Filosofia Cristã - Santo Agostinho - O Mestre Do Ocidente
Filosofia Cristã - Santo Agostinho - O Mestre Do Ocidente
Filosofia Cristã - Santo Agostinho - O Mestre Do Ocidente
II
Na pessoa de Agostinho a filosofia patrstica e, qui, a filosofia crist como tal, atinge o seu apogeu. E' certo que Agostinho no pode ser contado entre os mestres da sntese. Dir-se-ia que o seu espirito, sempre vivo e pujante, empenhado em concitar o homem a decises ticas e teorticas sempre novas, no comporta sequer a idia de um sistema. Seja como for, a histria no-Io apresenta como a figura que conjugando, da maneira mais feliz, o ardor pnico ao esprito helnico e vontade romana iria ser o pioneiro do pensamento cristo, o preceptor dos povos e o orientador dos sculos. De sua plenitude iro haurir as geraes de todo um milnio, sem jamais conseguir esgot-la. Encerrara-se definitivamente a era das perseguies. Todavia, s lutas externas seguem-se, e no menos rduas, as lutas internas. De um lado havia o perigo ariano a reclamar medidas enrgicas; de outro lado, o maniquesmo com sua metafsica essencialmente anticrist e pag, continuava ameaando a prpria medula da Igreja. E j se anunciavam as disputas sobre a graa. E' neste ambiente de renhidas lutas espirituais que se desenrola a vida do grande Doutor da Igreja. E sobre este fundo que devemos interpretar-lhe a obra, ainda que o seu contedo transcenda de muito a situao histrica que a viu nascer.
Vida. Em nossa exposio da doutrina de Agostinho, teremos de fazer referncias freqentes sua vida e carreira; por isso no mencionaremos, por ora, seno os dados biogrficos mais salientes. As fontes principais de que iremos servir-nos so as "Confessiones", contendo a autobiografia de Agostinho, as "Retractationes" e uma biografia composta por seu amigo Possdio. Nasceu Agostinho a 13 de novembro de 354 em Tagasta, hoje Souk-Aras, perto de Hipona, na provncia romana da Numdia. Seu pai era pago, mas converteuse antes de morrer. Sua me santa Mnica. Estudou, sucessivamente, em Tagasta, Madaura e Cartago. Lecionou retrica, primeiro em Cartago, depois em Roma, onde se desgostou com a conduta grosseira dos estudantes e, finalmente, em Milo. Ali, o jovem retor comeou a freqentar os sermes de Ambrsio, movido, inicialmente, por um interesse puramente literrio. A breve trecho, porm, sentiu-se tocado pelas palavras do bispo, e depois de muitas lutas interiores fez-se batizar (Sbado Santo de 387). Pouco mais tarde deixou Milo, para retornar frica. A meio caminho, na cidade de stia, faleceulhe a me. Agostinho demorou-se ainda cerca de um ano em Roma, e n o outono de 388 est de volta em Tagasta, sua cidade natal. Pouco depois fundou uma espcie de mosteiro em sua casa paterna. Mas no tardou a ver-se
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S. AGOSTINHO, MESTRE DO
OCIDENTE
arrancado ao seu retiro, a instncias de Valrio, bispo de Hipona, que o ordenou sacerdote e lhe confiou a misso de pregador. Alguns anos depois Valrio f-lo seu coadjutor e sucessor. Agostinho contava, ento, 42 anos de idade. Faleceu a 28 de agosto de 430, durante o assdio da cidade episcopal pelos vndalos. Prendado de carter extraordinariamente simptico, Agostinho exerceu u m a atrao irresistvel sobre os contemporneos. Sua m a n s i d o e sua capacidade profundamente h u m a n a de compreenso moderavam-lhe a passionalidade e exuberncia pnicas. Conhecedor dos abismos d o c o r a o humano, contemplou-lhe tambm as m a i s sublimes alturas. Seu s m b o l o um corao em chamas e o olhar v o l t a d o s alturas. Obras e edies. Arrolaremos, a seguir, os escritos mais importantes sob o n g u l o de vista filosfico. 1. Confessiones, em 13 livros. Redigidas em 399. A primeira parte nos descreve a vida de Agostinho at pouco antes de sua converso; a segunda parte (livro 10) analisa o seu estado de alma a o tempo da redao; a terceira parte (livros 11-13) contm um hino de louvor a Deus, entremeado de reflexes profundas sobre a criao, inspiradas n o primeiro captulo do Gnesis. E m consonncia com o d u p l o sentido da palavra "confessio", a obra resume-se num reconhecimento sincero das prprias fraquezas humanas (aspecto autobiogrfico) e n u m a exaltao entusistica d a bondade e da providncia divinas (aspecto teolgico, freqentemente descurado). Cf. Conf. X , 1 ss. e Retract. 11,32; 137: "Confessionum mearum libri tredecim, et de malis et de bonis meis Deum l a u d a n t iustum et bonum, et in eum excitant intellectum et affectum". M L 32,659-868. C S E L 30, Bibl. Teubneriana 1106. Citaremos a edio C S E L por livros, captulos e p a r g r a f o s ; os nmeros subseqentes ao ponto e vrgula indicam a pgina (e a l i n h a ) . 2. Retractationes, em dois livros. D a t a da redao: entre 426 e 427. Contm uma reviso critica das suas obras, bem como uma srie de correes e de indicaes valiosas sobre a composio dos diversos escritos. E' o mais belo monumento sua grandeza de alma. Agostinho enumera 92 obras, num total de 232 livros. M L 32,584-665. C S E L 36; citaremos esta ltima edio. 3. Contra Acadmicos, em trs livros. Escritos em 386, contm uma refutao exaustiva do ceticismo. N o primeiro livro o autor examina o conceito de sabedoria; no s e g u n d o expe a doutrina dos acadmicos, e no terceiro oferece uma refutao da mesma. M L 32,905-958. 4. De beata vita. O d i l o g o reproduzido neste opsculo teve lugar no aniversrio natalcio de Agostinho (12 de novembro), enquanto trabalhava n o " C o n t r a Acadmicos". Principia com uma descrio magistral das trs classes de homens que, ao c a b o de penosa viagem pelo m a r d a vida, se vem ameaados pelo escolho d a soberba, n o momento preciso em que a embarcao chega ao porto ansiosamente suspirado. Agostinho mostra, a seguir, que a verdadeira felicidade n o se encontra seno na verdade divina e na u n i o com Deus. M L 32,959-976. C S E L 63,89-116. F l o P a t r 27. A edio citada a CSEL. 5. De ordine, em dois livros. Tambm esta obra deve sua origem a um d i l o g o realizado na poca em que Agostinho ainda trabalhava no " C o n t r a Acadmicos" (386). D i g n a de m e n o a participao de Mnica neste dilogo. Trata do problema d a origem do mal e do carter universal da Providncia divina. M L 32,976-1020. CSEL 63,119-185; as nossas citaes s o tiradas desta edio. 6. Soliloquia, espcie de monlogo, em dois livros. Foi escrito em 386. A p s uma fervorosa prece inicial, Agostinho aborda o problema do conhecimento, das qualidades d o s b i o e d a verdade, que, sendo imortal, reclama um substrato tambm imortal, a alma. M L 32,869-904.
OBRAS E EDIES
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7. De immortalitate animae, obra redigida em Milo p a r a seu uso pessoal. E' u m a continuao dos Solilquios. Foi publicada revelia d o autor. Agostinho frisa o carter inacabado d o livro, que em parte se lhe afigurava incompreensvel a ele mesmo. M L 32,1021-1034. 8. De quantitate animae. Escrito em Roma, no ano 388. Discorre sobre a origem, a natureza e a imaterialidade da alma e sua relao a o corpo. O tema principal, porm, a imaterialidade. ML 32, 1035-1080. 9. De Musica, em seis livros. Escrito na frica, antes de 391. Agostinho planejara este escrito como parte de u m a obra muito mais extensa, os "Disciplinarum libri", uma espcie de enciclopdia das artes liberais. N o mesmo intuito Agostinho redigira, ainda em M i l o , o " D e G r a m m a t i c a " (387), extraviado desde 426; apenas alguns fragmentos chegaram at ns. O s seis livros sobre a msica so uma introduo tcnica do ritmo e d o verso. N o sexto livro o autor descreve o m o d o como o ritmo e o n m e r o nos conduzem ao Eterno. M L 32,1081-1194. 10. De Magistro, composto em 389. E ' um dilogo com Adeodato (que contava ento 16 anos de idade) sobre a funo da linguagem e sobre Cristo, o verdadeiro Mestre. M L 32,1193-1222. 11. De vera religione, escrito entre 389 e 390. Visa provar, contra os maniqueus, q u e o cristianismo a nica religio verdrtieira. , a nosso ver, a melhor introduo filosofia de Agostinho. M L 34,121-172. 12. De libero arbtrio, em trs livros. Iniciado em 388, em R o m a , s foi concludo na frica, em 395. Versa sobre a origem do mal, a liberdade e a razo p o r que Deus nos dotou de uma vontade livre, embora previsse o abuso q u e dela faramos. M L 32,1231-1310. 13. De Trinitate, em 15 livros. Redigido de 399 a 419. E ' sua obra mestra em matria dogmtica. Os primeiros sete livros explanam a doutrina d a Trindade com base na Sagrada Escritura, solucionando, ao mesmo tempo, as dificuldades decorrentes da revelao e da razo. Os oito livros restantes procuram penetrar mais a fundo n o mistrio, merc de analogias e imagens emprestadas, sobretudo, da psicologia. A obra uma fonte preciosa para a psicologia agostiniana. M L 42,819-1098. 14. De civitate Dei, em 22 livros. D a t a de redao: 413-426. O ensejo externo para a composio desta obra foi a tomada de R o m a por Alarico, em 410. O s dez primeiros livros contm u m a grandiosa apologia do cristianismo contra as acusaes dos gentios, que culpavam os cristos pela runa de R o m a e do Imprio. A parte restante espraia-se num a m p l o tratado de teologia da histria. M L 41. C S E L 40,1 e 2, Bibl. Teubtieriana 1104/05. Citaremos a edio CSEL. A o lado destas, h muitas outras obras importantes para a filosofia de Agostinho, em particular os escritos contra os maniqueus e os comentrios escritursticos, entre os quais se destacam as trs exposies do Gnesis. A segunda destas intitula-se " D e Genesi ad litteram imperfectus liber" e a terceira, " D e Genesi ad litteram", embora trate apenas dos trs primeiros captulos de Gnesis, em 12 livros. D e igual importncia so as respostas a uma srie de questes, coligidas no " D e diversis quaestionibus octoginta tribus". Os livros " D e Genesi ad litteram" e " D e Genesi ad litteram imperfectus liber" sero citados segundo a edio C S E L 28 ( I ) ; os demais escritos, bem como as cartas, de acordo com a edio M L . Tradues. Confisses, trad. de J. Oliveira Santos, S.J. e A. Ambrsio de P i n a , S.J., 5* edio, Porto 1955. A s Confisses, trad. de Frederico Ozanam Pessoa de Barros, Editora das Amricas, S. P a u l o 1961. Contra acadmicos, traduo e prefcio de Vieira de Almeida, Biblioteca Filosfica, Coimbra. A Cidade de Deus, trad. de Oscar Paes Leme, 3 vols., Editora das Amricas, So Paulo 1961.
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Antes de iniciarmos a exposio da doutrina de Agostinho, convm dar uma idia do mtodo que iremos adotar. E' de praxe procederse a uma coletnea das vrias doutrinas do Doutor Hiponense, para reuni-las, segundo esquema preestabelecido, numa espcie de "sistem a " de filosofia agostiniana. Tal procedimento oferece vantagens inegveis: permite uma rpida orientao quanto s posies do mestre em face de certos problemas. Por outro lado, porm, este m o d o de proceder acarreta grave inconveniente: o resultado uma espcie de manual da filosofia agostiniana, manual que o prprio Agostinho jamais redigiu e ao qual provavelmente se negaria a apor sua assinatura. E' impossvel comprimir o pensamento de Agostinho num molde preconcebido sem arriscar-se a perder o que h nele de melhor e de mais caracterstico. S nos resta pois um caminho para expor-Ihe mais ou menos fielmente a doutrina: o de nos deixarmos conduzir por ele prprio, e acompanharmos com docilidade o ritmo natural do seu pensamento. E este no evolui em linha reta, seno que gira constantemente em torno de um centro nico, que Deus.
A. A emancipao filosfica de Agostinho. Todo o pensamento agostiniano, repetimos, gravita em torno de Deus. Para bem compreendermos o conceito agostiniano de Deus, teremos de examinar, pois, os antecedentes deste conceito na prpria vida do nosso autor.
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N o ano seguinte (371) foi a Cartago p a r a cursar retrica. Precipitou-se desenfreadamente na vida devassa da metrpole.' Afeioou-se apaixonadamente ao teatro. E no tardou em associar-se quela mulher que iria ser me d e seu filho Adeodato. Seus conhecimentos d o cristianismo eram, ainda, m u i t o neggiveis; no admira, pois, que sua fora mora! fosse declinando progressivamente. Apesar de tudo, freqentava de vez em q u a n d o a Igreja, mas sem manifestar grande interesse pelo culto.* E m 373, no curso do programa acadmico, travou conhecimento com o dilogo "Hortnsio", hoje perdido, de Ccero, o qual contm uma exortao sabedoria e ao estudo da filosofia. Esta leitura teve o efeito de evidenciar os traos mais nobres do carter de Agostinho que, a despeito da profundeza de sua queda, jamais deixara de demandar s coisas do alto. Entregou-se com ardor leitura daquele tratado, que lhe proporcionou uma concepo radicalmente nova da vida, encaminhando-o p a r a o cultivo da sabedoria. N u m a palavra, Agostinho despertou para a vida filosfica. Verificou, com especial satisfao, que Ccero n o recomendava nenhuma escola filosfica em particular, mas sim a filosofia como tal, e a busca da sabedoria em si mesma. Todavia no deixou de sentir a ausncia do nome de Cristo, que "bebera com o leite materno o meu terno corao e do qual conservava o mais alto apreo"." Compreende-se, em vista disso, que determinasse buscar a sabedoria n a doutrina de Cristo. Dedicou-se, neste intuito, ao estudo da Escritura.' Este primeiro contacto com a Bblia, porm, revelou-se pouco menos que catastrfico para o jovem professor de retrica. O estilo e a linguagem dos livros sagrados pareceram-lhe extremamente ordinrios e toscos; no chegavam a corresponder ao ideal e s idias ciceronianas. Agostinho sentiu-se desorientado: saira em busca da sabedoria a conselho de Ccero, mas no a encontrara na Escritura; desejava ser cristo, mas desagradava-lhe a forma externa d o cristianismo. Neste estado, e enquanto o orgulho lhe entravava o acesso a u m a compreenso mais profunda do cristianismo, tomou conhecimento da seita maniqueista: "Itaque incidi in homines superbe d e l i r a n t e s . . . " . 1 Aderiu, pois, ao racionalismo gentio-cristo dos maniqueus, que menosprezavam os simples fiis e prometiam aos seus adeptos um saber de ordem superior, bem como a prova cabal da verdade: "et dicebant, 'veritas et ven t a s ' , et multum dicebant eam m i h i . . . " . * E foi precisamente a magia desta palavra "verdade" que o seduziu. Ademais, os maniqueus lhe pareciam ser cristos verdadeiramente esclarecidos e desembaraados das fbulas ridculas que circulavam entre o povo simples. E assim sucedeu que o jovem Agostinho se associasse seita por espao de nove anos, embora na qualidade de simples "ouvinte", e sem tornar-se um membro plenamente qualificado. O que mais o impressionava no era o sistema fantstico da seita, e sim a atitude negativa com que os maniqueus rejeitavam e condenavam os dogmas c a t l i c o s . "
O espirito racionalista de Agostinho sentia-se mais vontade entre os maniqueus do que entre os cristos, devido ao carter acentuadamente materialista da metafsica dessa seita, e conseqente afinidade com suas prprias concepes acerca de Deus e da alma. Segundo a doutrina de Mans, Deus luz, vale dizer: um ente corpreo. As almas humanas so meras partculas desta luz divina, des Tbld. III, 1, I ; 43 5. 5 Ibid. III, 3, 5; 47, 9 s Ibid. III, 4, 8; 49, 22 s. 7 Ibid. III, 5, 9; 50. Ibid. III, 6, 10; 50, 15. Ihid.; 50. 20 s. De utllitate credendi I, 2
ML 42, 08.
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terradas para os corpos visveis. Este materialismo foi a fonte principal dos erros de Agostinho neste perodo de sua v i d a : "et quoniam cum D e o meo cogitare vellem, cogitare nisi moles corporum non poteram, neque enim videbatur mihi esse quidquam quod tale non esset, ea maxima et prope sola causa erat inevitabilis erroris m e i " . " A raiz mais profunda de todos os seus erros, porm, era o seu prprio orgulho. Este o levara a inverter a ordem natural, pondo toda sua confiana em si mesmo e preferindo o saber f, ao invs de primeiro deixar-se orientar humildemente pela autoridade. Tendo-se abalanado a buscar a verdade sem guia seguro, n o era de admirar que, uma vez desiludido do maniquesmo, o jovem racionalista viesse ter ao ceticismo. Tal foi a primeira etapa do seu desenvolvimento, e esta tambm embora em sentido inverso a sua doutrina, que outra coisa no , no fundo, seno u m a interpretao de sua prpria experincia filosfica.
2. Sua emancipao A emancipao espiritual de Agostinho deu-se sob a ao decisiva dos seus contactos com o neoplatonismo e com Santo Ambrsio.
1. Renncia
ao
racionalismo.
S a n t o Ambrsio foi um dos primeiros exegetas ocidentais a fazer uso da interpretao alegrica, tal como fora praticada pelos alexandrinos. Com grande percia procurava convencer seus ouvintes de que a Escritura sempre comporta um sentido aceitvel, e at mesmo profundo, desde que saibamos entend-la corretamente. Sob a letra indagava do sentido espiritual, o que lhe permitia eliminar muitos antropomorfismos. Por esse meio pde desvendar melhor a sabedoria divina oculta na Escritura, distanciando-se a si e a Igreja docente das necedades dos maniqueus e de muitos catlicos. Esta descoberta provocou uma verdadeira revoluo no pensamento de Agostinho.
1. Agostinho descobre a noo de espirito. O contraste entre letra e espirito apenas um exemplo da oposio muito mais compreensiva entre matria e esprito em geral. O materialismo prtico impedira a Agostinho de ultrapassar o sentido concreto e imediato das palavras e imagens escrituristicas. M a s eis que os sermes esclarecedores de Ambrsio comeam a descortinar-lhe o significado profundo, e at ento insuspeitado, que se oculta sob a roupagem figurativa da letra. A s explanaes do bispo de Milo sobre os livros da Lei e dos Profetas que at ento lhe h a v i a m parecido absurdos lhe causaram grande prazer, tanto mais que experimentara em sua p r p r i a pessoa que a letra m a t a : "saepe in popularibus sermonibus suis dicentem Ambrosium laetus a u d i e b a m : Littera occidit, spiritus autem vivificat (2 C o r 3,6), cum ea quae ad litteram perversitatem docere videbantur, remoto mystico velamine spiritualiter a p e r i r e t " . " 2. Agostinho reconhece no ser absurdo principiar pela f. Embora iniciado por Ambrsio no sentido espiritual, Agostinho no cria, ainda, na dou"
u
SUA EMANCIPAAO
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trina que ele propunha, ou, antes, no tinha ainda plena segurana disso. Surpreendeu-se de que at ento nem sequer lhe houvesse ocorrido a possibilidade de u m sentido mais profundo da Escritura. Embora continuasse indeciso q u a n t o a esta interpretao, o certo que o seu sentimento de segurana recebera golpe mortal. Comea a dar-se conta do erro que cometera ao submeter a doutrina da Igreja ao juzo imaturo de sua p r p r i a razo, e de hav-la rejeitado. Desejara comear pela cincia, e esta pretenso soberba fizera com que casse vtima das ensinanas absurdas dos maniqueus. Doravante j n o lhe parece to irrazovel partir da f, posto q u e toda a nossa vida social se baseia, em derradeira anlise, na crena: " E x hoc tamen quoque iam praeponens doctrinam catholicam, modestius ibi minimeque fallaciter sentiebam iuberi, ut crederetur quod d e m o n s t r a r e t u r . . q u a m illic temeraria pollicitatione scientiae credulitatem irrideri; et postea tam multa fabulosissima et absurdssima, quia demonstrari non poterant, credenda imperari"." 3. Enfim Agostinho reconhece haver recorrido aos inimigos da Igreja a fim de instruir-se na sua doutrina. Procedera, em matria de religio, como no lhe ocorreria proceder em qualquer outro assunto; confessa-o, ele mesmo, no " D e utilitate credendi" 6,13, onde se l: " D e scripturis non credendum expositorum earum inimicis". Com efeito, quem se lembraria de pedir explicao dos livros aristotlicos, a um adversrio de Aristteles? Q u e m desejaria estudar a geometria de Arquimedes sob a direo de um E p i c u r o ? Entretanto, outro n o fora o seu modo de proceder quando se dirigira aos maniqueus a fim de instruir-se na Escritura confiada s mos da Igreja.
Uma vez convencido de que a Igreja dispunha de u m a inteligncia muito mais profunda da Escritura, Agostinho sentiu a necessidade de investigar o porqu desta autoridade da Igreja. Todavia, para poder confiar-se completamente a ela e render-se f, urgia erradicar primeiro aquele mal bsico que estava na origem do seu racionalismo: a presuno: "Tumore meo separabar abs te, et nimis inflata facies claudebat oculos m e o s " . "
II. Renncia
ao
materialismo.
Embora j houvesse abandonado o maniquesmo ao qual, alis, nunca aderira com plena convico, Agostinho no superara ainda o materialismo filosfico p r p r i o desta seita. Estava s portas da Igreja, mas a ignorncia da verdadeira natureza do esprito vedava-lhe o ingresso. Pela mesma razo encontrava dificuldades insuperveis perante o problema do mal. Conta-nos, ele mesmo, q u e imaginava a Deus e aos anjos como se fossem seres corpr e o s . " Via n o universo uma nica e imensa mole, composta de corpos diversos e de grandeza limitada. Concebia a Deus como uma substncia infinita e imaginava-O a penetrar o universo inteiro, assim como a g u a penetra uma esponja. Ora bem, se todas as coisas foram criadas pela bondade divina, que as penetra da maneira acima descrita, elas devem ser boas em sua totalidade. E assim parece no haver lugar para o mal. Entretanto, inegvel a existncia do mal fsico e m o r a l ; o mal no pode ser u m puro nada, visto ser objeto de temor e causa de sofrimentos. Por outro lado, ele n o pode ter a Deus por autor. Que , pois, o m a l ?
" Ibid. 7; 120, 9 s. " Conf. VII, I I ; 153, 14 s. " Ibid. 5, 7; 146.
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Enquanto Agostinho, j prestes a fazer-se crente, forcejava por superar sua ignorncia e dissipar suas dvidas angustiantes, ocorreu um fato decisivo para seu desenvolvimento futuro: o encontro com o neoplatonismo.
Embora muitas coisas lhe parecessem obscuras, a sua f, conquanto ainda imperfeita, n o deixava d e fortalecer-se de dia a d i a . " Em conseqncia disso, o encontro com o neoplatonismo, que lhe proporcionou uma metafsica d o espirito, foi grandemente proveitoso para o jovem Agostinho. " P o r intermdio de um certo h o m e m , entumecido por monstruoso o r g u l h o " " chegou a conhecer " a l g u n s livros platnicos". A leitura destes escritos impressionou-o profundamente. Experimentou at uma espcie de vivncia mstica, da qual nos deixou uma descrio sem paralelo na literatura universal." De certo, Agostinho n o demorou a notar que no era ali que teria de procurar o cristianismo; mas verificou, com surpresa, os numerosos pontos de contacto entre as duas doutrinas e, em particular, a importncia capital que a m b a s atribuam doutrina do Logos. Sobretudo, porm, deparou nestes livros u m a metafsica do esprito altamente desenvolvida.
1. Em primeiro lugar, recebeu a noo de uma luz incorporai, invisvel e puramente espiritual. Esta luz excede em sublimidade tudo quanto visvel aos olhos da carne, pois ela o princpio da verdade e a causa de t o d a s as outras coisas. Descortinou, pela vez primeira, a espiritualidade de D e u s . Deus s se d a conhecer quele que se aparta dos sentidos e das imagens sensveis. D o mundo exterior devemos recolher-nos ao mundo interior, isto , ao santurio do nosso prprio esprito, a fim de empreender, a p a r t i r dali, a nossa ascenso p a r a Deus. Pois Deus a luz que est acima d o esprito e que s p o d e ser atingida se transcendermos o que h de m a i s elevado em ns. *
2. Em segundo lugar, Agostinho deve aos platnicos a doutrina da diversidade radical entre o ser absoluto o nico verdadeiramente digno do nome de ser e o ser meramente participado. Doravante Agostinho ir perceber o eco desta doutrina tambm na S a g r a d a Escritura: "De longe" ouve a palavra do S e n h o r : " E u sou o que s o u " , e da qual nunca m a i s poder duvidar. Mais facilmente duvidaria de sua prpria existncia do q u e da de Deus, a Verdade eterna, claramente contemplada e percebida por meio das coisas criadas ( R o m 1,20). Se Deus o nico ser absoluto, todos o s outros seres s o apenas relativos; nem deixam totalmente de existir, nem existem totalmente: "nec o m n i n o esse, nec o m n i n o non esse". Deus imutvel, e todas as outras coisas s o mutveis; por isso s Deus existe verdadeiramente. Em comparao com Ele as coisas no tm verdadeira existncia. M A g o s t i n h o se d conta de que t a m b m ele faz parte deste ser imperfeito, desta " r e g i o da dessemelhana", l o n g e ainda da meta que lhe fora dado aflorar no seu recente enlevo mstico: "Et inveni longe me esse a te in regione dissimilitudinis". n 3. E/n terceiro lugar, Agostinho deve aos platnicos a persuaso de que todas as coisas que existem so boas. Poder-se-ia alegar, com efeito, q u e as coisas n o so boas, porque se corrompem. M a s quem assim pensa n o repara em que as coisas no se poderiam corromper se no fossem boas. De fato, a corrupo pressupe certo grau de bondade. E' verdade que a s coisas no so absolutamente boas, pois do contrrio no seriam corrupti Ibld. Ibid. Ibid. > Ibid. Ibid. " Ibid. v i l , 9. 13; 154, 5. V I I , 10, 16; 157 s. 11, 17; 158, 8 s. 10, 16; 157, 21.
SUA EMANCIPAAO
veis ou alterveis; mas nem p o r em q u e existem." isso deixam de ser b o a s na mesma
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medida
4. Donde se segue que o mal no seno a privao de um bem, e que o mal como tal no existe. T u d o que existe bom. L o g o , o que n o bom isto : o mal no existe. O mal se apresenta na mesma medida em que as coisas sofrem alguma privao no seu ser, o u , em outras palavras, enquanto se corrompem. De sorte que o mal no n a d a de positivo, mas uma privao ou destituio. P o r conseguinte, se todo o bem presente nas coisas fosse eliminado ou destrudo, estas deixariam totalmente de existir e reverteriam ao nada: "ergo si omni bono privabuntur, omnino nulla erunt; ergo quamdiu sunt, bona sunt: Malumque illud quod quaerebam unde esset, non est substantia; quia si substantia esset, bonum e s s e t " . " 5. Por todas estas razes, o mal no pode originar-se de Deus. Sendo o mal um no-ser, impossvel que algum lhe h a j a d a d o o ser. Deus o criador de todas as coisas, e tudo o que Ele criou bom. Ainda que n o criasse todas as coisas iguais, todas so boas, mesmo enquanto desiguais. A prpria desigualdade um bem, pois s ela torna possvel a grandiosa h a r m o n i a do universo: "et q u o n i a m non aequalia omnia fecisti, ideo sunt omnia, quia singula bona sunt, et simul omnia valde b o n a . . . " "
Assim Agostinho encontrou, enfim, a soluo do problema que tanto o angustiara. O mal, como o pecado, no uma substncia, mas sim uma lacuna, um defeito, uma ausncia de algo que deveria estar presente. O mal e o pecado constituem, pois, fundamentalmente, uma desordem. A ordem, ao invs, reina ali onde cada coisa se acha em seu devido lugar, exercendo as funes que lhe compete exercer. *
III.
