JUNG, OC 7/2, § 246);
compromisso no qual os "outros podem ter uma quota maior do que a do indivíduo em
questão" (ibidem). As novas vestes, portanto, não deixam de levar em consideração as
exigências do mundo – do contrário, tratar-se-ia de uma atitude individualista –, mas
diferenciam a pessoa do mundo a fim de que esta possa se relacionar com ele a partir da
própria singularidade.
56
para que as antigas estruturas sejam postas abaixo a fim de propiciar o nascimento do
indivíduo.
“Nan requiri aditus nimis est coarctatus, neque ad illam quisquam potest
ingredi, nisi per animae afflictionem (Pois a entrada para o procurado foi muito
estreitada, e ninguém pode chegar a ela, a não ser pela aflição da alma)”
(MORIENUS apud JUNG, 2011, OC 14/2, § 158).
28
"O que a alquimia tenta para sair de seu dilema é uma operação química, que hoje poderíamos designar como
símbolo. O processo que ela segue é manifestadamente uma alegoria de sua pressuposição de uma substantia
coelestis (substância celeste) e da possibilidade de sua representação química. Sob esse aspecto, a operação não é
simbólica para eles, mas adequada e racional. Para nós, porém, [...] o processo é meramente fantástico, quando
tomado verbalmente" (JUNG, OC 14/2, § 404).
57
simbologia alquimista" (ibidem) que chegou ao conceito básico de sua psicologia, o processo
de individuação.
58
precisava descobrir o caminho necessário para transformar sua prima materia na Pedra rubra
e, realizar a finalidade da obra. Em analogia, no processo de individuação é tarefa de cada
indivíduo encontrar um caminho próprio a desdobrar a personalidade no sentido do Self.
"M. [melancolia] passou também por Küsnacht, Suíça, onde Jung [1875-
1961] ajudou-a a compreender que seu sofrimento poderia ser parte dos processos
psicológicos de transformação de sua personalidade, à semelhança das mutações
sofridas pelos alquimistas durante a busca da pedra filosofal. Sob essa ótica, ela
estaria vivendo a fase inicial do processo de individuação – a chamada nigredo –,
que corresponderia ao encontro com a própria sombra" (GRINBERG, 2005, p. 47).
O caráter solitário e o pioneirismo exigido a tal tarefa são condições sine qua non para
a realização do processo, visto que as fórmulas coletivas só nos levam até o início da grande
obra, mas nunca além da nigredo29. O preto é, pois, a transição entre a pequena e a grande
obra; que, segundo Hillman (2011A), não é alcançado sem esforço, mas que deve ser
conquistado através da vontade consciente. Do mesmo modo, é preciso que sejamos capazes
de ingressar no mundo coletivo, através da construção de uma persona adequada, para
somente depois nos diferenciarmos deste mesmo coletivo no processo de individuação. É por
esse motivo que Jung (OC 8/2) afirma que a adaptação ao mundo coletivo, em um primeiro
momento do desenvolvimento, aparece como solução para os problemas da juventude.
Embora seja crucial para o ingresso na vida adulta, esta solução "só é válida temporariamente,
e no fundo dura muito pouco" (JUNG, OC 8/2, § 771); pois, logo chegará o momento em que
a consciência será confrontada por tudo aquilo que rejeitou ao longo do processo adaptativo.
Tal fato aparece através do imaginário ocidental não somente através da alquimia, mas
também do tarô de Marselha (popularizado no período histórico da renascença); pois há uma
clara transição entre duas fases distintas na ordenação dos arcanos maiores deste tarô. A
primeira é caracterizada principalmente por figuras humanas e a segunda por seres
sobrenaturais ou eventos celestiais. Os arcanos I à IX dizem respeito ao mundo coletivo,
como um caminho que leva até o arcano X (a roda da fortuna); onde há uma virada na sorte –
como quando Édipo se torna rei de Tebas – para o arcano XI (a força). A partir deste
momento inicia-se a grande obra, marcada pelos arcanos XII (o pendurado) e XIII (a morte).
29
"É com razão que o magnum opus (grande obra) principia aqui, pois é realmente uma questão irrespondível
como se deverá enfrentar a realidade nesse estado de divisão e ruptura interiores" (JUNG, OC 14/2, § 367).
59
É quando o mundo das figuras cotidianas se escurece, como se o sol mergulhasse nas
profundezas da terra, e o caminho através de um mundo sombrio e extraordinário começa a se
descortinar no sentido da reunião dos quatro elementos em uma única e mesma figura – o
arcano XX (o mundo).
Cavalli (2005) afirma que a depressão faz a psique retornar às próprias profundezas e,
que "embora sejam dolorosos, os episódios depressivos nos forçam a confrontar as figuras
sombrias dos medos inconscientes" (p. 133). Vista em analogia à melanosis31 da simbologia
alquímica, a depressão não se restringiria unicamente a um conjunto de sintomas, mas
revelaria um sentido mais profundo. Embora seu caráter sombrio e a aflição por ele provocada
sejam evidentes na descrição da nigredo, poderia haver um caminho não somente possível,
mas potencialmente transformador através dela. Para Jung (2014A), "só quando estamos
horrorizados, aflitos e caóticos é que chamamos por um salvador" (p. 36). Do mesmo modo,
30
"A confrontação com a sombra causa primeiramente um equilíbrio morto ou uma parada que impede decisões
morais, e torna ineficazes as convicções, e mesmo as impossibilita. Tudo se torna duvidoso, e por isso os
alquimistas denominam adequadamente esse estado inicial como nigredo (negrura), tenebrositas (escuridão),
caos e melancolia" (JUNG, OC 14/2, § 367).
31
O termo melanosis se refere, na alquimia, ao escurecimento da obra.
60
somente quando estamos encurralados diante da sombra, sem possibilidade de retornar ao
antigo estado de coisas, é que somos capazes de aceitar o lodo sombrio que rejeitamos tão
meticulosamente ao longo de nossas vidas.
Referindo-se aos episódios depressivos, Cavalli (op. Cit.) afirma que "a memória se
transforma em peso morto nesses períodos, imbuída de recordações sombrias de tempos ruins.
O processo de rememorar transforma esse chumbo miserável em algo novo e muito mais
significativo" (p. 133). Entretanto, eu diria que o processo de rememorar, por si só, não seria
capaz de garantir a transformação desse chumbo, pois a memória sombria por ele mencionada
emerge de forma espontânea na consciência; trazida pela regressão da libido. Nesse sentido,
rememorar, pode ser um ato completamente involuntário, em que a consciência se transforma
em mera vítima das imagens trazidas pela regressão. Há, não somente, que se rememorar, mas
levar seriamente em consideração estas imagens, e permitir ser confrontado por elas. É
preciso cultivar o que Jung (OC 11/1) chamou de atitude religiosa diante do próprio processo;
religio, para considerar cuidadosamente, e pistis, para permanecer leal e se fixar nas próprias
experiências, e assim estas possam prosseguir desdobrando-se.
