' Como É Ser Um Morcego?
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Embora uma teoria do substrato físico da mente tenha que explicar muitas
coisas, esta parece ser a mais difícil de explicar. É impossível excluir numa
redução as características fenomenológicas da experiência do mesmo modo
como se excluem as características fenomenais de uma substância comum
aquando de uma redução física ou química da mesma — nomeadamente,
explicando-as como efeitos nas mentes dos seres humanos que as observam4.
Se se pretende defender o fisicismo, então tem que se oferecer uma descrição
física das próprias características fenomenológicas. Mas quando atentamos no
seu carácter subjectivo, uma tal descrição parece ser impossível. A razão é que
qualquer fenómeno subjectivo está essencialmente ligado a um único ponto de
vista e parece inevitável que uma teoria física, objectiva, tenha que abandonar
esse ponto de vista.
Assim, se a extrapolação a partir do nosso próprio caso está ligada à nossa ideia
de como é ser um morcego, então essa extrapolação permanece forçosamente
incompletável. Não podemos ter mais do que uma concepção esquemática de
:
como é. Por exemplo, podemos atribuir tipos gerais de experiência baseando-
nos para tal na constituição e no comportamento do animal. É deste modo que
descrevemos o sonar de um morcego como uma forma de percepção frontal
tridimensional; pensamos que os morcegos sentem alguns tipos de dor, medo,
fome, desejo sexual, e pensamos que eles possuem outras formas de percepção
que nos são mais familiares para além do sonar. Mas pensamos também que
estas experiências têm em cada caso um carácter subjectivo específico que está
para além da nossa capacidade de concepção. E, a haver vida consciente algures
noutras partes do universo, é bem provável que algumas das suas formas sejam
indescritíveis, ainda que recorramos aos termos experienciais mais gerais de
que dispomos6. (Aliás, o problema não se confina a casos exóticos, pois
verifica-se entre duas pessoas. Por exemplo, o carácter subjectivo da
experiência de uma pessoa surda e cega de nascença é-me inacessível e o
carácter subjectivo da minha experiência é-lhe provavelmente também
inacessível. Isso não nos impede de acreditar que a experiência do outro tem um
tal carácter subjectivo.)
Isto traz-nos até às fronteiras de um tópico que exige muito mais tratamento do
:
que aquele que eu aqui lhe posso dar, a saber, a relação entre factos por um lado
e esquemas conceptuais ou sistemas representacionais por outro. O meu
realismo acerca do domínio subjectivo em todas as suas formas implica a minha
crença na existência de factos que estão para além dos conceitos humanos. É
sem dúvida possível a um ser humano acreditar que há factos para a
representação ou a compreensão dos quais os humanos nunca possuirão os
conceitos necessários. De facto, seria estupidez duvidar disto, dado o carácter
limitado das possibilidades humanas. Afinal de contas, teria havido números
transfinitos mesmo que toda a humanidade tivesse sido exterminada pela Peste
Negra antes de Cantor os ter descoberto. Mas podemos ainda pensar que há
factos que nunca poderão ser representados ou compreendidos pelos seres
humanos, ainda que a nossa espécie dure para sempre, simplesmente porque a
nossa estrutura não nos permite trabalhar com os conceitos necessários. Esta
impossibilidade pode mesmo até ser testemunhada por outros seres, embora não
seja evidente que a existência de tais seres, ou a possibilidade da sua existência,
seja uma condição prévia para dar sentido à hipótese de que há factos que são
inacessíveis aos seres humanos. (Afinal de contas, a natureza dos seres que têm
acesso aos factos inacessíveis aos humanos é presumivelmente também ela um
facto inacessível aos humanos.) A reflexão sobre o como é ser um morcego
parece levar-nos, deste modo, à conclusão de que há factos que não consistem
na verdade de proposições exprimíveis numa linguagem humana. Podemos
sentir-nos obrigados a reconhecer a existência de tais factos sem sermos
capazes de os enunciar ou compreender.
Não vou, contudo, continuar a tratar deste assunto. A relação deste problema
com o assunto que temos agora em mãos (a saber, o problema da relação mente-
corpo) é o facto de nos permitir fazer uma observação geral acerca do carácter
subjectivo da experiência. Seja qual for o estatuto dos factos relativos a algo
como é ser um ser humano, um morcego, ou um marciano, a verdade é que
esses factos parecem concretizar um ponto de vista particular.
