TCC Completo - Giovanna Terra

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
CURSO DE HISTÓRIA

Giovanna Silva Terra

Os evangélicos da missão integral e a política na América Latina (1970-1990)

Florianópolis
2022
Giovanna Silva Terra

Os evangélicos da missão integral e a política na América Latina (1970-1990)

Trabalho Conclusão de Curso submetido ao curso de


Graduação em História do Centro de Ciências Humanas
da Universidade Federal de Santa Catarina como
requisito parcial para a obtenção do título de
Bacharel/Licenciado em História.

Orientador: Prof. Dr. Waldir José Rampinelli

Florianópolis
2022
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,
através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Terra, Giovanna
Os evangélicos da Missão Integral e a política na
América Latina : (1970-1990) / Giovanna Terra ;
orientador, Waldir Rampinelli, 2022.
57 p.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) -


Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Graduação em História,
Florianópolis, 2022.

Inclui referências.

1. História. 2. Missão Integral. 3. Evangélicos. 4.


América Latina. I. Rampinelli, Waldir. II. Universidade
Federal de Santa Catarina. Graduação em História. III. Título.
UNIVERSIDADEFEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS
COLEGIADO DO CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTORIA

ATA DE DEFESA DE TCC

Aos seis dias do mês de setembro do ano de dois míl e vinte e dois, às dezesseis
horas nÓ NEHAL, Departamento de História, Centro de Filosofia e Ciências Humanas -*
Universidade Federal de Santa Catarina, reuniu-se a Banca Examinadora composta pelo
Professor Wald.ir José Rampinelli, Orientador e Presidente, pelo Professor Eduardo
Paegle, Titular da E3ancae pelo Professor Adriano Duarte, Suplente, designados pela
Portaria n' 22/2022/HST/CFH da Senhora Chefe do Departamento de História, a fim de
arguiremo Trabalhode Conclusãode Curso da acadêmicaGiovanna Silva Terra,
subordinadoao título: "Os evangélicos da missão integral e a política na América
Latina". Aberta a Sessão pelo Senhor Presidente, o acadêmico expôs o seu trabalho.
Terminada a exposição dentro do tempo regulamenta(, .a mesma foi arguida pelos
membros da Banca Examinadora e, em seguida, prestou os esclarecimentos necessários.
Após, foram atribuídas notas, tendo a candidata recebidodo Professor Waldir José
Rampinellia nota final..J.Q.. do Professor Eduardo Paegle a nota final ../.Q. e do
Professor Adriano Duarte a nota final--Ê.:= sendo aprovado(a) com a nota final ......... A
acadêmica deverá entregar o Trabalho de Conclusão de Curso em sua forma definitiva
em versão digitalao Departamentode Históriaàté o dia treze de setembrode dois mil e
vinte e dois. Nada mais havendo a tratar, a presente ata será assinada pelos membros da
Banca Examinadora e pela candidata

Florianópolis, 06 de setembro de 2022

Banca Examinadora
Prof. Waldir José Rampinelli .;â.#-(- '-'\
Prof. Eduardo Paegle
Prof. Adriano Duarte
b Ú P 1..e. 1J 't e

Candidata Giovanna Silva Terra

7
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Campus Universitário Trindade
CEP 88.040-900 Florianópolis Santa Catarina
FONE (048) 3721-9249 - FAX: (048) 3721-9359

Atesto que a acadêmica Giovanna Silva Terra, matricula n.˚ 17201099, entregou a versão
final de seu TCC cujo título é “Os evangélicos da Missão Integral e a política na
América Latina: (1970-1990)”, com as devidas correções sugeridas pela banca de defesa.

Florianópolis, 21 de setembro de 2022.

Orientador
Este trabalho é dedicado aos meus pais, que me abriram as
portas para a vida e para os estudos.
RESUMO

A teologia da missão integral surge no final dos anos 60 na América Latina como uma
proposta de evangelismo contextualizada à realidade do continente, destacando a ação social e
a participação política como aspecto fundamental da missão cristã e apresentando-se como
alternativa ao modelo conservador de proselitismo protestante. Busca-se nesta pesquisa
compreender as origens do movimento entre os evangélicos na América Latina e investigar
sua relação com o processo de inserção deste grupo na política do continente a partir da
década de 70. As principais fontes são os materiais escritos pelos precursores da missão
integral no período, René Padilla e Samuel Escobar, enquanto a base teórica e metodológica
utilizada é a História Global no modelo proposto por Sebastian Conrad, com foco
principalmente nas conexões entre América Latina e Estados Unidos relacionadas às
influências religiosas entre os protestantes e ao contexto geopolítico do período. O primeiro
capítulo introduz o contexto histórico, social e religioso do continente, assim como conceitos
essenciais para a compreensão do tema, enquanto o segundo desenvolve os principais
acontecimentos relacionados ao surgimento da missão integral e seus efeitos. O estudo
conclui que a TMI foi fator determinante para a promoção da abertura da comunidade
evangélica à participação política, embora o principal elemento que resulta no cenário atual
seja o crescimento do neopentecostalismo, intensificado a partir dos anos 90.

Palavras-chave: Missão Integral. Evangélicos. Política Latinoamericana.


ABSTRACT
The theology of integral mission emerged in the late 1960s in Latin America as a proposal for
evangelism contextualized to the reality of the continent, highlighting social action and
political participation as a fundamental aspect of the Christian mission and presenting itself as
an alternative to the conservative model of protestant proselytism. This research seeks to
understand the origins of the movement among evangelicals in Latin America and investigate
its relationship with the process of insertion of this group into the continent's politics from the
70's onwards. The main sources are the materials written by the precursors of integral mission
in the period, René Padilla and Samuel Escobar, while the theoretical and methodological
basis used is Global History in the model proposed by Sebastian Conrad, focusing mainly on
the connections between Latin America and the United States related to religious influences
among Protestants and the geopolitical context of the period. The first chapter introduces the
continent's historical, social and religious context, as well as essential concepts for
understanding the theme, while the second develops the main events related to the emergence
of integral mission and its effects. The study concludes that TMI was a determining factor in
promoting the opening of the evangelical community to political participation, although the
main element that results in the current scenario is the growth of neopentecostalism,
intensified from the 90s.

Keywords: Integral Mission. Evangelicals. Latin-american politics.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 15
1 CONCEITOS 19
1.1 QUEM SÃO OS EVANGÉLICOS 19

1.2 BREVE HISTÓRICO DO PROTESTANTISMO NO BRASIL E NA AMÉRICA


LATINA 23

1.3 AS ORIGENS POPULARES DO PROTESTANTISMO NA AMÉRICA LATINA 26

1.4 EVANGELHO SOCIAL E FUNDAMENTALISMO 28

1.5 MISSÃO TRANSCULTURAL E IMPERIALISMO 31

1.6 UM NOVO PARADIGMA 33

1.7 A MISSÃO INTEGRAL E O MARXISMO 34

2 A TMI ENTRA EM CENA 37


2.1 O CONTEXTO LATINO-AMERICANO E OS PIONEIROS DA TMI 37

2.2 A FRATERNIDADE TEOLÓGICA LATINO-AMERICANA 39

2.3 O CONGRESSO DE LAUSANNE 41

2.4 APÓS LAUSANNE 44

2.5 RESISTÊNCIAS E RESULTADOS 45

CONCLUSÃO 48
FONTES 52
REFERÊNCIAS 53
15

INTRODUÇÃO

No trabalho a seguir, veremos o que se poderia chamar de protagonismo dos


subalternos. Este conceito foi utilizado pela primeira vez por intelectuais indianos, em
especial na obra de Ranajit Guha, na década de 80, e se refere aos grupos marginalizados, que
não tem voz, representatividade ou espaço de ação social.
Tradicionalmente, o centro do cristianismo, seja ele católico ou protestante, sempre
esteve nos países do norte geopolítico do Ocidente, ou seja, nas antigas – e atuais –
metrópoles coloniais e imperialistas, em particular na Europa Ocidental e nos Estados Unidos.
As ordens, as tendências, as tradições e as estratégias partiam de cima para baixo, impostas às
periferias, que eram os alvos de tais ações. O que podemos observar com o movimento da
teologia da missão integral é uma inversão desta lógica. Embora os debates tenham surgido
em congressos mundiais organizados pelos países de tradição cristã da Europa e da América
do Norte, rapidamente os latino-americanos tomaram a frente do processo que mudaria o
paradigma de evangelização, e consequentemente, de participação social de todos os cristãos
protestantes. Foi na América Latina que este processo atuou com maior força, e de onde
surgiram suas principais lideranças. Também é a região onde seus efeitos são mais visíveis e
duradouros.
O crescimento espetacular dos evangélicos, tanto numérica quanto politicamente,
trouxe para o centro dos debates temas antigos a partir de novos ângulos. As dicotomias
Igreja/Estado, fé/ciência, individual/coletivo, se mostram mais relevantes do que nunca no
embate público. Mas nem sempre foi assim. Ao longo da maior parte da sua história, os
evangélicos foram um grupo minoritário, com participação política marginal. Seu lugar no
palco da política sempre foi coadjuvante, nunca de ator principal. Mas nas décadas finais do
século XX este cenário se transformou. Podemos observar que a partir dos anos 70, o número
de evangélicos no Brasil e na América Latina cresceu de modo exponencial – e a presença de
agentes políticos que se identificam como evangélicos e se apresentam como representantes
dos interesses deste grupo cresceu junto, assim como sua influência em decisões que
impactam direta e significativamente a vida de todos os cidadãos.
O que mudou então? O que ocorreu nos últimos 50 anos, que explica a mudança
radical no cenário religioso da América Latina? Estas perguntas não têm respostas simples.
Ao longo destes anos, o continente enfrentou ditaduras, ciclos de crescimento e crises
16

econômicas, transformações sociais de todos os gêneros. Sendo a religião um elemento


central da cultura nestas sociedades, em constante mudança e em diálogo com outros aspectos
da vida, não poderia ficar indiferente a estas influências. Um observador do passado poderia
mesmo supor que a globalização e a consolidação do capitalismo como força dominante
levariam a uma secularização da sociedade e à redução da importância da religião – Leonildo
Silveira Campos menciona alguns analistas que sustentavam que secularização, capitalismo e
modernização seriam processos históricos culturais inter-relacionados e concomitantes – mas
não foi o que ocorreu (CAMPOS, 2000, p.30). Apenas uma combinação de fatores ainda a
serem explorados e compreendidos poderia trazer explicações satisfatórias.
Não seria possível, portanto, discutir nestas poucas páginas todas as possíveis causas
da transformação política e demográfica no cenário religioso brasileiro. Por isso, se limitarão
a tratar particularmente da Teologia da Missão Integral – ou TMI. Tal teologia pode ser
definida como uma doutrina que considera a ação social, em seu aspecto prático e político,
como uma parte fundamental da missão de todo cristão, em igualdade com o evangelismo,
não como um meio para a realização deste. Essa doutrina nasce a partir de um movimento
teológico surgido nesse período entre jovens estudantes evangélicos em diversos países da
América Latina, e propõe uma abordagem holística da missão dos cristãos protestantes, a qual
não deveria mais ficar restrita ao evangelismo e aos cuidados espirituais, mas atuar nas
necessidades humanas em todas as suas formas. Para um evangélico da missão integral, a
missão é para todos os cristãos, que devem atuar em todos os lugares e em todos os aspectos
da existência humana, daí o nome Integral. Esta perspectiva trouxe uma mudança nos
fundamentos e nas práticas de proselitismo, assim como redefiniu o modo como a
comunidade entendia seu papel político. A partir de seu surgimento, a participação na política
e nos governos “mundanos” passou a ser percebida por parte significativa dos evangélicos não
apenas como tolerável, mas também como desejável.
A inovação da TMI em relação a outras versões do evangelho social é a sua
característica contextual, regionalizada e propositalmente construída para o abarcar as
necessidades locais dos latino-americanos que a formularam. Neste trabalho discutiremos o
papel do movimento no processo de inserção política dos evangélicos no continente. Como
nasceu, como se consolidou na América Latina e quais foram seus impactos mais
significativos. Compreenderemos as rupturas que provocou com antigos valores e tradições
17

