BURCKHARDT, Jacob. A Cultura Do Renascimento Na Itália

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j U ^ o W ^ R c ^ Ü A t ó T . A j j u .

OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

Tendo chegado a este ponto de nosso panorama da história cultu-


ral, cumpre que nos dediquemos agora à Antigüidade, cujo " r e n a s c i -
w a . ^ - ^ o T e i u ^ u mento", de maneira unilateral, conferiu o nome à época. As circunstân-
cias até aqui descritas teriam agitado e amadurecido a nação m e s m o
sem a presença dessa Antigüidade, assim c o m o sem ela seriam d e c e r t o
WS" : COV^gaJL^G. L j h ^ l ^ y U
igualmente concebíveis a maioria das novas tendências intelectuais a
serem ainda enumeradas aqui. N ã o obstante, tanto quanto o q u e aqui
já se tratou, também o que se vai tratar reveste-se de muitas maneiras
da coloração que lhe empresta a influência exercida pela Antigüidade,
e, onde sem esta a essência das coisas seria igualmente compreensível
e estaria também presente, é só c o m e através dela que sua expressão
adquiriu vida. O Renascimento não se teria configurado na elevada e
universal necessidade histórica que foi se se pudesse abstrair t ã o facil-
mente dessa Antigüidade. Nesse p o n t o temos de insistir, c o m o uma
proposição central deste livro: não foi a Antigüidade sozinha, m a s sua
estreita ligação c o m o espírito italiano, presente a seu lado, q u e sujei-
tou o mundo ocidental. E desigual a liberdade que, nessa aliança, esse
espírito preservou para si, parecendo amiúde muito pequena, q u a n d o
se examina, p o r exemplo, a literatura neolatina. N a s artes plásticas,
no entanto, e em várias outras esferas, sua dimensão é notável, fazen-
do c o m que a aliança entre duas longínquas épocas culturais de um
mesmo p o v o se revele una, porque autônoma em suas partes, e, por
isso, legítima e fecunda. O restante do O c i d e n t e pôde estudar de que
maneira repelir o impulso proveniente da Itália, ou como apropriar-se
total ou parcialmente dele. O n d e este último caso se deu, p o u p e m -

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se-nos as lamentações acerca do declínio precoce de nossas concepções
fletida de elementos isolados da Antigüidade; dentro dela, trata-se de
e manifestações culturais medievais: tivessem elas tido força suficien-
uma objetiva tomada de partido ao mesmo tempo erudita e popular
te para se defender, estariam ainda vivas; tivessem esses espíritos ele-
pela Antigüidade de uma forma geral, uma vez que esta constitui ali a
gíacos e saudosos de passar uma única hora em meio delas, ansiariam
lembrança da própria grandeza de outrora. A fácil compreensibilida-
avidamente por ares modernos. É certo que, ante processos históricos
de do latim, o montante de recordações e monumentos ainda presen-
de tamanha envergadura, muitos nobres botões pereceram sem ver as-
tes, estimula decisivamente esse desenvolvimento. Dele e de sua inte- •
segurado seu florescimento imorredouro na tradição e na poesia; nem
ração com um espírito italiano que se alterou com o passar do tempo
por isso, todavia, é lícito desejar que o processo, em sua totalidade,
— com as instituições do Estado germano-lombardo, com a cavalaria
não tivesse ocorrido. Tal processo consiste no fato de que, paralela-
comum a toda a Europa, com as demais influências culturais p r o v i n -
mente à Igreja, que ate então mantivera o Ocidente coeso (e não logra-
das do N o r t e , com a religião e com a Igreja — surge, então, o novo
ria continuar a fazê-lo por muito mais tempo), surge uma nova força
todo: o moderno espírito italiano, destinado a tornar-se o m o d e l o de-
espiritual que, espraiando-se a partir da Itália, se torna a atmosfera vi-
cisivo para t o d o o Ocidente.
tal para t o d o europeu de maior instrução. A crítica mais severa que se
D e que forma o antigo se manifesta nas artes plásticas, t ã o logo
pode externar acerca desse processo é aquela referente a seu caráter
finda a barbárie, verifica-se nitidamente nas edificações toscanas do
não popular, ou seja, à fatal separação entre cultos e incultos que en-
século xii e em suas esculturas do século seguinte. Paralelos desse gê-
tão se estabelece em toda a Europa. Tal crítica perde, porém, seu valor
tão logo nos vemos obrigados a admitir que essa mesma questão hoje, nero tampouco faltam à literatura, se é lícito supor que o m a i o r poeta
ainda que claramente percebida, não pode ser alterada. Além disso, já latino do século XII — aquele que deu o tom a todo um gênero da poesia
há tempos essa separação não se revela tão cruel e inexorável na Itália latina de então — tenha sido um italiano. Referimo-nos ao autor das
quanto em outras partes. Ali, afinal, o mais artístico de seus poetas, melhores canções da assim chamada Carmina burana. U m a alegria
Tasso, anda também, nas mãos dos mais pobres. sem entraves pela vida e seus prazeres, sob a proteção dos antigos deu-
ses pagãos, que ali reaparecem, flui numa magnífica torrente de suas
estrofes rimadas. Q u e m as lê de uma só vez dificilmente poderá negar
a impressão de que ali fala um italiano, provavelmente da Lombardia;
A Antigüidade greco-romana, que desde o século XIV intervém
evidências específicas corroboram ainda essa impressão."' E m certa
tão poderosamente na vida italiana — enquanto suporte e base da cul-
medida, essas poesias latinas dos clerici vagantes do século XII, junta-
tura, enquanto meta e ideal da existência e, em parte, também como uma
mente com sua grande e notável frivolidade, são um produto d o con-
nova e consciente reação ao já existente — , havia muito tempo vinha
junto da Europa. Mas quem compôs a canção De Phyllide et Flora, o
exercendo uma influência parcial sobre toda a Idade Média, inclusive
Aestuans ínterins etc. não foi, presume-se, alguém oriundo d o N o r t e ,
fora da Itália. Aquela erudição representada por Carlos Magno consti-
bem c o m o tampouco era esta a origem do sibarita refinado e observa-
tuía essencialmente um renascimento, em contraposição à barbárie dos
dor a quem devemos Dum Dianae vitrea sero lampas oritur. O que
séculos Vil e viu, e nem podia ser diferente. D a mesma maneira como,
aqui se verifica é um renascimento da visão de mundo dos antigos,
além dos fundamentos formais gerais herdados da Antigüidade, notá-
tornada ainda mais evidente pelo uso da rima medieval. H á diversas
veis imitações diretas dos antigos imiscuem-se na arquitetura romana
do Norte, também o conjunto do saber monástico absorvera uma gran-
de massa de elementos oriundos dos autores romanos, e mesmo seu es-
tilo, a partir de Einhard, não permanece imune à imitação.
(*) A estadia em Pavia, as referências locais à Itália de um modo geral, a c e n a com a
N a Itália, entretanto, diferentemente do que ocorre no Norte, pastorella sob a oliveira, a menção do pinus como uma umbrosa árvore das pradarias, o re-
a Antigüidade desperta novamente. T ã o logo a barbárie tem fim, a petido uso da palavra bravium e, sobretudo, o emprego da forma Madii em vez d e Maji pa-
consciência do próprio passado faz-se novamente presente em um recem confirmar nossa hipótese. Que o poeta se chame Walter não nos dá qualquer indício
povo ainda parcialmente ligado à Antigüidade; ele a celebra e deseja sobre sua origem. Costumava-se identificá-lo como sendo Gualterus de Mapes, cónego de
reproduzi-la. Fora da Itália, o que o c o r r e é uma utilização erudita e re- Salisbury e capelão dos reis ingleses por volta do final do século XII. Mais recentemente,
acredita-se ser ele um certo Walther de Lille ou Châtillon.

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obras desse século e do seguinte que exibem uma cuidadosa imitação Traçar esse movimento dos espíritos não em sua plenitude mas em
de hexámetros, pentámetros e de toda a sorte de elementos, sobretudo
seus contornos gerais — e, sobretudo, em seu início — constitui agora
mitológicos, pertencentes à Antigüidade, sem com isso produzir, de
a nossa tarefa.
modo algum, aquela impressão do antigo. Nas crônicas em hexáme-
tros e em outras obras a partir de Guiglielmus Appulus, deparamo-nos
freqüentemente com evidências de um diligente estudo de Virgílio,
Aí RU/NAS DE ROMA
Ovídio, Lucano, Estácio e Claudiano, mas a forma antiga permanece
mera questão de erudição, tanto quanto a temática antiga em compila-
Antes de mais nada, a própria R o m a das ruínas é, então, alvo de
dores c o m o Vicente de Beauvais ou n o mitológico e alegórico Alamis
uma espécie distinta de reverência do que aquela de que desfrutara à
ab Insulis. Todavia, o Renascimento não significa imitação ou compi- época em que as Mirabilio. Romae e a obra histórica de G u i l h e r m e de
lação fragmentária, mas sim o nascer de novo, e este nascer de novo Malmesbury foram compostas. Agora, a imaginação do peregrino
encontra-se, na realidade, naqueles poemas do clericus desconhecido devoto, tanto quanto a do crente na magia e a do escavador de tesou-
do século XII. ros, recua em favor da do historiador e patriota. É nesse sentido que
A grande e geral tomada de partido dos italianos pela Antigüidade as palavras de D a n t e [ C o n v i t o ] desejam ser compreendidas q u a n d o
começa, no entanto, apenas no século XIV. Para tanto, foi necessário um afirmam que as pedras das muralhas de R o m a são merecedoras de re-
certo desenvolvimento da vida municipal, desenvolvimento este que se verência, e o chão sobre o qual a cidade foi construída é mais digno
deu somente na Itália e naquele momento: a convivência sob um mes- do que dizem os homens. A freqüência colossal dos jubileus mal
mo teto e a efetiva igualdade entre nobres e burgueses; a formação de deixa na literatura propriamente dita um único registro devoto.
um meio social comum que sentia necessidade de educar-se e dispunha Giovanni Villani traz consigo para casa, como proveito supremo do
de tempo e meios para tanto. Tal educação, porém, tão logo pretendesse jubileu do ano de 1300, sua decisão de lançar-se à escrita da história,
libertar-se das fantasias do mundo medieval, não poderia subitamente decisão que a visão das ruínas de R o m a nele desperta. Petrarca
abrir caminho até o conhecimento do mundo físico e intelectual através dá-nos ainda a conhecer um espírito dividido entre as Antigüidades
do mero empirismo; ela necessitava de u m guia, e foi enquanto tal que clássica e cristã. Conta-nos quão freqüentemente, na companhia de
a Antigüidade clássica, com toda a sua enorme bagagem de verdades ob- Giovanni Colonna, ele subia até as gigantescas abóbadas das Termas de
jetivas e luminosas em todas as áreas do conhecimento, se apresentou. Diocleciano para, ali — ao ar livre, em meio ao mais profundo silêncio
Absorveu-se-lhe, então, forma e substância com gratidão e admiração, e à ampla paisagem ao redor — , conversarem não sobre negócios, assun-
tornando-a o conteúdo central de toda a educação. A situação geral da tos domésticos ou políticos, mas, circundados pela visão das ruínas, so-
Itália era também favorável a isso. O império medieval, desde o declínio bre história — conversas nas quais Petrarca posicionava-se mais pela
dos Hohenstaufen, renunciara a ela, ou não pôde mantê-la para si; o pa- Antigüidade clássica e Giovanni mais pela cristã — , sobre filosofia e so-
pado transferira-se para Avignon, e os poderes efetivamente existentes bre os inventores das artes. C o m que freqüência, até G i b b o n e Niebuhr,
eram, em grande parte, violentos e ilegítimos. O espírito que despertou esse mundo de ruínas não despertou a contemplação histórica!
para a consciência, por sua vez, estava à procura de um novo e sólido
A mesma sensibilidade dividida manifesta também Fazio degli Uber-
ideal, de modo que a falsa imagem e o postulado de uma dominação mun-
ti em seu Dittamondo — a imaginária e visionária descrição d e uma
dial romano-italiana apoderaram-se da imaginação popular, intentando
viagem escrita por volta de 1360, viagem na qual o acompanha o velho
mesmo sua realização prática na figura de Cola di Rienzi. Da forma como
geógrafo Solinus, assim como Virgílio acompanha Dante. D a mesma
este abraçou tal tarefa, especialmente quando tribuno pela primeira vez, só
forma c o m o eles visitam Bari, em honra de são Nicolau, e o m o n t e Gar-
poderia mesmo resultar uma comédia estrambólica. A despeito disso, para
gano, por devoção ao arcanjo Miguel, também em R o m a são menciona-
o sentimento nacional, a lembrança da antiga Roma não constituía abso-
das as lendas de Aracoeli e de Santa Maria in Trastevere, mas o esplen-
lutamente um suporte desprovido de valor. Armados novamente de sua
dor profano da R o m a antiga é já visivelmente preponderante. Uma
cultura, os italianos logo se sentiram, de fato, a mais avançada nação do
augusta anciã em trajes esfarrapados — trata-se da própria Roma
mundo.
— conta-lhes sua história coroada de glórias, descrevendo minuciosa-

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mente os antigos triunfos; a seguir, conduz os forasteiros pela cidade, Blondus de Forli escreveu sua Roma instaurata, valendo-se já d e Fron-
explicando-lhes as sete colinas e uma porção de ruinas — "che com- linus e dos velhos Libri regionali, bem c o m o (ao que parece) d e Anas-
prender potrai, quanto fui bella!". tácio. Seu objetivo já está longe de ser a mera descrição do existente,
Infelizmente, no tocante ao legado da Antigüidade, essa Ronu sendo antes a investigação do que perecera. E m consonância c o m a de-
dos papas cismáticos de Avignon já não era nem de longe o que forâ dicatória dirigida ao papa, Blondus consola-se da ruína generalizada
havia algumas gerações. D e v a s t a ç ã o mortal, que deve ter arrancado às com as magníficas relíquias dos santos que R o m a possuía.
edificações mais importantes ainda remanescentes o seu caráter, foi C o m Nicolau V ( 1 4 4 7 - 5 5 ) , ascende ao t r o n o papal aquele novo e
a demolição de 140 casas fortificadas pertencentes aos grandes de monumental espírito peculiar ao Renascimento. E m d e c o r r ê n c i a do
R o m a , devida ao senador B r a n c a l e o n e , p o r volta de 1 2 5 8 . A nobreza novo prestígio e do embelezamento da cidade de R o m a , d e c e r t o cres-
havia, sem dúvida, se aninhado nas ruínas mais altas e mais bem con- cia agora, por um lado, o perigo para as ruínas, mas, p o r o u t r o , tam-
servadas. N ã o o b s t a n t e , o q u e restou desse ato foi ainda m u i t o mais bém o respeito p o r elas, enquanto portadoras da glória da cidade. Pio
do que h o j e subsiste: m u i t o do que permaneceu em pé deve ainda ter II revela-se inteiramente tomado de enorme interesse pelo antigo, e, se
conservado seus revestimentos e incrustações em mármore, suas co- pouco fala das antigüidades de R o m a , em compensação dedica sua
lunas frontais e o u t r o s adornos, dos quais h o j e resta apenas a estru- atenção àquelas de t o d o o restante da Itália, sendo o primeiro a conhe-
tura de pedra. F o i a partir desse estado de coisas que teve início, en- cer e descrever com exatidão as da circunvizinhança mais l o n g í n q u a da
tão, um sério levantamento t o p o g r á f i c o da velha cidade. N a s peregri- cidade. C o m o eclesiástico e cosmógrafo, interessam-no, p o r é m , em
nações de P o g g i o p o r R o m a , ' o estudo das próprias ruínas é, pela igual medida, os monumentos clássicos e cristãos, bem c o m o as mara-
primeira vez, relacionado mais intimamente àquele dos autores anti- vilhas da natureza. O u estaria ele praticando uma violência c o n t r a si
gos e inscrições (que ele persegue p o r entre a vegetação que as enco- próprio ao escrever, por exemplo, que a memória de são P a u l i n o c o n -
bre), r e c e b e n d o um tratamento que repele a fantasia e afasta diligen- feria a N o l a glória maior do que as reminiscências da R o m a antiga e
temente a m e m ó r i a da R o m a cristã. T o m a r a fosse a obra de Poggio da luta heróica de Marcelo? N ã o que se deva colocar em dúvida sua
mais extensa e provida de ilustrações! À sua época, havia ainda mui- crença nas relíquias; seu espírito, contudo, inclinava-se já, evidente-
to mais remanescentes das antigas ruínas do que encontraria Rafael, mente, mais para o interesse especulativo pela natureza e pela A n t i g ü i -
oitenta anos mais tarde. P o g g i o ainda pôde ver c o m seus próprios dade, para a preocupação c o m o monumental, para a o b s e r v a ç ã o enge-
olhos a t u m b a de C e c í l i o M e t e l o e as colunas frontais de um dos tem- nhosa da vida humana. Ainda em seus últimos anos de pontificado,
plos na encosta do C a p i t ó l i o — de início, inteiras, mais tarde, semi- atormentado pela gota, mas munido da melhor das disposições, ele se
destruídas, graças àquela desafortunada característica peculiar ao faz carregar em uma liteira p o r montanhas e vales até T ú s c u l o , Alba,
mármore, que o torna facilmente calcinável. A t é m e s m o uma porten- Tíbure, Óstia, Falérios e O t r i c u l u m , registrando tudo o que v ê ; segue
tosa colunata j u n t o ao templo de M i n e r v a sucumbiu, pedaço p o r pe- pelas velhas estradas e aquedutos romanos, procurando d e t e r m i n a r as
daço, a esse m e s m o destino. N o ano de 1443, um cronista [Fabroni] fronteiras das antigas povoações ao redor de R o m a . P o r o c a s i ã o de
registra a continuidade desse p r o c e s s o de calcinação, " q u e é uma ver- uma excursão a Tíbure, em companhia do grande Frederico d e U r b i -
gonha, uma vez que as edificações mais novas são deploráveis e o belo no, ambos passam agradavelmente o tempo em conversas a c e r c a da
em R o m a são as r u í n a s " . O s r o m a n o s de então, em seus rústicos ca- Antigüidade e de suas guerras, sobretudo a de Tróia. M e s m o em sua
sacos e botas, pareciam m e r o s vaqueiros aos forasteiros, e, de fato, o viagem para o Congresso de Mântua (1459), P i o li procura, embora
gado ia até os B a n c h i pastar. As idas à igreja, em ocasiões determina- em vão, pelo labirinto de Clusium mencionado por Plínio e visita a as-
das, constituíam a única modalidade de convívio social, quando, en- sim chamada villa de Virgílio, às margens do Mincio. Q u e e s t e mesmo
tão, as belas mulheres podiam ser vistas. papa exigisse também de seus compendiadores o uso do latim clássico,
N o s últimos anos do pontificado de Eugênio IV (morto em 1447), é algo relativamente óbvio; afinal, p o r ocasião da guerra napolitana,
ele anistiara os homens de Arpino p o r serem conterrâneos d e Cícero
e Mário, em homenagem aos quais muitos deles haviam s i d o batiza-
(•"') Por volta de 1430, ou seja, pouco antes da morte de Martinho V. As Termas de
Caracala c Diocleciano ostentavam ainda suas colunas e incrustações. dos. Somente a Pio II, na qualidade de conhecedor e protetor, Blondus

