Oriente23-Orientalismos e Literatura
Oriente23-Orientalismos e Literatura
Oriente23-Orientalismos e Literatura
E LITERATURA
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro
Chefe de Gabinete
Bruno Redondo
Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].
Rede
www.orientalismo.net
Rede
https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/
Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 23: Orientalismos e Literatura. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj.
Orientalismo/ UERJ, 2023. 139 p.
ISBN: 978-65-00-77513-6
História da Ásia; Orientalismo; Literatura; Diálogos Interculturais.
2
Apresentação
Orientalismos e Literatura
Orientalismos: Mídias e Arte
Visões do Orientalismo
Estudos sobre Oriente Médio
Estudos Chineses
Estudos Japoneses
Estudos Coreanos
Estudos Asioindianos
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Sumário
LITERATURA COREANA EM REESCRITA: CRIANDO IMAGENS DE CASTELLA, por Alexsandro
Pizziolo........................................................................................................................................... 7
“O QUE FAZER COM O CÉU NO DIA EM QUE ELE REALMENTE CAI” E O CANTO DO BODE: USOS
DA HISTÓRIA EM A SOMBRA DAS TORRES AUSENTES, por Álvaro Ribeiro Regiani .................... 16
ORIENTES E ORIENTALISMO EM GILBERTO FREYRE: OLHARES SOBRE OS INDIANOS, por Arlindo
Souza ........................................................................................................................................... 25
OS SAMURAIS: PARA ALÉM DAS VISÕES ROMÂNTICAS, por Arthur D´Elia dos Santos .............. 31
LEIBNIZ E OS JESUÍTAS: O IDIOMA PRIMORDIAL, O I CHING E O INTERCÂMBIO DE CULTURAS,
por Carmen Lícia Palazzo............................................................................................................. 37
JAPANESENESS: O ORIENTALISMO JAPONÊS, por Cássio Gabriel de Campos Silva .................... 46
“TÃO NECESSÁRIOS UM AO OUTRO COMO HOMEM E MULHER”: REPRESENTAÇÕES DO JAPÃO
E COREIA EM COREA, THE HERMIT NATION (1911), por Emannuel Henrich Reichert ............... 54
UM ENTERRO CELESTIAL NEM DIURNO E NEM NOTURNO, MAS CREPUSCULAR: UMA ANÁLISE
DA OBRA XINRAN À LUZ DO IMAGINÁRIO DURANDIANO, por Jander Fernandes Martins e
Vitória Duarte Wingert ................................................................................................................ 61
IMAGENS E IMPRESSÕES DO JAPÃO ANTES E DEPOIS DA ABERTURA DOS PORTOS DE 1854, por
Levi Yoriyaz .................................................................................................................................. 70
AS REPRESENTAÇÕES DO ÓPIO NO JORNAL DIÁRIO DE PERNAMBUCO, por Lohanna de Lima
Tavares e Carlos Eduardo Martins Torcato ................................................................................. 78
A MODERNIDADE EURO-ORIENTAL DE AMIN MAALOUF: APONTAMENTOS PARA DIÁLOGO por
Manoel Adir Kischener e Everton Marcos Batistela .................................................................... 86
A DIÁSPORA COREANA NO JAPÃO: APONTAMENTOS NA OBRA LITERÁRIA PACHINKO, DE MIN
JIN LEE , por Maria Gabriela Moreira e Nayla Lumy de Andrade Kuroki .................................... 94
LAFCADIO HEARN E A REESCRITA DO ROMANCE DA LANTERNA DE PEÔNIA, EM “A PASSIONAL
KARMA”, por Maria Silvia Duarte Guimarães ........................................................................... 100
A NARRATIVA EM APORIA NO SÉCULO DAS LUZES: DENIS DIDEROT, O ROMANCE E O ORIENTE,
por Ricardo Hiroyuki Shibata..................................................................................................... 106
NOITES ÁRABES: ANTOINE GALLAND (1646-1715) E AS MIL E UMA NOITES, por Ricardo
Hiroyuki Shibata ........................................................................................................................ 113
CHAMPURAMENTO - UM CONCEITO POÉTICO, por triZ périZ.................................................. 120
CHAMPURAMENTO - UM CONCEITO POÉTICO - NA PRÁTICA, por triZ périZ ........................... 125
A MEMÓRIA E A IDENTIDADE NA NARRATIVA DO ROMANCE A POLÍCIA DA MEMÓRIA, DE YOKO
OGAWA, por Allana da Silva Araujo .......................................................................................... 132
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6
LITERATURA COREANA EM REESCRITA: CRIANDO IMAGENS
DE CASTELLA, por Alexsandro Pizziolo
O eixo teórico que embasa minha investigação está situado numa interseção
entre três campos que têm se mostrado bastante produtivos dentro dos
Estudos da Tradução. O primeiro deles é o sub-ramo do campo conhecido pelo
nome de Estudos Descritivos da Tradução [DTS], uma das correntes mais
influentes por décadas a fio. Uma das principais contribuições dessa corrente é
a concepção da “tradução como um fato da cultura de chegada” [Toury, 2012,
p. 18], que suscita uma atitude epistemológica que concebe a investigação do
texto traduzido a partir de questões que surgem na cultura que o produz. A
orientação descritivista do ramo, também depreende que o texto traduzido deve
ser analisado para que se compreenda a sua função sistêmica no sistema
literário receptor. Dentro dos DTS, me afilio particularmente ao pensamento de
André Lefevere [1992] e aos desdobramentos dos seus conceitos de reescrita
e patronagem, que serão centrais ao estudo aqui proposto.
O segundo campo a que recorro para embasar este trabalho é o que ficou
conhecido nos Estudos Literários como a Teoria do Paratexto, a partir do
conceito de paratexto, “aquilo por meio de que um texto se torna livro e se
propõe como tal a seus leitores” [Genette, 2009, p. 9]. Nos Estudos da
Tradução, a partir de Şehnaz Tahir-Gürçağlar [2002], o conceito de paratexto
tem sido utilizado para pensar o potencial que essa produção textual (num
sentido semiótico) tem de produzir sentidos acerca do texto traduzido que ela
acompanha e como esses discursos influenciam a recepção de tais textos.
McRae [2012], Wu e Shen [2013] e Carneiro [2014] desenvolveram
problemáticas importantes a respeito do prefácio do tradutor, e Gerber [2012],
com sua reflexão acerca das capas e ilustrações do livro traduzido agrega
ainda mais ao debate acerca dos paratextos.
Por fim, outro campo que alimenta a fundamentação teórica deste estudo é o
que, a partir dos anos 1990, começou a se chamar de Sociologia da Tradução.
O campo, de matriz teórico-metodológica múltipla, tem sido pioneiro em
produzir estudos que tenham como foco os agentes por trás do processo
tradutório, especialmente os tradutores. Neste trabalho, especificamente, aplico
o conceito de habitus do tradutor, desenvolvido por Gouanvic [2005] a partir de
Bourdieu [1986].
7
Breve descrição de Castella, de Park Min-Gyu
Castella é uma antologia de contos do escritor sul-coreano Park Min-Gyu,
publicada no Brasil em junho de 2022, pela editora Martin Claret, com tradução
de Nick Farewell. Publicada originalmente em 2005 sob o título 카스테라
[kaseutera, em romanização[ na Coreia do Sul, a antologia reúne dez contos
escritos entre 1999 e 2004. A edição brasileira pode ser enquadrada dentro do
que é conhecido no mercado editorial como edição de luxo, com um projeto
gráfico original assinado por José Duarte T. de Castro, com capa, quarta capa
e guarda ilustradas pela artista coreano-brasileira Ing Lee; conta ainda com
capa dura e fitilho para marcar as páginas.
Os agentes da reescrita
A concepção de sistema literário de Lefevere [1992] prevê dois fatores de
controle da literatura escrita e reescrita, sendo um interno e outro externo. O
primeiro deles, que exerce um controle interno dos procedimentos literários,
encontra-se na figura dos profissionais, “críticos, resenhistas, professores,
tradutores” [Lefevere, 1992, p. 14], figuras que também podem ser apontadas
como reescritores, aqui denominados ‘agentes da reescrita’. O outro fator
regulador do sistema literário, de ordem externa, situa-se no que Lefevere
chama de patronagem, os “poderes [pessoas, instituições] que podem
promover ou impedir a leitura, a escrita e a reescrita da literatura” [Lefevere,
1992, p. 15]. Os poderes, reforça Lefevere, devem ser entendidos como uma
formulação foucaultiana de poder, que tem menos a ver com a ideia de
repressão e mais a ver com a ideia de controle. A patronagem preocupa-se,
portanto, com aspectos ideológicos e econômicos, delegando aos profissionais
a parcela do trabalho que está preocupada com a poética, que é manipulada
sob os princípios da patronagem. Neste trabalho, o foco recai sobre os agentes
da reescrita.
8
destacam particularmente. A partir da introdução ao livro assinada pelo tradutor
faço uma análise em que aciono a discussão feita pela Sociologia da Tradução
a respeito do papel dos tradutores como agentes da tradução, assim como uma
análise do prefácio à luz das discussões concernentes ao paratexto. Destaco
também a ilustradora da capa do livro, Ing Lee, analisando capa do livro
mediante outros trabalhos de Lee e capas de outras edições do Castella pelo
mundo, a fim de destacar a atuação da capista.
O tradutor
Sob o pseudônimo de Nick Farewell, o coreano naturalizado brasileiro Lee Gyu
Seok, escreveu 7 romances, dentre eles o best-seller GO [Devir, 2007],
selecionado pelo Ministério da Educação e Cultura para integrar o catálogo das
bibliotecas de escolas por todo o país. Em seu website e em suas redes
sociais, Farewell se apresenta como escritor e roteirista, tendo escrito, além
dos romances, roteiros para o cinema e a televisão. A tradução de Castella é
uma tarefa até então inédita em seu portfólio.
Genette [2009] identifica todo texto que precede e sucede o texto propriamente
dito no livro como prefácio, sejam eles intitulados “prefácio”, “introdução”,
“prólogo”, “posfácios”, “nota do editor” etc. A introdução à Castella, assinada
pelo tradutor, faz as vias de prefácio à tradução. Carneiro [2014] afirma que é
possível “encarar o prefácio de tradutor como um subgênero em relação ao
gênero prefácio, que guarda semelhança na organização retórica, mas que
possui características próprias, específicas ao contexto da tradução” [Carneiro,
2014, p. 109]. Para Genette [2009], trata-se de uma questão de autoridade
exercida pelo autor/editor do original, que influencia na leitura de seu texto por
meio do prefácio. Na tradução, os prefácios adotam uma série de atitudes
possíveis. O(s) prefácio(s) em análise terá(ão) um comportamento que, em
parte, é único, mas que também pode ser enquadrado num horizonte
minimamente controlado de efeitos discursivos. Dois trechos do prefácio de
Farewell são elucidativos em relação às possibilidades do prefácio.
“Mas o que quero fazer neste prefácio é acrescentar uma dimensão a mais no
entendimento do estranho e maravilhoso mundo de Min-Gyu. Avesso a
entrevistas e exposição na mídia, tive o privilégio de conhecê-lo e ser seu guia
pelo igualmente estranho e maravilhoso Brasil. A experiência, que acrescenta
uma dimensão a mais e faz com que minha experiência de tradução adquira
um significado quase de realismo fantástico — como na literatura de Min-Gyu
(talvez a literatura de Min-Gyu devesse ser chamada de realismo intergaláctico)
— segue abaixo.” [Farewell, 2022, p. 6, grifo do autor]
O prefácio de Nick Farewell narra seu encontro com o autor Park Min-Gyu
numa visita oficial ao Brasil. Farewell parece querer com esse texto criar uma
conexão entre o público brasileiro e o autor sul-coreano a partir dessa anedota,
que faz referências à cultura coreana e à relação de amizade entre tradutor e
9
autor. Predomina a função de introduzir o público leitor ao autor e à obra,
identificada por Wu e Shen [2013] em seu trabalho.
10
A respeito da visibilidade do tradutor, identifico Nick Farewell na categoria de
tradutor-escritor, “aquele que, além de traduzir como atividade cotidiana ou
esporadicamente, é também um escritor ou poeta” [Carneiro, 2014, p. 161]. A
introdução de Farewell é o primeiro texto a que temos acesso na edição
brasileira de Castella, precedendo até o sumário da obra. Funciona como um
verdadeiro preâmbulo. O leitor que não folhear a obra e resolver ignorar essa
parte, terá seu primeiro contato com a obra de Park Min-Gyu por meio das
palavras de seu tradutor, que causam um efeito no leitor da obra.
A capista
Ing Lee é uma quadrinista e ilustradora coreano-brasileira. Além de sua
ancestralidade marcada, Lee carrega em sua identidade o fato de ser surda
oralizada. A ilustradora tem uma atuação destacada nas redes sociais,
utilizadas para diversos fins, como a divulgação de seus trabalhos ou de
conteúdos a respeito da elaboração de capas e projetos gráficos que ela
assina, além de conteúdos sobre a cultura coreana, como resenhas de livros,
fatos históricos etc.
11
conto que dá título à antologia, “Castella”, e a ilustração acaba funcionando
como uma metáfora da obra de Park. A geladeira abriga tudo aquilo que o
autor oferece ao leitor. Temos os personagens fantásticos como a girafa, o
polvo, o pelicano e o guaxinim, mas também temos itens corriqueiros de uma
geladeira tipicamente coreana, como é o caso do pote de kimchi, um tipo de
conserva que é a base da alimentação da população coreana. O bolinho de
Castella também está na geladeira, assim como um exemplar de As viagens de
Gulliver, de Jonathan Swift, citado no livro.
12
Figura 3 – Fonte: CRANE, 2014
Considerações finais
Ao tomar um exemplar de literatura traduzida como objeto de análise, é
possível encontrar em seus paratextos marcas dos agentes da reescrita
implicados no processo de tradução e publicação dessas obras. A partir do
paratexto do livro traduzido é possível refletir acerca do papel dos agentes
implicados no processo de reescrita, à luz dos Estudos Descritivos e da
Sociologia da Tradução, pois o paratexto reserva em sua natureza essa dupla
característica de ser texto, mas não fazer parte do texto traduzido.
13
Brasil, mas também à própria lógica de publicação de literatura traduzida no
mercado editorial brasileiro.
Referências
Alexsandro Pizziolo é mestrando do Programa de Pós-graduação em Estudos
da Linguagem, na linha de pesquisa Linguagem, sentido e tradução, no
Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
[PUC-Rio], pesquisador associado da Coordenadoria de Estudos Asiáticos
[CEÁSIA], vinculado ao Centro de Estudos Avançados da Universidade Federal
de Pernambuco [CEA-UFPE] e bolsista FAPERJ Nota 10. E-mail:
[email protected].
14
MCRAE, Ellen. The Role of Translators’ Prefaces to Contemporary Literary
Translations into English: An Empirical Study. In: GIL-BARDAJÍ, Anna et al
(ed.). Translation Peripheries: Paratextual Elements in Translation. Bern: Peter
Lang, 2012. p. 63-82.
PARK, Min-Gyu. Castella. Tradução de Nick Farewell. São Paulo: Martin Claret,
2022.
WU, Yi-Ping; SHEN, Ci-Shu. (Ir)reciprocal Relation between Text and Paratext
in the Translation of Taiwan’s Concrete Poetry: A Case Study of Chen Li. In:
PELLATT, Valerie. Text, Extratext, Metatext and Paratext in Translation.
Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2013. p. 103-119.
15
“O QUE FAZER COM O CÉU NO DIA EM QUE ELE REALMENTE
CAI” E O CANTO DO BODE: USOS DA HISTÓRIA EM A
SOMBRA DAS TORRES AUSENTES, por Álvaro Ribeiro Regiani
Desse modo, os enquadramentos feitos por Art Spiegelman não fogem aos
condicionamentos de sua cultura histórica e À sombra das torres ausentes
constitui-se como um uso público da história. Ao refletir sobre a caracterização
desses usos, facilmente se chega a utilidade dos mesmos e seus efeitos. Por
um lado, grupos de interesse, instituições e indivíduos utilizam a história e as
narrativas historiográficas para a produção e representação de um imaginário
social que atende aos desejos e vontades de públicos específicos. Por outro,
professores e historiadores, comprometidos com a ciência histórica,
fundamentam o ensino e a pesquisa nos “problemas práticos da vida” como
condição para “orientar a vida dentro da estrutura do tempo” [RÜSEN, 2006, p.
8; p. 15].
16
Evidentemente, a consciência histórica não é fixa ou homogênea, dada que a
mesma se constitui na tensão entre a dinâmica e a conservação da vida
pública que decorre de variações e inovações, bem como de repetições e
continuidades. Mas, o produto cultural produzido pelos meios de comunicação
de massa, em larga medida cristaliza certas imagens por serem “produtos
adaptados ao consumo das massas e que em grande medida determinam esse
consumo” [ADORNO: HORKHEIMER, 1986, p. 92].
17
outra história em quadrinhos, Maus (1991-1993), ao retratar personagens
autobiográficos em um contexto dramático [MAZUR; DANNER, 2014, p. 185].
