Um Bonde Chamado Desejo CENA X

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CENA X

(Algumas horas mais tarde, na mesma noite. Blanche esteve bebendo continuamente desde que Mitch foi
embora. Ela arrastou para o centro do quarto seu baú cheio de roupas, que permanece aberto, com
vestidos floridos espalhados por cima. Enquanto ela bebia e tentava arrumar a mala, começou a
experimentar uma histérica sensação de libertação, se embandeirou com um vestido de noite, de cetim
branco, meio sujo e amassado, e calçou um par de chinelos cor de prata já gastos, com brilhantes
engastados nos saltos).
(Agora ela está colocando na cabeça a tiara de fantasia, em frente ao espelho da penteadeira, e
murmurando excitada, como se estivesse falando a um grupo de admiradores elegantes).

BLANCHE - Que tal se fôssemos nadar à luz da lua lá perto da pedreira? Se é que há alguém bastante
sóbrio para guiar o carro! Ha, ha, é a melhor maneira de fazer a cabeça parar de tinir! Só que é preciso ter
muito cuidado e só mergulhar onde a água for bastante funda... Se a gente bater com a cabeça numa
pedra, só volta à tona no dia seguinte... (Trêmula, ela levanta o espelho de mão para fazer uma inspeção
mais cuidadosa. Retém a respiração e atira o espelho com tanta violência que o vidro se quebra. Ela se
lamenta um pouco e tenta se levantar. Stanley aparece na esquina do prédio. Ele ainda veste a camisa de
seda de cor verde viva usada para jogar boliche. Enquanto ele contorna a esquina, ouve-se a música
sincopada do piano rouco. Ela continua em surdina, durante toda a cena. Ele entra na cozinha, batendo
a porta. Enquanto examina Blanche atentamente, ele dá um assovio não muito alto. Ele tomou alguns
drinques a caminho de casa e trouxe pequenas garrafas de cerveja para casa).

BLANCHE - Como está minha irmã?

STANLEY - Vai indo bem.

BLANCHE - E o nenê?

STANLEY (sorrindo amavelmente) - O nenê não vai chegar antes de amanhã, por isso me mandaram
para casa dormir um pouco.

BLANCHE - Isso quer dizer que nós dois vamos ter que ficar aqui sozinhos?

STANLEY - É. Só eu e você, Blanche. A menos que você tenha alguém escondido embaixo da cama.
Para que toda essa plumagem?

BLANCHE - Ah! É verdade. Você saiu antes da chegada do telegrama.

STANLEY - Chegou telegrama para você?

BLANCHE - É, eu recebi um telegrama de um velho admirador meu.

STANLEY - Boas notícias?

BLANCHE - Acho que sim. Um convite.

STANLEY - Prá quê? Pro baile do Corpo de Bombeiros?

BLANCHE (jogando a cabeça para trás) - Um cruzeiro de iate pelas Caraíbas.

STANLEY - Não diga!

BLANCHE - Foi a maior surpresa da minha vida!

STANLEY - Imagine!

BLANCHE - Foi como se tivesse de repente caído do céu.


STANLEY - De quem foi?

BLANCHE - De um velho admirador meu.

STANLEY - Aquele que te deu as peles de raposa-branca?

BLANCHE - Shep Huntleigh. Foi meu namorado na universidade. Eu não o havia visto desde o Natal
passado. De repente encontrei-me com ele em pleno Boulevard Biscayne. Agora, este telegrama,...
Convidando-me para um cruzeiro pelas Caraíbas. Meu problema são as roupas. Remexi minhas malas
para ver se encontrava alguma coisa apropriada para os trópicos.

STANLEY - E encontrou essa resplandecente tiara de diamantes...

BLANCHE - Essa velha relíquia? Ha, ha... Pura imitação.

STANLEY - Puxa! Pensei que fossem diamantes verdadeiros. (desabotoa a camisa)

BLANCHE - De qualquer maneira vou me divertir muitíssimo.

STANLEY - Ha, ha, isso prova que a vida é cheia de surpresas!

BLANCHE - Justamente agora quando pensei que a minha sorte estivesse me abandonando...

STANLEY - Entra em cena este milionário de Miami.

BLANCHE - Esse homem não é de Miami, é de Dallas.

STANLEY - De Dallas?

BLANCHE - É, de Dallas onde o ouro jorra da terra.

STANLEY - Bom, contando que ele seja de algum lugar. (Começa a tirar a camisa).

BLANCHE - Você não poderia fechar a cortina antes de se despir?

