Repensando As Políticas de Saúde No Brasil Educação Permanente em Saúde Centrada No Encontro e No Saber Da Experiência
Repensando As Políticas de Saúde No Brasil Educação Permanente em Saúde Centrada No Encontro e No Saber Da Experiência
Repensando As Políticas de Saúde No Brasil Educação Permanente em Saúde Centrada No Encontro e No Saber Da Experiência
br
eISSN 1807-5762
Artigos
Este artigo tem o objetivo de discutir a formação em Educação Permanente em Saúde (EPS),
denominada "EPS em Movimento" e realizada em 2012 pelo Departamento de Gestão da Educação na
Saúde (DEGES) da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) do Ministério
da Saúde (MS) do Brasil, em parceria com instituições de ensino, trabalhadores e gestores do Sistema
Único de Saúde (SUS), e que teve como aposta principal dar visibilidade às experiências de EPS,
provenientes das afecções e dos encontros. Pretende-se cartografar e compreender essa experiência,
seu caráter inovador e a conexão com os modos como as políticas de saúde para o SUS estão sendo
formuladas e implementadas, incluindo a Política de Educação Permanente em Saúde instituída no
Brasil desde 2003.
Carvalho MS, Merhy EE, Sousa MF. Repensando as políticas de Saúde: no Brasil Educação Permanente em
Saúde centrada no encontro e no saber da experiência. Interface (Botucatu). 2019; 23: e190211 https://doi.
org/10.1590/Interface.190211 1/12
Repensando as políticas de Saúde no Brasil: ... Carvalho MS, Merhy EE, Sousa MF
Introdução
As políticas públicas, além de incluírem ações de governo para enfrentamento de
problemas da coletividade, envolvem interesses de múltiplos atores que disputam
cotidianamente ideias, valores, visão de mundo e narrativas, vetores que influenciam e
definem o desenrolar dessas políticas nos territórios.
Em geral, o modo instituído de formulação das políticas de saúde no SUS passa
por uma formulação mais centralizada, sendo, em sua grande maioria, o Ministério da
Saúde o principal protagonista dessa formulação, que, em geral, utiliza mecanismos de
indução, na sua maior parte de cunho financeiro, para fomentar práticas e padrões que
se desejam alcançar. O fomento à construção dessas políticas indutoras foi intensificado
sobretudo na década de 1990, com a aprovação da Norma Operacional Básica (NOB) NOB elaborada pelos
(d)
961(d), condicionando a habilitação dos entes municipais e estaduais, em modalidades gestores de forma tripartite
de gestão, a incentivos financeiros, como o Piso de Atenção Básica (PAB) fixo e variável; para ordenar a organização do
SUS.
incentivos de média e alta complexidade (MAC) articulados à produção; incentivos da
Vigilância à Saúde, entre outros.
Embora alguns avanços oriundos desses mecanismos de indução tenham
acontecido, como a definição de um piso para as ações de Atenção Básica, o que
se pretende ressaltar aqui é o distanciamento e a dicotomia entre a formulação e a
execução dessas políticas de saúde; e o engessamento e rigor dos padrões exigidos, sem
olhar a diversidade e necessidades das regiões, produzindo, assim, dificuldades na gestão
das políticas, baixo protagonismo dos gestores municipais e estaduais e demais atores
nos territórios e a insatisfação dos usuários do sistema.
Esses campos de tensão e de disputas trazem para a cena algo que escapa do controle
almejado pela gestão, quando observamos gestores, trabalhadores do SUS e até mesmo
usuários inventando novas formas de resolver os problemas do cotidiano que podem
passar ou não alheias às políticas formuladas. Foucault2,3 já discutia essa questão em
Governamentalidade é a
(e)
seus estudos sobre biopoder e governamentalidade(e); e Deleuze e Guatarri4 no âmbito
“maneira como se conduz a
da subjetividade – compreendendo esta não como algo individual, do sujeito, mas conduta dos homens” ou “uma
como múltiplos vetores sociais, econômicos, físicos, técnicos, políticos e existenciais a proposta de grade de análise
partir dos quais pode emergir um território existencial. para as relações de poder”.
