TCC Completo - Giovanna Terra
TCC Completo - Giovanna Terra
TCC Completo - Giovanna Terra
Florianópolis
2022
Giovanna Silva Terra
Florianópolis
2022
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,
através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.
Terra, Giovanna
Os evangélicos da Missão Integral e a política na
América Latina : (1970-1990) / Giovanna Terra ;
orientador, Waldir Rampinelli, 2022.
57 p.
Inclui referências.
Aos seis dias do mês de setembro do ano de dois míl e vinte e dois, às dezesseis
horas nÓ NEHAL, Departamento de História, Centro de Filosofia e Ciências Humanas -*
Universidade Federal de Santa Catarina, reuniu-se a Banca Examinadora composta pelo
Professor Wald.ir José Rampinelli, Orientador e Presidente, pelo Professor Eduardo
Paegle, Titular da E3ancae pelo Professor Adriano Duarte, Suplente, designados pela
Portaria n' 22/2022/HST/CFH da Senhora Chefe do Departamento de História, a fim de
arguiremo Trabalhode Conclusãode Curso da acadêmicaGiovanna Silva Terra,
subordinadoao título: "Os evangélicos da missão integral e a política na América
Latina". Aberta a Sessão pelo Senhor Presidente, o acadêmico expôs o seu trabalho.
Terminada a exposição dentro do tempo regulamenta(, .a mesma foi arguida pelos
membros da Banca Examinadora e, em seguida, prestou os esclarecimentos necessários.
Após, foram atribuídas notas, tendo a candidata recebidodo Professor Waldir José
Rampinellia nota final..J.Q.. do Professor Eduardo Paegle a nota final ../.Q. e do
Professor Adriano Duarte a nota final--Ê.:= sendo aprovado(a) com a nota final ......... A
acadêmica deverá entregar o Trabalho de Conclusão de Curso em sua forma definitiva
em versão digitalao Departamentode Históriaàté o dia treze de setembrode dois mil e
vinte e dois. Nada mais havendo a tratar, a presente ata será assinada pelos membros da
Banca Examinadora e pela candidata
Banca Examinadora
Prof. Waldir José Rampinelli .;â.#-(- '-'\
Prof. Eduardo Paegle
Prof. Adriano Duarte
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7
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Campus Universitário Trindade
CEP 88.040-900 Florianópolis Santa Catarina
FONE (048) 3721-9249 - FAX: (048) 3721-9359
Atesto que a acadêmica Giovanna Silva Terra, matricula n.˚ 17201099, entregou a versão
final de seu TCC cujo título é “Os evangélicos da Missão Integral e a política na
América Latina: (1970-1990)”, com as devidas correções sugeridas pela banca de defesa.
Orientador
Este trabalho é dedicado aos meus pais, que me abriram as
portas para a vida e para os estudos.
RESUMO
A teologia da missão integral surge no final dos anos 60 na América Latina como uma
proposta de evangelismo contextualizada à realidade do continente, destacando a ação social e
a participação política como aspecto fundamental da missão cristã e apresentando-se como
alternativa ao modelo conservador de proselitismo protestante. Busca-se nesta pesquisa
compreender as origens do movimento entre os evangélicos na América Latina e investigar
sua relação com o processo de inserção deste grupo na política do continente a partir da
década de 70. As principais fontes são os materiais escritos pelos precursores da missão
integral no período, René Padilla e Samuel Escobar, enquanto a base teórica e metodológica
utilizada é a História Global no modelo proposto por Sebastian Conrad, com foco
principalmente nas conexões entre América Latina e Estados Unidos relacionadas às
influências religiosas entre os protestantes e ao contexto geopolítico do período. O primeiro
capítulo introduz o contexto histórico, social e religioso do continente, assim como conceitos
essenciais para a compreensão do tema, enquanto o segundo desenvolve os principais
acontecimentos relacionados ao surgimento da missão integral e seus efeitos. O estudo
conclui que a TMI foi fator determinante para a promoção da abertura da comunidade
evangélica à participação política, embora o principal elemento que resulta no cenário atual
seja o crescimento do neopentecostalismo, intensificado a partir dos anos 90.
INTRODUÇÃO 15
1 CONCEITOS 19
1.1 QUEM SÃO OS EVANGÉLICOS 19
CONCLUSÃO 48
FONTES 52
REFERÊNCIAS 53
15
INTRODUÇÃO
cristãs e as resistências que enfrentou, assim como sua perspectiva de futuro na comunidade
protestante e na sociedade de modo geral.
A tese principal que será defendida nas próximas páginas afirma a TMI como o
movimento que forneceu de modo definitivo o subsídio teológico para a defesa do
envolvimento evangélico em assuntos seculares, alterando o modo como os evangélicos
tradicionalmente percebiam a participação política por parte dos membros da comunidade.
Também afirma que a sua origem está no contexto das relações verticais entre os americanos
do norte e os do sul, nascendo a partir do ímpeto de libertação das influências externas e das
tendências nacionalistas e revolucionárias que fermentavam no contexto global de guerra fria
e de ideais marxistas materializados no continente pela Revolução Cubana. Para tanto, será
apresentado ao leitor o contexto histórico de formação da comunidade evangélica e seus
efeitos na construção da ideologia da comunidade, particularmente na América Latina e no
Brasil, assim como o contexto sociopolítico onde nasceu a TMI. Não sendo a missão integral
o único fator responsável pela intensa presença política dos evangélicos, ela é, no entanto,
desencadeadora do processo que levou a este cenário no contexto latinoamericano, ao aplicar
pressupostos do evangelho social de modo contextual para o continente, e portanto, pioneiro.