Que moral é que podemos tirar destas reflexões e o que é que se deve fazer em
seguida? Seria um erro concluir que o fisicismo deve ser falso. Nada fica
provado pela inadequação de hipóteses fisicistas que pressupõem uma
incorrecta análise objectiva da mente. Seria mais correcto dizermos que o
fisicismo é uma posição que não conseguimos compreender porque de
momento não conseguimos conceber de que modo é que ela pode ser
verdadeira. Talvez se considere extravagante a necessidade de uma tal
concepção como uma condição de compreensão. Afinal de contas, pode-se
argumentar que a ideia central do fisicismo é bastante clara: os estados mentais
são estados corporais; os acontecimentos mentais são acontecimentos físicos.
Não sabemos que estados e acontecimentos físicos são esses, mas isso não nos
deveria impedir de compreender a hipótese. O que poderia ser mais claro do
que as palavras “é” e “são”?
Mas eu acredito que é exactamente esta clareza aparente da palavra “é” que é
enganadora. De um modo geral, quando nos dizem que X é Y sabemos como é
que isso deve corresponder à verdade, mas tal depende de um pano de fundo
conceptual ou teórico e não é exprimível somente por meio do “é”. Sabemos de
que modo “X” e “Y” se referem um ao outro e sabemos a que tipo de coisas é
que eles se referem, e temos também uma ideia geral do modo como esses dois
:
trajectos referenciais podem convergir numa única coisa, seja ela um objecto,
uma pessoa, um processo, um acontecimento, ou seja lá o que for. Mas quando
os dois termos de uma identificação são bastante díspares entre si pode já não
ser tão claro como é que ela pode ser verdadeira. Podemos nem sequer ter uma
ideia aproximada do modo como esses dois percursos referenciais poderão
convergir, ou em que tipo de coisas eles poderão convergir, e podemos ter que
elaborar um quadro teórico que nos permita compreender isto. Sem um quadro
teórico a identificação fica envolta num ar de misticismo.
Por estranho que pareça, podemos ter indícios da veracidade de algo que não
conseguimos compreender. Imaginemos que alguém não familiarizado com a
metamorfose dos insectos mete uma lagarta num cofre esterilizado e que após
algumas semanas, ao abrir o cofre, se depara com uma borboleta. Se a pessoa
que fechou a lagarta no cofre tem a certeza que o cofre se manteve sempre
fechado então ela tem boas razões para pensar que a borboleta é ou foi outrora a
lagarta, ainda que não faça a mínima ideia de como é que tal pode ter
acontecido. (Uma possibilidade seria a de que a lagarta tinha dentro de si um
minúsculo parasita alado que a devorou e que cresceu até se transformar na
borboleta.)
Pouquíssimo trabalho tem sido feito sobre a questão básica (da qual se pode
omitir completamente qualquer menção ao cérebro) se o facto de as
experiências possuírem um carácter objectivo faz sequer sentido. Por outras
palavras, fará sentido perguntar como são realmente as minhas experiências em
comparação a como elas me parecem? Não podemos compreender
verdadeiramente a hipótese de que a sua natureza é captada numa descrição
física a menos que consigamos compreender a ideia mais elementar de que elas
têm uma natureza objectiva (ou de que processos objectivos podem ter uma
natureza subjectiva).14
Para além do seu interesse intrínseco, uma tal fenomenologia objectiva neste
sentido pode permitir que questões acerca da base física15 da experiência
assumam uma forma mais inteligível. Aspectos da experiência subjectiva que
permitam este tipo de descrição objectiva podem ser candidatos mais
apropriados a explicações objectivas de um tipo mais habitual. Mas
independentemente desta ideia estar certa ou errada, parece improvável que
alguma teoria física do mental possa ser levada a sério até nos termos
debruçado mais sobre o problema geral da subjectividade e da objectividade.
Caso contrário não conseguiremos sequer colocar o problema da relação mente-
corpo sem nos evadirmos a ele16.
Thomas Nagel
The Philosophical Review LXXXIII, 4 (Outubro de 1974): pp. 435-50. Edição portuguesa
publicada com a autorização do autor.
Notas
1. Exemplos disto são J.J.C. Smart, Philosophy and Scientific Realism (Londres,
1963); David K. Lewis., “An Argument for the Identity Thesis”, Journal of
Philosophy, LXIII (1966), reimpresso com adenda em David M. Rosenthal,
Materialism & the Mind-Body Problem (Englewood Cliffs, N.J., 1971); Hilary
Putnam, “Psychological Predicates” em Capitan and Merrill, Art, Mind & Religion
(Pittsburgh, 1967), reimpresso em Rosenthal, op. cit., como “The Nature of Mental
States”; D.M. Armstrong, A Materialist Theory of the Mind (Londres, 1968); D.C.