Renncia
ao
ceticismo.
Durante o tempo em que aderira estranha cosmogonia dos maniqueus, Agostinho no deixara de ocupar-se com os filsofos. S u a s leituras o introd u z i r a m a uma astronomia cientfica, isto , a uma explicao racional e natural dos fenmenos celestes. N a opinio dos maniqueus, as estrelas, divididas em dois grandes exrcitos, e representando os dois princpios opostos do bem e do mal, esto empenhadas num conflito gigantesco; para os astrnomos, ao contrrio, os fenmenos siderais obedecem a uma s lei e formam um s sistema. Conferindo as explicaes dos maniqueus com as interpretaes cientficas, Agostinho reconheceu que estas eram muito mais verossmeis, merecendo a preferncia s fbulas daquela s e i t a . " Ora, como sabemos, ele aderira ao maniquesmo precisamente porque este lhe prometia um saber genuinamente racional. D e fato, porm, o jovem retor no conseguira convencer-se realmente, nem da cosmogonia maniquesta, nem das demais doutrinas da seita; por isso os novos conhecimentos cientficos tiveram o efeito de desiludi-lo profundamente. Foi ento que seus a m i g o s maniqueistas o encaminharam ao mestre mais celebrado da seita, Fausto de Mileve, que gozava da fama de grande sbio, e que facilmente lhe resolveria todas as dificuldades. Quando, depois de longa espera, encontrou-se afinal com Fausto, Agostinho notou que este, a despeito de sua eloqncia, dispunha de uma f o r m a o cientfica muito deficiente, pois que apenas sabia a gramtica e
= Ibid. 12, 18; 158. -1 Ibid. 159. 1 s. " Ibid.; 159, 9 s. 25 Cf. " D e Ordine" e "De Conf. V, 3, 3; 91, 4 s.
libero
arbtrio".
148
lera alguns discursos de Ccero e um que o u t r o tratado de S n e c a . " N u m a palavra, Agostinho verificou que sua p r p r i a sabedoria era superior d o mestre. L o g o sentiu arrefecer-se-lhe por completo o zelo pelo maniquesmo ("et caeterum conatus omnis meus, quo proficere in illa secta statueram, illo homine cognito, prorsus intercidit")> embora n o se decidisse ainda a romper definitivamente com a seita; resolveu e s p e r a r . " Pouco depois dessa desiluso Agostinho v e i o a Roma, enfermo de corpo e alma. Mesmo depois de restabelecido de u m a perigosa febre, sua alma continuava a sofrer, desesperada de alcanar a verdade. A quem recorrer? Comeou a apartar-se gradativamente do maniquesmo, ainda que continuasse a manter relaes com seus adeptos; por outro lado, porm, n o se lhe abrira ainda o entendimento para a doutrina d a Igreja. N o de estranhar que, nestas circunstncias, ele se voltasse p a r a aquela filosofia que m a i s condizia com seu estado de alma, o ceticismo: "Ocorreu-me a idia de ter havido uns filsofos chamados Acadmicos, mais prudentes do que os outros, porque julgavam que de tudo se devia duvidar e sustentavam que nada de verdadeiro podia ser compreendido pelo h o m e m . . . " " busca de uma justificao cientfica d o ceticismo, recorreu a Ccero, seu velho conhecido, que o introduziu n a s doutrinas acadmicas. Avesso a toda sorte de dogmatismos, e notadamente ao dos esticos, Ccero n o pretendia ser mais do que um " g r a n d e o p i n a d o r " : "ego ipse et m a g n u s opin a t o r " . " Imitando-lhe o exemplo, Agostinho deixou de nutrir qualquer convico segura, contentando-se com simples opinies. No nmero das opinies contava t a m b m as doutrinas crists, pelas quais continuou a interessar-se, mesmo no tempo em que esteve associado aos acadmicos. A g o s t i n h o , agora, um m a n i q u e u tbio e um cristo confuso. Suas dvidas n o se restringem a u m a ou outra doutrina: estendem-se prpria possibilidade de obter qualquer conhecimento certo acerca das verdades mais decisivas e vitais. Prefere pr t u d o em dvida e abster-se de qualquer afirmativa. E assim veio a cair na perigosa letargia espiritual d a "epoch" (suspenso do j u z o ) : "Tenebam cor meum ab omni adsensione timens praecipitium, et suspendio magis necabar. Volebam enim eorum quae non videram ita me certum fieri, ut certus essem, quod septem et tria decem s i n t " . *
O problema que agora o preocupava era, pois, o seguinte: Como possvel alcanar uma verdade certa e incontestvel a respeito das coisas invisveis? N o que casse no extremo da dvida universal. Admitia, sem discusso, que possumos uma certeza genuna das verdades matemticas, bem como de muitas coisas que temos presentes aos sentidos. Mas o que ele exigia era uma certeza igual das coisas invisveis: "sed sicut hoc ita caetera cupiebam, sive corporalia quae coram sensibus meis non adessent, sive spiritualia, de quibus cogitare nisi corporaliter nesciebam". Tampouco duvidava da definio da verdade, que concebia como uma evidncia necessria, sempre constante e indefectvel. Duvidava, porm, da possibilidade de se obter tal evidncia no tocante s questes supremas.
Ibid. 6, 10-11; 96 ss " Ibid. 7, 13; 99 Ibid. 10, 19; 106. 30 Ibid. 106, 4 s. n Contra Acad. I I I , 14,31; 7 1 , 8 ; cf. c Conf. VI, 4. 6; 119, 18 s. Ibid.; 119, 23 s.
Ccero,
Ac.
2,66.
149
Desta vez, ainda, foi no neoplatonismo que Agostinho encontrou o que procurava. Convenceu-se, de sbito, da existncia de uma realidade supra-sensivel, isto : de um mundo espiritual, e, acima dste, de um Deus, Verdade segura e Luz imutvel. Numa espcie de vivncia mstica descortinou-se-lhe o panorama de uma realidade suprasensivel e at mesmo supra-espiritual, e, n u m a espcie de intuio espiritual, tomou contacto com a transcendncia da luz divina: "Intravi et vidi qualicumque oculo animae meae, supra eundem oculum animae meae, supra mentem meam, lucem incommutabilem.. . Q u i novit veritatem, novit eam; et qui novit eam, novit aeternitatem. Caritas novit eam. O aeterna veritas, et vera caritas, et cara aeternitas! Tu es Deus m e u s . . . Et audivi sicut auditur in corde, et non erat prorsus unde d u b i t a r e m " . "
Esta experincia e esta sbita intuio interior bastaram para o seu convencimento pessoal. Entretanto e nisto est a prova da profunda sinceridade do seu esforo investigador e da sobriedade d o seu espirito filosfico Agostinho no se deu por satisfeito com isso. Ele passara pela terrvel experincia da dvida e d a desesperana, e como soubesse que ningum est isento de semelhantes dificuldades, tratou de proporcionar a todos um meio eficaz de superar a tentao do ceticismo. Esta foi u m a de suas principais tarefas cientficas, da qual procurou desempenhar-se nos trs livros " C o n t r a os Acadmicos", compostos logo aps a converso, e antes mesmo de receber o batismo. Refeito de sua prpria enfermidade espiritual, serititMe na obrig a o de vir em auxlio de todos aqueles que sofriam do mesmo mal. **
2. Refutao d o ceticismo.
A seguinte exposio norteia-se principalmente pelo "Contra Acadmicos"; num ou noutro ponto, porm, teremos de referir-nos a certas idias posteriores a esta obra. Agostinho, com efeito, j a m a i s perdeu de vista a sua prpria experincia ctica. E' por isso que as suas investigaes metafsicas acerca da divindade principiam, freqentemente, com a constatao da existncia de u m a verdade certa e inabalvel. a) A evidncia imediata dos fatos. A argumentao do ctico invoca invariavelmente os erros dos sentidos. Tais erros, porm, nada demonstram contra aquele que n o busca a verdade nos sentidos, mas no esprito. E ainda que os sentidos n o reproduzissem fielmente a s coisas, um fato incontestvel que eles pelo menos percebem algo. O a t o de percepo u m fato que no admite a menor dvida. Supondo-se embora que o mundo n o existisse, no h como negar o fato de que eu estou percebendo um mundo. Caso se negasse at mesmo este dado elementar, j no haveria sobre que discutir; com efeito, n o posso iludir-me, nem enganar-me na minha percepo do mundo, a menos que esteja vendo, e vendo a l g u m a c o i s a . " Logo, se em nossos juzos no afirmarmos seno aquilo que d a d o em nossa experincia imediata, no haver iluso possvel. Pois n e n h u m acadmico poder convencer-nos de que, q u a n d o alguma coisa se nos apresenta como branca, ela n o se nos apresente c o m o branca, ou de que a q u i l o que nos parece a m a r g o
" Ibid. VII, 10, 16; 157, 6 ss. Cf. Retract. 1, 1 , 1 ; 11. Contra Academ. II!, 11, 24; 64.
B
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b ) A evidncia agostiniana d o " C o g i t o " . Nos Solilquios, onde Agostinho examina a questo da imortalidade, deparamos a l g u m a s consideraes de capital importncia. Trata-se, antes de mais nada, de encontrar um ponto de partida seguro para a soluo do importante problema. Depois da breve invocao inicial: "Deus, semper idem, noverim me, noverim te", a Ratio lhe prope as seguintes perguntas: " T u , que desejas conhecer-te a ti mesmo, sabes que s? Sei. P o r onde o sabes? N o sei. Sabes que s m o v i d o ? N o sei. Sabes que pensas? Sei. Logo, verdade que pensas? S i m ! " Depois de vrias outras perguntas e respostas do mesmo gnero, a razo verifica que uma coisa, pelo menos, certa: "Esse te seis, vivere te seis, intelligere te s e i s " . " C o m o se v, Agostinho fundamenta a verdade na existncia do sujeito existente, vivente e pensante. A argumentao culmina n o D e Trinitate, num captulo dedicado ao estudo da essncia da alma. A s opinies dos filsofos divergem neste ponto. N e n h u m filsofo entretanto pode pr em dvida os d a d o s imediatos de sua prpria conscincia: "Quem duvidar que vive, que recorda, que entende, que quer, que pensa, que sabe e que j u l g a ? Pois, se duvida, vive; se est em dvida acerca daquilo de que duvida, lembra-se (ou tem conscincia disso); se duvida, sabe que est d u v i d a n d o ; se duvida, porque quer ter certeza; se duvida, p e n s a ; se duvida, sabe que n o sabe; se duvida, j u l g a que no deve assentir temerariamente". E ainda que se pudesse duvidar de tudo o mais, disto n o se pode duvidar. Caso contrrio j n o haveria do que duvidar, o que tornaria impossvel a prpria d v i d a . " A s mesmas reflexes reocorrem no " D e Civitate D e i " , embora mais concisamente, e com algumas variaes: "E se te enganas?" eis a incessante objeo dos acadmicos. A resposta de Agostinho simples e clara: Se me engano, soa: "Si enim fallor, sum". " Q u e m n o existe no pode enganar-se; por isso, se me engano, existo. L o g o se existo porque me engano, como posso enganar-me, crendo que existo, q u a n d o certo que existo, se me e n g a n o ? Embora me engane, sou eu que me engano e, portanto, em q u a n t o conheo que existo, n o me engano. Seguese tambm que, em quanto conheo que me conheo, n o me engano. Como conheo que existo, assim conheo que c o n h e o " . "
prpria verdade
c ) A evidncia das verdades lgicas. O mbito d a s verdades evidentes se amplia consideravelmente n o que entramos no d o m n i o d a "disciplina das disciplinas", a Lgica, t a m b m chamada D i a l t i c a . " E m b o r a tambm os cticos se sirvam dela a fim de invalidar com refinada sutileza todos os argumentos dos seus adversrios, a Lgica nos proporciona inmeras evidncias. Antes de mais nada, ela contm muitssimas proposies condicionais que so sempre verdadeiras e nunca podem ser falsas, p o r exemplo: se h q u a t r o elementos no mundo, n o h cinco; se o sol u m s, n o h dois sis. Verdadeiras so tambm todas as proposies em q u e se afirma a impossibilidade de contradio; p o r exemplo: impossvel q u e uma mesma alma seja mortal e imortal, o u : impossvel q u e seja dia e noite ao mesmo tempo e no mesmo lugar. O mesmo vale q u a n t o s proposies disjuntivas conten" " Ibid. 26; 66. Solll. II, 1 , 1 ; 885. De Trinlt. X , 10; 981. De Civit. Dei X I , 26; 551, 6 s. Cf. De Ordine II, 13, 38; 174, 7 S.
SUA EMANCIPAAO
151
do o seu oposto contraditrio, tais c o m o : neste m o m e n t o ou vigio ou d u r m o . Todas estas afirmativas so verdadeiras, e evidentemente tais, sem q u e seja preciso verific-las pela experincia sensvel." d) O ceticismo autodestrutivo e desumano. soluo teortica Agostinho faz seguir um exame dos aspectos prticos d o ceticismo. S e g u n d o os acadmicos, o sbio deve abster-se de assentir levianamente a q u a l q u e r afirmativa, contentando-se com opinies mais ou menos provveis. P o r t a n t o , se quiserem ser conseqentes consigo mesmo, devero concluir que t a m b m a lei moral se reduz a uma questo de simples verossimilhana. D o n d e se segue que os criminosos poderiam justificar seus delitos sob o pretexto de terem agido com uma certeza meramente provvel, e declinar da sentena judicial alegando ser impossvel assentir a simples probabilidades." e) Evoluo histrica do ceticismo. Agostinho finaliza sua refutao com um relato histrico-pragmtico do ceticismo. Sua origem histrica prendese a uma medida pedaggica de Arquesilau, visando impedir o acesso de Zenon Academia. E' que este negava a imortalidade da alma e a existncia de um m u n d o espiritual, e por isso foi reputado indigno de compartilhar os segredos d a Academia. Arquesilau preferiu ocult-los por completo, na esperana de que a l g u m a gerao futura tornasse a descobri-los; p s todo seu empenho em libertar a Zenon e seus adeptos de suas falsas doutrinas, abalando-lhes a certeza. Arquesilau, como vemos, s adotou uma posio aparentemente critica e ctica, e isto por motivos pedaggicos. Tornou-se assim o fundador da Nova Academia. T a m b m Carnades propugnou um ceticismo pedaggico, em oposio a Crisipo, d a n d o origem, assim, Terceira Academia.* 4 Na opinio de Agostinho o ceticismo , pois, em substncia, uma reao do espiritualismo platnico ao materialismo estico. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma reao e de um protesto, que os discpulos, infelizmente, passaram a cultivar como se fossem fins em si mesmos. E assim, reduzido esterilidade, o ceticismo estava condenado a perecer mingua. Seu ltim o representante foi Ccero. Pouco depois dele desapareceu o muro protetor q u e guardara a doutrina de Plato. Doravante a voz de Plato torna a fazer-se ouvir com plena autoridade: "Adeo post illa tmpora non l o n g o intervallo omni pervicacia pertinaciaque demortua, os illud Platonis q u o d in philosophia purgatissimum est et lucidissimum, dimotis nubibus erroris emicuit maxime in Plotino, qui Platonicus philosophus ita eius similis iudicatus est, ut simul eos vixisse, tantum autem interest temporis, ut in hoc ille revixisse putandus sit". **
B. Em busca de Deus. Agostinho jamais pensou em divorciar a teoria da prtica. Sua filosofia uma interpretao de sua prpria vida. E esta se resume numa busca ininterrupta de Deus. De certo, sua busca no foi v, nem lhe faltaram grandes descobertas; ainda assim, no cessou de procurar at o fim de sua vida.
Basta ler atentamente os dois textos anexos p a r a se verificar q u e ele encontrou a Deus tanto pela razo como pelo a m o r ; e no entanto, em c a d a linha das Confisses continua a transparecer a s a u d a d e de Deus e a inquie" " " " Contra Acad. III, 13, 29; 68. Ibid. III, 16, 36; 74. Ibid. Ml. 17. 37-39, 42; 75-79. Ibid. 18, 41; 79, 3 .
152
tude da sua busca: " N o quero estar onde posso, nem posso estar o n d e quero: de ambos os modos sou miservel. H i c esse valeo nec volo; illic volo nec valeo: miser u t r o b i q u e " . ** Agostinho procura a Deus como quem sabe e a m a o que busca, a i n d a que sem possui-lo. Destarte a inquietude da alma vem a ser uma c o m o smula de toda a sua vida: " T u excitas, ut laudare T e delectet; q u i a fecisti nos ad Te, et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in T e " . ** P o r isso o problema vital de Agostinho no se exprime na pergunta: q u e devo procurar?, e sim nesta outra: de que m o d o devo busc-lo a fim de encontrar repouso na sua posse definitiva? " E n t o , como Vos hei de p r o c u r a r , Senhor? Quando V o s procuro, Deus meu, busco a vida eterna. Procurar-Vosei para que a m i n h a alma v i v a . . . ; como procurar, ento, a vida feliz? N o a alcanarei enquanto n o exclamar: Basta, ei-la a l i l " -
E' luz desta busca incansvel que devemos interpretar a teodicia de Agostinho.
Agostinho nunca ps em dvida a existncia de Deus. Nenhuma problemtica, nenhum ceticismo, e nem mesmo o estudo das opinies discordantes dos filsofos p u d e r a m arrancar-lhe a convico de q u e h um Deus. ** Pois a existncia de D e u s conhecida de todos os homens, com a possvel exceo de alguns poucos que tm a natureza inteiramente corrompida; com esta ressalva, a h u m a n i d a d e unnime em reconhecer um D e u s C r i a d o r . " A questo da existncia de Deus no constitua, pois, um problema pessoal para Agostinho. M a s nem por isso deixou de interessar-se por ele, e de resolv-lo de um m o d o inteiramente pessoal. Sua soluo faz parte integrante de sua doutrina d o conhecimento que, por sua vez, resultado de sua experincia pessoal. P r o c u r a r e m o s mostr-lo, expondo primeiro a prova agostiniana da existncia de D e u s ; a seguir, retomaremos o problema a partir da anlise de sua teoria d o conhecimento.
Foi, de certo modo, por casualidade que Agostinho formulou o problema da existncia de Deus. N u m a passagem importante do segundo livro do " D e libero arbtrio" um dos interlocutores pergunta se no teria sido prefervel que Deus no nos tivesse concedido o livre arbtrio, em vista do mau uso que dele fazemos. E' nesse contexto que surge, imprevistamente, a questo da existncia de Deus.
I. Os prembulos
da
prova.
Evdio, o interlocutor de Agostinho n o dilogo " D e libero a r b i t r i o " , declara estar convencido, graas revelao crist, da existncia do livre arbt r i o ; este nos foi d a d o por Deus, e por conseguinte um bem. E v d i o alega, porm, que nada disso lhe conhecido pela razo natural, e, por isso, prope deixar a questo em suspenso, pelo menos provisoriamente, at encontrar-lhe
Conf. X, 40, 65 ; 276, 22 " Ibid. I. 1. 1; I , 7 s. " Ibid. X, 20, 29 ; 248, 17 s. " Cf. Conf. VI, 5, 7-8; 121, I I . " In Joh. tract. 105, 17, 4; t. 35, 1910.
153
a necessria demonstrao. A o que Agostinho lhe pergunta: Ests certo, pelo menos, que existe um D e u s ? Evdio responde, modestamente: " E t i a m hoc non contemplando, sed credendo inconcussum t e n e o " . " E assim j n o h como fugir a uma demonstrao racional, tanto mais q u e existem homens insensatos que dizem no crer na existncia de Deus (cf. SI 52,1). Como se h de proceder para convenc-los? 1. Primeira condio: a boa f.
Suponhamos, diz Agostinho, que o insensato d mostras de boa f e de um desejo sincero de saber a verdade daquilo que Evdio cr; suponhamos, ademais, que no seja pertinaz, m a s disposto a examinar com toda a seriedade as provas propostas: porventura ser possvel convenc-lo? Antes de responder, Evdio insiste, por seu turno, na indispensabilidade das condies arroladas por Agostinho: "Certe enim, quamvis esset absurdissimus, concrederet mihi, cum doloso et pervicaci de nulla o m n i n o et maxime de re tanta, non esse d i s s e r e n d u m " . " Sempre coerente consigo mesmo, Agostinho recusase a formular o problema de m o d o puramente abstrato e independentemente das necessrias pressuposies morais. Como se h de proceder, pois, para convencer um tal indivduo da existncia de D e u s ? 2. S e g u n d a condio: a f.
Evdio, que h pouco insistira na necessidade de argumentos racionais, principia a prova da existncia de Deus com um apelo autoridade. Antes de mais nada, ele se esforaria por convencer o ctico da convenincia de prestar f s pessoas que conviveram com o Filho de Deus e nos relataram por escrito o que viram com seus prprios olhos. Muitas coisas por elas testemunhadas seriam impossveis se Cristo no fsse o Filho de Deus. Se o ctico recusasse tal testemunho, seria o caso de se lhe perguntar com que direito ele mesmo exige que demos crdito s suas palavras. M a s por que, ento, ele se recusa a aceitar a nossa f ? M A pergunta por que ele prprio no se d p o r satisfeito com esta f, Evdio replica: "Sed nos, id quod credimus, nosse et intelligere c u p i m u s " . " E assim volvemos ao ponto de partida. Agostinho d r a z o a Evdio: devemos partir da f. " S e n o crerdes, no compreendereis", diz (saias (7,9), D o n d e decorre uma dupla exigncia: 1', que nosso dever aspirar inteligncia daquilo que cremos, d a d o que o fim ltimo do homem no crer em Deus, e sim conhec-Lo; V , que preciso partir da f para chegar a o conhecimento de Deus: " D e i n d e iam credentibus dicit: Quaerite et invenietis ( M t 7,7): nam neque inventum dici potest, quod incognitum creditur; neque quisquam inveniendo D e o fit idoneus nisi antea crediderit quod est postea c o g n i t u r u s " . "
II. O ponto
de partida
da
prova.
A presena das pressuposies morais, embora indispensvel, no suficiente. Importa, outrossim, assegurar um ponto de partida absolutamente inconcusso. Agostinho vai busc-lo na sua refutao do ceticismo.
51
De lib. arb. I I , 2, 5; 1242. Ibid. Ibid. 5: 1242. Ibid.; 1243. 31 Ibid. 6; 1243. A mesma ordem 45 ss.; 141 ss. "
de
idias
vem
exposta
no
"De
vera
rellgione",
24 ss.,
154
A fim de apoiar a argumentao em verdades inteiramente seguras, Agostinho pergunta primeiramente a E v d i o se ele sabe que existe; pois se no existisse, ser-lhe-ia impossvel enganar-se: " S i non esses, falli o m n i n o non posses". Evdio concorda. A g o s t i n h o : E' evidente, pois, que existes; ora, tal evidncia seria impossvel se n o vivesses; logo, evidente que vives. Admitido isso, Agostinho conclui: l o g o evidente tambm q u e p e n s a s . " E s t a m o s aqui em face de u m acontecimento de capital importncia na na histria da filosofia. E' pela primeira vez que d e p a r a m o s uma prova da existncia de Deus baseada na m a i s evidente das verdades, a saber: na existncia da conscincia conhecente. N o s isso: A g o s t i n h o funda a evidncia desta verdade na existncia do prprio sujeito q u e duvida, abalando assim o ceticismo pela raiz, isto , pelo mesmo ato que lhe serve de fundamento. Esta primeira certeza implica trs verdades: visto que o sujeito que pensa n o p o d e pensar sem viver, nem viver sem existir, ele sabe que pensa, que vive e que existe.
da existncia de
Deus.
Agostinho desenvolve a sua prova da existncia de Deus a partir de u m a anlise dos dados imediatos da experincia interna; alm disso, adota as duas regras seguintes: 1', aquilo que inclui certas outras perfeies, sem estar includo nelas, mais perfeito que estas; 2, aquilo que julga de outras coisas mais perfeito que as coisas sujeitas ao seu julgamento. Assim equipado, Agostinho prossegue cautelosamente o seu caminho.
1. A ordem ou gradao d o s fatos fundamentais.
G r a a s s verdades bsicas que acabamos de assegurar, at mesmo o sujeito que duvida sabe que existe, vive e pensa. Q u a l destes conceitos ser o supremo ou mais perfeito? A pedra existe, mas n o vive nem pensa. O a n i m a l vive e existe, mas n o pensa. O homem conhece e, conhecendo, vive e existe. D e forma que o pensar envolve os dois outros conceitos, sendo, port a n t o , o mais p e r f e i t o . " 2. A ordem d o conhecimento sensvel.
N o intuito de estabelecer u m a gradao hierrquica na ordem do saber, A g o s t i n h o comea pelo conhecimento mais evidente: o sensvel. C o m o se sabe, cada sentido tem seus objetos exclusivamente prprios: a vista, por exemplo, s apreende as cores, e o ouvido, os sons. Sabe-se, p o r outro lado, que certos objetos n o se limitam a u m nico sentido; a figura ou f o r m a dos corpos perceptvel tanto vista como ao tato. Ademais, sabemos no s o q u e compete a cada sentido em particular, como t a m b m o que pode ser percebido por vrios sentidos em comum. Ora, tal conhecimento n o pode provir dos prprios sentidos externos; pressupe a existncia de u m a fora superior, capaz de julgar os sentidos, a saber, de um sentido interior ("sensus interior")." N o s isso: ns sentimos, e sabemos que sentimos. Este conhecimento, t a m p o u c o , pode proceder dos sentidos externos; tambm ele deve atribuir-se,
" Ibid. 3, 7; 1243. * Ibid. 3. 7; 1244. Ibid. 8; 1244.
155
como segunda funo, ao sentido interior. Q u e esta fora superior deva ser um sentido, Agostinho o conclui do fato de a encontrarmos tambm nos animais. " De f o r m a que n o ultrapassamos, ainda, o nvel do reino a n i m a l . 3. A ordem d o conhecimento intelectivo.
J dispomos de u m a regra que nos permite transcender o grau d a animalidade. O que julga de outro, sem ser j u l g a d o por ele, superior e m a i s perfeito q u e este outro. O r a , tal evidentemente o caso da razo h u m a n a ; logo, a r a z o o que h de mais elevado no h o m e m . " Eis-nos, agora, diante do seguinte problema: Ser necessrio ultrapassar tambm a prpria razo? Dever-se- admitir, pois, que a razo julgada ou moderada por algo que no est sujeito ao julgamento dela? Antes de prosseguir Agostinho pergunta o que poderia ser aquele " a l g o " superior r a z o , a cujo julgamento esta se deve submeter. Ser D e u s ? Evdio no cr que se possa identific-lo, desde logo, com D e u s ; pois n o lhe parece conveniente chamar Deus q u i l o a que a sua razo est sujeita, mas quilo que superior a tudo o mais. Agostinho lhe d r a z o ; mas, acrescenta, no fundo indiferente que se responda de um modo ou d e outro, pois se a q u i l o que est acima da razo n o a realidade suprema o u seja, Deus, segue-se que esta realidade, ou Deus, algo mais excelente ainda. Em qualquer caso, basta verificar que existe algo acima d a r a z o , para dispormos de uma prova da existncia de D e u s . "
Acima da razo est a Verdade, que julga e modera a razo. Para melhor compreenso desta proposio convm tornar ao conhecimento sensvel. T o d o sujeito capaz de percepo est como que encerrado em si mesmo e se move dentro de sua prpria subjetividade. As minhas percepes, com efeito, so exclusivamente minhas, vale dizer: essencialmente subjetivas, pois s eu as experimento. O s objetos percebidos, ao contrrio, n o so subjetivos, m a s comuns a todos. "* Poder-se- dizer outro tanto da r a z o ? Haver objetos da razo comuns a todos e participados por cada razo particular, assim como a mesma luz participada pelos olhos de muitos h o m e n s ? T a i s objetos comuns existem certamente no domnio da matemtica. D e fato, todos os espritos esto acordes no que concerne s verdades matemticas. U m a tal concordncia, porm, no pode originar-se nos sentidos. E m b o r a os nmeros provenham d a percepo sensvel, no dela que derivamos as leis que os regem, nem a s relaes eternas que vigoram entre eles. E m outros termos, o objeto d a matemtica transcende os sentidos. Mesmo que n o houvesse dez coisas contveis, no deixaria de ser verdade que 7 mais 3 s o dez. O objeto da matemtica eterno."
