Ppge/Fct/Unesp/Pp: Campus de Presidente Prudente

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Campus de Presidente Prudente

PPGE/FCT/UNESP/PP
ADEMIR HENRIQUE MANFRÉ

O MAL-ESTAR DOCENTE E OS LIMITES DA EXPERIÊNCIA NO


TEMPO PRESENTE: UMA LEITURA FRANKFURTIANA

Presidente Prudente/SP
2014
1

Campus de Presidente Prudente

PPGE/FCT/UNESP/PP
ADEMIR HENRIQUE MANFRÉ

O MAL-ESTAR DOCENTE E OS LIMITES DA EXPERIÊNCIA NO


TEMPO PRESENTE: UMA LEITURA FRANKFURTIANA

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


graduação em educação da Faculdade de Ciências e
Tecnologia – PPGE/FCT/UNESP/PP/SP, como
exigência parcial para a obtenção do título de Doutor
em Educação.
Linha de pesquisa: “Processos formativos, diferença e
valores”.

Orientador: Prof. Dr. Divino José da Silva

Presidente Prudente/SP
2014
2
3
4

DEDICATÓRIA

Dedico esta escritura aos meus bens mais preciosos: meus pais Ademir e Eliana,
que me educaram na possibilidade de ser uma pessoa melhor; meus irmãos, Thiago e
Leandro, os quais sempre me apoiaram em meus estudos; meus sobrinhos, João Victor e
Felipe com quem compartilho minhas horas livres para renovar minha alegria e meus
pensamentos e à minha avó Zenita (In memoriam) com quem apreendi a alegria, a força e a
coragem de empreender grandes obras.
5

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a todos que foram de grande importância para que este
trabalho fosse concretizado. Ao longo do tempo vamos adquirindo uma infinidade de
dívidas que não podem ser pagas com dinheiro, pois representam uma importância que vai
além do material. É para demonstrar a infinita gratidão a essas pessoas que manifesto meus
agradecimentos.
Em primeiro lugar, e de forma muito especial, agradeço ao meu orientador, prof.
Dr. Divino José da Silva, pela generosidade com que me recebeu como seu orientando, por
sua leitura atenta desde meu projeto de pesquisa à execução deste e por sua sabedoria,
orientação competente e pelas numerosas sugestões que contribuíram para o
aperfeiçoamento deste trabalho e também para minha formação.
Aos meus valiosos pais, Ademir e Eliana, para quem tenho minha maior dívida,
pois sempre pude contar com o apoio e suporte deles para enfrentar todas as dificuldades
de minha vida. Obrigado por não medirem esforços para meus estudos, sempre prontos a
me apoiar, mesmo que de maneira tímida. Sei que o orgulho que sentem por mim é
silencioso, pois quando desvelado, pode ter seu brilho admirado.
Aos meus irmãos, Thiago e Leandro, por todo o carinho, apoio e incentivo.
Aos membros da banca examinadora de qualificação, pela leitura minuciosa e
atenta, pelas ricas e significativas contribuições que fizeram ao meu trabalho: prof. Dr.
Pedro Ângelo Pagni e prof. Dr. Ari Fernando Maia.
Aos professores e funcionários do Programa de Pós-graduação, Departamento de
Educação e Central de Pesquisa pelo apoio pedagógico e administrativo que me
proporcionaram.
Aos colegas do Doutorado que participaram das minhas alegrias e dificuldades
nesta caminhada.
Ao meu grupo de amigos e amigas do grupo de pesquisa “Valores, educação e
formação de professores”, com o qual tive a oportunidade de construir e trocar
conhecimentos, mas, sobretudo, de aprender. Sou grato pelos momentos felizes.
A todos os amigos que partilharam esses momentos de minha trajetória, pela
escuta, pelo incentivo e pelo acolhimento.
6

Para encerrar, gostaria de agradecer aos funcionários da biblioteca da


FCT/UNESP/Prudente/SP e do IPUSP pela forma que gentilmente me atenderam e
mostraram-se solícitos em me ajudar.
Através de todas essas pessoas que citei e as que ficaram ocultas é que tive o
privilégio de estudar e concluir esse trabalho.
Creio que a realização deste projeto talvez não fosse possível sem o apoio de
diferentes formas de algumas pessoas. Quero externar a todas elas os meus mais sinceros
agradecimentos. Na dedicatória, todas elas estão referidas e os seus nomes grifados,
certamente, no silêncio acolhedor do meu coração. Silencioso, mas pulsante de gratidão.
Muito obrigado!
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP - pelo
apoio financeiro a esta pesquisa, permitindo a concretização desta etapa de minha vida.
7

RESUMO

MANFRÉ, Ademir Henrique. O mal-estar docente e os limites da experiência no tempo


presente: uma leitura frankfurtiana. 2014. 212 f. Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Faculdade de Ciências e
Tecnologia, Presidente Prudente/SP, 2014.

Esta pesquisa, de natureza teórica, está vinculada à linha de pesquisa “Processos


formativos, diferença e valores” do Programa de Pós-graduação em educação da
FCT/UNESP/Campus de Presidente Prudente/SP e discute o tema do mal-estar docente e
seus vínculos com a formação. Para tanto, partimos da suposição de que o mal-estar
docente é decorrente do processo de expropriação da experiência no tempo presente. Desse
modo, tivemos como objetivo principal investigar em que consiste o mal-estar docente,
clarificando o seu sentido. Uma das intenções da presente pesquisa foi refletir sobre as
contradições geradas pela modernidade no que se refere à sua proposta de formação
cultural (Bildung). Inicialmente, tecemos considerações a respeito das implicações do
debate educacional acerca da temática mal-estar docente para se pensar a pobreza da
experiência na atualidade. Posteriormente, discutimos as principais teses freudianas e de
autores contemporâneos com relação ao “mal-estar na civilização” como processo inerente
à constituição das subjetividades. Por fim, nossa preocupação foi pensar nos desafios
postos pela atualidade para a realização de uma educação com base em uma experiência
formativa. Nesse contexto, refletimos sobre a importância de se conceber os caminhos de
uma educação comprometida com a formação dos indivíduos autônomos, capazes de
buscar a sua identidade, re-significando a percepção da realidade pela via dessa mesma
experiência. Enfim, vimos na Teoria Crítica um referencial teórico-filosófico que
contempla a possibilidade de desenvolvermos em bases diferentes a análise do processo
social em que se insere a educação escolar na atualidade bem como seus vínculos com a
produção do mal-estar docente.

Palavras-chave: mal-estar docente; semiformação; educação.


8

ABSTRACT

MANFRÉ, Ademir Henrique. The instructor’s inquietude and the limits of experience
in nowdays: a Frankfurtian reading. 2014. 212 f. Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Faculdade de Ciências e
Tecnologia, Presidente Prudente/SP, 2014.

This research aims at discussing the topic of the instructor’s inquietude and its relations to
the formative activity. From a theoretical approach, this research is part of the Graduation
Program in Education of FCT/UNESP/Campus of Presidente Prudente/SP, more
specifically of the research line on “Formative process, differences and values”. To
investigate our topic we assume the assumption that the instructor’s inquietude is due to
the process of expropriation of the experience in nowadays. From this, we investigate what
is the instructor’s inquietude so that clarifying its meaning. One of the intentions of this
research was to think about the contradictions produced by Modernity in relation to its
proposal for cultural formation (Bildung). Initially, we make some considerations in
respect of the implication of the educational debate on instructor’s inquietude to motivate
the reflection about the poorness of experience in nowadays. In a second moment, we
discuss the main Freudian thesis, and of others contemporary experts, about the
“Civilizations and its Discontents” as an inherent process to the constitution of
subjectivities. Finally, our central worry in this work was to think about the challenges
posed in nowadays to the achievement of an education based in a formative experience. In
this context, we reflected about the importance of conceive the paths for a compromised
education with the formation of autonomous individuals, which are able to seek for its own
identity, giving a (new) meaning to the perception of reality via its experience. In
summary, we saw in the Critical Theory a philosophical-theoretical referential that
contemplates the possibility for the development (in different basis) of an analysis of the
social process in which is inserted the school education in nowadays, as well its relations to
the productions of the instructor’s inquietude.

Keywords: Instructor’s inquietude; Instructor’s formation; Education.


9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

Capítulo 1. Situando o mal-estar docente 22

1.1. A produção do mal-estar docente 24


1.2. Mal-estar docente: uma problemática da atualidade 25

1.3. Análise sobre o mal-estar docente 66


1.4. Educação e experiência: (re) significando o mal-estar docente pelo pensamento
autorreflexivo 67

Capítulo 2. O mal-estar na modernidade 77

2.1. Freud e o mal-estar na civilização 77


2.2. O fracasso do projeto do esclarecimento na modernidade 101

Capítulo 3. O mal-estar na contemporaneidade 109

3.1. Mal-estar, cultura e subjetivação 113


3.2. A performance do indivíduo na contemporaneidade 125
3.3. Mal-estar e produção de “novas” subjetividades 128

Capítulo 4. O mal-estar docente e a (im) possibilidade da experiência 138

4.1. A degradação da experiência (Erfahrung) 139


4.2. A decadência da narração como expressão do empobrecimento da experiência
148
4.3. Vida danificada e declínio da experiência: um diagnóstico contemporâneo 165
4.4. Formação cultural (Bildung) e semiformação (Halbbildung) 172
4.5. Mal-estar docente: o que há de (inter) dito na escola na contemporaneidade?185

5. Considerações finais 198

Referências 214
10

INTRODUÇÃO

O presente trabalho, de natureza teórica, situa-se no campo da Filosofia e


Filosofia da Educação e tem por objetivo investigar em que consiste o mal-estar docente
que hoje se manifesta como “fenômeno” social no campo da educação.
Optamos em nossa pesquisa pela análise bibliográfica. Segundo Bogdan e Biklen
(1994, p. 51) “esse tipo de pesquisa interessa-se mais pelo processo do que simplesmente
pelos resultados ou produtos. Durante o processo da pesquisa e de, especialmente de coleta
de dados, o pesquisador deve-se perguntar quais foram os elementos constitutivos de uma
determinada ação ocorrida e não apenas com a ação em si”.
Para tanto, propomos os seguintes objetivos específicos para o desenvolvimento
deste trabalho:
1. Investigar o que consiste o mal-estar docente, clarificando o seu sentido;
2. Analisar quais relações se podem estabelecer entre mal-estar docente,
formação docente e semiformação;
3. Investigar, a partir de Benjamin e Adorno, os impactos das mudanças
tecnológicas sobre a subjetividade dos indivíduos e o que disso decorre para o
empobrecimento da experiência;
4. Refletir sobre a possibilidade de se reconstruir a experiência tomando por
base os diagnósticos de Benjamin e Adorno e a reflexão que os autores fazem acerca
desse empobrecimento.
Pensar na ideia do que seja experiência é importante para compreendermos
como ocorre o processo de desenvolvimento do mal-estar docente, bem como o possível
empobrecimento dos modos de refletir sobre o contexto atual. O mal-estar docente não é
algo novo. O problema aqui é analisar o modo como essa temática vem sendo abordada no
campo da discussão pedagógica brasileira, bem como evidenciar os limites dessa mesma
discussão.
Diariamente ouvimos dos telejornais, revistas educacionais e entidades sindicais o
quanto o mal-estar docente tornou-se algo assolador no campo da escola brasileira. Nesse
sentido, é necessário investigar por que essa problemática tornou-se tão acirrada na
atualidade e, dessa forma, evidenciar o que essa discussão entende por mal-estar-docente,
relacionando-o com o empobrecimento da experiência, clarificando seu sentido.
A partir dos objetivos acima delineados pretendemos ampliar as abordagens que
foram feitas por alguns estudiosos, tais como Esteve (1999), Kobori (2010), Sampaio
11

(2008), Leão (2003), Lapo & Bueno (2003), Fonseca (2009), Rodrigues (2011), Fernandes
(2008), Niches (2010), Strehl (2010), Gonçalves (2008), Rodrigues (2009), Weber (2009)
acerca do mal-estar docente a partir da leitura que realizamos de Sigmund Freud e de
outros autores, pensando no sentido do mal-estar na cultura, refletindo sobre os impasses,
as dificuldades e limites no tratamento desta temática e, neste caso, as dificuldades de
tratar desse tema no âmbito da própria educação.
O que se busca, portanto, é identificar os elementos que contribuem para a
perpetuação de uma falsa apropriação cultural, de uma consciência reificada que se
manifesta na perda da capacidade de significar ou conferir sentido ao que acontece no
contexto escolar.
O tema desta pesquisa é recorrente no debate educacional brasileiro na atualidade.
Os problemas que afligem a profissão docente não é algo novo nem original e acham-se
ligados à própria origem, ao desenvolvimento histórico e à desvalorização social dessa
profissão. Há de se ressaltar que, com a industrialização e modernização crescentes das
técnicas e do modo de trabalho manejados pelas forças do capitalismo, a escola e o
profissional da educação tiveram que acompanhar as mudanças aceleradas oriundas do
contexto atual que assolaram o campo pedagógico.
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN 9394/96 – o
indivíduo deve ser formado para o exercício da cidadania e para a qualificação para o
mercado de trabalho. Esse parece ser o fim último da formação humana. O discurso que
circula é o de que o professor deve estar preparado e especializado para educar, conforme
os padrões pré-estabelecidos pelas normas e legislações educacionais, as quais são
“efeitos” do mercado sobre as instituições escolares.
O que mais impressiona é o contínuo acirramento do mal-estar docente em todo o
mundo. Do mesmo modo que o tecido social, a docência é desgastada ante as insatisfações
grandemente justificadas dos professores, os descontentamentos dos alunos, a insatisfação
com relação às políticas públicas para a educação, a questão salarial, as condições de
trabalho precárias, classes superlotadas, indisciplina, pais omissos, ausência de uma rede
de apoio, falta de autonomia dos professores, enfim.
12

Todos esses são fatores que se têm associado ao que Esteve (1999), Codo (2002) e
Jesus (1998) denominam de mal-estar docente1 e que têm levado o professor a vivenciar
momentos de despersonalização, exaustão emocional e pouco envolvimento no trabalho.
O mal-estar docente é uma doença social produzida pela falta de apoio da
sociedade aos professores, tanto no terreno dos objetivos do ensino como
no das recompensas materiais e no reconhecimento do status que lhes
atribui. [...]. As pesquisas realizadas coincidem em descrever o professor
como uma pessoa condenada a fazer mal seu trabalho, já que nos últimos
anos acumulou-se sobre suas costas a quantidade de responsabilidades,
sem as contrapartidas correspondentes para poder cumpri-las, que
profissionalmente se encontra esgotado, faltando-lhe tempo material para
cumprir tudo aquilo que considera seu dever. (ESTEVE, 1999, p. 144-
145)

Na escola, esse mal-estar2 fica evidente quando professores, direção e pedagogos


não sabem o que fazer para lidar com aqueles que não se encaixam na “norma” geral que a
escola apresenta nas suas propostas pedagógicas. Além dessa primeira constatação, há
outra que se refere ao tema da formação, também de grande repercussão no debate
educacional brasileiro, acerca, sobretudo, da formação de professores.
Ao fazer uma revisão da literatura sobre formação de professores, seja em artigos
de revistas especializadas, seja em obras literárias - Nóvoa (1997), Freire (1996), Pimenta
(2002), para citar alguns - o que ganha destaque é a questão da formação continuada.
Manifestam-se, nesse contexto, como temáticas privilegiadas, as discussões e investigações
sobre a formação de professores reflexivos, de professores autônomos, de professores
pesquisadores, de professor colaborador, professor polivalente, autoformação,
interformação e de muitos outros adjetivos para o professor que se possa imaginar. Assiste-
se a uma valorização da produtividade na escola, da competitividade, da capacidade de se

1
Esta expressão tem sido largamente usada, nos últimos anos, na literatura que versa sobre os professores e o
magistério, especialmente após a publicação, em 1986, da obra de José Manuel Esteve intitulada “O mal-
estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores”, cuja tradução para o português ocorreu em 1992.
2
Na psicanálise, o termo mal-estar é usado por Freud para designar a angústia. De acordo com Kaufman,
(1996), a expressão mal-estar surgiu primeiramente em um artigo de Freud produzido em 1895 para destacar
um desconforto típico da neurose de angústia. Mais tarde, o termo reaparece no texto “O mal-estar na
civilização” de 1930, no qual Freud situa as exigências da civilização como uma das causas das neuroses e
sofrimentos humanos. A inquietude de Freud estava em descobrir o que tinha de oculto, o que estava
escondido por trás do sintoma e da doença. Como médico neurologista, além do exame físico, Freud passou a
ouvir mais as queixas de seus pacientes, compreendendo que por trás da manifestação do sofrimento psíquico
ou físico, havia todo um contexto histórico, social e cultural, passando a se importar com a trajetória de vida
da pessoa, da infância em especial. O pai da psicanálise evidenciou que o ser humano passa por diversas
experiências que são essenciais para a constituição de sua personalidade, mas que nem sempre são benéficas
ao bem-estar da vida cotidiana. Dito de outro modo, essas vivências marcantes são inscritas no inconsciente e
ao se manifestarem o fazem de diversas formas, tais como atos falhos, sonhos, transtornos, chistes, enfim, por
sintomas psíquicos e físicos – causadores do mal-estar. Como veremos adiante, esse mal-estar é próprio da
condição humana, portanto, não há como o indivíduo dele escapar.
13

adaptar continuamente, de ser criador e criativo, de aprender constantemente e de


diferentes formas.
Nesse contexto multifacetado estão incluídos a figura do professor e os saberes
que servem de base para a sua prática pedagógica. A formação muitas vezes é entendida
como sinônimo de qualificação, preparação, profissionalização, como uma ação educativa,
como um saber fazer pautado por um aspecto técnico-instrumental. Constata-se uma visão
utilitarista na configuração da formação de professores. Nesse sentido, acreditamos que o
arcabouço teórico a respeito da formação de professores no Brasil apresenta limites para se
pensar a própria ideia do que seja o mal-estar docente vivenciado pelo professor na escola.
Lopes (2001) anota que, em pesquisa realizada na Europa sobre a escolha
profissional dos professores, foram apontadas, dentre as principais razões, o gosto por
trabalhar com crianças, a missão social que ainda permeia o trabalho na escola e também
pela adequação dos horários (especialmente para a mulher, também dona de casa) e pelo
número de dias de férias.
No entanto, argumenta Lopes (2001), após a formação inicial e ao entrar na
profissão, o discurso do professor muda: as motivações positivas que o fizeram aderir ao
magistério, dando vazão ao caráter estereotipado da profissão, entram em “choque com a
realidade” revelando uma “discrepância entre o sonhado e o realizado” (p. 46) e isso vem
acompanhado de sentimentos de insatisfação e mal-estar.
Esteve (1999) enfatiza que o coletivo dos professores encontra-se diante de uma
crise de identidade, apresenta sentimentos contraditórios sobre o sentido do trabalho que
realiza, angústias e dúvidas decorrentes das mudanças socioeconômicas produzidas pela
inovação tecnológica, as quais refletem no âmbito pedagógico conduzindo-os a uma
posição de desconcerto que caracteriza o que denomina mal-estar docente.
Esses processos, segundo Esteve (1999), geram no professor o desencadeamento
de vários sintomas: ansiedade, aflição, dores de cabeça, cansaço físico, levando-o a não
desenvolver ou não ter um bom desempenho no trabalho. Nesse sentido, entrega-se a um
mal-estar relacionado à sua nova função requerida pelas mudanças socioeconômicas.
Codo (2002), em parceria com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Educação (CNTE), apresenta uma pesquisa realizada com uma amostra de 30.000
trabalhadores em educação, tendo como resultado “a imagem do professor desanimado,
queixoso até de detalhes insignificantes sobre o seu trabalho, sua clientela, tratando os
alunos como se estivessem lidando com uma linha de montagem de salsichas...” (p. 237).
14

Jesus (1998, p. 17), estudando a situação do trabalho docente em Portugal, destaca


que “os professores portugueses apresentam índices de mal-estar superior aos verificados
com os professores de outros países europeus”. O mal-estar é descrito por Jesus (1998, p.
61) como a “última fase de um processo de confronto”, resultado dos esforços do professor
para corresponder às exigências profissionais que ultrapassam seus recursos adaptativos,
gerando estresse. Esse esforço, quando não encontra uma resposta positiva, gera exaustão
profissional e define a situação de mal-estar docente.
Conforme Farber (2001), os professores sentem-se fisicamente e emocionalmente
exaustos, apresentam-se irritados, ansiosos e com tristeza profunda. Como sintomas, os
mais apresentados são insônia, dores de cabeça, úlceras e hipertensão. Lapo & Bueno
(2003), em estudo realizado entre os anos 1990 e 1995, constatou a presença de alguns
aspectos relacionados ao contexto social que se mostraram relevantes para a geração do
mal-estar docente, “primeiramente, por gerarem uma sobrecarga de trabalho; depois, a falta
de apoio dos pais dos alunos, um sentimento de inutilidade em relação ao trabalho que
realizam; a concorrência com outros meios de transmissão de informação e cultura e,
também, é claro, os baixos salários” (p. 77).
Segundo Esteve (1999), frente à sobrecarga de trabalho, o absentismo tem sido
cada vez mais comum, isto é, o professor termina por recorrer às licenças médicas que
possam interromper temporariamente seu trabalho. O professor passa a investir menos
energia em seu trabalho, apega-se a rotina e assume uma rigidez na relação com seus
alunos, chegando mesmo ao abandono da profissão, doenças mentais e dificuldades na
atuação profissional.
Se atentarmos para os diferentes diagnósticos expostos sobre a educação
contemporânea, constataremos que todos eles não fogem, de modo geral, do seguinte
quadro de problemas: inadequada formação dos educadores; os currículos e programas
inadequados/ultrapassados; a violência escolar e a indisciplina; ausência na sala de aula de
tecnologias de última geração; instalações precárias e insuficientes; ausência de
comprometimento entre a escola e a comunidade. São todos problemas que, de alguma
forma, afligem os sujeitos envolvidos com a educação, confirmando o quadro desalentador
em que esta se encontra.
Recentemente, alguns pesquisadores brasileiros, tais como Rodrigues (2011),
Kobori (2010) e Gonçalves (2008), afirmaram em suas pesquisas que o mal-estar docente é
um “fenômeno” que se reforça cada vez mais no campo educativo. Para estes autores, a
15

cada dia aumentam, no cenário contemporâneo, as exigências de novas competências para


o mundo do trabalho e ao profissional da educação. Nesse contexto, é fundamental buscar
novas formas de aprender, pesquisar para identificar os problemas educacionais. Para esses
pesquisadores, no cenário contemporâneo têm ocorrido grandes modificações que exigem
dos docentes atualizações e construção constante de conhecimentos, tendo que criar
estratégias para solucionar o mal-estar.
Esse parece ser o fim último da educação, ou seja, ao professor resta apenas criar
mecanismos para evitar que o mal-estar docente o impeça de exercer sua atividade didática
e pedagógica de maneira satisfatória, com eficácia e eficiência. Nesse ponto, o mal-estar
docente é encarado como algo que assola o contexto escolar, algo que impede o professor
de exercer seu trabalho de acordo com o que determinam os programas pedagógicos.
Aqui, reside um dos aspectos de nosso trabalho de pesquisa, qual seja, estabelecer
uma crítica com relação às abordagens que foram feitas do mal-estar docente e a leitura
que pretendemos realizar amparados em conceitos fundamentais como experiência
(Erfahrung), vivência (Erlebnis), formação (Bildung) e semiformação (Halbbildung).
Todos os fatores anteriormente assinalados geram, segundo Esteve (1999, p. 74), “o desejo
de abandonar a profissão docente, porém, sem conseguir um abandono real, recorre a
diferentes mecanismos para fugir dos problemas cotidianos”.
De acordo com Esteve (1999), o mal-estar docente é um fenômeno internacional,
cujos sintomas começaram a se fazer evidentes no início da década de 1980 do século
passado. Partindo de dados estatísticos de relatórios sobre saúde, os quais indicam
problemas referentes à atividade docente, este autor apresenta a evidência do problema em
fatores característicos da função docente como questões relativas aos recursos materiais e
humanos e, ainda, nas modificações no contexto social das últimas décadas, o que trouxe
mudanças significativas para o perfil do professor e as exigências pessoais e do meio em
relação à eficácia de sua atividade.
O diagnóstico do nosso presente que esses autores realizam coloca desafios para o
campo educacional. Talvez o mais imediato seja o de pensarmos de maneira crítica a forma
como o ensino se transformou em um campo de aplicação de saberes científicos,
eliminando, assim, qualquer margem de indeterminação própria à prática educativa.
16

Esse problema suscita uma suspeita em relação ao projeto da modernidade3,


lembrando a ele os custos de seu desenvolvimento: a redução da experiência ao empírico –
produzida pela racionalização da existência desenvolvida pela aplicação da ciência e da
técnica à vida – a restrição do pensamento às categorias formais, rígidas, o que teria
minado a autonomia dos indivíduos.
A expropriação da experiência no mundo moderno está eminentemente
relacionada com o projeto de ciência moderna, à medida que a mesma instaura o
pensamento racional como a única via possível para o acesso ao conhecimento. O filósofo
italiano Agamben (2005) encontra no projeto das ciências modernas e em Bacon o
primeiro indicativo da fragmentação entre conhecimento e sujeito.
De acordo com Bacon, afirma Agamben (2005, p. 25), a verdadeira experiência
inicia-se com o predomínio do conhecimento racional, que guia os passos do conhecer e do
dominar o objeto de conhecimento e orienta as ações produzindo novos experimentos
passíveis de controle. Assim, a verdade fixa, então, no experimento e não na experiência
produzida pelo sujeito que a realiza.
Desse modo, o sujeito já não tem mais a possibilidade de fazer experiência, mas
apenas de apropriar-se de um conhecimento resultado de experimentos pré-determinados e
manipulados e não os necessariamente produzidos por aquele que detém seus resultados.

3
O tema do projeto da modernidade é o tema da razão como um projeto de uma racionalidade baseada numa
dimensão de autonomia, vinculada ao domínio da natureza e não mais baseada na autoridade metafísica. O
projeto Iluminista equivalia à pretensão de desenvolver a emancipação do indivíduo do jugo da autoridade,
libertar os seres humanos do “mito” a partir da capacidade humana de criação e da descoberta científica, ou
seja, ampliar o grande ideal de esclarecimento no próprio progresso humano, no seu desenvolvimento dentro
da sociedade moderna. Esse otimismo na “razão esclarecedora” levava o pensamento filosófico a afirmar que
o indivíduo havia alcançado a possibilidade da maioridade racional e que a razão se desenvolvia plenamente
para que o conhecimento da realidade e das ações humanas fosse atingido por completo. O germe do
desenvolvimento da concepção de razão cientificista e tecnológica já encontra em Descartes espaço
privilegiado, colocando a necessidade do método para garantir que a representação dos objetos, isto é, que as
imagens mentais interiores correspondam às manifestações dos objetos exteriores. Para o racionalismo
cartesiano a razão tem como objetivo estabelecer o princípio das ideias claras e distintas, afirmando que estas
não vinham da experiência sensível, mas já era uma construção do espírito, das ideias inatas, que não estão
sujeitas ao erro, sendo [a razão] o fundamento de toda ciência moderna. A partir do pensamento moderno
inaugura-se um plano da razão como experiência das promessas de poder e domínio da espécie humana. Os
domínios da razão, orgulhosa de suas possibilidades, vislumbravam um entusiasmo em seu caráter
autossuficiente, especialmente a partir das conquistas científicas inseparáveis da técnica. Assim, a
modernidade desenvolveu a crença de que a humanidade caminha na história guiada pela razão em direção a
um mundo melhor. Como vimos, os ideais da modernidade eram configurar um pensamento legítimo para
formar o ser humano cada vez mais racional, desenvolver nele sua individualidade autônoma, pautar-se sobre
uma crença na autonomia da razão, na consciência ética e na liberdade humana. Mas, a razão moderna, ao
ficar reduzida ao desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia, assumindo um modo unilateral de
racionalidade, demonstra uma visão parcial e instrumental que tenta adequar meios e fins do conhecimento
humano, levando o indivíduo a diferentes formas de dominação, afirmam Adorno & Horkheimer (1985).
17

Agamben (2005) localiza também outro marco, por ele denominado de “projeto
moderno”, que se focaliza a partir do pensamento cartesiano, no qual a centralidade do
conhecimento está no sujeito, contrastando o pensamento racional com a sensibilidade, na
maior parte das vezes enganadora, levando a um pensar inexato e sujeito ao erro.
Descartes propõe alguns caminhos, regras, um método para se guiar na razão: o eu
penso (ergo cogitum) garante a certeza da qual não se pode duvidar. Essa certeza constrói o
edifício da razão que ignora a sensibilidade e, por consequência, de qualquer experiência
empírica para se chegar a verdades. Desse modo, o conhecimento não poderia mais estar
amparado em algo que estivesse fora do sujeito da razão ou que viesse fora dele. De acordo
com Descartes, observa Agamben (2005, p. 29), um conhecimento só poderia ser
produzido pelo sujeito da razão e pelo uso correto e exato dessa razão, dado a partir da
consciência.
Nas ciências modernas, afirma Larrosa (2002), a experiência é menosprezada à
medida que é objetivada, homogeneizada, controlada, previsível e fabricada de tal forma
que acaba por converter-se em experimento. Uma das consequências disso é a exclusão da
imaginação dos limites da experiência, que ocasiona um irremediável empobrecimento das
formas de chegar ao conhecimento.
Como ressaltado anteriormente, partimos da suposição de que o mal-estar docente
está ligado à “pobreza da experiência”, ou melhor, à impossibilidade do professor re-
significar, no sentido crítico, o que acontece na escola e fora dela. Aqui reside o núcleo
central de nosso trabalho de pesquisa, ou seja, pretendemos criticar as leituras dos autores
que estudam o mal-estar docente encarado como um “fenômeno” - consideradas por nós
limitadoras da compreensão desse mesmo mal-estar.
É uma compreensão limitadora no sentido de que esses pesquisadores negam a
dimensão subjetiva que compreende o ofício docente, desconsiderando que, já em sua
gênese, o docente estaria fadado ao mal-estar dado à própria função civilizatória. Para
esses pesquisadores, combater o mal-estar docente através de medidas como o coping,
resiliência, terapias de grupo é o que cabe à escola na atualidade. Desse modo, ao
desconsiderar a ambiguidade do seu próprio trabalho – face objetiva e outra afetivo-pessoal
– o docente estaria envolvido por um empobrecimento de sua experiência com o contexto
escolar. A dificuldade aqui está em identificar como isso acontece conosco no tempo
presente, principalmente numa cultura marcada pela pressa, pela rapidez, pelo pensar
instrumental.
18

A partir do exposto, consideramos relevante a realização de outras leituras que


focalizem a temática mal-estar docente na atualidade. Aqui reside um dos elementos de
nossa reflexão, qual seja, o de avançar na compreensão do mal-estar docente, levando em
consideração o sentido formativo da experiência a qual estamos aqui reivindicando,
permitindo novos sentidos, como construção, como lugar de significação, de
descontinuidade.
Tendo em vista os objetivos propostos para esta pesquisa, organizamos esta tese
em quatro capítulos, nos quais buscamos articular os temas e os conceitos que, a nosso ver,
são pertinentes para a discussão em torno do chamado “fenômeno” mal-estar docente pela
literatura analisada. A relevância deste trabalho firma-se em apontar a necessidade de
atentar a novas construções subjetivas de nossa época, ampliando, portanto, a possibilidade
de investigação sobre a temática proposta. Partimos da consideração de que um dos
elementos que descreve o mal-estar docente é aquilo que foi descaracterizado,
desconsiderado pela racionalidade instrumental, ou seja, a individualidade, a autonomia e o
pensamento crítico.
No capítulo de abertura, intitulado “Situando o ‘fenômeno’ mal-estar docente”,
analisamos o modo como o mal-estar docente vem sendo discutido no campo educativo.
Apresentamos uma síntese dos estudos sobre o mal-estar docente para, em seguida,
avançarmos na compreensão dessa abordagem. Nessa parte do trabalho, detemo-nos na
análise de parte dos 21 trabalhos levantados (19 dissertações e 2 teses), cujo recorte
temporal compreendeu os anos entre 2001 e 2010.
As pesquisas e estudos aqui apontados comprovam a existência do problema e,
sobretudo, revelam um quadro preocupante no que diz respeito ao exercício da docência
diante do aumento do mal-estar entre os professores. Uma sociedade que vive a urgência
do momento, a superficialidade ou o caráter unívoco de algumas análises do mal-estar
docente nos conduz a elaborar outros olhares a respeito dos sentidos e indefinições
atribuídos a essa temática.
No segundo capítulo, intitulado “O mal-estar na modernidade”, refletimos, a partir
do referencial psicanalítico freudiano, acerca das bases constituintes do mal-estar na
civilização. Para Freud, a civilização impõe ao homem a renúncia das pulsões, tanto da
sexualidade quanto da agressividade. O modo como Freud (1997) apresenta a concepção
de mal-estar, nesse momento, abrange uma série de outros conceitos desenvolvidos ao
longo da teoria psicanalítica. Contudo, a gênese desta ideia remete-nos ao início do
19

movimento psicanalítico, já que a relação entre o mundo externo e as pulsões sempre tenha
sido concebida por Freud como da ordem do conflito, sendo, portanto, uma das fontes de
mal-estar. O texto referência para este debate é o ensaio freudiano “Mal-estar na
civilização”, de 1930.
Na perspectiva de compreendermos o mal-estar instalado no professor pelo
programa de uma educação racionalizada e instrumentalizada, decidimos buscar na obra
freudiana e também em outros autores da psicanálise contemporânea reflexões que
possibilitem desvendar os caminhos que levam o profissional da educação a apresentar
sintomas de sofrimento psíquico oriundos do mal-estar desencadeado pelo processo
civilizatório. Podemos perceber que a noção de mal-estar na psicanálise não está resumida
a uma visão biológica do organismo em vias de adoecimento, como na medicina
tradicional, mas apresenta-se como um reflexo da subjetividade do sujeito, ou seja, como
algo que quer significar uma outra forma de um outro sofrimento. O mal-estar é
constituinte da civilização e do próprio indivíduo, uma vez que os processos de
desenvolvimento do sujeito e da civilização estariam conjugados.
Nessa parte do trabalho também recorreremos aos diagnósticos apontados por
Adorno & Horkheimer (1985) com relação à ideia de que o projeto da Alfklärung encontra-
se imanentemente presente desde os primórdios da civilização e se caracteriza,
fundamentalmente, pelo fato de que o progresso sempre esteve atrelado, paradoxalmente, à
regressão das capacidades humanas. A proposta dos frankfurtianos é pensar de que forma a
razão transformou-se em irracionalidade, voltada apenas para a dominação, discutindo
aspectos inerentes à formação do indivíduo na qual a subjetividade é enfraquecida.
Dedicamos o terceiro capítulo à temática mal-estar e contemporaneidade. A fim
de analisar a formação das subjetividades, buscamos elencar os destinos do desejo na
atualidade, na medida em que se torna possível investigar o que há de sofrimento nas atuais
formas de personalidade e então elaborar uma compreensão do mal-estar vivenciado pelo
professor. Segundo Birman, temos dificuldade em dar um destino ao mal-estar (conflito
entre pulsão x civilização) no campo do pensamento e da linguagem e, consequentemente,
sintomatizamos esses elementos no corpo por meio do patológico. É necessário ressaltar
que o nosso trabalho não visa o estudo de patologias específicas, mas sim modalidades de
experiências do sujeito que convive com o mal-estar docente.
Considerando que a leitura freudiana do mal-estar está profundamente enraizada
na modernidade, autores como Bauman (1998, 2001, 2004, 2009), Birman (1999) propõem
20

pensar o mal-estar freudiano dando relevância para a frequência em que o mesmo é


considerado na atualidade. Certamente, a condição humana é afetada pelas transformações
advindas desse novo contexto. Os modos de ser sofrem as consequências desse momento
em que domina o discurso da produtividade, da competitividade, da rapidez e do
individualismo.
No quarto capítulo, intitulado “O mal-estar docente e a (im) possibilidade da
experiência” defendemos a tese de que a experiência, no sentido benjaminiano, seria um
elemento fundamental para a formação e para a educação sem o qual, portanto, ambas se
dão de modo precário. Nos anos 1930, Benjamin (1994a) já pressentia que o
empobrecimento da experiência não era um problema puramente individual, psicológico
ou subjetivo. Era o mal-estar de uma época, pretensamente civilizada, tecnicamente
desenvolvida, que constrói um labirinto entre a herança cultural e o homem ocidental. Para
o filósofo, o monstruoso desenvolvimento da tecnologia, a mercantilização da cultura e a
miséria da vida humana levaram os indivíduos a usurparem a experiência (Erfahrung) em
favor da vivência (Erlebnis), a formação pela semiformação, o passado pela
instantaneidade dos fatos corriqueiros.
A experiência (Erfahrung), portanto, tem um caráter histórico, que se integra à
vida de uma pessoa com o passar do tempo e com a acumulação de outros aprendizados,
sendo capaz de deixar marcas por onde passou. Por isso, é que ela não pode ser uma
vivência, entendida como uma simples sensação, efêmera e que pode ser rapidamente
esquecida. A experiência (Erfahrung) é algo forte, deixa rastros e alimenta-se da memória
e das rememorações, afirma Benjamin (1994a).
Da mesma forma que Baudelaire, Benjamin faz dessa constatação não só objeto
de sua reflexão, mas a transforma num modo de viver constitutivo de um novo ethos, cujo
pressuposto consiste em tomar o “contemporâneo nu, deitado como um recém-nascido nas
fraldas sujas de sua época” (BENJAMIN, 1989, p. 116). A experiência aqui é pensada
exatamente pela impossibilidade de objetivação e de universalização da razão,
características tão caras ao pensamento moderno.
A experiência (Erfahrung) está vinculada por isso, à narrativa. É nesse sentido
que se pode compreender o conceito de experiência dado por Adorno no texto “Teoria da
semicultura”. Ela é entendida como a “continuidade da consciência em que perdura o ainda
não existente e em que o exercício e a associação fundamentam uma tradição no
indivíduo” (p. 405).
21

Diante da amplitude que caracteriza a temática, consideramos importante refletir


sobre a crítica do presente; pensar sobre a relação entre mal-estar e temporalidade; mal-
estar e predomínio do saber científico no debate educacional; mal-estar e competitividade;
mal-estar e formas de controle; mal-estar e as dificuldades para se pensar a pobreza da
experiência; pensar sobre a relação entre mal-estar docente, formação docente e
semiformação, elementos estes não clarificados e não explicitados pelos estudiosos da
temática mal-estar docente na atualidade. Trata-se, portanto, de refletir sobre o impacto
causado pela modernidade na produção das subjetividades dos indivíduos, levando em
conta esses aspectos.
Diante do exposto, objetivamos, em nosso trabalho de pesquisa situar o modo
como a temática mal-estar docente vem sendo discutida no debate educacional brasileiro
para, em seguida, pensarmos formas de re-significar tal problemática, tendo a experiência
formativa como um elemento-chave desse processo. Podemos afirmar que os estudiosos do
mal-estar docente apresentam um limite em suas considerações teóricas, pois os mesmos se
limitam apenas a reforçar os diagnósticos sobre o mal-estar vivenciado pelos docentes,
pouco acrescentando à discussão da subjetividade do professor que vivencia o mal-estar na
escola.
Novamente, colocamo-nos diante do processo de desapropriação ou
empobrecimento da experiência no âmbito da escola, processo este que se tornou
necessário graças à racionalidade instrumental, que tem nas inovações tecnológicas
destinadas ao cotidiano o enquadramento dos indivíduos nos mecanismos de interdição,
controle e de silenciamento não só da subjetividade (percepção, aparato psíquico), mas
também do nosso corpo, adestrando-o. Esses elementos tornam mais difíceis a tradução
dos fatos da vida em experiências narráveis que se reproduzem nas escolas, através de seu
intento de uma multiplicidade uniforme e contínua de conhecimento.
Assim, temos na relação mal-estar e empobrecimento da experiência o nosso
principal ponto de discussão em nosso trabalho de pesquisa. Desse fato decorre a
necessidade de ampliarmos, a partir da leitura de Freud, Benjamin, Adorno e de outros
autores, o sentido do mal-estar na cultura para se pensar os impasses, as dificuldades e
limites no tratamento desta temática e, nesse caso, as dificuldades de tratar desse tema no
âmbito da própria educação.
22

CAPÍTULO 1 – SITUANDO O MAL-ESTAR DOCENTE

Nesta parte do trabalho investigamos o que consiste o mal-estar docente e como o


mesmo é retratado no campo educativo. Para a elaboração deste capítulo, analisamos
pesquisas e publicações sobre o mal-estar docente com o objetivo de verificar a recorrência
da abordagem sobre essa temática, de modo a legitimar nossa preocupação nesse campo de
estudo. É que, quanto mais nos aproximávamos do “sofrimento” docente, mais
percebíamos que a “raiz”, se assim podemos dizer, do mal-estar docente era algo que não
se encontrava na própria reflexão do professor. Dentre as publicações examinadas
destacam-se, para os propósitos desta tese, as obras de Esteve (1999), Kobori (2010), Lapo
& Bueno (2003), Leão (2003), Lopes (2001), Mosquera & Stobaus (2000), Niches (2010),
Prioste (2006), Rodrigues (2009), Sampaio (2008), dentre outros. Na bibliografia
consultada o mal-estar docente é encarado como um “fenômeno” no campo educacional.
Em nossas análises tentaremos demonstrar que considerar o mal-estar docente como um
“fenômeno” implica em descaracterizar o mal-estar como um elemento inerente à própria
subjetividade do professor.
Esteve (1999), a partir de pesquisas realizadas por outros autores europeus,
tornou-se o primeiro a utilizar a expressão “mal-estar docente” na década de 1980. Nesse
sentido, pretendemos entender porque este autor é tomado como referência nos estudos
sobre mal-estar docente nas produções bibliográficas analisadas neste trabalho. Antes dele,
o professor Juan Mosquera, foi autor de diversas publicações na década de 1970,
resultantes de pesquisas na área de educação. Mosquera aborda a temática da afetividade
que atravessa todo o processo de ensino-aprendizagem e que não era levada em conta,
principalmente nos cursos de formação de professores. Ele não utiliza a expressão mal-
estar docente, mas pontua em seus escritos “a problemática do professor”, refletindo sobre
o sofrimento derivado das suas frustrações na prática da sala de aula e conduz sua
investigação a partir da dualidade professor como pessoa x professor como profissional.
A palavra mal-estar se presta a inúmeras conotações, de acordo com a perspectiva
adotada. Neste estudo, é usada para designar um elemento inerente à própria condição
humana, que diz respeito a um resto não satisfeito ou por satisfazer, que se atualiza em
cada cena cotidiana articulada nas relações do sujeito com o mundo. Os modos de
expressão do mal-estar, por sua vez, constituem-se como efeito das práticas sociais que
implicam o sujeito em vínculos que sustentam a sua existência.
23

O dicionário Houaiss vincula “mal-estar” ao “desgosto”. O significado de mal-


estar aparece como:

- sensação desagradável de perturbação do organismo; indisposição que não


chega a configurar doença; incômodo, indisposição; 2. Estado de inquietação,
de aflição mal definida, ansiedade, insatisfação; 3. Situação embaraçosa;
constrangimento (HOUAISS, 2001, verbete mal-estar).

Esses são sinais concretos que, mais adiante, serão apontados nas pesquisas
realizadas no campo educacional. Este estudo não visa, portanto, patologias específicas,
mas modalidades de experiências dos sujeitos que vivenciam o mal-estar na educação.
Assim, não pretendemos nos deter sobre situações em que, por exemplo, a ocorrência de
um quadro tradicional da psicopatologia psiquiátrica é determinante do modo como o
sujeito se insere no campo escolar. Não é nossa intenção também determo-nos em figuras
específicas do campo da psicopatologia do trabalho, como é o caso da síndrome de burnout
ou do esgotamento profissional.
Pretendemos nos deter nas posições do sujeito frente à vivência do mal-estar na
escola, que consideramos características do cenário contemporâneo e que são
determinantes das formas de mal-estar docente. O trajeto proposto não tem obviamente a
pretensão de esgotar o tema, no sentido de abordar todas as formas de mal-estar na escola.
Trata-se tão somente de um recorte orientado por interesses específicos que advêm da
nossa experiência como pesquisador no campo educacional, ou seja, trata-se de investigar
o modo como a temática vem sendo debatida no campo da pedagogia, mais
especificamente, questionar como os pesquisadores dessa temática concebem tal elemento
presente no campo educativo.
As pesquisas e estudos aqui analisados comprovam a existência do problema e,
sobretudo, revelam um quadro preocupante no que diz respeito ao exercício da docência
diante do aumento do mal-estar entre os professores. Diante desse cenário, numa sociedade
em que vive a urgência do momento, ou seja, a velocidade, a rapidez, o transitório, o
pensar instrumental, o consumismo exacerbado, o narcisismo nosso de cada dia, a
superficialidade de algumas análises do mal-estar docente nos instiga a construir outros
olhares a respeito dos sentidos e indefinições atribuídos a essa problemática.
24

1.1. A PRODUÇÃO DO MAL-ESTAR DOCENTE

As pesquisas realizadas entre 2001 e 2010 envolvendo teses e dissertações de


mestrado, disponíveis no banco de dados da CAPES4, têm demonstrado, entre outras, a
preocupação em apontar as causas do mal-estar docente bem como as possibilidades e
estratégias de prevenção.
Para encaminhar a discussão sobre o mal-estar docente realizamos uma análise
preliminar da produção acadêmica sobre essa temática. Como uma das fontes de pesquisa
para abordar a temática mal-estar docente, consultamos a base de dados do Portal CAPES
na internet. Embora reconheça que o portal CAPES não representa todo o conjunto da
produção acadêmica na área da educação, a opção por esse banco de dados levou em conta
a sua importância, já que o mesmo tem se tornado referência para a comunidade acadêmica
brasileira, especialmente no campo da educação.
A análise da produção teórica acerca da temática mal-estar docente permitiu-nos
identificar 21 trabalhos envolvendo teses e dissertações de mestrado. O recorte temporal –
2001-2010 – se justifica pelo crescente aumento do interesse pelo tema ocorrido ao final da
década de 1990. Outro fator a ser considerado é que pretendemos focalizar o momento
atual, atentando para o que se tem produzido sobre o tema nos últimos anos.
Estamos conscientes de que o universo pesquisado por nós está longe de fazer
justiça a tudo o que se tem publicado sobre a temática aqui proposta. Entretanto,
acreditamos que nossa amostra constitui um acervo bastante representativo da produção,
respondendo aos objetivos propostos nesta pesquisa, que consistiu na análise do mal-estar
docente e na clarificação de seu sentido. Selecionamos, como palavras-chave para este
trabalho, as seguintes: mal-estar docente; esgotamento profissional, síndrome de Burnout,
angústia docente, insatisfação docente.
A análise bibliográfica se faz necessária pela complexidade do objeto de estudo.
Nesse sentido, também pretendemos identificar nos trabalhos como tem sido abordada a
questão da formação docente no que diz respeito à produção do mal-estar. A temática do
mal-estar é atualmente objeto de estudos de alguns pesquisadores (educadores estrangeiros
e brasileiros) preocupados com o aspecto profissional e com a vida pessoal, com o
trabalhador e com a pessoa do trabalhador da educação. No Brasil, as pesquisas
envolvendo a temática mal-estar docente estão mais voltadas para os professores do ensino

4
Fonte: Pesquisa bibliográfica Portal CAPES 2011.
25

fundamental e do ensino médio. A maioria desses estudos tem como metodologia a


aplicação de uma série de questionários para investigar o macrouniverso da escola.
A primeira constatação que nos chama a atenção é o recorte da realidade
escolhido pelos pesquisadores. Assim, além das peculiaridades geográficas (cidade/estado)
e de rede de ensino (pública/particular e municipal/estadual), temos pesquisas sobre
educadores de creche, professores de ensino fundamental, médio, universitário, de
educação especial e de ensino a distância. Essas pesquisas comprovam a existência do
problema e, sobretudo, revelam um quadro preocupante no que diz respeito ao exercício da
docência perante o aumento do mal-estar entre os professores.
No Brasil, os estudos realizados pelos pesquisadores recorrem permanentemente
aos estudos desenvolvidos por Esteve (1999) e Jesus (1998), respectivamente,
pesquisadores da Espanha e de Portugal, reconhecidos em vários países da Europa e
também no Brasil, influenciando, sobremaneira, as pesquisas brasileiras.

1.2. MAL-ESTAR DOCENTE: UMA PROBLEMÁTICA DA ATUALIDADE

Reconhecido como um “fenômeno” internacional, a temática do mal-estar docente


tem levado um número significativo de pesquisadores e educadores à produção de estudos
investigativos em razão do elevado número de professores que vivenciam a angústia
docente na prática do magistério. No Brasil, o problema não é diferente, pois sinais do mal-
estar docente estão estampados nas atitudes de muitos de nossos professores5.
Quando se remete ao mal-estar, basicamente está se falando de um sentimento de
angústia, frustração, algo que não vai bem. Aparentemente, é motivado por uma série de
fatores de ordem pessoal e institucional que acometem os professores, os quais se sentem
sem condições para enfrentar com desenvoltura os desafios postos em seu ambiente de
trabalho.
O afastamento dos professores de suas atividades pedagógicas por motivo de
saúde e, em particular, por problemas que afetam o estado emocional tornou-se um aspecto
cada vez mais frequente em todo o mundo. É comum os noticiários dos telejornais,
revistas, internet, das mais diferentes regiões do globo sobre como as dificuldades do
cotidiano escolar têm transformado a profissão docente como algo estressante, levando os
5
Diariamente, acompanhamos pelas mídias as diferentes situações de mal-estar vivenciadas pelos
professores, ocasionadas por situações de violência, abandono da sala de aula, estresse, crise de identidade,
falta de apoio pedagógico e dos pais, dentre outros.
26

professores a sofrerem distúrbios de toda ordem e de uma insatisfação permanente com o


ofício de educar.
Já em 1981, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) considerava a
atividade educativa como profissão de risco e uma das mais estressantes. Pelas evidências,
continua até a atualidade em face dos vários desafios que o professor encontra para
desenvolver sua tarefa.
Cardoso (2006) observa que em uma pesquisa realizada pela UnB – Universidade
de Brasília – no ano de 1999, de uma amostra de 30 mil professores, num total de 1.440
escolas de ensino fundamental e médio em todo o país, 26% apresentaram um quadro de
exaustão profissional.
Outra pesquisa, indicada por Gentile (2007) e realizada pela Fundação Victor
Civita com professores da rede pública de todo o país, revelou em uma amostra de 500
professores que 48% sentiam-se inseguros com relação à violência escolar; 63% apontaram
viver um nível significativo de estresse; 54% revelaram sua insatisfação com relação aos
benefícios; 47% demonstraram insatisfeitos com os baixos salários e apenas 21%
afirmaram satisfeitos com a profissão docente.
De acordo com um levantamento realizado pelo jornal Folha de São Paulo, em
2010, a cada dia, um professor se licencia por dois anos e 8% de todos os professores da
rede estadual já estão readaptados, o maior número entre todo o funcionalismo.
(TAKAHASHI, 2010).
Para os professores que ainda não conseguiram se aposentar ou serem
remanejados para outra função, resta o recurso das licenças médicas que, por vezes,
perduram por quase todo o ano letivo. O resultado é a constante falta de professores na
escola pública6, a qual é mencionada pelos especialistas em educação como um dos
principais fatores de baixa qualidade do ensino.
Segundo matéria publicada na revista Nova Escola, de abril de 2008, a rede
estadual de São Paulo, que contava com 250 mil professores, registrava 30 mil faltas por
dia. No ano letivo de 2006, foram aproximadamente 140 mil licenças médicas com uma
duração média de 33 dias, o que redundou numa monstruosa cifra de mais de 4,5 milhões
de dias não trabalhados. O custo anual desse absentismo é de 235 milhões de reais e essa
quantia era “correspondente ao valor destinado pelo MEC para construir, mobiliar e
6
Dados da secretaria de Gestão Pública do Estado de São Paulo, os transtornos mentais são a principal causa
de afastamento dos educadores (32,2%), seguido das doenças dos sistemas osteomusculares (17,6%) e das
doenças do aparelho respiratório (7,4%). (BARROS, 2008, p. 26)
27

equipar 330 escolas de educação infantil em 2008” (POLATO, 2008, p. 39). Segundo os
estudiosos do tema, tal quadro de adoecimento e deserção profissional do professor é
bastante complexo por não se tratar de um problema pontual, mas de uma situação
generalizada.
No ano de 2007, uma pesquisa realizada pelo IBOPE com professores das redes
municipal, estadual e federal de todas as regiões do país, 40% dos pesquisados queixaram-
se de dores musculares crônicas e outros 40% declararam sofrer de alguma doença ou mal-
estar cotidiano. Tal pesquisa informa também que 70% dos profissionais afirmaram estar
insatisfeitos com a carreira docente.
É comum nas matérias jornalísticas sobre a temática mal-estar docente, além de
um acúmulo de dados estatísticos, a reprodução dos relatos dos docentes narrando suas
experiências traumáticas do cotidiano da sala de aula e os sintomas de suas principais
patologias. Assim, temos uma infinidade de relatos sobre agressões (físicas e verbais),
casos de indisciplina, falta de motivação profissional e desinteresse dos alunos como
possíveis causas do mal-estar vivenciado pelo professor na escola. A escola pública é
apontada como um espaço de conflitos constantes, um local insalubre que atenta contra a
saúde física e psicológica do professor.
Conforme a APEOESP – Sindicato dos professores do ensino oficial do Estado de
São Paulo – maior sindicato de professores do Brasil, é preciso levar em conta, além do
desprestígio socioeconômico, também as razões de ordem pedagógica, como as novas
políticas que teriam minado a principal função do professor, que é ensinar. No discurso dos
sindicalistas, a “doença escolar” torna-se uma bandeira política na luta pela melhoria da
educação básica e motivo para uma infinidade de críticas ao governo, às autoridades
competentes e ao sistema capitalista neoliberal.
A APEOESP publicou, no ano de 2007, um estudo sobre a saúde do professor
paulista. A pesquisadora Leda Leal Ferreira, responsável pelo projeto, afirma que a
iniciativa da APEOESP deve aprofundar caminhos e encontrar possíveis soluções para as
péssimas condições de trabalho do professor brasileiro (APEOESP/DIEESE, 2007, p. 7).
A APEOESP também disponibiliza em sua página na internet os trabalhos sobre a
saúde do professor e tem produzido seus próprios levantamentos estatísticos com os
docentes associados. Numa pesquisa realizada pelo sindicato em 2010, 34,4% dos
professores declararam que, no ano anterior, precisaram se afastar ao menos uma vez da
escola por motivos de doença, sendo que, dentre eles, 42,5% por males ligados ao
28

exercício docente. O levantamento também mostrou que 48,5% dos entrevistados têm
diagnóstico confirmado de estresse e 26,6% de depressão crônica (DIEESE, 2010, p. 27).
Em comparação a 2005, esses números eram respectivamente 46% e 25%
(APEOESP/DIEESE, 2007, p. 10), o que demonstra uma estabilidade no quadro de
adoecimento. Ainda segundo a pesquisa, mais de 40% dos docentes afirmam sentir
frequentemente “cansaço, sobrecarga, frustração e exaustão emocional em relação ao seu
trabalho” (APEOESP/DIEESE, 2010, p. 28).
O jornal Folha de São Paulo, em 2007, publicou uma matéria sobre o tema no
caderno Cotidiano. A manchete de capa do caderno foi “30 mil professores faltam por dia
na rede pública de SP” (TAKAHASHI, 2010).
É fato que a temática mal-estar docente tornou-se, na última década, um problema
de saúde pública que tem pautado as discussões educacionais nacionais e internacionais.
Desse modo, o mal-estar docente é encarado como algo que pode e deve ser remediado
para solucionar os problemas escolares.
A profissão docente tem sofrido ao longo do tempo mudanças que interferem no
seu papel desempenhado na ação educativa, deixando entreabertas lacunas entre o ideal e a
realidade do trabalho docente. Segundo Pimenta (2000), na Idade Média, o acesso à escola
continuava sendo restrito à elite da sociedade. Além do trabalho das artes da educação, o
professor assume seu trabalho incorporando o valor de sacerdócio. A tarefa de professar
uma fé atrelada à de professar uma verdade única passa a ser de responsabilidade do
professor. Dessa forma, ensinar uma doutrina era o indispensável na ação docente.
Também aparece como destaque o sentido forte da profissão docente como vocação e que
passa a ser considerada condição essencial para o exercício da docência.
Com o advento da Modernidade, o desempenho das fábricas passa a ser uma
referência para o funcionamento das escolas. De acordo com Pimenta (2000), a produção
capitalista dita normas e regras de relacionamento e traz a universalização do ensino.
Entretanto, continua mantendo-se a dualidade do ensino. Privilegia-se uma educação para
o disciplinamento, com um currículo mínimo capaz de garantir a formação de um
trabalhador com as elementares noções de leitura e de escrita e a matemática prática
elementar. E há outra escola destinada à formação da elite dominante.
Diante do avanço do capital, a profissão docente foi passando por situações tensas
na procura de uma identidade. A profissão de professor sempre foi questionada e julgada
por suas ações sobre a ótica da singularidade e não da complexidade de relações presentes
29

no tecido do seu trabalho. Na década de 1980, no Brasil, a profissão docente foi marcada
por uma consciência de classe trabalhadora; os professores tiveram um ápice de uma
trajetória de identidade de categoria construída com lutas para reconhecimento da
profissão, afirma Pimenta (2000).
Recentemente, porém, não há como desvincular a escola do âmbito maior da
sociedade capitalista e ao enfraquecimento das suas redes de apoio, como os sindicatos por
exemplo. Isso levou as escolas e os docentes a se recolherem, voltando-se para os seus
problemas cotidianos e o professor ficou numa posição de isolamento diante da realidade
de seus alunos e de sua profissão. Assim, os professores, isolados em suas escolas, sofrem
com a intensificação das cobranças atuais da sociedade tecnológica e sentem-se frustrados
diante do pouco êxito do seu trabalho por não encontrarem um ambiente favorável ao
desenvolvimento do seu ofício.
Assim, durante a formação docente, na maioria das vezes o professor não toma
contato com o contexto real das escolas, apenas com imagens que não se coadunam com a
situação do cotidiano. Os professores formados nessa perspectiva, ao ingressarem nas
escolas, sentem-se perdidos, pois as imagens que tinham sobre a educação e sobre os
alunos esfarelam-se no decorrer do seu trabalho, afirma Pimenta (2000).
Outro ponto nevrálgico do trabalho docente é sua situação financeira. Esse
profissional que lutou para ser reconhecido e ter uma posição digna, capaz de manter sua
sobrevivência teve que estender sua jornada de trabalho e postergar muitos de seus sonhos.
A escola expressa os conflitos da própria sociedade. Seria a escola líquida, parafraseando
Bauman (2001). O descompasso entre o discurso da escola e as novas exigências
requeridas pelo mercado de trabalho geram no professor uma crise de identidade, constata
Pimenta (2000).
Pimenta (2000) nos fala das expectativas crescentes em torno do trabalho do
professor na contemporaneidade no sentido de atender a todas as exigências requeridas
pelo mercado competitivo e polivalente, que demanda profissionais qualificados, flexíveis,
com capacidade de aprender a aprender constantemente. Todas essas demandas hercúleas
aumentam os conflitos desse profissional que, consciente das expectativas em torno do seu
trabalho, sente-se impotente, fragilizado diante dos resultados dos alunos. A sociedade
espera a atuação do super-herói, ao projetar na figura do professor o protótipo de salvador
e o professor se rende à culpa por não atingir os objetivos esperados pelo seu trabalho,
finaliza Pimenta (2000).
30

Diante do exposto, a culpa sentida pelo professor diante do seu trabalho provoca
diversos mal-estares, que influenciam diretamente no seu trabalho, estabelecendo um
círculo vicioso de descontentamento. Quando o professor tem uma percepção negativa do
trabalho ou de si próprio, desenvolve o que denominamos de “crise de identidade”7. O
docente não vê resultados positivos da tarefa que desenvolve e se sente incompetente para
reverter tal quadro.
Outro elemento passível de se pensar a crise da identidade do professor, bem
como a situação do mal-estar na escola, é a questão da precarização do seu trabalho que,
segundo alguns autores, verifica-se cotidianamente nas escolas em ações como
contratações temporárias, cujas consequências são a intensificação do regime de trabalho,
o aumento das exigências curriculares, a insatisfação com a jornada de trabalho, o aumento
do individualismo, precarização dos direitos sociais, medo constante, estresse, burnout.
No caso da síndrome de burnout8, é gigantesco o número de informações que se
podem obter em poucos minutos de pesquisa. Com o aumento das pesquisas na década de
1980 e 1990 o termo foi se popularizando nos chamados países de Primeiro Mundo e o
conceito de burnout se legitimou como uma importante questão social que começou a
despertar a atenção das autoridades não apenas educacionais, mas políticos, agentes de
saúde e dos próprios trabalhadores. Encontram-se desde informações mais rasas sobre os
sintomas do distúrbio e os possíveis tratamentos, até artigos científicos que se utilizam de
investigações complexas para calcular a validade do inventário internacional de
caracterização dessa doença, mais conhecido como Maslach Burnout Inventory (MBI).