Alguns autores, no campo da saúde coletiva no Brasil, como Merhy5 e Feuerwecker6,
abordam esse tema da micropolítica em seus estudos para discutir o trabalho em saúde
e os modos de governar as políticas de saúde. Entende-se aqui micropolítica não como
algo menor, mas, como pensa Guatarri et al.7, como aquilo que acontece no âmbito
das relações e dos desejos e que não se polariza com a macropolítica, uma vez que existe
micropolítica nas relações de macropoder, assim como a micropolítica pode emanar
acontecimentos que ganham visibilidade na macropolítica.
Utilizando esses conceitos – ferramenta dos autores –, pretende-se cartografar
a EPS e a mais recente proposta de formação EPS em Movimento, por meio de
seus enunciados ou experiências nos territórios, como nos propõe Rolnik8, a “dar
língua aos afetos e construir pontes de linguagem para travessia em outros territórios
cartográficos” (p. 23) de maneira a produzir a seguinte reflexão: é possível pensar em
novos modos de construir políticas de saúde e de formação? O que a experiência da
EPS, sobretudo a EPS em Movimento, tem a nos dizer sobre essa questão?
A noção de gestão colegiada, como nas rodas dos jogos infantis, coloca a todos
como participantes de uma operação conjunta em que todos usufruem o
protagonismo e a produção coletiva. Por isso, a União e os Estados têm de
problematizar para si a função e o exercício de uma coordenação com capacidade
descentralizadora, e os municípios e as escolas terão de problematizar para si as
funções de condução e de execução significativas para o Sistema, e não para a
produtividade educacional e assistencial, respectivamente. Enquanto os últimos
são os lugares de produção da atenção aos grupos sociais territorializados, os
anteriores são os apoiadores de ativação para que esta atenção seja integral e
resolutiva17.
de processos de mudança. É o
cotidiano dos serviços de saúde.
novo, o inusitado.
Spinoza já fala em sua produção sobre a potência dos encontros, alegres e tristes,
que intensificam ou reduzem a potência do viver27.
São por meio desses encontros, nos quais os regimes de verdade(g) discursivos e não
(g)
Regimes de verdade:
discursos que funcionam
discursivos se apresentam e, que o que se vê e o que não se vê; o que se diz e que não
como verdade, regras de
se diz; e o que se faz com tudo isso se revelam, produzindo afecções, deslocamentos e enunciação da verdade com
aprendizagem. ligação circular com o poder,
A EP constitutiva de aprendizado no trabalho e nos modos de existir no mundo que, por sua vez, produz
nos convida a olhar diferente, para além do que está estabelecido, mesmo na repetição verdade e a sustenta, sendo
que tal verdade produz efeitos
dos atos em saúde. É a partir da observação, dos desejos e das afecções dos encontros
de poder2.
que a Educação Permanente acontece. Afecções no sentido28,29 que Spinoza nos traz
como “tudo aquilo que nos afeta, por meio dos encontros, alegres ou tristes, e produz
alterações no nosso corpo, podendo produzir um desconforto, uma reflexão, um
sentimento, uma ação, um aprendizado, responsável por aumentar ou diminuir a
Vídeo institucional: Caixa
(h)
potência de vida”(h).
de Afecções. Direção: Flávio
A proposta de formação EPS em Movimento teve como objetivo não seguir a Carnielli. https://www.youtube.
modularidade e linearidade comuns nos processos formativos de ensino a distância com/watch?v=oTKR3FB9vTg
(EAD), nos quais os alunos vão vencendo as etapas do conhecimento por meio de
unidades de aprendizagem. Na EPS em Movimento, quem faz o percurso formativo
é o aluno, a partir de suas afecções no território, com o apoio do tutor que oferta
ferramentas a partir de sua experiência e o provoca a ir ao encontro de suas experiências
de EP. O material, em constante construção, propõe-se a ser uma caixa de ferramentas
que o participante faz uso de acordo com as suas necessidades e desafios do cotidiano,
podendo ainda deixar suas contribuições autorais, por meio do que foi denominado
diário cartográfico e/ou caixa de afecções.