cristãs e as resistências que enfrentou, assim como sua perspectiva de futuro na comunidade
protestante e na sociedade de modo geral.
A tese principal que será defendida nas próximas páginas afirma a TMI como o
movimento que forneceu de modo definitivo o subsídio teológico para a defesa do
envolvimento evangélico em assuntos seculares, alterando o modo como os evangélicos
tradicionalmente percebiam a participação política por parte dos membros da comunidade.
Também afirma que a sua origem está no contexto das relações verticais entre os americanos
do norte e os do sul, nascendo a partir do ímpeto de libertação das influências externas e das
tendências nacionalistas e revolucionárias que fermentavam no contexto global de guerra fria
e de ideais marxistas materializados no continente pela Revolução Cubana. Para tanto, será
apresentado ao leitor o contexto histórico de formação da comunidade evangélica e seus
efeitos na construção da ideologia da comunidade, particularmente na América Latina e no
Brasil, assim como o contexto sociopolítico onde nasceu a TMI. Não sendo a missão integral
o único fator responsável pela intensa presença política dos evangélicos, ela é, no entanto,
desencadeadora do processo que levou a este cenário no contexto latinoamericano, ao aplicar
pressupostos do evangelho social de modo contextual para o continente, e portanto, pioneiro.
Sendo assim, o objetivo desta pesquisa é apresentar esta teologia dentro de uma perspectiva
historiográfica, ou seja, situá-la dentro de um contexto e um processo histórico onde se
relaciona a outros fenômenos anteriores e posteriores, e se coloca como resistência à
dominação ideológica estadunidense na América Latina no campo da religião.
As fontes que serão utilizadas nesta pesquisa são os materiais escritos e discursos do
principal precursor da TMI na América Latina, o teólogo René Padilla, e as atas e manifestos
publicados por instituições evangélicas durante as décadas de 70 e 80. Acessoriamente, serão
utilizados também os textos de Samuel Escobar e as entrevistas concedidas pelos teólogos
para a revista Ultimato, em 2015. Na ocasião de sua morte, em 2021, a revista Christianity
Today apelidou René Padilla pela alcunha de “Pai da Missão Integral”. Nas palavras do
teólogo, ação social e evangelismo são como “as duas asas de um avião” (KIRKPATRICK,
2021). Pela sua relevância e seu papel de protagonista na construção da TMI, os livros e
palestras de Padilla são a fonte ideal para fornecer um panorama do que foi este movimento
em seus primeiros anos e de seu processo de formação. Esta escolha de fontes define o recorte
temporal, já que a maior parte do material foi produzido entre 1970 e 1990. Foi também a
partir da década de 90 que se manifestou de modo mais significativo o crescimento dos
18

neopentecostais e do conservadorismo na comunidade. Tratar desta temática com a


profundidade adequada, no entanto, requer um trabalho mais robusto que fugiria do escopo e
do propósito desta pesquisa.
No primeiro capítulo, serão apresentados os principais conceitos necessários para
situar os sujeitos dentro do recorte escolhido e da temática. Será definido quem são os
evangélicos aqui tratados, e apresentados de forma breve o contexto da sua presença na
América Latina. Também trataremos do conceito de missão integral, fundamental para a
compreensão do processo aqui discutido, e de sua relação, semelhanças e diferenças com
outros movimentos e correntes de pensamento dos quais se aproxima pela práxis ou objetivo.
No segundo capítulo, serão abordados o contexto político e religioso que originou a TMI.
Também serão apresentados os eventos que levaram ao seu crescimento e difusão, assim
como as reações e efeitos dentro da comunidade. Concluiremos com uma reflexão a respeito
da relevância da TMI no contexto atual e sua representatividade no posicionamento político
dos evangélicos.
Aqui também se verão as características daquilo que Sebastian Conrad chama de
“história baseada no conceito de interações”. O fenômeno aqui estudado é, desde sua origem,
global, e qualquer tentativa de isolá-lo a uma localidade resultaria em uma pesquisa
incompleta, em perguntas não respondidas e respostas não explicadas. Mesmo ao olhar para o
tema a partir de outras perspectivas, a conexão com os com os processos que se desenvolviam
em outras partes do mundo é forte demais para ser ignorada. Ao olhar com uma lente de
aumento para o que se passa em um lugar e tempo específicos, surgem diante do observador
uma infinidade de fios e caminhos que exigem ser traçados e levam a outros espaços e
lugares. O foco nestas conexões é, portanto, a escolha metodológica natural. O processo que
será apresentado neste trabalho surge aqui, na América Latina. Mas surge em reação aos
valores e paradigmas que ao longo dos séculos foram dominantes no Ocidente e dos quais o
continente foi objeto. Surge como uma resposta a outros processos muito mais antigos que
formaram a realidade política e social do continente.
Sendo assim, o recorte espacial da América Latina não é uma restrição de espaço para
o debate, mas antes, uma escolha de protagonismo. Entre todos os atores envolvidos, os
líderes religiosos protestantes latino-americanos são os que estão em melhor posição para
possibilitar uma visão do que foi a teologia da missão integral, pois foram os mais ativos
19

desde o nascimento do debate até sua implantação prática. Foi a América Latina o maior
laboratório e o campo onde se viu os principais efeitos da nova política de evangelização.
20

1. CONCEITOS

1.1. QUEM SÃO OS EVANGÉLICOS

Definir um grupo tão diverso quanto os evangélicos não é tarefa simples. No


contexto deste trabalho, será utilizada a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, definida pelo órgão em conjunto com o Instituto de Estudos da Religião (ISER). O
IBGE divide este grupo em três categorias, e são considerados evangélicos todos os que se
autodeclaram afiliados a qualquer uma delas. São elas:
a) Evangélicos de Missão (históricos) - Luterana, Presbiteriana, Metodista, Batista,
Congregacional, Adventista, Outras: as igrejas evangélicas de missão são aquelas cuja origem
pode ser traçada diretamente aos grupos formados no período da reforma protestante, que
ocorreu na Europa durante o século XVI.
b) Evangélicos de origem Pentecostal - Assembleia de Deus, Congregação Cristã do
Brasil, O Brasil para Cristo, Evangelho Quadrangular, Universal do Reino de Deus, Casa da
Benção, Deus é Amor, Maranata, Nova Vida, Comunidade Evangélica, Evangélica renovada
não determinada, Outras: inclui as denominações surgidas a partir do movimento de
avivamento espiritual iniciado nos Estados Unidos nos primeiros anos do século XX. Inclui
também as neopentecostais.
c) Evangélica não determinada: quando o respondente se identifica apenas como
evangélico, sem declarar afiliação a qualquer dos grupos citados nas outras duas categorias
listadas.
Embora o termo “protestante” seja mais relacionado aos evangélicos de missão ou
“históricos” do que aos pentecostais, na América Latina se utiliza indistintamente os termos
“protestante” e “evangélico” para designar o mesmo grupo, ao contrário dos Estados Unidos,
onde esta distinção é mais difundida no idioma. Neste trabalho ambos serão tratados como
sinônimos.
Lyndon de Araújo Santos, em sua obra sobre a história dos evangélicos no Brasil, os
define como “o grupo de igrejas que se originaram do movimento reformado protestante do
século XVI e que de alguma forma, guardaram e ainda guardam este evento como referência
histórica, religiosa e teológica” (SANTOS, 2017, p.14). Dentro deste grupo, há subgrupos que
partilham internamente de uma identidade comum baseada na sua origem histórica e dogmas
21

teológicos, aos quais chamamos de “denominação”. Luterana, Batista, Assembleia de Deus e


Universal do Reino de Deus, por exemplo, são diferentes denominações evangélicas. Sendo
assim, é importante destacar que não é possível falar da “igreja evangélica”, no singular,
como se fala da igreja católica; apenas de “igrejas evangélicas”, já que não há uma liderança
ou organização única cuja autoridade seja reconhecida por toda a comunidade, nem mesmo
um único conjunto doutrinário, ou uma instância superior que disponha da prerrogativa de
definir o que é ortodoxia e "heresia".
A análise dos resultados do Censo de 2010 afirma que desde o primeiro recenseamento
nacional até 1970, a principal característica religiosa do Brasil foi a prevalência do
catolicismo romano como religião majoritária da população brasileira, resultado direto do
processo histórico de colonização e da atribuição do status de religião oficial do Estado ao
catolicismo, que prevaleceu até a primeira constituição republicana de 1891 (IBGE, 2010,
p.89). Entre 1872 e 1970, a proporção de católicos reduziu de 99,7% para 91,8%, uma queda
de 7,9 pontos percentuais em praticamente cem anos. A partir dessa década, contudo,
observou-se um rápido declínio no número de católicos. Quarenta anos depois, em 2010, os
autodeclarados católicos eram 64,6% da população. Embora os espíritas e os sem afiliação
religiosa tenham apresentado crescimento, a pesquisa indica que a maior parte dos fiéis
católicos migraram para a religião evangélica, que passou de 5,2% em 1970 para 22,2% em
2010, o que correspondia a mais de 42 milhões de brasileiros. Ao que indicam as estimativas
populacionais citadas por José Eustáquio Alves, até 2030 o Brasil não terá mais maioria
católica, e até 2040 já terão sido ultrapassados pelos evangélicos em números absolutos
(ALVES, 2017, p. 217). Em seu artigo “Distribuição espacial da transição religiosa no Brasil”,
publicado pela revista de sociologia da USP em 2017, o autor discute com mais detalhes esse
fenômeno da migração entre religiões no país.
Não é apenas no Brasil, entretanto, que se observam as transformações relatadas. O
Pew Research Center realizou em 2014 uma pesquisa de grande porte em 18 países na
América Latina e também Porto Rico. De acordo com a pesquisa, de 1900 a 1960, acima de
90% da população no continente se declarava católica. Em 2014, apenas 69% se identificam
como tal, enquanto 19% se declaram evangélicos. Na maioria dos países pesquisados, pelo
menos metade dos evangélicos foram batizados como católicos na infância (PEW, 2014, p.2).
Em sua obra de 2017, José Luiz Perez Guadalupe afirma que em Honduras e Guatemala, os
dois países com menor porcentagem de católicos na América Latina, os evangélicos já
22

estavam muito próximos de alcançá-los numericamente, com 40% e 41% de sua população,
respectivamente, ante 47% de católicos. As exceções até então são o Uruguai, que vê uma
migração maior dos ex-católicos para os que se declaram “sem afiliação religiosa”, Paraguai e
Equador, ambos com ainda mais de 80% de sua população adepta do catolicismo. Guadalupe
também traz outro dado importante: os evangélicos costumam ser muito mais militantes e
comprometidos com suas igrejas que aqueles que se declaram católicos. Sendo assim, é
necessário diferenciar confessionalidade de militância religiosa. O percentual evangélico não
pode ser comparado apenas em termos quantitativos de pertencimento, já que os evangélicos
se mostram muito mais envolvidos com suas igrejas (GUADALUPE, 2017, p. 19).
No Brasil, o Censo traçou também o perfil socioeconômico dos evangélicos. Em sua
maior parte, são mulheres, e a faixa etária mediana é de adultos jovens (27-29 anos). Estão
presentes significativamente mais nas áreas urbanas (23,5%) do que nas rurais (14,5%).
Porém pode-se perceber diferenças significativas entre os evangélicos de missão e os
pentecostais. Enquanto os primeiros têm 51,6% de adeptos brancos, entre os segundos 57,4%
são pretos ou pardos. Entre os de missão, 45% cursaram o ensino médio ou superior. Já entre
os pentecostais, 70% possuem formação até o ensino fundamental, e 64% possuem renda per
capta até 1 salário mínimo (IBGE, 2010, p.104). No Brasil menos de 20% dos evangélicos são
de igrejas protestantes históricas, enquanto os pentecostais são 60% do total no país. Este
dado é ratificado pelos resultados da pesquisa da Pew Research, desta vez em âmbito
continental: na América Latina, menos de um quarto são afiliados a denominações de missão,
e 65% são pentecostais por identificação ou denominação. Entre estas, a mais comum nos
países pesquisados, incluindo o Brasil, é a pentecostal Assembleia de Deus (PEW, 2014, p. 5).
Levando tudo isso em conta, pode-se dizer que o evangélico médio no Brasil é
pentecostal, mulher, negra, trabalhadora urbana, com escolaridade até o nível fundamental e
renda de até 1 salário mínimo. Isto não necessariamente significa que o pastor terá
ascendência sobre o fiel, já que não há, em muitas denominações, a exigência comum de uma
educação especializada para a formação de sacerdotes evangélicos, como há entre os padres
católicos (embora algumas sejam mais rigorosas quanto a este quesito), e frequentemente os
líderes são oriundos do mesmo meio e partilham da condição social e acadêmica do restante
da igreja. Santos afirma que
“Os evangélicos hoje representam uma das expressões mais populares da
religiosidade brasileira e latino-americana, situada nas camadas sociais mais baixas e
23

nas periferias das cidades. As igrejas evangélicas são predominantemente femininas,


negras e pobres, híbridas nas práticas e nos discursos.” (SANTOS, 2017, p.13).