7
A discussão sobre a crise de identidade docente é muito presente no debate educacional brasileiro
contemporâneo. A crise de identidade docente, segundo Teodoro (1998), associa-se ao mal-estar docente
devido a alguns fatores. Dentre eles, o autor aponta três que são emblemáticos para a crise de identidade do
professor: 1. Exaustão emocional; 2. Despersonalização e 3. A reduzida realização pessoal. Contudo, além
dos fatores contemporâneos que geram a crise de identidade do professor e o faz desenvolver características
do mal-estar docente, Pimenta (2000) enfatiza que não se pode ignorar a história da educação e das escolas
nessa análise. Para a autora, a maneira como se institui a democratização das escolas e as formas de
organização sindical e de controle da formação docente são fontes de crise e mal-estar docente. A autora nos
alerta ainda que o estudo e o entendimento da crise na identidade do professor e na formação de professores
podem apoiar-se na história da educação e na compreensão de que a construção de uma identidade por cada
geração é feita com base em categorias e posições herdadas da geração precedente, buscando a transformação
e reconstrução dessa identidade.
8
O uso do termo burnout é um consenso dos pesquisadores que pesquisam o mal-estar docente e as doenças
ocupacionais dos docentes. É a partir dos anos 1978 que os estudos sobre burnout começaram a adquirir um
caráter científico, uma vez que foram elaborados modelos teóricos e instrumentos capazes de registrar e
compreender esse sentimento crônico de desânimo, apatia e despersonalização. A primeira a propor um
método de investigação capaz de captar o burnout na vida dos mais diversos profissionais foi a psicóloga
americana Christina Maslach em 1978 (cf. Codo, 1999).
31

Independentemente das características ocupacionais da amostra, o MBI tem sido


uma das ferramentas utilizadas pelos pesquisadores para avaliar o desgaste ocupacional
tanto de um indivíduo quanto de uma classe inteira de trabalhadores. A principal
característica do MBI é ser um instrumento de autoavaliação muito rápido, com o qual o
trabalhador não perde nem 15 minutos para preenchê-lo. O questionário é composto por 3
grupos de questões (subescalas). O primeiro (MBI- 1, 2, 3, 6, 8, 13, 14, 16 e 20) avalia a
“exaustão emocional”; o segundo (MBI – 5, 10, 11, 15 e 22), a “despersonalização do
indivíduo”; já o terceiro grupo (MBI – 4, 7, 9, 12, 17, 18, 19 e 21) avalia a “realização
profissional”. O instrumento está assim finalizado. Basta então aplicá-lo para se conseguir
“medir” a subjetividade do indivíduo e sua saúde mental diante dos esforços laborais. Esse
modelo é um dos principais recursos utilizados para as pesquisas com professores
brasileiros. Além dele, há outros modelos explicativos da doença desenvolvidos em várias
partes do mundo, entre eles, o modelo brasileiro “afeto-trabalho” de Codo (1999).
No Brasil existem ainda outros projetos de medição das doenças mentais
produzidas pelo universo do trabalho. Como exemplo, citamos o inventário “Diagnóstico
Integrado do Trabalho” (DIT). Criado no final dos anos 1990 pelo Laboratório de
Psicologia do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UNB), ele
se tornou modelo para a maioria das pesquisas aplicadas que têm como característica
avaliar a subjetividade de um grupo de trabalhadores. Por meio dessas mediações,
podemos visualizar que o mapeamento e a produção de estatísticas sobre a saúde do
professor envolvem diversos setores: institutos de pesquisa, organizações sindicais.
É importante ressaltar que a maioria das pesquisas analisadas justifica o emprego
do MBI e de outros instrumentos equivalentes de avaliação da subjetividade dos
professores, alegando que há poucos estudos sobre as doenças ocupacionais dos docentes
brasileiros e, em particular, sobre o burnout provocado pelas relações escolares.
O que de fato caracteriza essa síndrome? Em quase todas as pesquisas aqui
analisadas o burnout aparece como uma síndrome psicossocial oriunda do estresse
interpessoal crônico ocorrido na situação de trabalho. O Ministério da Saúde (Brasil, 2001)
reconhece a síndrome como uma reação psíquica a condições de trabalho adversas e que
atinge principalmente profissionais que atuam em contato com o público. Segundo as
autoridades médicas, a doença inicia-se com a desmotivação para o trabalho e pode
ocasionar enfermidades psicossomáticas mais graves, levando o profissional ao
afastamento temporário ou definitivo de suas funções.
32

De acordo com nosso levantamento bibliográfico, podemos afirmar que as


principais manifestações da doença são: fadiga, cansaço físico, insônia, transtornos
cardiovasculares, quedas de cabelo, bronquite, asmas, alergias, disfunções sexuais,
perturbações psíquicas, emagrecimento, tristeza profunda, falta de apetite. Como
decorrência desse contexto, situações de desconforto são constantes, justificando assim a
existência do mal-estar vivenciado atualmente diante da complexidade do cotidiano do
professor.
As indicações dadas consideram que o mal-estar é consequência de uma
multiplicidade de fatores – crise de identidade, problemas na formação inicial e
continuada, idealização do contexto pedagógico, síndromes, patologias - que revelam a
falta de zelo para com os professores, cuja função passa por profundas transformações,
exigindo novas competências e conhecimentos que lhes permitam dar respostas adequadas
às necessidades de um cotidiano que se modifica rapidamente.
Observadas essas constatações, é importante tratarmos aqui dos estudos de
Dejours (1998) em “A loucura do trabalho: estudo sobre a Psicopatologia do trabalho”,
sobre as relações existentes entre trabalho, prazer e sofrimento a partir da organização do
trabalho.
Dejours (1998) trata de uma abordagem muito ampla sobre o conceito de
sofrimento do trabalho, em especial, pode-se destacar sua abordagem sobre a ambivalência
“bem-estar” e “mal-estar” no contexto do trabalho. Quando o autor trata da ambivalência
bem-estar e mal-estar quer dizer que o sofrimento no trabalho pode ser entendido “como o
espaço de luta que ocorre no campo situado entre, de um lado, o bem-estar, e, de outro, a
doença mental ou a loucura” (DEJOURS, 1998, p. 153).
Sob o aporte teórico da Psicodinâmica do trabalho, Dejours (1998) explica que, se
a organização do trabalho não é capaz de atender aos projetos, anseios, e desejo do
indivíduo, isso favorece um tipo de sofrimento que é de natureza mental e tem início
quando o indivíduo não consegue empreender mudança com o objetivo de adequar as
tarefas às suas necessidades fisiológicas e desejos psicológicos, ou seja, quando a relação
homem-trabalho é bloqueada.
Assim, o sofrimento depende do tipo de organização do trabalho. Isso significa
dizer que um trabalho repetitivo cria a insatisfação para as descompensações mentais ou
doenças somáticas. Para que o trabalho não seja fonte de sofrimento, mas sim fonte de
33

equilíbrio e bem-estar, salienta Dejours (1998), ele deve favorecer o equilíbrio mental e a
saúde do corpo.
Seguindo nesse caminho e tomando como referência pesquisas realizadas na
Espanha, Esteve (1999) considera que o coletivo dos professores encontra-se diante de
uma crise de identidade, apresenta angústias, sentimentos contraditórios sobre o sentido do
trabalho que realiza decorrentes de um entorno sócio-econômico-pedagógico em constante
mudança, o que se reflete em uma posição de desconcerto e caracteriza o que denomina
“mal-estar docente”. O autor argumenta que “quando usamos o termo ‘mal-estar’ sabemos
que algo não vai bem, mas não somos capazes de definir o que não funciona e por quê”.
(ESTEVE, 1999, p. 12).
Esteve (1999) afirma que o mal-estar provoca efeitos permanentes no professor
derivados da modificação do papel que o mesmo deve (ria) desempenhar na atualidade e
das novas exigências requeridas para a preparação dos alunos para atuar no mercado de
trabalho.
A acelerada mudança do contexto social, em que exercemos o ensino,
apresenta, a cada dia, novas exigências. Nosso sistema educacional,
rapidamente massificado nas últimas décadas, ainda não dispõe de uma
capacidade de reação para atender às novas demandas sociais [...].
Portanto, os professores se encontram ante o desconcerto e as
dificuldades de demandas mutantes e a contínua crítica social por não
chegar a atender essas novas exigências. (ESTEVE, 1999, p. 13)

Esteve (1999) considera que a educação na contemporaneidade coloca ao


professor interrogações que extrapolam a dimensão do conhecimento e atingem o âmbito
dos valores, as atitudes frente à sociedade e o contexto educativo, fazendo-o rever
permanentemente a coerência da própria ação e do próprio pensamento, residindo aí a
ambivalência da implicação pessoal.
Os estudos baseados na sociologia – como os de Esteve (1999) -, na
Psicodinâmica do trabalho – como os de Dejours (1998), apontam para a necessidade de
analisar a saúde/doença do professor numa perspectiva não apenas da individualidade. Ao
contrário, essas análises indicam a necessidade de contextualizar sempre, tanto em nível
das políticas públicas educacionais, quanto no universo específico que constitui cada
escola.
Analisando a situação do trabalho docente em Portugal, Jesus (1998, p. 17) afirma
que “os professores portugueses apresentam índices de mal-estar superiores aos verificados
com os professores de outros países europeus”. O autor enfatiza um programa de ações
34

que, além de promover o entendimento sobre esse mal-estar, possa contribuir para o
desenvolvimento de estratégias que o evitem, possibilitando a realização e
desenvolvimento profissional, encaminhando o professor para o bem-estar docente.
Frente a essas colocações, Jesus (1998) explica que entre os fatores de estresse e
mal-estar docente podem ser apontadas implicações decorrentes da massificação do ensino,
as alterações ocorridas na estrutura e dinâmica das famílias, o aumento das contradições no
exercício educativo, o acelerado desenvolvimento tecnológico e a ruptura do consenso
social sobre a educação.
O mal-estar é descrito por Jesus (1998. p. 61) como a “última fase de um processo
de confronto”, resultado dos esforços do professor para corresponder às exigências
profissionais que ultrapassam seus recursos adaptativos, gerando estresse. Esse esforço,
quando não encontra uma resposta positiva, gera exaustão profissional e define a situação
de mal-estar docente.
Como contribuição a essa temática do mal-estar docente, o autor elaborou um
programa de formação contínua para tentar minimizar os efeitos do mal-estar vivenciado
pelo professor. Essa formação tem a duração de 50 horas e é realizada em várias seções em
que são trabalhados os sintomas do mal-estar a partir do enfoque no modelo relacional. As
conclusões desse trabalho, segundo Jesus (1998), evidenciam uma melhoria nos
indicadores de mal-estar.
Codo (2002), em parceria com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Educação (CNTE), apresenta uma pesquisa realizada com uma amostra de 30 mil
trabalhadores em educação, tendo como resultado “a imagem do professor desanimado,
queixoso até dos detalhes insignificantes sobre o seu trabalho, sua clientela, tratando os
alunos como se estivessem lidando com uma linha de montagem de salsichas...” (p. 237).
Para Codo (2002), a pesquisa por ele coordenada esperava encontrar, diante da
situação limite em que os professores desenvolvem suas atividades pedagógicas, uma
classe de trabalhadores pautada pelo “sentimento de desistência” por ganhar mal e viver
tão mal. Ao ver-se diante de um quadro em que as frustrações somam quase a totalidade do
seu trabalho na escola, desmorona e seu idealismo cede lugar à exaustão emocional, seus
afetos são questionados, sua identidade é contestada. O passo seguinte é o fechamento,
depois a despersonalização e, consequentemente, a indiferença ou o afastamento de suas
atividades (CODO, 2002, p. 54).
35

Desde essa publicação de Codo, é possível atestar um aumento nas pesquisas


relacionadas com a saúde dos professores brasileiros. Todas essas pesquisas, produzidas
nos centros de pesquisas educacionais, nas universidades públicas, publicadas sob a forma
de artigo científico e divulgadas pela imprensa, atestam o surgimento de uma espécie de
“epidemia” de distúrbios emocionais decorrentes do estresse ao qual estariam submetidos
os professores. Nessas pesquisas, o número de professores com algum tipo de distúrbio
psíquico varia de 20% a 70%, dependendo do universo escolhido pelos pesquisadores e da
metodologia adotada. A patologia mais comum nesses levantamentos é a síndrome de
burnout, caracterizada pela literatura médica como um esgotamento emocional crônico
provocado pelo estresse no trabalho.
Nas pesquisas de Esteve (1999), as manifestações do mal-estar docente
compreendem desde sintomas físicos como úlceras, insônias, tensão muscular, problemas
de coluna, doenças cardiovasculares, afecções da laringe e pregas vocais a sintomas
psicológicos, tais como ansiedade e depressão, até chegar a graves comprometimentos da
saúde mental. Para o autor, o mal-estar é resultado das dificuldades no gerenciamento
desse “fenômeno”, ou ainda, da impossibilidade de sua superação.
O pensamento do autor pode ser melhor expresso quando, utilizando-se da
classificação de Blase (1982, p. 103) acerca dos fatores causadores da configuração do
mal-estar, estes podem ser agrupados em fatores primários (que incidem diretamente sobre
a ação do professor em sala de aula) e fatores secundários (referentes às condições
ambientais ou contextuais, afetando e diminuindo a motivação do professor para o
trabalho).
Os fatores primários são classificados a partir dos seguintes aspectos:
1. recursos materiais e condições de trabalho;
2. violência nas instituições escolares;
3. o esgotamento docente e a acumulação de exigências sobre o
professor;
Os fatores secundários são os elencados abaixo:
1. a modificação no papel do professor e dos agentes tradicionais de
socialização;
2. a função docente: contestação e contradições;
3. modificação do apoio do contexto social;
4. os objetivos do sistema de ensino e o avanço do conhecimento;
36

5. a imagem do professor.
Segundo Esteve (1999) esse segundo grupo de fatores atua indiretamente na ação
do professor, afetando sua produtividade, diminuindo a motivação e, em decorrência, o
esforço, a dedicação. Quando esses fatores se acumulam, cita Esteve (1999), interfere na
imagem do professor, delineando uma crise de identidade, conduzindo-o a diferentes
reações.
O autor pontua algumas fraquezas na formação inicial e continuada do professor
como causas do mal-estar docente. Na formação inicial, Esteve (1999) critica a seleção dos
novos professores centrada nos critérios de qualificação intelectual e com enfoques
normativo-idílicos arraigados na imagem social do papel do “bom professor”. Na formação
continuada, critica a inexistência de uma intervenção prática coerente para evitar
contradições na prática docente.
Delineia-se aqui uma ideia que permeará muitas outras passagens, a de que o
professor não está preparado para enfrentar as mudanças e isso gera conflitos inevitáveis.
Segundo Esteve (1999) o professor se sente inseguro, angustiado, pois já não sabe mais o
que ensinar e como ensinar. Ele é pressionado pela sociedade para cumprir um papel que
exige dele novas ações, novas opções metodológicas, o uso de novos recursos tecnológicos
em sala de aula; porém, continuam as velhas condições de trabalho, além de que sua
formação profissional não propicia as condições necessárias para o enfrentamento das
novas exigências tão requeridas pelo mercado de trabalho na atualidade.
Outro elemento apontado por Esteve (1999) como desencadeador do mal-estar é a
fragmentação do trabalho do professor. Cada vez mais seu trabalho se torna burocratizado,
pois, simultaneamente, o professor tem que desenvolver a atividade de ensino e atividades
de administração.
Para evitar o mal-estar docente vivenciado pelo professor na escola, Esteve (1999)
propõe duas abordagens distintas. São elas:
1. preventiva: propõe a reformulação do modelo de formação inicial de
professores, buscando uma maior adequação às novas exigências e problemas
do ensino, incorporando novos modelos de formação que considerem as
mudanças do papel do professor, do contexto social e das relações
interpessoais (ESTEVE, 1999, p. 117);
37

2. curativa: estruturas de apoio e ajuda aos professores em exercício que não


conseguiram uma via de atuação prática suficientemente coerente para evitar
oscilações e contradições em seu estilo docente (ESTEVE, 1999, p. 118).
Esteve (1999) considera ainda como estratégias para se evitar o mal-estar docente:
1. confiança em si mesmo, favorecendo a identificação pessoal na profissão; 2. a
comunicação como veículo de auto-realização do professor nas relações interpessoais com
seus colegas e demais agentes da comunidade escolar, dialogando sobre problemas
metodológicos, organizacionais, pessoais e sociais; 3. metodologia de grupo de
autoaprendizagem; 4. técnicas de relaxamento para responder ao estresse fisiológico e
técnicas cognitivas para atuar sobre o construto cognitivo da ansiedade; 5. melhorar o
ensino como posto de trabalho e como profissão. Conclui afirmando que programas e
técnicas de formação de professores podem conseguir algumas melhorias, mas é
imprescindível a formação universitária superior somada ao apoio social aos educadores
como fatores de superação do mal-estar docente (ESTEVE, 1999, p. 140-145).
Diante do exposto, não há como negar que a profissão docente é uma das mais
estressantes. O seu dia-a-dia é sufocante, marcado por sentimentos de angústia, irritação,
preocupações, frustrações, desmotivações, ansiedades. Com o objetivo de analisar as teses
e dissertações de mestrado levantadas para este estudo, traçamos uma panorâmica com
relação ao percurso empregado.
Para explicitar o modo de construção do objeto de estudo aqui recortado é
oportuno o registro de seus vários movimentos. Como dito inicialmente, realizamos um
levantamento bibliográfico no portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – CAPES; elaboração de resumos a partir da leitura dos textos e
identificação de elementos e de aspectos relacionados ao mal-estar docente, tais como:
tipos de estudo, abordagens teóricas, referências bibliográficas consultadas sobre o
assunto, contextos de aplicação, modalidades de ensino, as palavras-chave como ponto de
entrada no conjunto da produção e cruzamento de ideias presentes nas pesquisas
realizadas.
Cabe ainda explicitar que, nesse primeiro movimento, privilegiamos algumas
questões de análise, tais como: o que as pesquisas consultadas entendem por mal-estar
docente? Como elas o caracterizam e o contextualizam? Quais referências são as mais
privilegiadas? Qual a relação entre formação docente x mal-estar docente, ou seja, o que
38

foi lido nas teses e dissertações de mestrado sobre formação de professores; quais os
limites de tal temática encontrados nos estudos?
Quanto à configuração teórico-metodológica privilegiada nas pesquisas é
importante observar que a maioria delas (15 trabalhos no total) corresponde a estudos
empíricos, embora essa denominação algumas vezes pareça esvaziada na medida em que
indiscriminadamente utilizada, chegando a sugerir uma espécie de “guarda-chuva” para
abrigar os mais diversos estudos pontuais.
Na esmagadora maioria das teses e dissertações de mestrado predominam as
indicações aos estudos de Esteve (1999), Codo (2002), Jesus (1998), referências estas que
se tornaram uma espécie de “bíblia” para aqueles que se prontificaram a estudar o mal-
estar docente no Brasil.
Na dissertação de mestrado intitulada “Organização e condições de trabalho de
professoras – mal-estar docente e permanência no emprego: estratégia defensiva?”, Kobori
(2010) investiga o que leva o professor a continuar o exercício do magistério diante do
contexto de insatisfação ou de mal-estar docente. Os questionamentos que permearam o
pensamento da autora para a realização desse estudo foram: 1. Como as condições de
trabalho produzem o mal-estar na profissão docente? 2. Mesmo vivenciando situações de
insatisfação, o que leva o professor a permanecer no trabalho educativo? 3. Como a
remuneração dos professores pode ou não influenciar na escolha dessa profissão?
Para selecionar a amostra com 11 professores da escola que atendessem aos
interesses da pesquisa, apenas quatro professores de uma escola de séries iniciais do
município de Jundiaí/SP foram entrevistados e um questionário foi elaborado para levantar
as características gerais desses docentes. As entrevistas tiveram como foco principal
investigar a atratividade e a permanência na profissão docente, isto é, o que leva os
professores ao magistério e por quê se mantêm como docentes. O roteiro das entrevistas
abordou temas como: condições socioeconômicas; a formação para a profissão docente; as
condições em que os professores trabalham; a organização da escola e como as condições
educativas interferem na produção do mal-estar docente.
No depoimento dos professores, afirma Kobori (2010), é possível perceber que
uma das principais queixas sobre o trabalho docente refere-se à relação estabelecida entre a
escola e a comunidade escolar, mais especificamente, entre professores e pais de alunos,
traduzindo-se numa certa desvalorização profissional.
39

O mal-estar sentido por muitos docentes e advindo dessa situação de


desvalorização social da profissão também é expresso pelos professores entrevistados,
principalmente aqueles cujo tempo de magistério é maior. Kobori (2010) utiliza-se das
formulações de Esteve (1999) para entender que parte desse conflito entre pais e escola
advém da falta de consenso da sociedade quanto ao estabelecimento dos valores a serem
transmitidos, do que se deve esperar da escola e da educação.
Percebe-se que a falta de apoio social ao trabalho docente, as condições em que o
trabalho educativo é desenvolvido, as aceleradas transformações ocorridas na sociedade, a
relação estabelecida entre a escola e a comunidade escolar geram no professor uma
[...] situação de instabilidade e indeterminação da conduta a ser
desenvolvida pelos professores que ocasiona nesses professores
sentimentos de ansiedade, fracasso e descontentamento com a profissão.
Não se trata, porém, de uma insatisfação ao nível individual e subjetivo,
mas de algo concreto, experimentado pelos professores como um todo e
que afeta não só seu desempenho na profissão, mas também sua saúde
física e mental. (KOBORI, 2010, p. 70)

Outra dificuldade presente no contexto educativo e vivenciado pelo professor,


afirma Kobori (2010), refere-se à falta de formação adequada desses profissionais perante
às novas exigências do trabalho docente. Atualmente, com o avanço das novas tecnologias
e dos meios de comunicação, os professores se veem obrigados a incorporá-los na didática
de suas aulas como forma de dinamizar o ensino dos conteúdos; ao mesmo tempo, com
acesso à informação presente nos meios de comunicação, a escola tem que concorrer com
as novas tecnologias quanto ao tipo de conhecimento a ser transmitido.
Nesse quadro, podemos perguntar: que tipo de formação é oferecida aos alunos
hoje? E ainda podemos ir mais longe: o que a educação, os professores e todos os
envolvidos no contexto pedagógico na contemporaneidade entendem por formação? Em
nosso entendimento, essas questões merecem estudos mais detalhados, pois não são
abordadas na pesquisa realizada por Kobori (2010). O mal-estar aqui é sentido apenas
como um sintoma social e outros elementos são desconsiderados nessa produção do mal-
estar vivenciado pelo professor.
Sendo assim, um dos aspectos mais importantes constatados na pesquisa foi que
as estratégias defensivas com relação à vivência do mal-estar foram desenvolvidas e
praticadas por todos os docentes entrevistados. No caso dos professores, Kobori (2010)
40

constatou que as dificuldades do trabalho docente são tomadas individualmente, seja como
um problema do professor, seja como um problema do aluno.
Como resultado de pesquisa, Kobori (2010, p. 91) considera que a permanência
do professor na escola, apesar de todo o mal-estar que é vivenciado, é uma estratégia de
defesa. “A estratégia é atribuir ao trabalho docente o caráter de missão ou de paixão pela
profissão. Alguns profissionais continuam trabalhando, apesar das dificuldades, pelo gosto
de fazer um trabalho relevante, embora desvalorizado socialmente”.
Percebendo que o mal-estar docente é um dos fenômenos presentes na educação
brasileira, Sampaio (2008), na Dissertação de Mestrado intitulada “Programa de apoio ao
bem-estar docente: construção profissional e cuidar de si”, objetivou investigar como a
aplicação de um conjunto de estratégias defensivas seria importante para minimizar a
vivência do mal-estar dos professores na escola. A ideia inicial desse estudo empírico foi a
de auxiliar os professores a refletirem sobre sua docência para que construam condições de
bem-estar tanto na vida profissional como na vida privada, envolvendo as dimensões
social, mental, afetiva, física e espiritual, para que construam condições para o seu bem-
estar.
Após a definição da base teórica para essa temática, baseada nas pesquisas
desenvolvidas por Esteve (1999) e Jesus (1998), a autora apresenta a condução do trabalho
investigativo, as questões de pesquisa, os objetivos e as decisões metodológicas adotadas
na realização da pesquisa.
A pesquisa foi proposta aos 34 professores do município de Ibema, no estado do
Paraná, atuantes em três escolas, sendo uma privada e duas do ensino público de ensino.
De forma voluntária, os professores responderam a um questionário aberto, com questões
que versavam sobre o que os professores entendiam por mal-estar docente; quais os
objetivos do sistema de ensino; o que eles entendiam por identidade docente; o que eles
consideravam como fatores do esgotamento docente, bem como a acumulação de
exigências sobre o professor.
Analisando os questionários, Sampaio (2008) observou que muitos fatores da vida
atual, tais como o ritmo de vida acelerado, os ambientes de elevada competitividade, a
sociedade imediatista e consumista e as situações de estresse são fatores que levam o
professor a vivenciar o mal-estar.
Um dos elementos presentes na fala dos professores foi a questão do estresse.
Segundo Sampaio (2008), o estresse, para o seu melhor entendimento, necessita de
41

algumas considerações, haja vista a intensidade com que é mencionado em vários estudos e
por diversos autores.
O conceito de estresse, afirma o autor, foi utilizado pela primeira vez pelo
endocrinologista canadense Hans Salye, na década de 30 do século passado. Desde o
surgimento do conceito, muitas definições têm sido usadas para explicar o estresse e a
maioria o conceitua como um conjunto de situações de alarme e adaptação às condições
ambientais que incluem respostas de ordem fisiológica, psicológica e comportamental que
se manifestam em sujeitos submetidos à excessiva exaustão.
Sampaio (2008, p. 26) identificou que no conjunto de professores pesquisados os
seguintes fatores emocionais são os mais presentes: “distanciamento afetivo, tédio,
impaciência, frustração, dificuldade de concentração, sentimentos depressivos”. O autor
também considera como fatores geradores do mal-estar docente as alterações ocorridas na
sociedade e nas escolas nos últimos anos. A questão da preparação dos alunos para atuar
no mercado de trabalho é a que fica mais evidente. Com isso, algumas condições
educativas foram deixadas de lado com o objetivo último de “formar” os alunos
rapidamente para o mercado.
As consequências, segundo Sampaio (2008), foram: excessivo número de alunos
em sala de aula; demasiada preocupação com o conteúdo da disciplina, esquecendo o
processo de ensino-aprendizagem; grande número de tarefas fora de sala de aula; a péssima
recompensa econômica; carência de material didático; a falta de interesse dos alunos pela
sala de aula, figurando como um dos maiores problemas do ensino hoje, conforme afirma o
autor.
Diante do exposto, o autor busca na literatura sobre a temática medidas
preventivas, algumas referências que indicam formas de como reunir meios para combater
o mal-estar docente, pensando assim em estratégias para o bem-estar docente. O autor
destaca os estudos desenvolvidos por Jesus (1998) e por Esteve (1999):

Encontramos em Esteve referências que partem primeiramente de um


processo de formação inicial do professorado. Para o autor, esse processo
tem uma importância grande no sentido de buscar uma maior adequação
dos professores frente às novas exigências educacionais citando assim
uma seleção inicial do professorado, a substituição de enfoques
normativos por enfoques descritivos e a adequação dos conteúdos de
formação inicial durante a formação inicial e a realidade prática do
ensino. (SAMPAIO, 2008, p. 31)
42

Para tanto, o professor deve desenvolver mecanismos para evitar o mal-estar,


conclui o autor. Outro aspecto ressaltado por Sampaio (2008) é a autoimagem e a
autoestima dos professores no processo de construção do bem-estar docente. Desse modo,
o professor pode entender e antecipar seus comportamentos, cuidar-se nas relações com
outras pessoas, aprender a interpretar o meio ambiente em que vive e tentar ser o mais
adequado às exigências que lhe são feitas (SAMPAIO, 2008, p. 39).
Sampaio (2008) cita ainda as estratégias de coping e a resiliência no sentido dos
professores desenvolverem a capacidade de, pessoalmente ou em grupo, resistirem a
situações adversas sem perderem seu equilíbrio inicial. A resiliência aqui é entendida como
a capacidade de resistência ao choque, à tensão, à pressão vivenciada no contexto escolar.
As formas com que cada professor pode lidar com as situações de mal-
estar podem variar de acordo com a maneira que cada um vê a situação.
O grau de mal-estar docente depende da forma como o professor lida com
as potenciais fontes desse mal-estar, podendo esta forma de lidar ser
aprendida. A formação educacional pode ajudar o professor a
desenvolver competências ou qualidades (resiliência) e estratégias
(coping) para fazer face às principais fontes de mal-estar, contribuindo
para a sua realização e bem-estar profissional. (SAMPAIO, 2008, p. 37)

Aqui reside um dos elementos que também está presente nas demais teses e
dissertações em análise, qual seja, a predominância do discurso de se buscar uma maior
adequação dos professores frente às novas exigências educacionais, adequando conteúdos
à realidade da prática do ensino. Racionalizando o contexto educativo, outras
possibilidades de entendimento do que acontece na escola – como a valorização das
subjetividades, do tato pedagógico, do indeterminado no espaço escolar - são descartadas.
Trata-se, portanto, de uma leitura muito reduzida e simplificada em nosso entendimento.
Weber (2009) estuda em sua tese de doutorado, intitulada “Uma investigação
acerca dos fatores que contribuem para o mal-estar e o bem-estar dos professores que
trabalham com EAD”, os fatores que contribuíram para que docentes do curso de
Pedagogia da UDESC/SC vivenciassem estados de bem-estar ou de mal-estar no exercício
de suas atividades. O estudo, baseado em entrevistas semi-estruturadas, via internet,
através de um site elaborado especialmente para este fim, foi realizado com 15 professores
universitários que exerceram, pela primeira vez, a docência na educação a distância. O fio
condutor da pesquisa alicerçou-se teoricamente nos conceitos de mal-estar e bem-estar na
docência expressos por Esteve (1999) e Jesus (1998) e também por Mosquera e Stobaus
(2000).
43

Weber (2009) afirma que a acelerada mudança no contexto social em que se


exerce o ensino apresenta, a cada dia, novas exigências diante dos quadros multiculturais e
pluralistas nas sociedades. Nosso sistema de ensino, afirma a autora, congestionado de
burocracias e reformas apressadas para atender às mudanças sociais mais urgentes, acaba
por multiplicar as exigências em relação aos docentes, sem o reconhecimento social de que
eles não contam com estruturas de ensino adequadas às novas demandas.
Na verdade, os professores, em sua grande maioria, estão submetidos a
desafios quase que intransponíveis para as suas capacidades diante de
uma educação praticamente falida, desconectada da realidade, uma escola
que não responda às necessidades do educando e um professor
marginalizado socialmente e que, só por crença e esperança, continua a
realizar o seu trabalho. Este quadro, no meu entendimento, tem
provocado sentimentos de insatisfação naqueles professores que
desempenham a docência decentemente. (WEBER, 2009, p. 16-17)

Frente às mudanças sofridas pelo contexto atual, a autora aponta as causas do mal-
estar docente (p. 26): 1. carência de tempo suficiente para elaborar um trabalho condizente
com a realidade do aluno no contexto tecnológico; 2. trabalho burocrático que rouba tempo
da tarefa primordial da escola, que é ensinar; 3. descrença no ensino como fator de
modificações básicas das aprendizagens dos alunos; 4. modificação no conhecimento e nas
inovações sociais como desafios que provocam grande ansiedade e sentimento de
inutilidade.
A autora explica que o professor não está preparado para enfrentar as mudanças e
isso gera conflitos inevitáveis. Novas atividades têm que ser assumidas, porém, continuam
as antigas condições de trabalho, além de considerar que a formação profissional dos
docentes não propicia as condições necessárias para o enfrentamento das novas exigências
e necessidades.
O professor se sente inseguro, angustiado e já não sabe mais o que
ensinar e como ensinar. É pressionado pela sociedade para cumprir um
papel que exige dele um conhecimento mais amplo que ele não tem e não
tem tempo para construí-lo. Exige mudanças metodológicas, mas não
assegura as condições de trabalho, os recursos necessários para que as
mudanças se efetivem. A sociedade ignora, pois, as condições de
trabalho, os limites institucionais, os baixos salários que não asseguram
uma vida digna e muito menos permitem a atualização profissional.
(WEBER, 2009, p. 28)

Alimentando esse quadro de mal-estar estão as mudanças nas relações professor-


aluno. Situações conflitivas, tais como violência escolar e indisciplina estão presentes cada
44

vez mais na prática educacional e os professores ainda não conseguiram organizar novos
modelos de convivência e que, por esse motivo, geram também mal-estar, afirma a autora.
Outro elemento examinado por Weber (2009) em sua pesquisa refere-se à
síndrome de burnout, que é expressa, efetivamente, pelo desgaste, sentimento de
debilidade, de perda de autocontrole, de abatimento e de desamparo (p. 31). Para a autora,
o burnout traduz o resultado não apenas do estresse em si, mas da falta de um sistema de
suporte ou de uma adequada forma de lidar com o estresse, sendo, portanto, um problema
de nossa realidade educacional e um dos indicadores do mal-estar dos professores, motivo
de preocupação, uma vez que estudos e pesquisas mostram que é cada vez maior o número
de pessoas e profissionais que são acometidos pelo estresse.
Diante desse quadro “pouco positivo” no que se refere à realidade escolar no
Brasil, Weber (2009) considera que o bem-estar emocional é uma condição necessária para
a boa prática educativa e implica em desenvolvimento profissional do professor e a
qualidade do ensino.
Amparada nos estudos de Seco (2002) – “A satisfação dos professores: teorias,
modelos e evidências” a autora indica que se deve privilegiar os seguintes fatores para a
construção do bem-estar docente: 1. A importância da relação com os alunos; 2. O grau de
autonomia percepcionado; 3. O sentido da responsabilização e de realização do trabalho
pedagógico; 4. Oportunidade para o desenvolvimento de novas aprendizagens; 5. A
diversidade das tarefas e a oportunidade de utilização de competências e capacidades
valorizadas pelo indivíduo.
Esses fatores, segundo Weber (2009), devem levar o professor a verificar até que
ponto está cumprindo com sua parte na construção de uma nova sociedade, até que ponto
está trabalhando no sentido de atenderem suas necessidades e suas expectativas em relação
à preparação dos indivíduos para o contexto atual.
Examinando mais detalhadamente os argumentos de Weber (2009) podemos
inferir que a autora aponta que mudar a imagem da função docente – tanto para o ponto de
vista da sociedade, como do próprio professor – e tentar reduzir o mal-estar que a atinge
implica mudanças desde a formação, passando pela seleção de pessoal e pelos programas
de ensino, bem como pelo alerta às autoridades, às entidades de classe e à própria categoria
da educação, contribuindo para a vivência do bem-estar na escola. Esse parece ser o
objetivo máximo da educação na atualidade.
45

De acordo com Leão (2003, p. 37), a rotina na ação educativa é o núcleo do mal-
estar docente. Consiste numa ação educativa a que os professores acabam “por aderir
devido à mobilização excessiva de mecanismos de defesa, com intenção de controlar a
ansiedade que emerge da discrepância pressentida entre o seu ideal profissional (moldado
na formação inicial) e a realidade profissional encontrada”.
Lapo & Bueno (2003), em estudo focalizado entre os anos 1990 e 1995,
constataram a presença de alguns aspectos relacionados ao contexto social que se
mostraram relevantes para a geração do mal-estar docente “primeiramente, por gerarem
uma sobrecarga de trabalho; depois, a falta de apoio dos pais dos alunos, um sentimento de
inutilidade em relação ao trabalho que realizam, a concorrência com outros meios de
transmissão de informação e cultura e, também, é claro, os baixos salários” (p. 77).
Conforme Lapo & Bueno (2003), a burocracia institucional, o controle do
trabalho do professor, a falta de apoio pedagógico e a falta de incentivo ao aprimoramento
profissional contribuem para a geração do mal-estar docente, levando o professor a assumir
posturas defensivas que podem ir desde comportamentos agressivos, queixas constantes,
críticas excessivas, restringindo o convívio com os alunos e colegas de trabalho ao mínimo
possível.
Por se encontrarem inseridos em uma sociedade que se transforma muito
rapidamente e que exige constantes mudanças e adaptações, eles se
sentem insatisfeitos ao não conseguirem dar conta das exigências que
lhes são feitas no campo profissional. As exigências nem sempre são
claramente explicitadas e entendidas pelos professores, mas são sentidas
mediante a percepção de que as coisas na escola não estão indo bem, de
que por mais que se esforcem não conseguem atingir um nível de
excelência exigida pela sociedade a ponto de reverter a situação de
precariedade profissional em que se encontram. (LAPO & BUENO,
2003, p. 77)

Todos os fatores anteriormente assinalados geram, segundo Esteve (1999, p. 74),


“o desejo de abandonar a profissão docente, porém, sem conseguir um abandono real,
recorre a diferentes mecanismos para fugir dos problemas cotidianos”. E o mal-estar é um
desses mecanismos.
Prioste (2006), refletindo sobre a angústia e o mal-estar docente, afirma que,
frente à sobrecarga de trabalho, o absentismo tem sido cada vez mais comum no contexto
educativo, isto é, o professor acaba por recorrer às licenças médicas que possam
interromper temporariamente sua atuação profissional. Além disso, o professor passa a
46

investir menos energia em seu trabalho, apega-se à rotina, terminando por desenvolver uma
rigidez na relação com seus alunos, desimplicando-se das tarefas pedagógicas.
A autora destaca que mal-estar e angústia são termos correlatos (p. 142) e no
âmbito da educação o mal-estar docente é tomado como um sintoma de nossa época,
atingindo grande número de profissionais.
As reclamações dos professores podem tanto revelar reivindicações
justas, quanto demonstrar um modo específico do funcionamento
psicodinâmico. Em geral, as reivindicações pressupõem um movimento
que conduza à resolução do problema, enquanto a queixa repetitiva
apenas justifica o problema, ao mesmo tempo em que o mantém sob
determinado controle, uma vez que, ao resolver a situação adversa, o
queixume deveria cessar, e nem sempre é isso que se deseja. (PRIOSTE,
2006, p. 151)

Fonseca (2009), refletindo sobre o mal-estar docente na rede municipal de ensino


em Olinda/PE, investigou em sua dissertação de mestrado a presença do mal-estar na
educação e seus fatores produtores. O estudo foi realizado com 15 docentes de 06 escolas
da rede pública de ensino fundamental e baseou-se na escuta por meio de entrevistas
individuais, tratadas posteriormente pelo método de análise de conteúdo. Dentre os estudos
consultados por Fonseca (2009), merecem destaque o trabalho de Esteve (1999), cujas
pesquisas realizadas em diversos países apontam a presença desse mal-estar, e o da
UNESCO (2004)9.
Fonseca (2009) afirma que em pesquisa realizada no Brasil pela Organização das
Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura – UNESCO –constatou-se que há um
expressivo número de professores descontentes com a sua profissão, uma vez que 35,7%
gostariam de abandonar a função docente. Esses professores, numa amostra de 5000 (cinco
mil) e residentes nos 27 (vinte e sete) estados brasileiros, não relacionavam a insatisfação à
renda salarial, mas ao trabalho em sala de aula; trabalho que exige um esforço em atender
exigências cada vez maiores.
Segundo a pesquisa, tais exigências levam a um descompasso causado pela
distância entre as responsabilidades e o reconhecimento que lhe é atribuído. Esse forte
dilema gera angústia, sofrimento, mal-estar. Os alunos usam da violência contra a escola e
os professores retribuem com sua ausência, desinvestimento na educação, descrédito na
família e no futuro dos alunos. Como conseqüência, aos sujeitos desse contexto resta o

9
Cf. UNESCO. Perfil dos professores brasileiros: o que fazem, o que pensam, o que almejam. Brasília:
Instituto Paulo Montenegro, MEC/INEP. Moderna, 2004.
47

adoecimento, apresentando sintomas que chamam a atenção dos envolvidos no contexto


pedagógico.
A autora encontrou como fatores preponderantes na produção do mal-estar na
educação: ausência de recursos materiais; acumulação de exigências sobre o professor;
condições de trabalho desfavoráveis; modificações no papel do professor; violência;
indisciplina; modificação no apoio do contexto social ao professor e modificações na
imagem do professor.
Com relação aos sintomas que constituem o mal-estar docente, nesse estudo, a
autora identificou: sentimentos de desajustamento e insatisfação, estresse, angústia,
sintomas físicos, afastamento, dores de cabeça, insônia, depressão.
Os entrevistados queixam-se do ambiente escolar, dos alunos e de suas
famílias, da estrutura do sistema educacional e da sua trajetória
profissional, sintetizando os fatores como produtores do mal-estar na
educação. Indagados sobre como se sentem em relação à sua função
profissional, revelaram-se afetados negativamente em seu exercício
profissional, devido à desvalorização e ao desrespeito. (FONSECA, 2009,
p. 99)

No decorrer da pesquisa, Fonseca (2009) identificou como elemento mais


presente no depoimento dos professores as condições de trabalho desfavoráveis, incluindo-
se a remuneração e a extenuante carga horária, a ausência de recursos materiais,
acumulação de exigências na pessoa do professor, “um forte sentimento de desvalorização
existente a partir das condições adversas de trabalho” (p. 74). Nas entrevistas realizadas
nessa pesquisa, em 80% dos professores a autora encontrou expressões que revelam esse
conjunto de consequências negativas ou o ciclo degenerativo da eficácia docente,
manifestado em sintomas.
Os entrevistados, observa Fonseca (2009), queixaram-se do ambiente escolar, dos
alunos e de suas famílias, da estrutura do sistema educacional e de sua trajetória
profissional, sintetizando os fatores como produtores do mal-estar na educação. Indagados
sobre como se sentem em relação à sua função profissional, revelaram-se afetados
negativamente em seu exercício devido à desvalorização e ao desrespeito. Os professores
seguem a sua rotina, adoecendo, sentindo esse mal-estar, que não é apenas seu, mas da
educação como um conjunto, conclui a autora.
Nesse sentido, salienta a autora, as condições para que o processo educativo se
realize encontram-se prejudicadas. O professor tem sua função esvaziada de sentido e
48

reconhecimento, contribuindo para a sua desistência de assumir o papel de condutor do


processo educativo.
O conjunto dos professores presentes nesta categoria analisada,
possivelmente sofre do mal-estar. Permanecem na profissão sofrendo,
revelando uma descrença diante do aluno e do sistema educacional.
Sentem-se desgastados e admitem as dificuldades de enfrentarem
sozinhos toda uma estrutura deficiente em que a educação está inserida.
Ao mesmo tempo, não têm iniciativa de procurar soluções para essa
permanência e parecem demonstrar pouco ou nenhum desejo de buscar
um trabalho que lhes dê mais prazer. Permanecem presos num estado de
angústia e num duelo difícil com as famílias, com os alunos e com o
próprio sistema educacional. É possível que, em algum momento do seu
percurso profissional, tenham tentado investir, mas que tenham
abandonado esse investimento. (FONSECA, 2009, p. 121)

Fonseca (2009) concluiu em sua pesquisa que uma efetivação das políticas
públicas do piso salarial nacional, a modificação nos currículos dos cursos de formação de
professores, do acesso por meio de concurso público e das exigências de qualificação
mínima da graduação para o exercício da docência são atitudes fundamentais e eficientes
no enfrentamento do mal-estar docente. Mais uma vez coloca-se que a formação de
professores seria um ponto-chave para solucionar o mal-estar docente vivenciado na escola
pelos professores. Mas, de que formação esses pesquisadores estão falando?
Na dissertação de mestrado “Do mal-estar ao bem-estar docente: uma análise de
caso Argentina e Brasil”, Rodrigues (2011) analisou os indicadores que produzem mal-
estar e bem-estar docente em 05 professores de cada país, do ensino fundamental de
escolas estaduais e provinciais, respectivamente, da cidade de Porto Alegre/Brasil e La
Plata/Argentina, identificando características pessoais de quem está vivenciando o mal-
estar. A pesquisa teve como objetivo geral investigar as estratégias que os docentes
desenvolvem para a constituição do seu bem-estar. A metodologia adotada foi de
abordagem qualitativa, utilizando como estratégia de pesquisa o estudo de caso. Os dados
da pesquisa foram analisados através da técnica de análise de conteúdo apresentada por
Bardin.
A temática focalizada nessa investigação foi a produção do bem-estar docente
para a superação do mal-estar. A partir da incursão nos pressupostos teóricos, interligados
com os dados coletados na parte empírica, as questões da pesquisa se baseiam na
verificação, a partir dos elementos que desencadeiam e produzem o bem-estar/mal-estar
49

docente, de quais indicadores de bem-estar docente podem ser identificados entre o grupo
de professores pesquisados, observa Rodrigues (2011).
Relacionados com os temas mal/bem-estar docentes, as categorias emergentes da
pesquisa foram as seguintes: 1. ambiente de trabalho; 2. a formação e a prática docente; 3.
a relação professor-aluno; 4. as políticas educacionais e os professores.
A autora toma como referência na pesquisa os estudos realizados por Esteve
(1999) considerando que este autor foi um dos pioneiros a definir o mal-estar docente
como sendo um sentimento resultante dos efeitos permanentes de caráter negativo que
afetam a personalidade do professor (p. 16.).
Rodrigues (2011) afirma que na profissão docente há a presença de duas situações
bem delimitadas: o bem-estar e o mal-estar. O primeiro retrata a realização profissional,
tornando a profissão docente idealizada; por outro lado, o segundo pode transformar-se
numa relação destrutiva, afetando o professor e o aluno, levando-o a adoecer, ficar
esgotado e estressado, o que pode ocasionar o abandono da profissão.
Segundo a autora, esses temas estão presentes em discussões na sociedade, sendo
uma preocupação mundial, pois o mal-estar na docência está ocasionando efeitos
negativos, afetando a personalidade do professor e interferindo na sua prática. Embora a
autora reconheça que os problemas que atingem a docência sempre tenham existido,
manifestando-se de alguma forma, hoje há uma maior preocupação devido ao crescimento
dessa situação.
Por outro lado, afirma, mesmo sabendo que o mal-estar docente é um tema
bastante complexo, existem tentativas de mudar esse quadro, sendo necessárias algumas
mudanças para alcançar esse fim. É o que a autora chama de situações de bem-estar
docente. Aqui, de forma simplista, o mal-estar docente é visto como antônimo de bem-
estar. E a escola deve favorecer situações geradoras de bem-estar como contraponto ao
mal-estar vivenciado pelo professor, finaliza Rodrigues (2011).
Rodrigues (2011) identifica que nas últimas décadas houve uma transformação do
mundo nas áreas tecnológicas, científicas, econômicas, políticas, sociais e culturais. O
conhecimento e a informação têm ocupado funções sociais e econômicas, o avanço das
tecnologias de informação e comunicação tem facilitado a produção e o movimento de
informações. Isso, segundo a autora, são fatores que exigem dos profissionais mudanças e
atualizações como, por exemplo, o domínio das tecnologias da informática. Alguns
professores, afirma Rodrigues (2011), têm utilizado com harmonia as vantagens que
50

oferecem os novos agentes da tecnologia, enquanto que outros mantêm a ideia tradicional,
ignorando a força de penetração e o interessante potencial educativo que os canais de
informação poderiam oferecer ao seu serviço.
Ausência de valorização social do professor, violência nas instituições escolares,
desgaste profissional, acúmulo de exigências ao professor, a inclusão de alunos com
necessidades educativas especiais, trabalho excessivamente burocrático, estresse são
alguns dos aspectos constatados nas falas dos professores da pesquisa que vivenciam o
mal-estar na docência.
Assim como no Brasil e na Europa, a Argentina passa pelas mesmas crises
educativas e institucionais, com necessidades de mudanças no ensino devido aos avanços
das novas tecnologias, das novas exigências requeridas pela sociedade na atualidade,
afirma Rodrigues (2011).
Os resultados da pesquisa revelaram que os professores utilizaram-se de
estratégias para constituir o bem-estar, tornando-se mais resilientes na ação educativa,
desenvolvendo características positivas e otimistas frente às situações cotidianas
vivenciadas não só no contexto educativo.
É fundamental aprender a reduzir o mal-estar e constituir o bem-estar do
professor, e esse deve aceitar a possibilidade da existência das situações
causadoras de problemas, compreender o significado dos sintomas,
identificar os fatores causadores de mal-estar, utilizar as estratégias de
coping no seu trabalho e na sua vida pessoal e, por fim, desenvolver
programas personalizados para a redução do mal-estar. (RODRIGUES,
2011, p. 37)

Dentre as diversas questões postas pela autora, a criação de alternativas para


superar o mal-estar dentro do contexto escolar, mudando a maneira de ver o ser humano,
de modo a enxergar o que há de mais positivo no indivíduo é o que prevalece como
resultado da pesquisa.
Outro aspecto pontuado pela autora refere-se às políticas públicas de formação de
professores. Pensar em políticas para a formação docente implica, segundo Rodrigues
(2011), pensar em projetos sociais e políticos, uma formação para a competência e para a
pesquisa, visando resolver situações-problema, desenvolvendo no processo formativo a
reflexão sobre a prática.
Nesse sentido, o estudo realizado por Rodrigues (2011) demonstra que a educação
de qualidade depende fundamentalmente da qualidade pessoal dos seus agentes educativos,
51

apesar de que nos relatos aparece o descontentamento dos professores – tanto brasileiros
quanto argentinos – referente à sua formação.
As respostas dos entrevistados quanto às estratégias utilizadas para constituir o
bem-estar evidenciam as alternativas, as formas que o docente utiliza para constituir seu
bem-estar pessoal e profissional. Estas foram traduzidas como: “resiliência, projeto de
vida, ou seja, valorização de uma formação pessoal” (p.100).
Ao analisar os relatos dos entrevistados, Rodrigues (2011) aponta que os docentes
utilizam a resiliência (p. 101), a fé (espiritualidade – segundo lugar dentre as respostas dos
docentes), (p. 103), afastamento dos problemas (p. 104), como 4° lugar figura as questões
de impor limites, dialogar, buscar harmonia no seu trabalho (p. 105), realizar paralisações
e/ou greve (p. 106) e em sexto e último lugar aparecem os relatos dos docentes realizarem
terapia (p. 106) como estratégia para superar o mal-estar docente.
Baseada nos argumentos de Jesus (1998), a autora aponta como alternativas para
solucionar o problema do mal-estar na educação o bem-estar na docência – como
contraponto às angústias sofridas pelo professor na sala de aula– e suas inter-relações com
a gestão do estresse, a motivação docente, os processos de formação inicial e continuada e
as práticas educativas como um todo.
Outra competência a ser desenvolvida é de gestão de sintomas físicos, ou
seja, o docente deve desenvolver atividades pessoais que lhe deem prazer,
permitindo sentir-se despreocupado e descontraído, por exemplo:
relaxamento com música, cozinhar, ler, passear, conviver, praticar
esportes. Há ainda a competência da gestão do tempo. Devido à
sobrecarga de funções que os professores apresentam, existe a falta de
tempo para realizarem tudo o que gostariam, tornando-se um problema.
Jesus (1998) sugere identificar as tarefas profissionais que para si são
prioritárias e as de rotina que lhe ocupam tempo demasiado. Depois ele
deve analisar a possibilidade de alterar a forma de realização das tarefas
de rotina, ficando com mais tempo livre para a execução de tarefas
prioritárias. (RODRIGUES, 2011, p. 37)

Da citação acima compreendemos que ao professor é admitida a capacidade de


gerir seus sintomas físicos de modo a desenvolver as tarefas consideradas prioritárias no
contexto educativo. E, para isso, deve administrar racionalmente seu tempo, como se o
tempo subjetivo tivesse as mesmas características do tempo cronológico, objetivo do
relógio. Mais uma vez, a subjetividade do professor, sua memória e sua história, suas
angústias, incertezas são desconsideradas. Apenas os aspectos racionais do contexto
escolar são ressaltados para a superação do mal-estar sofrido pelo professor.
52

Para a discussão dessa temática, Fernandes (2008), em sua dissertação de


mestrado intitulada “A insatisfação no trabalho docente: uma das faces do mal-estar na
contemporaneidade” investigou os fatores que interferem de forma mais imediata no
trabalho do professor e os que especialmente causam mal-estar, insatisfação ou desconforto
do docente.
A partir da análise da produção das novas subjetividades no contexto da
contemporaneidade, a autora afirma que “o estresse e a depressão, as perturbações do sono,
são exemplos patentes do que provoca o novo estilo de vida” (FERNANDES, 2008, p. 49).
Citando Esteve (1999) a autora descreve alguns indicadores determinantes das
mudanças que afetam o trabalho docente. Dentre eles, citamos o “aumento as exigências
em relação ao professor”. Para Fernandes (2008), diante das mudanças oriundas do
desenvolvimento das novas tecnologias da informação e comunicação, ao professor cabe
adequar-se a esse novo contexto no sentido de preparar seus alunos de forma competente,
com capacidade para resolver problemas com o objetivo de acompanhar a velocidade dos
fatos e informação, pois “a adaptação a todas essas condições é prioridade docente”
(FERNANDES, 2008, p. 73). Esse pensamento aproxima-se daquele desenvolvido e
defendido por Rodrigues (2011).
Com relação ao item “mudança dos conteúdos escolares” em análise no seu
trabalho de investigação, a autora afirma que os conteúdos escolares devem estar
adequados à nova realidade do aluno, preparando-o para um futuro próximo. Nesse
sentido, aos professores cabe uma formação continuada que lhes deem subsídios e
segurança “acabando com a desinformação frente às numerosas e constantes alterações”
(FERNANDES, 2008, p. 75).
Outro item analisado pela pesquisadora e também estudado por Esteve (1999) é a
“fragmentação do trabalho do professor”. Para Fernandes (2008), o professor, na
atualidade, além do planejamento, da avaliação e da organização do tempo na escola,
envolveu-se em atividades paralelas que passaram a sobrecarregá-lo, impedindo-o de
desenvolver um trabalho pedagógico eficiente.
Fernandes (2008) concluiu que o cansaço físico e mental, o esgotamento, o
desgaste são consequências naturais do mal-estar vivenciado pelo professor na sala de aula
e que o mesmo se vê impossibilitado de trabalhar esses aspectos que o afligem
cotidianamente. Finalizando a dissertação, a autora propõe que mais pesquisas sejam
desenvolvidas e que ações fundamentais possam ocorrer junto ao magistério, desde a
53

formação inicial passando pelo acompanhamento do trabalho docente no cotidiano escolar


com o objetivo exclusivo de se evitar o mal-estar que acomete os professores na
atualidade. Competência, adequação dos conteúdos, planejamento. Esses parecem ser os
elementos fundamentais para um bom desenvolvimento da aprendizagem na escola,
evitando, assim, a vivência do mal-estar docente.
Strehl (2010) na dissertação “Narrativas de professores sobre o mal-estar docente”
estudou as concepções dos professores com relação aos sintomas que os mesmos
desenvolviam em seu campo de atuação. Apoiada em Esteves (1999) e em outras pesquisas
sobre a temática mal-estar docente para fundamentar os fatores determinantes do mal-estar
Strehl (2010) destaca a falta de apoio social, as difíceis relações estabelecidas entre
professores e alunos na escola, o deficiente funcionamento das escolas, além de
determinadas variáveis pessoais dos docentes.
Em busca de estratégias e prevenção do mal-estar docente, a autora apoia-se em
Jesus (1998) para afirmar que a formação continuada deve adequar-se à realidade vivida
pelo professor e que esta não seja apenas uma forma dos professores acumularem créditos
para a progressão na carreira, mas também de contribuir para a qualidade do ensino, para o
desenvolvimento de competências e, principalmente, para o seu bem-estar.
Por isso, fica evidenciada a necessidade da formação inicial e continuada
ampliar o seu olhar para o docente, levando em consideração, além do
aspecto pedagógico, as histórias e as necessidades dos professores;
podendo, assim, tornar-se um importante instrumento de atualização,
aperfeiçoamento, reflexão, autoavaliação, troca de experiências, debates,
cooperação e tomada de consciência das práticas pedagógicas. Por isso,
necessita estar centrada na realidade, nos interesses dos professores e
adequada ao meio no qual a escola está inserida.(STREHL, 2010, p. 33)

Para continuar aprofundando de que forma o mal-estar atinge os professores,


Niches (2010), na dissertação “Significados do mal-estar docente entre os professores de
história”, investiga o modo como os professores vivenciam o mal-estar na educação. A
pesquisa realizada por Niches (2010) insere-se no campo de discussão da formação de
professores e teve como objetivo geral verificar como os professores caracterizam o mal-
estar e como os mesmos contextualizam-no. Para tanto, Niches (2010) utilizou-se de
entrevistas semi-estruturadas aplicadas junto a 6 (seis) professores de História do
município de Montenegro/RS.
A partir da revisão do que tem sido produzido acerca da temática mal-estar
docente, a autora constata que tal abordagem seria relevante na identificação de elementos
54

e pressupostos que serviriam de subsídios para se pensar em processos formativos mais


efetivos. No estudo que a autora realiza sobre o tema do mal-estar, fica evidente que o
processo de ensino-aprendizagem sofreu mudanças nos últimos anos e esse é um dos
fatores geradores do mal-estar docente. Niches (2010) acrescenta a imprescindível
persistência da reflexão e debate sobre os fins e sentidos da escolarização em nossa atual
configuração social, levando em consideração os avanços tecnológicos com estruturas de
ensino adequadas às novas demandas.
A autora parte da hipótese de que o contexto educacional (político, econômico e
social) é determinante na produção do mal-estar quanto à implicação de cada docente na
profissão.
Parece que o mal-estar dos professores e a indisciplina dos alunos
alinham-se num movimento que denuncia uma ruptura maior – a escola
com seu tempo – e que deixam em seu rastro poucas sombras de
consenso. Fertilizam-se discursos e propostas reformistas e inovadoras,
despontam experiências pontuais nos sistemas educacionais, mas ainda
num processo lento, sem atingir proporções de maior significado,
conforme resultados das avaliações nacionais. (NICHES, 2010, p. 47)

Alguns elementos foram identificados na pesquisa como consequências do mal-


estar sofrido pelos professores: 1. “o absentismo trabalhista e o abandono da profissão
docente” (p. 55). Aqui, a atuação do professor em sala de aula é realizada de forma rígida
para atender aos parâmetros necessários de ensino e presentes nos planos de aula (e
também no Projeto Político Pedagógico da escola), impedindo-o de mostrar o que pensa ou
sente, reduzindo a aula a explicações dos conteúdos, sem buscar relações com o que os
alunos vivem. Mais ainda, o professor reduz e impõe limites ao uso da palavra para que as
perguntas dos alunos não o atinjam; 2. “repercussões negativas da prática docente sobre a
saúde do professor” (p. 55). A autora considera esse fator como último degrau do
esgotamento docente. Nesse aspecto, a saúde física ou mental é afetada em função das
tensões e contradições acumuladas do exercício docente. Assim, depreciação do ego e
culpabilização diante da possibilidade de melhorar o ensino, ansiedade permanente e
angústias são o trajeto realizado pelo indivíduo na manifestação do seu mal-estar.
Fica nítido no acima exposto que quase nada é apontado sobre a subjetividade do
professor. Ressaltam-se apenas os aspectos “aparentes” do mal-estar vivenciado pelo
docente. Parece-nos que o mal-estar docente é minimizado em sua compreensão, em sua
singularidade, em sua dinâmica, deixando margem a outras possíveis interpretações.
55

A autora, ao investir no olhar que esses docentes lançam sobre o mal-estar que
atinge a profissão, propõe simplesmente que se estabeleça, urgentemente, desde a
formação inicial, um novo parâmetro profissional, menos ideal e mais real e consistente,
capaz de apreender as mazelas de seu tempo visando desenvolver uma prática pedagógica
satisfatória e eficiente. Percebe-se que a própria noção do tempo ganha uma nova
dimensão quando melhor administrado para se evitar a produção do mal-estar docente na
escola.
Gonçalves (2008), apoiada em Esteve (1999) e Jesus (1998), em sua dissertação
de mestrado intitulada “Escola pública: bem-estar docente, mal-estar docente e gênero”
investigou as possíveis relações entre bem-estar e mal-estar docente no quadro docente de
uma escola pública no sul do país.
Dentre os objetivos da pesquisa, a autora analisou qual a prevalência dos sintomas
de mal-estar e bem-estar docente em professores de uma escola de educação básica do
município de Alegrete/RS, envolvendo professores efetivos e contratados, em atividade
nos ensino Fundamental e Médio. Nesse estudo de natureza qualitativa e quantitativa, a
autora realizou uma entrevista semi-estruturada com uma amostra de 30 professores dessa
escola, referente ao processo de vivência do mal-estar ou bem-estar docente. Duas
principais variáveis indicadoras do mal-estar docente foram identificadas: 1. estresse diário
(tensão muito elevada e/ou durante demasiado tempo) e 2. altos índices de exaustão
profissional (que, juntamente com o estresse docente, foi o que mais apareceu nas
entrevistas).
Na entrevista realizada com uma professora (identificada como professora A),
com tempo de serviço de 31 anos, com 48 horas em sala de aula (ensino fundamental e
ensino médio), distribuídas em duas escolas, ocupando 23 horas semanais com tarefas
relacionadas à atividade docente, ficou evidenciado que, devido ao estresse, tal professora
relata que pensou seriamente em deixar a profissão nos últimos cinco anos. Destaca ainda
que a professora apresenta “intranquilidade, inquietude, náuseas, problemas estomacais
e/ou distúrbios alimentares, sensação de formigamento no corpo, crises de pânico ou
insônia, não conseguindo raciocinar tão rapidamente quanto antes” (p. 46-47).
As reflexões elaboradas pela autora permitem identificar que os professores se
deparam, frequentemente, com carência de recursos didáticos em sala de aula, falta de
tempo e de condições para atualização profissional, cobrança de novas metodologias,
violência, estresse, indisciplina e excessiva jornada de trabalho.
56

[...] as condições socioeconômicas da categoria docente vêm sofrendo


declínio nos últimos anos em virtude da inexistência de políticas salariais
adequadas, o que determina uma procura cada vez maior por horas
extraordinárias ou trabalho, resolvida na forma de convocações,
contratações por tempo determinado e trabalho em duas ou mais escolas.
Esses fatores, aliados às implicações institucionais, especialmente em
relação à política de recursos humanos e ao sucateamento da escola
pública, aumentam, consideravelmente, as possibilidades de
estabelecimento de estresse e exaustão profissional. (GONÇALVES,
2008, p. 86)

Como proposta de estratégia para solucionar o problema do mal-estar docente, a


autora assinala que o bem-estar docente, nessa perspectiva, seria essencial para
desenvolver níveis adequados de motivação, crenças e expectativas, atitudes positivas e
resilientes frente às situações vivenciadas como angustiantes, contribuindo para o
equilíbrio entre o esforço ou dedicação com as condições objetivas de desempenho da
profissão docente. Nesse estudo, percebemos como o pensamento de Gonçalves (2008) e
Rodrigues (2011) se aproximam com relação às estratégias para se “resolver” o mal-estar
vivenciado pelo professor, ou seja, apenas com algumas doses de bem-estar, identificadas
aqui como atitudes de resiliência, relaxamentos, terapia coletiva, o professor poderá sentir-
se melhor em sua atividade pedagógica na escola.
Finalizando seu estudo, Gonçalves (2008) propõe, como forma de lidar com os
fatores estressores, o coping10, já que o grau de mal-estar docente é determinado pela
forma com que os professores são afetados pelos fatores geradores do mal-estar. Desse
modo, conclui a autora, a partir de sua construção pessoal de estratégias de coping e de
resiliência, o professor poderá desencadear o “eustress” (estresse com conotação positiva,
p. 54) que encaminha para a resolução das situações que produzem o mal-estar na escola.
Atitudes positivas, resilientes, coping, situações de motivação são os elementos
identificados no estudo de Gonçalves (2008) que traduzem formas de encarar, senão
resolver, o mal-estar docente vivenciado pelo professor na escola. Mais uma vez
destacamos que a esses estudos perfaz um grande desafio que se volta para a soma e
construção de novos saberes, propondo novos olhares, intervenções e propostas,
acreditando ser o início de outros estudos e reflexões sobre a temática mal-estar docente.
Trata-se, portanto, de pensarmos como o mal-estar docente pode ser resultado de

10
Na literatura educacional, o coping pode ser entendido como capacidade de estabelecer estratégias
diferenciadas para lidar com os fatores potenciais de mal-estar docente.
57

impossibilidade de (re) significar, pela crítica, o que acontece na escola e fora dela, como
estamos propondo nesse trabalho.
Rodrigues (2009), em sua dissertação de mestrado intitulada “O mal-estar
docente: trabalho, saúde e educação”, abordou o mal-estar docente como um “fenômeno”,
decorrente do exercício da profissão do magistério. Numa pesquisa realizada com os 357
professores que atuam na rede estadual de ensino (fundamental e médio) da cidade de
Curitibanos/SC a autora constatou que 81,19% deles padecem de algum tipo de mal-estar.
A investigação realizada caracterizou-se com um estudo exploratório de natureza
qualitativa e quantitativa, objetivando investigar as possíveis conexões entre
transformações da sociedade e o mal-estar docente.
A autora conceitua mal-estar docente como uma doença social, reflexo das
transformações sociais e econômicas que afetam determinadas profissões ou condições de
trabalho. Percebe-se que esse conceito é baseado nas formulações de Esteve (1999).
Visando dar conta do problema de pesquisa, o estudo foi alimentado pelos seguintes
questionamentos: 1. “as práticas, o cotidiano e as relações no contexto escolar contribuem
para o afastamento do professor da sala de aula?” (p. 21). 2. “quais os principais aspectos
patológicos que acometem a saúde do professor?”.
A autora aponta que a manifestação dessa doença social tem atingido, direta e
indiretamente, o contexto escolar, com níveis de intensidade diferentes, acarretando
diversas consequências ao estado de saúde dos professores. Um dos principais fatores
ressaltados por Rodrigues (2009) refere-se às modificações ocorridas na sociedade
tecnológica e que a escola não acompanhou tais transformações de modo eficaz.
Outro elemento debatido pela autora refere-se à função docente, que sofreu
inúmeras intervenções e estruturações ao longo da história. De preceptor a mestre de
ofício, de mestre de ofício a professor, de professor a docente, sofrendo alterações a cada
época. Baseada nos estudos de Tardiff (2002) “Saberes docentes e formação docente”,
Rodrigues (2009) afirma que os professores ocupam um lugar fundamental no processo
social produtivo. Eles exercem atividades de assistência interpessoal e de dedicação ao
processo ensino-aprendizagem dos alunos, ficando predispostos aos chamados riscos
psicossociais no trabalho, somados aos agravos na condição física que proporcionam
desgastes profissionais.
O tema da identidade docente como um dos fatores geradores do mal-estar do
professor também foi considerado por Rodrigues (2009). Para a autora, o trabalho
58

educacional acumula em sua identidade enquanto profissional, uma construção histórica,


pouco analisada em sua coletividade. Observa que a ausência de estudos sobre o trabalho
focado na docência acabou não constituindo uma identidade profissional conclusa, mas
influenciou na tomada de consciência de condição de assalariado, desvalorizada e
qualificada como trabalhador que serve aos modos de produção.
Desse modo, o professor é assumido pelo mercado de trabalho globalizado como
servidor público e destinando-o para atividades de manutenção de atividades burocráticas
pedagógicas e controlador do conflito social entre escola e comunidade, ou seja, o
professor não apenas como responsável pelo processo ensino/aprendizagem, mas por
tarefas administrativas. Assim, ampliaram-se as funções do professor, restando pouco
tempo para que ele se qualificasse enquanto docente em sala de aula.
Para corroborar suas teses, Rodrigues (2009) cita a pesquisa desenvolvida por
Araújo (2005), intitulada “Mal-estar docente: a avaliação de condições de trabalho e saúde
em uma instituição”, realizada na rede pública de ensino de Vitória da Conquista/BA. Com
uma amostra de 250 professores, os quais apresentavam queixas de saúde como: cansaço
mental, 59%; dor em membros superiores, 52% e distúrbios psíquicos em 55% dos
entrevistados. O resultado dessa pesquisa realizada na Bahia evidenciou o que Rodrigues
(2009) também constatou em seu estudo como os aspectos que promovem o mal-estar
docente: ritmo frenético e repetitivo no contexto escolar; falta de políticas públicas
educacionais; ausência de uma rede de apoio educacional e ausência do apoio familiar.
No tópico “Condições de trabalho e saúde dos professores”, Rodrigues (2009, p.
51) afirma que as doenças ocupacionais oriundas do exercício do magistério são originadas
exclusivamente no interior ambiente escolar. No contexto das condições de trabalho e
saúde dos professores, as sobrecargas de trabalho são caracterizadas por uma extensa
jornada que pode chegar a três turnos; ritmo intenso de trabalho; pequeno período para as
pausas reservadas ao descanso mental; número extenso de alunos por sala de aula, enfim.
Segundo a autora, o estudo das condições de trabalho nas escolas permite caracterizar os
processos laborais e descrever o perfil dos trabalhadores em educação. Com isso, objetiva-
se uma melhor qualificação dos professores que atuarão na educação do século XXI.
O estudo desenvolvido por Rodrigues (2009) apontou que o mal-estar docente
constitui um tipo de manifestação que demanda atenção por parte das instituições
educativas, dos gestores escolares e também da legislação vigente que organiza e
regulamenta a educação.
59

Destas acepções, pode-se salientar que a dinâmica escolar implica num


desencadeamento de doenças, pois a relação trabalho-saúde não é neutra
e pode contribuir para o adoecimento dos professores. Disso decorre o
aparecimento de sintomas que vai depender da estrutura de
personalidade, adquirida muito antes da relação homem-trabalho.
(RODRIGUES, 2009, p. 13)

Da citação acima, podemos apreender que a relação homem-trabalho é o principal


fator desencadeante de doenças no campo escolar. Fica evidente que quando se perde o
sentido e o significado do trabalho docente, algo fica por elaborar no contexto pedagógico.
Mediante esses fatos, observa-se, segundo Rodrigues (2009), a necessidade de um
profissional da educação voltado aos problemas atuais de ensino, questionando os
acontecimentos do cotidiano de seus alunos, pois é a partir desse exercício que o professor
pode solucionar11 o mal-estar que o acomete diariamente. Uma observação se faz
necessária: como questionar os acontecimentos escolares sem o exercício da formação?
Como fazer da dúvida um dos elementos condutores do exercício da reflexão no interior da
sala de aula? Como permitir que a subjetividade do professor se manifeste num contexto
marcado pela racionalidade instrumental? São questionamentos que nos fazemos e
lançamos aos pesquisadores que estudam o mal-estar docente.
A autora identificou os seguintes fatores provocadores do mal-estar docente: falta
de recursos gerais como material didático; escassez de móveis e locais não adequados para
o exercício da docência; defasagem na formação dos professores; deficientes condições de
trabalho e mudanças na relação professor-aluno, professor-família, professor-escola.
Rodrigues (2009) finaliza a pesquisa afirmando que o contexto educacional
contribui para o desencadeamento do sofrimento psíquico e físico do docente oriundos de
inúmeros fatores, entre eles poderíamos apontar questões relacionadas à saúde e trabalho,
considerados pontos fundamentais para surgimento do desgaste e do estresse, entre outros,
provocados pela intensa jornada de trabalho, perda da autoridade do professor, perda da
posição social da profissão.
Como estratégia de prevenção do mal-estar docente, a autora enfatiza que a
formação docente deve proporcionar a aquisição constante de conhecimentos, auxiliando o
professor a “desenvolver competências, qualidade e estratégias (coping) para saber lidar

11
Essa expressão “solucionar” aparece de forma corriqueira nas teses e dissertações aqui analisadas. Desse
modo, percebemos como a própria literatura sobre o mal-estar docente tecnologiza a subjetividade do
professor, criando técnicas de “resolução” do mal-estar docente, como as estratégias de coping, resiliência,
terapia grupal, yoga, situações de bem-estar profissional.
60

com as principais fontes de mal-estar, contribuindo para sua realização e bem-estar


profissional” (RODRIGUES, 2009, p. 21).
Além da estratégia acima, a autora propõe outras (p. 141), tais como: 1.
desenvolvimento de estratégias de intervenção da adaptação do docente em relação à
saúde/doença; 2. proporcionar a organização da carga horária do professor sem que
desencadeie a fragmentação do seu trabalho; 3. orientação sobre os fatores de risco que a
profissão apresenta e de proteção da saúde destes profissionais no desempenho de suas
atividades educacionais.
Se atentarmos para os diferentes diagnósticos expostos até o presente momento
sobre a educação contemporânea, constataremos que todos eles não fogem do seguinte
quadro de problemas: deficiência na formação dos professores; os currículos e programas
inadequados/ultrapassados; a violência escolar e a indisciplina; ausência de tecnologias de
última geração na sala de aula; instalações precárias e insuficientes; ausência de
comprometimento entre a escola e a sociedade. São todos problemas que, de alguma
forma, afligem os sujeitos envolvidos com a educação, confirmando o quadro desalentador
em que esta se encontra.
Podemos notar que os argumentos mais citados pelos autores que estudam o mal-estar
docente se reduzem a reforçar apenas a insatisfação da ação educativa. À luz do que fora
considerado até o presente momento, podemos afirmar que o diagnóstico que esses autores
realizam do nosso presente coloca desafios para o campo educacional. Talvez o mais
importante seja o de pensarmos de forma crítica como o ensino se transformou em um
campo de aplicação de saberes científicos e técnicos, eliminando, assim, qualquer margem
de indeterminação própria à prática educativa. O modo como o contexto educativo
(meramente racionalizado e instrumentalizado) e as mazelas pedagógicas atingem o
professor na atualidade fazem-no um autômato a serviço da racionalidade instrumental,
impedindo-o de re-elaborar e (re) significar de forma crítica o que acontece na escola e
fora dela.
Nos estudos aqui mencionados nada é apontado sobre a subjetividade, os desejos, a
percepção dos professores. Apenas a insatisfação dos professores em sua ação cotidiana
junto à escola, como o esgotamento físico e mental, classes superlotadas, violência escolar,
indisciplina dentre tantos outros elementos reforçados pelos autores em seus estudos são
levados em consideração na geração do mal-estar docente, desconsiderando outros
elementos constitutivos do sofrimento do professor, como exemplo o empobrecimento da
61

experiência, ou melhor a negação da experiência dentro da escola. Nos estudos são


destacados os elementos que os docentes devem ter/desenvolver para se evitar o mal-estar
na escola, mas nada é apontado sobre a singularidade das produções subjetivas sobre tal
aspecto. De maneira diferente, pensamos no sentido formativo da experiência a qual
estamos aqui reivindicando, permitindo novos sentidos, como um florescer, como
construção, como lugar de significação, de descontinuidade.
De forma resumida, a instalação do mal-estar docente provoca uma série de
consequências que afetam a saúde do professor e, consequentemente, transtornos no
trabalho. Uma graduação das consequências do mal-estar docente é identificada nos
estudos dos pesquisadores brasileiros, nesta ordem:
1. sentimentos de desconcerto e insatisfação ante problemas reais da
prática da educação, contradição com a imagem ideal que os professores queriam
realizar;
2. desenvolvimento de esquemas de inibição;
3. pedido de transferência como forma de fugir de situações conflitivas;
4. desejo de abandonar a docência;
5. absentismo trabalhista;
6. esgotamento e cansaço físico permanente;
7. ansiedade como risco ou ansiedade de expectativa;
8. estresse;
9. depreciação de si, autoculpabilização;
10. ansiedade como estado permanente;
11. neurose reativa;
12. depressões.

