Ppge/Fct/Unesp/Pp: Campus de Presidente Prudente
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PPGE/FCT/UNESP/PP
ADEMIR HENRIQUE MANFRÉ
Presidente Prudente/SP
2014
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PPGE/FCT/UNESP/PP
ADEMIR HENRIQUE MANFRÉ
Presidente Prudente/SP
2014
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3
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DEDICATÓRIA
Dedico esta escritura aos meus bens mais preciosos: meus pais Ademir e Eliana,
que me educaram na possibilidade de ser uma pessoa melhor; meus irmãos, Thiago e
Leandro, os quais sempre me apoiaram em meus estudos; meus sobrinhos, João Victor e
Felipe com quem compartilho minhas horas livres para renovar minha alegria e meus
pensamentos e à minha avó Zenita (In memoriam) com quem apreendi a alegria, a força e a
coragem de empreender grandes obras.
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todos que foram de grande importância para que este
trabalho fosse concretizado. Ao longo do tempo vamos adquirindo uma infinidade de
dívidas que não podem ser pagas com dinheiro, pois representam uma importância que vai
além do material. É para demonstrar a infinita gratidão a essas pessoas que manifesto meus
agradecimentos.
Em primeiro lugar, e de forma muito especial, agradeço ao meu orientador, prof.
Dr. Divino José da Silva, pela generosidade com que me recebeu como seu orientando, por
sua leitura atenta desde meu projeto de pesquisa à execução deste e por sua sabedoria,
orientação competente e pelas numerosas sugestões que contribuíram para o
aperfeiçoamento deste trabalho e também para minha formação.
Aos meus valiosos pais, Ademir e Eliana, para quem tenho minha maior dívida,
pois sempre pude contar com o apoio e suporte deles para enfrentar todas as dificuldades
de minha vida. Obrigado por não medirem esforços para meus estudos, sempre prontos a
me apoiar, mesmo que de maneira tímida. Sei que o orgulho que sentem por mim é
silencioso, pois quando desvelado, pode ter seu brilho admirado.
Aos meus irmãos, Thiago e Leandro, por todo o carinho, apoio e incentivo.
Aos membros da banca examinadora de qualificação, pela leitura minuciosa e
atenta, pelas ricas e significativas contribuições que fizeram ao meu trabalho: prof. Dr.
Pedro Ângelo Pagni e prof. Dr. Ari Fernando Maia.
Aos professores e funcionários do Programa de Pós-graduação, Departamento de
Educação e Central de Pesquisa pelo apoio pedagógico e administrativo que me
proporcionaram.
Aos colegas do Doutorado que participaram das minhas alegrias e dificuldades
nesta caminhada.
Ao meu grupo de amigos e amigas do grupo de pesquisa “Valores, educação e
formação de professores”, com o qual tive a oportunidade de construir e trocar
conhecimentos, mas, sobretudo, de aprender. Sou grato pelos momentos felizes.
A todos os amigos que partilharam esses momentos de minha trajetória, pela
escuta, pelo incentivo e pelo acolhimento.
6
RESUMO
ABSTRACT
MANFRÉ, Ademir Henrique. The instructor’s inquietude and the limits of experience
in nowdays: a Frankfurtian reading. 2014. 212 f. Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Faculdade de Ciências e
Tecnologia, Presidente Prudente/SP, 2014.
This research aims at discussing the topic of the instructor’s inquietude and its relations to
the formative activity. From a theoretical approach, this research is part of the Graduation
Program in Education of FCT/UNESP/Campus of Presidente Prudente/SP, more
specifically of the research line on “Formative process, differences and values”. To
investigate our topic we assume the assumption that the instructor’s inquietude is due to
the process of expropriation of the experience in nowadays. From this, we investigate what
is the instructor’s inquietude so that clarifying its meaning. One of the intentions of this
research was to think about the contradictions produced by Modernity in relation to its
proposal for cultural formation (Bildung). Initially, we make some considerations in
respect of the implication of the educational debate on instructor’s inquietude to motivate
the reflection about the poorness of experience in nowadays. In a second moment, we
discuss the main Freudian thesis, and of others contemporary experts, about the
“Civilizations and its Discontents” as an inherent process to the constitution of
subjectivities. Finally, our central worry in this work was to think about the challenges
posed in nowadays to the achievement of an education based in a formative experience. In
this context, we reflected about the importance of conceive the paths for a compromised
education with the formation of autonomous individuals, which are able to seek for its own
identity, giving a (new) meaning to the perception of reality via its experience. In
summary, we saw in the Critical Theory a philosophical-theoretical referential that
contemplates the possibility for the development (in different basis) of an analysis of the
social process in which is inserted the school education in nowadays, as well its relations to
the productions of the instructor’s inquietude.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
Referências 214
10
INTRODUÇÃO
(2008), Leão (2003), Lapo & Bueno (2003), Fonseca (2009), Rodrigues (2011), Fernandes
(2008), Niches (2010), Strehl (2010), Gonçalves (2008), Rodrigues (2009), Weber (2009)
acerca do mal-estar docente a partir da leitura que realizamos de Sigmund Freud e de
outros autores, pensando no sentido do mal-estar na cultura, refletindo sobre os impasses,
as dificuldades e limites no tratamento desta temática e, neste caso, as dificuldades de
tratar desse tema no âmbito da própria educação.
O que se busca, portanto, é identificar os elementos que contribuem para a
perpetuação de uma falsa apropriação cultural, de uma consciência reificada que se
manifesta na perda da capacidade de significar ou conferir sentido ao que acontece no
contexto escolar.
O tema desta pesquisa é recorrente no debate educacional brasileiro na atualidade.
Os problemas que afligem a profissão docente não é algo novo nem original e acham-se
ligados à própria origem, ao desenvolvimento histórico e à desvalorização social dessa
profissão. Há de se ressaltar que, com a industrialização e modernização crescentes das
técnicas e do modo de trabalho manejados pelas forças do capitalismo, a escola e o
profissional da educação tiveram que acompanhar as mudanças aceleradas oriundas do
contexto atual que assolaram o campo pedagógico.
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN 9394/96 – o
indivíduo deve ser formado para o exercício da cidadania e para a qualificação para o
mercado de trabalho. Esse parece ser o fim último da formação humana. O discurso que
circula é o de que o professor deve estar preparado e especializado para educar, conforme
os padrões pré-estabelecidos pelas normas e legislações educacionais, as quais são
“efeitos” do mercado sobre as instituições escolares.
O que mais impressiona é o contínuo acirramento do mal-estar docente em todo o
mundo. Do mesmo modo que o tecido social, a docência é desgastada ante as insatisfações
grandemente justificadas dos professores, os descontentamentos dos alunos, a insatisfação
com relação às políticas públicas para a educação, a questão salarial, as condições de
trabalho precárias, classes superlotadas, indisciplina, pais omissos, ausência de uma rede
de apoio, falta de autonomia dos professores, enfim.
12
Todos esses são fatores que se têm associado ao que Esteve (1999), Codo (2002) e
Jesus (1998) denominam de mal-estar docente1 e que têm levado o professor a vivenciar
momentos de despersonalização, exaustão emocional e pouco envolvimento no trabalho.
O mal-estar docente é uma doença social produzida pela falta de apoio da
sociedade aos professores, tanto no terreno dos objetivos do ensino como
no das recompensas materiais e no reconhecimento do status que lhes
atribui. [...]. As pesquisas realizadas coincidem em descrever o professor
como uma pessoa condenada a fazer mal seu trabalho, já que nos últimos
anos acumulou-se sobre suas costas a quantidade de responsabilidades,
sem as contrapartidas correspondentes para poder cumpri-las, que
profissionalmente se encontra esgotado, faltando-lhe tempo material para
cumprir tudo aquilo que considera seu dever. (ESTEVE, 1999, p. 144-
145)
1
Esta expressão tem sido largamente usada, nos últimos anos, na literatura que versa sobre os professores e o
magistério, especialmente após a publicação, em 1986, da obra de José Manuel Esteve intitulada “O mal-
estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores”, cuja tradução para o português ocorreu em 1992.
2
Na psicanálise, o termo mal-estar é usado por Freud para designar a angústia. De acordo com Kaufman,
(1996), a expressão mal-estar surgiu primeiramente em um artigo de Freud produzido em 1895 para destacar
um desconforto típico da neurose de angústia. Mais tarde, o termo reaparece no texto “O mal-estar na
civilização” de 1930, no qual Freud situa as exigências da civilização como uma das causas das neuroses e
sofrimentos humanos. A inquietude de Freud estava em descobrir o que tinha de oculto, o que estava
escondido por trás do sintoma e da doença. Como médico neurologista, além do exame físico, Freud passou a
ouvir mais as queixas de seus pacientes, compreendendo que por trás da manifestação do sofrimento psíquico
ou físico, havia todo um contexto histórico, social e cultural, passando a se importar com a trajetória de vida
da pessoa, da infância em especial. O pai da psicanálise evidenciou que o ser humano passa por diversas
experiências que são essenciais para a constituição de sua personalidade, mas que nem sempre são benéficas
ao bem-estar da vida cotidiana. Dito de outro modo, essas vivências marcantes são inscritas no inconsciente e
ao se manifestarem o fazem de diversas formas, tais como atos falhos, sonhos, transtornos, chistes, enfim, por
sintomas psíquicos e físicos – causadores do mal-estar. Como veremos adiante, esse mal-estar é próprio da
condição humana, portanto, não há como o indivíduo dele escapar.
13
3
O tema do projeto da modernidade é o tema da razão como um projeto de uma racionalidade baseada numa
dimensão de autonomia, vinculada ao domínio da natureza e não mais baseada na autoridade metafísica. O
projeto Iluminista equivalia à pretensão de desenvolver a emancipação do indivíduo do jugo da autoridade,
libertar os seres humanos do “mito” a partir da capacidade humana de criação e da descoberta científica, ou
seja, ampliar o grande ideal de esclarecimento no próprio progresso humano, no seu desenvolvimento dentro
da sociedade moderna. Esse otimismo na “razão esclarecedora” levava o pensamento filosófico a afirmar que
o indivíduo havia alcançado a possibilidade da maioridade racional e que a razão se desenvolvia plenamente
para que o conhecimento da realidade e das ações humanas fosse atingido por completo. O germe do
desenvolvimento da concepção de razão cientificista e tecnológica já encontra em Descartes espaço
privilegiado, colocando a necessidade do método para garantir que a representação dos objetos, isto é, que as
imagens mentais interiores correspondam às manifestações dos objetos exteriores. Para o racionalismo
cartesiano a razão tem como objetivo estabelecer o princípio das ideias claras e distintas, afirmando que estas
não vinham da experiência sensível, mas já era uma construção do espírito, das ideias inatas, que não estão
sujeitas ao erro, sendo [a razão] o fundamento de toda ciência moderna. A partir do pensamento moderno
inaugura-se um plano da razão como experiência das promessas de poder e domínio da espécie humana. Os
domínios da razão, orgulhosa de suas possibilidades, vislumbravam um entusiasmo em seu caráter
autossuficiente, especialmente a partir das conquistas científicas inseparáveis da técnica. Assim, a
modernidade desenvolveu a crença de que a humanidade caminha na história guiada pela razão em direção a
um mundo melhor. Como vimos, os ideais da modernidade eram configurar um pensamento legítimo para
formar o ser humano cada vez mais racional, desenvolver nele sua individualidade autônoma, pautar-se sobre
uma crença na autonomia da razão, na consciência ética e na liberdade humana. Mas, a razão moderna, ao
ficar reduzida ao desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia, assumindo um modo unilateral de
racionalidade, demonstra uma visão parcial e instrumental que tenta adequar meios e fins do conhecimento
humano, levando o indivíduo a diferentes formas de dominação, afirmam Adorno & Horkheimer (1985).
17
Agamben (2005) localiza também outro marco, por ele denominado de “projeto
moderno”, que se focaliza a partir do pensamento cartesiano, no qual a centralidade do
conhecimento está no sujeito, contrastando o pensamento racional com a sensibilidade, na
maior parte das vezes enganadora, levando a um pensar inexato e sujeito ao erro.
Descartes propõe alguns caminhos, regras, um método para se guiar na razão: o eu
penso (ergo cogitum) garante a certeza da qual não se pode duvidar. Essa certeza constrói o
edifício da razão que ignora a sensibilidade e, por consequência, de qualquer experiência
empírica para se chegar a verdades. Desse modo, o conhecimento não poderia mais estar
amparado em algo que estivesse fora do sujeito da razão ou que viesse fora dele. De acordo
com Descartes, observa Agamben (2005, p. 29), um conhecimento só poderia ser
produzido pelo sujeito da razão e pelo uso correto e exato dessa razão, dado a partir da
consciência.
Nas ciências modernas, afirma Larrosa (2002), a experiência é menosprezada à
medida que é objetivada, homogeneizada, controlada, previsível e fabricada de tal forma
que acaba por converter-se em experimento. Uma das consequências disso é a exclusão da
imaginação dos limites da experiência, que ocasiona um irremediável empobrecimento das
formas de chegar ao conhecimento.
Como ressaltado anteriormente, partimos da suposição de que o mal-estar docente
está ligado à “pobreza da experiência”, ou melhor, à impossibilidade do professor re-
significar, no sentido crítico, o que acontece na escola e fora dela. Aqui reside o núcleo
central de nosso trabalho de pesquisa, ou seja, pretendemos criticar as leituras dos autores
que estudam o mal-estar docente encarado como um “fenômeno” - consideradas por nós
limitadoras da compreensão desse mesmo mal-estar.
É uma compreensão limitadora no sentido de que esses pesquisadores negam a
dimensão subjetiva que compreende o ofício docente, desconsiderando que, já em sua
gênese, o docente estaria fadado ao mal-estar dado à própria função civilizatória. Para
esses pesquisadores, combater o mal-estar docente através de medidas como o coping,
resiliência, terapias de grupo é o que cabe à escola na atualidade. Desse modo, ao
desconsiderar a ambiguidade do seu próprio trabalho – face objetiva e outra afetivo-pessoal
– o docente estaria envolvido por um empobrecimento de sua experiência com o contexto
escolar. A dificuldade aqui está em identificar como isso acontece conosco no tempo
presente, principalmente numa cultura marcada pela pressa, pela rapidez, pelo pensar
instrumental.
18
movimento psicanalítico, já que a relação entre o mundo externo e as pulsões sempre tenha
sido concebida por Freud como da ordem do conflito, sendo, portanto, uma das fontes de
mal-estar. O texto referência para este debate é o ensaio freudiano “Mal-estar na
civilização”, de 1930.
Na perspectiva de compreendermos o mal-estar instalado no professor pelo
programa de uma educação racionalizada e instrumentalizada, decidimos buscar na obra
freudiana e também em outros autores da psicanálise contemporânea reflexões que
possibilitem desvendar os caminhos que levam o profissional da educação a apresentar
sintomas de sofrimento psíquico oriundos do mal-estar desencadeado pelo processo
civilizatório. Podemos perceber que a noção de mal-estar na psicanálise não está resumida
a uma visão biológica do organismo em vias de adoecimento, como na medicina
tradicional, mas apresenta-se como um reflexo da subjetividade do sujeito, ou seja, como
algo que quer significar uma outra forma de um outro sofrimento. O mal-estar é
constituinte da civilização e do próprio indivíduo, uma vez que os processos de
desenvolvimento do sujeito e da civilização estariam conjugados.
Nessa parte do trabalho também recorreremos aos diagnósticos apontados por
Adorno & Horkheimer (1985) com relação à ideia de que o projeto da Alfklärung encontra-
se imanentemente presente desde os primórdios da civilização e se caracteriza,
fundamentalmente, pelo fato de que o progresso sempre esteve atrelado, paradoxalmente, à
regressão das capacidades humanas. A proposta dos frankfurtianos é pensar de que forma a
razão transformou-se em irracionalidade, voltada apenas para a dominação, discutindo
aspectos inerentes à formação do indivíduo na qual a subjetividade é enfraquecida.
Dedicamos o terceiro capítulo à temática mal-estar e contemporaneidade. A fim
de analisar a formação das subjetividades, buscamos elencar os destinos do desejo na
atualidade, na medida em que se torna possível investigar o que há de sofrimento nas atuais
formas de personalidade e então elaborar uma compreensão do mal-estar vivenciado pelo
professor. Segundo Birman, temos dificuldade em dar um destino ao mal-estar (conflito
entre pulsão x civilização) no campo do pensamento e da linguagem e, consequentemente,
sintomatizamos esses elementos no corpo por meio do patológico. É necessário ressaltar
que o nosso trabalho não visa o estudo de patologias específicas, mas sim modalidades de
experiências do sujeito que convive com o mal-estar docente.
Considerando que a leitura freudiana do mal-estar está profundamente enraizada
na modernidade, autores como Bauman (1998, 2001, 2004, 2009), Birman (1999) propõem
20
Esses são sinais concretos que, mais adiante, serão apontados nas pesquisas
realizadas no campo educacional. Este estudo não visa, portanto, patologias específicas,
mas modalidades de experiências dos sujeitos que vivenciam o mal-estar na educação.
Assim, não pretendemos nos deter sobre situações em que, por exemplo, a ocorrência de
um quadro tradicional da psicopatologia psiquiátrica é determinante do modo como o
sujeito se insere no campo escolar. Não é nossa intenção também determo-nos em figuras
específicas do campo da psicopatologia do trabalho, como é o caso da síndrome de burnout
ou do esgotamento profissional.
Pretendemos nos deter nas posições do sujeito frente à vivência do mal-estar na
escola, que consideramos características do cenário contemporâneo e que são
determinantes das formas de mal-estar docente. O trajeto proposto não tem obviamente a
pretensão de esgotar o tema, no sentido de abordar todas as formas de mal-estar na escola.
Trata-se tão somente de um recorte orientado por interesses específicos que advêm da
nossa experiência como pesquisador no campo educacional, ou seja, trata-se de investigar
o modo como a temática vem sendo debatida no campo da pedagogia, mais
especificamente, questionar como os pesquisadores dessa temática concebem tal elemento
presente no campo educativo.
As pesquisas e estudos aqui analisados comprovam a existência do problema e,
sobretudo, revelam um quadro preocupante no que diz respeito ao exercício da docência
diante do aumento do mal-estar entre os professores. Diante desse cenário, numa sociedade
em que vive a urgência do momento, ou seja, a velocidade, a rapidez, o transitório, o
pensar instrumental, o consumismo exacerbado, o narcisismo nosso de cada dia, a
superficialidade de algumas análises do mal-estar docente nos instiga a construir outros
olhares a respeito dos sentidos e indefinições atribuídos a essa problemática.
24
4
Fonte: Pesquisa bibliográfica Portal CAPES 2011.
25
equipar 330 escolas de educação infantil em 2008” (POLATO, 2008, p. 39). Segundo os
estudiosos do tema, tal quadro de adoecimento e deserção profissional do professor é
bastante complexo por não se tratar de um problema pontual, mas de uma situação
generalizada.
No ano de 2007, uma pesquisa realizada pelo IBOPE com professores das redes
municipal, estadual e federal de todas as regiões do país, 40% dos pesquisados queixaram-
se de dores musculares crônicas e outros 40% declararam sofrer de alguma doença ou mal-
estar cotidiano. Tal pesquisa informa também que 70% dos profissionais afirmaram estar
insatisfeitos com a carreira docente.
É comum nas matérias jornalísticas sobre a temática mal-estar docente, além de
um acúmulo de dados estatísticos, a reprodução dos relatos dos docentes narrando suas
experiências traumáticas do cotidiano da sala de aula e os sintomas de suas principais
patologias. Assim, temos uma infinidade de relatos sobre agressões (físicas e verbais),
casos de indisciplina, falta de motivação profissional e desinteresse dos alunos como
possíveis causas do mal-estar vivenciado pelo professor na escola. A escola pública é
apontada como um espaço de conflitos constantes, um local insalubre que atenta contra a
saúde física e psicológica do professor.
Conforme a APEOESP – Sindicato dos professores do ensino oficial do Estado de
São Paulo – maior sindicato de professores do Brasil, é preciso levar em conta, além do
desprestígio socioeconômico, também as razões de ordem pedagógica, como as novas
políticas que teriam minado a principal função do professor, que é ensinar. No discurso dos
sindicalistas, a “doença escolar” torna-se uma bandeira política na luta pela melhoria da
educação básica e motivo para uma infinidade de críticas ao governo, às autoridades
competentes e ao sistema capitalista neoliberal.
A APEOESP publicou, no ano de 2007, um estudo sobre a saúde do professor
paulista. A pesquisadora Leda Leal Ferreira, responsável pelo projeto, afirma que a
iniciativa da APEOESP deve aprofundar caminhos e encontrar possíveis soluções para as
péssimas condições de trabalho do professor brasileiro (APEOESP/DIEESE, 2007, p. 7).
A APEOESP também disponibiliza em sua página na internet os trabalhos sobre a
saúde do professor e tem produzido seus próprios levantamentos estatísticos com os
docentes associados. Numa pesquisa realizada pelo sindicato em 2010, 34,4% dos
professores declararam que, no ano anterior, precisaram se afastar ao menos uma vez da
escola por motivos de doença, sendo que, dentre eles, 42,5% por males ligados ao
28
exercício docente. O levantamento também mostrou que 48,5% dos entrevistados têm
diagnóstico confirmado de estresse e 26,6% de depressão crônica (DIEESE, 2010, p. 27).
Em comparação a 2005, esses números eram respectivamente 46% e 25%
(APEOESP/DIEESE, 2007, p. 10), o que demonstra uma estabilidade no quadro de
adoecimento. Ainda segundo a pesquisa, mais de 40% dos docentes afirmam sentir
frequentemente “cansaço, sobrecarga, frustração e exaustão emocional em relação ao seu
trabalho” (APEOESP/DIEESE, 2010, p. 28).
O jornal Folha de São Paulo, em 2007, publicou uma matéria sobre o tema no
caderno Cotidiano. A manchete de capa do caderno foi “30 mil professores faltam por dia
na rede pública de SP” (TAKAHASHI, 2010).
É fato que a temática mal-estar docente tornou-se, na última década, um problema
de saúde pública que tem pautado as discussões educacionais nacionais e internacionais.
Desse modo, o mal-estar docente é encarado como algo que pode e deve ser remediado
para solucionar os problemas escolares.
A profissão docente tem sofrido ao longo do tempo mudanças que interferem no
seu papel desempenhado na ação educativa, deixando entreabertas lacunas entre o ideal e a
realidade do trabalho docente. Segundo Pimenta (2000), na Idade Média, o acesso à escola
continuava sendo restrito à elite da sociedade. Além do trabalho das artes da educação, o
professor assume seu trabalho incorporando o valor de sacerdócio. A tarefa de professar
uma fé atrelada à de professar uma verdade única passa a ser de responsabilidade do
professor. Dessa forma, ensinar uma doutrina era o indispensável na ação docente.
Também aparece como destaque o sentido forte da profissão docente como vocação e que
passa a ser considerada condição essencial para o exercício da docência.
Com o advento da Modernidade, o desempenho das fábricas passa a ser uma
referência para o funcionamento das escolas. De acordo com Pimenta (2000), a produção
capitalista dita normas e regras de relacionamento e traz a universalização do ensino.
Entretanto, continua mantendo-se a dualidade do ensino. Privilegia-se uma educação para
o disciplinamento, com um currículo mínimo capaz de garantir a formação de um
trabalhador com as elementares noções de leitura e de escrita e a matemática prática
elementar. E há outra escola destinada à formação da elite dominante.
Diante do avanço do capital, a profissão docente foi passando por situações tensas
na procura de uma identidade. A profissão de professor sempre foi questionada e julgada
por suas ações sobre a ótica da singularidade e não da complexidade de relações presentes
29
no tecido do seu trabalho. Na década de 1980, no Brasil, a profissão docente foi marcada
por uma consciência de classe trabalhadora; os professores tiveram um ápice de uma
trajetória de identidade de categoria construída com lutas para reconhecimento da
profissão, afirma Pimenta (2000).
Recentemente, porém, não há como desvincular a escola do âmbito maior da
sociedade capitalista e ao enfraquecimento das suas redes de apoio, como os sindicatos por
exemplo. Isso levou as escolas e os docentes a se recolherem, voltando-se para os seus
problemas cotidianos e o professor ficou numa posição de isolamento diante da realidade
de seus alunos e de sua profissão. Assim, os professores, isolados em suas escolas, sofrem
com a intensificação das cobranças atuais da sociedade tecnológica e sentem-se frustrados
diante do pouco êxito do seu trabalho por não encontrarem um ambiente favorável ao
desenvolvimento do seu ofício.
Assim, durante a formação docente, na maioria das vezes o professor não toma
contato com o contexto real das escolas, apenas com imagens que não se coadunam com a
situação do cotidiano. Os professores formados nessa perspectiva, ao ingressarem nas
escolas, sentem-se perdidos, pois as imagens que tinham sobre a educação e sobre os
alunos esfarelam-se no decorrer do seu trabalho, afirma Pimenta (2000).
Outro ponto nevrálgico do trabalho docente é sua situação financeira. Esse
profissional que lutou para ser reconhecido e ter uma posição digna, capaz de manter sua
sobrevivência teve que estender sua jornada de trabalho e postergar muitos de seus sonhos.
A escola expressa os conflitos da própria sociedade. Seria a escola líquida, parafraseando
Bauman (2001). O descompasso entre o discurso da escola e as novas exigências
requeridas pelo mercado de trabalho geram no professor uma crise de identidade, constata
Pimenta (2000).
Pimenta (2000) nos fala das expectativas crescentes em torno do trabalho do
professor na contemporaneidade no sentido de atender a todas as exigências requeridas
pelo mercado competitivo e polivalente, que demanda profissionais qualificados, flexíveis,
com capacidade de aprender a aprender constantemente. Todas essas demandas hercúleas
aumentam os conflitos desse profissional que, consciente das expectativas em torno do seu
trabalho, sente-se impotente, fragilizado diante dos resultados dos alunos. A sociedade
espera a atuação do super-herói, ao projetar na figura do professor o protótipo de salvador
e o professor se rende à culpa por não atingir os objetivos esperados pelo seu trabalho,
finaliza Pimenta (2000).
30
Diante do exposto, a culpa sentida pelo professor diante do seu trabalho provoca
diversos mal-estares, que influenciam diretamente no seu trabalho, estabelecendo um
círculo vicioso de descontentamento. Quando o professor tem uma percepção negativa do
trabalho ou de si próprio, desenvolve o que denominamos de “crise de identidade”7. O
docente não vê resultados positivos da tarefa que desenvolve e se sente incompetente para
reverter tal quadro.
Outro elemento passível de se pensar a crise da identidade do professor, bem
como a situação do mal-estar na escola, é a questão da precarização do seu trabalho que,
segundo alguns autores, verifica-se cotidianamente nas escolas em ações como
contratações temporárias, cujas consequências são a intensificação do regime de trabalho,
o aumento das exigências curriculares, a insatisfação com a jornada de trabalho, o aumento
do individualismo, precarização dos direitos sociais, medo constante, estresse, burnout.
No caso da síndrome de burnout8, é gigantesco o número de informações que se
podem obter em poucos minutos de pesquisa. Com o aumento das pesquisas na década de
1980 e 1990 o termo foi se popularizando nos chamados países de Primeiro Mundo e o
conceito de burnout se legitimou como uma importante questão social que começou a
despertar a atenção das autoridades não apenas educacionais, mas políticos, agentes de
saúde e dos próprios trabalhadores. Encontram-se desde informações mais rasas sobre os
sintomas do distúrbio e os possíveis tratamentos, até artigos científicos que se utilizam de
investigações complexas para calcular a validade do inventário internacional de
caracterização dessa doença, mais conhecido como Maslach Burnout Inventory (MBI).
7
A discussão sobre a crise de identidade docente é muito presente no debate educacional brasileiro
contemporâneo. A crise de identidade docente, segundo Teodoro (1998), associa-se ao mal-estar docente
devido a alguns fatores. Dentre eles, o autor aponta três que são emblemáticos para a crise de identidade do
professor: 1. Exaustão emocional; 2. Despersonalização e 3. A reduzida realização pessoal. Contudo, além
dos fatores contemporâneos que geram a crise de identidade do professor e o faz desenvolver características
do mal-estar docente, Pimenta (2000) enfatiza que não se pode ignorar a história da educação e das escolas
nessa análise. Para a autora, a maneira como se institui a democratização das escolas e as formas de
organização sindical e de controle da formação docente são fontes de crise e mal-estar docente. A autora nos
alerta ainda que o estudo e o entendimento da crise na identidade do professor e na formação de professores
podem apoiar-se na história da educação e na compreensão de que a construção de uma identidade por cada
geração é feita com base em categorias e posições herdadas da geração precedente, buscando a transformação
e reconstrução dessa identidade.
8
O uso do termo burnout é um consenso dos pesquisadores que pesquisam o mal-estar docente e as doenças
ocupacionais dos docentes. É a partir dos anos 1978 que os estudos sobre burnout começaram a adquirir um
caráter científico, uma vez que foram elaborados modelos teóricos e instrumentos capazes de registrar e
compreender esse sentimento crônico de desânimo, apatia e despersonalização. A primeira a propor um
método de investigação capaz de captar o burnout na vida dos mais diversos profissionais foi a psicóloga
americana Christina Maslach em 1978 (cf. Codo, 1999).
31
equilíbrio e bem-estar, salienta Dejours (1998), ele deve favorecer o equilíbrio mental e a
saúde do corpo.
Seguindo nesse caminho e tomando como referência pesquisas realizadas na
Espanha, Esteve (1999) considera que o coletivo dos professores encontra-se diante de
uma crise de identidade, apresenta angústias, sentimentos contraditórios sobre o sentido do
trabalho que realiza decorrentes de um entorno sócio-econômico-pedagógico em constante
mudança, o que se reflete em uma posição de desconcerto e caracteriza o que denomina
“mal-estar docente”. O autor argumenta que “quando usamos o termo ‘mal-estar’ sabemos
que algo não vai bem, mas não somos capazes de definir o que não funciona e por quê”.
(ESTEVE, 1999, p. 12).
Esteve (1999) afirma que o mal-estar provoca efeitos permanentes no professor
derivados da modificação do papel que o mesmo deve (ria) desempenhar na atualidade e
das novas exigências requeridas para a preparação dos alunos para atuar no mercado de
trabalho.