Seria equivocado, no entanto, tratar a todos como uma grande massa homogênea, sem
considerar a imensa diversidade que existe entre as muitas comunidades ou mesmo
internamente. As diferentes denominações podem, por exemplo, seguir uma variedade de
modelos de governo eclesiástico, que determinam de que modo as decisões serão tomadas e
quem possui maior poder para tal. Seguem as mais frequentes:
a) Episcopado: Em uma igreja episcopal, há um dirigente central com autoridade e
poderes diferenciados que é responsável pelas decisões mais importantes e pela nomeação dos
demais líderes. As denominações que adotam este regime são marcadas por uma forte
estrutura hierárquica e pela pouca autonomia das congregações para definir suas próprias
diretrizes. Esta estrutura é comum tanto entre igrejas de missão, como a Anglicana e a
Metodista, quanto entre igrejas pentecostais e neopentecostais, como a Assembleia de Deus, a
Igreja do Evangelho Quadrangular e a Universal do Reino de Deus. Frequentemente,
pequenas igrejas independentes e sem vinculação com denominações seguem também este
modelo, tendo no pastor a autoridade máxima da igreja.
b) Presbiterianismo: Este modelo de gestão eclesiástica pressupõe a existência de um
corpo de anciãos ou presbíteros que são responsáveis pela manutenção da comunidade tanto
do ponto de vista administrativo como espiritual, e as decisões importantes são tomadas nas
assembleias de anciãos denominadas Concílios. Não há hierarquia entre os membros
individuais ou presbíteros, mas há hierarquia entre os concílios: cada igreja local tem um
concílio próprio, que respondem aos concílios regionais (ou presbitérios), que por sua vez
respondem às decisões dos sínodos e do concílio supremo. Os membros dos concílios são
eleitos para mandatos de tempo determinado, como em uma democracia representativa, mas
suas decisões devem ser acatadas pela comunidade. Esta estrutura é encontrada na igreja
Presbiteriana e outras de origem e tradição calvinista.
c) Congregacionalismo: Neste regime, as igrejas locais têm completa autonomia em
todos os níveis. É convocada regularmente uma assembleia, reunindo todos os membros da
congregação local, que tem igual poder de voz e voto em todas as decisões, que são
registradas em atas e devem ser acatadas pela liderança da igreja. Embora o pastor seja
considerado o líder espiritual da comunidade, ele pode ser demovido do cargo se a assembleia
dos membros assim o decidir. As igrejas congregacionais de mesma denominação costumam
24

estar vinculadas por “Convenções” ou Federações, as quais, contudo, não possuem nenhum
poder normativo sobre as unidades locais, senão como espaço de integração, identidade e
cooperação. Exemplos de igrejas que seguem o modelo congregacional: Batistas,
Congregacionais.
Além das claras diferenças em organização política e administrativa, há também uma
grande diversidade em outros aspectos da vida religiosa: os limites da atuação das mulheres e
a forma como se definem os papéis de gênero tanto dentro da igreja como na vida privada; as
liberdades permitidas aos jovens, os costumes relacionados a vestimentas, cuidados com o
corpo e o consumo de álcool, a relação com as festas e datas comemorativas seculares ou de
outras religiões, como festa junina, carnaval e ano-novo, a adesão a símbolos seculares das
festas tidas como cristãs pelos protestantes, como natal e páscoa, a postura diante dos
relacionamentos com pessoas de fora da religião, e a tolerância a outras práticas religiosas.

1.2. BREVE HISTÓRICO DO PROTESTANTISMO NO BRASIL E NA


AMÉRICA LATINA

O primeiro momento do protestantismo na América Latina se deu a partir da chegada


de imigrantes e colonos europeus no continente. Sendo as metrópoles Espanha e Portugal
oficialmente católicas, este contato foi pontual e minoritário. Segundo Gilma Vargas, em seu
trabalho sobre a história do pentecostalismo na Colômbia, houve várias tentativas de trazer a
fé reformada para Nova Granada, mas todas foram fortemente reprimidas pelo Tribunal da
Inquisição de Cartagena (VARGAS, 2014, p.9). No Brasil, a presença protestante se resumiu
às tentativas de estabelecimento de colônias francesas de tradição huguenote no Rio de
Janeiro em 1555 e à experiência holandesa.
Apesar dos conflitos de interesses entre a coroa portuguesa e o clero católico, a
constituição de 1824 assegurou a primazia do catolicismo romano como a religião oficial no
Brasil. As minorias religiosas eram toleradas, apesar de algumas restrições de direitos civis.
Deste modo, o anglicanismo e o luteranismo entraram no país por meio dos comerciantes
ingleses e imigrantes alemães, mas permaneciam restritos a estes núcleos, alheios à sociedade
brasileira já estabelecida. Apenas em 1851, o americano James Cooley Fletcher iniciou um
movimento de conversão do Brasil ao protestantismo, o qual associava ao progresso e ao
desenvolvimento científico, econômico e tecnológico. Suas ideias tiveram boa receptividade
25

entre os políticos e intelectuais liberais. Estes planos começaram a entrar em prática com a
chegada do missionário escocês Robert Reid Kalley, pioneiro na língua portuguesa que
fundou a primeira comunidade protestante brasileira. Foi no mesmo período que as igrejas
protestantes chegaram a outros países do continente. No Peru, a primeira igreja evangélica foi
fundada em 1889 pelo missionário metodista Francisco Penzotti, de origem ítalo-uruguaia.
A primeira constituição republicana brasileira, de 1891, decretou definitivamente a
separação entre Igreja e Estado e colocou fim à perseguição institucional contra a minoria
protestante, embora atos de violência e intolerância religiosa ainda prosseguissem por muito
tempo. Em 1910, a comunidade no Brasil já contava com mais de 46 mil membros e era a
maior da América Latina (CAVALCANTI, 2002, p. 192). A atuação protestante focava então
na educação, estabelecendo escolas e seminários ligados às igrejas.
Foi neste período que ocorreu um dos movimentos mais importantes da história do
cristianismo contemporâneo, que Leonildo Silveira Campos descreve como “o movimento
religioso de maior amplitude do século XX” (CAMPOS, 2000, p.9). O Avivamento da Rua
Azuza é considerado o marco histórico do início do pentecostalismo no mundo, apesar de não
ser a primeira manifestação do gênero (BARBA, 2022, p.132). Em abril de 1906, em um
imóvel antigo na rua Azuza, no subúrbio de Los Angeles, o pregador afro-americano William
Seymour reuniu um pequeno número de pessoas e recebeu o que os evangélicos atribuem o
nome de “batismo no Espírito Santo”, que consiste em uma experiência religiosa similar ao
fenômeno de Pentecostes, descrito na bíblia no livro de Atos dos Apóstolos: o religioso passa
a orar, falar e se expressar gestualmente de modo bastante intenso e expressivo, o que inclui a
habilidade de falar em línguas estrangeiras, porém desconhecidas da pessoa (xenolália) ou
celestiais (glossolália). A crença no batismo no Espírito Santo como algo acessível aos
cristãos nos dias de hoje é um elemento fundamental para que uma igreja possa ser
identificada como pentecostal.
Rapidamente os princípios pentecostais se difundiram pelos Estados Unidos e pelo
mundo. Os missionários suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg trouxeram de lá a novidade
para o Brasil, primeiro como um movimento de renovação espiritual, não ligado a nenhuma
denominação específica ou organização missionária. Na América Latina, o primeiro culto
pentecostal foi realizado em uma congregação metodista de Valparaíso, no Chile (CAMPOS,
2000, p.9). O novo movimento, porém, não pôde ser contido nas estruturas já existentes,
levando a geração de novas denominações que rapidamente se tornaram relevantes no
26

mercado religioso latino-americano (GUADALUPE, 2017, p.102). Já em 1911, os


missionários fundaram em Belém do Pará a Assembleia de Deus, que viria a se tornar a maior
denominação do Brasil e a maior igreja pentecostal do mundo.
Em meados do século XX, a crise provocada pelo pós-guerra trouxe novos desafios
sociais e econômicos. Os valores e padrões tradicionais eram questionados, incluindo os
símbolos religiosos. A busca de um novo modelo de liturgia e de confissão religiosa trouxe de
volta os movimentos de renovação espiritual, desta vez com maior força: um movimento
reavivalista surge entre as denominações protestantes de missão, atingindo até mesmo os
católicos, entre os quais ficou conhecido como o movimento da renovação carismática. Os
novos grupos buscavam uma visão de espiritualidade cristã muito similar à dos pentecostais.
É interessante observar o processo de formação da identidade das comunidades que surgiram
deste movimento: em geral, as igrejas mantinham os nomes das denominações que as
originaram, acrescentando a expressão “renovada”. Assim, uma Igreja Batista Renovada, por
exemplo, mantém sua identidade como batista e como igreja de missão, assim como uma série
de dogmas herdados da igreja originária, porém pertence a uma denominação distinta, já que a
sua adesão ao movimento reavivalista traz divergências teológicas e litúrgicas em relação à
linha principal. Neste contexto, as diferenças entre evangélicos de missão e pentecostais se
tornam cada vez mais difusas, já que elementos do pentecostalismo entram profundamente
nas denominações históricas.
Nos anos 80, surge entre os evangélicos o movimento neopentecostal, que traz um
novo personagem para o cenário religioso nas Américas. Alguns pressupostos do
pentecostalismo clássico foram substituídos por novos postulados, que deram origem a
mudanças em algumas igrejas pentecostais já existentes e a criação de outras. Guadalupe lista
algumas das diferenças mais significativas entre os dois grupos. Primeiro, o batismo no
Espírito Santo perde seu protagonismo como a experiência fundamental do cristão. Enquanto
os pentecostais acreditam que este é um evento com local e momento fixos, no qual o crente
passa por uma experiência de consagração e experimenta o poder divino, para os
neopentecostais este evento específico perde sua centralidade e pode ser algo desenvolvido
progressivamente. Outro aspecto de divergência é o público-alvo do discurso. Enquanto os
pentecostais cresceram no período de modernização e urbanização da sociedade, nas suas
camadas mais populares e com uma população que vivia entre os desafios mundo urbano e os
valores do mundo rural, os neopentecostais já olhavam para a classe média, direcionando seu
27

discurso às demandas de ascensão social e material deste público. A mensagem escatológica


de pecado e culpa dá lugar a outra que privilegia palavras como pacto e bênçãos. Enquanto os
pentecostais clássicos focam no isolamento do que é tido como “mundano”, rejeitando certos
modos de diversão, relacionamento e lazer, o neopentecostalismo evita alienar o novo público
que visa atingir com uma mensagem de excessiva rigidez, e prefere focar na redenção destes
prazeres mundanos e da sociedade de consumo ao dar-lhes uma nova roupagem santificada,
ao relacionar a prosperidade material ao favor divino. Sobre isto, Guadalupe afirma que “En
esta nueva visión neopentecostal, el ‘mundo’ ya no es algo de lo cual se tenga que huir; sino,
el lugar que se tiene que conquistar y disfrutar, sin sentimiento de culpa” (GUADALUPE,
2017, p.108).
Neste contexto se desenvolve a teologia da prosperidade, que começa a predominar
nas igrejas neopentecostais ao longo da década de 90, e cujo alcance pode ser relacionado à
expansão do pensamento político neoconservador globalizado. Campos a define como “um
conjunto de ideias formuladas nos Estados Unidos, popularizadas pelos tele-evangelistas e por
protestantes sul-coreanos, que valoriza o consumo de bens e serviços típicos da sociedade de
consumo como sinais visíveis de que o fiel convive com Deus” (CAMPOS, 2000, p.52).
Herdeira de postulados da teologia neopentecostal, mas também do evangelho social, propõe
um envolvimento com as realidades deste mundo. Ao contrário desta, porém, a teologia da
prosperidade não oferece um plano de transformação da ordem social existente, mas o uso dos
recursos presentes no mundo, sob a crença de que os cristãos são “filhos do Rei” com direito
ao desfruto dos bens da criação. A formulação teológica desta corrente se relaciona
diretamente com os setores políticos evangélicos norte-americanos vinculados a facções mais
à direita do partido Republicano. O discurso político-religioso destes grupos mais radicais foi
importado à realidade latino-americana, e demonstrou a articulação entre projeto político e a
teologia da prosperidade ao dar origem a outros conceitos, como o reconstrucionismo cristão,
que Guadalupe descreve como
“una propuesta teológica formulada originalmente en círculos calvinistas
ultraconservadores y recuperada en la actualidad por los activistas políticos
carismáticos y neopentecostales en búsqueda de una legitimidad teológica para su
pretensión de conquista del Estado, fundamentada en la supuesta superioridad moral
evangélica y en la subordinación del sistema jurídico estatal a las leyes bíblicas”
(GUADALUPE, 2017,p.113).
28