Sendo assim, o objetivo desta pesquisa é apresentar esta teologia dentro de uma perspectiva
historiográfica, ou seja, situá-la dentro de um contexto e um processo histórico onde se
relaciona a outros fenômenos anteriores e posteriores, e se coloca como resistência à
dominação ideológica estadunidense na América Latina no campo da religião.
As fontes que serão utilizadas nesta pesquisa são os materiais escritos e discursos do
principal precursor da TMI na América Latina, o teólogo René Padilla, e as atas e manifestos
publicados por instituições evangélicas durante as décadas de 70 e 80. Acessoriamente, serão
utilizados também os textos de Samuel Escobar e as entrevistas concedidas pelos teólogos
para a revista Ultimato, em 2015. Na ocasião de sua morte, em 2021, a revista Christianity
Today apelidou René Padilla pela alcunha de “Pai da Missão Integral”. Nas palavras do
teólogo, ação social e evangelismo são como “as duas asas de um avião” (KIRKPATRICK,
2021). Pela sua relevância e seu papel de protagonista na construção da TMI, os livros e
palestras de Padilla são a fonte ideal para fornecer um panorama do que foi este movimento
em seus primeiros anos e de seu processo de formação. Esta escolha de fontes define o recorte
temporal, já que a maior parte do material foi produzido entre 1970 e 1990. Foi também a
partir da década de 90 que se manifestou de modo mais significativo o crescimento dos
18
desde o nascimento do debate até sua implantação prática. Foi a América Latina o maior
laboratório e o campo onde se viu os principais efeitos da nova política de evangelização.
20
1. CONCEITOS
estavam muito próximos de alcançá-los numericamente, com 40% e 41% de sua população,
respectivamente, ante 47% de católicos. As exceções até então são o Uruguai, que vê uma
migração maior dos ex-católicos para os que se declaram “sem afiliação religiosa”, Paraguai e
Equador, ambos com ainda mais de 80% de sua população adepta do catolicismo. Guadalupe
também traz outro dado importante: os evangélicos costumam ser muito mais militantes e
comprometidos com suas igrejas que aqueles que se declaram católicos. Sendo assim, é
necessário diferenciar confessionalidade de militância religiosa. O percentual evangélico não
pode ser comparado apenas em termos quantitativos de pertencimento, já que os evangélicos
se mostram muito mais envolvidos com suas igrejas (GUADALUPE, 2017, p. 19).
No Brasil, o Censo traçou também o perfil socioeconômico dos evangélicos. Em sua
maior parte, são mulheres, e a faixa etária mediana é de adultos jovens (27-29 anos). Estão
presentes significativamente mais nas áreas urbanas (23,5%) do que nas rurais (14,5%).
Porém pode-se perceber diferenças significativas entre os evangélicos de missão e os
pentecostais. Enquanto os primeiros têm 51,6% de adeptos brancos, entre os segundos 57,4%
são pretos ou pardos. Entre os de missão, 45% cursaram o ensino médio ou superior. Já entre
os pentecostais, 70% possuem formação até o ensino fundamental, e 64% possuem renda per
capta até 1 salário mínimo (IBGE, 2010, p.104). No Brasil menos de 20% dos evangélicos são
de igrejas protestantes históricas, enquanto os pentecostais são 60% do total no país. Este
dado é ratificado pelos resultados da pesquisa da Pew Research, desta vez em âmbito
continental: na América Latina, menos de um quarto são afiliados a denominações de missão,
e 65% são pentecostais por identificação ou denominação. Entre estas, a mais comum nos
países pesquisados, incluindo o Brasil, é a pentecostal Assembleia de Deus (PEW, 2014, p. 5).
Levando tudo isso em conta, pode-se dizer que o evangélico médio no Brasil é
pentecostal, mulher, negra, trabalhadora urbana, com escolaridade até o nível fundamental e
renda de até 1 salário mínimo. Isto não necessariamente significa que o pastor terá
ascendência sobre o fiel, já que não há, em muitas denominações, a exigência comum de uma
educação especializada para a formação de sacerdotes evangélicos, como há entre os padres
católicos (embora algumas sejam mais rigorosas quanto a este quesito), e frequentemente os
líderes são oriundos do mesmo meio e partilham da condição social e acadêmica do restante
da igreja. Santos afirma que
“Os evangélicos hoje representam uma das expressões mais populares da
religiosidade brasileira e latino-americana, situada nas camadas sociais mais baixas e
23
Seria equivocado, no entanto, tratar a todos como uma grande massa homogênea, sem
considerar a imensa diversidade que existe entre as muitas comunidades ou mesmo
internamente. As diferentes denominações podem, por exemplo, seguir uma variedade de
modelos de governo eclesiástico, que determinam de que modo as decisões serão tomadas e
quem possui maior poder para tal. Seguem as mais frequentes:
a) Episcopado: Em uma igreja episcopal, há um dirigente central com autoridade e
poderes diferenciados que é responsável pelas decisões mais importantes e pela nomeação dos
demais líderes. As denominações que adotam este regime são marcadas por uma forte
estrutura hierárquica e pela pouca autonomia das congregações para definir suas próprias
diretrizes. Esta estrutura é comum tanto entre igrejas de missão, como a Anglicana e a
Metodista, quanto entre igrejas pentecostais e neopentecostais, como a Assembleia de Deus, a
Igreja do Evangelho Quadrangular e a Universal do Reino de Deus. Frequentemente,
pequenas igrejas independentes e sem vinculação com denominações seguem também este
modelo, tendo no pastor a autoridade máxima da igreja.