Pois b e m : segundo o testemunho da Escritura, a sabedoria inseparvel do n m e r o : "Circuivi ego et cor m e u m , ut scirem, et considerarem, et quaererem sapientiam et numerum" (Ecle 7,26). Q u e espcie d e sabedoria esta? E' a verdade que nos permite contemplar e possuir o S u m o Bem. Tal a verdade procurada pelos filsofos das mais diversas escolas. O r a , estes filsofos n o teriam podido procurar a sabedoria, nem a vida eterna, se estas lhes tivessem sido inteiramente desconhecidas. Donde se segue q u e todos os homens devem trazer impressa em sua mente a idia d a sabedoria. Ela est presente em ns maneira de um saber que contm em si as verdades eternas, necessrias e imutveis: " I t a etiam priusquam sapientes simus, sapientiae notionem in mente habemus impressam, per quam unusquisque
" > " Ibid. Ibid. Ibid. Ibid. Ibid. 4, 6, 6. 7, 8, 10; 1246. 13; 1248. 14; 1248 s. 15 ss.; 1249 ss. 22 ss.; 1253 s.
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Defronta-se-nos aqui, mais uma vez, o problema: como foi possvel que to grande n m e r o de espritos isolados e concentrados em si mesmos viessem a concordar n u m a mesma idia? E' que esta nos concedida de a n t e m o ; n o se origina dos sentidos, tampouco como o s nmeros se o r i g i n a m deles. E ' verdade que o s homens no costumam ter grande apreo pelos n m e r o s ; mas todos estimam a sabedoria. N o fundo, p o r m , trata-se de uma e a mesma c o i s a . " E assim se nos manifesta a transcendncia das verdades eternas, que so transsubjetivas num sentido inteiramente diverso e superior s coisas sensveis, pois a o contrrio destas, aquelas s o verdadeiramente imutveis: "Quapropter nullo m o d o negaveris esse incommutabilem veritatem, h a e c omnia quae incommutabiliter vera sunt continentem; q u a m non possis dicere tuam vel meam, vel cuiusdam hominis, sed o m n i b u s incommutabilia vera cernentibus, tamquam m i r i s modis secretum et publicum lumen, praesto esse ac se praebere c o m m u n i t e r " . "
Com isso chegamos ao termo da nossa jornada. S nos resta decidir se aquilo que comum a todos inferior, ou igual, ou superior nossa razo. J conhecemos a norma segundo a qual aquilo que serve para j u l g a r alguma coisa, sem ser julgado por ela, de ordem mais elevada d o que esta. Pois bem: ser que julgamos aquelas verdades, ou estar o nosso julgamento sujeito a elas? No p o d e haver dvida de que julgamos em dependncia daquelas normas interiores que compartilhamos com outros espritos. N o somos ns que as julgamos. N o somos ns que determinamos que o eterno deve ser preferido ao temporal, ou que sete mais trs so dez; apenas descobrimos que assim : "sed tantum ita esse cognoscens non examinator corrigit, sed tantum laetatur inventor". E' claro, outrossim, que tais verdades no se situam no mesmo plano da razo humana, posto que esta mutvel, ao passo que aquelas so imutveis. A razo progride no saber; elas, ao contrrio, so insuscetveis de progresso. Resplandecem invariavelmente com toda a sua clareza, mesmo que as contemplemos com a vista turvada. Donde se segue que no so inferiores nem iguais razo, mas superiores a e l a . "
Portanto, a razo depara, na conscincia, algo que lhe superior, algo de absoluto, eterno e imutvel. Nessa altura, s nos resta assinalar o resultado final: "Tu autem concesseras, si quid supra mentes nostras esse monstrarem, Deum te esse confessurum, si adhuc nihil esset superius. Si enim aliquid est excellentius, ille potius Deus est: si autem non est iam ipsa veritas Deus est". Pouco importa que aquela realidade ltima seja a verdade, ou algo de mais elevado ainda; o certo que existe algo acima da nossa razo. O que h de mais elevado, porm, deve ser Deus. Com isso fica estabelecida a verdade da existncia de Deus. A dvida acerca desta verdade eliminada, no s pela f, como tambm pela razo. Trata-se de um
" " "
M
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saber muito dbil, porm seguro ("certa, quamvis adhuc tenuissima, forma cognitionis")."
IV. Caractersticas
da prova
agostiniana.
Para apreender corretamente as caractersticas deste argumento, convm no perder de vista que a inteno primria de Agostinho no apresentar uma prova estritamente dialtica, com sua respectiva concluso lgica, mas, sim, tornar mais ntida a nossa apreenso de um d a d o interior. Agostinho no prova a necessidade da existncia de Deus: contenta-se com chamar a ateno para o fato de sua existncia. No o nosso argumento que torna necessria a existncia de Deus. O mesmo pensamento vem exposto numa carta a Evdio, escrita muitos anos depois: " n o n cogi Deum esse, vel ratiocinando effici, Deum esse debere"." Tambm aqui Agostinho apela para a analogia dos nmeros. Ademais, a inteno primria de Agostinho no estabelecer o fato da existncia de um Deus, e sim, responder pergunta: o que Deus? A verdade, como vimos, algo que transcende a razo, pois esta lhe est sujeita. Deus deve encontrar-se no reino da verdade, ou em algo de que a verdade depende, ou em algo que explica as condies da verdade. E ' por isso que Agostinho no se interessa, por ora, em determinar a realidade exata que se deve atribuir a Deus. Contenta-se com a descoberta de uma realidade que ultrapassa a razo, e que, por conseguinte, deve ser buscada no domnio do espiritual. Torna-se claro, outrossim, que a prova de Agostinho outra coisa no seno o resumo de sua experincia pessoal. As experincias adquiridas no curso de sua libertao filosfica tornam-se outros tantos meios de aproximao a Deus: de racionalista, transforma-se em defensor intransigente da necessidade da f como ponto de partida; de ctico, em paladino da verdade, a ponto de basear seu argumento na verdade que, graas sua evidncia, abala o ceticismo pela prpria base; de adepto do materialismo, em campeo da idia do espirito, inseparvel da verdade absoluta.
2. A doutrina do conhecimento e da iluminao N a filosofia agostiniana, a teoria do conhecimento inseparvel da prova da existncia de Deus. O u , melhor, aquela se identifica praticamente com esta; trata-se, no fundo, de u m a e a mesma coisa, encarada de ngulos diferentes. U m a e outra, com efeito, terminam por conduzir-nos a Deus.
" Ibid. 15, 39; 1262. Epist. 162, 2; t. 33, 705.
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I. O conhecimento
sensvel.
Abordaremos, em primeiro lugar, o domnio que seduzira o jovem Agostinho ao materialismo: o conhecimento sensvel. Se conseguirmos apontar um fator espiritual na percepo sensvel, estaremos em condies de bater o adversrio em seu prprio campo. 1. O cuidado fundamental de Agostinho destacar o objeto conhecido do conhecimento que temos dele.
nitidamente
A sensao j uma forma de conhecimento espiritual; o objeto sensvel, ao contrrio, algo de corporal. Eis um princpio rico de conseqncias. Antes de mais nada, torna-se claro que o objeto sensvel atingido pela sensao, da qual ele a causa; ele prprio, porm, radicalmente incapaz de sensao: "non quia sentiunt, sed quia sentiuntur, sensibilia nuncupata sunt". Q u a n d o se diz que o mel doce, n o se pretende significar que ele percebe a doura, mas que causa a sensao de d o u r a . A sensao, ao invs, prpria a l m a : seria um erro misturar qualquer coisa de corpreo idia d o conhecimento sensvel. A sensao de dor, p o r exemplo, aparentemente experimentada pelo corpo; na realidade, porm, a alma que sofre atravs d o c o r p o . n E m consonncia com esta doutrina, Agostinho distingue duas espcies de luz: u m a , de natureza corporal e percebida pelos olhos, e outra, espiritual, que os capacita a perceber a luz corporal. Aquela u m objeto de conhecimento, esta um meio de conhecimento. A faculdade sensitiva , pois, uma luz de natureza puramente espiritual: ela provm da p r p r i a alma. Se o cego no v, isso se deve ao fato de ele carecer do r g o corporal indispensvel a l m a ; mas nem por isso lhe falta a luz interior que o capacita a ver se dispusesse do r g o correspondente. n
2. A possibilidade da
sensao.
O conhecimento sensvel nos defronta com um problema espinhoso e de grande alcance para a histria da filosofia. A sensao uma atividade da alma; seu objeto, porm, um corpo. Como se deve entender a influncia deste sobre aquela, suposto que tal influncia seja concebvel? Agostinho jamais deixou de interessar-se por esse problema. A soluo mais elegante encontra-se no " D e Musica" (livro 6 ) .
T o m e m o s o verso " D e u s creator o m n i u m " . O que faz com que estas palavras venham a constituir um verso? O ritmo. Este, p o r sua vez, consiste de nmeros ou relaes numricas entre as slabas l o n g a s e breves. O nosso verso consta de quatro j a m b c s , ou seja, de quatro silabas breves seguidas, respectivamente, de quatro slabas longas. D e acordo com as distines estabelecidas nos livros anteriores, os ritmos encontram-se primeiro no ar ou nos sons materiais (1* gnero de nmeros), e a seguir, n o sentido do ouvinte (2 g n e r o ) . Com isso j temos a diferena entre o sensvel material e a sensao espiritual. Convm notar, porm, que o verso n o existe em si, ou absolutamente, seno que depende da maneira como recitado; por isso tam" " De civ. Dei X I , 27; 553, I I . De Genes! ad litt. 3, 5; 67, 14 s. D e O e n . ad litt. imperf. 1, 5; 473, 15 s.
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bm a voz d o declamador deve ter certa qualidade numrica: deve ser cadenciada e comunicar seu ritmo interno ao ar. Se acaso decidirmos que um verso recitado ccm demasiado vagar 011 com excessiva rapidez, depararemos dois o u t r o s gneros de nmeros; pois n o poderamos emitir tal juzo, se n o tivssemos na memria u m a medida prvia pela q u a l assim julgamos. D e sorte que possumos uma memria numerai e u m a capacidade de juzo n u m e r a i . Isto nos d uma idia da grande complexidade dos atos que entram numa sensao aparentemente to simples. Q u a l ser o mais excelente de todos esses n m e r o s ? Manifestamente o ltimo, pois este que j u l g a o s demais, sem estar sujeito ao julgamento deles, devido sua superioridade. O s nmeros conservados na memria so produzidos pelos outros, devendo por isso situar-se n u m plano inferior. Resta o problema de como se devem graduar os trs outros gneros numricos. E m especial, cumpre examinar se a primazia compete aos "numeri sonantes", isto , materiais, ou a o s nmeros apreendidos pelos sentidos. A resposta est contida na teoria agostiniana da sensao.
O problema gerai que orienta a exposio o seguinte: Pode um processo corporal atuar sobre a alma e provocar uma sensao? Dir-se- que a ao do corpo sobre a alma coisa manifesta; todavia, um exame mais atento da questo parece sugerir a impossibilidade de um tal influxo: "mirare potius, quod facere aliquid in animam corpus p o t e s t " . " Mais ainda: tal influxo parece inteiramente absurdo: "sed perabsurdum est fabricatori corpori materiam q u o q u o modo animam subdere". Logo, a alma no pode sofrer nenhuma influncia da parte do corpo, sob pena de ficar sujeita a ele. Por conseguinte, os nmeros presentes na alma no podem ser produzidos pelo corpo. Donde se segue que, ou o nosso problema insolvel. ou a sensao deve ser produzida pela a l m a . " 3. A a l m a produz a sensao.
E' bvio que a sensao pressupe certas condies corporais. A sensao como tal, porm, s pode ser produzida pela alma. A unio entre corpo e alma no uma relao de reciprocidade; antes, a unio tal que a alma observa o corpo e, ao mesmo tempo, produz alguma coisa independentemente da influncia do corpo. D e forma que, toda a vez que um processo material provoca uma mudana no corpo, a alma percebe-a de maneira ativa e, percebendo-a, produz uma sensao."
Est claro, pois, que j no o corpo que atua sobre a a l m a , e sim a alma sobre o corpo. Considerada em si mesma, a alma reside n o s rgos corporais, est presente neles, e de certo modo, est de sentinela neles. A ausncia de sensao indica simplesmente a existncia de relaes normais entre o corpo e o mundo ambiente. M a s basta leve alterao deste estado
' " De Musica V I , 2-4, 2-5; 1163 ss. Ibid. 4, 6; 1165 s. Ibid. 4, 7; 1166. Ibid. 5, 8; 1167 s. ibid. 5, 10; 1169.
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ile equilbrio p a r a q u e a alma entre em atividade. Longe de se manter passiva, a alma eminentemente ativa, pois ela que dirige sua ateno aos respectivos r g o s corporais afetados; ela que v, que cheira, que prova. C o m o se v, a sensao , na realidade, u m a espcie de explorao d o corpo pela alma. Eis c o m o Agostinho procura descrever esta atividade espontnea da a l m a : "attentiores actiones.. . has operationes passionibus corporis puto a n i m a m exhibere c u m sentit, non easdem passiones recipere. Imagines (corp o r u m ) convolvit, et rapit factas in semetipsa de semetipsa. D a t enim eis formandis q u i d d a m substantiae suae". 4. O processo d a sensao realiza-se d a maneira seguinte. S u p o n h a m o s que o meu o u v i d o seja atingido por u m a vibrao do ar, causando uma modificao n o r g o auditivo. A alma l o g o se volta para esta modificao produzindo a sensao de som, o som ouvido. Este j de natureza espiritual e pertence segunda classe de sons, que superior primeira. A partir daqui, porm, mister proceder com muita cautela, pois j chegamos ao terceiro grau e verificamos que a sensao ato do prprio pensamento. E m b o r a se costume dizer que percebemos u m verso com seu respectivo ritmo, este modo de falar n o corresponde realidade. O que ouvimos n o um verso, e nem m e s m o uma palavra, mas simples sucesso de slabas. E' pela memria que apreendemos o verso em sua integridade. A slaba apenas um som de certa durao e composto de trs elementos: o inicial, o mdio e o final. A o declarar que ouo uma slaba longa no quero dizer seno que no fim d a sensao a minha memria continua a recordar-lhe o comeo, o que a capacita a compor a sensao. Isto vale at mesmo para a mais breve d a s slabas: tambm ela tem uma durao, ou seja, um comeo, um meio e um fim. O r a , indiscutvel que a memria faz parte do pensar puro. T u d o isso nos permite ver, desde j, o grande n m e r o de elementos que a a l m a introduz na sensao, visto que n o somente a mede, como at mesmo a produz. Aludimos, m a i s acima, a certos ritmos retidos na memria, pelos quais podemos j u l g a r sobre a espcie de um ritmo que est sendo recitado. Prosseguindo nesta ordem de idias, devemos dizer: estes ritmos interiores recolhem, de certo modo, os sons materiais no mesmo instante em q u e estes esto prestes a desaparecer no nada, para concaten-los n u m conjunto harmnico. D o mesmo m o d o como os olhos coordenam a multiplicidade dos objetos distribudos n o espao, reunindo-os num s campo visual e enfeixando-os num s ato de viso, assim a memria "esta luz dos espaos temporais" (memria quod q u a s i Iumen est temporalium spatiorum) * procede coordenao de toda u m a seqncia de momentos que de outro modo se dissipariam. O verso " D e u s creator o m n i u m " n o poderia existir como sensao independentemente de um espirito. V-se, pois, que mesmo no g r a u mais nfimo do conhecimento a alma se mostra superior ao c o r p o . "
E' interessante notar que precisamente na anlise do conhecimento sensvel que o maniqueu de outrora, que no lograra sobrelevar-se aos sentidos, encontra uma luz invisvel aos sentidos. Acima daquela nica luz acessvel ao discpulo de Mans, e no mesmo ato em que verifica a existncia dessa luz, Agostinho discerne u m a nova espcie de l u z : "alia enim lux, quae sentitur oculis; alia quae per oculos agitur, ut sentiatur". Esta outra luz promana da prpria a l m a : "haec
" De Mus. VI, 5, 10; 1169. ~ n e Trinit. X , 5, 7; 977. 10 De Mus. VI, 8, 21; 1174. " De Gen. ad litt. 12, 16; 402.
A DOUTRINA DO CONHECIMENTO E DA ILUMINAAO lux, qua ista manifesta sunt, utique in anima e s t " . " E assim, das coisas externas, conseguimos retornar ao nosso prprio ao mesmo tempo, vencemos a primeira etapa da prova da cia de Deus. Vejamos agora como o pensamento nos conduz prio Deus.
II.
Pensamento
Verdade.
Trata-se de verificar, pela experincia, se o nosso pensar apresenta propriedades inexplicveis por qualquer causa que no seja Deus. Para tanto, basta prosseguir em nossa anlise e investigar o pensamento at sua fonte. J sabemos que as sensaes no so causadas pelos corpos. Ser, ento, a alma a causa de suas prprias idias? 1. A inferioridade d o pensamento. primeira vista as nossas idias parecem proceder de fora. Com efeito, costumamos "trocar" idias uns com os outros, o que seria impossvel se elas no nos fossem comuns e no se deslocassem de mim para ti e de ti para mim. Acaso no as transmitimos aos outros quando nos entretemos com eles? Sem embargo disso, no h, propriamente, nenhum mestre.
Suponhamos que um mestre queira explicar aos seus aluncs o sentido de um vocbulo designativo de uma coisa sensvel, por exemplo, da palavra "saraballae", no texto " E t saraballae eorum non sunt immutatae" do livro de Daniel (3,94). O u v i d a a explicao, o aluno ter aprendido que "saraballa" significa "coifa", suposto que saiba o que se deve entender por coifa, ou melhor: o que u m a cabea e o que u m a coifa. M a s o que , exatamente, uma coifa? O nico meio de explic-lo a quem no o sabe mostrarlhe a coisa designada p o r esse termo: uma coifa concreta. N o so pois a s palavras, mas as prprias experincias sensveis que nos levam ao conhecimento das c o i s a s . " As palavras servem apenas p a r a trazer lembrana alguma experincia prvia. Suponhamos, ainda, que no intuito de comunicar certo conhecimento a o aluno, o professor lhe proponha uma proposio de sentido bem determinado, e que ele a compreenda. Poder-se- dizer, nesse caso, que tal saber lhe foi realmente transmitido pelo mestre? E' evidente que o aluno deve ter possudo um conhecimento prvio do significado das palavras empregadas; d o contrrio o sentido da frase lhe ficaria o c u l t o . " P o r meio de perguntas hbilmente formuladas o professor poder verificar se o aluno v resplandecer no seu prprio interior a verdade das proposies que ele apenas lhe pode sugerir com suas palavras. A verdade se encontra, pois, na alma. E esta presena interior d a verdade que capacita o aluno a responder q u a n d o se lhe dirige uma pergunta. O responder no simples repetio daquilo que lhe foi ditado. Responder tirar do interior do esprito o que ali se encontra em estado latente, ou, em outras palavras, reagir positivamente
'* De Oen. ad litt. imperf. I , 5; 474, 22 s. *> De Magistro 12,39; 1216. " Ibid. 40; 1217.
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Donde a concluso geral e evidente no obstante a sua formulao paradoxal, de que nunca aprendemos: "nusquam igitur discere. Quia et ille qui post verba nostra rem nescit et qui se falsa novit audisse, et qui posset interrogatus eadem respondere quae dieta sunt, nihil verbis meis didicisse convincitur"." N a d a se aprende. O que no quer dizer que o ensino seja intil, mas sim que ele algo inteiramente diverso do que se costuma supor. Esta concluso paradoxal significa que aquilo que o corpo no pode dar ao pensamento, o pensamento no pode d-lo a si mesmo. A experincia pensante adquirida paralelamente experincia sensvel. U m a comparao dos dois exemplos citados nos permite formular a lei da interioridade do pensamento: fora da alma h agentes estimuladores ou admoestadores e sinais; a espontaneidade da alma permanece intacta, pois ela se apropria destes sinais e os interpreta: do seu prprio interior que ela tira a substncia do que aparentemente lhe vem de fora. 2. O mestre interior. Assim a alma Entretanto, ela n o solipsisticamente em ribus ad superiora". lamento, a alma se do pensamento. conduzida de fora para dentro de si mesma. se encastela em seu interior, nem se reconcentra si. Antes, ela se abre para o alto: " a b interioEste o ponto decisivo. A fim de fugir ao isorefugia em Deus, que o termo final da anlise
A alma solitria porque nada pode atingi-la d e fora. Mas porventura ela no est em contacto com outros espritos igualmente solitrios? Caso contrrio, como se explicaria o perfeito acordo q u e reina entre eles no que respeita, por exemplo, s idias matemticas e m o r a i s ? H tantas inteligncias humanas como homens ( " t o t sunt mentes h o m i n u m quot sunt homines"), e ningum pode ver o pensamento do seu p r x i m o : "nec ego de tua mente aliquid c e r n o " . " Logo, se existe a idia de uma sabedoria que tu podes ver sem que eu o saiba, e q u e eu posso ver sem que tu o saibas, e que por isso no p o d e m o s mostrar um ao outro, e contudo idntica em todos, mister admitir que tal idia nos seja igualmente acessvel a t o d o s . "
Existem, pois, certas verdades imutveis e eternas pelas quais nos orientamos e s quais temos de submeter-nos incondicionalmente. Tais verdades devem ser transcendentes, pois independem completamente do nosso entendimento. Pois bem: a Escritura nos atesta a existncia de um mestre transcendente: Cristo, o Filho de Deus, que reina no cu e nos ilumina os coraes." E assim podemos identificar a verdade simplesmente com Deus. O circuito que percorremos
" " " " Ibid. 12, 40; 1217 s. De lib. arb. II. 9, 27; 1255. Ibid. 10, 28; 1256. Cf. a admirvel passagem da
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nos fez ver que a verdade outra coisa no seno Aquele que declarou ser o nico Mestre. 3. A doutrina da iluminao.
A gnoseologia agostiniana alcana o seu remate na chamada teoria da iluminao, elaborada sob a influncia do neoplatonismo. No fcil exp-la em forma sistemtica, visto que Agostinho nunca a tratou "ex professo". O seguinte resumo servir para torn-la compreensvel, pelo menos at certo ponto. E' um fato que ns, seres temporais, contingentes e mutveis, podemos conhecer verdades eternas, necessrias e imutveis; ora, s Deus eterno, necessrio e imutvel; logo, tais verdades nos so conhecidas por um contacto imediato com Deus. Ao gnero destas verdades pertencem os objetos ideais da Matemtica, da Esttica e da tica.
Ao que parece, no o contedo peculiar destes conhecimentos que se atribui a u m a influncia ou iluminao divina, mas apenas as leis e normas gerais segundo as quais julgamos dos objetos da experincia. Agostinho fala em "leis", "regras", " m e d i d a s " ou " n o r m a s " . J tivemos oportunidade de referir-nos s leis matemticas e morais; no " D e vera religione" Agostinho considera principalmente as leis e os objetos estticos." T a i s so, por exemplo, as idias de beleza, de unidade, de igualdade e de proporo, as quais determinam os nossos juzos estticos.
A teoria platnica da reminiscncia (ou anmnese) no oferece uma explicao satisfatria para o conhecimento dessas verdades.
O nobre filsofo grego atribue alma uma existncia prvia do corpo; seus conhecimentos atuais seriam simples recordaes das experincias outrora havidas. Para provar sua teoria, P l a t o chama a ateno para o fato de uma criana, quando habilmente interrogada, ser capaz de resolver corretamente certos problemas matemticos, embora no possua a menor instruo nessa disciplina. Agostinho emprega o mesmo exemplo, mas no se contenta com a explicao. Em primeiro lugar, ela no consegue dar a razo do fato em questo; com efeito, pouco provvel que todos os homens tenham sido matemticos em sua preexistncia celeste, dada a raridade dos peritos nesta disciplina. O que Agostinho quer dizer que a preexistncia no explica, por si s, a maneira em que o esprito toma contacto com as verdades eternas. A verdadeira e nica explicao encontra-se na identidade e continuidade da natureza r a c i o n a l . " Ademais e esta sua objeo principal a doutrina platnica da reminiscncia inseparvel da doutrina da metempsicose, que ele chama de a b s u r d a . " A concepo platnica Agostinho contrape sua prpria doutrina: "sed potius credendum est, mentis intellectualis ita conditam esse naturam, ut rebus intelligibilibus naturali ordine, disponente conditore, subiuncta sic ista videat in quadam luce sui generis incorporea, q u e m a d m o d u m oculus carnis videt quae in hac corporea luce circumiacent, cuius lucis eique capax confruens est creatus". "
" 33; 146 s. Cf. tambm: Retract. 1. 7. 2; 35. ' De civil. Dei X , 30; 500. De Trinit. X I I , 15, 24; 101 i.
M
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Infelizmente Agostinho n o nos oferece uma resposta clara pergunta sobre a maneira como a razo entra em contacto com as verdades eternas.
Parece haver rejeitado u m a viso direta dessas verdades em Deus. N o obstante, faz uso constante de imagens que sugerem uma i n t u i o deste tipo. E' de supor-se que o faa a fim de frisar a natureza cognoscitiva desse contacto com as verdades eternas. Estas atuam sobre ns, e at nos so de certo m o d o impressas, m a s sem prejuzo de sua transcendncia. O texto seguinte contm, provavelmente, o que de mais ponderado A g o s t i n h o escreveu sobre o assunto: " E onde ser q u e eles as vem (estas r e g r a s ) ? N o , certamente, em sua prpria natureza; pois no h a menor d v i d a de que s o vistas pela mente; evidente, porm, que as mentes so mutveis, ao passo que tais normas so percebidas como imutveis, como o sabem todos quantos so capazes de ler no eterno. T a m p o u c o (vem-nas) no estado habitual de sua alma, pois so regras de justia, e suas almas so manifestamente injustas. O n d e , ento, se encontram escritas estas regras? O n d e at mesmo o homem injusto conhece o que j u s t o ? O n d e v a necessidade de possuir o que no possui? O n d e ho de estar escritas, seno no livro daquela luz que se chama Verdade? E' dali que toda lei justa transcrita e depositada no corao do homem que pratica a justia, n o maneira de u m a transmigrao, mas por u m a espcie d e impresso, assim como a f i g u r a do anel se imprime na cera sem abandonar o anel. Aquele que no o b r a , embora saiba como deve obrar, aparta-se daquela luz, ainda que no deixe de ser atingido por ela".* 3 P o d e dizer-se, pois, que as leis e normas eternas existem em si mesmas e permanecem no seu lugar, sem contudo deixar de iluminar e de atuar sobre todos quantos possam e queiram perceb-las.