Desse modo, ao integrar a perspectiva do sobrevivente, do nova-iorquino e do
judeu, Spiegelman tornou coincidente a autoria, a narração e a personagem em
um episódio trágico e, assim, interpretar o 11 de setembro por meio da sátira
política:
18
Neste entrelaçamento entre a animalização e a humanização, a perspectiva do
pária dirige o enquadramento, a auto-representação de um rato-humano
aproxima-se da comunidade multiétnica de Nova York, mas coloca-se distante
da política. Entre a caracterização dos terroristas da Al-Qaeda e dos políticos
conservadores, a personagem Art Spiegelman procura explicar os atentados.
Embora o seu objetivo não fosse aumentar o coro nacionalista e islamofóbico,
a interpretação de Spiegelman sobre o 11 de Setembro foi que os nova-
iorquinos foram as vítimas e os culpados seriam os fundamentalistas e a direita
norte-americana, conforme ele registrou em palavras:
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Se lida convencionalmente e depois de ponta cabeça, há uma pequena sátira
em 12 quadros de dois personagens, Lovekins e Muffaroo, que partem para um
palácio encantado e deparam-se com um gênio que os alerta sobre dois
armários. Ao abrirem o primeiro saem fadas e a história parece encontrar um
desfecho: “As fadas voltam para dentro do armário e Muffaroo fecha a porta. ‘O
que será que tem no outro?’, Lovekins pergunta. ‘Ah, isso nunca saberemos!’,
responde o velho Muffaroo”. Mas, ao continuar a leitura, só que de ponta
cabeça, a sátira continua. Eles, ao abrirem a porta proibida, são cercados por
uma horda de duendes que ‘lança-os para cima e de um lado para o outro’.
Logo depois, um imenso touro joga os dois para longe. No último quadro, o
narrador diz: “‘mais assustados que feridos’ e um deles decide ‘nunca mais
ceder à vã curiosidade’”. A metáfora não poderia ser mais clara: para explicar
os atentados do 11 de setembro deve-se percorrer e repetir a mesma história
em uma continuidade que depende da inversão do ponto de vista para ser
compreendida em sua totalidade.
Interpreta-se que o uso da história feita por Art Spiegelman reside nessa
pequena fábula que exige do leitor uma mudança de perspectiva para a
compreensão da frase “o céu está caindo” e da comoção esperada nessas
páginas:
[SPIEGELMAN, 2004, p. 9]
20
comunidade multiétnica, mas, curiosamente, suas ações não são sustentadas
por instituições políticas como o exército ou um Estado-nação. Conforme visto
até aqui, os terroristas são indivíduos paranóicos e de “cabeça oca”, como um
bode com turbante [SPIEGELMAN, 2004, p. 9]:
[SPIEGELMAN, 2004, p. 8]
“Washington fechou os olhos para a Al Qaeda”, relata Gore Vidal, assim como,
para a presença de Mahmoud Ahmed no dia 10 de setembro na capital dos
Estados Unidos [VIDAL, 2003, p. 74]. Em 11 de Setembro, pela televisão foi
possível ver o presidente dos Estados Unidos, George Bush lendo um livro
cercado por crianças de uma escola primária na Flórida. Segundo ainda
segundo Vidal, eles conversavam sobre um bode encontrado em um livro.
Etimologicamente, a palavra “tragédia” vem de dois radicais gregos: “tragos” e
“oide”, respectivamente conotam “bode” e “oide” e “canto”, juntas “tragoidia”,
significam o “canto do bode” [VIDAL, 2003, p. 76]. Essa conjunção explica-se
pelos sacrifícios dados a Dionísio durante a peça teatral, assim que um bode
era sacrificado o coro cantava.
21
Contemporaneamente, Gore Vidal significou esse canto através dessas
palavras: “é bastante cabível um lamento como esse, cantando em sátiras
antigas, ter sido ouvido novamente no momento exato em que fomos atingidos
pelo fogo no céu, e teve início para nós uma tragédia cujo fim nossa vista não
alcança” [VIDAL, 2003, p. 76]. Algumas coincidências demonstram como a
sátira é importante como um recurso estilístico e, igualmente, como uma opção
política, por apresentar de forma sutil o que não se pode narrar ou mesmo se
afastar do sátiro:
[SPIEGELMAN, 2004, p. 8]
Considerações finais
Em larga medida, o enquadramento feito em À sombra das torres ausentes
contribui para a constituição da consciência histórica em um contexto político
específico. Como se viu, das memórias traumáticas à produção de uma sátira
política, este HQ se caracteriza por um uso da história que organiza uma
memória, mas, paralelamente, reforça um estereótipo racista. Sendo uma
interpretação, esta demonstra uma perspectiva que deve ser historicizada de
modo a destacar as relações de poder e as estratégias discursivas que
circundam um evento histórico. Neste sentido, uma reflexão voltada ao ensino
de história deve, sobretudo, historicizar as diferenças para uma aprendizagem
em que os alunos(as) identifiquem que o passado está inscrito no presente,
seja em sua continuidade ou nos usos das histórias.
22
próprio governo, prancha que dois anos antes provocara tremores explícitos
em alguns editores” [SPIEGELMAN, 2004, s.p.].
Entretanto, o que essa sátira não aduz foram os efeitos da tragédia. Em 2004,
na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, no Iraque, um conjunto de fotos foi vazado
na internet sobre a tortura e o abuso sexual de prisioneiros, acusados
indiscriminadamente de terrorismo. Veiculadas como risíveis e consideradas
pelo governo dos Estados Unidos como casos isolados por Donald Rumsfeld, o
Secretário de Defesa, que antes de fazer uma retratação pública sobre o
ocorrido, disse que estás “nos definiam como americanos” [BUTLER, 2015, p.
111]. Apesar da declaração e das condenações de militares, não foi revertida a
política concentracionária e as condições de milhares de presos. O que nos
leva a uma última pergunta: quais vidas podem ser narradas após o 11 de
setembro?
Referências
Dr. Álvaro Ribeiro Regiani é professor de História das Américas e das Áfricas
na Universidade Estadual de Goiás - Câmpus Nordeste.
23
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A indústria cultural: o esclarecimento
como mistificação das massas. In. COHN, Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno.
São Paulo: Editora Ática, 1986.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto?
Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da
Cunha. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2015.
24
ORIENTES E ORIENTALISMO EM GILBERTO FREYRE:
OLHARES SOBRE OS INDIANOS, por Arlindo Souza
Gilberto Freyre é reputado como um dos autores que “inventaram o Brasil”. Sua
obra é vasta e sua importância é reconhecida no Brasil e no exterior. Contudo,
mesmo para este tão conhecido e estudado autor, pelo caráter sobejamente
prolífico de sua produção, existem ainda pontos a serem debatidos e
analisados, de onde destacamos as suas abordagens sobre “os orientes”. Aqui,
o que temos investigado é não apenas a sua vasta e inexplorada interlocução
com autores orientalistas (das mais variadas procedências) – e de onde
provém, naturalmente, a sua “fonte” orientalista – , mas o próprio orientalismo
que, consequentemente, emerge em seus escritos. Temática sobre a qual
desenvolvemos a tese provisoriamente intitulada “Os Orientes de Freyre e o
orientalismo lusotropicalista na «Questão de Goa» (1954-1961): reflexos no
jornal Diário de Notícias de Lisboa”, tendo esta pesquisa resultado na produção
de artigos e participações em congressos e simpósios ao longo dos últimos
quatro anos.
25
determinado grupo sociocultural se enxerga (ou deseja ser enxergado) do que
estritamente com a sua posição de agente dominante no jogo geopolítico.
26
E é com esta abordagem orientalista que Freyre, ao tratar dos inícios da
presença lusa no “Oriente”, relata que o Ocidente (leia-se o ocidente ibérico, o
português, sobretudo) é o elemento masculino, fecundador, e o Oriente o
elemento feminino. Aqui, para o autor, o próprio momento das “Grandes
Navegações”, fora uma “Idade sociologicamente viril” [FREYRE, 1953b, p. 99].
E, ao chegar aos “orientes”, os portugueses logo fizeram “sentir sua presença
na «imensa Ásia», (...) como [homens] capazes de amar mulheres orientais e
ser por elas amados. Capazes de fecundar mulheres de cor e fazer sair dos
seus ventres portugueses também de cor...” [FREYRE, 1953a, p. 347]. E se o
elemento “feminizador” do oriente fica evidente no trecho acima, outro
elemento orientalista também aparece: o tratar a Ásia como um local
incomensurável, imenso. E, por isso mesmo, palco em que os intrépidos
europeus podem realizar mil heróicas aventuras.
27
diferentes”, deixando claro mais uma vez como Freyre não rompe
definitivamente com uma antropologia física mais racialista que havia (ainda)
em seu tempo – não obstante estejamos a falar de um texto de inícios dos
anos 1950, mais precisamente de trinta anos após o seu “clássico” CG&S que
é quando se supõe que Freyre tenha se descolado deste tipo de abordagem.
28
A ideia de um Extremo Oriente “colorido”, “encantado”, e “delicado” também é
fartamente observada em Freyre. Lá, no Oriente, os animais ficavam
“orientalmente soltos à rua” e os frutos eram milagrosos, coloridos,
perfumados, e afrodisíacos [FREYRE, 1953b, p. 68]. Neste aspecto, o livro Um
Brasileito em Terras Portuguesas pode ser visto como um exemplo de que se
pode ver o “oriental” de modo “positivo” mas, mesmo assim, orientalista,
essencializado. Nele, Freyre “fala pelos orientais”, diz “como eles eram”, os
“conhece através da ciência” (sempre citando estudiosos ocidentais
especialistas em Oriente...), versa sobre a sua religiosidade, sobre seus traços
psicológicos e sociais, de modo que o “método orientalista” de produzir saber
reproduzindo representações sobre o “outro” é aqui fartamente observado.
Referências
Arlindo José Reis de Souza é doutorando pelo Programa Interuiniversitário de
Doutoramento em História pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade
de Lisboa.
29
CASTELO, Cláudia. O modo português de estar no mundo: o luso-tropicalismo
e a ideologia colonial portuguesa: 1933-1961, Porto, Edições Afrontamento,
1999
30
OS SAMURAIS: PARA ALÉM DAS VISÕES ROMÂNTICAS,
por Arthur D´Elia dos Santos
Ronin era o nome dado a um samurai sem senhor. Isso poderia ocorrer por
demissão ou quando o senhor era executado ou despromovido [HENSHALL,
2014]. Geralmente esses samurais que não tinham a quem servir
perambulavam pelo Japão causando perturbações a aldeões ou inquietando
autoridades [HENSHALL, 2014]. No entanto, os quarenta e sete representariam
na verdade a real virtude samurai. A seguir será exposta, a partir de Kenneth
Henshall, a história dos quarenta e sete Ronin:
31
fenecimento, investimento no setor têxtil e indústria nacional. Aqui entra
também outros dois aspectos que serão importantes para o posterior
imperialismo japonês: busca pela legitimação política e militar junto com a
construção de uma poderosa marinha [UNZER, 2020]. Cabe dizer que os
japoneses não eram reconhecidos como “civilizados” pelos ocidentais (era raça
“amarela”); isso vai gerar um ressentimento que depois será crucial para a
primeira guerra mundial. Tempo depois o Japão vai demonstrar soberania ao
derrotar a Rússia na guerra russo-japonesa de 1905 [UNZER, 2020].
Estes componentes no que se passava globalmente são bastante
compreensíveis de existirem por conta do nacionalismo que pairava sobre a
Europa [NUNES, 2011]. Também vai ser nesse momento da história que no
Japão o xintoísmo vai se tornar religião oficial do Estado [NUNES, 2011]. A
extinção da classe dos samurais vai culminar na criação de uma imagem
heroicizada deles cujo objetivo vai ser o desenvolvimento de uma identidade
nacional [NUNES, 2011].
O bushidô, que foi um termo cunhado para representar a ética dos samurais do
Japão, vai ser utilizado para difusão de uma política nacionalista [NUNES,
2011]. O processo de unificação japonês partiu da já mencionada idealização
do samurai, o qual era agora considerado um herói. Após esta breve
exposição, pode-se agora avaliar as considerações de Nitobe e refletir sobre
sua teorização, os quarenta e sete Ronin e o que de fato significava o samurai
ao longo da história japonesa a partir de uma perspectiva crítica.
Sobre a honra, Inazo afirma o seguinte: “O sentido de honra, implicando uma
consciência vívida do valor e da dignidade pessoais, não poderia deixar de
caracterizar o samurai, nascido e criado para valorizar os deveres e privilégios
de sua profissão” [NITOBE, pág. 59, 2019]. Esta consideração não está longe
do que de fato ocorria, sobretudo quando no período Edo da história japonesa
os samurais tinham sobre si o dever moral de recusar o deleite em casas de
prostituição que se formavam [UNZER, 2020].
Por conseguinte, a lealdade vai ser o outro atributo fundamental. Porém, seu
conteúdo é a reverência e fidelidade ao senhor [NITOBE, 2019]. Isso fica
evidente nesta consideração: “A vida sendo considerada como um meio de
servidão a seu mestre, e seu ideal sendo assentado sobre a honra, toda a
educação e todo o treinamento do samurai eram coordenados com este
propósito” [NITOBE, pág. 71, 2019]. Outras virtudes requeridas são:
benevolência, autocontrole e simplicidade [NITOBE, 2019]. Agora, uma real
idealização e romantização dos samurais pode ser vista na seguinte colocação:
“[...] O que ele carregava em seu cinturão era um símbolo do que carregava em
sua mente e em seu coração – lealdade e honra” [NITOBE, pág. 96, 2019].
Trata-se de uma forma de enxergar os samurais como se fossem aqueles que
atingiram a plenitude de caráter e um modelo ético a ser seguido. Conforme diz
Nunes: “A versão do bushidô de Nitobe se tornou mais difundida no ocidente, e
um dos principais pontos que chamam atenção na obra é a presença da
imagem idealizada do samurai como um herói nacional que deveria servir de
32
modelo de identidade nacional a todos os japoneses visando à unificação de
todos os povos do arquipélago” [NUNES, pág. 66, 2011].
Nitobe vai expressar de forma mais cristalina a essência por trás de sua
teorização bem como da função histórica dos samurais na sociedade nipônica
quando aborda a questão da mulher. Ele compara o sacrifício, subserviência
que a mulher deveria realizar ante ao marido e sua casa com o modo como
este último teria de se portar diante do seu senhor ou “suserano”. Para
explicitar isso que foi dito: “A capitulação de si própria da mulher em nome do
bem de seu marido, casa e família era tão desejável quanto o sacrifício do
homem pelo bem de seu senhor e país. A renúncia, sem a qual nenhum
enigma vital pode ser resolvido, era a tônica da lealdade do homem assim
como do âmbito doméstico da mulher. Ela não era mais escrava do homem do
que seu marido era do senhor feudal, e o papel que cumpria era reconhecido
como naijo, “o suporte interior”. Na escala ascendente dos deveres contratuais
figurava a mulher, que se sacrificava pelo homem de modo que ele pudesse se
sacrificar para o mestre [...]” [NITOBE, pág. 104-105, 2019].
O que foi dito até aqui é ainda insuficiente pela carência de demonstração da
gênese dos samurais. Foi mencionado alguns deveres com os quais a classe
guerreira deveria se comprometer. No entanto, para a continuidade da presente
investigação no sentido de romper com a imagem idealizada dos samurais,
torna-se necessário explicitar seu surgimento. Seguindo Yamashiro, a chave
pode ser a disputa por terras por volta do séc. VIII em diante: “Convém
lembrarmos que estamos diante de uma sociedade eminentemente agrária, na
qual praticamente toda a atividade econômica está ligada ou depende da
produção agrícola. Por isso mesmo, toda tensão social, todos os conflitos,
armados ou não, giram quase sempre em torno de questões de terra. E,
enquanto a aristocracia metropolitana se compraz na fruição da vida de lazer e
culto ás belas artes e amor livre [...], surge e evolui no campo a classe samurai.
Em meio à labuta árdua cotidiana do lavrador e de incessantes conflitos
fundiários (estes mais violentos nas áreas pioneiras), forja-se o caráter marcial
e espartano dos novos guerreiros.” [YAMASHIRO, pág. 45, 1993].
33
Vai ser com a revolta de Taira Masakado e a grande mobilização que ocasiona
um relativo sucesso militar nas suas tomadas de posições contra o governo
central; valendo destacar a supressão realizada por grupos guerreiros [MOTTA,
2018]. O termo “samurai” vai surgir posteriormente no séc. X conforme aponta
Motta [pág. 6, 2018]: “Tal fato denotava a consolidação desta nova força no
jogo de poderes daquele momento. Com o reconhecimento da importância
estratégica, militar e política que estes guerreiros exerceriam a partir daquele
momento, a corte estimula a cooptação dos mesmos. Então, a partir do Século
X, começam a surgir a denominação samurai para estes guerreiros [...]”.
34
Inazo enxerga no samurai um ser humano praticamente perfeito, íntegro e
suprassumo moral, em Samurai X tem a trajetória de um guerreiro que se
recusa matar e mesmo assim sai vitorioso em combates. De um lado tem o
exagero em torno da vida guerreira e do outro a redução disso a algo que
historicamente seria inaceitável (inclusive considerando a gênese da classe
guerreira): não matar em confrontos.
Referências
Arthur D’Elia dos Santos é mestrando em Filosofia da UERJ.