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podia e devia dedicar sua Roma triumphans, a primeira grande tenta-
jovem e belíssima romana da Antigüidade. Escavando um antigo tú-
tiva de apresentar a Antigüidade romana em sua totalidade.
mulo situado no interior de um terreno pertencente ao convento de
Por essa época, naturalmente, o entusiasmo pela Antigüidade roma-
Santa Maria Nuova, na via Appia, para além da tumba de Cecílio M e -
na encontrava-se desperto também no restante da Itália. Já Boccaccio
telo, pedreiros lombardos encontraram um sarcófago de m á r m o r e su-
chama as ruínas de Baia [ F i a m m e t t a , cap. 5] "antigas muralhas novas, to-
postamente contendo a seguinte inscrição: "Júlia, filha de C l á u d i o " . O
davia, para espíritos modernos". Desde sua época, elas são tidas como a
restante da história pertence ao domínio da fantasia. O s pedreiros te-
maior atração das cercanias de Nápoles. Coletâneas de antigüidades de
riam desaparecido imediatamente, levando consigo os tesouros e pe-
todos os gêneros já haviam igualmente surgido. Ciríaco de Ancona per-
dras preciosas que, no sarcófago, serviam de adorno e escolta a o cadá-
correu não apenas a Itália, mas também outras terras da antiga orbis
ver; este estaria revestido de uma essência protetora, que o teria man-
terrarum, trazendo consigo abundantes inscrições e desenhos. Perguntado
tido tão fresco e mesmo tão vívido quanto o de uma moça de quinze
acerca do porquê de tanto trabalho, respondeu que era para despertar os
anos recém-falecida; dele se disse até que teria ainda em si a cor da vida
mortos. Desde sempre, as histórias das diversas cidades aludiam a um
e os olhos e a boca semi-abertos. O corpo foi, então, levado para o pa-
verdadeiro ou pretenso vínculo com Roma, à sua fundação direta ou co-
lácio dos conservatori, no Capitólio, e, a fim de vê-lo, teve início uma
lonização a partir dali. Genealogistas prestativos parecem já há tempos
verdadeira peregrinação; muitos iam também para desenhá-lo, "pois
fazer derivar algumas famílias de famosas estirpes romanas — o que
ela era bela de uma forma que não se pode dizer ou escrever, e , ainda
soava tão bem, que as pessoas seguiram aferrando-se a tal prática, mes-
que se falasse e escrevesse sobre sua beleza, aqueles que não a viram
mo à luz da crítica nascente do século xv. E m Viterbo, Pio II fala com
não acreditariam". U m a noite, porém, por ordem de I n o c ê n c i o VIII,
grande desembaraço aos oradores romanos que lhe rogam para que re-
o corpo teve de ser enterrado em um local secreto, para além d a P o r -
gresse rapidamente a R o m a [Comentários, liv. iv]: " R o m a é minha cida-
ta Pinciana, no palácio dos conservatori permanecendo apenas o sar-
de natal tanto quanto Siena o é, pois minha casa — a dos Piccolomini —
cófago vazio. Provavelmente, uma máscara colorida, de cera o u mate-
emigrou, em tempos passados, de R o m a para Siena, como o demonstra
rial semelhante, fora modelada ao estilo clássico sobre o rosto do ca-
o frequente emprego dos nomes Enéias e Sílvio em nossa família". É de
dáver, o que decerto combinaria com os cabelos dourados de que se
se supor que não o teria desagradado ser um Júlio. Também para Paulo
fala. O tocante nessa história não é o fato em si, mas a sólida crença de
II — um B a r b o , de Veneza — providenciou-se a desejada ascendência,
que o corpo antigo, que acreditavam estar finalmente vendo de fato dian-
visto que sua casa, em que pese uma discordante origem alemã, acabou
te de si, teria necessariamente de ser mais magnífico do que tudo quan-
por se fazer derivar dos Ahenobarbus romanos, que teriam fundado
to então vivia.
uma colônia em Parma e cujos descendentes, em razão de conflitos
Entrementes, em decorrência das escavações, crescera o c o n h e c i -
partidários, teriam emigrado para Veneza. N ã o há, pois, por que estra-
mento objetivo acerca da antiga Roma. J á sob Alexandre VI, foram
nhar que os Massini pretendessem descender de Q . Fábio Máximo e
descobertos os assim chamados grutescos — ou seja, as decorações de
os Cornaro, dos Cornelii. Contrariando essa tendência, constitui uma
muros e abóbadas dos antigos — e encontrou-se, em porto d' A n z i o ,
exceção verdadeiramente notável para o século seguinte, o xvi, que o
o Apolo de Belvedere. Sob Júlio II, seguiram-se as gloriosas descober-
novelista Bandello procure sua ascendência em meio a nobres ostro-
tas do Laocoonte, da Vénus do Vaticano, do Torso e de Cleópatra, en-
godos (l, nov. 23).
tre tantas mais.* Também os palácios dos grandes e dos cardeais come-
Mas voltemos a R o m a . O s habitantes " q u e então se autodenomi- çaram a povoar-se de estátuas e fragmentos antigos. Rafael executou
navam r o m a n o s " acolhiam sequiosos a exaltação que o restante da Itá- para Leão X aquela restauração ideal de toda a R o m a antiga de q u e fala
lia lhes oferecia. Sob Paulo II, Sisto IV e Alexandre VI, assistiremos a sua (ou de Castiglione) famosa carta. Após se queixar amargamente
faustosos cortejos carnavalescos representando a fantasia predileta da- acerca das sempre presentes destruições — isso ainda sob J ú l i o II —,
queles tempos: o triunfo dos antigos imperadores romanos. Onde ele roga ao papa que proteja os poucos testemunhos ainda remanescen-
quer que sentimentos exaltados se manifestassem, faziam-no sempre tes da grandeza e força daquela alma divina da Antigüidade, à m e m ó -
dessa forma. Sob um tal estado de ânimo, espraiou-se, a 18 de abril
de 1485, o rumor do descobrimento do corpo bem conservado de uma
( * ) Já sob Júlio II escavava-se à procura de estátuas.

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ria da qual se inflamam ainda aqueles capazes de coisas superiores. bretudo ao descrever Tíbure [ C o m e n t á r i o s , liv. V], e, logo a seguir, em
Munido de notável perspicácia, Rafael fixa, então, a base para uma Polifilo, surge a primeira imagem ideal das ruínas, acompanhada de
história comparada da arte, concluindo c o m aquele conceito de regis- uma descrição: restos de portentosas abóbadas e colunatas entremea-
tro arquitetônico desde então vigente: de cada edificação remanescen- dos por antigos plátanos, loureiros, ciprestes e por um selvagem ma-
te, ele exige planta, elevação e corte, em separado. N ã o é possível pros- tagal. N a história sagrada, torna-se hábito — e é quase impossível dizer
seguir expondo aqui em que medida, a partir dessa época, a arqueolo- como — transferir o cenário do nascimento de Cristo para as ruínas
gia — sobretudo em conexão com a cidade sagrada e sua topografia — mais suntuosas possíveis de um palácio."" Que, mais tarde, p o r fim, as
alçou-se à condição de ciência específica, ou de que maneira a Acade- ruínas artificiais tenham se tornado presença obrigatória em faustosos
mia Vitruviana impôs-se ao menos metas colossais. Atenhamo-nos, jardins, constitui apenas a manifestação prática desse sentimento.
pois, ao pontificado de Leão X, sob o qual a fruição da Antigüidade
enredou-se a todos os demais prazeres, assumindo aquela feição admi-
rável que conferiu à vida romana sua consagração. N o Vaticano, res- OS AUTORES DA ANTIGÜIDADE
soavam o canto e os instrumentos de corda, ecoando por toda Roma
como uma conclamação à alegria de viver, ainda que Leão X não lo- Infinitamente mais importantes do que os restos arquitetônicos e
grasse desse m o d o afugentar suas próprias preocupações e tormentos artísticos, de um modo geral, da Antigüidade foram, naturalmente, os
— e ainda que sua disposição consciente de prolongar a própria vida legados escritos, tanto em grego quanto em latim. Estes eram tidos
por meio dessa alegria tenha sido frustrada pela morte prematura. É como as próprias fontes de todo o conhecimento, no sentido mais ab-
impossível escapar da imagem resplandecente da R o m a de Leão X tra- soluto. A situação dos livros àquela época de grandes descobertas foi já
çada por Paolo Giovio, em que pese o testemunho igualmente preciso amiúde alvo de descrição; a esse respeito, podemos apenas acrescentar
que ela nos dá do lado sombrio da cidade: o servilismo dos que alme- aqui alguns aspectos menos abordados.
javam ascender, a miséria oculta dos prelados — que, a despeito de Por maior que pareça a influência dos escritores antigos sobre a
suas dívidas, tinham de viver de acordo com sua posição — , a arbitra- Itália — datando já de muito tempo, mas sobretudo ao longo d o século
riedade e o caráter fortuito do mecenato literário do papa e, final- XIV — , na verdade, o número de novas descobertas foi menor do que
mente, sua administração financeira absolutamente ruinosa. E m sua o de obras já bastante conhecidas propagando-se por numerosas mãos.
sexta sátira, o m e s m o Ariosto que tão bem conhecia tudo isso e de A provisão de obras que entusiasmou a geração de Boccaccio e Petrar-
tudo isso escarnecia dá-nos, não obstante, uma imagem assaz nostál- ca compunha-se, essencialmente, dos poetas, historiadores, oradores e
gica de seu convívio com os poetas altamente ilustrados que o acom- epistológrafos latinos mais populares, juntamente com um certo núme-
panhavam pelas ruínas da cidade, do conselho de eruditos que ali en- ro de traduções latinas de alguns escritos isolados de Aristóteles, Plutar-
controu para suas próprias obras e, por fim, dos tesouros da bibliote- co e mais uns poucos autores gregos. Petrarca possuía, e sabidamente
ca do Vaticano. Isso tudo, acredita ele, e não a esperança já havia mui- venerava, um Homero em grego, sem contudo poder lê-lo. C o m a ajuda
to perdida na proteção dos Medici, é que poderia verdadeiramente o de um grego da Calábria, Boccaccio logrou, na medida do possível, pro-
atrair, caso pretendessem novamente convencê-lo a, na qualidade de duzir a primeira tradução para o latim da Ilíada e da Odisséia. É apenas
embaixador de Ferrara, transferir-se para R o m a . no século XV que tem início a grande série de novas descobertas, a cria-
Além do fervor arqueológico e da atmosfera solenemente patrió- ção sistemática de bibliotecas por meio de cópias e o mais fervoroso es-
tica, as ruínas em si despertaram também, dentro e fora de R o m a , um forço de tradução a partir do grego.**
ardor elegíaco-sentimental. O s acordes iniciais deste encontram-se
já em Petrarca e B o c c a c c i o . Poggio faz freqüentes visitas a R o m a e
ao templo de Vénus, acreditando ser este o de Castor e Pólux, onde ( * ) A o passo que todos os patriarcas da Igreja e peregrinos falam apenas e m uma gru-
ta, e os próprios poetas logram prescindir do palácio.
outrora o Senado costumava reunir-se, ali mergulhando na recorda-
( * * ) Sabidamente, forjaram-se também algumas obras falsas, com o intuito de iludir
ção dos grandes oradores: Crasso, PIortênsio e Cícero. D e maneira
ou explorar o apetite pela Antigüidade. Veja-se a esse respeito nas histórias literárias os ar-
completamente sentimental exprime-se, posteriormente, Pio li, so- tigos sobre Annius de Viterbo.

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Sem o entusiasmo de alguns colecionadores de então, cujo esmero Poggio logrou ainda completar, em sua essência, as obras de Sílio Itálico,
chegava à mais extrema abnegação, nós certamente disporíamos hoje Manílio, Lucrécio, Valério Flaco, Asconius Pedianus, Columella, Celso,
apenas de pequena parte das obras, sobretudo as dos gregos, que chega- Aulo Gélio, Estácio e de outros mais; juntamente com L e o n a r d o Areti-
ram até nós. Ainda quando monge, o papa Nicolau V endividou-se para no, trouxe à luz ainda as doze últimas peças de Plauto, bem c o m o as
comprar manuscritos ou mandar copiá-los; já naquela época, ele profes- Verrinas, de Cícero.
sava abertamente as duas grandes paixões do Renascimento: os livros e M o v i d o pelo patriotismo e pelo amor à Antigüidade, o f a m o s o
as edificações. Manteve a palavra quando papa. E n q u a n t o os copistas cardeal grego Bessarion compilou, c o m enorme sacrifício, seiscentos
escreviam, emissários vasculhavam meio mundo sob suas ordens. Pe- manuscritos, tanto de conteúdo pagão quanto cristão, p r o c u r a n d o , a
rotto recebeu quinhentos ducados pela tradução para o latim de Políbio; seguir, p o r um local seguro onde pudesse abrigá-los, a fim de que sua
Guarino, mil florins de o u r o pela de Strabo, e teria recebido outros qui- desafortunada pátria, se algum dia voltasse a ser livre, pudesse r e e n c o n -
nhentos, não fosse a morte prematura do papa. N i c o l a u V deixou 5 mil trar sua literatura perdida. A senhoria de Veneza declarou-se, então,
volumes — ou 9 mil, dependendo da maneira c o m o se calcula — para pronta a construir um local, e ainda hoje a Biblioteca Marciana preser-
uma biblioteca criada para o uso efetivo de todos os membros da cúria, va uma parte daqueles tesouros.
biblioteca esta que se tornou o núcleo da biblioteca do Vaticano e que A constituição da célebre biblioteca dos Medici tem uma história
seria instalada no próprio palácio, na qualidade de seu mais nobre ador- bastante singular, acerca da qual não podemos nos estender aqui. O
no, c o m o outrora o fizera o rei Ptolomeu Filadelfo de Alexandria. principal compilador de Lourenço, o Magnífico, foi Janus Lascaris. É
Q u a n d o , em conseqüência da peste, o papa teve de transferir-se com sua sabido que a coleção teve de ser readquirida, volume por volume, pelo
corte para Fabriano, levou consigo seus tradutores e compiladores, a cardeal Giovanni de Medici (Leão X), após a pilhagem do ano d e 1494.
fim de que não fossem dizimados. A biblioteca de U r b i n o (hoje no Vaticano) foi obra do grande F r e -
O florentino N i c c o l ò Niccoli, m e m b r o do ilustrado círculo de derico de Montefeltro, que ainda na infância começou a compilá-la. Mais
amigos que se reunia em t o r n o do já idoso C o s m e de Medici, aplicou tarde, teve sempre de trinta a quarenta scrittori em diversos locais a seu
toda a sua fortuna na aquisição de livros. P o r fim, quando já não tinha serviço e, ao longo dos anos, empregou nela acima de 30 mil ducados.
mais nada, os Medici colocaram seus próprios cofres à disposição dele, Graças sobretudo à ajuda de Vespasiano, tal biblioteca foi sistematica-
para qualquer soma que desejasse para aquele mesmo fim. A ele deve- mente ampliada e complementada, e o que ele relata a seu respeito é par-
mos o fato de dispormos dos últimos livros da obra de Ammianus Mar- ticularmente notável enquanto concepção ideal de uma biblioteca da
cellinus, do De oratore, de Cícero, e de outros mais; foi ele também época. Possuíam-se, por exemplo, na U r b i n o de então, os catálogos das
quem levou C o s m e a comprar o melhor Plínio de um convento em Lü- bibliotecas do Vaticano, de São Marcos, em Florença, da dos Visconti,
beck. D o t a d o de uma admirável confiança nas pessoas, N i c c o l i empres- de Pavia, e mesmo o catálogo da biblioteca de O x f o r d — e era c o m or-
tava seus livros, permitindo inclusive que, tanto quanto o desejassem, gulho que se verificava que, no tocante à totalidade das o b r a s de um
elas os lessem em sua casa, c o m elas conversando, então, sobre o que ha- mesmo autor, a biblioteca de U r b i n o era muito mais completa e superior
viam lido. Após sua morte, sua coleção de oitocentos volumes, avaliada a todas as outras. N a quantidade, predominavam talvez as o b r a s da
em 6 mil florins de ouro, transferiu-se, graças à intermediação de Cos- Idade Média e as de teologia; encontrava-se ali toda a obra de são To-
me, para o convento de São Marcos, sob a condição de que fosse aberta más de Aquino, de Alberto Magno, de Bonaventura e assim p o r diante.
ao público. N o mais, a biblioteca era bastante variada e continha, por exemplo, to-
das as obras de medicina então disponíveis. Dentre os moderni, figura-
D o s dois grandes descobridores de livros, Guarino e Poggio, o úl-
vam c o m destaque os grandes autores do século XIV, como D a n t e e
timo — em parte na qualidade de agente de Niccoli — esteve também,
Boccaccio, com suas obras completas; a seguir, vinham 25 humanistas
sabidamente, nas abadias do Sul da Alemanha, p o r ocasião do Concílio
selecionados, sempre com suas obras em latim e em italiano, e o que
de Constança. Ali encontrou seis discursos de Cícero e o primeiro
mais houvessem traduzido. Dentre os manuscritos gregos, predomina-
Quintiliano completo: o manuscrito de Sankt Gallen — ou de Zurique,
vam em larga escala os patriarcas da Igreja, mas no tocante aos clássicos
c o m o é chamado hoje; consta que Poggio copiou-o na íntegra no espa-
havia ali, de uma só vez, as obras completas de Sófocles, as de Píndaro
ço de 32 dias, e, aliás, com uma bela caligrafia. C o m seus achados,