Tal a doutrina da iluminao que Agostinho legou filosofia crist, de cuja tradio ela entrou a fazer parte inseparvel. Agostinho elaborou-a sob o influxo de Plato, de Plotino e Porfrio, no porm sem imprimir-lhe um cunho cristo. Para o nosso mestre, as verdades eternas e imutveis do mundo espiritual platnico tm sua sede em Deus, que a Verdade. N o as conhecemos por meio de uma recordao ou "reminiscncia" de tipo platnico, mas por uma recordao tipicamente agostiniana, isto : mediante um ato consciente de interiorizao, no qual a razo toma conscincia da presena de Deus. E' em virtude desta presena divina que a Verdade, ou Deus, se d a conhecer razo, mediante a "recordao" que lhe d acesso infinidade de Deus.
3. A funo d o amor na busca de D e u s D o exposto se v que a prova agostiniana de Deus um processo gradual de superamento das coisas, tendo por remate o contacto com Deus no mais ntimo da conscincia. Nessa altura defrontamo-nos com uma nova pergunta: por que razo o esprito humano se v obrigado a este longo caminho? O fato da prova da existn" De Trinit. X I V , 15, 21; 1052.
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cia de Deus se transforma em problema. A teoria do conhecimento reclama uma tica do conhecimento.
/. A inquietao
da alma
em busca
de Deus.
Todo desejo de saber e todo esforo de conhecer uma espcie de amor. M M a s como se h de amar e procurar o desconhecido? 1. O problema da busca.
Agostinho admite que no se pode amar o que se desconhece: "nam quod quisque prorsus ignorat, amare nullo pacto potest". Por outro lado, no se procura seno o que se ama. Mas que espcie de amor este que impulsiona aos que desejam s a b e r ? "
Suponhamos que algum queira adquirir certo conhecimento e se esforce sinceramente neste sentido. Trata-se de um processo aparentemente simples; na realidade, porm, defronta-se-nos aqui um grande problema. C o m efeito, o simples desejo de conhecer uma coisa j pressupe algum saber prvio dela: do contrrio nem sequer se pensaria em procur-la. Mas, se j a conhece, por que ainda a procura? P o n h a m o s um exemplo: Algum ouve pela primeira vez a palavra "temetum". Vem-lhe o desejo de saber-lhe o sentido; o que um sinal de que este lhe desconhecido. Entretanto, ele sabe, ou ao menos supe, que aquela palavra um sinal e, conseqentemente, que as trs slabas que a compem tm um sentido. Logo, j dispe de a l g u m saber, pois conhece o significado de "conhecer" e de "sentido"; e o a m o r a este saber o instiga a procurar o sentido da palavra. Portanto, ele procura por amor a um saber que j p o s s u i . " Objeta-se que possvel procurar alguma coisa sem qualquer motivo determinado, pois h homens que buscam pelo simples prazer de procurar. Tais homens s o conduzidos exclusivamente pelo a m o r ao saber: so apenas "curiosos", e n o "estudiosos". Mas nem por isso se h de dizer que a m a m o desconhecido enquanto desconhecido, pois todos os homens aborrecem a ignorncia e aspiram ao saber. Querer saber o que se desconhece n o significa amar o desconhecido, mas querer que este se torne conhecido. N u m a palavra, significa ter amor ao saber: " n o n enim frustra ibi est positum scire: quoniam qui scire amat incgnita, non ipsa incgnita, sed ipsum scire amat. Q u o d nisi haberet cognitum, neque scire se quisquam posset fidenter dicere neque nescire"."
E' claro, pois, que ningum ama o desconhecido. Para poder tender a um objeto necessrio que a alma j possua dele u m a representao prvia, por vaga ou confusa que seja. Ela forja em seu interior uma figura daquilo que deseja atingir. E o que mais: ela tem amor a esta imagem, a ponto de sentir-se desiludida se o objeto for disconforme quela imagem ideal. Portanto, ns amamos o desconhecido no conhecido. Se o objeto corresponder nossa expectatiDe Trinit. IX, 12, 18; 972. Ibid. X, 1; 971 s. " Ibid. I, 2; 972 s. ' Ibid. I , 3; 974.
B
"
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va no dizemos: agora, enfim, quero te amar, e sim: eu j te amava: "iam te a m a b a m " . " 2. E m busca d a alma.
Poder-se- dizer a mesma coisa da nossa alma? A rigor, a alma deveria conhecer-se a si mesma. 0 entendimento, com efeito, est em condies de saber que vive, que busca, que pensa. Sendo a alma um puro esprito e inteiramente simples, ela deve conhecer-se totalmente ao atingir qualquer u m a de suas operaes." Mas, se assim , por que recebemos o preceito de nos conhecermos a ns mesmos? E por que a alma se busca a si mesma?
Este preceito n o significa que devamos p r o c u r a r primeiro a nossa a l m a , e sim, que devemos aprender a ajuizar corretamente dela e da nossa natureza, a fim de t o m a r m o s o lugar que nos compete no conjunto das coisas: acima d a s que esto confiadas ao nosso governo e abaixo das que reclamam a nossa sujeio. Infelizmente a m concupiscncia e a soberba levam o esprito a esquecer-se de si mesmo, devido aos seus apetites malsos e desordenados. Contempla interiormente certas coisas belas n u m a essncia m a i s nobre, que Deus, e atribuindo-as a si mesmo, aparta-se de Deus e precipita-se de abismo em abismo, enquanto cr elevar-se m a i s e mais. E, u m a vez iniciado este movimento, ele j no encontra satisfao em coisa a l g u m a . Na sua indigncia entrega-se desordenadamente s suas prprias atividades ( s sensaes) e aos seus deleites inquietos. E assim cai numa espcie de vertigem, lanando-se desenfreadamente sobre as coisas sensveis, com as q u a i s passa a identificar-se. T o grande o poder do amor que, fora de ocuparse por longo tempo e com afeto das coisas temporais, o pensamento acaba por fazer-se uma s coisa com elas: "et q u i a illa corpora sunt, quae foris per sensus carnis a d a m a v i t , eorumque diuturna quadam familiaritate implcita est, nec secum potest introrsum tamquam in regionem incorporeae naturae ipsa corpora inferre, imagines eorum convolvit, et rapit factas in semetipsa de s e m e t i p s a . . . " ** Finalmente a a l m a se esquece inteiramente de si mesma e perde a conscincia do seu eu m a i s nobre; o prprio A g o s t i n h o o experimentara na ingenuidade do seu materialismo. Chega-se ao p o n t o de crer que a alma u m corpo. 101 Assim A g o s t i n h o explica a gnese d o materialismo.
Estamos agora em condies de responder pergunta relativa ao sentido da expresso: a alma busca-se a si mesma. Trata-se antes de uma tarefa da vontade e do amor que do entendimento. E ' necessrio que a vontade comece por desfazer-se da falsa imagem sensvel que se lhe apegou to intimamente: "cum igitur ei praecipitur ut se ipsam cognoscat, non se tamquam sibi detracta sit quaerat, sed id quod sibi addidit d e t r a h a t " . M E' necessrio sofrear a vontade dissipada e orient-la para a prpria a l m a : "ita videbit quod n u m q u a m se non amaverit, numquam nescierit: sed aliud secum amando cum eo se confundit et concrevit quodam m o d o " .
" Ibid. 2, 4; 974 s. Ibid. 3-4; 975 s. * De Trinit. X , 5, 7; 977. Ibid. 7, 9; 978 s. * Ibid. 8. 11; 979. > Ibid.; 980.
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Agora vemos tambm a razo da nossa busca de Deus, embora Ele esteja to prximo de ns. E' a mesma que nos leva a buscar a alma: a dificuldade que temos em nos recolher: " E i s que habitveis dentro de mim, e eu l fora a p r o c u r a r - V o s ! . . . Retinha-me longe de Vs aquilo que no existira se no existisse em Vs"."*
Reflete-se nestas palavras a a m a r g a experincia do p r p r i o Agostinho. A leitura do "Hortnsio" de Ccero o despertara da tranqila despreocupa o de sua juventude. Comeou a aspirar pela nica sabedoria capaz de lhe trazer a felicidade. D o Hortnsio passara a M a n s , de Mans a Plotino, e por fim, de Plotino a P a u l o e a Cristo. Esta busca traduz u m a inquietao latente, que chegou ao seu termo na descoberta d a verdade. A inquietao deu lugar paz, a agitao tranqilidade e felicidade inerentes posse da verdade: "Beata quippe vita est gaudium de veritate". 1 0 1 Descobrir a verdade descobrir a felicidade. M a s como poderamos a m a r a verdade e a felicidade se n o tivssemos nenhum conhecimento delas? Pelo que devem encontrar-se ali o n d e j havamos descoberto a verdade, isto , na memria: " q u a e , quoniam res est, quam se expertum non esse nemo potest dicere, propterea reperta in memria recognoscitur, quando beatae vitae nomen auditur". D e forma que o a m o r encontra o seu objeto n o mesmo stio em que j a razo o descobrira: no mais ntimo da alma, onde a memria se abre para Deus e onde mora a verdade. N a doutrina d e Agostinho, a metafsica inseparvel da tica.
4. Deus presente na
alma.
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corpori, D e u s autem tuus etiam tibi vitae vita e s t " . m P o r esta razo Deus a fonte d o movimento, da vida e d a felicidade da alma h u m a n a : "Quocirca ut vita carnis anima est, ita beata v i t a hominis Deus e s t " . M
11. A sabedoria
crist.
N o existe acordo entre as escolas filosficas sobre a fonte da felicidade; todas porm pretendem conduzir-nos beatitude. N o seu livro " D e philosophia", Varro a quem Agostinho toma por guia na presente exposio divide as escolas filosficas segundo as suas respectivas posies neste assunto. Algumas buscam o sumo bem unicamente nas coisas corporais. Outras procuram-no exclusivamente na alma. Outras, ainda, o repem tanto naquelas como nesta. Destas trs posies puderam deduzir-se todas as seitas filosficas, no s as que atualmente existem, como tambm as que so possveis, num total de 288. Existem, pois, 288 opinies divergentes sobre os meios conducentes felicidade, e 288 opinies convergentes sobre o fim. m Donde se conclui que a filosofia a cincia da felicidade: "philosophiam quae se docere aliquid profitetur, unde fiant homines beati". 1. A razo superior e a r a z o inferior. A busca da sabedoria implica a busca do saber. Contudo, a sabedoria no eqivale simplesmente ao saber, visto que nem todo saber conduz felicidade. A sabedoria a busca daquele saber que, por sua prpria natureza, torna feliz a quem o cultua. N o assim a "cincia": esta visa algum outro fim, e no a felicidade. N a base dessa distino Agostinho discerne duas atitudes cognoscitivas, fundamentando assim a doutrina da "ratio superior" e "inferior", que to grande influncia ir exercer na Idade Mdia.
H em ns um "homem interior" e um "homem exterior". O homem exterior constitui-se de t u d o aquilo q u e temos em comum com os animais, e o interior, do que temos de propriamente humano. A vida, as sensaes, as imagens e as recordaes fazem parte do homem exterior. Mas o esprito h u m a n o tambm julga as sensaes e mede os corpos e as figuras, para o que dispe de "razes eternas". E ' aqui que deparamos a forma pensante propriamente dita, a "mens", o h o m e m interior, na acepo precisa do termo. "* Em sua espiritualidade pura, portanto, o homem se abre para as Idias; simultaneamente, porm, tem de voltar a ateno para as coisas externas, a fim de apreend-las e servir-se delas. Num e noutro caso a mesma razo que atua.
E s t a s duas atitudes cognoscitivas j vm a d u m b r a d a s na criao da mulher: ao criar o homem D e u s lhe deu uma companheira tirada do corpo dele. Assim se originou o p r i m e i r o casal humano: o v a r o e a mulher; embora sejam dois em nmero, s o um na mesma carne. D e modo semelhante,
u 1,5
Conf. X , 6, 10; 234, 1 s. De civ. Del X I X , 26; 420, 27. De civ. Del X I X , 1; 363, 24 s. Ibid. X V I I I . 39; 330. I I . De Trinit. X I I , I I ; 998.
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o pensar puro necessita de uma ajuda que atenda s necessidades temporais, para que ele possa dedicar-se inteiramente contemplao. Este auxilio s pode provir dele mesmo, s pode ser alma e pensamento, embora se destine a funes de outra ordem. Estamos na presena de duas funes de um s espirito: " d u o in mente u n a " . 1 " A razo superior e a razo inferior so, pois, dois "ofcios" diferentes de uma mesma alma: "cum igitur disserimus de natura mentis humanae, de una quadam re disserimus, nec eam in haec duo quae commemoravi, nisi per officium geminamus".
Estes dois ofcios da alma exigem uma escolha. A alma que optar pela razo superior transcende-se a si mesma e tende para aquilo a que est sujeita e a cujo julgamento deve submeter-se; numa palavra, ela tende para aquilo que independe de sua prpria individualidade: o universal. Renunciandose atinge sua prpria perfeio. A que se volta para as coisas sensveis, ao contrrio, escolhe o que lhe inferior, o que lhe traz proveito e vantagem, o que pode adquirir e possuir, o que serve aos seus interesses pessoais. Como se v, toda opo pelas Idias orienta a alma para o divino e o universal. T o d a opo pelas coisas orienta-a para o criado e o individual. Se esse movimento para o criado no se sujeitar ao eterno, e persistir em buscar egoisticamente os prprios interesses,, ele acabar por divorciar-se da razo superior. E nisso que consiste a cobia, esta "raiz de todos os males" (1 T i m 6,10). Esse movimento cobia porque se antepe aos outros e recusa tomar o lugar que Deus lhe destinou. O homem que cede a esta tendncia v em sua prpria pessoa o fim de tudo e entra em conflito com todos os outros. Para essa luta ele dispe de uma arma de sua propriedade: o seu corpo. Este lhe serve de meio para assenhorear-se de tudo o mais por meio da percepo das coisas, cujas imagens vai armazenando no seu interior, para alimentar-se delas. Nesse tesouro ele chafurda como num marasmo de prazeres carnais. Sendo que nada tem de prprio, salvo o seu corpo, o homem s pode apropriar-se daquilo que lhe proporcionado pelo corpo. Por isso a sua alma se entenebrece e se enloda numa espcie de fornicao espiritual que tem por sede a fantasia ("phantastica f o r n i c a t i o " " ' ) . Esta impureza reside na prpria alma, e devido sua natureza totalmente interior, facilmente passa despercebida. Seu fruto, porm, manifesto: a cincia. O saber pelo prazer de saber, o experimentar pelo prazer de experimentar, o locupletar-se de imagens e idias sensveis, com o fim de avantajar-se, de desfrutar desses tesouros e de servir-se deles numa espcie de contemplao vaidosa: tal a atitude prpria do homem que busca a cincia pela cincia. m
Como se v, tudo principia pela soberba; a soberba gera a cobia, que se utiliza do corpo como instrumento. O objeto d o corpo so os outros corpos, as coisas temporais e passageiras. O resultado a cincia, ou seja, o conhecimento e a utilizao das coisas por elas mesmas. 2. A sabedoria.
O caminho oposto conduz a alma s razes e leis eternas, imutveis e necessrias. Ali ela depara com algo comum a todos. A contemplao das razes e leis eternas, porm, pressupe que a alma
" De Trlnit. X I I , 3, 3; 999 s. Ibid. 4, 4; 1000. > Ibid. 9, 14; 1006. m Ibid. 10, 15; 1006.
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humana renuncie soberba, pois ningum pode atingir tal contemplao sem sujeitar-se quelas mesmas leis; e com isso, ela pratica o ato de humildade por excelncia. Portanto, a humildade o comeo da sabedoria. E a sabedoria a contemplao das coisas eternas e imutveis. Eis a tarefa propriamente dita da razo superior.
E assim somos reconduzidos nossa prova de Deus, tal como a deparamos n o " D e libero arbtrio": " Q u i d igitur aliud agimus, cum studemus esse sapientes, nisi ut quanta possumus alacritate, ad id quod mente contingimus, totam a n i m a m nostram q u o d a m m o d o colligamus, et ponamus ibi atque stabiliter i n f i g a m u s ; ut non iam privato suo gaudeat quod implicavit rebus transeuntibus, sed exuta omnibus temporum et locorum affectionibus apprehendat id quod u n u m atque semper est?" E mais adiante: " A i daqueles que te abandonam a ti, que s seu guia, e se pem a vaguear pelos teus vestgios, que a m a m os teus acenos em vez de amar-te a ti mesma, e se esquecem dos teus ensinamentos, luz dulcssima, sabedoria da alma p u r a ! T u no cessas, com efeito, de insinuar-nos qual t u a natureza e tua grandeza, e que nos teus vestgios que est toda a formosura das criaturas".
3. A funo da cincia na
sabedoria.
Sem a sabedoria a cincia uma como impureza da alma. Por outro lado, n o possvel haver sabedoria sem cincia. Pois sem algum conhecimento das coisas inferiores n o poderamos conformar a nossa vida com as virtudes: "sine scientia quippe nec virtutes ipsae, quibus recte vivitur, possunt haberi". "* A cincia a arte que nos ajuda a fazer bom uso das coisas temporais: "Distat tamen a b aeternorum contemplatione actio, qua bene utimur rebus; et illa sapientiae, haec scientiae deputatur". "* Q u a i s as relaes recprocas entre ambas?
a) Entre a sabedoria e a cincia h uma relao harmnica, suposto que se viva de acordo com a vontade de Deus. A cincia obra da r a z o inferior, e a sabedoria, d a razo superior. Aquela se assemelha mulher, e esta ao homem. C o m o o homem e a mulher vivem num matrimnio visvel e corporal, assim as duas razes vivem num matrimnio invisvel e espiritual. Pois b e m : sabemos o que sucedeu aos dois primeiros seres h u m a n o s no paraso: a serpente, que no comia da fruta d a rvore proibida, incitou a mulher a prov-la; a mulher, por sua vez, seduziu o homem, embora s ela tivesse f a l a d o serpente. Algo de parecido se passa n o m a t r i m n i o espiritual d a r a z o superior com a razo inferior. A razo inferior, ou " r a t i o scientiae", encontra-se mais prxima aos sentidos do corpo, e por isso facilmente seduzida pelos prazeres sensveis e tende a deleitar-se neles como num bem p r p r i o e privado. E assim come da fruta proibida, podendo mesmo induzir a r a z o superior a imit-la, isto , a consentir em fazer m a u uso das coisas sensveis.
P o r onde se v qual deve ser a relao entre as duas razes. T a l relao s correta se a cincia, adquirida pela razo inferior a partir das
m De lib. arb. I I , 1 6 , 4 1 ; 1263. ' Ibid. 43; 1264. 115 De Trinit. X I I , 14, 21; 1009. ' Ibid. 22; 1009. De Trinit. X I I , 12, 17; 1007 s.
171
O s
b) A cincia um auxlio indispensvel sabedoria. A poucos h o m e n s dado alcanar a sabedoria pura com o olhar da inteligncia, e m e s m o quando a alcanam, n o conseguem demorar-se na sua contemplao p o r muito tempo, pois ela os cegaria com seu esplendor. E' com a a j u d a d a cincia que este ato mstico se torna possvel. E ' ela que recolhe as experincias tidas por ocasio dele, confiando-as m e m r i a , onde o espirito se pe a refletir sobre elas, para tornar a elevar-se contemplao das idias. D-se aqui a l g o de semelhante ao que sucede ao ouvirmos uma bela melod i a ; embora deslize no tempo, s no silncio q u e lhe percebemos a harmonia intemporal ou "numerositas". O que percebido pelo olhar d o esprito permanece g u a r d a d o n a memria, o que nos permite rumin-lo pela recordao. O que assim se aprende vem a tornar-se um saber duradouro. E a partir dele, podemos elevar-nos, uma vez mais, arte eterna. c) Quais so as cincias teis sabedoria? Responder-se- que, em r i g o r , toda cincia pode ser til sabedoria, encontrando assim o seu l u g a r n o ideal agostiniano da sabedoria. Em todo caso, Agostinho julgou o p o r t u n o traar um p r o g r a m a detalhado daquilo que o cristo deve saber. Antes de tudo, como natural, ele deve conhecer a Escritura. Igualmente as l n g u a s latina, grega e hebraica, sem as quais no teria acesso aos textos originais dos livros s a g r a d o s . U 1 Outrossim, deve conhecer as criaturas que exercem qualquer funo n a s Escrituras, pois do contrrio n o perceberia o simbolismo dos minerais, das plantas, dos tempos e dos l u g a r e s . m E' preciso conhecer tambm as leis dos nmeros, a fim de compreender-lhes o significado mstico. Alm disso o cristo deve instruir-se na cincia astronmica, no porm nas doutrinas supersticiosas dos astrlogos. 114 No d o m n i o das artes mecnicas bastam alguns poucos conhecimentos, em cuja aquisio, alis, no necessrio demorar-se muito, e m b o r a tambm eles tenham sua utilidade para a compreenso da Escritura. 1 " M u i t o til ("plurimum v a l e t " ) a histria profana, ainda que no se costume ensin-la na Igreja. C o m efeito, no se pode entender a histria da redeno sem relacion-la com a histria universal. 11 * Mesmo a Dialtica oferece grandes vantagens: "sed disputationis disciplina ad omnia genera quaestionum, quae in litteris sanctis sunt penetranda et dissolvenda, plurimum v a l e t " . " "
Portanto, Agostinho no exclui nenhuma cincia genuna ou nosupersticiosa. M u i t o ao contrrio, todas elas p o d e m ser cultivadas por q u e m aspira sabedoria crist, suposto sempre que se atenha regra urea d o "ne quid nimis". Assim que at a educao fsica encontra lugar, e m b o r a bem modesto, dentro do programa agostiniano. 1 3 8 O que se disse d a s cincias particulares vale igualmente para a filosofia, nomeadamente a platnica, pelo menos na m e d i d a em que soube descobrir verdades condizentes com a f. Em lugar de tem-la, deveramos tom-la aos seus detentores ilegtimos e aproveitar-nos dela. Com isso Agostinho aborda o velho tema da espoliao dos egpcios pelos hebreus, que se apoderaram dos vasos d e ouro e prata dos seus opressores. Alis, como Agos" Ibid. e 13, 21: 1009. Ibid. 14, 23; 1010. Ibid. 14, 23; 1010 s. >" De doctr. christ. II, I I , 16; t. 34, 42. Ibid. 16, 24; 47. " Ibid. 36, 25 ; 48. - 38, 56-57 ; 61. > ibid 30, 47; 57. Ibid. ' Ibid. 28, 42 ss.; 55 5. Ibid. 31, 48 ss.; 57 ss. Ibid. 39, 58; 62.
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tinho observa numa interessante nota histrica, eles n o foram os nicos a proceder assim: " n o n n e aspicimus quanto a u r o et argento et veste suffarcinatus exierit de A e g y p t o Cyprianus doctor suavissimus et martyr beatissimus? q u a n t o Lactantius? q u a n t o Victorinus, Optatus, Milarius, u t de vivis taceam? quanto innumerabiles G r a e c i ? Q u o d prior ipse fidelissimus Dei famulus Moyses fecerat, de quo scriptum est quod eruditus fuerit omni sapientia Aegyptiorum (Act 7 , 2 2 ) " . ' "
N o se exige, pois, que renunciemos ao cultivo da cincia. Todavia, o primeiro dever da moral agostiniana restaurar a unidade da vida espiritual e subordinar as cincias particulares ao ideal da sabedoria. Esta no inclui apenas a cincia: nela a caridade e a razo se confundem numa s vida feliz.
C. O Universo. As idias cosmolgicas de Agostinho nasceram em parte da sua reao contra o dualismo materialista dos maniqueus, e em parte da sua resistncia s idias necessitaristas e emanatistas do neoplatonismo. A estas duas teorias Agostinho contrape a doutrina crist da criao. 1. O Deus Criador
T o d a s as criaturas, inclusivamente as h u m a n a s , so simples degraus da escada que sobe a D e u s . A doutrina agostiniana da sabedoria j permite entrever que na esfera criatural no h lugar para a pesquisa tomada como um fim em si mesmo. Pesquisa desta ndole n o passaria de uma f o r m a condenvel de curiosidade. O estudo das criaturas deve subordinar-se ao ltimo fim: o conhecimento e o amor de Deus. Q u a n d o interrogadas sobre Deus, as criaturas, at as mais humildes, respondem a u m a voz: no somos Deus; foi Ele quem nos criou; busca-O acima de ns.
I.
Deus.
N o comeo de todos os seres est Deus, o sumo ser concebvel. Os homens podem errar acerca de sua natureza; mas todos esto acordes em afirmar que Deus algo em comparao do qual nada se pode pensar de melhor ou mais sublime: " n a m cum ille unus cogitatur deorum Deus, ab his etiam qui alios et suspicantur et vocant et colunt deos sive in caelo sive in terra, ita cogitatur, ut aliquid quo nihil melius sit atque sublimius conetur attingere". 141 1. Sua incompreensibilidade.
Embora saibamos que Deus existe, e que a Verdade suprema e o fim ltimo a que aspira a nossa vontade, no nos dado compreend-Lo.
Ibid. 40. 60 s.; 63. ' , 0 Conf. X , 6, 9; 232, 12 8. De doctr. chrlst. I, 7, 7; t. 34, 22.
O DEUS CRIADOR
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N e n h u m dos nomes que atribumos a Deus e nenhuma das expresses que Lhe aplicamos capaz de exprimir-Lhe a essncia. M e s m o quando dizemos que inefvel estamos usando uma expresso inadequada. N o que respeita a D e u s , o silncio prefervel palavra: " q u a e p u g n a verborum silentio cavenda potius quam voce pacanda est". "* Agostinho chega a declarar que o nico conhecimento que a alma tem de Deus o saber como n o o sabe: "cuius (parentis universitatis) nulla scientia est in anima nisi scire quomodo eum nesciat". Todos o s nossos conceitos derivam das criaturas corporais ou espirituais, e por isso se aplicam primariamente s coisas mutveis e temporais. De certo, licito aplic-los a Deus, visto que a prpria Escritura o faz. M a s n o se deve perder de vista que nenhum desses conceitos representa Deus tal qual Ele . P o r o u t r o lado, seria exagero afirmar a impossibilidade at mesmo de um conhecimento aproximativo de Deus. Tal conhecimento possvel, contanto que respeite as leis do ser e da razo. E' certo, por exemplo, que Deus est isento de toda contradio. Seria erro afirmar que D e u s tem cor; entretanto, a cor se encontra pelo menos nas criaturas. E r r o m a i s grave seria dizer que Deus se gera a si mesmo, visto que at no d o m i n i o criatura! tal afirmao contraditria. Assim D e u s transcende o nosso entendimento na mesma proporo em que transcende o nosso ser. O entendimento s O v como n u m espelho e de modo indistinto. Todos os nossos pensamentos e conceitos apontam para alm de si mesmos e para algo que no logram exprimir. M a s justamente esta incompreensibilidade que nos incita a busc-Lo. U m a vez descoberta a existncia de Deus, o nosso amor anseia por erguer o vu dos mistrios divinos: " n a m et quaeritur ut inveniatur dulcius, et invenitur ut quaeratur avidius".
simplicidade.
Todos os nossos conceitos se debilitam medida que se aproximam da realidade divina, que apenas conseguem lobrigar; no obstante, eles nos dizem algo sobre Deus. Embora no nos faam saber o que Deus em si mesmo, eles pelo menos nos informam sobre o que Ele em relao s criaturas.
Q u a n d o comparamos as criaturas entre si logo descobrimos a existncia de graus de perfeio, bem como de certos contrastes, que se relacionam uns aos outros como o bem ao mal. N o hesitamos em d a r preferncia ao que bom e mais perfeito. E como antepomos o Criador a todas as coisas criadas, foroso confessar que Ele possui a vida em s u m o g r a u , que conhece e compreende tudo, que n o pode morrer, nem corromper-se, nem m u d a r ; que n o corpo e sim esprito: o mais poderoso, justo, belo, timo e feliz de todos os espritos. "*
De todos os conceitos aplicveis a Deus, os mais importantes so os de "esse", "est" e "essentia". Deus , simplesmente, sem qualquer limitao no tempo ou na perfeio. No foi sem razo que
Ibid. 6, 6; 21. * De ordine 2, 18, 47; 180, 16 s. De Trinit I, 1, 1-2; 819 s. Ibid. V, 1, 2; 912. ' Ibid. X V , 2, 2; 1058. Ibid. 4, 6; 1061.