b) Presbiterianismo: Este modelo de gestão eclesiástica pressupõe a existência de um
corpo de anciãos ou presbíteros que são responsáveis pela manutenção da comunidade tanto
do ponto de vista administrativo como espiritual, e as decisões importantes são tomadas nas
assembleias de anciãos denominadas Concílios. Não há hierarquia entre os membros
individuais ou presbíteros, mas há hierarquia entre os concílios: cada igreja local tem um
concílio próprio, que respondem aos concílios regionais (ou presbitérios), que por sua vez
respondem às decisões dos sínodos e do concílio supremo. Os membros dos concílios são
eleitos para mandatos de tempo determinado, como em uma democracia representativa, mas
suas decisões devem ser acatadas pela comunidade. Esta estrutura é encontrada na igreja
Presbiteriana e outras de origem e tradição calvinista.
c) Congregacionalismo: Neste regime, as igrejas locais têm completa autonomia em
todos os níveis. É convocada regularmente uma assembleia, reunindo todos os membros da
congregação local, que tem igual poder de voz e voto em todas as decisões, que são
registradas em atas e devem ser acatadas pela liderança da igreja. Embora o pastor seja
considerado o líder espiritual da comunidade, ele pode ser demovido do cargo se a assembleia
dos membros assim o decidir. As igrejas congregacionais de mesma denominação costumam
24
estar vinculadas por “Convenções” ou Federações, as quais, contudo, não possuem nenhum
poder normativo sobre as unidades locais, senão como espaço de integração, identidade e
cooperação. Exemplos de igrejas que seguem o modelo congregacional: Batistas,
Congregacionais.
Além das claras diferenças em organização política e administrativa, há também uma
grande diversidade em outros aspectos da vida religiosa: os limites da atuação das mulheres e
a forma como se definem os papéis de gênero tanto dentro da igreja como na vida privada; as
liberdades permitidas aos jovens, os costumes relacionados a vestimentas, cuidados com o
corpo e o consumo de álcool, a relação com as festas e datas comemorativas seculares ou de
outras religiões, como festa junina, carnaval e ano-novo, a adesão a símbolos seculares das
festas tidas como cristãs pelos protestantes, como natal e páscoa, a postura diante dos
relacionamentos com pessoas de fora da religião, e a tolerância a outras práticas religiosas.
entre os políticos e intelectuais liberais. Estes planos começaram a entrar em prática com a
chegada do missionário escocês Robert Reid Kalley, pioneiro na língua portuguesa que
fundou a primeira comunidade protestante brasileira. Foi no mesmo período que as igrejas
protestantes chegaram a outros países do continente. No Peru, a primeira igreja evangélica foi
fundada em 1889 pelo missionário metodista Francisco Penzotti, de origem ítalo-uruguaia.
A primeira constituição republicana brasileira, de 1891, decretou definitivamente a
separação entre Igreja e Estado e colocou fim à perseguição institucional contra a minoria
protestante, embora atos de violência e intolerância religiosa ainda prosseguissem por muito
tempo. Em 1910, a comunidade no Brasil já contava com mais de 46 mil membros e era a
maior da América Latina (CAVALCANTI, 2002, p. 192). A atuação protestante focava então
na educação, estabelecendo escolas e seminários ligados às igrejas.
Foi neste período que ocorreu um dos movimentos mais importantes da história do
cristianismo contemporâneo, que Leonildo Silveira Campos descreve como “o movimento
religioso de maior amplitude do século XX” (CAMPOS, 2000, p.9). O Avivamento da Rua
Azuza é considerado o marco histórico do início do pentecostalismo no mundo, apesar de não
ser a primeira manifestação do gênero (BARBA, 2022, p.132). Em abril de 1906, em um
imóvel antigo na rua Azuza, no subúrbio de Los Angeles, o pregador afro-americano William
Seymour reuniu um pequeno número de pessoas e recebeu o que os evangélicos atribuem o
nome de “batismo no Espírito Santo”, que consiste em uma experiência religiosa similar ao
fenômeno de Pentecostes, descrito na bíblia no livro de Atos dos Apóstolos: o religioso passa
a orar, falar e se expressar gestualmente de modo bastante intenso e expressivo, o que inclui a
habilidade de falar em línguas estrangeiras, porém desconhecidas da pessoa (xenolália) ou
celestiais (glossolália). A crença no batismo no Espírito Santo como algo acessível aos
cristãos nos dias de hoje é um elemento fundamental para que uma igreja possa ser
identificada como pentecostal.