35
YAMASHIRO, José. História dos Samurais. São Paulo: Ibrasa, 1993
36
LEIBNIZ E OS JESUÍTAS: O IDIOMA PRIMORDIAL, O I CHING E
O INTERCÂMBIO DE CULTURAS, por Carmen Lícia Palazzo
Introdução
No início da chamada Idade Moderna e até o final do século XVII os europeus
interessavam-se pelo debate em torno do que poderia ter sido um idioma
primordial, anterior ao acontecimento bíblico que ficou conhecido como a
“confusão das línguas” da Torre de Babel [Gênesis 11]. Personalidades como
Guillaume de Postel [1510-1581], John Webb [1511-1680], Athanasius Kircher
[1602-1680], Claude Duret [1570-1680] e muitos outros escreveram sobre o
assunto e levantaram dúvidas sobre a possibilidade de se recuperar a fala e
até mesmo a escrita dos primeiros seres humanos.
A busca do que poderia ter sido o idioma primordial estava presente entre as
muitas discussões sobre a China, no entanto outros assuntos, como a
descoberta do I Ching e sua imaginada correspondência com a aritmética
binária estudada pelo matemático e pensador alemão Gottfried Wilhelm Leibniz
[1646-1716], assim como a antiguidade da milenar civilização chinesa, eram
parte das reflexões, não apenas dos missionários que se encontravam no
Império do Meio, mas também de pensadores europeus.
37
Ao fascínio pelo Egito, que permaneceu por um longo tempo no imaginário
europeu, foram acrescentadas uma grande quantidade de informações sobre a
China, que se revelava ainda mais antiga do que o império dos faraós. O
próprio Kircher demonstrou interesse pela civilização chinesa, apesar de seu
conhecido encanto pelos temas egípcios, que muita vezes o conduziram a se
aproximar de questões ligadas ao ocultismo [GLASSIE, 2012]. O jesuíta
alemão publicou uma obra tratando da China com grande riqueza de
informações, boa parte delas fornecidas por inacianos que viviam no Império
do Meio e que com ele se correspondiam [KIRCHER, 1667/1670].
Ainda que Kircher mantivesse sua opinião de que a língua primordial seria
conhecida quando fossem decifrados os hieróglifos, a discussão na Europa
desenvolveu-se também em outras direções. John Webb, polímata britânico
que escreveu acerca de diversos assuntos, publicou um livro sobre o que ele
considerava a probabilidade do chinês ter sido o primeiro idioma da
humanidade. Em seu texto, Webb desenvolveu uma detalhada reflexão na qual
identificava Noé com o imperador Yao, que os chineses também associavam à
lembrança de um dilúvio [WEBB, 1669, p. 54-55]. Noé teria, então, chegado até
a China, mas como os chineses, segundo as considerações de Webb, não
estavam na região da Torre de Babel, não vivenciaram a dita “confusão das
línguas” conseguindo manter entre si o idioma original. Ainda de acordo com
John Webb, que analisou também textos de outros autores seus
contemporâneos, a língua primordial tinha permanecido através dos séculos
sob a forma escrita dos antigos caracteres chineses e o estudo de suas origens
em um passado distante, se viesse a ser feito, poderia levar a informações
históricas importantes [Ibidem, p. 57-59 e p. 145].
Por mais estranhas que tais reflexões nos pareçam atualmente, elas ocuparam
as mentes de grandes pensadores da época. Sem dúvida o interesse pela
história chinesa era balizado pelas problemáticas do cristianismo o que, no
entanto, não excluía um verdadeiro fascínio da parte de diversos inacianos que
viviam uma profunda imersão naquele mundo tão distinto da Europa. Mundo
que eles, através de seus relatos e de sua correspondência, apresentavam
detalhadamente a pensadores europeus que nunca chegaram a se deslocar
para a Ásia.
38
outras nações tiveram uma escrita comum, que consiste em um alfabeto de
mais ou menos vinte e quatro letras que têm aproximadamente o mesmo som,
ainda que sua imagem seja diferente; mas os chineses têm cinquenta e quatro
mil quatrocentas e nove letras, que exprimem o que elas significam com tanta
graça, vivacidade e força, que nem parecem caracteres, mas vozes e línguas
que falam ou, melhor dizendo, figuras e imagens que exprimem e representam
vivamente o que elas significam, tão admirável que é o artifício dessas letras.”
[MAGAILLANS, 1668, p. 84. Tradução nossa]
Não foi, porém, sem percalços a presença dos jesuítas franceses no Império do
Meio. Os padres já estavam há um certo tempo, exercendo atividades de
cientistas junto à corte chinesa, quando o rei de Portugal, D. João V, colocou
entre os assuntos que deveriam ser discutidos por uma embaixada liderada por
Alexandre Metelo a Beijing, uma clara demanda de proibição da admissão de
novos jesuítas, a não ser daqueles estritamente vinculados ao Padroado
português. [SALDANHA, 2005, p. 26; p. 101-102]. No entanto, naquela
oportunidade, os franceses que atuavam sem o controle de Portugal já haviam
conquistado prestígio e apoio de uma considerável parte do mandarinato e do
próprio imperador, desde a chegada da referida “Missão de Luís XIV”.
39
passado, os chineses teriam seguido uma religiosidade monoteísta. Para ele, o
criador do I Ching, que era, então, atribuído na China ao personagem mítico
Fuxi, teria sido contemporâneo de Noé. Bouvet procurava fazer referência a
personagens míticos ocidentais e asiáticos, na época considerados históricos,
em um relato unificado que associava os chineses com figuras do Antigo
Testamento. Tal corrente de interpretação da Bíblia ficou conhecida como
“figurismo” [LACKNER, 1991, p. 129-149].
Leibniz, embora fosse luterano, passou, então, a manter uma ativa e muito
densa correspondência com diversos inacianos, entre eles os franceses
Joachim Bouvet e Charles Le Gobien, ambos empenhados em levar adiante
uma discussão sobre a antiguidade da civilização chinesa [PERKINS, 2008 e
LEIBNIZ, 1987]. O matemático e pensador alemão defendia a importância do
aprendizado que poderia surgir do contato entre culturas distintas. Em 1697 ele
publicou pela primeira vez a Novissima Sinica, reeditada em 1699, uma obra
com vasta documentação dos jesuítas [LEIBNIZ, 1699] e com um texto
introdutório de sua autoria, no qual deixava claro que considerava importante e
enriquecedor, para ambas as partes, o relacionamento entre europeus e
chineses [LACH, Donald, 1957].
40
A carta de Le Gobien demonstra preocupação com o aval do imperador para a
maneira como os padres interpretavam os ritos, considerados de caráter civil e
não religioso, o que estava, então, sendo alvo de contestação na Europa e
também na China, em geral por missionários de outras ordens. Mesmo que
Leibniz fosse protestante, portanto, em princípio, não participasse da discussão
sobre os métodos de catequese de uma ordem católica, os padres o
consideravam um interlocutor qualificado para, entre os europeus, difundir seus
posicionamentos e defender o comportamento de acomodação às práticas
chinesas.
Sem dúvida, o entendimento dos inacianos, tanto dos ritos quanto dos escritos
de Confúcio, estava influenciado pela vontade de levar adiante a atividade
missionária. Aliás, cabe destacar que a tradução dos textos mais importantes
do confucionismo para língua portuguesa, realizada bem posteriormente pelo
padre Joaquim Guerra, entre 1973 e 1981, também pode ser vista de forma
semelhante, ancorada na religiosidade católica. Conforme escreveu o sinólogo
e professor André Bueno:
41
para construir imagens de uma China fascinante, mas que deixava de ser a
extrema alteridade, em função de interpretações que a aproximavam de uma
história comum de toda a humanidade.
Diferente dos objetivos dos jesuítas, que pretendiam demonstrar que a China já
havia, na Antiguidade, conhecido algo semelhante a uma religiosidade
monoteísta e, talvez, segundo eles acreditavam, fosse a detentora do idioma
primordial, Leibniz interessava-se com mais empenho em demonstrar a
importância do relacionamento entre culturas distintas. Seu escopo era mais
amplo, ainda que não excluísse as considerações de ordem religiosa. Mesmo
sendo protestante, em mais de uma oportunidade manifestou-se explicitamente
favorável às atividades dos missionários católicos na China, tanto porque ele
mesmo defendia uma catequese sobretudo cristã, quanto, e talvez
principalmente, pelo fato de que ela favoreceria o intercâmbio entre as culturas
europeia e chinesa. Leibniz justamente considerava tal possibilidade porque os
jesuítas, além de missionários, eram cientistas junto à Corte imperial. E, ao
intercâmbio entre culturas distintas, ele dava o nome de “comércio de luz” [TAI,
1990, p. 55], destacando a importância das trocas culturais, que defendia como
benéficas para ambos os lados.
Considerações finais
Uma análise das discussões que circulavam na Europa no século XVII e início
do XVIII nos mostra que as atividades dos jesuítas, especialmente na China,
não se restringiam à catequese. Muitos deles, com acurada formação científica,
eram herdeiros intelectuais de astrônomos e matemáticos como Cristopher
Clavius [1538-1612] que havia sido professor do Colégio Romano e reformador
do calendário que ficou conhecido como Gregoriano [KNOBLOCH, 1988].
Interessavam-se, portanto, em entender os meandros de uma História que
descobriram ser muito mais antiga do que poderiam imaginar, com alguns
personagens míticos, outros reais, mas transmissores de conhecimentos
milenares, tanto na escrita quanto na matemática e na filosofia. Descobertas
reais, especulações, construções imaginárias, eram múltiplos os tema para a
vasta correspondência que os padres mantinham com pensadores europeus.
42
Tais considerações, muito amplas para uma discussão mais aprofundada no
presente texto, podem conduzir a pesquisas mais acuradas, detalhando a
atuação dos jesuítas da denominada Missão Francesa em debates sobre
questões de interesse nas discussões filosóficas e científicas da época. Leibniz
e também diversos inacianos constituíram-se numa ponte para os novos
olhares sobre a China, que surgiriam a partir de meados do século XVIII,
menos preocupados, então, com a busca do idioma primordial ou com as
narrativas bíblicas e mais interessados em explicar a presença da Razão no
pensamento chinês, ainda que não desvinculados das preocupações da própria
Europa. Na medida em que diversos questionamentos eram levantados, abria-
se caminho para que pensadores como Voltaire e outros incluíssem a presença
do Império chinês em suas reflexões.
Referências
Carmen Lícia Palazzo é doutora em História pela Universidade de Brasília,
UnB, professora aposentada do centro Universitário de Brasília, CEUB,
membro do Instituto Histórico e Geográfico do DF, IHG-DF e pesquisadora com
foco no tema de olhares europeus sobre a Ásia, principalmente China e Oriente
Médio, intercâmbio de culturas e análise de relatos de viajantes. E-mail:
[email protected]
43
56. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/rhs_0151-
4105_1988_num_41_3_4100
————. Discours sur la théologie naturelle des Chinois, plus quelques écrits
sur la question religieuse de la Chine. Tradução, apresentação e notas de
Christiane Frémont. Paris: L’Herne, 1987.
44
TAI, Li-Chuan. “Commerce de lumière: Deux missionnaires naturalistes français
et leurs œuvres muséales en Chine” in Revue de la BNF, vol. 3, n. 36, 2010, p.
56 a 64. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-de-la-bibliotheque-
nationale-de-france-2010-3-page-56.htm#no1
45
JAPANESENESS: O ORIENTALISMO JAPONÊS,
por Cássio Gabriel de Campos Silva
O Japão da Era Meiji (1868 – 1912), iniciado com a Restauração Imperial sobre
o governo militar dos Tokugawa, é caracterizado como um período de
mudanças extremas no governo e na sociedade japonesa. Estas mudanças
foram tão grandes que, apesar de alguns historiadores denominarem o período
de Restauração Meiji, foi uma verdadeira revolução, derrubando praticamente
todas instituições arcaicas do Xogunato Tokugawa, e substituindo-as por
instituições “modernas” do ocidente. Segundo Benedict Anderson, o sucesso
da Restauração Meiji, bem como a ocidentalização do Japão, só teve sucesso
devido a três fatores fortuitos: “Primeiramente foi o relativo elevado grau de
homogeneidade etno-cultural japonesa resultado de dois séculos e meio de
isolação e pacificação interna pelo Bakufu. [...] Segundo, a antiguidade única
da casa imperial [...] e a presença do emblemático Japanese-ness [...], que
facilitou a utilização do Imperador para os propósitos oficiais-nacionalistas do
governo [...]. Terceiro, a entrada de bárbaros foi abrupta, massiva, e violenta o
suficiente para fazer com que a população politicamente conectada buscasse
programas de autodefesa nacional com o novo governo.” [Anderson, 2016,
p.95 – 96, tradução nossa]
46
como foi feita a ocidentalização do governo Meiji, bem como isso influenciou o
discurso da expansão imperialista japonesa.
47
A primeira tentativa para aplicar essa gramática da religião, foi tentar
transformar o Xintoísmo como a religião oficial do Governo Meiji, sendo
fortemente defendido por intelectuais do período pré-moderno (chamados de
Kokugaku-sha, ou Nativistas), e também por seus sucessores durante a Era
Meiji, como a essência da identidade Japonesa [Hardacre, 2017], portanto,
enxergando na religião indígena a oportunidade perfeita para consolidar seu
governo sem ser pela força, encontrando legitimidade em suas ações e no
reconhecimento do Imperador como governante supremo. Antes da
Restauração Meiji, o Imperador já realizava rituais xintoístas com intuitos
religiosos e tradicionais, porém após a Restauração, atos oficiais do passaram
a ter formatos ritualísticos, como por exemplo o Juramento Imperial de 1868,
que pretendia expor as intenções do imperador para com o Japão, como por
exemplo a união dos corações e mentes do povo por uma melhor
governabilidade do império; quebrar as amarras das tradições malignas e
basear suas ações nos princípios das leis internacionais; entre outras.
Entretanto, como John Breen atesta: “o Juramento é ‘performativo’, nunca é
apenas um texto, uma declaração ou um conjunto de declarações. Um
juramento é, por definição, uma performance e, dadas certas condições –
notavelmente o uso de símbolos e sua proximidade íntima do sagrado – essa
performance se torna em um ritual.”[Breen, 1996, p.409, tradução nossa]
48
Como podemos ver na imagem acima, a Proclamação do Juramento Imperial,
apesar de ter sido um ato oficial do governo, ele é extremamente ritualístico,
onde todos os participantes usam roupas ritualísticas, o Imperador, cercado por
um biombo de três faces, fica no meio do ambiente, e, no lugar de maior
prestígio onde todos podem ver, possui um pequeno santuário com itens de
purificação onde o imperador realizaria as oferendas às deidades e uma mesa
baixa com o juramento escrito, o qual seria lido por Sanjo Sanetomi em nome
do Imperador Meiji. Essa inserção da religião no governo, era visto por seus
líderes como uma maneira ocidental de exercer o poder e unificar o povo em
prol de uma causa comum, chegando ao seu ápice, após várias idas e vindas,
no final do Período Meiji com o que foi chamado de Estado Xintoísta.
Fonte: Adachi, G. (1889). View of the Issuance of the State Constitution in the
State Chamber of the New Imperial Palace. [One sheet of a triptych of
woodblock prints; ink and color on paper]. The Metropolitan Museum of Art.
New York, NY, United States of America.
https://www.metmuseum.org/art/collection/search/55247?ft=imperial+japan&am
p;off
set=0&rpp=40&pos=34
49
A promulgação da Constituição Meiji contou como um marco para o fim do
período semi-colonial japonês, uma vez que após a promulgação, o Japão
passou a fazer parte do cenário internacional e passou a ter força o suficiente
para revisar os Tratados Desiguais firmados na primeira metade do século XIX.
Mas também é um marco para o começo do desenvolvimento imperial-
colonialista japonês, bem como de sua própria forma de orientalismo, o
Japaneseness.
Outro ponto importante que deve ser chamado atenção na Constituição Meiji, é
o Artigo 28, onde lê-se: “Súditos japoneses devem, dentro dos limites não
prejudiciais à paz e à ordem, e não antagônicos aos seus deveres como
súditos, gozar de liberdade de crença religiosa” [Constituição Meiji, 1889, in Itō,
1889, p.53, tradução nossa]. Portanto, os deveres dos súditos, como a
reverência ao Imperador e a participação em rituais e festivais promovidos por
Santuários Xintoístas, ultrapassavam o direito de crença religiosa. Essa
reverência e ritualística, os ideais de desenvolvimento moral e intelectual dos
súditos, bem como a ótica de superioridade japonesa, foram transportados
para colégios de toda a nação através do Édito Imperial sobre Educação de
1890.
50
artes, e deste modo desenvolverão faculdades intelectuais e poderes
morais perfeitos; ademais, desenvolverão os bens públicos e promoverão os
interesses comuns; sempre respeitem a Constituição e observem as leis; caso
alguma emergência surja, ofereçam-se corajosamente para o Estado; e
assim guardar e manter a prosperidade de Nosso Trono Imperial
contemporâneo com os céus e a terra. Deste modo vocês não serão apenas
Nossos bons e fiéis súditos, mas tornarão ilustres as melhores tradições de
seus antepassados. O Caminho aqui estabelecido é de fato os
ensinamentos legados por Nossos Ancestrais Imperiais, a serem
observados por Seus Descendentes e súditos, infalivelmente por todas as
eras e verdadeiro em todos os lugares. É Nosso desejo colocá-lo com toda a
reverência nos corações, em comum com vocês, Nossos súditos, para que
todos possamos alcançar as mesmas virtudes.” [Édito Imperial sobre
Educação, 1890, como citado por Hardacre, 1989, p.121 –122, tradução e
grifos nossos]
51
Fonte: The Imperial Rescript on Education 「教育勅語下賜」Kyōiku Chokugo
Kashi [postcard]. 「明
治大正昭和大絵巻 」大日本雄弁会講談社.