1.3. AS ORIGENS POPULARES DO PROTESTANTISMO NA AMÉRICA


LATINA

No Brasil, os evangélicos chegaram de modo significativo durante o século XIX,


principalmente com os imigrantes alemães e suíços luteranos. Ao mesmo tempo, a abertura
dos portos em 1810 e o contexto político onde se fortaleciam os ideais liberais de tolerância
religiosa favoreceram a entrada de missionários dos Estados Unidos e da Europa, onde o
proselitismo internacional e transcultural protestante vivia uma era dourada – foi neste
período que atuaram missionários famosos como William Carey e David Livingstone. Assim,
embora outras igrejas tenham sido fundadas anteriormente para atender o público estrangeiro,
e exista mesmo uma tentativa de estabelecer uma igreja mista de colonos e indígenas durante
a ocupação holandesa (este evento é trabalhado com mais detalhes por Jaquelini de Souza em
seu livro “A primeira igreja protestante do Brasil: igreja reformada potiguara”), considera-se
que a primeira igreja evangélica no Brasil foi a Igreja Evangélica Fluiminense – IEF, fundada
em 1855 no Rio de Janeiro pelo casal de missionários escoceses Robert Reid Kalley e Sarah
Poulton Kalley. A IEF foi a primeira igreja em língua portuguesa a ter brasileiros convertidos
em seu corpo de membros permanentes. Assim como os evangélicos de hoje, os primeiros
membros desta igreja consistiam majoritariamente em trabalhadores urbanos pobres. A
comunidade realizava cultos públicos, mantinha uma escola diária e serviços de auxílio aos
pobres. Os recursos financeiros para a manutenção da comunidade vinham das doações de
alguns poucos membros mais abastados. A participação feminina era cada vez mais
significativa, e em 1889, as mulheres já eram quase metade do total de doadores.
Apesar da importância da cultura missionária norte-americana na difusão do
protestantismo na América Latina, Jean-Pierre Bastian afirma, na obra de Enrique Dussel, que
a emergência desta religião no continente está muito mais ligada ao contexto das relações
entre Igreja e Estado (DUSSEL, 1992, p.481). As ideias do liberalismo ganhavam força e
eram incompatíveis com a exclusividade do catolicismo como religião oficial estatal. Sendo
os nascentes Estados comandados por elites liberais, os conflitos com a Igreja Católica eram
inevitáveis. O autor coloca o protestantismo na mesma categoria do espiritismo e da
maçonaria como sociedades liberais de pensamento que se inseriam nas brechas deste impasse
entre as elites liberais e as lideranças católicas.
29

Santos não concorda plenamente com esta afirmação. Para ele, ao considerar o
conflito entre católicos e liberais como o fator primordial para o estabelecimento do
protestantismo na América Latina, Bastian ignora os elementos do “fato social” que
encontramos na primeira experiência protestante brasileira:
“...o vigor missionário europeu e norte-americano condicionado pelas suas ondas
avivalistas; as investidas individuais de missionários como Kalley e Simonton que
não tinham a intenção de fundar sociedades liberais de pensamento nem eram
conscientes de que faziam parte de qualquer articulação orgânica; a experiência de
perseguição e de oposição das primeiras comunidades de convertidos que não eram
participantes ativos e conscientes de qualquer movimento liberal articulado, ainda
mais que foram representantes das classes mais baixas, em sua maioria “ (SANTOS,
2017, p.40).

Mas concorda com Bastian quando este menciona a importância, neste processo, das
minorias de comerciantes e residentes estrangeiros que se estabeleceram na América Latina a
partir dos tratados de comércio com países europeus, particularmente a Inglaterra, já que as
atividades comerciais se mostravam um componente importante do proselitismo nestas
primeiras igrejas. Os autores também estão de acordo quanto à presença intrínseca do
liberalismo na pregação individualista dos missionários (SANTOS, 2017, p.41). Porém, para
Santos, a presença majoritária dos pobres, negros e mulheres ressalta que há particularidades
no processo brasileiro de assimilação do protestantismo que não podem ser explicadas apenas
pelas disputas de poder da elite liberal. “Está na experiência cotidiana local, muito mais que
na afinidade com ideologias globalizantes, um eixo fundamental de interpretação histórica e
social do protestantismo no século XIX”. (SANTOS, 2017, p.42).
É, portanto, impossível compreender o protestantismo latino-americano a partir de
uma perspectiva que olha de cima para baixo. No prefácio do livro Teatro, Templo e Mercado,
de Leonildo Silveira Campos, Jean-Pierre Bastian reforça essa tese ao defender que o
pentecostalismo, maior grupo cristão não-católico na América Latina, se desenvolveu a partir
das “populações rurais e urbanas semi-analfabetas e pobres sob influência dos missionários
norte-americanos” (CAMPOS, 2000,p.9). Este crescimento, no entanto, foi lento e discreto
até meados da década de 50, quando as transformações da economia latino-americana
promoveram um grande êxodo rural de trabalhadores subitamente desempregados do campo
para as margens das metrópoles urbanas, meio onde o pentecostalismo encontrou as condições
para uma expansão sem precedentes – foi neste período que surgiram as primeiras igrejas
pentecostais fundadas por líderes brasileiros, como a Brasil para Cristo e a Deus é Amor.
Nesta linha argumentativa, Bastian e Guadalupe estão de acordo ao destacar o caráter ao
30

mesmo tempo rural e urbano das populações que aderiram em massa ao pentecostalismo a
partir dos anos 50, sendo que este o último o descreve como “uma estratégia de adaptação
dos migrantes do campo para a cidade” e “uma proposta de religiosidade popular”
(GUADALUPE, 2017, p.104). Campos lista uma série de elementos que favoreceram o
crescimento do pentecostalismo neste período, todos ligados à condição social imposta pelas
transformações que o capitalismo trazia para as sociedades:
“...o crescimento da indiferença religiosa entre os cristãos; as rápidas mudanças
sociais que levaram a perda da identidade; o crescimento da insensibilidade das
pessoas devido às características da vida isolada nas grandes cidades
industrializadas; o aumento dos problemas sociais vinculados à falta de assistência
médica adequada, sentido para a vida e desamparo frente à burocracia da vida
moderna; medo de enfrentar o dia de amanhã, angústia e sensação de que algo está
para acontecer” (CAMPOS,2000, p.53).

1.4. EVANGELHO SOCIAL E FUNDAMENTALISMO

No século XIX, a atmosfera de racionalismo científico que permeava a sociedade


chegou à teologia. Questionar a existência de milagres e analisar os textos religiosos
criticamente se tornou comum. Nesta linha de pensamento, o conceito de “universalismo
salvífico” se consolidou: a condenação eterna seria incompatível com um Deus justo e bom,
do que se pode inferir que a humanidade como um todo já estaria “salva”. Não sendo mais
necessário converter os infiéis para salvá-los, o papel da igreja seria o de redimir a sociedade,
tornando-a mais justa. Deste modo, os protestantes se aproximavam de uma ênfase na questão
social, declinando da abordagem focada na conversão e na piedade (CAVALCANTI, 2002,
p.155). A realização do reino de Deus viria por meio de um ideal de progresso e fraternidade
entre os seres humanos.
Dado o clima de otimismo que pairava na sociedade estadunidense antes da Primeira
Guerra Mundial, predominava a expectativa de ampliação do ideal de civilização
norte-americano mediante uma ação social sustentada em valores cristãos, cuja meta final era
o melhoramento da sociedade. Isto se realizaria como consequência da ação dos crentes
trabalhando para combater as repercussões éticas e sociais do avanço da industrialização
capitalista. Em seu momento de maior força, o evangelho social chegou a influenciar a
teologia das igrejas evangélicas mais importantes dos Estados Unidos, como a Igreja
Metodista Episcopal, que em 1908 aprovou o Credo Social, que relacionava compromissos
31

específicos que a igreja assumia contra problemas sociais concretos como injustiça, racismo,
direitos trabalhistas, direitos humanos, família, e saúde [GUADALUPE, 2017, p.110].
A reação ao evangelho social foi uma polarização entre liberais modernistas e
conservadores fundamentalistas. Com o mesmo vigor que os liberais defendiam uma leitura
crítica da bíblia, os conservadores defendiam sua infalibilidade, entre outros dogmas
considerados então centrais à fé protestante. Ambos tiveram impacto significativo na
sociedade secular. Os defensores do evangelismo social, principalmente representados pelos
pastores norte-americanos Washington Gladden e Walter Rauschenbusch promoveram a
criação de departamentos de ação social nas igrejas, cursos de ética social nos seminários,
missões de cunho médico, agrícola e educacional em comunidades pobres e países
estrangeiros, assim como pronunciamentos públicos em defesa de reformas sociais estruturais
e causas como diminuição da jornada de trabalho. Entre os conservadores, da mesma forma, a
importância do proselitismo religioso atingiu um novo patamar. As comunidades religiosas
conservadoras patrocinaram as agências de missões, que enviavam missionários para todo o
mundo não-cristão. Qualquer menção à temática social passou a ser suspeita do perigoso
modernismo. A fé era individual e íntima, e o foco da ação deveria estar em trazer o máximo
de indivíduos possível para o evangelho, sem envolvimento com questões coletivas.
Neste contexto, a igreja passou a ser vista pelos conservadores como o último refúgio
em um mundo que estava afundando. Progressivamente, os evangélicos se isolavam cada vez
mais do mundo secular, desenvolvendo um certo anti-intelectualismo e se afastando de
qualquer envolvimento político, sempre em posição defensiva, que muitas vezes chegava a
um isolamento físico e geográfico, como no caso dos menonitas da zona rural dos EUA.
Abandonando a ética social, voltaram-se completamente para a ética individual e o moralismo
de regras e preceitos. Na prática, esta ética individual enfatizava desproporcionalmente os
“pecados sexuais” em detrimento de outras dimensões da ética. Cavalcanti cita o sociólogo
David Moberg, que chamou este movimento de “A Grande Reversão” [CAVALCANTI, 2002,
p.157].
Para Maurice Duverger, este foi o mecanismo que permitiu ao protestantismo
conviver com um novo mundo centrado na concorrência e no lucro capitalista:
Para sustentar o capitalismo, um sistema social fundado sobre o egoísmo do
lucro pessoal, o cristianismo do século 19 inverteu as prioridades, colocando no
primeiro plano a virgindade das moças, a continência dos rapazes, a fidelidade
conjugal, e relegando ao segundo plano a fraternidade e a comunhão. O anátema do
sexo substitui o anátema do dinheiro. Fazer amor fora do casamento tornou-se mil
32

vezes mais grave do que explorar o próximo, o operário ou o cliente (DUVERGER,


1962, p.107).

Outro conceito importante para compreender a disputa que se passava nos meios
protestantes estadunidenses do século XIX é o pré-milenarismo. O pré-milenarismo defende
que a volta de Cristo se passará antes do julgamento da humanidade. Neste contexto, as ações
defendidas por um evangelho social não têm sentido para o cristão, já que o momento que
precede o fim dos tempos será de decadência moral e calamidade. Cabe ao crente fiel
dedicar-se unicamente à tarefa de trazer o máximo possível de almas para Cristo antes do
julgamento, ao invés de se dedicar à fútil tarefa de reformar um mundo mau e corrompido.
Ainda hoje há um debate entre os evangélicos pré-milenaristas e os pós-milenaristas, que por
sua vez, acreditam que o retorno de Cristo será precedido por um período de mil anos onde os
“justos” reinarão, de plena paz e prosperidade para todos. Para o pós-milenarista, o caminho
do evangelho social é fundamental para a realização de tal feito e tão necessário quanto o
evangelismo (PAEGLE, 2006, p.32).
Estas mudanças ocorreram concomitantemente ao auge da expansão do movimento
missionário, e o atingiu com força. Enquanto os liberais estavam desmotivados para o
proselitismo, os conservadores tinham entusiasmo redobrado, na perspectiva de “salvar” o
maior número possível de almas do mundo decadente. Sendo os conservadores os principais
patrocinadores das missões transculturais, naturalmente a sua perspectiva religiosa se tornou
predominante nas terras distantes onde o protestantismo chegava pela primeira vez, como a
América Latina.