Rapidamente os princípios pentecostais se difundiram pelos Estados Unidos e pelo
mundo. Os missionários suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg trouxeram de lá a novidade
para o Brasil, primeiro como um movimento de renovação espiritual, não ligado a nenhuma
denominação específica ou organização missionária. Na América Latina, o primeiro culto
pentecostal foi realizado em uma congregação metodista de Valparaíso, no Chile (CAMPOS,
2000, p.9). O novo movimento, porém, não pôde ser contido nas estruturas já existentes,
levando a geração de novas denominações que rapidamente se tornaram relevantes no
26
Santos não concorda plenamente com esta afirmação. Para ele, ao considerar o
conflito entre católicos e liberais como o fator primordial para o estabelecimento do
protestantismo na América Latina, Bastian ignora os elementos do “fato social” que
encontramos na primeira experiência protestante brasileira:
“...o vigor missionário europeu e norte-americano condicionado pelas suas ondas
avivalistas; as investidas individuais de missionários como Kalley e Simonton que
não tinham a intenção de fundar sociedades liberais de pensamento nem eram
conscientes de que faziam parte de qualquer articulação orgânica; a experiência de
perseguição e de oposição das primeiras comunidades de convertidos que não eram
participantes ativos e conscientes de qualquer movimento liberal articulado, ainda
mais que foram representantes das classes mais baixas, em sua maioria “ (SANTOS,
2017, p.40).
Mas concorda com Bastian quando este menciona a importância, neste processo, das
minorias de comerciantes e residentes estrangeiros que se estabeleceram na América Latina a
partir dos tratados de comércio com países europeus, particularmente a Inglaterra, já que as
atividades comerciais se mostravam um componente importante do proselitismo nestas
primeiras igrejas. Os autores também estão de acordo quanto à presença intrínseca do
liberalismo na pregação individualista dos missionários (SANTOS, 2017, p.41). Porém, para
Santos, a presença majoritária dos pobres, negros e mulheres ressalta que há particularidades
no processo brasileiro de assimilação do protestantismo que não podem ser explicadas apenas
pelas disputas de poder da elite liberal. “Está na experiência cotidiana local, muito mais que
na afinidade com ideologias globalizantes, um eixo fundamental de interpretação histórica e
social do protestantismo no século XIX”. (SANTOS, 2017, p.42).
É, portanto, impossível compreender o protestantismo latino-americano a partir de
uma perspectiva que olha de cima para baixo. No prefácio do livro Teatro, Templo e Mercado,
de Leonildo Silveira Campos, Jean-Pierre Bastian reforça essa tese ao defender que o
pentecostalismo, maior grupo cristão não-católico na América Latina, se desenvolveu a partir
das “populações rurais e urbanas semi-analfabetas e pobres sob influência dos missionários
norte-americanos” (CAMPOS, 2000,p.9). Este crescimento, no entanto, foi lento e discreto
até meados da década de 50, quando as transformações da economia latino-americana
promoveram um grande êxodo rural de trabalhadores subitamente desempregados do campo
para as margens das metrópoles urbanas, meio onde o pentecostalismo encontrou as condições
para uma expansão sem precedentes – foi neste período que surgiram as primeiras igrejas
pentecostais fundadas por líderes brasileiros, como a Brasil para Cristo e a Deus é Amor.
Nesta linha argumentativa, Bastian e Guadalupe estão de acordo ao destacar o caráter ao
30
mesmo tempo rural e urbano das populações que aderiram em massa ao pentecostalismo a
partir dos anos 50, sendo que este o último o descreve como “uma estratégia de adaptação
dos migrantes do campo para a cidade” e “uma proposta de religiosidade popular”
(GUADALUPE, 2017, p.104). Campos lista uma série de elementos que favoreceram o
crescimento do pentecostalismo neste período, todos ligados à condição social imposta pelas
transformações que o capitalismo trazia para as sociedades:
“...o crescimento da indiferença religiosa entre os cristãos; as rápidas mudanças
sociais que levaram a perda da identidade; o crescimento da insensibilidade das
pessoas devido às características da vida isolada nas grandes cidades
industrializadas; o aumento dos problemas sociais vinculados à falta de assistência
médica adequada, sentido para a vida e desamparo frente à burocracia da vida
moderna; medo de enfrentar o dia de amanhã, angústia e sensação de que algo está
para acontecer” (CAMPOS,2000, p.53).
específicos que a igreja assumia contra problemas sociais concretos como injustiça, racismo,
direitos trabalhistas, direitos humanos, família, e saúde [GUADALUPE, 2017, p.110].
A reação ao evangelho social foi uma polarização entre liberais modernistas e
conservadores fundamentalistas. Com o mesmo vigor que os liberais defendiam uma leitura
crítica da bíblia, os conservadores defendiam sua infalibilidade, entre outros dogmas
considerados então centrais à fé protestante. Ambos tiveram impacto significativo na
sociedade secular. Os defensores do evangelismo social, principalmente representados pelos
pastores norte-americanos Washington Gladden e Walter Rauschenbusch promoveram a
criação de departamentos de ação social nas igrejas, cursos de ética social nos seminários,
missões de cunho médico, agrícola e educacional em comunidades pobres e países
estrangeiros, assim como pronunciamentos públicos em defesa de reformas sociais estruturais
e causas como diminuição da jornada de trabalho. Entre os conservadores, da mesma forma, a
importância do proselitismo religioso atingiu um novo patamar. As comunidades religiosas
conservadoras patrocinaram as agências de missões, que enviavam missionários para todo o
mundo não-cristão. Qualquer menção à temática social passou a ser suspeita do perigoso
modernismo. A fé era individual e íntima, e o foco da ação deveria estar em trazer o máximo
de indivíduos possível para o evangelho, sem envolvimento com questões coletivas.