Conclusão
Apesar das limitações deste trabalho, o autor tenta demonstrar que o
Japaneseness do Período Meiji, diferentemente do que Anderson afirma, não
era uma característica fortuita e inerente da população do período e
responsável pelo sucesso da Restauração Meiji e sua Modernização, mas foi
uma criação influenciada pelas potências ocidentais nos mesmos moldes do
Orientalismo de Said. O Édito Imperial sobre Educação assim como a
Constituição Meiji, foram dois marcos na organização do Japaneseness como
uma ideologia nacionalista e imperialista. Deste momento em diante, o Japão
não era mais peão no complexo jogo de dominação colonial. O Império
Japonês não só aprendeu táticas orientalistas, como as assimilou na
mentalidade da sociedade. O que antes era um medo de tornar-se colônia de
alguma potência ocidental, tornou-se em um desejo de exportar seu “sucesso”
aos demais países “inferiores” do Leste asiático. A vitória japonesa sobre o
antigo gigante asiático, na primeira Guerra Sino-Japonesa (1894 – 1895), e
sobre um país ocidental, na Guerra Russo-Japonesa (1904 – 1905), deu ao
Japão a supremacia militar necessária para expandir o Japaneseness para
além do arquipélago japonês.
52
Referências
Cássio Gabriel de Campos Silva é estudante PHD do Departamento de
Sociologia da Universidade Metropolitana de Tokyo, mesma universidade na
qual obteve o título de Mestre das Artes em Sociologia. O autor também é
historiador graduado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo.
Kiyoto Tanno é professor do Departamento de Sociologia da Universidade
Metropolitana de Tokyo e orientador do primeiro autor (Cássio). Professor
Tanno é especializado em estudos de migração, sociologia do trabalho de
trabalhadores estrangeiros e estudos étnicos. Formou-se em 1991 no
departamento de Economia da Universidade de Kanagawa e em 2003 obteve
seu PHD em sociologia na Universidade de Hitotsubashi.
BREEN, John. “The Imperial Oath of April 1868: Ritual, Politics, and Power in
the Restoration” in Monumenta Nipponica, Vol. 51, n.4, Inverno, 1996, p. 407–
429. Disponível em: https://doi.org/10.2307/2385417
HARDACRE, Helen. Shintō and the State, 1868 – 1988. New Jersey: Princeton
University Press, 1989.
MAXEY, T. The Greatest Problem: Religion and State formation in Meiji Japan.
Massachusetts: Harvard University Press, 2014.
53
“TÃO NECESSÁRIOS UM AO OUTRO COMO
HOMEM E MULHER”: REPRESENTAÇÕES DO
JAPÃO E COREIA EM COREA, THE HERMIT NATION
(1911), por Emannuel Henrich Reichert
54
[Hirakawa, 1989, p. 466]. De volta aos Estados Unidos, tornou-se pastor e
combinou a atividade religiosa com um grande volume de escritos e palestras
voltados a promover o conhecimento do Japão e dos japoneses [Ota, 2023, p.
17-18]. Sua obra principal foi The mikado´s empire (O império do micado),
misto de história japonesa e observações pessoais, publicado em 1876 e
reeditado sucessivas vezes com o acréscimo de novos capítulos acerca dos
acontecimentos mais recentes.
55
Os verdadeiros vilões por trás da anexação da Coreia foram os yang-ban,
despóticos e retrógrados, responsáveis pela situação precária do país:
Entre os nobres nocivos ao país, Griffis destaca o papel das mulheres, que
responsabiliza por intrigas palacianas em detrimento do interesse coletivo.
Culpa em particular a rainha Min por abrigar no palácio inúmeros parasitas que
viviam às custas do povo - cabe mencionar a postura resolutamente anti-
influência japonesa por parte da rainha, que levou ao seu assassinato em 1895
a mando do diplomata japonês Miura. Provavelmente o posicionamento político
da rainha foi um fator relevante para moldar a opinião de Griffis, através da sua
consulta a fontes japonesas. No Japão, ao contrário da Coreia, a alta política
era assunto de homens, o que ele entende ser positivo: “no Japão, a posse de
cargos por mulheres do palácio foi abolida. No palácio em Seul, sua influência
podia anular em segredo os negócios públicos” [Griffis, 1911, p. 480].
56
méritos dos governadores ‘bons’, quer dizer, mais ou menos decentes” [Griffis,
1911, p. 515].
O panorama traçado por Griffis de uma Coreia dividida entre nobreza parasita e
povo subjugado acaba por justificar o imperialismo japonês em nome do bem
dos próprios dominados. Se os coreanos fossem bons, a anexação seria
moralmente injustificável. Se fossem maus, a missão civilizadora seria inútil.
Griffis torna a intervenção estrangeira viável e aceitável, mesmo necessária, ao
representar a sociedade coreana como dividida entre uma pequena minoria má
e estagnada que oprime sem cessar e uma massa benevolente, mas que se
submete quase que incondicionalmente aos governantes. Para modernizar a
Coreia, os yang-ban precisavam ser afastados do poder porque, em seu
tradicionalismo e egoísmo exacerbados, haviam se mostrado incapazes da
tarefa. Tampouco o povo podia empreender a modernização sozinho, porque
havia sido deformado pelo mau governo, ficando reduzido à docilidade ou a
gestos fúteis de violência. Os coreanos não estavam habilitados a salvar o
próprio país, logo, alguém de fora precisaria fazê-lo por eles. O célebre dito de
Marx, adotado como epígrafe do Orientalismo de Said, aplica-se perfeitamente
à população da Coreia descrita por Griffis: “eles não são capazes de
representar a si mesmos, necessitando, portanto, ser representados” [Marx,
2011, p. 143].
57
dos desafios que enfrentavam. Ao contrário dos yang-ban interesseiros e
ociosos, a classe samurai japonesa havia renunciado às suas pensões
hereditárias em nome do patriotismo e se empenhado em trabalho produtivo
[Griffis, 1911, p. 498, 513]. Apenas para exemplificar o olhar idealizado de
Griffis para o Japão, vale lembrar que a perda “voluntária” de privilégios legais
e financeiros dos samurais envolveu cálculos políticos por parte dos envolvidos
e coerção governamental, e que houve várias revoltas de samurais
tradicionalistas e insatisfeitos na década de 1870, a mais famosa sendo a
Rebelião de Satsuma, comandada por Saigô Takamori, anteriormente um dos
líderes da Restauração Meiji [Vlastos, 1989, p. 382-402].
58
atrasados, mesmo a malgrado destes. A exceção na ocidentalização narrativa
do Japão é a fraqueza do cristianismo em solo nipônico, que leva a uma
inversão momentânea dos termos: o autor espera que a liberdade religiosa
implementada na Coreia faça prosperar ali a obra dos missionários e, uma vez
convertida, a colônia possa trazer a salvação cristã à metrópole.
É uma questão pertinente, mas que escapa aos objetivos desta investigação,
saber em que medida Griffis foi influenciado pela natureza das fontes que
consultou e seu conhecimento linguístico, pois tinha acesso direto a obras
japonesas, mas dependia de traduções para material coreano. É bastante
provável que ele tenha adquirido parte da visão depreciativa da Coreia em
textos “orientalizantes” de autores japoneses.
Referências
Emannuel Henrich Reichert é Doutor em História pela Universidade de Passo
Fundo. Atualmente trabalha na Secretaria de Planejamento, Governança e
Gestão do Estado do Rio Grande do Sul.
DUUS, Peter. The abacus and the sword: the Japanese penetration of Korea,
1859-1910. Berkeley: University of California Press, 1995.
GRIFFIS, William Elliot. Corea, the hermit nation. 9. ed. New York: Charles
Scribner´s Sons, 1911.
HIRAWAKA, Sukehiro. Japan´s turn to the west. In: JANSEN, Marius B. (ed.).
The Cambridge History of Japan. Volume 5: The Nineteenth Century.
Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 432-498.
59
MOREFIELD, Jeanne. Empires without Imperialism: Anglo-American decline
and the politics of deflection. New York: Oxford University Press, 2014.
OTA, Yuzo. William E. Griffis The Mikado´s Empire (1876). In: SAEKI, Shôichi;
HAGA, Tôru (eds.). Masterpieces on Japan by Foreign Authors: From
Goncharov to Pinguet. Singapore: Springer Nature, 2023, p. 17-20.
60
UM ENTERRO CELESTIAL NEM DIURNO E NEM NOTURNO,
MAS CREPUSCULAR: UMA ANÁLISE DA OBRA XINRAN À LUZ
DO IMAGINÁRIO DURANDIANO, por Jander Fernandes Martins
e Vitória Duarte Wingert
61
desaparecido. (Xinran, 2004) Ao longo de sua carreira literária, Xinran
continuou a escrever sobre questões relacionadas às mulheres e à sociedade
chinesa, lançando outras obras significativas, como "As boas mulheres da
China” (2004) e “Testemunha da China: vozes de uma geração silenciosa”
(2009).
Nesse sentido, "Enterro Celestial" foi publicado em 2004, mas a história do livro
se passa nas décadas de 1950 e 1960, logo, está inscrito e marcado por
eventos significativos na história chinesa. No livro, Xinran explora a história de
Shu Wen, que se aventura no Tibete em busca de seu marido desaparecido. O
Tibete é uma região com uma cultura e uma identidade distintas, e
historicamente tem sido um ponto de tensão entre a China e o Tibete devido às
disputas sobre autonomia e independência. No Ocidente, tal disputa ganhou
proeminência e espaço pelo forte movimento e campanha de talvez o seu mais
famoso tibetano, Dalai Lama.
62
Como estilo narrativo, a obra apresenta outros personagens, também, com
suas histórias é possível identificar, nesses cenários, o abrupto processo de
aculturação e enculturação, que marcam processos de colonização e que, hoje,
diante dos estudos decoloniais.
“Amor e devoção”: A história central gira em torno do amor de Shu Wen por
seu marido e sua devoção em encontrá-lo. (Xinran, 2004, pp. 20-35)
“Identidade e pertencimento”: Shu Wen enfrenta desafios em sua identidade
pessoal enquanto navega entre a cultura chinesa e tibetana. O livro levanta
questões sobre a formação da identidade em um contexto multicultural e as
tensões resultantes dessa interação. (Xinran, 2004, pp. 36-82) “Consequências
da ocupação”: O livro aborda as consequências da ocupação chinesa no
Tibete. Xinran explora as histórias individuais de tibetanos que foram afetados
pela presença chinesa, revelando o impacto nas tradições culturais, na religião
e nas relações interpessoais. (Xinran, 2004, pp. 82-94). “Espiritualidade e fé”: A
jornada de Shu Wen pelo Tibete a expõe a práticas espirituais e crenças
religiosas tibetanas. O livro explora as noções de espiritualidade, fé e
transcendência em meio à adversidade. (Xinran, 2004, pp. 95-140)
63
A dimensão imaginária do ser humano tem sido objeto de estudo e fascínio ao
longo dos séculos. Desde mitos e rituais até narrativas contemporâneas e
práticas simbólicas, o imaginário desempenha um papel fundamental na
construção da identidade individual e coletiva. As estruturas antropológicas do
imaginário referem-se aos padrões, símbolos e significados subjacentes que
dão forma às representações simbólicas e imaginárias de uma determinada
cultura ou sociedade. (Durand, 1979; 1985; 1989; 1995; 1996; 2002; 2004a;
2004b; 2008)
Assim sendo, o autor propõe que o imaginário humano possui uma estrutura
subjacente que transcende as diferenças culturais. Essa estrutura
antropológica do imaginário é composta por padrões simbólicos e arquétipos
que são compartilhados pelas sociedades humanas que, como se vê no
conjunto de sua obra, é a materialização concreta de regimes de imagens
(diurno e noturno), estruturadas em narrativas heróicas, místicas e/ou sintéticas
que são reflexos psíquicas de reflexos dominantes biológicos (bípede, sucção e
cópula), que instauram (ou permitem a instauração) de esquemas verbais
heroicos, antifrásicos e dramáticos. (Durand, 2002)
“[...] O Regime Diurno tem a ver com a dominante postural, a tecnologia das
armas, a sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais da elevação e da
purificação; o Regime Noturno subdivide-se nas dominantes digestiva e cíclica,
a primeira subsumindo as técnicas do continente e do habitat, os valores
alimentares e digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora, a segunda
agrupando as técnicas do ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os
64
símbolos naturais ou artificiais do retorno, os mitos e os dramas
astrobiológicos. [...] (Durand, 2002, p. 58, itálicos do original).
Nesse sentido, cremos que Ana Taís Barros (2010, p. 135, itálicos do original),
traduz elucidativamente o que o autor francês postula:
Durante o ritual, há uma série de práticas e crenças que são seguidas. São
feitas orações e incensos são queimados como forma de comunicação com o
mundo espiritual. Músicas e cantos podem ser entoados para acompanhar o
processo. Os familiares e amigos também trazem oferendas, como comida,
bebida e objetos simbólicos, para serem colocados ao lado do caixão. Uma
parte importante do ritual é o corte de mechas de cabelo dos familiares
próximos do falecido. Isso simboliza a união e a conexão entre os vivos e os
mortos. As mechas de cabelo são então colocadas no caixão como uma forma
de acompanhamento e proteção espiritual para o falecido. Após o ritual, o
caixão é levado para o local de enterro, que pode ser um cemitério ou um local
designado. O enterro em si pode variar dependendo das crenças e costumes
familiares. Alguns podem preferir o enterro em covas individuais, enquanto
65
outros podem optar por enterros em colinas ou montanhas sagradas. (Xinran,
2004)
Conclusão
66
Neste paper, discutimos a autora Xinran e seu livro "Enterro Celestial".
Fornecemos uma visão geral da carreira literária de Xinran, destacando seu
papel como uma renomada escritora chinesa que aborda questões sociais e
culturais em suas obras. Exploramos o contexto social e cultural em que
"Enterro Celestial" foi escrito e, em seguida, descrevemos o enredo do livro, os
temas recorrentes e as principais personagens.
Assim, Enterro Celestial (2004) é uma obra literária significativa de Xinran, que
possui relevância histórica e cultural, pois, entendemos que a obra oferece,
além de uma visão da sociedade chinesa, uma compreensão global
promovendo reflexão sobre questões sociais e culturais importantes.
Referências
Jander Fernandes Martins é Mestre e Doutor em Processos e Manifestações
Culturais (Universidade FEEVALE). Pedagogo (UFSM) e professor concursado
em Rede Municipal de Campo Bom-RS. E-mail: [email protected]
67
Vitória Duarte Wingert é Mestra em Processos e Manifestações Culturais
(Universidade Feevale). Doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social
(Universidade Feevale). Licenciada em História (Universidade FEEVALE).
Professora concursada em Rede Municipal de Campo Bom-RS. E-mail:
[email protected].
68
________________. O retorno do mito: introdução à mitodologia. Mitos e
sociedades. Revista FAMECOS. Porto Alegre. nº 23, 2004a. Disponível em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/324
6. Acessado em 29/06/19.
69
IMAGENS E IMPRESSÕES DO JAPÃO ANTES E DEPOIS DA
ABERTURA DOS PORTOS DE 1854, por Levi Yoriyaz
Apresentação do tema
Com o advento da reabertura dos portos japoneses, com a chegada dos norte-
americanos em 1854, o Japão foi pressionado a permitir a prática comercial
dos demais portos com as nações europeias. Cidades portuárias como
Hakodate, Shimoda, Nagasaki e Yokohama passaram a estar provisoriamente
sob o domínio dos norte-americanos e dos ingleses, pelo princípio de
extraterritorialidade.
70
Japão de Earl de Elgin nos anos 1857-1858, por Laurence Oliphant, secretário
de Lord Elgin, divulgou coleções de objetos artísticos japoneses por todo o
império britânico.
Essa animosidade se dava na aquisição de quimonos, leques e xilogravuras,
de modo que esses artigos foram considerados, pelos europeus, como
materiais de luxo e arte refinada. Desse modo, os ornamentos e as obras de
arte japoneses se tornaram manifestações da beleza exótica, o que também
despertou grande interesse dos europeus, especialmente na França, para as
artes. O fascínio que os artistas tinham a respeito da arte japonesa era por
buscarem técnicas e expressões que saíssem do padrão tradicional, isto é, se
desvincularem das referências greco-romanas e desfazerem o compromisso da
arte com a moral ou com qualquer intenção pedagógica.
“De todos os exotismos, o Japão tinha algo especial, diferente. O país do sol
nascente já havia seduzido por suas estranhas formas, por sua rica e
interessante coloração, por seus frescos e doces matizes. Agora, apresentava-
se sobretudo como um protótipo de arte aristocrática, com chancela de riqueza
e elegância. Atraía por sua atmosfera de civilização mais refinada que o
Ocidente”. (LITVAK, 1986, pg. 113)
71
perspectiva de vista aérea, a paginação inusitada, características que
instigaram uma nova orientação da sensibilidade artística europeia. A
referência não se dava na imitação das técnicas de ukiyo-e, mas na apreensão
do uso das cores, habilidades de desenho e inclusão de paginação nas
pinturas, na busca de manifestar expressões artísticas fora dos grandes salões
de arte.