1.5. MISSÃO TRANSCULTURAL E IMPERIALISMO

René Padilla, em sua obra “O que é Missão Integral?”, desenvolve o conceito de


Missão Integral a partir da comparação com outro conceito mais antigo entre os protestantes,
o de Missão Transcultural. Ele o descreve como uma concepção tradicional de missão,
consolidada no final do século XIX, construída principalmente a partir de termos geográficos:
missão era quase sempre um cruzamento de fronteiras geográficas, com o propósito de levar o
evangelho do mundo ocidental e cristão para os “campos missionários” do mundo não-cristão
e dos países “pagãos” (PADILLA, 2009, p.14).
33

O propósito da missão, segundo Padilla, era “salvar almas” e “plantar igrejas”,


particularmente no exterior, mediante a difusão do evangelho. Os agentes da missão eram em
primeira instância os missionários, indivíduos que se voluntariavam para sair do seu país de
origem e atuar na linha de frente do contato com os povos estrangeiros por meio da pregação
direta. A maioria deles era filiada a sociedades missionárias, que podiam ser denominacionais
ou interdenominacionais (missões de fé), responsáveis pela capacitação dos candidatos. O
principal requisito para se tornar um missionário era sentir, em nível individual, o que os
evangélicos denominam “chamado de Deus para o campo missionário”, ou seja, sentir o
desejo particular de tornar-se um agente evangelizador. Embora, segundo Padilla, se concebia
a resposta ao chamado missionário “a máxima entrega que um cristão poderia fazer ao serviço
de Deus”, não é de modo algum algo que se espera de todos os cristãos (PADILLA, 2009, p.
15). O papel da igreja local, neste contexto, se restringia ao apoio espiritual e financeiro.
Segundo Padilla, quatro dicotomias que se formaram como consequência deste
modelo tradicional de missão. Primeiro, a dicotomia entre os países que enviam missionários,
no mundo ocidental e cristão, e os países que recebem missionários, quase exclusivamente
localizados na Ásia, África, e América Latina. Uma segunda dicotomia entre o lar – home do
missionário, sempre situado em algum país do mundo ocidental e cristão – e o campo
missionário – mission field, situado em algum país pagão. Muitos missionários “de carreira”,
ou seja, missionários que se dedicavam integralmente à missão em detrimento de trabalhos
seculares, optavam após muitos anos de serviço por retornar para sua terra natal a fim de se
aposentar. Outra dicotomia era entre os mesmos missionários e os cristãos comuns, que seria,
em um nível mais profundo uma divisão entre os “clérigos”, que inclui pastores e
missionários, ambos com formação especializada e responsabilidades diferenciadas na
comunidade, e os “leigos”. A quarta dicotomia é a diferença entre a vida e a missão da igreja,
sendo a “vida” o que se desenvolve na comunidade local entre os membros, e a “missão” o
proselitismo realizado nos campos missionários do exterior. A missão era efetuada por toda a
igreja de modo representativo, já que seus deveres se resumiam ao envio e sustento dos
missionários em campo. (PADILLA, 2009, p.17).
Eduardo Paegle trabalha a questão da missão transcultural no século XIX a partir da
perspectiva dos calvinistas estadunidenses, que consideravam a conquista de povos e terras
estrangeiras não como invasões, mas como uma redenção, simbolizada pela reconquista das
“terras prometidas” previamente por Deus. Segundo Paegle, outros dois conceitos
34

fundamentavam essa postura, sendo um ligado às teorias científicas da época, o darwinismo


social, onde as nações mais fortes naturalmente se sobrepõem e dominam as mais fracas, e o
outro ligado à teologia, o pré-milenarismo, já discutido na sessão anterior (PAEGLE, 2006,
p.31). Paegle define a postura dos norte-americanos em relação ao evangelismo transcultural
com a seguinte frase:
“A ideia de predestinação dos EUA, vista como nação eleita e que tinha que irradiar
a mensagem religiosa cristã para as demais nações levou ao chamado Destino
Manifesto, no qual caberia aos estadunidenses levar o cristianismo para todo o
continente americano, uma área de expansão dentro desta concepção. Neste sentido,
os missionários estadunidenses vieram embutidos deste espírito de missão”
(PAEGLE, 2006, p.29).

O Destino Manifesto ao qual se refere Paegle se baseia na doutrina calvinista da


predestinação: os Estados Unidos teriam sido escolhidos por Deus, se comparando mesmo aos
hebreus do Antigo Testamento como a nação “eleita”, sendo mais abençoados e mais
prósperos por isso, ao mesmo tempo que deviam arcar como o “fardo” de levar o cristianismo
para os povos distantes.
“A opulência, a prosperidade, a vida ativa e representavam, portanto, sinais claros da
superioridade nacional e racial do mandato vocacional, do cumprimento de uma
missão por parte dos EUA. A concepção de missão formava os estadunidenses como
atletas morais, recompensados pelo seu desempenho, justificando e obrigando a
levar os seus valores superiores a outros povos. A ideia central era que cabia aos
EUA o papel a ideia de levar a sua mensagem aos povos pagãos, porque se tornava
necessário recuperar o paraíso perdido do Éden. A corrupção moral, de que tanto
falava Calvino, devia ser recuperada e regenerada espiritualmente” (PAEGLE, 2006,
p.31).

Ao mencionar os povos pagãos, o Destino Manifesto se referia particularmente ao oeste da


América do Norte e à América Latina, a cujos habitantes tinham o dever de levar a libertação
de uma civilização republicana e protestante. Esta “libertação” se dava por meios diversos,
incluindo a conquista de territórios.

1.6. UM NOVO PARADIGMA

A ideia de “missão” é central para os evangélicos de qualquer denominação: ele vem


dos quatro evangelhos e do livro de Atos dos Apóstolos, que na bíblia cristã, descrevem a
passagem de Cristo na terra e os primeiros anos da igreja formada por seus seguidores.
Missão é o nome que os evangélicos atribuem ao proselitismo de sua religião, e embora seja
um dogma fundamental da fé, nem todos concordam a respeito de como deve ser praticada.
35

Em reação ao conceito de missão transcultural promovido por europeus e


norte-americanos, na América Latina surge por volta da década de 60 a Missão Integral.
Segundo René Padilla, nesta nova perspectiva, o objetivo do evangelismo não é mais apenas
crescer numericamente e aumentar a quantidade de cristãos e igrejas, mas “encarnar os
valores do reino de Deus e testificar do amor e da justiça revelados em Jesus Cristo, no poder
do Espírito, em função da transformação da vida humana em todas as suas dimensões, tanto
em âmbito pessoal como em âmbito comunitário” (PADILLA, 2009, p.18).
Pela perspectiva do autor, o proselitismo deve levar em conta uma visão holística do
evangelho. Esta visão resolveria as quatro dicotomias do modelo anterior, e para discutir cada
uma delas, Padilla levanta quatro pontos a partir dos quais estabelece as bases da Teologia da
Missão Integral (PADILLA, 2009, p.20) São eles:
a) Todas as igrejas enviam e todas as igrejas recebem. Em outras palavras, todas as
igrejas têm algo a ensinar e algo a aprender com outras igrejas. O caminho que a missão segue
não pode ser em sentido único – não vai dos países “cristãos” para os países “pagãos”, mas é
uma via de mão dupla. Inclusive possibilitando que países do hemisfério sul enviem
missionários para países do hemisfério norte.
b) O mundo todo é um “campo missionário”, e cada necessidade humana é uma
oportunidade de ação missionária. Neste tópico, o autor ressalta a importância não apenas do
que a igreja e o cristão dizem, mas principalmente do que fazem em resposta às necessidades
humanas que a rodeiam. A divulgação do evangelho inclui tudo o que se faz com espírito de
compaixão e amor ao próximo, seja no “lar” ou no “campo”.
c) Todo cristão é chamado a seguir a Jesus Cristo e a comprometer-se com a missão
de Deus no mundo. Não há mais divisão entre “clérigos” e “leigos”, e viver um estilo de vida
missionário é um dever de todo cristão, que deve agir em todas as esferas da vida humana
segundo suas aptidões e talentos.
d) A vida cristã, em todas as suas dimensões, em nível comunitário, é o testemunho
primordial da soberania universal de Jesus Cristo e do poder transformador do Espírito
Santo. A missão vai muito além das palavras: tem a ver com a qualidade de vida. Ela se
manifesta na restauração do “propósito original de Deus para a relação do ser humano com o
Criador, com o próximo e com a criação”.
A partir destes quatro pontos, René Padilla não apenas desconstrói as quatro
dicotomias do modelo missionário promovido pelos conservadores fundamentalistas, mas
36

abre espaço para a atuação dos evangélicos em todos os aspectos da vida civil, provendo uma
base teológica que suporte essa atuação dentro do universo doutrinário da fé protestante. A
partir desta nova perspectiva, não era mais apenas tolerável, mas sim desejável e
recomendável o envolvimento do evangélico com temas relacionados a assuntos antes tidos
como exclusivamente seculares, como a responsabilidade social, ambiental e a participação
política ativa.

1.7. A MISSÃO INTEGRAL E O MARXISMO

Ao contrário do que poderiam dizer seus opositores, porém, a Teologia da Missão


Integral não é uma ideologia de base marxista. Ao contrário, ela surge como concorrente do
marxismo. No livro “O que é missão integral?”, René Padilla diz que uma das leituras que
mais contribuíram para a formação da sua consciência social foi a obra do escritor mexicano
Gonzalo Baez-Camargo denominada “El comunismo, el cristianismo y los cristianos”, na qual
propunha frentes de atuação cristã na sociedade. O livro foi baseado em uma série de
conferências que ele havia realizado no Seminário Evangélico de Teologia, em Matanzas,
Cuba, no ano de 1957, em pleno processo que levaria, apenas dois anos depois, à Revolução
Cubana. Quarenta anos antes, Baez-Camargo havia participado ativamente da Revolução
Mexicana como soldado do Exército Constitucionalista.
Neste livro, o autor propõe que o comunismo é “um juízo de Deus sobre as igrejas e
os cristãos”, e que ele jamais teria surgido ou adquirido o poder que chegou a ter se os cristãos
tivessem sido fiéis à sua “vocação revolucionária” (PADILLA, 2009, p.46). Ao invés disso, os
cristãos teriam neutralizado as inclinações revolucionárias do evangelho. Segundo as
observações de Padilla, os motivos que Baez-Camargo cita para isto são a ideia de que o
evangelho é impraticável, utópico e irrealizável em nível social, e também a visão
individualista que se tem da conversão, como algo sem transcendência nem responsabilidade
para com o mundo. Assim, segundo o autor, a igreja teria se convertido em “uma parte
integral da ordem estabelecida, uma entidade francamente reacionária” (PADILLA, 2009,
p.46).
Apesar do claro anticomunismo de suas afirmações, Baez-Camargo se aproxima muito
de posições tradicionalmente atribuídas a este campo político. Por exemplo, ao listar alguns
princípios que Cristo teria deixado para seus seguidores, ele cita no item 2:“A pessoa humana
37

é de supremo valor na vida social, e consequentemente, não deve ser usada como um simples
instrumento de produção, um animal de carga, uma fonte de exploração”; no item 4: “a vida
social requer cooperação em vez de conflito e concorrência, razão pela qual o lucro deve ser
substituído pelo serviço e pelo bem estar comum”; e no item 5: “A doutrina cristã sobre a
propriedade não é a da propriedade privada, mas sim a da mordomia, de maneira que os bens
devem ser adquiridos com justiça e usados para o bem da sociedade” [PADILLA, 2009, p.47].
O discurso de Baez-Camargo era, de fato, revolucionário, já que propunha mesmo a
construção de uma nova ordem totalmente destoante da lógica capitalista vigente, porém esta
nova ordem carrega um aspecto religioso que lhe é fundamental e a diferencia de qualquer
outra de idealização marxista:
La principal tarea de la Iglesia, como una comunidad de cristianos, es
producir hombres nuevos como material de construccíon - digamoslo así - del
nuevo orden, y prestar su decidida cooperación en toda tarea de edificacíon
social...Pero es menester también que los creyentes se organicen para una accíon
positiva em pro de la transformacíon social. Esto significa una participacíon activa
como indivíduos o como equipos, celulas o comandos, na promocíon activa de todo
lo que sea justo. Los cristianos deberian estar en primera línea en todas las buenas
causas, llevando a ellas el espiritu de Cristo, atacando de raiz los males sociales,
trabajando por mejorar los sistemas y las instituiciones, y promoviendo
incansablemente las reformas sociales más urgentes. (BAEZ-CAMARGO, 1960,
p.100).