Dennett, Content and Consciousness (Londres, 1969). Exprimi dúvidas
anteriormente em “Armstrong on the Mind”, Philosophical Review LXXIX (1970),
pp. 394-403; “Brain Bisection and the Unity of Consciousness”, Synthèse, 22
(1971); e uma crítica recente de Dennett, Journal of Philosophy, LXIX, 1972. Ver
também Saul Kripke, “Naming and Necessity” in Davidson & Harman, Semantics
of Natural Language, Dordrecht (1972), especialmente pp. 334-342, e ainda M.T.
Thornton, “Ostensive Terms and Materialism”, The Monist, 56 (1972).
2. Talvez seja impossível existirem tais autómatos. Talvez algo tão complexo que se
comporte como uma pessoa tenha que ter experiências. Mas isso, a ser verdade, é
um facto que não pode ser descoberto pela mera análise do conceito de experiência.
3. Isto não equivale àquilo acerca do qual não nos podemos enganar, porque nos
podemos enganar acerca da experiência e porque a experiência está presente em
animais que não possuem linguagem nem pensamento, não tendo, logo, quaisquer
crenças sobre as suas experiências.
:
4. Cf. Richard Rorty, “Mind-Body Identity, Privacy, and Categories”, The Review of
Metaphysics, XIX (1965), especialmente pp. 37-38.
5. Com “o nosso próprio caso” não quero dizer simplesmente “o meu próprio caso”,
mas refiro-me antes às ideias mentalistas que aplicamos sem problemas a nós
próprios e aos outros seres humanos.
6. Por isso a forma analógica da expressão “como é” induz em erro. Não quer dizer
“com o que (na nossa experiência) a consciência se parece” mas sim “como ela é
para o próprio sujeito”.
8. Pode ser mais fácil do que penso transcender as barreiras entre espécies com a ajuda
da imaginação. Por exemplo, as pessoas cegas são capazes de detectar objectos
próximos delas através de uma espécie de sonar, usando estalidos vocais ou batidas
leves com uma bengala. Se soubéssemos como é ter esta experiência, talvez
pudéssemos, por extensão, fazer uma ideia do que é ter um sonar tão preciso como o
sonar de um morcego. A distância que nos separa dos outros e das outras espécies
situa-se algures num contínuo. Mesmo em relação a outras pessoas só conseguimos
compreender de forma muito parcial como é estar na sua pele; quando transpomos a
barreira entre espécies, é provável que essa compreensão seja ainda bastante mais
incompleta. A imaginação é extraordinariamente maleável. O ponto a que quero
chegar não é, contudo, que nós não podemos saber como é ser um morcego. Não
estou aqui a pôr esse problema epistemológico. O que eu quero dizer é mais
propriamente que, até para concebermos como é ser um morcego (e sabermos a
fortiori como é ser um morcego), temos que adoptar o seu ponto de vista. Se
conseguirmos adoptar esse ponto de vista de forma aproximada ou parcial, então
também o conceberemos de forma aproximada ou parcial. Ou pelo menos assim
parece no quadro do nosso conhecimento actual.
9. O problema que vou pôr pode por isso ser posto mesmo se a distinção entre
descrições ou pontos de vista mais subjectivos e mais objectivos só se pode fazer
dentro de um ponto de vista humano mais abrangente. Não aceito este tipo de
relativismo conceptual, mas também não preciso de o refutar para defender que uma
redução psicofísica não pode ser incluída no modelo do subjectivo-ao-objectivo
mais conhecido de outros casos.
10. O problema não se reduz somente ao facto de que, quando eu olho para a Mona
Lisa, a minha experiência visual tem uma certa qualidade da qual nenhum traço
seria detectável por alguém que observasse o interior do meu cérebro. Mesmo que
ele conseguisse discernir no meu cérebro uma minúscula imagem da Mona Lisa, ele
não teria quaisquer razões para a identificar com a minha experiência.