Além do diário cartográfico, a caixa de afecções31 foi uma das ferramentas utilizadas
no processo formativo, sendo um lugar de produção de encontros, não com pessoas,
mas com objetos e símbolos, produzindo deslocamentos no nosso corpo, do campo
racional para o sensível, no qual as afetações, ou seja, aquilo que nos afeta, trazem
possibilidades de narrativas e aprendizados.
Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas,
ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência.
O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de
alguma maneira impossível de ser repetida32.
Conclusão
Embora o tema da EPS não pretenda se esgotar aqui, observa-se que ele tem muito
a contribuir com as reflexões que estamos propondo sobre a construção das políticas de
saúde no Brasil.
Partindo do pressuposto de que as políticas públicas são o resultado de um
conjunto de ações produzidas nos territórios, pode-se considerar a questão da
materialização dessas políticas por parte dos trabalhadores no encontro com os usuários
e com a gestão. A autonomia com que trabalhadores e usuários têm produzido os
seus percursos, muitas vezes, fica fora do radar dos gestores que acham que estão
controlando o trabalho apenas por planilhas gerenciais e sistemas de informação.
Até que ponto então estamos construindo pertencimento, por parte dos usuários e
trabalhadores, com essas políticas e com a defesa do SUS, que se encontra ameaçado?
O que passa invisível no radar do gestor está dito nas narrativas desses trabalhadores,
gestores locais e usuários, em vários espaços formais e informais dos serviços de saúde e
nas comunidades como formas de resistir e existir no mundo do trabalho.
É a rede viva que opera no sistema de saúde que nos possibilita enxergar os aspectos
micropolíticos do trabalho que interferem nas políticas de saúde implementadas.
Como aprender então a “transver esse mundo”, como nos convida o poeta Manuel de
Barros34, e permitir a emergência dessas multiplicidades?
Valorizar o encontro, as escutas e as formas com que os trabalhadores e
usuários inventam os seus modos de produção pode ser um caminho, além de ir
ao encontro dessas experiências, não com o objetivo de fiscalizá-las ou apropriar-
se instrumentalmente delas, mas buscando rastrear a potência de cada uma delas.
Reconhecer que todos, com base em suas histórias e experiências de vida, inventam
soluções para responder a questões complexas do cotidiano e que todos aprendemos
uns com os outros, em um aprendizado contínuo, fundamentado na vivência e no
encontro, e não apenas na transmissão do saber.
Sair de uma posição de suposto saber para considerar, como defende Merhy29, que
no trabalho em saúde se aprende e se ensina nos atos de cuidado e também de descuido.
Reconhecer, como afirma o autor, que todos os trabalhadores e gestores do SUS, em
suas práticas cotidianas, fazem ou estão em educação permanente – seja no café, no
corredor de uma unidade de saúde ou dentro do consultório, independentemente de
qual seja a sua intencionalidade – e que, portanto, também governam as políticas de
saúde.
Sendo assim, a visão de política pública deixa de ser uma ação apenas do Estado e
passa a ser um acontecimento, produzido no cotidiano a partir das múltiplas interações
rizomáticas8, que mobilizam os indivíduos. Uma política construída sem reconhecer
esses movimentos pode produzir desresponsabilização e baixa implicação dos
trabalhadores e gestores.