Neste contexto, a igreja passou a ser vista pelos conservadores como o último refúgio
em um mundo que estava afundando. Progressivamente, os evangélicos se isolavam cada vez
mais do mundo secular, desenvolvendo um certo anti-intelectualismo e se afastando de
qualquer envolvimento político, sempre em posição defensiva, que muitas vezes chegava a
um isolamento físico e geográfico, como no caso dos menonitas da zona rural dos EUA.
Abandonando a ética social, voltaram-se completamente para a ética individual e o moralismo
de regras e preceitos. Na prática, esta ética individual enfatizava desproporcionalmente os
“pecados sexuais” em detrimento de outras dimensões da ética. Cavalcanti cita o sociólogo
David Moberg, que chamou este movimento de “A Grande Reversão” [CAVALCANTI, 2002,
p.157].
Para Maurice Duverger, este foi o mecanismo que permitiu ao protestantismo
conviver com um novo mundo centrado na concorrência e no lucro capitalista:
Para sustentar o capitalismo, um sistema social fundado sobre o egoísmo do
lucro pessoal, o cristianismo do século 19 inverteu as prioridades, colocando no
primeiro plano a virgindade das moças, a continência dos rapazes, a fidelidade
conjugal, e relegando ao segundo plano a fraternidade e a comunhão. O anátema do
sexo substitui o anátema do dinheiro. Fazer amor fora do casamento tornou-se mil
32
Outro conceito importante para compreender a disputa que se passava nos meios
protestantes estadunidenses do século XIX é o pré-milenarismo. O pré-milenarismo defende
que a volta de Cristo se passará antes do julgamento da humanidade. Neste contexto, as ações
defendidas por um evangelho social não têm sentido para o cristão, já que o momento que
precede o fim dos tempos será de decadência moral e calamidade. Cabe ao crente fiel
dedicar-se unicamente à tarefa de trazer o máximo possível de almas para Cristo antes do
julgamento, ao invés de se dedicar à fútil tarefa de reformar um mundo mau e corrompido.
Ainda hoje há um debate entre os evangélicos pré-milenaristas e os pós-milenaristas, que por
sua vez, acreditam que o retorno de Cristo será precedido por um período de mil anos onde os
“justos” reinarão, de plena paz e prosperidade para todos. Para o pós-milenarista, o caminho
do evangelho social é fundamental para a realização de tal feito e tão necessário quanto o
evangelismo (PAEGLE, 2006, p.32).
Estas mudanças ocorreram concomitantemente ao auge da expansão do movimento
missionário, e o atingiu com força. Enquanto os liberais estavam desmotivados para o
proselitismo, os conservadores tinham entusiasmo redobrado, na perspectiva de “salvar” o
maior número possível de almas do mundo decadente. Sendo os conservadores os principais
patrocinadores das missões transculturais, naturalmente a sua perspectiva religiosa se tornou
predominante nas terras distantes onde o protestantismo chegava pela primeira vez, como a
América Latina.
abre espaço para a atuação dos evangélicos em todos os aspectos da vida civil, provendo uma
base teológica que suporte essa atuação dentro do universo doutrinário da fé protestante. A
partir desta nova perspectiva, não era mais apenas tolerável, mas sim desejável e
recomendável o envolvimento do evangélico com temas relacionados a assuntos antes tidos
como exclusivamente seculares, como a responsabilidade social, ambiental e a participação
política ativa.
é de supremo valor na vida social, e consequentemente, não deve ser usada como um simples
instrumento de produção, um animal de carga, uma fonte de exploração”; no item 4: “a vida
social requer cooperação em vez de conflito e concorrência, razão pela qual o lucro deve ser
substituído pelo serviço e pelo bem estar comum”; e no item 5: “A doutrina cristã sobre a
propriedade não é a da propriedade privada, mas sim a da mordomia, de maneira que os bens
devem ser adquiridos com justiça e usados para o bem da sociedade” [PADILLA, 2009, p.47].
O discurso de Baez-Camargo era, de fato, revolucionário, já que propunha mesmo a
construção de uma nova ordem totalmente destoante da lógica capitalista vigente, porém esta
nova ordem carrega um aspecto religioso que lhe é fundamental e a diferencia de qualquer
outra de idealização marxista:
La principal tarea de la Iglesia, como una comunidad de cristianos, es
producir hombres nuevos como material de construccíon - digamoslo así - del
nuevo orden, y prestar su decidida cooperación en toda tarea de edificacíon
social...Pero es menester también que los creyentes se organicen para una accíon
positiva em pro de la transformacíon social. Esto significa una participacíon activa
como indivíduos o como equipos, celulas o comandos, na promocíon activa de todo
lo que sea justo. Los cristianos deberian estar en primera línea en todas las buenas
causas, llevando a ellas el espiritu de Cristo, atacando de raiz los males sociales,
trabajando por mejorar los sistemas y las instituiciones, y promoviendo
incansablemente las reformas sociales más urgentes. (BAEZ-CAMARGO, 1960,
p.100).