72
sobre o Japão. Fascinado pela arte e cultura japonesa descritas nas obras de
Lowell, Hearn viajou para o Japão em 1890, como correspondente do jornal
Harper’s Magazine, de Nova York. Nesse período, também atuou como
professor da língua inglesa na Universidade Imperial de Tóquio e de Waseda, e
mais tarde buscou obter a cidadania japonesa, tomando o nome de Koizumi
Yakumo.
“An ideograph does not make upon the Japanese brain any impression similar
to that created in the Occidental brain by a letter or combination of letters – dull,
inanimate symbols of vocal sounds. To the Japanese brain an ideograph is a
vivid picture: it lives; it speaks; it gesticulates. And the whole space of a
Japanese street is full of such living characters – figures that cry out to the
eyes, words that smile or grimace like faces”. (HEARN, 1894, pg. 12)
73
sugerir que sua discussão se passa no quesito psicológico de um indivíduo
japonês, pautada no comportamento de um público de classe média, isso ainda
estabelece um divisor de águas em que a “civilização ocidental” carrega o peso
um objeto que representa o progresso ou o requisito que promove a evolução e
aperfeiçoamento de toda comunidade humana. Logo, o que Hearn acaba
propondo não é comparar diferentes culturas ou sociedades, mas insinuar que
a adoção da civilização ocidental é atingir uma nova etapa de desenvolvimento
social humano.
74
ser exótico por apresentar uma “civilização completa” causa o impacto de
estranheza, como se o esperado fosse a cultura japonesa ser desprovida de
traços que poderiam ser julgados como “civilizados”. Encontramos fascinação e
conflito da parte do autor quando notamos que, na sua narrativa, Lima
reconhece que o perfil da sociedade japonesa comporta a definição de
“civilização” segundo os parâmetros europeus, mas ao mesmo tempo tem-se o
sentimento de estranheza devido aos fundamentos dessa mesma civilização
diferirem dos modelos que o autor tem maior familiaridade.
75
econômico, de modo que, com o advento da transição do século XVIII ao XIX,
a expansão imperialista das nações europeias fez com que as nações
asiáticas, como no caso do Japão, se tornassem paisagens exóticas, onde
seus materiais culturais se tornariam em atrativos de consumo. Dessa forma, a
imagem de Oriente apresentada pelo Ocidente tem, como parte de sua
formação, atividades e projetos de conquista e de dominação territorial, o que
ironicamente permitiu mais tarde a apreciação da arte e da cultura japonesa.
Referências Bibliográficas
Levi Yoriyaz é doutorando em História na área de História Cultural do
Programa de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas na
Unicamp, sob a orientação da Prof.ª Dr. Raquel Gryszczenko Gomes Alves.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5526528700450072.
Fontes
WILDE, Oscar. The Complete Works of Oscar Wilde, vol. 1. In: FONG, B. &
BECKSON. K. (orgs). Poems and Poems in Prose. Oxford: Oxford University
Press, 1993.
Referências
DOWNER, Lesley. Madame Sadayakko: The Gueixa who Bewithced the West.
New York: Gotham, 2004.
76
TAKASHINA, Shuji. Problemas do Japonismo. In: O Japonismo. Paris: Edições
da reunião dos Museus Nacionais, 1988.
WATANABE, Toshio. Preface. In: Japan and Britain In: An aesthetic dialogue
1850-1930. Londres: Lund Humphries, Barbican Art Gallery; Setagawa Art
Museum, 1991.
77
AS REPRESENTAÇÕES DO ÓPIO NO JORNAL DIÁRIO DE
PERNAMBUCO, por Lohanna de Lima Tavares e Carlos
Eduardo Martins Torcato
78
que ele tenha se tornado um importante produto comercial. (TORCATO, 2015,
p.56 apud COURTWRIGHT, 2001)
79
imperador Yongzheng. Essa proibição estava diretamente ligada com as
representações do ópio na sociedade e sua relação com o mandarinato, uma
vez que o ópio era uma droga comumente encontrada em bordéis, o que
simbolizava uma degradação moral (SPENCER, 1996).
Entretanto, tendo em visto que o ópio era ilegal na China, o tráfico desta
80
substância não só ia contra as leis proibicionistas propostas pelo imperador
chinês e os valores morais estabelecidos na sociedade chinesa, mas também
ameaçava a economia do país, que agora se encontrava em posição de
desvantagem. Sendo assim, esses fatores acabavam causando conflitos entres
as autoridades chinesas e ingleses, o que junto com as leis proibicionistas,
ocasionou a maior guerra envolvendo a China: A Guerra do ópio, nos anos de
1839-1842 e 1859-1862.
Esse evento foi noticiado por vários jornais, inclusive o Diário de Pernambuco,
uma vez que foi uma peça chave para a guerra que aconteceria
posteriormente, além de que a partir desse derramamento, os ingleses
perderam uma significativa quantia de dinheiro:
Em 15, chegaram os comissários Kee Ying Elipo, e Gnú, e depois das visitas
de cerimônia, começaram as negociações, as quais terminaram em 29, com a
assignatura do tratado, cujas bases, segundo a circular de Sir II Potinger,
datada do mesmo dia, são as seguintes:
81
Espelhados nos tratados surgidos anteriormente, vários outros países fizeram
acordos com a China, entre eles a França, que chegou a estipular em seu
tratado a permissão da religião católica no território chinês, permitindo a
presença de missionários no país. Com os inúmeros tratados surgidos que
garantiam o comércio chinês com os estrangeiros, as expectativas sobre esse
comércio eram altas. Era esperado que as cinco cidades escolhidas - Cantão,
Fuzhou, Ningbo, Xangai e Xiamen - prosperassem e apresentassem um bom
desenvolvimento (CARNEIRO, 2018).
82
preferimos o México, lutando pela dignidade própria, à China, recebendo
insensível o ópio que lhe mina as forças physicas (sic) e lhe abate o caráter
moral”. (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 22/01/1863, p.1).
A partir dessa notícia se pode perceber que quando se tratava da China, o ópio
era atrelado automaticamente ao país, devido aos acontecimentos anteriores,
juntamente como a Primeira Guerra do Ópio, sendo relacionado de forma
negativa, fortalecendo a ideia de que os opiáceos prejudicava não só o físico,
como também infligiram a moral dos homens. Os chineses eram retratados
como uma população entregue a imoralidade causada pelo ópio e totalmente
passiva, uma vez que aceitaram o comércio livre de ópio proposto pelo Tratado
de Nanquim após a vitória inglesa no ano de 1842.
Apesar dos termos “raça” e “racismo” serem atuais, surgidos entre o fim do
século XIX e início do século XX, juntamente com a teoria das raças, que seria
o fator determinante para o racismo, no século XVI, os missionários jesuítas já
declaravam alguns costumes “bizarros” e certa inferioridade, como citava o
jesuíta Valignano: “Uma característica comum a todos esses povos (e não me
refiro apenas às raças brancas da China e do Japão) é a falta de distinção e de
caráter. Tal como diria Aristóteles, eles nasceram para servir e não para
comandar.” (BETHENCOURT, 2018, apud VALIGNANO, p.214).
83
Apesar do orientalismo e os preconceitos relacionado com os chineses seja
antecedente a eclosão do consumo de ópio e a Guerra do Ópio na China,
esses eventos foram determinantes para alimentar este discurso, uma vez que
a droga se tornou um aspecto comumente atrelado, mesmo erroneamente, aos
chineses, a fim de contribuir para a reafirmação desse discurso que busca
demonstrar a inferioridade dos povos orientais. No entanto, as temáticas
envolvendo a China e as questões raciais e orientalistas no século XIX ainda
são campos poucos explorados e invisibilizados dentro da historiografia, por
mais que sejam uma parte importante da história e que manifestou grande
influência na sociedade, tendo em vista que mesmo após o século XIX alguns
estigmas permanecem e se enraizaram dentro da estrutura social, sendo
presentes até os dias atuais. Por mais que o discurso orientalista esteja
gravado nas mentalidades dos sujeitos atualmente, dado que não é incomum
discursos e termos pejorativos em relação a essa raça e sua cultura,
principalmente ligado a culinária chinesa e alguns costumes que são vistos
como “bizarro” pelos ocidentais, ainda assim as questões raciais envolvendo
chineses ainda são invisibilizadas.
Referências
Lohanna de Lima Tavares é graduanda em História pela Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (UERN). email: [email protected]
Carlos Eduardo Martins Torcato é doutor em História Social pela Universidade
de São Paulo (USP) e professor do Departamento de História, do
PROFHistória e do PPGCISH pela UERN. email: [email protected]
Fontes
China.Diário de Pernambuco, 13/01/1843, p.1.
Outros
BETHENCOURT, Francisco. Racismos: das cruzadas ao século XXI. São
Paulo: Companhia das Letras, 2018.
84
CARNEIRO, Henrique. Amores e sonhos da flora: afrodisíacos e alucinógenos
na botânica e na farmácia. São Paulo: Xamã, 2002.
85
A MODERNIDADE EURO-ORIENTAL DE AMIN MAALOUF:
APONTAMENTOS PARA DIÁLOGO por Manoel Adir Kischener
e Everton Marcos Batistela
Introdução
Amin Maalouf (Beirute, 25 de fevereiro de 1949) é um intelectual libanês
radicado na França desde 1976. Retorna ao mercado editorial brasileiro com a
publicação/tradução de novo e polêmico livro: “O naufrágio das civilizações”
(2022). Antes mais conhecido por “As Cruzadas vistas pelos árabes” publicado
nos anos 1980.
Propriamente pelos títulos o leitor já poderá ter certa ideia de que a escrita de
Maalouf caminha mais por uma Filosofia da História no primeiro caso e, uma
História vista de baixo, com temas marginais, por uma nova interpretação da
narrativa histórica, no segundo título, onde, de acordo com Zatta (2009, p. 1,
com acréscimo) o autor “[...] pôde aproveitar a onda de novos estudos acerca
do ‘orientalismo’ trazida com a obra de [Edward] Said”.
86
Destarte, contribui sobremaneira à História ensinada por cumprir requisitos, por
lançar mão de olhares históricos, leia-se pontos de vista/de narrativa diversos
do convencional, daquilo que consta nos livros didáticos que a maioria dos
professores da Educação Básica acessa, ou mesmo do expõe a grande mídia,
na quase ojeriza ao árabe (na diversidade dos povos). É um outro árabe que
aparece e ganha protagonismo, mesmo nas derrotas, que abrolha na narrativa
de Amin Maalouf.
Pois, de acordo com Dias (2009, p. 19) “[...] Maalouf reequaciona também a
História e os padrões que têm vindo a modelar a sociedade a partir de outros
ângulos de visão, isto é, a partir de perspectivas que não foram as privilegiadas
na perpetuação de alguns factos históricos”, que, talvez o autor, porte-se, de
acordo com outro autor, como “[...] o historiador de perspectivas inusitadas e o
embaixador dos imigrantes” (Kettani, 2012, p. 180, traduzido).
No entanto, seu novo livro é de uma escrita moral. Como que a pressagiar o
naufrágio do título e, por vezes, no que se depreende, a reproduzir (passa a
impressão de certo saudosismo) o tellus europeu, como no trecho (Maalouf,
2022, p. 202): “[...] não posso negar que sou tomado, hoje, por certa desilusão.
Esperava outra cosia de meu continente de adoção: que oferecesse à
humanidade inteira uma bússola; que a ajudasse a não perder o rumo”.
Por outro lado, em uma entrevista o autor revê esta postura e reconhece “[...] a
ausência de liderança. Não acho que os EUA ofereceram um exemplo de
liderança moral nos últimos anos. Ainda há o elemento da democracia, mas a
credibilidade não está lá. E a Europa não está tendo esse papel. Ela não teve
capacidade e poder para exercer esse papel. Então, ninguém o exerce”
(Maalouf, 2020, s./p.). O mundo estaria assim, sem um guia moral, pois perdeu
o leme.
87
enredar-se resolutamente pela via da modernização correndo o risco de perder
a própria identidade?” (Maalouf, 2007, p. 244).
Mas, conviver com todos? Até com os arautos dos ditames da Modernidade,
especialmente aquela inacabada ou que chega ao resto do mundo enquanto
fábula (Santos, 2010)? A Modernidade inventa o outro, apressadamente
definido como o não moderno.
Para Amin Maalouf sim, mas de forma conciliatória e permeada pela questão
da identidade. E nisso a perspectiva, recorrente no livro recente, do retorno ao
Levante histórico, busca uma resposta, ou quiçá uma ideologia, um guia, pois
lá reuniam-se, segundo ele, “[...] várias comunidades de diferentes
sensibilidades”, onde um “[...] ‘arcaísmo’ trazia em si, apesar das aparências,
promessas de uma verdadeira modernidade” (Maalouf, 2022, p. 46 e 63).
88
E é sob a égide do olhar de partícipe, de nascido no Líbano e radicado há anos
na França, então, da crítica árabe e da influência europeia, especialmente a
francesa, que se constitui a noção de Modernidade de Amin Maalouf; então,
aqui definida como uma Modernidade euro-oriental.
Mas não sem a devida crítica do autor à esta Modernidade mais europeia: em
outra obra, pois “A verdadeira questão não é se estamos lidando com um
conflito entre antigo e moderno, mas por que, no curso da história humana, a
modernidade é às vezes rejeitada: por que ela nem sempre é vista como
progresso e como um desenvolvimento bem-vindo” (Maalouf, 2000, p. 43,
traduzido).
Para Maalouf, não. Pois o autor revela uma dúbia faceta na ação churchilliana,
pois “Churchill em pessoa se dedicou a derrubar o governo do doutor
Mossadegh [Mohammed Mossadegh, 1880-1967], um democrata cujo único
crime fora o de reivindicar para seu povo uma parte maior nas receitas
petrolíferas [em 1952 no Irã]” (Maalouf, 2022, p. 37-38, com acréscimo).
Por esta e outras ações na região do Levante, de acordo com o autor foi por
terra o ensaio melhor de convivência existente, pois “[...] no Egito, Churchill
favoreceu a emergência do nacionalismo árabe na sua versão autoritária e
xenófoba”, e no Irã, “[...] pavimentou a via ao Islamismo khomeinista” (Maalouf,
2022, p. 38).
89
Assim o modelo de convivência ideal ruiu, o Levante histórico já referenciado,
depois acentuado na derrota do símbolo da resistência árabe, o general Gamal
Abdel Nasser (1918-1970) em 1967, do Egito para Israel.
Sobre uma das tríades, o Marxismo, Amin Maalouf afirma que “Sua falência foi
catastrófica, na proporção de seus erros, e facilitou o mergulho do mundo na
ruína que presenciamos hoje” (Maalouf, 2022, p. 75), especialmente quando o
autor revela a situação do Levante histórico, descrente de um modelo de
democracia, após ter tentado, em vários locais/oportunidades, com o
Socialismo real, e ter caído, na atualidade, aos pés da intolerância religiosa.
Mas, também o Marxismo pode ser visto como “[...] a memória da ‘normalidade’
do mundo árabe, destacando que este foi, por muito tempo, tocado pelos
mesmos sonhos e pelas mesmas ilusões que o restante do planeta cultivou”,
alimentados pelo que os ideais marxianos de contestação e crítica ao
capitalismo propagaram, especialmente a defesa das minorias, pois “[...] não foi
somente aos proletários que Marx prometeu [...] a salvação” (Maalouf, 2022, p.
83 e 78).
Considerações finais
Por fim, a partir do exposto, causa certa melancolia a ausência de sintonia da
obra de Amin Maalouf com a perspectiva decolonial, por exemplo desde os
autores e/ou modelos demonstrados por Gonzaga (2022), a dar rumo e a evitar
o possível naufrágio alegado pelo escritor, pois ao se dividir o mesmo barco,
pelo menos as opiniões/sugestões deveriam vir de todos os pontos cardeais, a
fazer ver base sólida para enfrentamento.
Mas talvez este não era o intento do autor como sugerem Bouvet e Kettani
(2014, p. 1, traduzido), pois de acordo com eles, Maalouf “Reivindica
reiteradamente este papel de mediador entre o Oriente e o Ocidente, prega um
mundo de multiculturalismo e identidade múltipla”, o que pode parecer um
limite de alcance de sua obra, pois também pesa a influência mais europeia na
constituição de sua Modernidade euro-oriental.
90
“[...] o homem permanece no meio do ser criado, devendo recusar toda
diferença de sexo, raça ou espoliação econômica, conforme o versículo do
Alcorão: ‘Há de formar-se a partir de vocês uma comunidade de pessoas que
proclama o bem’ (3, v. 104)”.
O que fazer?
Referências
Manoel Adir Kischener é historiador, doutor em História pela Universidade
Estadual de Maringá (UEM) e professor contratado de Educação Básica na
Escola Estadual Marquês de Caravelas, Carazinho - RS.
91
DIAS, Maria J. C. Amin Maalouf: a Literatura como mediação entre Oriente e
Ocidente. Porto: Universidade do Porto, 2009 (Mestrado em Estudos Literários,
Culturais e Interartes).