61
vontades. É como se não houvesse mais como não levar em consideração àqueles conteúdos
incômodos e repugnantes; pois estes se impuseram sobre nós de forma autônoma. Nenhuma
saída é possível a não ser seguir adiante, e isso significa ir através deles. Pois são justamente
esses conteúdos difíceis de lidar que se apresentam como possibilidade de renovação da vida
através da ampliação da consciência32.
"Nesse sentido, a melancolia [...] poderia ser considerada um chamado para a entrada
num processo que admite uma escuta do inconsciente e o acesso a estruturas criativas
adormecidas ('deprimidas') na personalidade". (GRINBERG, 2005, p. 47). Seria preciso, pois,
libertar a anima, aprisionada no lodo escuro, pela presença de um inconsciente pessoal pouco
integrado. Para Jung (OC 14/2), o problema da sombra na fase alquímica da nigredo deve ser
atravessado, primeiramente a partir da decapitação. Como símbolo, a decapitação faz alusão a
"uma separação da 'intelligentia' (inteligência) da 'passio magna et dolor' (grande sofrimento
e dor), que a natureza causa à alma" (§ 387). Equivaleria dizer que é preciso desapegar da
própria dor33, ou de deixar de se identificar com o complexo, para que o pensamento pudesse
considerar o mundo e o indivíduo a partir de uma perspectiva distinta da narrativa arquetípica
constelada pela nigredo. Enquanto a cabeça estiver presa ao corpo, ou melhor, enquanto
houver identificação com o complexo, o pensamento estará subordinado a ele; e surgirá como
imagens que obedecem à mesma narrativa arquetípica que está na base do complexo; mas
nunca além dela.
32
Em alusão à nigredo, Jung afirma que esta fase "é o tempo da incubação ou da gravidez" (JUNG, OC 14/, §
386).
33
Para Hillman, a decapitação é "um ato que separa a compreensão de sua identificação com o sofrimento"
(HILLMAN, 2011A, p. 141).
62
identificação com o complexo é, portanto, o caminho para que se realize a decapitação. "A
reivindicação de ser alimentado é substituída pelo jejum voluntário" [...]. Por tal atitude “a
libido é obrigada a desviar-se para um símbolo ou um equivalente simbólico da 'alma mater',
para o inconsciente coletivo" (ibidem); libertando o ego do aprisionamento no passado.
63
Por esse motivo, a decapitação "é uma emancipação do pensar residente na cabeça,
que é a 'cogitatio' (cogitação) ou uma libertação da alma das cadeias da natureza" (JUNG, OC
14/2, § 387). A alma, liberta de sua identificação com a matéria, pode assim seguir sua
jornada. A possibilidade dialógica criada a partir da decapitação dá início à unio mentalis
(união mental). A alma, agora liberta do corpo, ascende para se unir ao espírito. Para Jung
(OC 14/2) esta é a primeira etapa da coniunctio que, mais tarde, culminará com a reunião
entre a cabeça e o corpo. Esta primeira etapa corresponde à "confrontação da consciência (isto
é, da personalidade do eu) com o que se acha no fundo da cena, a chamada sombra" (§ 366) e
diz respeito à "relação do adepto com seu spiritus familiaris" (ibidem). A unio mentalis,
portanto, pode ser vista analogamente ao sacrifício da identificação com o complexo, espécie
de renúncia à sedução de permanecer no passado, e o estabelecimento de uma relação
dialógica entre o ego e o inconsciente – o confronto com a sombra.
34
A função da anima enquanto mediadora entre o ego e o inconsciente coletivo, assim como as complicações
geradas pela sombra e sua relação com a anima serão discutidas em profundidade no tópico: "as transformações
da anima no processo de individuação".
35
Para Jung, a finalidade deste procedimento seria a reanimação dos arquétipos que perderam sua eficácia na
cultura e/ou para o indivíduo. "A exigência que surge em tais situações é a de uma nova interpretação dos
arquétipos em correspondência com o espírito da época, que represente a respectiva compensação da situação
modificada da consciência" (JUNG, OC 14/2, § 399).
64
novo sentido é dado ao mundo e a si próprio, a partir da irrupção e da comoção oriundas da
multiplicidade arquetípica do inconsciente coletivo. A unio mentalis, portanto, se caracteriza
pela integração da sombra por um lado, e pela reanimação das imagens arquetípicas que
estavam mortas e ineficazes na cultura na consciência individual.
Essas considerações nos permitem compreender que a vontade consciente não é capaz
de servir como ferramenta única para atravessar o estado depressivo; isto é, não há caminho
possível pela acentuação da antiga dominante da consciência. Ao contrário, o processo exige a
participação do inconsciente coletivo em um relacionamento dialógico com o ego para que
possa realizar sua finalidade. É necessário que outra força, maior que o ego, entre em cena
para ajudar a conduzir o processo a partir de onde a vontade consciente não tem mais
condições de fazê-lo devido a sua unilateralidade. E para tal, torna-se fundamental uma
formulação individual das imagens coletivas que perderam sua eficácia na cultura; já que
somente assim, o indivíduo poderia ser animado por elas.
É como se a alma não corresse mais o risco de retornar ao estado da nigredo, pois o
processo foi não somente definitivamente ultrapassado, mas o ego encontrou uma atitude
capaz de lidar com futuros problemas. Ou melhor, trata-se, menos de se ter ultrapassado uma
dificuldade, mas de, a partir das complicações geradas pela atitude consciente, ter-se
encontrado uma nova atitude capaz de se relacionar com o inconsciente de modo a não serem
65
produzidas grandes complicações futuras. Equivale ao momento em que os olhos se abrem
definitivamente "ou, como dizem os alquimistas, lhe apareçam os oculi piscium (olhos de
peixe) ou as scintillae, as faíscas luminosas, na solução escura" (JUNG, OC 14/2, § 406).
Jung relaciona os olhos de peixe dos alquimistas a um estado de atenção permanente, pois
estão sempre abertos e enxergam sempre36.
O terceiro e último grau da coniunctio descrito por Jung (OC 14/2) significa "a união
do homem total com o unus mundus" (§ 414). O segundo grau da coniunctio, a realização do
Self, seria como uma simples antecipação da realização; que para ser plenamente efetivada
necessitaria da participação do indivíduo plenamente realizado no mundo. Entretanto, não se
trata de um simples estar no mundo, mas da ligação entre o indivíduo e a unidade do mundo;
o mundo potencial ou mundus archetypus. "Poderíamos exprimir isso, do ponto de vista
psicológico, como uma síntese da consciência com o inconsciente" (JUNG, OC 14/2, § 425).
Entretanto, não devemos considerar o inconsciente, neste contexto, como algo que dissesse
respeito exclusivamente ao indivíduo, mas como algo que mergulha além dele; passando pela
história do homem na cultura para chegar ao fundamento arquetípico da própria realidade. Em
termos gerais, considero que o mais alto grau da coniunctio descrito por Jung diz respeito à
participação consciente do indivíduo (que sustenta a própria singularidade) num rio maior e
muito mais antigo; o processo histórico da formulação arquetípica pelo homem na cultura;
que por sua vez, repousa sobre o fundamento último do mistério transcendente.