A acelerada mudança do contexto social, em que exercemos o ensino,
apresenta, a cada dia, novas exigências. Nosso sistema educacional,
rapidamente massificado nas últimas décadas, ainda não dispõe de uma
capacidade de reação para atender às novas demandas sociais [...].
Portanto, os professores se encontram ante o desconcerto e as
dificuldades de demandas mutantes e a contínua crítica social por não
chegar a atender essas novas exigências. (ESTEVE, 1999, p. 13)
que, além de promover o entendimento sobre esse mal-estar, possa contribuir para o
desenvolvimento de estratégias que o evitem, possibilitando a realização e
desenvolvimento profissional, encaminhando o professor para o bem-estar docente.
Frente a essas colocações, Jesus (1998) explica que entre os fatores de estresse e
mal-estar docente podem ser apontadas implicações decorrentes da massificação do ensino,
as alterações ocorridas na estrutura e dinâmica das famílias, o aumento das contradições no
exercício educativo, o acelerado desenvolvimento tecnológico e a ruptura do consenso
social sobre a educação.
O mal-estar é descrito por Jesus (1998. p. 61) como a “última fase de um processo
de confronto”, resultado dos esforços do professor para corresponder às exigências
profissionais que ultrapassam seus recursos adaptativos, gerando estresse. Esse esforço,
quando não encontra uma resposta positiva, gera exaustão profissional e define a situação
de mal-estar docente.
Como contribuição a essa temática do mal-estar docente, o autor elaborou um
programa de formação contínua para tentar minimizar os efeitos do mal-estar vivenciado
pelo professor. Essa formação tem a duração de 50 horas e é realizada em várias seções em
que são trabalhados os sintomas do mal-estar a partir do enfoque no modelo relacional. As
conclusões desse trabalho, segundo Jesus (1998), evidenciam uma melhoria nos
indicadores de mal-estar.
Codo (2002), em parceria com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Educação (CNTE), apresenta uma pesquisa realizada com uma amostra de 30 mil
trabalhadores em educação, tendo como resultado “a imagem do professor desanimado,
queixoso até dos detalhes insignificantes sobre o seu trabalho, sua clientela, tratando os
alunos como se estivessem lidando com uma linha de montagem de salsichas...” (p. 237).
Para Codo (2002), a pesquisa por ele coordenada esperava encontrar, diante da
situação limite em que os professores desenvolvem suas atividades pedagógicas, uma
classe de trabalhadores pautada pelo “sentimento de desistência” por ganhar mal e viver
tão mal. Ao ver-se diante de um quadro em que as frustrações somam quase a totalidade do
seu trabalho na escola, desmorona e seu idealismo cede lugar à exaustão emocional, seus
afetos são questionados, sua identidade é contestada. O passo seguinte é o fechamento,
depois a despersonalização e, consequentemente, a indiferença ou o afastamento de suas
atividades (CODO, 2002, p. 54).
35
5. a imagem do professor.
Segundo Esteve (1999) esse segundo grupo de fatores atua indiretamente na ação
do professor, afetando sua produtividade, diminuindo a motivação e, em decorrência, o
esforço, a dedicação. Quando esses fatores se acumulam, cita Esteve (1999), interfere na
imagem do professor, delineando uma crise de identidade, conduzindo-o a diferentes
reações.
O autor pontua algumas fraquezas na formação inicial e continuada do professor
como causas do mal-estar docente. Na formação inicial, Esteve (1999) critica a seleção dos
novos professores centrada nos critérios de qualificação intelectual e com enfoques
normativo-idílicos arraigados na imagem social do papel do “bom professor”. Na formação
continuada, critica a inexistência de uma intervenção prática coerente para evitar
contradições na prática docente.
Delineia-se aqui uma ideia que permeará muitas outras passagens, a de que o
professor não está preparado para enfrentar as mudanças e isso gera conflitos inevitáveis.
Segundo Esteve (1999) o professor se sente inseguro, angustiado, pois já não sabe mais o
que ensinar e como ensinar. Ele é pressionado pela sociedade para cumprir um papel que
exige dele novas ações, novas opções metodológicas, o uso de novos recursos tecnológicos
em sala de aula; porém, continuam as velhas condições de trabalho, além de que sua
formação profissional não propicia as condições necessárias para o enfrentamento das
novas exigências tão requeridas pelo mercado de trabalho na atualidade.
Outro elemento apontado por Esteve (1999) como desencadeador do mal-estar é a
fragmentação do trabalho do professor. Cada vez mais seu trabalho se torna burocratizado,
pois, simultaneamente, o professor tem que desenvolver a atividade de ensino e atividades
de administração.
Para evitar o mal-estar docente vivenciado pelo professor na escola, Esteve (1999)
propõe duas abordagens distintas. São elas:
1. preventiva: propõe a reformulação do modelo de formação inicial de
professores, buscando uma maior adequação às novas exigências e problemas
do ensino, incorporando novos modelos de formação que considerem as
mudanças do papel do professor, do contexto social e das relações
interpessoais (ESTEVE, 1999, p. 117);
37
foi lido nas teses e dissertações de mestrado sobre formação de professores; quais os
limites de tal temática encontrados nos estudos?
Quanto à configuração teórico-metodológica privilegiada nas pesquisas é
importante observar que a maioria delas (15 trabalhos no total) corresponde a estudos
empíricos, embora essa denominação algumas vezes pareça esvaziada na medida em que
indiscriminadamente utilizada, chegando a sugerir uma espécie de “guarda-chuva” para
abrigar os mais diversos estudos pontuais.
Na esmagadora maioria das teses e dissertações de mestrado predominam as
indicações aos estudos de Esteve (1999), Codo (2002), Jesus (1998), referências estas que
se tornaram uma espécie de “bíblia” para aqueles que se prontificaram a estudar o mal-
estar docente no Brasil.
Na dissertação de mestrado intitulada “Organização e condições de trabalho de
professoras – mal-estar docente e permanência no emprego: estratégia defensiva?”, Kobori
(2010) investiga o que leva o professor a continuar o exercício do magistério diante do
contexto de insatisfação ou de mal-estar docente. Os questionamentos que permearam o
pensamento da autora para a realização desse estudo foram: 1. Como as condições de
trabalho produzem o mal-estar na profissão docente? 2. Mesmo vivenciando situações de
insatisfação, o que leva o professor a permanecer no trabalho educativo? 3. Como a
remuneração dos professores pode ou não influenciar na escolha dessa profissão?
Para selecionar a amostra com 11 professores da escola que atendessem aos
interesses da pesquisa, apenas quatro professores de uma escola de séries iniciais do
município de Jundiaí/SP foram entrevistados e um questionário foi elaborado para levantar
as características gerais desses docentes. As entrevistas tiveram como foco principal
investigar a atratividade e a permanência na profissão docente, isto é, o que leva os
professores ao magistério e por quê se mantêm como docentes. O roteiro das entrevistas
abordou temas como: condições socioeconômicas; a formação para a profissão docente; as
condições em que os professores trabalham; a organização da escola e como as condições
educativas interferem na produção do mal-estar docente.
No depoimento dos professores, afirma Kobori (2010), é possível perceber que
uma das principais queixas sobre o trabalho docente refere-se à relação estabelecida entre a
escola e a comunidade escolar, mais especificamente, entre professores e pais de alunos,
traduzindo-se numa certa desvalorização profissional.
39
constatou que as dificuldades do trabalho docente são tomadas individualmente, seja como
um problema do professor, seja como um problema do aluno.
Como resultado de pesquisa, Kobori (2010, p. 91) considera que a permanência
do professor na escola, apesar de todo o mal-estar que é vivenciado, é uma estratégia de
defesa. “A estratégia é atribuir ao trabalho docente o caráter de missão ou de paixão pela
profissão. Alguns profissionais continuam trabalhando, apesar das dificuldades, pelo gosto
de fazer um trabalho relevante, embora desvalorizado socialmente”.
Percebendo que o mal-estar docente é um dos fenômenos presentes na educação
brasileira, Sampaio (2008), na Dissertação de Mestrado intitulada “Programa de apoio ao
bem-estar docente: construção profissional e cuidar de si”, objetivou investigar como a
aplicação de um conjunto de estratégias defensivas seria importante para minimizar a
vivência do mal-estar dos professores na escola. A ideia inicial desse estudo empírico foi a
de auxiliar os professores a refletirem sobre sua docência para que construam condições de
bem-estar tanto na vida profissional como na vida privada, envolvendo as dimensões
social, mental, afetiva, física e espiritual, para que construam condições para o seu bem-
estar.
Após a definição da base teórica para essa temática, baseada nas pesquisas
desenvolvidas por Esteve (1999) e Jesus (1998), a autora apresenta a condução do trabalho
investigativo, as questões de pesquisa, os objetivos e as decisões metodológicas adotadas
na realização da pesquisa.
A pesquisa foi proposta aos 34 professores do município de Ibema, no estado do
Paraná, atuantes em três escolas, sendo uma privada e duas do ensino público de ensino.
De forma voluntária, os professores responderam a um questionário aberto, com questões
que versavam sobre o que os professores entendiam por mal-estar docente; quais os
objetivos do sistema de ensino; o que eles entendiam por identidade docente; o que eles
consideravam como fatores do esgotamento docente, bem como a acumulação de
exigências sobre o professor.
Analisando os questionários, Sampaio (2008) observou que muitos fatores da vida
atual, tais como o ritmo de vida acelerado, os ambientes de elevada competitividade, a
sociedade imediatista e consumista e as situações de estresse são fatores que levam o
professor a vivenciar o mal-estar.
Um dos elementos presentes na fala dos professores foi a questão do estresse.
Segundo Sampaio (2008), o estresse, para o seu melhor entendimento, necessita de
41
algumas considerações, haja vista a intensidade com que é mencionado em vários estudos e
por diversos autores.
O conceito de estresse, afirma o autor, foi utilizado pela primeira vez pelo
endocrinologista canadense Hans Salye, na década de 30 do século passado. Desde o
surgimento do conceito, muitas definições têm sido usadas para explicar o estresse e a
maioria o conceitua como um conjunto de situações de alarme e adaptação às condições
ambientais que incluem respostas de ordem fisiológica, psicológica e comportamental que
se manifestam em sujeitos submetidos à excessiva exaustão.
Sampaio (2008, p. 26) identificou que no conjunto de professores pesquisados os
seguintes fatores emocionais são os mais presentes: “distanciamento afetivo, tédio,
impaciência, frustração, dificuldade de concentração, sentimentos depressivos”. O autor
também considera como fatores geradores do mal-estar docente as alterações ocorridas na
sociedade e nas escolas nos últimos anos. A questão da preparação dos alunos para atuar
no mercado de trabalho é a que fica mais evidente. Com isso, algumas condições
educativas foram deixadas de lado com o objetivo último de “formar” os alunos
rapidamente para o mercado.
As consequências, segundo Sampaio (2008), foram: excessivo número de alunos
em sala de aula; demasiada preocupação com o conteúdo da disciplina, esquecendo o
processo de ensino-aprendizagem; grande número de tarefas fora de sala de aula; a péssima
recompensa econômica; carência de material didático; a falta de interesse dos alunos pela
sala de aula, figurando como um dos maiores problemas do ensino hoje, conforme afirma o
autor.
Diante do exposto, o autor busca na literatura sobre a temática medidas
preventivas, algumas referências que indicam formas de como reunir meios para combater
o mal-estar docente, pensando assim em estratégias para o bem-estar docente. O autor
destaca os estudos desenvolvidos por Jesus (1998) e por Esteve (1999):
Aqui reside um dos elementos que também está presente nas demais teses e
dissertações em análise, qual seja, a predominância do discurso de se buscar uma maior
adequação dos professores frente às novas exigências educacionais, adequando conteúdos
à realidade da prática do ensino. Racionalizando o contexto educativo, outras
possibilidades de entendimento do que acontece na escola – como a valorização das
subjetividades, do tato pedagógico, do indeterminado no espaço escolar - são descartadas.
Trata-se, portanto, de uma leitura muito reduzida e simplificada em nosso entendimento.
Weber (2009) estuda em sua tese de doutorado, intitulada “Uma investigação
acerca dos fatores que contribuem para o mal-estar e o bem-estar dos professores que
trabalham com EAD”, os fatores que contribuíram para que docentes do curso de
Pedagogia da UDESC/SC vivenciassem estados de bem-estar ou de mal-estar no exercício
de suas atividades. O estudo, baseado em entrevistas semi-estruturadas, via internet,
através de um site elaborado especialmente para este fim, foi realizado com 15 professores
universitários que exerceram, pela primeira vez, a docência na educação a distância. O fio
condutor da pesquisa alicerçou-se teoricamente nos conceitos de mal-estar e bem-estar na
docência expressos por Esteve (1999) e Jesus (1998) e também por Mosquera e Stobaus
(2000).
43
Frente às mudanças sofridas pelo contexto atual, a autora aponta as causas do mal-
estar docente (p. 26): 1. carência de tempo suficiente para elaborar um trabalho condizente
com a realidade do aluno no contexto tecnológico; 2. trabalho burocrático que rouba tempo
da tarefa primordial da escola, que é ensinar; 3. descrença no ensino como fator de
modificações básicas das aprendizagens dos alunos; 4. modificação no conhecimento e nas
inovações sociais como desafios que provocam grande ansiedade e sentimento de
inutilidade.
A autora explica que o professor não está preparado para enfrentar as mudanças e
isso gera conflitos inevitáveis. Novas atividades têm que ser assumidas, porém, continuam
as antigas condições de trabalho, além de considerar que a formação profissional dos
docentes não propicia as condições necessárias para o enfrentamento das novas exigências
e necessidades.
O professor se sente inseguro, angustiado e já não sabe mais o que
ensinar e como ensinar. É pressionado pela sociedade para cumprir um
papel que exige dele um conhecimento mais amplo que ele não tem e não
tem tempo para construí-lo. Exige mudanças metodológicas, mas não
assegura as condições de trabalho, os recursos necessários para que as
mudanças se efetivem. A sociedade ignora, pois, as condições de
trabalho, os limites institucionais, os baixos salários que não asseguram
uma vida digna e muito menos permitem a atualização profissional.
(WEBER, 2009, p. 28)
vez mais na prática educacional e os professores ainda não conseguiram organizar novos
modelos de convivência e que, por esse motivo, geram também mal-estar, afirma a autora.
Outro elemento examinado por Weber (2009) em sua pesquisa refere-se à
síndrome de burnout, que é expressa, efetivamente, pelo desgaste, sentimento de
debilidade, de perda de autocontrole, de abatimento e de desamparo (p. 31). Para a autora,
o burnout traduz o resultado não apenas do estresse em si, mas da falta de um sistema de
suporte ou de uma adequada forma de lidar com o estresse, sendo, portanto, um problema
de nossa realidade educacional e um dos indicadores do mal-estar dos professores, motivo
de preocupação, uma vez que estudos e pesquisas mostram que é cada vez maior o número
de pessoas e profissionais que são acometidos pelo estresse.
Diante desse quadro “pouco positivo” no que se refere à realidade escolar no
Brasil, Weber (2009) considera que o bem-estar emocional é uma condição necessária para
a boa prática educativa e implica em desenvolvimento profissional do professor e a
qualidade do ensino.
Amparada nos estudos de Seco (2002) – “A satisfação dos professores: teorias,
modelos e evidências” a autora indica que se deve privilegiar os seguintes fatores para a
construção do bem-estar docente: 1. A importância da relação com os alunos; 2. O grau de
autonomia percepcionado; 3. O sentido da responsabilização e de realização do trabalho
pedagógico; 4. Oportunidade para o desenvolvimento de novas aprendizagens; 5. A
diversidade das tarefas e a oportunidade de utilização de competências e capacidades
valorizadas pelo indivíduo.
Esses fatores, segundo Weber (2009), devem levar o professor a verificar até que
ponto está cumprindo com sua parte na construção de uma nova sociedade, até que ponto
está trabalhando no sentido de atenderem suas necessidades e suas expectativas em relação
à preparação dos indivíduos para o contexto atual.
Examinando mais detalhadamente os argumentos de Weber (2009) podemos
inferir que a autora aponta que mudar a imagem da função docente – tanto para o ponto de
vista da sociedade, como do próprio professor – e tentar reduzir o mal-estar que a atinge
implica mudanças desde a formação, passando pela seleção de pessoal e pelos programas
de ensino, bem como pelo alerta às autoridades, às entidades de classe e à própria categoria
da educação, contribuindo para a vivência do bem-estar na escola. Esse parece ser o
objetivo máximo da educação na atualidade.
45
De acordo com Leão (2003, p. 37), a rotina na ação educativa é o núcleo do mal-
estar docente. Consiste numa ação educativa a que os professores acabam “por aderir
devido à mobilização excessiva de mecanismos de defesa, com intenção de controlar a
ansiedade que emerge da discrepância pressentida entre o seu ideal profissional (moldado
na formação inicial) e a realidade profissional encontrada”.
Lapo & Bueno (2003), em estudo focalizado entre os anos 1990 e 1995,
constataram a presença de alguns aspectos relacionados ao contexto social que se
mostraram relevantes para a geração do mal-estar docente “primeiramente, por gerarem
uma sobrecarga de trabalho; depois, a falta de apoio dos pais dos alunos, um sentimento de
inutilidade em relação ao trabalho que realizam, a concorrência com outros meios de
transmissão de informação e cultura e, também, é claro, os baixos salários” (p. 77).
Conforme Lapo & Bueno (2003), a burocracia institucional, o controle do
trabalho do professor, a falta de apoio pedagógico e a falta de incentivo ao aprimoramento
profissional contribuem para a geração do mal-estar docente, levando o professor a assumir
posturas defensivas que podem ir desde comportamentos agressivos, queixas constantes,
críticas excessivas, restringindo o convívio com os alunos e colegas de trabalho ao mínimo
possível.
Por se encontrarem inseridos em uma sociedade que se transforma muito
rapidamente e que exige constantes mudanças e adaptações, eles se
sentem insatisfeitos ao não conseguirem dar conta das exigências que
lhes são feitas no campo profissional. As exigências nem sempre são
claramente explicitadas e entendidas pelos professores, mas são sentidas
mediante a percepção de que as coisas na escola não estão indo bem, de
que por mais que se esforcem não conseguem atingir um nível de
excelência exigida pela sociedade a ponto de reverter a situação de
precariedade profissional em que se encontram. (LAPO & BUENO,
2003, p. 77)
investir menos energia em seu trabalho, apega-se à rotina, terminando por desenvolver uma
rigidez na relação com seus alunos, desimplicando-se das tarefas pedagógicas.
A autora destaca que mal-estar e angústia são termos correlatos (p. 142) e no
âmbito da educação o mal-estar docente é tomado como um sintoma de nossa época,
atingindo grande número de profissionais.
As reclamações dos professores podem tanto revelar reivindicações
justas, quanto demonstrar um modo específico do funcionamento
psicodinâmico. Em geral, as reivindicações pressupõem um movimento
que conduza à resolução do problema, enquanto a queixa repetitiva
apenas justifica o problema, ao mesmo tempo em que o mantém sob
determinado controle, uma vez que, ao resolver a situação adversa, o
queixume deveria cessar, e nem sempre é isso que se deseja. (PRIOSTE,
2006, p. 151)
9
Cf. UNESCO. Perfil dos professores brasileiros: o que fazem, o que pensam, o que almejam. Brasília:
Instituto Paulo Montenegro, MEC/INEP. Moderna, 2004.
47
Fonseca (2009) concluiu em sua pesquisa que uma efetivação das políticas
públicas do piso salarial nacional, a modificação nos currículos dos cursos de formação de
professores, do acesso por meio de concurso público e das exigências de qualificação
mínima da graduação para o exercício da docência são atitudes fundamentais e eficientes
no enfrentamento do mal-estar docente. Mais uma vez coloca-se que a formação de
professores seria um ponto-chave para solucionar o mal-estar docente vivenciado na escola
pelos professores. Mas, de que formação esses pesquisadores estão falando?
Na dissertação de mestrado “Do mal-estar ao bem-estar docente: uma análise de
caso Argentina e Brasil”, Rodrigues (2011) analisou os indicadores que produzem mal-
estar e bem-estar docente em 05 professores de cada país, do ensino fundamental de
escolas estaduais e provinciais, respectivamente, da cidade de Porto Alegre/Brasil e La
Plata/Argentina, identificando características pessoais de quem está vivenciando o mal-
estar. A pesquisa teve como objetivo geral investigar as estratégias que os docentes
desenvolvem para a constituição do seu bem-estar. A metodologia adotada foi de
abordagem qualitativa, utilizando como estratégia de pesquisa o estudo de caso. Os dados
da pesquisa foram analisados através da técnica de análise de conteúdo apresentada por
Bardin.
A temática focalizada nessa investigação foi a produção do bem-estar docente
para a superação do mal-estar. A partir da incursão nos pressupostos teóricos, interligados
com os dados coletados na parte empírica, as questões da pesquisa se baseiam na
verificação, a partir dos elementos que desencadeiam e produzem o bem-estar/mal-estar
49
docente, de quais indicadores de bem-estar docente podem ser identificados entre o grupo
de professores pesquisados, observa Rodrigues (2011).
Relacionados com os temas mal/bem-estar docentes, as categorias emergentes da
pesquisa foram as seguintes: 1. ambiente de trabalho; 2. a formação e a prática docente; 3.
a relação professor-aluno; 4. as políticas educacionais e os professores.
A autora toma como referência na pesquisa os estudos realizados por Esteve
(1999) considerando que este autor foi um dos pioneiros a definir o mal-estar docente
como sendo um sentimento resultante dos efeitos permanentes de caráter negativo que
afetam a personalidade do professor (p. 16.).
Rodrigues (2011) afirma que na profissão docente há a presença de duas situações
bem delimitadas: o bem-estar e o mal-estar. O primeiro retrata a realização profissional,
tornando a profissão docente idealizada; por outro lado, o segundo pode transformar-se
numa relação destrutiva, afetando o professor e o aluno, levando-o a adoecer, ficar
esgotado e estressado, o que pode ocasionar o abandono da profissão.
Segundo a autora, esses temas estão presentes em discussões na sociedade, sendo
uma preocupação mundial, pois o mal-estar na docência está ocasionando efeitos
negativos, afetando a personalidade do professor e interferindo na sua prática. Embora a
autora reconheça que os problemas que atingem a docência sempre tenham existido,
manifestando-se de alguma forma, hoje há uma maior preocupação devido ao crescimento
dessa situação.
Por outro lado, afirma, mesmo sabendo que o mal-estar docente é um tema
bastante complexo, existem tentativas de mudar esse quadro, sendo necessárias algumas
mudanças para alcançar esse fim. É o que a autora chama de situações de bem-estar
docente. Aqui, de forma simplista, o mal-estar docente é visto como antônimo de bem-
estar. E a escola deve favorecer situações geradoras de bem-estar como contraponto ao
mal-estar vivenciado pelo professor, finaliza Rodrigues (2011).
Rodrigues (2011) identifica que nas últimas décadas houve uma transformação do
mundo nas áreas tecnológicas, científicas, econômicas, políticas, sociais e culturais. O
conhecimento e a informação têm ocupado funções sociais e econômicas, o avanço das
tecnologias de informação e comunicação tem facilitado a produção e o movimento de
informações. Isso, segundo a autora, são fatores que exigem dos profissionais mudanças e
atualizações como, por exemplo, o domínio das tecnologias da informática. Alguns
professores, afirma Rodrigues (2011), têm utilizado com harmonia as vantagens que
50
oferecem os novos agentes da tecnologia, enquanto que outros mantêm a ideia tradicional,
ignorando a força de penetração e o interessante potencial educativo que os canais de
informação poderiam oferecer ao seu serviço.
Ausência de valorização social do professor, violência nas instituições escolares,
desgaste profissional, acúmulo de exigências ao professor, a inclusão de alunos com
necessidades educativas especiais, trabalho excessivamente burocrático, estresse são
alguns dos aspectos constatados nas falas dos professores da pesquisa que vivenciam o
mal-estar na docência.
Assim como no Brasil e na Europa, a Argentina passa pelas mesmas crises
educativas e institucionais, com necessidades de mudanças no ensino devido aos avanços
das novas tecnologias, das novas exigências requeridas pela sociedade na atualidade,
afirma Rodrigues (2011).
Os resultados da pesquisa revelaram que os professores utilizaram-se de
estratégias para constituir o bem-estar, tornando-se mais resilientes na ação educativa,
desenvolvendo características positivas e otimistas frente às situações cotidianas
vivenciadas não só no contexto educativo.
É fundamental aprender a reduzir o mal-estar e constituir o bem-estar do
professor, e esse deve aceitar a possibilidade da existência das situações
causadoras de problemas, compreender o significado dos sintomas,
identificar os fatores causadores de mal-estar, utilizar as estratégias de
coping no seu trabalho e na sua vida pessoal e, por fim, desenvolver
programas personalizados para a redução do mal-estar. (RODRIGUES,
2011, p. 37)
apesar de que nos relatos aparece o descontentamento dos professores – tanto brasileiros
quanto argentinos – referente à sua formação.
As respostas dos entrevistados quanto às estratégias utilizadas para constituir o
bem-estar evidenciam as alternativas, as formas que o docente utiliza para constituir seu
bem-estar pessoal e profissional. Estas foram traduzidas como: “resiliência, projeto de
vida, ou seja, valorização de uma formação pessoal” (p.100).
Ao analisar os relatos dos entrevistados, Rodrigues (2011) aponta que os docentes
utilizam a resiliência (p. 101), a fé (espiritualidade – segundo lugar dentre as respostas dos
docentes), (p. 103), afastamento dos problemas (p. 104), como 4° lugar figura as questões
de impor limites, dialogar, buscar harmonia no seu trabalho (p. 105), realizar paralisações
e/ou greve (p. 106) e em sexto e último lugar aparecem os relatos dos docentes realizarem
terapia (p. 106) como estratégia para superar o mal-estar docente.
Baseada nos argumentos de Jesus (1998), a autora aponta como alternativas para
solucionar o problema do mal-estar na educação o bem-estar na docência – como
contraponto às angústias sofridas pelo professor na sala de aula– e suas inter-relações com
a gestão do estresse, a motivação docente, os processos de formação inicial e continuada e
as práticas educativas como um todo.
Outra competência a ser desenvolvida é de gestão de sintomas físicos, ou
seja, o docente deve desenvolver atividades pessoais que lhe deem prazer,
permitindo sentir-se despreocupado e descontraído, por exemplo:
relaxamento com música, cozinhar, ler, passear, conviver, praticar
esportes. Há ainda a competência da gestão do tempo. Devido à
sobrecarga de funções que os professores apresentam, existe a falta de
tempo para realizarem tudo o que gostariam, tornando-se um problema.
Jesus (1998) sugere identificar as tarefas profissionais que para si são
prioritárias e as de rotina que lhe ocupam tempo demasiado. Depois ele
deve analisar a possibilidade de alterar a forma de realização das tarefas
de rotina, ficando com mais tempo livre para a execução de tarefas
prioritárias. (RODRIGUES, 2011, p. 37)
A autora, ao investir no olhar que esses docentes lançam sobre o mal-estar que
atinge a profissão, propõe simplesmente que se estabeleça, urgentemente, desde a
formação inicial, um novo parâmetro profissional, menos ideal e mais real e consistente,
capaz de apreender as mazelas de seu tempo visando desenvolver uma prática pedagógica
satisfatória e eficiente. Percebe-se que a própria noção do tempo ganha uma nova
dimensão quando melhor administrado para se evitar a produção do mal-estar docente na
escola.
Gonçalves (2008), apoiada em Esteve (1999) e Jesus (1998), em sua dissertação
de mestrado intitulada “Escola pública: bem-estar docente, mal-estar docente e gênero”
investigou as possíveis relações entre bem-estar e mal-estar docente no quadro docente de
uma escola pública no sul do país.
Dentre os objetivos da pesquisa, a autora analisou qual a prevalência dos sintomas
de mal-estar e bem-estar docente em professores de uma escola de educação básica do
município de Alegrete/RS, envolvendo professores efetivos e contratados, em atividade
nos ensino Fundamental e Médio. Nesse estudo de natureza qualitativa e quantitativa, a
autora realizou uma entrevista semi-estruturada com uma amostra de 30 professores dessa
escola, referente ao processo de vivência do mal-estar ou bem-estar docente. Duas
principais variáveis indicadoras do mal-estar docente foram identificadas: 1. estresse diário
(tensão muito elevada e/ou durante demasiado tempo) e 2. altos índices de exaustão
profissional (que, juntamente com o estresse docente, foi o que mais apareceu nas
entrevistas).
Na entrevista realizada com uma professora (identificada como professora A),
com tempo de serviço de 31 anos, com 48 horas em sala de aula (ensino fundamental e
ensino médio), distribuídas em duas escolas, ocupando 23 horas semanais com tarefas
relacionadas à atividade docente, ficou evidenciado que, devido ao estresse, tal professora
relata que pensou seriamente em deixar a profissão nos últimos cinco anos. Destaca ainda
que a professora apresenta “intranquilidade, inquietude, náuseas, problemas estomacais
e/ou distúrbios alimentares, sensação de formigamento no corpo, crises de pânico ou
insônia, não conseguindo raciocinar tão rapidamente quanto antes” (p. 46-47).
As reflexões elaboradas pela autora permitem identificar que os professores se
deparam, frequentemente, com carência de recursos didáticos em sala de aula, falta de
tempo e de condições para atualização profissional, cobrança de novas metodologias,
violência, estresse, indisciplina e excessiva jornada de trabalho.
56
10
Na literatura educacional, o coping pode ser entendido como capacidade de estabelecer estratégias
diferenciadas para lidar com os fatores potenciais de mal-estar docente.
57
impossibilidade de (re) significar, pela crítica, o que acontece na escola e fora dela, como
estamos propondo nesse trabalho.
Rodrigues (2009), em sua dissertação de mestrado intitulada “O mal-estar
docente: trabalho, saúde e educação”, abordou o mal-estar docente como um “fenômeno”,
decorrente do exercício da profissão do magistério. Numa pesquisa realizada com os 357
professores que atuam na rede estadual de ensino (fundamental e médio) da cidade de
Curitibanos/SC a autora constatou que 81,19% deles padecem de algum tipo de mal-estar.