MAALOUF. Amin. Amin Maalouf: “O mundo está sem uma bússola moral”.
Entrevista a Paulo Beraldo. Estadão, São Paulo, 06/12/2020. Disponível em:
https://www.estadao.com.br/internacional/amin-maalouf-o-mundo-esta-sem-
uma-bussola-moral/ acesso em 11/07/2023.
MAALOUF, Amin. In the name of identity: violence and the need to belong.
Trad. de Barbara Bray. New York: Penguin Books, 2000.
92
ZATTA, Angela. O espelho do outro: As Cruzadas vistas pelos árabes. Revista
Tempos Acadêmicos, Criciúma, v. 1, p. 1-5, 2009.
93
A DIÁSPORA COREANA NO JAPÃO: APONTAMENTOS NA
OBRA LITERÁRIA PACHINKO, DE MIN JIN LEE , por Maria
Gabriela Moreira e Nayla Lumy de Andrade Kuroki
94
A história de sobrevivência retratada na obra ressoa profundamente sobre a
essência da humanidade e identidade, aspectos cruciais quando abordamos o
tema da diáspora, constituindo, assim, um relevante objeto de discussão no
contexto desta análise. Sob o olhar atento da história, Pachinko pode vir a ser
uma leitura extremamente útil para adentrar nas sensibilidades e memórias que
um tema como este carrega em seu conteúdo. Neste sentido, encontramos na
literatura, um campo que se constitui a partir do complexo espaço social e
cultural, e que, portanto, se apresenta como uma configuração lírica da
realidade. Sua análise, ainda que permeada pelo debate entre a narrativa
histórica e literária, se constrói como uma leitura possível no resgate da
memória e da história. O historiador Valdeci Rezende Borges propõe que: “[…]
a literatura, seja ela expressa nos gêneros crônica, conto ou romance,
apresenta-se como uma configuração poética do real, que também agrega o
imaginado, impondo-se como uma categoria de fonte especial para a história
cultural de uma sociedade.” [BORGES, 2010, p.108]
A produção literária pode então ser posta como uma alternativa para a
representação histórica e social, que permeada de sensibilidade, auxilia na
reconstrução da memória coletiva e individual. Ela é em si a testemunha de sua
época e um produto sociocultural que representa as experiências humanas do
seu tempo histórico [BORGES, 2010, p.98]. E justamente é dentro do entrelaço
da história e da literatura que se constitui Pachinko.
95
contexto, uma consciência japonesa de vitimização frente aos eventos
derradeiros da Segunda Guerra Mundial foi desenvolvida, ao passo que os ex-
colonizados acabaram sendo relegados ao esquecimento. Tal processo de
apagamento histórico foi alcançado primordialmente por meio de um programa
de invisibilidade sistematicamente imposto, especialmente através da
revogação da cidadania japonesa de todos os coreanos residentes no Japão
em 1952 [RYANG, 2009, p. 63]
96
possibilidades de assimilação entre eles: primeiro, os japoneses
desencorajaram a integração coreana e, segundo, como conta o relatório, os
coreanos estabelecidos no Japão eram muito pobres, não tinham instrução,
tampouco eram qualificados, ou seja, muito inferiores aos japoneses. Diz ainda
que eles pareciam ser “lentos e preguiçosos”, e não eram tão conscientes da
limpeza quanto os japoneses [CAPRIO; JIA, 2009, p. 27].
Identidades diaspóricas
Stuart Hall expõe duas perspectivas de identidade cultural. Valendo-nos de
conceitos históricos, diríamos que a primeira delas pode ser caracterizada
como uma identidade totalizante, na qual a visão macro é privilegiada. Já a
segunda abordagem da identidade cultural enfatiza as diferenças, as rupturas e
descontinuidades. Segundo Hall, a primeira categoria concebe a identidade
cultural “em termos de uma cultura compartilhada, uma espécie de ‘um
verdadeiro eu’ coletivo, escondido dentro de muitos outros ‘eus’, mais
superficiais ou artificialmente impostos, que pessoas com uma história e
ascendência compartilhadas têm em comum” [HALL, 1990, p. 223]. Para o
autor, essa concepção de identidade cultural desempenhou um papel crítico
em todas as lutas pós-coloniais, uma vez que, apesar dos rasgos ensaiados ao
longo da história, ainda é possível chegar a um lugar comum.
97
histórias. Mas, como tudo o que é histórico, elas passam por uma
transformação constante. Longe de serem eternamente fixados em algum
passado essencializado, elas estão sujeitas ao contínuo 'jogo' da história,
cultura e poder” [HALL, 1990, p. 225, tradução nossa]
A construção de si, enquanto indivíduo, será marcado por esta dupla referência
na vida de alguém que pertence a uma segunda, terceira geração diaspórica.
Essa identidade apresenta-se em um estado de convulsão, caracterizando o
modelo de sujeito diaspórico categorizado nos "estudos culturais" de Sonya
Ryang. Myung Ja Kim compreende que os coreanos remanescentes no Japão
muitas vezes assumem formas de nome japoneses ou usam pseudônimos
japoneses, permitindo que eles se misturem com os japoneses na vida
cotidiana, mas percebem que sua identidade ambígua mascara uma
desvantagem subjacente em termos de suas próprias vidas sociais [KIM, 2017,
p. 2].
98
Referências
Maria Gabriela Moreira possui graduação em História pela Universidade
Estadual de Maringá. Atualmente cursa o mestrado no Programa de Pós-
Graduação em História na Universidade Estadual de Maringá, sendo membro
do Laboratório de Estudos Medievais [LEM]
Nayla Lumy de Andrade Kuroki é graduanda em História pela Universidade
Estadual de Londrina.
CAPRIO, Mark E.; JIA, Yu. Occupation of Korea and Japan and the origins of
the korean diaspora in Japan. In: RYANG, Sonia; LIE, John. Diaspora without
Homeland: Being Korean in Japan. California: University of California Press,
2009, p. 22-38.
HALL, Stuart. Cultural Identity and Diaspora. In: J. Rutherford (Ed.), Identity:
Community, Culture, Difference. London: Lawrence & Wishart, 1990, p. 222-
237
KIM, Myung Ja. The Korean Diaspora in Postwar Japan: geopolitics, identity
and nation-building. 2017.
LEE, Min Jin. Pachinko. Rio de Janeiro: Intrínseca. Ed. digital, 2020.
MALI, Dev Singh. Immigrants’ Sense of Dislocation and Identity Crisis in Min Jin
Lee’s Pachinko. Kirtipur: Central Departmental of English, 2019.
99
LAFCADIO HEARN E A REESCRITA DO ROMANCE DA
LANTERNA DE PEÔNIA, EM “A PASSIONAL KARMA”, por
Maria Silvia Duarte Guimarães
Lafcadio Hearn foi um escritor que viveu no Japão, dedicando grande parte de
seus livros ao país. Nascido em 1850 na Grécia, mas criado na Irlanda, Hearn
se mudou para os Estados Unidos ainda jovem, onde começou sua carreira
como jornalista. Ele passou por Cincinnati, Nova Orleans e pela Martinica antes
de aceitar uma oferta da Harper’s Weekly e se mudar para o Extremo Oriente.
Além de Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things, também podem ser
destacadas In Ghostly Japan e Glimpses of Unfamiliar Japan, coletâneas de
natureza similar à primeira. Em uma nota introdutória a Kwaidan, Hearn afirma
que seus contos são traduções de narrativas que encontrou em antigos livros
japoneses, ou transcrições de relatos que ouviu de contadores de histórias.
Segundo Michael Dylan Foster, em The Book of Yokai, porém, os textos de
Hearn não podem ser considerados simplesmente traduções ou transcrições
de narrativas que já existiam, mas trata-se de uma reescrita destas. Foster
afirma:
Hearn probably never mastered Japanese well enough to collect and translate
these tales by himself. In his early years in the country, he relied on a translator
or his wife to collect stories orally, and in the later years he would carefully work
through written texts, retelling them in his clear English prose. While his
interests tended toward local legends, folktales, and beliefs, ultimately Hearn
was not an ethnographer but a creative writer; his objective was not to
100
scientifically record narratives but to recreate them in a literary format. [Foster,
2015, p. 57]
Desse modo, Hearn não somente escolhe reduzir a narrativa original, como
também modifica seu título. A expressão “Botan-doro” pode ser traduzida,
literalmente, como “lanterna de peônia”, mas o escritor escolhe dar ao seu
relato o título de “A Passional Karma” ou, em português, “um karma passional”.
Em Yurei: The Japanese Ghost, Zack Davisson sugere que a escolha de Hearn
possa ter sido motivada pelo seu desejo de focar no aspecto budista da
narrativa, uma vez que, diferente de outras versões do relato, o escritor
101
descreve os personagens como amantes não apenas em uma, mas em várias
encarnações.
Jian deng xin hua é, segundo Davisson, o livro usado como referência por Asai.
Escrito por Qu You no início da dinastia Ming [1368-1644], trata-se de uma
coletânea de contos eróticos disfarçados de lições budistas moralizantes. A
versão de Qu You é uma narrativa dividida em duas partes: na primeira, um
jovem é seduzido pelo fantasma de uma mulher e morre; na segunda, ele é
levado ao juiz do mundo dos mortos e, juntamente com o fantasma que o
seduziu, enfrenta um julgamento moral. Davisson afirma:
Dessa forma, Asai não somente muda a localidade dos fatos narrados para o
Japão, mas também recorta toda a segunda parte da história. Em sua versão,
Encho também faz certas modificações. Como se tratava de uma peça teatral
e, especialmente, de um rakugo, um tipo de performance na qual apenas um
ator conta ao público a narrativa, pode-se dizer que era uma versão mais
flexível. Em quase todas as suas encenações, ela se modificava. Encho
também mudou o nome de alguns personagens, e adicionou um final um pouco
mais feliz para o relato, quando comparado ao texto de Asai.
102
região de Yedo, e era conhecido por sua violência. Como a jovem e a madrasta
não se davam bem, ela havia se mudado para uma casa em Yanagijima,
levando consigo apenas uma criada. Um dia, o médico da família a visitou,
levando consigo Hagiwara, um samurai belo e educado. Os personagens se
apaixonam à primeira vista e, já nesse primeiro encontro, confessam o amor
que sentem um pelo outro. Quando se despedem, O-Tsuyu sussurra ao ouvido
de Hagiwara que, caso eles não voltassem a se encontrar, ela certamente
morreria.
A afeição dos jovens não passou despercebida ao médico, que, com medo da
reação que o pai da garota poderia ter, se recusou a levar o samurai consigo
em outras visitas que fez à residência de O-Tsuyu. O primeiro encontro foi,
então, o único que os jovens tiveram em vida. Hagiwara não poderia visitar a
casa de O-Tsuyu desacompanhado, uma vez que isso implicaria em uma
quebra de etiqueta e, não recebendo nenhum convite do médico, não foi capaz
de visitá-la. Alguns meses depois, a garota morreu acreditando que seu amor
não era correspondido. Sua criada, O-Yoné, também morreu pouco tempo
depois, devido a tristeza que sentiu pelo destino de sua senhora. Ambas foram
enterradas juntas.
Sex is the cornerstone of “Botan doro”, the tale of Otsuyu and the Peony
Lantern. The taboo nature of the tale is designed to titillate, not frighten. And
that has kept the story alive for centuries. Of all the kaidan told and retold in
Japan, “Botan doro” has stayed relevant the longest. Because sex - especially
when combined with death - never goes out of style. [Davisson, 2020, p. 100].
103
uma variedade maior de seres fantásticos, como raposas [kitsune] e guaxinins
[tanuki] que possuem poderes, ou objetos animados [tsukumogami], yurei
apresenta uma descrição mais bem definida. São fantasmas de mulheres, com
longos cabelos negros desgrenhados, que podem ser descritas como muito
belas, como O-Tsuyu, ou como aterrorizantes. Davisson sugere, ainda, que em
grande parte dos relatos, esses fantasmas se apegam ao mundo dos vivos
motivados por um grande ódio, ou por um grande amor.
Talvez o exemplo mais conhecido de yurei pelo público ocidental seja Sadako
Yamamura, protagonista do filme Ringu, de 1998. O sucesso de Sadako foi tão
grande que ela ganhou uma adaptação estadunidense, a personagem Samara
Morgan, do filme O Chamado, de 2002. Embora americana, Samara conserva
os elementos típicos de uma yurei: os longos cabelos e escuros, a palidez, o
aspecto assustador e o rancor que a prende ao mundo dos vivos.
Hearn, portanto, não faz nada muito diferente do que Asai e Encho já haviam
feito antes. Ele reescreve o romance da lanterna de peônia, focando nos
elementos que, na sua opinião, seriam mais interessantes aos olhos do público
ocidental. Ele também adiciona seu próprio ponto de vista, abrindo a sua
narrativa com um breve relato da circunstância em que conheceu a história, e
de porque decidiu reescrevê-la. Ao final do texto, o escritor relata como tentou,
sem sucesso, encontrar o túmulo das personagens na cidade onde se passa a
história. Como os oleiros que Benjamin menciona, que deixam as marcas de
seus dedos em suas obras, estas são as marcas que Hearn deixou em Botan
doro.
Referências
Maria Silvia Duarte Guimarães é doutoranda em Estudos Literários, Teoria da
Literatura e Literatura Comparada na Universidade Federal de Minas Gerais.
DAVISSON, Zack: Yurei: The Japanese Ghost. Seattle: Chin Music Press,
2020.
104
FOSTER, Michael Dylan. The Book of Yokai: Mysterious Creatures of Japanese
Folklore. Oakland: University of California Press, 2015.
RINGU. Direção: Hideo Nakata. Japão: Toho Co., Ltd., 1998. (96 min).
105
A NARRATIVA EM APORIA NO SÉCULO DAS
LUZES: DENIS DIDEROT, O ROMANCE E O ORIENTE, por
Ricardo Hiroyuki Shibata
Um leitor do início século XVIII tremia nas bases quando ouvia a palavra
“Oriente”. Havia pouco, os turcos sitiaram a cidade de Viena por um longo
período e as notícias de empalamentos em massa era moeda corrente. E ainda
ecoava nos corações europeus a horda de mongóis que, por onde passavam,
tinha por hábito empilhar as cabeças dos inimigos em montículos – de fato,
uma obra de engenharia na qual eles eram exímios. O medo gera fascinação,
já dizia aproximadamente um filósofo maquiavélico, rescendendo a enxofre.
106
Os lances iniciais de As mil e uma noites são bem conhecidos. O sultão da
Pérsia foi traído por sua esposa e decidiu vingar-se de todas as mulheres do
Reino. Essa traição fez o sultão tomar medidas drásticas: “ele resolveu que
todas as noites se casaria com uma mulher diferente para, depois, estrangulá-
la na manhã seguinte” (GALLAND, 1717, v.1, p.27). Uma após outra, de
diversas hierarquias sociais (a filha de um oficial subalterno, de um burguês...),
cada mulher era recebida em matrimônio para ser cruelmente executada ao
amanhecer. Nesse conjunto, até aquele momento, nenhuma delas
impressionava por seu destaque em termos de virtude. Porém Sherazade, a
filha do grão Vizir, homem de confiança do sultão e algoz das infelizes
esposas, se sobressaía:
“Se os contos desta espécie são agradáveis e divertidos pelo maravilhoso que
se distancia do que reside no cotidiano, isto acontece porque eles transportam
para aquilo que está muito além do que aconteceu, uma vez que eles estão
repletos de acontecimentos que surpreendem e revolvem o espírito e que
fazem ver o quanto os árabes ultrapassam as outras nações neste tipo de
composição”. (GALLAND, 1717, v.1, p.xxij)
107
Galland continua explicando que, no interior dos contos, podia-se encontrar o
“verdadeiro” Oriente, muito mais do que nos relatos de viagem, realizados por
aventureiros, exploradores ou diplomatas, ou mesmo na matéria histórica,
fundada em documentação. Dizia ele que:
“Eles devem agradar ainda pelos costumes e pelos hábitos cultivados pelos
Orientais, pelas cerimônias de sua religião, tanto pagãs quanto muçulmanas, e
estas narrativas são melhor ressaltadas nos autores que as concebem do que
nas ilações dos viajantes. E nisto, todos os Orientais, Persas, Tártaros e
Indianos, se fazem distinguir e espelham o que eles são, não apenas os
soberanos, mas também as pessoas da mais baixa condição. Dessa forma,
sem precisar experimentar a fadiga que seria visitá-los em seus próprios
países, o leitor terá aqui o prazer de vê-los agir e de ouvi-los falar. Tomamos o
cuidado de conservar seus traços, de não nos distanciarmos de suas
expressões e de seus sentimentos. Eliminamos aqueles textos, apenas quando
eles não estavam em conformidade com as boas regras sociais”. (GALLAND,
1717, v.1, p.xxiij)
Antoine Galland destaca assim o aspecto estritamente moral dos contos, vale
dizer, a relação entre o elogio das virtudes e a admoestação dos vícios a partir
da matriz prudencial. Nesse sentido, o seu circuito de articulação opera no
interior do aperfeiçoamento individual, porém com vistas à participação do
cidadão nas questões da política, da cidade e do Estado.
