A Ceia Do Senhor
A Ceia Do Senhor
A Ceia Do Senhor
É difícil saber como lidar com tal assunto sem esgotar a paciência
dos leitores. É difícil saber o que dizer, e o que deixar por dizer. O campo
foi tão completamente esgotado pelas obras de vários mestres em Israel,
que é literalmente impossível trazer a lume algo que seja novo. O máximo
que posso esperar conseguir é condensar alguns antigos argumentos. Se
eu puder sintetizar algumas coisas antigas e apresenta-las aos meus
leitores em um formato acessível e compacto, dou-me por satisfeito.
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De qualquer forma, uma coisa me é bem clara: é impossível superes-
timar a importância do assunto. Eu tenho uma forte e crescente con-
vicção de que o erro acerca da Ceia do Senhor é um dos erros mais
comuns e perigosos do tempo presente. Suspeito que mal saibamos do
quanto opiniões malsãs deste Sacramento prevaleçam, tanto entre o
laicato como entre o clero. Elas são a raiz oculta de 90% do ritualismo
extravagante que, como uma neblina, tem se espalhado em nossa Igreja.
Ao menos aqui, todos os ministros cristãos devem ser zelosos pelo Senhor
Deus dos Exércitos. Nosso testemunho deve ser claro, distinto e incon-
fundível. Nossas trombetas não devem dar som incerto. Os filisteus estão
sobre nós. A arca de Deus está em perigo. Se amamos a verdade por
residir ela em Jesus, se amamos a Igreja da Inglaterra, devemos lutar
valorosamente pela fé uma vez entregue aos santos, no tocante à Ceia do
Senhor.
Esta questão não pode receber uma melhor resposta geral do que
aquela de nosso bem conhecido Catecismo da Igreja. Falta simplicidade a
este famoso formulário, infelizmente repleto de palavras difíceis e termos
metafísicos da Escolástica, embora permaneça digno de toda a honra por
suas declarações acerca dos Sacramentos. Nossos professores de Escola
Dominical podem não compreender corretamente o Catecismo, e
reclamar, com razão, que é preciso outro catecismo para explicá-lo! No
final das contas, porém, suas definições possuem uma precisão lógica e
exatidão doutrinária que todo teólogo bem instruído deve reconhecer e
apreciar. Corretamente empregado, eu sustento que o Catecismo da Igreja
é uma arma eficaz contra o semi-romanismo. Interpretado honestamente,
ele subverte totalmente o sistema dos ritualistas.
1
Permita-me o leitor recordar que a doutrina da Liturgia da Comunhão está em precisa harmonia com a
de nosso Catecismo. Destaquemos as seguintes expressões:
“De modo que devemos sempre recordar o imenso amor de nosso Mestre e único Salvador Jesus Cris-
to, que assim morreu por nós, e os inumeráveis benefícios que pelo verter de seu sangue ele obteve em
nosso favor: Ele instituiu e ordenou santos mistérios como penhores de seu amor, e para memória
perpétua de sua morte, e para nosso incessante consolo.” “Ele instituiu, e em seu Santo Evangelho nos
ordena a continuar um memorial perpétuo de sua preciosa morte até a sua volta”. “Tomai e comei, em
recordação de que Cristo morreu por vós”. “Bebei, em recordação de que o sangue de Cristo foi ver-
tido por vós.”
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dado por nossos pecados. O vinho, derramado e bebido, deveria lembrar
os cristãos de Seu sangue vertido por nossos pecados.
O Senhor Jesus sabia o que havia com o homem. Ele sabia bem da
escuridão, lentidão, frieza, dureza, estupidez, orgulho, auto-engano,
preguiça e pretensão de donos da verdade, da natureza humana em
assuntos espirituais. Assim, ele cuidou para que sua morte pelos pe-
cadores não fosse apenas registrada por escrito na Bíblia (ou ela poderia,
assim, ser trancafiada em bibliotecas) ou deixada para os ministros
proclamarem do púlpito (pois assim poderia ser detida por falsos mes-
tres), mas ela deveria ser exibida em sinais e emblemas visíveis, no pão e
no vinho em uma ordenança especial. A Ceia do Senhor era uma garantia
contra a memória fraca do homem. Enquanto permanecer o mundo em
sua ordem atual, aquilo que é feito à Mesa do Senhor proclama a sua
morte até que ele venha (I Co. 11.26).
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1. Jamais foi a intenção que ela fosse considerada um sacrifício.