A nigredo alquímica, portanto, não pode ser vista unicamente como um estágio do
desdobramento da personalidade no sentido da própria integralidade, mas fundamentalmente
do enraizamento do homem no mundo. Entretanto, devemos levar em consideração os
diversos perigos envolvidos nesta empreitada; dentre os quais, o desenvolvimento de uma
depressão crônica. O fato das imagens da alquimia concordarem, segundo Jung (2006), com a
psicologia empírica, está longe de indicar que a depressão psicogênica é um processo que
36
"Os olhos de peixe estão sempre abertos, e por isso devem enxergar sempre, razão pela qual os alquimistas os
empregam como símbolo para a atenção permanente" (JUNG, OC 14/2, § 406).
66
deveria caminhar naturalmente para um desfecho favorável ao indivíduo. Ao contrário, os
exemplos trágicos são muitos para serem ignorados, assim como as constantes advertências
dos alquimistas sobre os riscos envolvidos no processo.
Por esse motivo Jung (2002) considera a individuação, ao mesmo tempo, enquanto
tragédia e realização37. Invariavelmente todos estamos navegando no mesmo rio ancestral que
constitui o mundo desde o início dos tempos; entretanto, estar participando nele de forma
consciente é algo muito menos comum. Trata-se de um só e mesmo rio, em que alguns
navegam, enquanto outros se afogam.
O conceito de anima ocupa uma posição bastante central na teoria junguiana. Seria a
anima, em última análise, aquela instância psíquica que serviria como ponte entre a
consciência e o inconsciente coletivo; possibilitando, portanto, o estabelecimento de uma
relação consciente entre o ego e as demais imagens arquetípicas. Entretanto, a própria anima é
também um arquétipo, cuja excepcionalidade se expressa no fato de estar envolvida nos
principais processos psíquicos descritos por Jung. Enquanto personificação do inconsciente
do homem, a anima está relacionada a priori a tudo aquilo que é inconsciente. Portanto, para
compreendermos o conceito de anima, é fundamental levarmos em consideração sua natureza
arquetípica, assim como o modo como as imagens arquetípicas são continuamente elaboradas
ao longo da história.
37
“[...] na perspectiva psicológica, não se pode designar o conceito de si-mesmo como summum bonum [bem
maior]. Eu nunca fiz isso em parte alguma. Seria uma contradictio in adiecto [contradição em termos], uma vez
que, por definição, o si-mesmo representa uma união virtual de todos os opostos. Nem no sentido metafórico
podemos designá-lo como summum bonum, pois ele não é um summum desideratum [algo altamente desejável],
mas antes uma dira necessitas [extrema necessidade] que assim é caracterizado por todas as qualidades
desagradáveis. A individuação é tanto fatalidade quanto realização. A psicologia do si-mesmo não é filosofia,
mas um processo empiricamente constatável que, enquanto processo natural, poderia transcorrer
harmoniosamente, se não recebesse uma conotação trágica no ser humano pela colisão com a consciência”
(JUNG, 2002, p. 136).
67
"Examinando estas imagens [arquetípicas] mais detalhadamente,
constataremos que elas são, de certo modo, o resultado formado por inúmeras
experiências típicas de toda uma genealogia. Elas são, por assim dizer, os resíduos
psíquicos de inúmeras vivências do mesmo tipo. Elas descrevem a média de milhões
de experiências individuais apresentando, desta maneira, uma imagem da vida
psíquica dividida e projetada nas diversas formas do pandemônio mitológico”
(JUNG, OC 15, § 127).
Para Jung (OC 7/1), as imagens arquetípicas atuam no indivíduo impelindo-o a repetir
sempre e de novo estas experiências incessantemente vividas pela humanidade ao longo da
história; são, portanto, reatualizadas no tempo presente através da experiência individual e
adquirem novas tonalidades de acordo com o espírito da época. Podemos concluir com isso,
que apesar de um substrato comum, tais imagens podem sofrer inúmeras variações
dependendo da cultura e do tempo. Por esse motivo não se pode considerar que as associações
em torno do masculino e do feminino, ou seja, aquilo que define os gêneros sexuais em
determinado lugar e tempo, sejam arquetípicas; mas somente a tendência geral de que
masculino e feminino sejam diferenciados de alguma forma em qualquer tempo e lugar –
marcando sempre e de novo a experiência da alteridade.
Do mesmo modo, não poderíamos supor uma arbitrariedade nestas associações, como
se qualquer associação pudesse se relacionar ao masculino ou ao feminino sem a influência
específica do espírito da época. O ser humano não pode ser considerado como uma mônada
fechada, como se existisse independente de seu contexto. E as associações que gravitam, por
assim dizer, no entorno dos arquétipos dizem respeito a conteúdos elaborados ao longo de
períodos históricos específicos.
68
elaboração de um entendimento sobre as influências específicas das diversas variações destas
imagens na psicologia do indivíduo.
No que diz respeito aos desdobramentos possíveis das imagens da anima, Jung (OC
16/2) categoriza quatro diferentes graus; cada qual caracterizado por formas típicas do
feminino, que exercem influências específicas na psicologia do indivíduo. Qualls-Cobert
(1990) considera que “a cada um desses estágios, o homem vai travando conhecimento com
um aspecto diferente de sua própria natureza feminina” (p. 138). Entretanto, nós diríamos que
o desenrolar das imagens da anima não traz ao indivíduo, unicamente, a questão da relação
com o sexo oposto; mas, primariamente versa sobre a questão da alteridade em sua forma
mais ampla. Conforme o desdobramento das imagens da anima se aprofunda na experiência
individual, o ego é confrontado com questões que transcendem o gênero, e que dizem respeito
ao Eros de modo geral; trata-se, portanto, da ética do relacionamento com o outro,
independente de este outro ser homem, mulher, uma imagem do inconsciente ou uma
instituição social.
69
outro. No que diz respeito à problemática da alteridade trazida pela anima, a ampliação da
consciência implica na progressiva constelação de diferentes formas de relacionamento com o
outro; cada qual circunscrita na narrativa arquetípica específica de cada grau da anima. Tais
estágios (ou graus) da anima são exemplificados por Jung através das figuras de Chawwa
(Eva), Helena, Maria e Sofia.
“O primeiro grau da Chawwa, Eva, Terra é apenas biológico, em que a
mulher=mãe não passa daquilo que pode ser fecundado. O segundo grau ainda diz
respeito a um Eros predominantemente sexual, mas em nível estético e romântico,
em que a mulher já possui certos valores individuais. O terceiro grau eleva o Eros ao
respeito máximo e à devoção religiosa, espiritualizando-o. Contrariamente a
Chawwam trata-se da maternidade espiritual. O quarto grau explicita algo que
contraria as expectativas e ainda supera esse terceiro grau dificílimo de ser
ultrapassado: é a sapientia. [...] Este grau representa a espiritualização de Helena,
portanto, do próprio Eros” (JUNG, OC 16/2, § 361).