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se deu a conhecer a Moiss com as palavras: " E g o sum qui sum" e " Q u i est". Sendo Deus o ser absoluto, ou a plenitude d o ser, nada pode aumentar-Lhe a perfeio nem causar-Lhe a menor mudana: deve existir de maneira absolutamente imutvel e s i m p l e s . M
Se Deus a plenitude d o ser na simplicidade, claro que todas as nossas determinaes e enunciados, apesar dos seus significados diferentes, devem exprimir a mesma realidade, q u a n d o aplicadas a Deus. Chamamo-Lo eterno, imortal, imperecvel, imutvel, vivo, sbio, poderoso, belo, justo, bom, feliz, espirito; nenhum dsses adjetivos, porm, atribudo a Deus maneira de propriedade; todos so predicados dele segundo a substncia ou essncia. Estes doze enunciados podem dividir-se em trs grupos. E m cada um deles, um dos quatro predicados serve de base p a r a os restantes. E como os doze podem ser reduzidos a trs, assim esses trs podem, por sua vez, reduzir-se a u m s; e este exprime uma e a mesma realidade. M *
//.O
Criador.
Deus habita uma luz inacessvel que transcende todo entendimento humano. E ' o originador de tudo quanto existe. Volvendo o olhar s realidades empricas, verificamos que todas so mutveis: tendem, sem exceo, degenerao e ao nada. O que prova de que no possuem a maneira mais perfeita possvel do ser ( " n o n summe sunt"), mas que existem em dependncia de uma realidade imutvel e perfeitssima. Em outros termos, so feitas e conservadas pela sabedoria e bondade de D e u s . " " Que significa a afirmao: Deus fez todas as coisas? E m outras palavras: qual o significado da expresso: " D e u s o Criador do Cu e da T e r r a " ? 1. A criao do nada. Deus fez as coisas do nada, no da Sua substncia, mas por Seu poder; nem de alguma matria pertencente a outrem ou anterior s coisas produzidas. As coisas foram feitas de matria criada por D e u s : "de nihilo enim a Te, non de Te facta sunt, non de aliqua non Tua vel quae antea fuerit, sed de concreata, id est simul a Te creata matria".
E ' evidente que as criaturas no podem provir d a substncia divina. A g o s t i n h o ridiculariza a opinio que v no mundo um ser vivo cuja alma seria Deus. 151 Tampouco o m u n d o pode ter sido feito de algo coexistente com Deus. Pois o que existe p o r si mesmo necessrio, e, conseqentemente, Deus. ou o r i u n d o de Sua substncia. M a s a mutabilidade das criaturas incompatvel com a necessidade. Logo, devem ter sido feitas do n a d a . M
' Ibid. V, 2, 3; 912. Cf. VII, 5, 10; 942. Ibid. XV, 5-6; 8-9; 1062 s. " a De vera Rei. 11, 21 ss.; 131 ss. " Conf. X I I I , 33, 48 ; 385, 7 s. De civit. Del IV, 12-13; 180 s. De vera Kei. 18, 35-36; 137.
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A criao um ato da vontade de Deus. Se bem que a razo desse ato criativo seja a bondade divina, ele no um efeito necessrio dessa bondade. A vontade divina determina-se a si mesma. A criao pois um ato livre de Deus.
Sendo assim, seria absurdo buscar-lhe uma causa ulterior: " Q u i ergo dicit Quare fecit D e u s caelum et terram? Respondendum est ei: Q u i a voluit. Voluntas enim Dei causa est caeli et terrae, et ideo maior est voluntas Dei quam caelum et terra. Q u i autem dicit: Q u a r e voluit facere caelum et t e r r a m ? maius aliquid quaerit q u a m est voluntas D e i : nihil autem maius inveniri potest. Compescat ergo se humana temeritas, et id quod non est non quaerat, ne id quod est non inveniat". "* Embora incausado, o ato criativo n o contudo o efeito de uma deciso cega ou arbitrria. T a m b m ele tem sua razo, a saber: a prpria b o n d a d e divina. Trs so as coisas que nos importa saber a respeito das criaturas: por quem, de que e por que foram feitas: "Si ergo quaerimus, quis (creaturam) fecerit Deus est; si per quid fecerit: Dixit, Fiat, et facta est; si q u a r e fecerit: Q u i a bona est. Nec auctor est excellentior Deo, nec ars efficacior Dei Verbo, nec causa melior quam ut bonum crearetur a ( D e o ) b o n o " . 1 5 4
3. A criao e a s idias. Alm de ser expresso da vontade e revelao da bondade divina, o ato criativo tambm um ato do entendimento e u m a revelao da sabedoria de Deus. Antes de serem feitas, as criaturas j existiam ou "viviam" no entendimento divino ou na "arte" divina, sob a forma de idias.
As coisas, com efeito, tm dupla existncia: uma, real, sucessiva criao, e outra, ideal, n o esprito de Deus. D o mesmo modo que um artista humano deve preconceber a obra que vai produzir, assim Deus, o Artista eterno, possui uma idia prvia de cada criatura em Sua "arte eterna". Nesta arte eterna as idias vivem de uma vida espiritual; denominam-se "rationes", " f o r m a e " ou "regulae", por serem os prottipos ou modelos originais das coisas que iro ser criadas. O nome de idias ou formas vem de Plato. Mas, ao passo que este lhes atribua uma existncia separada, Agostinho as faz existir no prprio Deus ou no Verbo divino: " S u n t n a m q u e ideae principales formae quaedam vel rationes rerum stabiles atque immutabiles, quae ipsae formatae non sunt, ac per hoc aeternae ac semper eodem modo se habentes quae in divina intelligentia continentur". Todos os seres tm suas idias exemplares na inteligncia divina. E isso vale, no s para as idias gerais das espcies e dos gneros, m a s p a r a cada indivduo em particular: " S i n g u l a . . . propriis sunt creata rationibus". E' incontestvel que Agostinho jamais duvidou de que a cada indivduo humano corresponde uma idia particular na inteligncia divina. *"
De Genesl c. Manich. I, 2, 4 ; t. 34, 175; cf. Ad Oroslum * De clvit. Dei X I , 21; 542, 8 s.; cf. ibid. 24; 548, 1 ss. In Joann. Evang. tract. 2, 1, 16; t. 35, 1387. De diversis quaest. 83, q. 46, 1-2; . 40, 29 s. Ibid. q. 45, 2; 30. Cf. Eplst. 14, 4; t. 33, 80. c. Pr. et Orlg. 1-3; t. 42, 669 ss.
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Deus criou todas as coisas do nada, por um ato de sua vontade, e em consonncia com suas idias. Todas as criaturas trazem esse duplo selo de sua origem. Agostinho frisa expressamente esta disparidade: todos os seres so bons porque criados por Deus; e todos implicam certa imperfeio intrnseca porque feitos do nada.
I. i4s criaturas
1. O tempo.
em
geral.
Quando criou Deus o m u n d o ? Diz a Escritura que "no princpio criou Deus o Cu e a Terra" (Gn 1,1). Logo, o mundo teve um comeo; no , nem pode ser, eterno.
Agostinho admite esta verdade baseado na revelao."" T o d a v i a , o grande Doutor da Igreja, perfeitamente consciente da complexidade d o problema, se abstm de fazer afirmaes precipitadas. Condena decididamente os que negam a criao do m u n d o ("Nimis aversi sunt a veritate et letali morbo impietatis i n s a n i u n t " ) ; de outro lado, mostra-se compreensivo p a r a com os que crem ser ele criado, m a s coeterno com Deus. Pois estes pelo menos erram de boa f, por cuidarem dever afastar de Deus toda suspeita de arbitrariedade ou m u d a n a ; alm disso, querem obviar objeo dos que perguntam o que D e u s fazia antes da criao. D e sua parte, Agostinho julga que tal assero dificilmente compreensvel ( " m o d o quodam vix intelligib i l i " ) , e, ademais, ela acarreta as mais srias dificuldades em matria antropolgica. Agostinho pensa evidentemente na doutrina origenista d a criao eterna, intimamente relacionada com a preexistncia d a a l m a . 1 " H ainda o inconveniente de a prova mover-se num circulo vicioso. Quem quer saber o que Deus fez antes de criar o mundo d a entender que no percebe a diferena entre tempo e eternidade. A eternidade no comporta q u a l q u e r mud a n a ; o tempo, ao contrrio, sempre implica a l g u m a alterao. O r a , a rautabilidade faz parte da essncia de toda criatura. Logo, o tempo n o existe seno para a criatura: " Q u i s non videat, quod tmpora non Tuissent, nisi criatura fieret, quae aliquid aliqua mutatione mutaret, cuius motionis et mutationis cum aliud atque aliud, quae simul esse non possunt, cedit atque succedit, in brevioribus vel productioribus morarum intervallis t e m p u s sequeretur? Cum igitur Deus, in cuius aeternitate nulla est o m n i n o mutatio, creator sit temporum et ordinator: q u o m o d o dicatur post temporum spatia m u n d u m creasse, non video". M1
Sendo Deus eterno, ou seja, transcendente ao tempo, e ns outros temporais, -nos impossvel resolver o problema das relaes entre o tempo e a eternidade.
Certos filsofos platnicos procedem de maneira leviana e precipitada na soluo desse problema: a fim de tornar compreensvel a criao d o mundo, excogitaram a famosa analogia do vestgio impresso " a b aeterno" na areia.
'' De Genesi ad lltt. imperl. lib. 3, 8; 464. De civit. Dei X I , 4; 515 s. Ibid. 6; 519, 6 s.
AS CRIATURAS
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Sendo causado pelo p, o vestgio permanece impresso na areia, enquanto o p repousa nela: a causa e o efeito coincidem no tempo. O mesmo sucederia com a criao do mundo. D e u s sempre existiu e criou o m u n d o desde sempre, m a s de tal maneira que o m u n d o teve um comeo ou princpio na ordem ontolgica, no porm na ordem temporal. Em outros termos, o mundo seria u m a criatura eterna. Este ponto de vista falso, por confundir o conceito do tempo eterno com o de eternidade. O tempo essencialmente uma existncia parcelada, pois n o momento presente o passado j deixou de existir, e o futuro ainda n o existe. O presente s pode existir num instante indivisvel. Se imaginarmos este instante como algo extenso num certo espao de tempo, ele tornar a dividir-se, por seu turno, num passado, num presente e num fut u r o ; o momento presente, porm, n o tem extenso: "Praesens autem nullum habet spatium". E assim as trs dimenses do tempo reduzem-se ao presente, em cuja lembrana o passado ainda vive de algum modo, e em cuja expectativa j vive o futuro. O presente, porm, transcorre sem cessar, a fim de dar lugar a um novo presente. De sorte que o tempo por essncia inconstante e criatura!; seu ser consta de instantes indivisveis, donde ser ele essencialmente diverso da eternidade permanente e imvel: "tempus autem quoniam mutabilitate transcurrit, aeternitati immutabili non potest esse coaeternum".
Em si rnesmo, o tempo sempre ser algo de enigmtico para ns. Toda sua substncia se reduz ao instante indivisvel, ao presente. M a s o que indivisvel n o pode ser mais longo ou mais breve. C o m o podemos, ento, falar num tempo mais longo ou mais breve? E no entanto, ns medimos o tempo! C o m o porm se h de medir a extenso do passado que j no existe, ou a do futuro que ainda n o existe? Para solucionar este problema alguns pensadores identificam o tempo com o movimento. E' verdade que assim se elimina aquela dificuldade, mas cria-se outra muito maior. O movimento corporal consiste na passagem de um ponto do espao a outro; mas esta m u d a n a local sempre a mesma, irrespectivamente d u r a o mais ou menos longa do movimento. E mesmo quando um corpo est imvel pode-se determinar-lhe mais ou menos exatamente o tempo de repouso. Logo, o tempo que mede o movimento, e o movimento que mede o tempo, so duas coisas diferentes. Com que meo, ento, o tempo?*"
Para solucionar essas dificuldades, decorrentes do problema das relaes entre o permanente e o transitrio, Agostinho recorre imagem da "distenso" da alma ("distentio a n i m i " ) .
Esta "distenso" da alma possibilita a coexistncia do futuro, do pretrito e do presente; permite tambm perceber e medir a d u r a o . " * Tomandose o tempo em si mesmo, impossvel medi-lo, pois s se medem os tempos passados, que j no existem. A questo toma um aspecto diferente quando se atende maneira em que o t e m p o percebido pela alma. O que j deixou de ser continua a existir na memria, sob a forma de "presena p s q u i c a " (como diramos hoje), e isto que nos capacita a medi-lo: " I n te, anime meus, tmpora metior". "* O mesmo se d com o futuro. A alma pois uma ateno extensa e distensa, que continua a reter o que vai escoando, e j apreende o que ainda est por vir: e esta extenso que
" De d v i t . Dei X , 31; 502, 25 s. Conf. X I , 15, 20; 294, 9 s. De civ. Dei X I I , 15; 594, I s. " Conf. X I , 26, 33; 303. Ibid. 23, 30; 300 e 26, 33 ; 303. Ibid. 27, 36 ; 306, 9
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perdura."" Defrontamo-nos assim, m a i s u m a vez, com a j mencionada em nossa anlise d a percepo sensvel.
Por detrs desse problema psicolgico oculta-se o problema metafsico. O que est sujeito sucesso incapaz de existir simultaneamente. Logo, as coisas so temporais por no poderem realizar de uma s vez todo o seu ser. 2. A matria e as formas. Por um ato temporal Deus tirou do nada o Cu e a Terra, isto , as criaturas invisveis e visveis. Por "Terra" deve entender-se, em primeiro lugar, a matria, criada conjuntamente com as formas.
A matria no foi criada separadamente das formas. C o m o as letras so a matria das palavras, e as palavras, letras formadas, e como umas s o inseparveis das outras, assim Deus teve de criar a matria j informada. ** A matria n o pode existir totalmente destituda de f o r m a ; quanto mais o esprito se esfora p o r conceb-la de m o d o absoluto, ou seja, como p u r a matria, tanto mais ele se aproxima da m a i s absoluta escurido. E' que, em ltima anlise, s a conhecemos desconhecendo-a; no podemos determin-la seno em termos n e g a t i v o s . D a o ser ela infinitamente distante de Deus. Em sua atividade criadora, o poder de D e u s se detm, por assim dizer, em dois limites extremos, que so, respectivamente: a criao d o anjo, o ser mais prximo, e a criao da matria, o ser mais distante de D e u s : " T u eras et aliud nihil, unde fecisti caelum ( o m u n d o dos espritos) et terram, duo q u a e d a m , unum prope te, alterum prope nihil, unum q u o superior tu esses, alterum, quo inferius nihil esset". 1 , 1 P a r a Agostinho, a matria n o se identifica simplesmente com a mutabilidade; com isso se insinua a idia de u m a matria espiritual. A expresso "matria espiritual" ocorre, de fato, nos escritos de Agostinho. Todavia, no fcil determinar at que ponto se deva entend-la em sentido metafrico, p o i s por "matria espiritual" Agostinho entende sobretudo um estado de " i n f o r m i d a d e " , ou seja, de ignorncia e misria, em q u e se encontra a alma q u e vive afastada da sabedoria incomutvel: "aversa enim a sapientia incommutabili stulte et misere vivit, quae informitas eius est. F o r m a t u r autem conversa ad incommutabile lumen sapientiae, verbum D e i ; a quo enim extitit, ut sit utcumque ac vivat, ad illum convertitur, ut sapienter ac beate vivat". "*
3. A s "rationes seminales"
(foras
germinativas).
Embora todas as coisas tenham sido criadas simultaneamente por Deus, observamos contudo o surgimento de seres sempre novos. Importa distinguir, pior isso, entre as criaturas que foram criadas desde o incio na plena perfeio de suas formas, e as que foram apenas "esboadas".
o A s criaturas que desde logo receberam sua forma definitiva so: os anjos, firmamento, a terra, o mar, o ar, o fogo, os astros e, enfim, a alma
Ibid. 28, 37; 307, 15. De Gen. ad litt. I, 15; 21. 7 s. Conf. X I I , 6, 8; 312, 21 s. "> Ibid. X I I , 7, 7; 314, 15 s. m f . ex. De Gen. ad litt. I, 4; 7. 18. m Ibid. 5 ; 9, 1 .
AS CRIATURAS
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humana. Os germes originais dos seres vivos, p o r m , inclusive o corpo de A d o e de todos os outros homens foram criados num estado de preformao ainda no desenvolvido. Na filosofia agostiniana estes germes primordiais chamam-se "rationes seminales" ou "causales", porque neles os seres vivos j se encontram projetados "invisibiliter, potentialiter, causaliter, quomodo fiunt futura non facta". 1 , 4 Graas a estas foras germinativas, a terra est como que impregnada de causas evolutivas; ela um campo cultivado, u m a imensa sementeira densamente semeada de gros aptos a evoluir e a sazonar. A essncia das "rationes seminales" afim umidade, contm u m a determinada energia evolutiva e semelhante aos nmeros: " o m n i a quippe primordia seminum, sive unde omnis caro sive unde omnia fruteta gignuntur, humida sunt et h u m o r e concrescunt; insunt autem illis efficacissimi numeri trahentes secum sequaces potentias ex illis perfectis operibus Dei, a quibus in die septimo requievit". "* D o exposto se segue que Agostinho certamente n o aprovaria a moderna teoria da evoluo, caso a conhecesse. Se por evoluo se entende uma alterao ou transformao das espcies, ela simplesmente incompatvel com a doutrina do nosso Doutor, que desconhece qualquer outra origem das espcies que n o seja o ato criativo de Deus; neste ato que se baseia a possibilidade de sua f o r m a o . Q u a n d o muito, admitiria uma evoluo n o sentido de as formas seminais ocultas, e criadas por Deus, virem luz em tempos ou pocas diversas.
A doutrina das foras germinativas traduz uma exigncia profunda do agostinismo, a saber, o desejo de restringir o mais possvel a atividade criatural, em benefcio da atividade divina. E' claro, pois, que a mesma lei que rege a ordem espiritual governa tambm a ordem material: o que vale no quem planta, nem quem rega, mas, sim, aquele que faz crescer, isto , Deus. O s progenitores nada s o : Deus quem f o r m a a prole no seio materno; a m e , que concebe a prole e a traz no seio, nada : Deus quem lhe d o crescimento. Graas a o ininterrupta de Deus, as foras germinativas continuam a desdobrar, at hoje, os seus nmeros, fazendo surgir as formas visveis de suas profundezas ocultas. "* Em vista disso, Agostinho ter de rejeitar, em princpio, t o d a "teoria evolucionista" favorvel idia de um aparecimento de formas novas; as formas se originam, exclusivamente, do ato criativo de Deus.
No mesmo instante da criao do mundo, Deus depositou-lhe no seio um contedo espiritual; tudo o que ele contm de real e de possvel (em suas foras germinativas) lhe foi comunicado segundo o modelo das idias. E visto como estas radicam na vida trinitria de Deus, o prprio mundo vem a ser vestgio da Trindade santssima.
11. O
homem.
Ao criar do nada as coisas modeladas por suas idias, Deus conferiu-lhes o ser; no, certamente, toda a plenitude do ser, que s nle existe, mas apenas uma certa participao. Dessa medida diversa de participao no ser decorre naturalmente certa gradao no ser criado: "aliis dedit esse amplius, aliis minus; atque ita naturas
" " >" Ibid. 6, 6; 177, 22. Ibid. 5, 7; 150, 10 s. Cf. Ds Gen. ad litt. 9, 17; 291, 9 ss. Ibid. 9, 15; 287; De Trinit. 3, 8, 14-15; 876 5.
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essentiarum gradibus o r d i n a v i t " . m No domnio da criao visvel, lugar mais elevado cabe ao ser humano. 1. A natureza d o homem.
O homem u m a unidade substancial de corpo e alma. N o infreqente afirmar-se que para Agostinho a essncia do homem uma alma que se utiliza de um corpo; todavia, fora de dvida que ele doutrina, clara e reiteradamente, que o homem se compe de alma e corpo, graas a uma estreita unio destes dois componentes, e que s o ser assim composto merece o nome de homem.
Desde os seus primeiros escritos Agostinho insiste energicamente nesse ponto. N o " D e beata vita", onde se esfora por encontrar a definio d o homem, deparamos u m a discusso bem caracterstica do pensamento agostiniano. N o correr do dilogo, o autor pergunta: Parece-vos evidente que s o m o s compostos de alma e corpo? Todos os interlocutores concordam, exceo de Navgio, que professa ignor-lo. No intuito de convencer o ctico, Agostinho retorna ao p o n t o de partida, j conhecido: Sabes, pelo menos, que vives? Navgio: Sei. Agostinho: Portanto, sabes que tens v i d a ? Pois n i n g u m pode viver a menos q u e tenha vida. Navgio: T a m b m isto o sei. Agostinho: Sabes que tens u m corpo? Navgio assente. Agostinho: Logo, j sabes q u e s composto de corpo e vida. Navgio concorda, com u m a reserva, p o r m : no sabe se so estes os nicos componentes do homem. Mas Agostinho se d p o r satisfeito e prossegue " E r g o duo ista, inquam, esse non dubitas, corpus et animam: sed incertus es, utrum sit aliud, quod ad complendum ac perficiendum hominem valet". E assim todos esto de acordo no tocante ao resultado comum: "Neque sine corpore neque sine anima esse posse hominem". m Agostinho sempre se manteve fiel a esta concepo. Tambm o corpo faz parte da natureza humana. Afirmar o contrrio incorrer num g r a n d e disparate: "quisquis a natura humana corpus alienare vult, d e s i p i t " . C l a r o est que isto n o o impede de ver na alma a parte m a i s excelente d o ser humano. E por este motivo que segundo sua expressa declarao ele por vezes denomina o homem simplesmente de alma, a exemplo d a prpria Escritura: " H o m o enim, sicut veteres definierunt, animal est rationale, mortale, aut sicut Scripturae nostrae loqui solent ( a n i m a ) . . . cum a parte meliore totum appellari placet, id est, ab anima, et corpus et animam, quod est totus homo". *" Q u a n t o quela "definio", de sabor platnico: " H o m o igitur, ut homini apparet, anima rationalis est mortali atque terreno utens corpore" importa notar que esta pseudodefinio, tantas vezes mal interpretada, ocorre n u m contexto de carter moral.
2. A alma
humana.
Como parte superior do ser humano, a alma est incumbida de governar o corpo: " N a m mihi videtur (animus) esse substantia quaedem ratione particeps, regendo corpori a c c o m m o d a t a " . " Pessoal' De ci. Dei X I I , 2; 569, 2 s. De beata vita 2, 7; 93 s. 180 De anima et ejus origine 4 , 2 , 3 ; t. 44, 525. Cl. Sermo 4 3 , 2 , 3 e Sermo 1 5 0 , 4 , 5 ; t. 38,255 e 810. Ver tambm: Epist. 238, 2, 12; t. 33, 1042. De Trinit.VII, 4, 7; 939. De Morib. Eccles. Cath. I , 27, 52; 32, 1332. De quantlt. an 13, 22; 1048.
AS CRIATURAS
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mente, porm, Agostinho se interessa mais pelo problema d a espiritualidade da alma do que pelo de sua substancialidade.
a ) S u a espiritualidade. Durante o perodo maniquesta, Agostinho tomara viva conscincia do problema da espiritualidade da alma. Pouco a p s a converso (388) consagrou-lhe um livro inteiro, intitulado " D e quantitate animae". D i a l o g a n d o com seu amigo Evdio, enfrenta o problema de maneira muito tpica. D e incio, o ex-racionalista exprime sua submisso incondicional autoridade d a f. Contudo, o investigador apaixonado no se d p o r satisfeito com a simples crena: exige compreenso daquilo que c r . " 4 E m primeiro lugar, prova que necessrio afastar da alma a corporeidade, e com ela, toda e qualquer espcie de extenso quantitativa. Numa longa exposio sobre os pontos, as linhas e as superfcies matemticas, Agostinho mostra que a alma percebe objetos completamente incorporais. "* Donde se conclui q u e a alma no pode ser corporal, nem extensa. "* Com a prova de que a alma incorporai e isenta de toda determinao corprea, j est provada, negativamente pelo menos, a sua imaterialidade. M a s ser possvel enunciar tambm algo de positivo sobre esta imaterialidade? A fim de responder a esta pergunta, Agostinho recorre ao saber imediatamente evidente que temos de nossa alma. Esta se apreende a si mesma, de m o d o imediato, como espirito dotado de atividade cognoscitiva, rememorativa e volitiva. No mesmo momento em que compreende o significado do preceito: "Conhece-te a ti mesmo", o esprito toma conhecimento de si, pela simples r a z o de estar presente a si mesmo: "Cognosce te ipsam, eo ictu quo intelligit quod dictum est, Te ipsam, cognoscit seipsam; nec o b aliud, q u a m eo q u o d sibi praesens e s t " . " Por isso a alma sabe o que e o que no . Mas n o d o mesmo modo. O que , ela o apreende em seu prprio interior, graas a uma presena intima e real, e n o simplesmente imaginria. O que n o , ela s pode " i m a g i n - l o " , por meio d a representao das imagens d e coisas corporais. b ) S u a origem. Agostinho permaneceu indeciso quanto origem d a alma, embora se possa afirmar que por fim propendeu mais para o chamado criacionismo. Est persuadido que a alma no procede da substncia divina, visto ser u m a criatura"*; que no evoluiu da matria nem de uma alma animal "; q u e nenhuma alma preexistiu a o c o r p o m ; e, enfim, que nenhuma alma f o r m a d a de uma suposta substncia imaterial, produzida n o comeo da c r i a o . D i a n t e disso, restam apenas quatro possibilidades: a a l m a seria transmitida pelos pais; mas esta suposio dificulta a salvaguarda da personalidade h u m a n a . A alma seria criada imediatamente por Deus n o momento de sua u n i o a o corpo; o que torna difcil a explicao do pecado original. As almas teriam sido feitas no princpio da criao, para serem infundidas nos respectivos corpos pelo prprio Deus (terceira possibilidade), o u espontaneamente ( q u a r t a possibilidade); mas nestes dois ltimos casos, seria difcil reconhecer a razo da unio entre alma e corpo. "* Nas Retrataes Agostinho confessa, sinceramente, as suas hesitaes entre o criacionismo e o traducianismo: " N a m quod attinet ad eius (animi)
Ibid. 7, 12; 1041 s. Ibid. 8, 13-13, 22; 1042-47. Ibid. 14, 23; 1048. De Trinit. X , 9, 12; 980. Ibid 10, 16; 982. De Gen. ad litt. 7, 3-4; 202 s. Ibid. 9; 207. Epist. 166, 9, 27; t. 33, 732. De Gen. ad litt. 7 , 22-23 ; 221 s. Ibid. 24-28; 222-228. Cl. Epist. 166, 3, 7; t. 33, 723.