Jamais foi a intenção que nós crêssemos que qualquer transformação
ocorre com os elementos do pão e do vinho, ou que haja qualquer presença
corpórea de Cristo no Sacramento. Tais coisas não podem, jamais, ser
justa e honestamente extraídas das Escrituras. Sejam examinadas
imparcialmente as três narrativas evangélicas da Instituição, em Mateus,
Marcos e Lucas, e aquela dada por Paulo aos Coríntios, e não tenho
dúvidas quanto ao resultado. Elas ensinam que não há sacrifício, não há
altar, não há mudança na substância dos elementos: o pão após a
consagração ainda é, literal e verdadeiramente, pão; o vinho, após a
consagração, é verdadeira e literalmente vinho. Em parte nenhuma do
Novo Testamento vemos o ministro cristão chamado de sacerdote, e em
parte nenhuma encontramos qualquer menção a sacrifício, senão aos de
oração, de louvor e de boas obras. O último sacrifício literal, somos
repetidamente informados na Epístola aos Hebreus, é aquele sacrifício
consumado, de uma vez por todas, por Cristo na Cruz.
Sem dúvida, agrada a tais polemistas como o finado Cardeal Wise-
man tomar textos como “Este é meu corpo” e “Este é meu sangue” como
provas de que a Ceia do Senhor é um sacrifício. Contudo, alguém que se
satisfaça com isso é alguém fácil de satisfazer, de fato! O citar de uma
frase isolada é um meio de argumentação que serviria a legitimar até o
arianismo ou o socinianismo. O contexto dessas famosas frases mostra
claramente que aqueles que as ouviram empregadas as compreenderam
como “Isto representa meu corpo” e “Isto representa meu sangue”. A
analogia com outras passagens demonstra que “ser” com frequência
significa “representar” nas Escrituras. Paulo, ao escrever sobre o Sacra-
mento, chama expressamente o pão consagrado de “pão”, e não de Corpo
de Cristo, nada menos do que três vezes (I Co. 11.26, 27, 28). Acima de
tudo, permanece o irretorquível argumento de que, se Nosso Senhor
estava de fato segurando Seu Corpo em suas mãos quando disse do pão
“Este é meu corpo”, Seu corpo deve ter sido bem diferente daquele dos
homens comuns. É claro, se Seu corpo não era como o nosso, Sua própria
e real humanidade se encerram. Nesse compasso, a bendita e consoladora
doutrina da total identificação de Cristo com Seu povo, como verdadeiro
homem, estaria completamente subvertida, e cairia por terra.2
2
Que o corpo de Nosso Senhor não seria um corpo real como o nosso era a doutrina favorita dos
hereges chamados “apolinários”, na Igreja antiga.
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Senhor, e que mesmo alguns comentaristas romanistas concordam com
eles neste ponto.3
3
Aqui, ouso encaminhar meus leitores a meu Comentários no Evangelho de João, onde encontrarão
um sumário condensado de minhas opiniões, nas notas ao capítulo 6.
4
Convém lembrar que estas três palavras latinas ex opere operato significam simplesmente “em razão
da obra realizada”.
5
Friedrich Nietzche [N.T.].
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verdade. Que seja: não me envergonho dela. Quer os homens a ouçam,
quer a ignorem, estou convicto de que esta é a única postura que se
harmoniza com as Escrituras e com os formulários da Igreja da Inglater-
ra.
6
É extremamente difícil fazer com que certas pessoas vejam a enorme importância da estrita precisão
ao definir termos nesta infeliz polêmica acerca da Ceia do Senhor. O ponto em debate não é se há uma
“presença real” de Cristo na Ceia do Senhor. Nisto todos cremos. O ponto não é se a presença de Cristo
é espiritual. Mesmo Harding, o bem conhecido antagonista de Jewel, admite que o corpo de Cristo está
presente “não de uma forma corpórea, carnal ou natural, mas de maneira invisível, inefável, miraculosa,
sobrenatural, espiritual, divina, só conhecida por Ele.” Harding’s reply to Jewel. O verdadeiro ponto é
se o corpo e o sangue reais de Cristo estão realmente presentes nos elementos do pão e do vinho, tão
logo sejam consagrados na Ceia do Senhor, e independentemente da fé daquele que a recebe. Romanis-
tas e semi-romanistas dizem que eles se fazem presentes desta forma. Nós asseveramos que não.