11. Esta não seria uma relação contingente, como a de uma causa com o seu efeito dela
distinto. Seria necessariamente verdadeiro que um determinado estado físico
“sentiria” de uma determinada maneira. Em Semantics of Natural Language (obra
editada por Davidson e Harman) Saul Kripke defende que as análises behavioristas
causais do mental, bem como outras análises com ela relacionadas, falham porque
constroem, por exemplo, “dor” como tratando-se de um nome meramente
contingente de dores. O carácter subjectivo de uma experiência (“a sua qualidade
:
fenomenológica imediata”, chama-lhe Kripke [p. 340]) é a propriedade essencial
ignorada por essas análises e aquela em virtude da qual ela é, necessariamente, a
experiência que é. A minha perspectiva está muito próxima da dele. Tal como
Kripke, penso que a hipótese de que um certo estado cerebral deva necessariamente
ter um certo carácter subjectivo é uma hipótese incompreensível sem a ajuda de
mais esclarecimento. Esse esclarecimento não brota das teorias que vêem a relação
entre a mente e o cérebro como contingente, mas talvez haja outras alternativas que
ainda não foram descobertas.
Uma teoria que explicasse a relação necessária entre a mente e o cérebro deixar-nos-
ia ainda com o problema levantado por Kripke de explicar como é que apesar de
tudo essa relação parece ser contingente. Essa dificuldade parece-me ser
ultrapassável do seguinte modo. Podemos imaginar algo representando-o para nós
próprios perceptivamente, empaticamente, ou ainda simbolicamente. Não pretendo
explicar aqui como funciona a imaginação simbólica, mas parte do que se passa
com as outras é assim. Para imaginarmos perceptivamente uma coisa, pomo-nos
num estado consciente semelhante àquele em que estaríamos se a
percepcionássemos realmente. De modo a imaginarmos algo empaticamente, pomo-
nos num estado consciente semelhante à própria coisa. (Este método só pode ser
usado para imaginar acontecimentos e estados mentais — os nossos ou os de
outrem). Quando tentamos imaginar um estado mental sem o estado cerebral que lhe
está associado temos que, primeiramente, imaginar empaticamente a ocorrência do
estado mental, isto é, pomo-nos num estado que se lhe assemelhe mentalmente. Ao
mesmo tempo, tentamos imaginar perceptivamente a não ocorrência do estado físico
que lhe está associado pondo-nos num outro estado dissociado do primeiro: um que
se assemelhe àquele em que estaríamos se percepcionássemos a não ocorrência do
estado físico. Quando a imaginação das características físicas é perceptiva e a
imaginação das características mentais é empática, parece-nos que podemos
imaginar qualquer experiência sem o seu estado cerebral associado, e vice-versa. A
relação entre eles aparecerá como contingente ainda que seja uma relação
necessária, devido à independência entre si dos tipos distintos de imaginação.
12. Ver “Mental Events” in Experience and Theory, editado por Lawrence Foster and
J.W. Swanson, Amherst, University of Massachusetts Press, 1970; embora eu não
compreenda o argumento contra as leis psicofísicas.
13. Uma crítica semelhante pode ser feita ao meu artigo “Physicalism”, Philosophical
Review, LXXIV (1965), pp. 339-56, reimpresso com posfácio em Modern
Materialism, organização de John O"Connor, Nova Iorque, Harcourt Brace
Jovanovich, 1969.
14. Esta questão coloca-se também no centro do problema das outras mentes, cuja
ligação íntima com o problema da mente-corpo é muitas vezes ignorada. Se
compreendêssemos como é que a experiência subjectiva pode ter uma natureza
objectiva, então compreenderíamos a existência de outros sujeitos para além de nós
próprios.
:
15. Não defini o termo “físico”. Obviamente não se aplica somente àquilo que pode ser
descrito pelos conceitos da física contemporânea, visto aguardarmos
desenvolvimentos ulteriores. Há quem pense que nada impede que fenómenos
mentais possam acabar por ser reconhecidos como físicos de pleno direito. Mas seja
o que for que possa vir a ser dito sobre o físico, terá que ser objectivo. Assim, se a
nossa ideia de físico chegar a alargar-se de modo a incluir fenómenos mentais, terá
que lhes atribuir um carácter objectivo — quer tal se faça analisando-os nos termos
de outros fenómenos já concebidos como sendo físicos, quer não. Parece-me,
contudo, bastante mais provável que as relações entre o mental e o físico acabarão
por ser expressas numa teoria cujos termos fundamentais não possam ser colocados
com exactidão em nenhuma das duas categorias.
16. Li versões deste artigo perante várias audiências e estou grato a muita gente pelos
seus comentários.
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