A partir das consequências do mal-estar acima expostas, os autores que trabalham


com a temática mal-estar docente prosseguem em suas análises referindo-se às estratégias
para evitá-lo. Desse modo, caracterizam alguns indicadores que podem atuar nesse sentido:
1. desenvolver a capacidade de adaptação aos diferentes contextos
(Kobori, 2010);
2. desenvolver a capacidade de superação dos potenciais estressores
(Weber, 2009);
3. potencializar a autoestima (Prioste, 2006);
62

4. ser resiliente (Fonseca, 2009);


5. resolver positivamente os conflitos (Fernandes, 2008);
6. desenvolver intervenções motivacionais no processo educativo
(Gonçalves, 2008);
7. favorecer a auto-confiança do professor (Sampaio, 2008);
8. desenvolver a capacidade de avaliar/resolver as reações dos alunos
(Leão, 2003);
9. entender a escola como um organismo social harmônico (Niches,
2010).

A formação continuada é apontada por Jesus (1998) como um processo que deve,
fundamentalmente, constituir uma oportunidade de construção do bem-estar a partir de um
trabalho em equipe dentro de um processo relacional. A ênfase, nesse caso, deveria ser
dada ao trabalho cooperativo entre os professores no processo de formação, orientando
para a resolução de conflitos e no fortalecimento do apoio mútuo, “[...] o trabalho em
equipe pode permitir a redução do isolamento, o fornecimento de apoio ou suporte social, a
convergência nas estratégias utilizadas para a resolução de problemas, bem como a
aprendizagem e desenvolvimento profissional” (JESUS, 1998, p. 62).
Jesus (1998) também faz menção ao “modelo relacional”, como estratégia de
redução do acúmulo de tensão no trabalho docente. Além disso, o autor afirma que o grau
de mal-estar docente depende da forma como o professor lida com as potenciais fontes
desse mal-estar, podendo esta forma ser aprendida. Para Jesus (1998), a formação inicial
pode ajudar o professor a desenvolver competências ou qualidades (resiliência) e
estratégias (coping) para fazer face às principais fontes de mal-estar, contribuindo para sua
realização e bem-estar profissional.
Também encontramos em Esteve (1999) referências que partem primeiramente de
um processo de formação inicial do professorado. No caso de professores afetados pelo
acúmulo de estresse e tensões em seu trabalho pedagógico diário, Esteve (1999) indica as
seguintes estratégias: controle do estresse, técnicas de relaxamento, estratégias para
resolução de problemas, “adequação dos conteúdos da formação inicial à realidade prática
do magistério” (p. 127).
63

Portanto, “para enfrentar de forma efetiva o mal-estar docente, onde se deve atuar
prioritariamente é sobre suas condições de trabalho e sobre o apoio que o professor recebe
para realizá-lo” (ESTEVE, 1999, p. 144).
Esteve (1999), Jesus (1998) e os pesquisadores brasileiros que a eles recorrem
evidenciam a centralidade do professor no processo educativo e com seus estudos apontam
a necessidade do reconhecimento social e material do professor, pelas autoridades
educacionais, o que implica em favorecer condições de trabalho satisfatórias e uma
formação voltada para o desenvolvimento pessoal e profissional docente como estratégias
para se evitar o mal-estar docente.
Os estudos aqui apontados estão pautados, sobretudo, nas análises realizadas por
Esteve e Jesus, engessando outras maneiras de se pensar o mal-estar docente como a que
estamos propondo neste estudo, ou seja, pensar o mal-estar docente pela via da crítica e do
empobrecimento da experiência na contemporaneidade. As pesquisas brasileiras parecem
se limitar a confirmar o que esses autores já confirmaram em seus estudos, onde até mesmo
o arcabouço de categorias (fatores geradores do mal-estar docente as possíveis estratégias
de prevenção) é muitas vezes repetido nas análises que se faz do mal-estar docente no
Brasil.
Os pesquisadores brasileiros dão sentidos e definições ao mal-estar docente
recorrendo ao arcabouço teórico desenvolvido por Esteve (1999) e Jesus (1998) no sentido
de propor medidas práticas e rápidas numa “possível solução” para o mal-estar docente.
Dito de outro modo, tais pesquisadores procuram dar validade a seus estudos pautando-se
em estudos já realizados como os dos autores acima referidos. Mas, como ressaltamos
anteriormente, eles pouco avançam em suas análises, desconsiderando outros fatores
imprescindíveis para se pensar o mal-estar docente. Nosso trabalho de pesquisa não é
concordar com essas leituras. Mas também não é nosso objetivo desqualificá-las. Temos
por objetivo (re) significá-las por meio da crítica, trazendo como elemento de reflexão a
ideia de experiência.
Vimos que são vários os estudos que tentam entender esse diagnóstico, bem como
muitos propõem estratégias para se eliminar o mal-estar docente. Retomar esses estudos
pode nos ajudar a entender melhor os mal-estares sociais e o mal-estar docente em
particular bem como nossa proposta de pesquisa que é pensar o mal-estar docente como
um depauperamento da experiência na escola.
64

A partir da revisão do que tem sido publicado sobre a produção do mal-estar


docente, constatamos a ausência de pesquisas com o objetivo de tecer outros olhares acerca
da problemática do mal-estar vivenciado pelo professor na escola como o que estamos aqui
propondo, ou seja, o de (re) significar, por meio da crítica, essa mesma problemática.
Ficou constatado, a partir da leitura das pesquisas, o caráter polissêmico da
expressão mal-estar docente, utilizada para expressar sintomas físicos, problemas
sentimentais e emocionais gerados por situações relativas à natureza do trabalho docente,
que envolve tanto os alunos, os professores, os pais e toda a comunidade escolar.
As causas relacionadas apontam para o fenômeno da globalização e da
configuração neoliberal do capitalismo, as aceleradas mudanças sociais e constantes
reformas educacionais numa perspectiva de articulação entre escola e sociedade. Nesses
novos contextos, o ambiente de trabalho, a indisciplina, o relacionamento interpessoal
desarmonioso e a questão salarial configuram como os principais fatores desencadeadores
do mal-estar do professor. Há também o reconhecimento velado nas teses e dissertações de
que a profissão docente é uma das mais estressantes devido às contradições e exigências
inerentes à complexidade geradas pela carga de interações diárias que demanda.
Em relação aos sintomas descritivos do mal-estar, são apontados nas pesquisas a
angústia, a tristeza profunda, o sentimento de frustração do professor, o cansaço e a
depressão. Esses trabalhos indicam a necessidade de se descobrir como combinar
estratégias pessoais, suporte administrativo e apoio emocional coletivo que fortaleçam a
resiliência e promovam o engagement, que seria um estado de envolvimento saudável e
equilibrado no trabalho pedagógico.
As discussões presentes nas pesquisas articulam teorias sociológicas e educação,
medicalização e educação, racionalização e pedagogização. Sendo assim, na quase
integralidade desses trabalhos, o mal-estar é abordado como um desconforto, um sintoma
social passível de ser resolvido pela via do bem-estar que a escola pode e deve ofertar ao
professor que “sofre” desse mesmo mal-estar.
Esses estudos buscam formas estratégicas de agir sobre a formação de professores
no sentido de ampliar sua consciência para buscar um equilíbrio afetivo-energético e com o
acréscimo de políticas voltadas para essa formação e para a prevenção de doenças
ocupacionais dessa categoria.
As pesquisas fundamentadas em elementos pedagógicos apontam para a
necessidade de analisar a saúde/doença dos professores numa perspectiva não só da
65

individualidade. Ao contrário, essas análises indicam a necessidade de contextualizar


sempre, tanto no nível das políticas públicas quanto no universo específico que constitui
cada escola. Coloca-se que o equilíbrio físico e mental do docente depende
prioritariamente de seu empenho em buscar atualização e ferramentas necessárias para seu
trabalho, tornando-o assim significativo.
Outra perspectiva que surge em termos de pesquisas sobre a temática centra-se
nas manifestações de professores sobre a condição de bem-estar na docência, no
desenvolvimento de esquemas de resiliência e estratégias de coping. Essa abordagem é
fortemente embasada pela Pedagogia Progressista, teorizada por Snyders (1974)12, que
foca a alegria como categoria fundamental do trabalho pedagógico, juntamente com os
conceitos de satisfação e felicidade.
O que fica evidenciado nesta revisão de literatura é que o mal-estar é visto como
um “fenômeno” recente, assumindo hoje as características de seu entorno macrossocial e
local. Configura-se na complexidade dos tempos de globalização e, para além de um
sentimento de desencanto e insatisfação, assume um status de marca registrada da docência
desses nossos tempos.
A leitura das pesquisas selecionadas para este trabalho no período recortado (2001
a 2010) permitiu identificar pelo menos duas “tendências” diretamente ligadas à temática
mal-estar docente: uma “preventiva”, destacando estratégias para se evitar o mal-estar
vivenciado pelo professor no seu processo de formação inicial e uma curativa, adequação
do conteúdo da formação continuada à realidade prática do magistério. Com relação às
estratégias para se evitar o mal-estar docente, os trabalhos destacam que o professor deve
ser polivalente, desenvolver a capacidade de aprender a aprender constantemente, deve
substituir os enfoques normativos da educação por enfoques mais descritivos, amplos e
generalistas, simplificados.
Com relação à “tendência curativa”, o que se observou foi a presença de soluções
coerentes que evitem o aumento, constatado nos últimos anos, das repercussões negativas
do exercício da docência sobre a eficiência no processo ensino-aprendizagem. Em outras
palavras, as pesquisas aqui consultadas tendem a pensar a formação de professores com
base em competências, qualificação, atualização, treinamento e habilidades que, somadas,
apontam para a superação do mal-estar docente na escola. Trata-se de proposta de ruptura
com os padrões já estabelecidos na escola, da possibilidade de contar com novos

12
SNYDERS, Georges. A Alegria na Escola. São Paulo: Ed. Manole, 1974.
66

dispositivos pedagógicos, da criação de redes como forma de viabilizar novas práticas


preventivas do mal-estar docente.
O que prevalece nesse debate é uma certa minimização, senão erradicação do mal-
estar no campo escolar. Há, enfim, uma unanimidade entre os autores de que a
minimização do mal-estar se daria pela conjunção de várias instâncias responsáveis pela
educação: do grupo de professores, da direção escolar, dos governos pela valorização do
profissional, dos sindicatos docentes, das famílias e da sociedade em geral.
Quanto às questões que propomos analisar - os significados atribuídos ao mal-
estar docente – podemos dizer que não diferem daqueles apresentados por todas as
pesquisas aqui citadas. Os pesquisadores, como dissemos acima, reconhecem o mal-estar
docente como um “fenômeno”, como marca da profissão na atualidade e significam-no
como raiva, indignação, cansaço, desesperança, falta de preparo para lidar com as novas
configurações sociais e escolares, falta de vontade de enfrentá-las, escolhas profissionais
equivocadas. Atribuem a ocorrência dessa problemática a uma conjunção de elementos, a
dizê-los: ao quadro de desvalorização da profissão por parte dos governos; ao
realinhamento da educação nos moldes neoliberais; às transformações sociais e culturais; a
ausência de referentes que guiem os processos educativos; ao individualismo profissional
ocasionado pela burocratização escolar que os afasta das decisões importantes,
posicionando-os como o último elo de uma cadeia de determinações.
Cremos que os elementos evidenciados nas pesquisas analisadas não se prestam a
desenhar “novos perfis” docentes, mas apenas apresentam aspectos que têm subsidiado as
ações educativas em torno do mal-estar docente. Com relação à formação docente que
propomos aqui analisar, os estudiosos que trabalham com a temática mal-estar do professor
atribuem um peso significativo à formação inicial e contínua, apostando que essa formação
poderá ser mais efetiva e consistente à medida que o pensar e o teorizar estejam cada vez
mais aliados à experiência prática. O interessante de se notar é que a formação aqui é
entendida como qualificação, profissionalização, competição, preparação.

1.3. ANÁLISE SOBRE O MAL-ESTAR DOCENTE

Ressaltemos neste momento a visão de autores como Esteve (1999), Jesus (1998),
Kobori (2010), Weber (2009), Sampaio (2008), Leão (2003) para nossas reflexões. Esses
autores defendem a tese de que os professores melhores capacitados estariam em boas
67

condições de evitar o adoecimento, o mal-estar, a angústia. Desse modo, compreendem o


bom professor como aquele que não adoece, ou seja, o professor seria aquele indivíduo que
encontra satisfação nos próprios sintomas.
Diante dos estudos sobre o mal-estar docente, percebemos como as pesquisas
selecionadas para este estudo defendem simplesmente a adoção de medidas
preventivas/paliativas para evitar o adoecimento docente. Outros investem em formas de
enfrentamento do mal-estar que atuem efetivamente sobre suas condições de trabalho e que
comecem desde o início da formação do professor.
Reforça-se a tese do gerenciamento do mal-estar docente por meio da preparação
do professor para suportá-lo. A formação inicial e depois a formação em serviço faria com
que o professor adquirisse saberes que o auxiliassem a aguentar o mal-estar da profissão,
desenvolvendo meios para vivenciar momentos de bem-estar na escola.
O que está em pauta é a desconsideração, por parte dos autores mencionados, da
importância de outros fatores para o “problema” do mal-estar docente. O que queremos
dizer é que o mal-estar docente, diferente de ser encarado como um “fenômeno atual”
como querem os pesquisadores aqui analisados, deve ser entendido como um elemento
constitutivo da personalidade do indivíduo e não como uma simples mazela que atinge o
trabalho do educador na escola. Diante da complexidade da questão, cabe-nos apontar
alguns aspectos a partir dos quais tentamos direcionar um olhar mais cuidadoso acerca da
temática aqui em estudo.
A partir da leitura e análise das obras dos autores que trabalham com a temática
mal-estar docente, entendemo-lo como um traço do ser professor nos dias atuais que se
evidencia nas ações e interações que ocorrem no cotidiano da escola e fora dela também.
Trata-se, em nosso entender, de um dos fatores presentes no exercício da docência e que
deveria permitir ao professor (re) significar o que acontece na escola e fora dela.

1.4. EDUCAÇÃO E EXPERIÊNCIA: (RE) SIGNIFICANDO O MAL-ESTAR


DOCENTE PELO PENSAMENTO AUTORREFLEXIVO

Mesmo não sendo um teórico da educação, Adorno, em suas reflexões filosóficas,


oferece discussões fundamentais para pensarmos numa educação autorreflexiva dos
indivíduos. Pois, para o filósofo, a “educação tem sentido unicamente como educação
dirigida a uma auto-reflexão crítica” (ADORNO, 1995 a, p. 121). A fim de refletir sobre a
68

(re) significação do mal-estar docente é que pensamos a autorreflexão enquanto elemento


que poderia levar o professor a (re) significar aquilo que o acomete. Isso significa que,
mesmo inseridos nos processos de (de) formação do nosso tempo, podemos buscar um
arcabouço substancial de resistência para as relações empobrecidas na escola.
A condição atual da educação tem revelado inúmeros mecanismos de
empobrecimento do pensamento. A pretensa ordem objetiva tem abordado o problema da
educação a partir de um discurso programado e proposital, situando-se num contexto de
aligeiramento formativo da experiência educativa. Quando não, medidas paliativas são
mencionadas para resolver os “problemas” que a escola não dá conta de pensar ou refletir.
Dessa forma, a educação tem assumido um caráter instrumental, restringindo sua forma de
pensamento crítico.
No entanto, quanto mais se busca escapar ao processo de instrumentalização, mais
ele se intensifica. Os exemplos13 se multiplicam aos nossos olhos. O fracasso educacional
se intensifica e “novas propostas” metodológicas, com suas didáticas “revolucionárias”,
são chamadas a resolver tal problemática. Quando tratamos da temática do mal-estar
docente, pensadores são buscados para discutir os modos e mecanismos para se evitar tal
condição.
Desse modo, o que se exige da educação é, segundo Seligmann-Silva (2003, p.
38), “que recupere a capacidade de autorreflexão; que dialogue com indivíduos autênticos,
e não com membros de uma massa amorfa”. O desafio aqui é manter-se no caminho da
resistência, que requer o caminho da contradição. Talvez esse seja o principal problema a
ser enfrentado na educação contemporânea, ou seja, assumir os limites da experiência
formativa no confronto com aquilo que é negado pela lógica instrumental. Isso significa
que a compreensão educacional não se limita às questões de natureza formal, mas está
vinculada à busca da realização da própria formação (Bildung).
As experiências educativas tomadas unicamente como meio e fim em si mesmas
tornam-se impedimentos à própria formação, uma vez que ela mesma requer
espontaneidade, imaginação, resistência. Sua relação com o tempo deve diferenciar-se da

13
Os destinos da educação, desse modo, parecem estar diretamente articulados às demandas de um mercado
insaciável. Os sistemas educacionais sofrem pressões para construir e consolidar escolas eficientes e aptas a
partir de uma lógica instrumental: formar um maior número de indivíduos e com maior rapidez. A exigência
da educação se reduz apenas em preparar as novas gerações para o mercado formal de trabalho. Além disso,
na atualização do sistema escolar, criam-se mecanismos para regulação e controle envolvidos no processo da
educação. Assim, cursos convertem-se em instrumentos de treinamento para aplicação de métodos e receitas,
sem problematizar o próprio ensino.
69

rapidez do consumo e da maquinaria, pois este impede e controla o pensamento necessário


à própria experiência formativa. É nesse contexto que afirmamos que o mal-estar docente
não pode ser compreendido por estratégias gerenciadoras, defensivas como coping,
resiliência, relaxamentos, terapias coletivas, medidas profiláticas, resiliência.
Ao professor que vivencia o mal-estar docente, segundo as pesquisas aqui
apontadas, resta apenas adquirir instrumentos, treinamentos para aplicação de métodos e
técnicas que supostamente “eliminariam” o mal-estar vivenciado por ele, sem
problematizar o próprio ensino e esse estado que o assola. A própria caracterização em
fatores primários e secundários da produção do mal-estar docente, as abordagens curativas
e “formativas” como propostas de resolução do mal-estar que atinge o educador se
traduzem num pensamento instrumental e reificador.
É nesse sentido que propomos pensar a educação como formação cultural, como
elemento de resistência e autorreflexão, o que permitiria uma compreensão da realidade
que ultrapasse o mero uso de esquemas conceituais e práticos. A educação torna-se o que é
pela relação com o que não é, ou seja, a experiência formativa confronta-se diretamente
com o existente, com o já formado e o recusa, resiste, afirma Zuin (1999). Desse modo, a
experiência formativa é uma não adequação, uma não identidade. Assim, a recuperação da
autorreflexão na educação corresponde a uma necessidade de sobrevivência do indivíduo
perante os mecanismos instrumentalizantes que provocam sua aniquilação.
Nos termos do pensamento adorniano, a experiência autorreflexiva provoca o
estranhamento diante do imediatamente dado, permite a realização das potencialidades do
indivíduo em vez de reprimi-las, o que evitaria a massificação do todo social que produz o
enrijecimento do próprio pensamento. Uma vez reconhecidos os limites da educação, na
sua referência ao problema do todo social, é ainda a essa educação que é preciso recorrer.
Não para buscar uma forma de síntese, mas, antes, para compreender a existência dos
problemas relacionados à persistência da razão instrumental nos processos educativos. A
educação, para ser efetivamente formativa, é crítica da semiformação e é resistência contra
as formas de dominação exercidas no plano da produção material, concebe Adorno (1996).
Tal perspectiva não integrada ou integradora seria o ponto de partida, como mediação da
ação educativa.
Como apresentamos, com Adorno, podemos realizar profunda crítica das formas
operantes, por meio de sua dialética, apontando os elementos que criam a antítese dos
movimentos históricos e de nós mesmos; enunciando uma noção de formação que contrarie
70

a semiformação generalizada, exigindo dos meios de formação mais do que o adestramento


profissional.
Adorno apontará a autorreflexão como forma de cultivo do indivíduo. Apenas ela
poderia formar indivíduos capazes de liberdade para pensar, sentir e agir. Por isso, ainda
encontramos espaço para pensar a formação (Bildung) e a autorreflexão no presente e, ao
fazê-lo, colocamo-nos como defensores do potencial da experiência reflexiva em educação,
bem como daquela experiência reveladora do não-idêntico, advinda da afetação do
pensamento por elementos não comunicáveis pela razão.
Adorno (1996, p. 410) termina seu texto sobre a “Teoria da Semiformação”
afirmando que “a única possibilidade de sobrevivência que resta à cultura é a auto-reflexão
crítica sobre a semiformação, em que necessariamente se converteu”. Nesse ponto, o
filósofo supõe a ideia de indivíduo como elemento central para pensarmos a crítica.
Somente um indivíduo capaz de se espantar com a realidade ao seu redor pode ser portador
da autorreflexão. Novamente surge a experiência como meio para se desenvolver a
Bildung. Experiência possível de sensibilizar o indivíduo ante o outro, o diferente que se
encontra tanto fora de si como em si mesmo.
Assim, o indivíduo é indivíduo de experiência, que é capaz, inclusive, de perceber
o enredo da semiformação generalizada. Por isso mesmo a importância do resgate da
memória, reconstruir as determinações do passado no presente, não meramente apontar
como foi o passado, exercitando sua reconstrução integral, mas sim como este persiste no
presente de modo consciente ou inconsciente. A postura de Adorno é clara: não há outro
caminho à educação senão preparar o indivíduo para a contradição e a resistência.
Percebe-se que tal concepção de resistência é o resultado depurado da exigência
de Adorno de se manter a tensão do pensamento, a autorreflexão. A resistência do
indivíduo não está na proteção de uma individualidade falsamente existente, mas na
renúncia à integração total da mônada14 pela falsa dinâmica entre individuação e

14
É como sendo comparável a uma mônada que Adorno vê a forma de existência assumida pelo indivíduo à
época de sua anulação. Com isso, o autor mostra as características básicas da individualidade na sociedade
administrada e do capitalismo tardio: sua condição de “célula” isolada do contato consciente com o meio
social em que está envolvida, bem como com as demais “células” que compõem este meio. Esta, não obstante
seu isolamento cego, traz em sua constituição a mediação social sob uma forma velada e, portanto, não
reflexiva. Adorno (1996) mostra que, ao identificar a cultura como falsa porque não reflete, por exemplo, a
verdadeira realidade social opressiva, a crítica cultural acaba por perder o momento de verdade daquele
caráter falso da cultura, quando o mesmo pode servir à negação da realidade opressiva ou à promessa de uma
outra realidade, ao mesmo tempo, justifica a realidade social opressiva dando-lhe o status de “verdadeira
verdade” somente pelo fato de existir. O que o filósofo pretende ressaltar é o aspecto de falsidade que a
verdade carrega consigo quando seu conceito é derivado pura e simplesmente do reconhecimento do
71

socialização. No centro das preocupações de Adorno está o indeterminado da existência, o


caminho através do qual a subjetividade se constitui.
Diferentemente dos autores que pensam o mal-estar docente enquanto algo a ser
superado, solucionado, administrado no contexto pedagógico, pensamos tal problemática
por meio da autorreflexão enquanto elemento de tensão a respeito das condições objetivas
e subjetivas que engendram a (des) construção da experiência no ambiente pedagógico.
Pensar, nos dias atuais, na relação entre semiformação e pobreza da experiência implica
em criar possibilidades de resistência do indivíduo perante a sociedade que o nega e o
aniquila, mediante pensamento autorreflexivo.
A auto-reflexão crítica indica, primeiramente, uma postura que garante o
sujeito enquanto autônomo, o que se revela através da dimensão indicada
pelo prefixo auto. A reflexão, considerada um processo de
esclarecimento, de negação e oposição à aparência do objeto, permite um
especular fundamentado, no qual a procura de aprofundamento deve
conduzir, contraditoriamente, a inverdade e verdade do objeto. A reflexão
crítica diz respeito ao modo dialético de refletir, que se propõe a
considerar os movimentos, as contradições e, principalmente, a manter a
negatividade no pensar. (WERLANG, 2005, p. 116)

Assim, ao relacionarmos o mal-estar docente com a pobreza da experiência,


estamos dizendo que a impossibilidade da experiência acaba por traduzir-se também na
ausência do pensamento autorreflexivo, pois tampouco a memória, o pensar o próprio
pensamento, a narração são conservadas nesse processo de danificação da subjetividade.
Ao professor, não mais é permitido narrar, refletir, fazer experiência da própria
impossibilidade da experiência, a fim de que ele possa dar conta daquilo que o constitui e,
assim, tendo consciência sobre os elementos que possam impedi-lo de se exercer
autonomamente.
Ao mostrarmos que a experiência na educação é impedida de se realizar pela
imediaticidade da relação entre os indivíduos e os bens culturais, pela relação de consumo,
pela rapidez, pela perda das referências, estamos afirmando que decorre do declínio da

meramente dado. Entretanto, é preciso ter cuidado para não absolutizar o indivíduo, pois ainda que ele possa
ser o depositário da resistência, não o será, segundo o frankfurtiano, se for concebido de forma isolada da
sociedade. Seu poder de resistir a esse processo reside no fato de que ele pode se entender nessa
contraposição com a tendência geral e na medida em que ele consegue compreender tal relação, também
pode negá-la. Assim, a insistência no indivíduo não pode torná-lo absoluto a tal ponto que se torne objeto,
pois esse modo parcial de compreendê-lo é também o princípio daqueles que exercem a violência sobre os
homens. O problema da absolutização do indivíduo é justamente negar-lhe a humanidade transformando-o
em mero objeto, manipulável e sujeito à dominação. Tal foi o projeto do esclarecimento na medida em que
renunciou à reflexão do pensamento, ao mesmo tempo em que a racionalidade possuía apenas um caráter
técnico e instrumental. Não só a natureza foi subjugada pela dominação, mas também os homens, que
reduzidos a objetos, puderam ser dominados.
72

experiência a incapacidade do indivíduo de lidar com o objeto do conhecimento e assimilá-


lo pelo trabalho da memória e da autorreflexão.
Nesse sentido, propomos re-significar o mal-estar docente pela via da crítica,
através da autorreflexão, rejeitando uma rasa interpretação que propõe a “resolução do
mal-estar docente” (ou até mesmo sua eliminação) pela via do bem-estar, de medidas
preventivas, das estratégias de coping, da resiliência, das terapias de grupo, do
gerenciamento do mal-estar como propõem os teóricos do mal-estar docente.
É nesse sentido que ressaltamos a importância que Adorno (1996) dá ao conceito
de experiência no processo de formação. Isso porque, quando as possibilidades de
experiência estão barradas, “as condições da produção material dificilmente toleram o tipo
de experiência sobre a qual se assentavam os conteúdos formativos tradicionais que se
transmitiam” (p. 394). Adorno argumenta que, depois de Auschwitz, a exigência primeira
que se faz à educação é que “Auschwitz não se repita”, isto é, que pensemos em como o
desenvolvimento da civilização conseguiu culminar nessa extrema barbárie e pensemos
também naquilo que a educação pode fazer para impedir a formação de indivíduos
heterônomos que podiam seguir qualquer ordem, mesmo a do genocídio.
A educação ganha importância para o filósofo devido ser “extremamente limitada
a possibilidade de mudar os pressupostos objetivos, isto é, sociais e políticos que geram
tais acontecimentos”, o que faz com que “as tentativas de se contrapor à repetição de
Auschwitz” (ADORNO, 1995a, p.121) sejam impelidas para o lado subjetivo. Adorno está
preocupado com aquilo que pode ser feito e entre essas “tentativas de mudança subjetiva”
ele elenca, em primeiro lugar, a educação infantil e, em segundo, o esclarecimento geral.
A preocupação direta do filósofo é saber o que a educação pode fazer para evitar o retorno
do fascismo, já que a possibilidade de mudanças nas condições objetivas parece paralisada.
Se se pode fazer algo, o que seria?
Em uma palavra seria esclarecer, no sentido forte do termo. Não no sentido
desgastado e submetido aos ditames da razão instrumental, que significa, grosso modo,
dominação. Esse esclarecimento do qual falamos acima aparece sob o nome de “produção
de uma consciência verdadeira”. Nem modelagem, nem transmissão de conhecimentos. A
maneira possível de produção de uma consciência verdadeira é por meio da produção da
experiência (Erfahrung) em oposição à consciência reificada, concebe o frankfurtiano.
A análise do mal-estar docente como constituinte do magistério leva-nos a
compreender que o ato de formar, da educação do outro, da formação do outro, implica o
73

olhar para si mesmo, daquele que experiencia o ato educativo. No âmago das nossas
discussões, consideramos que o quadro acirrado de “manifestações patológicas” no
magistério precisa ser (re) significado pelo próprio professor.
Ressaltamos que o professor vive um momento marcado pela demanda de
cientificização da educação, por uma compulsão em transformar tudo em ciência. O
investimento no consumo de métodos educacionais, supostamente eficazes, almeja a
superação do medo da angústia, do imprevisível frente aos desafios cotidianos. Ao longo
da história, o professor sofreu com a construção social de sua imagem, sempre atrelada a
figuras (tabus) negativas. Estas ainda dominam o imaginário social e atribulam a profissão
docente, principalmente no que tange à constituição do educador como sujeito
emancipado.
Adorno (1995b) nos afirma que ao longo da história da civilização foram
construídas imagens pejorativas a respeito do professor e que até hoje influenciam nossa
visão.
Tabus significam, a meu ver, representações inconscientes ou pré-
conscientes dos eventuais candidatos ao magistério, mas também de
outros, principalmente das próprias crianças, que vinculam esta profissão
como que uma interdição psíquica que a submete a dificuldades
raramente esclarecidas. (ADORNO, 1995b, p. 98)

Encontramos em Ulisses, a personagem central da epopeia homérica, uma figura


importante para pensarmos a realidade do professor na contemporaneidade. No excurso
“Ulisses ou mito e esclarecimento”, na obra “Dialética do esclarecimento”, temos presente
a informação de que as aventuras das quais o heroi sai vitorioso são todas elas perigosas
seduções que desviam o eu da trajetória de sua lógica racional. O mesmo Ulisses que
procura escapar do mito acaba por recair nele, assim como toda a nossa civilização que até
os dias de hoje não conseguiu se emancipar da violência da regressão, da autopreservação,
tendo assim reduzida a experiência com a cultura.
A Odisséia é uma obra exemplar para Adorno e Horkheimer (1985). A força do
ardil ulissiano é o protótipo da automatização e racionalização do pensamento esclarecido
na ciência moderna que, no jogo da natureza reduzida a esquemas quantitativos, vale-se de
um método inflexível, o qual marginaliza a sensibilidade do pensamento para a esfera do
não-científico, lugar destituído de qualquer crédito. O homem moderno, assim como
Ulisses, se enrijeceu em prol da frieza e do cálculo instrumental, afirmam Adorno e
Horkheimer (1985). Para os frankfurtianos, não se trata, pois, de ceder indiretamente ao
74

irracionalismo, desacreditando sem mais na razão e na ciência moderna, mas de evidenciar


suas contradições, desbloqueando dialeticamente, pela força da negação, da crítica, as
tendências emancipadoras ainda existentes.
No campo da educação, a realidade para o professor que vivencia o mal-estar é
encarada de forma angustiante, apavorante, vislumbrada até mesmo como possível “fuga”.
Nesse contexto, diante do mal-estar vivenciado, a “fuga” pode ser compreendida como
uma tentativa de autoconservação, como também de um “não querer” encarar a realidade
social com vistas à sua superação, dirá Adorno (1995b). Aqui reside uma das razões para o
estudo da problemática mal-estar docente. O esforço é pensar na possibilidade de o mal-
estar constituir a profissão docente.
Na “Dialética do esclarecimento” (1985), Ulisses estava amarrado ao mastro e
somente seus remadores estavam com o ouvido obstruído pela cera e sofriam por não
acompanhar o canto. Somente o herói gozava, pois seus remadores trabalhavam e se
mantinham alheios à sedução. Assim, comparando o episódio à situação do professor, o
mesmo sofre por trabalhar sem usufruir de forma significativa do ato educativo. O
professor fica amarrado ao próprio trabalho cotidiano e não vislumbra nada para além dele,
pois a educação escolar expulsou a experiência de seu contexto, impossibilitando a
manifestação do caráter indeterminado da formação. Posto isso, podemos nos interrogar:
em que a escola se transformou hoje?
Em “Modernidade líquida”, Bauman (2001) afirma que os membros da sociedade
estão envolvidos atualmente como consumidores e não mais como produtores. No âmbito
da educação escolar, educadores e educandos parecem enfrentar dificuldades para se
mobilizarem em torno do saber que ali circula. Diante da impossibilidade de um ensino
significativo, muitos professores manifestam o desejo de “fugir” da escola, livrar-se do
peso que constitui o fato de não cumprir o seu papel que é o de ensinar.
Gostaríamos de ressaltar aqui a importância dos estudos realizados acerca do mal-
estar docente. Sem esses estudos seria impossível avançar na compreensão desta discussão
no contexto educacional. Mas, arriscamos a trabalhar em sua definição em outra
perspectiva.
Acreditamos que o mal-estar estaria no entrecruzamento do desejo de ensinar,
educar, exercer a docência e as condições objetivas e subjetivas encontradas e mobilizadas
nesse exercício, tendo o elemento formativo da experiência como elemento-chave desse
processo. Portanto, não se trataria apenas de uma doença social da educação, como fazem
75

acreditar alguns estudiosos como Esteve (1999), Kobori (2010), Lapo e Bueno (2003), e
sim de um dos fatores presentes no exercício da docência na atualidade.
Conforme assinalado acima, o mal-estar docente poderia ser, ao mesmo tempo, a
manifestação de algo que não vai bem, uma resposta consciente às vicissitudes do
exercício do ofício do professor, mas, também, quando simbolizado e mediatizado pela
experiência, uma possibilidade de (re) significar pela crítica e pela autorreflexão o que
acontece na escola e fora dela.
Aqui reside um dos elementos de nossa reflexão, qual seja, o de avançar na
compreensão do mal-estar docente, levando em consideração o sentido formativo da
experiência a qual estamos aqui reivindicando, permitindo novos sentidos, como um
florescer, como construção, como lugar de significação, de descontinuidade.
Neste primeiro momento do trabalho, apresentamos os diagnósticos do mal-estar
docente produzidos pela literatura consultada e os aspectos pensados para sua (re)
significação. No próximo capítulo da tese, utilizamos da psicanálise freudiana tendo em
vista justificar que o mal-estar é inerente à subjetividade e não como algo que pode ser
superado através das estratégias de coping, resiliência e de medidas protetivas e curativas
como supõe Esteve (1999), como supõem os pesquisadores aqui analisados.
Estes autores levantaram pontos importantes acerca dessa problemática como o
tema da idealização dos professores, os novos valores a transmitir, a transformação no
papel do educador, modificação no status social dos professores e crise de identidade sem,
no entanto, relançá-los para maiores análises sobre as tensões que esses pontos abrigam.
Podemos afirmar que o mérito das investigações desses autores15 está em nos apresentar
situações produtoras de mal-estar docente relacionadas às circunstâncias da sociedade em
que vivem. Os autores nos informam sobre a circunscrição de sintomas no exercício da
docência, sem, contudo, irem além do caráter descritivo que suas teorizações concebem.
Desse modo, o mal-estar docente não pode ser reduzido à questão instrumental16
como está posto pelos discursos dos estudiosos dessa temática. Resgatamos Freud para
criticar a literatura que está posta acerca dessa temática. O que se começa a delinear aqui é

15
Esteves (1999), Rodrigues (2011), Fonseca (2009), Fernandes (2008), Niches (2010), Gonçalves (2008),
Kobori (2010), Prioste (2006), Sampaio (2008).
16
Meramente identificado como estados perturbadores que assolam a prática pedagógica, sintomas como
irritabilidade, depressão, insônia, desmotivação, desânimo, desconforto, aliados ao desalento na profissão,
poucas oportunidades de promoção, queda no prestígio social da profissão, caracterizam o mal-estar docente
de acordo com os pesquisadores analisados neste trabalho. A própria classificação em fatores primários e
secundários na geração do mal-estar docente remete ao que estamos chamando de instrumentalização acerca
dessa temática.
76

que o trabalho pedagógico é (re) produtor de mal-estar. Portanto, temos que falar do mal-
estar que temos e do mal-estar que produzimos na escola não como algo conciliatório, mas
encarando o mal-estar docente como algo vivido com o sofrimento da experiência trágica
da vida.
77

CAPÍTULO 2 – O MAL-ESTAR NA MODERNIDADE

Com o objetivo de compreender mais detalhadamente o que estamos nos referindo


quando falamos de mal-estar, convém voltarmos nossa atenção à maneira como Freud
(1997) concebeu a constituição do indivíduo e a participação do mal-estar nesse processo.
No texto “O mal-estar na civilização”, Freud apresenta a tese de que a evolução da
civilização ocasiona um mal-estar nos seres humanos.
Diante do assinalado, ressaltamos que a compreensão de uma obra de importância
como “O mal-estar na civilização” passa pela referência à forma em que a mesma foi
pensada. Trata-se de uma apresentação e aplicação dos pontos de vista e das teses
psicanalíticas visando elucidar, entre outras, questões de natureza social que extrapolam as
abordagens clínicas. Posto isso, queremos dizer que Freud, em “O mal-estar na
civilização”, indica ser o mal-estar e o desamparo inerentes à condição do ser humano. E o
mesmo suporta essa condição através de três focos de sofrimento: a natureza interna, a
natureza externa e os relacionamentos múltiplos, sendo estes últimos fonte a mais penosa
de todas.
Nesse sentido, considerações históricas, sociológicas, antropológicas e até mesmo
míticas serviram de base para que Freud pudesse formular suas teses sobre a civilização.

2.1. FREUD E O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO

A obra freudiana sobre o mal-estar na civilização publicada em 1930 retrata a


inserção do indivíduo na cultura17 e, mais do que isso, a relação desse sujeito com as
exigências impostas a ele pelo processo civilizatório. No texto de Freud é apresentada a

17
Freud desprezou a distinção entre civilização e cultura, declarando: “Desprezo ter que distinguir entre
cultura e civilização” (Freud, 1927, O futuro de uma ilusão, p. 16). Buscando expor as bases desta
determinação, vamos à obra “O futuro de uma ilusão”, de 1927, na qual inicia afirmando que o homem difere
do animal, o que expressa como “civilização humana”, a partir de tudo que a vida humana se colocou em
plano superior de sua posição meramente animal, e que apresenta dois aspectos. Um é “todo o conhecimento
e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta
para a satisfação das necessidades humanas” (p.16), o controle do meio que o cerca, possibilitando ganhos
em diferentes grupos. Outro, “inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens
uns com os outros e, especialmente, as riquezas disponíveis” (p. 16), plano mais das relações entre os homens
e seus objetos. Em “O mal-estar na civilização”, texto de 1930, Freud (1997, p. 41) afirma que “a palavra
civilização descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de
nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza
e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos”. De modo geral, a cultura traduzir-se-ia em algo que
reconciliaria o homem com esta mesma civilização.
78

tese de que a evolução da civilização ocasiona o mal-estar. Para a presente pesquisa, sua
importância não se dá apenas pela descrição desse processo, mas sim porque aponta
características dos indivíduos que estão para além de sua inserção na cultura, isto é,
elementos que constituem o ser humano e o acompanham ao longo de sua existência.
O mal-estar é uma expressão que está presente na obra de Freud desde o início
para designar um estado perturbador que assola os seres humanos. O termo é aplicado
naquela fase de suas teorizações, associado à neurose de angústia que tem na sexualidade a
fonte dos problemas. Para Freud (1895), as circunstâncias em que a angústia se instala têm
na origem a abstinência sexual desecandeadora do acúmulo de excitação sexual e a
subsequente incapacidade de tolerar tal acúmulo. Esse processo é acompanhado por um
decréscimo de participação do sexual na esfera do psíquico, levando à formação de
sintomas. Podemos perceber que a vinculação do mal-estar à sexualidade e à formação de
sintomas aparece desde os estudos pré-psicanalíticos freudianos.
Na sequência das edições pré-psicanalíticas18, localizamos Freud no ano de 1897
associando a formação dos sintomas à renúncia e ao sacrifício dos indivíduos a uma parte
do sexual em benefício da “comunidade maior”. Esse ponto de seus estudos é importante
pela descrição detalhada da origem do mal-estar como qualidade fundante da
subjetividade. Menciona a dimensão do sacrifício e do elevado grau de abnegação que do
indivíduo é demandado para conviver em coletividade. Proclama: “o incesto é antissocial –
a civilização consiste em renúncia progressiva” (FREUD, 1897, p. 277). O indivíduo,
limitado pelo processo de recalque19, teria nos sintomas criações que atuariam como
realizações de desejos evitando erupções o que trariam prejuízos à civilização.
As exigências da sociedade, com a consequente produção de desconforto e mal-
estar, vão se configurando na obra de Freud nos diversos textos que se sucedem. As ideias
principais presentes em “O mal-estar na civilização” (1930) não eram verdadeiramente
novas na obra de Sigmund Freud, visto que ele já as apresentara rapidamente no texto
“Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna” (1908) e depois as repetira no texto

18
FREUD, Sigmund. Publicações Pré-Psicanalíticas (1886-1899). In:______. Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. 1.

19
O recalque é um mecanismo em que “a ideia que representa a pulsão passa por vicissitude geral que
consiste em desaparecer do consciente, caso fosse previamente consciente, ou em ser afastada da consciência,
caso estivesse prestes a se tornar consciente” (FREUD, 1915, p. 176). “Para Sigmund Freud, o recalque
designa o processo que visa manter no inconsciente todas as ideias e as representações ligadas às pulsões e
cuja realização, produtora de prazer, afetaria o equilíbrio do funcionamento psicológico do indivíduo,
transformando-se em fonte de desprazer” (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 647).
79

de 1927 intitulado “O futuro de uma ilusão”. Porém, é no texto de 1930 que Freud parece
deter-se de forma mais contundente e específica na análise da relação entre desejo e
civilização. Originalmente pensava em dar outro nome à obra: “Meu trabalho talvez
pudesse se chamar, - escreveu a Eitingon em julho de 1929 - , se realmente precisa de um
título: A infelicidade na cultura” (GAY, 1989).
Em “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna” - texto de 1908 - Freud
toma como ponto de discussão o livro publicado um ano antes por um professor de
Filosofia, Christian von Ehrefels (1850-1932), intitulado “Ética sexual”. Discute a
distinção operada pelo professor de filosofia entre moral sexual “natural” e “civilizada”.
A primeira é aquela que permite a um grupo humano vivenciar a sexualidade,
conservando saúde e eficiência. A segunda, ao estimular uma intensa produção cultural, na
realidade, sacrifica de tal maneira a sexualidade que compromete tanto a saúde dos
indivíduos quanto os objetivos da cultura. Essa moral sexual “civilizada”, restrita ao
casamento monogâmico, ignorando as diferenças naturais entre os sexos, acaba gerando
uma moral dupla e ambígua, uma para as mulheres e outra, mais liberal, para os homens e,
além disso, impossibilita a seleção pela virilidade, o que permitiria um aperfeiçoamento da
constituição humana. Ehrenfels (1907) afirma que, sob o regime vitoriano de uma moral
sexual civilizada, contudo, a saúde e a eficiência dos indivíduos estavam sujeitas a
prejuízos pela intensidade dos sacrifícios que lhes eram exigidos.
Nesse texto de 1908 Freud (1996) ainda se refere ao aumento das doenças
nervosas na sociedade de seu tempo. Propõe realizar um rápido “exame da vida moderna”
tomando os testemunhos de Erb (1839), a quem considera um iminente observador ao
enumerar uma série de elementos que explicam as causas da “doença nervosa”. Dentre
eles, Freud destacou algumas mudanças referentes ao progresso, às extraordinárias
realizações dos tempos modernos, às descobertas científicas e às invenções em todos os
setores e à manutenção do progresso com o incremento das comunicações – rede
telegráfica e telefônica. Tais transformações desencadearam alterações no modo de vida
das pessoas: a vida urbana cada vez mais sofisticada, as pessoas se subordinaram à pressa e
à agitação, à falta de tempo para o sono e o lazer. Há uma estimulação e excitação
incomensurável da audição por grandes doses de música “ruidosa e insistente”. As artes
plásticas mostram o feio, o repulsivo, apresentando as imagens mais horríveis que a vida
pode oferecer.
80

Para o pai da psicanálise, as descrições que esse quadro geral apresenta trazem
elementos suficientes pra indicar os “numerosos perigos à evolução da civilização
moderna” no incremento das doenças atuais (FREUD, 1996, p. 191). Freud está
protestando o aspecto descritivo das formulações de Erb e aponta para os estudos
metapsicológicos da angústia e sua relação com os sintomas neuróticos. Dito de outro
modo, trata-se do “preço a pagar” pela supressão das pulsões em função daquilo que Freud
denomina como contribuições individuais para “o acervo cultural de bens comuns e ideais”
(FREUD, 1996, p. 192).
Nesse artigo20 de 1908, a relação entre o incremento do aumento das doenças
modernas e a intensificação das restrições sexuais é o que move o pensamento freudiano.
A repressão prejudicial e nociva da vida sexual dos povos civilizados através da moral
sexual civilizada produz distúrbios, os sintomas.
Em “O mal-estar na civilização”, manuscrito de 1930, Freud extrai as
consequências do ser humano imerso no mundo civilizado, trazendo à tona novamente essa
discussão do desenvolvimento das ciências, sem deixar de dar destaque para o que ele
chama de “fator adicional de desapontamento”: o progresso nas ciências e sua aplicação
técnica, possibilitando controlar as ameaças da natureza sobre os humanos, a subjugação
do poder da natureza não trouxeram aos homens mais satisfação e nem felicidade.
Embora Freud não elimine o valor do progresso para a economia da felicidade,
acrescenta a expressão “prazer barato”. O que sobressai em seu texto é a irredutível
coerção da civilização como fonte de mal-estar, cuja situação o progresso não tem
conseguido solucionar satisfatoriamente. Para Freud (1997), a civilização impõe ao homem
a renúncia das pulsões, tanto da sexualidade quanto da agressividade. “O homem civilizado
trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança”
(FREUD, 1997, p.72).
Freud (1997) inicia “O mal-estar...” procurando investigar o que foi designado
por Romain Rolland21 como “sentimento oceânico”, um sentimento de vínculo indissolúvel

20
Se no texto de 1908 o mal-estar estava relacionado à impossibilidade de potencializar a sexualidade erótica,
em 1930, o mal-estar é decorrente da presença nos sujeitos da pulsão de morte (ou de destruição) no trato
com o outro. Em “Além do princípio do prazer”, texto de 1920, Freud fala da dialética da pulsão de morte e
da pulsão de vida na constituição do psiquismo. Afirma que a pulsão de vida tem como objetivo realizar a
ligação P-O-S (pulsão - objeto - satisfação) e a pulsão de morte desfaz essas ligações e pode se transformar
em falência de mediação do outro, experiência de destruição do outro. Seria, portanto, uma pulsão destrutiva.
21
Romain Rolland (1866-1944) fez importante observação sobre o livro "O Futuro de uma Ilusão" (1927),
de Sigmund Freud. Essa observação foi a premissa usada por Freud para escrever o livro seguinte, "O Mal-
estar na Civilização" (1930). Rolland escreve a Freud após ter lido a obra “O futuro de uma ilusão”,
81

com o mundo externo, uma sensação de eternidade, de bem-estar, de completude. Freud


empreende uma investigação acerca de suas raízes psicológicas. Para o pai da psicanálise,
as sensações de ilimitação, de falta de bordas ou contornos característicos do sentimento
oceânico corresponderiam à sobrevivência de estágios primitivos do desenvolvimento
psíquico.
O estágio em questão referir-se-ia àquele estado de desenvolvimento primitivo em
que a instância egóica ainda não havia sido formada. Após revelar seu estranhamento
quanto à existência de tal sentimento, termina por concluir que a vida é árdua demais e
repleta de sofrimentos e que, para suportá-los, usamos medidas paliativas e construções
auxiliares como um esforço para a felicidade. Nesse sentido, Freud (1997) nos adverte que
o homem, por constituição22, não é feliz. Seu destino está mais próximo da infelicidade,
mais facilmente experimentada do que a felicidade.
Freud (1997) apresenta os caminhos que o homem procura percorrer em sua busca
infindável pela felicidade. Primeiramente, cita o caminho do poder; depois, o sucesso e
riqueza, indicando como são falsos padrões de avaliação. Em outros termos, a vida é para o
ser humano tarefa por demais árdua, pois causa sofrimento, decepções, impõe tarefas
impossíveis. Fazem-se, por isso, necessários paliativos para dar suporte à vida, que Freud
(1997) exemplifica a partir de três vias: “derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz
de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que
nos tornam insensíveis a ela. Algo deste tipo é indispensável” (FREUD, 1997, p. 22).
A partir dessa discussão, chega-se à questão que iniciou o segundo capítulo de “O
mal-estar na civilização”: qual é o propósito da vida humana? Ao indagar-se sobre o que os
homens buscam na vida, através de seu comportamento, o que se obtém como resposta é a
felicidade e, em maior extensão possível, ausência de sofrimento e desprazer. Tem
conexão com a busca de respostas aos enigmas da vida, de garantias de segurança. O ser

argumentando que Freud não havia apreciado de forma adequada a verdadeira fonte do pensamento religioso
que, de acordo com ele, seria um sentimento peculiar experimentado por milhares de pessoas, um sentimento
de eternidade; descreve-o, por fim, como um sentimento oceânico.
22
O indivíduo é constituído por duas experiências básicas, diz Freud no texto de 1930. 1. de satisfação e, 2.
de dor. Para Birman (1999), a experiência de satisfação faz surgir o desejo, que se traduz num impulso em
busca de satisfação. Já a experiência de dor faz surgir o afeto. A dor, segundo o psicanalista brasileiro, é uma
quantidade de excitação que rompe um dispositivo de proteção, separa, fica no limite entre o objeto e o
sujeito. Psiquicamente é algo que perturba o aparelho psíquico, um conflito entre desejo x proibição. Como
consequência dessa ruptura ocorre uma descarga, que vem sob a forma de uma comoção. Dessa forma, a dor
seria um desinvestimento de tudo o que está a minha volta. Dor, segundo Birman (1999), é violência, viola
alguma coisa.
82

humano busca alento, ausência de sofrimento. É o que está implicado no funcionamento


psíquico.
A palavra felicidade está intimamente ligada com prazer, sendo este seu
propósito. Tal princípio permeia o aparelho psíquico desde o início e as dificuldades que
encontram no atendimento desse princípio justificam a conclusão de Freud (1997, p. 24) de
que “a intenção que o homem seja feliz não se acha incluída no plano da criação”.
Portanto, a felicidade só pode ser pensada como satisfação repentina e episódica, parcial.

Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim


permanecer. Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e
uma meta negativa. Por um lado, visa uma ausência de sofrimento e de
desprazer, por outro, a experiência de intensos sentimentos de prazer. Em
seu sentido mais restrito, a palavra ‘felicidade’ só se relaciona a esses
últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a atividade do
homem se desenvolve em duas direções, segundo busque realizar – de
modo geral ou exclusivamente – um ou outro desses objetivos. (FREUD,
1997, p. 23- 24)

A infelicidade ou o sofrimento é de fácil encontro e nos cerca, diz Freud (1997, p.


25), por três vias, a saber: da natureza interna, através do nosso corpo, cujo destino é a
decadência e dissolução; do mundo externo, que porta o possível ataque contra o ser
humano mesmo e, a mais penosa delas, o relacionamento com outros homens.
Em decorrência disso, as reivindicações de felicidade ajustam-se ao princípio de
realidade. Assim, evitar desprazer ou sofrimento suplantou a expectativa de obtenção do
prazer, embora, diga Freud (1997, p. 25), ainda assim “uma satisfação irrestrita de todas as
necessidades apresenta-se-nos como o método mais tentador de conduzir nossas vidas”.
Para entender esses aspectos, busquemos uma maior compreensão sobre a natureza da
civilização, uma vez que foi afirmada sua impossibilidade de proporcionar felicidade.
Freud (1997, p. 41-42) entende civilização como “a soma integral das realizações
e regulamentos que nos distingue de nossos antepassados animais, e que serve a dois
intuitos, a saber: proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus
relacionamentos mútuos”. Levantado esses dois propósitos, afirma Freud (1997), o
primeiro é de fácil compreensão, pois as atividades culturais reúnem todos os recursos
úteis ao homem e possibilita a cada um instrumentos que recriam seus próprios órgãos ou
ampliam a visão, a audição, a voz, a memória. Entretanto, tais desígnios à semelhança de
um “Deus de prótese”, declara Freud, não equipou o homem de felicidade.
83

O homem, por assim dizer, tornou-se uma espécie de “Deus de prótese”.


Quando faz uso de todos os seus órgãos auxiliares, ele é verdadeiramente
magnífico; esses órgãos, porém, não cresceram nele e, às vezes, ainda
lhes causam muitas dificuldades. Não obstante, ele tem o direito de se
consolar pensando que esse desenvolvimento não chegará ao fim
exatamente no ano de 1930 A.D. As épocas futuras trarão com elas novos
e provavelmente inimagináveis grandes avanços nesse campo da
civilização e aumentarão ainda mais a semelhança do homem com Deus.
No interesse de nossa investigação, contudo, não esqueceremos que
atualmente o homem não se sente feliz em seu papel de semelhante a
Deus. (FREUD, 1997, p. 44-45)

Freud (1997) examina o terceiro aspecto que caracteriza a civilização - os


relacionamentos humanos – e como são regulados. Afirma que a “liberdade do indivíduo
não constitui um dom da civilização” (p. 49), uma vez que o desenvolvimento da
civilização impõe restrições a ela, pois está submetida ao desafio da civilização de
encontrar uma acomodação capaz de agregar felicidade.
Freud afirma que a civilização representa, nesse contexto, as renúncias às quais o
indivíduo deve ceder a fim de adquirir segurança necessária à sua sobrevivência. O preço
pago pelo avanço cultural é uma diminuição da felicidade em virtude do aumento do
sentimento de culpa decorrente do conflito entre os objetivos individuais – de satisfação
das pulsões – e os objetivos coletivos. A civilização impõe restrições aos impulsos
agressivos – considerados por Freud como o maior impedimento ao progresso – a favor de
uma união menos destrutiva dos homens.
Dentre os recursos humanos existentes pra lidar com a infelicidade, Freud cita o
trabalho, especialmente a atividade profissional livremente escolhida, como o mais
eficiente. O grande mérito do trabalho consiste, segundo Freud, em amarrar de forma mais
sólida o homem à realidade da comunidade humana. Porém, ressalta que os homens
geralmente só trabalham sob coerção, e não veem nessa atividade um caminho para a
felicidade. E o fracasso constante dessa busca pela felicidade provoca no ser humano um
sentimento de ódio à civilização. Esse ódio é resultado de uma longa e duradoura
insatisfação com a civilização então existente e que gerou a condenação da mesma.
De acordo com “O mal-estar...” durante toda a história, a civilização tem
representado um esforço para subjugar as forças da natureza, mas não somente as da
natureza externa, mas também as forças presentes na relação com seus semelhantes, ou
seja, a civilização também representa o esforço de dominar a própria natureza pessoal de
agressividade para que se possa conviver em comunidade. Segundo Freud, o passo
84

fundamental pra a cultura foi dado quando se renunciou fazer justiça com as próprias
mãos. Porém, ao fazer isso, o homem instaurou, além do processo civilizatório, o mal-
estar, fruto de suas profundas necessidades instintivas, que se manterão vivas no
inconsciente em busca de uma vazão.
O mal-estar na civilização define o homem freudiano na cultura. É um homem
pressionado por pulsões, amores e ódios primitivos. Por outro lado, as instituições sociais
são, entre outras coisas, interditoras contra o estupro, o assassinato e o incesto. Ao mesmo
tempo em que servem para proteger a vida em sociedade, são responsáveis pela supressão
das necessidades primitivas, portanto, pela promoção do mal-estar. Assim, a vida em
sociedade é um compromisso imposto e insuperável que carrega em si um inevitável
estado de infelicidade.
Neste momento de nossa exposição, consideramos oportuno discutir os dois
princípios que regem o funcionamento do aparelho psíquico: o princípio de prazer e o
princípio de realidade. Freud propõe uma análise a respeito de como nos inserimos no
mundo e de que maneira nos protegemos daquilo que pode se apresentar como ameaçador
ao nosso psiquismo. Como compreender a relação que o indivíduo estabelece com a
realidade? Qual seria o significado da realidade? Freud fez esses questionamentos para
tentar compreender a realidade e como nos relacionamos com ela. Freud chama de
“princípio de prazer” a esses processos primários de desenvolvimento humano, em que o
indivíduo busca a obtenção de prazer. Caso haja um desprazer, a atividade psíquica se
recolhe (a esse processo de recolhimento Freud chamará de recalque). Portanto, nem tudo
que desejamos podemos satisfazer, pois a realidade – regida pelo princípio da realidade -
impede que o desejo seja satisfeito da maneira “plena”.
Enquanto o princípio do prazer desconsidera a realidade e age de maneira
impulsiva (um bom exemplo disso são as paixões), o princípio da realidade leva em conta a
mesma. Em outras palavras, a realidade exige que o ser humano desenvolva a capacidade
de tolerar a frustração de não satisfazer-se imediatamente através de ações impulsivas, o
que implica em maior consciência. Porém, quando o indivíduo apresenta sintomas
neuróticos, podemos observar que naquele aspecto o paciente afasta-se da realidade, pois a
mesma entra em conflito com seus desejos, e desenvolve sintomas que, na verdade, são
defesas contra esse sofrimento, porém ineficazes para lidar com a realidade. Nesse sentido,
esse princípio é uma atividade psíquica que abdica da imaginação, da fantasia e concebe o
real com todas as suas vicissitudes e suas possíveis consequências desagradáveis.
85

O princípio de prazer é “um dos dois princípios que - segundo Freud - regem o
funcionamento mental23”; o outro é o princípio de realidade, que modifica o primeiro, este
se impõe como regulador, adia a satisfação por imposição do mundo externo, segundo o
qual a atividade psíquica tem por finalidade evitar desprazer, alcançando nisso o prazer,
portanto um prazer negativo. Trata-se, portanto, de um princípio econômico na medida em
que o desprazer está ligado ao aumento das quantidades de excitação e o prazer à descarga.
No texto “O mal-estar na civilização” é realizada uma comprovação do caráter
agressivo da condição humana e da forma como se estabelecem os laços entre os homens e
o quanto isso é ameaçador. Eros é indicado como o impulso necessário para a preservação,
mas seu opositor, Tânatos, está constante, também, nas relações humanas. Assim, a
civilização é um mal necessário que, no entanto, fomenta a agressividade inerente ao ser
humano, por ser sua fonte de prazer e complementar ao amor. A civilização é nomeada
como espaço simbólico de onde fluem as proibições e as prescrições.
Posso agora acrescentar que a civilização constitui um processo a serviço
de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois
famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única grande
unidade, a unidade da humanidade. Porque isso tem de acontecer, não
sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este. Essas reuniões de
homem devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A
necessidade, as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as
manterão unidas. Mas o natural instinto agressivo do homem, a
hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra um, se opõe a
esse programa da civilização. Esse instinto agressivo é o derivado e o
principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado
de Eros e que com este divide o domínio do mundo [...]. Ele deve
representar a luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o
instinto de destruição tal como ela se elabora na espécie humana
(FREUD, 1997, p.81-82).

No processo de desenvolvimento individual, o princípio essencial é a satisfação, a


busca da felicidade, o prazer. Quando o objetivo se volta para a questão grupal, o que
sobressai é a premência cultural que impõe proibições.
O homem tem nos objetivos do princípio de prazer a busca do “gozo máximo” e a
evitação da dor, algo inalcançável. Em decorrência, há muito maior probabilidade e
sofrimento do corpo, provocado pela hostilidade do meio externo e pela insatisfação
resultante das relações com os outros. O homem renuncia à felicidade e desemboca na
busca de atenuar ou eliminar o sofrimento. Essa saída, dependendo de cada um, é a
neurose, a intoxicação, a angústia, o sentimento de culpa ou a psicose.

23
Laplanche e Pontalis (1998). Dicionário de Psicanálise, p. 364.
86

Na passagem abaixo, Freud (1997) consegue atrelar as concepções desenvolvidas


até o presente momento sobre a angústia, o sentimento de culpa, a neurose e o superego e o
seu papel na constituição do mal-estar enquanto constitutivo da subjetividade.
[...] no fundo, o sentimento de culpa nada mais é do que uma variedade
topográfica da angústia; em suas fases posteriores, coincide
completamente com o medo do superego. E as relações da angústia com a
consciência apresentam as mesmas e extraordinárias variações. A
angústia está sempre presente, num lugar ou outro, por trás de todo
sintoma; e, determinada ocasião, porém, toma, ruidosamente, posse da
totalidade da consciência, ao passo que, em outra, se oculta tão
completamente, que somos obrigados a falar de angústia inconsciente, ou,
se desejamos ter uma consciência psicológica mais clara – visto a
angústia ser, no primeiro caso, simplesmente um sentimento - das
possibilidades de angústia. Por conseguinte, é bastante concebível que
tampouco o sentimento de culpa, produzido pela civilização, seja
percebido como tal, e em grande parte permaneça inconsciente, ou
apareça como uma espécie de mal-estar, uma insatisfação, para a qual as
pessoas buscam outras motivações (FREUD, 1997, p. 98-99).