7
O antagonismo entre estas frases do Arcediago Denison e as opiniões do Bispo Ridley sobre o mesmo
assunto são tão singularmente fortes, que peço ao leitor não passar adiante sem tomar nota dele. O
Bispo Ridley, em sua Disputation at Oxford, diz da doutrina romanista da presença real: “Ela destrói e
remove a Instituição da Ceia do Senhor, que foi ordenada para ser empregada e continuada até que o
Senhor retorne. Se, porém, Ele estiver realmente presente no corpo de sua carne, então deve cessar a
Ceia, pois uma recordação não é de algo presente, mas de algo passado e ausente. E, como um dos Pais
disse, „Uma figura é vã quando a coisa figurada está presente‟”. Cf. Foxe’s Martys, in loco.
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grande e crescente parcela da Igreja da Inglaterra.8 Seria não menos fácil
demonstrar que a doutrina é substancialmente uma e a mesma que a da
Igreja de Roma, e que por recusar essa mesma doutrina, nossos Reforma-
dores, martirizados, entregaram suas vidas. O tempo, porém, não me
permitiria fazê-lo. Contento-me em tentar demonstrar que a doutrina do
Arcediago Denison e sua escola não pode ser reconciliada com os formu-
lários autorizados da Igreja da Inglaterra, e que a mais simples e, como
alguns a chamam, mais baixa posição acerca da intenção da Ceia do
Senhor harmoniza-se inteiramente com eles.
8
Em uma obra devocional recentemente publicada pela Church Press Company, intitulada The little
Prayer-book, intended for beginners in devotion, revised and corrected by three Priests, as seguintes
passagens podem ser encontradas: “Quando entrar na igreja, antes de se dirigir ao seu lugar, curve-se
reverentemente ao santo altar, pois é o trono de Cristo, e a parte mais sagrada da igreja.” “Curve-se
reverentemente ao altar, antes de deixá-lo.” “Nas palavras „este é meu corpo, este é meu sangue‟, você
deve crer que o pão e o vinho se tornam o verdadeiro corpo e sangue, com a alma e a divindade de
Jesus Cristo. Curve seu coração e corpo na mais profunda adoração quando o sacerdote disser estas
reverendas palavras, e adore o seu Salvador ali, presente de fato e de verdade ali, em seu altar.”
Em um Catechism on the Office of the Holy Communion, editado por “Uma comissão de clérigos”,
encontraremos a seguinte declaração: “A Santa Comunhão é um sacrifício, uma oferenda feita sobre
um altar a Deus.” “Oferecemos pão e vinho, os quais, depois, se tornam o corpo e o sangue de Cristo.”
“Apenas o Senhor Jesus Cristo em pessoa, como nosso Sumo Sacerdote, e os sacerdotes de sua Igreja, a
quem nomeou aqui na terra, têm autoridade para oferecer este sacrifício.” “O sacrifício é o verdadeiro
corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e é apresentado como uma oferta pelos pecados, para
obter perdão pelas nossas transgressões.” “O corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo estão real e
verdadeiramente presentes no altar sob as formas de pão e vinho, e o sacerdote oferece o sacrifício a
Deus, o Pai.” “Nós devemos cultuar Nosso Senhor, presente em seu Sacramento, como o deveríamos se
o pudéssemos ver corporalmente”.
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Não comentarei estas palavras. Peço tão somente aos membros da
Igreja que as ponham lado a lado com as declarações do partido da High
Church9 acerca da Ceia do Senhor, e que observem a absoluta contrarie-
dade que existe entre elas. Apelo ao bom senso de todos os ingleses
imparciais e livres de preconceitos. Sejam eles os juízes. Se uma posição
está correta, a outra está errada. Se o teor do Artigo 28 pode ser reconcil-
iado com a doutrina do Arcediago Denison e sua escola, só posso dizer
que essas palavras não têm significado nenhum.
9
O partido ou movimento High Church, embora tenha defendido outras bandeiras em outros tempos na
história do anglicanismo, nos tempos de Ryle era identificado com o ritualismo promovido pelo Mo-
vimento de Oxford, que desembocou no anglo-catolicismo (adoção não apenas do ritual, mas também
de outras práticas e doutrinas mais afeitas ao catolicismo do que ao protestantismo) e, afinal, no anglo-
papismo (submissão ao papado e militância pela reunião formal entre a Igreja da Inglaterra e a Igreja
Católica Apostólica Romana). [N.T.]