Os quatro graus da anima descritos por Jung podem, portanto, ser adequadamente
considerados como estágios que podem ocorrer ao longo do desenvolvimento humano e,
portanto, como níveis de realização do arquétipo. Partindo da mãe natural, passa pela amante,
pela mãe celestial e finalmente chega à sabedoria ou ao eterno feminino. Os dois últimos
estágios referem-se à espiritualização dos dois primeiros; quer dizer, o terceiro grau da anima
corresponde à espiritualização do primeiro, enquanto que o quarto grau corresponde à
espiritualização do segundo.
Através das próprias vivências, o homem “é conduzido, por assim dizer, por uma
imagem da anima a outra” (QUALLS-COBERT, 1990, p. 138). A transformação da anima na
psicologia do indivíduo inicia-se em dois graus naturais, por assim dizer, e se desdobra em
outros dois graus espirituais. Os dois primeiros graus dizem respeito à vivência concreta do
instinto, enquanto que nos dois segundos “a atividade concreta do instinto assume por assim
dizer um caráter simbólico” (JUNG, OC 16\2, § 361). A passagem dos graus naturais para os
espirituais tem enorme repercussão na psicologia do indivíduo, visto que, passa a prevalecer a
satisfação simbólica do instinto ao invés de sua atuação impulsiva; condição intrínseca ao
processo de individuação.
Nos dois primeiros graus, a realização do arquétipo acontece pela via da atuação,
como se fosse uma encarnação ou encenação, que orienta o processo psíquico no sentido do
destino arquetípico constelado; mas, no entanto, não pode se tornar consciente – constituindo
um fato natural. Já nos dois segundos graus, a realização do arquétipo ocorre através do
símbolo, que agrega sentidos ao que antes era somente natureza e, desta forma, torna possível
70
o estabelecimento de uma relação entre o ego e o conteúdo inconsciente. Qualls-Cobert
(op.cit.) afirma que, idealmente, a realização máxima do arquétipo incorporaria à consciência
do indivíduo todo o continuum de suas energias instintivas e suas respectivas formas
espirituais; e que isto culminaria com a imagem do “hieros gamos, o matrimônio sagrado ou a
união dos opostos” (p. 138).
Jung (OC 8/1) atribui grande importância à carga hereditária do homem. Podemos
considerar o desenvolvimento anímico ou o processo psíquico como algo ancorado no
desdobramento das imagens do instinto através do processo histórico e reatualizado na
experiência individual. Para o autor, a ancestralidade cria trilhas, ou seja, tendências que
orientam a transformação da energia psíquica para determinadas imagens arquetípicas
culturalmente elaboradas. Este princípio ativo e dinâmico que, como um sopro, impulsiona o
38
Jung associa anima ao Eros em contraposição ao animus, relacionado ao Logos. Tal observação deve ser
considerada a partir de uma perspectiva sócio-histórica, isto é, do conjunto de associações relacionadas ao
feminino e ao masculino através da história. Visto que o autor considera o arquétipo como forma sem conteúdo,
ou melhor, como tendência a que sejam produzidas formas, não poderíamos supor que conteúdos específicos –
Eros e Logos – dissessem respeito à natureza do arquétipo, mas somente ao modo como este se manifesta através
do espírito da época.
71
desdobramento das imagens através do leito de rio cravado pela ancestralidade é chamado por
Jung de Espírito. “O espírito, como princípio ativo da carga hereditária, consiste na somatória
dos espíritos ancestrais, dos pais invisíveis, cuja autoridade nasce com a criança” (§ 101). Os
quatro estágios culturais do Eros descritos por Jung, portanto, referem-se a este leito de Rio
Ancestral; cujas possibilidades de realização dependem do sopro do Espírito que desdobra as
imagens na experiência individual.
Esta situação pode ser compreendida em analogia ao mito da renovação do rei39. Onde
este experimenta um período de fertilidade pujante, que se estende a todo seu reino, mas que
invariavelmente declina em infertilidade; fato que exige sua renovação. Jung (OC 14/2)
afirma que “a decadência do rei se deriva de sua imperfeição ou de sua doença” (§ 131);
imagem associada ao rei que reina sobre uma terra estéril. O poder do rei consiste no fato da
sua atitude ser capaz de “perceber simbolicamente a oposição contida no ser” (§ 136); ao
contrário, sua doença consiste na incapacidade de considerar o oposto inconsciente. Na
progressão da libido, enquanto “os pares de opostos estão unidos no decorrer coordenado dos
processos psicológicos” (JUNG, OC 8/1, § 61), o poder do rei é atuante e, portanto, há
possibilidade de uma vida criativa no mundo – a fertilidade solar do rei pode se estender
magicamente a todo seu reino. No entanto, tal estado é sempre temporário, e invariavelmente,
39
Análogo ao mitologema do herói e os movimentos da libido discutido com mais profundidade no tópico: "o
ponto de vista energético-finalista no estudo da depressão".
72
o poder do rei minguará conforme o alastramento de sua doença; e sua renovação tornar-se-á
necessária.
73
As transformações imagéticas da anima variam de acordo com a atitude do ego em
relação ao outro (inconsciente). Para Jung (OC 12), “a máscara do inconsciente não é rígida,
mas reflete o rosto que voltamos para ele. A hostilidade confere-lhe um aspecto ameaçador, a
benevolência suaviza seus traços” (§ 29). Através desta afirmação, podemos compreender a
ambiguidade da anima, já que essa se apresenta à consciência tanto através de imagens
benevolentes quanto ameaçadoras.
Neste ponto, torna-se crucial termos em mente a relação entre ego, persona e sombra,
abordadas anteriormente nesta pesquisa; já que, justamente esta relação, influencia
diretamente a atitude do ego em relação ao inconsciente e, portanto, a constelação das
imagens da anima. É a identificação com a persona e a recusa pela sombra que faz com que as
imagens sombrias da anima sejam consteladas. E é exatamente por esse motivo que a
depressão é caracterizada por imagens da anima sombria; pois, conforme já observado nos
tópicos anteriores deste mesmo capítulo, é a anima sombria aquela que pretende afogar a
consciência do ego para dissolver determinada visão e mundo e de si próprio (melanosis), em
benefício de uma nova atitude que leve a sombra e o inconsciente coletivo em consideração.
Assim sendo, o primeiro grau da coniunctio, a partir da melanosis, é responsável por libertar a
anima de sua contaminação com a sombra e abre caminho para a constelação da anima
enquanto condutora (ponte entre o ego e o inconsciente coletivo); e, finalmente, o terceiro
grau da coniunctio seria aquele capaz de produzir uma nova e definitiva transformação na
imagem da anima – Sophia, o eterno feminino.
“A figura da anima (isto é, o inconsciente personificado) separada da
consciência do eu, portanto inconsciente, significa que a existência de uma camada
isoladora do inconsciente pessoal está intercalada entre o eu e a anima. A existência
de um inconsciente pessoal demonstra que conteúdos de caráter pessoal poderiam de
fato tornar-se conscientes, mas são ilegitimamente mantidos no inconsciente.