STANLEY (amavelmente) - Por enquanto só vou tirar isso. (Rasga o saco que trouxe e tira uma pequena
garrafa de cerveja) Viu o abridor de garrafa? (Ela se dirige lentamente para a cômoda, onde fica com as
mãos entrelaçadas) Eu tinha um primo que podia abrir uma garrafa com os dentes. (Batendo a tampa da
garrafa no canto da mesa) Era só para isso que ele prestava: era um abridor de garrafas humano. Um dia,
numa festa de casamento, ele... Arrebentou os dentes da frente. Depois disso ele ficou tão envergonhado
que saía pela porta dos fundos toda a vez que chegavam visitas. (A tampa da cerveja salta e um jato de
espuma se esparrama. Stanley ri feliz, segurando a garrafa sobre a cabeça) Ha, ha, ha, ha! Chuva do
céu! (Estende a garrafa na direção dela) Vamos acabar com as brigas se beber a nossa amizade? Hein?

BLANCHE - Não, muito obrigada.

STANLEY - Bem, nós dois temos motivos para festejar hoje. Você pelo seu milionário do petróleo e eu
pelo meu filho!

(Vai até a cômoda no quarto, e agacha-se para retirar alguma coisa da gaveta do fundo).

BLANCHE (afastando-se) - O que é que você está fazendo aí?

STANLEY - Tenho aqui uma coisa que só uso em ocasiões especiais. Um pijama de seda que usei na
minha noite de núpcias. Quando o telefone tocar e alguém disser: "Seu filho nasceu", vou arrancá-lo do
corpo e agitá-lo como uma bandeira! (Agita no ar um paletó de pijama brilhante) Acho que nós dois
temos o direito de festejar e de encher a cara. (Volta à cozinha com o paletó no braço).

BLANCHE - Quando eu penso no prazer divino que vai ser poder estar a sós de novo... me dá vontade de
chorar de alegria...

STANLEY - Esse milionário de Dallas não vai interferir nessa sua solidão?

BLANCHE - Não vai ser esse tipo de coisa que o senhor está pensando. Esse homem é um cavalheiro e
me respeita. (Melhorando sua disposição, aumentando a intensidade até se tornar febril) O que ele deseja
é a minha companhia, mais nada! Ser muito rico, às vezes, deixa as pessoas solitárias. Uma mulher culta,
inteligente, e de boa educação pode enriquecer a vida de um homem. Beleza física é efêmera. Uma posse
transitória. Mas a beleza do espírito e a ternura do coração, e eu tenho tudo isso, não se pode tirar, ao
contrário, elas crescem. Crescem com os anos! Como é estranho que me digam que eu sou uma mulher
frustrada! Quando eu tenho todos esses tesouros enterrados no coração! (Um soluço sufocado a
interrompe) Mas tenho sido tola, atirando minhas pérolas aos porcos.

STANLEY - Porcos, hein?

BLANCHE - Sim, porcos, porcos! E quando eu digo porcos, não estou pensando apenas no senhor, mas
também no seu amigo, o senhor Mitchell. Ele veio me ver hoje à noite. Teve a ousadia de me visitar em
roupas de trabalho e repetir calúnias, histórias, venenos que ouviu do senhor. Mandei-o daqui para fora.

STANLEY - Mandou?

BLANCHE- Mas depois ele voltou! Voltou com uma caixa de rosas para pedir perdão. Há certas coisas
imperdoáveis. Crueldade deliberada, por exemplo. E foi por isso que eu lhe disse: "Obrigada, meu
amigo”, mas foi tolice pensar que era possível nos adaptarmo-nos um ao outro. Nossos caminhos são
diferentes. Precisamos ser realistas sobre essas coisas. Portanto, adeus, meu amigo, não me guarde
rancor... Foi isso que eu lhe disse.

STANLEY - Isso foi antes ou depois de chegar o telegrama do milionário do Texas?

BLANCHE - Que telegrama? Oh, não, não, foi depois. Para ser franca...

STANLEY - Para ser franco não houve nenhum telegrama!

BLANCHE - Oh, oh!

STANLEY - Não há nenhum milionário! E Mitch não trouxe rosas porque eu sei onde ele está...

BLANCHE - Oh!

STANLEY - Não há nada. Só imaginação.

BLANCHE - Oh!

STANLEY - E olhe para você! Olhe-se nessa fantasia de carnaval alugada por cinqüenta centavos, de
algum trapaceiro. E com essa coroa maluca. Que rainha você pensa que é?

BLANCHE - Oh, Deus!