Samuel Escobar confirma a opinião de Padilla e Baez-Camargo ao colocar a nova


teologia cristã como uma “resposta ao desafio da visão marxista” (ESCOBAR, 1984, p.55). É
importante notar, porém, que nenhum deles compartilha da obsessão anticomunista que se
percebe no discurso dos evangélicos mais conservadores. Escobar afirma que teve contato
com as ideias marxistas na universidade, mas as achou demasiado “simplistas”, e pensava que
a condução política do comunismo no continente estava excessivamente ligada a diretrizes
estrangeiras para corresponder satisfatoriamente às necessidades da América Latina. No
entanto, critica “o anticomunismo infantil de muitos missionários e líderes evangélicos que
lhes impedia de ver a urgência da situação, enquanto as novas gerações se debatiam em busca
de respostas” (ESCOBAR, 1984, p.60).
Embora se aproximem na práxis e tenham objetivos similares, pode-se dizer que o
marxismo e a TMI são apenas aliados ocasionais. A base ideológica e os valores que as
fundamentam são bastante distintos. Enquanto no marxismo o foco esteja na superação do
capitalismo como um fim em si mesmo, para os adeptos da teologia da missão integral a
promoção da justiça social é um meio para a realização da sua missão cristã.
38

Na divergência com o marxismo encontra-se também seus pontos de afastamento da


Teologia da Libertação. Além das diferenças inerentes ao fato de se tratarem de movimentos
desenvolvidos no âmbito de religiões distintas que seguem conjuntos de dogmas e
pressupostos teológicos distintos, os teólogos da missão integral queriam se afastar da
excessiva influência marxista que viam em seus correspondentes católicos. Na ocasião da
publicação de um artigo pela Christianity Today em 1973 – o primeiro artigo da revista a
abordar objetivamente a teologia da libertação, Padilla exaltou o caráter local do movimento
que colocou a América Latina no mapa teológico do mundo e exortou os evangélicos
conservadores a questionarem os próprios preconceitos ideológicos antes de se dedicarem à
crítica da teologia católica. Ele mesmo, porém, colocou seu contraponto a ela ao concluir:
“onde está a teologia evangélica que irá propor uma solução com a mesma eloquência, mas
também com uma base mais firme na Palavra de Deus?” (PADILLA, 1973). A mesma opinião
é expressa por Escobar, que se esforçava por reforçar a distância entre sua missão integral e a
teologia católica: “Nuestro rechazo de una teología que somete la Palavra a la ideologia
marxista se aplica también a las teologías de la liberacíon que síguen ese procedimiento”
(ESCOBAR, 1984, p. 66). Em outro trecho:
Creo que hay que desmistificar al marxismo con sus pretenciones científicas,
reconociendo sus acertos y sus desaciertos como los de cualquiera otra ideología;
por ello no me entusiasma una teología de la liberacíon que parte de la premisa de
que el marxismo es científico (ESCOBAR, 1984, p.71).
39

2. A TMI ENTRA EM CENA

2.1. O CONTEXTO LATINO-AMERICANO E OS PIONEIROS DA TMI

Daniel Salinas introduz sua tese sobre a teologia evangélica latino-americana nos anos
70 com um panorama sombrio (SALINAS, 2009, p.3). A década de 1970, para os latinos, foi
marcada pela morte. Além das catástrofes naturais que levaram dezenas de milhares de vidas
e deixaram centenas de milhares de desabrigados no Peru, Nicarágua, Guatemala e República
Dominicana, as ditaduras militares se espalharam por todo o continente, trazendo consigo
repressão, prisões políticas, exílios, e misteriosos “desaparecimentos”. Brasil, Argentina,
Bolívia, Chile, Uruguai, Equador, El Salvador, Peru, Panamá, e Paraguai, todos estavam sob
controle direto dos militares. Guerras civis em El Salvador, Guatemala e Nicarágua levaram
mais alguns milhares, enquanto a violência se multiplicava na Colômbia e no Peru. Sob
influência da Revolução Cubana, muitas forças políticas revolucionárias se levantavam contra
seus governos, levando as elites conservadoras a buscar alianças no militarismo para refrear
os ventos de mudança que agitavam a América Latina. O evento, porém, despertou na
juventude da região o sentimento de que o imperialismo americano não era uma condenação
perpétua e inevitável, e deu voz a tendências nacionalistas e anticapitalistas.
Do ponto de vista econômico a situação também não era melhor. Acordos e alianças
entre os países do continente fracassaram, a dívida externa se acumulava em muitos bilhões, e
o abismo da desigualdade crescia. No Brasil, Chile, México e Venezuela, apenas 10% da
população concentrava mais de 65% das riquezas, enquanto os mais pobres concentravam
cada vez mais fome, desnutrição e doenças (SALINAS, 2009, p.4). No campo social, o êxodo
da população rural para o meio urbano exacerbava ainda mais os problemas já presentes. O
autor cita Orlando Costa, que resumiu a condição do continente como “dominado pela
opressão e repressão, imperialismo e colonialismo, fome e pobreza, poder e impotência,
frustração e desespero” (SALINAS, 2009, p.4).
Os números ajudam a compreender as necessidades, sentimentos e medos dos
latino-americanos dos anos 70, mas acima de tudo, seu sonho por autonomia e seu desejo de
forjar o próprio destino (SALINAS, 2009, p.5). Conscientes de seu lugar, da sua realidade e
do contexto que a produz, é deste sonho que nasce, entre os teólogos protestantes, o
movimento que se consolida na formação da FTL e deságua na teologia da missão integral.
40

Pode-se apontar como os principais precursores da TMI os teólogos René Padilla,


Pedro Arana e Samuel Escobar, que tiveram papel importante em fomentar as discussões a
respeito do evangelho social no contexto da América Latina ao longo das décadas de 50 e 60.
René Padilla nasceu em Quito, em 1932, passando sua infância e juventude entre o Equador e
a Colômbia, onde viveu até 1950, quando foi para os Estados Unidos temporariamente, a fim
de concluir os estudos. Sobre a condição de ambos os países neste período, a palavra-chave é
instabilidade. Após a vitória no Equador em 1934, de José Maria Velasco Ibarra, político de
família abastada que havia chegado ao poder por meio do partido conservador, sua guinada à
esquerda com tentativas de reforma agrária foi rejeitada pelo parlamento, levando-o a fechar o
congresso e convocar uma nova constituinte. A partir daí, a política equatoriana, já turbulenta,
foi marcada por uma sequência de golpes de Estado, eleições fraudadas e mandatos
interrompidos (FERNANDÉZ, 2004). Na mesma época, na Colômbia, os liberais chegavam
ao poder após cinquenta anos como oposição aos conservadores, onde permaneceram de 1930
até 1946. Com a volta dos conservadores e o assassinato do líder do partido liberal Jorge
Gaitán, se iniciou um período conhecido como “La violencia”, no qual se estima a morte de
mais de duzentas mil pessoas. A brutalidade era perpetuada por grupos paramilitares armados
aliados aos conservadores, como Los Pajaros e Los Chulavitas (AMORIM, 2016, p.21).
Assim como o peruano Samuel Escobar, Padilla nasceu de uma família evangélica
empobrecida em uma comunidade quase unanimemente católica. Seu tio foi um dos primeiros
pastores evangélicos do Equador. Auxiliando seu pai no trabalho como alfaiate e nas horas
vagas, na fundação de igrejas, o teólogo viveu desde cedo os perigos de ser minoria religiosa:
suas casas foram alvo de bombas e apedrejamento, e ele e seu pai foram vítimas de várias
tentativas de assassinato. Sobre a perseguição religiosa na Colômbia, Padilla escreveu:
Hice mi enseñanza primaria en Colombia, fue expulsado de la escuela cuando estaba
haciendo el tercero año por no asistir una procesión, lo cual muestra un poco de la
situación que viven los evangélicos en Colombia en estos años. En la década de 30 y
aún más posteriormente, en parte por causa de la persecución religiosa (…) mi
familia volvió a Ecuador. (AMORIM, 2016, p.21).

A vivência como migrante pobre e o contexto de violência, opressão e exclusão


aparecem anos depois, impressas na sua obra. Padilla dedicou boa parte de seus escritos à
denúncia das condições sob as quais se encontrava a América Latina contemporânea, e a
condição dos imigrantes estrangeiros lhe era um tema particularmente caro, talvez pela sua
experiência como um deles:
41

Varios países de nuestra América Latina democrática se han convertido en


verdaderos productores de refugiados que, sin necesariamente usar ese apelativo,
han tenido que huir de su país o región de origen en busca de seguridad física y/o
material… el “problema se ha agudizado notablemente como resultado del
capitalismo salvaje que, en nombre de la modernización, se ha impuesto en nuestros
países los últimos años” (AMORIM, 2016, p.22).

É importante notar em seu discurso elementos do despertar anti-imperialista e


anticapitalista que circulava entre os jovens latino-americanos após a Revolução Cubana,
mesmo entre os religiosos e os que rejeitavam o marxismo como doutrina científica, como
Padilla. O reconhecimento do imperialismo norte-americano como fator causal destas mazelas
fica explícito neste trecho muito representativo da sua posição em relação a este tema:
El estudio histórico de las relaciones EE.UU. – América Latina, sin embargo,
muestra que la doctrina Monroe siempre ha sido usada para favorecer los poderes
políticos y económicos de los EE.UU. como potencia mundial. La doctrina Monroe
fue un autonombramiento: no se consultó a las naciones latinoamericanas sobre el
tema de su seguridad frente a las naciones europeas. El gobierno de los EE.UU.
simplemente dio por sentado que los países de América Latina estarían o bajo su
control o bajo el control de sus enemigos. (PADILLA, 1992, p.69).

Ao longo dos anos 60, Padilla falava sobre a pobreza teológica da América Latina,
lamentando o domínio que os norte-americanos exerciam também nesta área, e a forma como
questões locais eram abordadas com respostas estrangeiras. Se unindo a Samuel Escobar e
Pedro Arana, além do missionário Orlando Costas, Padilla criou uma coalizão incomum de
teólogos inquietos. O grupo compartilhava a experiência de viver em contextos desiguais e
injustos; também compartilhavam uma frustração com o modo como as grandes organizações
evangélicas tratavam os latino-americanos. Os três primeiros eram colegas da Comunidade
Internacional de Estudantes Evangélicos (CIEE), instituição de grande relevância na produção
teológica do continente e que no decorrer de toda a década de 60 discutia a pertinência do
evangelho para a realidade dos povos latino-americanos.

2.2. A FRATERNIDADE TEOLÓGICA LATINO-AMERICANA

Em novembro de 1969, ocorreu em Bogotá, Colômbia, o 1o Congresso


Latino-Americano de Evangelização (CLADE 1). O evento havia sido planejado pela
Associação Billy Graham, uma organização missionária fundada em 1950 pelo evangelista
estadunidense de mesmo nome, figura de grande proeminência entre os evangélicos. Michael
Clawson afirma que desde o início de seu planejamento, tudo na conferência parecia “Made in
42

America”: o programa, os palestrantes, as temáticas, e as decisões financeiras, todos foram


direcionados para os interesses de seus organizadores norte-americanos. (CLAWSON, 2012,
p.791). Seu propósito inicial era servir como plataforma de lançamento de uma grande
estratégia de evangelização de toda a América Latina. Tal estratégia, porém, não foi
assimilada pelas igrejas, e o congresso não teria tido maiores consequências, exceto por algo
que não estava no projeto de seus idealizadores: a formação da Fraternidade Teológica
Latino-Americana, a FTL, em novembro de 1970, exatamente um ano depois, em
Cochabamba, na Bolívia.
Durante o CLADE 1, representando a CIEE, Samuel Escobar proferiu um discurso
intitulado “A responsabilidade social da igreja”. Seu discurso foi ovacionado pelos ouvintes e
causou impacto nos participantes, impacto este que é refletido no documento final produzido
pelo congresso, a Declaração Evangélica de Bogotá:
Chegou a hora de nós, evangélicos, tomarmos consciência de nossas
responsabilidades sociais. Para cumpri-las, o fundamento bíblico é a doutrina
evangélica e o exemplo de Jesus Cristo levado até suas últimas consequências. Esse
exemplo deve ser encarnado na crítica realidade latino-americana de
subdesenvolvimento, injustiça, fome, violência e desespero (PADILLA, 2014, p.
18).

É importante considerar que os organizadores do evento não estavam alheios a este


debate. A conferência era uma resposta à Tercera Conferencia Evangélica Latinoamericana
(CELA III), realizada no mesmo ano na Argentina e promovida pela comissão Pró-Unidade
Evangélica Latino-Americana (Unelam), organização que atuava desde 1961 com fins de
construir uma cooperação ecumênica de nível continental. A conferência estava inicialmente
planejada para ocorrer no Brasil, porém devido ao golpe militar de 1964 e a postura
conservadora fundamentalista dos evangélicos que exerciam mais influência na comunidade
brasileira, o evento foi transferido para Buenos Aires. A CELA tinha um caráter muito mais
progressista e ecumênico, inclusive com a presença de dois observadores da Igreja Católica
Romana. O tema principal da conferência foi “Devedores do Mundo”, e seu objetivo era
refletir sobre as obrigações das igrejas evangélicas com os vários setores da sociedade
latino-americana. Os subtemas abordavam tópicos como a transformação social e política da
América Latina, a transição rural para urbana, a condição dos jovens e das mulheres.
(BERTOLDO, 2017, p.213).
A Associação Billy Graham enxergava se travar, na América Latina, uma batalha
entre os liberais promotores de um evangelho social e os conservadores que enfatizavam a
43

conversão pessoal como a solução para os pecados individuais e coletivos. Como


representantes do segundo grupo, a associação investia pesadamente na disseminação de tais
ideais. Antes da realização do CLADE 1, os estadunidenses chegaram a distribuir livros para
os participantes, visando prepará-los para o viés que encontrariam na conferência.
Insatisfeitos com a solução simplista baseada na mera expansão numérica dos cristãos e seu
potencial para comportar os problemas com que lidavam na América Latina, alguns teólogos,
incluindo Padilla e o próprio Samuel Escobar, se organizaram e promoveram no ano seguinte
seu próprio evento em Cochabamba.
Do grupo que ouviu o discurso de Escobar, e daqueles que já davam espaço à
reflexão teológica proposta pela CIEE, vieram os membros fundadores da FTL. Desde seu
nascimento, a fraternidade já se posicionava a favor de uma teologia que considerasse a
integralidade da vida humana em sua missão evangelística. Dois anos após sua fundação, a
FTL realizou uma consulta em Lima, Peru, com o tema “O reino de Deus e a América
Latina”. A partir daí a maior parte da sua produção teológica seria em apoio à missiologia que
considera os pressupostos da TMI como base da missão cristã.
O propósito claro e consciente de construir uma teologia própria e livre das
influências e dogmas ditados pelo Ocidente pode ser exemplificado pela seguinte declaração
de Escobar:
Hartos ya de que los centros de poder evangélico en Norteamérica trataran de
decirnos cómo debíamos pensar, a quién debíamos leer y en qué consistía ser
evangélico, decidimos que era hora de empezar a reflexionar la fe como gente adulta
y por cuenta propia. Así nació la Fraternidad Teológica Latinoamericana y empezó
una nueva etapa de nuestro peregrinaje. (ESCOBAR, 1984, p.64).