A investigação realizada caracterizou-se com um estudo exploratório de natureza
qualitativa e quantitativa, objetivando investigar as possíveis conexões entre
transformações da sociedade e o mal-estar docente.
A autora conceitua mal-estar docente como uma doença social, reflexo das
transformações sociais e econômicas que afetam determinadas profissões ou condições de
trabalho. Percebe-se que esse conceito é baseado nas formulações de Esteve (1999).
Visando dar conta do problema de pesquisa, o estudo foi alimentado pelos seguintes
questionamentos: 1. “as práticas, o cotidiano e as relações no contexto escolar contribuem
para o afastamento do professor da sala de aula?” (p. 21). 2. “quais os principais aspectos
patológicos que acometem a saúde do professor?”.
A autora aponta que a manifestação dessa doença social tem atingido, direta e
indiretamente, o contexto escolar, com níveis de intensidade diferentes, acarretando
diversas consequências ao estado de saúde dos professores. Um dos principais fatores
ressaltados por Rodrigues (2009) refere-se às modificações ocorridas na sociedade
tecnológica e que a escola não acompanhou tais transformações de modo eficaz.
Outro elemento debatido pela autora refere-se à função docente, que sofreu
inúmeras intervenções e estruturações ao longo da história. De preceptor a mestre de
ofício, de mestre de ofício a professor, de professor a docente, sofrendo alterações a cada
época. Baseada nos estudos de Tardiff (2002) “Saberes docentes e formação docente”,
Rodrigues (2009) afirma que os professores ocupam um lugar fundamental no processo
social produtivo. Eles exercem atividades de assistência interpessoal e de dedicação ao
processo ensino-aprendizagem dos alunos, ficando predispostos aos chamados riscos
psicossociais no trabalho, somados aos agravos na condição física que proporcionam
desgastes profissionais.
O tema da identidade docente como um dos fatores geradores do mal-estar do
professor também foi considerado por Rodrigues (2009). Para a autora, o trabalho
58
11
Essa expressão “solucionar” aparece de forma corriqueira nas teses e dissertações aqui analisadas. Desse
modo, percebemos como a própria literatura sobre o mal-estar docente tecnologiza a subjetividade do
professor, criando técnicas de “resolução” do mal-estar docente, como as estratégias de coping, resiliência,
terapia grupal, yoga, situações de bem-estar profissional.
60
A formação continuada é apontada por Jesus (1998) como um processo que deve,
fundamentalmente, constituir uma oportunidade de construção do bem-estar a partir de um
trabalho em equipe dentro de um processo relacional. A ênfase, nesse caso, deveria ser
dada ao trabalho cooperativo entre os professores no processo de formação, orientando
para a resolução de conflitos e no fortalecimento do apoio mútuo, “[...] o trabalho em
equipe pode permitir a redução do isolamento, o fornecimento de apoio ou suporte social, a
convergência nas estratégias utilizadas para a resolução de problemas, bem como a
aprendizagem e desenvolvimento profissional” (JESUS, 1998, p. 62).
Jesus (1998) também faz menção ao “modelo relacional”, como estratégia de
redução do acúmulo de tensão no trabalho docente. Além disso, o autor afirma que o grau
de mal-estar docente depende da forma como o professor lida com as potenciais fontes
desse mal-estar, podendo esta forma ser aprendida. Para Jesus (1998), a formação inicial
pode ajudar o professor a desenvolver competências ou qualidades (resiliência) e
estratégias (coping) para fazer face às principais fontes de mal-estar, contribuindo para sua
realização e bem-estar profissional.
Também encontramos em Esteve (1999) referências que partem primeiramente de
um processo de formação inicial do professorado. No caso de professores afetados pelo
acúmulo de estresse e tensões em seu trabalho pedagógico diário, Esteve (1999) indica as
seguintes estratégias: controle do estresse, técnicas de relaxamento, estratégias para
resolução de problemas, “adequação dos conteúdos da formação inicial à realidade prática
do magistério” (p. 127).
63
Portanto, “para enfrentar de forma efetiva o mal-estar docente, onde se deve atuar
prioritariamente é sobre suas condições de trabalho e sobre o apoio que o professor recebe
para realizá-lo” (ESTEVE, 1999, p. 144).
Esteve (1999), Jesus (1998) e os pesquisadores brasileiros que a eles recorrem
evidenciam a centralidade do professor no processo educativo e com seus estudos apontam
a necessidade do reconhecimento social e material do professor, pelas autoridades
educacionais, o que implica em favorecer condições de trabalho satisfatórias e uma
formação voltada para o desenvolvimento pessoal e profissional docente como estratégias
para se evitar o mal-estar docente.
Os estudos aqui apontados estão pautados, sobretudo, nas análises realizadas por
Esteve e Jesus, engessando outras maneiras de se pensar o mal-estar docente como a que
estamos propondo neste estudo, ou seja, pensar o mal-estar docente pela via da crítica e do
empobrecimento da experiência na contemporaneidade. As pesquisas brasileiras parecem
se limitar a confirmar o que esses autores já confirmaram em seus estudos, onde até mesmo
o arcabouço de categorias (fatores geradores do mal-estar docente as possíveis estratégias
de prevenção) é muitas vezes repetido nas análises que se faz do mal-estar docente no
Brasil.
Os pesquisadores brasileiros dão sentidos e definições ao mal-estar docente
recorrendo ao arcabouço teórico desenvolvido por Esteve (1999) e Jesus (1998) no sentido
de propor medidas práticas e rápidas numa “possível solução” para o mal-estar docente.
Dito de outro modo, tais pesquisadores procuram dar validade a seus estudos pautando-se
em estudos já realizados como os dos autores acima referidos. Mas, como ressaltamos
anteriormente, eles pouco avançam em suas análises, desconsiderando outros fatores
imprescindíveis para se pensar o mal-estar docente. Nosso trabalho de pesquisa não é
concordar com essas leituras. Mas também não é nosso objetivo desqualificá-las. Temos
por objetivo (re) significá-las por meio da crítica, trazendo como elemento de reflexão a
ideia de experiência.
Vimos que são vários os estudos que tentam entender esse diagnóstico, bem como
muitos propõem estratégias para se eliminar o mal-estar docente. Retomar esses estudos
pode nos ajudar a entender melhor os mal-estares sociais e o mal-estar docente em
particular bem como nossa proposta de pesquisa que é pensar o mal-estar docente como
um depauperamento da experiência na escola.
64
12
SNYDERS, Georges. A Alegria na Escola. São Paulo: Ed. Manole, 1974.
66
Ressaltemos neste momento a visão de autores como Esteve (1999), Jesus (1998),
Kobori (2010), Weber (2009), Sampaio (2008), Leão (2003) para nossas reflexões. Esses
autores defendem a tese de que os professores melhores capacitados estariam em boas
67
13
Os destinos da educação, desse modo, parecem estar diretamente articulados às demandas de um mercado
insaciável. Os sistemas educacionais sofrem pressões para construir e consolidar escolas eficientes e aptas a
partir de uma lógica instrumental: formar um maior número de indivíduos e com maior rapidez. A exigência
da educação se reduz apenas em preparar as novas gerações para o mercado formal de trabalho. Além disso,
na atualização do sistema escolar, criam-se mecanismos para regulação e controle envolvidos no processo da
educação. Assim, cursos convertem-se em instrumentos de treinamento para aplicação de métodos e receitas,
sem problematizar o próprio ensino.
69
14
É como sendo comparável a uma mônada que Adorno vê a forma de existência assumida pelo indivíduo à
época de sua anulação. Com isso, o autor mostra as características básicas da individualidade na sociedade
administrada e do capitalismo tardio: sua condição de “célula” isolada do contato consciente com o meio
social em que está envolvida, bem como com as demais “células” que compõem este meio. Esta, não obstante
seu isolamento cego, traz em sua constituição a mediação social sob uma forma velada e, portanto, não
reflexiva. Adorno (1996) mostra que, ao identificar a cultura como falsa porque não reflete, por exemplo, a
verdadeira realidade social opressiva, a crítica cultural acaba por perder o momento de verdade daquele
caráter falso da cultura, quando o mesmo pode servir à negação da realidade opressiva ou à promessa de uma
outra realidade, ao mesmo tempo, justifica a realidade social opressiva dando-lhe o status de “verdadeira
verdade” somente pelo fato de existir. O que o filósofo pretende ressaltar é o aspecto de falsidade que a
verdade carrega consigo quando seu conceito é derivado pura e simplesmente do reconhecimento do
71
meramente dado. Entretanto, é preciso ter cuidado para não absolutizar o indivíduo, pois ainda que ele possa
ser o depositário da resistência, não o será, segundo o frankfurtiano, se for concebido de forma isolada da
sociedade. Seu poder de resistir a esse processo reside no fato de que ele pode se entender nessa
contraposição com a tendência geral e na medida em que ele consegue compreender tal relação, também
pode negá-la. Assim, a insistência no indivíduo não pode torná-lo absoluto a tal ponto que se torne objeto,
pois esse modo parcial de compreendê-lo é também o princípio daqueles que exercem a violência sobre os
homens. O problema da absolutização do indivíduo é justamente negar-lhe a humanidade transformando-o
em mero objeto, manipulável e sujeito à dominação. Tal foi o projeto do esclarecimento na medida em que
renunciou à reflexão do pensamento, ao mesmo tempo em que a racionalidade possuía apenas um caráter
técnico e instrumental. Não só a natureza foi subjugada pela dominação, mas também os homens, que
reduzidos a objetos, puderam ser dominados.
72
olhar para si mesmo, daquele que experiencia o ato educativo. No âmago das nossas
discussões, consideramos que o quadro acirrado de “manifestações patológicas” no
magistério precisa ser (re) significado pelo próprio professor.
Ressaltamos que o professor vive um momento marcado pela demanda de
cientificização da educação, por uma compulsão em transformar tudo em ciência. O
investimento no consumo de métodos educacionais, supostamente eficazes, almeja a
superação do medo da angústia, do imprevisível frente aos desafios cotidianos. Ao longo
da história, o professor sofreu com a construção social de sua imagem, sempre atrelada a
figuras (tabus) negativas. Estas ainda dominam o imaginário social e atribulam a profissão
docente, principalmente no que tange à constituição do educador como sujeito
emancipado.
Adorno (1995b) nos afirma que ao longo da história da civilização foram
construídas imagens pejorativas a respeito do professor e que até hoje influenciam nossa
visão.
Tabus significam, a meu ver, representações inconscientes ou pré-
conscientes dos eventuais candidatos ao magistério, mas também de
outros, principalmente das próprias crianças, que vinculam esta profissão
como que uma interdição psíquica que a submete a dificuldades
raramente esclarecidas. (ADORNO, 1995b, p. 98)
acreditar alguns estudiosos como Esteve (1999), Kobori (2010), Lapo e Bueno (2003), e
sim de um dos fatores presentes no exercício da docência na atualidade.
Conforme assinalado acima, o mal-estar docente poderia ser, ao mesmo tempo, a
manifestação de algo que não vai bem, uma resposta consciente às vicissitudes do
exercício do ofício do professor, mas, também, quando simbolizado e mediatizado pela
experiência, uma possibilidade de (re) significar pela crítica e pela autorreflexão o que
acontece na escola e fora dela.
Aqui reside um dos elementos de nossa reflexão, qual seja, o de avançar na
compreensão do mal-estar docente, levando em consideração o sentido formativo da
experiência a qual estamos aqui reivindicando, permitindo novos sentidos, como um
florescer, como construção, como lugar de significação, de descontinuidade.
Neste primeiro momento do trabalho, apresentamos os diagnósticos do mal-estar
docente produzidos pela literatura consultada e os aspectos pensados para sua (re)
significação. No próximo capítulo da tese, utilizamos da psicanálise freudiana tendo em
vista justificar que o mal-estar é inerente à subjetividade e não como algo que pode ser
superado através das estratégias de coping, resiliência e de medidas protetivas e curativas
como supõe Esteve (1999), como supõem os pesquisadores aqui analisados.
Estes autores levantaram pontos importantes acerca dessa problemática como o
tema da idealização dos professores, os novos valores a transmitir, a transformação no
papel do educador, modificação no status social dos professores e crise de identidade sem,
no entanto, relançá-los para maiores análises sobre as tensões que esses pontos abrigam.
Podemos afirmar que o mérito das investigações desses autores15 está em nos apresentar
situações produtoras de mal-estar docente relacionadas às circunstâncias da sociedade em
que vivem. Os autores nos informam sobre a circunscrição de sintomas no exercício da
docência, sem, contudo, irem além do caráter descritivo que suas teorizações concebem.
Desse modo, o mal-estar docente não pode ser reduzido à questão instrumental16
como está posto pelos discursos dos estudiosos dessa temática. Resgatamos Freud para
criticar a literatura que está posta acerca dessa temática. O que se começa a delinear aqui é
15
Esteves (1999), Rodrigues (2011), Fonseca (2009), Fernandes (2008), Niches (2010), Gonçalves (2008),
Kobori (2010), Prioste (2006), Sampaio (2008).
16
Meramente identificado como estados perturbadores que assolam a prática pedagógica, sintomas como
irritabilidade, depressão, insônia, desmotivação, desânimo, desconforto, aliados ao desalento na profissão,
poucas oportunidades de promoção, queda no prestígio social da profissão, caracterizam o mal-estar docente
de acordo com os pesquisadores analisados neste trabalho. A própria classificação em fatores primários e
secundários na geração do mal-estar docente remete ao que estamos chamando de instrumentalização acerca
dessa temática.
76
que o trabalho pedagógico é (re) produtor de mal-estar. Portanto, temos que falar do mal-
estar que temos e do mal-estar que produzimos na escola não como algo conciliatório, mas
encarando o mal-estar docente como algo vivido com o sofrimento da experiência trágica
da vida.
77
17
Freud desprezou a distinção entre civilização e cultura, declarando: “Desprezo ter que distinguir entre
cultura e civilização” (Freud, 1927, O futuro de uma ilusão, p. 16). Buscando expor as bases desta
determinação, vamos à obra “O futuro de uma ilusão”, de 1927, na qual inicia afirmando que o homem difere
do animal, o que expressa como “civilização humana”, a partir de tudo que a vida humana se colocou em
plano superior de sua posição meramente animal, e que apresenta dois aspectos. Um é “todo o conhecimento
e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta
para a satisfação das necessidades humanas” (p.16), o controle do meio que o cerca, possibilitando ganhos
em diferentes grupos. Outro, “inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens
uns com os outros e, especialmente, as riquezas disponíveis” (p. 16), plano mais das relações entre os homens
e seus objetos. Em “O mal-estar na civilização”, texto de 1930, Freud (1997, p. 41) afirma que “a palavra
civilização descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de
nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza
e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos”. De modo geral, a cultura traduzir-se-ia em algo que
reconciliaria o homem com esta mesma civilização.
78
tese de que a evolução da civilização ocasiona o mal-estar. Para a presente pesquisa, sua
importância não se dá apenas pela descrição desse processo, mas sim porque aponta
características dos indivíduos que estão para além de sua inserção na cultura, isto é,
elementos que constituem o ser humano e o acompanham ao longo de sua existência.
O mal-estar é uma expressão que está presente na obra de Freud desde o início
para designar um estado perturbador que assola os seres humanos. O termo é aplicado
naquela fase de suas teorizações, associado à neurose de angústia que tem na sexualidade a
fonte dos problemas. Para Freud (1895), as circunstâncias em que a angústia se instala têm
na origem a abstinência sexual desecandeadora do acúmulo de excitação sexual e a
subsequente incapacidade de tolerar tal acúmulo. Esse processo é acompanhado por um
decréscimo de participação do sexual na esfera do psíquico, levando à formação de
sintomas. Podemos perceber que a vinculação do mal-estar à sexualidade e à formação de
sintomas aparece desde os estudos pré-psicanalíticos freudianos.
Na sequência das edições pré-psicanalíticas18, localizamos Freud no ano de 1897
associando a formação dos sintomas à renúncia e ao sacrifício dos indivíduos a uma parte
do sexual em benefício da “comunidade maior”. Esse ponto de seus estudos é importante
pela descrição detalhada da origem do mal-estar como qualidade fundante da
subjetividade. Menciona a dimensão do sacrifício e do elevado grau de abnegação que do
indivíduo é demandado para conviver em coletividade. Proclama: “o incesto é antissocial –
a civilização consiste em renúncia progressiva” (FREUD, 1897, p. 277). O indivíduo,
limitado pelo processo de recalque19, teria nos sintomas criações que atuariam como
realizações de desejos evitando erupções o que trariam prejuízos à civilização.
As exigências da sociedade, com a consequente produção de desconforto e mal-
estar, vão se configurando na obra de Freud nos diversos textos que se sucedem. As ideias
principais presentes em “O mal-estar na civilização” (1930) não eram verdadeiramente
novas na obra de Sigmund Freud, visto que ele já as apresentara rapidamente no texto
“Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna” (1908) e depois as repetira no texto
18
FREUD, Sigmund. Publicações Pré-Psicanalíticas (1886-1899). In:______. Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. 1.
19
O recalque é um mecanismo em que “a ideia que representa a pulsão passa por vicissitude geral que
consiste em desaparecer do consciente, caso fosse previamente consciente, ou em ser afastada da consciência,
caso estivesse prestes a se tornar consciente” (FREUD, 1915, p. 176). “Para Sigmund Freud, o recalque
designa o processo que visa manter no inconsciente todas as ideias e as representações ligadas às pulsões e
cuja realização, produtora de prazer, afetaria o equilíbrio do funcionamento psicológico do indivíduo,
transformando-se em fonte de desprazer” (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 647).
79
de 1927 intitulado “O futuro de uma ilusão”. Porém, é no texto de 1930 que Freud parece
deter-se de forma mais contundente e específica na análise da relação entre desejo e
civilização. Originalmente pensava em dar outro nome à obra: “Meu trabalho talvez
pudesse se chamar, - escreveu a Eitingon em julho de 1929 - , se realmente precisa de um
título: A infelicidade na cultura” (GAY, 1989).
Em “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna” - texto de 1908 - Freud
toma como ponto de discussão o livro publicado um ano antes por um professor de
Filosofia, Christian von Ehrefels (1850-1932), intitulado “Ética sexual”. Discute a
distinção operada pelo professor de filosofia entre moral sexual “natural” e “civilizada”.
A primeira é aquela que permite a um grupo humano vivenciar a sexualidade,
conservando saúde e eficiência. A segunda, ao estimular uma intensa produção cultural, na
realidade, sacrifica de tal maneira a sexualidade que compromete tanto a saúde dos
indivíduos quanto os objetivos da cultura. Essa moral sexual “civilizada”, restrita ao
casamento monogâmico, ignorando as diferenças naturais entre os sexos, acaba gerando
uma moral dupla e ambígua, uma para as mulheres e outra, mais liberal, para os homens e,
além disso, impossibilita a seleção pela virilidade, o que permitiria um aperfeiçoamento da
constituição humana. Ehrenfels (1907) afirma que, sob o regime vitoriano de uma moral
sexual civilizada, contudo, a saúde e a eficiência dos indivíduos estavam sujeitas a
prejuízos pela intensidade dos sacrifícios que lhes eram exigidos.
Nesse texto de 1908 Freud (1996) ainda se refere ao aumento das doenças
nervosas na sociedade de seu tempo. Propõe realizar um rápido “exame da vida moderna”
tomando os testemunhos de Erb (1839), a quem considera um iminente observador ao
enumerar uma série de elementos que explicam as causas da “doença nervosa”. Dentre
eles, Freud destacou algumas mudanças referentes ao progresso, às extraordinárias
realizações dos tempos modernos, às descobertas científicas e às invenções em todos os
setores e à manutenção do progresso com o incremento das comunicações – rede
telegráfica e telefônica. Tais transformações desencadearam alterações no modo de vida
das pessoas: a vida urbana cada vez mais sofisticada, as pessoas se subordinaram à pressa e
à agitação, à falta de tempo para o sono e o lazer. Há uma estimulação e excitação
incomensurável da audição por grandes doses de música “ruidosa e insistente”. As artes
plásticas mostram o feio, o repulsivo, apresentando as imagens mais horríveis que a vida
pode oferecer.
80
Para o pai da psicanálise, as descrições que esse quadro geral apresenta trazem
elementos suficientes pra indicar os “numerosos perigos à evolução da civilização
moderna” no incremento das doenças atuais (FREUD, 1996, p. 191). Freud está
protestando o aspecto descritivo das formulações de Erb e aponta para os estudos
metapsicológicos da angústia e sua relação com os sintomas neuróticos. Dito de outro
modo, trata-se do “preço a pagar” pela supressão das pulsões em função daquilo que Freud
denomina como contribuições individuais para “o acervo cultural de bens comuns e ideais”
(FREUD, 1996, p. 192).
Nesse artigo20 de 1908, a relação entre o incremento do aumento das doenças
modernas e a intensificação das restrições sexuais é o que move o pensamento freudiano.
A repressão prejudicial e nociva da vida sexual dos povos civilizados através da moral
sexual civilizada produz distúrbios, os sintomas.
Em “O mal-estar na civilização”, manuscrito de 1930, Freud extrai as
consequências do ser humano imerso no mundo civilizado, trazendo à tona novamente essa
discussão do desenvolvimento das ciências, sem deixar de dar destaque para o que ele
chama de “fator adicional de desapontamento”: o progresso nas ciências e sua aplicação
técnica, possibilitando controlar as ameaças da natureza sobre os humanos, a subjugação
do poder da natureza não trouxeram aos homens mais satisfação e nem felicidade.
Embora Freud não elimine o valor do progresso para a economia da felicidade,
acrescenta a expressão “prazer barato”. O que sobressai em seu texto é a irredutível
coerção da civilização como fonte de mal-estar, cuja situação o progresso não tem
conseguido solucionar satisfatoriamente. Para Freud (1997), a civilização impõe ao homem
a renúncia das pulsões, tanto da sexualidade quanto da agressividade. “O homem civilizado
trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança”
(FREUD, 1997, p.72).
Freud (1997) inicia “O mal-estar...” procurando investigar o que foi designado
por Romain Rolland21 como “sentimento oceânico”, um sentimento de vínculo indissolúvel
20
Se no texto de 1908 o mal-estar estava relacionado à impossibilidade de potencializar a sexualidade erótica,
em 1930, o mal-estar é decorrente da presença nos sujeitos da pulsão de morte (ou de destruição) no trato
com o outro. Em “Além do princípio do prazer”, texto de 1920, Freud fala da dialética da pulsão de morte e
da pulsão de vida na constituição do psiquismo. Afirma que a pulsão de vida tem como objetivo realizar a
ligação P-O-S (pulsão - objeto - satisfação) e a pulsão de morte desfaz essas ligações e pode se transformar
em falência de mediação do outro, experiência de destruição do outro. Seria, portanto, uma pulsão destrutiva.
21
Romain Rolland (1866-1944) fez importante observação sobre o livro "O Futuro de uma Ilusão" (1927),
de Sigmund Freud. Essa observação foi a premissa usada por Freud para escrever o livro seguinte, "O Mal-
estar na Civilização" (1930). Rolland escreve a Freud após ter lido a obra “O futuro de uma ilusão”,
81
argumentando que Freud não havia apreciado de forma adequada a verdadeira fonte do pensamento religioso
que, de acordo com ele, seria um sentimento peculiar experimentado por milhares de pessoas, um sentimento
de eternidade; descreve-o, por fim, como um sentimento oceânico.
22
O indivíduo é constituído por duas experiências básicas, diz Freud no texto de 1930. 1. de satisfação e, 2.
de dor. Para Birman (1999), a experiência de satisfação faz surgir o desejo, que se traduz num impulso em
busca de satisfação. Já a experiência de dor faz surgir o afeto. A dor, segundo o psicanalista brasileiro, é uma
quantidade de excitação que rompe um dispositivo de proteção, separa, fica no limite entre o objeto e o
sujeito. Psiquicamente é algo que perturba o aparelho psíquico, um conflito entre desejo x proibição. Como
consequência dessa ruptura ocorre uma descarga, que vem sob a forma de uma comoção. Dessa forma, a dor
seria um desinvestimento de tudo o que está a minha volta. Dor, segundo Birman (1999), é violência, viola
alguma coisa.
82
fundamental pra a cultura foi dado quando se renunciou fazer justiça com as próprias
mãos. Porém, ao fazer isso, o homem instaurou, além do processo civilizatório, o mal-
estar, fruto de suas profundas necessidades instintivas, que se manterão vivas no
inconsciente em busca de uma vazão.
O mal-estar na civilização define o homem freudiano na cultura. É um homem
pressionado por pulsões, amores e ódios primitivos. Por outro lado, as instituições sociais
são, entre outras coisas, interditoras contra o estupro, o assassinato e o incesto. Ao mesmo
tempo em que servem para proteger a vida em sociedade, são responsáveis pela supressão
das necessidades primitivas, portanto, pela promoção do mal-estar. Assim, a vida em
sociedade é um compromisso imposto e insuperável que carrega em si um inevitável
estado de infelicidade.
Neste momento de nossa exposição, consideramos oportuno discutir os dois
princípios que regem o funcionamento do aparelho psíquico: o princípio de prazer e o
princípio de realidade. Freud propõe uma análise a respeito de como nos inserimos no
mundo e de que maneira nos protegemos daquilo que pode se apresentar como ameaçador
ao nosso psiquismo. Como compreender a relação que o indivíduo estabelece com a
realidade? Qual seria o significado da realidade? Freud fez esses questionamentos para
tentar compreender a realidade e como nos relacionamos com ela. Freud chama de
“princípio de prazer” a esses processos primários de desenvolvimento humano, em que o
indivíduo busca a obtenção de prazer. Caso haja um desprazer, a atividade psíquica se
recolhe (a esse processo de recolhimento Freud chamará de recalque). Portanto, nem tudo
que desejamos podemos satisfazer, pois a realidade – regida pelo princípio da realidade -
impede que o desejo seja satisfeito da maneira “plena”.
Enquanto o princípio do prazer desconsidera a realidade e age de maneira
impulsiva (um bom exemplo disso são as paixões), o princípio da realidade leva em conta a
mesma. Em outras palavras, a realidade exige que o ser humano desenvolva a capacidade
de tolerar a frustração de não satisfazer-se imediatamente através de ações impulsivas, o
que implica em maior consciência. Porém, quando o indivíduo apresenta sintomas
neuróticos, podemos observar que naquele aspecto o paciente afasta-se da realidade, pois a
mesma entra em conflito com seus desejos, e desenvolve sintomas que, na verdade, são
defesas contra esse sofrimento, porém ineficazes para lidar com a realidade. Nesse sentido,
esse princípio é uma atividade psíquica que abdica da imaginação, da fantasia e concebe o
real com todas as suas vicissitudes e suas possíveis consequências desagradáveis.
85
O princípio de prazer é “um dos dois princípios que - segundo Freud - regem o
funcionamento mental23”; o outro é o princípio de realidade, que modifica o primeiro, este
se impõe como regulador, adia a satisfação por imposição do mundo externo, segundo o
qual a atividade psíquica tem por finalidade evitar desprazer, alcançando nisso o prazer,
portanto um prazer negativo. Trata-se, portanto, de um princípio econômico na medida em
que o desprazer está ligado ao aumento das quantidades de excitação e o prazer à descarga.
No texto “O mal-estar na civilização” é realizada uma comprovação do caráter
agressivo da condição humana e da forma como se estabelecem os laços entre os homens e
o quanto isso é ameaçador. Eros é indicado como o impulso necessário para a preservação,
mas seu opositor, Tânatos, está constante, também, nas relações humanas. Assim, a
civilização é um mal necessário que, no entanto, fomenta a agressividade inerente ao ser
humano, por ser sua fonte de prazer e complementar ao amor. A civilização é nomeada
como espaço simbólico de onde fluem as proibições e as prescrições.
Posso agora acrescentar que a civilização constitui um processo a serviço
de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois
famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única grande
unidade, a unidade da humanidade. Porque isso tem de acontecer, não
sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este. Essas reuniões de
homem devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A
necessidade, as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as
manterão unidas. Mas o natural instinto agressivo do homem, a
hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra um, se opõe a
esse programa da civilização. Esse instinto agressivo é o derivado e o
principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado
de Eros e que com este divide o domínio do mundo [...]. Ele deve
representar a luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o
instinto de destruição tal como ela se elabora na espécie humana
(FREUD, 1997, p.81-82).
23
Laplanche e Pontalis (1998). Dicionário de Psicanálise, p. 364.
86
De acordo com Freud (1997), vimos acima que qualquer realidade implica o mal-
24
estar . Durante toda a história, a civilização tem representado um imenso esforço para
subjugar as forças da natureza, não somente as da natureza externa, mas também as forças
presentes nos relacionamentos com seus semelhantes, ou seja, a civilização também
representa o esforço de domar a própria natureza pessoal de agressividade para se poder
viver em comunidade. Com isso, o homem instaurou, além da civilização, o mal-estar,
fruto da supressão de suas mais necessidades instintivas, que se manterão vivas no
inconsciente em busca de uma vazão.
Freud (1997) observa claramente que, em seu julgamento, há mais maneira do
homem experimentar a infelicidade e o sofrimento do que a felicidade propriamente dita.
Argumenta que, exposto a tanta infelicidade, o homem se conformou em restringir as suas
reivindicações à felicidade, colocando em primeiro plano evitar o sofrimento e, em
segundo, a obtenção de prazer. Constata ainda que o mesmo ocorre com o princípio do
prazer quando exposto às agruras do mundo externo, tornando-se, mais tarde, um princípio
24
Renúncia, castração, limite, trabalho, culpa. Esta é a série que, com equivalências variadas, fundamenta a
cultura e constitui o seu preço. O homem a faz e a sofre, condenado a submeter-se a ela se quiser tornar-se
criativo, se quiser tornar-se “homem”. O que Freud (1997) quer dizer é que o mal-estar que se manifesta na
cultura, nas sociedades civilizadas modernas e que se traduz por uma busca infeliz e infantil da felicidade,
corresponde ao sentimento de insatisfação que os homens experimentam face à civilização e aos seus
“progressos”. Mas, de que teria que se desfazer a criança? Para Freud (1997), este seria o preço que cada um
de nós teria que pagar pela cultura, pelo processo civilizatório. A criança teria que renunciar a determinados
desejos infantis: aos desejos de onipotência, de prazer permanente, de plenitude, de gozo absoluto. Isto é
descrito por Freud (1997) como uma renúncia à pulsão, a um prazer pulsional, para que o trabalho da cultura
possa desenvolver-se.