Estamos portanto, na presença de uma consciência insuficiente ou inexistente da
sombra. A sombra corresponde a uma personalidade do eu negativo, compreendendo
portanto todas as características cuja existência é desagradável e deplorável. Neste
caso, a sombra e a anima, por serem ambas inconscientes, contaminam-se
mutuamente [...]” (JUNG, OC 12, § 120 [rodapé 120]).
74
consciente. Jung afirma que “a anima tem função de mediadora entre a consciência e o
inconsciente coletivo” (JUNG, OC 14/2, § 163 [rodapé 390]), entretanto, enquanto a sombra
se interpuser entre o ego e ela, permanecerá incapaz de ser integrada a consciência e, portanto
de mediar qualquer relação com o inconsciente coletivo. A anima contaminada pela sombra se
caracteriza por um feminino sombrio, que intenta afogar o rei; pois este, dominado por sua
doença – a unilateralidade – distanciou-se de sua própria escuridão e, assim, o indivíduo perde
também a possibilidade de uma vida criativa. Esta imagem sombria da anima, portanto,
intenta trazer o lodo rejeitado da sombra, rico em novas possibilidades de vida, para a
consciência.
Jung (OC 9/2) ressalta "que a integração da sombra, isto é, a tomada de consciência do
inconsciente pessoal constitui a primeira etapa do processo analítico, etapa sem a qual é
impossível qualquer conhecimento da anima e do animus" (JUNG, OC 9/2, § 42). Por esse
motivo, considera que a sombra representa "como que a ponte que leva à figura da anima"
(JUNG, OC 14/1, §125 [rodapé 65]). Daí a importância crucial da fase alquímica da nigredo
ao processo de individuação. A contaminação mútua entre anima e sombra, portanto, é um
fato extremamente importante para o processo analítico; pois influencia diretamente as
imagens consteladas no curso do processo psíquico.
Os conteúdos da sombra, modo geral, são percebidos pelo ego como inapropriados,
indesejados ou desagradáveis. Jung (OC 16/2) afirma que, para o indivíduo, a sombra é
“aquilo que ele não queria ser” (§ 470), ou seja, suas características inferiores que, ele
próprio, não aceita ou repugna – os “traços obscuros do caráter” (JUNG, OC 9/2, § 15).
Entretanto, Jung (OC 16/1) adverte que o lado sombrio pertence à totalidade do indivíduo e é
um dos fatores que nos caracteriza enquanto humanos; sem ele estaríamos privados de nossa
própria humanidade e reduzidos há algo muito menor do que somos de fato; frequentemente
identificados com nosso papel social ou a persona.
“O lado sombrio pertence à minha totalidade, e ao tomar consciência da
minha sombra, consigo lembrar-me de novo de que sou um ser humano como os
demais. Em todo caso, com essa redescoberta da própria totalidade – que a princípio
se faz em silêncio – fica restabelecido o estado anterior, o estado do qual derivou a
neurose, isto é, o complexo isolado. O isolamento pode prolongar-se com o silêncio,
e a reparação dos danos ser apenas parcial. Mas pela confissão lanço-me novamente
nos braços da humanidade, livre do peso do exílio moral” (JUNG, OC 16/1, § 134).
75
além de uma psicologia demasiadamente personalista, cujo foco permanece no núcleo
familiar. Pois tanto a persona quanto a sombra estão intimamente relacionadas ao espírito da
época; já que se constituem a partir da consciência coletiva e da sombra coletiva. Neste
sentido, a família pode ser vista, como uma entidade que encarna o espírito da época;
transmitindo a seus novos membros os complexos culturais nos quais se encontra imersa,
assim como as imagens arquetípicas elaboradas pela cultura ao longo do processo histórico.
Por esse motivo Jung (OC 7/1) considera que "a neurose está intimamente entrelaçada com o
problema do próprio tempo e representa uma tentativa frustrada do indivíduo de resolver
dentro de si um problema universal" (§ 18). O foco, portanto, não recai sobre a família, mas
sim sobre até onde a cultura caminhou na elaboração das imagens arquetípicas e para onde
deve continuar caminhando.
“Jung escreveu que era tarefa difícil distinguir entre psique pessoal e psique
coletiva. Um dos fatores que o indivíduo se defrontava era a persona – nossa
„máscara‟ ou „papel‟. Esta representava o segmento da psique coletiva que era
erroneamente considerada individual” (SHAMDASANI in JUNG, 2012, p. 208).
A persona, portanto, não é uma aquisição pessoal, mas antes, um segmento da psique
coletiva – da consciência coletiva – que, modo geral, agrega aquelas características
consideradas desejáveis pela cultura na constituição de seus membros. Serve como modelos,
mais ou menos prontos, de papéis sociais adequados para situações específicas. Jung (OC 8/2)
considera que na passagem da infância para a vida adulta, estes ideais de eficiência e utilidade
(da consciência coletiva), que constituirão a persona, são como "estrelas que nos guiarão na
aventura da ampliação e consolidação de nossa existência física" (§ 769); auxiliando
decisivamente na constituição de indivíduos bem adaptados a seu tempo.
Entretanto, embora a consciência coletiva nos auxilie, através da persona, "a fixar
nossas raízes neste mundo" (JUNG, OC 8/2, § 769), não seria capaz de "nos guiar no
desenvolvimento da consciência humana” (ibidem). Surge assim o perigo da identificação
com a persona, em que há uma fixação no papel coletivo em detrimento à singularidade.
Enquanto houver identificação com aquilo que o espírito da época considera bom e adequado,
invariavelmente, haverá forte recusa por parte do ego àquilo que é considerado mal e
inadequado. Estes traços considerados inferiores, portanto, privados da luz da consciência,
constituirão a sombra, a camada do inconsciente pessoal que irá se impor entre o ego e a
anima; e que contaminará esta última enquanto não for suficientemente integrada.
76
Para Jung (OC 14/2), enquanto a sombra não for integrada à consciência, a anima
também não poderá ser; e exercerá um papel possessivo sobre o sujeito. "Os sintomas
principais dessa possessão são de uma parte caprichos cegos e confusões compulsivas, e de
outra parte isolamento, frio e sem nenhum relacionamento" (§ 204). Portanto, embora o ego
identificado com a persona considere a dominante da consciência como algo extremamente
positivo, esta, "de modo nenhum, é uma ideia „querida por deus‟, mas sim o mais alto
propósito egoístico de usar uma máscara determinada para representar certo papel e para
aparecer como algo vantajoso" (ibidem). Assim, o ego identificado com a persona, que
outrora encarnava as virtudes coletivas de seu tempo, sob a influência possessiva da anima
sombria, acaba por ser confrontado pela própria sombra; a fim de encontrar no lodo a própria
singularidade.
77
(JUNG, OC 14/2, § 205). A passagem dos graus naturais da anima para os graus espirituais,
portanto, é intercalada por um período de "enegrecimento40", caracterizado pelo aumento de
energia dos conteúdos inconscientes negligenciados pela consciência no curso do processo
adaptativo.