Daniel Salinas introduz sua tese sobre a teologia evangélica latino-americana nos anos
70 com um panorama sombrio (SALINAS, 2009, p.3). A década de 1970, para os latinos, foi
marcada pela morte. Além das catástrofes naturais que levaram dezenas de milhares de vidas
e deixaram centenas de milhares de desabrigados no Peru, Nicarágua, Guatemala e República
Dominicana, as ditaduras militares se espalharam por todo o continente, trazendo consigo
repressão, prisões políticas, exílios, e misteriosos “desaparecimentos”. Brasil, Argentina,
Bolívia, Chile, Uruguai, Equador, El Salvador, Peru, Panamá, e Paraguai, todos estavam sob
controle direto dos militares. Guerras civis em El Salvador, Guatemala e Nicarágua levaram
mais alguns milhares, enquanto a violência se multiplicava na Colômbia e no Peru. Sob
influência da Revolução Cubana, muitas forças políticas revolucionárias se levantavam contra
seus governos, levando as elites conservadoras a buscar alianças no militarismo para refrear
os ventos de mudança que agitavam a América Latina. O evento, porém, despertou na
juventude da região o sentimento de que o imperialismo americano não era uma condenação
perpétua e inevitável, e deu voz a tendências nacionalistas e anticapitalistas.
Do ponto de vista econômico a situação também não era melhor. Acordos e alianças
entre os países do continente fracassaram, a dívida externa se acumulava em muitos bilhões, e
o abismo da desigualdade crescia. No Brasil, Chile, México e Venezuela, apenas 10% da
população concentrava mais de 65% das riquezas, enquanto os mais pobres concentravam
cada vez mais fome, desnutrição e doenças (SALINAS, 2009, p.4). No campo social, o êxodo
da população rural para o meio urbano exacerbava ainda mais os problemas já presentes. O
autor cita Orlando Costa, que resumiu a condição do continente como “dominado pela
opressão e repressão, imperialismo e colonialismo, fome e pobreza, poder e impotência,
frustração e desespero” (SALINAS, 2009, p.4).
Os números ajudam a compreender as necessidades, sentimentos e medos dos
latino-americanos dos anos 70, mas acima de tudo, seu sonho por autonomia e seu desejo de
forjar o próprio destino (SALINAS, 2009, p.5). Conscientes de seu lugar, da sua realidade e
do contexto que a produz, é deste sonho que nasce, entre os teólogos protestantes, o
movimento que se consolida na formação da FTL e deságua na teologia da missão integral.
40
Ao longo dos anos 60, Padilla falava sobre a pobreza teológica da América Latina,
lamentando o domínio que os norte-americanos exerciam também nesta área, e a forma como
questões locais eram abordadas com respostas estrangeiras. Se unindo a Samuel Escobar e
Pedro Arana, além do missionário Orlando Costas, Padilla criou uma coalizão incomum de
teólogos inquietos. O grupo compartilhava a experiência de viver em contextos desiguais e
injustos; também compartilhavam uma frustração com o modo como as grandes organizações
evangélicas tratavam os latino-americanos. Os três primeiros eram colegas da Comunidade
Internacional de Estudantes Evangélicos (CIEE), instituição de grande relevância na produção
teológica do continente e que no decorrer de toda a década de 60 discutia a pertinência do
evangelho para a realidade dos povos latino-americanos.
Sob o lema “que a Terra escute a sua voz”, o congresso foi organizado a partir de
1970 por Billy Graham. De acordo com a página oficial do Movimento de Lausanne, que
ainda hoje é ativo, Graham
“percebeu a necessidade de um congresso mundial para reestruturar a missão
mundial em um mundo de mudanças políticas, econômicas, intelectuais e religiosas.
Ele acreditava que a igreja precisava compreender as ideias e valores por trás das
rápidas mudanças que ocorriam na sociedade. (LAUSANNE, 2014).
René Padilla afirma que este parágrafo estabeleceu um pensamento que vinha sendo
forjado nos círculos evangélicos desde o início da década de 60, e destaca a contribuição da
Fraternidade Teológica Latino-Americana para o seu desenvolvimento (PADILLA, 2014,
p.18). Diversos oradores vinculados à FTL tiveram espaço relevante nas plenárias, assim
como um teólogo com experiência missionária no Brasil. Estes palestrantes colocaram o tema
da missão integral em lugar de destaque entre tantos que foram debatidos no congresso,
atraindo a atenção de John Stott, teólogo inglês de renome entre a comunidade evangélica,
que passou a cooperar com os latino-americanos. Na posição de líder do comitê que redigiu o
45
Este discurso naturalmente não foi aceito unanimemente e gerou polêmica. Mesmo
Stott, por exemplo, já havia rejeitado anteriormente essa visão, mas depois mudou de ideia, se
retratou em seu livro de 1975 “A missão cristã no mundo moderno” e se tornou amigo pessoal
de Padilla, usando sua influência na comunidade de teólogos norte-americanos para
aprofundar a inserção da perspectiva da missão integral nos círculos do “norte”. A
apresentação causou inquietude entre muitos líderes evangélicos, principalmente dos Estados
Unidos e da Inglaterra, mas também em alguns do dito Terceiro Mundo. O líder da
46
Intervarsity, agência cristã norte-americana, alertou Padilla sobre a reação da mídia às suas
palavras e o recomendou conter seu entusiasmo (KIRKPATRICK, 2021).