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e as de Menandro — este último manuscrito, evidentemente, deve ter uniformemente em um veludo carmesim com guarnições prateadas. E m
desaparecido cedo de U r b i n o , do contrário os filólogos logo o teriam face de uma tal disposição de desejar trazer à luz o respeito pelo conteúdo
editado. dos livros conferindo-lhes a aparência mais nobre possível, é compreen-
D i s p o m o s ainda de alguma informação no que respeita à maneira sível que o súbito surgimento do livro impresso tenha, inicialmente, es-
pela qual, àquela época, manuscritos e bibliotecas surgiam. A compra barrado em resistências. Frederico de U r b i n o "ter-se-ia envergonhado"
direta de um manuscrito mais antigo, que contivesse um texto raro ou o de possuir um tal exemplar.
único c o m p l e t o ou m e s m o o único existente de um autor da Antigüida- Todavia, os cansados copistas — não aqueles que viviam dessa ati-
de, era, naturalmente, uma dádiva rara da sorte, c o m a qual não se con- vidade, mas os muitos que, para disporem de um livro, precisavam co-
tava. D e n t r e os copistas, aqueles que entendiam grego ocupavam lugar piá-lo — receberam c o m júbilo a invenção alemã. Esta foi logo posta em
de destaque, sendo eles, especificamente, os que carregavam o honroso atividade na Itália — e, durante muito tempo, apenas ali — , para a mul-
título de scrittori: eram e permaneceram sendo poucos e muito bem pa- tiplicação dos clássicos romanos e, posteriormente, também d o s gregos.
gos. O s demais, os meros copistas, eram, em parte, trabalhadores que Não obstante, seu avanço não foi tão rápido quanto se poderia pensar,
viviam exclusivamente dessa atividade, em parte, eruditos pobres que ante o entusiasmo geral por essas obras. Passado um certo t e m p o , cons-
necessitavam de uma renda complementar. Surpreendentemente, os co- tituem-se os rudimentos da relação moderna entre autor e editora, e,
pistas romanos à época de Nicolau V eram, em grande parte, alemães e sob Alexandre vi, surge a censura preventiva, na medida em q u e a pos-
franceses, provavelmente pessoas c o m alguma pretensão j u n t o à cúria e sibilidade de aniquilar um livro tornara-se não tão simples q u a n t o fora
que tinham, de alguma forma, de ganhar o seu sustento. Quando, por para C o s m e determinar que Filelfo o fizesse.*
exemplo, C o s m e de Medici quis rapidamente dotar de uma biblioteca
sua criação predileta, a abadia u m p o u c o abaixo de Fiesole, mandou
chamar Vespasiano, recebendo deste o conselho de renunciar à compra Examinar de que maneira, a partir de então, em c o n e x ã o com o
dos livros disponíveis, u m a vez que os que desejava não estavam dispo- progresso do estudo das línguas, desenvolveu-se uma crítica textual
níveis e melhor seria que mandasse copiá-los, ao que C o s m e fez um constitui em tão pouca medida o objetivo deste livro q u a n t o traçar a
acordo c o m Vespasiano, que, mediante pagamento diário e o emprego história da erudição, de uma forma geral. N ã o nos cabe o c u p a r m o - n o s
de 4 5 copistas, entregou-lhe duzentos volumes acabados em 22 meses. aqui da erudição dos italianos enquanto tal, mas da reprodução da
O catálogo do que deveria ser copiado, C o s m e o recebera das mãos de Antigüidade na literatura e na vida. Seja-nos, contudo, permitida uma
N i c o l a u v.::" (Predominavam, naturalmente, a literatura eclesiástica e as observação acerca de tais estudos.
obras necessárias para o serviço do coro.) N o tocante aos gregos, a erudição concentra-se, essencialmente,
A caligrafia de tais volumes era aquela bela e moderna caligrafia em Florença e no século XV e início do XVI. O que Petrarca e B o c c a c -
italiana, que faz já da mera visão de um livro dessa época um prazer e cio haviam impulsionado parece ainda não ter ido além da simpatia de
cujo emprego teve início ainda n o século XIV. Tanto o papa Nicolau V alguns diletantes entusiasmados. D e outra parte, c o m o desapareci-
quanto Poggio, G i a n n o z z o Manetti, N i c c o l ò Niccoli e outros eruditos mento da colônia de refugiados gregos eruditos, morre t a m b é m , na
de renome eram calígrafos já de casa, exigindo e tolerando apenas o década de 1520, o estudo do grego, constituindo uma verdadeira sor-
belo. N o mais, m e s m o quando desprovidos das miniaturas, os volumes te que, n o N o r t e , nesse meio tempo, alguns houvessem já l o g r a d o d o -
eram adornados c o m extremo b o m gosto, c o m o o demonstram particu- minar aquela língua (Erasmo, os Estienne, Budé). A referida colônia
larmente os manuscritos da Biblioteca Laurenciana, c o m seus graciosos tivera início c o m Manuel Chrisólora e seu parente J o ã o , b e m c o m o
ornamentos no princípio e ao final de cada linha. Q u a n d o a cópia era com J o r g e de Trebizonda. Posteriormente, à época da c o n q u i s t a de
feita para grandes senhores, o material utilizado era sempre o pergami- Constantinopla e depois, vieram J o ã o Argyropulos, T e o d o r o Gaza,
nho; a encadernação, na biblioteca do Vaticano e na de U r b i n o , feita Demetrios Chalcondylas — que criou seus filhos, Teophilos e Basilios,
para serem excelentes helenistas — , Andronikos K a l l i s t o s , M a r c o s
(*) Gentileza de que foram alvo também as bibliotecas de Urbino e Pesaro (a de
Alessandro Sforza).
( * ) Em razão de um panfleto intitulado De exílio.

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Musuros e a família dos Lascaris, além de muitos outros. Entretanto, aprendido o árabe e emendado o texto deste último; p o s t e r i o r m e n t e ,
desde que se completara a sujeição dos gregos pelos turcos, deixaram
o governo de Veneza empregou-o em Pádua, para o ensino dessa ma-
de surgir novas gerações de eruditos, à exceção dos filhos dos refugia-
téria específica.
dos e, talvez, de um ou dois candiotas e cipriotas. Q u e o declínio dos
Q u a n t o a Pico delia Mirandola, faz-se necessário que nos detenha-
estudos helenísticos, de um m o d o geral, coincida aproximadamente
mos um pouco mais nele, antes de passarmos à influência geral d o hu-
c o m a m o r t e de L e ã o X, deveu-se p o r certo em parte a uma mudança
manismo. Ele foi o único a defender em voz alta e de maneira enérgica
da tendência intelectual c o m o um todo, e à já presente relativa satura-
a ciência e a verdade de todas as épocas contra a ênfase unilateral dada à
ção no tocante à literatura clássica. C e r t a m e n t e , p o r é m , a coincidência
Antigüidade clássica. Sabe apreciar não apenas Averróis e os pesquisa-
com o desaparecimento dos gregos eruditos não constitui mero acaso.
dores judeus, mas também os escolásticos da Idade Média, cada um de
T o m a n d o - s e p o r base a época em t o r n o de 1500, o estudo do grego en-
acordo com sua especialidade, e acredita ouvi-los dizer:
tre os próprios italianos parece particularmente florescente. Aprende-
ram o grego p o r essa época h o m e n s que, m e i o século mais tarde,
Nós viveremos eternamente, não nas escolas dos pedantes, mas no círculo
já idosos, falavam ainda a língua, c o m o os papas Paulo IH e Paulo IV.
dos sábios, onde não se discute acerca da mãe de Andrômaca ou dos filhos
Mas justamente esse tipo de interesse pressupunha o contato com
de Níobe, mas sim sobre as causas mais profundas das questões divinas e
gregos nativos. humanas; quem delas se acerca, verá que também os bárbaros possuíam in-
A l é m de F l o r e n ç a , R o m a e Pádua tiveram quase sempre profes- teligência [mercurium] — não na língua, mas no peito.
sores pagos de grego; B o l o n h a , Ferrara, Veneza, Perugia, Pavia e ou-
tras cidades os tiveram também, ao menos temporariamente. O s estu-
Possuidor de um vigoroso latim, absolutamente não desprovido de
dos helenísticos tiveram uma dívida imensa para c o m A l d o Manucci,
beleza, e clareza de exposição, Pico delia Mirandola despreza o p u r i s m o
em cuja oficina foram impressas, pela primeira vez em grego, as obras
pedante e toda a supervalorização de uma forma tomada emprestada,
mais volumosas e dos principais autores. A l d o arriscou tudo o que ti-
tanto mais quando eia se revela associada a uma visão unilateral e dano-
nha nessa empreitada; foi u m editor de cuja estirpe o m u n d o conheceu
sa à grande e total verdade. Nele, pode-se perceber o rumo sublime que
bem poucos.
a filosofia italiana teria tomado, se a C o n t r a - R e f o r m a não tivesse des-
H á que se mencionar aqui, ainda que apenas de passagem, que, ao truído a totalidade da vida espiritual mais elevada.
lado dos estudos clássicos, também os orientais assumiram proporções
relativamente significativas. G i a n n o z z o Manetti, estadista e grande eru-
dito florentino (morto em 1459), foi o primeiro a aliar à polêmica dog-
O HUMANISMO NO SÉCULO XIV
mática contra os judeus o aprendizado do hebraico e de toda a ciência
judaica. Desde criança, seu filho teve de aprender latim, grego e hebrai- Q u e m foram, pois, aqueles que atuaram c o m o mediadores entre
co, e o próprio papa Nicolau v incumbiu Manetti de traduzir novamen-
sua época e a venerada Antigüidade, alçando esta última à c o n d i ç ã o de
te a Bíblia, uma vez que o pensamento filológico da época compelia ao
elemento central da cultura da primeira?
abandono da Vulgata. Muito antes de Reuchlin, mais de um humanista
Trata-se de uma legião multiforme, exibindo ora uma o r a outra
acolheu o hebraico entre seus estudos; Pico delia Mirandola, por exemplo,
face. Sabiam, porém, eles próprios, bem c o m o o sabia a é p o c a , que
dispunha de todo o saber talmúdico e filosófico de um instruído rabino.
compunham um elemento novo da sociedade. Podem-se identificar
Quanto ao árabe, era sobretudo a medicina que, não mais desejando
seus precursores sobretudo naqueles clerici vagantes do século XII, de
dar-se p o r satisfeita com as traduções mais antigas dos grandes médicos
cuja poesia já se falou aqui: comungam da mesma existência instável,
árabes, requeria seu aprendizado. O ensejo para tanto talvez tenha sido
da mesma f o r m a livre, e mais do que livre, de encarar a vida e, de iní-
dado pelos consulados venezianos no Oriente, que abrigavam médicos
cio ao menos, de uma mesma tendência pagã na poesia. Agora, p o r é m ,
italianos. Hieronimo Ramusio, um médico veneziano que morreu
uma nova cultura contrapõe-se àquela da Idade Média, àquela cultura,
em Damasco, traduziu obras do árabe. Andrea M o n g a i o de Belluno de-
em essência, sempre eclesiástica e cultivada por eclesiásticos; u m a nova
teve-se longamente naquela cidade motivado p o r Avicena, tendo
cultura que se apega predominantemente àquilo que se e n c o n t r a para

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além da Idade Média. Seus representantes ativos tornam-se personagens E, dentre eles, Dante mais do que qualquer outro. Se uma sucessão
importantes porque sabem o que sabiam os antigos, porque procuram de gênios da sua categoria tivesse podido levar adiante a cultura italiana,
escrever c o m o estes o faziam e porque começam a pensar, e logo tam- esta exibiria e conservaria, mesmo que fortemente permeada p o r ele-
bém a sentir, c o m o pensavam e sentiam os antigos.* A tradição à qual se mentos da Antigüidade, um caráter nacional fortemente acentuado. Mas
dedicam converte-se, em milhares de pontos, em pura reprodução. nem a Itália nem o restante do Ocidente lograram produzir um segun-
Autores mais modernos lamentam amiúde que os germes de umi do Dante, que foi e permaneceu sendo aquele que, pela primeira vez e
cultura incomparavelmente mais autônoma e aparentemente italiana em de maneira enfática, trouxe a Antigüidade para o primeiro plano d a vida
sua essência, c o m o os que se manifestaram p o r volta de 1300 em Floren- cultural. N a Divina comédia, é verdade, ele não dispensa tratamento
ça, tenham sido, posteriormente, tragados por completo pela torrente equânime aos mundos antigo e cristão, mas os situa continuamente em
do humanismo. Argumentam eles que, àquela época em Florença, todos planos paralelos; assim como, em seus primórdios, a Idade M é d i a reu-
podiam ler, que até m e s m o os arrieiros podiam cantar as canzoni de nira modelos e antimodelos extraídos das histórias e figuras do Velho e
D a n t e e que os melhores manuscritos italianos de que ainda dispomos do N o v o Testamento, Dante reúne, em geral, um exemplo cristão e um
teriam pertencido originalmente a artesãos florentinos; teria sido possí- pagão para ilustrar um mesmo fato. N ã o se deve esquecer que o imagi-
vel então — dizem eles — o surgimento de uma enciclopédia popular, nário e a história cristã eram conhecidos, ao passo que imaginário e his-
c o m o o Tesoro, de B r u n e t t o Latini, e tudo isso teria tido p o r base uma tória da Antigüidade, pelo contrário, eram relativamente desconheci-
força e firmeza de caráter resultante da participação de todos nos negó- dos, auspiciosos e estimulantes, e que esta última tinha necessariamente
cios de Estado, do comércio, das viagens e, principalmente, da sistemá- de preponderar no interesse geral, não mais havendo um Dante para es-
tica eliminação de todo o ócio — fatores que vicejavam na Florença de tabelecer o equilíbrio.
então. Além disso — prossegue a argumentação — , os florentinos eram Petrarca está presente hoje no pensamento da maioria c o m o um
à época respeitados e de grande serventia no mundo todo, não em vão grande poeta italiano; entre seus contemporâneos, pelo contrário, sua
sendo chamados pelo papa B o n i f á c i o viu, naquele m e s m o ano, "o fama advinha em muito maior grau do fato de que ele, por assim dizer,
quinto elemento". A presença mais forte do humanismo, a partir de representava a Antigüidade em pessoa, imitando todos os gêneros da
1400, teria, pois, atrofiado esse impulso nacional, na medida em que se poesia latina e escrevendo cartas cujo valor, na qualidade de dissertações
passou a esperar exclusivamente da Antigüidade a solução para todo e acerca de determinados tópicos da Antigüidade, se hoje não mais enten-
qualquer problema, permitindo-se, além disso, que a literatura fosse demos, é perfeitamente compreensível para uma época na qual inexis-
absorvida pela mera citação; a própria perda da liberdade estaria relacio- tiam ainda os manuais.
nada a isso, na medida em que tal erudição repousaria numa servidão à O caso de B o c c a c c i o é bastante semelhante. E m razão unicamen-
autoridade, sacrificando o direito municipal ao romano e, já em razão te de suas compilações mitográficas, geográficas e biográficas em língua
disso, procurando e encontrando o favor dos déspotas. latina, ele já era famoso havia dois séculos em toda a Europa antes que,
O c u p a r - n o s - e m o s ainda, aqui e ali, dessas acusações, para exami- ao norte dos Alpes, se tivesse notícia de seu Decameron. Uma daque-
nar-lhes a verdadeira medida e a compensação oferecida aos danos. Para las compilações, De genealogia deorum, contém um notável apêndice
o momento, cabe sobretudo constatar que mesmo a cultura do vigoro- aos 14? e 15? livros, no qual Boccaccio discute a posição do j o v e m hu-
so século XIV conduzia necessariamente para o c o m p l e t o triunfo do manismo a sua época. N ã o nos devemos deixar iludir pelo fato d e que
humanismo, e que foram precisamente os maiores expoentes no domí- ele se refira incessantemente apenas à "poesia", já que um exame mais
nio do espírito nacional italiano que abriram portas e portões para o aproximado nos fará notar que é, na verdade, ao conjunto da atividade
culto sem fronteiras à Antigüidade do século XV. intelectual dos poetas-filólogos que ele se refere.* São os inimigos des-

(") Poggio (De avaritia) denuncia a avaliação que eles faziam de si próprios ao mani- ( * ) Em Dante (Vita rtuova), poeta refere-se ainda exclusivamente àqueles q u e com-
festar a opinião de que só poderiam dizer que tinham vivido aqueles que tivessem escrito punham em latim, ao passo que as expressões rimatore e dicitore per rima são empregadas
livros eruditos e eloqüentes em latim, ou aqueles que houvessem traduzido do grego para para os que escrevem em italiano. Com o tempo, porém, tais expressões e conceitos con-
o latim. fundiram-se.