Mesmo que a formulação de uma política venha a se transformar em um ato
normativo, as diversas formas como ela é concebida e implementada, sempre com
múltiplas conexões e acontecimentos produzidos no cotidiano da micropolítica, a
coloca em um plano de imanência2, como defende Foucault, e como algo que emana
de todos, e não apenas de um conjunto de atores que irão definir o que é melhor para
todos. Reconhecer esses movimentos e a potência que eles trazem e considerá-los nas
apostas políticas são possibilidades que essa reflexão traz para a construção de políticas
de saúde no SUS.
Direitos autorais
Este artigo está licenciado sob a Licença Internacional Creative Commons 4.0, tipo BY
(https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR).
CC BY
Referências
1. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.203, de 5 de Novembro de 1996. Norma
operacional básica – NOB – 1/96. Diário Oficial da União. 6 Nov 1996.
2. Foucault M. Microfísica do poder. São Paulo: Graal; 1996.
3. Foucault M. O nascimento da clínica. Machado R, tradutor. 5a ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária; 1998.
4. Deleuze G, Guatarri F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Guerra Neto A, Costa
CP, tradutor. Rio de Janeiro: Edições 34; 1995. v. 1.
5. Merhy E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002.
6. Feuerwerker LCM. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação.
Porto Alegre: Rede Unida; 2014.
7. Guatarri F, Rolnik S. Cartografias do desejo. 4a ed. Petrópolis: Editora Vozes; 1986.
8. Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto
Alegre: Editora UFRGS; 2007. p. 23-70.
9. Furter P. Educação permanente e desenvolvimento cultural. Petrópolis: Vozes; 1975.
10. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Educação:
um tesouro a descobrir. Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre
Educação para o século XXI. Brasília: Unesco; 1998.
11. Freire P. Pedagogia do oprimido. 17a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987.
12. Ribeiro D. O processo civilizatório. Estudos de antropologia da civilização: etapas da
evolução sociocultural. São Paulo: Companhia das Letras, Clube Folha; 2000.
13. Fernandes F. O desafio educacional. São Paulo: Editora Cortez; 1989.
14. Organização Pan-Americana de Saúde. Educación permanente de personal de salud
en la región de las américas. Washington: Opas; 1988. Fascículo I: Propuesta de
reorientación. Fundamentos. (Serie de desarrollo de recursos humanos, nº 78).
15. Ceccim RB. Onde se lê recursos humanos da saúde, leia-se coletivos organizados de
produção da saúde: desafios para a educação. In: Pinheiro R, Mattos R, organizadores.
Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e
espaços públicos. Rio de Janeiro: Abrasco; 2005.
16. Brasil. Ministério da Saúde. Resolução nº 335, de 27 de Novembro de 2003. Afirma
a aprovação da “Política Nacional de Formação e Desenvolvimento para o SUS:
Caminhos para a Educação Permanente em Saúde”. Diário Oficial da União. 5 Fev
2004.
17. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 198/GM/MS, de 13 de Fevereiro de 2004.
Institui a Política Nacional de Educação Permanente na Saúde como estratégia do
SUS para formação e desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá outras
providências. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.
18. Ceccim RB, Feuerwerker LCM. O quadrilátero da formação para a área da saúde:
ensino, gestão, atenção e controle social. Physis. 2004; 14(1):41-65.
19. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde.
Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Curso de Formação de facilitadores
de educação permanente em saúde: unidade de aprendizagem – análise do contexto da
gestão e das práticas de saúde. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, Fiocruz; 2005.
This article discusses the program “Continuing Health Education in Movement” (EPS em
Movimento) implemented by the Ministry of Health’s Department of Health Education
Management (DEGES, acronym in Portuguese) in partnership with academic institutions and the
workers and administrators of the Brazilian National Health System (SUS). Its main aim is to give
visibility to EPS experience resulting from the affects and encounters. The authors aim to map and
understand this experience, its innovative nature, and connection with the ways in which health
policies for SUS are being formulated and implemented, including the Continuing Education in
Health Policy established in Brazil since 2003.
Keyword: Health policy. Continuing education. Encounter.
Submetido em 03/04/19.
Aprovado em 11/05/19.