Em função do impacto do seu discurso na plenária, Padilla e Escobar, ao lado de
alguns teólogos americanos, reuniram um grupo de 500 participantes que denominaram grupo
de “discipulado radical”, que buscava refinar os elementos sociais no esboço do Pacto de
Lausanne. Após o congresso, Padilla se referia a este documento de discipulado radical como
a mais forte declaração baseada na missão integral já formulada por uma conferência
evangélica até aquela data, declarando a morte da dicotomia entre ação social e evangelismo
na missão cristã. Em Lausanne, os latino-americanos haviam ligado a ideia de missão da
igreja ao conteúdo da mensagem bíblica do evangelho, o qual considerava a realidade social
do seu contexto. Ao fazê-lo, desafiaram a teologia predominante do protestantismo
tradicional, que considerava a ação social como uma consequência da mensagem
evangelística, e não algo inerente a ela. Para muitos, entretanto, chamar a ética e ação social
de mensagem cristã soava mais do que deveria como evangelho social e liberalismo teológico.
Pode-se observar, desta vez, uma defesa clara da participação na política secular
como um dever religioso dos cristãos, de uma maneira mais geral, contradizendo décadas de
isolamento e afastamento dos protestantes desta esfera, e indo de encontro à teologia que
valorizava a dedicação exclusiva aos temas espirituais e o foco na conversão religiosa acima
de qualquer outra atividade.
Na terceira consulta, Padilla introduziu o conceito de contextualização do evangelho,
que se referia a uma busca pelas características culturais, sociais, econômicas e religiosas de
um povo, as quais deveriam figurar em qualquer análise teológica e deveriam ser
consideradas na aplicação do evangelho. Neste caso em particular, René Padilla defendeu uma
contextualização do evangelho para a América Latina, ou seja, um modo de pregar e viver o
evangelho que levasse em conta o seu contexto social, político e econômico. O autor produziu
então um estudo, no qual defendia essa posição a partir de pressupostos teológicos, refutando
as bases teológicas do trabalho missionário transcultural tradicional no Ocidente.
Na leitura deste estudo, fica claro que Padilla refere-se ao Ocidente como o “outro”,
consciente da condição periférica que a América Latina ocupava não apenas do ponto de vista
geopolítico, mas também de protagonismo religioso. Ao defender a contextualização do
evangelho, o autor reclama para os latinos o lugar de sujeito na construção de uma teologia
que faça sentido para a realidade do continente, e a prerrogativa de uma interpretação dos
dogmas cristãos que não seja apenas recebida do Ocidente, mas formada pelo contexto do
cristianismo e dos cristãos locais.
René Padilla ressalta que de forma alguma pode-se dizer que a maioria dos
envolvidos com o Movimento de Lausanne compartilhavam da visão integral da missão
cristã. Isto ficou evidente na Consulta sobre Evangelização Mundial, organizada pela
Comissão de Lausanne para a Evangelização Mundial no ano de 1980 em Pattaya, Tailândia.
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no Brasil dez anos antes, na ocasião do CELA III, então este posicionamento não é
surpreendente. Ainda assim, os brasileiros se destacam entre os outros latino-americanos que
viviam uma realidade política e social similar, já que as fontes os destacam como opositores
sem mencionar as comunidades de outros países. Pode-se arriscar dizer que os evangélicos
brasileiros eram – ou são – mais conservadores que os de outros países latino-americanos?
Por que? Estas são perguntas bastante pertinentes que ainda não serão respondidas no escopo
desta pesquisa. Considerar a aproximação do protestantismo brasileiro com o calvinismo
estadunidense, que teve papel fundamental na sua formação, porém, pode auxiliar a iluminar
esta questão. Paegle afirma que “o fato do fiel ser obediente, disciplinado, trabalhador, de boa
moral e não questionador ao status quo construía um modelo de fiel calvinista a ser seguido”
(PAEGLE, 2006, p.60). O autor destaca o conservadorismo e anticomunismo da comunidade
presbiteriana no Brasil ao longo da década de 60, porém o mesmo pode se aplicar a outras
denominações evangélicas, já que a base calvinista dos missionários norte-americanos do
século XIX se faz presente em maior ou menor grau em todas as denominações brasileiras,
formadas a partir do seu trabalho evangelístico.
A partir dos anos 90, o crescimento das igrejas neopentecostais tornou o
conservadorismo a ideologia dominante entre os evangélicos. Isto não significa que a TMI
tenha saído de cena definitivamente, mas que enfrentava novas barreiras e resistências. Se
durante as décadas de 60 e 70 jovens estudantes precisaram desconstruir valores
fundamentalistas antiquados e demonstrar para sua comunidade que a ação social e o
envolvimento político eram compatíveis com a missão evangélica, agora teólogos experientes
tinham que lidar com a acusação de “comunismo” por parte dos novos conservadores que
ganhavam cada vez mais espaço. Desde então, a crítica mais comum dos opositores da missão
integral é que tal teologia traz de modo disfarçado o marxismo para dentro das igrejas, a
despeito da negação que seus precursores faziam desta abordagem nos seus livros e discursos.
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CONCLUSÃO
neopentecostais, aos métodos de marketing massivo utilizados pelo último grupo, e também
aos princípios da teologia da prosperidade e reconstrucionismo cristão altamente difundidos
entre estes, que direcionam a atuação política dos evangélicos para o conservadorismo e a
extrema-direita.