87
de realidade. Assim, é natural que o homem busque maneiras de evitar o sofrimento, a dor,
numa tentativa de diminuir o mal-estar.
Como ressaltado anteriormente, é inegável a conquista da natureza por meio da
tecnologia. Todavia, não podemos, orgulhosamente, dizer o mesmo sobre este triunfo nas
relações humanas. A passagem do estado natural para o estado de direito, não garantiu
liberdade verdadeira aos homens e, muito menos, justiça, afirma Freud (1997).
Administrado pela vontade da maioria em detrimento de sua própria, o homem se submete
ao represamento de suas energias libidinais de forma perigosa.
Quando guiado pelo estado natural, o homem estava submetido a lutar
incessantemente para impor sua vontade sobre a dos outros, uma vez que, em contrapartida
à sua liberdade instintual, havia a imposição pela força que obrigava os mais fracos a se
submeterem aos mais fortes. Enquanto isso, no estado de direito existe uma lei que deve, a
rigor, ser seguida conjuntamente, permitindo a todos gozarem de suas vontades. Esse
estado é alcançado pela renúncia dos instintos mais primitivos25 do ser humano que são,
por princípio, contrários à ordem civilizatória.
Diante do exposto, o papel da civilização é o de mediar e acomodar de forma
imparcial o desejo individual com os desejos coletivos. Porém, conforme Freud (1997),
25
Em 1913, Freud publica “Totem e tabu”. Nessa obra analisa a origem da organização da vida em sociedade.
A organização grupal entre os homens teria surgido das necessidades de proteção, de reprodução e de
alimentação da própria espécie. Freud afirma que, com o desenvolvimento das relações entre os membros da
horda, o pai (chefe desse grupo, embora possa não corresponder ao genitor de todos, assim o era considerado,
em todos os sentidos) teria monopolizado as fêmeas para si e expulsado aqueles que, de alguma forma,
ameaçavam o seu deleite. Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e
devoraram o pai, colocando assim, um fim à horda patriarcal. Esses parricidas foram movidos pelo ódio,
afirma Freud. Mas eles também amavam e admiravam o pai. O lugar do pai fora o desejo original de cada um
deles nessa trama. O resultado desse desejo não totalmente realizado foi o sentimento de culpa, que, para
Freud, teria tornado o pai mais forte morto do que quando vivo. Com isso, Freud quer dizer que o parricídio e
o incesto foram as duas leis básicas que fundaram uma nova organização social. Visando reconstituir uma
espécie de gênese das instituições religiosas e, num sentido mais amplo, da moralidade, pode-se dizer que a
importância desse estudo está em que, ao teorizar sobre a origem da religião, coloca no mesmo patamar a
origem da moral, da sociedade e da religião. Também nessa obra aponta novamente a importância da
renúncia dos instintos, discorrendo sobre as tribos nativas, que propicia limites severos e rigorosos os quais
estão na base da constituição da vida social. São os chamados tabus e totens. Nesse sentido, Freud mais uma
vez enfatiza a íntima ligação existente entre a constituição do social e da estrutura individual psíquica.
Reconhece, por exemplo, que em quase todos os lugares em que encontra totens, encontra também uma lei
contra relações sexuais entre pessoas do mesmo totem e, consequentemente, contra seu casamento, uma
proibição que se destina a impedir um perigo que ameaça toda a comunidade como se tratasse de alguma
culpa a que estivesse pressionando a cada homem. Assim, proibição e culpa são temas que Freud aborda
como questões pertinentes ao mal-estar na civilização. Também Freud demonstra que, se não há lei
estabelecida, há um sistema de tabus, proibições que, se não forem obedecidas pelas pessoas, estas recebem
punições severas. Freud reconhece que todas essas providências têm por finalidade também proteger o
homem de seus próprios impulsos hostis. Assim, a negação dos desejos é a pedra angular e o fundamento do
processo civilizatório.
88
toda vez que essa acomodação não for alcançada de forma justa, será sempre o indivíduo, e
não o grupo, quem pagará as consequências.
Constata-se, dessa maneira, que independentemente da mediação promovida pela
civilização, a busca do equilíbrio nunca será suficiente para evitar que os instintos sejam
reprimidos e que a lei da não satisfação dos instintos seja imposta. Portanto, para se
constituir uma comunidade fora necessário abrir mão da satisfação dos instintos. Freud
(1997) localiza como passo inicial para a renúncia dos instintos a passagem de uma relação
familiar para outra comunitária. Assim, a prerrogativa para o surgimento da sociedade é,
antes de mais nada, a inibição do amor em sua finalidade. Neste momento, podemos
afirmar que a infelicidade jazia dentro do espírito do homem civilizado.
Freud (1997) chama a atenção para outra exigência que a civilização impunha
sobre os homens e que seria responsável, justamente com a repressão da sexualidade, pelo
“mal-estar” - a agressividade.
[...] adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão
constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-
subsistente, e retorno à minha opinião de que ela é o maior impeditivo à
civilização. (FREUD, 1997, p. 81)
A agressividade é, segundo Freud (1997), uma devastadora força capaz de por fim
a todas as conquistas da civilização. Vê-se, na civilização, uma necessidade de novas
medidas interditoras para conter tal destrutividade.
Dessa maneira, fez-se necessária a intervenção da civilização no intuito de conter
essa agressividade natural do homem. Com isso, métodos são empregados com a finalidade
de agrupar os seus constituintes sob fortes relações e identificações que são fundamentais
para o amor inibido em sua finalidade. Contudo, não houve nenhuma civilização, afirma
Freud (1997), que realmente mantivesse a agressividade de seus indivíduos sob total
controle. Desse modo, utiliza essa agressividade como ferramenta para solidificar ainda
mais a coesão do grupo, dirigindo-a contra outros grupos estrangeiros pelos quais o ódio
pode ser nutrido.
O mal-estar do sujeito e da cultura do qual falava Freud é produzido como um
preço a se pagar pela vida coletiva humanizada pelo simbólico. Desde o início de seus
estudos, Freud investigava a partir de um ponto: o que ia mal para o sujeito, denunciando a
existência de conflitos psíquicos na formação das conversões histéricas, as cegueiras e
paralisias das mulheres da era vitoriana do final do século XIX e início do século XX.
89
26
No ensaio escrito em 1969, Educação após Auschwitz, Adorno faz referências de forma contundente a duas
obras freudianas – O mal-estar na civilização e Psicologia de Grupo e Análise do Ego. Em relação à recaída
das sociedades modernas na barbárie, Adorno então atribui importância à psicanálise freudiana naquilo em
que ela pode servir de esclarecimento sobre os mecanismos subjetivos que tornam as pessoas capazes de
violência e de endossar a dominação. Nas palavras do filósofo: “Entre as instituições de Freud que realmente
também alcançam o domínio da cultura e da sociologia, uma das mais profundas, a meu ver, é a de que a
90
civilização engendra por si mesma o anticivilizatório e o reforça progressivamente. As suas obras ‘O mal-
estar na civilização’ e ‘Psicologia de grupo e análise do ego’ mereceriam a maior difusão, precisamente em
relação a Auschwitz”. (ADORNO, 1995a p. 105)
91
27
O termo massas aqui é entendido segundo os diversos sentidos atribuídos por Freud em “Psicologia de
massa e análise do ego”, de 1923: multidão, grupos, instituições.
92
Nesse contexto, Adorno, ao refletir sobre os limites da Psicanálise para além das
questões concernentes às relações da psicologia com a teoria social, tem por objetivo
elucidar o quanto o objeto estudado por Freud, ou seja, o indivíduo, se modificou mediante
o desenvolvimento das forças econômicas e sociais do capitalismo avançado.
O frankfurtiano dirá que a teoria psicanalítica faz ideologia quando tenta definir o
seu objeto independente de determinações sociais ao absolutizar o indivíduo em sua forma
burguesa, cuja compleição psíquica encontra-se intrinsecamente relacionada aos
determinantes sociais e econômicos de uma dada época. Mas, por outro lado, afirma
Adorno, a teoria psicanalítica consiste ser um saber que preserva o indivíduo frente à
objetividade, cujo aparato tecnológico tem contribuído para a sua supressão, quando essa
teoria psicológica ainda resguarda um espaço psíquico “extra-social” no qual o particular é
admitido e diferenciado do todo.
Adorno destaca que, devido às transformações históricas da estrutura social, o
ego, que, segundo Freud, é a instância mediadora do desejo e da realidade, passa a não ter
condições de exercer essa função, visto que a formação social do capitalismo avançado não
93
necessita, para a adaptação social, desse tipo de agente mediador na esfera particular, pois,
atualmente, esse papel foi “transferido” da esfera individual para a esfera coletiva, ou seja,
é realizado pela própria sociedade administrada. A mediação que deveria ser exercida por
meio da reflexão e da razão pelo ego (consciência) agora é realizada de antemão pela
própria sociedade totalitária. Essa transformação histórica da sociedade mostra a superação
do ideal de indivíduo liberal e a consequente “obsolescência” da Psicanálise freudiana.
O que estamos dizendo é que as funções cognitivas do ego – por exemplo,
pensamento e consciência – são reprimidas para que as pulsões individuais, atualmente
dominadas e administradas pelo mercado, possam ser “mais ou menos” liberadas para o
consumo de objetos previamente produzidos para retroalimentar esse processo. Sob a égide
de um capitalismo de oligopólios, a autonomia individual28 é extinta junto com o
enfraquecimento psíquico dos indivíduos diante da irracionalidade objetiva, também
resultando do modo de produção do capitalismo avançado.
Podemos afirmar que, no período moderno, encontramos um conceito de
indivíduo dotado de uma explicação própria sobre a sua constituição que, por sua vez, vai
apontar para o “espaço psíquico” tal como hoje podemos compreender. No que diz respeito
a Freud ter considerado o indivíduo como uma mônada29, destacamos que Adorno também
faz severas críticas, posto ter Freud assim colaborado para uma teoria ideológica sobre o
indivíduo. A concepção monadológica do indivíduo é a que vai ser usada por Adorno
quando o mesmo visa apontar que, de fato, frente às sociedades capitalistas, em que se dá a
primazia do econômico sobre as necessidades psíquicas individuais, os indivíduos passam
a se perceber como mônadas mediante a objetividade alienada.
Nesse sentido, o indivíduo acaba sendo obrigado a dirigir sua libido ao ego,
quanto mais a objetividade irracional torna-se para ele mais desagradável e o trabalho sem
sentido, assim como passará a buscar satisfações substitutivas, fornecidas por alguns
mecanismos sociais irracionais a fim de engrandecer seu ilusório sentimento de
onipotência, seus sentimentos narcísicos primários, para tentar se desfazer das frustrações
individuais, geradas pela sociedade de troca. As satisfações narcísicas mais arcaicas,
28
Mesmo que a configuração do indivíduo no capitalismo liberal do século XIX tenha possibilitado uma
formação autoritária e coercitiva, fruto de relações sociais estabelecidas dentro de princípios familiares e
religiosos, sua constituição psicológica, ainda que conflituosa, possibilitava uma relativa autonomia enquanto
indivíduo frente às condições sociais e econômicas de seu tempo, protegendo sua capacidade de resistir e
conflitar contra a sociedade que tentasse aniquilar seus interesses, afirmam Adorno & Horkheimer (1985).
29
O caráter monadológico atribuído ao indivíduo pela psicologia, no caso, a teoria psicanalítica, diz respeito
ao espaço psíquico fechado que consiste num jogo de forças, com lógica e leis próprias, independentes da
sociedade.
94
30
Não se trata de recriminar Freud por ter descuidado do concreto social e, sim, por ele ter se conformado,
simplesmente, com a origem social daquela abstração, a rigidez do inconsciente, que ele reconheceu com a
incorruptibilidade do investigador da natureza [...]. O histórico se torna invariável e o psíquico, por sua vez,
em acontecimento histórico. Na transição das imagens psicológicas à realidade histórica, esquece a
95
modificação de todo o real no inconsciente por ele mesmo descoberta, e atribui erroneamente realidade aos
acontecimentos, tal como o assassinato do pai pela horda primitiva. (ADORNO, 1955, p. 54).
31
“En el inconsciente se sedimenta lo que nunca progressa en el sujeto, lo que tiene que pagar la cuenta del
progreso y la ilustración. El residuo se vuelve algo intemporal”.
96
32
Crochik (2011, p. 58-59) afirma que, se Freud e a Psicanálise foram criticados por Adorno por seu ímpeto
de adaptar o indivíduo à sociedade, “a psicanálise que se pretende filosófica e social destrona o princípio de
realidade e o substitui pelo tempo lógico atribuído ao sujeito. Ao fazer isso, retira a possibilidade de crítica à
própria realidade: o sujeito gira em torno de si, ou melhor, em torno do nada. A crítica de Adorno à própria
terapia psicológica era a de que não se pode tratar entre quatro paredes o que é gerado socialmente, ou
melhor, isso é possível, mas para melhor conformar os indivíduos: esses terão clara noção das armadilhas que
fazem para si próprios, mas estarão mais alheios ainda da fonte de sua desgraça”.
97
Um outro elemento que merece ser destacado são as críticas de Adorno aos
aspectos adaptativos da Psicanálise encontrados na segunda tópica freudiana e no
“equilíbrio de forças entre as três instâncias” formulados por Freud em 1931, prefigurando
o que ele chamou de “imagem analítica”, também concebido como “ideal freudiano de
homem”, representada pela igualdade de forças entre o id, o ego e o superego. Segundo
Adorno, a Psicanálise, ao pressupor um homem “integral” e de “personalidade
equilibrada”, acaba por negligenciar a realidade existente, bem como as descobertas
freudianas acerca da opressão social a que os indivíduos são submetidos, pois, como o
próprio Adorno disse, Freud alcançou, paradoxalmente, no modelo da mônada psíquica, a
mediação social.
Entendemos pelo exposto acima que o indivíduo ajustado, o modelo de homem, é
o que mais contém em si a patologia da sociedade que se relaciona à destrutividade geral
dos sistemas totalitários, pois em seu comportamento, acaba por refletir as marcas
objetivas irracionais. É nesse contexto que Adorno diz ser a base da “saúde reinante” a
própria “morte”, isto é, o ajustamento à irracionalidade objetiva é realizado às custas da
própria mutilação psíquica do sujeito que, por sua vez, firmou-se como modelo de
“normalidade”. Para o frankfurtiano, os sujeitos que obtêm êxito em sua adaptação à
sociedade não são menos enfermos que os indivíduos supostamente “doentes”, ao
contrário, confirmam o triunfo da coletividade sobre a esfera individual.
No aforismo “Convite à dança”, Adorno afirma ser o sentimento de satisfação e
de felicidade, prescritos pela psicanálise aos seus analisandos, na realidade, são satisfações
precárias que contribuem para a infantilização dos mesmos. Dito de outra maneira, a
psicanálise, enquanto medida profilática que prescreve formas de ajustamento com base
num protótipo de “normalidade”, prometendo restituir aos pacientes a “capacidade de ter
prazer”, termina por confundir o prazer com a aderência à diversão socialmente
administrada, refletindo assim, as tendências dominantes da sociedade atual.
Da citação acima, observamos que Adorno faz críticas aos elementos presentes na
psicanálise freudiana que concorrem para o conformismo individual, como, por exemplo, a
terapia voltada para os objetivos do ajustamento social do indivíduo, a despeito das
descobertas iniciais de Freud com relação aos conflitos entre as pulsões e as exigências da
adaptação à realidade.
Do exposto, podemos afirmar que, conforme Adorno, Freud, por vezes, tende a
não privilegiar os caminhos da pulsão quando reduz o prazer à conservação da espécie,
assim não reconhecendo que a realização do indivíduo na cultura, ou seja, o seu contato
com a realidade e a possibilidade de refletir sobre a mesma, conferindo a tais elementos um
caráter racional, e não somente restrito à autoconservação pura e simples, deveria se dar
pela mediação do princípio do prazer.
Nas análises de Adorno, a recaída da psicanálise como terapêutica do
conformismo não deixam de ser resultantes da primazia da sociedade sobre a psicologia. A
ciência que prontificava o respeito ao particular e revelava as lesões psíquicas como
consequências da civilização acaba por reproduzir em seu interior o caráter contraditório
da realidade social e assim, sucumbe aos ditames desta mesma realidade.
Também nos escritos psicanalíticos freudianos encontra-se essa contradição que
Freud não recusou, afirma Crochik (2011). Ao mesmo tempo em que Freud concorda que a
renúncia ao prazer pode levar à patologia, à doença, também afirma, em seus últimos
99
Assim, consideramos que as referências de Adorno ao ego, nas suas análises desse
conceito à luz das tendências sociais imperantes, visam elucidar as novas formas de
subjetivação correspondentes às transformações sócio-econômicas do capitalismo
avançado (e que também visualizamos nos dias atuais), de uma cultura marcada pela
padronização e pela pressão totalitária dos movimentos de massa. Em nosso entender, se a
crítica de Adorno parece estar voltada basicamente ao sistema freudiano, o objeto maior do
autor é, ao contrário, apontar a cultura predominante como aquela que sustenta os
comportamentos narcisistas, que esvazia as funções egóicas e que contribui para a ruptura
entre indivíduo e sociedade, assim delimitando a fraqueza individual que, por sua vez,
determina a obsolescência de alguns conceitos psicanalíticos para o estudo do indivíduo
perante as transformações históricas.
Em outros aforismos – como exemplo o “Ego e o id” – Adorno discute a questão
da dissolução do indivíduo e, consequentemente, o enfraquecimento do ego no capitalismo
avançado sugerindo que, quanto mais a Psicologia e a Psicanálise voltam-se para o ego,
muito mais se revela o quando o indivíduo encontra-se enfraquecido nesta sociedade.
Podemos afirmar que os conceitos freudianos, bem como suas ideias, carregam
em si uma historicidade. São conceitos dinâmicos que visam expressar uma realidade
histórica de um sujeito e que, esses mesmos conceitos, contêm elementos que contribuem
para a sua própria negação. Freud escreveu sua obra no final do século XIX e início do
século XX, ou seja, estudou o indivíduo na transição do capitalismo liberal para o
capitalismo de monopólios, expressando, dessa maneira, as modificações de seu objeto à
33
“Cuando ao yo se le malogra lo suyo próprio, lo diferenciado, regresará sobre todo a la libido más
semejante a él, llamada por Freud libido del yo, o por lo menos fusionará sus funciones conscientes com las
inconscientes. Lo que em el fondo queria ir más allá de lo inconsciente, entrará en su servicio y, así, si es
posible, reforzará sus impulsos”.
101
luz de tais transformações sociais, mas, é claro, sem recorrer a explicações econômicas ou
sociológicas e sem atentar para tais transformações sociais (ADORNO, 1955).
Podemos dizer, assim, que as categorias psicanalíticas não são conceitos
imutáveis ou “naturais” que possam ideologicamente expressar uma forma universal de
individualidade ou de sujeito, a despeito do próprio Freud ter dado margens a tais tipos de
interpretação como pudemos ver nas críticas do frankfurtiano direcionadas a ele.
Em “De la relacion...” Adorno afirma que, apesar de Freud não ter se detido sobre
as questões políticas ou sobre as mudanças sociais que determinavam seu objeto de estudo,
ele conseguiu apreender e perceber nos confins monadológicos do indivíduo os traços de
sua crise profunda e sua tendência a se submeter inquestionavelmente a poderosas
instâncias coletivas externas. Adorno se utiliza da psicanálise freudiana em seus diversos
trabalhos partindo da ideia de que a teoria psicológica, ao apontar para a esfera subjetiva,
esclarece sobre os fatores objetivos que têm “moldado” e determinado a individualidade,
assim tentando redescobrir o elemento social no plano das categorias psicológicas, visto
que tais categorias indicam as relações, não de forma direta, entre os fatores subjetivos e o
sistema social objetivo, sendo o último o fator essencial para as análises de Adorno.
Consideramos que se Adorno faz críticas contundentes aos conceitos freudianos
da segunda tópica é porque, em nosso entendimento, o autor tenta ser fiel à complexidade
do problema, qual seja, a de que o indivíduo freudiano não é desprovido de seu
componente social, o que possibilita retomar as categorias psicológicas como conceitos
dinâmicos, contrastadas às condições históricas, para elucidar acerca da condição do
indivíduo no capitalismo tardio, tendo em vista a introjeção da irracionalidade social pelos
sujeitos, que impede o desenvolvimento da própria individualidade supostamente
“autônoma”. A teoria adorniana lembra que o indivíduo tem formação tipicamente social e
cultural e não meramente psicológica. É o que veremos a seguir.
Em Adorno & Horkheimer (1985) e Freud (1997) a terra resplandece sob o signo
da crise de um projeto de construção de uma civilização que fracassou. É nessa perspectiva
que a civilização se funda: na negação e repressão dos desejos e aspirações individuais. Em
Freud (1997) o civilizatório produz o anticivilizatório na medida em que os elementos
102
animalescos, como os instintos violentos, tiveram que ser reprimidos para nos tornarmos
sujeitos supostamente esclarecidos e racionais.
Dentro desse cenário, a vida na civilização é constituída por homens ressentidos,
resignados e frustrados, que cotidianamente reprimem seus desejos que iriam lhes
proporcionar prazer para realizar as exigências morais, religiosas, econômicas e
educacionais necessárias à manutenção da civilização34.
De criador da civilização, o homem moderno passou a ser criatura submissa e
alienada à sua própria criação. Os ganhos de bem-estar proporcionados pela civilização
através da ciência, das novas tecnologias, da medicina, das comunicações, funcionam
como paliativos ao mal-estar dos indivíduos.
34
Acrescentamos a isto as discussões tomadas por Adorno & Horkheimer (1985) acerca da sociedade ser
contraditória, pois serve tanto à liberdade quanto à reprodução material. Todavia, ela, a sociedade, tem se
revelado ser mais voltada à autoconservação e à reprodução, assim fortalecendo os sentimentos de desamparo
nos homens quando os mesmos percebem que os ideais culturais tornaram-se irracionais, não voltados para a
sua felicidade individual, mas para a reprodução da sociedade, fomentando, assim, o medo nos homens e seus
sentimentos de frustração.
35
Na obra “Dialética do esclarecimento”, Adorno & Horkheimer fazem uso de grande quantidade de fontes
da antropologia e da história. Ao invés de traçar uma sistematização geral em seu desenvolvimento através de
eras e períodos, buscam em alguns pontos-chave da história os elementos necessários para criar sua teoria
dialética sobre o esclarecimento. Os autores fazem uma história das ideias no ocidente, mas não de maneira
sistemática, que procurasse traçar uma cronologia do desenrolar progressivo da ideia de esclarecimento na
história, mas, pelo contrário, procuram discutir em forma de ensaio os conceitos e os exemplos, trabalhando a
dialética inerente ao próprio processo de esclarecimento. Não fazem uma análise historicista, buscando dados
para criar um modelo histórico generalizado sobre esse momento da humanidade, mas o analisam
filosoficamente. Assim como Freud, que analisou o totemismo e os tabus das sociedades ditas primitivas para
encontrar elementos de explicação sobre certos comportamentos infantis e em doentes mentais na atualidade,
103
Para Adorno & Horkheimer (1985), Ulisses era o protótipo do indivíduo burguês.
Esse herói, senhor de muitas posses, saiu de sua terra e enfrentou muitos perigos.
Monstros, ciclopes, gigantes, deuses, sereias e outros atribularam sua vida. Entretanto, ele
venceu as batalhas, na medida em que se perdia a fim de se ganhar. A astúcia era o recurso
utilizado para vencer as batalhas, que consistiam em perder para se autoconservar.
As aventuras de Ulisses nada mais são que a descrição dos riscos que
constituem o caminho para o sucesso. Ulisses vive segundo o princípio
eles buscam os elementos desse momento primitivo para compreender o desenrolar desencantado da moderna
história esclarecida (ZUIN,1999).
36
À luz de Adorno e Freud, podemos perguntar: qual foi o preço que pagamos por esse tipo de vida que ora
desfrutamos? Na visão desses dois autores, pagamos preços altos demais pela organização da nossa
civilização: a escravidão diária no trabalho, a diluição da individualidade na totalidade administrada, o
aniquilamento da experiência, a negação da liberdade. É nesse sentido que, segundo Adorno, o
esclarecimento revela seu teor de irracionalidade. Tal é a dialética adorniana da razão esclarecida, pois ela
produz conforto e miséria, saúde e doença, riqueza e pobreza, vida e morte. Dessa forma, a nossa civilização,
produto de uma racionalidade instrumentalizada, remeteu os homens ao desígnio da infelicidade e da
frustração, uma vez que se sustenta em bases racionais que, por sua vez, produzem, também, estados de
profunda barbárie.
104
O herói conseguia extrair do sacrifício aquele artifício que lhe era inerente, a
capacidade de iludir. Talvez em razão dessa astúcia, Ulisses tenha sido interpretado por
muitos homens de seu tempo como uma verdadeira divindade, afirma Gagnebin (1997).
No entender de Adorno & Horkheimer (1985), a racionalidade ocidental, na
medida em que concebe a natureza como objeto e o homem como razão dominadora,
elimina da relação homem-natureza o elemento da mediação, ou seja, a indeterminação do
sentido da história. A realidade objetiva, afirmam os autores, passa a ser uma determinação
da subjetividade humana cuja objetivação ocorreu através da racionalidade instrumental.
As críticas dos frankfurtianos, então, voltam-se à sociedade que não tem colaborado como
a diferenciação individual, posto ter o capitalismo avançado desenvolvido formas de poder
mais avançadas e racionalizadas, assim mantendo e revigorando, por meios “racionais”, a
dominação e a violência enraizada na civilização desde os tempos imemoriais, das quais,
por sua vez, o fascismo tem sido expressão mais degradante.
O que está em questão aqui são os confins monadológicos do indivíduo à luz das
transformações históricas, pois, para Adorno, os próprios conceitos trazem em seu bojo tal
historicidade quando indicam e expressam as “afecções” psíquicas que a mônada freudiana
visa representar. O empobrecimento do ego individual nas massas fascistas – aqui o ego
denota o “indivíduo”, como a instância psíquica definida na segunda tópica – e o
fortalecimento das pulsões narcísicas para a sobrevivência dos indivíduos em meio à
barbárie generalizada, lançam luz às transformações históricas dos indivíduos e aos modos
de adaptação exigidos aos sujeitos pelos movimentos totalitários. Com isso, perde-se a
noção de totalidade e da unidade homem-natureza da relação dialética entre o eu e a
alteridade.
Na verdade, o sujeito Ulisses renega a própria identidade que o
transforma em sujeito e preserva a vida por uma imitação mimética do
amorfo. Ele se denomina Ninguém porque Polifemo não é um eu e a
confusão do nome e da coisa impede ao bárbaro logrado escapar à
armadilha: seu grito, na medida em que é um grito por vingança,
permanece magicamente ligado ao nome daquele de quem quer se vingar,
e esse nome condena o grito à impotência. (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 63)
105
37
O termo “sublimação”, no campo artístico, particularmente no que se refere às belas artes, utiliza-se a
palavra “sublime” para adjetivar uma obra de grande valor estético, que suscita no observador sensações mais
espiritualmente elevadas. Freud transportou este termo para a psicanálise para denominar um processo
exclusivo da psiquê. Segundo Laplanche & Pontalis (1998), o fenômeno da sublimação pode ser descrito
como um “processo postulado por Freud para explicar atividades humanas sem qualquer relação aparente
com a sexualidade, mas que encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. (...). Diz-se
que a pulsão é sublimada na medida em que é derivada para um novo objetivo não sexual e em que visa
objetos socialmente valorizados”. Segundo Laplanche & Pontalis, é importante ressaltar que a sublimação
não incide sobre a totalidade das pulsões sexuais, mas, antes, apenas sobre uma parte, que é justamente
aquela que não se integra na forma definitiva da genitalidade. Vimos que ocorre uma troca de meta, que era
originalmente de conteúdo sexual e que passa a ser um objetivo não diretamente sexual, mas psiquicamente
semelhante à meta. As atividades humanas decorrentes desses deslocamentos da libido continuam sendo
alimentadas pelo desejo sexual, porém se concretizam através de ações voltadas à criação artística e
intelectual. À medida que exploramos a dinâmica do processo sublimatório, mais nos aproximamos de
admitir a logicidade da ideia que Freud tentou demonstrar através de uma complexa rede de deduções e
induções, ou seja, a premissa da necessária renúncia pulsional para o desenvolvimento do modo de vida
civilizado. Assim como a civilização impõe restrições à vida sexual e à inata agressividade humana, de modo
também intenso o processo civilizador busca aumentar a unidade cultural, através da sublimação. Nesse
sentido, a sublimação é uma imposição da civilização sobre a natureza pulsional, visto que é condição
necessária para o desenvolvimento das características exclusivas da civilização. É através da sublimação que
as atividades intelectuais do ser humano ganharam maior valor do que a satisfação dos desejos pulsionais e
que a constante não-satisfação pôde ter seu negativismo amenizado. Mais do que isso, os produtos advindos
do processo sublimatório têm a função de recompensar o homem pelas perdas que ele enfrenta ao optar pela
sociedade e não pelo indivíduo, isto é, trabalhar no projeto da civilização e engavetar o sonho de ser feliz.
Como percebemos pela exposição acima, o homem precisou colocar sua intelectualidade e seu psiquismo à
disposição da arte e da ciência, e a sublimação encarregou-se de transformar o trabalho humano em fonte de
prazer. Esse é o prêmio que as instituições da civilização oferecem ao homem.
107
38
Trabalhamos com a ideia segundo a qual a análise de Bauman com relação à sociedade e o indivíduo, a seu
modo, complementam aquelas desenvolvidas por Adorno em muitos dos seus aspectos, avançando-as em
alguns pontos e afastando-se em outros, especialmente devido à recusa baumaniana em oferecer um
tratamento psicológico às questões contemporâneas.
108
aos homens felicidade, ela cria satisfações substitutivas, que se constituem em prazeres
artificiais, imediatos, propiciados pelo consumo e pela facilidade da vida moderna.