“Não é por pouco que aqueles que lerem estes contos estejam predispostos a
aproveitar os exemplos de virtude e de vício que ali vão encontrar. Eles podem
ter a vantagem que a leitura de outros tipos de conto não possui, pois são mais
próprios a corromper os costumes do que a corrigi-los”. (GALLAND, 1717, v.1,
p.xxiv)
108
Essa apropriação de personagens e da atmosfera orientais, que viraram moda
pela obra de Galland, foi uma jogada de mestre. E foi justamente essa
hermenêutica em diapasão satírico, com agenciamento dos demais usos de
linguagem indireta, que se transformou em estratégia prevalente da
Enciclopédia, como explicava o próprio Diderot. Ela teria então uma utilidade
cifrada, em que pesavam mistérios a serem descobertos; assim, seu desvendar
e seu significado mais profundo se deixariam revelar com o passar dos anos e
com o julgamento (distanciado e prudente) da posteridade. Seria, no entender
de Diderot, uma arte de deduzir os argumentos por meios subreptícios.
(WILSON, 2012, p.232s)
“Esse autor não faz correr o sangue ao longo dos lambris; ele não vos
transporta em absoluto a países afastados; ele não vos expõe em absoluto a
seres devorados por selvagens; ele não se encerra em absoluto em locais
clandestinos de devassidão; ele não se perde jamais nas regiões do feérico”.
(DIDEROT, 2000, p.17)
109
Ou seja, Richardson não investe nas ilusões momentâneas ou no impacto do
efêmero:
110
Conquanto Diderot tivesse surfado na moda oriental com sucesso, ele
percebeu, desde o inicio, as potencialidades desse novo tipo de romance, mais
adequado às questões pragmáticas e à existência comezinha presente no
cotidiano dos cidadãos. Foi, em 1760, numa reunião festiva na casa do barão
d’Holbach, que os philosophes discutiram a obra richardiana, com base nas
traduções do abade Prévost – Pamela (1742), Clarissa (1751) e Charles
Grandisson (1755). Os ânimos se exaltaram e o debate pegou fogo,
rapidamente. Diderot escreveu a Sophie Vollant, em carta de 21 de outubro de
1760, que os romances de Richardson causaram grande comoção, angariando
simpatias e ódios, em igual potência em seus extremos (LAFON, 2004,
p.1258s). De fato, não havia meio termo. Voltaire e Marmontel mantiveram-se
fieis às formas literárias antigas. Diderot, para lançar uma pá de cal na moda
do Oriente, preferiu aproveitar as técnicas do romance, investindo fortemente
em outro gênero – o teatro.
Referências
Ricardo Hiroyuki Shibata é Doutor em História/Teoria Literária
(Unicamp/Universidade Nova de Lisboa), Pós-Doutor em História da Cultura
(UFPR) e Professor do Depto de Letras da Unicentro/Paraná.
CHEBEL Malek. Dictionnaire amoureux des Mille et une nuits. Paris: Plon,
2010.
DARNTON, Robert. The Case for Books. Past, Present, and Future. New York:
Public Affairs, 2009.
DIDEROT, Denis. Elogio a Richardson. In: _____. Obras II. Estética, poética e
contos. São Paulo: Perspectiva, 2000, p.15-28.
GALLAND, Antoine. Les mille et une nuits. Contes arabes. Paris, 1717.
LAFON, Henri. Notice. In: DIDEROT, Denis. Contes et romans. Paris: Éditions
Gallimard, 2004.
MATTOS, Franklin de. A Cadeia Secreta. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
MÉZERAY, S.. Histoire générale des Turcs. Paris: Sébastien Cramoisy, 1640.
111
MOLIÈRE. Le Bourgeois Gentilhomme. Paris: Claude Barbin, 1670.
RICAUT, Paul. Histoire des trois derniers empereurs turcs. Paris: Chez la
Veuve Louïs Billaine, 1683.
THOMAS, Keith. Religion and the decline of magic. Studies in popular beliefs in
16th and 17th-century. London: Penguin, 2003.
WAUQUIEZ, Laurent. Les Mille et une nuits: un best-seller des Lumières. Les
Cahiers de l’Orient, 2012, n.105, p.149-156.
112
NOITES ÁRABES: ANTOINE GALLAND (1646-1715) E AS MIL E
UMA NOITES, por Ricardo Hiroyuki Shibata
Foi a partir da tradução francesa de As mil e uma noites, por Antoine Galland
(1646-1715), realizada entre 1704 e 1717, que as narrativas árabes e seu
universo, que mesclava elementos de exotismo e de maravilhoso,
transformaram-se em grande fonte de inspiração para a composição de
inúmeras obras particularmente genais do Iluminismo no século XVIII. Basta
referir que Montesquieu, Voltaire, Diderot e Marmontel, surfaram na onda das
Arábias, com bastante sucesso.
Mas, qual foi exatamente o percurso trilhado por Antoine Galland? Por que foi
justamente ele quem produziu o maior best-seller dos primórdios da Ilustração?
113
A sua biografia, mesmo tratada em linhas gerais, dá pistas certeiras quanto a
isso.
Victor Chauvin, em seu Bibliographie des ouvrages arabes, informa que a obra
de Galland recebeu 20 reedições ao longo do século XVIII e 54 reedições entre
1811 e 1820. Um enorme sucesso editorial da época das Luzes. Com esse
recorde, foi traduzido, ainda no século XVIII, para as principais línguas
europeias (inglês, alemão, italiano, holandês, dinamarquês, grego, russo...),
sendo que as versões em língua inglesa e alemã saíram antes mesmo da
publicação dos últimos volumes da edição original. E não parou por aí. No
século XIX, seu sucesso editorial continuou impressionante, com o surgimento
de edições em outras línguas (português, espanhol, sueco, polonês, romeno,
húngaro...). (CHAUVIN, 1892)
Galland também agregou outras narrativas que, por um lance de sorte, fizeram
com que os contos ganhassem notoriedade não apenas no século XVIII, mas
ao longo dos séculos seguintes. Refiro-me às narrativas dedicadas a relatar as
aventuras de Aladim e a lâmpada mágica, Ali Babá e o seu séquito de ladrões,
as desventuras do príncipe Ahmed e os poderes sobrenaturais da fada Pari
Banu. Como se sabe, essas narrativas, hoje famosas, não faziam parte do
original árabe, conforme testemunham a tradição manuscrita recolhida no
114
século XII. Elas foram compiladas por Galland diretamente por informação do
monge maronita Hana, entre os anos de 1709 e 1713, e depois devidamente
adaptados e incorporados ao conjunto dos contos. Sem dúvida alguma, o ponto
mais interessante no interior das estratégias manejadas por Galland, foi a
criação da personagem Sherazade como guardiã desse conjunto de narrativas
e como voz privilegiada que recuperava toda essa tradição oral.
“Senhor, – disse Sherazade nesta altura – aquilo que vossa Majestade acaba
de ouvir, deve sem dúvida parecer-lhe maravilhoso, mas, o que falta contar, é
ainda muito mais. Estou convencida de que concordareis com isso na próxima
noite, se houverdes por bem permitir-me que acabe esta história. O sultão
anuiu, levantando-se porque já era dia”. (GALLAND, v.1, p.137).
115
“Quando Sherazade começou seus relatos noturnos e começou a expor,
incansável, os recursos infinitos de sua imaginação alimentada por todos os
sonhos da Arábia, Síria, do imenso Levante, quando descreveu os usos e
costumes dos orientais, as cerimônias religiosas, os hábitos domésticos, toda
uma vida radiante e variada, quando ela mostrou como se podia reter e cativar
os homens, não por sábias deduções de ideias, não por raciocínios, mas pelo
brilho das cores e pelo prestígio das fábulas: então, toda a Europa ficou ávida
de ouvi-la”. (HAZARD, 1961, p.340-341).
Ou ainda:
De qualquer forma, esse Oriente era uma miragem, que diz mais sobre a
cultura francesa (europeia, por extensão) da época do que sobre a cultura dos
sultões e odaliscas. Se o Oriente foi incorporado ao cânone literário, a partir
das traduções de Galland, isso se deveu pelo fato de ser compatível com os
valores sociais e práticas letradas do período.
116
termos mais conhecidos pelos leitores franceses e apresentou em resumo as
descrições dos jardins completando-os com detalhes dos laranjais do palácio
de Versalhes. Ele suprimiu as repetições e excesso de detalhes, típicas da
fonte original árabe, cujo sentido inicial era dado pela produção oral. Essas
supressões, aditamentos e demais intervenções textuais eram, de fato,
ornamentos ou embelezamentos que fizeram a sua tradução mais
compreensível para o leitor ocidental, sem, com isso, obviamente, mudar a
essência do conteúdo original. (DUFRENOY, 1946, p.132)
É justamente por isso que, em sua versão, desapareceu o caráter oral dos
contos. Houve a supressão das poesias e todo um trabalho de estilização da
linguagem grosseira com acento nos aspectos sexuais própria dos salões e
cafés para os quais foram originalmente concebidos. Nessa passagem da
oralidade para o âmbito de uma prática letrada classicizante, Galland não
apenas trouxe a atmosfera oriental para a Europa do período, mas também
forjou uma forma de comunicação mais palatável ao gosto do início do século
XVIII. Conforme disse Jorge Luis Borges (1997, p.81), “Sabe-se muito bem que
desinfectaram as Noites”. O resultado dessa depuração textual deveria circular
pelos ambientes refinados em que o público mundano, formado tanto por
homens quanto por mulheres, obedecia a regras prescritas nos códigos de
cortesia.
Antoine Galland nada havia inventado ou, pelo menos, nada dizia de muito
novo acerca do universo cultural do Oriente, em que pese o seu enorme
sucesso editorial, de público e de crítica, e seu impacto para a posteridade.
Mesmo porque as categorias de “novidade” e “invenção” eram completamente
alheias à mentalidade da época. Ele mesmo havia referido, em sua introdução
à Bibliotheque Orientale, de D'Herbelot, que um “orientalista” não buscava
rever ou acrescentar algo de novo ao conceito de Oriente que o leitor já
possuía. Tratava-se tão somente de reforçar estereótipos, amplificar noções já
cristalizadas e satisfazer expectativas preconcebidas. Quer dizer, o maior
esforço discursivo seria em reformular, reescrever ou parafrasear uma
narrativa, cujo enredo central já estava pronto. Nesse sentido, a tradução da
cultura árabe, tornando-a compreensível para o público europeu, seria mais
uma peça no jogo de xadrez em que o Ocidente se mostrava superior ao
Oriente. Como disse Edward Said, lapidarmente: “Pois aquilo que o orientalista
faz é confirmar o Oriente aos olhos de seus leitores; ele nem quer nem tenta
abalar convicções já arraigadas.” (SAID, 1996, p.75).
117
Para finalizar, em tempos de pós-revoluções burguesas e em outro contexto
socio-político, Edward Lane traduziu o universo oriental com a intenção de
fazer frente a Antoine Galland conforme outro escopo cultural. Segundo Jorge
Luis Borges, ele transformou os contos orientais numa verdadeira “enciclopédia
de evasão”. Mesmo porque:
“nem as altas noites egípcias, nem o opulento e negro café com sementes de
cardamono, nem a frequente discussão literária com as doutores da lei, nem o
venerado turbante de musselina, nem o comer com os dedos, fizeram-no
esquecer o seu pudor britânico, a delicada solidão central dos senhores do
mundo”. (BORGES, 1997, p.79).
Referências
Ricardo Hiroyuki Shibata é Doutor em História/Teoria Literária
(Unicamp/Universidade Nova de Lisboa), Pós-Doutor em História da Cultura
(UFPR) e Professor do Depto de Letras da Unicentro/Paraná.
BORGES, Jorge Luis. Os tradutores das mil e uma noites. São Paulo: Globo,
1997.
GALLAND, Antoine. Les mille et une nuits. Contes arabes. Paris, 1717.
GAUMIER, Jean. Introduction. In: GALLAND, Antoine. Les Mille et une nuits:
contes arabes. Tradution de Antoine Galland. Paris: Garnier/Flammarion, 1965.
118
HAZARD, Paul. La crise de la conscience européenne. Paris: Fayard, 1961.
JAROUCHE, M.M. Introdução, In: ANÔNIMO. Livro das mil e uma noites. Rio
de Janeiro: Globo, 2006, p.v-lvii.
WAUQUIEZ, Laurent. Les Mille et une nuits: un best-seller des Lumières. Les
Cahiers de l’Orient, 2012, n.105, p.149-156.
119
CHAMPURAMENTO - UM CONCEITO POÉTICO, por triZ périZ
120
podemos falar (os valores), devemos manter o silêncio.” (ROCHA, In
Entrevista).
121
tendo como substrato o conceito de imagem-pensamento (“imagem de
pensamento”) de Walter Benjamin (2004). A partir desse conceito, ele diz ser
difícil nomear o que temos diante dos olhos (p.22). Para Benjamin a imagem é
uma forma dialética da imobilidade; logo, a imagem pode ser entendida como a
concretude de uma possível abstração, que se pretende materializar. E ele
continua argumentando que isso, ao se expor o nome de algo, é, na verdade,
um feito, o qual se faz sentir sobre a autoria, a qual se utiliza dessa ferramenta
linguística, denominada nomeação, pois tal autoria tem o poder de restrição,
ampliação, ou seja, de escolha. Essa imagem dialética, consequentemente,
abarca o processo de composição, que se divide em duas vias. Uma pela
concepção criativa, a qual se esvai quando da consumação da obra. A outra,
verificada após a consumação dessa obra e alcançanda a partir do interior da
própria obra, sendo a criatividade sua feminilidade e a visualização do interior
da obra a sua masculidade, coadunando em um todo, que é a própria obra em
si. O termo imagem-pensamento é também uma referência ao poeta Mallarmé,
o qual constrói a imagem-poética do não “saigner par l'image de la pensée”
(sangrar pela imagem de pensamento). Além disso, propõem-se que a
recepção de leitura da obra é a de que a suavidade do Dao, símbolo daoista,
em conjunto, subsidiário, com a sensibilidade zen e o amor universal cristão,
assim como o moísmo, visam a uma sincronicidade e à quebra da linearidade
do tempo-espaço, possivelmente, levando o leitor a experienciar, por meio dos
elementos específicos da estruturação da obra, as imagens-mensagem
champuradas, veiculadas pela condução hermenêutica da voz poética, uma
vez que a cultura, a filosofia e a religião são construtos artísticos e estéticos
capazes de unirem o mundo concreto e o mundo simbólico da vida, que se
apresentam pela arte literário-poética (SCHOPENHAUER, 2006).
122
verdadeiro. A tautologia busca, portanto, o resultado verdadeiro continuamente,
mesmo que causa e efeito venham um após outro, seja pela validação negativa
ou pela validação positiva. O Dao busca o verdadeiro continuamente, embora
causa e efeito sejam simultâneos, pelo equilíbrio entre as ações negativas e
ações positivas. Donde se pode depreender que tanto o ocidente, em sua
tradição transcendentalista, quanto o oriente, em sua tradição imanentista, e
muitas vezes, também transcendentalista, podem se cruzar, porque pleiteiam o
mesmo fim: a verdade. Por conseguinte, os títulos, da obra e da seção, são um
provável jogo de palavras, analisado, foneticamente, como um trocadilho com a
palavra “tautologia”. Separando-se o morfema “tao”, tem-se a alusão à
simbologia, do Dao (Tao), do ciclo, enquanto que o morfema “tau” se remete à
redundância. Este último morfema, mesmo apresentando uma conotação
pejorativa, na concepção ocidental, ainda se coaduna com a ideia de constante
retorno, na concepção oriental, sendo ambos um reforço, ou positivo ou
negativo, dos fatos que se repetem de alguma forma. Para além disso, tem-se
que o prefixo grego “tauto-” da palavra “tautologia” com uma significação de “o
idêntico”, “o mesmo”. Essa possível atribuição pode reverberar na obra
Taotologias como um encontro com o outro, quando dos poemas referentes
ao humano, bem como também pode deixar a ver um desencontro,
apresentado nos poemas referentes ao social. A obra é uma coletânea de
assuntos experienciados por uma voz poética. Uma das possíveis maneiras de
leitura desses textos é sob o símbolo zen, indutor de uma leitura em 360º,
portanto cíclica, em que essa voz conduz as viagens poéticas, que englobam
tantos os hemisférios ocidentais quanto orientais, por entre as imagens-
mensagem impressas pela linguagem no livro. É uma rota literária de
conhecimentos esparsos coletados pelos caminhos percorridos por tal voz
poética. Esse possível caminho cíclico é entendido, conforme a experiência do
Dao, como subjacente à obra, por meio do conceito de alegoria, sendo sutil
como a pintura oriental (chinesa) e a sensibilidade imaginativa poética ocidental
(portuguesa). Encontram-se, na obra, as estratégias literário-linguísticas
próximas à técnica poética hai-ku, processos de epigenética das cores, teoria
dos jardins, urbanidade, bem como uma nuance de eroticidade, além da
cronotopia.
123
A palavra “champurada”, bem como suas flexões e derivações, delineada por
intermédio das explanações das escritas da obra, é uma gênese de
significância transferencial das culturas usadas na criação das escritas da obra
Taotologias, como embasamento, na performance cultural, em que se expõem
os poemas, entrelaçando, portanto, os entendimentos culturais aos
entendimentos literário-linguísticos. Conceituação criada, especialmente, para
identificar, na obra Taotologias, o processo criativo genuinamente macaense.