De acordo com Freud (1997), vimos acima que qualquer realidade implica o mal-
24
estar . Durante toda a história, a civilização tem representado um imenso esforço para
subjugar as forças da natureza, não somente as da natureza externa, mas também as forças
presentes nos relacionamentos com seus semelhantes, ou seja, a civilização também
representa o esforço de domar a própria natureza pessoal de agressividade para se poder
viver em comunidade. Com isso, o homem instaurou, além da civilização, o mal-estar,
fruto da supressão de suas mais necessidades instintivas, que se manterão vivas no
inconsciente em busca de uma vazão.
Freud (1997) observa claramente que, em seu julgamento, há mais maneira do
homem experimentar a infelicidade e o sofrimento do que a felicidade propriamente dita.
Argumenta que, exposto a tanta infelicidade, o homem se conformou em restringir as suas
reivindicações à felicidade, colocando em primeiro plano evitar o sofrimento e, em
segundo, a obtenção de prazer. Constata ainda que o mesmo ocorre com o princípio do
prazer quando exposto às agruras do mundo externo, tornando-se, mais tarde, um princípio
24
Renúncia, castração, limite, trabalho, culpa. Esta é a série que, com equivalências variadas, fundamenta a
cultura e constitui o seu preço. O homem a faz e a sofre, condenado a submeter-se a ela se quiser tornar-se
criativo, se quiser tornar-se “homem”. O que Freud (1997) quer dizer é que o mal-estar que se manifesta na
cultura, nas sociedades civilizadas modernas e que se traduz por uma busca infeliz e infantil da felicidade,
corresponde ao sentimento de insatisfação que os homens experimentam face à civilização e aos seus
“progressos”. Mas, de que teria que se desfazer a criança? Para Freud (1997), este seria o preço que cada um
de nós teria que pagar pela cultura, pelo processo civilizatório. A criança teria que renunciar a determinados
desejos infantis: aos desejos de onipotência, de prazer permanente, de plenitude, de gozo absoluto. Isto é
descrito por Freud (1997) como uma renúncia à pulsão, a um prazer pulsional, para que o trabalho da cultura
possa desenvolver-se.
87

de realidade. Assim, é natural que o homem busque maneiras de evitar o sofrimento, a dor,
numa tentativa de diminuir o mal-estar.
Como ressaltado anteriormente, é inegável a conquista da natureza por meio da
tecnologia. Todavia, não podemos, orgulhosamente, dizer o mesmo sobre este triunfo nas
relações humanas. A passagem do estado natural para o estado de direito, não garantiu
liberdade verdadeira aos homens e, muito menos, justiça, afirma Freud (1997).
Administrado pela vontade da maioria em detrimento de sua própria, o homem se submete
ao represamento de suas energias libidinais de forma perigosa.
Quando guiado pelo estado natural, o homem estava submetido a lutar
incessantemente para impor sua vontade sobre a dos outros, uma vez que, em contrapartida
à sua liberdade instintual, havia a imposição pela força que obrigava os mais fracos a se
submeterem aos mais fortes. Enquanto isso, no estado de direito existe uma lei que deve, a
rigor, ser seguida conjuntamente, permitindo a todos gozarem de suas vontades. Esse
estado é alcançado pela renúncia dos instintos mais primitivos25 do ser humano que são,
por princípio, contrários à ordem civilizatória.
Diante do exposto, o papel da civilização é o de mediar e acomodar de forma
imparcial o desejo individual com os desejos coletivos. Porém, conforme Freud (1997),

25
Em 1913, Freud publica “Totem e tabu”. Nessa obra analisa a origem da organização da vida em sociedade.
A organização grupal entre os homens teria surgido das necessidades de proteção, de reprodução e de
alimentação da própria espécie. Freud afirma que, com o desenvolvimento das relações entre os membros da
horda, o pai (chefe desse grupo, embora possa não corresponder ao genitor de todos, assim o era considerado,
em todos os sentidos) teria monopolizado as fêmeas para si e expulsado aqueles que, de alguma forma,
ameaçavam o seu deleite. Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e
devoraram o pai, colocando assim, um fim à horda patriarcal. Esses parricidas foram movidos pelo ódio,
afirma Freud. Mas eles também amavam e admiravam o pai. O lugar do pai fora o desejo original de cada um
deles nessa trama. O resultado desse desejo não totalmente realizado foi o sentimento de culpa, que, para
Freud, teria tornado o pai mais forte morto do que quando vivo. Com isso, Freud quer dizer que o parricídio e
o incesto foram as duas leis básicas que fundaram uma nova organização social. Visando reconstituir uma
espécie de gênese das instituições religiosas e, num sentido mais amplo, da moralidade, pode-se dizer que a
importância desse estudo está em que, ao teorizar sobre a origem da religião, coloca no mesmo patamar a
origem da moral, da sociedade e da religião. Também nessa obra aponta novamente a importância da
renúncia dos instintos, discorrendo sobre as tribos nativas, que propicia limites severos e rigorosos os quais
estão na base da constituição da vida social. São os chamados tabus e totens. Nesse sentido, Freud mais uma
vez enfatiza a íntima ligação existente entre a constituição do social e da estrutura individual psíquica.
Reconhece, por exemplo, que em quase todos os lugares em que encontra totens, encontra também uma lei
contra relações sexuais entre pessoas do mesmo totem e, consequentemente, contra seu casamento, uma
proibição que se destina a impedir um perigo que ameaça toda a comunidade como se tratasse de alguma
culpa a que estivesse pressionando a cada homem. Assim, proibição e culpa são temas que Freud aborda
como questões pertinentes ao mal-estar na civilização. Também Freud demonstra que, se não há lei
estabelecida, há um sistema de tabus, proibições que, se não forem obedecidas pelas pessoas, estas recebem
punições severas. Freud reconhece que todas essas providências têm por finalidade também proteger o
homem de seus próprios impulsos hostis. Assim, a negação dos desejos é a pedra angular e o fundamento do
processo civilizatório.
88

toda vez que essa acomodação não for alcançada de forma justa, será sempre o indivíduo, e
não o grupo, quem pagará as consequências.
Constata-se, dessa maneira, que independentemente da mediação promovida pela
civilização, a busca do equilíbrio nunca será suficiente para evitar que os instintos sejam
reprimidos e que a lei da não satisfação dos instintos seja imposta. Portanto, para se
constituir uma comunidade fora necessário abrir mão da satisfação dos instintos. Freud
(1997) localiza como passo inicial para a renúncia dos instintos a passagem de uma relação
familiar para outra comunitária. Assim, a prerrogativa para o surgimento da sociedade é,
antes de mais nada, a inibição do amor em sua finalidade. Neste momento, podemos
afirmar que a infelicidade jazia dentro do espírito do homem civilizado.
Freud (1997) chama a atenção para outra exigência que a civilização impunha
sobre os homens e que seria responsável, justamente com a repressão da sexualidade, pelo
“mal-estar” - a agressividade.
[...] adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão
constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-
subsistente, e retorno à minha opinião de que ela é o maior impeditivo à
civilização. (FREUD, 1997, p. 81)

A agressividade é, segundo Freud (1997), uma devastadora força capaz de por fim
a todas as conquistas da civilização. Vê-se, na civilização, uma necessidade de novas
medidas interditoras para conter tal destrutividade.
Dessa maneira, fez-se necessária a intervenção da civilização no intuito de conter
essa agressividade natural do homem. Com isso, métodos são empregados com a finalidade
de agrupar os seus constituintes sob fortes relações e identificações que são fundamentais
para o amor inibido em sua finalidade. Contudo, não houve nenhuma civilização, afirma
Freud (1997), que realmente mantivesse a agressividade de seus indivíduos sob total
controle. Desse modo, utiliza essa agressividade como ferramenta para solidificar ainda
mais a coesão do grupo, dirigindo-a contra outros grupos estrangeiros pelos quais o ódio
pode ser nutrido.
O mal-estar do sujeito e da cultura do qual falava Freud é produzido como um
preço a se pagar pela vida coletiva humanizada pelo simbólico. Desde o início de seus
estudos, Freud investigava a partir de um ponto: o que ia mal para o sujeito, denunciando a
existência de conflitos psíquicos na formação das conversões histéricas, as cegueiras e
paralisias das mulheres da era vitoriana do final do século XIX e início do século XX.
89

A partir do exposto, podemos afirmar que o mal-estar é constitutivo do sujeito,


que renuncia à satisfação individual em nome da civilização. O mal-estar permanece como
exigência própria da cultura porque é condição de sua existência. Encontramos nesse texto
de 1930 a etapa final do desenvolvimento da concepção freudiana da cultura, para a qual a
pulsão de morte mostra-se central. A partir desse texto, a visão conciliadora de sujeito e
cultura desaparece. O homem vai estar sempre insatisfeito, e a cultura, causadora de
infelicidade. Nem mesmo a rejeição racional da satisfação pulsional, em substituição à
frustração, irá resolver a indisposição do ser humano. A civilização é expressão do conflito
entre pulsões, ela é essencialmente definida pelo amor e pelo ódio, sendo o mal-estar a
condição indispensável para sua manutenção, porque permite a sociabilidade não
destrutiva pelo retorno de parcela da agressividade ao sujeito.
No encerramento de “O mal-estar na civilização”, Freud (1997) demonstra, mais
uma vez, um certo receio de que o homem, dominando a natureza, torna-se cada vez mais
prepotente e desenvolva ao extremo, a agressividade e a auto-destruição. Ao constatar essa
força, o homem se inquieta e cresce a sua angústia.

Se o desenvolvimento da civilização possui uma semelhança de tão


grande alcance com o desenvolvimento do indivíduo, e se emprega os
mesmos métodos, não temos nós justificativa em diagnosticar que, sob a
influência de premências culturais, algumas civilizações, ou algumas
épocas da civilização – possivelmente a totalidade da humanidade – se
tornaram neuróticas? (FREUD, 1997, p. 109-110)

Encontramos nessa obra freudiana alguns elementos da problemática da tensão


dialética do processo civilizatório revelado por Adorno e Horkheimer (1985). Graças a
racionalidade, afirmam os frankfurtianos, a civilização pôde proporcionar aos indivíduos
facilidades na satisfação de suas necessidades básicas de existência. Por outro lado, essa
mesma civilização que nós produzimos para tornar possível a perpetuação de nossa espécie
é produtora de um indivíduo infeliz, fracionado em seus desejos e condenado a se deparar
constantemente com a falta.
Na obra adorniana26, a Psicanálise freudiana exerceu um papel importante,
principalmente em textos e pesquisas específicas que tinham como reflexão a denúncia de

26
No ensaio escrito em 1969, Educação após Auschwitz, Adorno faz referências de forma contundente a duas
obras freudianas – O mal-estar na civilização e Psicologia de Grupo e Análise do Ego. Em relação à recaída
das sociedades modernas na barbárie, Adorno então atribui importância à psicanálise freudiana naquilo em
que ela pode servir de esclarecimento sobre os mecanismos subjetivos que tornam as pessoas capazes de
violência e de endossar a dominação. Nas palavras do filósofo: “Entre as instituições de Freud que realmente
também alcançam o domínio da cultura e da sociologia, uma das mais profundas, a meu ver, é a de que a
90

fenômenos irracionais presentes no século XX, bem como em estudos sobre os


movimentos de massa contemporâneos, a personalidade autoritária, os fatores relacionados
ao antissemitismo e os efeitos psicossociais da indústria cultural.
Devido às necessidades históricas impostas por um dos principais objetos de
pesquisa de Adorno – as irracionalidades presentes nos movimentos de massa da sociedade
capitalista contemporânea – os conceitos da Psicanálise freudiana foram utilizados pelo
frankfurtiano tanto em suas análises técnicas sobre objetos estéticos (como a música, por
exemplo), como também em seus ensaios teóricos de crítica à ideologia e à cultura. Nesses
últimos, são levantados problemas referentes à formação cultural dos indivíduos expostos à
situação de massa, problemas que se manifestam por meio de comportamento e
pensamentos restringidos, padronizados, ou seja, instrumentais.
Podemos afirmar que a relação de Adorno com a Psicanálise freudiana não foi
incondicional, mas sim marcada por críticas. Um dos principais textos em que Adorno
discute a relação entre Teoria Crítica e Psicanálise é “Da relação entre sociologia e
psicologia”, publicado em 1955 depois do livro “Dialética do esclarecimento”. No referido
texto, Adorno visa se apropriar do núcleo materialista da psicanálise, ou melhor, daquilo
que diz respeito à base material da subjetividade, tendo em vista a teoria da libido como
um suporte teórico de suma importância para demonstrar as vinculações da psicologia
individual com as transformações históricas, essas últimas pautadas na dominação que
tiveram implicações na subjetividade, assim esclarecendo acerca da dialética entre
indivíduo e cultura.
Com o advento da sociedade industrial do capitalismo tardio, marcada por uma
forma de dominação alicerçada na racionalidade instrumental e tecnológica, surge uma
nova maneira de configuração dos indivíduos, representada por atitudes padronizadas e
irracionais, assim como por um ego frágil, pouco desenvolvido e facilmente cooptado por
movimentos sociais totalitários.
Tal situação, observa Adorno, (de) forma tais sujeitos, se sacrificam
cotidianamente ao colocarem sua existência em perigo e ao se entregarem a latentes
desejos de morte. Adorno (1955) destaca que a antiga explicação que utiliza o argumento
de que meia dúzia de interessados controla todos os meios formadores de opinião tem seu
lado de verdade, mas também seu lado de falsidade, ou seja, por si só essa abordagem não

civilização engendra por si mesma o anticivilizatório e o reforça progressivamente. As suas obras ‘O mal-
estar na civilização’ e ‘Psicologia de grupo e análise do ego’ mereceriam a maior difusão, precisamente em
relação a Auschwitz”. (ADORNO, 1995a p. 105)
91

dá conta de explicar o fenômeno. É aqui que entra o conceito de indivíduo e a Psicanálise,


pois as massas27 não se deixariam levar por essas propagandas toscas e falsas se não
houvesse algo nos próprios indivíduos que os ligassem a tais mensagens.
A estrutura objetiva de funcionamento da sociedade atual suscita essa “entrega”
dos indivíduos, que são “fisgados” por meio de seus próprios mecanismos psicológicos. O
indivíduo se submete na intenção de se salvar, assim como o herói Ulisses no episódio das
sereias que se submete à lógica do mito, navega na direção das sereias e amarrado ao
mastro escuta o sedutor canto das sereias. Segundo Adorno, para entender como esses
mecanismos psicológicos individuais são suscitados e administrados pela lógica objetiva
de funcionamento da sociedade, faz-se necessária uma teoria do sujeito, uma teoria
psicológica que acrescente à Teoria Social. Adorno recorre à Psicanálise para desenvolver
seu estudo sobre o conceito de indivíduo enquanto um dos temas básicos da Teoria Social,
a fim de compreender sua dinâmica pulsional e a totalidade que envolve tal fenômeno.
Um aspecto, segundo Adorno, que refletia a relação entre Teoria Social e a
Psicologia, especificamente a psicanálise, é o fato de que essa relação não pode ser
refletida unicamente como uma mera indicação do lugar de cada uma dessas disciplinas
dentro do sistema das ciências. Segundo o frankfurtiano, a relação entre indivíduo e
sociedade é em si conflitante e contraditória. Desse modo, salienta Adorno, buscar um
quadro teórico que harmonize essa relação é falso. Não se trata de fazer apologia à plena
separação entre as ciências e, tampouco, do elogio à simples unificação das disciplinas,
pois a separação entre sociedade e psiquê é falsa consciência, eterniza, em forma de
categorias estanques, a cisão entre o sujeito vivente e a objetividade social, situação que
domina os sujeitos e que eles mesmos reproduzem.
As modificações históricas sofridas pela individualidade são consequências
diretas da transformação da estrutura social, afirma Adorno (1955). Nesse processo
histórico e social de transformações objetivas, o indivíduo ameaçado foi obrigado a
desenvolver em si a racionalidade instrumental, tornando-se um mero apêndice da
maquinaria, incorporando e defendendo a objetividade que o oprime. Com o
enfraquecimento do ego, os impulsos psicológicos e as pulsões individuais tornaram-se
elementos totalmente integrados à sociedade. Essa regressão do ego ao id, fomentada pela
força da opressão social, deve ser estudada para entendermos quais são os fatores ligados à

27
O termo massas aqui é entendido segundo os diversos sentidos atribuídos por Freud em “Psicologia de
massa e análise do ego”, de 1923: multidão, grupos, instituições.
92

“autossubmissão” dos indivíduos à cultura, que lhes retira a possibilidade de autonomia,


esclarece o frankfurtiano.
Outro aspecto importante que reforça a necessidade de se estudar a Psicanálise é
que, segundo Adorno, ela é uma teoria psicológica que reflete o indivíduo separado e
isolado, analisa-o sem considerar diretamente seus determinantes sociais, se preocupa em
estudar o indivíduo em si, sem considerar a sociedade. A princípio, dirá Adorno, isso é um
equívoco teórico-metodológico, mas, ao mesmo tempo, acaba sendo um reflexo da
sociedade que o produz. Assim, a psicanálise acaba sendo o reflexo da própria lógica de
funcionamento objetivo da sociedade, que considera e afirma cada vez mais o indivíduo
enquanto uma dimensão autônoma.

[Adorno] critica a sociologia pensada sem indivíduos e a psicologia


voltada unicamente ao seu objeto, por desconhecer que esse se
desenvolve socialmente e que é a sociedade e a cultura que lhe permitem
se constituir como indivíduo; essa relação é histórica e, assim, a
possibilidade do indivíduo ser mais ou menos diferençado depende da
configuração social e de sua necessidade de reprodução (não é casual que
o autor enfatize que a sociedade produz os homens que necessita para se
manter tal como é); a sociedade não determina externamente a formação
do indivíduo, mas de forma imanente; na atualidade a sociedade tem
primazia acerca da determinação do comportamento individual.
(CROCHIK, 2011, p. 36)

Nesse contexto, Adorno, ao refletir sobre os limites da Psicanálise para além das
questões concernentes às relações da psicologia com a teoria social, tem por objetivo
elucidar o quanto o objeto estudado por Freud, ou seja, o indivíduo, se modificou mediante
o desenvolvimento das forças econômicas e sociais do capitalismo avançado.
O frankfurtiano dirá que a teoria psicanalítica faz ideologia quando tenta definir o
seu objeto independente de determinações sociais ao absolutizar o indivíduo em sua forma
burguesa, cuja compleição psíquica encontra-se intrinsecamente relacionada aos
determinantes sociais e econômicos de uma dada época. Mas, por outro lado, afirma
Adorno, a teoria psicanalítica consiste ser um saber que preserva o indivíduo frente à
objetividade, cujo aparato tecnológico tem contribuído para a sua supressão, quando essa
teoria psicológica ainda resguarda um espaço psíquico “extra-social” no qual o particular é
admitido e diferenciado do todo.
Adorno destaca que, devido às transformações históricas da estrutura social, o
ego, que, segundo Freud, é a instância mediadora do desejo e da realidade, passa a não ter
condições de exercer essa função, visto que a formação social do capitalismo avançado não
93

necessita, para a adaptação social, desse tipo de agente mediador na esfera particular, pois,
atualmente, esse papel foi “transferido” da esfera individual para a esfera coletiva, ou seja,
é realizado pela própria sociedade administrada. A mediação que deveria ser exercida por
meio da reflexão e da razão pelo ego (consciência) agora é realizada de antemão pela
própria sociedade totalitária. Essa transformação histórica da sociedade mostra a superação
do ideal de indivíduo liberal e a consequente “obsolescência” da Psicanálise freudiana.
O que estamos dizendo é que as funções cognitivas do ego – por exemplo,
pensamento e consciência – são reprimidas para que as pulsões individuais, atualmente
dominadas e administradas pelo mercado, possam ser “mais ou menos” liberadas para o
consumo de objetos previamente produzidos para retroalimentar esse processo. Sob a égide
de um capitalismo de oligopólios, a autonomia individual28 é extinta junto com o
enfraquecimento psíquico dos indivíduos diante da irracionalidade objetiva, também
resultando do modo de produção do capitalismo avançado.
Podemos afirmar que, no período moderno, encontramos um conceito de
indivíduo dotado de uma explicação própria sobre a sua constituição que, por sua vez, vai
apontar para o “espaço psíquico” tal como hoje podemos compreender. No que diz respeito
a Freud ter considerado o indivíduo como uma mônada29, destacamos que Adorno também
faz severas críticas, posto ter Freud assim colaborado para uma teoria ideológica sobre o
indivíduo. A concepção monadológica do indivíduo é a que vai ser usada por Adorno
quando o mesmo visa apontar que, de fato, frente às sociedades capitalistas, em que se dá a
primazia do econômico sobre as necessidades psíquicas individuais, os indivíduos passam
a se perceber como mônadas mediante a objetividade alienada.
Nesse sentido, o indivíduo acaba sendo obrigado a dirigir sua libido ao ego,
quanto mais a objetividade irracional torna-se para ele mais desagradável e o trabalho sem
sentido, assim como passará a buscar satisfações substitutivas, fornecidas por alguns
mecanismos sociais irracionais a fim de engrandecer seu ilusório sentimento de
onipotência, seus sentimentos narcísicos primários, para tentar se desfazer das frustrações
individuais, geradas pela sociedade de troca. As satisfações narcísicas mais arcaicas,

28
Mesmo que a configuração do indivíduo no capitalismo liberal do século XIX tenha possibilitado uma
formação autoritária e coercitiva, fruto de relações sociais estabelecidas dentro de princípios familiares e
religiosos, sua constituição psicológica, ainda que conflituosa, possibilitava uma relativa autonomia enquanto
indivíduo frente às condições sociais e econômicas de seu tempo, protegendo sua capacidade de resistir e
conflitar contra a sociedade que tentasse aniquilar seus interesses, afirmam Adorno & Horkheimer (1985).
29
O caráter monadológico atribuído ao indivíduo pela psicologia, no caso, a teoria psicanalítica, diz respeito
ao espaço psíquico fechado que consiste num jogo de forças, com lógica e leis próprias, independentes da
sociedade.
94

mobilizadas pelos mecanismos sociais de controle da sociedade de massa, permitem o


ajustamento conformista dos sujeitos à cultura totalitária.
Retomando essa temática da crítica de Adorno à mônada psíquica, devemos
considerar que, se a psicologia reforça a mônada enquanto ideologia ao se desfazer dos
aspectos sociais que compõem o indivíduo e sua historicidade, há de se considerar também
que a ideia de indivíduo mônada pode ser válida tendo em vista a análise da situação
objetiva dos indivíduos no capitalismo tardio.
Dito de outro modo, a configuração psíquica empobrecida dos indivíduos frente
aos poderes sociais, as formas preponderantes de individualismo do capitalismo tardio
expressas nas aflições narcísicas contemporâneas e as forças coletivas que tendem a nivelar
os indivíduos, faz com que a ideia de mônada torne-se a mais adequada para caracterizar os
indivíduos que não se reconhecem nessa sociedade. Esses últimos encontram-se
aprisionados aos ditames irracionais de seu psiquismo, externamente gerenciados pelas
forças sociais dominantes, tendo cada vez menos consciência das leis sociais que o
atravessam e, por isso, suas “consciências monadológicas” têm sido fortalecidas.
Outro ponto que gostaríamos de ressaltar do texto adorniano é o fato de que, das
hipóteses de Freud acerca do inconsciente – a partir da segunda formulação do aparelho
psíquico – Adorno faz algumas considerações sobre o legado “naturalista” da teoria
freudiana que não se absteve de “psicologizar” o social. Dito de outro modo, Adorno
afirma que, quando Freud tende a reduzir a história humana à linguagem do inconsciente,
também “naturalizado”, acaba por ignorar as relações concretas que determinam a
subjetividade, assim se desfazendo da radicalidade da sua teoria, correspondente aos
primeiros ímpetos da psicanálise, que era o de revelar os conteúdos inconscientes
reprimidos, transfigurados pela realidade da dominação social, para fazê-los conscientes.
A Freud no se le há de recriminar que haya descuidado lo social concreto,
sino que se haya conformado demasiado simplemente com el origen
social de aquella abstracción, la rigidez del inconsciente, que él reconece
com la incorruptibilidad del investigador de la naturaliza [...]. Lo
histórico se torna invariable y lo psíquico, em cambio, acontecimiento
histórico. En la transición de las imagines psicológicas a la realidade
histórica, olvida la modificación de todo lo real em el inconsciente, por él
mismo descubierta, y atribuye erroneamente realidad a sucesos tales com
el asesinato del padre por la horda primitiva. (ADORNO, 1955, p. 54)30.

30
Não se trata de recriminar Freud por ter descuidado do concreto social e, sim, por ele ter se conformado,
simplesmente, com a origem social daquela abstração, a rigidez do inconsciente, que ele reconheceu com a
incorruptibilidade do investigador da natureza [...]. O histórico se torna invariável e o psíquico, por sua vez,
em acontecimento histórico. Na transição das imagens psicológicas à realidade histórica, esquece a
95

Segundo Adorno, Freud acaba por interpretar os dados históricos e culturais


(como a morte do pai primevo), encontrada na sua obra “Totem e Tabu”, como também os
“mitos freudianos” a partir das fantasias do id, esse último visto como uma invariante. O
pai da psicanálise inverte a questão: as suas especulações a respeito das fantasias
inconscientes individuais são tomadas como verdades e fatos históricos universais. O mito
do Édipo, a proibição do incesto traduzem-se em realidade histórica que cada indivíduo
deve, necessariamente, em sua “interioridade psíquica”, repetir e experienciar com relação
às figuras parentais, pois trata-se de uma invariância que configura o destino individual de
cada pessoa, posto que se encontra na história da espécie humana.
O que Adorno faz é chamar a atenção para os perigos de uma redução da história
humana às leis gerais de um inconsciente que determinam a vida de cada humano à
repetição condenada a um estado de não liberdade e de infelicidade humana – a uma
condição universal dada pelas leis do inconsciente – que se manifestam na culpa e na
renúncia ao prazer, pois, dessa forma, perde-se a possibilidade de modificação crítica ao
estado de infelicidade pelo qual o homem, de fato, se encontra numa cultura marcada pela
dominação.
Ao se apropriar da ideia de inconsciente, Adorno se utiliza e se refere ao
inconsciente em suas análises para fundamentar suas críticas sociais, por exemplo, ao
evidenciar os conteúdos históricos e concretos do inconsciente que, ao longo do processo
histórico, foram expurgados da dominação social sobre a natureza, posto que tais
conteúdos remetem aos elementos desta mesma natureza rechaçados pela racionalidade
instrumental. Segundo o frankfurtiano, as dessemelhanças do consciente e do inconsciente
“são marcas do desenvolvimento social pleno de contradições” e resquícios da dominação
histórica sobre a subjetividade.
Para Adorno, “no inconsciente se sedimenta o que nunca progride no sujeito, o
que tem que pagar a conta do progresso e da ilustração. Este resíduo volta-se como algo a-
temporal” (ADORNO, 1955, p. 53)31. É nesse contexto que as críticas frankfurtianas em
relação à dialética do esclarecimento vão se dar: a história da civilização burguesa se

modificação de todo o real no inconsciente por ele mesmo descoberta, e atribui erroneamente realidade aos
acontecimentos, tal como o assassinato do pai pela horda primitiva. (ADORNO, 1955, p. 54).
31
“En el inconsciente se sedimenta lo que nunca progressa en el sujeto, lo que tiene que pagar la cuenta del
progreso y la ilustración. El residuo se vuelve algo intemporal”.
96

baseou no domínio da natureza externa e, assim, também da “natureza interna”, implicando


na cisão entre sujeito e objeto, na reificação do indivíduo e de sua subjetividade.
Diante do exposto, Adorno “desnaturaliza” o inconsciente freudiano ao dizer que
a psicanálise registra e expressa, objetivamente, os “traumas da existência contemporânea”
da sociedade burguesa industrial, alicerçada nas relações de poder. Essas relações de
dominação estabelecidas entre os homens e a natureza, entre os homens mesmos,
implicaram no repúdio e na tentativa de neutralização sobre tudo o que poderia remeter à
lembrança primária humana que teve de ser reprimida ao longo do processo civilizatório.
A partir do exposto, podemos afirmar que a categoria inconsciente em Adorno
seria uma categoria de suma relevância por poder expressar os resultados da dominação
objetiva. Assim, tudo aquilo que a psicanálise e a sociedade atual designam como natureza
na realidade trata-se de “segunda natureza”, tendo em vista a opressão constante sobre
aqueles que lembram a “fraqueza”, a possível felicidade.
Adorno vai dizer que, se de um lado “a atitude naturalista de Freud” resultou na
repetição da vida psíquica ao reino do indiferenciado, ou seja, a tragédia humana deve ser
vivenciada por todos, desde o “assassinato do pai primevo” à culpa destrutiva sedimentada
no psiquismo, de outro, essas considerações freudianas acerca da indiferenciação do
inconsciente puderam, de fato, ser confirmadas no mundo da racionalidade instrumental:
sob a pressão dos produtos estandardizados da indústria do entretenimento, as “aflições
psíquicas do indivíduo” expressam a racionalidade econômica do capitalismo avançado,
posto que as leis do inconsciente foram tomadas pelo poder social, as irracionalidades
individuais perderam seu caráter particular e expressam, mais do que nunca, a objetividade
que tende a anular o indivíduo e seus desejos.
Adorno, ao dar uma “virada” em suas críticas32 em relação à Psicanálise, afirma
que a teoria freudiana, que condena o indivíduo ao sempre igual da lógica do inconsciente,
acaba por ser confirmada na realidade das sociedades administradas em que podemos
encontrar formas de comportamentos compulsivos e de aflições psíquicas que se tornaram
comportamentos “padronizados”, contribuindo para o funcionamento da máquina racional.

32
Crochik (2011, p. 58-59) afirma que, se Freud e a Psicanálise foram criticados por Adorno por seu ímpeto
de adaptar o indivíduo à sociedade, “a psicanálise que se pretende filosófica e social destrona o princípio de
realidade e o substitui pelo tempo lógico atribuído ao sujeito. Ao fazer isso, retira a possibilidade de crítica à
própria realidade: o sujeito gira em torno de si, ou melhor, em torno do nada. A crítica de Adorno à própria
terapia psicológica era a de que não se pode tratar entre quatro paredes o que é gerado socialmente, ou
melhor, isso é possível, mas para melhor conformar os indivíduos: esses terão clara noção das armadilhas que
fazem para si próprios, mas estarão mais alheios ainda da fonte de sua desgraça”.
97

Um outro elemento que merece ser destacado são as críticas de Adorno aos
aspectos adaptativos da Psicanálise encontrados na segunda tópica freudiana e no
“equilíbrio de forças entre as três instâncias” formulados por Freud em 1931, prefigurando
o que ele chamou de “imagem analítica”, também concebido como “ideal freudiano de
homem”, representada pela igualdade de forças entre o id, o ego e o superego. Segundo
Adorno, a Psicanálise, ao pressupor um homem “integral” e de “personalidade
equilibrada”, acaba por negligenciar a realidade existente, bem como as descobertas
freudianas acerca da opressão social a que os indivíduos são submetidos, pois, como o
próprio Adorno disse, Freud alcançou, paradoxalmente, no modelo da mônada psíquica, a
mediação social.
Entendemos pelo exposto acima que o indivíduo ajustado, o modelo de homem, é
o que mais contém em si a patologia da sociedade que se relaciona à destrutividade geral
dos sistemas totalitários, pois em seu comportamento, acaba por refletir as marcas
objetivas irracionais. É nesse contexto que Adorno diz ser a base da “saúde reinante” a
própria “morte”, isto é, o ajustamento à irracionalidade objetiva é realizado às custas da
própria mutilação psíquica do sujeito que, por sua vez, firmou-se como modelo de
“normalidade”. Para o frankfurtiano, os sujeitos que obtêm êxito em sua adaptação à
sociedade não são menos enfermos que os indivíduos supostamente “doentes”, ao
contrário, confirmam o triunfo da coletividade sobre a esfera individual.
No aforismo “Convite à dança”, Adorno afirma ser o sentimento de satisfação e
de felicidade, prescritos pela psicanálise aos seus analisandos, na realidade, são satisfações
precárias que contribuem para a infantilização dos mesmos. Dito de outra maneira, a
psicanálise, enquanto medida profilática que prescreve formas de ajustamento com base
num protótipo de “normalidade”, prometendo restituir aos pacientes a “capacidade de ter
prazer”, termina por confundir o prazer com a aderência à diversão socialmente
administrada, refletindo assim, as tendências dominantes da sociedade atual.

A psicanálise costuma ufanar-se de devolver aos homens a sua


capacidade de gozo, quando esta foi perturbada pela enfermidade da
neurose. Como se a simples expressão capacidade gozo não bastasse já,
se é que existe, para notavelmente a diminuir. Como se uma felicidade,
devida à especulação sobre a felicidade, não fosse justamente o contrário
da felicidade: uma outra irrupção dos comportamentos institucionalmente
planificados no âmbito cada vez mais restrito da experiência. [...]. Só na
náusea do falso gozo, na aversão ao que se oferece, e no pressentimento
da insuficiência de felicidade, inclusive onde alguma existe – para não
falar de onde ela se consegue com o esforço de uma resistência,
98

supostamente patológica, aos seus sucedâneos impostos – se teria uma


ideia do que se poderia experimentar. (ADORNO, 2001, p. 59-60)

A falsa reconciliação e integração do indivíduo à realidade significa a dissolução


do particular na totalidade.
Também no aforismo “Aquém do Princípio do prazer” encontramos a reflexão de
Adorno sobre as posições contraditórias de Freud a respeito do indivíduo em sua intrínseca
relação com a cultura.

Como especialista da psicologia aceita em bloco, sem exame, a oposição


entre social e egoísta. Também não é capaz de nela reconhecer a obra da
sociedade repressiva como o vestígio dos fatídicos mecanismos que ele
próprio caracterizou. Ou antes, hesita, falho de teoria e ajustando-se ao
preconceito, entre negar a renúncia ao instinto como repressão contrária à
realidade ou louvá-la como sublimação fomentadora da cultura
(ADORNO, 2001, p. 57).

Da citação acima, observamos que Adorno faz críticas aos elementos presentes na
psicanálise freudiana que concorrem para o conformismo individual, como, por exemplo, a
terapia voltada para os objetivos do ajustamento social do indivíduo, a despeito das
descobertas iniciais de Freud com relação aos conflitos entre as pulsões e as exigências da
adaptação à realidade.
Do exposto, podemos afirmar que, conforme Adorno, Freud, por vezes, tende a
não privilegiar os caminhos da pulsão quando reduz o prazer à conservação da espécie,
assim não reconhecendo que a realização do indivíduo na cultura, ou seja, o seu contato
com a realidade e a possibilidade de refletir sobre a mesma, conferindo a tais elementos um
caráter racional, e não somente restrito à autoconservação pura e simples, deveria se dar
pela mediação do princípio do prazer.
Nas análises de Adorno, a recaída da psicanálise como terapêutica do
conformismo não deixam de ser resultantes da primazia da sociedade sobre a psicologia. A
ciência que prontificava o respeito ao particular e revelava as lesões psíquicas como
consequências da civilização acaba por reproduzir em seu interior o caráter contraditório
da realidade social e assim, sucumbe aos ditames desta mesma realidade.
Também nos escritos psicanalíticos freudianos encontra-se essa contradição que
Freud não recusou, afirma Crochik (2011). Ao mesmo tempo em que Freud concorda que a
renúncia ao prazer pode levar à patologia, à doença, também afirma, em seus últimos
99

escritos, que o sacrifício psíquico do indivíduo, em favor do princípio da realidade, deve


ser feito, embora isso também “prejudique o sujeito”. Para Adorno, é aqui que reside a
grandeza freudiana, por ele deixar tais contradições sem resolvê-las e recusar uma
“reconciliação” entre sujeito e sociedade, tendo em vista que o caráter antagônico da
cultura e a irracionalidade objetiva tornam-se denunciadas nas próprias contradições
lançadas dentro da psicanálise em sua teoria terapêutica.
Retomando “Da relação entre sociologia e psicologia”, uma das observações
feitas por Adorno a Freud é a de que a Psicanálise nas enunciações da segunda tópica
deixou de perceber o caráter dialético do ego que é o de ser, ao mesmo tempo,
representante das pulsões, como o da sociedade, em que ficam em evidência as suas
funções conscientes de adaptação à realidade. O que Adorno está tentando dizer é que o
“contexto do ego ser dialético” implica no conhecimento de que a consciência é tanto um
fenômeno psíquico quanto histórico.
Segundo o frankfurtiano, Freud teria enaltecido o ego como um sistema
“autônomo”, cujo objetivo é organizar todas as excitações psíquicas ao fazer mediação
entre o mundo externo e as pulsões dentro de uma definição psicológico-imanente, isto é, o
ego, na reformulação freudiana, acabaria por ser visto como algo abstrato, alheio aos
elementos sociais que compõem a psicologia do indivíduo e que, nas análises adornianas,
esses elementos acabam por determinar a impotência do indivíduo. Na segunda tópica, o
ego como o mediador dos conflitos psíquicos é abstraído dos fatores objetivos dos quais
também se origina e deve fazer com que as exigências do princípio da realidade
prevaleçam frente às demandas pulsionais.
A partir do exposto, Adorno quer dizer que, ao fazer referência ao ego como um
sistema ou uma instância, Freud acabou por priorizar esta instância como uma “estrutura
autônoma”, independentemente das contradições sociais que permitem a formação desse
mesmo sistema. Posto isso, Adorno critica Freud por ele ter dado ênfase às funções
adaptativas do ego em detrimento de uma visão crítica sobre a realidade que impede as
funções cognitivas do ego, salienta Crochik (2011, p. 55).
Levando em conta os textos freudianos da teoria da cultura – “O mal-estar na
civilização” ou “O futuro de uma ilusão” – parece-nos que Adorno foi injusto com Freud.
Pensamos então que as observações feitas por Adorno a Freud têm como objetivo
apresentar novas discussões. O que está claro nas críticas de Adorno a Freud é que o
frankfurtiano salientou a dimensão dialética do ego, justamente porque, uma vez
100

compreendida esta dimensão, além de preservar a dialética do indivíduo e da sociedade –


da natureza e da história - esse conceito, em sua complexidade, pode lançar
questionamentos sobre a problemática forma de adaptação à realidade que tem restado ao
homem do capitalismo avançado, sendo que a condição do ego esclarece a real situação do
indivíduo nas sociedades totalitárias.
O ego, não conseguindo se diferenciar, acabará por regressar, sobretudo,
à libido mais próxima a ele, chamada por Freud de libido do ego, ou pelo
menos fusionará suas funções conscientes com as inconscientes. O que no
fundo queria ir mais além do inconsciente entrará a seu serviço e, assim,
se é possível, reforçará os seus impulsos. (ADORNO, 1955, p. 63)33

Assim, consideramos que as referências de Adorno ao ego, nas suas análises desse
conceito à luz das tendências sociais imperantes, visam elucidar as novas formas de
subjetivação correspondentes às transformações sócio-econômicas do capitalismo
avançado (e que também visualizamos nos dias atuais), de uma cultura marcada pela
padronização e pela pressão totalitária dos movimentos de massa. Em nosso entender, se a
crítica de Adorno parece estar voltada basicamente ao sistema freudiano, o objeto maior do
autor é, ao contrário, apontar a cultura predominante como aquela que sustenta os
comportamentos narcisistas, que esvazia as funções egóicas e que contribui para a ruptura
entre indivíduo e sociedade, assim delimitando a fraqueza individual que, por sua vez,
determina a obsolescência de alguns conceitos psicanalíticos para o estudo do indivíduo
perante as transformações históricas.
Em outros aforismos – como exemplo o “Ego e o id” – Adorno discute a questão
da dissolução do indivíduo e, consequentemente, o enfraquecimento do ego no capitalismo
avançado sugerindo que, quanto mais a Psicologia e a Psicanálise voltam-se para o ego,
muito mais se revela o quando o indivíduo encontra-se enfraquecido nesta sociedade.
Podemos afirmar que os conceitos freudianos, bem como suas ideias, carregam
em si uma historicidade. São conceitos dinâmicos que visam expressar uma realidade
histórica de um sujeito e que, esses mesmos conceitos, contêm elementos que contribuem
para a sua própria negação. Freud escreveu sua obra no final do século XIX e início do
século XX, ou seja, estudou o indivíduo na transição do capitalismo liberal para o
capitalismo de monopólios, expressando, dessa maneira, as modificações de seu objeto à

33
“Cuando ao yo se le malogra lo suyo próprio, lo diferenciado, regresará sobre todo a la libido más
semejante a él, llamada por Freud libido del yo, o por lo menos fusionará sus funciones conscientes com las
inconscientes. Lo que em el fondo queria ir más allá de lo inconsciente, entrará en su servicio y, así, si es
posible, reforzará sus impulsos”.
101

luz de tais transformações sociais, mas, é claro, sem recorrer a explicações econômicas ou
sociológicas e sem atentar para tais transformações sociais (ADORNO, 1955).
Podemos dizer, assim, que as categorias psicanalíticas não são conceitos
imutáveis ou “naturais” que possam ideologicamente expressar uma forma universal de
individualidade ou de sujeito, a despeito do próprio Freud ter dado margens a tais tipos de
interpretação como pudemos ver nas críticas do frankfurtiano direcionadas a ele.
Em “De la relacion...” Adorno afirma que, apesar de Freud não ter se detido sobre
as questões políticas ou sobre as mudanças sociais que determinavam seu objeto de estudo,
ele conseguiu apreender e perceber nos confins monadológicos do indivíduo os traços de
sua crise profunda e sua tendência a se submeter inquestionavelmente a poderosas
instâncias coletivas externas. Adorno se utiliza da psicanálise freudiana em seus diversos
trabalhos partindo da ideia de que a teoria psicológica, ao apontar para a esfera subjetiva,
esclarece sobre os fatores objetivos que têm “moldado” e determinado a individualidade,
assim tentando redescobrir o elemento social no plano das categorias psicológicas, visto
que tais categorias indicam as relações, não de forma direta, entre os fatores subjetivos e o
sistema social objetivo, sendo o último o fator essencial para as análises de Adorno.
Consideramos que se Adorno faz críticas contundentes aos conceitos freudianos
da segunda tópica é porque, em nosso entendimento, o autor tenta ser fiel à complexidade
do problema, qual seja, a de que o indivíduo freudiano não é desprovido de seu
componente social, o que possibilita retomar as categorias psicológicas como conceitos
dinâmicos, contrastadas às condições históricas, para elucidar acerca da condição do
indivíduo no capitalismo tardio, tendo em vista a introjeção da irracionalidade social pelos
sujeitos, que impede o desenvolvimento da própria individualidade supostamente
“autônoma”. A teoria adorniana lembra que o indivíduo tem formação tipicamente social e
cultural e não meramente psicológica. É o que veremos a seguir.

2.2. O FRACASSO DO PROJETO DO ESCLARECIMENTO NA MODERNIDADE

Em Adorno & Horkheimer (1985) e Freud (1997) a terra resplandece sob o signo
da crise de um projeto de construção de uma civilização que fracassou. É nessa perspectiva
que a civilização se funda: na negação e repressão dos desejos e aspirações individuais. Em
Freud (1997) o civilizatório produz o anticivilizatório na medida em que os elementos
102

animalescos, como os instintos violentos, tiveram que ser reprimidos para nos tornarmos
sujeitos supostamente esclarecidos e racionais.
Dentro desse cenário, a vida na civilização é constituída por homens ressentidos,
resignados e frustrados, que cotidianamente reprimem seus desejos que iriam lhes
proporcionar prazer para realizar as exigências morais, religiosas, econômicas e
educacionais necessárias à manutenção da civilização34.
De criador da civilização, o homem moderno passou a ser criatura submissa e
alienada à sua própria criação. Os ganhos de bem-estar proporcionados pela civilização
através da ciência, das novas tecnologias, da medicina, das comunicações, funcionam
como paliativos ao mal-estar dos indivíduos.

No interior da própria produção cultural, podemos observar os conflitos


entre os desejos idiossincráticos e as leis sociais, entre o indivíduo e a
sociedade. É uma definição de cultura que revela a influência de Sigmund
Freud, sobretudo o Freud dos textos O futuro de uma ilusão e O mal-estar
na cultura, no que diz respeito à difícil relação entre o homem e a
sociedade, baseada na produção cultural que impinge a privação da
satisfação imediata dos desejos mais profundos, resultando na
consequente permanência da sensação de insatisfação e no deslocamento
das pulsões para as atividades socialmente aceitas. (ZUIN, 1999, p. 58)

Resgatando Freud, Adorno & Horkheimer (1985) parecem compartilhar algo


ainda mais crucial em “O mal-estar na civilização”, ou seja, uma visão crítica bem pouco
esperançosa sobre os rumos da civilização e da participação do indivíduo nela.
Confirma-se aqui que, mediante a renúncia à satisfação de suas pulsões mais
primárias, tal como na “Dialética do esclarecimento35”, também em “O mal-estar na

34
Acrescentamos a isto as discussões tomadas por Adorno & Horkheimer (1985) acerca da sociedade ser
contraditória, pois serve tanto à liberdade quanto à reprodução material. Todavia, ela, a sociedade, tem se
revelado ser mais voltada à autoconservação e à reprodução, assim fortalecendo os sentimentos de desamparo
nos homens quando os mesmos percebem que os ideais culturais tornaram-se irracionais, não voltados para a
sua felicidade individual, mas para a reprodução da sociedade, fomentando, assim, o medo nos homens e seus
sentimentos de frustração.
35
Na obra “Dialética do esclarecimento”, Adorno & Horkheimer fazem uso de grande quantidade de fontes
da antropologia e da história. Ao invés de traçar uma sistematização geral em seu desenvolvimento através de
eras e períodos, buscam em alguns pontos-chave da história os elementos necessários para criar sua teoria
dialética sobre o esclarecimento. Os autores fazem uma história das ideias no ocidente, mas não de maneira
sistemática, que procurasse traçar uma cronologia do desenrolar progressivo da ideia de esclarecimento na
história, mas, pelo contrário, procuram discutir em forma de ensaio os conceitos e os exemplos, trabalhando a
dialética inerente ao próprio processo de esclarecimento. Não fazem uma análise historicista, buscando dados
para criar um modelo histórico generalizado sobre esse momento da humanidade, mas o analisam
filosoficamente. Assim como Freud, que analisou o totemismo e os tabus das sociedades ditas primitivas para
encontrar elementos de explicação sobre certos comportamentos infantis e em doentes mentais na atualidade,
103

civilização” trata-se da tentativa de impedir que os homens voltem a um estado anterior de


sua história. O problema geral ainda é o mesmo: para garantir sua existência, a civilização
tem de impedir que os homens regridam a uma fase filogeneticamente mais primitiva,
impondo a renúncia ao impulso de satisfazer suas pulsões mais selvagens. Como nos
lembra Freud (1997), com a não satisfação dos impulsos, o desejo não satisfeito tende a
aumentar, aumentando com isso o sentimento de culpa e a necessidade de punição.
Nesse sentido, é justamente esse aumento desmedido do sentimento de culpa a
maior fonte de ameaça à felicidade do indivíduo e, consequentemente, a principal fonte de
mal-estar experimentado pelos homens no desenrolar da civilização36.Torna-se patente o
quanto a nossa civilização é responsável pela infelicidade e insatisfação individual, quando
as satisfações pulsionais são proibidas o que contribui para a hostilidade do homem à
civilização.

A história da civilização é a história da introversão do sacrifício. Ou por


outra, a história da renúncia. Quem pratica a renúncia dá mais de sua vida
do que lhe é restituído, mais do que a vida que ele defende. Isso fica
evidente no contexto da falsa sociedade. Nela, cada um é demais e se vê
logrado. Mas é por uma necessidade social que quem quer que se furte à
troca universal, desigual e injusta, que não renuncie, mas agarre
imediatamente o todo inteiro, por isso mesmo há de perder tudo, até
mesmo o resto miserável que a autoconservação lhe concede. Todos esses
sacrifícios supérfluos são necessários: contra o sacrifício. (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 54)

Para Adorno & Horkheimer (1985), Ulisses era o protótipo do indivíduo burguês.
Esse herói, senhor de muitas posses, saiu de sua terra e enfrentou muitos perigos.
Monstros, ciclopes, gigantes, deuses, sereias e outros atribularam sua vida. Entretanto, ele
venceu as batalhas, na medida em que se perdia a fim de se ganhar. A astúcia era o recurso
utilizado para vencer as batalhas, que consistiam em perder para se autoconservar.
As aventuras de Ulisses nada mais são que a descrição dos riscos que
constituem o caminho para o sucesso. Ulisses vive segundo o princípio

eles buscam os elementos desse momento primitivo para compreender o desenrolar desencantado da moderna
história esclarecida (ZUIN,1999).
36
À luz de Adorno e Freud, podemos perguntar: qual foi o preço que pagamos por esse tipo de vida que ora
desfrutamos? Na visão desses dois autores, pagamos preços altos demais pela organização da nossa
civilização: a escravidão diária no trabalho, a diluição da individualidade na totalidade administrada, o
aniquilamento da experiência, a negação da liberdade. É nesse sentido que, segundo Adorno, o
esclarecimento revela seu teor de irracionalidade. Tal é a dialética adorniana da razão esclarecida, pois ela
produz conforto e miséria, saúde e doença, riqueza e pobreza, vida e morte. Dessa forma, a nossa civilização,
produto de uma racionalidade instrumentalizada, remeteu os homens ao desígnio da infelicidade e da
frustração, uma vez que se sustenta em bases racionais que, por sua vez, produzem, também, estados de
profunda barbárie.
104

primordial que constituiu outrora a sociedade burguesa. A escolha era


entre lograr ou arruinar-se. O logro era a marca da ratio, traindo sua
particularidade. (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 59)

O herói conseguia extrair do sacrifício aquele artifício que lhe era inerente, a
capacidade de iludir. Talvez em razão dessa astúcia, Ulisses tenha sido interpretado por
muitos homens de seu tempo como uma verdadeira divindade, afirma Gagnebin (1997).
No entender de Adorno & Horkheimer (1985), a racionalidade ocidental, na
medida em que concebe a natureza como objeto e o homem como razão dominadora,
elimina da relação homem-natureza o elemento da mediação, ou seja, a indeterminação do
sentido da história. A realidade objetiva, afirmam os autores, passa a ser uma determinação
da subjetividade humana cuja objetivação ocorreu através da racionalidade instrumental.
As críticas dos frankfurtianos, então, voltam-se à sociedade que não tem colaborado como
a diferenciação individual, posto ter o capitalismo avançado desenvolvido formas de poder
mais avançadas e racionalizadas, assim mantendo e revigorando, por meios “racionais”, a
dominação e a violência enraizada na civilização desde os tempos imemoriais, das quais,
por sua vez, o fascismo tem sido expressão mais degradante.
O que está em questão aqui são os confins monadológicos do indivíduo à luz das
transformações históricas, pois, para Adorno, os próprios conceitos trazem em seu bojo tal
historicidade quando indicam e expressam as “afecções” psíquicas que a mônada freudiana
visa representar. O empobrecimento do ego individual nas massas fascistas – aqui o ego
denota o “indivíduo”, como a instância psíquica definida na segunda tópica – e o
fortalecimento das pulsões narcísicas para a sobrevivência dos indivíduos em meio à
barbárie generalizada, lançam luz às transformações históricas dos indivíduos e aos modos
de adaptação exigidos aos sujeitos pelos movimentos totalitários. Com isso, perde-se a
noção de totalidade e da unidade homem-natureza da relação dialética entre o eu e a
alteridade.
Na verdade, o sujeito Ulisses renega a própria identidade que o
transforma em sujeito e preserva a vida por uma imitação mimética do
amorfo. Ele se denomina Ninguém porque Polifemo não é um eu e a
confusão do nome e da coisa impede ao bárbaro logrado escapar à
armadilha: seu grito, na medida em que é um grito por vingança,
permanece magicamente ligado ao nome daquele de quem quer se vingar,
e esse nome condena o grito à impotência. (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 63)
105

Diante do exposto, a preocupação de Adorno & Horkheimer (1985) é demonstrar


que a ruptura dessa relação mediadora homem-natureza traz, como resultado, perdas
significativas para o ser humano, sendo a principal delas a negação de sua própria
identidade.
O duplo aspecto burguês da dominação e da exploração desde o tempo de Ulisses
era evidente. A própria condição do “herói” remete-nos à do burguês: era senhor de terras e
possuía escravos. A racionalidade da civilização impunha ao homem um processo de
dominação da natureza e dos demais homens. O preço pago à dominação era a negação da
própria natureza humana, na medida em que o que importava era a autoconservação; o
homem, a partir do mero aspecto biológico, de satisfação das necessidades primordiais. A
lógica civilizatória nos outorgava um sacrifício: a dominação do homem sobre si mesmo.
O dilaceramento do sujeito era a condição necessária para a sua perpetuação. Nessa
empreitada, enfrenta situações difíceis e pode sofrer grandes perdas. Seu brio é alcançado
quando sua vontade de ter a “felicidade plena” é repensada ou mesmo abandonada. A
lógica da astúcia de Ulisses consiste em destruir o estatuto imposto, ou a racionalidade,
cumprindo-o.

O esquema da astúcia ulissiana é a dominação da natureza mediante essa


assimilação. A avaliação das relações de força, que de antemão coloca a
sobrevivência na dependência por assim dizer da confissão da própria
derrota e virtualmente da morte, já contem in nuce o princípio da
desilusão burguesa, o esquema exterior para a interiorização do sacrifício,
a renúncia. O astucioso só sobrevive ao preço de seu próprio sonho, a
quem ele faz as contas desencantando-se a si mesmo bem como aos
poderes exteriores. Ele jamais pode ter o todo; tem sempre de saber
esperar, ter paciência, renunciar; não pode provar do lótus [...]. Ele tem
de se virar, eis aí sua maneira de sobreviver, e toda a glória que ele
próprio e os outros aí lhe concedem confirma apenas que a dignidade de
herói só é conquistada humilhando a ânsia de uma felicidade total,
universal, indivisa. (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 55-56)

Detendo-se no personagem Ulisses, os frankfurtianos desenvolvem argumentos


que revelam que a vitória do herói sobre o ciclope e as demais forças da natureza dá-se à
custa da perda de sua liberdade, do enrijecimento do eu, enfim, da identidade. Concluem
que a autonegação e a renúncia são os preços que os indivíduos pagam para dominar, para
estabelecer a ordem no mundo, para formarem-se.
Adorno & Horkheimer insistem com razão no preço pago pelo herói para
escapar da simbiose mágica e constituir-se em sujeito autônomo. Esse
preço é alto. Ele poderia ser descrito com a transformação da mimese
originária, prazerosa e ameaçadora ao mesmo tempo, uma mimese
106

perversa que reproduz na insensibilidade e no enrijecimento do sujeito, a


dureza do processo pelo qual teve que passar para se adaptar ao mundo
real e, diríamos com Freud, deixar de ser criança para se tornar adulto
(GAGNEBIN, 1997, p. 89).

A partir do exposto, Ulisses - tanto no episódio das sereias quanto no do ciclope


Polifemo – para citar apenas alguns dos embates da subjetividade emergente contra as
potências da natureza na Odisséia - é-lhes inferior fisicamente, não podendo enfrentá-los
de forma direta. Portanto, deve ser cauteloso, controlar seus apetites e calcular, planejar
sem erros para se autoconservar.
Assim, na saga de Ulisses, aparece uma mescla de astúcia, autoflagelo e violência
infligida, da qual ao mesmo tempo se põe como protagonista e vítima do processo
civilizatório, característica da relação entre civilização e dominação. Aqui, o pensamento
dos frankfurtianos se aproxima do pensamento freudiano no sentido dos objetivos da
civilização, ou seja, para viver em sociedade, o indivíduo teve de abrir mão dos seus
desejos mais sublimes37, vivendo sob o aspecto da renúncia.
Nesse ponto, podemos afirmar que o mesmo Ulisses que procura escapar do mito,
acaba por recair nele, assim como toda a nossa civilização que, até os dias de hoje, não

37
O termo “sublimação”, no campo artístico, particularmente no que se refere às belas artes, utiliza-se a
palavra “sublime” para adjetivar uma obra de grande valor estético, que suscita no observador sensações mais
espiritualmente elevadas. Freud transportou este termo para a psicanálise para denominar um processo
exclusivo da psiquê. Segundo Laplanche & Pontalis (1998), o fenômeno da sublimação pode ser descrito
como um “processo postulado por Freud para explicar atividades humanas sem qualquer relação aparente
com a sexualidade, mas que encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. (...). Diz-se
que a pulsão é sublimada na medida em que é derivada para um novo objetivo não sexual e em que visa
objetos socialmente valorizados”. Segundo Laplanche & Pontalis, é importante ressaltar que a sublimação
não incide sobre a totalidade das pulsões sexuais, mas, antes, apenas sobre uma parte, que é justamente
aquela que não se integra na forma definitiva da genitalidade. Vimos que ocorre uma troca de meta, que era
originalmente de conteúdo sexual e que passa a ser um objetivo não diretamente sexual, mas psiquicamente
semelhante à meta. As atividades humanas decorrentes desses deslocamentos da libido continuam sendo
alimentadas pelo desejo sexual, porém se concretizam através de ações voltadas à criação artística e
intelectual. À medida que exploramos a dinâmica do processo sublimatório, mais nos aproximamos de
admitir a logicidade da ideia que Freud tentou demonstrar através de uma complexa rede de deduções e
induções, ou seja, a premissa da necessária renúncia pulsional para o desenvolvimento do modo de vida
civilizado. Assim como a civilização impõe restrições à vida sexual e à inata agressividade humana, de modo
também intenso o processo civilizador busca aumentar a unidade cultural, através da sublimação. Nesse
sentido, a sublimação é uma imposição da civilização sobre a natureza pulsional, visto que é condição
necessária para o desenvolvimento das características exclusivas da civilização. É através da sublimação que
as atividades intelectuais do ser humano ganharam maior valor do que a satisfação dos desejos pulsionais e
que a constante não-satisfação pôde ter seu negativismo amenizado. Mais do que isso, os produtos advindos
do processo sublimatório têm a função de recompensar o homem pelas perdas que ele enfrenta ao optar pela
sociedade e não pelo indivíduo, isto é, trabalhar no projeto da civilização e engavetar o sonho de ser feliz.
Como percebemos pela exposição acima, o homem precisou colocar sua intelectualidade e seu psiquismo à
disposição da arte e da ciência, e a sublimação encarregou-se de transformar o trabalho humano em fonte de
prazer. Esse é o prêmio que as instituições da civilização oferecem ao homem.
107

conseguiu se emancipar da violência da regressão, da autopreservação, tendo, desse modo,


reduzida a experiência com a cultura.
Levando em consideração que a leitura freudiana do mal-estar está profundamente
enraizada na modernidade, autores como Bauman (1998), Birman (1999) propõem uma
(re) leitura do mal-estar. Diríamos que a razão principal dessa escolha se deve na tentativa
de refletir sobre os escritos desses autores a partir do diálogo que pode ser estabelecido
com a perspectiva do mal-estar na contemporaneidade – sem perder de vista, decerto, as
especificidades de cada autor. Portanto, ambos reconhecem os paradoxos e/ou limites da
razão esclarecida na modernidade e do processo civilizador que lhe é correspondente, sem
negar o mal-estar como elemento constitutivo do indivíduo.
Em outros aspectos, porém, a sociologia de Bauman atualizaria a perspectiva
adorniana38 ao fazer comentários pontuais sobre os desígnios nada promissores da
formação e de uma educação política na sociedade do capitalismo tardio, como Adorno a
designava, ou então na sociedade de consumo atual, conforme Bauman caracteriza nosso
presente. Isso pode ser demonstrado sem perder de vista a própria dinâmica da formação
cultural nos “diferentes” estágios da modernidade a que Bauman se refere. Em outros
termos, é possível fazer uma leitura do fracasso do ideal formativo na modernidade líquida,
recorrendo à própria terminologia adorniana.
Não se trata, portanto, de realizar uma aproximação “forçada entre os autores”,
mas sim de estabelecer uma reflexão, entre os conceitos por eles desenvolvidos, que nos
apontam para a queda do “ideal de indivíduo” posto pela modernidade. Na sociedade de
consumo atual, isso corresponderia a abandonar o valor atribuído pelo tempo moderno-
sólido ao adiamento da satisfação de uma necessidade, de um desejo ou do gozo como
valor em si mesmo e abraçar, como preceito da relação com o mundo, a estética do
consumo. Quer dizer, o desejo induzido de encurtar aquele adiamento ou aboli-lo de todo
em prol do “pleno” gozo destituído do prazer – acompanhado da tendência de encurtar a
duração da sensação obtida para poder desfrutar das novas sensações prometidas e nunca,
ou talvez apenas parcialmente, satisfeitas. É dessa maneira, na concepção de Freud e
Adorno, que a civilização se funda, ou seja, como a vida em sociedade não pode propiciar

38
Trabalhamos com a ideia segundo a qual a análise de Bauman com relação à sociedade e o indivíduo, a seu
modo, complementam aquelas desenvolvidas por Adorno em muitos dos seus aspectos, avançando-as em
alguns pontos e afastando-se em outros, especialmente devido à recusa baumaniana em oferecer um
tratamento psicológico às questões contemporâneas.
108

aos homens felicidade, ela cria satisfações substitutivas, que se constituem em prazeres
artificiais, imediatos, propiciados pelo consumo e pela facilidade da vida moderna.
Em suma, da mesma forma que a civilização criou a massificação do consumo,
ela criou também a massificação do prazer. Dito de outra maneira, o prazer individual deve
estar submetido ao tipo de prazer proporcionado pela civilização. Impossibilitado de lidar
com seu desejo e marcado pela falta, o indivíduo moderno está condenado a buscar em
instâncias diversas a produção de sua felicidade. A mesma civilização que impõe normas,
regras, valores, que determina a forma de agir em sociedade, e que, portanto, produz o mal-
estar, cria a demanda que ela se propõe a satisfazer. Esse aspecto se expressa na
tensionalidade das exigências do indivíduo e da civilização, na tensionalidade da saúde e
da doença, na tensionalidade das exigências internas e externas, na tensionalidade, enfim,
da felicidade e do mal-estar.
Mais do que exaltar os caminhos por meio dos quais o indivíduo pode encontrar-
se com a tão sonhada felicidade para assim permanecer, Freud propõe que nos atentemos
ao fato de irremediavelmente a inscrição do homem na civilização incluir um limite a esta
ideia de felicidade. Esse limite será expresso pelo conflito entre pulsão e civilização, que
tem como resultado aquilo que Freud denomina mal-estar, sendo a relação entre os homens
definida por ele como o sofrimento “mais penoso do que qualquer outro” (FREUD, 1997).
Desse modo, apostar na superação do mal-estar vivenciado pelo professor através de
medidas de coping, de resiliência e de outras estratégias como querem os pesquisadores
assinalados nessa pesquisa, coloca em cena um impasse insuperável - posto que é de ordem
interna – que tem como resultante uma experiência de mal-estar.
É essa crença na possível “resolução do mal-estar” como assinalada pelos
estudiosos do mal-estar docente que nos permitiu circunscrever o pensamento freudiano,
isso porque afirma jazer por trás deste mal-estar uma “natureza inconquistável”, uma
parcela de nossa própria constituição psíquica (FREUD, 1997). A leitura que realizamos de
Freud pôde nos ajudar a compreender essa temática no que concerne a um posicionamento
distinto daquele encontrado na leitura que realizamos das teses e dissertações de mestrado.
109

CAPÍTULO 3 - O MAL-ESTAR NA CONTEMPORANEIDADE

A temática do mal-estar na civilização continua sendo muito debatida em nossos


dias, como podemos comprovar a partir das muitas discussões que tratam dos sintomas
contemporâneos e as preocupações da humanidade em relação ao seu próprio futuro.
Birman (1999) e Bauman (1998, 2001, 2009) fornecem uma tentativa de explicação para
os males que afligem a vida dos indivíduos na civilização, contribuições que ainda hoje se
mostram relevantes e reveladoras. Os modos de ser sofrem as consequências desse
momento em que domina o discurso da competitividade, da produtividade, da
flexibilidade, da transitoriedade, da velocidade. O mal-estar inerente ao indivíduo o
convoca a mostrar outras faces de sua subjetividade para responder ao legado de seu
tempo. A nossa época é revestida e investida de valores que indicam o consumo, a oferta e
o excesso, como afirma Birman (2005, p.104): “Inventamos necessidades em função
exatamente do excesso e não sabemos o que fazer com ele”.
Os autores aqui apontados, como Bauman, Birman, afirmam que os modelos
teóricos de representação do indivíduo na época contemporânea não podem ser
desvinculados das transformações históricas e sociais que pautam o contexto atual. O
importante a se ressaltar é que esses debates também estão pautados na tentativa de
compreender como as mudanças sociais produzem “novos” modelos de individualidade e
desestruturam modelos de representação antigos. Sob esse aspecto, as análises feitas pelos
autores tentam articular como as diversas transformações do mundo contemporâneo forjam
“novos processos” de constituição dos sujeitos e “novas dimensões” de representação dos
indivíduos.
Como se verá mais adiante, esses modelos postulam um indivíduo fragmentado
que possui, dentre suas principais características, a quase impossibilidade de se constituir
em bases estruturais/institucionais e referências culturais tradicionais. Com isso, não
queremos dizer que “o mal-estar na contemporaneidade” se traduz numa nova faceta do
“mal-estar na modernidade”. Na verdade, estamos enfatizando as “novas” configurações
atuais - predominantemente mercadológicas - sobre a (de) formação das subjetividades dos
indivíduos. De certa forma, Bauman se filia a uma vertente de pensadores críticos acerca
dos limites e contradições do processo civilizatório. Os matizes teóricos que muitas vezes
pautam seus pensamentos são Norbert Elias, Theodor Adorno, Freud.
110

O estresse, o tédio, a depressão, a melancolia, as perturbações do sono, as


angústias, os transtornos mentais, as síndromes, o TDAH, as bulimias, as anorexias, apesar
de não serem fenômenos novos (talvez o que tenha modificado sejam as maneiras de
pensá-los e relacioná-los ao presente, além da sua frequência), representam as
manifestações do mal-estar na atualidade. Quanto mais esses elementos são fluídos, maior
a sensação de vazio e a desmotivação que se instalam na vida pessoal e na profissional.
Ações diárias causam estresse: deitar-se para dormir, acordar pela manhã, o trajeto para ir
ou voltar ao trabalho, buscar os filhos na escola, educá-los, sair de férias, estabelecer
algum tipo de diálogo com o vizinho e até mesmo amadurecer e envelhecer.
No campo pedagógico, se nos perguntássemos por que, nas últimas décadas, as
crianças estão sendo cada vez mais medicadas39 para aprender e se comportar melhor,
teríamos várias respostas possíveis. Para alguns, essas crianças são portadoras de
determinados transtornos psiquiátricos, descritos e supostamente comprovados pela ciência
médica, ao que tudo indica herdados geneticamente e que prejudicam o bom
funcionamento de seus cérebros, órgão responsável por suas aprendizagens e
comportamentos. Para estes, trata-se de um problema cujos principais fatores
determinantes são indiscutivelmente de base neurobiológica, devendo ser enfrentados, em
muitos casos, preferencialmente pela via medicamentosa, no sentido de restabelecer o
adequado funcionamento neuroquímico. Os fatores ditos ambientais podem contribuir mais
ou menos, dependendo do caso, mas não devem ser considerados como a principal causa
para esses transtornos.
Para outros, as crianças estão tomando os chamados psicofármacos porque seus
comportamentos perturbadores e seus baixos desempenhos escolares estão deixando os
adultos, pais e professores, confusos e inseguros a respeito do que fazer para contornar tais
problemas. E que, ao invés de procurarmos as supostas causas em seu funcionamento
cerebral, deveríamos contextualizá-las em relação à nossa contemporaneidade, procurando
conhecer a dinâmica atual de instituições sociais importantes, como a família e a escola,
para entender de que forma elas, tentando enfrentar seus novos desafios, participam desse
estado de coisas. Para estes, além de ocultar importantes questões de ordem social e

39
Vale ressaltar que, em momento algum, estamos negando ou subestimando o fato de que existam crianças e
adolescentes que apresentam problemas,às vezes graves e preocupantes, em seus processos de escolarização
e socialização, bem como que os psicofármacos não possam trazer uma melhora na qualidade de vida de
muitos sujeitos cujo nível de sofrimento psíquico representa o rompimento de laços sociais e o consequente
isolamento. Nosso propósito foi demonstrar, nesta breve reflexão, algo que nos parece evidente e que,
justamente por isso, não pode ser ocultado ou silenciado.
111

política, tal problemática representa uma das faces de um movimento muito maior e
também mais lucrativo que afirma ser o consumo dessas substâncias o caminho mais curto
e eficaz para a solução de não poucos
problemas que experimentamos em nossa “modernidade líquida”.
É notável observar como a técnica e o consumismo exacerbados produzem o
isolamento social. É comum olharmos para o nosso lado e avistarmos pessoas andando
com fones de ouvido, escutando músicas, não importa o quê, com seus tablets de última
geração nas plataformas do metrô, nos corredores da faculdade, com celulares
ultrapotentes acessando as redes sociais a todo instante, os noticiários, sem citar outras
parafernálias tecnológicas.
O movimento, a velocidade, a flexibilidade, a competitividade exigidos aos
indivíduos no enfrentamento de situações diversas cotidianas geram uma atmosfera de
permanente estresse, redundando no aparecimento de crescentes distúrbios
psicossomáticos.