Em suma, da mesma forma que a civilização criou a massificação do consumo,
ela criou também a massificação do prazer. Dito de outra maneira, o prazer individual deve
estar submetido ao tipo de prazer proporcionado pela civilização. Impossibilitado de lidar
com seu desejo e marcado pela falta, o indivíduo moderno está condenado a buscar em
instâncias diversas a produção de sua felicidade. A mesma civilização que impõe normas,
regras, valores, que determina a forma de agir em sociedade, e que, portanto, produz o mal-
estar, cria a demanda que ela se propõe a satisfazer. Esse aspecto se expressa na
tensionalidade das exigências do indivíduo e da civilização, na tensionalidade da saúde e
da doença, na tensionalidade das exigências internas e externas, na tensionalidade, enfim,
da felicidade e do mal-estar.
Mais do que exaltar os caminhos por meio dos quais o indivíduo pode encontrar-
se com a tão sonhada felicidade para assim permanecer, Freud propõe que nos atentemos
ao fato de irremediavelmente a inscrição do homem na civilização incluir um limite a esta
ideia de felicidade. Esse limite será expresso pelo conflito entre pulsão e civilização, que
tem como resultado aquilo que Freud denomina mal-estar, sendo a relação entre os homens
definida por ele como o sofrimento “mais penoso do que qualquer outro” (FREUD, 1997).
Desse modo, apostar na superação do mal-estar vivenciado pelo professor através de
medidas de coping, de resiliência e de outras estratégias como querem os pesquisadores
assinalados nessa pesquisa, coloca em cena um impasse insuperável - posto que é de ordem
interna – que tem como resultante uma experiência de mal-estar.
É essa crença na possível “resolução do mal-estar” como assinalada pelos
estudiosos do mal-estar docente que nos permitiu circunscrever o pensamento freudiano,
isso porque afirma jazer por trás deste mal-estar uma “natureza inconquistável”, uma
parcela de nossa própria constituição psíquica (FREUD, 1997). A leitura que realizamos de
Freud pôde nos ajudar a compreender essa temática no que concerne a um posicionamento
distinto daquele encontrado na leitura que realizamos das teses e dissertações de mestrado.
109
39
Vale ressaltar que, em momento algum, estamos negando ou subestimando o fato de que existam crianças e
adolescentes que apresentam problemas,às vezes graves e preocupantes, em seus processos de escolarização
e socialização, bem como que os psicofármacos não possam trazer uma melhora na qualidade de vida de
muitos sujeitos cujo nível de sofrimento psíquico representa o rompimento de laços sociais e o consequente
isolamento. Nosso propósito foi demonstrar, nesta breve reflexão, algo que nos parece evidente e que,
justamente por isso, não pode ser ocultado ou silenciado.
111
política, tal problemática representa uma das faces de um movimento muito maior e
também mais lucrativo que afirma ser o consumo dessas substâncias o caminho mais curto
e eficaz para a solução de não poucos
problemas que experimentamos em nossa “modernidade líquida”.
É notável observar como a técnica e o consumismo exacerbados produzem o
isolamento social. É comum olharmos para o nosso lado e avistarmos pessoas andando
com fones de ouvido, escutando músicas, não importa o quê, com seus tablets de última
geração nas plataformas do metrô, nos corredores da faculdade, com celulares
ultrapotentes acessando as redes sociais a todo instante, os noticiários, sem citar outras
parafernálias tecnológicas.
O movimento, a velocidade, a flexibilidade, a competitividade exigidos aos
indivíduos no enfrentamento de situações diversas cotidianas geram uma atmosfera de
permanente estresse, redundando no aparecimento de crescentes distúrbios
psicossomáticos.
Por quais caminhos chegamos a esse quadro atual? Bauman (1998, 2001, 2004,
2005) tece alguns conceitos interessantes, que podem nos auxiliar a montar um quadro
explicativo do que vivenciamos, quando fala da passagem da Modernidade para o que ele
denomina de Modernidade Líquida. Com seu conceito de Modernidade Líquida aponta
113
para a fluidez da relação do sujeito com o objeto40. Quando tomamos o outro como esse
objeto, ocorre um processo de intensa e constante transformação das formas e desenhos
corporais, conduzidos pelos ditames da cultura.
40
A lei do consumo nos dita que é preciso comprar, consumir, adquirir, fazendo de um objeto não presente do
cotidiano do sujeito algo indispensável. Elegemos os objetos, erotizamo-los e o trazemos para nosso corpo,
na busca de satisfazer o desejo.
114
41
Assim como Theodor Adorno e demais pensadores frankfurtianos, Bauman também vai dialogar com Freud
nas obras Mal estar da Pós-Modernidade e Mal-estar da Civilização, onde afirma o ser humano como ser
que se move no mundo a partir dos seus desejos, um ser desejante.
42
O autor utiliza o termo“liberdade” no sentido da autonomia, do projeto moderno do esclarecimento, da
suposta emancipação individual a partir do uso da razão e do cálculo instrumental.
115
antigos sólidos que moldavam a vida humana desde milênios. A modernidade almejava,
acima de tudo, o melhoramento, o progresso, a razão, com o projeto de formação de um
indivíduo autônomo e esclarecido, livre.
Em relação ao momento presente, este pode ser caracterizado como a era da
liquefação do projeto moderno, a modernidade líquida, afirma Bauman (1998). O momento
atual da modernidade é caracterizado justamente pela dissolução das forças ordenadoras
que permitiam ativamente reenraizar e reencaixar os antigos sólidos em novas formas
sociais modernas. Os padrões sociais de referência que balizavam a ordem social da
modernidade tornaram-se liquefeitos, a classe, o Estado-nação, a cidadania, juntamente
com a livre expansão global das forças de mercado e o retrocesso da veia totalitária da
ordem moderna libertaram os indivíduos de seus grilhões atados a uma ordem rígida e
racional-instrumental.
Na modernidade líquida os indivíduos não possuem mais padrões de referência,
nem códigos sociais e culturais que lhes possibilitem, ao mesmo tempo, construir sua vida
e se inserir dentro das condições de classe e cidadão. Chega-se, no entender de Bauman
(2001), à era da comparabilidade universal, onde os indivíduos não possuem mais lugares
pré-estabelecidos no mundo onde poderiam se situar, mas devem lutar livremente por sua
própria conta e risco para se inserirem numa sociedade cada vez mais seletiva econômica e
socialmente. No momento da modernidade líquida, os indivíduos foram justamente
“condenados” a serem livres.
A segurança da ordem social, dada na modernidade sólida, que poderia garantir
um “seguro coletivo contra os infortúnios individuais” se liquefez jogando aos indivíduos a
solitária responsabilidade pelos seus problemas. A insegurança em relação ao futuro
decorre justamente do fato de que o poder moderno não é mais público (voltado para
manutenção e segurança do mundo público), mas é privatizado, contingente e, para os
indivíduos, fugaz. Para Bauman (1998), é justamente da escassez de liberdade – resultado
do excesso de organização da vida civilizada – que resulta o mal-estar que marca a
modernidade.
Em benefício da segurança, o indivíduo sacrificou parte de sua liberdade
individual e a consequência disso foi a impossibilidade de se atingir a “felicidade plena”.
Essa é a conhecida justificativa proposta por Freud em 1930 e incansavelmente repetida
para justificar a infelicidade como o destino do homem civilizado.
116
43
O debate sobre a alternativa da pós-modernidade se travou em diferentes tradições filosóficas e é difícil
determinar com precisão quais autores se localizam na esteira desse movimento. Arrisco-me a indicar alguns,
com maior destaque para Lyotard (A condição pós-moderna, 1998), Deleuze e Gattarri, Giddens (As
consequências da modernidade, 1991), Jameson (Pós-modernismo) que enfatizam o pós-moderno como um
cenário que denota um mal-estar abrangendo vários contornos sociais. As questões do pós-moderno se
colocam como crítica e oposição às posturas epistemológicas do moderno para efeito desconstrutivo da
própria modernidade, indicando-a como palco extravagante das mazelas da sociedade industrial. O discurso
pós-moderno se tornou tema de debate que aglutinou a própria discussão da modernidade, tematizando os
deslocamentos das grandes narrativas, a descontinuidade e a fragmentação aparecem como escopo das
mudanças contemporâneas. Veiga- Neto (2004) (Foucault e a educação) bem percebe que “tem sido comum
caracterizar a pós-modernidade numa perspectiva de negação, isso é, pelo que ela não é, por aquilo que ela
não quer fazer”, complementando, que “assim, o pensamento pós-moderno opera uma mudança, uma
reversão, em relação às condições anteriores, próprias da Modernidade, tomada essa no plano histórico como
quase sinônimo de Iluminismo”. Então, como podemos dizer afirmativamente de nosso tempo? Destacamos a
problematização feita por Bauman (1998, 1999, 2001, 2004), que pensa a contemporaneidade em termos
líquidos, fluidos, provisórios, transitórios, incertos, duvidosos. É essa caracterização que adotaremos neste
trabalho.
118
Essa liberdade já está integrada com a angústia devido à perda de estrutura diante
das incertezas e do novo, oriunda das transformações sociais, políticas e econômicas,
ocorridas no mundo contemporâneo e que têm como marca a fragmentação da coletividade
e da segurança estabelecida a priori. A nossa atualidade se caracteriza, dentre outras
coisas, pela sensação de liberdade individual, tão almejada durante tanto tempo. São
tempos em que a própria noção de tempo tornou-se algo impreciso, efêmero em virtude da
velocidade dos acontecimentos e das inúmeras, senão infinitas, possibilidades que se
oferecem aos nossos olhos.
Nesse cenário, afirma Bauman (1998), a pós-modernidade oferta aos indivíduos
uma liberdade aparente à custa de um sentimento de insegurança generalizado e, dessa
forma, os mal-estares pós-modernos vão se caracterizando pela liberdade fluida, e não pela
opressão e repressão de outrora:
44
Bauman (2001) vai distinguir a modernidade em dois períodos: modernidade e pós-modernidade ou
modernidade sólida e modernidade líquida. Para Bauman (2001), a modernidade aqui é caracterizada como
princípio ordenador e individualizador, tendo a ordem racional como motor do projeto moderno. Tudo
deveria ser conhecido e categorizado, controlado e dominado pela ordem racional, conforme previa tal
projeto. Toda ambivalência, aquilo que era tido como incerto, duvidoso, indeterminado, deveria ser
eliminado. Se a modernidade sólida foi para Bauman (2001) uma tentativa de controle racional do mundo, a
modernidade líquida é o mundo do descontrole. A liquidez das relações, a aceleração do ritmo de vida, a
velocidade da tecnologia, a incerteza, a dúvida, o consumo, enquanto principal forma de construção da
individualidade, são elementos que, como produtos que se alternam nas propagandas, fazem com que o
indivíduo rompa com a fixidez, dando um ar de “liberdade plena e irrestrita”.
121
45
Voltaremos ao tema da experiência no capítulo 4, onde discutiremos a partir de Benjamin (1994a) as
possibilidades da experiência, uma vez que a mesma encontra-se em baixa na atualidade.
122
[...] os turistas que valem o que comem são os mestres supremos da arte
de misturar os sólidos e desprender o fixo. Antes e acima de tudo, eles
realizam a façanha de não pertencer ao lugar que podem estar visitando: é
deles o milagre de estar dentro e fora ao mesmo tempo. O Turista guarda
sua distância e veda a distância de se reduzir à proximidade. (BAUMAN,
Z., 1998 – p. 114)
Assim podemos afirmar que os indivíduos não são tão autores como supunha a
modernidade. É nesse sentido que Bauman (2001) se apropria do termo “consciência pós-
moderna” para se referir à consciência do fracasso da modernidade, afirmando que essa
mesma consciência se instala a partir de um mal-estar. Para o autor, esse mal-estar faz com
que o indivíduo desperte do sonho para o pesadelo. Ao sonho moderno da busca de uma
sociedade completamente ordenada, Bauman – e isso também está presenta na “Dialética
do esclarecimento” – demonstra-nos como essa ânsia acaba (re) produzindo seu oposto.
De acordo com a passagem retomada por Bauman de Adorno & Horkheimer
(1985), do capítulo O conceito do Esclarecimento, o que os homens modernos querem
aprender da natureza é como utilizá-la para dominá-la completamente e aos outros homens.
Nada mais importa. Qualquer estrutura que comprometa a ordem, “[...] a harmonia, o
plano, rejeitando assim um propósito e significado, é Natureza. E, sendo natureza, deve ser
tratada como tal. E é natureza porque é tratada assim” (BAUMAN, 1999, p. 48-49).
Uma leitura atenta indica que, de fato, há uma ríspida crítica à forma de vida
moderna e à sua cultura; entretanto, não se trata, porém, do abandono da modernidade,
mas, sim, de uma despedida de antigas ilusões de outrora (embora, à primeira vista, essa
citação pareça indicar o contrário). Subjacente a esse reconhecimento está a compreensão
baumaniana, já presente na própria Dialética do esclarecimento (1985), segundo a qual as
maiores atrocidades e os maiores crimes do século XX, o século que pode entrar para a
história como o século dos campos (BAUMAN, 1999), foram cometidos não só em nome
do domínio humano sobre a natureza, mas também sobre o senhorio total sobre a natureza
humana, suas necessidades, sonhos e desejos. Quando esse trabalho de domínio (da ordem)
se torna incontestável diante de outras considerações que não a mera instrumentalidade, os
seres humanos transformam-se eles próprios em natureza morta, em seres humanos
realmente supérfluos.
Nesse aspecto, irão convergir de forma surpreendente a leitura de Bauman com
aquela feita por Adorno a respeito da primazia da racionalidade instrumental na era
moderna (embora Adorno, com veremos, não deixe de pensar também em termos
psicanalíticos as questões que ele sabe que são, em um primeiro momento, sociais).
125
46
Estamos entendendo modos de subjetivação – ou processo de subjetivação – como um processo de
resultado de si, de produção de si.
126
cada vez mais e mais, pois esta é a performance que o sistema demanda de seus
consumidores.
Na linha de pensamento de Debord, Türcke (2010, p. 9), estudando a sociedade
excitada, traz um interessante elemento para refletirmos sobre a sociedade performática:
“Originalmente, sensação significou nada mais do que percepção. Nos dias atuais, entende-
se principalmente como sensação aquilo que, magneticamente, atrai a percepção: o
espetacular, o chamativo”. Turcke (2010) afirma que, a partir do momento em que vivemos
num contexto que nos exige determinadas formas de (a) parecer na cena espetacular, é
inevitável que diante da impossibilidade de participação nesse teatro espetacular, o (a)
parecer na cena social se torna questão de existência.
Nessa cultura de estetização do eu, o indivíduo tem seu valor atribuído pelo o que
aparenta ser, mediante as imagens produzidas para se apresentar na cena social e, dessa
forma, a exibição se transforma no lema essencial da existência – razão de seu ser. Este é o
cenário e o pano de fundo onde se desvelam os dramas individuais e coletivos
característicos de nosso tempo, onde os indivíduos posicionam-se de maneira peculiar no
espaço de sociabilidade, desenhando assim, um autorretrato de nossos dias.
Outro autor que nos auxilia a pensar na nova configuração das subjetividades na
contemporaneidade é Jurandir Freire Costa na obra “O vestígio e a aura: corpo e
consumismo na moral do espetáculo”. Costa (2004) afirma que, na contemporaneidade, a
dominação espetacular é plena sobre as subjetividades individuais e/ou coletivas, ao passo
que a tentativa de fuga desse contexto performático se revestirá das malhas finas do
próprio espetáculo, pois a cena espetacular cria a seu bel-prazer a realidade vivida em
nossa atualidade.
A mercadoria, uma vez exposta como um atributo excessivamente valorizado no
presente-relâmpago da cena social passa a ser um verdadeiro objeto de fetiche para os
consumidores, os quais idealizam o produto, conferindo-lhe características fantásticas e
ideais. Esse produto passa a representar simbolicamente um determinado indicador de
status no cenário espetacular, um verdadeiro passaporte para o rol da fama, onde o
indivíduo possa se reconhecer e ser reconhecido pelo outro social.
47
Lembremos que Narciso, o jovem e belo rapaz que despontava o interesse de todas as ninfas e competia em
sua beleza com os deuses, se apaixona por sua própria imagem no espelho d’ água. Sendo assim, ao tocar a
água em busca da imagem refletida, ela desaparecia. Como o jovem não podia ter aquela bela imagem,
apenas a contemplava, aparentemente e, posteriormente, definha, morre em seu desejo de possuí-la. Na
atualidade, constatamos que o comportamento narcisista é ressaltado na relação com o outro, consigo mesmo,
com a mercadoria, uma vez que a beleza plástica, em detrimento da beleza estética, é emoldurada conforme
os reclames do mercado. Conforme Adorno & Horkheimer (1985), citando o mito de Thântalo, a indústria do
entretenimento promete suprir todos os desejos individuais, mas não cumpre. Assim como Narciso, o
indivíduo moderno tem medo de envelhecer. Daí sua busca infindável pela aparência. Nessa busca, ele sofre,
nega sua própria identidade, se insurge contra as dores e os sofrimentos.
128
quanto para subjugar o desejo outro em face de seu próprio desejo de origem narcísica,
afirma Costa (2004). Numa sociedade narcisista como a que vivemos, as diferenças são
sempre intragáveis, o indivíduo ao engrandecer à custa do outro, acaba por atropelar e
desconsiderar a subjetividade outra, não podendo reconhecer e assimilar qualquer indício
de alteridade, o que poderia pôr em risco seu próprio narcisismo. Entretanto, nessa relação,
se mostra evidente a total dependência do narcisista com relação ao outro, fato
aparentemente contraditório, porém explicativo da essência de toda performance do
indivíduo com vistas a preservar seu narcisismo avassalador.
No espetáculo, a imagem é tudo. Assim, a cultura espetacular da atualidade,
regida pela estetização do eu, o qual transparece e se evidencia nas performances
subjetivas das individualidades, é o produto e sintoma da sociedade espetacular. Nesse
trâmite performático vivenciado pelos indivíduos, o espaço social enquanto locus de trocas
intersubjetivas fica empobrecido, um vazio se abre no entremeio das relações, pois a
cultura narcisista e individualista não é capaz de tolerar o outro, o diferente.
Por meio de uma busca desenfreada à perfeição estética, observa Costa (2004),
temos as bases das configurações psicopatológicas de ordem narcísica na atualidade, em
que a imagem perfeita segundo os padrões sociais e midiáticos é perseguida
obsessivamente pelos indivíduos, acarretando empreendimentos neuróticos com relação ao
próprio corpo, implicando na existência das variadas formas de bulimias e anorexias, para
citar alguns exemplos, estas se manifestando como a forma mais extrema de uma tentativa
subjetiva para se inscrever nos trâmites espetaculares. Toda a pressão do discurso social e
midiático acaba excluindo a maioria dos indivíduos, uma vez que poucos são capazes de
acompanhar os ideais da sociedade do consumo.
48
Em “A cultura do narcisismo” Lasch (1979) utiliza o conceito psicanalítico de narcisismo para
compreender o impacto psicológico no indivíduo, das mudanças sociais. O narcisismo, segundo o autor, seria
uma defesa contra as tensões da vida moderna. O autor questiona alguns aspectos da vida psíquica dos
sujeitos de sua época, tais como, a dificuldade de desenvolvimento pessoal, o medo de envelhecer, a
instabilidade das relações pessoais, dentre outros. Nascem assim, os homens narcisistas de nosso tempo,
caracterizados pela superficialidade emocional, medo da intimidade, hipocondria, pseudoautopercepção,
promiscuidade sexual, horror à velhice e à morte. A incessante busca de prazer do homem contemporâneo,
segundo Lasch, torna-se uma obsessão, seguida de queixas de vazio interior. No mesmo sentido tomado por
Debord, o autor aponta a realidade cotidiana, tornando insuportáveis o fracasso e a perda.
49
Em “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna”, texto de 1908, Freud reflete sobre o antagonismo
que já reconhece entre civilização e vida pulsional, ou ainda, sobre a distância que separa os interesses dos
indivíduos e os do agrupamento social, já delineando para a renúncia que o último exige dos primeiros,
responsável por aquilo que caracterizou como doença nervosa moderna. Nesse texto, Freud continua
refletindo sobre as exigências que a civilização impõe, prazeres e ânsias materiais, o que gera pressa e
agitação, rouba sono, o que propicia nervos exauridos, que se refugiam em prazeres ditos intensos, em
detrimento muitas vezes da própria ética e ideais. Já em 1913, em “Totem e tabu”, discorrendo sobre as tribos
nativas, Freud aponta novamente a importância da renúncia dos instintos, , que propicia limites severos e
rigorosos os quais estão na base da constituição da vida social. Mais uma vez Freud enfatiza a íntima ligação
131
solução, de modo que se torna essencial uma constante vigilância sobre ambos para que o
conflito seja levado a bom termo. Desse ponto de vista, constatamos que Freud lança o
homem a uma eterna prisão de onde nunca poderá se libertar da condição de desamparo
vivida inicialmente e, segundo consta, por toda a sua existência.
existente entre a constituição do social na estrutura individual psíquica. Posteriormente, em 1915, logo após
a eclosão da Primeira Grande Guerra, Freud escreve “Reflexões para os tempos de guerra e morte”, onde se
atém a pensar de maneira bastante pessimista sobre as possibilidades de sustentação das conquistas morais da
civilização. Nesse texto, Freud trata da desilusão que acarreta a destruição da guerra, em que o princípio da
civilização se perde, os seres humanos se tornam desorientados. Sem leis, os instintos são livres e se
apresentam numa condição primitiva, sem quaisquer restrições. Em 1927, em “O futuro de uma ilusão”,
Freud deposita sua crença nos progressos da razão, preconizando a superação de toda forma infantil e
supersticiosa de compreensão da realidade por outra adulta e racional. Nesse conjunto de obras, Freud (1997,
p. 16) tenta responder “por que todo indivíduo é inimigo da civilização”. Mas é em “O mal-estar na
civilização”, texto de 1930, que Freud se demonstra mais pessimista com relação aos poderes da razão na
condução de uma sociedade justa. O trabalho psicanalítico nos mostrou, afirma Freud (1997), que as
frustrações advindas da restrição sexual, satisfação que nunca é completa, são o que o neurótico não tolera e,
por isso, busca satisfações substitutivas, o que lhe causa dificuldades na vida.
132
angústia. Não existe mais uma forma delimitadora ou até mesmo uma tendência a ser
seguida. Segundo Birman (2009), a situação de mobilidade de limites é o que propicia a
sensação de desamparo. Na problemática aqui ressaltada, concordamos com Birman (2009)
que a limitação existente para o gozo individual torna-se estabelecida pelo gozo do outro.
E, nessa medida, a questão que desorienta o sujeito é o quanto se deve ceder em seu gozo.
A resposta do autor é que, nessa perspectiva, o indivíduo não possui mais à sua disposição
uma medida exata das coisas, não há, assim, qualquer resposta segura.
A subjetividade é lançada a um estado de desamparo em que não existe um
refúgio seguro, ou seja, está fadada a vagar sem rumo por um vasto campo aberto. Nessa
dinâmica subjetiva das individualidades, onde o outro é sempre desconsiderado em seus
desejos, são as relações que acabam empobrecidas, sendo lançadas as sementes do “mal-
estar” nas práticas de sociabilidade dos indivíduos na coletividade. Os indivíduos que
padecem desses mal-estares acabam sendo estigmatizados como culpados pelo insucesso
na vida social, fruto de seus sofrimentos.
Desse modo, sofrer, na atualidade, é sinônimo de vergonha, sofrendo-se duas
vezes, ou seja, pelas próprias condições subjetivas individuais inerentes a cada sujeito e
pelo peso da culpa de se encontrar em tal situação. Assim, desconsidera-se a dimensão
simbólica e subjetiva das formas de mal-estar atuais numa sociedade espetacular que não
propicia o tempo subjetivo da experiência. Parece-nos que a dinâmica do mal-estar
vivenciado pelo professor na escola inclui essa lógica de negação da dimensão simbólica e
subjetiva, impedindo o docente de re-significar o que lhe aflige.
Nesse ponto da discussão, Birman (2009) conclui que o resultado último do
projeto da modernidade se afirma no desamparo das subjetividades. Atribui ao homem o
juízo do que seja pertinente ou não dentro da relação com o outro. Assim, cabe ao
indivíduo avaliar o quanto se deve permitir o gozo próprio e do outro. Tal tarefa, segundo o
autor, se mostra inexecutável por não existir um parâmetro para mediá-la, uma vez que
foram quebrados os valores e as tradições.
Incrementa-se muito, dessa maneira, o potencial de incerteza do sujeito,
já que este passa a ser exposto a maiores opções e escolhas. A
insegurança e a angústia se multiplicam, como consequência. Estas se
transformam em sua qualidade, assumindo novas formas anteriormente
inexistentes, além de seu aumento qualitativo. Em função disso, o
desamparo do sujeito se incrementa bastante, revelando-se o tempo todo
como uma ferida exposta e sangrenta. Enfim, o sujeito passa a se
inscrever num mundo que lhe abre muitas possibilidades, mas que
também lhe aponta muitas impossibilidades existenciais. (BIRMAN,
2009, p. 79)
133
Uma das maneiras de interpretar a citação acima é que, sob o desamparo, o sujeito
é perpassado por intensidades pulsionais em excesso, sendo obrigado a dar conta de
encontrar objetos que possibilitem a satisfação das pulsões, por um lado, e nomear esse
excesso de pulsão, por outro. É a incapacidade de lidar com a intensidade e o excessivo
pulsional, dirá Birman (2009), que gera o mal-estar.
Desse modo, o sujeito vive constantemente o dilema de pertencer e ser
reconhecido pela sociedade, ao mesmo tempo em que luta para não perder sua identidade.
Assim, uma relação do sujeito com o social é estabelecida, mas a mesma é, em sua
essência, contraditória e conflitante. Numa sociedade na qual o reconhecimento é parcial e
momentâneo, independente dos esforços que se faça, e o desprezo e a anulação dos
“estranhos”50 se concretiza, é sempre o sujeito quem sai perdendo algo.
Desse modo, na cena espetacular, onde a possibilidade de reconhecimento só se
faz por meio da estetização da imagem e da aparência, os sujeitos são conduzidos a
modelos de existência cada vez mais individualistas.
50
Podemos compreender que estes “estranhos”, produzidos no âmago das condições sociais, representam
uma parcela de fracassados e incapazes. Ao mesmo tempo em que sua existência é pré-condição para a
possibilidade de existência das elites, esses excluídos são identificados pelos signos do fracasso social. São,
por assim dizer, a vergonha do ideal de sucesso espetacular, estes que devem ser escondidos do Palco social,
é uma presença ameaçadora, representantes-símbolo da miséria e da falta de sorte (DEBORD, 1997).
Bauman (1998) se dedica no item “A criação e a anulação dos estranhos” a refletir sobre aqueles que estão
“fora” das relações espetaculares, identificados como inimigos da sociedade. Nas palavras do autor: “se os
estranhos são pessoas que não se encaixam nos mapas cognitivos, moral ou estético do mundo [...] se eles
poluem a alegria com a angústia, ao mesmo tempo em que fazem atraente o fruto proibido, se, em outras
palavras, eles obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas; se tendo
feito tudo isso geram a incerteza, que por sua vez dá origem ao mal-estar de se sentir perdido – então cada
sociedade produz esses estranhos [...] ela não pode senão gerar pessoas que encobrem limites julgados
fundamentais para sua vida ordeira e significativa, sendo assim acusadas de causar a experiência do mal-estar
como a mais dolorosa e menos tolerável” (BAUMAN, 1998, p. 27). No texto “O estranho”, de 1919, Freud
afirma que o encontro com o outro que é diferente provoca desconforto e o desejo de mantê-lo distante, pois
há sempre o risco de ser amado ou odiado, há um perigo iminente para o narcisismo de cada um, assim como
também há o risco do encontro com o que há de mais estranho em nós mesmos, “que remete ao que é
conhecido, de velho e há muito familiar” (FREUD, 1919, p. 238). Nesse texto, Freud vai mais longe, analisa
os estranhamentos entre os indivíduos como aspectos inconscientes que emergem e que estão além da
compreensão intelectual.
134
51
Pensando na moda, as marcas traduzem-se em estereótipos que negam a própria individualidade, ou seja, a
marca substitui o indivíduo, descaracteriza-o. No corpo não aparece mais as características do indivíduo, mas
o do produto, a da marca que dita o que ele é.
136
contexto. Repensar esse lugar pressupõe adentrar nas bases políticas em que está assentada
a escola contemporânea, pressupõe destituir-se de um ideal de escola pronta, acabada, para
deixar entreaberto o estranho, o inusitado, o incongruente. Além disso, pressupõe também
que o professor assuma a sua condição de sujeito do desejo e sustente seu lugar e posição
no cenário educativo contemporâneo, levando em consideração que o mal-estar vivenciado
por ele é parte integrante de sua subjetividade, podendo (re) significá-lo, por meio da
crítica, naquilo que acontece na escola e fora dela.
A proposta aqui é destacar essa forma de enfraquecimento da subjetividade52
posta pelo fracasso do projeto moderno de formação cultural, discutindo a crítica
frankfurtiana em relação a essa perda ou empobrecimento da experiência na escola.
52
Referindo-se ao sujeito tradicionalmente entendido a partir da modernidade, Ghiraldelli Júnior (2000, p. 24)
afirma que “ [...] a subjetividade pode ser descrita por meio de ‘formas da consciência’: o eu, a pessoa, o
cidadão e o sujeito epistemológico. O eu é a identidade, formada das vivências psíquicas; é a forma de
conhecimento singular [...] A pessoa é a consciência moral [...] O cidadão é a consciência política [...] O
sujeito epistemológico é a consciência intelectual [...] A subjetividade assim composta [...] é a instância da
qual o homem (empírico ou abstratamente genérico) deve participar. Se conseguir isso, autenticamente,
torna-se o sujeito – ‘aquele que é consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos’ [...]”. A
partir dessa afirmação podemos conceber o sujeito como aquele de características múltiplas e, nesse sentido,
possuidor de certo traço de autonomia em relação às influências que recebe. Como ponto de partida para a
discussão temos a proposta de Descartes. Para o filósofo, o que está em jogo é a busca da certeza pautada na
evidência para o alcance da “verdade” já que o conhecimento das ciências é considerado potencialmente
falso, ou seja, não corresponde a uma realidade absoluta uma vez que muito do que afirma se baseia nas
informações oferecidas pelos sentidos, o que não seria uma fonte segura para tal, por exemplo. Explica-se
dessa forma, a busca de um patamar epistemológico básico a partir do qual todos os outros conhecimentos
seriam derivados, com a insígnia de conhecimento seguro e localizado então na instância da subjetividade.