A criação dessa conceituação foi concebida, como uma espécie de derivação
concernente à localidade macaense, a partir da conceituação de hibridismo de
Bhabha, sendo uma espécie de amálgama de todos esses substratos
constitutivos da análise crítico-literária. Também, a expressão imagem-
mensagem é um construto embasado por ideogramas chineses que imprimem
na linguagem a imagem do signo, unindo artisticamente significado ao
significante.
Referências
triZ périZ (beatriz jobim pérez senra) é Prof. Mestra em Literatura como
marketing: preceitos ocidentais e orientais, sincronicidade expressa pela
linguagem imagética, por intermédio da cronotopia, pela UFJF, Brasil.
BUCHSBAUM, Arthur. Lógica Geral. São José (SP): [s. n.], 2006.
124
CHAMPURAMENTO - UM CONCEITO POÉTICO - NA PRÁTICA,
por triZ périZ
o lance de escada
desceu pelo teu tornozelo
pisando pelo fim da tarde
talvez a lua
ou o ladrar do cão
que ecoavam no beco
(ROCHA, 2016, p.09)
125
para que a ideia de mobilidade dessa sombra, perpassando pelo corpo de um
hipotético transeunte, por exemplo, fosse concretizada.
Há, nesse poema, a observação de uma Natureza que se pode denominar de
natureza urbanizada, indo ao encontro do processo de desintoxicação citadina.
Esse processo de desintoxicação urbana é demonstrando por meio do contato
com a Natureza, o qual se dá de forma silenciosa e calma, proporcionando,
dessa maneira sossegada, a possível desintoxicação das emoções
incorporadas pela voz poética, por meio do silêncio advindo dessa Natureza,
que se coaduna com os preceitos filosófico-religiosos do daoismo. No poema,
verifica-se esse processo por meio da simples contemplação da cena que se
apresenta.
Nos últimos versos, a lua parece entrar em contraste com a sombra, podendo
criar uma nuance de claro e escuro. O elemento lua, que “talvez [...] /[...]
[ecoava] no beco”, permite depreender uma expansão sinestésica da luz,
advinda desse satélite, a qual se espraiava pela localidade “beco”,
preenchendo-o, assim como o som do cão também preenche esse mesmo
“beco”.
Isso pode ser verificado no ladrar do cão que corrobora com esse processo
acústico. A voz poética utiliza do verbo “ecoavam” e expande a sonoridade por
meio dos significantes “chão/cão” e “eco/beco”. O significante “beco”, em
alguns momentos, seria um anteparo para o som, para o movimento, podendo
ter sua significação entendida como beco da urbanização que, no momento da
análise do significado, poderia ser o enclausuramento da imagem sombria do
ser transeunte citadino, em Macau. Faz-se necessária a informação de que o
significante “beco” contém também a denominação de logradouros. Logo,
“beco”, no português macaense e também no de Portugal, pode ser, pela via
imagética do poema, uma montagem de rua, desfazendo-se, assim, a imagem
de beco, possivelmente construída por um leitor brasileiro das grandes
metrópoles, nas quais há muitos becos, entendidos como pequeninas vielas,
muitas vezes sem saída.
126
influenciada pelas línguas chinesas, malaias e cingalesas, com formação
influenciada pelo idioma inglês, tailandês, japonês e de algumas línguas da
Índia. Esse Papiaçam apresenta a palavra champurado para designar a gênese
de tais idiomas, transmutados, dessa forma, em uma língua macaense
(PEREZ, 2016). Logo, as cenas das imagens-mensagem elaboradas nos
versos de Taotologias encontram-se descritas dentro do que, por analogia,
pode-se denominar champuramento, pois resulta de uma gênese igualmente
cultural. Para se acompanhar melhor o curso da metodologia proposta para as
escritas da voz criada por Rocha, nesse poema, o conceito supracitado é
entendido como uma transmutação da significação dos vocábulos inseridos nos
versos, por meio da combinação de fones escolhidos com o sistema da
linguagem, em que se reproduz a obra, estruturando, assim, os versos e,
dentro deles, os signos, a partir de diversas maneiras de ordená-los ou colocá-
los em oposição (BHABHA, 1998, p.183-4). Dessa maneira, na performance
cultural, em que se expõe o poema, tem-se uma percepção euro-asiática dessa
gênese de significância transferencial das culturas usadas como
embasamento, entrelaçando, portanto, os entendimentos culturais aos
entendimentos literário-linguísticos.
127
contrária ao que, culturalmente, atribui-se ao que pode ser o símbolo da
ascensão e da valorização, associados à verticalidade, com a relação à terra e
ao céu. No caso, seria do céu à terra. Completando a simbologia do arquétipo
escada, tem-se que seus degraus podem simbolizar os planos da mente e os
planos de existência, no aspecto espiritual. Já no aspecto mental pode
simbolizar uma via de comunicação descensional ao inconsciente, o que para
os leitores mais afeitos à psicologia junguiana seria uma possibilidade de
leitura, e um ascensional ao consciente. O intermédio dessa comunicação,
também faz-se possível, quando se permanece parado em algum degrau da
escada, podendo simbolizar o sedentarismo mental e/ou espiritual. Os degraus
são pontos de passagem por onde se pode compreender o que ficou para trás
e vislumbrar o que vem adiante. Dessarte, a escada possibilita escolha, a qual
pode estar relacionada à obtenção ou carência de algum tipo de valor. Ainda,
vislumbrando a imagem-mensagem da escada, contemplada na primeira
estrofe do poema, observa-se um processo de personificação, o qual termina
na expressão “fim da tarde”, colocando em evidência a teoria da cronotopia de
Bakhtin, a ser discutida mais adiante junto ao topos beco. Tal expressão
evidencia o trabalho com a ideia de tempo, um tempo crepuscular, remetendo,
novamente, à Natureza. Somando-se a essa análise, tem-se o símbolo
“escada” trabalhado no peoma de Li Bai, amplamente divulgado pela tradução
de Ezra Pound, como “Lamento da escadaria de jade”. Um dos mais
conhecidos poemas do mundo ocidental, traduzido, provavelmente, de uma
versão japonesa, uma vez que Pound atribui o poema a Rihaku, denomiação
japonesa para o poeta chinês Li Bai. Observa-se detalhes, como ser a
escadaria de jade, por isso a ênfase na títulação “Lamento da escadaria de
jade”. Essa escadaria seria de um provável palácio. Os lamentos podem-se
referir a alguma razão de queixa, as quais em decorrencia das citadas meias
de seda, podem ser atribuídas a uma dama da corte desse palácio. E ainda
sobre estar visível a “lua de outono” pode haver o entendimento de que o
tempo não é desculpa. Essa lua despontou no horizonte, pelo fato de o orvalho
ter branqueado os degraus e entrado nas meias da imagem construída da
provável dama. Há uma tradução feita por Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao,
diretamente do original chinês:
玉阶怨
玉阶生白露
夜久侵罗袜
却下水晶帘
玲珑望秋月
128
pela qual se pode verificar a confluência temática subjacente a ambas
literaturas ocidental e oriental, corroborando enfaticamente em um possível
champuramento que se desenlaça nas escritas de Taotologias.
Quanto ao “beco”, no qual se pode assistir o desenrolar da imagem-
mensagem, topos de empréstimo oriental, pode-se depreender que o autor faz
referência ao Beco de São Domingos, um sítio que também faz parte do Centro
Histórico de Macau, localizado no Largo de São Domingos. Esse local público
faz parte da construção da primeira igreja de arquitetura ocidental, realizada
pelos dominicanos espanhóis, os quais, após terem sido obrigados a sair de
Macau, tiveram seus domínios repassados aos administradores dominicanos
portugueses.
129
vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos
àquelas que despertam em nós ressonâncias [...] concernentes à vida.”
(BAKHTIN, 1997, p.70).
Espaço Literário, desse modo, será “um campo, lugar de confronto entre
posicionamento estético, que investem de maneira específica gêneros e
idiomas” (p.90-92).
Referências
130
triZ périZ (beatriz jobim pérez senra) é Prof. Mestra em Literatura como
marketing: preceitos ocidentais e orientais, sincronicidade expressa pela
linguagem imagética, por intermédio da cronotopia, pela UFJF, Brasil.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. ed. 28. São Paulo:
Cultrix, 2012.
131
A MEMÓRIA E A IDENTIDADE NA NARRATIVA DO
ROMANCE A POLÍCIA DA MEMÓRIA, DE YOKO OGAWA, por
Allana da Silva Araujo
O trecho acima é apenas um dos muitos exemplos que se tem desse processo
de perda de identidade presente na narrativa. O ex-balseiro passa a ser
chamado de “o velho” à medida em que toma espaço de destaque no enredo,
mas nunca pelo seu nome; a esposa do professor Inui é referida apenas como
esposa, bem como o filho do casal é referido como “o filho de oito anos”; e a
132
esposa de R, que é identificada como Senhora R, dando a entender que ser
uma esposa é o único papel que lhe cabe naquela sociedade.
Paim et al. (2019, p. 200) diz que a identidade se estabelece a partir das
interações internas e externas, o que faz da identidade algo não fixo, instável,
já que “[...] é possível afirmar que as identidades precisam ser vistas a partir do
panorama social, visto que se constroem na diferenciação com os outros e na
relação com os indivíduos e o meio que nos cercam [...]”. Essa diferença fica
clara à medida que a narrativa avança e percebemos que as identidades dos
indivíduos afetados e não afetados pelos sumiços são bem demarcadas: os
indivíduos afetados não se importam de perder as lembranças relacionadas
aos objetos que somem e apenas se adaptam à sua nova condição, enquanto
os indivíduos que lembram têm que conviver com a nostalgia causada por
essas lembranças sem poder compartilhar com outras pessoas.
‘[...] nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos
outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos
133
envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca
estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se
distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma
quantidade de pessoas que não se confundem. [...]’
‘[...] Será que algum dia eu vira esse bicho com meu pai no observatório? No
momento em que pensei nisso, ocorreu-me que meu coração perdera todas as
informações relacionadas a pássaros que um dia pudesse ter tido. Desde o
significado da palavra “pássaro”, passando por meus sentimentos por eles, até
minhas memórias relacionadas a esses bichos — tudo se perdera’. [Ogawa,
2021, local. 141]
‘[...] ainda que esse fato possa ser localizado no tempo e no espaço, mesmo
que parentes ou amigos disso me fizeram uma descrição exata, acho-me em
presença de um dado abstrato, para o qual me é impossível fazer corresponder
qualquer recordação viva: não lembro de nada. E não reconheceria mais tal
lugar pelo qual passei certamente uma ou várias vezes, nem tal pessoa que
certamente encontrei. [...]’ [Halbwachs, 1990, p. 17]
134
No decorrer da narrativa, a pergunta “por que as memórias são tão perigosas?”
se torna cada vez mais frequente ao passo que a polícia da memória se torna
cada vez mais truculenta e violenta. A resposta não fica clara ao fim do
romance, mas o enredo deixa evidente que se trata de uma sociedade que vive
em um regime totalitário, no qual pessoas que têm suas memórias intactas são
potenciais riscos, uma vez que podem se rebelar. Por isso, elas são
perseguidas, e, quando encontradas pela polícia da memória, nunca mais são
vistas:
É assim que fica evidente como os mundos de ambos são diferentes, porque,
enquanto R quer que sua amante recupere suas memórias, ela acha o esforço
inútil e extremamente cansativo. Isso fica claro quando ocorre o
desaparecimento das fotografias, como mostra o trecho a seguir:
‘Eu estava pronta para juntar todas as fotografias que tinha em casa (inclusive
a de minha mãe que estava no porta-retratos em cima da lareira) e queimá-las
no jardim, mas R insistiu que eu não fizesse isso.
— As fotografias servem para guardar as suas memórias. São um bem
insubstituível, Se você queimá-las, não tem mais volta. Não faça isso!
— Não tem nada que eu possa fazer. O sumiço já aconteceu.
— Sem as fotos, como você vai se lembrar do rosto de seu pai e de sua mãe?
— perguntou, com uma expressão séria.
— O que desaparece é a fotografia, não é meu pai nem minha mãe. Claro que
não vou esquecer do rosto deles.
— Pode ser só um pedaço de papel, mas nele fica guardado algo muito
profundo. Luz, vento, ar, o amor e a alegria das pessoas retratadas, seus
135
pudores, seus sorrisos, Você tem de guardar essas coisas. É para isso que se
tiram fotografias.
— Sim, sei disso. Eu adorava minhas fotos. Cada vez que olhava para elas,
ressuscitavam minhas mais queridas lembranças. Sentia saudades, tristeza,
um aperto no coração… As fotografias eram a bússola mais confiável que eu
tinha para andar na floresta das minhas lembranças, das minhas parcas
lembranças. Mas agora preciso renunciar a tudo isso. É desolador e doloroso
perder essa bússola, mas não sou capaz de impedir um sumiço.
— Mesmo que seja incapaz de impedir, isso não quer dizer que você precisa
queimar suas fotos. As coisas importantes da vida continuam sendo
importantes, por mais que o mundo mude à nossa volta. A essência das coisas
não muda. Se você guardar suas fotos, elas vão lhe trazer alguma coisa. Você
não pode deixar que sua memória fique cada vez mais oca e vazia…
— Mas… — eu disse, balançando a cabeça, triste. — É que já não sinto mais
nada olhando para elas. Não sinto saudades, tampouco um aperto no peito.
Para mim, são apenas papéis lustrosos. O meu coração já está oco no antigo
lugar para fotos. Ninguém sabe como reverter isso. É assim que funcionam os
sumiços. Acho que você não é capaz de entender.’ [Ogawa, 2021, local. 1236-
1252]
Aqui, a memória individual é um elemento muito forte tanto para R quanto para
a narradora-personagem, já que a falta de memórias coletivas relacionadas aos
objetos que sumiram os separa em dois grupos distintos. Halbwachs [1990, p.
22] explica que:
‘[...] se essa primeira lembrança foi suprimida, se não nos é mais possível
encontrá-la, é porque, desde muito tempo, não fazíamos mais parte do grupo
em cuja memória ela se conservava. Para que nossa memória se auxilie com a
dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário
ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja
bastante pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que
nos recordam possa ser construída sobre um fundamento comum [...]’
136
processo que lhe é lento e doloroso, já que, para ela, escrever havia perdido o
sentido. Entretanto, ela conclui seu romance e conseguimos perceber que ele é
uma forma de eternizá-la, uma vez que, mesmo sem suas memórias, ela conta
a história do que acontece com as pessoas da ilha que são afetadas pelos
sumiços: elas se perdem de si mesmas a cada coisa que some, até chegar ao
ponto de deixarem de existir.
Helbwachs [1990, p. 32] explica que as memórias que temos mais facilidade
para lembrar são as que são comuns a pelo menos um meio, um grupo social,
enquanto que as que temos mais dificuldade de lembrar são as “[...] que não
concernem a não ser a nós, que constituem nosso bem mais exclusivo, como
se elas não pudessem escapar aos outros senão na condição de escapar a nós
próprios [...]”. Desse modo, o romance da narradora-personagem é uma de
suas memórias mais valiosas, que, ao final, acaba sendo compartilhado, por
mais que houvesse travas em sua memória.
Sobre isso, Candau [2013, p. 10 apud Paim et al., 2019, p. 201] diz que
“memória e identidade se intercruzam indissociáveis, se reforçam mutuamente
desde o momento de sua emergência até sua inevitável dissolução”, o que
corrobora com a perda de identidade que as pessoas afetadas pelos sumiços
sofrem até que não reste mais nada de suas identidades individuais e sociais.
E, embora haja uma adaptação quando ocorre o sumiço de outras partes do
corpo, é inevitável que haja essa perda de identidade à medida que também se
perde a memória. A única forma de eternizar quem e o que foi a narradora-
personagem é por meio da escrita e por meio das lembranças de R, uma vez
que as palavras e histórias ecoam pelos tempos, tal qual é dito no seguinte
trecho, no qual R e a narradora-personagem conversam:
‘— Será que, mesmo depois que eu sumir, as histórias que escrevi continuarão
existindo?
— Mas é claro. As palavras que você escreveu persistirão na memória. Nada
some do meu coração. Não se preocupe’. [Ogawa, 2021, local. 3566]
137
Um pouco antes da voz da narradora-personagem, última parte de si que lhe
restou, sumir, ela diz o seguinte para R: “— Depois que eu for embora,
continue cuidando deste recinto. Quero seguir existindo em sua memória, em
seu coração” [Ogawa, 2021, local. 3607]. O esconderijo virou um lugar seguro
para as memórias, e, quando o última coisa que havia para sumir, o fez,
despersonalizando as pessoas que sofriam os efeitos dos sumiços, R se viu
livre para voltar à superfície e juntar-se aos outros que também conseguiram
manter não apenas suas memórias, como também suas identidades.
Dessa forma, por meio de R e outras pessoas que não foram afetadas pelos
sumiços e sobreviveram à caça da polícia da memória, a memória servirá não
apenas como um resgate do passado, mas também como um recurso para a
reconstrução do futuro, bem como de uma identidade.
Referências
Allana da Silva Araujo é mestranda em Letras pela Universidade Federal do
Maranhão (UFMA) e pesquisa sobre a literatura fantástica no Japão. Graduada
em Letras Português-Espanhol também pela UFMA.
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