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originem, qua fit, ut sit in corpore, utrum de illo uno sit, qui p r i m u m creatus est, q u a n d o factus est homo in a n i m a m viventem, an similiter ita fiant singulis singuli, nec tunc sciebam nec adhuc s e i o " . " ' c ) S u a imortalidade. Agostinho nunca teve a menor d v i d a acerca da imortalidade. Conhece e faz uso das provas do Fdon de Plato, acomodandoas sua p r p r i a orientao. O a r g u m e n t o mais caracterstico baseia-se na verdade e, em l t i m a anlise, na prpria dvida. Nos Solilquios a prova d a imortalidade parte da verdade. C o m o portadora da verdade imperecvel, a alma deve ser igualmente imperecivei."" Objeta-se que, se tal o caso, basta que a alma erre para destruir-se a si m e s m a ; para Agostinho, p o r m , um tal argumento contraditrio, pois a alma s pode errar sob a c o n d i o de ser viva: " a t nisi qui vivit, fallitur nemo. N o n igitur falsitas interimere animum potest". ~ A verdade to indestrutvel que nem mesmo o seu oposto, o erro, capaz de destru-la; o mesmo vale p a r a a alma. P o r detrs deste argumento, que aparece apenas esboado, oculta-se a notica agostiniana. A alma est imediatamente unida verdade divina. Nela se reflete, como n u m espelho, a verdade eterna, e nisso est a garantia de sua imortalidade. E m oposio ao corpo, em que h uma participao meramente passiva d a verdade, e a o m u n d o material em geral, que s a imita at certo ponto, a a l m a participa ativamente da verdade eterna e imaterial: "Restat enim a n i m u s et Deus, quae duo si propterea vera sunt quod in his est veritas, de immortalitate D e i nemo dubitat. Animus autem immortalis creditur, si veritas quae interire non potest, etiam in illo esse probatur". "" O r a , j vimos que a vida da alma Deus, a Verdade eterna. E' deste pensamento que a prova agostiniana tira todo o seu significado e toda a sua fora. A alma est intimamente unida a Deus, e sua vida espiritual se alimenta de Deus num sentido metafsico. E' s em sentido moral que se pode dizer que a alma morre ou est morta: " S e d anima non potest mori, et potest mori: mori non potest, quia sensus eius nunquam perit; mori autem potest, si Deum perdit. Sicut enim est ipsa a n i m a sui corporis vita, sic Deus est ipsius animae v i t a " .
3. A l m a e corpo. Ainda que a alma seja uma substncia completa, ela se une a um corpo para formar com ele uma nova substncia, e para animlo ou vivific-lo. Graas a esta unio, a natureza inferior ou corporal se une, por intermdio da natureza superior da alma, com a natureza suprema de Deus.
A alma o principio vivificador do home/n. Agostinho j a m a i s cedeu tentao de admitir uma pluralidade de almas no homem, a despeito de certas insinuaes escrituristicas, aparentemente favorveis a tal idia: " N i h i l invenimus amplius in homine, q u a m carnem et a n i m a m " . " " Esta a l m a nica confere ao corpo a vida, a beleza interior e exterior, e toda sua organizao. De que maneira se desempenha a alma dessa tarefa? A f ; m de explicar estas funes, Agostinho no cessa de insistir em que a alma est toda inteira em todo o corpo, e toda inteira em cada u m a de suas
Retract. 1. I , 8; 16, 5 s. ' Soiiloq. 2, 19, 33; 901. De immort. anim. 11, 18; 1030 s. Solil. 2, 18; 32, 900. Sermo 273, 1 , 1 ; t. 38, 1247 s. Enarrationes in Psalm. 145, 5; . 37, 1887.
Cf.
Conf.
8, 10,22; 188, 17 s.
AS CRIATURAS
183
parles: _ " T o t a singulis partibus simul adest, quae tota simul sentit in singulis". Totalmente presente em cada uma das partes do corpo, a alma p o d e fazer valer em todas elas a totalidade de sua energia. Agostinho d e n o m i n a esta presena de "intentio vitalis": tenso e ateno vital. Ela traduz, pois, u m a espcie de cuidado da alma pelo corpo; mas tambm este cuidado de ordem imaterial: " P e r totum quippe corpus quod animat, non locali diffusione, sed q u a d a m vitali intentione porrigitur". Esta ao sobre o c o r p o unilateral, dado que a alma no pode sofrer qualquer influncia do c o r p o , 202 sob pena de tornar-se sujeita a ele. M a s visto que a alma, em razo d e sua espiritualidade, supera de muito o corpo, a sua unio com as partes mais grosseiras e, por assim dizer, mais materiais do mesmo, realiza-se p o r intermdio das partes mais delicadas e, por assim dizer, mais espirituais d a alma. Consciente do carter meramente hipottico destas afirmaes, A g o s t i n h o se d conta de que elas n o oferecem explicao satisfatria da unio enfre alma e corpo. T a l u n i o continua a ser um mistrio incompreensvel p a r a o entendimento h u m a n o : " . . . e t iste alius modus, q u o corporibus adhaerent spiritus et animalia fiunt, omnino mirus est nec comprehendi ab homine potest, et hoc ipse homo est".
O fundamento metafsico da unio entre atma e corpo est na funo mediadora da alma entre as idias divinas e o corpo. A a l m a o elo de unio entre as idias divinas e o corpo vivificado por ela. Graas sua natureza espiritual ela se abre para aquelas idias espirituais. O corpo, ao contrrio, devido sua extenso espacial, incapaz de uma participao direta nas idias. O ser do corpo resumese na configurao, na disposio de suas partes, e nas leis dos nmeros a que est sujeito. Tudo isto ele o deve a l m a . " E esta Iho comunica apenas por hav-lo recebido das idias divinas. P o r isso, se o corpo no participasse destas idias, ele no seria o q u e . Por outro lado, se participasse diretamente delas, ele mesmo seria uma alma. Mas o fato que, sem ser alma, ele participa contudo da ordem e da figura, e, mais evidentemente ainda, da prpria sabedoria suprema e da verdade imutvel. Donde se segue que o corpo n o poderia ser vivificado seno por uma alma. m
Compreende-se assim que a alma tenha grandes responsabilidades para com o corpo. Enquanto mediadora, incumbe-lhe a obrigao de domin-lo, submetendo-o consigo mesma, a Deus: " D e u s igitur summus et verus lege inviolabili et incorrupta, qua omne q u o d condidit regit, subiicit animae corpus, animam sibi, et sic omnia s i b i " . E s t e domnio e esta sujeio da alma a Deus se realizam em sete graus, desde a funo anmica mais humilde a de vivificar o corpo at mais elevada, que a contemplao da Divindade. **
" De immirt. anim. 16, 25; 1034. Epist. 166, 2, 4; t. 33, 722. De Musica 6, 5, 8; 1167. s De Gen. ad litt. 7, 15; 213, 14 s. * De e i . Dei X X I . 10, I ; 538, 7 s. De immort. an. 15, 24; 1033. Ibid De quant. animae 36, 80; 1079. = ibid. 35. 79; 1079.
301
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S. AGOSTINHO, MESTRE DO
OCIDENTE
3. O retorno da criatura para Deus Pelo fato de haverem procedido de Deus, as coisas criadas so um meio de retorno a Deus para todas as almas amantes da verdade. A idia do retorno ou da ascenso da alma a Deus provm de Plotino. "* Mas em Agostinho ela reveste significado profundamente cristo. Se verdade que h muitos traos de espiritualismo platnico na obra agostiniana, esta influncia consideravelmente mitigada pela idia de que todas as coisas foram criadas por Deus, e constituem outros tantos reflexos da sabedoria e da bondade divinas. Ao passo que a "via real" de um Plotino nasceu da utpica e pretensiosa aspirao de transformar-se em puro esprito, o retorno agostiniano se inspira na caridade humilde, que mantm o homem no seu lugar devido dentro da ordem csmica, e lhe ensina a amar as criaturas em Deus e por Deus. E por esta razo que sua alma no encontra repouso definitivo na criatura.
I. A analogia
divina nas
criaturas.
A possibilidade do retorno garantida pelo fato de todas as criaturas trazerem impressos os vestgios da Santssima Trindade. Agostinho um pensador trinitrio.
O Pai, o Filho e o Esprito Santo s o u m a s natureza. Eles so o Ser soberano, a soberana b o n d a d e e sabedoria e, portanto, a verdadeira eternidade, o eterno e verdadeiro amor, o princpio de todas as coisas, a beleza perfeitssima e a s u m a b e m - a v e n t u r a n a . E s t a s perfeies, atribudas s pessoas divinas, se refletem no mundo criado. Infelizmente n o dispomos de espao p a r a uma exposio, mesmo sumria, dos mltiplos reflexos trinitrios na criao, tais como Agostinho os concebe. Remetemos o leitor exposio de Portali, n o Dictionnaire Catholique I, cols. 2351 s. De nossa parte, focalizaremos a l g o mais detidamente a estrutura trinitria da alma h u m a n a .
A alma como imagem de Deus. O ser imagem de Deus privilgio exclusivo da alma humana. D i z a Escritura que Deus formou o homem sua semelhana. Ainda que toda a criao se assemelhe de certo modo a Deus, a dignidade de imagem propriamente dita apangio do ser humano; e neste, ela se encontra to somente na alma, e nesta, s no esprito ou na 'mente'. Pois mediante o esprito ou a mente que a alma se abre diretamente para Deus, e dele se torna capaz: " E o quippe ipse imago est, quo eius ( D e i ) capax est, eiusque particeps esse potest; quod tam magnum bonum, nisi per hoc quod imago est, non p o t e s t " . m
> Cf. Conf. VII. 10, 16; 157. J1 Cf. p. ex. De d v . Del X I , 28; 555. De Trinlt. m De Trin. X I V , 8, 11; 1044. 4, Prooem., 887; Ibid. 7, 10, 12; 932.
DEUS
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i g u a l d a d e (cada u m a igual a todas) entre o todo e a parte, e as trs so uma s coisa: u m a vida, uma mente, uma essncia"." M u i t o embora esta trade seja a imagem mais perfeita da Santssima Trindade, claro que ela muito inferior sua imagem original.
Deus.
Simples sinais ou acenos de Deus, todas as criaturas apontam para alm de si mesmas, e nos convidam a regressar a Deus. 1. Agostinho no cessa de insistir no carter obrigatrio deste retorno.
N o deve o homem deter-se nas criaturas, nem repousar nelas. N o quer isto dizer que n o nos possamos regozijar nas coisas criadas. Agostinho guardou-se de cair n o extremo oposto do seu materialismo e sensualismo de outrora, e est longe de condenar como impuro todo contacto com as coisas criadas. Pois as criaturas so vestgios de Deus; nelas resplandece a sabedoria e a bondade do Criador, para grande regozijo d o s espectadores. N o h criatura que n o nos fale de D e u s : " Q u o q u o enim te verteris, vestigiis q u i b u s d a m , quae operibus suis impressit, loquitur tibi". "* P o r isso Deus no probe o amor s criaturas, suposto que n o as amemos em detrimento do nosso fim l t i m o . 1 " P o r isso o pecado tem incio q u a n d o nos esquecemos de Deus, em conseqncia do amor desordenado s criaturas. A este esquecimento Agostinho n o hesita em chamar de adultrio. Com efeito, Deus comparvel a um noivo que presenteou sua eleita com u m a aliana de rara beleza. Ora, a noiva que preferisse o anel ao noivo, ou at o olvidasse, daria a entender que prefere o smbolo pessoa que ele deveria trazer-lhe memria. E isto seria a d u l t r i o . m
o interior e do
Agostinho nos deixou numerosas descries do processo ascensional, que vai d a s coisas sensveis ao esprito, e deste, a Deus. O prprio argumento d a existncia de Deus, bem como a anlise do conhecimento e a busca de D e u s so, no fundo, outras tantas expresses desta elevao da alma a Deus. A descrio mais eloqente, porm, se nos depara no captulo 40 do 10" livro das Confisses: "Percorri o melhor que pude, com os sentidos, o mundo exterior; observei em mim a vida do corpo e os p r p r i o s sentidos. Passei depois s profundezas da memria, a essas amplides sucessivas, admiravelmente repletas de inumerveis riquezas. Observei-as, estupefato. Mas, sem Vs, n a d a pude distinguir; contudo, reconheci que Vs nada disto reis. N o era eu q u e m descobria estas maravilhas. E ' certo que as percorri a todas e tentei distingui-las e avali-las n o seu justo valor, interrogando os seres que t r a z i a m mensagens aos meus sentidos; examinando e analisando outros que sentia unidos a m i m , bem como as suas informaes. Revolvia nos grandes tesouros da memria vrias impresses, ora percorrendo umas, ora manifest a n d o outras. M a s nem eu que fazia t u d o isto, melhor, nem a fora e virIbid. X , 11, 18; 983. De libero arb. 2, 16, 41; 1263. In Epist. Joan. ad Parlh. 2, 11; t. 35, 1595. * Ibid.
DEUS
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tude com que eu agia reis Vs; porque Vs sois a luz imutvel que eu consultava acerca d a existncia, da qualidade e do valor de todas estas coisas. Eu ouvia os Vossos ensinamentos e as Vossas ordens. Costumo faz-lo muitas vezes, porque sinto nisso grande alegria. Sempre que, nos meus trabalhos de obrigao, posso dispor de algum descanso, refugio-me nestes prazeres. Entre todas estas coisas que percorro, depois de V o s consultar, s em Vs encontro reduto para a minha a l m a ; nele se renem os meus pensamentos dispersos, e n a d a de mim se afasta de Vs. A l g u m a s vezes, submergis-me em devoo interior deveras extraordinria, que me transporta a uma inexplicvel doura, a qual, se em mim atingisse o fastigio, alcanaria uma nota misteriosa que j no pertence a esta v i d a " . m
D . A ordem moral e social. A doutrina de Agostinho supe a existncia de uma ordem objetiva. O reconhecimento desta ordem a condio do retorno, tanto do entendimento como da vontade. A vontade a reconhece, evitando perturb-la e respeitando-a em suas aes, mediante uma reta apreciao dos valores e por uma conduta consentnea com eles: "ita bene agit in his anima rationalis, si ordinem servet, et distinguendo, eligendo, pendendo subdat minora maioribus, corporalia spiritualibus, inferiora superioribus, temporalia sempiternis, ne superiorum neglectu et appetitu inferiorum (quoniam hinc fit ipsa deterior) et se et corpus suum mittat in peius, sed potius ordinata caritate se et corpus suum convertat in melius". 130 O fim da moralidade a manuteno da reta ordem, pois esta se identifica bondade objetiva, ao passo que o mal consiste n a transgresso culposa desta ordem: "cum enim sint omnes substantiae naturaliter bonae, ordo in eis laudatus honoratur, perversitas culpata damnatur". m Mesmo quando a reta ordem perturbada pela vontade humana, a justia divina suficientemente poderosa para restaurar o equilbrio numa ordem superior: "qui enim iniuste se ordinat in peccatis, iuste ordinatur in poenis".
Esta identificao do ideal moral com a reta ordem revela uma forte influncia do helenismo, ou talvez mais exatamente, do ideal grego da beleza, e do ideal r o m a n o da lei. A natureza, a vida, todo o cosmos, enfim, s o perfeitamente ordenados. T u d o regido pela lei natural, pelo nmero e pela proporo. O resultado uma ordem admirvel, apta a deleitar a vista e o entendimento. Esta ordem o efeito da vontade divina, que a lei interna regendo as criaturas em harmonia com as normas eternas da divina sabedoria. Pois, como vimos, h uma unio Intima entre o nmero ou principio d a ordem, e a sabedoria.
Donde se segue que as normas da razo e da vontade remontam mesma fonte. Ambas possuem, por isso, a mesma validade, a mesma evidncia e a mesma necessidade. O que vale das leis matemticas, vale igualmente das
' Segundo a traduo de J. Oliveira Epistol. 140, 2, 4; t. 33, 540. Ibid. ibid. Santos, S. J. e A. Ambrsio de Pina, S. J., p. 289.
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normas ticas seguintes: Deve-se viver segundo a justia; deve-se antepor as coisas superiores s inferiores; deve-se atribuir idntico valor s coisas iguais sempre que se encontrem num mesmo nvel; deve-se dar a cada q u a l o s e u . m Por conseguinte, as leis morais no diferem, em sua origem, d a s leis d a cincia, embora difiram delas nas suas conseqncias prticas. As leis da tica, pelo menos as normas supremas, no necessitam de p r o v a ; exige-se, isto sim, que lhes conformemos a nossa conduta. E isso depende exclusivamente da nossa vontade de cumprir o dever. Nem por isso A g o s t i n h o deixou de sentir profundamente a sua prpria responsabilidade, bem como a discrepncia entre a aceitao incondicional das normas teorticas por u m lado, e a imperfeio d e sua observncia por outro: " A alma que pondera atentamente a fora e o poder dos nmeros parecer muito indigno e lamentvel que, embora a s u a cincia a capacite a c o m p o r corretamente um verso, ou a fazer soar harmoniosamente a lira, a sua vida, e ela mesma q u e uma alma enverede por um caminho falso, e, sob o domnio da luxria, se produza nela a m a i s ruidosa e vergonhosa desarmonia dos vcios. Se, ao invs, ela fizer um esforo sincero e tratar de pr ordem, harmonia e beleza em sua casa, poder ousar contemplar a Deus e a prpria fonte de que emana tudo o que verdadeiro: o Pai da Verdade".
Por isso a tarefa moral do homem resume-se na execuo fiel da ordem das normas eternas.
1. A ordem moral A fora motriz para a realizao da ordem moral o amor, que remata na caridade. Sua fora orientadora a vontade, que culmina na liberdade. Sua consumao a ordem da caridade.
/. Amor
caridade.
vontade.
A experincia atesta a presena, em cada um de ns, de um princpio de atividade, que a vontade. Esta no forma parte do homem, maneira de qualquer outra potncia da a l m a ; antes, ela est na prpria raiz d o seu ser, a ponto de podermos identific-lo copi sua vontade: "Voluntas est q u i p p e in omnibus; immo omnes nihil aliud quam voluntates sunt". 1 3 5 Para A g o s t i n h o todas as afeies e sentimentos d a alma so outras tantas manifestaes d a vontade. O s afetos bsicos da a l m a so " o desejo, a alegria, o medo e a tristeza". O desejo um aquiescer tendncia d a vontade para um objeto qualquer. A alegria a complacncia na posse de um objeto da vontade. O temor o sentimento pelo q u a l a vontade se retrai e afasta de u m a coisa. A tristeza a averso da vontade por um mal i n f l i g i d o . m E m s u m a , todas as afeies d a alma consistem na aceitao ou na rejeio, pela vontade, de algo bom ou mau.
Qual a causa desses movimentos da vontade? U m a referncia fsica grega far-nos- compreender a resposta. Todo corpo tende ao seu lugar natural em virtude do seu prprio peso. Assim o fogo tende para o alto, e
De lib. arb. 2, 10, 28; 1256. De ord. 2. 19, 50; 182, 19 ss. s De clv. Del XIV, 6; 11, 15 s. = Ibid.
A ORDEM MORAL
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a terra para b a i x o ; a g u a e o ar, p o r sua vez, encaminham-se para um lugar intermdio entre o fogo e a terra. Pois bem: tambm a vontade tem seu " p e s o " : o seu amor. " P o n d u s meum, amor meus; eo feror quocumque feror".m D a decorrem algumas conseqncias importantes. O amor a prpria essncia do ho/nem, e por isso ele no encontra repouso enquanto n o encontrar o seu "lugar". At esse momento o amor permanece inquieto: " D a mihi vacantem amorem et nihil operantem": um ser capaz de a m a r tende, forosamente, quer ao bem, quer ao mal. E visto que o amor uma atividade decorrente do prprio ser humano, ele no pode deixar de ser algo de aprecivel. Donde se segue que tudo quanto se faz por amor se faz com prazer. O amor a alegria ontolgica mais profunda. Ele n o pode deixar de atuar, at mesmo na ausncia do seu objeto. Neste caso ele visa ao ignoto e ao distante; torna-se u m a espcie de nostalgia ou saudade d o amor: tem-se a m o r ao prprio amor. Esta a venturosa inquietao da juventude, to bem descrita por Agostinho. Durante a sua estadia em Cartago, o amor pecaminoso solicitava-o de todos os lados. Ainda no a m a v a , mas j "amava o a m o r " (gostava de a m a r ) : " N o n d u m a m a b a m et amare a m a b a m " . E gost a n d o de amar, procurava um objeto para esse amor: " a m a n s a m a r e " . 0 "
Portanto, seria uma insensatez querer apartar o ho/nem do seu amor. Se h um problema, este n o diz respeito ao amor como tal, nem necessidade de amar, mas unicamente ao objeto do amor. "Porventura se vos diz q u e n o deveis amar coisa a l g u m a ? D e modo a l g u m ! Imveis, mortos, abominveis e miserveis: eis o que seramos se no amssemos. A m a , pois, mas atende ao que digno do teu a m o r ! " " 1
2. A
caridade.
O problema central da moralidade , portanto, o da reta escolha das coisas a serem amadas. No que haja a menor dvida quanto ao objeto ltimo do nosso querer: este no pode ser outro que o prprio Deus, segundo vimos na metafsica. Trata-se apenas de determinar e de querer o que realmente apto a conduzir-nos a Ele. Ora, o que pode levar-nos a Deus a "caritas", ou seja, o amor a Deus.
A caridade consiste principalmente num peso interior que atrai a alma para Deus. Por outro lado, ela se diferencia de todas as outras modalidades de " a m o r " , pelo fato de referir-se exclusivamente a seres pessoais. O amor a u m a pessoa difere do amor a uma simples coisa. A m a m o s as coisas em ateno nossa prpria pessoa, a cujo servio elas perdem sua existncia, como sucede com uma iguaria que se a m a e se consome. O a m o r puro, sincero e generoso a um ser pessoal, ao contrrio, visa a pessoa como tal, e em si mesma. O que no quer dizer que a caridade n o atente tambm ao seu prprio bem.
A m a r sinceramente a outrem significa am-lo como a ns mesmos, o que s possvel num plano de igualdade: quer elevando-o ao nosso nvel, quer elevando-nos ao plano da pessoa amada.
Conf. X I I I , 9, 10; 351, 24 s. = Enarrat. in Ps. 31, 2, 5; t. 36, 260. De bono viduit. 21, 26; t. 40, 448. *> Cont. I I I , 1, 1; 43, 16 e 18. Cf. II, 2, 2; 29, 16. Enarrat. In Ps. 31, 2, 5; t. 36, 260. = In Epist. Joh. ad P. tr. 8, 4 e 5; t.35, 2038.
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S. AGOSTINHO, MESTRE D O
OCIDENTE
A igualdade no amor ao prximo. Devemos amar os pobres; n o porque nos proporcionam ocasio p a r a dar esmolas; nem mesmo se deve desejar q u e h a j a pobres para se poder praticar as obras de misericrdia. " D s de comer aos que tm fome; melhor seria que no houvesse famintos, nem ningum que necessitasse dos teus prstimos. D s de vestir aos n u s ; seria mais grato a o cu se todos os homens dispusessem de vesturios e n o fosse necessrio dar de vestir a ningum. T r a t a de eliminar a misria entre os homens, e assim as obras de misericrdia sero suprfluas. Crs que isto teria o efeito de extinguir o ardor da caridade? Ao contrrio: h maior perfeio em a m a r um homem feliz a quem nada se pode d a r ; um tal se a m a com amor mais p u r o e m a i s sincero. Com efeito, quem d esmolas ao pobre talvez o faa com o desejo secreto de domin-lo, de sujeit-lo a si p r p r i o . . . O que se deve desejar que ele se torne igual a ns: 'Opta aequalem!' T u a aspirao deve ser esta: que ambos estejais sujeitos quele a quem n a d a podeis d a r " . A a l m a da caridade o querer bem, a benevolncia, e n o a vontade de prestar benefcios. No obstante isso, a caridade nunca deixa de querer tambm o seu prprio bern. Pois de sua natureza aspirar igualdade. M a s a igualdade seria lesada se nos sacrificssemos totalmente ao objeto do nosso amor. Todo amor interpessoal reclama reciprocidade. Aquele que ama exprime o seu amor por meio de sinais, e espera que seja retribudo com amor. O a m o r significa uma c o m u n h o de vida entre d u a s almas. S assim se explica aquela mistura singular de egosmo e generosidade, to caracterstica do amor. O amante e o a m a d o s o uma s coisa, e por isso que podem amar-se como a si mesmos: " Q u i d ergo amor, nisi quaedam vita duo aliqua copulans, vel copulare a p p e t e n s " ? * "
A g o r a compreendemos tambm a essncia do amor a Deus. Entre o amor a Deus e o amor aos homens h um elemento comum: o amor a o bem. Portanto, o verdadeiro amor sempre ter p o r objeto o ser e o bem. O r a , Deus o sumo bem e o ser p o r excelncia. Logo, Ele merece ser amado sobre todas as coisas. D o n d e decorre u m a diferena no objeto do amor, importando necessariamente n u m a diferena n o seio do prprio amor. E' justo que a m e m o s o prximo como a n s mesmos, pois, enquanto bem, ele se encontra n u m mesmo nvel conosco. A m a r a Deus, porm, a m a r o bem como tal. J n o pode haver questo de igualdade entre o amante e o amado. P a r a a m a r a Deus convenientemente, devemos am-Lo de m o d o absoluto, isto , n o com igualdade m a s com desigualdade. O que significa, em primeiro lugar, que importa am-Lo mais que a ns mesmos. E a i n d a : ,de modo absoluto, sem esperana de retribuio e sem comparao. N o amor inter-humano a justia reclama a igualdade. A mesma justia exige que Deus seja o objeto absoluto do nosso amor. N o h comparao possvel entre o amor a Deus e o amor a ns mesmos. Pelo que devemos a m a r a D e u s de um m o d o absoluto e infinito. A medida do amor a Deus o a m o r sem medida: " I p s e m o d u s est sine m o d o a m a r e " . m M a s como conciliar esta exigncia com o conceito do a m o r ? N o implica ela uma quase-aniquilao do prprio eu? De modo nenhum. N o presente caso, esquecer-se eqivale a encontrar-se, e perder-se, a ganhar-se. Pois estamos em face do bem absoluto: possui-Lo possuir tudo. Q u e m O possui no necessita de mais nada. Pois quem quisesse algum outro bem, acima e alm do bem absoluto, ver-se-ia privado daquele outro b e m ; em outras palavras: j n o possuiria o bem absoluto. T u d o o que se deseja possuir alm d o bem supremo s serve p a r a entravar o amor a este mesmo bem supremo.
Ibid. De Trin. V I I I , 10. 14; 960; cf. a experincia m Epist. 109, 2 (Severo); t. 33, 419 pessoal de Agostinho: Conl. IV, 6, I I ; 72.
A ORDEM MORAL
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Logo, p a r a entrar na plena posse do bem perfeito mister q u e a a l m a se esquea perfeitamente de si mesma. Nisto est o genuno a m o r a Deus. Esta a nica forma de amor livre a Deus, e a nica que traz consigo a segurana da retribuio. Este amor, que livremente se entrega, assegurandose assim da posse do seu objeto, o que se c h a m a caridade.
3. A caridade, o cerne da moral. A caridade no apenas o corao da moralidade; ela a prpria vida moral. O comeo do amor o comeo da justia, o progresso no amor o progresso na justia, a perfeio do amor a perfeio da justia. De fato, como poderia o perfeito amor a o bem absoluto deixar de ser perfeita justia? D o m i n a d a pelo amor, a alma cumpre cabalmente a lei divina. Amar e fazer o bem lhe so sinnimos: "Dilige et quod vis f a c " . "
Claro est que uma caridade to perfeita n o derroga, em absoluto, os preceitos morais. T a m p o u c o se deve confundi-la com um quietismo comodista e inativo. A caridade deve dominar a vida moral. Corretamente interpretada, a frmula " D i l i g e et quod vis fac" s admite um sentido: se amas de verdade, no poders deixar de fazer o bem. Q u e m diz caridade, diz a m o r ; quem diz amor, diz vontade; quem diz vontade, diz atividade. Assim o a m o r , por sua mesma natureza, tende a traduzir-se em atos.
liberdade.
Para Agostinho a existncia da vontade livre (ou do "liberum arbitrum") jamais chegou a ser um problema. Trata-se, a seu ver, de uma verdade primria e evidente, e portanto incontestvel. Temos conscincia de nos determinarmos a ns mesmos e de sermos responsveis por nossos a t o s . " O problema propriamente agostiniano diz respeito ao uso desta vontade livre, bem como ao seu valor e sua bondade. Qual a razo de ser da vontade, e como conquista ela a sua perfeio na liberdade? 1. O poder da vontade para optar livremente entre o bem e o mal baseia-se na sua aptido para participar da felicidade.