Partindo da desconfiança sobre os sentidos e expandindo pelas demais experiências e certezas humanas, a
saída encontrada pelo autor é a dúvida metódica que consiste no processo de duvidar de tudo. O resultado
acima levou à formulação do cogito ergo sum – penso, logo existo – como primeira verdade indubitável, uma
intuição racional. Assim, vai tomando forma o sujeito do conhecimento em um longo debate que marca a
história da filosofia, permitindo a configuração de um campo específico, a Epistemologia - delineada a partir
da volta do sujeito sobre si mesmo, num esforço de se perguntar do alcance, validade e possibilidade das suas
próprias capacidades de conhecer alguma coisa. As coisas sensíveis passam a ser geradas não pela ‘forma’
potencialmente preexistente num mundo das ideias, mas sim forjadas no conhecimento construtor do próprio
homem. Mas os duros golpes à subjetividade em nossa época gerou uma série de consequências que apontam
para uma quebra de centralidade do homem frente ao mundo. A subjetividade moderna, amparada pelos
conceitos de autoformação, esclarecimento, foi sendo desconsiderada ao longo do processo civilizatório. A
civilização se outorga a responsabilidade de manter patente a não diferença, a igualdade do mesmo, aponta o
outro como incivilizado, não ser, e a si mesmo como referência. Observamos a formação de uma identidade
frágil, sustentada não pelos laços e vínculos que poderiam surgir como fonte de construção de novas formas
de ser, mas sim, pautada pelo isolamento e enfraquecimento da própria noção de eu. Sobre a dúvida do que se
é, surge o vazio, o nada.
140
53
Chauí (2004) afirma que, em Aristóteles, a experiência garante os princípios pertencentes às ciências, por
isso cumpre observar os fenômenos e ver o que são com o fim de proceder depois às demonstrações. Aqui, a
experiência é entendida como apreensão do singular, o universal pertence à ciência. A experiência emerge da
memória de repetidas percepções sensoriais. Dito de outro modo, a experiência significa a confirmação dos
juízos sobre a realidade por meio de uma verificação sensível. Na qualidade de fonte universal, ela é sempre
141
um conhecimento singular, enquanto a arte e, sobretudo, a ciência, são conhecimentos universais, afirma
Chauí (2004). O universal está pressuposto no singular para depois ser captado pela alma no ato perceptivo.
142
54
Benjamin (1994a) não quer, portanto, nem evocar o sujeito que se dissolveu e nem retornar à comunidade
tradicional que se perdeu. Aliás, no texto “Experiência e pobreza”, Benjamin (1994a) saúda a perda da
tradição como possibilidade para o surgimento de algo novo: “Ela o impele a partir para frente, a começar de
novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda”.
Segundo Benjamin (1994a), isso caracterizaria uma espécie de barbárie positiva, isto é, a possibilidade de um
novo começo sem as limitações impostas pelo depauperamento da experiência.
143
Tiburi (2003) afirma que, com a modernidade, uma nova concepção do tempo passa
a se impor diante dos ritmos da natureza e dos ciclos característicos de uma vida marcada
pelo trabalho artesanal e coletivo.
tesouro, porém não encontram nada. No próximo outono, as vinhas produzem mais do que
qualquer outra da região e os filhos reconhecem que a riqueza não provém de nenhum
tesouro, mas sim da experiência que o velho pai lhes transmitiu. O pai transmite aos filhos
o que eles constataram com o passar do tempo através da lição da experiência. Dito de
outro modo, a felicidade é fruto do trabalho e do tempo. Benjamim (1994a) ressalta que era
a transmissão da experiência que conferia autoridade aos mais velhos.
Gagnebin (2004, p. 66) afirma que a experiência para Benjamin “se inscreve
numa temporalidade comum a várias gerações. Ela supõe, portanto, uma tradição
compartilhada e retomada na continuidade de uma palavra transmitida de pai a filho”.
A experiência coletiva (Erfahrung) é concebida por Benjamim como uma experiência
aberta que se aproxima mais da alegoria por suscitar muitas leituras e inúmeros
significados sobre ela. Graças a ela, o passado, o presente e o futuro poderão ser
movimentados através da rememoração de tais experiências.
As narrativas, os provérbios, as histórias cingiam o tempo de viver, de contar, de
narrar, de ver, de transmitir e ouvir. A parábola citada no ensaio “Experiência e pobreza” é
contada por Benjamin (1994a) para esclarecer, inicialmente, o que é uma experiência, pois
foi somente após a boa colheita da uva, resultado da terra mexida, que os filhos
entenderam o que o pai lhes havia transmitido. A própria relação do indivíduo com o
tempo é elemento de reflexão em Benjamin.
Percebendo que as ações da experiência estão em declínio, Benjamin (1994a)
questiona:
O que foi feito de tudo isso? Quem ainda encontra pessoas que saibam
contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem
hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de
geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno?
Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?
(BENJAMIN, 1994a, p. 114).
Num mundo completamente marcado pela barbárie das guerras mundiais, dos
massacres em massa, da instrumentalização da vida, onde o “minúsculo e frágil corpo
humano” se depara com toda a ostentação dos aparatos bélicos da guerra tecnológica, a
experiência perde seu significado. Segundo Benjamin (1994a), as catástrofes geradas pela
guerra extrapolam os campos de batalha, nos termos de mutilações permanentes, miséria,
violência, doenças psíquicas, desintegração dos laços familiares. Os horrores da Primeira
146
Guerra Mundial se prolongaram da terra aos mares, aos oceanos e ao céu utilizando-se de
técnicas sofisticadas de destruição de massas.
55
James Ensor (1860-1949) artista belga, de origem inglesa, gravador, compositor, pintor e escritor. É
identificado como uma espécie de pintor visionário da modernidade. Em suas pinturas, chama a atenção o
elemento grotesco, a caricatura e a satirização dos costumes. Disponível em:
<http://www.universal.pt_enc.php>. Acesso em: 04 out. 2012.
147
Se, como diz o autor, a experiência é entendida como o elo que nos vincula ao
passado e a tudo que pertence a ele enquanto patrimônio histórico e cultural e nos
encontramos expropriados dessa experiência que nos foi “hipócrita ou sorrateiramente
subtraída”, resta-nos assumir essa pobreza, que não é mais privada e sim de toda a
humanidade. No entanto, assumir esse empobrecimento da experiência não significa que os
homens aspirem a novas experiências:
56
Paul Karl Wilhelm Scheerbart (1863-1915) foi um escritor alemão, autor de literatura e desenhos de corte
fantástico. A sua obra mais conhecida é o ensaio Arquitetura de cristal (Glasarchitektur, 1914), que influiu
na arquitetura expressionista. Nessa obra atacou o funcionalismo pela sua falta de sentido artístico e defendeu
a substituição do tijolo pelo cristal. Disponível em: <http://www.universal.pt_enc.php>. Acesso em: 04 out.
2012.
57
Adolf Loos foi um notável arquiteto, nascido a 10 de dezembro de 1870, na República Checa, tendo
exercido durante largos anos a sua profissão na Áustria, onde morreu, em Kalksburg (hoje pertencente
a Viena), no dia 23 de agosto de 1933. Dentre seus trabalhos, destaca-se o projeto para o Chicago Tribune,
realizado em 1922, quando trabalhava com Louis Sullivan, que consiste numa enorme coluna dórica assente
sobre uma base cúbica. Foi precursor do Raumplan, o desenvolvimento da planta em diferentes cotas.
Através das variações de altura das divisões, bem como das proporções adotadas e das mudanças de
materiais, é estabelecida uma hierarquia entre os diversos espaços; criam-se zonas dentro da casa, definindo
também graus de intimidade de cada divisão. Disponível em: <http://www.universal.pt_enc.php>. Acesso
em: 04 out. 2012.
148
Esses fatos evidenciam que o camponês passou toda a sua vida em contato com a
terra, dela subtraindo seu sustento, assim como construiu pelo trabalho uma experiência.
150
Experiência essa compartilhada com seu aprendiz que, pela transmissão oral, recebe um
saber, uma tradição. A relação homem-terra-trabalho permite à comunidade guardar sua
tradição. Do mesmo modo, o marinheiro comerciante, de suas longas viagens, traz novas
experiências, novas tradições, novas comunicações, novas lições. É uma oportunidade de
comparação entre o antigo e o novo. É uma relação, afirma Benjamin (1994b), que
possibilita ao narrador compreender seu papel na história.
Quando Benjamin (1994b) postula que a arte de narrar está em declínio, seu
argumento se baseia na experiência cotidiana. Segundo ele, a velocidade da informação,
aliada a um capitalismo ascendente transformou por completo o que então tomávamos por
tradição e abala a experiência (Erfahrung) do homem. Opondo-se radicalmente à narração,
a literatura de informação aspira a um consumo imediato, uma verificação imediata. Assim
como no romance, a informação tem na imprensa a condição básica de sua ascensão. No
lugar da valorização de um saber proveniente de terras ou tempos longínquos, tal como
valorizava os indivíduos da tradição, os indivíduos da modernidade se reduzem a se apegar
ao imediato, ao passageiro e sem vínculos com o outro que está próximo.
Ainda que a avalanche de informações não cesse todos os dias, a perplexidade e a
surpresa são cada dia menos ressaltadas ao nosso campo perceptivo. O motivo disso reside
no fato de que para cada notícia tem-se, imediatamente, a exploração da explicação. Logo
após a foto, a legenda explicativa. O mundo da informação é acompanhado de explicações,
algo que não acontecia com a narração oral. Ela sempre evitou explicações. Na narração
oral, ressalta Gagnebin (1994), o importante é o exercício da subjetividade por parte do
ouvinte. Ao transmitir o extraordinário e o miraculoso, a narração não tenta impor o
contexto psicológico ao leitor, dessa forma, o episódio narrado alcança uma amplitude que
não existe na informação.
A técnica transforma não apenas o mundo, mas também o homem. A narração
oral possui uma lógica particular, seu conhecimento não pode ser aceito pelo pensamento
moderno, que vive de resultados imediatos e instrumentais. A linguagem precisa de tempo
para adquirir significado. Com o advento da imprensa ocorre uma produção contínua de
informações. A informação divulgada no jornal exige pouco do leitor. Ao abrir o jornal a
cada manhã, seja na mesa do café da manhã ou no escritório, o único esforço do leitor é
adequar seu estado psicológico ao que lhe é noticiado pelo jornal.
Esse elemento prévio da informação que é sustentada pela verificação imediata
põe a modernidade sob o signo da abreviação. Assim, uma abreviação necessita ser
151
desse contexto modificado, ser como o sábio de antigamente. Mesmo com o declínio da
experiência que aí predomina, o desafio será encontrar condições para narrar os restos e os
cacos. Enfim, o que foi esquecido pelos relatos da história oficial. Não se trata, portanto, de
restaurar o passado, mas de nele buscar o que foi perdido.
Uma problemática que a modernidade nos apresenta, de acordo com a autora, é a
perda da autoridade na hora de contar uma experiência. Essa autoridade, conforme vimos
no texto “Experiência e pobreza”, não é privilégio de quem possui um conhecimento
formal destacado. Essa autoridade só é possível para aquele que experiencia sua história
através da rememoração do passado, em consonância com o presente e com o futuro. É
essa condição que deixou de existir na modernidade.
Gagnebin (1994) resgata o poema de Brecht, citado por Benjamin, intitulado
“Apague os rastros”, para enriquecer sua análise sobre o conceito de narração.
Abaixo, transcrevemos a primeira e última estrofes do poema:
Esse poema58 é exemplar, segundo Gagnebin (1994, p. 70), pois “descreve na sua
crueldade as condições de vida anônima da maioria dos habitantes de grandes cidades,
denunciando, simultaneamente, os bastidores de um palco no qual se poderia ainda encarar
o espetáculo ingênuo da doçura de viver (espetáculo burguês, segundo Brecht)”.
Percebemos que esse poema abre as cortinas e mostra o palco onde a modernidade
se apresenta. Nele, não há espaço para a experiência, para a linguagem, para a memória,
58
O poema completo pode ser conferido no livro “História e narração em Walter Benjamin”. A autora ainda
cita a obra original de Brecht, de onde o poema é extraído (GAGNEBIN, 1994, p. 69). BRECHET, B. “Aus
einem Lesebuch für Städtebewohner”, Ges. Werke, Surkamp, vol. 8, pp 267-268. Trad. brasileira Paulo Cesar
Souza, em Brechet, Poemas, São Paulo, Brasiliense, 1986.
153
para a história, portanto, não há mais narrativas. Gagnebin (1994, p. 70) chama a atenção
para o último verso, pois ele indica “cronicamente, que a única experiência que pode ser
ensinada hoje é a da sua própria impossibilidade, da interdição, da partilha, da proibição da
memória e dos rastros até na ausência de túmulo”. Esse pequeno fragmento revela um
sentimento e um comportamento comum na modernidade: individualista, revelador de um
desejo burguês de deixar rastros através do ter, da materialidade, dos objetos, de vivências
e não de uma vida marcada por experiências relembradas graças às narrativas.
Mas é no ensaio “Sobre alguns temas em Baudelaire”, que Benjamin apresenta de
maneira mais clara a distinção fundamental entre experiência (Erfahrung) e a vivência
(Erlebnis). O filósofo busca demonstrar de que maneira a vivência (Erlebnis) se tornou na
modernidade o único tipo de experiência possível. Benjamin evoca, a partir da lírica de
Baudelaire, um conjunto de elementos e conceitos que se vinculam diretamente ao da
experiência. O tempo, o trauma, a arte, a alegoria, a memória, a tradição, a vivência do
choque na metrópole moderna são faces que caracterizam a discussão acerca da
experiência.
As intensas excitações recebidas produzem um choque traumático no indivíduo. É
sobre esse choque que nos fala Benjamin no ensaio sobre Baudelaire59.
60
A experiência contemporânea torna-se esvaziada da sabedoria aclamada por Benjamim, passando a ter uma
nova configuração: sua primazia é o instante, a excitação que toma o lugar da experiência. A fugacidade
desse novo patamar da experiência pode ser observada no cerne daquele que assume o papel de protagonista
da “narração” no capitalismo: o mercado. O que resulta desse maculoso condensado no qual “cada imagem,
cada som luta pelo seu próprio”, de forma que imagens e sons se sucedem uns aos outros cada vez mais
rápido e violentamente, é que tal velocidade que tange as relações dos indivíduos com as narrativas e as
relações humanas passam a sustentar-se sobre a seguinte máxima: “Mesmo em todas as formas de interação
humana vale o seguinte: quem não chama a atenção constantemente para si, quem não causa uma sensação
corre o risco de não ser percebido”. Como salienta Türcke (2010, p. 20): “Ou seja, de tudo que não está em
condições de causar uma sensação tende a desaparecer sob o fluxo de informações, praticamente não sendo
155
Benjamin afirma que o choque é onipresente. O citadino age de uma forma muito
semelhante ao do tipo esgrimista61. Na exposição aos choques da multidão, ele atua com
traços marciais livrando-se deles e produz um novo tipo de percepção voltada para o
idêntico. O citadino age na interpelação do choque, sua elaboração e sua neutralização e,
dessa forma, se opõe à sensibilidade tradicional que antes se defendia por meio da
consciência, a qual tinha a possibilidade de evocar experiências sedimentadas em seu
próprio passado e também na tradição coletiva. Destituído de memória para lidar com a
hiperexposição aos choques, o indivíduo moderno se firma como um autômato e, ao
mesmo tempo, mantém-se atento aos perigos próprios dos grandes centros urbanos. Para
compreender esse empobrecimento da memória62 sob as condições da vivência do choque,
Benjamin se utiliza da oposição entre memória e consciência estabelecida por Freud em
“Além do princípio do prazer”.
Conforme mostra Benjamin, a consciência tem funções opostas às da memória em
relação à preservação de vestígios mnemônicos. Sua principal função não é manter os
estímulos exteriores, mas apenas recebê-los e transmiti-los a outros sistemas psíquicos
capazes de armazenar vestígios dos estímulos recebidos do mundo externo. A função do
consciente não é, portanto, conservar vestígios de impressões. O consciente tem outra
função, que é a de agir na proteção contra os traumas que os estímulos externos poderiam
causar ao inconsciente. A maior parte dos estímulos é aparada pelo consciente, deixando
passar apenas uma pequena parte que se deposita no inconsciente.
Os choques externos exigem, desse modo, um treinamento do sistema psíquico a
fim de diminuir a intensidade dos traumas que os estímulos produzidos por eles poderiam
causar ao inconsciente. De acordo com Benjamin (1989), quanto maior o treinamento do
consciente em aparar os choques vindos do mundo externo, tanto menor a probabilidade de
que algum estímulo atravesse essa proteção e se deposite na memória.
O fato de o choque ser assim amortecido aparado pelo consciente
emprestaria ao evento que o provoca o caráter de experiência vivida em
sentido restrito. E, incorporando imediatamente este evento ao acervo das
lembranças conscientes, o tornaria estéril para a experiência poética
(BENJAMIN, 1989, p. 110).
mais percebido, então isso quer dizer, inversamente, que o rumo vai na direção de que apenas o que causa
uma sensação é percebido”.
61
Segundo Gagnebin (1994), Benjamin, no texto “A modernidade” (1938), localiza no tipo esgrimista, dentre
os rastreados pelo filósofo no cenário urbano francês do século XIX, os aspectos dessa “cultura do choque”.
62
Benjamin, em “Alguns temas sobre Baudelaire”, diferencia memória de recordação. Para o filósofo, a
memória conserva, preserva; a lembrança apaga, destrói. Essa última é o elemento importante para se pensar
a experiência do século XIX, uma experiência marcada pela fragilização da memória, do tempo, da tradição.
156
63
Proust, que parte “Em busca do tempo perdido”, de acordo com Benjamin, determina dois tipos de memória
qualitativamente opostos: a memória voluntária e a memória involuntária. Por memória voluntária, Proust
entende toda sorte de vivências passadas que poderiam ser acessadas arbitrariamente pelo intelecto. Desse
modo, a memória voluntária se relaciona mais com uma capacidade de desagregação do que propriamente de
conservação. Assim, a memória voluntária apresenta-se de forma limitada, restrita, sujeita “aos apelos da
atenção. As informações sobre o passado, por ela transmitidas, não guardam nenhum traço dele”
(BENJAMIN, p. 106). De outro lado, a memória involuntária indica o domínio da sensibilidade sobre o
intelecto. A memória involuntária está mergulhada no estético. Ela presentifica um tempo que a memória
voluntária, espontânea, não foi capaz de apreender, o tempo da rememoração, o qual não se reduz à mera
consecução dos segundos, que não se mede pelos ponteiros do relógio, mas sim, aquele através do qual a
verdadeira experiência se desdobra. Fica explícito no texto benjaminiano que a memória involuntária
reintegra o indivíduo a uma experiência mais próxima da verdadeira. Ela lança o indivíduo a uma outra
dimensão espaço-temporal, ampla e indeterminada, espaço e tempo onde a tradição pode ser contemplada.
157
64
É nesse contexto que reside nossa principal investigação de pesquisa, qual seja, compreender como o mal-
estar docente pode ser decorrente do processo de expropriação da experiência no tempo presente. Num tempo
marcado pela pressa, pelo agir instrumental, pelo movimento constante do aparar os choques dos estímulos
externos, pelo insensível, como pensar a experiência na educação escolar? Aqui o pensamento de Benjamin
sobre o empobrecimento da experiência reforça nossa reflexão de que a escola poderia ainda ser um local de
resistência e inconformismo, principalmente numa cultura marcada pela pressa, pela rapidez, pelo pensar
instrumental.
158
Mitrovitch (2011) nos permite afirmar que Benjamin não está disposto a relegar
ao homem a categoria de autômato. As indicações dadas pela autora apontam a
necessidade de forjar outra relação com o passado. Isso implica em rever a relação da
modernidade com o tempo, com a memória, com a história, com a experiência, com a arte.
A degradação da experiência corresponde também à redução da participação do
indivíduo na produção da arte. Claro, Benjamin não faz a defesa de um esteticismo
desmesurado, mas do estético como a dimensão através da qual nasce a arte, no seu sentido
reflexivo. Na era moderna, portanto, a técnica se sobrepõe à criação artística. No ensaio
sobre Baudelaire, afirma Mitrovitch (2011), Benjamin revisita essa discussão, aproveitando
esse aspecto para refletir ainda mais sobre a crise da percepção que caracterizaria, segundo
ele, a experiência na modernidade.
A arte moderna, dirá Benjamin (1996), embotou o olhar, por conseguinte, perdeu
a capacidade de ver. Isso se anuncia, de modo mais drástico, no surgimento das novas
linguagens artísticas, como a fotografia e o cinema. Os dispositivos próprios de geração
desse tipo de arte demonstram a atrofia da experiência no desenvolvimento do próprio
artefato. Esse fenômeno Benjamin (1996) atribui ao desaparecimento da aura nas
sociedades modernas. A aura é, como Benjamin (1996) afirma em seu ensaio “A obra de
arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, uma experiência cultural. Desse modo, a aura
da obra de arte está por isso condicionada à sua vinculação com a tradição. Isso explica
porque Benjamin é pessimista com relação à produção da arte na era moderna. Para o
filósofo, a arte moderna é uma arte não auratizada, ela se sustenta na técnica e não como
obra a serviço da vida social, sob a forma de culto.
Essa transformação da percepção para com o elemento artístico remete ao
primado de uma atitude cognitiva que procura se sobrepor aos conteúdos do sensível, ou
seja, remete às experiências que ultrapassariam e sobredeterminariam o conhecimento, a
160
razão discursiva. O estético, afirma Benjamin (1996), ritualiza o pensamento, dá a ele uma
aura. Ele é um estado que cria uma disposição temporal diversa do tempo da máquina e da
indústria, que amplifica, que redimensiona o real, os indivíduos, os objetos, o
conhecimento, a experiência.
Segundo Benjamin (1996), o estético é uma inflexão por intermédio da qual o
objeto de arte é criado, concebido, produzido. A obra, nesse sentido, há de ser uma
reflexão de um corpo que acolhe, recebe o mundo. Na visão benjaminiana, a obra de arte
resulta de um gesto humano, sendo, por isso, expressiva, orgânica, vivente. A obra de arte
deve, por isso, impulsionar a tensão: olhar a coisa, ser olhado pela coisa.
Os objetos petrificados e inertes, como aqueles que podemos observar dispersos
ao chão na gravura Melancolia I, de Albert Dürer, podem ser verificados na modernidade
com o processo de reificação da consciência ocasionado pela sociedade capitalista e seu
modo de produção. No entanto, esse patrimônio de “objetos vazios e petrificados”, e que
muito se confundem com as mercadorias, é expresso por Benjamin através de experiências
que exigem múltiplas significações. Esse papel é exercido pela linguagem plural e
altamente crítica da alegoria.
É a alegoria que possibilita a Benjamin cavar no meio das ruínas de significados
que antes possuíam integridade, para modificá-los em modos profundamente novos. Por
isso, sua preferência pelo teatro de Brecht, pela poesia alegórica de Baudelaire, pelas
“memórias” de Proust, entre outras formas que impedem a interpretação unívoca sobre a
realidade de ruínas. A alegoria, desse modo, permite uma multiplicidade de usos, permite
“ler a história a contrapelo”, afirma Gagnebin (1994).
A alegoria é o modo de expressão de um mundo que se despojou de significado,
de uma existência humana genuína. O “objeto se torna alegórico sob o olhar da
melancolia, ela o priva de sua vida, a coisa jaz como se estivesse morta, mas segura por
toda a eternidade” (BENJAMIN, 1994, p. 205).
O uso da alegoria em Benjamin é uma resposta à crise da própria experiência, da
arte de narrar, que teve suas causas no desenvolvimento da sociedade capitalista industrial
e que transformou drasticamente uma forma de sabedoria coletiva (Erfahrung) e que, por
sua vez, influenciou o modo de produção artística na Modernidade. Escreve Benjamin que
o desejo mais profundo em Baudelaire era o de interromper o curso do mundo. Dessa
maneira, o poeta serve-se de retardatário diante do progresso da humanidade, com passos
desajeitados tal qual o albatroz apreendido pelos tripulantes de uma embarcação.
161
Nos poemas de Baudelaire fica nítida sua revolta, expressa em poemas alegóricos,
contra a decadência moderna, contra a depreciação de coisas em mercadorias. Na
sociedade administrada, na qual o número tornou-se o cânone do conhecimento, o
indivíduo, com seu corpo docilizado, é aquele que visa ao equilíbrio, à imparcialidade,
imerso num arcabouço de vivências irrefletidas do mundo da mercadoria. Essa
compreensão lógica do mundo se faz no sentido oposto à possibilidade da experiência65
defendida por Benjamin.
Nos moldes semiformativos da indústria cultural, os indivíduos são impelidos
para a inércia da sua própria vida, tornando-se expectadores passivos de seu próprio
enredo. A experiência sucumbe e dá lugar à vivência, que almeja o choque imagético,
vazio, empobrecido, mas, em contrapartida, não consegue captar nada para além da perene
e frágil película do espetáculo de si. Segundo Tiburi (2003), Baudelaire sabia que o seu
sofrer, o spleen, o taedium vitae, expressavam, de maneira mais exata, a assinatura de sua
própria experiência no tempo catastrófico da modernidade.
Benjamin afirmará que o spleen, esse sentimento que corresponde à catástrofe em
permanência, leva ao heroísmo de Baudelaire. O heroísmo por fazer poesia alegórica a
partir da “vivência” (Erlebnis) chocante enquanto indivíduo isolado em meio a um mundo
que se degrada, onde a mercantilização é onipresente e parece ser todo-poderosa e onde
reinam aparências, ilusões e fantasmagorias. Segundo Benjamin, o que caracteriza o spleen
não é o abandono das questões da memória, do distanciamento e da experiência, mas a
reflexão sobre elas a partir da situação histórica que as inviabilizou.
Conforme Gagnebin (1994) o spleen se mostra na tensão entre o desejo por uma
experiência e o reconhecimento de sua impossibilidade, revelando a origem dessa
negatividade: ela não é originária do spleen, mas de uma experiência histórica que teria
encontrado nele sua forma de expressão. O spleen volta cada choque contra a mesma
história que o produziu, negando qualquer paliativo que pudesse aliviá-lo da dor ou
qualquer pacto com aqueles que sucumbiram à vivência do choque. A reflexão histórica
empreendida pelo spleen sobre o empobrecimento da experiência garante a apreensão de
estilhaços da verdadeira experiência, afirma Gagnebin (1994).
65
O ato de experiência é, sobretudo, um modelar artesanal feito pelas mãos próprias do indivíduo, na imersão
dos objetos em seu arcabouço de experimentações refletidas do mundo da vida. A experiência em Benjamin
não é uma relação vertical daquele que supostamente detém uma sabedoria, mas sim a construção, destruição,
reconstrução do sujeito e do objeto, da linguagem, que se conectam mutuamente e dali emergem renovadas e
possibilitam a consolidação da experiência.
162
66
Benjamin chamou a atenção aqui para o fato de que, no spleen, Baudelaire ainda dispõe de estilhaços da
verdadeira experiência histórica. É a consciência histórica do declínio da experiência que lhe garante apanhar
esses fragmentos. Na experiência, afirma Gagnebin (1994), o sujeito que atualiza no presente o passado
reflete antes de tudo sobre sua própria situação histórica, o passado com o qual ele se comunica na
rememoração vêem-lhe à presença trazendo as marcas da distância que os afasta. Essas marcas indicam a
importância do passado para a constituição do presente que o recorda. É do significado do passado para o
presente que se origina a reflexão histórica do sujeito da experiência. A relação com o presente é mediada
pela reflexão do sujeito sobre o seu próprio passado, pela relação desse passado com um passado coletivo e
pela possibilidade de atualização da relação entre passado individual e passado coletivo no presente. Dito de
outro modo, a relação do indivíduo com o seu tempo presente é mediada pela tradição. Nenhum outro termo,
afirma Gagnebin (1994), define melhor a compreensão de Benjamin de uma experiência coletiva. Como algo
que se atualiza no presente, a tradição não é um monumento ao qual o presente presta reverência, mas a
transmissão de uma experiência entre passado e presente.
67
Nas considerações finais deste trabalho, arriscamos em lançar a ideia da possibilidade do professor, afetado
pela angústia, (re) significar o mal-estar pela melancolização do spleen.
68
A figura do flâneur, segundo Gagnebin (1994), se coaduna ao conceito de alegoria desenvolvido por
Benjamin em seu texto “Origem do drama barroco alemão” escrito na década de vinte. O flâneur, em seus
escritos posteriores sobre Paris, aparece como uma alegoria da vida pós-industrial, fazendo às vezes da
Melancolia na vida moderna, enquanto encarnação alegórica.
163
69
Georges-Eugène Haussmann foi advogado, funcionário público, político e administrador francês. Nomeado
prefeito de Paris por Napoleão III, tinha do título de Barão e foi o grande remodelador de Paris, cuidando do
planejamento da cidade, durante 17 anos, com a colaboração de arquitetos e engenheiros renomados de Paris
na época. Haussmann planejou uma nova cidade, modificando parques parisienses e criando outros,
construindo vários edifícios públicos. Disponível em: <http://www.universal.pt_enc.php>. Acesso em 01
junho 2014.
164
70
A obra “Infância berlinense por volta de 1900” na qual Benjamin relata sua infância fora feita em
homenagem a seu filho único Stephan, fruto de seu relacionamento com Dora Sophie Pollak. Tal fato é
central para a compreensão da metodologia proposta por Benjamin para a produção de seus escritos sobre a
infância.
165
em uma série de aforismos em Minima Moralia. Tais aforismos fazem referência a uma
certa “educação dos gestos humanos” engendrada pela crescente tecnificação a uma (des)
subjetivação. Tal processo ocasionaria, segundo Adorno (2001), um embrutecimento dos
gestos, a perda da civilidade. No sentido da investigação proposta por Adorno, vários
foram os temas escolhidos pelo autor para tratar do empobrecimento e dissolução do
sujeito em meio a uma totalidade que o absorve e o aniquila. Vamos então aos aforismos.