10
Beveridge on the Articles. Ed. Oxford, 1846, pp. 482-486
11
Non-jurors foram clérigos da Igreja da Inglaterra que, quando da ascensão de Guilherme de Orange e
sua esposa Maria ao trono inglês, não puderam, por objeção de consciência, jurar lealdade a eles, por
considerarem-se presos ao voto feito ao rei anterior, Jaime II. [N.T.]
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Sangue de Cristo‟, o que manifestamente implica que o pão e o vinho
sejam coisas distintas e diferentes do corpo e do sangue.”12
12
Brett’s discourse on discerning the Lord’s Body in the Communion. Londres, 1720, pref., pp. 19-20
13
A rubrica ao final da Comunhão dos Enfermos é outra forte evidência das posições daqueles que
prepararam nosso Livro de Oração em sua atual forma. Ela diz: “Se alguém, em virtude da severidade
de sua doença, ou por falta de aviso tempestivo ao ministro, ou por falta de companhia para receber
com ele, ou por qualquer outro justo impedimento, não puder receber o Sacramento do corpo e do
sangue de Cristo, o ministro o instruirá que, se ele verdadeiramente se arrepender de seus pecados, e
firmemente crer que Jesus Cristo sofreu a morte na cruz por ele, e derramou seu sangue para a sua
remissão, encarecidamente recordando os benefícios que disto recebe, e rendendo-lhe por isto sinceras
graças, ele de fato come e bebe o corpo e o sangue de nosso Salvador Cristo para benefício da saúde
de sua alma, ainda que não receba o Sacramento com sua boca.”
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não corporalmente, não internamente, mas, de fato e de verdade, a saber,
efetivamente. Os símbolos sagrados não são signos desnudos, não são
figuras inverídicas de uma coisa ausente; antes, a força, a graça, a virtude
e os benefícios do corpo de Cristo partido, e do sangue vertido, a saber, de
Sua paixão, são real e efetivamente presentes com todos quantos recebem
dignamente. Essa é toda a extensão da presença real que nossa Igreja
ensina.”14
14
Waterland’s Works. Oxford, 1843, vol. VI, p. 42.
15
Essa Homilia citada é um sermão padrão que faz parte de um livro de sermões elaborados na época
da Reforma Inglesa que é autoritativo a todos os ministros e crentes da Igreja da Inglaterra, conforme o
artigo 36 dos 39 Artigos. (N.R)
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Ora, seria fácil multiplicar as citações em favor da posição acerca da
Ceia do Senhor que eu advogo, dos principais teólogos da Igreja da
Inglaterra, mas disto abrirei mão. O tempo é precioso nestes dias de
pressa, comoção e excitação. Citações são cansativas, e mui fre-
quentemente nem lidas. Quantos desejam aprofundar-se no assunto
devem estudar o irretorquível, ainda que mui negligenciado livro do Deão
Goode acerca da Eucaristia. Apenas duas citações darei, de dois homens
de não pouca autoridade, embora divirjam largamente em alguns pontos.
Não posso deixar esta parte do assunto sem registrar meu indignado
protesto contra o muitas vezes repetido insulto de que a erudição, o
raciocínio e a pesquisa não são encontrados entre os apoiadores da ala
evangélica da Igreja da Inglaterra! A obra do Deão Goode acerca da
natureza da presença de Cristo na Eucaristia, contendo 986 páginas de
argumentação magistral em defesa de sólidas posições protestantes
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acerca da Ceia do Senhor, já está há muitos anos perante o público. Ela
tem estado, desde então, irrespondida e irrespondível. Onde está a
honestidade, onde a justiça, em negligenciar a refutação deste livro, se
puder ser refutado, e ainda se agarrar obstinadamente a posições que ele
triunfantemente solapa? Recomendo este livro, sem hesitar, ao paciente e
diligente estudo de todos os meus irmãos mais novos no ministério, se
desejam ter suas opiniões formadas e confirmadas acerca do Sacramento
da Ceia do Senhor. Leiam-no cuidadosamente, e creio que considerarão
impossível chegar a qualquer outra, senão uma conclusão, a de que a
Igreja da Inglaterra sustenta que não há sacrifício na Ceia do Senhor,
nem oblação, nem altar, nem presença corpórea de Cristo no pão e no
vinho; e que a verdadeira intenção da Ceia do Senhor é tão-somente
aquela que o Catecismo afirma, nem mais, nem menos: “Foi ordenada
para a contínua memória do sacrifício da morte de Cristo, e dos benefícios
que por ela recebemos.”