Vista em si mesma, a vontade um valor neutro, pois podemos utilizla tanto para o bem como para o mal. A vontade que opta pelo m a l , torna-se m ; a que escolhe o bem, torna-se boa. Por isso no se p o d e cham-la de boa sem primeiro determin-la mais de perto. Na hierarquia dos valores ela medeia entre o sumo bem e os bens inferiores: "Voluntas ... mdium bonum est". Perguntar-se-: N o ser a vontade um bem perigoso, visto que p o d e m o s servir-nos dela para fazer o m a l ? D e modo nenhum. Sabemos que o nosso destino a participao na felicidade, o que pressupe a presena, em ns,
Cf. Sermo 34, 4, 7; t. 38, 211 s. Cf. Ep. 155, 4, 14-15; t. 33, 672. De natura et gratia 70,84; t. 44, 290. = In Ep. Joh. ad P. 7, 8; t. 35, 2033. " Conf. 7, 3, 5; 144, 8 s. De llb. arb. 2, 19, 52; 1268.
m
192
ile unia vontade capaz de tomar posse desta felicidade. A o contrrio do sumo bem e da contemplao da verdade, que so igualmente acessveis a todos, a felicidade significa um bem prprio e pessoal. E ' verdade que no h felicidade seno na posse d a verdade e do bem s u p r e m o s ; mas necessrio q u e esta felicidade decorrente do objeto comum a todos se transforme em propriedade pessoal. O que pressupe a interveno ativa da vontade. M i n h a felicidade deve ser, na realidade, minha. N o posso ser feliz seno na minha felicidade, como tu s o podes ser na t u a : " B e a t i t u d i n e autem alterius hominis non fit alter beatus". Entretanto, assim c o m o a vontade pode fazer seus estes bens, ela pode t a m b m rejeit-los e regozijar-se egoisticamente no seu prprio bem, ao invs de buscar a felicidade no bem incomutvel e c o m u m a todos: e nisto consiste o pecado: " V o l u n t a s autem aversa ab incommutabili et communi bono, et conversa ad proprium bonum, aut ad exterius, a u t ad inferius, peccat".*" E ' o que sucede q u a n d o a vontade aspira a governar-se por si mesma, ou q u a n d o procura conhecer o que n o de sua c o n t a , ou ainda, q u a n d o sucumbe aos apetites da carne. E assim, pela soberba, a v curiosidade e o vcio, o homem se exclui a si mesmo da verdadeira vida, passando a levar u m a vida de morte. Este castigo justo, visto tratar-se tambm aqui, de efeitos da vontade. Como se v, a liberdade para o bem, que inclui, como reverso, a liberdade para o mal, radica, em ltima anlise, na possibilidade da felicidade.
2. Liberdade b o a
vontade.
Embora livre, a vontade nem sempre logra fazer o bem. E m outras palavras, nem sempre est livre dos obstculos oriundos da culpa original e do pecado pessoal. No gozaremos de liberdade enquanto no nos desembaraarmos destes empecilhos.
O homem pde cair livremente, isto , por sua prpria vontade, mas foi incapaz de reerguer-se por suas prprias foras e sem a graa de Deus. P a r a poder recuperar a justia perfeita que possura no paraso, foi preciso que Deus o restitusse ao estado de liberdade com seu auxilio gratuito. O livre arbtrio inamissvel, mas a fora de praticar o bem procede de Deus: " Q u i s enim nostrum dicat, quod primi hominis peccato perierit liberum arbitrium de humano genere? Libertas quidem periit per peccatum, sed illa quae in paradiso fuit, habendi plenam cum immortalitate iustitiam". Nesta doutrina se retrata, mais uma vez, a experincia pessoal de Agostinho. Experimentara ele, em si mesmo, a incapacidade de fazer o bem, a despeito do conhecimento que dele t i n h a . D e p o i s q u e S o Paulo lhe dera a conhecer o seu estado de alma, submetera-se humildemente graa e, em conseqncia, a sua d o u t r i n a veio a culminar na frase: " D a quod iubes, et iube quod vis". E' a g r a a de Deus, e s ela, q u e nos torna verdadeiramente livres. M a s nem p o r isso a liberdade deixa de supor o livre arbtrio, pois ela no seno o livre arbtrio libertado. E ' de Deus que vem a fora p a r a fazer o bem mas ao livre arbtrio que i n c u m b e faz-lo: "Adiuvat ut faciat cui i u b e t " . " *
Ibid.; 1269. Ibid. 53; 1269. Ibid. Ibid. 2, 20, 54; 1270. Contra duas Epist. Pclag. 1, 2, 5; t. 44, 552. Conf. V I I I , 8-12; 185-192. " ' D e grat. et libero arb. 15, 31; t. 44 , 899.
M
A ORDEM MORAL
193
Ressalta assim, uma vez mais, a unidade profunda da doutrina agostiniana. Criatura alguma auto-suficiente, quer para existir, para conhecer ou para viver. Todo o bem procede de D e u s : a existncia pela criao, a verdade pela iluminao, a virtude ou a retido da vontade por uma como iluminao ou fortalecimento de ordem moral. Todo o nosso ser depende de Deus: nossa existncia de Sua eternidade, nosso conhecimento das razes eternas de Sua sabedoria, e nossa vida moral do Seu amor. Volvemos, assim, quela profunda vivncia inicial de Agostinho, ao desvendar-se-Ihe, por intermdio de Plotino, a autntica realidade do mundo espiritual: " Q u i novit veritatem, novit eam (lucem), et qui novit eam, novit aeternitatem. Caritas novit eam. O aeterna veritas, et vera caritas et cara aeternitas!"
I I I . A ordem da
caridade.
A fim de lanar alguma luz sobre a maneira em que o homem individual chega a uma vida moral perfeita, importa atender a dois conceitos fundamentais de toda a filosofia agostiniana e, em particular, de toda a tica agostiniana. Trata-se dos conceitos do "uti" e do " f r u i " . 1. O " u t i " e o "frui". A vida moral se traduz, forosamente, numa seqncia de atos individuais. Cada um deles implica uma tomada de posio face s coisas: ou frumos delas ou delas nos utilizamos. " F r u i r " significa afeioar-se a uma coisa por amor a ela mesma: "Frui enim est amore alicui rei inhaerere propter seipsam". "Usar", ao contrrio, servirse de algo para alcanar um objeto que se ama: " U t i autem, quod in usum venerit ad id quod amas obtinendum referre..."Mas Agostinho acrescenta, muito a propsito: "Si tamen amandum est!": "suposto que tal objeto seja digno de ser amado", pois um uso ilcito deveria antes chamar-se de excesso ou abuso.
Esta distino dos atos pode reduzir-se, em ltima anlise, a uma distino entre os prprios objetos. D e que podemos fruir? E m derradeira instncia, s de Deus, isto , da D i v i n a Trindade: do Pai, do Filho e do Esprito S a n t o . P o i s Deus o sumo bem, acima do qual no se pode conceber outro m a i o r : " N a m cum ille unus cogitatur deorum Deus, . . . ta cogitatur, ut a l i q u i d quo nihil melius sit atque sublimius, illa cogitatio conetur atting e r e " . B 1 Donde a frmula clssica, que Agostinho no se cansa de repetir: no se deve fruir seno de Deus: "Solo Deo fruendum e s t " . ! E
Conf. V I I . 10, 16; 157, 14 s. De doctr. christ. 1, 4, 4; t. 34, 20. Ibid. 5, 5 ; 21. Cf. 33, 37 ; 33. 151 Ibid. 7, 7, 22. Cf. S. Anselmo! 131 Ibid. 22, 20; 26.
194
Sendo que s Deus merece um amor ilimitado, com o fim de repousar nesse objeto por excelncia do amor, e de fruir dele, mister pormos certos limites ao nosso amor a outros objetos, consoante o valor de cada um deles. Nossa primeira tarefa moral , pois, a de ajuizar de todas as coisas segundo o seu verdadeiro valor, e de conformar o nosso amor a esta valorao. O resultado de tal procedimento ser a instaurao da ordem do amor pela prtica da virtude, que outra coisa no seno o amor bem ordenado: "Unde mihi videtur, quod definitio brevis et vera virtutis: ordo est amoris". O vcio, por sua vez, a inverso desta ordem do amor.
E assim o problema da moralidade se resume na pergunta: Q u e espcie de ordem se deve observar no a m o r ? D e um modo geral se pode dizer: no devemos a m a r o que indigno do nosso amor, nem deixar de a m a r o que merece ser a m a d o ; no se deve amar com um amor maior o q u e s merece amor menor, nem amar com um amor menor o que merece ser a m a d o com amor m a i o r ; tambm no devemos a m a r indiscriminadamente o q u e deve ser amado com discrio; e, enfim, no devemos ter amor maior ou menor ao que deve ser a m a d o indistintamente (aeque). Se atendermos a esta ordem, viveremos j u s t a e santamente: "Ille autem iuste et sancte vivit, qui rerum integer aestimator est: ipse est autem qui ordinatam dilectionem h a b e t " . m
O grau nfimo se constitui dos bens externos, quais sejam: os alimentos, o vesturio, o ouro e a prata. Trata-se de verdadeiros bens, p o r terem sido criados por D e u s ; seria um erro t-los em conta de males em si mesmos, como faziam os maniqueus. M a u s o abuso de tais bens. D o n d e se deriva, muito naturalmente, o tema cristo d o uso honesto das r i q u e z a s . " " Acima desses bens externos esto os ho/nens, nossos semelhantes. Tambm o p r x i m o um bem, um fim, e portanto merecedor de nosso amor. Se possussemos bens suprfluos, e n o houvesse razo para auxiliar mais a este q u e quele, ento caberia sorte determinar a quem teramos de socorrer em primeiro lugar. Nas circunstncias atuais, porm, j n o h necessidade de recorrer sorte. A p r p r i a natureza nos ensina q u e de obrigao interessarmo-nos em primeiro l u g a r por nossos parentes e a m i g o s . " "
E' nosso dever, pois, amar o p r x i m o como a ns mesmos. M a s como deve ser este amor a ns mesmos? O homem composto de u m corpo e de uma a l m a . Tambm o corpo u m bem. Cada qual o a m a , e ningum odeia sua p r p r i a carne ( E f 5,29). Se lhe impomos algum sofrimento, uma interveno cirrgica, por exemplo, ou se o foramos a tomar um remdio amargo, fazemo-lo com o nico fim de prover sua sade. T o d a v i a , o corpo no a p a r t e mais excelente do nosso ser. O homem a l g o de grande: " M a g n a q u a e d a m res est h o m o " , posto que criado imagem e semelhana de Deus. E ' imagem de Deus, no tanto por seu corpo, quanto pela excelsa dignidade d e sua alma racional. L o g o , cumpre d a r preferncia alma. Mas de que m a n e i r a se h de amar esta a l m a ? Por si mesma, o u em vista de outra c o i s a ? A resposta inequvoca: a alma n o o bem supremo, e por isso no deve fruir de si mesma, m a s "usar-se" para Deus. D o n d e o mandamento de a m a r a Deus de toda a alma. O que significa que no se deve reter coisa alguma apta a interpor-se entre Deus e a a l m a . O homem
De civ. Del X V , 22; 109, 5. De doctr. chrlst. 1, 27, 28; t. 34,29. Sermo 50, 5, 7; t. 38, 329. ** De doctr. christ. 1, 28, 29; t. 34, 30.
A ORDEM MORAL
deve consagrar-se excelncia. inteiramente a Deus. Esta a razo principal de
195
sua
3. A perfeio do amor na
liberdade.
O respeito a esta ordem do amor tem por corolrio a mais perfeita sujeio ao Criador. E esta sujeio nos torna livres em face de todas as criaturas.
S agora q u e o conceito do " u t i " assume o seu significado m a i s profundo. O indivduo q u e apenas usufrui um bem n o tem o direito de d i s p o r dele seno em vista de outro bem. M a s aquele que " u s a " um bem, d i s p e plenamente dele, exerce verdadeiro domnio sobre ele; enfim, senhor de tal bem. Ora, ser senhor de alguma coisa significa dispor livremente dela. Logo, o cristo q u e faz uso de todas as coisas livre em face de t u d o . O mais alto g r a u de liberdade consiste em no estar sujeito s e n o a Deus: "illo solo dominante liberrimus". ** Eis a razo p o r que a verdadeira observncia da lei a liberdade nascida do amor. H , com efeito, duas maneiras de se cumprir a lei: por t e m o r ou por amor. E n q u a n t o era cumprida por temor, a vontade permanecia n a escravido; embora presente, ela no agia com liberdade. Com o advento d a graa e do amor, porm, a lei passa a ser aceita e a m a d a por a m o r d e Deus. O homem j n o se deixa conduzir cegamente pela lei, seno q u e lhe adere de livre e espontnea vontade: "ducimini sed sequimini". Pedra viva da casa de D e u s , no permite que o coloquem em qualquer l u g a r ; prefere cooperar ativamente na edificao do reino de Deus, colocando-se espontaneamente no l u g a r que lhe pertence: " l a p i d e s v i v i " . * '
2. A ordem social: o Estado de Deus A ordem social no seno um prolongamento da ordem moral fundamental, ou seja, da reta ordem do amor. A concepo agostiniana da moralidade ou da vida feliz inseparvel de sua doutrina social: a vida moral e a felicidade pressupem uma vida em comunidade.
I. O amor
1. A funo d o
como fundamento
a m o r na formao da
da comunidade
comunidade.
social.
Esta funo do amor consta da nossa experincia cotidiana. T o d o s j tivemos oportunidade de verificar, ao assistir a um espetculo teatral, c o m o um belo drama costuma criar uma atmosfera de m t u a simpatia entre os espectadores. O aficionado do teatro que a m a um ator particular, estende, muito naturalmente, a sua estima a todos quantos compartilham do m e s m o sentimento. E, q u a n t o mais alta a sua estima pelo ator em questo, t a n t o mais se esforar p o r faz-lo amar e admirar do maior nmero possvel de pessoas. Procurar excitar os que manifestam pouco entusiasmo, e irritar-se-
M
Ibid. I , 22-25; 21-26; 26-29. De mor. eccl. 1, 12, 21; t. 32, 1320. Serm. 156, 12, 13; t. 38, 857.
196
S. AGOSTINHO, MESTRE DO
OCIDENTE
contra os que o u s a m critic-lo. Como se v, o a m o r uma fora plasmadora de sentimentos comunitrios. D-se o mesmo com o amor de Deus. O homem q u e tem amor a Deus, h de t-lo t a m b m aos seus semelhantes. Ama-os c o m o a si mesmo, por considerao a D e u s . Seu desejo que eles amem a Deus, mas com um amor mais forte d o que as coisas criadas poderiam despertar, pois a m a r a Deus, e fruir dele, ser feliz. P o r isso o justo a m a a todos, em D e u s , sem excetuar os p r p r i o s inimigos. Com efeito, n o tem r a z o para tem-los, pois no podem arrebatar-lhe o seu Deus; antes, ele os deplora, por v-los separados do amor d e Deus. T a m b m eles o a m a r i a m se decidissem converter-se ao seu amor. 2. O objetivo d e toda sociedade: a paz.
Toda sociedade, boa ou m , visa a um s objetivo: a paz. N i n g u m que saiba o que seja a paz, pode aborrec-la. 5,1 A inexistncia de sociedades sem guerras no contrasta seno aparentemente com este fato. Pois t a m b m as guerras visam sempre a paz, isto : o restabelecimento ou a conservao da ordem. Isto vale at mesmo para o agressor que perturba violentamente a paz de outra nao. Recorre guerra, no porque aborrece a paz, m a s porque anseia amold-la aos seus prprios caprichos. E, se existisse um monstro to feroz e abominvel como o " C a c o " de Vergilio* a , que no-lo descreve como averso a todo trato social, e cheio de d i o para com a humanidade inteira, n o se pode imaginar que ele n o desejasse viver em paz, pelo menos em sua prpria caverna." 1 E' bvio, pois, que todos os homens aspiram p a z , e que ningum pode ser to perverso que n o queira viver em paz. H a n i m a i s ferozes q u e vivem solitrios e evitam a companhia dos outros animais d a mesma espcie. M a s isto no os impede de se juntarem em determinadas pocas do ano, levados pelo impulso procriador e pela necessidade de proteger suas crias. Q u a n t o mais no o h o m e m arrastado pelas leis da sua natureza a formar sociedade com todos os homens, e a conviver o mais pacificamente possvel com eles! Se verdade que esta espcie de paz vem acompanhada, por vezes, da soberba e da insubmisso a Deus, e por isso deseja impor, pela violncia, o seu senhorio em lugar do dele, ela no deixa contudo de ser u m a espcie de p a z : " O d i t ergo iustam pacem Dei et amat i n i q u a m pacem s u a m . N o n a m a r e tamen qualemcumque pacem nullo modo potest. Nullius quippe vitium ita contra naturam est, ut naturae deleat etiam extrema vestigia". ** 3. A ordem, condio d a verdadeira paz.
H , pois, u m a p a z justa ou boa, e u m a p a z falsa, uma paz do j u s t o , e u m a paz do injusto. A condio da p a z justa a reta ordem. A ordem a disposio que atribui a todas as coisas o l u g a r que lhes corresponde. Assim, a paz d o corpo a ordenada complexo de suas partes; a da alma racional a ordenada calma d e seus apetites; a p a z d a alma racional a ordenada harmonia entre o conhecimento e a a o ; a paz do corpo e d a alma, a vida bem ordenada e a sade corporal; a p a z entre o homem mortal e Deus a obedincia ordenada pela f sob a lei eterna; a paz dos homens entre si, sua o r d e n a d a concrdia: "Pax hominum ordinata concordia, pax d o m u s ordinata imperandi oboediendique concordia cohabitantium, pax civitatis ordinata imperandi atque oboediendi civium, pax caelestis civitatis ordinatissima et
*> De doctr. christ. > De civ. Dei X I X , Enida VIII, 195 De civ. Dei X I X , i b i d . ; 393, 15 s. 1, 29, 30; t. 34, 30. 12; 390. ss. 12; 391 s.
197
concordissima societas fruendi D e o et invicem in D e o " . D o n d e a frmula geral: " P a x omnium rerum tranquillitas o r d i n i s " . A paz d e todas as coisas a tranqilidade que nasce da ordem; e a ordem a disposio que s coisas diferentes e s iguais determina o lugar que lhes compete: "Ordo est parium dispariumque rerum sua cuique loca tribuens dispositio". A preservao desta ordem d a paz na sociedade h u m a n a depende d a obedincia s seguintes n o r m a s : primeiro: no fazer mal a n i n g u m ; segundo: socorrer a todos os que padecem necessidades. Estas normas o b r i g a m a cuidar primeiro dos prprios familiares, asseg u r a n d o assim a paz domstica. O marido deve cuidar d a esposa, os pais dos filhos, os patres dos criados. P o r outro lado, a reta ordem exige que aqueles que so objeto de tais cuidados prestem obedincia aos que cuidam deles; assim, as mulheres devem obedecer aos maridos, os filhos aos pais, os criados aos patres. Contudo, esta relao puramente natural, estabelecida pela obedincia, grandemente suavizada e enobrecida na casa do justo, que vive da f. Pois n a famlia crist, os que parecem m a n d a r so na realidade os servos dos outros: "Sed in domo iusti viventis ex fide et adhuc ab illa caelesti civitate peregrinantis etiam qui imperant serviunt eis, quibus videntur imperare. Neque enim dominandi cupiditate imperant, sed officio consulendi, nec principiandi superbia, sed providendi misericrdia". O dever de ministrar, porm, no derroga ao direito e ao dever de castigar os que perturbam a paz. E' dever do pai de famlia lanar mo de castigos adequados, a fim de corrigir os culpados e escarmentar aos outros. Ademais, a paz domstica redunda em proveito da paz e d a ordem cvicas. Por esta razo o pai de famlia deve cuidar que t a m b m as leis sejam respeitadas pelos membros de sua famlia. ** A s mesmas regras deveriam presidir grande famlia do Estado. Acontece, porm, que no h Estado algum que de fato se deixe reger pelo amor de Deus. E m todos os Estados podemos discernir uma d u p l a comunidade, que chamaremos, respectivamente, de Estado de Deus e Estado do Demnio.
11. O Estado
de Deus
e o Estado
do
Demnio.
Embora a famosa distino entre o Estado (ou Cidade, na antiga acepo do termo) de Deus e o Estado do D e m n i o lhe fosse sugerida pela Bblia, estes dois conceitos assumem, na pena de Agostinho, significado muito mais vasto, vindo a constituir-se numa viso panormica de toda a histria religiosa da humanidade. Releva notar, ainda, para melhor compreenso da citada distino, que o que o nosso Doutor tem em vista no so propriamente duas corporaes distintas e visveis, tais como o Estado terreno e a Igreja, enquanto organizao visvel, mas antes duas comunidades inspiradas em atitudes mentais e morais divergentes. Sem dvida, Agostinho pendia a ver no Estado "terreno" sobretudo se por "terreno" se entende o oposto de "divino" e, em especial, no Estado do seu tempo, uma expresso visvel do Estado do Demnio. Entretanto, ele no foi at ao ponto de afirmar que todos os Estados profanos so ins" " Ibid. Ibid.; Ibid. Esta s na qual Ibid. 13; 395, 6 ss. 395, 16. 14; 399, 21 s. Cf. tambm 15; 400, a atitude de Agostinho em face da escravatura. permitida a titulo de punio, sobretudo em conseqncia de uma guerra justa, os prisioneiros so reduzidos servido em lugar de serem mortos pelos vencedores. 16; 402.
198
tituies diablicas. Ao contrrio, sua convico que o Estado, como tal, uma instituio benfica, e at mesmo necessria para remediar o pecado (pelo menos no que se refere s leis**). N o s isso: o Estado um dom de Deus: "non tribuamus d a n d i regni atque imperii potestatem nisi Deo vero, qui dat felicitatem in regno caelorum solis piis; regnum vero terrenum et piis et i m p i i s . . . " "* 1. A definio de povo e de Estado. Toda sociedade pressupe um amor comum e visa um objetivo tambm c o m u m : a ordem da paz. E m vista disso, torna-se possvel dar uma definio de povo e de Estado suficientemente neutra para ser aplicvel a qualquer povo ou nao, quer boa ou m .
Ccero define o povo dizendo-o uma "sociedade fundada sobre direitos reconhecidos e sobre a comunidade de interesses": "Coetus multitudinis iuris consensu et utilitatis communione sociatus" ( R e p 1,25,39). E m rigor, tal definio n o se aplica ao Imprio R o m a n o . P o i s este desconheceu a verdadeira justia, q u e se revela na adorao de um s Deus. A definio de Ccero, Agostinho substitui esta outra: " P o p u l u s est coetus multitudinis rationalis rerum q u a s diligit concordi communione sociatus": " O povo o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos a m a d o s " . Portanto, o que faz com que os seres racionais venham a constituir um povo o amor a um bem comum compartilhado por todos. P a r a se a j u i z a r da ndole de um povo, basta saber o que ele ama. Segue-se, ainda, q u e um povo ser tanto melhor, quanto m a i s nobres forem as coisas que ama, e tanto pior, quanto menos nobres. Desse ponto de vista, os antigos Estados e Cidades, tais como os Estados romano, egpcio, babilnico e grego, n o se podem dizer bons, visto haverem desconhecido a verdadeira justia. N o obstante isso, constituam verdadeiros povos ou E s t a d o s . "
2. Diferenas entre o E s t a d o de Deus e o Estado terreno. H duas maneiras de nos utilizarmos das coisas temporais: ou as relacionamos em sua totalidade a um bem temporal e terreno, vale dizer: a uma paz terrena, ou as referimos a uma ordem transcendente e ultraterrana, isto : paz eterna e divina. Aquele o fim do Estado terreno, este, o do Estado de Deus: " O m n i s igitur usus rerum temporalium refertur ad fructum pacis terrenae in terrena rivitate: in caelesti autem civitate refertur ad fructum pacis aeternae". *" Os que se associam no amor quele fim terreno formam o Estado terreno ou Cidade do D e m n i o ; os demais, unidos pela caridade, formam o Estado de Deus ou Cidade celeste. Naqueles predomina o amor s coisas temporais, nestes, o amor a Deus na caridade.
Agostinho nos depara u m a descrio clssica dos dois " E s t a d o s " n o livro captulo 28 da Cidade d e Deus. Ei-la: " D o i s amores f u n d a r a m , pois,
Ideal do imperador cristo, ver ibid. 24; 2 6 0 .
XIV,
"
Cf. De Itb. arb. I , 15, 31 s.; 1237 . De civ. Dei V. 21; 256, 5 8. Para o De civ. X I X , 24; 419, 6. m Ibid. * Ibid. 14; 397, 27 s.
m
199
duas cidades, a saber: o amor de si levado at ao desprezo de D e u s , a terrena; o a m o r a Deus, levado at ao desprezo de si, a celestial. Gloriase a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glria dos homens e tem esta por mxima glria a Deus, testemunha de sua conscincia. Aquela ensoberbece-se em sua g l r i a e esta diz a seu D e u s : 'Sois minha glria e quem me exalta a cabea'. Naquela, seus prncipes e as naes avassaladas vem-se sob o j u g o da concupiscncia de d o m n i o ; nesta, servem em mtua caridade, os governantes, aconselhando, e os sditos, obedecendo. Aquela ama sua prpria fora em seus potentados; esta diz a seu Deus: 'A Ti hei de amar-Te, Senhor, que s minha fortaleza' (SI 17,2). Por isso, naquela, seus sbios, que vivem segundo o homem, no b u s c a r a m seno os bens do corpo, os da alma ou os de ambos, e os que c h e g a r a m a conhecer a Deus ' n o o honraram nem lhe d e r a m graas como a D e u s , m a s desvaneceram-se em seus pensamentos e obscureceu-se-lhes o nscio cor a o . . . , e adoraram e serviram a criatura e n o o Criador, para sempre bendito' ( R o m 1,21-25). N a Cidade de Deus, pelo contrrio, n o h sabedoria humana, m a s piedade, que funda o culto legtimo ao verdadeiro D e u s , espera de prmio na sociedade dos santos, d e homens e de anjos, 'com o fim de que Deus seja tudo em todas as coisas' (1 Cor 15,28)".
3. O convvio do Estado de Deus e d o Estado terreno. O estado de Deus uma comunidade espiritual. O mesmo vale do Estado terreno. H entre as duas comunidades ou Estados u m a distino de ordem espiritual, e no material. Materialmente, u m a se confunde com a outra, dada a ntima convivncia dos seus cidados. Contudo, embora faam uso das mesmas coisas, eles no visam a um mesmo fim. Tambm o Estado de Deus tem todo o interesse em manter a paz e a ordem naturais, razo por que no as perturbar enquanto no contrariarem a lei eterna. m
Ocorre em Agostinho um outro texto, igualmente clssico, sobre as relaes entre as duas comunidades, o qual poderia entitular-se: " D a s relaes entre Estado e I g r e j a " , ou, qui mais de acordo com o espirito do pensamento agostiniano: " D a s relaes entre a ordem sobrenatural, representada pela Igreja, e a ordem natural, representada pelo Estado": " A famlia d o s homens que n o vivem da f busca a paz terrena nos bens e comodidades desta vida. Por sua vez, a famlia dos homens que vivem da f espera nos bens futuros e eternos, segundo a promessa. U s a m dos bens terrenos e temporais como viajantes. N o os prendem nem desviam do caminho que leva a Deus, mas os sustentam a fim de que suportem com mais facilidade e n o aumentem o fardo do corpo corruptvel, que oprime a alma. O uso d o s bens necessrios a esta vida mortal , portanto, c o m u m a ambas as classes de homens e a ambas as casas, mas no uso c a d a qual tem fim p r p r i o e m o d o de pensar muito diverso do outro. Assim, a cidade terrena, q u e n o vive da f, apetece tambm a paz, porm firma a concrdia entre os cidados que m a n d a m e os que obedecem, para haver, quanto aos interesses d a vida mortal, certo concerto das vontades h u m a n a s . Mas a cidade celeste, ou melhor, a parte que peregrina neste vale e vive da f, usa dessa p a z p o r necessidade, at passar a mortalidade, que precisa de tal paz. P o r isso, enquanto est como viajante cativa na cidade terrena, onde recebeu a promessa de sua redeno e como penhor dela o d o m espiritual, no d u v i d a
Segundo a traduo de Oscar Paes Leme, Editora das Amricas, * " De civ. Del X I X , 26; 421. Cl. catech. Rud. 21, 37; t. 40, 337. 1961, t. II, pp. 285 s .