No aforismo “Não bater a porta”, o frankfurtiano mostrará um elemento que
recorrentemente aparecerá no contexto das Minima Moralia e que está relacionado ao
processo de tecnificação dos corpos, em que a relação de pura funcionalidade estabelecida
com as coisas, que retira qualquer expressão de liberdade e autonomia do indivíduo,
conduz invariavelmente à perda de uma das bases da constituição do mesmo: a experiência
(Erfahrung).
Esse aforismo pode ser lido como índice da violência arcaica contra a natureza
que simultaneamente se materializa, retroage e se perpetua na relação de agressão do
homem contra o próprio corpo. É notável a preocupação de Adorno (2001) com o tema da
violência. Certamente uma herança do extermínio no período nazista.
No quadro das condições da produção da consciência coisificada e da frieza
generalizada, Adorno (2001) examina no aforismo “Apuros do particular”, em que lamenta
a perda da delicadeza dos vários hábitos civilizadores, tais como o andar vagaroso pela
cidade, o fechar cuidadoso das portas, as viagens em trens outrora luxuosos, a conversão
do mobiliário da casa em ambientes puramente funcionais.
Vivendo em um contexto administrado, esse sujeito desaparece, sem que houvesse
outro para substituí-lo, afirma Adorno (2001). Como veremos em outras passagens, o
embrutecimento dos corpos está profundamente relacionado com o crescente processo de
tecnificação do humano, o que por sua vez engendra uma pedagogia dos gestos e do corpo.
O que está em destaque aqui é, segundo Adorno (2001), que a reflexão, se já não
desapareceu completamente, tende ao seu aniquilamento, uma vez que os indivíduos, de
qualquer forma, estão condenados a agirem segundo os interesses instrumentais na
sociedade tecnológica.
O processo de coisificação do homem mediado pela racionalidade instrumental e
pela técnica que torna as pessoas semelhantes às máquinas é anotado por Adorno (2001) no
aforismo “Devagar e sempre”. O andar apressado das pessoas nas ruas, o culto à
velocidade, o esporte exacerbado, a reificação do pensamento configuram a produção da
nova subjetividade na contemporaneidade.
Talvez no culto das velocidades possibilitadas pela técnica – tal como no
desporto – se esconda o impulso de dominar o horror de correr, separando
este do próprio corpo e excedendo-o de um modo soberano: o triunfo do
velocímetro a subir acalma ritualmente a angústia do perseguido. Mas se
a uma pessoa se gritar – corre! – desde a criança, que deve ir buscar a
bolsa que sua mãe esqueceu no primeiro andar, até ao prisioneiro, a quem
o guarda ordena a fuga a fim de ter um pretexto para o matar, então
ressoa a violência arcaica que, aliás, dirige silenciosa cada passo.
(ADORNO, 2001, p. 165)
objeto e sujeito à dominação. Adorno (2001) aponta para essa questão quando cita os
comportamentos humanos, simples, mas que revelam, por exemplo, a ausência da
consideração do outro, a decadência dos modos, uma prova de como a frieza está instalada
nas relações humanas, tornando-as mais enfraquecidas e pobres. Limitados em si mesmos,
os comportamentos humanos não provocam nenhuma experiência, pois retira do
pensamento a reflexão necessária para que algo seja compreendido em toda sua
complexidade.
Encontramos em “Sobre a Dialética do tato” o lamento de Adorno (2001) com
relação aos comportamentos cotidianos, em que se evidencia a perda do tato, afirmando
que a vida civilizada nos tornou rudes e rancorosos demais. Uma das observações anotadas
por Adorno nesse aforismo é uma denúncia daqueles elementos que tivemos que negar, de
forma violenta, para nos tornarmos seres supostamente “adultos”, “emancipados”,
“civilizados”. Desse modo, o ser cortês, ser delicado hoje já não faz mais sentido numa
sociedade marcada pela barbárie. A essa nova sensibilidade, gestada pelo avanço da
técnica, não corresponde mais a experiência (Erfahrung), mas a vivência do choque
(Chockerlebnis) (BENJAMIN, 1994b).
indústria cultural promete a seus consumidores a gratificação pulsional pela compra e pelo
consumo das suas mercadorias, mas, ao mesmo tempo, essa promessa é adiada
indefinidamente, já que sua satisfação significaria o seu próprio fim.
Assim, a experiência não e fruto da simples atenção consciente, por isso não se
pode convocá-la por um ato aleatório da vontade. Na experiência não é negada a dimensão
corporal dos homens, por isso, o que é vivido é incorporado, trazendo em seu corpo as
marcas do que se viveu como símbolo da natureza não dominada e por que só assim pode
ser transmitido algo da particularidade insubstituível do vivido, conclui Pucci (1997). O
que compõe a experiência em Adorno? Em Adorno, a experiência é viva, se traduz numa
abertura ao novo, ao indeterminado, suscita pensamentos, afetando o indivíduo de forma
profunda; é uma experiência sensível.
Uma segunda característica da semiformação em Adorno (1996) – depois da
negação da experiência – que gostaríamos de destacar é a degeneração do próprio conceito,
com sua substituição pelo clichê ou pela falsa projeção, pelo preconceito.
uma imagem que lhe faça jus, pois não entrou em real contato com ele. Isolado, o
indivíduo ao se deparar com os objetos pode apenas atribuir a estes características que são
próprias do sujeito.
As questões acima apontadas ganham ainda mais importância se considerarmos
também as reflexões desenvolvidas por Adorno em seus textos filosófico-educacionais.
Consideramos que a preocupação do frankfurtiano se dirigiu basicamente para o conceito
de formação, como visto até aqui, em sentido amplo, e para as condições reais de
efetivação desta; e a educação, entendida como educação formal, dada na escola, poucas
vezes aparece em primeiro plano.
Segundo Zuim (1999), Adorno não nos fornece um modelo de pedagogia, nem
sequer de uma pedagogia crítica, mas antes, estaria mais próxima de uma sociologia da
educação.
O que se manifesta como crise da formação cultural não é um simples
objeto da pedagogia, que teria que se ocupar diretamente desse fato, mas
também não pode se restringir a uma sociologia que apenas justaponha
conhecimentos a respeito da formação. Os sintomas de colapso da
formação cultural que se fazem observar por toda parte, mesmo no estrato
das pessoas cultas, não se esgotam com as insuficiências do sistema e dos
métodos da educação, sob a crítica de sucessivas gerações. Reformas
pedagógicas isoladas, embora indispensáveis, não trazem contribuições
substanciais. (ADORNO, 1996, p. 388)
Notamos que ao mesmo tempo em que Adorno nega a identidade entre formação
e educação, ele não nega o valor da pedagogia, pelo contrário, ela é indispensável.
Entretanto, Adorno (1996) afirma que a simples submissão do homem a preceitos
disciplinares é uma violência contra a própria formação, pois “poderiam [as reformas
pedagógicas isoladas] até, em certas ocasiões, reforçar a crise, porque abrandam as
necessárias exigências a serem feitas aos que devem ser educados e porque revelam uma
inocente despreocupação diante do poder que a realidade extrapedagógica exerce sobre
eles” (ADORNO, 1996, p. 388).
Para Adorno (1996), a conversão da formação cultural em semiformação não
significaria apenas um processo formativo incompleto. Ela ocasionaria a deformação
psíquica e social dos homens, uma vez que esses, em seu processo formativo, seriam
descaracterizados de sua subjetividade e conduzidos à regressão.
Na sociedade instrumental e tecnológica, Adorno (1996) afirma que a formação
passa a ser mediada pelo princípio da troca, converte-se em mercadoria, em puro fetiche. A
177
Adorno (1996) constata que a atual consciência não é apta à experiência. Por não
possuir aptidão à experiência, essa consciência é caracterizada como coisificada. A
consciência coisificada não é, por seu caráter de coisa, pelas deficiências que lhe são
próprias, aberta à experiência efetiva. O filósofo vai dizer que a consciência coisificada é
uma consciência amputada, pois é destituída do pensamento e da reflexão. Para a
consciência coisificada, o produto tem autonomia sobre o produtor, o objeto, sobre o
sujeito72. A consciência coisificada poderia, por um lado, ser modificada pela experiência.
72
No texto “Sobre sujeito e objeto”, Adorno (1995e) ao invés de conceituar o que seria sujeito e objeto, tarefa
esta que implicaria numa aporia difícil de ser resolvida, na medida em que os conceitos de sujeito e objeto ou
aquilo a que se referem têm prioridade sobre qualquer definição, irá criticar os conceitos tradicionais de
sujeito e objeto, a saber, o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, aquele que conhece e aquele que é
179
Por outro, é precisamente ela que impede a efetivação da própria experiência. Disso resulta
que a experiência desapareceu.
A perda da experiência é causada pela racionalidade do sempre-igual (ADORNO,
1996). Isso implica dizer que, ao mesmo tempo em que a inexistência da experiência
confina a consciência ao sempre-igual, essa consciência impede uma relação autêntica com
outros indivíduos, objetos, ideias, que têm como marca o diferente, o não-idêntico. O
sempre igual, conforme Adorno (1996), impede a existência, ou o reconhecimento da
existência, do diferente. Desse modo, a “experiência” ocorre somente nos limites do
estereótipo, do já conhecido, do já existente, do mesmo. A efetiva experiência ocorre no
confronto do sujeito com o não conhecido, o não mensurável, o então inexistente.
Experiência implica em encontrar o eu no não-eu e o não-eu no outro, reconhece
Adorno (1996). A experiência substitutiva, ao contrário, é flexível, maleável, cambiável.
Ela não tem uma forma própria, assumindo qualquer configuração, conforme o sujeito que
a experimenta. Por isso, se pode afirmar que a experiência não se dá. O que ocorre é uma
identificação, repetição e reafirmação daquilo que já e desde sempre existe. Adicionando-
se a isso os outros elementos já mencionados ter-se-ia assim uma experiência mais
agradável ao indivíduo que, além de facilmente se reconhecer e se identificar tudo aquilo
que se lhe parece, estaria também dispensado da interpretação, do embate de ideias, do
pensamento e da autorreflexão.
O que é interessante de se notar é que a experiência não se coloca ao indivíduo,
mas é o indivíduo que determina aquilo como uma suposta experiência. É o indivíduo
experiente e sua experiência que garantiria a validade do conhecimento e não o método, a
técnica e os testes científicos. Segundo Adorno (1996), a experiência, longe de ter valor
apenas para o indivíduo particular que a experimenta, é essencial, uma vez que é o sujeito
experimentado com sua carga de subjetividade o elemento fundamental para a
objeto de conhecimento. Para o frankfurtiano, tanto o sujeito quanto o objeto encontram-se mediados
reciprocamente. Isso significa que tanto a fragmentação, na teoria do conhecimento tradicional, entre sujeito
e objeto, quanto a sua identificação constituem, ambos, uma inverdade dessa relação. O sujeito, quando
separado do objeto do conhecimento na sua independência em relação a ele, subjugando-o e reduzindo-o a si
mesmo, torna-se algo que ele não é, pois se encontra mediado pelo mesmo objeto. Sendo assim, por outro
lado, a identificação entre sujeito e objeto, a qual representa um estado originário no qual não havia ainda
autoconsciência porque não havia ainda o sujeito, também representa uma etapa primitiva já superada,
assumindo o risco de ser regressivo todo o conhecimento que elimine o sujeito e o objeto, tornando ambos a
mesma coisa, quando, na verdade, não o são. Para Adorno, residem aqui os limites da teoria tradicional bem
como de todo o pensamento filosófico que se prontificou a comunicar o outro do pensamento, aquilo que não
é mais da ordem racional, aquilo que a razão, por si só, não consegue mais pensar sobre. O objetivo do
frankfurtiano é evidenciar os limites do próprio sujeito, desfazendo-se a dicotomia entre sujeito
transcendental e sujeito empírico e conduzindo-o a uma autorreflexão acerca de si mesmo.
180
73
Daí o caráter imanente da formação, a formação sempre em formação, excluindo-se o perigo de soar como
formação continuada (reciclagem, cursos de atualização), que, principalmente por ser instrumental, não se
relaciona de forma alguma com o que se está descrevendo. Podemos afirmar com Adorno (1996) que o
processo de formação é a negação constante da deformação, não como possibilidade ou ameaça, mas como
realidade e objetividade. Não é por acaso que o movimento de autorreflexão é contínuo e se identifica com a
formação da consciência.
182
que prevenisse a repetição daquela barbárie, consciência crítica de como isso pôde
acontecer seria a tarefa mais urgente. Tarefa que alimentaria profundamente as bases da
convicção de que a barbárie é fruto do progresso. A experiência se coloca em oposição à
consciência reificada, que repete incessantemente o sempre igual, incapaz de relacionar-se
com o diferente e limitada àquela apática adaptação. A consciência capaz de experiência
permite outras possibilidades, consciente inclusive da diferença entre experimentar e
vivenciar.
Essas considerações são importantes para a compreensão do texto de Adorno.
Buscar nas particularidades da vida dos indivíduos algo que as transpassa é tarefa de um
pensamento que não se acomoda ao imediato e busca aquilo que vai além das aparências.
Os aforismos aqui assinalados contidos em Minima Moralia foram discutidos no intuito de
provocar a reflexão sobre a técnica, os costumes, a educação, a formação, a semiformação.
Trata-se, portanto, de um recurso interpretativo, de crítica ao presente, como denúncia de
um processo de reificação que se instala inclusive nos aspectos mais íntimos da vida.
Nosso objetivo foi apontar o declínio da experiência com a exacerbação da técnica
e da sociedade estruturada em uma forma reificada de compreensão da realidade. Assim,
nosso olhar sobre a educação na contemporaneidade recai na tentativa de refletir sobre o
processo de empobrecimento da cultura marcada por uma “formação” meramente técnica,
descompromissada com o pensamento, com a autorreflexão. No campo da discussão sobre
o mal-estar docente, o intuito está na proposta em realizar experiência da própria pobreza
da experiência. Conforme assinalado, o pensamento autorreflexivo assume uma condição
primordial para esse processo.
Esta parte do trabalho foi uma tentativa de olhar para o texto de Adorno buscando
refletir sobre o domínio da razão instrumental escondida sobre a aparente unilateralidade
do progresso e, portanto, impeditiva de um processo de autorreflexão crítica sobre a
cultura. Devido, porém, ao ritmo imposto pela sociedade que se estruturou sobre o trabalho
industrial, a rapidez com que os processos ocorrem impede a permanência, a assimilação
de um acontecimento que marque a vida e possa ser considerado como uma experiência
propriamente.
Desse modo, a falta de experiência significa um maior poder da racionalidade
instrumental sobre a subjetividade, na medida em que se torna fácil impor aos indivíduos,
desprovidos de um eu firme, os produtos feitos para o consumo de massa. Essa adesão
irracional à totalidade somente é possível porque aquilo que se colocava como referência
183
74
A formação cultural (Bildung) era a formação proposta pela cultura burguesa. Esta era promotora dos ideais
de igualdade e liberdade, da garantia do uso da vontade e do livre arbítrio, além de almejar uma sociedade
mais humana, autônoma e esclarecida, sem injustiças sociais. Entretanto, as relações de produção e a própria
divisão do trabalho geraram novas maneiras de intervenção entre formação e sujeito. A consequência disso
foi que a educação passou a representar uma formação técnica para o mundo do mercado e a cultura, que se
ocupava da formação clássica e artística do homem, se transformou em diversão, em produto, por meio da
indústria cultural.
184
apesar da situação fatalmente adversa, ainda indica que a experiência da própria perda da
experiência seria uma tentativa de (re) construção da experiência.
Nossa pesquisa buscou desde o início sublinhar que a pobreza da experiência está
ligada à semiformação, ao pensamento instrumental, à ausência do pensamento
autorreflexivo. Com isso, análises, diagnósticos, reflexões de Adorno foram tomadas como
possibilidades de tensão, de contradição, de resistência, de formação.
Do mesmo modo que para a formação é essencial que se tenha tempo para
experimentar, para tocar, para elaborar, para refletir, para reexperimentar, pensamos que a
escola, enquanto lócus privilegiado para a educação, deveria privilegiar um pensamento
para a resistência e para a contradição. Para não andar na contramão da formação e da
emancipação, caberia à educação reelaborar-se criticamente através de um processo
ininterrupto de autorreflexão, consciente de que, no atual contexto, a educação filia-se às
exigências do mundo da produção.
A discussão sobre a (re) significação do mal-estar docente pela autorreflexão
crítica conduziu-nos ao tema da formação, bem como da semiformação e, por fim, ao tema
da experiência. A experiência (Erfahrung) é tomada como um dos elementos fundamentais
da formação e a autorreflexão, por sua vez, como um dos momentos fundamentais da
experiência. Procurou-se, então, mostrar em que medida tais momentos se relacionam com
o processo educativo e formativo.
o viés de um contexto conturbado, impactado pela (im) possibilidade de narrar o que (se)
passa, acontece na escola.
Trazer a baila esse contexto da fala emudecida do professor é possibilitar aguçar o
debate em torno do mesmo como sujeito de seu saber fazer, considerando a cena da sala de
aula como um processo que é tecido por um emaranhado, no qual estão implicado os
atores, o cenário, o roteiro, as relações tecidas, os elementos de cena, o figurino utilizado,
entre outros. Nesse jogo, que o professor atua e dirige ao mesmo tempo, o roteiro deve ter
sua marca, sua assinatura, mas não pode ser concluso, acabado, delimitado, pois conta com
a participação de outro parceiro de cena – o aluno. Porém, o que acontece quando esse
roteiro escapa aos seus domínios? Ou quando este adentra por uma via desconhecida? O
professor, como que num ato desesperador, desequilibra-se e desvanece. Mas, sabe-se que
a comunicação (inter) dita (e não dita) é tramada por afetos ambivalentes, nos quais seus
desejos e o drama da sala de aula caminham lado a lado no desenlace das (des) narrativas
diárias.
Dessa forma, por entre os muros grifados pelas mais diversas expressões das
marcas de um tempo inquietante, incerto e paradoxo da contemporaneidade, jaz um
professor senhor e servo de um cenário multifacetado, retalhado, disperso. Um professor
que se impacta, (res) sente, se amedronta, se (des) arranja diante do inusitado e incerto.
Paralisado, deixa aumentar o fosso, o nada, que se alastra com uma rapidez devastadora e
desloca para longe uma possível fala autoral (narrativa). Nesse contexto, o (des) encontro
do professor consigo mesmo tem cada vez mais se presentificado como uma das faces do
mal-estar que lhe consome energia, disposição, interesse de estar na sala de aula. Destarte,
esse profissional tem sido encontrado, em proporção cada vez maior, submergido e
silenciado entre os muros da escola.
Que nada75 é esse que sufoca o professor remetendo-o a uma situação de mal-
estar? Fala-se muito sobre o lugar do professor, os desafios da docência e, principalmente,
75
O ato de educar insere-se em um contexto marcado pelo conflito humano, por isso desvela certo mal-estar
que permeia a relação pedagógica na interação ensino-aprendizagem. Ao falar sobre as três fontes de onde
provém o sofrimento humano, Freud (1930) enfatizou que uma das prováveis causas esteja no
relacionamento entre os homens no convívio social. Para haver convívio social, há necessidade de normas
que vão mediar os relacionamentos por meio também da educação. Contudo, o desejo de completude e de
controle impostos pelos ideais educativos em detrimento da singularidade e subjetividade dos sujeitos
enlaçados no contexto pedagógico paga um preço alto para viver o bônus dos bens culturalmente construídos
pela civilização. Nessa ótica, tornamo-nos estrangeiros no mundo civilizado, andarilhos imersos no mal-estar
paralisante das exigências de um ideal educativo distante da realidade humana, que não reconhece as leis do
desejo. Por isso, mesmo com o empenho, o esforço e os aparatos metodológicos que o professor usa no seu
fazer pedagógico, ele não consegue executar o planejado com perfeição, não “controla” tudo, principalmente
187
resultados, restando o sentimento de frustração ante a percepção de que há sempre algo faltando. A “falta” e a
incompletude no espaço pedagógico consubstanciam o mal-estar quando o professor investe energia em
modelos educativos que não condizem com o desejo do ser humano. Dessa forma, o ideário do cenário
escolar busca a completude, a perfeição marcando a trajetória do humano no campo da civilização, o qual faz
emergir o mal-estar inerente ao desejo de formação imbricada nas inquietações que atravessam o humano, na
busca de seres melhores e felizes. Portanto, o nada é o lugar, o abismo em que se precipita a angústia e, por
sua vez, não é esvaziado de significantes. Em 1930, em “O mal-estar na civilização”, Freud anuncia as três
profissões impossíveis: educar, governar, psicanalisar. Essas três profissões são impossíveis porque são
tipicamente humanas e não técnicas. O impossível, ao qual se referia Freud, é inerente a toda relação, ao fato
de não se poder controlar o futuro, à impossibilidade de se cumprir com um ideal. Impossível não significa
impraticável. Dizer que é impossível é dizer desse mal-estar que ronda, permanentemente, nossa ação. É abrir
espaço para o inusitado no campo pedagógico, o que nos obriga, portanto, a realizá-las – as três profissões –
contínua e indefinidamente, conscientes de que o preço a pagar é a renúncia aos nossos ideais narcísicos. Em
outros termos, não temos como fazer do outro um ser idêntico a nós, pois isso seria tão mortal como Narciso
diante de sua imagem refletida na superfície do lago.
188
para um abismo. Assim, uma questão delineia-se: como esse professor marcado pela
racionalidade moderna (instrumental, que administra o pensamento, os desejos, o agir) e
pela incompletude enquanto sujeito desejante responde a esse sistema que lhe impõe um
caminhar pautado no todo, inscrito em um tempo linear e fragmentado?
Constata-se que esse quadro é agravado por falta de uma cultura da escuta e da
fala na escola. A não existência de uma política que torne os professores agentes da própria
palavra acaba por levá-los a sintomatizar no corpo o que não foi simbolizado na fala.
Talvez aqui a relevância do ouvir76 como um dos princípios do processo educativo, tendo
em vista que ao socializar inquietações e dilemas que fazem parte de sua prática o
professor poderá incorporar essa marca ao seu estilo de ensinar e poderá ainda encontrar,
junto com seus pares, novas alternativas para questões desafiadoras. Talvez assim,
comunicando e deixando comunicar, o professor possa apreender novas maneiras de lidar
com seu próprio mal-estar, reelaborando-o no sentido crítico – ou seja, através da (re)
significação do mal-estar docente pela via da arte de educar, pelo sublime que o contexto
pedagógico pode favorecer no processo do ensinar e aprender, para trilhar novos caminhos
a serem experienciados.
No texto “Tabus acerca do magistério”, Adorno (1995b) chama a atenção dos professores
para os limites que compreendem a transmissão dos saberes no ensino, na medida em que
essa comunicação leva em consideração tão somente os aspectos didáticos, racionais,
programados, previsíveis e comunicáveis por meio das palavras. Segundo Adorno (1995b),
essa comunicação não teria levado em consideração uma outra experiência indeterminável
presente na relação pedagógica. Em suas reflexões sobre o magistério, Adorno (1995b)
afirma que, mesmo não sendo pedagogo e não tendo dados empíricos de estudos de caso,
76
Refletindo sobre esta questão, devemos partir da premissa de que a educação, isto é, aquilo que se passa na
vida cotidiana entre adultos e crianças, não é um processo natural, biologicamente determinado, mas um
processo de filiação simbólica que constitui um sujeito, posicionando-o em relação a uma determinada
história e tradição no interior do campo da palavra e da linguagem. Nesse sentido, devemos considerar que
somente através da palavra esse processo pode ser colocado em marcha. Simplesmente porque a palavra é a
ferramenta educativa por excelência e somente endereçando a palavra a um outro - uma criança -
supostamente podemos educá-la. Quer dizer, a educação implica dirigir a palavra a um outro, falar com o
outro (LAJONQUIÈRE, 2010). Não se trata, portanto, de psicologizar o campo escolar, consubstanciando um
conjunto de almejadas soluções para os problemas educativos, enquanto manifestações de uma espécie de
neurose pedagógica que toma conta da educação atual. De fato, assistimos a presença cada vez maior no
âmbito das escolas de uma série de especialistas na avaliação, prevenção e “cura” dos processos de
desenvolvimento supostamente envolvidos no intuito de possibilitar a ocorrência da empresa educativa. Posto
isto, cabe afirmar que a pretensa eficácia educativa, formulada nos termos da promoção de um
desenvolvimento psicológico completo, seria o apagamento da diferença fatual entre a criança real e a ideal.
Em outras palavras, o discurso (psico) pedagógico hegemônico pede, inconscientemente, em toda tarefa
educativa, que as crianças venham de fato a encarnar no real da existência escolar tudo aquilo que elas não
são e que está feito de sonhos didático-metodológicos.
189
gostaria de tornar visíveis suas observações sobre a aversão à profissão docente. No texto,
Adorno (1995b) descreve que sua experiência com alunos recém-formados mostra a
repulsa pela função de professor, mesmo que esses estudantes tenham sido empurrados
pelas circunstâncias profissionais como a falta de alternativas para a carreira. Não
encontrando justificativas reais e palpáveis para a aversão ao magistério no contexto da
Alemanha, o autor conclui se tratar de questões subjetivas, de natureza inconsciente. As
representações inconscientes acumuladas ao longo da história docente são capazes, entre
outras coisas, de provocar sentimentos ambivalentes dirigidos aos professores. Segundo o
filósofo, essas representações perderam ao longo das mudanças sociais sua base real,
compondo-se como predisposições psicológicas capazes de converterem-se em forças
reais. Afirma que o tabu é expresso na composição de forças dirigidas a manter um
conteúdo interditado. Essa interdição injeta um conteúdo oculto na mensagem que assume
a transformação do não dito em proibido. Preocupado com a falta de reflexão sobre essa
questão, Adorno (1995b) trata de apontar possíveis caracterizações do magistério ao longo
de sua existência. Recomenda e faz um exame do passado, encontrando as raízes dos tabus
no magistério. Adorno (1995b) afirma que o menosprezo pelo professor vem de longa data.
Para começar, é bem conhecida entre os educadores a referência do escravo como
professor, na antiguidade. Depois, o frankfurtiano toma como imagem o escrivão, o
professor como carrasco e o monge para nortear suas discussões em torno da aversão ao
magistério. O ponto central da reflexão em torno dos tabus vai se definindo, segundo
Adorno (1995b), em torno das questões disciplinares. Conforme o frankfurtiano, o tabu é
uma representação inconsciente e como tal antecede a reflexão. Quando o tabu é
despertado, ele se expressa por mecanismos tão subjetivos quanto aqueles que introjetaram
as representações históricas do docente. Por isso, a economia psíquica de cada indivíduo
determina o seu retorno. O conhecimento de seu funcionamento permite oportunidades de
reflexão sobre seus sintomas.
Ao privilegiar apenas a instrumentalização da linguagem e dos conteúdos
transmitidos, os professores teriam se esquecido de levar em consideração os elementos
não comunicáveis, não determináveis, não idênticos da prática educativa. Os professores
teriam se esquecido daqueles elementos que tiveram que recalcar de maneira brutal para
tornarem-se supostos indivíduos adultos, esclarecidos, emancipados, autônomos: os
desejos, a infância, a natureza.
190
Nesse contexto, Adorno (1995b) afirma que as escolas são marcadas por uma
hierarquia oficial, segundo rendimentos, capacidades intelectuais, notas e outra hierarquia
não oficial, que permanece latente. Segundo o frankfurtiano, a hierarquia não-oficial se
traduz naquilo que a escola não dá conta, ou seja, é o imprevisto, o desajustamento, a
inadaptação, o incompreensível, o descontínuo na prática pedagógica e que o professor,
muitas vezes, se nega a enfrentar como elementos que causam estranheza e desassossego
em sua prática educativa.
Adorno (1995b) busca fazer com que esses elementos venham à tona afetem o
pensamento para que os indivíduos promovam uma autorreflexão. Numa sociedade
marcada pela lógica instrumental, pelo pensamento reificado, pelo empobrecimento da
experiência na escola, a dimensão comunicativa do ato pedagógico, que poderia trazer à
tona os elementos (inter) ditos na escola, traduzem-se em estereótipos e obstáculos para se
desenvolver a crítica com relação ao mal-estar docente.
Adorno (1995b) anota em vários momentos do texto as desilusões dos alunos que
projetam seus ideais77 na imagem do professor. Posteriormente descobrem, de forma mais
77
Freud, afirmam Laplanche & Pontalis (1998), distingue o “eu ideal” do “ideal de eu” afirmando que o
primeiro corresponde ao eu em posição superlativa e, o segundo, à perfeita concordância com os valores
191
amarga, que não houve correspondência com o modelo idealizado, tanto cognitiva quanto
afetivamente. Portanto, uma forma que os alunos encontram para denunciar a opressão,
bem como os excessos de instrumentalização na educação, evidencia-se no fato de
poderem denunciar as fraquezas e as idiossincrasias não sublimadas dos professores, assim
como as imagens sedimentadas no inconsciente. Por essa via, os educandos denunciam, em
forma de caricatura, por exemplo, as formas de opressão sofridas, revelando ao professor
aquilo que não foi sublimado, mas que foram recalcados em nome do processo civilizador.
Adorno (1995b) procura demonstrar que os conflitos dos mestres vinculados à
sexualidade, à infantilização, ao indeterminado e ao incerto na prática pedagógica, a um
poder que é legitimado pelo discurso oficial, mas negado na prática educacional, são todos
conflitos negados pelas condições psicológicas dos educadores, bem como pela reprodução
das relações materiais cada vez mais instrumentais. Desse modo, o sofrimento, então,
comparece sob a forma de uma impossibilidade de lidar com situações angustiantes, como
os insucessos e fracassos em relação às situações de ensino e aprendizagem, as demandas
dos pais, situações de violência e agressividade na escola, dentre outras já enumeradas
neste trabalho.