O que nós parecemos temer, quer estejamos ou não sofrendo de


‘depressão dependente’, seja à luz do dia ou assombrados por alucinações
noturnas, é o abandono, a exclusão, ser rejeitado, ser banido, ser
repudiado, descartado, despido daquilo que se é, não ter permissão de ser
o que se deseja ser. Temos medo de nos deixarem sozinhos, indefesos e
infelizes. Tememos que nos neguem companhia, corações amorosos,
mãos amigas. Receamos ser atirados ao depósito de sucata. O que mais
nos faz falta é a certeza de que isso não vai acontecer – não conosco.
Sentimos falta de garantia de exclusão da ameaça universal e ubíqua da
exclusão... (BAUMAN, 2005, p. 99)

A insegurança, o medo, o mal-estar gerados pela angústia do que é perceptível,


palpável, tornam-se a regra na modernidade fluida, nos moldes postulados por Bauman
(2005). O urgente se sobrepõe ao importante. As compulsões – novas síndromes da
atualidade – levam à bulimia, ao consumo e às drogas como forma de preenchimento do
vazio das pessoas. O “ter” é mais importante que o “ser”, a questão é ter “status”, são as
roupas de marca, o sapato da moda, a música do momento, afirma Kehl (2009).
A exacerbada valorização da imagem, a contínua submissão frente às imposições
da mídia tendo como consequência direta a formação de pseudovalores e pseudo-
necessidades na contemporaneidade, a globalização dos costumes, necessidades e modos
de ser e de consumir dos indivíduos enquanto atores da cena social configuram o cenário
da existência dos indivíduos. É por meio da estimulação pelo discurso social que essa
112

“cultura da imagem” impulsiona o indivíduo a uma vivência essencialmente narcisista, o


eu sendo o principal objeto de investimento libidinal e o outro usado apenas como recurso
para o prazer imediato.
A nova configuração do espaço e do tempo na atualidade – o presente efêmero e
fugaz – onde tudo o que nos é apresentado, desde as coisas materiais, bens de consumo,
produções culturais, todas se mostrando incertas e transitórias, além do consumo
exacerbado, passam a moldar a subjetividade dos indivíduos. O consumismo chega
também aos laços de afeto. Família, os amigos, os vizinhos, a escola perdem o encanto e as
ligações tornam-se superficiais, com durabilidade programada. O fenômeno do
consumismo, exacerbando a preocupação com o adquirir objetos na tentativa do indivíduo
evitar estar em contato com suas faltas, parece apontar para a ideia, muito presente na
sociedade contemporânea, que enaltece o pragmatismo como regra fundante, onde a
felicidade é um bem objetivo e material. E que, portanto, deve ser encontrada no consumo.
Felicidade esta, centrada no próprio umbigo, buscando bastar-se em si mesmo e cada vez
mais afastado do “outro”.
Bauman (2001) aponta como uma das marcas da contemporaneidade a dissolução
da temporalidade histórica, situando o sujeito no imediatismo orientado pela satisfação dos
desejos e necessidades pessoais.

A precariedade da existência social inspira uma percepção do mundo em


volta como um agregado de produtos para consumo imediato. Mas a
percepção do mundo, com seus habitantes, como um conjunto de itens de
consumo, faz negociação de laços humanos duradouros algo
excessivamente difícil. Pessoas inseguras tendem a ser irritáveis; são
também intolerantes com qualquer coisa que funcione como obstáculo a
seus desejos; e como muitos desses desejos serão de qualquer forma
frustrados, não há escassez de coisas e pessoas que sirvam de objeto a
essa intolerância. Se a satisfação instantânea é a única maneira de sufocar
o sentimento de insegurança (sem jamais saciar a sede de segurança e
certeza), não há razão evidente para ser tolerante em relação à alguma
coisa ou pessoa que não tenha óbvia relevância para a busca da
satisfação, e menos ainda em relação a alguma coisa ou pessoa
complicada ou relutante em trazer a satisfação que se busca. (BAUMAN,
2001, p. 188-189)

Por quais caminhos chegamos a esse quadro atual? Bauman (1998, 2001, 2004,
2005) tece alguns conceitos interessantes, que podem nos auxiliar a montar um quadro
explicativo do que vivenciamos, quando fala da passagem da Modernidade para o que ele
denomina de Modernidade Líquida. Com seu conceito de Modernidade Líquida aponta
113

para a fluidez da relação do sujeito com o objeto40. Quando tomamos o outro como esse
objeto, ocorre um processo de intensa e constante transformação das formas e desenhos
corporais, conduzidos pelos ditames da cultura.

3.1. MAL-ESTAR, CULTURA E SUBJETIVAÇÃO

Temos uma “nova” preocupação que assola o indivíduo contemporâneo com


relação aos seus anseios, desejos, frustrações e sofrimentos na maneira de se relacionar
com a civilização ou a cultura. “Novas” maneiras de atuar em sociedade, cujos critérios de
inclusão ou exclusão assumem parâmetros de diversas ordens. Esse panorama nos faz
pensar sobre vários aspectos pelos quais se constitui o indivíduo e a subjetividade. Em
especial, o que nos chama a atenção é a vivência das manifestações do mal-estar na
contemporaneidade. Será, portanto, necessário, lançar olhar sobre a produção sóciocultural
modificada por essa nova ordem, resultando naquilo que podemos chamar de
contemporaneidade. Esta nos captura na visão do sujeito, que vivencia uma significativa
transição da posição da ação coletiva para uma atuação individualizada, autocentrada,
voltada quase que exclusivamente para si mesmo (COSTA, 2004).
No século XX, com o advento dos meios de comunicação de massa, as bases
materiais da sociedade capitalista, a indústria e o mercado, expandiram suas lógicas
passando a estabelecer condicionantes para a subjetividade, num processo de formatação
estética das massas, contradizendo a própria premissa liberal da promoção da liberdade dos
indivíduos. Na Indústria Cultural, o capital encontra o seu triunfo, pois consegue
estabelecer condicionantes estéticos ao indivíduo. Palavra, música e imagem encontram-se
perfeitamente, imprimindo no mesmo por meio de elementos sensíveis às mesmas lógicas
da reprodução, presentes no pátio da indústria. Após o dia-a-dia no trabalho e/ou na escola,
após a experiência cotidiana na realidade fabricada e transformada pela indústria, o
indivíduo deve se orientar pela unidade da produção.
Para tanto, os meios de comunicação entretêm as massas com uma espécie de
simulacro de arte, arte leve, na medida em que não coloca o indivíduo diante de um
contraponto ao vivido. Ocorre uma espécie de atrofia da imaginação e da espontaneidade

40
A lei do consumo nos dita que é preciso comprar, consumir, adquirir, fazendo de um objeto não presente do
cotidiano do sujeito algo indispensável. Elegemos os objetos, erotizamo-los e o trazemos para nosso corpo,
na busca de satisfazer o desejo.
114

do consumidor cultural, por meio da reprodução e repetição, paralisando a capacidade de


se pensar em outra realidade que não a que se vive. A indústria cultural fornece às massas
seu próprio belo, o consumo e o prazer efêmero, como uma suposta experiência de negação
da realidade presente, mas que acaba por confirmá-la, observa Costa (2004).
Zygmunt Bauman, em diálogo com a análise de Theodor Adorno, tem dedicado
especial atenção ao estudo da sociedade contemporânea. Segundo Bauman (2009, p. 105)
A sociedade de consumo tem por premissa satisfazer os desejos humanos
de uma forma que nenhuma sociedade do passado pôde realizar ou
sonhar. A promessa de satisfação, no entanto, só permanecerá sedutora
enquanto o desejo continuar irrealizado; o que
é mais importante, enquanto houver uma suspeita de que o desejo não foi
plena e totalmente satisfeito. [...] A não satisfação dos desejos e a crença
firme e eterna de que cada ato visando a satisfazê-los deixa muito a
desejar e pode ser aperfeiçoado – são esses os anúncios da economia que
têm por alvo o consumidor.

A racionalidade moderna consumista promove uma insatisfação crônica. É sobre


essa base que se sustenta a sociedade capitalista. Essa plena identificação entre
expectativas de consumo e a condição existencial dos indivíduos tem se estendido para
outras áreas da vida social, como a educação por exemplo.
Outro impacto da cultura de consumo está na experiência do tempo. Um dos
traços do mundo contemporâneo é que o ser humano não se compreende mais como ser
histórico. Isso se deve, segundo Costa (2004), à quantificação do tempo pelo uso
generalizado do relógio, pela sensação de que o tempo passa rapidamente e pela
valorização mercadológica do tempo pela necessidade da produção. Esses fenômenos
geram no ser humano uma grande sensação de perda de tempo.
Bauman (1998), na introdução de “O mal-estar na pós-modernidade”, traça um
paralelo entre os mal-estares da modernidade, cujas referências são as concepções
freudianas do mal-estar na civilização (FREUD, 1930) e os mal-estares contemporâneos41.
Com o objetivo de fundamentar tal discussão, o autor dá destaque a um elemento
importante que assume um lugar diferenciado em cada época, a “liberdade individual 42”.
Para Bauman (1998), a modernidade foi caracterizada pela comunidade tradicional fechada
e isolada, pelos laços e obrigações sociais fundados na afetividade e na tradição, a religião,

41
Assim como Theodor Adorno e demais pensadores frankfurtianos, Bauman também vai dialogar com Freud
nas obras Mal estar da Pós-Modernidade e Mal-estar da Civilização, onde afirma o ser humano como ser
que se move no mundo a partir dos seus desejos, um ser desejante.
42
O autor utiliza o termo“liberdade” no sentido da autonomia, do projeto moderno do esclarecimento, da
suposta emancipação individual a partir do uso da razão e do cálculo instrumental.
115

antigos sólidos que moldavam a vida humana desde milênios. A modernidade almejava,
acima de tudo, o melhoramento, o progresso, a razão, com o projeto de formação de um
indivíduo autônomo e esclarecido, livre.
Em relação ao momento presente, este pode ser caracterizado como a era da
liquefação do projeto moderno, a modernidade líquida, afirma Bauman (1998). O momento
atual da modernidade é caracterizado justamente pela dissolução das forças ordenadoras
que permitiam ativamente reenraizar e reencaixar os antigos sólidos em novas formas
sociais modernas. Os padrões sociais de referência que balizavam a ordem social da
modernidade tornaram-se liquefeitos, a classe, o Estado-nação, a cidadania, juntamente
com a livre expansão global das forças de mercado e o retrocesso da veia totalitária da
ordem moderna libertaram os indivíduos de seus grilhões atados a uma ordem rígida e
racional-instrumental.
Na modernidade líquida os indivíduos não possuem mais padrões de referência,
nem códigos sociais e culturais que lhes possibilitem, ao mesmo tempo, construir sua vida
e se inserir dentro das condições de classe e cidadão. Chega-se, no entender de Bauman
(2001), à era da comparabilidade universal, onde os indivíduos não possuem mais lugares
pré-estabelecidos no mundo onde poderiam se situar, mas devem lutar livremente por sua
própria conta e risco para se inserirem numa sociedade cada vez mais seletiva econômica e
socialmente. No momento da modernidade líquida, os indivíduos foram justamente
“condenados” a serem livres.
A segurança da ordem social, dada na modernidade sólida, que poderia garantir
um “seguro coletivo contra os infortúnios individuais” se liquefez jogando aos indivíduos a
solitária responsabilidade pelos seus problemas. A insegurança em relação ao futuro
decorre justamente do fato de que o poder moderno não é mais público (voltado para
manutenção e segurança do mundo público), mas é privatizado, contingente e, para os
indivíduos, fugaz. Para Bauman (1998), é justamente da escassez de liberdade – resultado
do excesso de organização da vida civilizada – que resulta o mal-estar que marca a
modernidade.
Em benefício da segurança, o indivíduo sacrificou parte de sua liberdade
individual e a consequência disso foi a impossibilidade de se atingir a “felicidade plena”.
Essa é a conhecida justificativa proposta por Freud em 1930 e incansavelmente repetida
para justificar a infelicidade como o destino do homem civilizado.
116

“A civilização se constrói sobre uma renúncia ao instinto”. Especialmente


– assim Freud nos diz – a civilização (leia-se: a modernidade) “impõe
grandes sacrifícios” à sexualidade e agressividade do homem. “O anseio
de liberdade, portanto, é dirigido contra formas e exigências particulares
da civilização ou contra a civilização como um todo”. E não pode ser de
outra maneira. Os prazeres da vida civilizada, e Freud insiste nisso, vêm
num pacote fechado com os sofrimentos, a satisfação com o mal-estar, a
submissão com a rebelião. A civilização – a ordem imposta a uma
humanidade naturalmente desordenada – é um compromisso, uma troca
continuamente reclamada e para sempre instigada a se renegociar.
(BAUMAN, 1998, p. 8)

Oito décadas após Freud ter escrito “O mal-estar na civilização”, é a liberdade


individual que reina soberana (BAUMAN, 1998, p. 9).
Desde Freud em “O mal-estar na civilização”, o modelo de análise que
fundamentava grande parte das análises das Ciências Humanas postulava a interferência do
Estado e das esferas públicas na dimensão da vida privada, na intimidade, na privacidade e
no processo de formação dos indivíduos. Ser moderno, nesse sentido, é acreditar na razão
esclarecedora, na autonomia individual.
Entretanto, o modelo de sociedade contemporâneo, caracterizado pela
globalização, pela transnacionalização, inverteu a lógica desse receio. A questão do
controle da economia sobre o Estado e dos processos formativos dos indivíduos deu lugar a
uma tendência de descentralização, flexibilização, desregulamentação e precarização de
todos os processos constitutivos que moldavam as sociedades ocidentais no período pós-
guerra em diante. Na obra “O mal-estar na pós-modernidade”, Bauman afirma que a
modernidade foi caracterizada pela segurança no mundo, pela confiança na razão, pela
racionalidade. Na modernidade, a racionalidade ganhou corpo social, mecanismos sociais.
No entanto, o mal-estar na pós-modernidade é caracterizado, sobremaneira, pela liberdade,
ou seja, sou livre, mas livre das tradições modernas. Não preciso obedecer à tradição, uma
vez que ela não mais existe. Obedeço apenas à lei do mercado. É essa liberdade que nos
atormenta.
Esses aspectos canalizam na noção de liberdade todos os anseios e promessas de
realização desse novo modelo de indivíduo, o qual encontrou na liberdade do consumo e a
desresponsabilização pelo outro as maiores evidências da realização desse novo processo.
Essa ênfase na liberdade que desregulamentou e retirou as responsabilidades estatais que
estruturavam as relações e os vínculos sociais e produtivos é a mesma que agora está
117

diretamente ligada às sensações de incerteza e insegurança que dominam a nossa vida


atual.
O indivíduo contemporâneo, segundo o sociólogo polonês, sacrifica uma parte de
suas possibilidades de segurança por felicidade, o que também não promete um “estado
pleno” de satisfação, mas somente momentos dela, tal como exposto também por Freud no
texto de 1930.
Os mal-estares da modernidade, afirma Baumam (1998), estavam relacionados à
pequena liberdade adquirida para a felicidade individual, enquanto os mal-estares da pós-
modernidade43 relacionam-se a uma liberdade para a busca pelo prazer que tolera um
mínimo de segurança individual. Os principais meios para atingir uma vida feliz são as
mercadorias, mas não apenas objetos que servem ao consumo. Quem busca uma marca,
uma grife, um logo, deseja o reconhecimento que isso irá lhe proporcionar perante os
outros. Um dos efeitos de manter a busca da felicidade atrelada ao consumo de
mercadorias é tornar essa busca interminável e a felicidade sempre inalcançada. Se não se
pode chegar a um estado de felicidade duradouro, então a solução é continuar comprando,
com a esperança de que a próxima linha de produtos superfáceis de usar ou a nova
tendência outono-inverno redima os incansáveis buscadores de felicidade. A grande
cartada dos mercados foi transformar o sonho da felicidade de uma “vida plena” e
satisfatória em uma busca incessante de “meios” para se chegar a isso. Essa característica
da busca frenética da felicidade através do reconhecimento social tem impactos
importantes na identidade. Na modernidade sólida, as identidades eram sim
autoconstruídas, no entanto, eram também feitas para durar. No caso da experiência dos

43
O debate sobre a alternativa da pós-modernidade se travou em diferentes tradições filosóficas e é difícil
determinar com precisão quais autores se localizam na esteira desse movimento. Arrisco-me a indicar alguns,
com maior destaque para Lyotard (A condição pós-moderna, 1998), Deleuze e Gattarri, Giddens (As
consequências da modernidade, 1991), Jameson (Pós-modernismo) que enfatizam o pós-moderno como um
cenário que denota um mal-estar abrangendo vários contornos sociais. As questões do pós-moderno se
colocam como crítica e oposição às posturas epistemológicas do moderno para efeito desconstrutivo da
própria modernidade, indicando-a como palco extravagante das mazelas da sociedade industrial. O discurso
pós-moderno se tornou tema de debate que aglutinou a própria discussão da modernidade, tematizando os
deslocamentos das grandes narrativas, a descontinuidade e a fragmentação aparecem como escopo das
mudanças contemporâneas. Veiga- Neto (2004) (Foucault e a educação) bem percebe que “tem sido comum
caracterizar a pós-modernidade numa perspectiva de negação, isso é, pelo que ela não é, por aquilo que ela
não quer fazer”, complementando, que “assim, o pensamento pós-moderno opera uma mudança, uma
reversão, em relação às condições anteriores, próprias da Modernidade, tomada essa no plano histórico como
quase sinônimo de Iluminismo”. Então, como podemos dizer afirmativamente de nosso tempo? Destacamos a
problematização feita por Bauman (1998, 1999, 2001, 2004), que pensa a contemporaneidade em termos
líquidos, fluidos, provisórios, transitórios, incertos, duvidosos. É essa caracterização que adotaremos neste
trabalho.
118

indivíduos na versão líquida da modernidade, a identidade é continuamente montada e


desmontada. E tem de ser assim, visto que a busca fugaz da felicidade exige adaptabilidade
e mudança constante, portanto prender-se a uma “identidade” pode ser o desfecho final de
um destino infeliz. O aspecto funcional dessa identidade fabricada e portátil é que ela pode
ser descartada no momento em que se tornar inconveniente. Quando não estiver mais feliz
com o seu “eu”, self, o indivíduo pode descartá-lo e comprar um novo no mercado dos
produtos de estilo. Mais fácil para uma felicidade continuamente buscada, visto que se
pode fabricar “eus” distintos quando for necessário e dependendo do poder de compra do
consumidor. Nesse sentido, a ideia de felicidade em Bauman pode ser entendida como um
lugar ilusório em que o vasto empreendimento de novas promessas esmaece o excesso de
decepções, fazendo com que a crença nessa busca não seja perdida e permaneça
reatualizando a cultura consumista.
Portanto, é o prazer individual que estabelece a ordem a ser seguida na
contemporaneidade. Nas palavras do autor:
Os mal-estares da modernidade proviam de uma espécie de segurança
que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade
individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma liberdade
de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena
demais. (BAUMAN, 1998, p. 10)

Essa liberdade já está integrada com a angústia devido à perda de estrutura diante
das incertezas e do novo, oriunda das transformações sociais, políticas e econômicas,
ocorridas no mundo contemporâneo e que têm como marca a fragmentação da coletividade
e da segurança estabelecida a priori. A nossa atualidade se caracteriza, dentre outras
coisas, pela sensação de liberdade individual, tão almejada durante tanto tempo. São
tempos em que a própria noção de tempo tornou-se algo impreciso, efêmero em virtude da
velocidade dos acontecimentos e das inúmeras, senão infinitas, possibilidades que se
oferecem aos nossos olhos.
Nesse cenário, afirma Bauman (1998), a pós-modernidade oferta aos indivíduos
uma liberdade aparente à custa de um sentimento de insegurança generalizado e, dessa
forma, os mal-estares pós-modernos vão se caracterizando pela liberdade fluida, e não pela
opressão e repressão de outrora:

Os mal-estares, aflições e ansiedades típicos do mundo pós-moderno –


resulta do gênero de sociedade que oferece cada vez mais liberdade
individual ao preço de cada vez menos segurança. Os mal-estares pós-
119

modernos nascem da liberdade, em vez da opressão. (BAUMAN, 1998,


p. 156)

Para o autor, a liberdade individual em busca de toda possibilidade de prazer se


concretiza ao preço de um sentimento avassalador de insegurança, uma vez que nada é
garantido, nada é definitivo e sólido como fora alguma vez em épocas anteriores. O
sentimento de incerteza aumenta na medida em que nossa sensação de seres humanos
descartáveis se torna cada vez mais disseminada com as transformações dramáticas pelas
quais o mundo do trabalho vem se estruturando.
Esse movimento torna-se uma obrigação, um imperativo na atualidade. Não
chegamos a pensar em “por que mudar”, “por que assumir”, “por que desejar”, “por que
flexibilizar”. Somente sabemos que o movimento, a atualização são fundamentais para que
o indivíduo tente evitar ficar para trás, tornar-se descartado, palavra-chave desse contexto
da modernidade líquida, segundo Bauman (2009), e até mesmo evitar “ser excluído. O
estranho é o fora do lugar e sem casa. É o desordenado, sua lealdade é duvidosa, afirma o
autor. Na modernidade, elegiam-se os elementos que deveriam ser ensinados, atribuíam-se
lugares justos e convenientes a tudo e a todos. Buscavam-se também o maior controle
possível dos acontecimentos. E aqueles que transgrediam esses limites eram convertidos
em estranhos e considerados indesejados. Aqui, o estranho é visto como aquele que
questiona, que despedaça a segurança da vida diária. O impuro oferece desequilíbrio à
ordem e à previsibilidade, razão pela qual é rechaçado e aniquilado. O impuro é o
inadequado, fora do lugar, fora de ordem, torna-se “sujo”, “imundo”, agentes poluidores,
coisas “fora do lugar”. Aqui, o mal-estar é o fora do lugar. Os estranhos criam identidades
não previstas no projeto de Nação. Segundo Bauman (1998), diante da fluidez
generalizada, apesar da maior convivência entre os diferentes, a capacidade dos homens de
tratar o “estranho” com humanidade continua comprometida e prejudicada. Nesse debate,
Bauman (1998) discute quatro pontos da dimensão da incerteza na modernidade líquida.
São eles: 1) a nova desordem do mundo; 2) a desregulamentação universal; 3) o
enfraquecimento das outras redes de segurança e 4) a cultura do espetáculo. Nesse
contexto, se quisermos recensear os valores pós-modernos (“liberdade”, diversidade,
tolerância), dirá Bauman (1998), constataremos que a liberdade e a diversidade se cingem
à opção do consumo guiado pelo mercado e que a tolerância pode desembocar em
isolamento e indiferença. Em linhas gerais, o estranho, o depressivo, o melancólico na era
120

do consumo é aquele indivíduo que fracassou diante da sociedade do espetáculo e do


consumo.
Conforme Bauman (2001), se na modernidade44 a velocidade e a mobilidade eram
desejadas, na pós-modernidade esse desejo se transforma em obrigação, se transforma, na
exigência máxima para permanecer vivo. No movimento do sujeito para ascender em sua
vida particular e social (lembrando que essa corrida visa sempre à realização de um desejo
de felicidade e bem-estar), esse percurso para atingir tal finalidade se mostra incerto e
duvidoso a cada passo que se dá em direção ao objetivo almejado.
No meio do trajeto, encontramos desvios impostos pela própria dinâmica do
cenário contemporâneo, dadas a instabilidade e incerteza das circunstâncias atuais. No
mesmo instante em que se conquista algo, logo se está sujeito a perdê-lo, uma vez que não
há garantia nenhuma de que as conquistas sejam duradouras ou eternas.
Nesse mundo, poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda
irrevogáveis. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos
contratempos, irreversíveis; mas nenhuma vitória é tampouco final. Para
que as possibilidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de
petrificar-se em realidade para sempre. Melhor que permaneçam líquidas
e fluídas e tenham “data de validade”, caso contrário, poderiam excluir as
oportunidades remanescentes e abortar o embrião da próxima aventura.
(BAUMAN, 2001, p. 74)

Diante do bombardeio desenfreado de ofertas de todos os tipos e gostos, a tarefa


de escolher se torna um fardo angustiante em virtude do excesso de alternativas e
possibilidades que se fazem por aparecer.

O mundo cheio de possibilidades é como uma mesa de bufê com tantos


pratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia esperar
provar de todos. Os comensais são consumidores, e a mais custosa e
irritante das tarefas que se pode pôr diante de um consumidor é a
necessidade de estabelecer prioridades: a necessidade de dispensar
algumas opções inexploradas e abandoná-las. “Será que utilizei os meios
à minha disposição da melhor maneira possível?” é a pergunta que mais
assombra e causa insônia ao consumidor. (BAUMAN, 2001, p. 75)

44
Bauman (2001) vai distinguir a modernidade em dois períodos: modernidade e pós-modernidade ou
modernidade sólida e modernidade líquida. Para Bauman (2001), a modernidade aqui é caracterizada como
princípio ordenador e individualizador, tendo a ordem racional como motor do projeto moderno. Tudo
deveria ser conhecido e categorizado, controlado e dominado pela ordem racional, conforme previa tal
projeto. Toda ambivalência, aquilo que era tido como incerto, duvidoso, indeterminado, deveria ser
eliminado. Se a modernidade sólida foi para Bauman (2001) uma tentativa de controle racional do mundo, a
modernidade líquida é o mundo do descontrole. A liquidez das relações, a aceleração do ritmo de vida, a
velocidade da tecnologia, a incerteza, a dúvida, o consumo, enquanto principal forma de construção da
individualidade, são elementos que, como produtos que se alternam nas propagandas, fazem com que o
indivíduo rompa com a fixidez, dando um ar de “liberdade plena e irrestrita”.
121

A contemporaneidade exige do indivíduo performances sucessivas, tendo estas a


característica principal da valorização de uma capacidade de desligar-se de tudo que se
apresenta como duradouro ou sólido. Esse é o ponto nodal do estilo de existência
estimulada pela contemporaneidade. A velocidade com que as coisas acontecem num
contexto onde as fronteiras deixaram de existir somada à distância que se tornou nula em
decorrência dos avanços das novas tecnologias da informação e comunicação demanda do
sujeito sempre uma leveza em seus movimentos, a fim de torná-los tão velozes e eficazes
quanto a evolução das possibilidades.
Em virtude da efêmera instantaneidade dos eventos que ocorrem cotidianamente
em nossas vidas, a nova configuração de tempo e espaço forjada nos dias de hoje liquida
qualquer possibilidade de cristalizar-se um passado histórico. Nesse contexto, as
características do mundo internetizado e sem fronteiras, onde qualquer vínculo com o
passado é rapidamente esquecido e o presente efêmero é o que importa, acabaram por
negar as possibilidades de projetarem-se ambições para um futuro a médio e longo prazos.
Assim, os projetos pessoais deixam de fazer sentido, uma vez que o tempo valorizado na
atualidade não nos permite pensarmos em prazos longínquos. A possibilidade de
experienciar, viver a experiência45 de fato das coisas e dos acontecimentos é retirada do
sujeito em tempos demasiadamente acelerados, fluidos, transitórios e líquidos.
A metáfora do fluído, do líquido, trazida por Bauman (2001) é preciosa para
compreendermos as transformações sociais pelas quais passamos. Para o sociólogo, as
inúmeras esferas da sociedade contemporânea, vida privada, vida pública, os
relacionamentos humanos, são atingidos por uma série de transformações cujas
consequências esgarçam o tecido social. Tais transformações, de acordo com Bauman
(2001), fazem com que as instituições sociais percam a solidez e se liquefaçam, tornando-
se fluidas, amorfas, paradoxalmente, como os líquidos.
A partir do exposto, na perspectiva baumaniana, o sujeito da modernidade líquida
é atravessado por inúmeros mal-estares, sentimentos de desapego, aflição, insegurança,
ansiedade, fuga, astúcia, evitação, fragilidade dos laços afetivos, depressão, uma vez que
são constantemente ameaçados pela possibilidade de se tornarem supérfluos, descartados
como lixo.

45
Voltaremos ao tema da experiência no capítulo 4, onde discutiremos a partir de Benjamin (1994a) as
possibilidades da experiência, uma vez que a mesma encontra-se em baixa na atualidade.
122

Em suma: a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de


incerteza constante. As preocupações mais intensas e obstinadas que
assombram esse tipo de vida são os temores de ser pego tirando uma
soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás,
deixar passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora
indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo
antes de tomar um caminho sem volta. A vida líquida é uma sucessão de
reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e indolores, sem
os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a ser os momentos mais
desafiadores e as dores de cabeça mais inquietantes. Entre as artes da vida
líquido-moderna e as habilidades necessárias para praticá-las, livrar-se
das coisas tem prioridade sobre adquiri-las. (BAUMAN, 2009, p. 8)

No mundo como nos é apresentado hoje, em que as produções culturais, os bens


materiais, os bens de consumo, as diretrizes políticas, sociais e até mesmo as educacionais,
todas se mostrando leves e incertas, a tarefa do sujeito em se adequar a esse movimento é
árdua demais e custa-lhe abdicar de toda e qualquer possibilidade de segurança.
Para engatar suas reflexões a respeito do indivíduo na contemporaneidade – que
não encarnaria de fato o status de cidadão, mas sim, o de consumidor – Bauman discorre
sobre as instigantes metáforas do Peregrino, do Turista, do Jogador e do Vagabundo, sendo
neste trabalho utilizadas as duas primeiras. Trata-se, portanto, de uma alegoria utilizada
pelo pensador para descrever a estratégia de vida moderna.
Para o sociólogo, o Peregrino é um buscador silencioso, buscador do sentido da
vida, de sua essência, da verdade. Para essa figura metafórica, a verdade encontra-se em
outro lugar, distante de si, que não se acha no agora, nesse instante. O suposto lugar está
sempre longínquo, tanto no tempo quando no espaço e ele o busca incansavelmente. Essa
seria sua missão, sua maneira de se encontrar, no contexto dessa busca.
De certo modo, a viagem é o destino. O lugar ideal para o Peregrino seria o
deserto, ambiente desolador com grande significado a ele. O deserto representaria para o
peregrino o arquétipo da liberdade selvagem, da ausência de quaisquer limites, do
verdadeiro encontro com o “eu”. Como terra virgem, o Peregrino conseguiria se afastar dos
códigos mundanos e manter contato consigo mesmo e com o silêncio. O pressuposto do
longo prazo fixado na peregrinação vivifica e dá forma ao que é informe e faz um todo de
um fragmentado. A essa busca por sentido à vida é o que se denomina construção da
identidade. O mundo e o Peregrino adquirem sentido juntos, um através do outro. Para
Bauman (1998), o lugar do Peregrino, ou dos construtores da própria identidade, deve ser
ordenado, paulatino, sólido, onde suas pegadas fiquem marcadas para sempre, a fim de
123

eternizar os registros de suas viagens passadas. Dito de outro modo, a peregrinação é um


mergulho interior, uma experiência de autodescobrimento.
Em um sistema pulverizado pela instabilidade, Bauman afirma que hoje os valores
a serem buscados são calculados com o objetivo frívolo de descarte instantâneo. O enfoque
da vida moderna, cujo lema é “Viver só o dia de hoje” é, mais do que nunca, evitar a
perpetuação da identidade e fomentar a alteração da identidade, objetivos contrários aos do
Peregrino.
Se, para o Peregrino, a viagem – alegoria para a vida – tem significados,
motivações, espera, contemplação e faz de seu percurso um ato de reflexão, o Turista é
aquele que se volta pra fora de si mesmo, detém-se no que lhe é externo e se dispõe à caça
de aventuras ao longo da viagem. Está atrás de sensações novas, fazendo de seu trajeto um
ato de consumo.

[...] os turistas que valem o que comem são os mestres supremos da arte
de misturar os sólidos e desprender o fixo. Antes e acima de tudo, eles
realizam a façanha de não pertencer ao lugar que podem estar visitando: é
deles o milagre de estar dentro e fora ao mesmo tempo. O Turista guarda
sua distância e veda a distância de se reduzir à proximidade. (BAUMAN,
Z., 1998 – p. 114)

O mundo do Turista é pensado por critérios estéticos e seu grande medo é o


confinamento a um só lugar. Seu jogo persiste em olhar o horizonte sempre como meta a
ser alcançada, como novas sensações a serem vividas. O pressuposto fundamental da vida
do Turista é a busca sistemática de experimentações até que elas deixem de ser algo
desconhecido e lhe provoquem tédio. O trajeto é enfadonho, não vendo ele a hora de
chegar a um novo lugar. Se o Peregrino cultiva relações duradouras, o Turista só mantém
relações momentâneas com pessoas, coisas e lugares, sendo todos para ele circunstanciais e
substituíveis.
Diante do exposto, utilizamos dessas duas metáforas para refletirmos como na
contemporaneidade as relações sociais são muito mais afeitas à lógica funcional do Turista,
ou seja, ela é uma simples sequência de eventos sem encadeamento. Assim como o
indivíduo moderno, o Turista é aqui mencionado como alguém com planos de curto prazo,
tendo a vida uma sucessão de acontecimentos sem ligação uns com os outros, uma vida de
prazer imediato, de fragmentos, vive um eterno presente. Assim como o Turista, o
indivíduo moderno esquece o passado, vive o momento presente, não guardando memórias
de seus feitos, esquecendo-se de tudo velozmente.
124

Assim podemos afirmar que os indivíduos não são tão autores como supunha a
modernidade. É nesse sentido que Bauman (2001) se apropria do termo “consciência pós-
moderna” para se referir à consciência do fracasso da modernidade, afirmando que essa
mesma consciência se instala a partir de um mal-estar. Para o autor, esse mal-estar faz com
que o indivíduo desperte do sonho para o pesadelo. Ao sonho moderno da busca de uma
sociedade completamente ordenada, Bauman – e isso também está presenta na “Dialética
do esclarecimento” – demonstra-nos como essa ânsia acaba (re) produzindo seu oposto.
De acordo com a passagem retomada por Bauman de Adorno & Horkheimer
(1985), do capítulo O conceito do Esclarecimento, o que os homens modernos querem
aprender da natureza é como utilizá-la para dominá-la completamente e aos outros homens.
Nada mais importa. Qualquer estrutura que comprometa a ordem, “[...] a harmonia, o
plano, rejeitando assim um propósito e significado, é Natureza. E, sendo natureza, deve ser
tratada como tal. E é natureza porque é tratada assim” (BAUMAN, 1999, p. 48-49).
Uma leitura atenta indica que, de fato, há uma ríspida crítica à forma de vida
moderna e à sua cultura; entretanto, não se trata, porém, do abandono da modernidade,
mas, sim, de uma despedida de antigas ilusões de outrora (embora, à primeira vista, essa
citação pareça indicar o contrário). Subjacente a esse reconhecimento está a compreensão
baumaniana, já presente na própria Dialética do esclarecimento (1985), segundo a qual as
maiores atrocidades e os maiores crimes do século XX, o século que pode entrar para a
história como o século dos campos (BAUMAN, 1999), foram cometidos não só em nome
do domínio humano sobre a natureza, mas também sobre o senhorio total sobre a natureza
humana, suas necessidades, sonhos e desejos. Quando esse trabalho de domínio (da ordem)
se torna incontestável diante de outras considerações que não a mera instrumentalidade, os
seres humanos transformam-se eles próprios em natureza morta, em seres humanos
realmente supérfluos.
Nesse aspecto, irão convergir de forma surpreendente a leitura de Bauman com
aquela feita por Adorno a respeito da primazia da racionalidade instrumental na era
moderna (embora Adorno, com veremos, não deixe de pensar também em termos
psicanalíticos as questões que ele sabe que são, em um primeiro momento, sociais).
125

3.2. A PERFORMANCE DO INDIVÍDUO NA CONTEMPORANEIDADE

A contemporaneidade, sob as égides do capitalismo e do consumismo exacerbado,


tem em suas mercadorias e produtos a matéria-prima básica para a criação e produção das
condições espetaculares. Diante das novas configurações socioculturais atuais (talvez não
sejam tão novas assim, mas elas aparecem com mais frequência), os indivíduos executam
estilos de existência possíveis, algumas vezes em consonância com os trâmites da
sociedade globalizada e do discurso social, outras se apresentando aquém do mesmo,
ambos caracterizando estilos de performances e modos de subjetivação 46 específicos da
atualidade.
Sempre na direção da rapidez, da fluidez, da liquidez, do transitório, o consumir
ganha enorme importância para os indivíduos na contemporaneidade. Para atender as
demandas e exigências de uma sociedade que se desenvolve sobre o primado do
capitalismo é necessário que sejamos consumidores em potencial da avalanche de bens e
produtos à nossa disposição.
A sociedade do espetáculo, de Debord (1997), retrata um contexto em que os
meios de comunicação de massa atingem um estado de desenvolvimento tão avançado que
fazem da imagem e da aparência o valor mais importante a ser almejado.
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de
produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos.
Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação. As
imagens que se destacaram de cada aspecto fundem-se num fluxo
comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser
restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua
própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera
contemplação. (DEBORD, 1997, p. 13)

Para Debord (1997) o espetáculo é a confirmação da aparência. E o que de fato


existe é aquilo que aparece na mídia, aquilo que está na pauta dos telejornais, na internet e
em todos os meios de comunicação de massa.
A sociedade do espetáculo, de acordo com Debord (1997), obtém seus artefatos
do capitalismo exacerbado para compor seu cenário glamouroso e espetacular aos
indivíduos. Desse modo, a possibilidade de participar satisfatoriamente no palco forjado
socialmente depende da alta capacidade de consumo dos indivíduos. E consumir sempre,

46
Estamos entendendo modos de subjetivação – ou processo de subjetivação – como um processo de
resultado de si, de produção de si.
126

cada vez mais e mais, pois esta é a performance que o sistema demanda de seus
consumidores.
Na linha de pensamento de Debord, Türcke (2010, p. 9), estudando a sociedade
excitada, traz um interessante elemento para refletirmos sobre a sociedade performática:
“Originalmente, sensação significou nada mais do que percepção. Nos dias atuais, entende-
se principalmente como sensação aquilo que, magneticamente, atrai a percepção: o
espetacular, o chamativo”. Turcke (2010) afirma que, a partir do momento em que vivemos
num contexto que nos exige determinadas formas de (a) parecer na cena espetacular, é
inevitável que diante da impossibilidade de participação nesse teatro espetacular, o (a)
parecer na cena social se torna questão de existência.
Nessa cultura de estetização do eu, o indivíduo tem seu valor atribuído pelo o que
aparenta ser, mediante as imagens produzidas para se apresentar na cena social e, dessa
forma, a exibição se transforma no lema essencial da existência – razão de seu ser. Este é o
cenário e o pano de fundo onde se desvelam os dramas individuais e coletivos
característicos de nosso tempo, onde os indivíduos posicionam-se de maneira peculiar no
espaço de sociabilidade, desenhando assim, um autorretrato de nossos dias.
Outro autor que nos auxilia a pensar na nova configuração das subjetividades na
contemporaneidade é Jurandir Freire Costa na obra “O vestígio e a aura: corpo e
consumismo na moral do espetáculo”. Costa (2004) afirma que, na contemporaneidade, a
dominação espetacular é plena sobre as subjetividades individuais e/ou coletivas, ao passo
que a tentativa de fuga desse contexto performático se revestirá das malhas finas do
próprio espetáculo, pois a cena espetacular cria a seu bel-prazer a realidade vivida em
nossa atualidade.
A mercadoria, uma vez exposta como um atributo excessivamente valorizado no
presente-relâmpago da cena social passa a ser um verdadeiro objeto de fetiche para os
consumidores, os quais idealizam o produto, conferindo-lhe características fantásticas e
ideais. Esse produto passa a representar simbolicamente um determinado indicador de
status no cenário espetacular, um verdadeiro passaporte para o rol da fama, onde o
indivíduo possa se reconhecer e ser reconhecido pelo outro social.

O espetáculo reordena o mundo como um desfile de imagens que


determina o que merece atenção ou admiração. Como viver sexualmente,
como amar romanticamente; como educar os filhos; como ter saúde física
e mental; como conquistar amizades e fazer amizades; como vencer no
mundo dos negócios; [...] tudo isso é aprendido por intermédio da mídia;
127

nada disto convida o sujeito a pensar por que o significado do real se


exaure em sua versão virtual. (COSTA, 2004, p. 228)

Para além das configurações performáticas na atualidade, o próprio


individualismo extremo já se caracteriza como sintoma de uma sociedade narcisista47.
Nessa dinâmica subjetiva das individualidades, onde o outro é sempre desconsiderado em
virtude dos benefícios próprio de cada um, o estopim de todas as formas de violência e
agressividade encontram-se latente e prontos para eclodir ao menor sinal, concretizando os
sentimentos de insegurança e medo.
Na medida em que o autocentramento do indivíduo é sua marca característica, o
outro representa uma ameaça e um perigo o qual deve ser combatido. Sob as égides do
lema “a melhor defesa é o ataque”, as individualidades estão propensas a veicularem toda
hostilidade ao menor sinal de ameaça. Costa (2004) afirma que o indivíduo da atualidade
personifica de forma caricaturizada a verdadeira representação de um homem-bomba, num
sentido subjetivo, um sujeito que em sua relação empobrecida com o outro pode, enfim,
concretizar variadas práticas de violência no que diz respeito aos seus envolvimentos
sociais.
Nesse contexto, o indivíduo vive o dilema da tentativa de pertencer e ser
reconhecido pela sociedade, ao mesmo tempo em que se esforça para não perder sua
identidade. Uma relação do indivíduo com o social, que em sua essência é contraditória e
conflitante, é estabelecida, de forma que as concessões por parte dos indivíduos permitam
que se sintam, ao menos um momento, como integrados a esta sociedade espetacular, ao
passo que, no sentido contrário, um posicionamento mais singular e individual, com o qual
não se adere aos padrões e ideais da atualidade, legam-lhe um sentimento de exclusão e
rejeição por essa mesma sociedade que supostamente o integra e o exclui ao mesmo tempo.
Em suma, todos os comportamentos do indivíduo na sociedade performática
visam sempre a sua autoafirmação egóica, onde o outro é apenas um objeto para ser usado
e, posteriormente, descartado, tanto nos seus atributos físicos, um corpo para o gozo,

47
Lembremos que Narciso, o jovem e belo rapaz que despontava o interesse de todas as ninfas e competia em
sua beleza com os deuses, se apaixona por sua própria imagem no espelho d’ água. Sendo assim, ao tocar a
água em busca da imagem refletida, ela desaparecia. Como o jovem não podia ter aquela bela imagem,
apenas a contemplava, aparentemente e, posteriormente, definha, morre em seu desejo de possuí-la. Na
atualidade, constatamos que o comportamento narcisista é ressaltado na relação com o outro, consigo mesmo,
com a mercadoria, uma vez que a beleza plástica, em detrimento da beleza estética, é emoldurada conforme
os reclames do mercado. Conforme Adorno & Horkheimer (1985), citando o mito de Thântalo, a indústria do
entretenimento promete suprir todos os desejos individuais, mas não cumpre. Assim como Narciso, o
indivíduo moderno tem medo de envelhecer. Daí sua busca infindável pela aparência. Nessa busca, ele sofre,
nega sua própria identidade, se insurge contra as dores e os sofrimentos.
128

quanto para subjugar o desejo outro em face de seu próprio desejo de origem narcísica,
afirma Costa (2004). Numa sociedade narcisista como a que vivemos, as diferenças são
sempre intragáveis, o indivíduo ao engrandecer à custa do outro, acaba por atropelar e
desconsiderar a subjetividade outra, não podendo reconhecer e assimilar qualquer indício
de alteridade, o que poderia pôr em risco seu próprio narcisismo. Entretanto, nessa relação,
se mostra evidente a total dependência do narcisista com relação ao outro, fato
aparentemente contraditório, porém explicativo da essência de toda performance do
indivíduo com vistas a preservar seu narcisismo avassalador.
No espetáculo, a imagem é tudo. Assim, a cultura espetacular da atualidade,
regida pela estetização do eu, o qual transparece e se evidencia nas performances
subjetivas das individualidades, é o produto e sintoma da sociedade espetacular. Nesse
trâmite performático vivenciado pelos indivíduos, o espaço social enquanto locus de trocas
intersubjetivas fica empobrecido, um vazio se abre no entremeio das relações, pois a
cultura narcisista e individualista não é capaz de tolerar o outro, o diferente.
Por meio de uma busca desenfreada à perfeição estética, observa Costa (2004),
temos as bases das configurações psicopatológicas de ordem narcísica na atualidade, em
que a imagem perfeita segundo os padrões sociais e midiáticos é perseguida
obsessivamente pelos indivíduos, acarretando empreendimentos neuróticos com relação ao
próprio corpo, implicando na existência das variadas formas de bulimias e anorexias, para
citar alguns exemplos, estas se manifestando como a forma mais extrema de uma tentativa
subjetiva para se inscrever nos trâmites espetaculares. Toda a pressão do discurso social e
midiático acaba excluindo a maioria dos indivíduos, uma vez que poucos são capazes de
acompanhar os ideais da sociedade do consumo.

3.3. MAL-ESTAR E PRODUÇÃO DE “NOVAS” SUBJETIVIDADES

O mal-estar inerente ao sujeito o convoca a mostrar outras faces de sua


subjetividade para responder ao legado de seu tempo. A nossa época é revestida e investida
de valores que indicam o consumo, a oferta e o excesso, como afirma Birman (2005,
p.104): “Inventamos necessidades em função exatamente do excesso e não sabemos o que
fazer com ele”. Diante disso, que respostas subjetivas são construídas e estabelecidas?
A contemporaneidade apresenta características distintas que acabam por produzir
determinadas formas de subjetivação específicas de nossos dias. A rapidez é uma
129

característica das mudanças na contemporaneidade e parece derivar das dificuldades de se


manter fiel a qualquer identidade por muito tempo, de manter uma conduta ou ideário que
sejam uma referência permanente para o indivíduo, o que o leva a não se agregar a
nenhuma posição de forma definitiva, tornando possível a manifestação de múltiplas
identidades.
É notório o papel da indústria cultural na construção de modelos referenciais na
constituição da subjetividade, as proposições da nova caracterização estética do indivíduo,
construindo e desconstruindo modelos de sustentação efêmera do ideal de eu. Nesse caso, a
indústria do entretenimento ocupa o papel de mediadora comunicativa da cultura que
propõe um superinvestimento no eu, impelindo o indivíduo a voltar-se para si mesmo, com
a valorização da intimidade e do individualismo proposta pela sociedade de consumo. A
própria indústria cultural se ocupa do papel de enunciar o que Debord (1997) chamou de
sociedade do espetáculo que, quando incita o sujeito à valorização do eu, o faz com o
indicativo de exibição de seu universo íntimo e individual.
Esse panorama traz uma roupagem diferente para a sensação de aceitação do
indivíduo por parte do outro. As determinações introjetadas na cultura de um ideal de eu
valoriza, sobremaneira, o sentimento de bem-estar associado à perfeição estética exposta
em sociedade. O indivíduo é capturado pela ideia de que só será aceito pelo outro quando
corresponder ao modelo. O homem contemporâneo se descartou de um modelo reprimido e
puritano para um sujeito mais liberado, permissivo e tolerante. Isso não quer dizer maior
aceitação do outro, e sim uma grande indiferença. É um sujeito desejoso de satisfações
imediatas, o que inclui o alívio rápido do sofrimento (LASCH, 1979).
O fato de tentar romper com um rigoroso modelo repressor não tornou o sujeito
contemporâneo mais feliz ou tranquilo. Se, por um lado, abdicou da culpa religiosa e
repressora, o sujeito se perdeu num círculo vicioso de angústia e desamparo na valorização
do corpo “saudável”, respondendo aos modelos determinados pela cultura narcísica do
consumo.
Conforme assinalamos, determinadas características da sociedade contemporânea
contribuem para a constituição e vivência de uma subjetividade que leva o indivíduo a
experimentar intensas sensações de mal-estar. Determinadas configurações nas formas de
entrelaçamento social da época vigente levaram a um tipo de padronização dos
comportamentos, afetando diversas esferas da vida.
130

Birman (2009) referencia em seus estudos a atualidade do pensamento freudiano


em “O mal-estar na civilização”, texto escrito em 1930 e que, após décadas, permanece
atual. A explicação para a atualidade da obra é considerada pelo autor à crítica que reside
no âmago do questionamento de Freud que, segundo o psicanalista, tem como alvo o
projeto da modernidade. Birmam (2009) considera que Freud observava no mal-estar em
ascensão o resultado do próprio projeto da modernidade.
O teórico se prontifica a realizar uma leitura do mal-estar tendo como referência a
problemática da subjetividade. Segundo o autor, “não se pode falar de mal-estar sem que se
aluda ao sujeito, já que o mal-estar se inscreve sempre no campo da subjetividade”
(BIRMAN, 2009, p. 15). Com o propósito de analisar o que se passa na produção das
subjetividades na atualidade, Birman (2009) se propõe a pensar sobre os destinos do
desejo, na medida em que, de certa forma, torna-se possível investigar o que há de
sofrimento nas atuais formas de subjetivação e, então, elaborar uma compreensão do mal-
estar. Birman (2009) se utiliza dos referenciais teóricos formulados por Debord (1997) e
por Lasch (1979)48 para realizar a leitura das “novas formas” de subjetivação.
O mal-estar evocado pelo projeto da modernidade pode, em síntese, ser atribuído
à constatação do homem de sua real posição no mundo. Segundo Birman (2009, p. 143) “o
discurso do último Freud indica como a racionalização do mundo pela ciência e o correlato
esvaziamento dos deuses que encantavam o mundo produzem, no sujeito, um desamparo
originário e inevitável”.
Freud49, afirma Birman (2009), deixa de apostar na ciência como remédio para o
conflito existente entre vida pulsional e vida social. O conflito não é mais passível de

48
Em “A cultura do narcisismo” Lasch (1979) utiliza o conceito psicanalítico de narcisismo para
compreender o impacto psicológico no indivíduo, das mudanças sociais. O narcisismo, segundo o autor, seria
uma defesa contra as tensões da vida moderna. O autor questiona alguns aspectos da vida psíquica dos
sujeitos de sua época, tais como, a dificuldade de desenvolvimento pessoal, o medo de envelhecer, a
instabilidade das relações pessoais, dentre outros. Nascem assim, os homens narcisistas de nosso tempo,
caracterizados pela superficialidade emocional, medo da intimidade, hipocondria, pseudoautopercepção,
promiscuidade sexual, horror à velhice e à morte. A incessante busca de prazer do homem contemporâneo,
segundo Lasch, torna-se uma obsessão, seguida de queixas de vazio interior. No mesmo sentido tomado por
Debord, o autor aponta a realidade cotidiana, tornando insuportáveis o fracasso e a perda.
49
Em “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna”, texto de 1908, Freud reflete sobre o antagonismo
que já reconhece entre civilização e vida pulsional, ou ainda, sobre a distância que separa os interesses dos
indivíduos e os do agrupamento social, já delineando para a renúncia que o último exige dos primeiros,
responsável por aquilo que caracterizou como doença nervosa moderna. Nesse texto, Freud continua
refletindo sobre as exigências que a civilização impõe, prazeres e ânsias materiais, o que gera pressa e
agitação, rouba sono, o que propicia nervos exauridos, que se refugiam em prazeres ditos intensos, em
detrimento muitas vezes da própria ética e ideais. Já em 1913, em “Totem e tabu”, discorrendo sobre as tribos
nativas, Freud aponta novamente a importância da renúncia dos instintos, , que propicia limites severos e
rigorosos os quais estão na base da constituição da vida social. Mais uma vez Freud enfatiza a íntima ligação
131

solução, de modo que se torna essencial uma constante vigilância sobre ambos para que o
conflito seja levado a bom termo. Desse ponto de vista, constatamos que Freud lança o
homem a uma eterna prisão de onde nunca poderá se libertar da condição de desamparo
vivida inicialmente e, segundo consta, por toda a sua existência.

A afirmação sobre o desamparo do sujeito indica o ponto de chegada do


discurso freudiano. Foi com este enunciado conciso que Freud delineou a
posição de fragilidade estrutural do sujeito, ao relacionar este à sua
corporeidade, às ameaças da natureza e aos horrores gerados nas relações
ambivalentes com os outros. Essa formulação sobre o desamparo
condensa a totalidade do discurso freudiano anterior, sendo a inflexão
máxima da descoberta psicanalítica. Seria porque os homens são frágeis,
finitos e mortais que eles precisam criar todos os artifícios para o
tamponamento daquelas marcas que se materializam com os ouropéis da
vaidade, da suposta auto-suficiência e onipotência. (BIRMAN, 2009, p.
36)

Podemos afirmar, seguindo os argumentos de Birman (2009), que o desamparo


está no cerne da problemática do mal-estar vivido pelos homens na atualidade. Nessa
perspectiva, o desamparo levou o homem a encontrar ferramentas que fornecessem mais
conforto para a ideia terrível da finitude de sua existência. Em consonância com Freud
(1930), Birman afirma que o mal-estar é um conflito inevitável entre as exigências
instintuais e as possibilidades de sua satisfação, ou seja, um conflito entre desejo x
civilização. Daí o indivíduo entrar no mundo da civilização pelo mal-estar pautado pela
renúncia do impulso sexual.
Acreditamos que Freud já apresentava uma determinada compreensão dos
avanços da humanidade, que resulta hoje na contemporaneidade, quando expõe em O mal-
estar na civilização (1930) a visão de uma busca intensa pela felicidade vinculada à ideia
de perfeição, ou seja, o eu ideal. Dentro do contexto da situação de desamparo vivida pela
volatilidade das fronteiras existentes entre o desejo próprio e o desejo do outro, produz-se a

existente entre a constituição do social na estrutura individual psíquica. Posteriormente, em 1915, logo após
a eclosão da Primeira Grande Guerra, Freud escreve “Reflexões para os tempos de guerra e morte”, onde se
atém a pensar de maneira bastante pessimista sobre as possibilidades de sustentação das conquistas morais da
civilização. Nesse texto, Freud trata da desilusão que acarreta a destruição da guerra, em que o princípio da
civilização se perde, os seres humanos se tornam desorientados. Sem leis, os instintos são livres e se
apresentam numa condição primitiva, sem quaisquer restrições. Em 1927, em “O futuro de uma ilusão”,
Freud deposita sua crença nos progressos da razão, preconizando a superação de toda forma infantil e
supersticiosa de compreensão da realidade por outra adulta e racional. Nesse conjunto de obras, Freud (1997,
p. 16) tenta responder “por que todo indivíduo é inimigo da civilização”. Mas é em “O mal-estar na
civilização”, texto de 1930, que Freud se demonstra mais pessimista com relação aos poderes da razão na
condução de uma sociedade justa. O trabalho psicanalítico nos mostrou, afirma Freud (1997), que as
frustrações advindas da restrição sexual, satisfação que nunca é completa, são o que o neurótico não tolera e,
por isso, busca satisfações substitutivas, o que lhe causa dificuldades na vida.
132

angústia. Não existe mais uma forma delimitadora ou até mesmo uma tendência a ser
seguida. Segundo Birman (2009), a situação de mobilidade de limites é o que propicia a
sensação de desamparo. Na problemática aqui ressaltada, concordamos com Birman (2009)
que a limitação existente para o gozo individual torna-se estabelecida pelo gozo do outro.
E, nessa medida, a questão que desorienta o sujeito é o quanto se deve ceder em seu gozo.
A resposta do autor é que, nessa perspectiva, o indivíduo não possui mais à sua disposição
uma medida exata das coisas, não há, assim, qualquer resposta segura.
A subjetividade é lançada a um estado de desamparo em que não existe um
refúgio seguro, ou seja, está fadada a vagar sem rumo por um vasto campo aberto. Nessa
dinâmica subjetiva das individualidades, onde o outro é sempre desconsiderado em seus
desejos, são as relações que acabam empobrecidas, sendo lançadas as sementes do “mal-
estar” nas práticas de sociabilidade dos indivíduos na coletividade. Os indivíduos que
padecem desses mal-estares acabam sendo estigmatizados como culpados pelo insucesso
na vida social, fruto de seus sofrimentos.
Desse modo, sofrer, na atualidade, é sinônimo de vergonha, sofrendo-se duas
vezes, ou seja, pelas próprias condições subjetivas individuais inerentes a cada sujeito e
pelo peso da culpa de se encontrar em tal situação. Assim, desconsidera-se a dimensão
simbólica e subjetiva das formas de mal-estar atuais numa sociedade espetacular que não
propicia o tempo subjetivo da experiência. Parece-nos que a dinâmica do mal-estar
vivenciado pelo professor na escola inclui essa lógica de negação da dimensão simbólica e
subjetiva, impedindo o docente de re-significar o que lhe aflige.
Nesse ponto da discussão, Birman (2009) conclui que o resultado último do
projeto da modernidade se afirma no desamparo das subjetividades. Atribui ao homem o
juízo do que seja pertinente ou não dentro da relação com o outro. Assim, cabe ao
indivíduo avaliar o quanto se deve permitir o gozo próprio e do outro. Tal tarefa, segundo o
autor, se mostra inexecutável por não existir um parâmetro para mediá-la, uma vez que
foram quebrados os valores e as tradições.
Incrementa-se muito, dessa maneira, o potencial de incerteza do sujeito,
já que este passa a ser exposto a maiores opções e escolhas. A
insegurança e a angústia se multiplicam, como consequência. Estas se
transformam em sua qualidade, assumindo novas formas anteriormente
inexistentes, além de seu aumento qualitativo. Em função disso, o
desamparo do sujeito se incrementa bastante, revelando-se o tempo todo
como uma ferida exposta e sangrenta. Enfim, o sujeito passa a se
inscrever num mundo que lhe abre muitas possibilidades, mas que
também lhe aponta muitas impossibilidades existenciais. (BIRMAN,
2009, p. 79)
133

Uma das maneiras de interpretar a citação acima é que, sob o desamparo, o sujeito
é perpassado por intensidades pulsionais em excesso, sendo obrigado a dar conta de
encontrar objetos que possibilitem a satisfação das pulsões, por um lado, e nomear esse
excesso de pulsão, por outro. É a incapacidade de lidar com a intensidade e o excessivo
pulsional, dirá Birman (2009), que gera o mal-estar.
Desse modo, o sujeito vive constantemente o dilema de pertencer e ser
reconhecido pela sociedade, ao mesmo tempo em que luta para não perder sua identidade.
Assim, uma relação do sujeito com o social é estabelecida, mas a mesma é, em sua
essência, contraditória e conflitante. Numa sociedade na qual o reconhecimento é parcial e
momentâneo, independente dos esforços que se faça, e o desprezo e a anulação dos
“estranhos”50 se concretiza, é sempre o sujeito quem sai perdendo algo.
Desse modo, na cena espetacular, onde a possibilidade de reconhecimento só se
faz por meio da estetização da imagem e da aparência, os sujeitos são conduzidos a
modelos de existência cada vez mais individualistas.

Nessa medida, o sujeito é regulado pela performatividade mediante a qual


compõe os gestos voltados para a sedução do outro. Este é apenas um
objeto predatório para o gozo daquele e para o enaltecimento do eu. As
individualidades se transformam, pois, tendencialmente, em objetos
descartáveis, como qualquer objeto vendido nos supermercados e cantado
em prosa e verso pela retórica da publicidade. Pode-se depreender, com
facilidade, que a alteridade e a intersubjetividade são modalidades de

50
Podemos compreender que estes “estranhos”, produzidos no âmago das condições sociais, representam
uma parcela de fracassados e incapazes. Ao mesmo tempo em que sua existência é pré-condição para a
possibilidade de existência das elites, esses excluídos são identificados pelos signos do fracasso social. São,
por assim dizer, a vergonha do ideal de sucesso espetacular, estes que devem ser escondidos do Palco social,
é uma presença ameaçadora, representantes-símbolo da miséria e da falta de sorte (DEBORD, 1997).
Bauman (1998) se dedica no item “A criação e a anulação dos estranhos” a refletir sobre aqueles que estão
“fora” das relações espetaculares, identificados como inimigos da sociedade. Nas palavras do autor: “se os
estranhos são pessoas que não se encaixam nos mapas cognitivos, moral ou estético do mundo [...] se eles
poluem a alegria com a angústia, ao mesmo tempo em que fazem atraente o fruto proibido, se, em outras
palavras, eles obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas; se tendo
feito tudo isso geram a incerteza, que por sua vez dá origem ao mal-estar de se sentir perdido – então cada
sociedade produz esses estranhos [...] ela não pode senão gerar pessoas que encobrem limites julgados
fundamentais para sua vida ordeira e significativa, sendo assim acusadas de causar a experiência do mal-estar
como a mais dolorosa e menos tolerável” (BAUMAN, 1998, p. 27). No texto “O estranho”, de 1919, Freud
afirma que o encontro com o outro que é diferente provoca desconforto e o desejo de mantê-lo distante, pois
há sempre o risco de ser amado ou odiado, há um perigo iminente para o narcisismo de cada um, assim como
também há o risco do encontro com o que há de mais estranho em nós mesmos, “que remete ao que é
conhecido, de velho e há muito familiar” (FREUD, 1919, p. 238). Nesse texto, Freud vai mais longe, analisa
os estranhamentos entre os indivíduos como aspectos inconscientes que emergem e que estão além da
compreensão intelectual.
134

existência que tendem ao silêncio e ao esvaziamento. (BIRMAN, 2009, p.


188)

Como mencionado anteriormente, toda a dialética subjetiva marcadamente


narcisista veicula o individualismo extremo em que as trocas das inter-relações e o
convívio com a dimensão de alteridade subjetiva se tornam impossíveis.
De acordo com Birman (2009), há um estilo de sujeito em destaque na atualidade,
cuja base situa-se no ideal de valores que pauta as individualidades, ou seja, que valoriza
determinados aspectos da personalidade em detrimento de outros. O psicanalista brasileiro
propõe uma importante diferenciação de sentido existente entre duas expressões referentes
ao sujeito – o dentro-de-si e o fora-de-si.
Para Birman (2009), antigamente, a expressão fora-de-si era empregada para
definir pessoas psiquicamente descontroladas, fora do contexto e, consequentemente,
ignoradas pela sociedade. O dentro-de-si, contrariamente, qualificava o sujeito cuja
conduta era aceita socialmente, ou seja, que se encaixava dentro dos parâmetros
socialmente almejados ou aceitos. Na atualidade, tais expressões assumem outro sentido. É
o dentro-de-si que não tem espaço na sociedade atual, pois implica em uma interiorização,
valorizada pela psicanálise, mas rechaçada pelas regras de condutas atuais. O dentro-de-si,
atualmente, estaria presente nos depressivos, por exemplo, representando uma
anormalidade. O fora-de-si seria aquele que tem espaço na atualidade, pois indica o sujeito
que, mesmo individualista, está voltado para fora, ou seja, para a apreciação do outro.
Como consequência das constantes transformações da ordem social, portanto, os
modelos instituídos de subjetividade se transformam tantas vezes quantas forem
necessárias, sendo que é o próprio sujeito quem paga o preço por se submeter a tantas
mudanças. Todos os empreendimentos do sujeito visam sempre a autoafirmação egóica,
onde o outro é apenas um corpo para ser usado oportunamente e, posteriormente,
descartado, tanto em seus atributos físicos – um corpo para o gozo – quanto para subjugar
o desejo do outro em face de seu próprio desejo de origem narcísica. Aqui, o (a) parecer
rouba a cena, dando origem à verdadeira cultura da imagem.

A cultura da imagem é o correlato essencial da estetização do eu, na


medida em que a produção do brilhareco social se realiza
fundamentalmente pelo esmero desmedido na constituição da imagem
pela individualidade. Institui-se assim a hegemonia da aparência, que
define o critério fundamental do ser e da existência em sua evanescência
brilhosa. (BIRMAN, 2009, p. 167)
135

Diante da amplitude que caracteriza a temática, as condições que constituem o


cenário espetacular contemporâneo propiciam a formação de subjetividades identificadas
com o próprio contexto do espetáculo. A lei do consumo nos dita que é preciso comprar,
consumir, adquirir, fazendo de um objeto não presente do cotidiano do sujeito, algo
indispensável. Elegemos o objeto, o erotizamos e o trazemos para nosso corpo, na busca de
reiterar a completude. O sujeito recorre ao objeto de consumo51 como anseio de evitar estar
em contato com suas faltas, o consumo atinge em cheio ao sujeito na sua fragilidade e o
inebria na sua dor, no entanto, impede-o de estar em contato com seu sofrimento e isso tem
as suas consequências. Às condições de vida cotidiana as quais estamos submetidos em
nossa contemporaneidade emergem como dispositivos potencializadores de mal-estar, em
que a imagem do “depressivo”, do “panicado”, do “toxicômaco” evidencia o extremo
oposto dos ideais espetaculares. O fora-se-si é o que ganha espaço na atualidade.

A cultura dos sofredores e dos espíritos desesperados já era. Não se


admite mais, no contexto da sociedade do espetáculo, os personagens
sofrentes e desesperados, que marcaram as gerações do pós-guerra, como
as gerações existencialista e beat. O que interessa agora é a estetização da
existência e a inflação do eu, que promovem uma ética oposta à do
sofrimento. Enfim, por esse caminho pode-se entender a cultura do
evitamento da dor promovida pela medicina e pela indústria de drogas
pesadas, pois por seu intermédio a magia do silêncio do sofrimento
psíquico está sempre em pauta. (BIRMAN, 2009, p. 248-249)

Por todas as características acima mencionadas inerentes às performances dos


indivíduos, eles tornam-se a vergonha da sociedade espetacular. Nesse ponto, podemos
supor experimentar uma subjetividade submetida ao espetáculo, empobrecida em
consequência disso, na referência à representação, ou seja, há o que podemos dizer de uma
falência do pensamento. Dessa forma perguntamo-nos: onde está o espaço da memória, das
lembranças, dos vestígios das reminiscências?
No cenário atual em que a primazia individual rouba a cena em detrimento dos
vínculos sociais, o estopim de todas as formas de violência e agressividade encontra-se
latente e pronto para eclodir ao menor sinal, concretizando os sentimentos de insegurança e
perigo perpétuos. Enquanto o autocentramento do sujeito é sua marca característica, o

51
Pensando na moda, as marcas traduzem-se em estereótipos que negam a própria individualidade, ou seja, a
marca substitui o indivíduo, descaracteriza-o. No corpo não aparece mais as características do indivíduo, mas
o do produto, a da marca que dita o que ele é.
136

outro é desconsiderado e, em última instância, representa uma ameaça e um perigo o qual


deve ser combatido.
A rapidez é característica das mudanças na contemporaneidade, e parece derivar
das dificuldades de se manter fiel a qualquer identidade por muito tempo, de manter uma
conduta ou ideário que seja uma referência permanente para o sujeito, o que o leva a não se
agregar a nenhuma posição de forma definitiva, tornando possível a manifestação de
múltiplas identidades. Isso passa a permitir a criação de novos movimentos para a
sociedade.
Esse panorama traz uma roupagem diferente para a sensação de aceitação do sujeito
por parte do outro. As determinações introjetadas na cultura de um ideal de eu valoriza,
sobremaneira, o sentimento de bem-estar associado à perfeição estética exposta em
sociedade. O sujeito é capturado pela ideia de que só será aceito pelo outro quando
corresponder ao modelo. De acordo com Bauman (1998) e Birman (2009), o sujeito tem
que ser, ou melhor, parecer feliz, ainda que as condições de sua vida em certo momento
sejam adversas; tem que ser ágil e flexível, ainda que não saiba o que sejam a agilidade e a
flexibilidade demandadas. O resultado desse esvaziamento da interpretação como recurso
para lidar com o impasse é o vazio, na forma, por exemplo, da depressão, para a qual a
indústria farmacêutica vem em socorro do sujeito ao lhe oferecer outro objeto – o Prozac –,
prometendo-lhe alívio e “felicidade plena”.
Assim, “cada um por si e foda-se o resto parece ser o lema maior que define o
ethos da atualidade, já que não podemos, além disso, contar mais com a ajuda de Deus em
nosso mundo desencantado” (BIRMAN, 2009, p. 24-25). A marca do sujeito
contemporâneo em relação ao seu próprio desejo e ao desejo do Outro, resultante das
configurações sociais, econômicas, culturais e educacionais que priorizam determinada
estética da existência num mundo espetacular, predetermina as condições propiciadoras de
mal-estar.