A anima sombria, tal qual a serpente, surge como aquela que atrai o mundo sombrio à
consciência. Em analogia ao conceito de regressão da libido, este processo teria como
finalidade a renovação da consciência através da integração dos conteúdos necessários à
continuidade da vida solar da consciência. É como um rito de passagem, em que o ego
autocentrado é enclausurado no mundo noturno, onde deverá concluir as provas iniciáticas
para que finalmente renasça orientado às instâncias transpessoais do inconsciente coletivo.
“A nigredo (negrura) corresponde à escuridão do inconsciente, que encerra
em primeira linha a personalidade inferior ou a sombra. Esta é uma personalidade
feminina, que de certo modo está por trás dela e a domina, isto é, a anima, cuja
representação esclarecedora e característica é a Sulaminta. [...] A Sulamita, a
servidora de Ishtar, significa terra, natureza, fertilidade, tudo o que cresce bem sob a
luz úmida da Lua, também a pretensão natural de nada além da vida” (JUNG, OC
14/2, § 312).
40
Alusão à melanosis da alquimia.
78
A anima enquanto mãe celestial, Maria – terceiro grau da anima –, é aquela que traz o
filho de Deus em seu ventre. "Esta imagem corresponde ao psicologema da anima grávida,
que ocorre com frequência; seu filho corresponde ao si-mesmo, ou respectivamente é
distinguido pelos atributos do filho herói” (JUNG, OC 14,1, § 211). Jung (OC 14/2) considera
a imagem da Lua como intermediária "entre o conceito de mãe-virgem e o de filho, o qual é
redondo, são e perfeitamente provido" (§ 164). A relação entre o redondo e a mãe estaria no
fato de que esta carrega em seu ventre a criança divina. A imagem da criança, na forma de
unidade (redondo), é análoga a "uma síntese da personalidade inconsciente que já se
completou provisoriamente, a qual, na prática, como tudo o que é inconsciente, não significa
mais do que uma possibilidade" (JUNG, OC 9/1, § 280). Isto é, a anima enquanto mãe de
Deus, ou Maria, é ao mesmo tempo arauto e portadora da síntese entre o consciente e o
inconsciente – é quem gesta a totalidade em seu próprio ventre – e traz a possibilidade, ainda
não alcançada, da união entre o homem completo com o unus mundus (terceiro grau da
coniunctio).
“O fato que o redondo, por assim dizer, está de certo modo contido na
anima e que por ela é anunciado, confere a ela aquele significado extraordinário e
fascínio que é próprio do „feminino-eterno‟, tanto no bom sentido como no mau. Em
certa etapa aparece, pois, o feminino como o verdadeiro suporte da totalidade
almejada e, de modo absoluto, de quem deve ser salvo” (JUNG, OC 14/2, § 165).
É, portanto, Sofia – quarto grau da anima –, aquela que emerge de forma concomitante
à apoteose definitiva do rei. Sofia é a própria sapientia; a sabedoria do homem plenamente
realizado enraizado no mundo. "Ela lhe é mãe [do artífice], amada e filha ao mesmo tempo, e
em sua arte e em suas alegorias se desenrola seu próprio drama psíquico, seu processo de
individuação" (JUNG, OC 14/2, § 208). Neste ponto, a sapientia, não se relaciona à anima
pessoal, ou à imagem de mulher no homem, mas ao aspecto feminino de Deus – o Eterno
Feminino. "Ela atua, portanto, de modo transpessoal, isto é, além do indivíduo, e indica a este
último o caminho, como um princípio de ordem" (JUNG, OC 14/3, § 70).
Por esse motivo, Jung (OC 14/2) considera a vivência do Self como uma "derrota do
eu" (§ 433), pois significa que as pretensões egóicas são sobrepujadas por ele. Para o autor
(JUNG, OC 9/2), a personalidade é ampliada, e surge um novo centro de gravidade que não
converge necessariamente com o ego. "Este acontecimento revoluciona a psique orientada ao
eu, colocando ao lado dele ou – melhor – contrapondo a ele outra meta e outro centro”
(JUNG, OC 9/2, § 296); e é a sapientia – a anima mundi – aquela responsável por indicar o
79
caminho a esta nova meta. O Self, enquanto novo centro de gravidade, faz com que o
indivíduo deixe de se orientar unicamente a partir das dominantes coletivas da consciência e
passe a se orientar a partir de sua singularidade mais radical.
Jung (OC 9/2) afirma que, no homem há uma autoridade interna em contraposição à
autoridade externa da consciência coletiva; são impulsos, que devem ser considerados como
"vontade de Deus41", aos quais devemos aprender a conviver corretamente. Caberia ao
homem, portanto, a decisão ética sobre obedecer ou rejeitar tal autoridade. O desenvolvimento
da personalidade, e a consequente ampliação da consciência, traz ao homem um problema
ético que versa sobre manter-se fiel à própria lei. "A fidelidade à sua própria lei significa
confiar nessa lei, perseverar com lealdade e esperar com confiança; enfim, é a mesma atitude
que uma pessoa religiosa deve ter para com Deus" (JUNG, OC 17, § 296). Não se trata, como
se poderia supor, da vontade, nem tão pouco da lei imposta por uma autoridade externa; mas a
própria lei, significa a lei de quem realmente somos – o Self enquanto singularidade radical.
Embora haja este rio que tende a levar cada indivíduo ao destino arquetípico do
homem; este último constantemente adentra em reentrâncias, se agarra em pedras ou se afoga
tragicamente. Motivo pelo qual Jung (2002) considera que "a individuação é tanto fatalidade
quanto realização" (p. 136). Para o autor, enquanto processo natural, a individuação é uma
tendência que leva a vida a seu próprio destino, mas adquire uma conotação trágica no
homem, na medida em que colide com a consciência. O decisivo, portanto, está na atitude da
41
Jung não considera a palavra Deus, utilizada neste contexto específico, em seu sentido cristão. Mas como um
daimon, um poder que transcende o ego e vem de encontro a este.
80
consciência diante do fluir das vida anímica; é a própria questão da alteridade. Na medida em
que o ego recusa o outro, que ora aparece enquanto imagem do inconsciente, ora projetado no
mundo, abre mão de sua própria integralidade e definha, como o rei doente, na
unilateralidade.
É preciso, pois, sustentar o conflito trazido pela anima sombria através de um ato da
vontade. Suportar e tolerar até que o conflito produza uma solução, tal como uma síntese entre
os opostos. No encontro entre dois, os dois se transformam. A consciência se amplia e a
anima se desdobra em seu próximo grau; revelando que seu aspecto horrendo não se
relacionava a sua própria natureza, mas que esse horror dizia respeito àquilo que era rejeitado
em si próprio. Ao aceitar o outro, portanto, aceita-se a si próprio ou vice e versa. Por esse
motivo Jung considera que o melhor trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é
parar de projetar nossas sombras nos outros. A integração da sombra, possibilitada através da
relação com a anima sombria, tem, portanto, uma tremenda influência na forma como o
indivíduo se relaciona com o mundo.