Percebe-se, segundo Freud (1997), que o corpo padece, sofre do desejo de
reconhecimento e perfeição idealizados, mas que não pode ser dito; a denúncia vem, então,
sob a forma de sintoma. Essa é a solução encontrada pelo docente para defender-se dos
conflitos, das diferenças, da alteridade, a qual a escola o remete o tempo todo. A
impossibilidade em dar significado, colocar em palavras, falar sobre seu próprio desejo
leva o professor a lançar mão de estratégias para estar fora da sala de aula: uma enorme
tristeza, um grande “mal-estar” afasta-os da função de ensinar. O professor “faz” um
arranjo sintomático para dar conta das adversidades presentes no contexto escolar.
O texto “Tabus acerca do magistério” é fundamental em nosso debate acerca da
temática mal-estar docente na medida em que os tabus que pairam sobre esse ofício e a
dimensão subjetiva que a compreende indicariam que, já em sua gênese, o docente estaria
fadado a esse mal-estar dado a própria função civilizatória que exerce. Desse modo, ao se
desconsiderar a ambiguidade do seu próprio trabalho – face objetiva e outra afetivo-pessoal
– o docente estaria envolvido por um empobrecimento da sua capacidade de pensar e
experienciar o objeto do conhecimento. Possivelmente, uma das formas que pode ser
trilhada no sentido de conceber um estilo de ensinar, no qual a repetição leve à criação,
talvez esteja diretamente sustentada pelos fios que incorporam as relações tecidas na sala
de aula entre professor e aluno, manifestadas através dos conteúdos inconscientes.
Desse modo, o mal-estar docente pode ser tomado, como vimos na argumentação
acima, como sintoma relativo à subjetividade do professor quando propostas idealizadas
não se cumprem, configurando-se em modalidade de enlaçamento sujeito-cultura. A
psicanálise nos ensina que algo do ideal não se ensina ao sujeito78, donde se conclui que a
educação lida com o registro do impossível. Por mais que os professores se esforcem para
transmitir às crianças e adolescentes os valores civilizatórios baseados no cultivo do
conhecimento e das relações cordiais pautados pela autonomia e liberdade do indivíduo
(proposta de uma educação iluminista), algo fracassará sempre. O que resiste à função
educativa é produtor de mal-estar e assola os professores e os alunos de maneira
inesperada. Quer como resposta a um ideal ou como resultado de um conflito
intrapsíquico, um incômodo permeia o campo ensino-aprendizagem e permanece latente na
cultura educativa.
Ao tratar da relação entre professor e aluno, Morgado (2002) traz contribuições
importantes para se compreender um dos elementos que produz o mal-estar. Nessa relação,
o professor é revestido de uma importância definida, de uma influência clara sobre o aluno.
Isso deriva do fato de que os educadores estão investidos da relação primitivamente
dirigida ao pai e, consequentemente, refletirão essa influência sobre a criança. Essa
consideração – chamada de transferência por Freud – manifesta-se, sobretudo, nas
condições em que acontece a aprendizagem, sem considerar este ou aquele conteúdo.
Através da transferência, o indivíduo revive experiências de outros momentos, na relação
78
Notamos que, mesmo com todo esforço dos professores em buscar novas alternativas para o fazer
pedagógico, ainda imperam resquícios de um discurso entrecortado pela ilusão em ideais educativos que
depõem contra o sujeito do desejo. Ao insistir em não abrir mão dessa ilusão de realização “plena”, o
sofrimento se instala. Por isso mesmo, ao não alcançar os objetivos propostos por esse modelo de educação,
resta aos professores o mal-estar, resultado, muitas vezes, da frustração por não conseguirem “controlar”
todos os resultados. Nesse sentido, entendemos que “conseguir dar conta de tudo”, ou melhor, estar no
“controle” das situações pedagógicas, por assim dizer, apresenta-se como condição ideal no contexto
educativo e, quando o docente constata a inviabilidade desse empreendimento, passa a conviver afetado por
uma constante angústia, de modo que, quase inevitavelmente, o mal-estar se instaura em seu ser.
193
com o outro, com quem estabelece vínculos. Assim, um professor pode tornar-se alvo de
interesse porque é objeto de transferência.
Nessa perspectiva, afirma Morgado (2002, p. 31-32), “considerando que a relação
professor-aluno tem como protótipo essas relações originais, procuro demonstrar que o
processo de sedução que nela se instaura também remete a essas relações originais”. Ao
afirmar isso, a autora buscou pensar a questão da sedução pedagógica como uma
atualização da relação originária (pai-mãe-filho) no par professor/aluno. Portanto, “na sala
de aula, o aluno revive esse momento transferindo para o professor todo o amor e toda a
hostilidade dos quais, outrora, teve de abrir mão” (MORGADO, 2002, p. 111). Perceber o
manejo dessa operação permitirá ao professor (re) dimensionar os encontros e
desencontros das relações tecidas com o Outro (aluno), tendo em vista que a ambivalência
advinda da transferência pode suscitar no aluno, de forma consciente ou não, sentimentos
de amor ou ódio, prazer e desprazer, encanto e desencanto, desprezo e admiração pelo
professor, a depender dessas experiências originais vivenciadas na infância com seus pais.
Quanto à relação transferencial que se estabelece entre professor e aluno, cabe ao
primeiro mediar essa situação, assumindo o seu lugar nesse espaço, tendo a dimensão dos
afetos circulados no ambiente transferencial da aula. O que não quer dizer que se deva
resistir à existência desse fenômeno. Sendo a transferência um elemento presente na
relação pedagógica, o professor não precisaria sustentar esse saber suposto?
A transferência é um artifício, pois se refere a um objeto que reflete outro, postula
Morgado (2002). O professor, ciente desse processo, ao lidar com os afetos do aluno,
saberá conduzir tanto os amorosos quantos os hostis, para endereçá-los ao conhecimento.
Segundo a autora, a transferência se faz importante para que se possam compreender os
lugares assumidos pelos sujeitos nessa relação que envolve uma implicação de si e do
Outro.
Nesse sentido, a autora sustenta que a escuta é um princípio constitutivo desse
laço que se estabelece entre professor e aluno. Para Morgado (2002), escutar o fenômeno
da transferência pode tornar-se um ponto relevante para compreender o que se passa nessa
relação de ensinar e de aprender, pois apesar das descontinuidades, os dois processos
gravitam em torno de dois sujeitos, professor e aluno, que trazem à cena da aula conteúdos
reprimidos, não-elaborados.
A implicação do conceito de transferência no contexto da relação pedagógica faz-
se essencial na articulação entre psicanálise e educação, na medida em que esse fenômeno
194
79
No texto “Inibição, sintoma e angústia”, de 1926, Freud fala da angústia do real. Afirma que a experiência
da angústia é algo de ordem não familiar, da ordem do recalque, um estado de estranheza. Vai dizer que a
angústia é um sentimento moderno, transforma-se em um problema existencial pela filosofia e depois pela
psicanálise como marca da condição moderna. “Na angústia do real, afirma Freud, não consigo me antecipar
aos possíveis perigos que atingem o eu. Temos uma experiência catastrófica, me remetendo a uma condição
de desamparo inicial”.
80
Cf. o tópico l do texto “O mal-estar na civilização”, de Sigmund Freud, onde o autor discorre sobre o
“sentimento oceânico”. Trata-se de um sentimento que é precedido pelo desamparo e que será buscado
eternamente pelo indivíduo numa tentativa de reparação de algo perdido.
195
81
Referimo-nos ao projeto moderno instaurado com o movimento político-filosófico denominado Iluminismo
ou Século das Luzes (século XVIII), em que a valorização da razão, da ciência, o método experimental como
condição para aquisição do conhecimento seria o elemento primordial para a emancipação individual.
196
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
83
Embora não conte mais com o entusiasmo de outrora, não se pode negar a presença, na atualidade, da
psicanálise no rol dos dispositivos buscados para intervenção em situações caracterizadas pelo mal-estar. A
invenção freudiana, como se disse, é situada no diversificado cenário atual como mais um dos tão valorizados
produtos de bem-estar. Parece ter sido esse o lugar reservado à mesma pela cultura consumista atual. A
responsabilidade por tal situação pode ser atribuída, em parte, ao próprio curso assumido pela história da
Psicanálise, já que, em seus primórdios, suas técnicas e elaborações eram dirigidas fundamentalmente a uma
199
terapêutica que, em última instância, visava o restabelecimento de um “bem-estar perdido”. É certo que o
viés terapêutico nunca foi totalmente abolido, portanto, a questão do bem-estar nunca deixou de ocupar o
horizonte da teoria freudiana; no entanto, o estatuto concedido a esse bem-estar no início das teorizações é
radicalmente distinto daquele do final, observa Lajonquière (2010).
200
sexual. Seriam atividades como “produção intelectual, científica, artística e todas as que
promovem um aumento da qualidade de vida dos homens” (KUPFER, 2005, p. 42).
Diante do assinalado, privilegiamos, num primeiro momento deste trabalho, a
investigação sobre o mal-estar docente, refletindo sobre como o mesmo vem sendo
estudado no campo educativo contemporâneo. Apresentamos uma síntese da produção
sobre essa problemática no intuito de compreendermos como as pesquisas e estudos aqui
apontados remetem a essa discussão, o que eles entendem por mal-estar docente e qual o
tratamento eles oferecem a essa discussão.
O estudo do mal-estar docente – encarado como um “fenômeno” pelos
pesquisadores que se dedicam a essa temática - demonstra que há manifestações expressas
de distúrbios, desvios no comportamento e doenças dos professores em consequência de
fatores externos diversos. Assim, de acordo com esses fatores, descritos no corpo do
trabalho, procuramos levantar quais deles eram percebidos como geradores do mal-estar na
escola, sendo as condições materiais e recursos humanos os elementos mais apontados
como detonadores do mal-estar entre os professores em geral.
Vários fatores geradores do mal-estar na escola foram pontuados no decorrer
desta pesquisa e requerem observações: 1. a educação desvalorizada pela sociedade e, ao
mesmo tempo, condição necessária para seu desenvolvimento (Kobori, 2010); 2. a falta de
investimentos do governo, sob a forma de planejamentos de ações eficazes, no sentido de
promover aperfeiçoamento dos professores e determinação de metas compatíveis com os
recursos (Gonçalves, 2008 e Prioste, 2006); 3. a falta de colaboração efetiva dos
responsáveis dos alunos (Fonseca, 2009 e Weber, 2009). Em diversos momentos não se
percebe a família como parceira da escola no trabalho do professor; 4. as avaliações
externas estipuladas em determinadas fases de escolaridade, imputando aos professores a
culpa pelo insucesso dos resultados obtidos sem considerar realidades, diferenças e a
construção do conhecimento (Rodrigues, 2011); 5. a degradação da autoimagem do
professor, cada vez mais acentuada, explorada pela mídia, através de charges, propagandas
ofensivas, programas humorísticos que reforçam no grande público a percepção de uma
profissão desacreditada, desvalorizada e incompetente (Sampaio, 2008).
Há também o caso mais evidente nas pesquisas, em que, além de causar
afastamento da sala de aula, permanece determinando o desânimo e o mal-estar: a questão
da formação docente! (Esteves, 1999; Jesus, 1998; Kobori, 2010; Rodrigues, 2011;
Sampaio, 2008; Weber, 2009; Gonçalves, 2008; Prioste, 2006; Fonseca, 2009)
201
84
A semiformação é o travamento da experiência; o pensamento reflexivo é empobrecido, ou melhor, negado
no contexto escolar; o esclarecimento, como momento subjetivo do conhecimento, não ocorre. O
imediatismo e a fragmentação das vivências é a norma atual. A inaptidão à experiência, promovida, dentre
outros fatores, por pedagogias que apenas informam ao invés de formar, produz uma consciência coisificada
na qual há a conversão de uma relação humana em coisa, alterando a experiência. A mutilação da consciência
oculta a realidade e propicia a violência.
202
Nesse sentido, duas abordagens são defendidas nos trabalhos analisados para se
solucionar o mal-estar na escola: uma preventiva, investindo-se na formação inicial do
professorado, e outra curativa, investindo-se na formação contínua (em serviço).
Assim, diante do debate sobre o mal-estar docente na escola, pareceria até
desnecessário questionar ou debater a respeito de quaisquer aspectos pedagógicos,
psicológicos ou mesmo sociais relacionados às duas abordagens acima assinaladas, uma
vez que elas, de acordo com os pesquisadores que discutem a temática do mal-estar
docente, de forma simples, resolveriam os problemas enfrentados pelo professor85 em sua
prática cotidiana.
A despeito de supostas evidências, é justamente isto que nos interessa questionar,
pois, ao pensar o campo escolar marcado por essa dupla intervenção – preventiva e
curativa – estaremos condenando o professor a experimentar um vazio de significados em
relação ao lugar que deveria ser ocupado por um sujeito, em posição de educador. Daí
afirmarmos que o debate sobre o mal-estar docente- de acordo com as pesquisas analisadas
– é limitador do pensamento, pois o fato de vivermos em uma cultura que demanda cada
vez mais por soluções rápidas e instrumentais para qualquer expressão do nosso mal-estar
certamente dificulta qualquer possibilidade de questionamento e reflexão sobre essa
problemática na escola.
Contudo, se acreditamos que os tropeços nas aprendizagens ou a “falta de controle
nos comportamentos” são manifestações de uma patologia – social, individual e orgânica –
que afeta o “bom” funcionamento da escola, tentamos justamente evitar o reconhecimento
(inevitável) do quanto estamos implicados nessa situação. Ou ainda, quando apostamos
que a organização escolar através dos mecanismos de coping, resiliência, terapias grupais,
dentre outros, poderá trazer, além de um “ansiado alívio” do nosso mal-estar, uma resposta
definitiva às nossas angústias e frustrações, tentamos mais uma vez escapar ao confronto
85
Em relação ao professor, podemos observar uma “evitação” de confrontos, escamoteando, por exemplo, as
discussões que marcam os indivíduos e suas diferenças no interior das escolas.
203
Partindo de uma análise psíquica, é notório que, além das instâncias explícitas na
escola, que agem contrariamente à experiência formativa, as relações pedagógicas
carregam nuances ideologicamente arquitetadas na imposição de mecanismos psíquicos
que vão frisar os elementos mais arcaicos, como a repressão do medo, a severidade e a dor.
Nesse sentido, outros apontamentos significativos para uma reflexão do processo
pedagógico mostram como a disciplina e a virilidade, sobretudo o desenvolvimento da
capacidade do convívio com a dor e o autoritarismo, engendram nos atores educacionais
componentes sádicos que, em um ambiente social massificado, constituem um cenário
profícuo para aquilo que foi Auschwitz. A força motriz para romper com a frieza racional,
que é produto desse modelo de educação, está em tornar os indivíduos submetidos a esse
modelo cientes desse nefasto processo.
Pela autorreflexão crítica sobre as consequências do passado sobre o presente, das
atrocidades cometidas em nome do progresso e da ciência instrumental, devemos construir
meios que possibilitem a resistência à barbárie que ainda persiste. Seria, portanto, um apelo
ao não-elaborado, ao não-reparado que ainda podem nos tocar, nos acontecer, nos passar,
mostrando-nos os contrapontos entre o sensível e o irracional e os limites que impedem a
formação do pensamento crítico.
Adorno (1996) sustenta a tese de que os indivíduos devem lutar pela busca da
emancipação, objetivando uma educação que tem por finalidade a contradição e a
resistência. Em Adorno (1996) e Benjamin (1994a e 1994b) experiência é um conceito que
não poderia se reportar ao sentido que usualmente lhe é atribuída pelas ciências empíricas,
pois seu atributo pressupõe “propriamente um nível qualificado de reflexão” (ADORNO,
1996, p, 150).
A partir das considerações tecidas pelos autores que trabalham com a temática
mal-estar docente, entendemo-lo como um traço do ser professor, como um elemento que
está no entrecruzamento do desejo de ensinar, educar, exercer a docência e as condições
objetivas e subjetivas encontradas e mobilizadas nesse exercício, tendo a experiência como
elemento-chave desse processo. É necessário, então, que os professores tomem contato
com sua dor, com a finitude, com a incerteza que a angústia de não saber tudo ou nada
saber a respeito de si mesmos provoca.
Em Adorno (1996) a experiência não se colocaria ao sujeito, mas é o indivíduo
que determina aquilo como uma suposta experiência. Adorno (1996) está chamando a
atenção para os elementos incomunicáveis, indeterminados, não programados na relação
206
pedagógica, elementos esses recalcados de maneira violenta e que poderiam gerar o mal-
estar no professor por não ter acesso consciente aos aspectos que o afligem e que são
fundantes em sua formação. Aqui, o texto “Tabus acerca do magistério” foi de
fundamental importância para que essa reflexão fosse tecida. Nesse sentido, a educação
teria por objetivo desmascarar as condições e os condicionamentos dos indivíduos e da
sociedade levando-os a terem ciência de seus próprios mecanismos, de suas limitações,
bem como de suas potencialidades.
A figura do professor é peça central nesse processo e também ele deve fazer sua
autocrítica: é necessário que reconheça os tabus que permeiam sua imagem e se impõem
como preconceitos psicológicos e sociais, para assim poder combatê-los e elaborá-los. De
uma perspectiva dialética, a formação cultural em Adorno (1996) está inserida no
desenvolvimento histórico do homem, não apenas como reflexo das condições existentes,
mas como possibilidade de transformação destas.
Em Adorno (1996) não há um modelo de educação. Desse ponto de vista, a
educação, no entender do filósofo, deveria ser orientada pelo não esquecimento de que
alguma coisa terrível aconteceu e pode voltar a acontecer se não for tratada como um
problema no presente. Essa seria uma das funções da educação, ou seja, relembrar o
passado86 e investir na formação e na elaboração do pensamento do indivíduo no presente.
86
A partir do acima exposto, podemos dizer que o mal-estar do professor aparece identificado com os limites
da própria atividade profissional. A realidade que aqui queremos enfatizar precisa levar em conta o passado
mistificado que é despertado nas representações a respeito da escola e do professor com relação ao seu mal-
estar. O importante é retirar da prática docente todas as medidas que agem sobre os alunos como
representações de um passado que não merece ser repetido. Por outro lado, não há como conter os efeitos de
tais representações expondo diretamente os alunos à história acumulada da profissão, como se fosse possível
propor um tratamento de elaboração analítica em sala de aula. De início, basta saber que qualquer tentativa
de fugir do problema salienta ainda mais o conteúdo interditado e que a saída possível está no
desenvolvimento da sensibilidade do professor para com as imagens que pode despertar.Para Adorno
(1995b), a comunicação que envolve a relação pedagógica não teria tornado ao menos pré-consciente as
representações psicológicas, sedimentadas no inconsciente, a respeito da imagem do professor. Ao invés
disso, essa comunicação ligada à dimensão científica da atividade educativa teria contribuído para a
reprodução dessas imagens do professor, acumuladas na história que, enquanto sobras inconscientes,
continuariam não só agindo no que diz respeito à disseminação dessa figura do educador, mas também na
própria relação entre educador e educando. Todas as imagens construídas sobre o professor ao longo da
história – o professor como carrasco, como autoritário, do castrador - estariam, por assim dizer, presentes na
relação pedagógica, mas não seriam rememoradas pela comunicação e nem poderiam ser comunicadas
integralmente pela linguagem que envolve a relação. Ao invés disso, essas estereotipias teriam se convertido
em ódio e ressentimento, devolvidos ao educador enquanto rancor contra tal autoridade, a qual exerceria uma
forma de controle nessa relação de poder que envolve educador e educando. Adorno é convidado a explicar
como a imagem docente se apropria do poder de punir e dela não mais consegue se afastar. Adorno retorna
para esclarecer que a emancipação dos indivíduos precisa ser conjugada com uma reflexão sobre as suas
práticas, sobre as representações que compõem o contexto no qual estão inseridos. Nesse sentido, a educação
precisa elaborar o passado, a fim de que esclareça o presente. A educação precisa estar consciente das
energias de que se alimenta. Os professores e os alunos precisam reconciliar-se com o seu passado,
207
A análise adorniana centra-se no como evitar que se repita o horror pelo não esquecimento
e esclarecimento de como a barbárie foi e pode ser ruim para a civilização.
A experiência coloca-se em oposição à consciência reificada, que repete
incessantemente a mesmice, incapaz, portanto, de relacionar-se com o diferente e limitada
à adaptação ao imediatamente dado. No capítulo quatro desta tese, quando tratamos do
tema da experiência em Benjamin, nosso objetivo foi pensar o quanto a escola parece
esvaziada de experiência, passando a ter uma nova configuração: sua primazia é o instante,
a pressa, o agir instrumental, a excitação. Não mais o professor, o aluno, os agentes
educativos são protagonistas da narração, mas a propaganda, o comércio.
Em oposição, Benjamin nos oferece uma percepção diferente sobre o conceito de
experiência. Para o filósofo, a experiência não é fruto de qualquer processo intencional,
direcionado, técnico. Não é a acumulação processual. A experiência não pode ser
produzida, dominada, racionalizada por qualquer plano ou ciência. Ela é o devir. O
conceito de experiência em Benjamin é Erfahrung, explica Gagnebin (1994), o que
expressa algo que se desenvolve no tempo e liga várias gerações, em oposição ao tempo do
trabalho no capitalismo, deslocado e entrecortado, ou seja, trata da tradição que pode ser
mantida para a formação dos indivíduos.
De qualquer modo, mesmo considerando a escola como um espaço que
constantemente “nega” a experiência, apostamos que, a partir das relações estabelecidas
entre experiência, memória, história, narração e fazer pedagógico, a experiência torna-se
fundamental para o processo educativo. Aprendemos que estabelecer rotas, caminhos,
metas para o fazer pedagógico, independente da intencionalidade que permeia esse
processo, será sempre um aprisionamento, uma linearidade da qual a experiência se
esquivará. É nesse sentido que arriscamos pensar o spleen baudelairiano como
possibilidade do educador, em vias do mal-estar docente, afetado por uma
“melancolização”, poderia (re) significar o mal-estar que o acomete.
Nas Minima moralia, assim como em “Experiência e pobreza” encontramos uma
visão inconformista com as condições objetivas e subjetivas do mundo administrado. Em
meio a inúmeros exemplos da vida cotidiana, a questão do declínio da experiência fica
eliminando dele a natureza da punição como elemento que mantém a disciplina, o poder. Portanto, os
docentes precisam compreender o passado de sua profissão no intuito de (re) significar, pela autorreflexão, o
mal-estar que os acometem.
208
a literatura sobre o assunto considera como atual, mas que somente é mais aguda a
percepção desse mal-estar no tempo presente. Nesse sentido, propomos pensar o mal-estar
para além daquilo que foi identificado nas teses e dissertações aqui analisadas, ou seja, por
meio da experiência podemos pensar o mal-estar pela produção do novo, do desassossego,
da desestabilização.
O modo que fica evidente de relação com o mal-estar explicitado no material em
análise é o de implicação na construção de resoluções para o mal-estar vivenciado pelo
professor na escola. Pensar nessa construção de “resoluções” para o mal-estar docente
implica em desconsiderar que o mal-estar é constitutivo da própria subjetividade do
indivíduo. Assim, conforme está posto nas teses e dissertações de mestrado, o mal-estar
docente é identificado como sofrimento, cansaço, perda da vontade de trabalhar,
desinteresse pela escola, queixas e reclamações que devem ser suportados
inquestionavelmente; ou então, o modo de relação com o mal-estar docente é o de
disposição para a problematização e de implicação na construção de resoluções.
Esta construção e modo de entender o mal-estar docente implicam em
desconsiderar a tese fundamental freudiana presente no “O mal-estar na civilização”, ou
seja, “o antagonismo irremediável existente entre as exigências da pulsão e as
possibilidades de sua satisfação no processo civilizatório”. Quando esse mal-estar se
instala, a saída mais frequente apontada nos trabalhos é a de negá-lo ou buscar recursos
que possam objetiva e organizacionalmente resolvê-lo. Daí o constante psicologismo no
campo escolar.
Constatamos que, ao invés do professor enfrentar o mal-estar como questão a ser
elaborada e re-significada, a escola busca consultorias-remédios que suprimam o sintoma,
sem precisar colocar-se a pensá-lo. Não por acaso tal discurso educacional é, na verdade,
uma transposição do discurso empresarial e o mesmo se repete, seja em uma escola ou em
uma fábrica.
Assim, fica evidente em grande parte dos trabalhos analisados que o problema do
mal-estar docente se resolve pela formação inicial e continuada do professor através da
aquisição de técnicas e instrumentos ou aplicação do conhecimento produzido pelas
ciências da educação, atendendo a necessidade do desenvolvimento da sociedade racional,
da exigência do aumento da eficiência e da demanda da qualificação profissional
necessários para que o docente resista às mazelas diárias de seu ofício.
211
Esse elemento da educação pela administração – não apenas discursiva, mas nas
práticas adotadas dentro das escolas, inclusive as tediosas “dinâmicas motivacionais”, as
artificiosas apologias do “espírito de equipe e trabalho coletivo” que povoam as
orientações técnicas dadas aos gestores escolares - esvazia o potencial de resistência do
professor. Aparentemente ele resiste a apreender a situação como um todo e limita-se a
buscar soluções imediatistas que funcionam como paliativos. No ambiente escolar, os
professores vivem os fatos como dados. São impossíveis de problematizar as experiências
de desestabilização, de pensar o que se está instalando em suas subjetividades. Desse
modo, o mal-estar docente não pode ser passível de ser problematizado, mas apenas vivido.
Percebemos que as consequências das condições de trabalho encontradas pelos
professores como fadiga psico-física, frustração, sentimentos de impotência, doenças,
estresse, nervosismo, depressão, absenteísmo trabalhista, síndrome de burnout funcionam
como estratégias defensivas à experiência dolorosa do mal-estar docente. Assim, o mal-
estar não pode ser reduzido a uma questão meramente instrumental como está posto pelos
discursos dos pesquisadores que a ele se remetem.
De forma oposta, propomos pensar o mal-estar na escola enquanto expressão de
algo que está devindo, ou seja, o mal-estar como anúncio de desacomodação, que relativiza
suas certezas e que faz com que o professor busque novos recursos e meios para lidar com
os acontecimentos cotidianos. O mal-estar é inevitável. Desse modo, propomos encará-lo
como crítica, pautando-se pela possibilidade de re-narrar, experienciar. Assumimos o mal-
estar docente enquanto trabalho de resistência, pois a educação apenas reproduz o que os
autores dessa temática chamam de “fenômeno” mal-estar docente.
A questão central do presente trabalho é compreender que o mal-estar é
constitutivo da modernidade, da cultura e da subjetividade do professor e não meramente
um “fenômeno”. A partir desse ponto, entendemos que a educação87também é (re)
87
O ato de educar insere-se em um contexto assinalado pelo conflito humano, por isso desvela certo mal-estar
que permeia a relação pedagógica na interação ensino-aprendizagem. Ao discorrer sobre as três fontes de
onde provém o sofrimento, a angústia, Freud (1930) enfatizou que uma das prováveis causas esteja no
relacionamento entre os homens no convívio social. Para haver convívio social, há necessidade de regras e
normas que vão mediar os relacionamentos por meio também da educação. Contudo, o desejo de completude
e de controle impostos pelos ideais educativos em detrimento da singularidade e subjetividade dos sujeitos
enlaçados no contexto pedagógico paga um preço alto para viver o bônus dos bens culturalmente construídos
pela civilização. Nessa perspectiva, tornamo-nos estrangeiros no mundo civilizado, andarilhos imersos no
mal-estar paralisante das exigências de um ideal educativo distante da realidade humana, que não reconhece
as leis do desejo. Por isso, mesmo com o empenho, o esforço e os aparatos metodológicos que o professor
usa no seu fazer pedagógico, ele não consegue executar o planejado com perfeição, não “controla” tudo,
restando o sentimento de frustração ante a percepção de que há sempre algo faltando.
212
produtora do mal-estar docente, mas ao mesmo tempo se organiza para “eliminar” esse
elemento da subjetividade do professor.
Assim, pensar o mal-estar docente como um fenômeno – como supõe a literatura
aqui consultada - implica em aceitar essa discussão como algo “novo”, “que surge da
contemporaneidade” “dos novos tempos”. Contrário a isso, pensamos o mal-estar docente
não como um fenômeno, mas sim como um traço da subjetividade do professor, com uma
certa tensão com a realidade, ampliando a crítica.
A partir de um registro filosófico, nosso objetivo é desconstruir essa literatura do
mal-estar docente, a qual esvazia esse mesmo conceito. Não é esse mal-estar que interessa
pra nós. O objetivo aqui foi confrontar, questionar os autores, demonstrando o quanto a
literatura produzida sobre o mal-estar docente é limitadora da compreensão dessa mesma
problemática. Coping, resiliência, terapia coletiva, medidas protetivas e curativas, MBI,
são exemplos de interpretações instrumentalizantes para um problema que não pode ser
reduzido à esfera instrumental. Concordamos que o mal-estar é inevitável, mas ele pode ser
(re) significado. E a formação cultural a qual estamos aqui reivindicando com Adorno pode
levar à (re) significação do mal-estar docente.
A experiência educativa que defendemos é a que se propõe, a partir das narrativas
e do pensamento crítico, afetar ao outro. Uma experiência em que o professor propicie
meios para se evitar a repetição daquilo que foi Auschwitz. Como enfatizado por Adorno
(1996), a única possibilidade de sobrevivência da cultura e, portanto, da formação e da
educação, é o exercício da autorreflexão crítica sobre a pseudoformação. Daí a importância
de se resgatar, no processo educacional, a experiência formativa.
Esse resgate significa a crítica radical aos momentos/situações que impeçam os
indivíduos da capacidade de realizar experiências. É, além disso, a luta para “mudar
radicalmente as condições sociais e materiais de produção que continuamente geram as
múltiplas situações de vivências que abafam as possibilidades de experiências” (PUCCI,
1997, p. 112). Ir contra a semiformação é, para o autor, educar para a contradição e para a
resistência. A emancipação – autonomia, maioridade – não ocorre simplesmente por
processos de escolarização; por isso, a formação do professor não se dá apenas nos cursos
de “formação”, mas também por meio da cultura, da arte, da política, da ética.
Assim, acreditamos ser possível e necessário analisar essa realidade do mal-estar
de modo ampliado, com o objetivo de evitar o risco do reducionismo e de análises parciais.
O que fizemos foi cartografar essa temática (tendo como objeto as teses e dissertações),
213
REFERÊNCIAS
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PUCCI, Bruno. A teoria da semicultura e suas contribuições para a teoria crítica da
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