Com efeito, nessa versão da atualidade, o que orienta o indivíduo é a


busca desesperada de uma poção mágica que impossibilite o
reconhecimento do sofrimento inerente à existência, impedindo então a
constatação das desilusões que a vida inevitavelmente provoca em
qualquer ser humano, de forma que o sujeito possa existir em estado
nirvânico. Portanto, nesse pacto, o valor que direciona o sujeito
existencialmente é um antivalor, pois é um não saber sobre as condições
fundamentais do sujeito que está em pauta. Por isso mesmo, trata-se de
um pacto e não um contrato, pois não mais existe reciprocidade quando a
vida de uma das partes se transforma em objeto de troca e, então, o
137

contratante necessariamente desaparece. Enfim, o que se estabelece é um


pacto de morte, numa transação marcada pela alienação da vida do sujeito
no outro, por meio de um objeto ambíguo de satisfação/mortificação.
(BIRMAN, 2009, p. 202-203)

No próximo capítulo discutiremos como esse mesmo indivíduo percorre os


caminhos e descaminhos possíveis para o mal-estar vivenciado no contexto educacional.
138

CAPITULO 4 – O MAL-ESTAR DOCENTE E A (IM) POSSIBILIDADE DA


EXPERIÊNCIA

Nesta parte do trabalho, recorremos aos diagnósticos realizados por Benjamin,


Adorno em seus escritos filosóficos acerca do empobrecimento da experiência na
atualidade, objetivando entender como o mal-estar docente pode decorrer desses limites e o
quanto os mesmos impossibilitam os professores re-significarem no sentido crítico o que
acontece na escola e fora dela.
Como discutido no capítulo anterior, na sociedade do espetáculo, o indivíduo se
ajusta às características, às propriedades e funções da racionalidade instrumental (marcada
pelo pensamento reificado, pela semiformação, pela impossibilidade de estabelecer a
experiência com a cultura nos moldes postulados por Adorno) – não são mais os bens
materiais que se ajustam às necessidades humanas, mas sim as necessidades humanas que
são ajustáveis aos novos bens produzidos - que modificam a experiência humana,
miserabilizando-a. É a apropriação do inconsciente pela totalidade social que, a partir do
domínio das bases materiais de produção, vai encontrando caminhos de administrar
também a subjetividade dos indivíduos.
Justificamos que a reflexão sobre os conceitos benjaminianos, assim como os
adornianos, torna-se válida na atualidade devido à intensificação do empobrecimento da
experiência no campo escolar e no trato com essa temática nas discussões atuais sobre a
produção do mal-estar docente vivenciado pelo professor. Num contexto marcado pelo agir
instrumental, pela especialização e fragmentação do conhecimento, pelo ofuscamento do
incerto e do duvidoso na prática pedagógica, pela pressa, pela negação do pensamento, a
identificação com a realidade posta, o enquadramento dos indivíduos ao esquematismo
moderno e à racionalidade capitalista são processos que promovem a coisificação do
indivíduo, conformam as subjetividades ao consumismo e à cultura do entretenimento e se
perpetuam por meio da semiformação cultural. O professor, impossibilitado de (re)
significar o que acontece com ele na escola, manifesta um mal-estar crescente que o
incapacita de pensar, por meio da crítica, os processos de (de) formação cultural aos quais
está inserido.
Portanto, o mal-estar do professor na contemporaneidade convoca o debate em
torno dessa questão, que tem inscrito distanciamentos entre o aprender e o ensinar, além de
ressaltar a urgência de repensar o lugar e posição do professor, do aluno e da escola nesse
139

contexto. Repensar esse lugar pressupõe adentrar nas bases políticas em que está assentada
a escola contemporânea, pressupõe destituir-se de um ideal de escola pronta, acabada, para
deixar entreaberto o estranho, o inusitado, o incongruente. Além disso, pressupõe também
que o professor assuma a sua condição de sujeito do desejo e sustente seu lugar e posição
no cenário educativo contemporâneo, levando em consideração que o mal-estar vivenciado
por ele é parte integrante de sua subjetividade, podendo (re) significá-lo, por meio da
crítica, naquilo que acontece na escola e fora dela.
A proposta aqui é destacar essa forma de enfraquecimento da subjetividade52
posta pelo fracasso do projeto moderno de formação cultural, discutindo a crítica
frankfurtiana em relação a essa perda ou empobrecimento da experiência na escola.

4.1. A DEGRADAÇÃO DA EXPERIÊNCIA (ERFAHRUNG)

“O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado”


(VALÉRY apud BENJAMIN, 1936, p. 206).

52
Referindo-se ao sujeito tradicionalmente entendido a partir da modernidade, Ghiraldelli Júnior (2000, p. 24)
afirma que “ [...] a subjetividade pode ser descrita por meio de ‘formas da consciência’: o eu, a pessoa, o
cidadão e o sujeito epistemológico. O eu é a identidade, formada das vivências psíquicas; é a forma de
conhecimento singular [...] A pessoa é a consciência moral [...] O cidadão é a consciência política [...] O
sujeito epistemológico é a consciência intelectual [...] A subjetividade assim composta [...] é a instância da
qual o homem (empírico ou abstratamente genérico) deve participar. Se conseguir isso, autenticamente,
torna-se o sujeito – ‘aquele que é consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos’ [...]”. A
partir dessa afirmação podemos conceber o sujeito como aquele de características múltiplas e, nesse sentido,
possuidor de certo traço de autonomia em relação às influências que recebe. Como ponto de partida para a
discussão temos a proposta de Descartes. Para o filósofo, o que está em jogo é a busca da certeza pautada na
evidência para o alcance da “verdade” já que o conhecimento das ciências é considerado potencialmente
falso, ou seja, não corresponde a uma realidade absoluta uma vez que muito do que afirma se baseia nas
informações oferecidas pelos sentidos, o que não seria uma fonte segura para tal, por exemplo. Explica-se
dessa forma, a busca de um patamar epistemológico básico a partir do qual todos os outros conhecimentos
seriam derivados, com a insígnia de conhecimento seguro e localizado então na instância da subjetividade.
Partindo da desconfiança sobre os sentidos e expandindo pelas demais experiências e certezas humanas, a
saída encontrada pelo autor é a dúvida metódica que consiste no processo de duvidar de tudo. O resultado
acima levou à formulação do cogito ergo sum – penso, logo existo – como primeira verdade indubitável, uma
intuição racional. Assim, vai tomando forma o sujeito do conhecimento em um longo debate que marca a
história da filosofia, permitindo a configuração de um campo específico, a Epistemologia - delineada a partir
da volta do sujeito sobre si mesmo, num esforço de se perguntar do alcance, validade e possibilidade das suas
próprias capacidades de conhecer alguma coisa. As coisas sensíveis passam a ser geradas não pela ‘forma’
potencialmente preexistente num mundo das ideias, mas sim forjadas no conhecimento construtor do próprio
homem. Mas os duros golpes à subjetividade em nossa época gerou uma série de consequências que apontam
para uma quebra de centralidade do homem frente ao mundo. A subjetividade moderna, amparada pelos
conceitos de autoformação, esclarecimento, foi sendo desconsiderada ao longo do processo civilizatório. A
civilização se outorga a responsabilidade de manter patente a não diferença, a igualdade do mesmo, aponta o
outro como incivilizado, não ser, e a si mesmo como referência. Observamos a formação de uma identidade
frágil, sustentada não pelos laços e vínculos que poderiam surgir como fonte de construção de novas formas
de ser, mas sim, pautada pelo isolamento e enfraquecimento da própria noção de eu. Sobre a dúvida do que se
é, surge o vazio, o nada.
140

Experiência, enquanto efeito ou ato de experimentar, significa prática de vida,


remetendo ao fato de suportar ou sofrer algo, como quando se diz que se experimenta uma
dor, um sofrimento, uma alegria ou um evento traumático.
Em outro sentido, experiência é sinônimo de competência social ou técnica, no
sentido de se possuir habilidade, prática adquirida com a dedicação constante a uma
profissão, a arte ou oficio.
Com o advento da modernidade, experiência significa prova, demonstração,
tentativa, modelo. Essa concepção equivale ao processo de experimentação enquanto
método científico que consiste em observar um fenômeno natural, utilizando-se de
instrumentos, aparatos que permitem ampliar o conhecimento que se tenha das
manifestações ou leis que regem um fenômeno, tendo como modelo o cálculo matemático
e o funcionamento mecanizado do relógio.
Chauí (2004) afirma que, na filosofia, experiência significa o conhecimento
transmitido pelos sentidos, ou seja, a apreensão sensível da realidade externa, cuja
confirmação ou possibilidade de confirmação é empírica. Experiência é aqui entendida em
seu caráter interno como fato de viver algo dado anteriormente a toda reflexão.
Na concepção platônica, afirma Chauí (2004), a experiência apresenta-se como
prática que antecede a razão e o mundo das ideias. A distinção platônica entre mundo
inteligível e mundo sensível equivale, em parte, segundo Chauí (2004), à diferenciação
entre experiência e razão. No conhecido “mito da caverna”, as sombras projetadas na
parede da caverna e o eco que lhes fornece voz, embora sejam simulacros, ecoavam como
verdades ou realidades para os prisioneiros, sendo, portanto, produto de sua sensibilidade e
de sua experiência restrita àquele espaço. Somente aquele que foi libertado dos “grilhões”
do “obscuro” e que experimentou novas sensações pôde ascender à luz do sol da razão e da
reflexão. Desse modo, observa Chauí (2004), a subida para o mundo que está fora da
caverna e a contemplação das coisas existentes lá fora representam a ascensão da alma ao
mundo inteligível.
Orientando-se pelos princípios aristotélicos53, os modernos consideram a
experiência como originária exclusivamente dos sentidos. Em “Infância e história:

53
Chauí (2004) afirma que, em Aristóteles, a experiência garante os princípios pertencentes às ciências, por
isso cumpre observar os fenômenos e ver o que são com o fim de proceder depois às demonstrações. Aqui, a
experiência é entendida como apreensão do singular, o universal pertence à ciência. A experiência emerge da
memória de repetidas percepções sensoriais. Dito de outro modo, a experiência significa a confirmação dos
juízos sobre a realidade por meio de uma verificação sensível. Na qualidade de fonte universal, ela é sempre
141

destruição da experiência e origem da história”, Agamben (2005, p. 25) chega a afirmar


que a expropriação da experiência já estava implícita no projeto da ciência moderna. Para
tanto, cita Bacon para demonstrar a condenação da experiência no sentido tradicional.
A experiência, se ocorre espontaneamente, chama-se acaso, se
deliberadamente buscada recebe o nome de experimento. Mas a
experiência comum não é mais que uma vassoura desmantelada, um
proceder tateante como o de quem perambulasse à noite na esperança de
atinar com a estrada certa, enquanto seria mais útil e prudente esperar
pelo dia ou acender um lume, e só então pôr-se a caminho. A verdadeira
ordem da experiência começa por acender o lume; com este, em seguida,
aclara o caminho, iniciando pela experiência bem disposta e ponderada e
não por aquela descontínua e às avessas; primeiro deduz os axiomas e
depois procede a novos experimentos. (BACON, apud AGAMBEN,
2005, p. 25)

Em Bacon, segundo Agamben (2005), o conhecimento não estaria na narrativa


daquele que experiencia determinado acontecimento, mas sim na relação entre a dedução e
a comprovação científica por meio dos experimentos que levam o indivíduo ao
conhecimento verdadeiro. Desse modo, a verdade fixa-se no experimento e não na
experiência produzida por esse indivíduo. Ao indivíduo resta apenas apropriar-se de um
conhecimento que não foi necessariamente produzido por ele, um conhecimento que
resulta de experimentos. Experiência e conhecimento são, assim, constituídos
independentes e produzidos externamente ao indivíduo.
Agamben (2005, p. 25) observa ainda outro aspecto ao afirmar que Bacon define a
experiência como uma selva e um labirinto, nos quais se propõe a colocar ordem. Para esse
autor, a dúvida sem precedentes em relação à experiência, como era tradicionalmente
entendida, é pressuposto básico para o nascimento da ciência moderna.
Esse elemento tecnicista que se instaura na e por meio da ciência moderna exige exatidão,
comprovação e rigor quantitativos transferindo totalmente, como assinala Agamben (2005,
p. 26), a experiência para fora do homem e confiando-a aos números. Desse modo,
experiência passa a ser sinônimo de experimento porque este sim é compatível com a
certeza e o cálculo e leis científicas tão fundamentais ao método científico moderno.
Os meandros da experiência em sentido tradicional são fontes de dúvida e
confusão. Em Descartes, fica evidente a ideia de que os sentidos nos enganam (p. 26).
Descartes contrapõe pensamento racional à sensibilidade. Propõe regras para bem conduzir

um conhecimento singular, enquanto a arte e, sobretudo, a ciência, são conhecimentos universais, afirma
Chauí (2004). O universal está pressuposto no singular para depois ser captado pela alma no ato perceptivo.
142

o pensamento, apartado da sensibilidade, muitas vezes, enganadora. Um método que


garantisse a certeza, sem a possibilidade da dúvida: o eu penso. O eu racional abole a
sensibilidade e prescinde de qualquer experiência empírica para chegar às verdades.
Portanto, o conhecimento não precisaria mais estar fundado em algo que estivesse fora do
sujeito da razão ou que viesse fora dele.
Segundo Agamben (2005, p. 28) “em sua busca pela certeza, a ciência moderna
abole esta separação e faz da experiência o lugar – o método, isto é, o caminho – do
conhecimento”. Somente o uso correto da razão que se funda no método cartesiano
poderia produzir um conhecimento racional verdadeiro. E esse conhecimento seria dado a
partir da consciência.
Com base nos textos “Experiência e pobreza” e “Sobre alguns temas em
Baudelaire” é possível apontar alguns elementos que caracterizam o conceito de
experiência o qual privilegiamos neste trabalho. Segundo Benjamin (1994), as
manifestações da experiência rigorosamente comunitárias (primitivas) passavam
necessariamente pelo rito (conjunto de expressões, sentidos, ações, gestos que enquadra as
maneiras de expressão individual numa rede de significantes coletivos), modos de contar,
modos de produzir a cultura, hábitos, caracterizando-se numa configuração mediada de
experiência que se torna aceita dentro do grupo, predispondo a todo um conjunto de
alianças, projetos, ações partilhadas e códigos de valores compartilhados.
À luz do que o próprio Benjamin sinaliza em seus textos, esse tipo de experiência
torna-se empobrecida nas sociedades modernas, onde as pessoas vivem atomizadas em
seus pequenos mundos, enquadradas nos ambientes funcionais da arquitetura
contemporânea. A vivência corporal, própria das comunidades ritualísticas, criava outras
formas de experiência mais íntimas, interiorizadas, cujo vínculo indissolúvel com o
passado era efetivo, onde os rituais eram vivenciados e transmitidos de geração a
geração54. Na modernidade, dirá Benjamin (1994a), ao contrário, configuram-se
expressões de comportamento cada vez mais individualizadas, cada indivíduo torna-se
independente um do outro, prevalecendo microssistemas que apenas se tocam
tangencialmente.

54
Benjamin (1994a) não quer, portanto, nem evocar o sujeito que se dissolveu e nem retornar à comunidade
tradicional que se perdeu. Aliás, no texto “Experiência e pobreza”, Benjamin (1994a) saúda a perda da
tradição como possibilidade para o surgimento de algo novo: “Ela o impele a partir para frente, a começar de
novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda”.
Segundo Benjamin (1994a), isso caracterizaria uma espécie de barbárie positiva, isto é, a possibilidade de um
novo começo sem as limitações impostas pelo depauperamento da experiência.
143

Tiburi (2003) afirma que, com a modernidade, uma nova concepção do tempo passa
a se impor diante dos ritmos da natureza e dos ciclos característicos de uma vida marcada
pelo trabalho artesanal e coletivo.

Os ponteiros do relógio, na mesquinha marcação dos segundos,


testemunham o sentido vazio do tempo, a cobrança dos poderosos, dos
detentores dos meios de produção, enquanto, simultaneamente, indicam -
via negativa – que cada segundo é um agora que se perde. (TIBURI,
2003, p. 143)

O agora que se perde é um agora dos ciclos da natureza, do amanhecer e do


anoitecer, das estações do ano, das fases da lua, das épocas, das festividades e dos eventos
de uma vida marcada pelo ritmo do trabalho artesanal, pelo manejo com a terra e com os
animais, quando a jornada de trabalho era iniciada pelo canto do galo pela manhã e
finalizada ao anoitecer. Escreve Tiburi (2003, p. 142) que “o tempo moderno, o tempo
capitalista, é o avesso do tempo do sol”.
Dessa maneira, o Sol que radiava o trabalho de seus filhos agora esvazia-se de
sentido diante do trabalho humano repetitivo, monótono e sem conclusão. O tempo
moderno e sombrio torna-se vazio de sentido na medida em que se prende na eterna
repetição de um tempo sempre igual medido na necessidade de um constante recomeçar.
Para Benjamin, é um tempo infernal “em que transcorre a existência daqueles a quem
nunca é permitido concluir o que foi começado” (BENJAMIN, 1989, p. 129). Esse tempo
infernal, o tempo do trabalhador assalariado, é o mesmo do jogo de azar. Benjamin (1989)
afirma que o jogo, assim como o trabalho assalariado, invalida a ordem da experiência, da
sabedoria coletiva.

O jogador parte do princípio do ganho – isso é óbvio. Seu empenho em


vencer e ganhar dinheiro não poderá ser considerado como um desejo no
verdadeiro sentido do termo. Talvez esteja imbuído de avidez, de uma
determinação obscura. Em todo o caso, ele não se encontra em condições
de dar à experiência a devida importância. (...) O jogo invalida as ordens
da experiência. (BENJAMIN, 1989, p. 128-129)

Da mesma forma que o jogo, o modo de produção capitalista, que é regulado


mecanicamente pelos ponteiros do relógio, possui como princípio a eterna necessidade de
recomeço, de repetição. Repetem-se as rodadas e as jogadas, repete-se a linha de
montagem e a jornada de trabalho. A repetição obscurece os sentidos, oculta a falta de
conteúdo do trabalho capitalista moderno. Esse efeito entorpecente do jogo bem que
144

poderia ser libertador, na medida em que possibilitasse tornar consciente a experiência de


que o tempo nos escapa, entretanto, o desejo de ganho imediato mantém com embotamento
a aniquilação da experiência.
O entorpecimento do jogo, que proíbe a tomada de consciência a respeito da
destruição da experiência na sociedade moderna, está presente também no esquecimento
provocado pela repetição inútil e vazia. A experiência de choque do operário industrial ou
a do soldado na preparação para a guerra de trincheiras baseia-se em certo tipo de
adestramento, suas vidas se “coisificaram” e passaram a ser organizadas em torno de
conhecimentos cotidianos e fracos, sob a experiência moderna do indivíduo isolado,
sintoma do tempo vazio que o homem moderno se propôs e não pode mais sair. A
experiência coletiva que o homem antigo possuía com a terra foi completamente
substituída pela devoção ao espírito da técnica. A fisionomia da modernidade não
consegue assim se desvencilhar da sensação de catástrofe constante e do aspecto de
ruína,de destroços de um aniquilamento que não cessa (TIBURI, 2003). Nessa esfera do
esquecimento ao qual a humanidade está destinada surge a deformação (ADORNO, 1996).
Para Benjamin (1994a), os rituais de iniciação, as festas folclóricas e outros
dispositivos sociais antigos desapareceram. A sociedade atual, repleta de comunicações
eletrônicas e tecnológicas instantâneas, isola as pessoas em seus redutos, impedindo outro
tipo de contato que não o da virtualidade, o da instrumentalidade. Mesmo as ligações
afetivas, assim como as comerciais e acadêmicas, inserem-se no contexto virtual,
mediatizadas pelo instantâneismo, pelo utilitarismo.
Primeiramente o termo alemão Erfahrung é utilizado para referir-se a uma espécie
de experiência semelhante a uma sabedoria coletiva de vida, que se refere a algo comum a
várias gerações. Ela supõe, portanto, uma tradição compartilhada e retomada na
transmissão da palavra de pai a filho; uma continuidade e temporalidade das sociedades
‘artesanais’. Ou ainda, a sabedoria coletiva passada de geração para geração na forma de
narração, como são as narrações de viagens.
Nos ensaios “Experiência e pobreza”, de 1933 e “O narrador”, de 1936, Benjamin
estabelece um jogo entre conceitos, imagens e parábolas para delinear a correspondência
entre o declínio da arte de narrar e a nova transformação de um mundo não mais
compartilhado como coletividade.
Em seu leito de morte, o pai comunica aos filhos a existência de um tesouro
escondido em seus vinhedos. Depois da notícia dada aos filhos, estes cavam a procura do
145

tesouro, porém não encontram nada. No próximo outono, as vinhas produzem mais do que
qualquer outra da região e os filhos reconhecem que a riqueza não provém de nenhum
tesouro, mas sim da experiência que o velho pai lhes transmitiu. O pai transmite aos filhos
o que eles constataram com o passar do tempo através da lição da experiência. Dito de
outro modo, a felicidade é fruto do trabalho e do tempo. Benjamim (1994a) ressalta que era
a transmissão da experiência que conferia autoridade aos mais velhos.
Gagnebin (2004, p. 66) afirma que a experiência para Benjamin “se inscreve
numa temporalidade comum a várias gerações. Ela supõe, portanto, uma tradição
compartilhada e retomada na continuidade de uma palavra transmitida de pai a filho”.
A experiência coletiva (Erfahrung) é concebida por Benjamim como uma experiência
aberta que se aproxima mais da alegoria por suscitar muitas leituras e inúmeros
significados sobre ela. Graças a ela, o passado, o presente e o futuro poderão ser
movimentados através da rememoração de tais experiências.
As narrativas, os provérbios, as histórias cingiam o tempo de viver, de contar, de
narrar, de ver, de transmitir e ouvir. A parábola citada no ensaio “Experiência e pobreza” é
contada por Benjamin (1994a) para esclarecer, inicialmente, o que é uma experiência, pois
foi somente após a boa colheita da uva, resultado da terra mexida, que os filhos
entenderam o que o pai lhes havia transmitido. A própria relação do indivíduo com o
tempo é elemento de reflexão em Benjamin.
Percebendo que as ações da experiência estão em declínio, Benjamin (1994a)
questiona:
O que foi feito de tudo isso? Quem ainda encontra pessoas que saibam
contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem
hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de
geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno?
Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?
(BENJAMIN, 1994a, p. 114).

Num mundo completamente marcado pela barbárie das guerras mundiais, dos
massacres em massa, da instrumentalização da vida, onde o “minúsculo e frágil corpo
humano” se depara com toda a ostentação dos aparatos bélicos da guerra tecnológica, a
experiência perde seu significado. Segundo Benjamin (1994a), as catástrofes geradas pela
guerra extrapolam os campos de batalha, nos termos de mutilações permanentes, miséria,
violência, doenças psíquicas, desintegração dos laços familiares. Os horrores da Primeira
146

Guerra Mundial se prolongaram da terra aos mares, aos oceanos e ao céu utilizando-se de
técnicas sofisticadas de destruição de massas.

[...] os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha.


Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros
de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não
continham experiências transmissíveis de boca em boca. [...]. Porque
nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a
experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência
econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência
moral pelos governantes. (BENJAMIN, 1994a, p. 114-115)

Assim como as guerras de destruição de massa, o desenvolvimento tecnológico


provoca uma nova forma de miséria. Em consequência do ritmo de vida acelerado e
desumano que o modo de viver moderno exige de cada indivíduo, resta ao homem assumir
a pobreza da experiência na qual ele se encontra. Manifestando-se como uma sequência de
vivências individualizadas e fragmentadas, esse tipo de experiência produz um ser
empobrecido, que acredita que as coisas são assim mesmo e que cada um deve pensar
apenas em si.
Quando Benjamin (1994a) nos remete à imagem dos meninos indo à escola em
um bonde conduzido por animais e chega a um “frágil e minúsculo corpo humano” (p.
115) abandonado sob os escombros das bombas e explosões, refere-se a um tempo de
avanço técnico-científico e de modernização acelerada com o qual sonhara o homem do
século XIX, mas que se concretiza apenas no século XX ao custo das duas grandes
catástrofes mundiais. Esses fatos evidenciam que o resultado do progresso não se traduziu
em emancipação, mas em ruínas e fracasso do próprio homem.
De acordo com as indicações dadas, Benjamin (1994a) aponta como exercício de
pensamento, observar os quadros de Ensor55. As figuras grotescas de seus quadros
oferecem uma imagem caricaturizada da barbárie a que Benjamin se refere ao mostrar a
falta de vínculos com as “sólidas” produções culturais da humanidade. Benjamin (1994a,
p. 115) é categórico em afirmar: “qual o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a
experiência não mais o vincula a nós?”.

55
James Ensor (1860-1949) artista belga, de origem inglesa, gravador, compositor, pintor e escritor. É
identificado como uma espécie de pintor visionário da modernidade. Em suas pinturas, chama a atenção o
elemento grotesco, a caricatura e a satirização dos costumes. Disponível em:
<http://www.universal.pt_enc.php>. Acesso em: 04 out. 2012.
147

Se, como diz o autor, a experiência é entendida como o elo que nos vincula ao
passado e a tudo que pertence a ele enquanto patrimônio histórico e cultural e nos
encontramos expropriados dessa experiência que nos foi “hipócrita ou sorrateiramente
subtraída”, resta-nos assumir essa pobreza, que não é mais privada e sim de toda a
humanidade. No entanto, assumir esse empobrecimento da experiência não significa que os
homens aspirem a novas experiências:

Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo


em que possa ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e
interna, que algo de decente possa resultar disso. (BENJAMIN, 1994a, p.
118)

Como metáfora dessa época de desvínculos na qual as referências são perdidas,


Benjamin (1994) cita Paul Scheerbart56, o construtor das casas de vidro, como emblema da
modernidade. O filósofo afirma que o vidro é um material em que “nada se fixa”, um
“material frio e sólido”, é um “inimigo do mistério”. Comparando a moradia burguesa do
século XIX, cheia de vestígios com seus adornos e ínfimos detalhes de seus habitantes, as
moradias do século XX são, ao contrário, ambientes em que é difícil deixar marcas sob as
insígnias frias do aço e do vidro.
A arquitetura moderna (defendida pelo arquiteto Adolf Loos57), constata
Benjamin (1994a), rejeitava vínculos com um “passado superado”, remetendo sua
arquitetura a um novo homem, mais integrado a uma atmosfera de renovação intensa. Esse
suposto novo homem, pobre em experiências comunicáveis, formata-se aos contextos

56
Paul Karl Wilhelm Scheerbart (1863-1915) foi um escritor alemão, autor de literatura e desenhos de corte
fantástico. A sua obra mais conhecida é o ensaio Arquitetura de cristal (Glasarchitektur, 1914), que influiu
na arquitetura expressionista. Nessa obra atacou o funcionalismo pela sua falta de sentido artístico e defendeu
a substituição do tijolo pelo cristal. Disponível em: <http://www.universal.pt_enc.php>. Acesso em: 04 out.
2012.

57
Adolf Loos foi um notável arquiteto, nascido a 10 de dezembro de 1870, na República Checa, tendo
exercido durante largos anos a sua profissão na Áustria, onde morreu, em Kalksburg (hoje pertencente
a Viena), no dia 23 de agosto de 1933. Dentre seus trabalhos, destaca-se o projeto para o Chicago Tribune,
realizado em 1922, quando trabalhava com Louis Sullivan, que consiste numa enorme coluna dórica assente
sobre uma base cúbica. Foi precursor do Raumplan, o desenvolvimento da planta em diferentes cotas.
Através das variações de altura das divisões, bem como das proporções adotadas e das mudanças de
materiais, é estabelecida uma hierarquia entre os diversos espaços; criam-se zonas dentro da casa, definindo
também graus de intimidade de cada divisão. Disponível em: <http://www.universal.pt_enc.php>. Acesso
em: 04 out. 2012.
148

modulados e funcionais, conformado às necessidades práticas da vida moderna em que os


“rastros são apagados”.
Como decorrência dessas proposições o que resta é uma nova barbárie que deve e
precisa ser assumida para que o homem moderno possa dar conta de tamanhas perdas e
sobreviver à cultura.

Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um


conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro
dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a
começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com
pouco[...].(BENJAMIN, 1994a, p. 115-116)

No texto “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, escrito em


1936, Benjamin desenvolve sua reflexão sobre a narrativa, em especial, sobre sua extinção
na sociedade capitalista em vias de ser dominada pela técnica. Consideramos que esses
dois textos benjaminianos se complementam ao abordar a temática da experiência e seus
vínculos com a memória, com a história, com a arte de contar, com o passado, com a
experiência. A necessidade de narrar o que se viveu, o que se passou, contar, mesmo
sabendo da (im)possibilidade de se narrar o inenarrável, é tarefa que cabe à escola na
atualidade.

4.2. A DECADÊNCIA DA NARRAÇÃO COMO EXPRESSÃO DO


EMPOBRECIMENTO DA EXPERIÊNCIA

No texto “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” (1936),


Benjamin (1994b) trata do tema da experiência sob o ponto de vista da narrativa da
tradição oral. O pensamento do autor sobre esse assunto pode ser melhor expresso na
seguinte passagem:
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem
todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que
menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros
narradores anônimos. (BENJAMIN, 1994b, p. 198)

A preocupação central benjaminiana encontra-se na assertiva de que o “narrador


retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros”
(BENJAMIN, 1994b, p. 201). A narração, para Benjamin (1994b), representa uma
experiência existencial do indivíduo dentro de uma tradição que parte da história, da
149

memória, do testemunho em que a narração oral é a matéria fundamental para a troca de


experiências.
No processo de narração, na relação entre narrador e ouvinte, existe o interesse de
conservar na memória aquilo que foi narrado.

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no


campo, no mar e na cidade - é ela própria, num certo sentido, uma forma
artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro
em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela
mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele.
Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do
oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1994b, p. 205)

Ao longo do ensaio, Benjamin (1994b) apresenta, de forma sumária, alguns


elementos que constituem a arte de narrar. Em primeiro lugar, fica evidente no texto
benjaminiano que a matéria do narrador é a vida humana. Alicerçada na tradição oral, a
narrativa se desenvolve seja em provérbios, seja em histórias prolixas e está sustentada na
autoridade dos mais velhos ou mesmo dos moribundos. Esse movimento é condição de
manutenção da própria narrativa visto que sua existência está condicionada à necessidade
de ser recontada. Benjamin (1994b) anota que a riqueza da narração oral não está apenas
na voz de quem narra, mas também no gesto de paciência de quem ouve. A possibilidade
do ouvir é parte da comunidade dos ouvintes.
É interessante notar que a experiência narrativa é um chamamento ao diálogo,
partindo da memória para dela construir seu argumento quanto ao valor da experiência
para a formação do sujeito. E Benjamin (1994b) encontra na experiência do trabalho
artesanal o elemento da troca de experiências e o fortalecimento da tradição a que eles
pertenciam.
Pensando no declínio da experiência na modernidade, Benjamin (1994b) convida-
nos, logo no início do ensaio “O narrador”, a refletir sobre o trabalho, dando-nos dois
exemplos: o primeiro é o do camponês sedentário e o segundo, do marinheiro comerciante.
Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de
narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo
associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos
migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário.
(BENJAMIN, 1994b, p. 199).

Esses fatos evidenciam que o camponês passou toda a sua vida em contato com a
terra, dela subtraindo seu sustento, assim como construiu pelo trabalho uma experiência.
150

Experiência essa compartilhada com seu aprendiz que, pela transmissão oral, recebe um
saber, uma tradição. A relação homem-terra-trabalho permite à comunidade guardar sua
tradição. Do mesmo modo, o marinheiro comerciante, de suas longas viagens, traz novas
experiências, novas tradições, novas comunicações, novas lições. É uma oportunidade de
comparação entre o antigo e o novo. É uma relação, afirma Benjamin (1994b), que
possibilita ao narrador compreender seu papel na história.
Quando Benjamin (1994b) postula que a arte de narrar está em declínio, seu
argumento se baseia na experiência cotidiana. Segundo ele, a velocidade da informação,
aliada a um capitalismo ascendente transformou por completo o que então tomávamos por
tradição e abala a experiência (Erfahrung) do homem. Opondo-se radicalmente à narração,
a literatura de informação aspira a um consumo imediato, uma verificação imediata. Assim
como no romance, a informação tem na imprensa a condição básica de sua ascensão. No
lugar da valorização de um saber proveniente de terras ou tempos longínquos, tal como
valorizava os indivíduos da tradição, os indivíduos da modernidade se reduzem a se apegar
ao imediato, ao passageiro e sem vínculos com o outro que está próximo.
Ainda que a avalanche de informações não cesse todos os dias, a perplexidade e a
surpresa são cada dia menos ressaltadas ao nosso campo perceptivo. O motivo disso reside
no fato de que para cada notícia tem-se, imediatamente, a exploração da explicação. Logo
após a foto, a legenda explicativa. O mundo da informação é acompanhado de explicações,
algo que não acontecia com a narração oral. Ela sempre evitou explicações. Na narração
oral, ressalta Gagnebin (1994), o importante é o exercício da subjetividade por parte do
ouvinte. Ao transmitir o extraordinário e o miraculoso, a narração não tenta impor o
contexto psicológico ao leitor, dessa forma, o episódio narrado alcança uma amplitude que
não existe na informação.
A técnica transforma não apenas o mundo, mas também o homem. A narração
oral possui uma lógica particular, seu conhecimento não pode ser aceito pelo pensamento
moderno, que vive de resultados imediatos e instrumentais. A linguagem precisa de tempo
para adquirir significado. Com o advento da imprensa ocorre uma produção contínua de
informações. A informação divulgada no jornal exige pouco do leitor. Ao abrir o jornal a
cada manhã, seja na mesa do café da manhã ou no escritório, o único esforço do leitor é
adequar seu estado psicológico ao que lhe é noticiado pelo jornal.
Esse elemento prévio da informação que é sustentada pela verificação imediata
põe a modernidade sob o signo da abreviação. Assim, uma abreviação necessita ser
151

renovada incessantemente. Nesse movimento, ela se entrega inteiramente e, por


conseguinte, deve explicar-se sem deixar margem alguma para interpretações de qualquer
tipo. Como choque, a informação implica num permanente estado de ruínas, pois a cada
entrega ela se fragmenta e impõe a si mesma uma outra notícia, já inteiramente nova.
Como transmissão de meros acontecimentos, a informação gravita sobre a órbita
da sensação e, assim, distingue-se da narração, que incorporava ao ouvinte uma
experiência e permitia sua transmissão ao longo de sua vida. Como choque, a informação
anuncia uma atrofia da experiência e ajuda a traçar o perfil no qual a modernidade se
inscreve. Numa era de liquidação da experiência e de nova perspectiva de produção e
consumo de bens culturais abrem-se novas formas de narrar. E essas formas fragmentadas
que se dão por meio do choque traduzem as vivências da modernidade.
Em “O narrador”, fica exposto o dilema do homem moderno durante a passagem
da experiência “Erfahrung” para a vivência “Erlebnis”, que valoriza a vida particular do
indivíduo em detrimento da vida coletiva que existia até então. Nesse contexto, predomina
a solidão em que o homem moderno se torna vítima da civilização urbana e industrial, não
conhecendo mais a experiência “Erfahrung”, que se baseia na memória de uma tradição
cultural e histórica.
Resta a esse novo homem que surge da modernidade a vivência “Erlebnis”
(BENJAMIN, 1994b). É dessa mudança que surge a vivência do choque, vivência essa que
empobrece a memória do homem na modernidade. Essa pobreza é a pobreza das
experiências comunicáveis e é uma das marcas do tempo infernal preconizado pela
sociedade capitalista a que Benjamin se refere. Para o filósofo, o choque é parte integrante
da vida moderna. Nesse contexto, a experiência não se submete a uma ordem contínua,
mas passa a fazer parte de uma estrutura em que predominam inúmeras interrupções que
constituem a vida cotidiana moderna.
O papel desempenhado pela narração é fundamental para a formação de um
sujeito conhecedor das coisas e de si mesmo. A narrativa, de acordo com Gagnebin (1994),
serve como um suporte tanto para a rememoração como para a experiência e é uma forma
de linguagem. Daí a autora afirmar que a narrativa passa a ser entendida como o
entrecruzamento entre o passado, o presente e o futuro.
Como vimos anteriormente, se não é possível modificar o cenário que origina as
narrativas – a história, a memória, o testemunho – temos então que repensar o trabalho do
narrador dentro desse moderno cenário. O narrador, diz Gagnebin (1994), precisa, diante
152

desse contexto modificado, ser como o sábio de antigamente. Mesmo com o declínio da
experiência que aí predomina, o desafio será encontrar condições para narrar os restos e os
cacos. Enfim, o que foi esquecido pelos relatos da história oficial. Não se trata, portanto, de
restaurar o passado, mas de nele buscar o que foi perdido.
Uma problemática que a modernidade nos apresenta, de acordo com a autora, é a
perda da autoridade na hora de contar uma experiência. Essa autoridade, conforme vimos
no texto “Experiência e pobreza”, não é privilégio de quem possui um conhecimento
formal destacado. Essa autoridade só é possível para aquele que experiencia sua história
através da rememoração do passado, em consonância com o presente e com o futuro. É
essa condição que deixou de existir na modernidade.
Gagnebin (1994) resgata o poema de Brecht, citado por Benjamin, intitulado
“Apague os rastros”, para enriquecer sua análise sobre o conceito de narração.
Abaixo, transcrevemos a primeira e última estrofes do poema:

“Separe-se de seus amigos na estação


De manhã vá à cidade com o casaco abotoado
Procure alojamento, e quando seu camarada bater:
Não, oh, não abra a porta
Mas sim
Apague as pegadas

Cuide, quando pensar em morrer


Para que não haja sepultura revelando onde jaz
Com uma clara inscrição a lhe denunciar
E o ano de sua morte a lhe entregar
Mais uma vez
Apague as pegadas
(Assim me foi ensinado)”.

Esse poema58 é exemplar, segundo Gagnebin (1994, p. 70), pois “descreve na sua
crueldade as condições de vida anônima da maioria dos habitantes de grandes cidades,
denunciando, simultaneamente, os bastidores de um palco no qual se poderia ainda encarar
o espetáculo ingênuo da doçura de viver (espetáculo burguês, segundo Brecht)”.
Percebemos que esse poema abre as cortinas e mostra o palco onde a modernidade
se apresenta. Nele, não há espaço para a experiência, para a linguagem, para a memória,

58
O poema completo pode ser conferido no livro “História e narração em Walter Benjamin”. A autora ainda
cita a obra original de Brecht, de onde o poema é extraído (GAGNEBIN, 1994, p. 69). BRECHET, B. “Aus
einem Lesebuch für Städtebewohner”, Ges. Werke, Surkamp, vol. 8, pp 267-268. Trad. brasileira Paulo Cesar
Souza, em Brechet, Poemas, São Paulo, Brasiliense, 1986.
153

para a história, portanto, não há mais narrativas. Gagnebin (1994, p. 70) chama a atenção
para o último verso, pois ele indica “cronicamente, que a única experiência que pode ser
ensinada hoje é a da sua própria impossibilidade, da interdição, da partilha, da proibição da
memória e dos rastros até na ausência de túmulo”. Esse pequeno fragmento revela um
sentimento e um comportamento comum na modernidade: individualista, revelador de um
desejo burguês de deixar rastros através do ter, da materialidade, dos objetos, de vivências
e não de uma vida marcada por experiências relembradas graças às narrativas.
Mas é no ensaio “Sobre alguns temas em Baudelaire”, que Benjamin apresenta de
maneira mais clara a distinção fundamental entre experiência (Erfahrung) e a vivência
(Erlebnis). O filósofo busca demonstrar de que maneira a vivência (Erlebnis) se tornou na
modernidade o único tipo de experiência possível. Benjamin evoca, a partir da lírica de
Baudelaire, um conjunto de elementos e conceitos que se vinculam diretamente ao da
experiência. O tempo, o trauma, a arte, a alegoria, a memória, a tradição, a vivência do
choque na metrópole moderna são faces que caracterizam a discussão acerca da
experiência.
As intensas excitações recebidas produzem um choque traumático no indivíduo. É
sobre esse choque que nos fala Benjamin no ensaio sobre Baudelaire59.

Quanto maior é a participação do fator do choque em cada uma das


impressões, tanto mais constante deve ser a presença do consciente no
interesse em proteger contra os estímulos; quanto maior for o êxito com
que ele operar, tanto menos essas impressões serão incorporadas à
experiência, e tanto mais corresponderão ao conceito de vivência. Afinal,
talvez seja possível ver o desempenho característico da resistência ao
choque via sua função de indicar ao acontecimento, à custa da integridade
do seu conteúdo, uma posição cronológica exata na consciência. Este
seria o desempenho máximo da reflexão, que faria do incidente uma
vivência. Se não houvesse reflexão, o sobressalto agradável ou (na
maioria das vezes) desagradável produzir-se-ia, invariavelmente,
sobressalto que, segundo Freud, sanciona a falha da resistência ao
choque. (BENJAMIN, 1989, p. 111)

O ensaio benjaminiano sobre Baudelaire gira em torno do homem moderno no


período de consolidação do capitalismo. A industrialização crescente na era moderna
remodela a relação que o indivíduo estabelece também com o trabalho. Com a
59
No ensaio “Sobre alguns temas em Baudelaire”, Benjamin amparado na teoria freudiana sobre a correlação
entre memória e consciência, na perspectiva de uma crítica da cultura, afirma que o sistema percepção-
consciência é incapaz de conservar os vestígios das excitações recebidas, mas tem a função básica de
proteger o aparelho psíquico contra seus excessos provenientes do mundo exterior. As intensas excitações
cotidianas produzem um choque traumático, afirma Kehl (2009).
154

fragmentação do trabalho na linha de montagem, o operário se torna alheio ao produto que


resulta de seu trabalho, alheio à experiência propriamente dita do trabalho. O operário, tal
como a máquina que ele opera, comporta-se automaticamente frente à linha de produção.
Seu gesto é sempre uma repetição que obedece aos ritmos que a máquina lhe dirige, aos
comandos por ela suscitados, cabendo ao indivíduo responder, de maneira reflexa e
imediata, pelo tempo que lhe é devido, a esses inúmeros e sucessivos choques.
Talvez o filme “Tempo modernos” de Charles Chaplin traduza o modo como a
modernidade inaugura um cotidiano em que o citadino se vê exposto constantemente aos
choques da multidão. Se no trabalho artesanal o artesão vivia em contato com os ciclos da
natureza, dela extraindo elementos para sua experiência, ao indivíduo moderno nada resta,
apenas uma série de repetições entrecortadas pela imposição de choques advindos da
maquinaria industrial.
A realidade fotografada por Chaplin é emblemática na apreciação dessa
personagem moderna que é o operário nos grandes centros industriais. Ele põe em
discussão o processo de mimetização que acomete o empregado em relação à máquina. O
que não se pode perder de vista nessa moderna engrenagem das esteiras do trabalho é o
estado permanente de tensão diante dos bruscos movimentos da máquina, pois a ameaça de
uma mutilação é lembrada a todo instante. Ao operário não resta senão a reprodução dos
movimentos do autômato.
A esse comportamento irrefletido do operário nas fábricas corresponde o do
passante nas ruas da metrópole moderna. Esse aspecto demonstra, de forma bastante
drástica, a degradação da experiência na sociedade moderna e capitalista. Ao se modificar
a estrutura da experiência, modifica-se também o modo como o indivíduo moderno se
relaciona com o tempo, a memória, o espaço, ou seja, modifica-se a sensibilidade. Disso,
deriva a tal “crise da percepção”60, na qual ao indivíduo resta apenas aparar choques aos
que Benjamin se refere nesse mesmo ensaio.

60
A experiência contemporânea torna-se esvaziada da sabedoria aclamada por Benjamim, passando a ter uma
nova configuração: sua primazia é o instante, a excitação que toma o lugar da experiência. A fugacidade
desse novo patamar da experiência pode ser observada no cerne daquele que assume o papel de protagonista
da “narração” no capitalismo: o mercado. O que resulta desse maculoso condensado no qual “cada imagem,
cada som luta pelo seu próprio”, de forma que imagens e sons se sucedem uns aos outros cada vez mais
rápido e violentamente, é que tal velocidade que tange as relações dos indivíduos com as narrativas e as
relações humanas passam a sustentar-se sobre a seguinte máxima: “Mesmo em todas as formas de interação
humana vale o seguinte: quem não chama a atenção constantemente para si, quem não causa uma sensação
corre o risco de não ser percebido”. Como salienta Türcke (2010, p. 20): “Ou seja, de tudo que não está em
condições de causar uma sensação tende a desaparecer sob o fluxo de informações, praticamente não sendo
155

Benjamin afirma que o choque é onipresente. O citadino age de uma forma muito
semelhante ao do tipo esgrimista61. Na exposição aos choques da multidão, ele atua com
traços marciais livrando-se deles e produz um novo tipo de percepção voltada para o
idêntico. O citadino age na interpelação do choque, sua elaboração e sua neutralização e,
dessa forma, se opõe à sensibilidade tradicional que antes se defendia por meio da
consciência, a qual tinha a possibilidade de evocar experiências sedimentadas em seu
próprio passado e também na tradição coletiva. Destituído de memória para lidar com a
hiperexposição aos choques, o indivíduo moderno se firma como um autômato e, ao
mesmo tempo, mantém-se atento aos perigos próprios dos grandes centros urbanos. Para
compreender esse empobrecimento da memória62 sob as condições da vivência do choque,
Benjamin se utiliza da oposição entre memória e consciência estabelecida por Freud em
“Além do princípio do prazer”.
Conforme mostra Benjamin, a consciência tem funções opostas às da memória em
relação à preservação de vestígios mnemônicos. Sua principal função não é manter os
estímulos exteriores, mas apenas recebê-los e transmiti-los a outros sistemas psíquicos
capazes de armazenar vestígios dos estímulos recebidos do mundo externo. A função do
consciente não é, portanto, conservar vestígios de impressões. O consciente tem outra
função, que é a de agir na proteção contra os traumas que os estímulos externos poderiam
causar ao inconsciente. A maior parte dos estímulos é aparada pelo consciente, deixando
passar apenas uma pequena parte que se deposita no inconsciente.
Os choques externos exigem, desse modo, um treinamento do sistema psíquico a
fim de diminuir a intensidade dos traumas que os estímulos produzidos por eles poderiam
causar ao inconsciente. De acordo com Benjamin (1989), quanto maior o treinamento do
consciente em aparar os choques vindos do mundo externo, tanto menor a probabilidade de
que algum estímulo atravesse essa proteção e se deposite na memória.
O fato de o choque ser assim amortecido aparado pelo consciente
emprestaria ao evento que o provoca o caráter de experiência vivida em
sentido restrito. E, incorporando imediatamente este evento ao acervo das
lembranças conscientes, o tornaria estéril para a experiência poética
(BENJAMIN, 1989, p. 110).

mais percebido, então isso quer dizer, inversamente, que o rumo vai na direção de que apenas o que causa
uma sensação é percebido”.
61
Segundo Gagnebin (1994), Benjamin, no texto “A modernidade” (1938), localiza no tipo esgrimista, dentre
os rastreados pelo filósofo no cenário urbano francês do século XIX, os aspectos dessa “cultura do choque”.
62
Benjamin, em “Alguns temas sobre Baudelaire”, diferencia memória de recordação. Para o filósofo, a
memória conserva, preserva; a lembrança apaga, destrói. Essa última é o elemento importante para se pensar
a experiência do século XIX, uma experiência marcada pela fragilização da memória, do tempo, da tradição.
156

A passagem da oposição entre memória e consciência para a oposição entre


experiência e vivência é feita por Benjamin utilizando a concepção de memória
involuntária de Proust. A memória de Freud, aquele reservatório que guarda vestígios
mnemônicos dos estímulos externos, é equiparada por Benjamin à memória involuntária de
Proust63. Por esse prisma, os estímulos, quando aparados pelo consciente, não são
armazenados no inconsciente e, consequentemente, não podem ser posteriormente
recuperados pela memória involuntária e integrados à experiência.
Disso resultam, para Proust, as lembranças conscientes que nada guardam do
verdadeiro passado e são, portanto, estéreis para a constituição da experiência em sentido
estrito. O que sucede ao indivíduo nesse contexto é apenas a vivência. Dito de outro modo,
fatos e lembranças isolados que a proteção contra os choques assimila imediatamente,
impedindo que sejam depositados no reservatório de sua memória e, posteriormente,
recuperados para construção do que Benjamin (1989, p. 106) chama de “uma imagem de
si”, ou seja, para a estruturação da experiência a partir do contato com o passado
propiciado pela memória.
É necessário esclarecermos que o ensaio benjaminiano não se mostra, porém, na
demonstração de que a memória e, consequentemente, a experiência, mantém uma estreita
relação com a proteção contra os choques do mundo exterior. É importante compreender
que isso não representaria em si uma ameaça à constituição da experiência. O que provoca
o seu empobrecimento é a frequência crescente, na vida diária, de situações em que a
percepção é exposta ao choque. É esse o alcance do texto de Benjamin, afirma Gagnebin
(1994). Ele compreende um momento em que a memória e a experiência se enfraquecem
em face da transformação da percepção cotidiana, isto é, no momento em que o choque
passa a ser a forma dominante pela qual os eventos externos atingem a percepção dos

63
Proust, que parte “Em busca do tempo perdido”, de acordo com Benjamin, determina dois tipos de memória
qualitativamente opostos: a memória voluntária e a memória involuntária. Por memória voluntária, Proust
entende toda sorte de vivências passadas que poderiam ser acessadas arbitrariamente pelo intelecto. Desse
modo, a memória voluntária se relaciona mais com uma capacidade de desagregação do que propriamente de
conservação. Assim, a memória voluntária apresenta-se de forma limitada, restrita, sujeita “aos apelos da
atenção. As informações sobre o passado, por ela transmitidas, não guardam nenhum traço dele”
(BENJAMIN, p. 106). De outro lado, a memória involuntária indica o domínio da sensibilidade sobre o
intelecto. A memória involuntária está mergulhada no estético. Ela presentifica um tempo que a memória
voluntária, espontânea, não foi capaz de apreender, o tempo da rememoração, o qual não se reduz à mera
consecução dos segundos, que não se mede pelos ponteiros do relógio, mas sim, aquele através do qual a
verdadeira experiência se desdobra. Fica explícito no texto benjaminiano que a memória involuntária
reintegra o indivíduo a uma experiência mais próxima da verdadeira. Ela lança o indivíduo a uma outra
dimensão espaço-temporal, ampla e indeterminada, espaço e tempo onde a tradição pode ser contemplada.
157

indivíduos. A investigação benjaminiana se ocupa, no treinamento do consciente à


percepção descontínua do choque, com a emergência de uma temporalidade empobrecida,
própria à vida urbana e à busca incessante do novo, que, por estar inteiramente permeada
pela instantaneidade do choque, representa uma ameaça à experiência64.
As noções de vivência e experiência em Benjamin adquirem um status de
conceitos. Veremos como isso se resolve no texto sobre Baudelaire,

[...] a experiência é matéria da tradição, tanto na vida privada quanto na


coletiva. Forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados na
memória, do que com dados acumulados e com frequência inconscientes,
que afluem à memória. (BENJAMIN, 1989, p. 105)

A citação acima permite delinear, sob múltiplos aspectos, o conceito de


experiência em Benjamin. Alguns termos presentes nessa passagem remetem a uma série
de outros elementos, tais como a memória, a tradição, o inconsciente. Isso quer dizer que a
experiência do indivíduo nunca é uma só, nunca está alheia à experiência da história, da
tradição, em suma, o indivíduo nunca é um ser isolado da cultura.
Em “Sobre alguns temas em Baudelaire” fica explícito que a experiência é o
espaço do tempo e o tempo do espaço. É um tempo completamente oposto ao tempo da
vivência, brutal e descontínuo. O tempo da vivência é mecânico e unidimensional, próprio
do indivíduo preso à repetição, a exemplo do operário na fábrica, que chega em casa à
noitinha e não tem nada a narrar, a contar, pois nada lhe aconteceu. O tempo da vivência é,
desse ponto de vista, um tempo engessado, repetitivo, rígido, sempre igual a si mesmo.
Para o indivíduo moderno, o tempo se petrifica, a história não acontece, todos os dias
permanecem exatamente iguais uns aos outros.
Na perspectiva benjaminiana, a experiência necessita de uma relação construtiva
com o tempo. Para constituir uma verdadeira experiência, o tempo não pode ser apenas
uma série de instantes que passam repetitivamente, mas deve criar condições para que os
acontecimentos se acumulem formando um sentido apreensível pela memória.

64
É nesse contexto que reside nossa principal investigação de pesquisa, qual seja, compreender como o mal-
estar docente pode ser decorrente do processo de expropriação da experiência no tempo presente. Num tempo
marcado pela pressa, pelo agir instrumental, pelo movimento constante do aparar os choques dos estímulos
externos, pelo insensível, como pensar a experiência na educação escolar? Aqui o pensamento de Benjamin
sobre o empobrecimento da experiência reforça nossa reflexão de que a escola poderia ainda ser um local de
resistência e inconformismo, principalmente numa cultura marcada pela pressa, pela rapidez, pelo pensar
instrumental.
158

No ensaio benjaminiano fica explícito que a vivência do choque aniquila a


possibilidade de reflexão. É a isso que se deve o declínio da experiência na era moderna. O
presente, dirá Benjamin, não converge mais sobre o passado, esse não se vê refletido,
interligado ao presente. Desamparado pela experiência antes oferecida pela tradição, o
indivíduo moderno não tem o que ensinar e, consequentemente, a sua possibilidade de
aconselhar se perde, bem como sua possibilidade de receber ensinamentos. Não se trata
mais de uma experiência duradoura como a do artesão. A experiência do choque substitui o
qualitativo pelo quantitativo, em que a durabilidade e a contemplatividade são destituídas.
A transformação na estrutura da percepção na modernidade, que por sua vez
ocasionou uma grave modificação na estrutura da própria experiência (Erfahrung),
também foi objeto de reflexão na “Tese IX” de Benjamin. Essa metamorfose da percepção
é utilizada pelo filósofo para caracterizar o homem moderno, com as intermináveis
exposições ao choque e com a incansável tarefa de concentrar suas energias a apará-lo
incansavelmente.
O Angelus Novus, quadro de Klee, assume, segundo Benjamin, a feição de
desespero, a feição daquele “que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os
destroços”, mas é impelido cada vez mais para o futuro que se repete e se desdobra em
violências e catástrofes.

O Anjo da História gostaria de parar, cuidar das feridas das vítimas


esmagadas sob os escombros amontoados, mas a tempestade o leva
inexoravelmente à repetição do passado: novas catástrofes, novas
hecatombes, cada vez mais amplas e destruidoras. [...] Por mais
desordenado que pareça o confronto da liberdade humana com o
desenvolvimento do mundo, a História observa com tranquilidade esse
jogo confuso; porque seu olhar, que tem um longo alcance, já descobre,
de longe, o objetivo para o qual essa liberdade sem regras é conduzida
pela cadeia da necessidade. (LOWY, 2005, p. 90-91)

Trata-se, portanto, dos limites apontados por Benjamin em relação ao progresso


desenfreado, à experiência do homem moderno com o tempo, com a memória e com sua
história. O tempo do progresso, afirma o filósofo, é o tempo da marcha dos lucros,
absoluto e infinito, transposição da linguagem matemática para a história. Na medida em
que seu enfrentamento está voltado para o choque, para o idêntico, o homem moderno se
torna desprovido de uma remissão mnemônica e tende a uma ação que o alinha a de um
autômato. O que resta ao homem automatizado da modernidade?
159

A Erfahrung pode encontrar seu lugar no panorama desolado da pobreza


de experiências nas sociedades moderna e contemporânea, no momento
em que somos capazes de construir imagens – são as alegorias – e, assim,
oferecer um significado à nossa própria pobreza de experiência presente.
Em contraposição à constituição de uma consciência em expansão, de
uma personalidade centrada em um sujeito estável, autônomo e soberanos
da história, Benjamin concebe o conhecimento como florescer alegórico e
a história, por conseguinte, como lugar de significação e morte, de
potencialidade e limite, de ação, mas também de passividade. O que
caracteriza esse conhecimento é o abandono do conceitual por um
pensamento por imagens. (MITROVITCH, 2011, p. 89)

Mitrovitch (2011) nos permite afirmar que Benjamin não está disposto a relegar
ao homem a categoria de autômato. As indicações dadas pela autora apontam a
necessidade de forjar outra relação com o passado. Isso implica em rever a relação da
modernidade com o tempo, com a memória, com a história, com a experiência, com a arte.
A degradação da experiência corresponde também à redução da participação do
indivíduo na produção da arte. Claro, Benjamin não faz a defesa de um esteticismo
desmesurado, mas do estético como a dimensão através da qual nasce a arte, no seu sentido
reflexivo. Na era moderna, portanto, a técnica se sobrepõe à criação artística. No ensaio
sobre Baudelaire, afirma Mitrovitch (2011), Benjamin revisita essa discussão, aproveitando
esse aspecto para refletir ainda mais sobre a crise da percepção que caracterizaria, segundo
ele, a experiência na modernidade.
A arte moderna, dirá Benjamin (1996), embotou o olhar, por conseguinte, perdeu
a capacidade de ver. Isso se anuncia, de modo mais drástico, no surgimento das novas
linguagens artísticas, como a fotografia e o cinema. Os dispositivos próprios de geração
desse tipo de arte demonstram a atrofia da experiência no desenvolvimento do próprio
artefato. Esse fenômeno Benjamin (1996) atribui ao desaparecimento da aura nas
sociedades modernas. A aura é, como Benjamin (1996) afirma em seu ensaio “A obra de
arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, uma experiência cultural. Desse modo, a aura
da obra de arte está por isso condicionada à sua vinculação com a tradição. Isso explica
porque Benjamin é pessimista com relação à produção da arte na era moderna. Para o
filósofo, a arte moderna é uma arte não auratizada, ela se sustenta na técnica e não como
obra a serviço da vida social, sob a forma de culto.
Essa transformação da percepção para com o elemento artístico remete ao
primado de uma atitude cognitiva que procura se sobrepor aos conteúdos do sensível, ou
seja, remete às experiências que ultrapassariam e sobredeterminariam o conhecimento, a
160

razão discursiva. O estético, afirma Benjamin (1996), ritualiza o pensamento, dá a ele uma
aura. Ele é um estado que cria uma disposição temporal diversa do tempo da máquina e da
indústria, que amplifica, que redimensiona o real, os indivíduos, os objetos, o
conhecimento, a experiência.
Segundo Benjamin (1996), o estético é uma inflexão por intermédio da qual o
objeto de arte é criado, concebido, produzido. A obra, nesse sentido, há de ser uma
reflexão de um corpo que acolhe, recebe o mundo. Na visão benjaminiana, a obra de arte
resulta de um gesto humano, sendo, por isso, expressiva, orgânica, vivente. A obra de arte
deve, por isso, impulsionar a tensão: olhar a coisa, ser olhado pela coisa.
Os objetos petrificados e inertes, como aqueles que podemos observar dispersos
ao chão na gravura Melancolia I, de Albert Dürer, podem ser verificados na modernidade
com o processo de reificação da consciência ocasionado pela sociedade capitalista e seu
modo de produção. No entanto, esse patrimônio de “objetos vazios e petrificados”, e que
muito se confundem com as mercadorias, é expresso por Benjamin através de experiências
que exigem múltiplas significações. Esse papel é exercido pela linguagem plural e
altamente crítica da alegoria.
É a alegoria que possibilita a Benjamin cavar no meio das ruínas de significados
que antes possuíam integridade, para modificá-los em modos profundamente novos. Por
isso, sua preferência pelo teatro de Brecht, pela poesia alegórica de Baudelaire, pelas
“memórias” de Proust, entre outras formas que impedem a interpretação unívoca sobre a
realidade de ruínas. A alegoria, desse modo, permite uma multiplicidade de usos, permite
“ler a história a contrapelo”, afirma Gagnebin (1994).
A alegoria é o modo de expressão de um mundo que se despojou de significado,
de uma existência humana genuína. O “objeto se torna alegórico sob o olhar da
melancolia, ela o priva de sua vida, a coisa jaz como se estivesse morta, mas segura por
toda a eternidade” (BENJAMIN, 1994, p. 205).
O uso da alegoria em Benjamin é uma resposta à crise da própria experiência, da
arte de narrar, que teve suas causas no desenvolvimento da sociedade capitalista industrial
e que transformou drasticamente uma forma de sabedoria coletiva (Erfahrung) e que, por
sua vez, influenciou o modo de produção artística na Modernidade. Escreve Benjamin que
o desejo mais profundo em Baudelaire era o de interromper o curso do mundo. Dessa
maneira, o poeta serve-se de retardatário diante do progresso da humanidade, com passos
desajeitados tal qual o albatroz apreendido pelos tripulantes de uma embarcação.
161

Nos poemas de Baudelaire fica nítida sua revolta, expressa em poemas alegóricos,
contra a decadência moderna, contra a depreciação de coisas em mercadorias. Na
sociedade administrada, na qual o número tornou-se o cânone do conhecimento, o
indivíduo, com seu corpo docilizado, é aquele que visa ao equilíbrio, à imparcialidade,
imerso num arcabouço de vivências irrefletidas do mundo da mercadoria. Essa
compreensão lógica do mundo se faz no sentido oposto à possibilidade da experiência65
defendida por Benjamin.
Nos moldes semiformativos da indústria cultural, os indivíduos são impelidos
para a inércia da sua própria vida, tornando-se expectadores passivos de seu próprio
enredo. A experiência sucumbe e dá lugar à vivência, que almeja o choque imagético,
vazio, empobrecido, mas, em contrapartida, não consegue captar nada para além da perene
e frágil película do espetáculo de si. Segundo Tiburi (2003), Baudelaire sabia que o seu
sofrer, o spleen, o taedium vitae, expressavam, de maneira mais exata, a assinatura de sua
própria experiência no tempo catastrófico da modernidade.
Benjamin afirmará que o spleen, esse sentimento que corresponde à catástrofe em
permanência, leva ao heroísmo de Baudelaire. O heroísmo por fazer poesia alegórica a
partir da “vivência” (Erlebnis) chocante enquanto indivíduo isolado em meio a um mundo
que se degrada, onde a mercantilização é onipresente e parece ser todo-poderosa e onde
reinam aparências, ilusões e fantasmagorias. Segundo Benjamin, o que caracteriza o spleen
não é o abandono das questões da memória, do distanciamento e da experiência, mas a
reflexão sobre elas a partir da situação histórica que as inviabilizou.
Conforme Gagnebin (1994) o spleen se mostra na tensão entre o desejo por uma
experiência e o reconhecimento de sua impossibilidade, revelando a origem dessa
negatividade: ela não é originária do spleen, mas de uma experiência histórica que teria
encontrado nele sua forma de expressão. O spleen volta cada choque contra a mesma
história que o produziu, negando qualquer paliativo que pudesse aliviá-lo da dor ou
qualquer pacto com aqueles que sucumbiram à vivência do choque. A reflexão histórica
empreendida pelo spleen sobre o empobrecimento da experiência garante a apreensão de
estilhaços da verdadeira experiência, afirma Gagnebin (1994).