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ta que ele combate da forma mais renhida: os frívolos ignorantes que teria podido receber a coroa de louros onde quer que fosse, mas ja-
não pensam senão em comer e beber à farta; os teólogos sofistas, para mais desejou fazê-lo senão em sua terra natal, razão pela qual morreu
os quais Helicón, a fonte de Castália e o bosque de F e b o parecem me- sem ser coroado. Por essa mesma fonte, é-nos dado saber que o cos-
ras tolices; os juristas ávidos de ouro, que consideram a poesia supér- tume não era até então habitual, sendo tido como herança grega dos
flua, porque não se ganha dinheiro com ela; e, por fim, os frades men- antigos romanos. Prática semelhante e posterior constituíam as dis-
dicantes (caracterizados por meio de perífrase, mas identificáveis), que putas entre tocadores de cítara, poetas e outros artistas. Instituídas
apreciam denunciar o paganismo e a imoralidade. Segue-se, então, a de- segundo o modelo grego e tendo lugar no Capitólio, elas eram, desde
fesa da poesia, sua louvação; mais exatamente, a do sentido mais pro- Domiciano, celebradas de cinco em cinco anos, e, possivelmente, so-
fundo, sobretudo alegórico, que a ela cumpre sempre atribuir, a de sua breviveram ainda algum tempo após a queda do Império R o m a n o . Se,
legítima obscuridade, que deve servir à intimidação da mente insensí- pois, por um lado, ninguém ousaria facilmente se coroar a si próprio,
vel dos ignorantes. Por fim, o autor justifica o novo relacionamento da como Dante o desejava, por outro, surgiu a questão acerca de qual se-
época com o paganismo c o m o um todo, fazendo clara referência a sua ria a autoridade responsável pela coroação. E m Pádua, por volta de
própria obra erudita/" Tal relacionamento, segundo ele, pode outrora 1310, Albertino Mussatus foi coroado pelo bispo e pelo reitor da uni-
ter sido diferente, quando a Igreja, em seus primórdios, precisava ain- versidade. Pela coroação de Petrarca (1341), disputaram a Universi-
da defender-se contra os pagãos; à sua época — graças a Jesus Cristo! dade de Paris — que tinha justamente à época um reitor florentino —
— , a verdadeira religião estaria fortalecida, o paganismo, eliminado, e a e as autoridades municipais romanas. Além disso, o examinador que
Igreja, vitoriosa, de posse do território inimigo; assim, poder-se-ia en- o próprio Petrarca escolhera, o rei R o b e r t o de Anjou, teria de bom
tão contemplar e estudar o paganismo quase (fere) sem perigo algum. grado transferido a cerimônia para Nápoles. Petrarca, no entanto,
O argumento é o mesmo que, mais tarde, todo o Renascimento empre- preferiu a todas as outras a coroação no Capitólio, pelo senador ro-
gou para se defender. mano. N a verdade, a coroação permaneceu durante algum t e m p o alvo
Havia, pois, um elemento novo no mundo, e uma nova classe de de ambição, enquanto tal atraindo, por exemplo, Jacobus Pizinga, um
pessoas a representá-lo. É ocioso discutir se, em meio a seu curso vito- nobre funcionário siciliano. Carlos IV, que tinha verdadeiro prazer
rioso, cabia a tal elemento deter-se, limitar-se voluntariamente, conce- em impressionar com cerimônias homens vaidosos e a massa ignoran-
dendo ao puramente nacional um certo privilégio. N ã o se tinha convic- te, apareceu então na Itália. Partindo da premissa fictícia de q u e a co-
ção mais firme do que a de que a Antigüidade constituía justamente a roação dos poetas fora outrora assunto dos antigos imperadores ro-
mais alta glória da nação italiana. manos e de que, portanto, era agora assunto seu, ele coroou e m Pisa
Peculiar a essa primeira geração de poetas-filólogos é, essencial- o erudito florentino Zanobi delia Strada, para grande desgosto de
mente, uma cerimónia simbólica que, se não desaparece mesmo nos Boccaccio, que se recusa a reconhecer a legitimidade dessa laurea pi-
séculos XV e XVI, perde, todavia, seu caráter mais elevado: trata-se do saria. E , de fato, podia-se perguntar como é que o meio-eslavo se ar-
coroamento dos poetas com a coroa de louros. Suas origens medie- rogara o direito de julgar o valor dos poetas italianos. N ã o obstante,
vais são obscuras, e ele jamais chegou a ser dotado de um ritual fixo. imperadores em viagem seguiram coroando poetas aqui e ali, prática
Tratava-se de uma demonstração pública, uma visível eclosão da gló- à qual aderiram, no século XV, os papas e outros príncipes, n ã o dese-
ria literária e, já por isso, de algo variável. Dante, por exemplo, pare- jando ficar para trás, até que, afinal, local e circunstâncias da c o r o a -
ce tê-la encarado c o m o uma consagração semi-religiosa: queria co- ção passaram a não mais ter qualquer importância. E m Roma, à épo-
roar-se a si próprio no batistério de San Giovanni, onde centenas de ca de Sisto IV, a academia de Pomponius Laetus distribuía coroas
milhares de florentinos, inclusive ele próprio, haviam sido batizados de louros por conta própria. Os florentinos tiveram o cuidado de
["Paraíso", XXV, v. 1 ss.]. E m razão de sua fama, diz seu biógrafo, ele coroar seus famosos humanistas somente após a morte; assim foram co-
roados Carlo e Leonardo Aretino — o panegírico do primeiro tendo
sido pronunciado por Matteo Palmieri, o do segundo, por Giannozzo
(••) Numa carta posterior a Jacobus Pizinga (Opere volgari, v. xvi), Boccaccio atém-se
com maior rigor ã poesia propriamente dita. Também ali, contudo, reconhece como poesia
Manetti, diante de todo o povo e na presença dos membros do conse-
apenas a que trata da Antigüidade, ignorando os trovadores. lho: o orador em pé, à cabeceira do esquife onde, trajando seda, jazia o

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corpo.* E m honra de Carlo Aretino erigiu-se ainda um mausoléu (em San- Das cátedras mencionadas, a de retórica era, naturalmente, a meta
ta Croce) que conta entre os mais magníficos de todo o Renascimento. preferencial dos humanistas. Havia, porém, a possibilidade de virem a
atuar também c o m o professores de direito, medicina, filosofia ou astro-
nomia, dependendo em grande parte do conhecimento que haviam ad-
UNIVERSIDADES E ESCOLAS quirido das coisas da Antigüidade. As condições internas, da ciência, e
externas, do docente, eram ainda bastante variáveis. N ã o se pode, po-
A influência da Antigüidade sobre a cultura, de que trataremos a rém, ignorar que certos juristas e médicos tinham e mantinham salários
partir de agora, pressupunha, inicialmente, que o humanismo se apode- de longe os mais elevados — os primeiros, principalmente na qualidade
rasse das universidades. Isso se deu, embora não na medida e tampouco de consultores para as reivindicações e processos do Estado que lhes pa-
com o efeito que se poderia imaginar. gava. N o século XV, em Pádua, havia um jurista que recebia anualmen-
A maioria das universidades italianas só surge verdadeiramente te mil ducados; também ali, pretendeu-se empregar um médico f a m o s o
no d e c o r r e r dos séculos XIII e XIV, q u a n d o a crescente riqueza da pagando-lhe 2 mil ducados e concedendo-lhe o direito à prática particu-
vida italiana passou a exigir t a m b é m uma p r e o c u p a ç ã o mais rigorosa lar de sua profissão, um médico que até então atuara em Pisa, lá receben-
com a educação.** N o princípio, a maioria delas possuía apenas três cá- do setecentos florins de ouro. Quando o jurista Bartolommeo Socini, ca-
tedras: as de direito canónico e civil e a de medicina. A estas, juntaram-se, tedrático em Pisa, aceitou uma nomeação de Veneza para trabalhar em
c o m o passar do tempo, as de retórica, de filosofia e de astronomia — Pádua e quis viajar para lá, o governo florentino t o m o u - o prisioneiro,
esta última, geralmente, mas não sempre, idêntica à de astrologia. Os libertando-o somente mediante o pagamento de uma caução no v a l o r de
salários dos catedráticos eram extremamente variados; às vezes, rece- 18 mil florins de ouro. J á em função de uma tal valorização dessas áreas,
biam até m e s m o algum capital de presente. O avanço da educação é compreensível que importantes filólogos se tenham firmado c o m o ju-
trouxe c o n s i g o a c o m p e t i ç ã o , de m o d o que as diferentes instituições ristas e médicos. P o r outro lado, todo aquele que desejasse apresentar
lançaram-se ao intento, de parte a parte, de atrair para si renomados sua contribuição em qualquer campo que fosse era, paulatinamente,
professores de suas rivais. S o b tais circunstâncias, diz-se que Bolonha obrigado a assumir uma forte coloração humanista. Outras modalidades
teria, cm certas épocas, aplicado metade de suas receitas (20 mil duca- de atuação prática dos humanistas serão consideradas em breve, mais
dos) na universidade. As n o m e a ç õ e s dos catedráticos eram, em geral, adiante.
p o r tempo limitado, até m e s m o p o r u m ú n i c o semestre, de m o d o que
Todavia, a atividade do filólogo enquanto tal, embora vinculada,
os docentes levavam u m a vida errante, c o m o se fossem atores. Con-
em casos particulares, a salários relativamente elevados e emolumentos
tudo havia t a m b é m n o m e a ç õ e s vitalícias. P o r vezes, p r o m e t i a m não
paralelos,* configurava-se em geral fugaz e passageira, de modo q u e um
ensinar em qualquer o u t r o local o que haviam ensinado em uma uni-
mesmo catedrático podia atuar em toda uma série de diferentes institui-
versidade. A l é m disso, havia t a m b é m professores voluntários, não re-
ções. Evidentemente, apreciava-se a diversidade e esperava-se d e cada
munerados.
um o n o v o , o que é facilmente explicável pelo fato de a c i ê n c i a en-
contrar-se então ainda em formação e, portanto, bastante d e p e n d e n -
te das personalidades dos mestres. Além disso, nem sempre aquele
('•') Ainda em vida, a fama de Leonardo Aretino era, na verdade, tão grande, que vi-
que ministrava cursos sobre autores antigos pertencia de fato à uni-
nham pessoas de todas as partes unicamente para vê-lo, um espanhol tendo inclusive se
versidade da cidade onde lecionava: dada a facilidade de ir e v i r c a
prostrado de joelhos diante dele.
grande quantidade de acomodações disponíveis (conventos e t c . ) , mi-
( " ) A Universidade de Bolonha é, sabidamente, mais amiga. A de Pisa, pelo contrá-
rio, é um produto tardio do governo de Lourenço, o Magnífico. A Universidade de Flo- nistrar cursos privados podia também ser o bastante. N a m e s m a pri-
rença, que existia desde 1321 e na qual o estudo era obrigatório para os florentinos, foi meira década do século XV, quando a Universidade de Florença atingiu
reinstituída após a peste negra de 1348 e dotada anualmente de 2,5 mil florins de ouro; pos- o auge de seu brilho, quando os cortesãos de Eugênio IV e, talvez, já
teriormente, voltou a desaparecer e a experimentar nova fundação, em 1357. A cadeira de-
dicada ao estudo de Dante, fundada em 1373 a pedido de muitos cidadãos, esteve daí em
diante ligada, geralmente, às de filologia e retórica, o mesmo acontecendo ao tempo de Fi- ( * ) Chamado para lecionar na recém-fundada Universidade de Pisa, Filelfo exigiu no
lelfo. mínimo quinhentos florins de ouro.

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os de Martinho V comprimiam-se nos auditórios, quando Carlo Are- Inicialmente, ele educou os filhos e filhas da casa regente — conduzin-
tino e Filelfo competiam entre si em suas aulas, havia não apenas uma do, aliás, uma destas últimas até as alturas da verdadeira sabedoria.
segunda e quase completa universidade junto aos agostinianos do San- Quando, porém, sua fama espraiou-se para muito além da Itália e j o -
to Spirito, não apenas toda uma associação de eruditos junto aos ca- vens de grandes e ricas famílias, provindos de todas as partes, a ele
máldulos do convento dos A n j o s , mas também grupos privados de acorreram, Gonzaga não apenas permitiu que seu mestre educasse
pessoas respeitáveis que se reuniam ou se esforçavam isoladamente também a estes, como parece ainda ter considerado uma honra para
para receber cursos de filologia e filosofia, para si e para outros. Em Mântua que esta fosse um centro de educação para o mundo aristocrá-
Roma, o estudo da filologia e da Antigüidade já havia tempos não ti- tico. Ali, pela primeira vez para toda uma escola, a ginástica e todo
nha qualquer vínculo c o m a universidade ( s a p i e n z a ) , repousando tipo de exercício físico mais nobre foram colocados lado a lado com o
quase exclusivamente em parte na proteção pessoal e particular de pa- ensinamento científico, produzindo um equilíbrio entre ambas as coi-
pas e prelados, em parte nas nomeações feitas na chancelaria pontifí- sas. A esses nobres pupilos, contudo, veio juntar-se um outro grupo
cia. Somente sob Leão X é que ocorreu a grande reorganização da sa- em cuja formação Vittorino reconheceu, talvez, a mais elevada meta de
pienza, c o m seus 88 professores, dentre os quais as maiores celebri- sua vida: os pobres e talentosos que, em sua casa, ele alimentou e edu-
dades da Itália, inclusive no campo dos estudos dedicados à Antigüi- cou "per Pamore di D i o " , juntamente com os nobres, que tiveram de
dade. Mas o novo brilho durou apenas um curto espaço de tempo. habituar-se a conviver sob um mesmo teto com o mero talento. N a
Das cadeiras relativas ao grego e à Grécia na Itália, já se falou aqui de verdade, Gonzaga devia pagar-lhe trezentos florins de ouro anuais,
maneira sucinta. mas cobria-lhe também as despesas, que amiúde somavam o m e s m o
D e um modo geral, para que tenhamos presente o modo pelo qual tanto. Sabia que Vittorino não reservava um único centavo para si e,
o conhecimento científico era então transmitido, será necessário que sem dúvida, pressentia que a concomitante educação dos que não ti-
desviemos o olhar o mais possível de nossas instituições acadêmicas nham recursos era a condição tácita sob a qual aquele homem admirá-
atuais. A convivência pessoal, as disputas, o uso constante do latim e, vel o servia. A condução da casa era de uma rigorosa religiosidade, di-
em não poucos casos, também do grego, além, finalmente, das fre- ficilmente encontrável mesmo em um convento.
qüentes mudanças de professores e da raridade dos livros, conferiam Guarino de Verona dava maior ênfase à erudição. E m 1429, ele foi
aos estudos da época uma configuração que apenas com dificuldade chamado a Ferrara por Niccolò d'Esté, para educar-lhe o filho, Leonello,
logramos imaginar. e, a partir de 1436, quando seu pupilo era já quase um adulto, atuou
Escolas de latim existiam em todas as cidades de algum renome, e, também como professor de eloqüência e de ambas as línguas clássicas na
aliás, não apenas enquanto instrução preparatória para os estudos mais universidade. Além de Leonello, Guarino tinha ainda numerosos alunos
avançados, mas porque o conhecimento do latim era tão necessário de diversas partes da Itália e, em sua própria casa, sustentava, total ou
quanto o aprendizado da leitura, da escrita e do cálculo, sendo, então, parcialmente, um número selecionado de pupilos pobres. À instrução
seguido do estudo da lógica. Fundamental afigura-se o fato de essas es- destes dedicava o final de seu dia, até tarde da noite. Também esse era
colas não dependerem da Igreja, mas da administração municipal, algu- um local de rigorosa religiosidade e moralidade; se a maior parte dos
mas delas decerto constituindo empreendimentos privados. humanistas desse século não se revelou louvável nesses dois aspectos,
Esse sistema escolar, sob a direção de alguns notáveis humanistas, isso se deveu tão pouco a Guarino quanto a Vittorino. Incompreensível
não apenas atingiu uma grande perfeição organizacional, mas tornou-se é que, paralelamente a uma atividade como a sua, Guarino lograsse ain-
também o instrumento de uma educação mais elevada. E m duas casas da traduzir incessantemente autores gregos e escrever volumosas obras
principescas da alta Itália, a educação das crianças esteve associada a ins- próprias.
tituições às quais se poderia chamar únicas em seu gênero. Pelo menos em parte, e ao longo de um determinado n ú m e r o
E m Mântua, na corte de Giovan Francesco Gonzaga (que gover- de anos, a educação dos filhos dos príncipes esteve, também na maio-
nou de 1407 a 1444), apareceu o magnífico Vittorino da Feltre, um da- ria das demais cortes italianas, nas mãos dos humanistas, que, assim,
queles homens que dedicam toda a sua existência a uma causa para a deram um passo adiante na direção da vida cortesã. A escritura de
qual, por sua força e perspicácia, encontram-se plenamente equipados. tratados acerca da educação dos príncipes, outrora tarefa dos