81
5.0 SUICÍDIO E IDENTIFICAÇÃO COM O COLETIVO
Uma estimativa da OMS (WHO, 2002) para mortes violentas ocorridas no ano 2000,
em todo o mundo, indica que 31,3% foram causadas por homicídios, 18,6% por guerras e
49,1% por suicídios. Assim sendo, o suicídio ocupa o topo do ranking mundial em se tratando
de mortes violentas. Ainda de acordo com a OMS (WHO, 2014), em todo o mundo, o suicídio
representa 50% do total de mortes violentas para homens e 71% para mulheres. Embora haja
diferenças significativas na proporção de mortes por suicídio entre homens e mulheres em
diferentes países, é invariável o fato de que há mais suicídios entre homens do que entre
mulheres em todas as regiões do planeta; e dentre indivíduos na faixa etária de quinze a vinte
e nove anos, o suicídio representa a segunda maior causa de morte em todo o mundo.
O termo suicídio é derivado do latim sui (de si, si mesmo) e caedere (golpear, matar),
literalmente matar a si próprio. Trata-se, portanto, de um termo bastante genérico que poderia,
do ponto de vista etimológico, ser empregado para designar toda e qualquer situação que
envolvesse o ato de tirar a própria vida. Entretanto, o ato suicida é uma questão complexa que
não deve ser tratada de forma tão generalista. Muitos são os contextos socioculturais,
religiosos, situacionais e psicológicos que podem levar uma pessoa a tirar a própria vida; em
cada um deles poderíamos observar diferenças profundas naquilo que é designado
genericamente como suicídio. Neste trabalho, não pretendemos desenvolver uma pesquisa
82
ampla sobre a questão do suicídio, mas somente tecer algumas considerações acerca da
emergência das ideações suicidas nos indivíduos depressivos.
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Um homem-bomba, por exemplo, está tão fascinado pela imagem arquetípica do
salvador cuja renovação do estado original do mundo depende do próprio sacrifício, que não
tem outra escolha a não ser atuar inconscientemente este destino arquetípico. Isto é, a
constelação do mitologema do herói, mais especificamente do mitema do sacrifício, e a
fascinação da consciência ocasionada por essas imagens anímicas, projetam no mundo seu
enredo e levam o indivíduo a atuar o destino arquétipo do herói de forma totalmente
inconsciente. Neste caso, a constelação do mitema do sacrifício organiza a experiência
individual em suas próprias bases arquetípicas; de modo que a morte é percebida como um
dever inevitável do indivíduo diante da salvação do mundo e oferecida a algo maior do que
ele (um deus ou uma ideologia, por exemplo). Trata-se de uma morte com sentido ou pelo
sentido; diferente da morte do suicida, pelo desespero ou a desesperança da falta sentido.
No entanto, esta experiência parece não acontecer entre as pessoas que se suicidam.
Há uma exigência interior por uma morte, mas o indivíduo é incapaz de sacrificar quem ele
pensa ser; quer dizer, sua identificação com a persona. Termos em mente o conceito de
persona é importante neste caso, pois a morte exigida pela individuação equivale a uma
transgressão ao coletivo em benefício do indivíduo. Analogamente, assim como Abraão
precisava sacrificar sua descendência, isto é, o imperativo social masculino de seu contexto
cultural; o indivíduo precisa sacrificar o valor que o mundo lhe atribui por ser aquilo que o
coletivo exige dele.
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Em linhas gerais, é possível observar que em adultos e idosos, há uma estreita relação
entre o suicídio e a inadequação individual às normas coletivas. Cavalcante & Minayo (2012),
em uma pesquisa sobre autópsias psicológicas e psicossociais de idosos no Brasil, observaram
que:
“Chama atenção como a dor e sofrimento físico desempenham papel
importante na fragilização do idoso e no desencadeamento suicídio, associada ao
agravamento de transtornos físicos. Ressalta-se, também, o papel da depressão
interagindo com outras variáveis. Ela aparece ora como coadjuvante de
complicações físicas e mentais, ora como principal causa quando associada a perdas,
quedas abruptas na vida socioeconômica, aposentadoria, endividamento ou
processos existenciais de tristeza e melancolia” (CAVALCANTE & MINAYO,
2012, p. 1953).
Neste contexto, chama atenção o fato de que o principal fator de risco ao suicídio
analisado pela pesquisa esteja relacionado ao isolamento social, tanto entre mulheres quanto
homens. A consideração sobre este fator de risco é importante, dado sua relevância e
prevalência. É preciso que tentemos compreender o isolamento social em seus aspectos
subjetivos, para que não tiremos a conclusão precipitada de que a simples presença de pessoas
pudesse ajudar a amenizar este fator de risco. Pois, é possível que o indivíduo permaneça
isolado apesar dos esforços da família e da comunidade; pois o isolamento, antes de ser um
comportamento visível, é um estado de espírito subjetivo. Trata-se de um estado de
fechamento ao outro, que pode estar profundamente influenciado pelo modo como ele se
percebe, e pela perda de valor a ele atribuído pelo coletivo. A identificação da consciência
com a persona faz com que o próprio ego acredite que aqueles valores coletivos são o ideal de
pessoa que ele próprio deveria ser. Com a dissolução da identificação da persona há
consequente perda de valor social; o indivíduo pode fechar-se ao coletivo por ele mesmo se
perceber como alguém que não tem valor. Assim sendo, caminhar para um estado de abertura
social que rompa o isolamento pode estar relacionado diretamente à necessidade de que o
indivíduo sacrifique os valores coletivos e descubra seu valor individual.
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Na pesquisa de Cavalcante & Minayo (2012), o segundo principal fator de risco ao
suicídio entre homens idosos diz respeito à invalidez, interrupção do trabalho e limitação da
capacidade funcional, seguido por tentativas anteriores de suicídio ou outros suicídios na
família, e finalmente a abusos físicos, verbais e desqualificações familiares. Em mulheres, o
segundo principal fator de risco relaciona-se às tentativas anteriores de suicídio e outros
suicídios na família, seguido de doenças incapacitantes e finalmente ao impacto provocado
por mortes ou doenças na família. Fica evidente a relevância da perda do lugar social
associado à maioria dos fatores de risco ao suicídio entre idosos observados no estudo. A
perda de produtividade e capacidade funcional entre os homens é um grave desvio das normas
coletivas atribuídas ao homem pela cultura patriarcal; assim como a perda de familiares tira
das mulheres o lugar doméstico a elas imposto pelo coletivo.
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posição não permite reflexão mais profunda, por estar fundamentada em um preceito moral
que se pretende inquestionável; de que a morte deva ser evitada a qualquer custo.
As discussões de Hillman sobre o suicídio em seu livro Suicídio e alma são de uma
coragem ímpar, por questionar aquilo que é considerado como certo, sem permitir
questionamentos. A posição do autor frente ao suicido e à morte difere radicalmente daquela
preconizada pela medicina e pelo senso comum, pois aborda a interioridade como principal
referencial para se pensar a questão. Há, portanto, uma inversão sobre as considerações sobre
a morte realizadas comumente, que somente levam em conta seu aspecto exterior (o corpo),
para que se leve em conta as imagens da morte, isto é, a alma.