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mencionada. Acerca da graça, da fé e da redenção; da obra de Cristo; da
obra do Espírito e do amor do Pai; da ruína do homem, de sua fraqueza e
miséria espiritual; da justificação, santificação e retidão de vida; de todos
esses portentosos assuntos encontramos os autores inspirados dando-nos
linhas e mais linhas, e preceitos e mais preceitos. Acerca da Ceia do
Senhor, pelo contrário, podemos observar na maior parte do Novo Testa-
mento um silêncio eloquente. Mesmo as Epístolas a Timóteo e Tito, que
contêm muita instrução acerca dos deveres do ministro, não contêm uma
só palavra a respeito. Este fato, apenas, já fala por volumes inteiros!
Deslocar a Ceia do Senhor para o centro até que ela sobrepuje e se torne
desproporcionalmente maior do que tudo o mais na fé é dar a ela uma
posição para a qual não há autoridade na Palavra de Deus.16
2. Uma vez mais, a Ceia do Senhor não estará em seu devido lugar
quando administrada com um grau extravagante de cerimônia e veneração
exterior. Ao dizer isto, sinto muito por ser mal compreendido. Deus me
livre de propor qualquer desleixo ou irreverência no emprego de qualquer
das ordenanças de Cristo. Em absoluto, a quem honra, honra demos.
Contudo, pergunto a todos quantos leem este trabalho: não há algo
dolorosamente suspeito quanto à enorme quantidade de pompa e
reverência física com que a Ceia do Senhor é atualmente celebrada em
muitas de nossas igrejas? O tratamento ostensivo da Mesa da Comunhão
como um altar – as luzes, ornamentos, flores, as minúcias decorativas,
gestos, posturas, reverências, persignações, incensações, procissões,
todos ligados ao assim chamado altar – a misteriosa e obsequiosa ven-
eração com que o pão e o vinho são consagrados, dados, tomados e
recebidos – o que tudo isso significa?17 Onde está, em tudo isso, a simpli-
cidade da primeira instituição, como a encontramos registrada na Bíblia?
Onde a simplicidade que nossos reformadores protestantes pregaram e
praticaram? Onde a simplicidade que qualquer leitor desarmado do Livro
de Oração inglês pode justamente esperar? Bem podemos perguntar:
onde? A verdadeira Ceia do Senhor não está mais ali. A coisa toda re-
cende a romanismo. Um leitor direto só pode ver nisso uma tentativa de
introduzir em nosso culto a doutrina do sacrifício, a “fábula blasfema e o
perigoso engano” da missa, da presença real papista e da transubstan-
16
Aproveito a ocasião para dizer que vejo com desgosto a prática moderna de se substituir o sermão
por uma celebração da Ceia do Senhor nas visitas episcopais e arcediagais. Sem dúvida ela poupa
Bispos e Arcediagos de muito trabalho. Poupa-os da responsabilidade individual de selecionar um
pregador. Mas a coisa toda tem uma aparência suspeita e insatisfatória. Pregar a Palavra, a meu ver, é
uma ordenança bem mais importante do que a Ceia do Senhor.
17
É verdadeiramente lamentável observar quantos rapazes e moças, de quem se poderia esperar mais,
caem hoje em um semi-romanismo, pela atração de um cerimonial altamente ornamentado e sensorial.
Flores, crucifixos, procissões, estandartes, incenso, paramentos esplendorosos e outros que-tais jamais
falham em atrair os jovens, assim como moscas ao mel. Não insultarei o bom senso dos que consid-
eram tais coisas interessantes, perguntando-lhes se de fato acreditam que podem disso obter qualquer
alimento para o coração, consciência e alma. Mas gostaria que considerassem seriamente o que tais
coisas significam. Eles sabem, verdadeiramente, que as doutrinas da missa e da transubstanciação estão
na raiz de todo o sistema? Estão preparados para engolir todas essas horrendas heresias? Suspeito que
muitos estão brincando com o ritualismo sem a menor idéia do que ele encobre. Enxergam uma isca
atraente, mas não veem o anzol.
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ciação. É impossível evitar a sensação de que uma heresia mortal subjaz
neste cerimonial pomposo e que não estamos lidando apenas com um
amor infantil pelo espetáculo e pela forma, mas com um desígnio arraiga-
do de trazer de volta o papado à Igreja da Inglaterra e subverter o Evan-
gelho de Cristo. De qualquer forma, uma coisa me é bem clara: o Sacra-
mento da Ceia do Senhor, administrado como é atualmente em muitos
lugares, não está em sua posição de direito. Encontra-se tão disfarçado,
pintado, maquiado, aparelhado e inchado, e tão mudado por este novo
tratamento, que mal posso ver nele, de fato, qualquer Ceia do Senhor.