Um aspecto da doutrina da TMI que pode ter contribuído fortemente para o
crescimento do número de evangélicos na América Latina é a ênfase na responsabilidade de
todos os cristãos para com a “missão”. Se por tantos anos, evangelizar era trabalho quase
exclusivo dos missionários enviados para países distantes, a TMI dizia o oposto: todos os
evangélicos devem se dedicar ao evangelismo. Para tanto, não é necessário abandonar seu
emprego nem seu país: é possível realizar sua missão ao “pregar a palavra” para seus
familiares, vizinhos e pessoas do seu convívio cotidiano; outro modo de cumprir seu dever é
através das obras de assistência social nas comunidades pobres de sua própria cidade. Com
um número muito maior de “missionários”, e um incentivo cada vez maior a expandir seu
trabalho para as periferias e os grupos marginalizados, o protestantismo latino-americano
realizava mais uma vez, agora com força renovada, a sua vocação para religião popular.
Outro fator ainda a ser explorado para compreender este fenômeno é o papel das
igrejas neopentecostais, que começaram a surgir no continente justamente no final da década
de 70, e rapidamente se tornaram algumas das maiores denominações evangélicas nos países
onde atuam. Estas igrejas, desde seu nascimento, se desvincularam dos antigos valores de
isolamento político evangélico, mas cultivaram o conservadorismo fundamentalista do
passado missionário. É possível encontrar nos seus métodos de administração e de
proselitismo a raiz deste crescimento, assim como no uso que fazem seus líderes do poder
econômico e influência política adquiridos ao longo de sua expansão.
A pesquisa que foi desenvolvida nestas páginas suscita, enfim, mais perguntas do
que respostas. Sabemos que os evangélicos, como força política ativa, vieram para ficar.
Ainda há, entre eles, espaço para a TMI e seus valores? Teriam os conservadores dominado de
modo definitivo a comunidade, suas pautas e demandas, ou há ainda espaço para um
evangelho social, que apesar de suas diferenças, milita ao lado de marxistas e católicos da
libertação por justiça e igualdade? Seriam os evangélicos no Brasil, de fato, mais
conservadores que seus vizinhos? Ou são apenas mais vocais na defesa de suas posições? Por
que o Uruguai figura à parte de todos os outros latino-americanos ao frear este crescimento e
manter os evangélicos como minoria, enquanto sua população abandona a religião? Quais as
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razões – históricas e sociológicas – que levam a estas diferenças? A propósito, este é um tema
que exige, para ser compreendido profundamente, o trabalho conjunto de várias áreas:
historiadores, sociólogos, psicólogos sociais. À historiografia, em particular, cabe ainda
construir o processo que levou à consolidação dos conservadores como força principal dentro
da comunidade latino-americana e particularmente da brasileira, e à sua radicalização
antimarxista, adotando pautas que, ao menos à primeira vista, vão contra os princípios
bíblicos que regem a fé protestante e séculos de reflexão teológica.
Cavalcanti afirma que no Terceiro Congresso Latino-Americano de Evangelização,
promovido pela FTL em Quito em 1992, foi reafirmada mais uma vez a opção pelos
pressupostos da teologia da missão integral. Porém, pela troca de experiências, já era possível
notar um crescente envolvimento dos protestantes na política continental pela direita
(CAVALCANTI, 2002, p.179). Sendo assim, pode-se considerar que a embora a TMI tenha
conseguido quebrar o paradigma do cristão isolado da vida secular, dedicado apenas a resgatar
o máximo possível de almas do mundo decadente, e aberto as portas da representação política
para os evangélicos, as sementes de uma atuação à direita já começavam a se manifestar
desde o início da década de 90. Seria esta tendência um resquício do processo de formação
das igrejas latinas por missionários conservadores, e uma permanência dos valores que
trouxeram consigo dos Estados Unidos no século XIX, ou há fatores novos que começaram a
afetar mais significativamente a comunidade nos anos 90? Uma outra possibilidade é que os
dogmas da religião estejam intrinsecamente mais relacionados a posicionamentos defendidos
pela direita. Mas neste caso, como se explicaria a amplitude que tomou a TMI, uma teologia
progressista, em tão pouco tempo, e a sua promoção pelos mais respeitados teólogos
latino-americanos?
Ao longo da pesquisa, pudemos compreender as causas que levaram ao
estabelecimento de uma teologia conservadora, voltada para a ética individual, a moralidade
sexual e a conversão do maior número possível de fiéis, e como estes posicionamentos
levaram a uma rejeição dos protestantes à atuação política e social. Compreendemos também
as razões que levaram ao surgimento de uma teologia diferente na América Latina, voltada
para as necessidades e a realidade dos países da região. Conhecemos quais as resistências que
enfrentou. Sua influência continua presente – todas as instituições mencionadas no texto são
ainda ativas em 2022. Vemos hoje, no entanto, efeitos talvez não planejados: seu sucesso em
trazer aos evangélicos o reconhecimento da necessidade de ser um cidadão consciente de seu
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papel político, porém as limitações em estabelecer a luta pela justiça social como uma pauta
cristã. Para tanto, seria ainda necessário vencer o anticomunismo que domina a comunidade.
Estabelecer uma distinção entre vida religiosa e vida civil, permitindo que
evangélicos adotem ou ao menos tolerem na vida pública pautas conflitantes com valores
religiosos individuais, nunca foi um objetivo da TMI nem de nenhum outro movimento
significativo entre os protestantes, porém é um passo essencial para reduzir as tensões
produzidas pela existência de uma maioria religiosa politicamente ativa em Estados laicos
como são as repúblicas na América Latina.
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FONTES
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