Ao fazer isso, o autor, tece observações valiosas não somente para o psicoterapeuta
que lida com o problema do suicido em seu cotidiano e que, portanto, pode facilmente ser
capturado pela ideia de que a vida deva ser preservada a qualquer custo; mesmo que isso
signifique a perda da alma (algo impensável ao psicoterapeuta); mas contribui para um debate
mais profundo sobre a morte e o morrer no mundo contemporâneo. As reflexões de Hillman
apontam o suicido como questão que revela a pobreza da educação anímica no mundo
ocidental contemporâneo; questão tentas vezes denunciada por Jung e que se imporia como
estanque ao processo natural de ampliação da consciência do homem, denominado como
processo de individuação.
Hillman considera que toda e qualquer forma de prevenção exterior ao suicídio, como
internação hospitalar, proteção e vigilância, privilegiariam o corpo em detrimento da alma.
Pois se tratam de medidas preventivas que em nada auxiliariam na extração de significado a
partir das próprias feridas e, portanto, manteriam o indivíduo exatamente no mesmo lugar.
Quer dizer, tal medida poderia agravar a crise suicida, pois “a resistência apenas torna o
impulso mais arrebatador e a morte concreta mais fascinante” (HILLMAN, 2011B, p. 100). O
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tratamento médico tradicional protegeria o paciente em momentos críticos e paralelamente
prescreveria medicamentos objetivando a extinção do sintoma, ou melhor, do sofrimento.
Seguindo este raciocínio, o autor, tece importantes críticas ao modelo de saúde fundamentado
no saber médico, que lutaria contra a morte e se esqueceria da alma; um problema não
somente da medicina, mas uma questão importante da contemporaneidade, no qual ela está
inserida.
Apesar do ponto de vista de Hillman apontar exatamente para este sentido e ter o
cuidado para que o suicídio não seja julgado precipitadamente por um ponto de vista que se
fundamente na rejeição da realidade da alma, pensar abordagens preventivas além das
propostas pelo autor em seu livro “Suicídio e Alma” não se relaciona necessariamente à
perspectiva na qual o suicídio seria considerado como antinatural ou que deveria ser impedido
a qualquer custo por violar um suposto ciclo apreendido através de observações do mundo
exterior, seja através das ciências naturais, da sociologia, do direito ou da teologia. Ao invés
disso, é a partir do próprio substrato anímico que podemos supor que atos não analíticos
podem estar a favor do processo analítico em pessoas com ideações suicidas.
Assim sendo, considero que a suspensão temporária da postura analítica por parte do
psicoterapeuta é justificada como medida preventiva em casos particulares. E isso significa
lançar mão do processo analítico para uma atitude concreta no mundo exterior. No entanto,
este ato por parte do psicoterapeuta não é necessariamente idêntico ao do profissional de
saúde ou leigo que não leva em consideração a interioridade. Não se trata de considerar que a
vida deva ser mantida a qualquer custo, e que isto justificaria uma suspensão temporária da
postura analítica a favor do corpo (vida sem alma); pelo contrário, trata-se de um ato a favor
da manutenção da tensão geradora do conflito, que produz as imagens através das quais o
indivíduo tem a possibilidade de resgatar sua alma.
Para Hillman, no entanto, qualquer ato preventivo ao suicídio que não seja através da
postura analítica, isto é, que não atue levando em consideração exclusivamente a
interioridade, seria classificado automaticamente no outro oposto; isto é, como um ato
exterior que ignora a alma. Entretanto, uma postura preventiva exterior não atuaria
necessariamente em detrimento da interioridade, ou a favor de uma vida sem alma. Pelo
contrário, eventualmente esta pode ser a única postura possível a favor da alma em momentos
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críticos, que embora suspenda a problemática da subjetividade de forma imediata, atuaria para
garantir a continuidade do processo terapêutico. A prevenção exterior, portanto, não pode ser
considerada como um ato analítico, no entanto, é um ato a favor da análise (e não da vida) se
levado a cabo dentro do processo analítico; já que intenta sustentar o conflito – a tensão – do
qual é feita a própria análise. Sobre a postura da medicina em relação à alma, recorro ao
próprio Hillman.
90
6.0 CONCLUSÃO
Desta forma, é possível entender que não há algo como depressão dada genericamente,
mas há o indivíduo deprimido no mundo. Cada situação deve ser avaliada individualmente
para que compreendamos o que se trata em cada caso. Considero que esta avaliação é de
fundamental importância para a clínica junguiana, e que as discussões sobre os aspectos
psicodinâmicos das depressões psicogênicas, realizadas nesta pesquisa, fornecem alguns
parâmetros objetivos que podem auxiliar o psicoterapeuta neste sentido. Cabe a este, estar
advertido de que o manejo clínico exigido para um caso de depressão pode ser bastante
distinto de outro. Do mesmo modo, não se deveria considerar que por ser vista em analogia à
nigredo alquímica e, portanto, a uma fase do processo de individuação, a depressão teria
invariavelmente uma possibilidade de cura através da ampliação da consciência. A psicologia
analítica não é uma ferramenta infalível, nem tão pouco, a individuação é uma panaceia para
toda e qualquer situação.
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uma transformação individual; o que poderia levar o psicoterapeuta a considerá-la
genericamente desta forma. Embora esta advertência seja importante aos psicoterapeutas e
vise preveni-los de uma ingenuidade clínica, concordamos com o fato, já exposto por Jung, de
que a depressão pode se apresentar enquanto caminho necessário à individuação. É preciso,
entretanto, avaliar cada caso a partir de suas próprias particularidades.
Abordei a depressão na segunda metade da vida por se tratar de uma situação não tão
incomum. Nesse sentido, a analogia com a fase alquímica da nigredo se torna importante, pois
possibilita um entendimento geral do fenômeno; isto é, seus aspectos típicos. A identificação
com a persona e a recusa pela sombra, nesta fase da vida, costuma forçar a libido em seu
movimento regressivo para desfazer a imagem equivocada que a pessoa faz de si mesma e do
mundo, integre sua sombra e realize quem de fato é. Este é o caso específico em que a
individuação surge enquanto possibilidade de saída da depressão, através da ampliação da
consciência. As imagens da anima tornam-se sombrias enquanto houver grande quantidade de
conteúdos pessoais a serem integrados pela consciência; forçando o movimento regressivo da
libido e o rebaixamento da consciência característicos dos episódios depressivos.
92
a individuação poderia se apresentar genericamente enquanto possibilidade de cura da
depressão e de transformação individual e coletiva; entretanto, ao consideramos os aspectos
psicodinâmicos da depressão, observamos que a integridade egóica do indivíduo pode sofrer
variações que impossibilitam a individuação no sentido clássico; fato observado
empiricamente. De modo que, se torna necessário um olhar clínico mais apurado para que
possamos compreender cada caso de depressão individualmente e, determinar as
possibilidades e os objetivos das intervenções terapêuticas.
93
7.0 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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