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e o céu; entre a fé e o paraíso; entre a conversão e o descanso final; entre
Porta Estreita e a Cidade Celestial. Ela não é Cristo, ela não é a conversão,
ela não é um passaporte para o céu. Ela é para o fortalecimento e restau-
ração daqueles que já vieram a Cristo, que sabem algo acerca da con-
versão, que já estão no caminho estreito e já fugiram da cidade da destru-
ição.
Bem sei que não somos capazes de ler corações. Não devemos ser
rígidos e exclusivos demais quanto aos requisitos para a Comunhão, e
tornar infelizes aqueles que Deus não fez infelizes. Contudo, não devemos
jamais nos furtar de dizer aos inconversos e aos descrentes que, em sua
condição atual, não estão aptos a achegar-se à Mesa do Senhor. Um
clérigo fiel, de qualquer modo, jamais deve se envergonhar de defender a
posição estabelecida pelo Catecismo da Igreja. A última pergunta desse
bem conhecido formulário reza: “Que é exigido dos que se achegam à Ceia
do Senhor?” A resposta a esta pergunta é substanciosa e cheia de signifi-
cado. Aqueles que vêm à Ceia do Senhor devem “examinar a si mesmos,
arrepender-se verdadeiramente de seus pecados passados, firmemente
propondo-se a viver uma nova vida; ter fé viva na misericórdia de Deus
por Cristo e uma grata memória por Sua morte; e viver em caridade para
com todos os homens.” Alguém tem tais sentimentos em seu próprio
coração? Então podemos dizer com intrepidez que a Ceia do Senhor está
posta diante de si por um Salvador misericordioso, para auxiliá-lo a correr
a carreira que tem diante de si. Não devemos colocar esta ordenança mais
alto do que isto. Não se espera do comungante que seja um anjo, mas um
pecador ciente de seus pecados e confiante em seu Salvador. Mais baixo
do que isto não temos o direito de pôr esta ordenança. Encorajar as
pessoas a achegarem-se à Mesa sem conhecimento, fé, arrependimento
ou graça é ativamente causar-lhes mal, promover a superstição e de-
sagradar o Mestre da festa. Ele deseja ver em Sua mesa não convivas
mortos, mas vivos; não o culto morto do comer e beber por formalidade,
mas o sacrifício espiritual de corações sensíveis e amorosos.
Faço aqui uma pausa. Creio ter dito o bastante para esclarecer as
posições que sustento a respeito da verdadeira intenção e da posição de
direito do Sacramento da Ceia do Senhor. Se, ao expor minhas opiniões,
tiver dito qualquer coisa que atrite com os sentimentos de qualquer dos
leitores, posso assegurá-los que lamento sinceramente. Nada poderia
estar mais distante do meu desejo do que ferir os sentimentos de um
irmão.
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sustentar as antigas verdades do jeito antigo. Devemos abrir mão da vã
ideia de que podemos tornar a Cruz de Cristo aceitável ao polí-la, en-
vernizá-la, pintá-la, banhá-la a ouro e serrar seus cantos. Devemos parar
de supor que podemos atrair os homens a se tornarem evangélicos
adotando um método diminuído, contemporizador, diluído, meio-a-meio,
de expor as doutrinas do Evangelho; ou pelo vestir plumas emprestadas e
flertar com o movimento High Church, ou por proclamar em alta voz que
não somos “partidaristas”, ou por deixar de lado as claras expressões das
Escrituras e louvar o entusiasmo, ou por habilidosamente abster-se de
proferir verdades sujeitas a ofender. Esse plano é pura ilusão. Não ganha
nenhum inimigo e bem pode afastar os verdadeiros amigos. Causa o
desprezo do espectador mundano e o enche de escárnio. Podemos nos
assegurar de que a mais sábia e correta linha para os evangélicos de
nossa igreja seguirem é a de aderir com firmeza ao velho plano de
preservar a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade, como é
em Jesus, e especialmente a verdade acerca dos dois Sacramentos, o
Batismo e a Ceia do Senhor. Sejamos corteses, amigáveis, caridosos,
afáveis e tenhamos consideração pelos sentimentos alheios, sim, com
certeza, mas que nenhuma consideração nos faça ocultar qualquer parte
da verdade de Deus.