2.3. O CONGRESSO DE LAUSANNE

O 1o Congresso Internacional de Evangelização Mundial, ou Lausanne 1, entrou para


a história como um dos eventos religiosos mais significativos do século XX. Realizado na
cidade de Lausanne, na Suíça, de 16 a 24 de julho de 1974, o evento reuniu cerca de 2500
participantes e 1000 observadores de 250 países e 135 denominações protestantes. Dez dias
depois, foi descrito pela revista TIME como “um fórum formidável, possivelmente o encontro
cristão mais abrangente já visto” (TIME, 1974). Foi também um marco na mudança de
perspectiva da comunidade protestante, ao afirmar que a responsabilidade social e política é
um elemento fundamental da missão da igreja.
44

Sob o lema “que a Terra escute a sua voz”, o congresso foi organizado a partir de
1970 por Billy Graham. De acordo com a página oficial do Movimento de Lausanne, que
ainda hoje é ativo, Graham
“percebeu a necessidade de um congresso mundial para reestruturar a missão
mundial em um mundo de mudanças políticas, econômicas, intelectuais e religiosas.
Ele acreditava que a igreja precisava compreender as ideias e valores por trás das
rápidas mudanças que ocorriam na sociedade. (LAUSANNE, 2014).

Na ocasião do evento foi formado um comitê internacional, comandado pelo teólogo


John Stott. O comitê redigiu o Pacto de Lausanne, com o objetivo de definir as necessidades e
objetivos do evangelismo, e se tornou um documento emblemático na história do
protestantismo contemporâneo. Ficou registrada no quinto parágrafo a seguinte declaração:
Afirmamos que Deus é tanto Criador como juiz de todos os homens.
Portanto devemos compartilhar sua preocupação com a justiça, a reconciliação em
toda a sociedade humana e com a libertação dos homens de todo tipo de opressão. A
humanidade foi feita à imagem de Deus, consequentemente, toda pessoa, seja qual
for sua raça, religião, cor, cultura, classe, sexo ou idade, tem uma dignidade
intrínseca pela qual deve ser respeitada e servida, não explorada. Expressamos, além
disso, nosso arrependimento tanto por nossa negligência como por ter concebido às
vezes a evangelização e a preocupação social como coisas que se excluem
mutuamente. Ainda que a reconciliação com o homem não seja o mesmo que a
reconciliação com Deus, nem o compromisso social seja o mesmo que a
evangelização, nem a libertação política seja o mesmo que a salvação; não obstante,
afirmamos que a evangelização e a ação social e política são parte de nosso dever
cristão. Uma e outra são expressões necessárias de nossa doutrina de Deus e do
homem, de nosso amor ao próximo e nossa obediência a Jesus Cristo. A mensagem
de salvação encerra também a mensagem do juízo de toda forma de alienação,
opressão e discriminação, e não devemos temer denunciar o mal e a injustiça onde
quer que eles estejam. Quando as pessoas recebem a Cristo, nascem de novo em seu
reino e devem não apenas manifestar, mas também difundir a justiça desse reino em
meio a um mundo injusto. Se a salvação que dizemos ter não nos transforma na
totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais, não é a salvação de Deus.
A fé sem obras é morta. (LAUSANNE, 1974).

René Padilla afirma que este parágrafo estabeleceu um pensamento que vinha sendo
forjado nos círculos evangélicos desde o início da década de 60, e destaca a contribuição da
Fraternidade Teológica Latino-Americana para o seu desenvolvimento (PADILLA, 2014,
p.18). Diversos oradores vinculados à FTL tiveram espaço relevante nas plenárias, assim
como um teólogo com experiência missionária no Brasil. Estes palestrantes colocaram o tema
da missão integral em lugar de destaque entre tantos que foram debatidos no congresso,
atraindo a atenção de John Stott, teólogo inglês de renome entre a comunidade evangélica,
que passou a cooperar com os latino-americanos. Na posição de líder do comitê que redigiu o
45

Pacto de Lausanne, este fator garantiu a inclusão no documento de temas importantes


relacionados à responsabilidade social.
Embora o Pacto afirmasse, na seção 6, que “na missão da igreja, que é missão de
serviço sacrificado, a evangelização ocupa o primeiro lugar”, o documento também
reconhecia que “os cristãos devem partilhar a preocupação de Deus pela justiça e pela
reconciliação em toda a sociedade humana e pela libertação dos homens de todo tipo de
opressão”, que “a evangelização e a ação social e política são partes do nosso dever cristão” e
que “a mensagem de salvação encerra também a mensagem de juízo de toda forma de
alienação, opressão e discriminação” (LAUSANNE,1974). Este foi o princípio do ocaso das
perspectivas teológicas que diminuíam a missão da igreja ao evangelismo que visa somente a
multiplicação do número de cristãos.
Foi no Congresso de Lausanne que, pela primeira vez, líderes do Sul geopolítico
ganharam um lugar à mesa da liderança evangélica mundial, trazendo consigo um novo
evangelho social em ascensão. Os latino-americanos, acostumados a se fazer ouvir em um
contexto de minoria religiosa, falavam com uma voz impossível de ignorar. O editor da
Crusade Magazine escreveu que os comentários de Padilla “realmente incendiaram o
congresso e receberam a mais longa salva de palmas concedida a qualquer palestrante até
aquele momento” [KIRKPATRICK, 2021]. A Revista TIME destacou a participação dos
latino-americanos e de Padilla:
“Some of the Third World Evangelicals at the congress—who made up a vocal half
of the participants—added other critical views of some past Evangelical efforts. In
one of the meeting's most provocative speeches, Rene Padilla, an Ecuadorian Baptist
who works in Argentina, assailed the sort of easy Christianity that the U.S. has often
exported. "A Gospel that leaves untouched our life in the world ... is not the
Christian Gospel but culture Christianity, adjusted to the mood of the day," Padilla
warned. "This kind of Gospel has no teeth. It demands nothing." Accordingly,
Padilla cautioned Evangelicals to resist the temptation of trying to make the
maximum number of converts” (TIME, 1974).

Este discurso naturalmente não foi aceito unanimemente e gerou polêmica. Mesmo
Stott, por exemplo, já havia rejeitado anteriormente essa visão, mas depois mudou de ideia, se
retratou em seu livro de 1975 “A missão cristã no mundo moderno” e se tornou amigo pessoal
de Padilla, usando sua influência na comunidade de teólogos norte-americanos para
aprofundar a inserção da perspectiva da missão integral nos círculos do “norte”. A
apresentação causou inquietude entre muitos líderes evangélicos, principalmente dos Estados
Unidos e da Inglaterra, mas também em alguns do dito Terceiro Mundo. O líder da
46

Intervarsity, agência cristã norte-americana, alertou Padilla sobre a reação da mídia às suas
palavras e o recomendou conter seu entusiasmo (KIRKPATRICK, 2021).
Em função do impacto do seu discurso na plenária, Padilla e Escobar, ao lado de
alguns teólogos americanos, reuniram um grupo de 500 participantes que denominaram grupo
de “discipulado radical”, que buscava refinar os elementos sociais no esboço do Pacto de
Lausanne. Após o congresso, Padilla se referia a este documento de discipulado radical como
a mais forte declaração baseada na missão integral já formulada por uma conferência
evangélica até aquela data, declarando a morte da dicotomia entre ação social e evangelismo
na missão cristã. Em Lausanne, os latino-americanos haviam ligado a ideia de missão da
igreja ao conteúdo da mensagem bíblica do evangelho, o qual considerava a realidade social
do seu contexto. Ao fazê-lo, desafiaram a teologia predominante do protestantismo
tradicional, que considerava a ação social como uma consequência da mensagem
evangelística, e não algo inerente a ela. Para muitos, entretanto, chamar a ética e ação social
de mensagem cristã soava mais do que deveria como evangelho social e liberalismo teológico.

2.4. APÓS LAUSANNE

Após Lausanne 1, se organizou o Movimento de Lausanne, a fim de elaborar


de forma definitiva os temas, muitas vezes polêmicos, levantados no congresso. Para tal, se
estabeleceu o Comitê de Continuação de Congresso, o qual se subdividiu em quatro
subcomissões: intercessão, teologia, estratégia e comunicação. O grupo de teologia,
posteriormente denominado Grupo de Trabalho Teológico, foi atribuído à coordenação de
John Stott e recebeu a tarefa de promover reflexões relacionadas ao tema da evangelização.
Para tanto, o grupo organizou quatro consultas teológicas entre 1977 e 1982. O pressuposto
básico em todas as consultas era que “a evangelização e a ação social e política são parte de
nosso dever cristão” (PADILLA, 2014, p.21).
Nas décadas que se seguiram, Padilla ajudou a moldar a trajetória do Movimento de
Lausanne, conduzindo colóquios e conferências ao redor do mundo com uma mensagem cada
vez mais afiada, inclusive criticando o papel dos Estados Unidos como potência global. Seu
legado é visto com mais clareza nos documentos do Congresso de Lausanne na Cidade do
Cabo, em 2010, onde pela primeira vez a Missão Integral foi incluída explicitamente nos
documentos oficiais do Movimento de Lausanne. René Padilla foi, em três das quatro
47

consultas, orador plenário, e na quarta o encarregado de responder à palestra principal. Na


quarta consulta, o documento produzido declarava de modo objetivo que
A igreja cristã, como o resto da sociedade, inevitavelmente está envolvida em
política, que é a arte de viver em comunidade. Os servos de Jesus Cristo devem
expressar o senhorio que ele exerce em seus compromissos políticos, sociais e
econômicos, e devem expressar seu amor ao próximo participando no processo
político (PADILLA, 2014, p.21).

Pode-se observar, desta vez, uma defesa clara da participação na política secular
como um dever religioso dos cristãos, de uma maneira mais geral, contradizendo décadas de
isolamento e afastamento dos protestantes desta esfera, e indo de encontro à teologia que
valorizava a dedicação exclusiva aos temas espirituais e o foco na conversão religiosa acima
de qualquer outra atividade.
Na terceira consulta, Padilla introduziu o conceito de contextualização do evangelho,
que se referia a uma busca pelas características culturais, sociais, econômicas e religiosas de
um povo, as quais deveriam figurar em qualquer análise teológica e deveriam ser
consideradas na aplicação do evangelho. Neste caso em particular, René Padilla defendeu uma
contextualização do evangelho para a América Latina, ou seja, um modo de pregar e viver o
evangelho que levasse em conta o seu contexto social, político e econômico. O autor produziu
então um estudo, no qual defendia essa posição a partir de pressupostos teológicos, refutando
as bases teológicas do trabalho missionário transcultural tradicional no Ocidente.
Na leitura deste estudo, fica claro que Padilla refere-se ao Ocidente como o “outro”,
consciente da condição periférica que a América Latina ocupava não apenas do ponto de vista
geopolítico, mas também de protagonismo religioso. Ao defender a contextualização do
evangelho, o autor reclama para os latinos o lugar de sujeito na construção de uma teologia
que faça sentido para a realidade do continente, e a prerrogativa de uma interpretação dos
dogmas cristãos que não seja apenas recebida do Ocidente, mas formada pelo contexto do
cristianismo e dos cristãos locais.