STANLEY - Eu sabia quem você era desde o começo! Você não me enganou. Você entra aqui e enche o
lugar de pó-de-arroz e perfume e cobre a lâmpada com uma lanterna de papel e pronto! O lugar se
transforma no Egito e você é a Rainha de Sabá. Sentada no seu trono e engolindo toda a minha bebida.
Quer saber de uma coisa? Ha! Ha! Ouviu bem? Ha, ha, ha! (Entra no quarto).
BLANCHE - Não entre aqui. (Pálidos reflexos aparecem nas paredes, em volta de Blanche. As sombras
são de uma forma grotesca e ameaçadora. Ela retém a respiração, vai até o telefone e sacode o gancho.
Stanley entra no banheiro e fecha a porta) Telefonista! Telefonista! Interurbano... Quero uma ligação
para Shep Huntleigh, em Dallas. Ele é tão conhecido que não preciso dar o endereço. Pergunte a qualquer
pessoa que... Espere! Não, agora não dá para encontrar. Por favor. Compreenda. Eu... Não. Não, espere!
Um momento. Alguém está... Nada! Espere, por favor... (Põe o fone sobre a mesinha e entra
cautelosamente na cozinha. A noite está cheia de vozes inumanas, que soam como gritos em uma
floresta. As sombras e os reflexos pálidos movem-se sinuosamente como chamas ao longo dos espaços
das paredes. Através da parede de trás dos aposentos, que se tornaram transparentes, pode-se ver a
calçada. Uma prostituta rodeia um bêbado. Ele a persegue ao longo da calçada, alcança-a, e há uma
luta. O apito de um policial termina a luta. Os vultos desaparecem. Alguns momentos mais tarde a
mulher negra aparece no lado da esquina com uma sacola de lantejoulas que a prostituta deixou cair na
calçada. Ela está examinando, excitada, o conteúdo da sacola. Blanche aperta os nós dos dedos nos
lábios e retorna lentamente ao telefone. Ela fala em um murmúrio rouco) Telefonista! Telefonista!
Esqueça o interurbano. Ligue-me com a Western. (Espera com ansiedade) Western? Eu... Quero... Tome
nota deste tele-grama! "Circunstâncias desesperadoras. Ajude-me! Presa numa armadilha. Presa numa...
"Oh!...

(A porta do banheiro se abre e Stanley sai, vestindo o pijama de seda brilhante. Ele sorri maliciosamente
para ela enquanto amarra acima da cintura o cinto com borlas. Ela ofega e se afasta do telefone. Ele olha
fixamente para ela durante o tempo que se leva para se contar até dez. Então, um clique vindo do telefone
torna-se audível, constante e estridente).

STANLEY - Você deixou o telefone fora do gancho.

(Vai até o telefone propositadamente e recoloca-o no gancho. Depois de tê-lo recolocado, ele a fita
novamente, com a boca lentamente curva num sorriso malicioso, enquanto anda entre Blanche e a porta
da rua. O piano”blue”, até então quase inaudível, começa a martelar mais alto. Seu som se transforma
no rugido de uma locomotiva que se aproxima. Blanche se agacha, tampando as orelhas com as mãos
até que ele se afasta).

BLANCHE (recompondo-se finalmente) - Deixe-me... Deixe-me passar!

STANLEY - Passar? Claro. Pode passar... (Dá um passo para trás no sentido do vão da porta).

BLANCHE - Não. Você fique... Fique ali! (Indica uma posição mais distante).

STANLEY (sorrindo maliciosamente) - Você tem espaço de sobra para passar por mim agora.

BLANCHE - Não com você aí! Mas eu tenho de sair de alguma forma!

STANLEY - Acha que eu vou interferir? Ha, ha!

(O piano “blue” soa suavemente. Ela se volta, confusa, e faz um gesto desalentado. As vozes inumanas,
como numa selva, aumentam de intensidade. Ele dá um passo em direção a ela, mordendo a língua, que
se espicha entre seus lábios).

STANLEY (suavemente) - Pensando bem, talvez não fosse mau... Interferir...

(Blanche se move para trás, através da porta, em direção ao quarto).

BLANCHE - Fique aí, não dê nem mais um passo, senão. . .

STANLEY - O quê?

BLANCHE - Vai acontecer uma coisa horrível!


STANLEY - Que papel você está representando agora?

(Agora, ambos estão dentro do quarto).

BLANCHE - Eu estou avisando. Não faça isso. Eu estou em perigo!

(Ele dá outro passo. Ela quebra uma garrafa na mesa e o encara, agarrando o gargalo quebrado).

STANLEY - Para que você fez isso?

BLANCHE - Para espetar essa garrafa na sua cara.

STANLEY - Você é bem capaz disso.

BLANCHE - Sou, sim!... E é o que vou fazer se...

STANLEY - Ah, então você quer violência? Muito bem, vamos ser violentos! (Ele salta na direção dela,
virando a mesa. Ela dá um grito e o golpeia com o gargalo da garrafa, mas ele a agarra pelo pulso)
Largue, vamos! Largue a garrafa, sua gata-do-mato! A gente tinha esse encontro desde o começo!

(Ela geme. O gargalo da garrafa cai. Ela cai de joelhos. Ele apanha afigura inerte de Blanche e a
carrega para a cama. O trompete e a bateria do Quatro Naipes soam alto).

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