18
Em arquitetura eclesiástica, o extremo do templo oposto à entrada principal é considerado o “leste
litúrgico”, ainda que o templo não seja construído voltado para o leste geográfico (que é a prática histó-
rica da “orientação”). No leste litúrgico de um templo cristão tradicional ficam o púlpito e a Mesa do
Senhor, ou o altar nas igrejas católicas. [N.T.]
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extravagante da Mesa de Comunhão e do pão e do vinho, como se o corpo
e o sangue de Cristo estivesse presente nesses elementos, ou na Mesa; e
jamais nos esqueçamos do que o Livro de Oração diz sobre “a idolatria, a
ser abominada por todos os fieis cristãos”.
19
É fato que a Mesa da Comunhão na Catedral de Gloucester foi disposta como um altar, encostada à
parede leste do presbitério, pelo próprio Laud, quando era Deão de Gloucester, em 1616. Também é
fato que o Bispo Miles Smith, então Bispo de Gloucester, aborreceu-se tanto com a mudança que
declarou que não tornaria a entrar na Catedral até que a Mesa fosse trazida de volta a sua posição
anterior. E manteve sua palavra, não adentrando os muros da Catedral até que foi enterrado nela em
1624.
Observemos os termos empregados pelo Bispo Ridley em suas injunções ao clero da Sé de Londres.
Ao enunciar razões para a remoção dos altares e sua substituição por mesas, ele diz: “A serventia de
um altar é sacrificar sobre ele. O uso de uma mesa é servir aos homens para que nela comam. Agora,
quando nos achegamos à Mesa do Senhor, para que vimos? Para tornar a sacrificar Cristo e crucificá-
lo novamente, ou para nos alimentar dele que foi uma vez crucificado e oferecido por nós? Se vimos
nos alimentar dele, para espiritualmente comer seu corpo e espiritualmente beber seu sangue, que é o
verdadeiro sentido da Ceia do Senhor, então ninguém pode negar que a forma de uma mesa é mais
adequada do que a forma de um altar. Cf. Foxe’s acts and mon., vol. VI, Seeley‟s Edition, p. 6.
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Digo com intrepidez que, no que tange à verdadeira, honesta e con-
sciente membresia na Igreja da Inglaterra, o partido dos evangélicos não
precisa temer a comparação com qualquer outra seção do espectro de
nossa Igreja. Podemos seguramente desafiar qualquer justa investigação e
inquérito. Outros subscreveram os Trinta e Nove Artigos ex animo et bona
fide20? Nós também. Outros declararam sua total concordância com a
Liturgia? Nós também. Outros empregam a Liturgia, nada acrescentando
ou omitindo, com reverência, solenemente e em voz audível? Nós também.
Os outros são obedientes a seus Bispos? Nós também. Trabalham os
outros pela prosperidade da Igreja da Inglaterra? Nós também. Os outros
valorizam as prerrogativas da Igreja da Inglaterra e deploram separações
desnecessárias? Nós também. Os outros honram a Ceia do Senhor e
recomendam-na à atenção de todos os ouvintes crentes? Nós também.
Mas nós não admitiremos que um homem tem obrigação de seguir o
Arcebispo Laud e se tornar meio romanista para ser membro da Igreja.
Somos nós os verdadeiros high churchmen, e não high churchmen roman-
istas. E a melhor prova de nossa membresia na Igreja é o fato de que,
para cada um dos nossos que deixou a Igreja da Inglaterra para as igrejas
Dissidentes, podemos nomear dez do partido High Church que deixaram a
Igreja da Inglaterra e se foram para Roma.
20
“De alma (sinceramente) e em boa-fé” (N.T.).
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terra de uma vez? Que poderá haver de bom em uma igreja assim? Por
que não me tornar um Dissidente ou um dos Irmãos de Plimouth?”.
É uma solução fácil e barata deixar uma Igreja quando vemos males
à nossa volta, mas não é sempre a mais sábia. Derrubar uma casa porque
a chaminé está entupida; cortar fora uma mão porque temos um corte no
dedo; abandonar um navio porque tem um vazamento e está fazendo um
pouco de água; tudo isso é de uma impaciência pueril. Será, porém, a
atitude de um sábio abandonar uma Igreja porque as coisas em nossa
própria paróquia, e sob nosso próprio ministro naquela Igreja, estão
erradas? Respondo decididamente, e sem hesitar: Não!