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teólogos, agora passa t a m b é m a ser, naturalmente, assunto dos hu- acerca de sua ocupação, Piero respondeu c o m o o fazem c o m u m e n t e
manistas. Enéias Sílvio, p o r exemplo, endereçou a dois jovens prínci- os jovens: " A p r o v e i t o a vida" [Attendo a darmi buon tempo]. N i c c o -
pes alemães da casa dos H a b s b u r g o dissertações detalhadas versando li disse-lhe, então, que, c o m o filho de um tal pai e dotado de u m a tal
sobre a continuidade de sua formação, incutindo-lhes, compreensivel- figura, ele deveria se envergonhar por não conhecer a ciência latina,
mente, o cultivo do h u m a n i s m o , n o sentido italiano deste. Sílvio que constituiria para ele tão grande adorno. E mais: que, se não a
devia saber que pregava n o d e s e r t o , cuidando assim para que esses aprendesse, não seria ninguém, transformando-se, tão logo fanada a
seus escritos circulassem t a m b é m p o r outras paragens. Discutire- flor da juventude, em um h o m e m sem qualquer valor ( v i r t ü ) . A o o u -
mos p a r t i c u l a r m e n t e , mais adiante, o r e l a c i o n a m e n t o entre huma- vir isso, Piero prontamente reconheceu estar diante da verdade, res-
nistas e príncipes. pondendo que se dedicaria de b o m grado àquele aprendizado, se en-
contrasse um mestre. N i c c o l i disse-lhe que cuidaria disso. E, d e fato,
arranjou-lhe um h o m e m erudito para o ensino do latim e do grego,
OS PROMOTORES DO HUMANISMO chamado Pontano, a quem Piero acolheu c o m o a um membro de sua
família, pagando-lhe cem florins de ouro ao ano. E m vez da h a b i t u -
Antes disso, são dignos de nossa atenção aqueles cidadãos que, al luxúria, Piero passou então a se dedicar, dia e noite, aos estudos,
principalmente em Florença, fizeram do interesse pela Antigüidade uma tornando-se um amigo de todos os homens cultos e um magnânimo
das metas principais de suas vidas, tornando-se eles próprios grandes estadista. Aprendeu de cor toda a Eneida e muitos dos discursos de
eruditos, ou grandes diletantes a dar apoio aos primeiros. Eles foram de Tito Lívio, em geral no caminho de Florença até sua casa de c a m p o ,
grande importância para o período de transição, no princípio do século em T r e b b i o .
XV, porque é neles que, pela primeira vez, o humanismo manifesta-se, na G i a n n o z z o Manneti representa a Antigüidade em um o u t r o
prática, c o m o um elemento necessário da vida cotidiana. Foi somente de- sentido, mais elevado. P r e c o c e , concluíra já, quase um m e n i n o , o
pois deles que príncipes e papas dedicaram-se seriamente a cultivá-lo. aprendizado do c o m é r c i o e trabalhava c o m o escriturário para um
Já se falou aqui, por diversas vezes, em N i c c o l ò Niccoli e Gian- banqueiro. Passado algum tempo, porém, tal atividade p a r e c e u - lhe
nozzo Manetti. O primeiro é-nos descrito por Vespasiano como um fútil e passageira, e ele passou a ansiar pelo c o n h e c i m e n t o c i e n t í f i c o
homem que nada tolerava a seu redor que pudesse perturbar o espírito da — para ele, a única maneira pela qual o homem pode garantir sua
Antigüidade. Sua bela figura, com seus trajes longos e fala amigável, em imortalidade. N a qualidade do primeiro nobre florentino a f a z ê - l o ,
sua casa repleta de magníficas peças antigas, causava impressão singularís- ele se enterrou nos livros, t o r n a n d o - s e , c o m o já foi dito, u m dos
sima. Niccoli era sobremaneira asseado em todas as coisas, sobretudo à maiores eruditos de seu tempo. Designado pelo Estado encarregado
mesa, tendo diante de si, sobre o linho mais branco, vasos antigos e taças de negócios, c o l e t o r de impostos e governador (em Pescia e P i s t o i a ) ,
de c r i s t a l . A maneira pela qual conquistou um jovem florentino aman- desempenhou suas funções c o m o se um ideal elevado h o u v e s s e des-
te dos prazeres para seus próprios interesses espirituais é por demais pertado dentro dele — produto da combinação de seus e s t u d o s hu-
graciosa para que aqui deixemos de narrá-la. manistas c o m sua religiosidade. D e u cumprimento à c o b r a n ç a dos
Filho de um distinto mercador e destinado a seguir os passos do mais detestados impostos decretados pelo Estado, não a c e i t a n d o
pai, Piero de Pazzi, belo em aparência e bastante dedicado aos pra- qualquer pagamento por seus serviços. C o m o governador de p r o -
zeres do m u n d o , pensava em tudo, menos na ciência. U m dia, estan- víncia, repeliu quaisquer presentes, zelou pelo a b a s t e c i m e n t o de
do ele a passar pelo P a l a z z o dei Podesta, N i c c o l i c h a m o u - o para si. grãos, apaziguou infatigavelmente os conflitos judiciais e t u d o fez
Piero atendeu ao aceno daquele h o m e m tão respeitado, e m b o r a ja- pela c o n t e n ç ã o das paixões por meio da bondade. O s h a b i t a n t e s de
mais tivesse conversado c o m ele. N i c c o l i perguntou-lhe quem era Pistoia jamais lograram descobrir por qual de seus dois p a r t i d o s ele
seu pai. Piero respondeu: " M e s s e r Andrea de P a z z i " . Perguntado se inclinava. C o m o que a simbolizar o destino e o direito c o m u m de
todos, escreveu, em suas horas de lazer, a história da cidade, p o s t e -
('•') São intraduzíveis as seguintes palavras de Vespasiano: " A vederlo in tavola cosi riormente preservada no palácio municipal, e' " c a d e r n a ç ã o púr-
antico come era, era una gentilezza". pura, c o m o u m o b j e t o sagrado. P o r ocasião de sua partida, a c i d a d e

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p r e s e n t e o u - o com uma bandeira c o n t e n d o o brasão municipal e cora convicção de que, sem este, seria difícil ser um b o m cidadão e u m bom
um m a g n í f i c o e l m o de prata. cristão. O famoso grupo' de eruditos que se reuniu ao redor d e L o u -
Q u a n t o aos demais cidadãos ilustrados de Florença, há que se !er renço tinha por vínculo c o m u m o elevado espírito de uma filosofia
sobre eles em Vespasiano (que os conhecia a todos), porque o tom e a idealista, distinguindo-se de todos os demais agrupamentos do gênero
atmosfera de que se reveste o que escreveu, as condições sob as quais por esse mesmo fator. Somente em um tal círculo podia alguém c o m o
conviveu c o m essas pessoas, afiguram-se mais importantes do que os Pico delia Mirandola sentir-se feliz. O que há de mais belo para se di-
feitos de cada um. Se esse valor mais precioso de sua obra estaria já fa- zer a esse respeito, porém, é que tal grupo constituía, paralelamente a
dado a perder-se em uma tradução, que dirá então nas breves indicações todo esse culto da Antigüidade, um santuário da poesia italiana e que,
a que, forçosamente, vemo-nos limitados aqui. Vespasiano não é um de todos os raios de luz que emanaram da personalidade de L o u r e n ç o ,
grande escritor, mas conhece o assunto que tratou e possui um senso esse pode ser considerado o mais poderoso. C o m o estadista, j u l g u e - o
profundo de seu significado intelectual. cada um c o m o o desejar — um estrangeiro não se imiscui, s e não é
Q u a n d o se procura, então, analisar o encanto que os Medici do obrigado a fazê-lo, no balanço do que em F l o r e n ç a é culpa o u desti-
século XV — s o b r e t u d o C o s m e ( m o r t o em 1464) e L o u r e n ç o , o Mag- no; mas não há polêmica mais injusta do que aquela que acusa L o u -
nífico ( m o r t o em 1492) — exerceram sobre F l o r e n ç a e sobre seus con- renço de ter, no domínio da cultura, protegido p r e d o m i n a n t e m e n t e
temporâneos de um m o d o geral, verifica-se que a força desse encanto os medíocres, culpando-o assim pela ausência de Leonardo da Vinci e
passa ao largo da esfera política, para localizar-se em sua liderança no do matemático fra L u c a Paccioli e p o r ter, no mínimo, negado incen-
campo da educação. Alguém na posição de C o s m e , mercador e chefe tivo a Toscanella, Vespúcio e outros. P o r certo, L o u r e n ç o n ã o foi
partidário local, tendo ainda a seu lado todos os pensadores, pesquisa- possuidor de um espírito universal. Mas, de todos os grandes que al-
dores e escritores; alguém que já de berço é tido c o m o o mais importan- guma vez intentaram proteger e estimular as coisas do espírito, foi ele
te dos florentinos e mais, por sua cultura, c o m o o maior dos italianos — um dos mais multifacetados — e aquele no qual essa multiplicidade,
este alg uém é efetivamente um príncipe. C o s m e é ainda possuidor da mais do que em qualquer outro, decorreu de uma profunda necessi-
glória particular de ter reconhecido na filosofia platônica o mais belo dade interior.
rebento do pensamento antigo, de ter disseminado esse reconhecimen- N o s s o século costuma igualmente proclamar com suficiente vee-
to a seu redor e, assim, de ter estimulado um segundo e mais elevado mência o valor da cultura, de um modo geral, e o da Antigüidade, em
renascer da Antigüidade no interior do humanismo.'' 1 " O m o d o como particular. Contudo, uma dedicação tão completa e entusiástica, um re-
isso se deu f o i - n o s relatado c o m bastante precisão. Tudo se vincula à conhecimento de que essa necessidade é a mais importante de todas, não
convocação do erudito J o ã o A r g y r o p u l o s e ao entusiasmo pessoal de se encontra em parte alguma com intensidade semelhante à que se veri-
C o s m e em seus últimos anos de vida, de tal m o d o que — no tocante ficou junto aos florentinos do século XV e do princípio do XVI. A esse
ao platonismo — o grande Marsilio [Ficino] pôde se permitir autode- respeito, dispomos de provas indiretas que afastam qualquer dúvida:
signar-se filho espiritual de C o s m e . Sob Pietro de Medici, Ficino viu-se não se teria com tanta freqüência permitido às filhas da casa q u e tomas-
já à testa de uma escola. A b a n d o n a n d o os peripatéticos, para ele acor- sem parte nos estudos se estes não fossem tidos, de forma absoluta,
reu o filho de Pietro e n e t o de C o s m e , o ilustre L o u r e n ç o . Dentre
como o mais nobre dos bens da vida terrena; não se teria transformado
seus mais r e n o m a d o s c o m p a n h e i r o s são mencionados Bartolommeo
um exílio numa estadia feliz, c o m o se deu com Palia Strozzi; homens
V a l o n , D o n a t o Acciaiuoli e Pierfilippo Pandolfini. O entusiasmado
que, em geral, tudo se permitiam, não teriam ainda conservado a energia
mestre declara, em várias passagens de seus escritos, que Lourenço
e a vontade para abordar criticamente a Naturalis historia, de Plínio,
investigou todas as profundezas do platonismo, manifestando a
como o fez Filippo Strozzi. N ã o é de louvor ou censura que se trata
aqui, mas de reconhecer o espírito de uma época em toda a sua vigoro-
sa singularidade.
( * ) O conhecimento anterior da filosofia platônica só pode ter sido fragmentário.
Um singular debate acerca da oposição entre Platão e Aristóteles teve lugar em Ferrara, em Além de Florença, houve ainda outras cidades italianas n a s quais,
1438. Os debatedores eram, de um lado, Hugo de Siena, do outro, os gregos que tinham por vezes, indivíduos ou círculos sociais inteiros, empregando t o d o s os
vindo para o concílio. meios de que dispunham, puseram-se a serviço do humanismo e deram

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suporte a seus eruditos. As coletâneas de cartas da época revelam-nos após a belicosidade do pontificado anterior, esperava-se por u m intei-
uma profusão de relacionamentos pessoais desse gênero. O pensamen- ramente consagrado às musas. Desfrutar da bela prosa latina e de ver-
to oficial das camadas mais cultas tendia quase exclusivamente para essa sos harmoniosos fazia parte do programa de vida de Leão X, e, d e fato,
mesma direção. seu mecenato alcançou tantos êxitos nesse aspecto, que seus poetas la-
tinos retrataram vividamente, em numerosas elegias, odes, epigramas
e orações, o espírito alegre e resplandecente de seu pontificado — es-
É tempo, entretanto, de voltarmos nossos olhos para a situação do pírito este que a biografia de G i o v i o exala. Talvez inexista em toda a
humanismo nas cortes dos príncipes. J á se sugeriu anteriormente o ínti- história do O c i d e n t e um príncipe que, a despeito da escassez de acon-
m o parentesco entre os déspotas e os filólogos, também estes contando tecimentos notáveis em sua vida, tenha sido tão amplamente glorificado.
exclusivamente c o m sua própria personalidade e talento. O filólogo, Os poetas tinham acesso a ele principalmente p o r volta do meio-dia,
porém, preferia declaradamente as cortes às cidades livres, já em fun- quando os virtuoses dos instrumentos de corda já haviam cessado de
ção da mais generosa remuneração. À época em que, ao que tudo indi- tocar. U m dos melhores de todo o grupo, porém, dá a entender q u e eles
cava, o grande A f o n s o de Aragão podia tornar-se o senhor de toda a procuravam alcançá-lo também em outras ocasiões, seguindo-lhe os
Itália, Enéias Silvio escreveu a um outro habitante de Siena ["Epist. passos pelos jardins e pelos interiores do palácio, e, se o intento se re-
3 9 " , in Opera]: " S e sob seu domínio a Itália encontrasse a paz, eu pre- velasse também ali infrutífero, tentava-se uma carta suplicante, e m for-
feriria que assim fosse do que sob os governos municipais, pois a no- ma de elegia, na qual figurava a totalidade do O l i m p o . Tudo isso p o r -
bre índole de um rei sabe recompensar todos os m é r i t o s " . Também que Leão x , que não podia ver uma soma em dinheiro reunida a stia
nesse caso tem-se, recentemente, enfatizado p o r demais a faceta indig- frente e desejava ter exclusivamente rostos alegres diante de si, e r a do-
na, a adulação mercenária, da mesma f o r m a c o m o , no passado, a louva- tado de u m a prodigalidade cuja memória os tempos avaros que se se-
ção dos humanistas foi tida p o r excessivamente favorável aos príncipes. guiram rapidamente transfiguraram em mito. J á se falou aqui de sua re-
T o m a n d o - s e os fatos em seu c o n j u n t o , permanece sempre um testemu- organização da sapienza. Cumpre que mantenhamos o olhar livre das
nho amplamente vantajoso a estes últimos o fato de que se julgassem muitas leviandades que a acompanharam, a fim de que não subestime-
obrigados a estar à testa da cultura — por mais tacanha que fosse — de mos a influência de L e ã o X sobre o humanismo. N ã o nos devemos dei-
seu tempo e de sua terra. E m alguns papas, o destemor pelas conse- xar iludir pela duvidosa e aparente ironia com a qual ele p r ó p r i o , p o r
qüências da erudição de então possui algo de absoluta, ainda que vo- vezes, tratou desses assuntos. N o s s o juízo deve partir das e n o r m e s
luntariamente majestoso. N i c o l a u v sentia-se tranqüilo quanto ao des- possibilidades espirituais contidas na palavra estímulo, que, e m b o r a
tino da Igreja, porque esta teria a seu lado, prestimosos, milhares de não possam ser calculadas em seu conjunto, decerto admitem c o m p r o -
eruditos. Sob P i o II, os sacrifícios à ciência já não se revelam tão gran- vação em muitos casos particulares, se investigadas com maior cuida-
diosos: sua corte de poetas afigura-se bastante modesta, mas ele pró- do. A influência que, a partir de 1520, aproximadamente, os humanis-
prio é ainda muito mais o chefe em pessoa da república dos eruditos do tas italianos exerceram sobre a Europa foi sempre, de alguma maneira,
que o fora seu penúltimo predecessor, e desfruta essa glória em total se- condicionada pelo impulso proveniente de Leão X. Ele é aquele papa
gurança. Somente Paulo II viu-se tomado de medo e desconfiança em re- que, ao conceder o privilégio para a impressão do recém-redescoberto
lação ao humanismo de seus secretários. Seus três sucessores — Sisto, Tácito, pôde dizer que os grandes autores eram uma lei da vida, um
Inocêncio e Alexandre — decerto acolheram dedicatórias e se deixaram consolo na infelicidade; que sempre tivera no incentivo aos eruditos e
celebrar em versos, tanto quanto o desejaram os poetas — tendo havido na aquisição de livros excelentes um objetivo supremo de sua existên-
até mesmo uma Borgíada, provavelmente em hexámetros — , mas esti- cia e que agradecia aos céus por poder, naquela ocasião, através de seu
veram demasiadamente ocupados c o m outros assuntos e atentos a ou- apoio à publicação da referida obra, beneficiar a raça humana.
tros pontos de apoio para seu poder, para dar atenção aos poetas-filó- D a mesma forma como, em 1527, a devastação de R o m a dispersou
logos. Júlio II encontrou seus cantores p o r ser ele próprio um tema os artistas, separou também os literatos, enviando-os para todas a s dire-
significativo, mas não parece, de resto, ter se preocupado muito com ções e propagando assim, genuinamente, a fama de seu grande mecenas
eles. Sucede-lhe, então, L e ã o X, " c o m o a R ó m u l o , N u m a " — isto é, morto até os mais longínquos confins da Itália.

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D o s príncipes seculares do século XV, A f o n s o , o Grande, de Ara- (1443) N á p o l e s , agradou-lhe a idéia de se apresentar ele p r ó p r i o à ma-
gão, rei de Nápoles, é o que exibe o maior entusiasmo pela Antigüida- neira dos antigos: não muito longe do mercato, uma larga b r e c h a de
de. Seu fervor, ao que parece, era ingênuo. Aparentemente o mundo quarenta côvados foi aberta na muralha, através da qual ele passou so-
antigo dos m o n u m e n t o s e escritos causou-lhe, desde a sua chegada à bre um carro dourado, qual um triumphator romano. A própria me-
Itália, uma grande, avassaladora impressão, a partir da qual Afonso mória desse fato foi eternizada por um magnífico arco do triunfo em
teve, então, de remodelar sua vida. E m favor do irmão, ele abdicou mármore, erigido no Castello N u o v o . Desse entusiasmo pela A n t i g ü i -
com admirável desenvoltura de sua obstinada Aragão e das terras vi- dade e de todas as suas boas qualidades, p o u c o ou nada herdou sua di-
zinhas, para dedicar-se inteiramente a seus novos domínios. Teve a seu nastia napolitana.
serviço, simultânea ou sucessivamente, J o r g e de Trebizonda, o jovem Incomparavelmente mais ilustrado do que Afonso foi F r e d e r i c o de
Crisóloras, L o r e n z o Valia, B a r t o l o m m e o F a z i o e A n t o n i o Panormita, Urbino, que tinha menos pessoas ao redor de si, nada esbanjava e, tan-
os dois últimos tendo se tornado seus historiadores. Panormita tinha to quanto nos demais assuntos, também em sua apropriação da Antigüi-
de instruí-lo diariamente, a ele e sua corte, na obra de T i t o Lívio, até dade procedeu refletidamente. Para ele e para Nicolau v foram feitas a
m e s m o no c a m p o de batalha, durante as campanhas militares. Essas maior parte das traduções do grego e uma parcela dos mais importantes
pessoas custavam-lhe anualmente mais de 20 mil florins de ouro. Por comentários, estudos e obras do gênero. Gastava muito com as pessoas
sua Historia Alpbonsi, além dos mais de quinhentos ducados que lhe de que precisava, mas com propriedade. N ã o havia nem sinal d e uma
pagava ao ano, presenteou F a z i o , ao final do trabalho, c o m mais 1,5 corte de poetas em Urbino, onde o próprio príncipe era o m a i o r dos
mil florins de ouro, acompanhados das palavras: " N ã o o faço para pa- eruditos. Mas a Antigüidade compunha apenas uma parte de sua cultu-
gar-vos, pois vosso trabalho é absolutamente impagável, ainda que vos ra; completo enquanto príncipe, comandante militar e enquanto ho-
desse uma de minhas melhores cidades. C o m o tempo, p o r é m , procu- mem, Frederico dominava uma grande parte do conjunto da ciência de
rarei r e c o m p e n s a r - v o s " . Q u a n d o fez de G i a n n o z z o Manetti seu secre- então, dela se servindo, aliás, para objetivos puramente práticos. C o m o
tário, sob condições as mais esplêndidas, A f o n s o disse-lhe: "Reparti- teólogo, por exemplo, comparou são Tomás de Aquino a Scotus, sendo
ria c o n v o s c o meu último pedaço de p ã o " . J á na condição de embaixa- também conhecedor dos escritos dos velhos patriarcas da Igreja, tanto
dor florentino encarregado de transmitir as congratulações pelo casa- do Oriente quanto do Ocidente — os primeiros, por meio de traduções
mento do príncipe Ferrante, G i a n n o z z o causara no rei uma impressão latinas. N a filosofia, parece ter deixado Platão inteiramente p a r a seu
tal que este, "qual imagem de b r o n z e " , permaneceu imóvel em seu tro- contemporâneo C o s m e de Medici; de Aristóteles, porém, conhecia per-
no, sem sequer espantar as moscas. Seu local preferido parece ter sido feitamente não apenas a Ética e a Política, c o m o também a Písica e vá-
a biblioteca do castelo de Nápoles, onde ficava sentado a uma janela, rios outros escritos. E m suas demais leituras, predominavam marcada-
c o m u m a vista particularmente bela para o mar, a ouvir os sábios mente os historiadores antigos, cujas obras possuía em sua totalidade. A
quando estes discutiam, p o r exemplo, sobre a Trindade. A f o n s o era, estes, e não aos poetas, "lia constantemente e mandava que os lessem
aliás, profundamente religioso, fazendo c o m que se lhe lessem, além para ele".
de Lívio e Séneca, t a m b é m a Bíblia, que conhecia quase de cor. Quem
O s Sforza são também, todos eles, dotados de erudição, e m maior
pode pretender definir c o m exatidão o sentimento que experimentou
ou menor grau, e dedicados ao mecenato — aspecto sobre o q u a l já se
em Pádua ante os supostos restos mortais de Lívio? A o receber destes
falou aqui, de passagem.* O duque Francesco possivelmente encarava a
um osso do braço, que pedira encarecidamente aos venezianos, e ao
educação humanística de seus filhos c o m o algo, já por razões políticas,
acolhê-lo respeitosamente em Nápoles, é possível que sentimentos
natural. Aparentemente, era corrente a idéia de que constituía u m a van-
cristãos e pagãos se tenham misturado singularmente em sua alma.
tagem o fato de o príncipe poder relacionar-se em pé de igualdade com
E m campanha nos A b r u z o s , m o s t r a r a m - l h e S u l m o n a ao longe, a ter-
ra de Ovídio, e ele saudou a cidade, agradecendo-a pelo gênio do pas-
sado — fez-lhe bem, evidentemente, p o d e r transformar em realidade
a predição do grande poeta acerca de sua própria glória futura. ( * ) Com relação ao último Visconti, Lívio e os romances franceses de cavalaria, ao
Certa feita, por ocasião de sua entrada na definitivamente conquistada lado de Dante e Petrarca, disputam ainda a simpatia do príncipe. Este costumava despachar
em poucos dias os humanistas que iam até ele com o intuito de "torná-lo f a m o s o " .