2.5. RESISTÊNCIAS E RESULTADOS

René Padilla ressalta que de forma alguma pode-se dizer que a maioria dos
envolvidos com o Movimento de Lausanne compartilhavam da visão integral da missão
cristã. Isto ficou evidente na Consulta sobre Evangelização Mundial, organizada pela
Comissão de Lausanne para a Evangelização Mundial no ano de 1980 em Pattaya, Tailândia.
48

O objetivo principal desta consulta era “desenvolver estratégias realistas de evangelização


para levar Cristo aos grupos de pessoas ao redor do mundo que ainda não foram alcançados”,
se concentrando novamente na visão conservadora de missão transcultural (PADILLA, 2014,
p.21). A liderança do evento fez esforços significativos para manter o controle e evitar que a
dimensão social da missão tivesse protagonismo, mas durante as reflexões criativas a ordem
foi rompida. Apesar disso, os organizadores não permitiram que os temas relacionados à ação
social fossem discutidos abertamente, e a versão final do documento deixava explícita a
primazia da evangelização sobre qualquer outro aspecto da missão. O presidente do comitê, o
evangelista canadense Leighton Ford, chegou a afirmar: “optar pela vida pública é batizar o
status quo secular”. [CAVALCANTI, 2002, p.172]
René Padilla diz que ao longo dos anos que se seguiram, a perspectiva da
aproximação integral à missão continuou a ganhar terreno, apesar de enfrentar grande
oposição principalmente do establishment missionário dos Estados Unidos (PADILLA, 2014,
p.23). Em 1979, foi organizado em Lima, Peru, o CLADE II. Um dos seus propósitos era
celebrar a primeira década desde a fundação da Fraternidade. Sobre este evento, Samuel
Escobar escreveu:
Hicimos un esfuerzo inusitado porque allí pudieran reunirse para dialogar
fraternalmente evangélicos de la más amplia variedad de iglesias y denominaciones
dentro del marco común del Pacto de Lausana. Tuvimos la oposición velada o
abierta de los sectores más conservadores ligados a intereses de organizaciones
norteamericanas que después de disfrutar del Congreso se dedicaran a
desprestigiarlo. Observamos también que lo que más molestaba a algunos de ellos
era que todo estuviese em manos de latinoamericanos, y que nosotros hubiésemos
conseguido la ayuda financeira de hermanos en otras partes… La segunda área de
friccíon fue lo relativo a la política. Especialmente algunos de los hermanos de
Brasil se ofendieron por qualquier intento de utilizar categorías bíblicas para criticar
los gobiernos militares del continente. Es decir huno una negativa a aplicar el
mensaje bíblico a una realidad conflictiva. (ESCOBAR, 1984, p.70).

Ou seja, de acordo com Escobar, os estadunidenses se ressentiam da autonomia


conquistada pelos latinos de organizarem, comandarem e financiarem a própria conferência,
que era, desta vez, o oposto do CLADE I, promovida pelos norte-americanos para promover
sua teologia. O que mais chama a atenção neste trecho, no entanto, é a significativa oposição
dos brasileiros, que se opunham à utilização da teologia e da aplicação da bíblia para criticar
os governos militares. Como já foi discutido ao apresentar a fundação da FTL, os evangélicos
brasileiros com inclinação conservadora e apoiadores dos regimes militares já eram
numerosos e influentes o bastante para barrar a realização de um evento de cunho progressista
49

no Brasil dez anos antes, na ocasião do CELA III, então este posicionamento não é
surpreendente. Ainda assim, os brasileiros se destacam entre os outros latino-americanos que
viviam uma realidade política e social similar, já que as fontes os destacam como opositores
sem mencionar as comunidades de outros países. Pode-se arriscar dizer que os evangélicos
brasileiros eram – ou são – mais conservadores que os de outros países latino-americanos?
Por que? Estas são perguntas bastante pertinentes que ainda não serão respondidas no escopo
desta pesquisa. Considerar a aproximação do protestantismo brasileiro com o calvinismo
estadunidense, que teve papel fundamental na sua formação, porém, pode auxiliar a iluminar
esta questão. Paegle afirma que “o fato do fiel ser obediente, disciplinado, trabalhador, de boa
moral e não questionador ao status quo construía um modelo de fiel calvinista a ser seguido”
(PAEGLE, 2006, p.60). O autor destaca o conservadorismo e anticomunismo da comunidade
presbiteriana no Brasil ao longo da década de 60, porém o mesmo pode se aplicar a outras
denominações evangélicas, já que a base calvinista dos missionários norte-americanos do
século XIX se faz presente em maior ou menor grau em todas as denominações brasileiras,
formadas a partir do seu trabalho evangelístico.
A partir dos anos 90, o crescimento das igrejas neopentecostais tornou o
conservadorismo a ideologia dominante entre os evangélicos. Isto não significa que a TMI
tenha saído de cena definitivamente, mas que enfrentava novas barreiras e resistências. Se
durante as décadas de 60 e 70 jovens estudantes precisaram desconstruir valores
fundamentalistas antiquados e demonstrar para sua comunidade que a ação social e o
envolvimento político eram compatíveis com a missão evangélica, agora teólogos experientes
tinham que lidar com a acusação de “comunismo” por parte dos novos conservadores que
ganhavam cada vez mais espaço. Desde então, a crítica mais comum dos opositores da missão
integral é que tal teologia traz de modo disfarçado o marxismo para dentro das igrejas, a
despeito da negação que seus precursores faziam desta abordagem nos seus livros e discursos.
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CONCLUSÃO

Pode-se dizer, ao fim desta pesquisa, que a novidade e o revolucionário da Teologia


da Missão Integral está em viabilizar que, através da sua construção, os evangélicos pudessem
definitivamente romper com a tutela religiosa imposta pelo Ocidente, primeiro pela Europa e
depois pelos Estados Unidos, que remonta aos tempos coloniais. Produzindo ideais gestados
por eles mesmos, a partir do seu próprio contexto e das suas necessidades, os
latino-americanos assumiram a condução da religião em seu território, reivindicando com
sucesso uma posição de protagonismo teológico dentro do cenário protestante. Suas ações,
porém, não ficaram restritas à América Latina, e pela primeira vez se percebeu uma inversão
no fluxo de influência religiosa: desta vez, a periferia pautava o centro, e o ocidente é quem
aderia ou reagia às novidades trazidas pelo sul. Pode-se dizer que os principais elementos que
levaram às condições históricas para o nascimento da TMI foram o contato dos estudantes
evangélicos com autores e debates marxistas no âmbito acadêmico, assim como o ambiente
revolucionário e nacionalista que incendiava a América Latina após a Revolução Cubana, a
despeito da reação brutal das elites conservadoras regionais e da constante vigilância dos
norte-americanos, que a identificavam como sua zona de influência durante as disputas
ideológicas que marcaram a Guerra Fria.
Hoje, em círculos evangélicos, não se discute mais se é recomendável ou não a
atuação política. As barreiras e resistências que os pioneiros da TMI enfrentaram da parte dos
que queriam manter o foco dos protestantes apenas na evangelização, não existem mais. A
penetração da TMI, em particular na América Latina, abriu as portas para que se
questionassem os valores já estabelecidos por mais de um século de evangelismo promovido
por missionários europeus e estadunidenses. Estas mudanças, porém, não permaneceram
restritas aos círculos progressistas, e logo foram apropriadas pelos conservadores para seus
interesses. A partir de então, para o conservadorismo, é legítima a aproximação do evangélico
com a política, desde que essa aproximação ocorra pela direita.
Pode-se concluir, a partir da investigação desenvolvida no decorrer da pesquisa, que
embora a TMI tenha fornecido o subsídio teológico e ideológico para a ruptura com a
perspectiva tradicional e conservadora de isolamento do mundo secular e a definitiva inserção
protestante na política, o fenômeno que se observa no Brasil e na América Latina
contemporânea se deve mais ao crescimento exponencial do número de pentecostais e
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neopentecostais, aos métodos de marketing massivo utilizados pelo último grupo, e também
aos princípios da teologia da prosperidade e reconstrucionismo cristão altamente difundidos
entre estes, que direcionam a atuação política dos evangélicos para o conservadorismo e a
extrema-direita.
Um aspecto da doutrina da TMI que pode ter contribuído fortemente para o
crescimento do número de evangélicos na América Latina é a ênfase na responsabilidade de
todos os cristãos para com a “missão”. Se por tantos anos, evangelizar era trabalho quase
exclusivo dos missionários enviados para países distantes, a TMI dizia o oposto: todos os
evangélicos devem se dedicar ao evangelismo. Para tanto, não é necessário abandonar seu
emprego nem seu país: é possível realizar sua missão ao “pregar a palavra” para seus
familiares, vizinhos e pessoas do seu convívio cotidiano; outro modo de cumprir seu dever é
através das obras de assistência social nas comunidades pobres de sua própria cidade. Com
um número muito maior de “missionários”, e um incentivo cada vez maior a expandir seu
trabalho para as periferias e os grupos marginalizados, o protestantismo latino-americano
realizava mais uma vez, agora com força renovada, a sua vocação para religião popular.
Outro fator ainda a ser explorado para compreender este fenômeno é o papel das
igrejas neopentecostais, que começaram a surgir no continente justamente no final da década
de 70, e rapidamente se tornaram algumas das maiores denominações evangélicas nos países
onde atuam. Estas igrejas, desde seu nascimento, se desvincularam dos antigos valores de
isolamento político evangélico, mas cultivaram o conservadorismo fundamentalista do
passado missionário. É possível encontrar nos seus métodos de administração e de
proselitismo a raiz deste crescimento, assim como no uso que fazem seus líderes do poder
econômico e influência política adquiridos ao longo de sua expansão.
A pesquisa que foi desenvolvida nestas páginas suscita, enfim, mais perguntas do
que respostas. Sabemos que os evangélicos, como força política ativa, vieram para ficar.
Ainda há, entre eles, espaço para a TMI e seus valores? Teriam os conservadores dominado de
modo definitivo a comunidade, suas pautas e demandas, ou há ainda espaço para um
evangelho social, que apesar de suas diferenças, milita ao lado de marxistas e católicos da
libertação por justiça e igualdade? Seriam os evangélicos no Brasil, de fato, mais
conservadores que seus vizinhos? Ou são apenas mais vocais na defesa de suas posições? Por
que o Uruguai figura à parte de todos os outros latino-americanos ao frear este crescimento e
manter os evangélicos como minoria, enquanto sua população abandona a religião? Quais as
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razões – históricas e sociológicas – que levam a estas diferenças? A propósito, este é um tema
que exige, para ser compreendido profundamente, o trabalho conjunto de várias áreas:
historiadores, sociólogos, psicólogos sociais. À historiografia, em particular, cabe ainda
construir o processo que levou à consolidação dos conservadores como força principal dentro
da comunidade latino-americana e particularmente da brasileira, e à sua radicalização
antimarxista, adotando pautas que, ao menos à primeira vista, vão contra os princípios
bíblicos que regem a fé protestante e séculos de reflexão teológica.
Cavalcanti afirma que no Terceiro Congresso Latino-Americano de Evangelização,
promovido pela FTL em Quito em 1992, foi reafirmada mais uma vez a opção pelos
pressupostos da teologia da missão integral. Porém, pela troca de experiências, já era possível
notar um crescente envolvimento dos protestantes na política continental pela direita
(CAVALCANTI, 2002, p.179). Sendo assim, pode-se considerar que a embora a TMI tenha
conseguido quebrar o paradigma do cristão isolado da vida secular, dedicado apenas a resgatar
o máximo possível de almas do mundo decadente, e aberto as portas da representação política
para os evangélicos, as sementes de uma atuação à direita já começavam a se manifestar
desde o início da década de 90. Seria esta tendência um resquício do processo de formação
das igrejas latinas por missionários conservadores, e uma permanência dos valores que
trouxeram consigo dos Estados Unidos no século XIX, ou há fatores novos que começaram a
afetar mais significativamente a comunidade nos anos 90? Uma outra possibilidade é que os
dogmas da religião estejam intrinsecamente mais relacionados a posicionamentos defendidos
pela direita. Mas neste caso, como se explicaria a amplitude que tomou a TMI, uma teologia
progressista, em tão pouco tempo, e a sua promoção pelos mais respeitados teólogos
latino-americanos?
Ao longo da pesquisa, pudemos compreender as causas que levaram ao
estabelecimento de uma teologia conservadora, voltada para a ética individual, a moralidade
sexual e a conversão do maior número possível de fiéis, e como estes posicionamentos
levaram a uma rejeição dos protestantes à atuação política e social. Compreendemos também
as razões que levaram ao surgimento de uma teologia diferente na América Latina, voltada
para as necessidades e a realidade dos países da região. Conhecemos quais as resistências que
enfrentou. Sua influência continua presente – todas as instituições mencionadas no texto são
ainda ativas em 2022. Vemos hoje, no entanto, efeitos talvez não planejados: seu sucesso em
trazer aos evangélicos o reconhecimento da necessidade de ser um cidadão consciente de seu
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papel político, porém as limitações em estabelecer a luta pela justiça social como uma pauta
cristã. Para tanto, seria ainda necessário vencer o anticomunismo que domina a comunidade.
Estabelecer uma distinção entre vida religiosa e vida civil, permitindo que
evangélicos adotem ou ao menos tolerem na vida pública pautas conflitantes com valores
religiosos individuais, nunca foi um objetivo da TMI nem de nenhum outro movimento
significativo entre os protestantes, porém é um passo essencial para reduzir as tensões
produzidas pela existência de uma maioria religiosa politicamente ativa em Estados laicos
como são as repúblicas na América Latina.
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