Digo isto como alguém que é chamado um low churchman, como al-
guém que sente uma justa indignação contra o proceder romanizante de
muitos dos clérigos em nosso próprio tempo. Lamento o perigo causado à
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Igreja da Inglaterra pelo ritualismo atual. Lamento pelos muitos que se
fizeram retirar em desgosto do pálio de nossa Sião. Mas low churchman
como sou, sou membro da Igreja21, e estou ansioso por que ninguém seja
induzido a fazer coisas insensatas e apressadas por causa do proceder a
que me referi. Enquanto tivermos verdade, liberdade e uma confissão de
fé inabalada na Igreja da Inglaterra, estarei convicto de que o caminho da
paciência é muito melhor que o da secessão.
Até esse dia, contudo (e Deus nos livre de que ele chegue; mas se
chegar, haverá muitos bons que partirão), fiquemos firmes, e lutemos pela
verdade. Não desertemos nossos postos para evitar aborrecimentos,
saindo para o agrado de nossos adversários e arruinando nossos planos
para evitar uma batalha. Não! Em nome de Deus, lutemos, ainda que
sejamos como os 300 de Termópilas: poucos conosco, muitos contra nós e
traidores de todos os lados. Prossigamos na luta, e batalhemos sinceros
pela fé uma vez entregue aos santos.
21
No original, churchman. [N.T.]
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ANEXO
“Creio que todo este Sacramento consiste no seu uso; de modo que
sem o uso correto, o pão e o vinho em nada diferem do pão e do vinho que
são comumente utilizados; e, portanto, não creio que o corpo de Cristo
possa ser contido, oculto ou incorporado ao pão, sob o pão ou com o pão;
nem o sangue no vinho, sob o vinho ou com o vinho. Mas creio e confesso
que o único corpo de Cristo está no céu, à destra do Pai, e que sempre,
todas as vezes que usamos deste pão e deste vinho segundo a ordenança
e instituição de Cristo, de fato e de verdade recebemos seu corpo e
sangue. (Cf. Hooper’s Works. Parker Society‟s Edition, vol. II, p. 48.
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A diferença é esta: um sacramento é uma figura ou emblema; o corpo
de Cristo é figurado ou representado em emblema. O pão sacramental é
pão, não é o corpo de Cristo; o corpo de Cristo é carne, não pão. O pão
está cá abaixo, o corpo está acima. O pão está na mesa, o corpo está no
céu. O pão está na boca, o corpo está no coração. O pão alimenta o corpo;
o corpo alimenta a alma. O pão se desfará; o corpo e imortal e não
perecerá. O pão é vil; o corpo de Cristo é glorioso. Tal é a diferença entre o
pão que é sacramento do corpo, e o corpo de Cristo propriamente dito. O
sacramento é comido tanto por ímpios como por fiéis. O corpo só é
recebido pelos fiéis. O sacramento pode ser comido para juízo; o corpo
não pode ser comido senão para a salvação. Sem o Sacramento, podemos
ser salvos; mas sem o corpo de Cristo, não temos salvação, não podemos
ser salvos.” Jewel on the Sacrament. Parker Society‟s Edition, vol. IV, p.
1121.
6. Waterland diz:
“Os pais bem compreendem que, para fazer do corpo natural de Cris-
to o real sacrifício da Eucaristia não seria apenas absurdo à razão, mas
altamente presunçoso e profano; e que fazer dos sinais externos um
sacrifício propriamente dito, um sacrifício material, seria de todo contrário
aos princípios do Evangelho, degradando o sacrifício cristão em um
sacrifício judaico, sim, e tornando-o muito mais baixo e mesquinho do
que o judaico, tanto em valor quanto em dignidade. O modo correto,
portanto, seria tornar o sacrifício espiritual, e não poderia ser diferente
nos princípios do Evangelho.” Works, vol. IV, p. 762.
“Ninguém tem autoridade de oferecer Cristo como sacrifício, quer re-
al, quer simbolicamente, senão o próprio Cristo; tal sacrifício é seu, e não
nosso; oferecido em nosso favor, e não por nós, a Deus, o Pai.” Works,
vol. IV, p. 753.
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_________________
ORE PARA QUE O ESPÍRITO SANTO USE ESSE SERMÃO PARA
EDIFICAÇÃO DE MUITOS E SALVAÇÃO DE PECADORES.
FONTE
Traduzido de http://www.tracts.ukgo.com/ryle_lords_supper.doc
Todo direito de tradução em português protegido por lei internacional de
domínio público
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