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os homens de maior instrução. L u d o v i c o , o M o u r o , ele próprio um ex- que a cultura e o convívio com eruditos representassem-lhe uma neces-
celente latinista, exibe um interesse pelas questões intelectuais que ultra-
sidade. N ã o obstante, aquele que o excomungou, queimou em efígie e
passa em muito as fronteiras da Antigüidade.
com ele guerreou — o papa Pio II — disse: "Sigismondo conhecia a histó-
M e s m o os soberanos de m e n o r envergadura tratavam de obter para
ria e era bastante versado em filosofia. Parecia ter nascido para tudo o
si semelhantes distinções. Acreditar que alimentavam os literatos de
que empreendia".*
suas cortes apenas para serem p o r eles louvados é fazer-lhcs uma injus-
tiça. U m príncipe c o m o B o r s o , de Ferrara, em que pese toda a sua vai-
dade, já não causa de forma alguma a impressão de esperar dos poetas a
A REPRODUÇÃO DA ANTIGÜIDADE
própria imortalidade, p o r mais que estes o tenham provido de uma Bor-
seida e de composições do gênero. Seu senso de soberania é por demais
Epistolografia
desenvolvido para tanto. O convívio c o m os eruditos, o interesse pela
Antigüidade, a necessidade de u m a elegante epistolografia latina são,
Para dois propósitos, porém, tanto repúblicas quanto príncipes e
antes, inseparáveis dos príncipes de outrora. Q u a n t o não se queixou o
papas julgavam não poder prescindir do humanista: para a redação das
duque A f o n s o , altamente versado em questões práticas, de que sua
cartas e para os discursos públicos e solenes.
constituição doentia quando j o v e m o tivesse obrigado a recorrer unica-
N ã o apenas o secretário precisa ser, p o r razões de estilo, u m b o m
mente aos trabalhos manuais para o restabelecimento de sua saúde! Ou
latinista, c o m o , inversamente, a cultura e o talento necessários a um se-
será que isso constituiu apenas o pretexto para que mantivesse os litera-
cretário são atribuídos unicamente ao humanista. Assim foi que, no sé-
tos afastados de si? M e s m o seus contemporâneos já não logravam pers-
culo XV, a maioria dos grandes homens da ciência passaram porção
crutar uma alma c o m o a sua.
considerável de suas vidas servindo ao Estado. Sua terra natal e origem
T a m p o u c o os tiranos insignificantes da R o m a n h a podiam facilmen- não eram consideradas; dos quatro grandes secretários florentinos que
te prescindir de um ou mais humanistas em sua corte. Ali, o preceptor
estiveram à testa desse cargo entre 1429 e 1465, três são oriundos da ci-
e o secretário são amiúde uma só pessoa, que, p o r vezes, transforma-se
dade subjugada de Arezzo: Leonardo (Bruni), Carlo (Marzupini) e B e -
ainda no factótum da corte. Desprezar inteiramente essas cortes meno-
nedetto Accolti. Poggio era de Terra N u o v a , igualmente situada em
res é uma atitude precipitada, na medida em que desconsidera que as
território florentino. Havia muito, aliás, que vários dos mais altos car-
mais elevadas coisas d o espírito não estão absolutamente atreladas a
gos estatais eram, por princípio, preenchidos com estrangeiros. L e o -
uma questão de escala.
nardo, Poggio e G i a n n o z z o Manetti foram também, temporariamente,
Atividades singulares devem, em todo o caso, ter imperado na cor-
secretários particulares dos papas, e Carlo Aretino deveria s ê - l o . B l o n -
te de Rimini, sob o atrevido pagão e condottiere Sigismondo Malatesta.
dus de Forli e, p o r fim, apesar de tudo, até L o r e n z o Valia f o r a m alça-
Rodeado de um considerável número de filólogos, ele dotou ricamente
dos a essa mesma posição. Mais e mais, desde Nicolau v e Pio li, o pa-
alguns deles — c o m terras, p o r exemplo — , aos demais sendo possível,
lácio papal atrai as forças mais significativas para sua chancelaria, mes-
ao menos, obter seu sustento c o m o oficiais. N a cidadela de seu sobera-
mo sob aqueles últimos pontífices do século XV, em geral n ã o muito
no — a arx Sismundea — , eles travam suas disputas, freqüentemente as-
propensos às letras. N a História dos papas, de Platina, a vida de Paulo II
saz virulentas, na presença do rex, c o m o o chamam. L o u v a m - n o , natu-
não constitui nada além de uma prazerosa vingança, da parte d o huma-
ralmente, em seus poemas latinos, cantando também seu romance com
nista, contra o único papa que não soube dispensar tratamento conve-
a bela Isotta, a cuja honra se deve, na verdade, a famosa reconstrução da
niente a sua chancelaria — aquela associação de "poetas e oradores que
igreja de São Francesco, em Rimini, destinada a servir-lhe de monumen-
tanto brilho emprestou à cúria quanto dela recebeu". Digna de se ver é
to funerário — " D i v a e Isottae Sacrum". M o r t o s , os filólogos repousam
a cólera desses orgulhosos senhores quando, entre eles, disputam a pri-
nos (ou sob os) sarcófagos que adornam os nichos de ambas as paredes
mazia; quando, por exemplo, os advocati consistoriales reivindicam
externas dessa mesma igreja; uma inscrição informa que o falecido foi ali
para si posição semelhante ou até mesmo superior à deles. Invoca-se,
sepultado ao tempo em que reinava Sigismondo, filho de Pandolfo. Di-
ficilmente se acreditaria hoje de um monstro, c o m o o foi esse príncipe, (*) Pio II, Comentários, liv. li. História aqui sintetiza a totalidade da Antigüidade.

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então, a um só tempo, J o ã o , o Evangelista — a q u e m os secreta, coeles-
latino e, todavia, totalmente impregnado e determinado pela Antigüi-
tia foram revelados — , o secretário de Porsena — a quem M . Scaevola
dade em seu espírito. E m parte, tais cartas possuíam decerto ura cará-
t o m o u pelo próprio rei — , Mecenas — secretário particular de Augus-
ter confidencial, mas, em geral, foram escritas c o n s i d e r a n d o - s e uma
to — , os arcebispos — que, na Alemanha, são chamados chanceleres —
possível publicação e, sem exceção, talvez, c o m a consciência de que,
e assim p o r diante.
em função de sua elegância, elas poderiam ser dadas a p ú b l i c o . A l é m
disso, j á a partir da década de 1530, c o m e ç a m a surgir coletâneas im-
Os secretários apostólicos têm nas mãos as questões mais importantes do pressas tanto de epistológrafos bastante diversos, c o m p o n d o u m a sé-
mundo, pois quem senão eles escreve e decide acerca dos assuntos perti-
rie variegada, q u a n t o de um ú n i c o autor. O m e s m o B e m b o t o r n o u - s e ,
nentes à fé católica, ao combate à heresia, ao estabelecimento da paz, à in-
como epistológrafo italiano, tão famoso quanto já o era c o m o episto-
termediação entre os grandes monarcas? Quem senão eles confecciona os
lógrafo latino.
panoramas estatísticos relativos a toda a cristandade? São eles que, por in-
termédio daquilo que provém dos papas, provocam admiração nos reis,
príncipes e povos; redigem as ordens e instruções para os legados, ordens A oratória latina
que, no entanto, recebem unicamente do papa, à disposição do qual per-
manecem a cada hora do dia ou da noite. N o seio de uma época e de um povo para os quais o ouvir era tido
como um prazer de primeira ordem e cujo espírito era dominado pela
imagem fantasiosa do Senado romano e de seus oradores, o orador so-
C o n t u d o , apenas os dois célebres secretários e estilistas de Leão X bressai c o m ainda maior brilho do que o escritor de cartas. A eloqüên-
— Pietro B e m b o e J a c o p o Sadoleto — alcançam de fato o topo da cia, que na Idade Média tivera na Igreja seu refúgio, emancipa-se total-
fama.
mente desta, compondo agora um elemento necessário e um adorno de
N e m todas as chancelarias escreviam elegantemente. A maioria de- toda existência superior. Muitas ocasiões solenes hoje preenchidas pela
las valia-se de u m estilo insípido e burocrático e do latim mais impuro. música eram, outrora, território do discurso em latim ou italiano — daí
N o s documentos milaneses apresentados p o r Corio, paralelamente a podendo nosso leitor tirar suas conclusões.
esse estilo, saltam aos olhos de maneira particularmente notável as pou- A origem social do orador era totalmente indiferente; necessário
cas cartas que devem ter sido escritas pelos próprios m e m b r o s da casa era, acima de tudo, o talento humanístico cultivado até a virtuosidade.
principesca, e, aliás, nos m o m e n t o s mais decisivos: seu latim é puríssi- E m Ferrara, na corte de Borso, J e r o n i m o da Castello, o médico da cor-
mo. Preservar o estilo sob tais circunstâncias afigurava-se um manda- te, foi incumbido de pronunciar o discurso de saudação tanto a Frede-
mento das boas maneiras e u m a decorrência d o hábito. rico III quanto a P i o II. E m todas as ocasiões festivas ou de luto, e mes-
Pode-se imaginar q u ã o diligentemente as cartas de C í c e r o , Plínio mo nas festas dedicadas aos santos, eram leigos casados que subiam ao
e outros foram estudadas àquela época. J á no século XV surge toda púlpito das igrejas. Constituiu uma novidade para os senhores n ã o ita-
uma série de instruções e fórmulas para a escritura de cartas em latim lianos do Concílio de Basiléia que, no dia de santo Ambrósio, o arcebis-
(na condição de um r a m o secundário dos grandes trabalhos de gramá- po de Milão tenha dado a palavra a Enéias Sílvio, que ainda n ã o havia
tica e lexicografia), sendo tamanha a p r o p o r ç ã o de obras dessa nature- recebido sua ordenação; a despeito da rabugice dos teólogos, p o r é m ,
za nas bibliotecas, que ainda h o j e causa espanto. Q u a n t o mais leigos permitiram que assim fosse e o ouviram com grande avidez.
desautorizados aventuravam-se nessa tarefa, valendo-se de tais instru-
Lancemos, inicialmente, um rápido olhar sobre as mais i m p o r t a n -
mentos de auxílio, tanto mais os especialistas esforçavam-se por apurar-se
tes e mais freqüentes ocasiões que se ofereciam ao discurso p ú b l i c o .
em seu ofício, de modo que as cartas de Poliziano e, no início do século
Antes de mais nada, não é à toa que os embaixadores enviados de
XVI, as de Pietro Bembo surgiram, então, como obras-primas inigualáveis —
um Estado a outro são chamados oradores. Paralelamente à n e g o c i a -
não apenas do estilo latino, como também da epistolografia como tal.
ção secreta, era inevitável que fizessem uma aparição pública e pro-
Paralelamente a isso, o século XVI apresenta u m estilo italiano clás- nunciassem um discurso, este sob circunstâncias as mais p o m p o s a s
sico de carta, do qual B e m b o é novamente o expoente. Trata-se de um possíveis. E m geral, um único m e m b r o da comitiva, amiúde b a s t a n t e
modo de escrever inteiramente moderno, propositadamente distante do numerosa, era designado para falar em nome de todos. Certa f e i t a , p o -

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rém, ocorreu a P i o II — h o m e m versado, p o r q u e m todos desejavam
recer perante o p o v o — , instalara-se uma verdadeira tribuna ( r o s t r a ,
fazer-se ouvir — ter de escutar, um a um, os discursos de uma comi-
tiva inteira. O s p r ó p r i o s príncipes instruídos, que tinham o dom da
ringhiera).
palavra, apreciavam discursar em latim ou eni italiano, e o faziam D o s aniversários, são celebrados particularmente os da m o r t e dos
bem. O s filhos da casa dos S f o r z a haviam sido preparados para tanto. príncipes, lembrados c o m discursos comemorativos. Também as orações
J á em 1455, ainda bem j o v e m , G a l e a z z o Maria discursou fluentemen- fúnebres propriamente ditas cabem, predominantemente, ao humanista,
te perante o G r a n d e C o n s e l h o , em Veneza, e Ippolita, sua irmã, por que, em trajes seculares, as profere na igreja — de resto, não apenas j u n -
ocasião do C o n g r e s s o de M â n t u a , em 1 4 5 9 , saudou o papa P i o II com to ao esquife dos príncipes, mas também àqueles de funcionários e ou-
um gracioso discurso. O p r ó p r i o P i o II, na c o n d i ç ã o de orador, niti- tras personalidades de renome. O mesmo acontece, freqüentemente,
damente preparou c o m firmeza, ao l o n g o de toda a sua vida, o terre- com os discursos por ocasião de noivados e casamentos, com a diferen-
no para sua ascensão final ao t r o n o papal. E m b o r a grande diplomata ça de que estes (ao que parece) não eram proferidos na igreja, mas no
da cúria e erudito, ele talvez não tivesse se tornado papa sem a fama e palácio — como, por exemplo, o discurso de Filelfo por ocasião d o noi-
a magia de sua eloqüência: " P o i s nada era mais sublime do que o ar- vado de Anna Sforza com Afonso d'Esté, no castelo de Milão (é possí-
r o j o de sua o r a t ó r i a " . C o m certeza, incontáveis eram aqueles que, vel, entretanto, que a cerimônia tenha acontecido na capela do palácio).
já p o r isso, o tinham pelo mais digno do papado antes m e s m o de sua Famílias ilustres decerto admitiam também recorrer aos serviços de um
eleição. tal orador, considerando-o um nobre luxo. E m Ferrara, em tais oca-
siões, pedia-se simplesmente a Guarino que enviasse um de seus discípu-
T a m b é m os príncipes eram, a cada recepção solene, alvo de discur-
los. A Igreja em si respondia unicamente pela cerimônia religiosa, tanto
sos que, c o m freqüência, se estendiam p o r horas. Naturalmente, isso
nos casamentos quanto nos funerais.
ocorria apenas quando o príncipe era, sabidamente, amante da eloqüên-
D o s discursos acadêmicos, aqueles pronunciados pelos próprios
cia — ou queria passar p o r tal — * e quando se tinha à mão um orador
professores, por ocasião de sua posse ou do início de um curso, s ã o tra-
competente, fosse ele u m literato da corte, um professor da universida-
tados c o m toda a pompa da retórica. Amiúde, a preleção usual d o s ca-
de, um funcionário, médico ou eclesiástico.
tedráticos aproxima-se igualmente da forma do discurso.
T o d o s os demais eventos políticos são t a m b é m avidamente apro-
Q u a n t o aos advogados, eram os diferentes públicos que confe-
veitados para o exercício da oratória, e, dependendo da fama do ora-
riam a medida para o tratamento a ser dispensado a seus discursos.
dor, os amantes da cultura c o r r e m t o d o s a ouvi-lo falar. A cada reno-
Dependendo das circunstâncias, estes eram providos de toda a p o m p a
vação anual do quadro de funcionários, e até m e s m o a cada posse de
da filologia e da Antigüidade.
um bispo r e c é m - n o m e a d o , apresenta-se, necessariamente, algum hu-
U m gênero inteiramente próprio compõem os discursos em italia-
manista, discursando p o r vezes em estrofes sáficas, p o r vezes cm he-
no dirigidos aos soldados, antes ou depois das batalhas. Nestes, Frede-
xâmetros. E m e s m o algum funcionário tem, ele p r ó p r i o , ao tomar pos-
rico de U r b i n o era um clássico. U m a após a outra, ele incutia orgulho e
se, de pronunciar um inevitável discurso acerca de sua função — "sobre
entusiasmo nas tropas armadas para a batalha. É possível que vários dos
a j u s t i ç a " , p o r exemplo. F e l i z dele, se tem preparo para tanto. E m Flo-
discursos reproduzidos pelos historiadores militares do século XV —
rença, os condottieri — sejam q u e m e c o m o f o r e m — são t a m b é m en-
redados nesse costume nacional: ao receberem o bastão de comando, como Porcellio, por exemplo — sejam, em parte, obra da imaginação,
têm de, perante t o d o o povo, se deixar enfadar pelo discurso do mais mas também, em parte, repousem sobre palavras efetivamente proferi-
instruído dos secretários de Estado. A o que parece, sob o u j u n t o à das. Pertencem ainda a outra categoria os discursos dirigidos, a partir de
Loggia dei Lanzi — o p ó r t i c o onde os governantes costumavam apa- 1506, à milícia florentina — organizada sobretudo sob a influência de
Maquiavel — , por ocasião das revistas e, posteriormente, de c o m e m o -
rações anuais específicas. Seu conteúdo é de um patriotismo genérico,
(*) Em Gênova, certa feita, incapaz de acompanhar os floreios de um orador latino, e eles são proferidos nas diferentes igrejas da cidade, diante das milícias
Carlos V sussurrou ao ouvido de Giovio: " A h , quão certo estava meu mestre Adriano ali reunidas, por um cidadão vestindo uma couraça e tendo à m ã o uma
quando predisse que eu seria castigado por meu desmazelo infantil no estudo do latim!"
espada.
(Paolo Giovio, Vita Hadriani Ví).
Finalmente, n o século XV, o sermão propriamente dito p o r vezes