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em obedecer s leis regulamentadoras das coisas necessrias e do mantenimento d a vida mortal. C o m o a mortalidade lhes c o m u m , entre ambas as cidades h concrdia com relao a tais coisas. Acontece, porm, que a cidade terrena teve certos sbios condenados pela doutrina de Deus, s b i o s que, p o r conjeturas ou por artifcios dos demnios, disseram que deviam amistar muitos deuses com as coisas h u m a n a s . . . A cidade celeste, ao contrrio, conhece um s Deus, nico a quem se deve o culto e a servido, em g r e g o chamada 'latreia' ( a d o r a o ) , e pensa com piedade fiel n o ser devido seno a Deus. T a i s diferenas deram motivo a q u e essa cidade e a cidade terrena n o possam ter em comum as leis religiosas. P o r causa delas a cidade celeste se v na preciso de dissentir d a cidade terrestre, ser carga p a r a os que t i n h a m opinio contrria, e suportar-lhes a clera, o d i o e as violentas perseguies, a menos que a l g u m a s vezes refreie a animosidade dos inimigos com a m u l t i d o de fiis e sempre com o auxilio de D e u s . E n q u a n t o peregrina, a cidade celeste vai c h a m a n d o c i d a d o s por todas as naes e formando de todas as lnguas verdadeira cidade viajora. N o se preocupa com a diversidade de leis, de costumes nem de institutos, que destrem ou mantm a p a z terrena. Nada lhes suprime nem destri, antes os conserva e aceita; esse conjunto, embora diverso nas diferentes naes, encaminha-se a um s e mesmo fim, a paz terrena, se no impede que a R e l i g i o ensine deva ser a d o r a d o o Deus nico, verdadeiro e sumo. Em sua v i a g e m a cidade celeste usa t a m b m da paz terrena e das coisas necessrias relacionadas com a condio atual dos homens. Protege e deseja o acordo d e vontades entre os homens, q u a n t o possvel, deixando a salvo a piedade e a religio, e supedita a p a z terrena paz celeste, verdadeira paz, nica d i g n a de ser e de dizer-se p a z da criatura racional, a saber, a ordenadssima e concordssima unio p a r a gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em D e u s . . . " m
D a s consideraes sobre a natureza do Estado de Deus e d o Estado terreno, Agostinho dirige a vista para o papel histrico que lhes cabe no passado, no presente e no futuro, alando-se, assim, a uma interpretao realmente universal da histria. 1. Os graus de desenvolvimento d o homem velho e do novo, e os dois Estados. homem
J fizemos aluso distino entre o homem interior e o homem exterior. A esta distino corresponde uma dupla ordem: uma, externa ou corporal, e outra, interna ou espiritual. Dessas duas ordens arrancam os dois caminhos da humanidade, em demanda dos seus respectivos fins. O primeiro trilhado pelo homem velho, exterior e terreno, o segundo pelo homem novo, interior ou celestial.
Agostinho traa um paralelo entre o processo histrico da h u m a n i d a d e e o crescimento corporal e espiritual do homem individual. Vejamos c o m o se processa o crescimento do homem terreno. N o primeiro perodo de sua vida, todas as suas energias se pem a servio d a f u n o nutritiva. Seguem
na
versio
de
Oscar
Paes
Leme,
t. I I I , p. 176 s.
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se a segunda idade, ou infncia, que se caracteriza pelo despertar da memria. N a terceira idade, ou adolescncia, aparece a potncia procriadora. Na poca seguinte, ou juventude madura, inicia-se a participao ativa nos oficios pblicos e, com ela, a sujeio s leis. Nesta q u a d r a , o rigor das sanes e os castigos infligidos aos transgressores exercem sobre o homem uma coao servil, o que tem por efeito despertar nos n i m o s carnais uma sede t a n t o mais desenfreada de prazer, quanto o mal praticado revelia da proibio. Aps os trabalhos da juventude vem a idade a d u l t a (a quinta idade), que um perodo de relativa tranqilidade. E, finalmente, a sexta idade, ou velhice, com suas enfermidades e achaques, leva-o paulatinamente morte. T a l a vida do homem carnal, escravo da cobia d a s coisas temporais. Este o que se chama o homem velho, exterior e terreno, ainda que logre o que o vulgo denomina de felicidade, vivendo n u m a sociedade terrena bem organizada. Muitos s o os que, desde o bero sepultura, seguem este gnero de vida inteiramente terreno.
Outros, pelo contrrio, tratam de renascer de dentro, graas enxertia de um gnero de vida superior n o tronco da vida corporal. A i n d a que comecem necessariamente pela vida corporal e exterior, realiza-se neles um como segundo nascimento. Este renascimento pe em a o as foras puramente espirituais de uma vida nova que, graas ao crescimento na sabedoria, tem o efeito de tolher o crescimento do homem velho, chegando mesmo a extermin-lo na medida do necessrio, forando-o a evoluir em h a r m o n i a com as leis divinas. Tal o homem novo, interior e celestial, inoculado sobre o homem velho. Agostinho passa, ento, a descrever-lhe as sucessivas etapas, em exata correspondncia com as d a vida do homem terreno. Tambm a vida espiritual evolui, semelhana da vida corporal, mas com u m a diferena: suas idades no se contam por anos, mas pelos progressos realizados: "Iste dicitur novus homo, et interior et caelestis, habens et ipse proportione, non annis, sed provectibus distinctas quasdam spirituales aetates s u a s " . Como a criancinha, assim o homem renascido comea por nutrir-se de leite. Este primeiro alimento se lhe depara no seio generoso da histria, que o nutre com seus exemplos. E ' a idade da autoridade. N a segunda idade ele sacode o jugo da autoridade h u m a n a , a fim de d a r cumprimento s leis divinas, em obedincia aos ditames de sua prpria razo. E assim, avanando de perfeio em perfeio, o homem espiritual atinge, enfim, a stima idade, que a do descanso eterno e da bem-aventurana sem fim. Pois como o fim do homem velho a morte, o d o n o v o a vida eterna.
Tanto no Estado de Deus como no Estado terreno deparamos estas duas classes de homens, com seus respectivos processos evolutivos. E sendo que convivem em ambos os Estados, a vida de todo o gnero humano pode ser concebida como a de um indivduo cuja vida se estende de A d o at o fim dos tempos, e no qual aparecem os dois aspectos acima descritos.
U m a das duas classes compreende a massa dos mpios, q u e levam impressa a imagem do homem terrenal. A outra se compe de todos aqueles que se consagram ao culto do Deus nico e que, desde A d o at Joo Batista, praticaram na vida terrena u m a certa justia, inspirada n o temor servil. S u a histria est contida n o Antigo Testamento. O povo c u j a histria vem descrita n o Antigo Testamento, porm, apenas uma imagem d a humanidade d o N o v o Testamento, renascida em Cristo e detentora d a promessa do Reino dos Cus.1
m
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Existe, contudo, uma seqncia ininterrupta entre o Antigo e o N o v o Testamento. Este representa a sexta idade, que se consumar na stima, isto , na glria celeste. (Ocasionalmente, A g o s t i n h o v no nascimento de Cristo a inaugurao da idade juvenil; via de regra, porm, a vinda de Cristo d inicio sexta idade 7 \) N a histria do homem novo ou do E s t a d o d e Deus podem distinguir-se seis idades: A primeira principia com a criao do homem e vai de A d o a t N o ; a separao dos dois Estados j claramente visvel. A segunda se estende de N o at A b r a o ; como na primeira idade, os dois Estados d e r i v a m de um v a r o justo. N a terceira idade, que vai de Abrao ao rei D a v i , o Estado de Deus representado no povo hebraico. A quarta vai de D a v i at o cativeiro babilnico; a quinta, do cativeiro ao advento de Cristo. C o m Cristo desponta a sexta idade, em que a graa espiritual j conhecida, no passado, a um pequeno nmero de patriarcas e profetas, se manifesta a todas as n a e s . " "
2. O significado da histria. Nesta perspectiva, a histria universal assume o seu mais profundo significado. Ela uma descrio da evoluo dos dois Estados, dos seus conflitos, e da vitria final d o Estado de Deus sobre o Estado terreno. Tal histria j no um simples registro de fatos, e sim, interpretao deles, na perspectiva de uma luz superior.
Esta histria, Agostinho a delineou magistralmente na segunda p a r t e da " C i d a d e de D e u s " (livros 11-22). O s livros 11-14 descrevem a o r i g e m dos dois Estados n o m u n d o invisvel dos anjos. Com a criao dos espritos anglicos instituiu-se o Estado de Deus, e com a queda dos a n j o s m a u s , o Estado do D e m n i o . A queda de A d o ocasionou a ciso entre o s d o i s Estados no seio da humanidade. O s livros 15-18 descrevem a luta entre os dois Estados na terra. Iniciada com Caim e Abel, esta luta prolonga-se atravs dos perodos subseqentes da histria d a humanidade. O livro 15 analisa esse conflito no perodo de A d o a No, o livro 16 no de N o at A b r a o ; na segunda parte descreve-se a evoluo do Estado de Deus at D a v i . O livro 17 prossegue a anlise desde o t e m p o dos Reis at Cristo. O livro 18 retoma a evoluo do Estado terreno a partir de A b r a o at o fim do m u n d o ; trata, a i n d a , das relaes entre os dois Estados e oferece u m panorama geral dos imprios universais. O s livros 19-22 descrevem o f i m dos dois Estados e sua separao definitiva e eterna. O livro 19 trata d o f i m dos dois Estados na terra; o livro 20, do l t i m o juzo; o livro 21, d a reprovao eterna do Estado do Demnio, e o livro 22, d a felicidade eterna do Estado de D e u s na manso celeste.
E assim, a histria comparvel a um gigantesco d r a m a , que toma incio no Cu e s chegar ao seu termo no final dos tempos. Embora encenado pelos homens, este drama tem por autor o prprio Deus, o artista eterno: "sicut creator ita moderator, donec universi saeculi pulchritudo, cuius particulae sunt, quae suis quibuscumque temporibus apta sunt, velut m a g n u m carmen cuiusdam ineffabilis modulatoris excurrat, atque inde transeant in aeternam contemplatiom Cl. Retract. 1, 25; 120, 15. > De catech. Rud. 19-22, 31-39; t. 40, 333-338.
APRECIAO
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nem speciei, qui D e u m rite colunt, etiam cum tempus est fidei". ** Por isso o universo belo, no apenas no seu ser como tambni no seu devir e na sua evoluo. E ' verdade que nem sempre logramos perceber a beleza desta sucesso, por estarmos to profundamente envolvidos nos acontecimentos de cada dia e de cada hora. E isto nos impede a viso de conjunto. Mas, se atendermos Providncia do Criador, tal como nos revelada na Escritura, n o deixaremos de perceber tambm a verdadeira beleza do encadeamento dos tatos particulares: " . . . sic ortu et occasu, decessu atque successu rerum temporalium, certis atque definitis tractibus, donec recurrat ad terminum praestitutum, temporalis pulchritudo contexitur". Apreciao. Agostinho quer ser, em primeiro lugar, um telogo, e no um filsofo. A inexistncia de uma sntese filosfica, fora do contexto teolgico , em derradeira anlise, simples decorrncia do seu sistema. Para Agostinho h um s cosmos da verdade, no qual se contm a totalidade do ser, e no qual ele se aprofunda com todas as veras do seu corao cheio de f. A luz desta f o seu entendimento finito procura sondar, na medida do possvel, o mistrio do infinito. E' volta deste cosmos que gravita, incansavelmente, o seu poderoso intelecto. Deste cosmos dimana-lhe a luz sem a qual sua alma seria incapaz de viver. Para Agostinho, a vida e a doutrina so uma s coisa. Sua doutrina uma interpretao de sua vida, e sua vida no cessa de nutrir-se nas fontes da doutrina. E assim o pensar agostiniano evolui em contacto imediato com a vida. Seu objetivo no ensinar a pensar, e sim, a viver, a viver pensando. E ' a este contacto direto com a vida real que a ideologia agostiniana deve o seu valor imperecvel e a sua influncia fecunda e constante sobre o pensamento ocidental, at os nossos dias. Agostinho , na verdade, o Preceptor do Ocidente. Nenhum dos futuros sistemas cristos ir poder ignor-lo. E, com efeito, todos, de um modo ou doutro, lhe sofreram o influxo. Por quase um milnio exerceu domnio incontestado no campo do pensamento. Sua doutrina, perenemente viva, jamais cessou de reviar a reflexo filosfica. Seus discpulos so legio, e at mesmo os seus adversrios pois tambm Agostinho os teve, e dos mais notveis n o lhe regatearam o seu respeito. Sua escola se que tal expresso se justifica produziu uma pliada de pensadores dos mais originais e fecundos: haja vista um S. Anselmo, os Vitorinos, um S. Boaventura, um Rogrio Bacon, um Henrique de G a n d , um Duns Escoto, um Pascal, um Malebranche, e inmeros outros.
M
> Epist. 138, 5; t. 33, 527. =* Contra Secundinum Manichaeum 15; t. 42, 591. Cf. De civ. Dei 12, 4; 571.
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Mais que nenhuma outra doutrina, a teologia agostiniana da histria teve o efeito de transformar a face da terra. A i n d a que o "Sacro Imprio Romano de N a o Germnica" no fosse idia do prprio Agostinho, ele no se originou sem uma interpretao poltica do seu conceito do Estado de Deus. Se, por hiptese, tivssemos de prescindir da obra de Agostinho na histria espiritual do Ocidente, depararamos um hiato inexplicvel entre o m u n d o atual e os tempos evanglicos. O reflexo d o eterno na beleza
Sed multis finis est h u m a n a delectatio, nec volunt tendere ad superiora, ut iudicent cur ista visibilia placeant. Itaque si quaeram ab artfice, u n o arcu constructo, cur alterum parem contra in altera parte moliatur, respondebit, credo, ut paria paribus aedificii membra respondeant. P o r r o si pergam quaerere, idipsum cur eligat, dicet hoc decere, hoc esse pulchrum, hoc delectare cernentes: nihil audebit amplius. Inclinatus enim recumbit oculis, et unde pendeat non intelligit.
criada.
Mas, para muitos, a meta suprema o deleite h u m a n o , e no querem visar s coisas superiores, nem indagar a r a z o por que as coisas sensveis nos deleitam. Se perguntarmos a um arquiteto por que, depois de erguer um arco, ele constri outro igual no lado oposto, provvel que responda: para que h a j a simetria entre as partes correspondentes do edifcio. Se lhe perguntarmos, a seguir, pela razo de ser daquela simetria, d i r : porque isso harmonioso, e belo, e agrada ao espectador. N a d a mais ousar dizer. Pois tem os olhos voltados p a r a a terra e desconhece as causas ltimas de que depende a sua arte. Mas a um h o m e m dotado de viso interior, e contemplador do m u n d o invisvel, eu persistiria em perguntar por que aquelas coisas lhe a g r a d a m , at que ousasse j u l g a r do prprio deleite h u m a n o . Pois assim ele se sobreleva ao deleite, sem deixar-se dominar, p o r q u a n t o n o julga segundo ele, mas sobre ele. E primeiro lhe perguntarei se tais coisas so belas porque a g r a d a m ou se lhe a g r a d a m porque s o belas. Responder, com certeza, que agradam porque so belas. A o que perguntarei: E por que so belas? Se hesitar, acrescentarei: Ser talvez porque suas partes se assemelham u m a s s outras e se harmonizam graas a algum nexo unificador? Logo que ele perceber que assim , perguntarei se elas atingem perfeitamente aquela unidade a que evidentemente aspiram, ou se permanecem distantes dela, n u m a espcie de arremedo v o e mentiroso. Neste ltimo
A t ego virum intrinsecus oculatum, et invisibiliter videntem non desinam commovere, cur ista placeant, ut iudex esse audeat ipsius delectationis humanae. Ita enim superfertur illi, nec a b ea tenetur, dum non secundum ipsam, sed ipsam iudicat. E t prius q u a e r a m utrum ideo pulchra sint, quia delect a n t ; an ideo delectent, q u i a pulchra sunt. Hic mihi sine dubitatione respondebitur, ideo delectare quia pulchra sunt. Quaeram ergo deinceps, quare sint pulchra; et si titubabitur, subiiciam, utrum ideo quia similes sibi partes sunt, et aliqua copulatione ad u n a m convenientiam rediguntur.
Q u o d cum ita esse compererit, interrogabo, utrum hanc ipsam unitatem, q u a m convincuntur appetere, s u m m e impleant, an longe infra iaceant, et eam quodammodo mentiantur. Q u o d si ita est ( n a m quis non admonitus vi-
TEXTOS
deat, neque ullam speciem neque ullum omnino esse corpus quod non habeat unitatis qualecumque vestigium, neque quantumvis pulcherrimum corpus, cum intervallis I ocorum necessrio aliud libi habeat, posse assequi eam q u a m sequitur u n i t a t e m ? ) :
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caso (pois todo observador atento perceber que n o existe forma nem corpo que n o apresente algum vestgio de unidade, e que nem o corpo mais formoso, visto constar inevitavelmente de partes diferentes e separadas por intervalos de lugar, pode atingir a unidade perfeita a que aspira). Sendo assim, digo, n o desistirei at que me declare onde e de que maneira intui tal unidade. Pois se no a intusse, por onde lhe seria possvel saber o que aquilo que as formas dos corpos imitam sem jamais poder alcan-lo? Portanto, se ele diz aos corpos: Vs n a d a serieis se uma certa unidade n o vos desse consistncia, mas, se fosseis a prpria unidade, deixareis de ser corpos, replicar-se- com toda a r a z o : Por onde conheces aquela unidade segundo a qual j u l g a s os corpos? Pois se no a visses, n o poderias julgar que estes n o a alcanam perfeitamente; e se a visses com os olhos corporais, n o dirias com verdade que eles distam muito d a unidade, embora contenham algum vestgio dela. Pois com os olhos corporais s vs coisas corporais. D o n d e se segue que com a mente que a vemos. M a s onde a vemos? Se ela se encontrasse ali onde est o nosso corpo, seria inacessvel a o que, no Oriente, formula juzos idnticos sobre os corpos. Portanto ela no est restrita a nenhum lugar particular; e visto estar presente a quem quer que j u l g u e de acordo com ela, segue-se que n o est em parte alguma do espao, e que n o h lugar algum onde ela n o se encontre com sua eficcia.
Q u a r e si hoc ita est, flagitabo ut respondeat, ubi videat ipse unitatem hanc, aut unde videat; quam si non videret, unde cognosceret et quid imitaretur corporum species, et quid implere non posset? Nunc vero c u m dicit c o r p o r i b u s : Vos quidem nisi aliqua unitas contineret, nihil essetis, sed rursus si vos essetis ipsa unitas, corpora non essetis; recte 1 li dicitur:
U n d e illam nosti unitatem, secundum q u a m iudicas corpora, quam nisi videres, iudicare non posses quod eam non i m p l e a n t : si autem his corporeis oculis e a m videres, non vere diceres, quamquam eius vestgio teneantur, longe tamen ab ea distare? N a m istis oculis corporeis non nisi corporalia vides: mente igitur eam videmus. Sed ubi v i d e m u s ? Si hoc loco esset, ubi corpus nostrum est, non eam videret qui hoc m o d o in Oriente de corporibus iudicat. Non ergo ista continetur loco; et cum adest ubicumque iudicanti, n u s q u a m est per spatia locorum, et per potentiam nusquam non est.
32,59-60;
ML
D o sentido d a
T e m p o r a l i u m enim specierum multiformitas a b unitate Dei hominem lapsum per carnales sensus diverberavit, et mutabili varietate multiplicavit eius affectum: ita facta est abundantia laboriosa, et, si dici potest, copiosa egestas, d u m aliud et aliud sequitur, et nihil cum eo permanet. Sic a tempore frumenti, vini et olei sui multi-
histria.
A multiplicidade das formas temporais, infiltrando-se pelos sentidos do corpo, apartou o homem cado da unio com Deus, e com sua variedade inconstante multiplicou-lhe sobremaneira os afetos. D o n d e resultou uma abundncia trabalhosa e, p o r assim dizer, uma penria opulenta, em virtude da seqncia ininterrupta das
fe
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S. AGOSTINHO, MESTRE D O
OCIDENTE
plicatus est, ut non inveniat idipsum (Ps. 4, 8 , 9 ) , id est naturam incommutabilem et singularem, quam secutus non erret, et assecutus non doleat.
Habebit. enim etiam consequentem redemptionem corporis sui ( R o m . 8, 23), quod j a m non corrumpetur. Nunc vero corpus quod corrumpitur aggravat animam, et deprimit terrena inhabitatio sensum m u l t a cogitantem (Sap. 9,15), quia rapitur in ordinem successionis extrema corporum pulchritudo. Nam ideo extrema est, quia simul non potest habere o m n i a ; sed dum alia cedunt atque succedunt, temporalium formarum numerum in unam pulchritudinem complent. Et hoc totum non propterea malum, quia transit. Sic enim et versus in suo genere pulcher est, quamvis duae syllabae simul dici nullo modo possint. Nec enim secunda enuntiatur, nisi prima transierit; atque ita per ordinem pervenitur a d finem, ut cum sola ultima sonat, non secum sonantibus superioribus, f o r m a m tamen et decus metricum cum praeteritis contexta perficiat. Nec ideo tamen ars ipsa qua versus fabricatur, sic tempori obnoxia est, ut pulchritudo eius per mensuras morarum d i g e r a t u r : sed simul habet omnia, quibus efficit versum non simul habentem omnia, sed posterioribus priora tollentem; propterea tamen pulchrum, quia extrema vestigia illius pulchritudinis ostentat, quam constanter atque incommutabiliter ars ipsa custodit.
coisas, que no lhe permite fixar-se em n a d a . Permitiu que o t e m p o d o trigo, d o vinho e do azeite o dispersasse pela multido das coisas, sem j a m a i s deparar com o que permanece sempre igual a si mesmo, isto , a nica natureza imutvel, em c u j o seg u i m e n t o n o h erro e cuja posse no acarreta amargura. P o i s obter tambm a redeno do seu corpo, que deixar de estar sujeito corrupo. Entrementes, a matria corruptvel agrava a alma, e a m o r a d a terrestre deprime a mente diss i p a d a , porque a formosura corporal, que ocupa o nfimo grau, absorvida na torrente das vicissitudes temporais. Ela retm o ltimo lugar, precisamente p o r no poder abranger tudo simultaneamente; sua beleza s se completa n u m a alternao contnua de formas temporais, estabelecendo-se enfim uma beleza unitria. E n o se pense que tudo isto mau s p o r ser efmero. Pois t a m b m um verso belo em seu gnero, embora seja impossvel pronunciar duas slabas a o mesmo tempo. Com efeito, a segunda s comea a ressoar n o momento em que a primeira tenha cessado, e assim sucessivamente at o f i m ; desta forma, quando ressoa a ltima slaba, enlaando-se s anteriores, que j cessaram de soar, completa-se enfim a formosura e a harm o n i a do metro. Mas netn por isso a prpria arte da versificao se torna sujeita ao tempo, a ponto de a sua beleza fracionar-se em medidas temporais; antes, ela se encontra na totalidade dos elementos que compem o verso, embora este se desdobre n u m a seqncia ordenada d o anterior e d o posterior. U m tal verso no deixa de ser belo, pois nele se refletem os ltimos vestgios d a beleza q u e a arte perene e imutavelmente custodia. Assim, pois, como h muitos homens de gosto pervertido, que preferem o verso prpria arte da versificao, por anteporem o ouvido intelignc i a : assim muitos amam a s coisas temporais (i. , histricas), m a s ignoram a Divina Providncia, que origina e dirige os tempos, e por causa
Itaque, ut nonnulli perversi magis amant versum, q u a m artem ipsam qua conficitur, quia plus se auribus quam intelligentiae dediderunt: ita multi temporalia diligunt, conditricem vero ac moderatricem temporum divinam providentiam non requirunt; atque in ipsa dilectione temporalium nolunt
TEXTOS
transire quod amat, et tam sunt absurdi, quam si quisquam in recitatione praeclari carminis u n a m aliquam syllabam solam perpetuo vellet audire. Sed tales auditores carminum non inveniuntur; talibus autem rerum aestimatoribus plena sunt o m n i a ; propterea quia nemo est, qui non facile non modo totum versum sed, etiam totum carmen possit audire; totum autem ordinem saeculorum sentire nullus hominum potest.
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do seu a p e g o ao temporal, no querem que passe aquilo que amam. S u a insensatez comparvel daquele q u e , ao ouvir recitar um poema famoso, desejasse ouvir sempre uma s e mesma slaba. Na verdade, n o h tais aberraes nos aficionados da poesia; m a s o mundo est cheio de indivduos q u e assim avaliam as coisas temporais. A razo est em que todos podem facilmente ouvir um verso inteiro ou u m poema inteiro, ao passo que n i n g u m pode abranger a totalidade d a sucesso dos sculos. Acresce ainda que no somos parte de um p o e m a , mas por castigo fazemos parte d a evoluo dos sculos. Aquele recitado p o r outros e submetido ao nosso j u z o ; estes, porm, se realizam a custa de nossa laboriosa contribuio. O s j o g o s agonsticos no deixam satisfeitos aos vencidos, embora a derrota deles os torne interessantes: eis a outra imagem da verdade. C o m efeito, tais espetculos nos so proibidos p a r a que no suceda que, seduzidos pelas sombras das coisas, nos descuidemos das realidades superiores que nelas se refletem. Por isso a condio e o governo desse universo s no satisfazem aos impios e aos rprobos. A g r a d a m , porm, m u l t i d o daqueles que, embora ainda sujeitos s tributaes da vida terrena, saram vencedores, bem como queles que no cu assistem, livres de qualquer perigo, a este espetculo. Pois n a d a do que justo desagrada aos justos.
Huc accedit quod carminis non sumtis partes, saeculorum vero partes damnationis lacti sumus. Illud ergo canitur sub iudicio nostro, ista peraguntur de labore nostro. Nulli autem victo ludi agonisti placent, sed tamen cum eius dedecore s u n t : et haec enim quaedam imitatio veritatis est. Nec ob alud a talibus prohibemur spectaculis, nisi ne umbris rerum decepti, ab ipsis rebus quarum illae umbrae sunt, aberremus. Ita universitatis huius conditio atque administratio, solis impiis animis damnatisque non placet; sed etiam cum misria earum, multis vel in terra victricibus, vel in caelo sine periculo spectantibus placet: nihil enim iustum displicet insto.
De
vera religione
21-22; c. 139 s.
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Sero te a m a v i , pulchritudo t a m antiqua et tam nova, sero te a m a v i ! E t ecce intus eras et ego foris et ibi te quaerebam et in ista formosa, quae fecisti, deformis irruebam. M e c u m eras, et tecum non eram. Ea m e tenebant longe a te, quae si in te non essent, non essent. Vocasti et clamasti et rupisti surditatem meam, coruscasti, splenduisti et fugasti caecitatem meam, fragrasti, et duxi spiritum, et anhelo tibi, gustavi et esurio et sitio, tetigisti me, et exarsi in pacem t u a m .
Confessionum
10,26-27.