65
O ato de experiência é, sobretudo, um modelar artesanal feito pelas mãos próprias do indivíduo, na imersão
dos objetos em seu arcabouço de experimentações refletidas do mundo da vida. A experiência em Benjamin
não é uma relação vertical daquele que supostamente detém uma sabedoria, mas sim a construção, destruição,
reconstrução do sujeito e do objeto, da linguagem, que se conectam mutuamente e dali emergem renovadas e
possibilitam a consolidação da experiência.
162

O spleen66 baudelairiano funcionaria aqui como uma espécie de afastamento, mas,


também, de aproximação do cotidiano e só assim consegue criticamente, através de
meditações sem fim, produzir questionamentos simples do tipo “O que devemos fazer
agora?”. O poeta Baudelaire, afirma Tiburi (2003), consegue superar a experiência fraca do
cotidiano e comunicar um saber marcado pela dor, cheio de cicatrizes. Ao sujeito moderno,
embebido em suas próprias vivências solitárias, e manipulado pelos mecanismos de nosso
mundo administrado não é dada a nobre capacidade de sinceramente questionar. Essa
capacidade surge apenas ao olhar alegórico do sujeito, um sujeito afetado (ou
encolerizado) pelo spleen67. No dilaceramento das coisas, a alegoria, através de sua
conceituação flexível, abre a possibilidade de, à sua maneira, representar as ideias e salvar
as coisas de sua inexorável destruição.
Nesse contexto, parece merecer maior destaque para Benjamin a alegoria do
flâneur68. A alegoria da multidão, por exemplo, sugere nossa solidão nas grandes cidades
modernas, nosso anonimato. A alegoria da mercadoria, por sua vez, sugere a ideia de
esgotamento da aura, de cópia. A ruína também é uma alegoria presente na obra de
Benjamin, sugerindo os cacos da história. A Europa de sua época, atravessada por um
processo de destruição – as duas Grandes Guerras – essa última alegoria poderia
representar a ruína da cidade. E é sob esse céu catastrófico que Benjamin faz uso da
alegoria do flâneur.
Em meados do século XIX, escreve Gagnebin (1994), esteve em moda a prática
de flanar pelas ruas. Mas, nesse período, não se podia caminhar calmamente pelas diversos
pontos da cidade em função da carência de largas calçadas. As reformas posteriores do

66
Benjamin chamou a atenção aqui para o fato de que, no spleen, Baudelaire ainda dispõe de estilhaços da
verdadeira experiência histórica. É a consciência histórica do declínio da experiência que lhe garante apanhar
esses fragmentos. Na experiência, afirma Gagnebin (1994), o sujeito que atualiza no presente o passado
reflete antes de tudo sobre sua própria situação histórica, o passado com o qual ele se comunica na
rememoração vêem-lhe à presença trazendo as marcas da distância que os afasta. Essas marcas indicam a
importância do passado para a constituição do presente que o recorda. É do significado do passado para o
presente que se origina a reflexão histórica do sujeito da experiência. A relação com o presente é mediada
pela reflexão do sujeito sobre o seu próprio passado, pela relação desse passado com um passado coletivo e
pela possibilidade de atualização da relação entre passado individual e passado coletivo no presente. Dito de
outro modo, a relação do indivíduo com o seu tempo presente é mediada pela tradição. Nenhum outro termo,
afirma Gagnebin (1994), define melhor a compreensão de Benjamin de uma experiência coletiva. Como algo
que se atualiza no presente, a tradição não é um monumento ao qual o presente presta reverência, mas a
transmissão de uma experiência entre passado e presente.
67
Nas considerações finais deste trabalho, arriscamos em lançar a ideia da possibilidade do professor, afetado
pela angústia, (re) significar o mal-estar pela melancolização do spleen.
68
A figura do flâneur, segundo Gagnebin (1994), se coaduna ao conceito de alegoria desenvolvido por
Benjamin em seu texto “Origem do drama barroco alemão” escrito na década de vinte. O flâneur, em seus
escritos posteriores sobre Paris, aparece como uma alegoria da vida pós-industrial, fazendo às vezes da
Melancolia na vida moderna, enquanto encarnação alegórica.
163

administrador francês Haussmann69 trariam o alargamento das ruas em nome dos


propósitos meramente antibélicos, com o objetivo de evitar os levantes das barricadas em
Paris.
Ao ritmo das galerias, o flâneur deixava-se passear, guiar; elas ditavam o ritmo do
seu caminhar. O interessante é que seu caminho antes de ser prescrito por algum tipo de a
priori estava orientado pela sua curiosidade e pela busca de novas emoções, sensações.
Gagnebin (1994) vai dizer que, segundo Benjamin, o flâneur é um abandonado na
multidão, que a ela se aventura em sua embriaguez. E a embriaguez do flâneur provém da
própria cidade, de passagem em passagem, de estação em estação, de choque em choque, e
provém de seu trânsito com as coisas em movimento. O florescimento do flâneur, além de
ter proporcionado o anonimato na multidão, possibilitou também a oportunidade de poder
olhar demoradamente para tudo e para todos. A imagem da metrópole repousa sobre os
aparatos mecânicos e o flâneur, na calmaria de seu passear, efetiva um inventário das
coisas.
Benjamin termina por fazer em seu texto com que Baudelaire experimente outros
tipos parisienses a fim de poder sondar seu fazer poético e dessa forma obter alguma
compreensão sobre a vivência e a narrativa moderna. Percebemos em Benjamin que a
figura do flâneur cumpre sua função alegórica e é utilizada em nome da força retórica
empreendida pelo filósofo. Se, como leitores, somos levados a adotar o espectro oscilante e
desviante do flâneur, por outro, fica claro também o estado cambiante pelo qual a figura do
poeta é povoada pelos tipos das ruas parisienses. O flâneur, afirma Gagnebin (1994), acaba
por aparecer nas análises benjaminianas como que destinado a desdobrar a reflexão sobre a
vivência do choque. Benjamin, afirma a autora, está interessado em descortinar a iminente
vivência do choque da modernidade e potenciá-la por meio de sua própria escritura. Para
tanto, ele realça as mediações que são próprias do texto moderno, aqui o texto de
Baudelaire, das condições de existência da grande metrópole e de suas pulsões.
Em Baudelaire, experimentar torna-se uma inversão do que geralmente se
conceitua sobre ele: não é um processo fechado, interno, no qual o indivíduo, etapa por
etapa, acumula experiência de um modo linear e processual. A experiência é a travessia, é

69
Georges-Eugène Haussmann foi advogado, funcionário público, político e administrador francês. Nomeado
prefeito de Paris por Napoleão III, tinha do título de Barão e foi o grande remodelador de Paris, cuidando do
planejamento da cidade, durante 17 anos, com a colaboração de arquitetos e engenheiros renomados de Paris
na época. Haussmann planejou uma nova cidade, modificando parques parisienses e criando outros,
construindo vários edifícios públicos. Disponível em: <http://www.universal.pt_enc.php>. Acesso em 01
junho 2014.
164

o exterior, e requer abertura, permitir expor-se, conhecer o mundo através da experiência,


nomeá-lo e então deixar que a experiência nos atravesse e afete o outro. É na
desconstrução, no caminho da abertura às incertezas que a narração pode encontrar
fragmentos para o pensamento crítico. Os fragmentos narrativos, aparentemente isolados,
ganham contornos novos, que comunicam sentidos e significados a seus interlocutores.
Como exemplo, podemos citar o texto “Infância berlinense por volta de 190070”
em que Benjamin faz uma tentativa de expressar suas memórias, não apenas num
movimento autobiográfico, mas, sobretudo, na rememoração. Nesse sentido, a
reconstrução da história não é objeto de uma descrição linear de um rito que a priori pode
não transparecer nenhuma experiência. Mas, em sentido oposto, o fio condutor da história
é a memória. Memória esta que transcende novamente a dimensão do fato para ser
invadida por um mundo de gestos, cores, sons, cheiros, sabores e sentimentos, cuja
expressão agregada em um cosmos linguístico narrativo, eclode num gesto vivo da
experiência.
Na contramão de uma sociedade que almeja o novo com a mesma compulsão que
imediatiza o passado, referir-se ao passado não é um exercício de saudosismo, mas tem
como finalidade central o repensar das relações entre sujeito e história. Rememorar o
passado nesse sentido passa a ser a abertura para novos (des) caminhos para a ruptura com
os aprisionamentos linguísticos do corpo e da alma, como podemos observar nas palavras
de Agamben (2005, p. 127), ao afirmar que tal perspectiva “permite pensar o evento não
mais como uma determinação espaço temporal, mas como a abertura da dimensão
originária sobre a qual se funda toda a dimensão espaço temporal”. Benjamin descreve as
memórias para além da história.
Reconstruir o conceito de experiência elaborado por Benjamin é um processo cuja
exigência é proporcional à força de ruptura de seu estilo de pensar: sua historiografia da
experiência em sua relação entre o universal e o particular é uma gama de retalhos,
fragmentos de experiências intercambiadas através da rememoração. O rememorar da
infância, da história, enquanto amálgama de forma e conteúdo de uma narração
intercambiadora de experiência, compactua, de certa maneira, com as observações de
Adorno e Horkheimer quanto a uma das raízes do problema da razão: sua velha pretensão

70
A obra “Infância berlinense por volta de 1900” na qual Benjamin relata sua infância fora feita em
homenagem a seu filho único Stephan, fruto de seu relacionamento com Dora Sophie Pollak. Tal fato é
central para a compreensão da metodologia proposta por Benjamin para a produção de seus escritos sobre a
infância.
165

de dominar a natureza e, por tal, passamos historicamente a realizar nossas experiências


sob a forma de dominação da natureza, de si e por si, findando em mecanismos de
dominação do outro.
Encontramos em Adorno alguns elementos do empobrecimento da experiência
presentes nos ensaios benjaminianos. Nas Minima Moralia, Adorno (2001) procura
demonstrar, sobretudo, como as recentes condições objetivas surgidas no processo
civilizatório produzem uma “nova subjetividade” (ou uma desubjetivação), na qual a
experiência tem seu papel relegado a um segundo plano na formação do homem moderno.
Aqui, o tema da experiência é importante para pensarmos como a instrumentalização da
formação redundou na dissolução do indivíduo e no empobrecimento do pensamento e da
linguagem no contexto do mal-estar docente. É o que pretendemos discutir a seguir.

4.3. VIDA DANIFICADA E DECLÍNIO DA EXPERIÊNCIA: UM


DIAGNÓSTICO CONTEMPORÂNEO

O tema da experiência, ou melhor, do seu empobrecimento, assim como outros


presentes em vários aforismos da Minima Moralia e em outras obras filosóficas, é um dos
elementos presentes no pensamento de Adorno.
Os processos de tecnificação dos gestos e dos sentidos produzidos pelo ritmo da
produção industrial, pelo avanço da técnica e pela complexificação da vida das grandes
metrópoles europeias do início do século passado, resultaram na estruturação de outra
forma de percepção do mundo, de uma nova sensibilidade conformada aos desafios e
ritmos cada vez mais velozes da vida urbana. Gestada em grande medida pelo
desenvolvimento tecnológico, essa nova forma de perceber o mundo não corresponderia
mais à experiência (Erfahrung), mas sim à vivência do choque.
A instrumentalização completa da vida, sua danificação, será o tema central de
Mínima Moralia. Em relação a essa questão, Adorno (2001) adverte sobre a tendência
contemporânea em que há o predomínio das vivências ao invés de experiências. No lugar
da experiência, o que se passa é uma experiência substitutiva que, como o próprio nome
sugere, substitui precariamente aquela experiência “[...] por um estado informativo
pontual, desconectado, intercambiável e efêmero, e que se sabe que ficará borrado no
próximo instante por outras informações” (ADORNO, 1996, p. 405).
Em meio às reflexões sobre o aniquilamento das subjetividades na
contemporaneidade, a relação entre técnica e reificação das consciências emerge com força
166

em uma série de aforismos em Minima Moralia. Tais aforismos fazem referência a uma
certa “educação dos gestos humanos” engendrada pela crescente tecnificação a uma (des)
subjetivação. Tal processo ocasionaria, segundo Adorno (2001), um embrutecimento dos
gestos, a perda da civilidade. No sentido da investigação proposta por Adorno, vários
foram os temas escolhidos pelo autor para tratar do empobrecimento e dissolução do
sujeito em meio a uma totalidade que o absorve e o aniquila. Vamos então aos aforismos.
No aforismo “Não bater a porta”, o frankfurtiano mostrará um elemento que
recorrentemente aparecerá no contexto das Minima Moralia e que está relacionado ao
processo de tecnificação dos corpos, em que a relação de pura funcionalidade estabelecida
com as coisas, que retira qualquer expressão de liberdade e autonomia do indivíduo,
conduz invariavelmente à perda de uma das bases da constituição do mesmo: a experiência
(Erfahrung).

[...] a tecnificação torna os gestos precisos e grosseiros e, com eles, os


homens. Desaloja dos gestos toda a hesitação, todo o cuidado, toda a
urbanidade. Submete-os às exigências implacáveis e, por assim dizer,
anistóricas das coisas. Assim se desaprende, por exemplo, como fechar
uma porta de forma suave, cuidadosa e completa. [...]. Da morte da
experiência é em grande parte responsável o fato de as coisas, sob a lei da
sua pura utilidade, adquirirem uma forma que restringe o trato com elas
ao simples manejo, sem tolerância por um excesso, ou de liberdade de
ação ou de independência da coisa, e que pode subsistir como gérmen de
experiência, porque não pode ser consumido pelo instante da ação.
(ADORNO, 2001, p. 35)

O tema do empobrecimento da experiência aparecerá no aforismo “Longe dos


tiros”. Adorno (2001) constata uma inadequação do corpo humano às batalhas entre
máquinas, tornando impossível a experiência propriamente dita. Adorno (2001) retoma
alguns apontamentos feitos por Benjamin nos ensaios “O narrador” e “Experiência e
pobreza” ao se referir à impossibilidade de narrar daqueles que retornaram da guerra por
estarem amparados por uma vivência de choques. Refere-se também à estetização da
guerra promovida pelos modernos meios de comunicação.
Quanto menos continuidade, história e elementos épicos há uma guerra, e
quando em cada fase sua torna de certo modo a começar, tanto menos
deixará uma impressão duradoura e inconsciente na recordação. Com
cada explosão, destruiu em toda a parte o abrigo do estímulo sob o qual
se constitui a experiência, a continuidade entre o sadio esquecimento e a
saudável recordação. A vida converteu-se numa sucessão intemporal de
choques, entre os quais se abrem vazios, intervalos de paralisia.
(ADORNO, 2001, p. 50-51)
167

Esse aforismo pode ser lido como índice da violência arcaica contra a natureza
que simultaneamente se materializa, retroage e se perpetua na relação de agressão do
homem contra o próprio corpo. É notável a preocupação de Adorno (2001) com o tema da
violência. Certamente uma herança do extermínio no período nazista.
No quadro das condições da produção da consciência coisificada e da frieza
generalizada, Adorno (2001) examina no aforismo “Apuros do particular”, em que lamenta
a perda da delicadeza dos vários hábitos civilizadores, tais como o andar vagaroso pela
cidade, o fechar cuidadoso das portas, as viagens em trens outrora luxuosos, a conversão
do mobiliário da casa em ambientes puramente funcionais.
Vivendo em um contexto administrado, esse sujeito desaparece, sem que houvesse
outro para substituí-lo, afirma Adorno (2001). Como veremos em outras passagens, o
embrutecimento dos corpos está profundamente relacionado com o crescente processo de
tecnificação do humano, o que por sua vez engendra uma pedagogia dos gestos e do corpo.
O que está em destaque aqui é, segundo Adorno (2001), que a reflexão, se já não
desapareceu completamente, tende ao seu aniquilamento, uma vez que os indivíduos, de
qualquer forma, estão condenados a agirem segundo os interesses instrumentais na
sociedade tecnológica.
O processo de coisificação do homem mediado pela racionalidade instrumental e
pela técnica que torna as pessoas semelhantes às máquinas é anotado por Adorno (2001) no
aforismo “Devagar e sempre”. O andar apressado das pessoas nas ruas, o culto à
velocidade, o esporte exacerbado, a reificação do pensamento configuram a produção da
nova subjetividade na contemporaneidade.
Talvez no culto das velocidades possibilitadas pela técnica – tal como no
desporto – se esconda o impulso de dominar o horror de correr, separando
este do próprio corpo e excedendo-o de um modo soberano: o triunfo do
velocímetro a subir acalma ritualmente a angústia do perseguido. Mas se
a uma pessoa se gritar – corre! – desde a criança, que deve ir buscar a
bolsa que sua mãe esqueceu no primeiro andar, até ao prisioneiro, a quem
o guarda ordena a fuga a fim de ter um pretexto para o matar, então
ressoa a violência arcaica que, aliás, dirige silenciosa cada passo.
(ADORNO, 2001, p. 165)

Nessas anotações, fica explicita a relação fetichizada do indivíduo com a técnica,


canalizando a energia libidinal das pessoas e transformando-a para o apelo às máquinas,
aos instrumentos, para o culto a uma eficiência que, ao privilegiar o meio, desconhece os
fins. Aparece aqui a imagem do indivíduo ajustado, manipulável, transformado em mero
168

objeto e sujeito à dominação. Adorno (2001) aponta para essa questão quando cita os
comportamentos humanos, simples, mas que revelam, por exemplo, a ausência da
consideração do outro, a decadência dos modos, uma prova de como a frieza está instalada
nas relações humanas, tornando-as mais enfraquecidas e pobres. Limitados em si mesmos,
os comportamentos humanos não provocam nenhuma experiência, pois retira do
pensamento a reflexão necessária para que algo seja compreendido em toda sua
complexidade.
Encontramos em “Sobre a Dialética do tato” o lamento de Adorno (2001) com
relação aos comportamentos cotidianos, em que se evidencia a perda do tato, afirmando
que a vida civilizada nos tornou rudes e rancorosos demais. Uma das observações anotadas
por Adorno nesse aforismo é uma denúncia daqueles elementos que tivemos que negar, de
forma violenta, para nos tornarmos seres supostamente “adultos”, “emancipados”,
“civilizados”. Desse modo, o ser cortês, ser delicado hoje já não faz mais sentido numa
sociedade marcada pela barbárie. A essa nova sensibilidade, gestada pelo avanço da
técnica, não corresponde mais a experiência (Erfahrung), mas a vivência do choque
(Chockerlebnis) (BENJAMIN, 1994b).

Os indivíduos começam então, não sem motivo, a reagir hostilmente ao


tato: uma certa forma de cortesia faz que eles não se sintam já
considerados como homens, mas que neles desperte a suspeita da situação
inumana em que se encontram; e então o homem cortês corre o risco de
surgir como descortês, em virtude de usar a cortesia como uma
prerrogativa ultrapassada. (ADORNO, 2001, p. 31)

No aforismo “Mônada”, Adorno (2001, p. 154) ) explicita a situação em que o


indivíduo se encontra na modernidade. Aqui, o autor visa desfazer a clássica oposição
entre indivíduo e sociedade. Porém, é necessário analisar melhor a ideia de o indivíduo não
apenas ser originado pela sociedade, mas também estar envolto por ela.

Mediante a dissolução no indivíduo de todo o mediador, graças ao qual


este pôde ser uma parte do sujeito social, ele empobrece-se, regride ao
estado de simples objeto social. [...]. Se hoje parece persistir um vestígio
do humano unicamente no indivíduo enquanto perece, tal vestígio exorta
a pôr termo à fatalidade que individua os homens só para podê-los
separar tanto mais perfeitamente no seu isolamento.

À época de sua liquefação (utilizando aqui um termo baumaniano), Adorno


(2001) vê a forma assumida pelo indivíduo comparável a uma mônada. O filósofo atesta
169

duas características essenciais da individualidade na sociedade reificada. Primeira, sua


condição de célula apartada do contato ativo com o meio social em que está envolvida;
segunda, a dificuldade assumida pelo indivíduo de exercer uma crítica e ocupar um lugar
que ao mesmo tempo já está implicado pelo contexto do qual ele pretende um
distanciamento. Segundo o frankfurtiano, o fato de que a objetividade social penetra no
mais íntimo da constituição subjetiva do indivíduo permite falar numa posição orgânica
dos indivíduos como um prolongamento da composição técnica da racionalidade
instrumental.
Aqui, a ideia de uma anulação do indivíduo sugere, segundo Adorno (2001), não
que o indivíduo deixou de existir, mas, pelo contrário, com o conceito de anulação, o
filósofo pretende denunciar aquilo que de catastrófico poderia ter acontecido com o
indivíduo, ou seja, sua morte, consequência radical da objetivação/racionalização extrema
da subjetividade. A anulação do indivíduo só acontece por meio do aumento do isolamento
e do sentimento de auto-suficiência da mônada, em que a participação dos indivíduos em
sociedade pode ser reduzida até a sua nulidade completa.
Com o isolamento da mônada, a tensão entre indivíduo e sociedade tende,
mediante a harmonização dos conflitos, a se desfazer e, com ela, a capacidade de
resistência do indivíduo ao seu processo de anulação. Para o autor, trata-se de uma
submissão que leva a um tipo de regressão que compartilha os mesmos princípios das
tendências regressivas da vida pulsional. Aqui, a cultura não promove a emancipação do
indivíduo, mas apenas faz dele o dócil e impotente representante último da deformação
social.
O tema do declínio da experiência e da narrativa aparecerá mais uma vez no
aforismo “Jantar de gala”. Nele, Adorno (2001) discute um dos esquemas-chave da
indústria cultural: a repressão pulsional. Esse mecanismo está associado à oferta
incontrolável de produtos que são direcionados aos consumidores e que, ao serem
apresentados como “novidades”, despertam nas pessoas a falsa expectativa de que seus
desejos serão totalmente atendidos: o “novo computador”, a nova pílula mágica
emagrecedora, o automóvel mais potente, a plástica rejuvenescedora, o alimento mais
saudável, o sexo mais seguro quando, na verdade, não passam da eterna repetição do
mesmo, do sempre igual.
A discussão acima pode ser entendida no contexto da crítica de Adorno e
Horkheimer à indústria cultural na obra “Dialética do esclarecimento”. Desse modo, a
170

indústria cultural promete a seus consumidores a gratificação pulsional pela compra e pelo
consumo das suas mercadorias, mas, ao mesmo tempo, essa promessa é adiada
indefinidamente, já que sua satisfação significaria o seu próprio fim.

O modo como hoje se cruzam o progresso e a regressão discerne-se no


conceito das possibilidades técnicas. Os processos mecânicos de
produção desenvolveram-se e estabeleceram-se independentemente
daquilo que se reproduz. Passam por progressistas, e quem neles não
participa, por reacionário e provinciano. Semelhante crença é fomentada
com tanto maior empenho quando os super-aparelhos, logo que perdem
utilidade, ameaçam converter-se num mau investimento. (ADORNO,
2001, p. 119)

Diante da amplitude que caracteriza a temática, Adorno (2001) se empenha em


denunciar a deficiência da formação dos indivíduos na contemporaneidade. Vários temas
foram escolhidos pelo autor como exemplos da dissolução do sujeito em meio a uma
racionalidade instrumental que o absorve e o anula. Adorno (2001) enfatiza aspectos mais
cotidianos da vida, mas que evidenciam certa decadência dos modos, da moral, da cultura e
da educação, impossibilitando ao indivíduo experienciar a cultura. Os comportamentos
grosseiros, a indelicadeza, a falta de sensibilidade, de tato, a mentira, o ódio, a covardia, o
amor resignado constituem, segundo Adorno (2001), um retrato do aniquilamento dos
indivíduos, uma vez que eles conformaram e transformaram o pensamento em algo tão
objetivo que se tornou, contrariamente, incapaz de ver-se como objeto mesmo e refletir
sobre os elementos violentos que também ele comporta.
Da análise tecida por Adorno (2001) podemos concluir que a produção cultural
configura-se hoje como um aparato extremamente sofisticado, que se efetiva na concretude
dos meios de comunicação e na reificação dos indivíduos de nosso tempo. Nessa complexa
rede de domesticação dos indivíduos, a própria cultura coisifica-se e é devolvida para o
seio da sociedade apenas como mais um produto para consumo imediato. Na produção e
reprodução da realidade social, conduz-se a subjetividade a um definhamento que extingue
as possibilidades de resistência e inconformismo. O verdadeiro valor da cultura é
desfragmentado, desencadeando um processo gradativo que a levará a ser fetichizada em
bem de consumo. Configura-se um quadro em que esta é consumida através de
representações visuais fragmentárias, dificultando a identificação com os bens culturais e
não permitindo a experiência concreta dos indivíduos.
171

Visando a formação de consumidores adaptados para os seus bens de consumo


coletivizados, a racionalidade instrumental – aqui a indústria cultural encontra solo
profícuo -, na medida em que objetiva massificar as subjetividades disseminando através
dos meios de comunicação e das relações de poder, valores, modelos e necessidades
supostamente universais, normatizando as consciências, ao ponto de formar indivíduos
que, ausentes de um processo reflexivo e tolhidos de seu poder de escolha, aderem
irrefletidamente aos simulacros da dominação, temos presentes então mecanismos que
engendram nos indivíduos o processo de semiformação. Parafraseando Valéry, “o
indivíduo moderno não cultiva mais o que pode ser experienciado”, inclusive a linguagem
e o pensamento.
Nesta parte do trabalho, ficou claro o quanto Adorno (2001) denunciou a
realidade que se abre aos indivíduos enquanto um processo que não carrega mais as
experiências intercambiáveis entre eles, mas pauta-se na brevidade do novo, no vácuo
subjetivo da racionalidade instrumental, tornando a realidade empobrecida, sem laços
coletivos. Para o frankfurtiano, essa interação deformada do homem com a cultura marca
significativamente dentro da sociedade a tônica da relação que os indivíduos terão entre si
e como constituirão sua própria identidade, pois a cultura industrializada, ou
pseudocultura, potencializa a desintegração do indivíduo, no qual os fluídos mecanismos
de identificação da sociedade massificada não permitem, devido a sua dinamicidade, uma
relação que resulte um processo formativo da identidade do sujeito. A desintegração que a
pressão desempenhada pelo geral dominante exerce sobre o individual não repercute só na
constituição do eu, mas está diretamente associada ao enfraquecimento do pensamento
reflexivo.
Nesse contexto, as pretensões de uma formação (Bildung) que rompe com as
históricas barreiras que separam dominantes e dominados, o projeto iluminista mostra-se
fracassado. Dificultam-se, então, as possibilidades da experiência narrativa, no sentido
benjaminiano. O principal anseio de municiar os indivíduos de todo instrumento necessário
para sua libertação esbarra no esvaziamento subjetivo das narrativas, embaladas por frágeis
elos subjetivos e prontas para um consumo rápido.
Assim, emana-se um modelo educativo que será o precursor das falácias
propagadas pela racionalidade instrumental, uma rede massificante, que tentará a todo
instante subtrair o que há de singular no sujeito por modelos identitários, valores e desejos
172

de natureza uniforme, de modo a facilitar a propagação de seus produtos e de sua agenda


de consumo.
Há então de se pensar nas possibilidades da educação, tendo em vista a
experiência como elemento do processo formativo. Nesse sentido, no próximo tópico
tentaremos pensar a ideia de (semi) formação em Adorno relacionada com a (im)
possibilidade da experiência, ou melhor, a possibilidade de intercambiar experiências para,
assim, no enfrentamento dos mecanismos empobrecedores da cultura, provocarmos
reflexões sobre os possíveis caminhos para o pensamento crítico.
Neste momento de nossa reflexão, é importante discutirmos a concepção de
formação em Adorno (1996), pois a mesma encontra-se ligada à experiência (Erfahrung).

4.4. FORMAÇÃO CULTURAL (BILDUNG) E SEMIFORMAÇÃO


(HALBBILDUNG)

Para refletir sobre o conceito de formação em Adorno, é necessário compreendê-


lo historicamente e, em primeiro lugar, em sua concepção clássica. Em “Teoria da
Semiformação” essa ideia envolvia, segundo ele, um desenvolvimento das potencialidades
dos homens na sua vida em sociedade por meio da domesticação do que há de mais
primitivo na humanidade quanto a evitação da possibilidade de que uma dessas
potencialidades fosse a destruição da natureza e do próprio homem, também parte dela. A
formação seria o desenvolvimento da cultura que não é mais simplesmente natureza, mas
também não é violência contra a mesma.
A Bildung representa, em Adorno (1996), o processo de estranhamento e
reapropriação entre mundo e espírito, numa tensão contínua entre autonomia e adaptação,
aceitação do mundo objetivo e negação, afirmação do espírito contrapondo à natureza. É
um exercício em relação ao tempo, à memória, à história. Esse tensionamento constitui a
cultura. A formação (Bildung) submetida às relações sociais regidas pela lógica
mercantilista e instrumental acaba por converter-se no que Adorno chamou de
semiformação (Halbbildung). Para o frankfurtiano, “a semiformação é uma fraqueza em
relação ao tempo, à memória, única mediação que realiza na consciência aquela síntese da
experiência que caracterizou a formação cultural em outros tempos” (ADORNO, 1996, p.
406).
Para Adorno (1996) essa ideia clássica de formação mantinha a tensão entre
espírito (liberdade) e natureza (necessidade). Quando essa tensão é quebrada, com a
173

sobreposição do espírito de um lado e o predomínio da adaptação do homem, de outro,


negando que homem e espírito são também parte da natureza, esta cobra seu preço,
voltando a triunfar sob a forma de dominação.

Quando o campo de forças a que chamamos formação se congela em


categorias fixas – sejam elas do espírito ou da natureza, de transcendência
ou de acomodação – cada uma delas, isolada, se coloca em contradição
com seu sentido, fortalece a ideologia e promove uma formação
regressiva. [...] Mas a adaptação é, de modo imediato, o esquema da
dominação progressiva. O sujeito só se torna capaz de submeter o
existente por algo que se acomode à natureza, que demonstre uma
autolimitação diante do existente. Essa acomodação persiste sobre as
pulsões humanas como um processo social, o que inclui o processo vital
da sociedade como um todo. Mas, como resultado e justamente em
virtude da submissão, a natureza volta sempre a triunfar sobre seu
dominador, que não se assemelhou a ela por simples acaso,
primeiramente pela magia e, por fim, pela rigorosa objetividade
científica. (ADORNO, 1996, p. 390-391)

O que nos chama a atenção em um dos principais textos de Adorno voltados ao


tema da formação é seu título: “Teoria da Semiformação” (Halbbildung) e não “Teoria da
formação” (Bildung), como se poderia esperar, observa Pucci (1997). Desse modo,
percebemos logo no início das reflexões adornianas que a ênfase fica na interrupção, nos
impasses do processo de formação e não no próprio processo apenas, pois “a formação
nada mais é que a cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva” (ADORNO,
1996, p. 389). Essa ênfase revela um diagnóstico acerca da sociedade e uma aposta
otimista no poder do pensamento, cuja resistência em aceitar uma fórmula consoladora e
conformista de formação acaba por indicar sua impossibilidade atual, a fim de manter viva
a possibilidade efetiva.
Para o frankfurtiano, a semiformação não significa uma formação pela metade.
Significa, antes de tudo, uma crise na formação; é algo em que a formação se degenerou.
A formação cultural agora se converte em uma semiformação socializada,
na onipresença do espírito alienado, que segundo sua gênese e seu
sentido, não antecede à formação cultural, mas a sucede. Símbolo de uma
consciência que renunciou à autodeterminação prende-se de maneira
obstinada, a elementos culturais aprovados [...].Apesar de toda ilustração
e de toda informação que se difunde (e até mesmo com sua ajuda) a
semiformação passou a ser a forma dominante da consciência atual, o que
exige uma teoria que seja abrangente (ADORNO, 1996, p. 389).
174

O conceito tradicional de formação, afirma Adorno (1996, p. 391) “se emancipou


com a burguesia”. Com essa afirmação, Adorno (1996) considera que foi a burguesia71, na
formulação de pensadores como Kant, Goethe e Schiller que se emancipou de suas amarras
à nobreza. Dito de outro modo, foi só com os ideais burgueses de uma sociedade livre e
igualitária que se pôde pensar uma formação que mantivesse essa tensão entre espírito e
natureza.
Mas sabemos que esses ideais burgueses não se concretizaram, que na verdade a
formação burguesa se afirmou como privilégio de alguns poucos, os burgueses, à custa da
dominação de muitos; que os ideais burgueses de liberdade e igualdade se constituíram em
ideologia e que, portanto, podemos dizer, como Benjamin, que até hoje, no tocante à
formação, cada monumento de cultura ainda é um monumento de barbárie.
Diante da amplitude que caracteriza a temática, podemos afirmar, com Adorno,
que não devemos jogar fora “a criança com a água do banho”, como afirma o autor num
aforismo de Mínima Moralia. Assim, podemos considerar que o fato de os ideais não terem
se cumprido não significa que devemos abandonar os ideais e nos submeter ao status quo.
Isso se aplica à formação, pois, “é ainda a formação cultural tradicional, mesmo que
questionável, o único conceito que serve de antítese à semiformação socializada”
(ADORNO, 1996, p. 395).
Consideramos essencial em nosso diálogo com o texto adorniano a ênfase que ele
dá ao conceito de experiência no processo de formação. Essa ênfase coloca em segundo
plano o papel da educação formal na formação, apesar de não desconsiderar a educação de
maneira alguma. Isso acontece porque as possibilidades de experiência estão barradas, “as
condições de produção material dificilmente toleram o tipo de experiência sobre a qual se
assentavam os conteúdos formativos tradicionais que se transmitiam” (ADORNO, 1996, p.
394). Assim, a ênfase na experiência aponta para as condições objetivas da sociedade
como cerne do problema e não uma falha pedagógica propriamente dita.
71
No ensaio “Teoria da Semiformação”, escrito em 1959, Adorno (1996) afirma que a burguesia negou aos
trabalhadores os pressupostos básicos da formação cultural, dentre eles, o ócio, para poderem se dedicar, com
tempo, às coisas do espírito. Mas, no processo de desenvolvimento do capitalismo concorrencial, em que a
autonomia e a liberdade de espírito eram fundamentais na constituição do indivíduo burguês, os
trabalhadores, pelo excesso de horas de trabalho, não tinham tempo suficiente para constituírem a difícil
experiência do conhecimento. Se no projeto da Bildung estava fundamentalmente presente a promessa de
uma sociedade sem exploração, então, as virtudes adequadas para atingir tal finalidade (valorização da
tradição, da autoridade, do pensamento, da reflexão, da memória, da expressão, da espontaneidade, do tato,
da sensibilidade e do espírito crítico) deveriam ser preservadas. Mas, alertam os frankfurtianos, isso já não
poderia acontecer nas escolas de seu tempo. A subordinação das relações sociais ao universo da troca e o
desproporcional poder da totalidade sobre o indivíduo foram determinantes na devastação do espírito e da
formação cultural.
175

A experiência – a continuidade da consciência em que perdura o ainda


não existente e em que o exercício e a associação fundamentam uma
tradição no indivíduo – fica substituída por um estado informativo
pontual, desconectado, intercambiável e efêmero, e que se sabe que ficará
borrado no próximo instante por outras informações. (ADORNO, 1996,
p. 405)

Assim, a experiência não e fruto da simples atenção consciente, por isso não se
pode convocá-la por um ato aleatório da vontade. Na experiência não é negada a dimensão
corporal dos homens, por isso, o que é vivido é incorporado, trazendo em seu corpo as
marcas do que se viveu como símbolo da natureza não dominada e por que só assim pode
ser transmitido algo da particularidade insubstituível do vivido, conclui Pucci (1997). O
que compõe a experiência em Adorno? Em Adorno, a experiência é viva, se traduz numa
abertura ao novo, ao indeterminado, suscita pensamentos, afetando o indivíduo de forma
profunda; é uma experiência sensível.
Uma segunda característica da semiformação em Adorno (1996) – depois da
negação da experiência – que gostaríamos de destacar é a degeneração do próprio conceito,
com sua substituição pelo clichê ou pela falsa projeção, pelo preconceito.

O conceito fica substituído pela subsunção imperativa a quaisquer clichês


já prontos, subtraídos à correção dialética, que descobre seu destrutivo
poder nos sistemas totalitários. Também lá se adere à forma “É isso”, que
se caracteriza como isolada, ofensiva e, ao mesmo tempo, conformista.
(ADORNO, 1996, p. 406)

Numa passagem do livro “Dialética do esclarecimento”, encontramos a expressão


“indivíduo semicultivado”. Nela, notamos tanto a degeneração da experiência quanto o que
os autores chamam de “falsa projeção” – uma degeneração do conceito.

A falsa projeção é o usurpador do reino da liberdade e da cultura; a


paranóia é o sintoma do indivíduo semicultivado. Para ele, todas as
palavras convertem-se num sistema alucinatório, na tentativa de tomar
posse pelo espírito de tudo aquilo que sua experiência não alcança, de dar
arbitrariamente um sentido ao mundo que torna o homem sem sentido,
mas ao mesmo tempo se transformam também na tentativa de difamar o
espírito e a experiência de que está excluído e de imputar-lhe a culpa que,
na verdade, é da sociedade que o exclui do espírito e da experiência.
(ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 182)

Se o conceito precisa de um ego bem formado, a semiformação evidentemente


produzirá algo diferente do conceito, constata Pucci (1997). Assim, se o indivíduo não
permite experienciar sua relação com o objeto, ele também não será capaz de formar deste
176

uma imagem que lhe faça jus, pois não entrou em real contato com ele. Isolado, o
indivíduo ao se deparar com os objetos pode apenas atribuir a estes características que são
próprias do sujeito.
As questões acima apontadas ganham ainda mais importância se considerarmos
também as reflexões desenvolvidas por Adorno em seus textos filosófico-educacionais.
Consideramos que a preocupação do frankfurtiano se dirigiu basicamente para o conceito
de formação, como visto até aqui, em sentido amplo, e para as condições reais de
efetivação desta; e a educação, entendida como educação formal, dada na escola, poucas
vezes aparece em primeiro plano.
Segundo Zuim (1999), Adorno não nos fornece um modelo de pedagogia, nem
sequer de uma pedagogia crítica, mas antes, estaria mais próxima de uma sociologia da
educação.
O que se manifesta como crise da formação cultural não é um simples
objeto da pedagogia, que teria que se ocupar diretamente desse fato, mas
também não pode se restringir a uma sociologia que apenas justaponha
conhecimentos a respeito da formação. Os sintomas de colapso da
formação cultural que se fazem observar por toda parte, mesmo no estrato
das pessoas cultas, não se esgotam com as insuficiências do sistema e dos
métodos da educação, sob a crítica de sucessivas gerações. Reformas
pedagógicas isoladas, embora indispensáveis, não trazem contribuições
substanciais. (ADORNO, 1996, p. 388)

Notamos que ao mesmo tempo em que Adorno nega a identidade entre formação
e educação, ele não nega o valor da pedagogia, pelo contrário, ela é indispensável.
Entretanto, Adorno (1996) afirma que a simples submissão do homem a preceitos
disciplinares é uma violência contra a própria formação, pois “poderiam [as reformas
pedagógicas isoladas] até, em certas ocasiões, reforçar a crise, porque abrandam as
necessárias exigências a serem feitas aos que devem ser educados e porque revelam uma
inocente despreocupação diante do poder que a realidade extrapedagógica exerce sobre
eles” (ADORNO, 1996, p. 388).
Para Adorno (1996), a conversão da formação cultural em semiformação não
significaria apenas um processo formativo incompleto. Ela ocasionaria a deformação
psíquica e social dos homens, uma vez que esses, em seu processo formativo, seriam
descaracterizados de sua subjetividade e conduzidos à regressão.
Na sociedade instrumental e tecnológica, Adorno (1996) afirma que a formação
passa a ser mediada pelo princípio da troca, converte-se em mercadoria, em puro fetiche. A
177

consequência imediata da semiformação é a aniquilação do pensamento, pois “o inimigo


que se combate é o inimigo que já está derrotado, o sujeito pensante” (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 140).
Podemos dizer que o imperativo capitalista submete a formação ao capital, ao
equivalente de troca, para servir a seus fins. Desse modo, essa formação meramente
instrumental não é uma formação para a experiência, para pensar o próprio pensamento. É
uma “formação” administrada, cuja finalidade é a preparação para o mercado de trabalho.
A experiência do sujeito com o objeto é impedida de ocorrer, pois ao sujeito já não é mais
possível pensar, imaginar, dizer (ADORNO, 1996).
Segundo a concepção adorniana, a educação formal está muito reduzida em seu
poder da pretensa tarefa de “formar”. Em sua leitura, os elementos essenciais para a
formação do indivíduo se dão logo na primeira infância e estão dependentes da sociedade
como um todo. Assim, a educação formal, sem ser a dirigida à primeira infância, teria a
função mais de esclarecimento geral que, apesar de importante, não mudaria de forma
significativa os padrões de personalidades já formados. De outro lado, ter consciência das
limitações da educação formal é tarefa necessária para favorecer a experiência.
Em Adorno (1996) a educação formal não poderá mudar por si só e
automaticamente a maneira como a formação se dá em nossa sociedade, nem mudar os
efeitos deletérios da semiformação, já instituída. Ele nos indica que a ausência de uma
cultura formativa seria o elemento responsável pela semiformação e pela geração da
barbárie. A falta de formação impede o esclarecimento individual, inibe aquilo que ele
chama de autorreflexão crítica.
Em “Educação – para quê?” o esclarecimento do qual falamos acima aparece sob
o nome de “produção de uma consciência verdadeira” (p. 141). A emancipação, no
entender de Adorno (1995c), não pode se dar a partir de fora, nem por meio da aquisição
de conhecimentos de forma abstrata. Assim, a maneira possível de produção de uma
consciência verdadeira é por meio da promoção da experiência autêntica (Erfahrung), a
mesma sobre a qual opera em oposição à vivência (Erlebnis).
Para Adorno (1995c) não existe democracia efetiva sem sujeitos emancipados.
Para tanto, o filósofo pensa a educação em dois momentos: um de adaptação, para que
possamos nos orientar no mundo e um de resistência, para que possamos transcendê-lo.
Como vivemos num momento de reforço da dimensão adaptativa em educação,
especialmente no que diz respeito à experiência formativa, ou melhor, à ausência dela,
178

pretendemos investir na reflexão sobre esse estado de coisas no qual impera a


semiformação, que obstaculiza as possibilidades da formação. Parafraseando Adorno, a
experiência é o momento fundamental para a formação e a educação, sem a qual ambas se
dão de modo precário.
Em Adorno (1996), a experiência é condicionada à existência de duração para que
o ainda não-existente possa persistir na consciência, pressupõe continuidade, consciência,
exercício de pensar o próprio pensamento, associação. Mesmo sem uma definição lapidar,
é possível dizer que tais elementos são imprescindíveis para a experiência. A experiência
pressupõe também interações recíprocas, relações e vínculos vivos entre indivíduos, entre
indivíduos e ideias, entre indivíduos e objetos. Os indivíduos se entrelaçam entre si, com
ideias e objetos, com os quais eles não se identificam. Eles interagem com aquilo que não
conhecem e não reconhecem. Enredam-se com o diferente.
Ao defender o ensaio como uma forma de experiência com o pensamento,
confrontando-o com as formas ditas tradicionais, Adorno (2003, p. 29-30) descreve a
experiência intelectual, fornecendo contornos mais nítidos desse processo.

O ensaio exige [...] a interação recíproca de seus conceitos no processo da


experiência intelectual. Nessa experiência, os conceitos não formam um
continuum de operações, o pensamento não avança em um sentido único;
em vez disso, os vários momentos se entrelaçam como num tapete. Da
densidade dessa tessitura depende a fecundidade dos pensamentos. O
pensador, na verdade, nem sequer pensa, mas sim faz de si mesmo o
palco da experiência intelectual, sem desemaranhá-la. Embora o
pensamento tradicional também se alimente dos impulsos dessa
experiência, ele acaba eliminando, em virtude de sua forma, a memória
desse processo.

Adorno (1996) constata que a atual consciência não é apta à experiência. Por não
possuir aptidão à experiência, essa consciência é caracterizada como coisificada. A
consciência coisificada não é, por seu caráter de coisa, pelas deficiências que lhe são
próprias, aberta à experiência efetiva. O filósofo vai dizer que a consciência coisificada é
uma consciência amputada, pois é destituída do pensamento e da reflexão. Para a
consciência coisificada, o produto tem autonomia sobre o produtor, o objeto, sobre o
sujeito72. A consciência coisificada poderia, por um lado, ser modificada pela experiência.

72
No texto “Sobre sujeito e objeto”, Adorno (1995e) ao invés de conceituar o que seria sujeito e objeto, tarefa
esta que implicaria numa aporia difícil de ser resolvida, na medida em que os conceitos de sujeito e objeto ou
aquilo a que se referem têm prioridade sobre qualquer definição, irá criticar os conceitos tradicionais de
sujeito e objeto, a saber, o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, aquele que conhece e aquele que é
179

Por outro, é precisamente ela que impede a efetivação da própria experiência. Disso resulta
que a experiência desapareceu.
A perda da experiência é causada pela racionalidade do sempre-igual (ADORNO,
1996). Isso implica dizer que, ao mesmo tempo em que a inexistência da experiência
confina a consciência ao sempre-igual, essa consciência impede uma relação autêntica com
outros indivíduos, objetos, ideias, que têm como marca o diferente, o não-idêntico. O
sempre igual, conforme Adorno (1996), impede a existência, ou o reconhecimento da
existência, do diferente. Desse modo, a “experiência” ocorre somente nos limites do
estereótipo, do já conhecido, do já existente, do mesmo. A efetiva experiência ocorre no
confronto do sujeito com o não conhecido, o não mensurável, o então inexistente.
Experiência implica em encontrar o eu no não-eu e o não-eu no outro, reconhece
Adorno (1996). A experiência substitutiva, ao contrário, é flexível, maleável, cambiável.
Ela não tem uma forma própria, assumindo qualquer configuração, conforme o sujeito que
a experimenta. Por isso, se pode afirmar que a experiência não se dá. O que ocorre é uma
identificação, repetição e reafirmação daquilo que já e desde sempre existe. Adicionando-
se a isso os outros elementos já mencionados ter-se-ia assim uma experiência mais
agradável ao indivíduo que, além de facilmente se reconhecer e se identificar tudo aquilo
que se lhe parece, estaria também dispensado da interpretação, do embate de ideias, do
pensamento e da autorreflexão.
O que é interessante de se notar é que a experiência não se coloca ao indivíduo,
mas é o indivíduo que determina aquilo como uma suposta experiência. É o indivíduo
experiente e sua experiência que garantiria a validade do conhecimento e não o método, a
técnica e os testes científicos. Segundo Adorno (1996), a experiência, longe de ter valor
apenas para o indivíduo particular que a experimenta, é essencial, uma vez que é o sujeito
experimentado com sua carga de subjetividade o elemento fundamental para a

objeto de conhecimento. Para o frankfurtiano, tanto o sujeito quanto o objeto encontram-se mediados
reciprocamente. Isso significa que tanto a fragmentação, na teoria do conhecimento tradicional, entre sujeito
e objeto, quanto a sua identificação constituem, ambos, uma inverdade dessa relação. O sujeito, quando
separado do objeto do conhecimento na sua independência em relação a ele, subjugando-o e reduzindo-o a si
mesmo, torna-se algo que ele não é, pois se encontra mediado pelo mesmo objeto. Sendo assim, por outro
lado, a identificação entre sujeito e objeto, a qual representa um estado originário no qual não havia ainda
autoconsciência porque não havia ainda o sujeito, também representa uma etapa primitiva já superada,
assumindo o risco de ser regressivo todo o conhecimento que elimine o sujeito e o objeto, tornando ambos a
mesma coisa, quando, na verdade, não o são. Para Adorno, residem aqui os limites da teoria tradicional bem
como de todo o pensamento filosófico que se prontificou a comunicar o outro do pensamento, aquilo que não
é mais da ordem racional, aquilo que a razão, por si só, não consegue mais pensar sobre. O objetivo do
frankfurtiano é evidenciar os limites do próprio sujeito, desfazendo-se a dicotomia entre sujeito
transcendental e sujeito empírico e conduzindo-o a uma autorreflexão acerca de si mesmo.
180

interpretação, a compreensão e a explicação de relações sociais, históricas e do próprio


homem.
A obstrução da experiência já era consequência do esclarecimento tal como
descrito por Adorno & Horkheimer (1985): esclarecimento como abstração de diferenças e
enquanto triunfo da razão instrumental, que priva o homem de suas capacidades críticas,
estando ele sob o domínio do objeto sua consciência sob o domínio da coisificação. Uma
vez que para a experiência efetiva o não-idêntico é fundamental, Adorno (1996), apesar da
situação fatalmente adversa, ainda indica que a experiência da consciência reificada
poderia ser tomada como elemento de reflexão, como uma experiência, a experiência da
própria perda da experiência seria uma tentativa de (re) construção da experiência.
A experiência também passa por aquilo que Adorno chama de elaboração do
passado. A questão da não repetição de Auschwitz passa pela questão da memória. O
passado é potencialmente uma fonte inesgotável de experiências, o que por si só justificaria
sua elaboração. Então, Adorno é categórico ao afirmar que a experiência pressupõe uma
relação com o historicamente produzido.

A relação com a experiência [...] é uma relação com toda a história; a


experiência meramente individual, que a consciência toma como ponto de
partida por sua proximidade, é ela mesma já mediada pela experiência
mais abrangente da humanidade histórica. (ADORNO, 2003, p. 26)

Citar Auschwitz é esbarrar na própria condição de possibilidade – significado


mesmo de crítica – de se poder explicar e compreender como isso foi possível e de se
poder falar e narrar sobre o que lá ocorreu. Trata-se, portanto, de um esforço para
compreender o incompreensível. De igual teor, é a tentativa de os sobreviventes curarem a
“ferida aberta e não cicatrizável”, de darem sentido para aquilo que escapa à interpretação,
de darem testemunho sobre a impossibilidade de testemunho. Em outras palavras, seria o
desejo de querer compartilhar o incompartilhável, de narrar o inenarrável.
É na relação passado-presente, isto é, no fim da relação de continuidade entre
passado e presente, compartilhada e coletiva, que se observa o fim da experiência
(ADORNO, 1995a). A perda de sentido para uma geração que não se sente pertencente
àquele tempo e àquele espaço. A sensação de não pertencimento deixa os indivíduos à
deriva. Benjamin (1994) nos pergunta, em “Experiência e pobreza”, qual seria o valor do
nosso patrimônio cultural se a experiência não mais se vincula a nós. Trata-se, portanto, de
uma questão que expõe a implicação entre cultura, experiência, formação, passado.
181

Elaborar o passado na concepção adorniana não é sacralizar a memória, nem


tampouco o passado, já que isso esterilizaria as suas possibilidades. Segundo Adorno
(1995a), falar do passado não é lembrar somente, não é descrevê-lo. É o dever do não-
esquecimento. Não esquecer o que foi mal contado, aquilo que foi negligenciado, os
sofrimentos, as injustiças. Não se trata da celebração das vítimas e dos mortos, mas de
transformação. Não se trata de restaurar o passado, mas de nele buscar o que foi perdido.
Assim, elaborar o passado é estabelecer uma relação com o passado oprimido, cobrando
dele as promessas não cumpridas (ADORNO, 1995).
Conforme Gagnebin (2006), essa reflexão requer duração no tempo para os
acontecimentos serem pensados. É fundamental que os fenômenos tenham tempo de
interagir entre si. Essa ausência do tempo não provoca um conformismo, ela já é o próprio
conformismo, uma vez que, permanecendo no passado, não se ousa enfrentar o presente,
impossibilitado de refletir sobre o não-idêntico, o diferente, o outro, o que ainda não é. Do
mesmo modo que para a formação73 é essencial que se tenha tempo para experimentar,
para tocar, para sentir, para narrar, para se concentrar, para refletir, para repetir, do mesmo
modo se exige para a elaboração do passado.
Assim se chega ao tema da educação. A educação em Adorno não tem uma
função predeterminada, a qual seria alcançada seguindo uma linha de passos também
previamente dados. Conforme Adorno (1996), a educação que se faz urgente é uma
educação de resistência e para a contradição. Desse ponto de vista, a educação teria por
objetivo desmascarar as condições e condicionamentos do indivíduo e da sociedade, de
modo que um de seus principais objetivos é tornar consciente o impensável. Posto isso, o
indivíduo poderia ter ciência de seus próprios mecanismos, suas limitações, bem como
suas potencialidades. Para não andar na contramão da emancipação e da formação, caberia
à educação reelaborar-se criticamente através de um processo intenso, ininterrupto e
infatigável de autorreflexão, consciente de que no atual contexto, a educação filia-se às
exigências do mundo da produção.
Conforme apontamos anteriormente, a ausência da experiência relaciona-se com o
vácuo da elaboração do passado, de Auschwitz. Se a educação deveria ser uma educação

73
Daí o caráter imanente da formação, a formação sempre em formação, excluindo-se o perigo de soar como
formação continuada (reciclagem, cursos de atualização), que, principalmente por ser instrumental, não se
relaciona de forma alguma com o que se está descrevendo. Podemos afirmar com Adorno (1996) que o
processo de formação é a negação constante da deformação, não como possibilidade ou ameaça, mas como
realidade e objetividade. Não é por acaso que o movimento de autorreflexão é contínuo e se identifica com a
formação da consciência.
182

que prevenisse a repetição daquela barbárie, consciência crítica de como isso pôde
acontecer seria a tarefa mais urgente. Tarefa que alimentaria profundamente as bases da
convicção de que a barbárie é fruto do progresso. A experiência se coloca em oposição à
consciência reificada, que repete incessantemente o sempre igual, incapaz de relacionar-se
com o diferente e limitada àquela apática adaptação. A consciência capaz de experiência
permite outras possibilidades, consciente inclusive da diferença entre experimentar e
vivenciar.
Essas considerações são importantes para a compreensão do texto de Adorno.
Buscar nas particularidades da vida dos indivíduos algo que as transpassa é tarefa de um
pensamento que não se acomoda ao imediato e busca aquilo que vai além das aparências.
Os aforismos aqui assinalados contidos em Minima Moralia foram discutidos no intuito de
provocar a reflexão sobre a técnica, os costumes, a educação, a formação, a semiformação.
Trata-se, portanto, de um recurso interpretativo, de crítica ao presente, como denúncia de
um processo de reificação que se instala inclusive nos aspectos mais íntimos da vida.
Nosso objetivo foi apontar o declínio da experiência com a exacerbação da técnica
e da sociedade estruturada em uma forma reificada de compreensão da realidade. Assim,
nosso olhar sobre a educação na contemporaneidade recai na tentativa de refletir sobre o
processo de empobrecimento da cultura marcada por uma “formação” meramente técnica,
descompromissada com o pensamento, com a autorreflexão. No campo da discussão sobre
o mal-estar docente, o intuito está na proposta em realizar experiência da própria pobreza
da experiência. Conforme assinalado, o pensamento autorreflexivo assume uma condição
primordial para esse processo.
Esta parte do trabalho foi uma tentativa de olhar para o texto de Adorno buscando
refletir sobre o domínio da razão instrumental escondida sobre a aparente unilateralidade
do progresso e, portanto, impeditiva de um processo de autorreflexão crítica sobre a
cultura. Devido, porém, ao ritmo imposto pela sociedade que se estruturou sobre o trabalho
industrial, a rapidez com que os processos ocorrem impede a permanência, a assimilação
de um acontecimento que marque a vida e possa ser considerado como uma experiência
propriamente.
Desse modo, a falta de experiência significa um maior poder da racionalidade
instrumental sobre a subjetividade, na medida em que se torna fácil impor aos indivíduos,
desprovidos de um eu firme, os produtos feitos para o consumo de massa. Essa adesão
irracional à totalidade somente é possível porque aquilo que se colocava como referência
183

ou fundamento à reflexão do indivíduo – a tradição, a tensão entre sujeito e objeto, o


pensamento crítico, a autorreflexão, a experiência – já não encontra mais espaço na
educação atual.
Procuramos destacar nesta última seção que o declínio da experiência na escola
está intimamente ligado à impossibilidade de se estabelecer uma autorreflexão com a
cultura, com o pensamento. Da mesma forma, insistimos na autorreflexão, a qual exige um
tempo de elaboração do pensamento. No centro da relação do homem com a objetividade,
a experiência formativa desempenha importante papel à medida que representa o princípio
fundamental pelo qual se assenta o desenvolvimento do indivíduo rumo à formação.
Assim, a autorreflexão em Adorno passa pela questão da formação cultural (Bildung)74.
Para o filósofo frankfurtiano, a bildung não está perdida. Pelo contrário, uma das formas de
escapar à reificação da consciência seria sua não absolutização perante a sociedade que a
gera. Na “Teoria da Semiformação” lê-se que “a única possibilidade de sobrevivência que
resta à bildung é a auto-reflexão crítica sobre a halbbildung, em que necessariamente se
converteu” (ADORNO, 1996, p. 410).
Adorno chama a atenção para elementos fundamentais que, não por acaso, são
desqualificados na contemporaneidade. Um exemplo bastante explícito é a memorização.
Com certeza, dificilmente se pediria hoje que alguém aprendesse de cor:
apenas pessoas muito ingênuas estariam dispostas a apoiar-se na tolice e
na mecanicidade desse processo; porém, assim se priva o intelecto e o
espírito de uma parte do alimento de que nutre a formação. (ADORNO,
1996, p. 398)

Constata-se mais um dos nutrientes dos quais se alimenta a formação. Ela


depende daquilo que já existe, para, a partir do existente, almejar alcançar o ainda não-
existente. Não por acaso, Adorno (1996) afirma que a formação precisa ser cultivada. Por
outro lado, a semiformação, (semi) “forma” indivíduos pobres em experiências
comunicáveis, portanto não individuados e, em consequência, conformados e em
conformidade. Formação é confronto, tensão. Semiformação é conforme. Nesse contexto,

74
A formação cultural (Bildung) era a formação proposta pela cultura burguesa. Esta era promotora dos ideais
de igualdade e liberdade, da garantia do uso da vontade e do livre arbítrio, além de almejar uma sociedade
mais humana, autônoma e esclarecida, sem injustiças sociais. Entretanto, as relações de produção e a própria
divisão do trabalho geraram novas maneiras de intervenção entre formação e sujeito. A consequência disso
foi que a educação passou a representar uma formação técnica para o mundo do mercado e a cultura, que se
ocupava da formação clássica e artística do homem, se transformou em diversão, em produto, por meio da
indústria cultural.
184

não é de se estranhar que a autocrítica fosse (seja) desaprovada e o pensamento


autorreflexivo negado.
De acordo com a análise do que seria a formação tratada até aqui, para que ela se
realizasse, seriam necessários pelo menos dois fatores: a relação efetiva com a cultura e um
sujeito que, justamente, experienciasse essa relação, formando-se com e nela. Experiência,
formação e sujeito perfazem-se em relações tensas. Acreditamos que o pensamento
adorniano e benjaminiano demonstra essa tensão, pois o sujeito se forma nesse confronto
com o não conhecido, o não mensurável, o até então inexistente: o não-idêntico. O sujeito
se apropria desse momento, provando, mexendo e remexendo, torna-o palpável, audível e
articula-o na consciência. Aquilo faz parte da sua própria experiência e simultaneamente
constrói alicerces para outras.
Todo esse movimento do agir instrumental, do adquirir técnicas para se viver em
sociedade, do pensamento reificador, da semiformação disseminada pela indústria do
entretenimento atualiza o pensamento benjaminiano com relação à pobreza da experiência
na atualidade. O indivíduo, que nessa e por essa dinâmica, não se forma como indivíduo
autônomo, conclui Adorno (1996). Daí a constatação da inexistência da experiência.
Na escola, essa pobreza fica evidente no saber fragmentado, nas metodologias e
didáticas reificadoras, no ensino instrumentalizado, no desprestígio do professor enquanto
fonte de conhecimento, nas atividades voltadas para o “aprender a aprender
constantemente”, desvinculadas do aprender a pensar, no tempo administrado com o
objetivo de “formar” mais em menos tempo. Não há margem para significação e reflexão
do contexto escolar, apenas vivências são permitidas aos indivíduos. Nesse contexto, a
ausência da experiência relaciona-se diretamente com a perda da memória, da tradição, do
pensamento autorreflexivo.
Para Adorno, ao contrário, a experiência, longe de ter valor somente para o
indivíduo particular que a experimenta, é essencial, uma vez que é o sujeito
experimentado, com sua carga de subjetividade, o elemento fundamental para a
interpretação, a compreensão e a explicação das relações sociais, históricas e do próprio
homem. A experiência coloca-se em oposição ao pensar instrumental, que repete
incessantemente o mesmo, incapaz de relacionar-se com o diferente e limitada àquela
apática adaptação. A consciência capaz de experiência permite outras possibilidades,
consciente inclusive da diferença entre experimentar e não experimentar. Adorno (1996),
185

apesar da situação fatalmente adversa, ainda indica que a experiência da própria perda da
experiência seria uma tentativa de (re) construção da experiência.
Nossa pesquisa buscou desde o início sublinhar que a pobreza da experiência está
ligada à semiformação, ao pensamento instrumental, à ausência do pensamento
autorreflexivo. Com isso, análises, diagnósticos, reflexões de Adorno foram tomadas como
possibilidades de tensão, de contradição, de resistência, de formação.
Do mesmo modo que para a formação é essencial que se tenha tempo para
experimentar, para tocar, para elaborar, para refletir, para reexperimentar, pensamos que a
escola, enquanto lócus privilegiado para a educação, deveria privilegiar um pensamento
para a resistência e para a contradição. Para não andar na contramão da formação e da
emancipação, caberia à educação reelaborar-se criticamente através de um processo
ininterrupto de autorreflexão, consciente de que, no atual contexto, a educação filia-se às
exigências do mundo da produção.
A discussão sobre a (re) significação do mal-estar docente pela autorreflexão
crítica conduziu-nos ao tema da formação, bem como da semiformação e, por fim, ao tema
da experiência. A experiência (Erfahrung) é tomada como um dos elementos fundamentais
da formação e a autorreflexão, por sua vez, como um dos momentos fundamentais da
experiência. Procurou-se, então, mostrar em que medida tais momentos se relacionam com
o processo educativo e formativo.

4.5. MAL-ESTAR DOCENTE: O QUE HÁ DE (INTER) DITO NA ESCOLA


NA CONTEMPORANEIDADE?

Ao iniciar a tessitura desta parte de nossa reflexão sobre o mal-estar docente,


evocamos a imagem da tela “O Grito”. Pintada em 1893 por Edvard Munch, a obra aponta
para a figura de um sujeito com as mãos na cabeça, trêmulo, assombrado, a boca
entreaberta e, na face, uma expressão que sugere um certo mal-estar. O contexto que
demarca essa pintura também chama a atenção para a temática em discussão. Certa tarde,
Munch saiu para passear no parque com dois amigos. O horizonte estava mesclado de
vários tons de um vermelho vibrante, o rio encontrava-se com o céu com pinceladas de um
azul forte. A imagem produziu no pintor um efeito devastador no sentido de expressar o
sentimento que lhe inspirou a paisagem num grito, nomeado, por ele, “o grito da natureza”.
O grito não gritado sugerido pela obra de Munch, com a voz emudecida, abafada,
impactada, remete-nos à fala emudecida do professor na contemporaneidade que vive sob
186

o viés de um contexto conturbado, impactado pela (im) possibilidade de narrar o que (se)
passa, acontece na escola.
Trazer a baila esse contexto da fala emudecida do professor é possibilitar aguçar o
debate em torno do mesmo como sujeito de seu saber fazer, considerando a cena da sala de
aula como um processo que é tecido por um emaranhado, no qual estão implicado os
atores, o cenário, o roteiro, as relações tecidas, os elementos de cena, o figurino utilizado,
entre outros. Nesse jogo, que o professor atua e dirige ao mesmo tempo, o roteiro deve ter
sua marca, sua assinatura, mas não pode ser concluso, acabado, delimitado, pois conta com
a participação de outro parceiro de cena – o aluno. Porém, o que acontece quando esse
roteiro escapa aos seus domínios? Ou quando este adentra por uma via desconhecida? O
professor, como que num ato desesperador, desequilibra-se e desvanece. Mas, sabe-se que
a comunicação (inter) dita (e não dita) é tramada por afetos ambivalentes, nos quais seus
desejos e o drama da sala de aula caminham lado a lado no desenlace das (des) narrativas
diárias.
Dessa forma, por entre os muros grifados pelas mais diversas expressões das
marcas de um tempo inquietante, incerto e paradoxo da contemporaneidade, jaz um
professor senhor e servo de um cenário multifacetado, retalhado, disperso. Um professor
que se impacta, (res) sente, se amedronta, se (des) arranja diante do inusitado e incerto.
Paralisado, deixa aumentar o fosso, o nada, que se alastra com uma rapidez devastadora e
desloca para longe uma possível fala autoral (narrativa). Nesse contexto, o (des) encontro
do professor consigo mesmo tem cada vez mais se presentificado como uma das faces do
mal-estar que lhe consome energia, disposição, interesse de estar na sala de aula. Destarte,
esse profissional tem sido encontrado, em proporção cada vez maior, submergido e
silenciado entre os muros da escola.
Que nada75 é esse que sufoca o professor remetendo-o a uma situação de mal-
estar? Fala-se muito sobre o lugar do professor, os desafios da docência e, principalmente,

75
O ato de educar insere-se em um contexto marcado pelo conflito humano, por isso desvela certo mal-estar
que permeia a relação pedagógica na interação ensino-aprendizagem. Ao falar sobre as três fontes de onde
provém o sofrimento humano, Freud (1930) enfatizou que uma das prováveis causas esteja no
relacionamento entre os homens no convívio social. Para haver convívio social, há necessidade de normas
que vão mediar os relacionamentos por meio também da educação. Contudo, o desejo de completude e de
controle impostos pelos ideais educativos em detrimento da singularidade e subjetividade dos sujeitos
enlaçados no contexto pedagógico paga um preço alto para viver o bônus dos bens culturalmente construídos
pela civilização. Nessa ótica, tornamo-nos estrangeiros no mundo civilizado, andarilhos imersos no mal-estar
paralisante das exigências de um ideal educativo distante da realidade humana, que não reconhece as leis do
desejo. Por isso, mesmo com o empenho, o esforço e os aparatos metodológicos que o professor usa no seu
fazer pedagógico, ele não consegue executar o planejado com perfeição, não “controla” tudo, principalmente
187

sobre os processos de formação e de profissionalização docente. Porém, um abismo se


forma quando o cerne da discussão enfoca o professor como sujeito, pois os processos
formativos embotam a singularidade, o desejo e os afetos sob o véu da função ensinar.
Os processos formativos do professor foram estruturados seguindo uma
racionalidade científica, baseada no sujeito do cogito, um sujeito autônomo, emancipado,
completo e o que não se enquadra nessa lógica é desconsiderado. A lógica da formação
passa a ser o saber todo, absoluto, racional, matemático, porém, é na prática cotidiana que
o professor reconhece a sua impossibilidade de tudo saber. É no contexto da aula que o véu
da “completude” cai e, então, o professor depara-se com a solidão do desamparo que desde
os primórdios da sua inserção no mundo o acompanha. Mas, é no mundo de agora, de hoje,
onde ele (o professor) é convocado a atuar, um mundo instável e controverso, no qual o
gozo – conforme Birman (1999) ressaltou - passou a ser um imperativo em detrimento do
desejo. É nesse cenário contraditório, caótico, que não se ajustam mais as vestes do
professor e no qual esse profissional vivencia o mal-estar.
Ao analisar rapidamente o contexto histórico dos processos de profissionalização
e de formação docente, observamos o quanto as transformações sociais provocadas pelo
advento da massificação do ensino, das novas tecnologias, da globalização, demarcaram a
baixa valorização do trabalho do professor e o investimento na educação. O professor
ressente-se da elevada carga horária de trabalho (60 horas em média), caso queira garantir
o seu sustento mensal. Correndo de uma escola a outra, ele vai aprendendo que para
sobreviver a esse contexto precisa se desdobrar, deixando às vezes de oferecer um ensino
de qualidade.
Dessa forma, incide no seu saber fazer a dimensão da mediocridade, não sem um
custo alto para ele. O custo é a sensação de estranhamento, de vazio, do nada, de caminhar

resultados, restando o sentimento de frustração ante a percepção de que há sempre algo faltando. A “falta” e a
incompletude no espaço pedagógico consubstanciam o mal-estar quando o professor investe energia em
modelos educativos que não condizem com o desejo do ser humano. Dessa forma, o ideário do cenário
escolar busca a completude, a perfeição marcando a trajetória do humano no campo da civilização, o qual faz
emergir o mal-estar inerente ao desejo de formação imbricada nas inquietações que atravessam o humano, na
busca de seres melhores e felizes. Portanto, o nada é o lugar, o abismo em que se precipita a angústia e, por
sua vez, não é esvaziado de significantes. Em 1930, em “O mal-estar na civilização”, Freud anuncia as três
profissões impossíveis: educar, governar, psicanalisar. Essas três profissões são impossíveis porque são
tipicamente humanas e não técnicas. O impossível, ao qual se referia Freud, é inerente a toda relação, ao fato
de não se poder controlar o futuro, à impossibilidade de se cumprir com um ideal. Impossível não significa
impraticável. Dizer que é impossível é dizer desse mal-estar que ronda, permanentemente, nossa ação. É abrir
espaço para o inusitado no campo pedagógico, o que nos obriga, portanto, a realizá-las – as três profissões –
contínua e indefinidamente, conscientes de que o preço a pagar é a renúncia aos nossos ideais narcísicos. Em
outros termos, não temos como fazer do outro um ser idêntico a nós, pois isso seria tão mortal como Narciso
diante de sua imagem refletida na superfície do lago.
188

para um abismo. Assim, uma questão delineia-se: como esse professor marcado pela
racionalidade moderna (instrumental, que administra o pensamento, os desejos, o agir) e
pela incompletude enquanto sujeito desejante responde a esse sistema que lhe impõe um
caminhar pautado no todo, inscrito em um tempo linear e fragmentado?
Constata-se que esse quadro é agravado por falta de uma cultura da escuta e da
fala na escola. A não existência de uma política que torne os professores agentes da própria
palavra acaba por levá-los a sintomatizar no corpo o que não foi simbolizado na fala.
Talvez aqui a relevância do ouvir76 como um dos princípios do processo educativo, tendo
em vista que ao socializar inquietações e dilemas que fazem parte de sua prática o
professor poderá incorporar essa marca ao seu estilo de ensinar e poderá ainda encontrar,
junto com seus pares, novas alternativas para questões desafiadoras. Talvez assim,
comunicando e deixando comunicar, o professor possa apreender novas maneiras de lidar
com seu próprio mal-estar, reelaborando-o no sentido crítico – ou seja, através da (re)
significação do mal-estar docente pela via da arte de educar, pelo sublime que o contexto
pedagógico pode favorecer no processo do ensinar e aprender, para trilhar novos caminhos
a serem experienciados.
No texto “Tabus acerca do magistério”, Adorno (1995b) chama a atenção dos professores
para os limites que compreendem a transmissão dos saberes no ensino, na medida em que
essa comunicação leva em consideração tão somente os aspectos didáticos, racionais,
programados, previsíveis e comunicáveis por meio das palavras. Segundo Adorno (1995b),
essa comunicação não teria levado em consideração uma outra experiência indeterminável
presente na relação pedagógica. Em suas reflexões sobre o magistério, Adorno (1995b)
afirma que, mesmo não sendo pedagogo e não tendo dados empíricos de estudos de caso,

76
Refletindo sobre esta questão, devemos partir da premissa de que a educação, isto é, aquilo que se passa na
vida cotidiana entre adultos e crianças, não é um processo natural, biologicamente determinado, mas um
processo de filiação simbólica que constitui um sujeito, posicionando-o em relação a uma determinada
história e tradição no interior do campo da palavra e da linguagem. Nesse sentido, devemos considerar que
somente através da palavra esse processo pode ser colocado em marcha. Simplesmente porque a palavra é a
ferramenta educativa por excelência e somente endereçando a palavra a um outro - uma criança -
supostamente podemos educá-la. Quer dizer, a educação implica dirigir a palavra a um outro, falar com o
outro (LAJONQUIÈRE, 2010). Não se trata, portanto, de psicologizar o campo escolar, consubstanciando um
conjunto de almejadas soluções para os problemas educativos, enquanto manifestações de uma espécie de
neurose pedagógica que toma conta da educação atual. De fato, assistimos a presença cada vez maior no
âmbito das escolas de uma série de especialistas na avaliação, prevenção e “cura” dos processos de
desenvolvimento supostamente envolvidos no intuito de possibilitar a ocorrência da empresa educativa. Posto
isto, cabe afirmar que a pretensa eficácia educativa, formulada nos termos da promoção de um
desenvolvimento psicológico completo, seria o apagamento da diferença fatual entre a criança real e a ideal.
Em outras palavras, o discurso (psico) pedagógico hegemônico pede, inconscientemente, em toda tarefa
educativa, que as crianças venham de fato a encarnar no real da existência escolar tudo aquilo que elas não
são e que está feito de sonhos didático-metodológicos.
189

gostaria de tornar visíveis suas observações sobre a aversão à profissão docente. No texto,
Adorno (1995b) descreve que sua experiência com alunos recém-formados mostra a
repulsa pela função de professor, mesmo que esses estudantes tenham sido empurrados
pelas circunstâncias profissionais como a falta de alternativas para a carreira. Não
encontrando justificativas reais e palpáveis para a aversão ao magistério no contexto da
Alemanha, o autor conclui se tratar de questões subjetivas, de natureza inconsciente. As
representações inconscientes acumuladas ao longo da história docente são capazes, entre
outras coisas, de provocar sentimentos ambivalentes dirigidos aos professores. Segundo o
filósofo, essas representações perderam ao longo das mudanças sociais sua base real,
compondo-se como predisposições psicológicas capazes de converterem-se em forças
reais. Afirma que o tabu é expresso na composição de forças dirigidas a manter um
conteúdo interditado. Essa interdição injeta um conteúdo oculto na mensagem que assume
a transformação do não dito em proibido. Preocupado com a falta de reflexão sobre essa
questão, Adorno (1995b) trata de apontar possíveis caracterizações do magistério ao longo
de sua existência. Recomenda e faz um exame do passado, encontrando as raízes dos tabus
no magistério. Adorno (1995b) afirma que o menosprezo pelo professor vem de longa data.
Para começar, é bem conhecida entre os educadores a referência do escravo como
professor, na antiguidade. Depois, o frankfurtiano toma como imagem o escrivão, o
professor como carrasco e o monge para nortear suas discussões em torno da aversão ao
magistério. O ponto central da reflexão em torno dos tabus vai se definindo, segundo
Adorno (1995b), em torno das questões disciplinares. Conforme o frankfurtiano, o tabu é
uma representação inconsciente e como tal antecede a reflexão. Quando o tabu é
despertado, ele se expressa por mecanismos tão subjetivos quanto aqueles que introjetaram
as representações históricas do docente. Por isso, a economia psíquica de cada indivíduo
determina o seu retorno. O conhecimento de seu funcionamento permite oportunidades de
reflexão sobre seus sintomas.
Ao privilegiar apenas a instrumentalização da linguagem e dos conteúdos
transmitidos, os professores teriam se esquecido de levar em consideração os elementos
não comunicáveis, não determináveis, não idênticos da prática educativa. Os professores
teriam se esquecido daqueles elementos que tiveram que recalcar de maneira brutal para
tornarem-se supostos indivíduos adultos, esclarecidos, emancipados, autônomos: os
desejos, a infância, a natureza.
190

De acordo com Adorno (1995b), os tabus inconscientes que envolvem o professor


e os mecanismos subjetivos presentes na prática educativa teriam contribuído para esse
esquecimento, para a perpetuação da barbárie no ensino e na educação. Aqui reside um dos
aspectos para se pensar a problemática do mal-estar docente vivenciado pelo professor na
escola, na medida em que o professor se vê impossibilitado de elaborar os elementos
inconscientes que supostamente o afligem.
Quanto às relações tensas estabelecidas no contexto escolar, não se pode
desconsiderar a série de manifestações de caráter afetivo que estão presentes, mas que não
são admitidas no currículo oficial.