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mal permite q u e se lhe diferencie do discurso, na medida em que mui-
venientemente em um elegante latim. O estudo crescente dos discursos
tos eclesiásticos haviam t a m b é m adentrado os d o m í n i o s da cultura dl
e escritos teóricos de Cícero, de Quintiliano e dos panegiristas imperiais,
Antigüidade, pretendendo impor-se nesse campo. O próprio Bernardi-
o surgimento de tratados novos e originais, o emprego dos progressos
no da Siena, que pregava nas ruas e era, ainda em vida, visto e adorado
da filologia de um m o d o geral e a massa de idéias e assuntos oriundos
c o m o um santo pelo povo, julgou ser seu dever não desdenhar das li-
da Antigüidade, permitindo e demandando o enriquecimento do pensa-
ções de retórica do célebre G u a r i n o , embora só pregasse em italiano.
mento individual — tudo isso junto conferiu ao caráter da nova arte re-
Sem dúvida, as exigências aos pregadores, sobretudo os da quaresma,
tórica seu acabamento.
eram à época tão elevadas quanto jamais o haviam sido. Vez p o r outra,
Tal caráter, todavia, revela-se bastante distinto de indivíduo para
viam-se eles diante de um p ú b l i c o não apenas capaz de suportar, mas
indivíduo. Muitos discursos exalam uma verdadeira eloqüência — mais
também — aparentemente, em função da erudição — de exigir do púl-
exatamente aqueles que não fogem ao tema a que se propuseram.
pito uma dose bastante grande de filosofia. Mas nosso interesse aqui
Nessa categoria incluem-se, em média, os discursos de Pio II de que
constituem sobretudo aqueles insignes pregadores esporádicos em lín-
dispomos. J á os efeitos maravilhosos atingidos por G i a n n o z z o Manetti
gua latina. C o m o já se disse, leigos instruídos tomavam-íhes muitas ve-
apontam para u m tipo de orador de que houve poucos exemplares ao
zes a oportunidade de falar: os discursos p o r ocasião de determinados
longo dos tempos. N a condição de embaixador, suas grandes audiências
dias de santos, dos funerais e casamentos, das posses de bispos e
perante N i c o l a u V, o doge e o Conselho de Veneza foram acontecimen-
até m e s m o o discurso p o r ocasião da primeira missa celebrada por um
tos cuja memória perdurou p o r longo tempo. Inversamente, muitos
eclesiástico amigo, ou o discurso solene do capítulo de uma ordem são
oradores valiam-se de cada oportunidade para, ao lado de bajulações
proferidos p o r tais leigos. N o século x v , contudo, e ao menos perante
dirigidas a ouvintes nobres, produzir uma massa estéril de palavras e
a corte papal, os pregadores são em geral monges, qualquer que fosse a
tópicos provenientes da Antigüidade. C o m o era possível suportá-los
solenidade em questão. S o b Sisto IV, G i a c o m o da Volterra registra e
por duas ou até três horas, só se torna compreensível quando se leva em
critica regularmente, segundo as leis da arte, esses pregadores oficiais.
consideração o vigoroso interesse pela Antigüidade então existente e a
Fedra Inghirami, famoso c o m o orador sob Júlio li, havia pelo menos
carência e relativa raridade das obras a respeito que reinava anterior-
recebido a ordenação e era cónego em Latrão. E n t r e os prelados, en-
mente à difusão da imprensa. Tais discursos tinham, pois, o v a l o r que
contra-se agora p o r toda a parte um número suficiente de elegantes
aqui reivindicamos para diversas cartas de Petrarca. C o n t u d o , alguns
latinistas. N e s s e e em outros aspectos, os outrora desmedidos privilé-
oradores exageravam na dose. A maior parte dos discursos de Filelfo
gios dos humanistas profanos afiguram-se reduzidos no século XVI,
compõe-se de um abominável emaranhado de citações dos clássicos e
c o n f o r m e trataremos a seguir.
da Bíblia, alinhavadas p o r uma série de lugares-comuns e entremeadas
Q u a l era, em linhas gerais, a natureza e o conteúdo desses dis- pela louvação das personalidades dos grandes a serem glorificados —
cursos? O d o m natural do bem falar não terá faltado aos italianos ao louvação que efetua, por exemplo, sob a égide das virtudes cardeais. So-
longo de toda a Idade Média, e u m a assim chamada " r e t ó r i c a " sempre mente c o m muito esforço descobrem-se em seus discursos, e nos de
c o n t o u entre as sete artes liberais. E m se tratando, porém, da ressur- outros, os poucos elementos históricos de valor para a época q u e efeti-
reição do m é t o d o dos antigos, o mérito deve ser atribuído — segundo vamente contêm. O discurso pronunciado p o r um professor e literato
afirma Filippo Villani — a u m florentino chamado B r u n o Casini, que, de Piacenza, por exemplo, quando da recepção ao duque G a l e a z z o Ma-
ainda jovem, em 1348, m o r r e u vítima da peste. C o m o p r o p ó s i t o prá- ria, em 1467, começa com Júlio César, combina a seguir um p u n h a d o
tico de capacitar os florentinos a se exprimirem c o m facilidade e de- de citações antigas c o m outras, oriundas de uma obra alegórica de au-
sembaraço nos conselhos e demais assembléias públicas, Casini, se- toria própria, para concluir com conselhos assaz indiscretos ao sobera-
gundo o molde dos antigos, a b o r d o u a invenção, a declamação, a ges- no. P o r sorte, era já tarde da noite, e o orador teve de se contentar em
ticulação e a postura, cada uma dentro de seu c o n t e x t o próprio. Não entregar seu panegírico p o r escrito ao duque. O próprio F i l e l f o princi-
foi o único a fazê-lo: desde cedo encontramos uma educação retórica pia um discurso motivado por um noivado com as seguintes palavras:
totalmente voltada para a aplicação prática. Nada era mais apreciado "Aquele peripatético Aristóteles", e assim por diante. O u t r o s invocam,
do que a capacidade de, de improviso, saber sempre exprimir-se con- já de início, Publius Cornélius Scipio e similares, c o m o se t a n t o eles

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quanto seus ouvintes mal pudessem esperar pela citação. A o final do cipiando por emitir roucos murmúrios chorosos transformados, pouco
século XV, p o r é m , o gosto de uns e o u t r o s depurou-se de súbito, essen- a pouco, em altos ganidos. Tampouco os sermões solenes por ocasião
cialmente p o r mérito dos florentinos. A partir de então, o recurso à ci- das cerimônias papais são corretamente recompensados como o eram:
tação é prudentemente moderado, até porque, nesse meio tempo, haviam monges das mais diversas ordens apoderaram-se novamente deles e pre-
se tornado mais numerosas as obras de consulta, onde qualquer um po- gam para o mais inculto dos ouvintes. Ainda há poucos anos, um tal ser-
mão proferido à missa, na presença do papa, podia tornar-se o caminho
deria encontrar estocado tudo aquilo que, até então, causara admiração
para um bispado.
em príncipes e povo.
C o m o a maioria dos discursos era previamente elaborada nos púl-
O tratado latino
pitos dos oradores, os manuscritos prestavam-se imediatamente a uma
divulgação maior e à publicação. O s discursos dos grandes improvisa-
À epistolografia e à retórica dos humanistas acrescentaremos ago-
dores, pelo contrário, precisavam ser estenografados.* P o r outro lado,
ra o restante de sua produção, que se constitui igualmente, em m a i o r ou
nem todos os discursos dos quais dispomos foram escritos para serem
menor grau, de reproduções da Antigüidade.
proferidos. Assim é que o panegírico de Beroaldus a Ludovico, o Mou-
É esse o caso, primeiramente, do tratado, em sua f o r m a direta
ro, p o r exemplo, constitui obra enviada meramente por escrito. Assim
ou dialógica, esta última tomada diretamente de C í c e r o . * Para sermos
c o m o — a título de exercício, modelo e, p o r certo, também na qualidade
de algum m o d o justos com esse gênero, para não o c o n d e n a r m o s a
de escritos panfletários — compunham-se cartas dotadas de endereços
priori c o m o f o n t e de tédio, faz-se necessário que c o n s i d e r e m o s dois
imaginários de todas as partes do mundo, havia também discursos redigi-
pontos importantes. O século que se libertou da Idade M é d i a tinha
dos para ocasiões fictícias: modelos de saudação a altos funcionários,
necessidade, em várias questões específicas de cunho moral e f i l o s ó f i -
príncipes, bispos e outros mais.
co, de uma especial mediação entre si próprio e a Antigüidade. Tal la-
A morte de L e ã o X ( 1 5 2 1 ) e a devastação de R o m a (1527) marcam
cuna foi, então, preenchida pelos escritores de tratados e diálogos.
o princípio da decadência também para a arte da retórica. Mal tendo es-
Muito do que em seus escritos se nos afigura lugar-comum r e p r e s e n -
capado da desgraça da cidade eterna, G i o v i o registra — de maneira par-
tava para eles e seus c o n t e m p o r â n e o s uma trabalhosa e r e c é m - a d q u i -
cial, mas nem p o r isso menos verdadeira em sua essência — as razões
rida concepção de coisas sobre as quais ninguém mais se manifestara
dessa decadência [ D i a l o g a s de viris litteris illustribus]:
desde a Antigüidade. A l é m disso, a própria língua se faz o u v i r c o m
particular prazer — seja ela o latim ou o italiano. Mais livre e v á r i a do
As representações de Plauto e Terêncio, outrora uma escola da expres-
que na narrativa histórica, no discurso ou nas cartas, ela c o n s t r ó i aqui
são latina para os romanos nobres, foram desalojadas pelas comédias ita-
seu fraseado, razão pela qual vários dos escritos italianos desse gêne-
lianas. O orador elegante já não encontra a mesma recompensa e reco-
ro são até hoje tidos c o m o modelos no âmbito da prosa. M u i t o s des-
nhecimento de que desfrutou no passado. É por essa razão que os advo-
ses trabalhos já foram aqui citados ou ainda o serão em f u n ç ã o de seu
gados consistoriais, por exemplo, elaboram não mais do que o proemio
de suas exposições, pronunciando o restante sob a forma de uma confu- conteúdo. P o r ora, trata-se, p o r é m , de abordá-los em seu c o n j u n t o ,
sa e descontínua mixórdia. Decaíram também profundamente os discur- na qualidade de um gênero. D e s d e as cartas de Petrarca até p o r volta
sos ocasionais e os sermões. Quer se trate da oração fúnebre para um do final do século XV, predomina, na maioria dos casos, a acumulação
cardeal, quer para algum leigo poderoso, os testamenteiros não se vol- de elementos da Antigüidade, tal c o m o ela se verificou entre o s ora-
tam para o melhor orador da cidade — a quem teriam de honrar com dores. A partir daí, então, há uma depuração do gênero, s o b r e t u d o
cem moedas de ouro —, mas alugam, a um preço mais baixo, algum atre- em língua italiana, que atinge c o m o Asolani, de B e m b o , c o m a Vita
vido pedante de ocasião, que só deseja ser alvo da atenção das pessoas, sóbria, de Luigi C o r n a r o , um status já inteiramente clássico. T a m b é m
nem que seja da pior censura. O morto, pensa-se, não vai mesmo saber
se é um macaco que, trajando luto, encontra-se diante do púlpito, prín-
(*) U m gênero particular compõem, naturalmente, os diálogos semi-satíricos que
Collenuccio e sobretudo Pontano compunham ã maneira de Luciano. Estes serviram de es-
(*•) É o caso dos de Savonarola. Os estenógrafos, contudo, nem sempre logravam
tímulo a Erasmo e Hutten. Quanto ao tratado propriamente dito, é possível que logo cedo
acompanhá-lo, bem como a improvisadores entusiasmados.
partes das Moralia, de Plutarco, lhe tenham servido de modelo.

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aqui atuou decisivamente a já iniciada c o m p i l a ç ã o daqueles elementos
questão que, para-aquele período, admite diversas respostas. O latim
da Antigüidade em coletâneas particularmente volumosas — agora im-
era então a língua franca dós eruditos, e já havia tempos não apenas n o
pressas, aliás — , deixando de constituir obstáculo aos escritores de
âmbito internacional — entre ingleses, franceses e italianos, por e x e m -
tratados.
plo — , mas também no âmbito interprovincial. O u seja, o italiano es-
crito pelo lombardo, pelo veneziano, pelo napolitano —- ainda q u e havia
A escrita da história muito toscanizado e apresentando apenas leves traços dialetais — , não
era reconhecido pelos florentinos. Tal empecilho era mais facilmente
D e maneira inevitável, o humanismo a p o d e r o u - s e t a m b é m da es-
contornável em relação à história contemporânea local, segura d e seus
crita da história. C o m p a r a n d o - s e ligeiramente essa sua história com as
leitores n o p r ó p r i o lugar onde foi escrita, do que no tocante à história
crônicas anteriores — ou seja, com obras tão magníficas, de tão rico
passada, para a qual havia de se procurar um círculo mais amplo de lei-
c o l o r i d o e tão cheias de vida c o m o as de Villani — , haver-se-á de la-
tores. N e s s e caso, era admissível que o interesse local da população
mentar profundamente o fato. A o lado destas, quão pálido e de graça
fosse sacrificado àquele mais geral dos eruditos. Q u e alcance teria
convencional afigura-se tudo o que escrevem os humanistas e, particu-
tido, p o r exemplo, Blondus de Forli, se tivesse escrito suas grandes
larmente, seus sucessores imediatos e mais famosos na historiografia
obras eruditas no dialeto da R o m a n h a ? J á em função dos florentinos,
florentina: L e o n a r d o A r e t i n o e P o g g i o ! C o m q u e persistência o leitor
elas teriam mergulhado em uma obscuridade certa, ao passo q u e , es-
é a t o r m e n t a d o pela sensação de que, entre o fraseado de Lívio e o de
critas em latim, exerceram a mais profunda influência sobre o s a b e r de
C é s a r — presentes em F a z i o , Sabellico, Folieta, Senarega, Platina (na
todo o O c i d e n t e . O s próprios florentinos, aliás, escreveram e m latim
História de Mântua), B e m b o (nos Anais de Veneza) e m e s m o em um
ao longo do século XV, não apenas em razão de seu pensamento h u m a -
G i o v i o (nas Histórias) — , a melhor coloração individual e local, o inte-
nístico, mas, paralelamente, em razão da mais fácil divulgação d e suas
resse no desenrolar absolutamente real dos fatos empobreceu-se! A des-
obras.
confiança aumenta quando se percebe que o próprio valor de Tito Lí-
Finalmente, encontramos ainda histórias contemporâneas que, es-
vio, enquanto modelo, foi procurado no lugar errado, isto é, na crença
critas em latim, equiparam-se inteiramente às melhores compostas em
de que ele "emprestou graça e plenitude a uma tradição árida e sem
italiano. T ã o logo desaparece a narrativa contínua, à maneira de L í v i o —
vida". D e p a r a m o - n o s ainda (e no m e s m o lugar) c o m a afirmação duvi-
o leito de Procusto de tantos autores — , estes se mostram c o m o que
dosa de que a escrita da história precisaria, p o r meios estilísticos, exci-
transformados. O mesmo Platina, o mesmo Giovio cujas grandes obras
tar, estimular, abalar o leitor — c o m o se ela pudesse ocupar o lugar da
históricas só lemos quando precisamos fazê-lo, revelam-se subitamente
poesia. Somos, por fim, levados a nos perguntar se o desprezo pelas coi-
primorosos biógrafos. J á falamos aqui, de passagem, de Tristan Ca-
sas modernas, que esses mesmos humanistas por vezes professam aber-
racciolo, da obra biográfica de Fazio, da topografia veneziana de Sabellico
tamente, não acabou p o r exercer sobre o tratamento que a elas dispen-
e, mais adiante, falaremos ainda de outros.
saram uma influência prejudicial. Involuntariamente, o leitor dedica
O s relatos latinos dedicados ao passado concerniam, naturalmen-
maior interesse e confiança aos despretensiosos analistas latinos e italia-
te, sobretudo à Antigüidade clássica. O que menos se poderia p r o c u -
nos que permaneceram fiéis ao velho estilo, c o m o os de B o l o n h a e Fer-
rar entre esses humanistas, porém, são trabalhos significativos acerca
rara, por exemplo. Sentimo-nos na obrigação de ser ainda mais gratos
da história geral da Idade Média. A primeira obra importante desse gê-
aos melhores dentre os verdadeiros cronistas que escreveram em italia-
nero foi a crônica de Matteo Palmieri, que principia onde cessa P r ó s -
no — a um Marin Sanudo, a u m C o r i o , a u m Infessura — , até que, com
pero de Aquitânia. Q u e m abrir ao acaso as Décadas, de B l o n d u s de
o início do século xvi, a nova e resplandecente série dos grandes histo-
Forli, surpreender-se-á, de certo modo, ao encontrar ali, c o m o em
riadores italianos começa a escrever na língua materna.
G i b b o n , uma história universal " a b inclinatione R o m a n o r u m impe-
N a realidade, a história da época saiu-se incontestavelmente me-
rii", repleta de estudos dedicados aos autores de cada século, c o m suas
lhor quando escrita na língua local do que quando foi obrigada a lati -
primeiras trezentas páginas tratando do início da Idade M é d i a , até a
nizar-se. Se o italiano teria sido mais apropriado também para a narra-
morte de Frederico II. E isso ao mesmo tempo em que o N o r t e e n c o n -
tiva dos eventos do passado remoto, para a investigação histórica, é uma
trava-se ainda no estágio das conhecidas crônicas papais e imperiais e