O processo civilizatório de que os professores são agentes orienta-se para


um nivelamento. Ele pretende eliminar nos alunos aquela natureza
disforme que retorna como natureza oprimida nas idiossincrasias, nos
maneirismos da linguagem, nos sintomas de estarrecimento, nos
constrangimentos e nas inabilidades dos mestres. Triunfarão aqueles
alunos que percebem no professor aquilo contra o que, de acordo com seu
instinto, se dirige todo o sofrido processo educacional. (ADORNO,
1995b, p. 110)

Nesse contexto, Adorno (1995b) afirma que as escolas são marcadas por uma
hierarquia oficial, segundo rendimentos, capacidades intelectuais, notas e outra hierarquia
não oficial, que permanece latente. Segundo o frankfurtiano, a hierarquia não-oficial se
traduz naquilo que a escola não dá conta, ou seja, é o imprevisto, o desajustamento, a
inadaptação, o incompreensível, o descontínuo na prática pedagógica e que o professor,
muitas vezes, se nega a enfrentar como elementos que causam estranheza e desassossego
em sua prática educativa.
Adorno (1995b) busca fazer com que esses elementos venham à tona afetem o
pensamento para que os indivíduos promovam uma autorreflexão. Numa sociedade
marcada pela lógica instrumental, pelo pensamento reificado, pelo empobrecimento da
experiência na escola, a dimensão comunicativa do ato pedagógico, que poderia trazer à
tona os elementos (inter) ditos na escola, traduzem-se em estereótipos e obstáculos para se
desenvolver a crítica com relação ao mal-estar docente.
Adorno (1995b) anota em vários momentos do texto as desilusões dos alunos que
projetam seus ideais77 na imagem do professor. Posteriormente descobrem, de forma mais

77
Freud, afirmam Laplanche & Pontalis (1998), distingue o “eu ideal” do “ideal de eu” afirmando que o
primeiro corresponde ao eu em posição superlativa e, o segundo, à perfeita concordância com os valores
191

amarga, que não houve correspondência com o modelo idealizado, tanto cognitiva quanto
afetivamente. Portanto, uma forma que os alunos encontram para denunciar a opressão,
bem como os excessos de instrumentalização na educação, evidencia-se no fato de
poderem denunciar as fraquezas e as idiossincrasias não sublimadas dos professores, assim
como as imagens sedimentadas no inconsciente. Por essa via, os educandos denunciam, em
forma de caricatura, por exemplo, as formas de opressão sofridas, revelando ao professor
aquilo que não foi sublimado, mas que foram recalcados em nome do processo civilizador.
Adorno (1995b) procura demonstrar que os conflitos dos mestres vinculados à
sexualidade, à infantilização, ao indeterminado e ao incerto na prática pedagógica, a um
poder que é legitimado pelo discurso oficial, mas negado na prática educacional, são todos
conflitos negados pelas condições psicológicas dos educadores, bem como pela reprodução
das relações materiais cada vez mais instrumentais. Desse modo, o sofrimento, então,
comparece sob a forma de uma impossibilidade de lidar com situações angustiantes, como
os insucessos e fracassos em relação às situações de ensino e aprendizagem, as demandas
dos pais, situações de violência e agressividade na escola, dentre outras já enumeradas
neste trabalho.
Percebe-se, segundo Freud (1997), que o corpo padece, sofre do desejo de
reconhecimento e perfeição idealizados, mas que não pode ser dito; a denúncia vem, então,
sob a forma de sintoma. Essa é a solução encontrada pelo docente para defender-se dos
conflitos, das diferenças, da alteridade, a qual a escola o remete o tempo todo. A
impossibilidade em dar significado, colocar em palavras, falar sobre seu próprio desejo
leva o professor a lançar mão de estratégias para estar fora da sala de aula: uma enorme
tristeza, um grande “mal-estar” afasta-os da função de ensinar. O professor “faz” um
arranjo sintomático para dar conta das adversidades presentes no contexto escolar.
O texto “Tabus acerca do magistério” é fundamental em nosso debate acerca da
temática mal-estar docente na medida em que os tabus que pairam sobre esse ofício e a
dimensão subjetiva que a compreende indicariam que, já em sua gênese, o docente estaria

sociais. O desenvolvimento do eu funda-se no distanciamento do narcisismo primário e gera a vontade


intensa de retorno ao narcisismo. Tal distanciamento é produzido pelo deslocamento da libido para um ideal
de eu, seria o aprazimento pela concretização desse ideal. Importante ressaltar que o que atua sobre o objeto a
título de idealização pode conduzir o sujeito a problemas sérios, decorrentes da projeção do seu ideal sobre o
objeto. O sujeito narcísico pode abdicar do eu em benefício do objeto ou introjetar este, de acordo com uma
forma de identificação: identificação narcísica. Simplificadamente, o “eu ideal” é a referência que guardamos
de nossa infância. É a identificação mais primitiva, é a referência primária. O “ideal de eu” seria uma
reformulação do eu ideal, de uma reorganização no adulto daquele modelo narcísico de infância. É o
investimento nas aspirações da cultura.
192

fadado a esse mal-estar dado a própria função civilizatória que exerce. Desse modo, ao se
desconsiderar a ambiguidade do seu próprio trabalho – face objetiva e outra afetivo-pessoal
– o docente estaria envolvido por um empobrecimento da sua capacidade de pensar e
experienciar o objeto do conhecimento. Possivelmente, uma das formas que pode ser
trilhada no sentido de conceber um estilo de ensinar, no qual a repetição leve à criação,
talvez esteja diretamente sustentada pelos fios que incorporam as relações tecidas na sala
de aula entre professor e aluno, manifestadas através dos conteúdos inconscientes.
Desse modo, o mal-estar docente pode ser tomado, como vimos na argumentação
acima, como sintoma relativo à subjetividade do professor quando propostas idealizadas
não se cumprem, configurando-se em modalidade de enlaçamento sujeito-cultura. A
psicanálise nos ensina que algo do ideal não se ensina ao sujeito78, donde se conclui que a
educação lida com o registro do impossível. Por mais que os professores se esforcem para
transmitir às crianças e adolescentes os valores civilizatórios baseados no cultivo do
conhecimento e das relações cordiais pautados pela autonomia e liberdade do indivíduo
(proposta de uma educação iluminista), algo fracassará sempre. O que resiste à função
educativa é produtor de mal-estar e assola os professores e os alunos de maneira
inesperada. Quer como resposta a um ideal ou como resultado de um conflito
intrapsíquico, um incômodo permeia o campo ensino-aprendizagem e permanece latente na
cultura educativa.
Ao tratar da relação entre professor e aluno, Morgado (2002) traz contribuições
importantes para se compreender um dos elementos que produz o mal-estar. Nessa relação,
o professor é revestido de uma importância definida, de uma influência clara sobre o aluno.
Isso deriva do fato de que os educadores estão investidos da relação primitivamente
dirigida ao pai e, consequentemente, refletirão essa influência sobre a criança. Essa
consideração – chamada de transferência por Freud – manifesta-se, sobretudo, nas
condições em que acontece a aprendizagem, sem considerar este ou aquele conteúdo.
Através da transferência, o indivíduo revive experiências de outros momentos, na relação

78
Notamos que, mesmo com todo esforço dos professores em buscar novas alternativas para o fazer
pedagógico, ainda imperam resquícios de um discurso entrecortado pela ilusão em ideais educativos que
depõem contra o sujeito do desejo. Ao insistir em não abrir mão dessa ilusão de realização “plena”, o
sofrimento se instala. Por isso mesmo, ao não alcançar os objetivos propostos por esse modelo de educação,
resta aos professores o mal-estar, resultado, muitas vezes, da frustração por não conseguirem “controlar”
todos os resultados. Nesse sentido, entendemos que “conseguir dar conta de tudo”, ou melhor, estar no
“controle” das situações pedagógicas, por assim dizer, apresenta-se como condição ideal no contexto
educativo e, quando o docente constata a inviabilidade desse empreendimento, passa a conviver afetado por
uma constante angústia, de modo que, quase inevitavelmente, o mal-estar se instaura em seu ser.
193

com o outro, com quem estabelece vínculos. Assim, um professor pode tornar-se alvo de
interesse porque é objeto de transferência.
Nessa perspectiva, afirma Morgado (2002, p. 31-32), “considerando que a relação
professor-aluno tem como protótipo essas relações originais, procuro demonstrar que o
processo de sedução que nela se instaura também remete a essas relações originais”. Ao
afirmar isso, a autora buscou pensar a questão da sedução pedagógica como uma
atualização da relação originária (pai-mãe-filho) no par professor/aluno. Portanto, “na sala
de aula, o aluno revive esse momento transferindo para o professor todo o amor e toda a
hostilidade dos quais, outrora, teve de abrir mão” (MORGADO, 2002, p. 111). Perceber o
manejo dessa operação permitirá ao professor (re) dimensionar os encontros e
desencontros das relações tecidas com o Outro (aluno), tendo em vista que a ambivalência
advinda da transferência pode suscitar no aluno, de forma consciente ou não, sentimentos
de amor ou ódio, prazer e desprazer, encanto e desencanto, desprezo e admiração pelo
professor, a depender dessas experiências originais vivenciadas na infância com seus pais.
Quanto à relação transferencial que se estabelece entre professor e aluno, cabe ao
primeiro mediar essa situação, assumindo o seu lugar nesse espaço, tendo a dimensão dos
afetos circulados no ambiente transferencial da aula. O que não quer dizer que se deva
resistir à existência desse fenômeno. Sendo a transferência um elemento presente na
relação pedagógica, o professor não precisaria sustentar esse saber suposto?
A transferência é um artifício, pois se refere a um objeto que reflete outro, postula
Morgado (2002). O professor, ciente desse processo, ao lidar com os afetos do aluno,
saberá conduzir tanto os amorosos quantos os hostis, para endereçá-los ao conhecimento.
Segundo a autora, a transferência se faz importante para que se possam compreender os
lugares assumidos pelos sujeitos nessa relação que envolve uma implicação de si e do
Outro.
Nesse sentido, a autora sustenta que a escuta é um princípio constitutivo desse
laço que se estabelece entre professor e aluno. Para Morgado (2002), escutar o fenômeno
da transferência pode tornar-se um ponto relevante para compreender o que se passa nessa
relação de ensinar e de aprender, pois apesar das descontinuidades, os dois processos
gravitam em torno de dois sujeitos, professor e aluno, que trazem à cena da aula conteúdos
reprimidos, não-elaborados.
A implicação do conceito de transferência no contexto da relação pedagógica faz-
se essencial na articulação entre psicanálise e educação, na medida em que esse fenômeno
194

pode levar à compreensão dos aspectos geradores do mal-estar docente. Entretanto, o


professor, ao ver-se impossibilitado de agir contratransferencialmente, passa a conviver
afetado por uma constante angústia79, de modo que, quase inevitavelmente, o mal-estar se
instaura em seu ser. Portanto, estar atento aos acontecimentos da sala de aula, às falas que
emergem, aos afetos instaurados e, principalmente, atentar em como o professor se coloca
nesse lugar e nessa posição diante do aluno, é uma questão fundante que poderá corroborar
na compreensão do mal-estar enquanto condição manifesta na cena de aula contemporânea.
Desse modo, colocamos os seguintes questionamentos: o que é que o indivíduo
não consegue colocar em palavras, mas simboliza por meio de um sintoma? Como assumir
posturas diferentes, condizentes com a realidade e com as suas próprias experiências num
sistema regulamentado e dirigido? São questionamentos que, a nosso ver, remetem o
docente a se questionar sobre seu desejo, a procurar o sentido de suas escolhas, a implicar-
se no cotidiano escolar até mesmo por meio de seus sintomas e formações inconscientes,
pois as queixas, as fantasias, o sofrimento, o gozo estão sempre se referindo ao mal-estar
na cultura.
Cada qual percebe e reage a essas intercorrências da escola e às diferentes
expectativas de forma diferenciada, segundo suas próprias experiências e vivências
pessoais e profissionais. Para alguns, há uma expectativa ou reivindicação de um gozo sem
falhas, donde provém a insatisfação, pois sempre algo irá deixar a desejar. Professores com
este perfil vão se lançar numa busca desenfreada de tentar preencher esse vazio80 de algo
que dê conta de uma felicidade esperada. Dito de outro modo, o ambiente escolar, marcado
pela racionalidade instrumental, em que não há escuta muito menos espaço para os desejos,
os anseios do professor oferecem-lhe apenas o cumprimento dos objetivos do mercado de
trabalho: “formar” rapidamente os alunos para atuar/executar funções, funções estas muitas
vezes desvinculadas do aprender a pensar.
Chauí, em “O que é ser educador hoje? Da arte à ciência: a morte do educador”,
tratando do processo de instrumentalização do ensino e da formação, afirma que o mundo

79
No texto “Inibição, sintoma e angústia”, de 1926, Freud fala da angústia do real. Afirma que a experiência
da angústia é algo de ordem não familiar, da ordem do recalque, um estado de estranheza. Vai dizer que a
angústia é um sentimento moderno, transforma-se em um problema existencial pela filosofia e depois pela
psicanálise como marca da condição moderna. “Na angústia do real, afirma Freud, não consigo me antecipar
aos possíveis perigos que atingem o eu. Temos uma experiência catastrófica, me remetendo a uma condição
de desamparo inicial”.
80
Cf. o tópico l do texto “O mal-estar na civilização”, de Sigmund Freud, onde o autor discorre sobre o
“sentimento oceânico”. Trata-se de um sentimento que é precedido pelo desamparo e que será buscado
eternamente pelo indivíduo numa tentativa de reparação de algo perdido.
195

da técnica e da tecnologia impossibilita os indivíduos de realizarem experiências com a


cultura para além dos modelos previamente estabelecidos pela performance da ciência e do
mercado. Chauí (1982) aborda o atrelamento da educação contemporânea às instâncias
dominadoras da razão instrumental.
Planejada em estreita consonância com o mercado de trabalho, a educação na
atualidade adequa-se às premissas do capitalismo tardio que dita as regras para a sociedade
e, enquanto tal, nutre-se, como observado anteriormente, da mesma racionalidade que a ele
é específica, a racionalidade instrumental. Tal perspectiva, comenta Chauí (1982),
explicitou-se na forma de um processo que privilegiou uma determinada concepção de
educação assentada na cientificização do processo didático-pedagógico, na organização
burocrático-administrativa das unidades de ensino e na centralização do processo
decisório.
É necessário esclarecer que tal cenário nada mais é que o reflexo do desejo da
possibilidade de racionalizar a vida social, centrando-a numa perspectiva iluminista,
“emancipadora”, assentada no desenvolvimento da ciência e da técnica, viabilizadoras do
domínio do homem sobre a natureza e sobre si próprio. Nesse processo de racionalização
podemos notar, segundo Chauí (1982, p; 57-58),

[...] a aliança intrínseca entre uma certa concepção de ciência, da


tecnologia, da profissionalização e do progresso que não só indicam a
morte da pedagogia como arte de ensinar, mas revelam também o novo
papel conferido à escola: além de reprodutora de ideologia e das relações
de classe, está destinada a criar em pouco tempo, a baixo custo e em
baixo nível, um exército alfabetizado e letrado de reserva.

Para compreendermos o modo como o ensino se transformou para atender as


exigências da racionalidade instrumental, causando o empobrecimento da subjetividade e
das relações, manipulando e conformando os indivíduos à maquinaria, é necessário refletir
sobre a cultura contemporânea, que impossibilita pensar o ensino e a aprendizagem como
uma arte e rememoração. Com base no projeto iluminista81, passou-se a acreditar que a
mesma racionalidade, de forma semelhante, poderia dar conta das muitas contradições
ainda existentes nas sociedades contemporâneas, entre elas, as que permeiam o universo
educacional.

81
Referimo-nos ao projeto moderno instaurado com o movimento político-filosófico denominado Iluminismo
ou Século das Luzes (século XVIII), em que a valorização da razão, da ciência, o método experimental como
condição para aquisição do conhecimento seria o elemento primordial para a emancipação individual.
196

Explicitou-se, então, segundo Chauí (1982), no campo das instituições educativas,


a busca da eficiência e da eficácia, as quais passaram a ser perseguidas sem maiores
considerações quanto à natureza do trabalho escolar, num processo em que valores
eminentemente educacionais foram substituídos por outros de caráter econômico:
maximização da produção (formar mais alunos em menos tempo) e minimização das
despesas (menores gastos). Assim, o processo educativo tornou-se, então, um mero
adaptar-se à realidade imediata e à esfera do consumo acoplada ao processo de produção.
Não cabe mais à escola formar os educandos para um vir a ser, mas prepará-los
para resolver por conta própria os problemas da sociedade em que vivem: problemas em
geral ligados às demandas do sistema econômico. Uma vez adaptada ao novo contexto
tecnológico, a educação teve que rever seus fins. Não mais a formação do educando no
sentido da Bildung82, mas, principalmente, a formação de quadros necessários à produção e
ao consumo de bens e serviços com tal neutralidade ideológica e sem qualquer visão crítica
da realidade.
Nesse contexto, podemos afirmar que a atividade docente, assim como toda a
atividade do indivíduo moderno, transformou-se em mera técnica ou aplicação de
conhecimentos técnicos produzidos pelas próprias ciências da educação, atendendo, de
modo eficiente e eficaz, à necessidade social de demanda de qualificação profissional e aos
padrões de consumo. Mera atividade repetidora, o trabalho pedagógico tornou-se incapaz
de traduzir-se em experiências narráveis, contribuindo para reforçar o mal-estar docente.
A prática pedagógica, inserida nesse contexto principalmente pelo
desenvolvimento das tecnologias da comunicação e informação, passa a ser reconhecida
como uma atividade prática profissional, que exige dos indivíduos vários conhecimentos e
habilidades como requisitos básicos para sua formação. As atividades práticas assim
entendidas priorizam o “saber fazer” em detrimento do “por que fazer”, com isso
ignorando o que fazemos e seu sentido, tornando nosso trabalho técnico e mecânico, o que
empobrece nossa reflexão.
Das concepções adornianas, destacam-se os elementos que seriam necessários à
construção de qualquer pedagogia comprometida com a superação dos problemas
colocados pelo confronto entre o ideal de esclarecimento e as condições atuais em torno da
educação e do mal-estar de modo mais específico. O tempo necessário para a reflexão, a
82
Para Pucci (2005, p. 25), “a capacidade de reflexão, o espírito crítico, a faculdade de julgar, a competência
em integrar os múltiplos saberes na unidade de um gosto, estilo, graça, juízo e senso de valor continuam
sendo as virtudes da boa formação”.
197

interconexão entre os processos escolares e não-escolares, a experiência com o próprio


pensamento, a tensão dialética entre teoria e prática seriam elementos essenciais para uma
experiência com a cultura e com o pensamento.
Para Adorno (1996), o esclarecimento seria um dos caminhos para se escapar da
frieza generalizada e das condições objetivas que produziram Auschwitz. Trata-se do
esclarecimento de como as pessoas se tornaram o que são, quais foram os motivos que
levaram à barbárie. Por isso, Adorno investe na formação do sujeito como condição
necessária para entender seu presente. Por meio do estudo dos sujeitos e da sociedade é que
se pode “impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se
desperta uma consciência geral acerca desse mecanismo” (ADORNO, 1995a, p. 121).
Resistência e inconformismo são uma das maneiras possíveis de manifestação de
uma individualidade que só pode ser pensada em sua negatividade, concebe Adorno
(2001). Já na abertura de Minima Moralia, o frankfurtiano faz referência a um dos
momentos mais desconcertantes de toda a obra, quando escreve:

[...] Na era da sua decadência, a experiência que o indivíduo tem de si


mesmo e do que lhe acontece contribui, mais uma vez, para um
conhecimento que simplesmente lhe estava oculto, na altura em que,
como categoria dominante, se exibia de um modo positivo e sem fissuras.
Frente à unanimidade totalitária, que proclama como fito a eliminação da
diferença, é possível que até algo da força social libertadora se tenha
concentrado na esfera do individual. Nela se demora a teoria crítica, mas
não com má consciência. (ADORNO, 2001, p. 10)

A importância do conceito de resistência em Adorno está ligada muito mais à


decadência do indivíduo na sociedade administrada do que à sua recuperação. Desse modo,
segundo Zuin (1999), a resistência do indivíduo em Adorno, assim como sua dialética, é
negativa. Sua emergência não está na proteção de uma individualidade falsamente
existente, mas na renúncia à integração total da mônada pela falsa dinâmica entre
individuação e socialização. A resistência em Adorno é o resultado depurado da exigência
de se manter a tensão entre pensamento e realidade.
Assim, pensar na atualidade a relação existente entre anulação da individualidade
e as possibilidades de resistência do indivíduo à totalidade administrada não significa
procurar subterfúgios teóricos para salvar o indivíduo, muito menos formas astuciosas para
sua condenação. Implica, sim, em refletir sobre aquilo que ele um dia já representou.
198

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reflexão contemporânea é marcada por algumas análises no campo educacional.


Como que baseados em uma proposta iluminista, muitos teóricos e críticos da educação
sempre visaram uma transformação capaz de dar conta do contexto em que a educação
estaria mergulhada, oferecendo soluções a velhos problemas que sempre se repetem com o
passar dos anos.
Diante do exposto, o bem-estar, e, em última instância, a felicidade, é foco
contínuo de atenção. Nunca se preocupou tanto com a ascensão a tais estados, nunca se
demandou tanto, e com tamanha naturalidade e legitimidade, o direito e, mais
recentemente, o dever de ser e estar feliz. Ao mal-estar, em contrapartida, geralmente são
reservadas as denominações patológicas e disfuncionais que assumem caráter de
descontinuidade e ruptura naquilo que deveria ser “pleno”. Para essas irrupções, busca-se
“cura” ou conserto definitivo. Na atualidade, o que não faltam são opções e promessas de
alívio.
Como quem escolhe produtos nas prateleiras dos supermercados, anseia-se,
similarmente, encontrar, na forma de objetos de consumo, soluções para as agruras da vida.
A quantidade e diversidade de ofertas impressionam. Promessas impressas em coloridas
capas de revistas, em sugestivas simulações imagéticas, em substâncias psicotrópicas,
legalizadas ou não, publicações científicas, bens de consumo e suas propagandas,
psicofármacos, espaços religiosos invadem massivamente o cotidiano dos indivíduos
ávidos pelo consumo do bem-estar. As psicoterapias passam a ser incorporadas nesse
promissor mercado diversificado para todos os gostos, variedade de escolha, para todos os
tipos de consumidor. Encontram-se tanto soluções mais simples quanto soluções mais
elaboradas que propõem, mesmo que ilusoriamente, a possibilidade de uma solução
definitiva para o mal-estar vivenciado na contemporaneidade.
Vende-se bem-estar, vendem-se promessas de bem-estar, vendem-se caminhos
para o bem-estar. Representantes da área médica, do campo espiritual, místico ou religioso,
do campo das psicoterapias83 – o campo educacional também não poderia estar fora dessa

83
Embora não conte mais com o entusiasmo de outrora, não se pode negar a presença, na atualidade, da
psicanálise no rol dos dispositivos buscados para intervenção em situações caracterizadas pelo mal-estar. A
invenção freudiana, como se disse, é situada no diversificado cenário atual como mais um dos tão valorizados
produtos de bem-estar. Parece ter sido esse o lugar reservado à mesma pela cultura consumista atual. A
responsabilidade por tal situação pode ser atribuída, em parte, ao próprio curso assumido pela história da
Psicanálise, já que, em seus primórdios, suas técnicas e elaborações eram dirigidas fundamentalmente a uma
199

discussão, muitas vezes (re) produzindo o discurso médico-comportamental - integram o


rol das opções disponíveis aos indivíduos que anseiam pela solução definitiva para os
tropeços e descompassos que insistem em se manifestar.
Na atualidade de nossas sociedades ocidentais, é a medicina um dos caminhos
privilegiados de acesso a indicações relacionadas ao sofrimento e ao bem-estar. A
proposição médica é clara: bem-estar é uma questão de saúde, logo, um problema
concernente ao saber e às técnicas dispostas pela medicina. Disso decorre a concepção de
que os mal-estares caracterizam-se necessariamente como quadros psicopatológicos a
serem diagnosticados e “curados” através de terapêuticas químicas ou reeducativas
específicas.
As últimas concepções freudianas sobre o mal-estar, como exemplo a tese
defendida em “O mal-estar na civilização”, da oposição “pulsão sexual x restrição imposta
pela civilização”, muito pouco têm a oferecer ao abundante mercado de produtos e
promessas de bem-estar instantâneo apregoados pelos discursos mercadológicos. E, se
levarmos em conta a radicalidade desses postulados finais, nem mesmo as promessas de
longo prazo deverão ser consideradas. Há um claro descompasso entre as demandas
direcionadas a tais produtos e o que, de fato, a psicanálise freudiana pode oferecer.
Apesar de não ter se voltado especialmente para a Educação, Freud fez
observações relevantes para o tema. Houve, certamente, uma preocupação quanto ao
assunto, havendo um destaque para uma reflexão do mestre da psicanálise: “Educar, ao
lado de governar e psicanalisar, é uma profissão impossível”. É preciso levar em
consideração que essa afirmação não pretende anular a importância desses atos, mas
apontar cuidados e lembrar ao educador, em particular, que sua área é limitada e seu
instrumento requer cautela. Ao afirmar a missão da Educação como impossível isso não
significaria algo irrealizável, mas sim o que não poderia ser integralmente alcançado.
A Psicanálise não seria fundamento para a Pedagogia por terem exatamente
funções opostas: a primeira quer entender a (des) organização, trabalhando com a origem;
a segunda, quer controlar, orientar, organizar. Para Freud, uma função da Educação seria a
sublimação que se constitui na canalização da energia de uma pulsão para um objetivo não

terapêutica que, em última instância, visava o restabelecimento de um “bem-estar perdido”. É certo que o
viés terapêutico nunca foi totalmente abolido, portanto, a questão do bem-estar nunca deixou de ocupar o
horizonte da teoria freudiana; no entanto, o estatuto concedido a esse bem-estar no início das teorizações é
radicalmente distinto daquele do final, observa Lajonquière (2010).
200

sexual. Seriam atividades como “produção intelectual, científica, artística e todas as que
promovem um aumento da qualidade de vida dos homens” (KUPFER, 2005, p. 42).
Diante do assinalado, privilegiamos, num primeiro momento deste trabalho, a
investigação sobre o mal-estar docente, refletindo sobre como o mesmo vem sendo
estudado no campo educativo contemporâneo. Apresentamos uma síntese da produção
sobre essa problemática no intuito de compreendermos como as pesquisas e estudos aqui
apontados remetem a essa discussão, o que eles entendem por mal-estar docente e qual o
tratamento eles oferecem a essa discussão.
O estudo do mal-estar docente – encarado como um “fenômeno” pelos
pesquisadores que se dedicam a essa temática - demonstra que há manifestações expressas
de distúrbios, desvios no comportamento e doenças dos professores em consequência de
fatores externos diversos. Assim, de acordo com esses fatores, descritos no corpo do
trabalho, procuramos levantar quais deles eram percebidos como geradores do mal-estar na
escola, sendo as condições materiais e recursos humanos os elementos mais apontados
como detonadores do mal-estar entre os professores em geral.
Vários fatores geradores do mal-estar na escola foram pontuados no decorrer
desta pesquisa e requerem observações: 1. a educação desvalorizada pela sociedade e, ao
mesmo tempo, condição necessária para seu desenvolvimento (Kobori, 2010); 2. a falta de
investimentos do governo, sob a forma de planejamentos de ações eficazes, no sentido de
promover aperfeiçoamento dos professores e determinação de metas compatíveis com os
recursos (Gonçalves, 2008 e Prioste, 2006); 3. a falta de colaboração efetiva dos
responsáveis dos alunos (Fonseca, 2009 e Weber, 2009). Em diversos momentos não se
percebe a família como parceira da escola no trabalho do professor; 4. as avaliações
externas estipuladas em determinadas fases de escolaridade, imputando aos professores a
culpa pelo insucesso dos resultados obtidos sem considerar realidades, diferenças e a
construção do conhecimento (Rodrigues, 2011); 5. a degradação da autoimagem do
professor, cada vez mais acentuada, explorada pela mídia, através de charges, propagandas
ofensivas, programas humorísticos que reforçam no grande público a percepção de uma
profissão desacreditada, desvalorizada e incompetente (Sampaio, 2008).
Há também o caso mais evidente nas pesquisas, em que, além de causar
afastamento da sala de aula, permanece determinando o desânimo e o mal-estar: a questão
da formação docente! (Esteves, 1999; Jesus, 1998; Kobori, 2010; Rodrigues, 2011;
Sampaio, 2008; Weber, 2009; Gonçalves, 2008; Prioste, 2006; Fonseca, 2009)
201

Nesse sentido, ao analisar a formação de professores compreende-se o predomínio


da razão instrumental que habilita os docentes a executar modelos pedagógicos com o
objetivo de atingir a eficácia do ensino. O pensamento, a reflexão, a própria razão são
apartados das finalidades educacionais. A formação docente destina-se a “saber fazer”, ao
invés de “pensar sobre o fazer”. Não se trata de questionar, refletir, pensar a formação, mas
de aperfeiçoá-la através de técnicas. Para isso, organizam-se cursos de aperfeiçoamento e
reciclagem que têm como finalidade a introdução de novas metodologias no trabalho
docente.
Perde-se a possibilidade da formação de uma consciência política; em seu lugar
tem-se “[...] a consciência tecnológica, uma consciência que reduz a si mesmo e aos outros,
a objetos técnicos. Não precisamos dizer que é o grau mais avançado da reificação”
(CROCHIK, 1990, p. 153). Falta, portanto, experiência na formação dos professores,
entendida como “um processo autorreflexivo, em que a relação com o objeto forma a
mediação pela qual se forma o sujeito em sua ‘objetividade’” (MAAR, 2003, p. 24).
Assim, o processo de reificação, impede a experiência formativa. Maar (2003) afirma que a
semiformação84 seria a incapacidade de fazer experiências.
Durante seu processo de formação, os docentes são ensinados a detectar em seus
alunos e em suas famílias as causas da não aprendizagem ou da não adaptação do aluno às
normas escolares. Além disso, consideram que muitos dos problemas políticos seriam
resolvidos se profissionais de várias especialidades – psicólogos, assistentes sociais,
médicos, psiquiatras – estivessem na escola controlando as adversidades constantes, como
se elas não tivessem relação com o contexto educacional. A inaptidão à experiência,
promovida, dentre outros fatores, por cursos que informam, ao invés de formar, produz
uma consciência coisificada na qual há a conversão de uma relação humana em coisa,
alterando a experiência. A predominância da técnica na formação, segundo Maar (2003),
promove o desenvolvimento da consciência mutilada. Combater a técnica seria condição
para a não repetição da barbárie. Contudo, isso é o mesmo que combater o espírito atual do
mundo; daí a dificuldade de promover a formação:

84
A semiformação é o travamento da experiência; o pensamento reflexivo é empobrecido, ou melhor, negado
no contexto escolar; o esclarecimento, como momento subjetivo do conhecimento, não ocorre. O
imediatismo e a fragmentação das vivências é a norma atual. A inaptidão à experiência, promovida, dentre
outros fatores, por pedagogias que apenas informam ao invés de formar, produz uma consciência coisificada
na qual há a conversão de uma relação humana em coisa, alterando a experiência. A mutilação da consciência
oculta a realidade e propicia a violência.
202

Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si


mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a
extensão do braço dos homens. Os meios – e a técnica é um conceito de
meios dirigidos à autoconservação da espécie humana – são fetichizados,
porque os fins – uma vida humana digna – encontram-se encobertos e
desconectados da consciência das pessoas. (ADORNO, 2003, p. 132-133)

Nesse sentido, duas abordagens são defendidas nos trabalhos analisados para se
solucionar o mal-estar na escola: uma preventiva, investindo-se na formação inicial do
professorado, e outra curativa, investindo-se na formação contínua (em serviço).
Assim, diante do debate sobre o mal-estar docente na escola, pareceria até
desnecessário questionar ou debater a respeito de quaisquer aspectos pedagógicos,
psicológicos ou mesmo sociais relacionados às duas abordagens acima assinaladas, uma
vez que elas, de acordo com os pesquisadores que discutem a temática do mal-estar
docente, de forma simples, resolveriam os problemas enfrentados pelo professor85 em sua
prática cotidiana.
A despeito de supostas evidências, é justamente isto que nos interessa questionar,
pois, ao pensar o campo escolar marcado por essa dupla intervenção – preventiva e
curativa – estaremos condenando o professor a experimentar um vazio de significados em
relação ao lugar que deveria ser ocupado por um sujeito, em posição de educador. Daí
afirmarmos que o debate sobre o mal-estar docente- de acordo com as pesquisas analisadas
– é limitador do pensamento, pois o fato de vivermos em uma cultura que demanda cada
vez mais por soluções rápidas e instrumentais para qualquer expressão do nosso mal-estar
certamente dificulta qualquer possibilidade de questionamento e reflexão sobre essa
problemática na escola.
Contudo, se acreditamos que os tropeços nas aprendizagens ou a “falta de controle
nos comportamentos” são manifestações de uma patologia – social, individual e orgânica –
que afeta o “bom” funcionamento da escola, tentamos justamente evitar o reconhecimento
(inevitável) do quanto estamos implicados nessa situação. Ou ainda, quando apostamos
que a organização escolar através dos mecanismos de coping, resiliência, terapias grupais,
dentre outros, poderá trazer, além de um “ansiado alívio” do nosso mal-estar, uma resposta
definitiva às nossas angústias e frustrações, tentamos mais uma vez escapar ao confronto

85
Em relação ao professor, podemos observar uma “evitação” de confrontos, escamoteando, por exemplo, as
discussões que marcam os indivíduos e suas diferenças no interior das escolas.
203

(inescapável) com essa impossibilidade – estrutural e não contingente – dos pressupostos


educativos não corresponderem totalmente aos nossos ideais.
Notamos que, mesmo com todo esforço dos pesquisadores em buscar “novas
alternativas” para o fazer pedagógico, ainda imperam resquícios de um discurso
entrecortado pela ilusão em ideais educativos que depõem contra o sujeito do desejo. Ao
insistir em não abrir mão dessa ilusão de “realização plena”, o sofrimento se instala. Por
isso mesmo, ao não alcançar os objetivos propostos por esse modelo de educação, resta aos
professores o mal-estar, muitas vezes resultado da frustração por não conseguir “controlar”
todos os resultados.
Assim, percebemos que, no contexto educacional, não suprimimos a demanda do
mal-estar docente simplesmente instituindo métodos e técnicas eficazes, construindo
medidas preventivas, construindo condições para o bem-estar, terapias coletivas,
estratégias defensivas ou projetando ideais que acenam com garantias de alcançar os
objetivos educativos plenamente, pois o mal-estar é inerente à constituição humana.
Por outro lado, é possível lidar com o mal-estar do professor numa perspectiva da
singularidade, fidedigna à constituição dos sujeitos, (re) significando, por meio da crítica, o
que acontece na escola e fora dela. Foi nesse momento que nos fundamentamos nos
escritos de Adorno e Benjamin no intuito de pensar a experiência (Erfahrung) como
elemento fundamental para a formação e para a educação, sem a qual ambas se dão de
modo precário. Se refletirmos, sobretudo, na experiência de ser professor na atualidade ou
de ser aluno, na experiência de estar inserido no contexto escolar, há o predomínio do
empobrecimento da experiência na escola, marcada pela, “fragmentação”, “isolamento”. A
educação acaba danificada e assume um papel afirmativo, no sentido de que passa a agir
para a reificação da ordem vigente nas subjetividades dos sujeitos que a ela cabem (de)
formar.
Outra batalha importante da educação é combater o processo semiformativo que
ocorre em larga escala, sucumbindo as possibilidades de emancipação dos indivíduos. A
semiformação, em Adorno, é um processo de anulação das capacidades autônomas do
indivíduo, utilizando esse vácuo subjetivo, para o controle da massa, enquanto objeto de
sua derivação coletiva: o homem à mercê de sua própria constituição social. Em última
instância, a semiformação não é um passo para a formação, ao contrário, é o seu principal
inimigo. A semiformação – o semi-saber – invade e destrói a possibilidade de realizar
experiências formativas como um processo emancipador e contínuo. Em seu lugar
204

promove vivências aceleradas, fragmentadas, nas quais a imediaticidade deforma a


capacidade de pensar, entender e sentir (PUCCI, 1997).
O processo semiformativo, como dissemos, acarreta problemas diversos, mas,
sobretudo, no campo educacional, a inaptidão dos indivíduos à experiência é uma das faces
mais evidentes. A deformação causada nas consciências pela semiformação é um campo
profícuo para que se instaure um campo de dominação subjetiva que rompe com a
autonomia. Assim, a educação guia-se por princípios contrários aos que deveriam almejar:
ao invés da resistência à barbárie e da formação de um processo autônomo e de resistência,
a escola, rotineiramente, impede o exercício do pensamento crítico.
De acordo com Adorno (1996), o processo educativo deve oferecer
primeiramente, aos sujeitos, as condições necessárias para que estes se adaptem ao mundo;
entretanto, restringir apenas a produção de well adjusted people numa sociedade desigual,
seria destituir a educação de seu verdadeiro significado para torná-la um processo
mecânico e alienador. A construção do processo adaptativo do indivíduo ao mundo deve
dar-se de tal forma que permita ao mesmo constituir o seu “eu social” sem que tal processo
anule ou se sobreponha a sua identidade individual.
A educação, ao exercer o papel de produzir indivíduos adaptados, domesticados
para o mercado de trabalho, sem intermediar a relação entre o sujeito e os objetos culturais,
perde seu objetivo, a saber, desenvolver as potencialidades criativas dos indivíduos e
munir-lhes dos instrumentos suficientes para que eles assumam a condição de autônomos,
como salienta Adorno (1995, p. 124-125): “O único poder efetivo contra o princípio de
Auschwitz seria a autonomia, para usar a expressão Kantiana; o poder para a reflexão, a
autodeterminação, a não-participação”.
Para a possível concretização dos objetivos definidos à educação, julgamos
necessária a constatação dos mecanismos sociais que acabam por configurar hoje um
cenário de processos semiformativos, que fabricam “novas subjetividades” – ou novas
formas de dominação e instrumentalização do pensamento, nas palavras de Adorno – de tal
maneira que a experiência formativa não encontra no indivíduo as condições necessárias
para se desenvolver. A experiência a qual almejamos interage com o sujeito pela memória,
pela história, pela reestruturação de si e é colocada a ele frente às novas experiências. A
experiência não é uma relação vertical de um sobre o outro, mas sim a construção-
destruição-reconstrução do sujeito e do objeto, que se conectam mutuamente e dali
emergem renovadas e permitem a consolidação da experiência.
205

Partindo de uma análise psíquica, é notório que, além das instâncias explícitas na
escola, que agem contrariamente à experiência formativa, as relações pedagógicas
carregam nuances ideologicamente arquitetadas na imposição de mecanismos psíquicos
que vão frisar os elementos mais arcaicos, como a repressão do medo, a severidade e a dor.
Nesse sentido, outros apontamentos significativos para uma reflexão do processo
pedagógico mostram como a disciplina e a virilidade, sobretudo o desenvolvimento da
capacidade do convívio com a dor e o autoritarismo, engendram nos atores educacionais
componentes sádicos que, em um ambiente social massificado, constituem um cenário
profícuo para aquilo que foi Auschwitz. A força motriz para romper com a frieza racional,
que é produto desse modelo de educação, está em tornar os indivíduos submetidos a esse
modelo cientes desse nefasto processo.
Pela autorreflexão crítica sobre as consequências do passado sobre o presente, das
atrocidades cometidas em nome do progresso e da ciência instrumental, devemos construir
meios que possibilitem a resistência à barbárie que ainda persiste. Seria, portanto, um apelo
ao não-elaborado, ao não-reparado que ainda podem nos tocar, nos acontecer, nos passar,
mostrando-nos os contrapontos entre o sensível e o irracional e os limites que impedem a
formação do pensamento crítico.
Adorno (1996) sustenta a tese de que os indivíduos devem lutar pela busca da
emancipação, objetivando uma educação que tem por finalidade a contradição e a
resistência. Em Adorno (1996) e Benjamin (1994a e 1994b) experiência é um conceito que
não poderia se reportar ao sentido que usualmente lhe é atribuída pelas ciências empíricas,
pois seu atributo pressupõe “propriamente um nível qualificado de reflexão” (ADORNO,
1996, p, 150).
A partir das considerações tecidas pelos autores que trabalham com a temática
mal-estar docente, entendemo-lo como um traço do ser professor, como um elemento que
está no entrecruzamento do desejo de ensinar, educar, exercer a docência e as condições
objetivas e subjetivas encontradas e mobilizadas nesse exercício, tendo a experiência como
elemento-chave desse processo. É necessário, então, que os professores tomem contato
com sua dor, com a finitude, com a incerteza que a angústia de não saber tudo ou nada
saber a respeito de si mesmos provoca.
Em Adorno (1996) a experiência não se colocaria ao sujeito, mas é o indivíduo
que determina aquilo como uma suposta experiência. Adorno (1996) está chamando a
atenção para os elementos incomunicáveis, indeterminados, não programados na relação
206

pedagógica, elementos esses recalcados de maneira violenta e que poderiam gerar o mal-
estar no professor por não ter acesso consciente aos aspectos que o afligem e que são
fundantes em sua formação. Aqui, o texto “Tabus acerca do magistério” foi de
fundamental importância para que essa reflexão fosse tecida. Nesse sentido, a educação
teria por objetivo desmascarar as condições e os condicionamentos dos indivíduos e da
sociedade levando-os a terem ciência de seus próprios mecanismos, de suas limitações,
bem como de suas potencialidades.
A figura do professor é peça central nesse processo e também ele deve fazer sua
autocrítica: é necessário que reconheça os tabus que permeiam sua imagem e se impõem
como preconceitos psicológicos e sociais, para assim poder combatê-los e elaborá-los. De
uma perspectiva dialética, a formação cultural em Adorno (1996) está inserida no
desenvolvimento histórico do homem, não apenas como reflexo das condições existentes,
mas como possibilidade de transformação destas.
Em Adorno (1996) não há um modelo de educação. Desse ponto de vista, a
educação, no entender do filósofo, deveria ser orientada pelo não esquecimento de que
alguma coisa terrível aconteceu e pode voltar a acontecer se não for tratada como um
problema no presente. Essa seria uma das funções da educação, ou seja, relembrar o
passado86 e investir na formação e na elaboração do pensamento do indivíduo no presente.

86
A partir do acima exposto, podemos dizer que o mal-estar do professor aparece identificado com os limites
da própria atividade profissional. A realidade que aqui queremos enfatizar precisa levar em conta o passado
mistificado que é despertado nas representações a respeito da escola e do professor com relação ao seu mal-
estar. O importante é retirar da prática docente todas as medidas que agem sobre os alunos como
representações de um passado que não merece ser repetido. Por outro lado, não há como conter os efeitos de
tais representações expondo diretamente os alunos à história acumulada da profissão, como se fosse possível
propor um tratamento de elaboração analítica em sala de aula. De início, basta saber que qualquer tentativa
de fugir do problema salienta ainda mais o conteúdo interditado e que a saída possível está no
desenvolvimento da sensibilidade do professor para com as imagens que pode despertar.Para Adorno
(1995b), a comunicação que envolve a relação pedagógica não teria tornado ao menos pré-consciente as
representações psicológicas, sedimentadas no inconsciente, a respeito da imagem do professor. Ao invés
disso, essa comunicação ligada à dimensão científica da atividade educativa teria contribuído para a
reprodução dessas imagens do professor, acumuladas na história que, enquanto sobras inconscientes,
continuariam não só agindo no que diz respeito à disseminação dessa figura do educador, mas também na
própria relação entre educador e educando. Todas as imagens construídas sobre o professor ao longo da
história – o professor como carrasco, como autoritário, do castrador - estariam, por assim dizer, presentes na
relação pedagógica, mas não seriam rememoradas pela comunicação e nem poderiam ser comunicadas
integralmente pela linguagem que envolve a relação. Ao invés disso, essas estereotipias teriam se convertido
em ódio e ressentimento, devolvidos ao educador enquanto rancor contra tal autoridade, a qual exerceria uma
forma de controle nessa relação de poder que envolve educador e educando. Adorno é convidado a explicar
como a imagem docente se apropria do poder de punir e dela não mais consegue se afastar. Adorno retorna
para esclarecer que a emancipação dos indivíduos precisa ser conjugada com uma reflexão sobre as suas
práticas, sobre as representações que compõem o contexto no qual estão inseridos. Nesse sentido, a educação
precisa elaborar o passado, a fim de que esclareça o presente. A educação precisa estar consciente das
energias de que se alimenta. Os professores e os alunos precisam reconciliar-se com o seu passado,
207

A análise adorniana centra-se no como evitar que se repita o horror pelo não esquecimento
e esclarecimento de como a barbárie foi e pode ser ruim para a civilização.
A experiência coloca-se em oposição à consciência reificada, que repete
incessantemente a mesmice, incapaz, portanto, de relacionar-se com o diferente e limitada
à adaptação ao imediatamente dado. No capítulo quatro desta tese, quando tratamos do
tema da experiência em Benjamin, nosso objetivo foi pensar o quanto a escola parece
esvaziada de experiência, passando a ter uma nova configuração: sua primazia é o instante,
a pressa, o agir instrumental, a excitação. Não mais o professor, o aluno, os agentes
educativos são protagonistas da narração, mas a propaganda, o comércio.
Em oposição, Benjamin nos oferece uma percepção diferente sobre o conceito de
experiência. Para o filósofo, a experiência não é fruto de qualquer processo intencional,
direcionado, técnico. Não é a acumulação processual. A experiência não pode ser
produzida, dominada, racionalizada por qualquer plano ou ciência. Ela é o devir. O
conceito de experiência em Benjamin é Erfahrung, explica Gagnebin (1994), o que
expressa algo que se desenvolve no tempo e liga várias gerações, em oposição ao tempo do
trabalho no capitalismo, deslocado e entrecortado, ou seja, trata da tradição que pode ser
mantida para a formação dos indivíduos.
De qualquer modo, mesmo considerando a escola como um espaço que
constantemente “nega” a experiência, apostamos que, a partir das relações estabelecidas
entre experiência, memória, história, narração e fazer pedagógico, a experiência torna-se
fundamental para o processo educativo. Aprendemos que estabelecer rotas, caminhos,
metas para o fazer pedagógico, independente da intencionalidade que permeia esse
processo, será sempre um aprisionamento, uma linearidade da qual a experiência se
esquivará. É nesse sentido que arriscamos pensar o spleen baudelairiano como
possibilidade do educador, em vias do mal-estar docente, afetado por uma
“melancolização”, poderia (re) significar o mal-estar que o acomete.
Nas Minima moralia, assim como em “Experiência e pobreza” encontramos uma
visão inconformista com as condições objetivas e subjetivas do mundo administrado. Em
meio a inúmeros exemplos da vida cotidiana, a questão do declínio da experiência fica

eliminando dele a natureza da punição como elemento que mantém a disciplina, o poder. Portanto, os
docentes precisam compreender o passado de sua profissão no intuito de (re) significar, pela autorreflexão, o
mal-estar que os acometem.
208

patente no embrutecimento do sujeito, no desaparecimento de qualquer vestígio de


particularidade e na conformação de uma determinada pedagogia dos gestos e do corpo.
La resultante pobreza de la experiencia, advirtió Benjamin, significaba una
nueva clase de barbarie que involucraba mucho más que al individuo, pues
sugería, además, el agotamiento de la cultura misma. Pero donde se produce un
colapso semejante, afirmó Benjamin con una mezcla de desafío y
desesperación, hay también una nueva oportunidad. “Adónde do lleva al
bárbaro la pobreza de la experiencia? Lo lleva a comenzar desde el principio; a
empezar de nuevo; a arreglarse-las con poco; a construir desde lo ínfimo y
seguir construyendo sin mirar ni a diestra ni a siniestra”. (JAY, 2009, p. 381)

Nesse sentido, o professor, em toda a sua carga de afetividade, pode re-significar,


pela autorreflexão, o mal-estar. Para Adorno, a tarefa principal do pensamento
autorreflexivo é interpretar, é ler nas entrelinhas do incompleto, do contraditório e
fragmentário. Considera a possibilidade de uma educação para a experiência enquanto esta
permite um vínculo com o conhecimento e com seus mediadores em que seja possível a
expressão de dúvidas e medos através de um diálogo sensível à autocrítica e à reflexão.
Desse modo, o autor adverte sobre a necessidade de se pensar o quanto a
sociedade administrada, ao destituir as instituições das tensões que as resguardam como
espaço de crítica, aumenta a pressão sobre os indivíduos, de modo a atraí-los para a adesão
à barbárie, destituindo-os da possibilidade de resistência. Nessas condições, a educação
permitiria, pela autorreflexão crítica, que o pensamento tornasse expressa a tensão entre
sujeito e objeto, tensão que se apresenta supostamente conciliada numa sociedade
tecnicista. Trata-se, portanto, de realizar uma experiência com a cultura e com o
pensamento.
A educação, então, guarda seu potencial emancipatório ao manter a tensão
inevitável entre adaptação e inadequação, sendo esta última, segundo Zuin (1999),
essencial à experiência como necessário distanciamento do fenômeno educativo, para que
o pensamento não se reduza no conformismo em uma sociedade que contêm em si
elementos de barbárie. Zuin (1999) critica a forma tecnicista com que os problemas
educacionais vêm sendo tratados, uma vez que não leva em conta a reflexão profunda
sobre o potencial esclarecedor da educação na tensão entre adaptação e resistência. O
tecnicismo, a impossibilidade da reflexão na escola repõem a mesma lógica presente na
sociedade industrial, perpetuando no âmbito educacional a pseudoformação do indivíduo e
tornando ainda mais distantes as possibilidades de reflexão sobre os determinantes do
estado atual da educação.
209

Nesse sentido, propomos re-significar o mal-estar docente pela via da crítica,


através da autorreflexão, rejeitando uma rasa interpretação que propõe a “resolução do
mal-estar docente” (ou até mesmo sua eliminação) pela via do bem-estar, das estratégias de
coping, da resiliência, das terapias de grupo como propõem os teóricos do mal-estar
docente. É nessa discussão que o texto freudiano – discutido no capítulo dois deste
trabalho - ganha atualidade, ou seja, o mal-estar, para ao pai da psicanálise, é visto como
algo relativo à subjetividade do indivíduo, como algo inerente a sua própria constituição
psíquica.
Para Freud (1999), o mal-estar é um estado, um descontentamento que alcança o
ser humano. É produzido, portanto, como um preço a pagar pela vida coletivizada. Assim,
“O mal-estar na civilização” define aquilo que é o homem freudiano na cultura, um homem
pressionado por pulsões, amores e ódios primitivos, ambivalente e mal contido pela
coerção externa e sentimentos de culpa. Por outro lado, as instituições sociais são, entre
outras coisas, barreiras contra o incesto, o estupro. Porém, ao mesmo tempo em que
servem para proteger a vida em sociedade, são responsáveis pela supressão das
necessidades primitivas, logo, pela promoção do mal-estar.
Portanto, a vida em sociedade é um compromisso imposto e insuperável que
carrega em si um inevitável estado de infelicidade. O mal-estar vivenciado pelo professor,
bem como as propostas por formação que ofereçam uma resposta, quase sempre de ordem
técnica, como medida profilática, são elementos limitadores da compreensão de tal
problemática, uma vez que a incerteza, as angústias, os impasses são marcas da profissão
docente que nos dizem da existência de outras dimensões a serem consideradas, que estão
para além do sujeito da razão.
Buscamos dialogar com Freud, Adorno e Benjamin no sentido de entender como
o mal-estar extrapola os bancos escolares, enquanto que, concretamente, trata-se da mazela
cotidiana e do massacre social do professor. Assim, procuramos mostrar em que medida
tais momentos se relacionam com o processo educativo e formativo e com o processo de
re-significação do mal-estar vivenciado pelos docentes. Desse modo, além da re-
significação do mal-estar docente pela via da crítica, da autorreflexão, reivindicamos que o
docente que o experimenta resista subjetivamente às suas causas efetivas e potencialize
essa atitude mediante o restabelecimento do sentido que a experiência oferece à sua ação.
A análise do esfacelamento da experiência e a compreensão de sua repercussão na
atividade docente e na geração do mal-estar apontam para resultados que extrapolam o que
210

a literatura sobre o assunto considera como atual, mas que somente é mais aguda a
percepção desse mal-estar no tempo presente. Nesse sentido, propomos pensar o mal-estar
para além daquilo que foi identificado nas teses e dissertações aqui analisadas, ou seja, por
meio da experiência podemos pensar o mal-estar pela produção do novo, do desassossego,
da desestabilização.
O modo que fica evidente de relação com o mal-estar explicitado no material em
análise é o de implicação na construção de resoluções para o mal-estar vivenciado pelo
professor na escola. Pensar nessa construção de “resoluções” para o mal-estar docente
implica em desconsiderar que o mal-estar é constitutivo da própria subjetividade do
indivíduo. Assim, conforme está posto nas teses e dissertações de mestrado, o mal-estar
docente é identificado como sofrimento, cansaço, perda da vontade de trabalhar,
desinteresse pela escola, queixas e reclamações que devem ser suportados
inquestionavelmente; ou então, o modo de relação com o mal-estar docente é o de
disposição para a problematização e de implicação na construção de resoluções.
Esta construção e modo de entender o mal-estar docente implicam em
desconsiderar a tese fundamental freudiana presente no “O mal-estar na civilização”, ou
seja, “o antagonismo irremediável existente entre as exigências da pulsão e as
possibilidades de sua satisfação no processo civilizatório”. Quando esse mal-estar se
instala, a saída mais frequente apontada nos trabalhos é a de negá-lo ou buscar recursos
que possam objetiva e organizacionalmente resolvê-lo. Daí o constante psicologismo no
campo escolar.
Constatamos que, ao invés do professor enfrentar o mal-estar como questão a ser
elaborada e re-significada, a escola busca consultorias-remédios que suprimam o sintoma,
sem precisar colocar-se a pensá-lo. Não por acaso tal discurso educacional é, na verdade,
uma transposição do discurso empresarial e o mesmo se repete, seja em uma escola ou em
uma fábrica.
Assim, fica evidente em grande parte dos trabalhos analisados que o problema do
mal-estar docente se resolve pela formação inicial e continuada do professor através da
aquisição de técnicas e instrumentos ou aplicação do conhecimento produzido pelas
ciências da educação, atendendo a necessidade do desenvolvimento da sociedade racional,
da exigência do aumento da eficiência e da demanda da qualificação profissional
necessários para que o docente resista às mazelas diárias de seu ofício.
211

Esse elemento da educação pela administração – não apenas discursiva, mas nas
práticas adotadas dentro das escolas, inclusive as tediosas “dinâmicas motivacionais”, as
artificiosas apologias do “espírito de equipe e trabalho coletivo” que povoam as
orientações técnicas dadas aos gestores escolares - esvazia o potencial de resistência do
professor. Aparentemente ele resiste a apreender a situação como um todo e limita-se a
buscar soluções imediatistas que funcionam como paliativos. No ambiente escolar, os
professores vivem os fatos como dados. São impossíveis de problematizar as experiências
de desestabilização, de pensar o que se está instalando em suas subjetividades. Desse
modo, o mal-estar docente não pode ser passível de ser problematizado, mas apenas vivido.
Percebemos que as consequências das condições de trabalho encontradas pelos
professores como fadiga psico-física, frustração, sentimentos de impotência, doenças,
estresse, nervosismo, depressão, absenteísmo trabalhista, síndrome de burnout funcionam
como estratégias defensivas à experiência dolorosa do mal-estar docente. Assim, o mal-
estar não pode ser reduzido a uma questão meramente instrumental como está posto pelos
discursos dos pesquisadores que a ele se remetem.
De forma oposta, propomos pensar o mal-estar na escola enquanto expressão de
algo que está devindo, ou seja, o mal-estar como anúncio de desacomodação, que relativiza
suas certezas e que faz com que o professor busque novos recursos e meios para lidar com
os acontecimentos cotidianos. O mal-estar é inevitável. Desse modo, propomos encará-lo
como crítica, pautando-se pela possibilidade de re-narrar, experienciar. Assumimos o mal-
estar docente enquanto trabalho de resistência, pois a educação apenas reproduz o que os
autores dessa temática chamam de “fenômeno” mal-estar docente.
A questão central do presente trabalho é compreender que o mal-estar é
constitutivo da modernidade, da cultura e da subjetividade do professor e não meramente
um “fenômeno”. A partir desse ponto, entendemos que a educação87também é (re)

87
O ato de educar insere-se em um contexto assinalado pelo conflito humano, por isso desvela certo mal-estar
que permeia a relação pedagógica na interação ensino-aprendizagem. Ao discorrer sobre as três fontes de
onde provém o sofrimento, a angústia, Freud (1930) enfatizou que uma das prováveis causas esteja no
relacionamento entre os homens no convívio social. Para haver convívio social, há necessidade de regras e
normas que vão mediar os relacionamentos por meio também da educação. Contudo, o desejo de completude
e de controle impostos pelos ideais educativos em detrimento da singularidade e subjetividade dos sujeitos
enlaçados no contexto pedagógico paga um preço alto para viver o bônus dos bens culturalmente construídos
pela civilização. Nessa perspectiva, tornamo-nos estrangeiros no mundo civilizado, andarilhos imersos no
mal-estar paralisante das exigências de um ideal educativo distante da realidade humana, que não reconhece
as leis do desejo. Por isso, mesmo com o empenho, o esforço e os aparatos metodológicos que o professor
usa no seu fazer pedagógico, ele não consegue executar o planejado com perfeição, não “controla” tudo,
restando o sentimento de frustração ante a percepção de que há sempre algo faltando.
212

produtora do mal-estar docente, mas ao mesmo tempo se organiza para “eliminar” esse
elemento da subjetividade do professor.
Assim, pensar o mal-estar docente como um fenômeno – como supõe a literatura
aqui consultada - implica em aceitar essa discussão como algo “novo”, “que surge da
contemporaneidade” “dos novos tempos”. Contrário a isso, pensamos o mal-estar docente
não como um fenômeno, mas sim como um traço da subjetividade do professor, com uma
certa tensão com a realidade, ampliando a crítica.
A partir de um registro filosófico, nosso objetivo é desconstruir essa literatura do
mal-estar docente, a qual esvazia esse mesmo conceito. Não é esse mal-estar que interessa
pra nós. O objetivo aqui foi confrontar, questionar os autores, demonstrando o quanto a
literatura produzida sobre o mal-estar docente é limitadora da compreensão dessa mesma
problemática. Coping, resiliência, terapia coletiva, medidas protetivas e curativas, MBI,
são exemplos de interpretações instrumentalizantes para um problema que não pode ser
reduzido à esfera instrumental. Concordamos que o mal-estar é inevitável, mas ele pode ser
(re) significado. E a formação cultural a qual estamos aqui reivindicando com Adorno pode
levar à (re) significação do mal-estar docente.
A experiência educativa que defendemos é a que se propõe, a partir das narrativas
e do pensamento crítico, afetar ao outro. Uma experiência em que o professor propicie
meios para se evitar a repetição daquilo que foi Auschwitz. Como enfatizado por Adorno
(1996), a única possibilidade de sobrevivência da cultura e, portanto, da formação e da
educação, é o exercício da autorreflexão crítica sobre a pseudoformação. Daí a importância
de se resgatar, no processo educacional, a experiência formativa.
Esse resgate significa a crítica radical aos momentos/situações que impeçam os
indivíduos da capacidade de realizar experiências. É, além disso, a luta para “mudar
radicalmente as condições sociais e materiais de produção que continuamente geram as
múltiplas situações de vivências que abafam as possibilidades de experiências” (PUCCI,
1997, p. 112). Ir contra a semiformação é, para o autor, educar para a contradição e para a
resistência. A emancipação – autonomia, maioridade – não ocorre simplesmente por
processos de escolarização; por isso, a formação do professor não se dá apenas nos cursos
de “formação”, mas também por meio da cultura, da arte, da política, da ética.
Assim, acreditamos ser possível e necessário analisar essa realidade do mal-estar
de modo ampliado, com o objetivo de evitar o risco do reducionismo e de análises parciais.
O que fizemos foi cartografar essa temática (tendo como objeto as teses e dissertações),
213

demonstrando um certo esvaziamento do mal-estar docente, os fluxos que escapam ao


estabelecido, a dimensão invisível dos acontecimentos, tensionando, assim, uma discussão
a partir da experiência.
Transformar a pobreza da experiência em experiência seria produzir uma nova
experiência, mesmo a partir dessa mesma experiência, como inconformismo e resistência.
214

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