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do fasciculus temporum. N ã o é n o s s o p r o p ó s i t o aqui demonstrar cri-
venetarum, de P i e t r o B e m b o — a m b o s os trabalhos escritos p o r or-
ticamente quais escritos B l o n d u s utilizou e onde os e n c o n t r o u reuni-
dem expressa da R e p ú b l i c a , o último constituindo a c o n t i n u a ç ã o do
dos, e m b o r a a história da historiografia m o d e r n a decerto terá, um dia,
primeiro.
de render-lhe essa honra. Apenas em função dessa única obra, estaría-
O s grandes historiadores florentinos do princípio do século XVI
mos já autorizados a dizer q u e s o m e n t e o estudo da Antigüidade tor-
são, p o r é m , j á p o r sua origem, h o m e n s inteiramente d i s t i n t o s dos
nou possível o da Idade Média, na medida em que deu o primeiro pas-
latinistas G i o v i o e B e m b o . E s c r e v e m em italiano não s i m p l e s m e n t e
so no sentido de habituar as mentes ao interesse histórico objetivo. De
todo m o d o , acrescentou-se a isso o fato de que, na Itália de então, a porque não pudessem mais c o m p e t i r c o m a elegância refinada dos
Idade M é d i a pertencia já, definitivamente, ao passado, e o de que a discípulos de C í c e r o de outrora, mas p o r q u e , c o m o Maquiavel,
mente italiana p ô d e d e s c o b r i - l a p o r não mais trazê-la d e n t r o de si. é apenas numa língua viva que podem registrar a matéria que apreen-
N ã o se pode dizer que, de imediato, julgou-a c o m justiça e, menos deram t a m b é m p o r m e i o da o b s e r v a ç ã o viva e direta, e p o r q u e
ainda, c o m piedade. N a s artes, instala-se um forte p r e c o n c e i t o contra — c o m o o c o r r e c o m Guicciardini, Varchi e a maioria dos d e m a i s
seus rebentos, e os humanistas fixam o m o m e n t o de sua própria apa- — desejam o b t e r o efeito mais amplo e p r o f u n d o possível c o m sua
rição c o m o o início de uma nova era. D i z B o c c a c c i o : visão do c u r s o dos a c o n t e c i m e n t o s . Mesmo quando escrevem
apenas para uns p o u c o s amigos, c o m o o c o r r e c o m F r a n c e s c o V e t t o -
ri, uma c o m p u l s ã o i n t e r i o r os obriga a dar seu t e s t e m u n h o em rela-
Começo a acreditar e esperar que Deus tenha se apiedado do nome italia-
no, desde que vejo que sua infinita bondade devolveu a alma ao peito doj ção a h o m e n s e f a t o s e a explicar e justificar sua participação n o s úl-
italianos, alma esta que se assemelha à dos antigos, na medida em que pro- timos.
cura a glória por caminhos outros que não o do roubo e o da violência; que A o fazê-lo, mostram-se, em que pese toda a peculiaridade d e seu
a procura, na verdade, na vereda da poesia, que confere aos homens a imor- estilo e linguagem, fortemente afetados pela Antigüidade, e absoluta-
talidade.
mente inconcebíveis sem a influência desta. J á não são humanistas, mas
passaram pela escola do humanismo e possuem em si mais do espírito
Todavia, essa postura parcial e injusta não impediu que, numa épo- dos historiadores antigos do que a maioria daqueles latinistas descen-
ca na qual isso não era sequer cogitado no restante da Europa, espíritos dentes de Lívio: são cidadãos escrevendo para cidadãos, c o m o o faziam
elevados se lançassem à pesquisa. Desenvolveu-se u m a crítica histórica os antigos.
em relação à Idade Média, até porque o tratamento racional dispensado
A latinização geral da cultura
a todos os assuntos pelos humanistas tinha necessariamente de benefi-
ciar também esse período histórico. N o século XV, tal tratamento impreg- N ã o nos cabe acompanhar o humanismo pelas demais c i ê n c i a s
na já as diversas histórias de cidades, na medida em que desaparecem as
especializadas; cada uma delas tem sua história particular, no interior
fábulas estéreis acerca da origem de Florença, Veneza, Milão etc., ao
da qual o pesquisador italiano desse período — graças, p r i n c i p a l -
passo que as crônicas do N o r t e têm de arrastar consigo ainda p o r mui-
mente, à redescoberta da Antigüidade — efetua um n o v o e g r a n d e
to tempo aquelas tramas fantasiosas, na maioria dos casos desprovidas
corte, marcando para cada ciência o início da era moderna, ora mais,
de valor poético, engendradas ainda no século XIII.
ora menos decisivamente."' T a m b é m no que se refere à filosofia t e m o s
J á aludimos aqui, ao falarmos de F l o r e n ç a , à estreita conexão
das histórias locais c o m a glória. Veneza não podia ficar para trás. de remeter o leitor às obras históricas especializadas sobre o a s s u n t o .
Assim c o m o , após um grande t r i u n f o o r a t ó r i o f l o r e n t i n o , uma em- A influência dos filósofos antigos sobre a cultura italiana afigura-se
baixada veneziana apressa-se em escrever para casa solicitando igual- ora imensamente grande ora bastante secundária. O primeiro c a s o ve-
mente o envio de um orador, os venezianos necessitam t a m b é m de rifica-se particularmente quando se examina c o m o as idéias de A r i s -
uma história que possa s u p o r t a r a c o m p a r a ç ã o c o m as obras de Leo- c a J á à época, afinal, acreditava-se que Homero sozinho continha em si a totalidade
nardo A r e t i n o e P o g g i o . A t e n d e n d o a u m tal pressuposto, surgiram, das artes e ciências, que era uma enciclopédia — um ponto de vista, aliás, já presente na An-
no século XV, as Décadas, de Sabellico, e, no XVI, a Historia rerum
tigüidade.

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[óteles — principalmente as de sua Ética* e Política, ambas difundid» é perdoável a uma geração que falava e escrevia latim e que necessitava
logo cedo — tornaram-se bem comum de todos os italianos cultos, t de nomes não apenas declináveis, como também apropriados à prosa e
como todo gênero de abstração esteve sob seu domínio. Inversamente, ao verso. Censurável e amiúde ridículo era, isso sim, a mudança parcial
o último caso manifesta-se no efeito dogmático mínimo que os filóso- de um nome, tanto de batismo quanto de família, com o intuito de con-
fos antigos, e mesmo os entusiasmados adeptos florentinos de Platão, ferir-lhe um tom clássico e um novo significado. Assim, Giovanni trans-
exerceram sobre o espírito da nação. O que se assemelha a um tal efei- formou-se em Jovianus ou Janus, Pietro em Pierius ou Petreius, A n t o -
to é, em geral, apenas uma manifestação da cultura como um todo, uma nio em Aonius e mais: Sannazaro em Syncerus, Luca Grasso em Lucius
conseqüência do desenvolvimento específico da mente italiana. Algu- Crassus e assim por diante. Ariosto, que se manifesta tão sarcasticamen-
mas observações a esse respeito terão lugar quando abordarmos a ques- te a esse respeito, viveu ainda o bastante para ver crianças batizadas com
tão da religião. N a absoluta maioria dos casos, porém, não se trata se- os nomes de seus heróis e heroínas.'''
quer da cultura c o m o um todo, mas apenas de manifestações isoladas de Tampouco há que se julgar com demasiado rigor as denomina-
pessoas ou de círculos eruditos — e mesmo assim há que se diferenciar ções antigas atribuídas a cargos, funções, cerimônias etc. pelos escrito-
sempre a verdadeira assimilação de doutrinas antigas da mera inércia do res latinos. Enquanto estes se deram por satisfeitos com um latim fá-
modismo. Para muitos, de fato, a Antigüidade não representou mais cil e fluente — c o m o ocorreu com os escritores, digamos, de Petrar-
do que um modismo, mesmo entre aqueles que adquiriram considerá- ca a Enéias Sílvio — , tal prática não se mostrou extravagante, t o r n a n -
vel erudição nessa matéria. do-se, porém, inevitável quando se passou a almejar um latim absolu-
N ã o obstante, nem tudo o que para nosso século parece afetação tamente puro — o latim de Cícero, sobretudo. A partir desse m o m e n -
necessariamente o foi à época. O uso de nomes de batismo gregos e ro- to, os elementos modernos passaram a não mais se conformar à tota-
manos, por exemplo, não deixa de ser mais belo e respeitável do que a lidade do estilo, a não ser que se os rebatizassem artificialmente. Pe-
prática hoje em voga de retirá-los (sobretudo os femininos) dos roman- dantes compraziam-se, então, em chamar cada conselho municipal de
ces. T ã o logo o entusiasmo pelo mundo antigo tornou-se maior do que patres conscripti, cada convento de freiras de virgines vestales, cada
pelos santos, fez-se normal e natural que uma família nobre batizasse santo de divus ou deus, ao passo que pessoas de gosto mais refinado,
seus filhos com os nomes de Agamenon, Aquiles e Tydeus; ou que um como Paolo Giovio, provavelmente se valiam de tais denominações
pintor chamasse a seu filho Apeles e a sua filha Minerva e assim por dian- apenas quando não podiam evitar fazê-lo. U m a vez que G i o v i o as
te.""'"' Decerto, é igualmente justificável que, pretendendo livrar-se de utiliza sem lhes atribuir qualquer ênfase particular, não chega a nos
um nome de família, o indivíduo o substituísse por outro, melodioso e incomodar quando, em suas frases harmoniosas, os cardeais são cha-
antigo. Maior ainda era a disposição de abdicar de um nome local, ca- mados senatores, seu deão, princeps senatus, a excomunhão, dirae, o
racterístico de todos os habitantes de uma localidade e ainda não trans- Carnaval, Lupercalia, e assim por diante. O exemplo desse m e s m o
formado em nome de família, sobretudo quando, também nome de san- autor nos mostra claramente o cuidado que precisamos ter para não
to, ele se tornava incômodo. Assim é que Filippo da San Gimignano inferirmos dessa questão de estilo conclusões apressadas acerca d e seu
chamava a si próprio Calímaco. Aquele que, menosprezado e insultado pensamento c o m o um todo.
pela própria família, fazia fortuna como erudito no estrangeiro, podia, N ã o nos cabe aqui traçar a história do estilo latino em si. A o lon-
orgulhoso, rebatizar-se Julius Pomponius Laetus, ainda que fosse um go de dois séculos inteiros, os humanistas agiram como se o latim fosse
Sanseverino. Também a pura e simples tradução de um nome para o la- e devesse permanecer a única língua digna de ser escrita. Poggio lamen-
tim ou grego (que, na Alemanha, se tornou hábito quase generalizado) ta que Dante tenha composto seu grandioso poema em italiano, e é sa-
bido que o próprio Dante, na verdade, tentara antes o latim, tendo es-
('*) Ética da qual, sob Paulo II, um cardeal mandava que lessem para seus cozinheiros. crito o início do "Inferno" cm hexámetros. Todo o destino da poesia
(''*) Compreensivelmente, as mulheres libertinas de Roma apoderaram-se dos no-
italiana esteve vinculado ao fato de ele não ter levado adiante esse seu
mes mais sonoros da Antigüidade, cais como Júlia, Lucrécia, Cassandra, Porcia, Virgínia,
Pemesiléia etc., sob os quais elas figuram em Aretino. Os judeus de então possivelmente intento. Mesmo Petrarca, no entanto, depositava maior confiança em
adotaram os nomes dos grandes inimigos semitas dos romanos — Amílcar, Aníbal, Asdrú-
bal —, nomes que ainda na Roma de hoje tão freqüentemente carregam. (*) O u já com os de Boiardo, que são, em parte, também os seus.

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suas poesias latinas do que em seus sonetos e canzoni, e a exigência do rante cinco anos, inclusive jurando a si próprio não empregar palavra
c o m p o r em latim estendeu-se ainda a Ariosto. Jamais houve pressão alguma que já não houvesse sido empregada p o r este. Tais disposições
mais forte do que essa, em matéria de literatura; em grande parte, rompem, então, naquela grande disputa entre os eruditos, tendo à fren-
porém, a poesia logrou safar-se dela, de m o d o que podemos agora, sem te Erasmo e o mais velho dos Scaligero.
demasiado otimismo, afirmar que foi b o m que a poesia italiana dis- M e s m o os admiradores de C í c e r o não eram, aliás, todos t ã o par-
pusesse de ambos os meios de expressão, pois seus feitos em ambas as ciais a p o n t o de pretenderem i m p ô - l o c o m o a única fonte a inspirar a
línguas foram primorosos e singulares, sendo-nos mesmo possível per- língua. Ainda no século XV, Poliziano e E r m o l a o B a r b a r o o u s a m bus-
ceber p o r que neste ou naquele poema optou-se pelo italiano ou pelo car conscientemente uma latinidade própria, individual, apoiados, na-
latim. Talvez o m e s m o se possa dizer em relação à prosa. A posição e a turalmente, numa "vasta, t r a n s b o r d a n t e " erudição — objetivo perse-
fama da cultura italiana no mundo decorreram do fato de que certos guido t a m b é m p o r aquele que nos relata esse fato: Paolo G i o v i o . Este,
assuntos tenham sido — urbi et orbi — tratados em latim, ao passo que pela primeira vez, e à custa de grande esforço, registrou em latim uma
a prosa italiana esteve em melhores mãos justamente quando escrita por série de idéias modernas, sobretudo de natureza estética — n e m sem-
aqueles aos quais não escrever em latim custou uma luta interior. pre c o m êxito, mas p o r vezes com notável energia e elegância. Suas
D e s d e o século XIV, C í c e r o era incontestavelmente tido como a caracterizações em latim dos grandes pintores e escultores de então
fonte mais pura da prosa. Tal não se deveu de f o r m a alguma a uma mera contêm, lado a lado, as observações mais inteligentes e as mais desa-
e abstrata convicção do p o d e r de suas palavras, de seu fraseado e de sua fortunadas. O próprio Leão X, que via sua glória no fato "ut lingua la-
maneira de compor, mas antes ao fato de que a amabilidade do episto- tina n o s t r o pontificatu dicatur facta a u c t i o r " [que seja dito q u e a lín-
lógrafo, o brilho do orador, a clareza e serenidade de sua exposição fi- gua latina foi enriquecida durante nosso pontificado], tendia para
losófica encontraram total ressonância no espírito italiano. J á Petrarca uma latinidade liberal, não exclusiva, c o m o não podia deixar de ser
percebeu claramente as fraquezas d o C í c e r o h o m e m e estadista; devo- em uma natureza amante dos prazeres c o m o a sua. Bastava-lhe que o
tava-lhe, contudo, demasiado respeito para alegrar-se c o m sua desco- que tivesse de ouvir ou ler lhe parecesse verdadeiramente l a t i m , vivo
berta. Posteriormente à época de Petrarca, C í c e r o forneceu, em um pri- e elegante. P o r fim, C í c e r o não ofereceu modelo algum para a c o n v e r -
meiro m o m e n t o , o m o d e l o quase exclusivo para a epistolografia, o sação latina, de modo que, nesse aspecto, foi-se obrigado a reverenciar
m e s m o acontecendo, em seguida, em relação aos demais gêneros, exce- outros deuses paralelamente a ele. A lacuna foi preenchida pelas en-
tuando-se o narrativo. O verdadeiro ciceronianismo, entretanto, que cenações relativamente freqüentes, dentro e fora de R o m a , das c o m é -
não se permitia escrever uma única frase não justificável a partir dos es- dias de Plauto e Terêncio, que propiciavam aos atores um e x e r c í c i o
critos do mestre, tem início somente p o r volta do final do século XV, incomparável em matéria do latim c o m o língua cotidiana. J á s o b Pau-
depois que os escritos sobre gramática de L o r e n z o Valia já haviam pro- lo II, o erudito cardeal de Teano (provavelmente N i c c o l ò F o r t i g u e r r a ,
duzido seus efeitos sobre toda a Itália e depois que as próprias asserções de Pistoia) torna-se f a m o s o p o r aventurar-se nas peças m a i s mal
dos historiadores da literatura romanos já haviam sido verificadas e preservadas de Plauto, desprovidas até da lista de personagens, dedi-
comparadas. Só então se começa a distinguir melhor e com a máxima cando a máxima atenção ao autor p o r causa da língua, sendo m e s m o
precisão as nuances estilísticas na prosa dos antigos, chegando-se sem- possível que tenha partido dele o estímulo para a encenação dessas
pre e com uma certeza consoladora à conclusão de que Cícero, e so- peças. Posteriormente, P o m p o n i u s Laetus ocupou-se do a s s u n t o , e,
mente ele, constitui o modelo absoluto — ou "aquela imorredoura e onde quer que Plauto fosse representado nos palácios dos grandes
quase divina era de C í c e r o " , quando se desejava abranger todos os gê- prelados, era ele o diretor. C o m o vimos, G i o v i o inclui o final dessas
neros. H o m e n s c o m o Pietro B e m b o e Pierio Valeriano, entre outros, representações, a partir de 1520, aproximadamente, entre as causas do
passam a empregar suas melhores forças n o encalço desse ú n i c o mode- declínio da eloqüência.
lo; mesmo aqueles que haviam resistido longamente a tal tendência,
Para concluir, é lícito mencionar aqui um paralelo do ciceronianis-
forjando para si uma dicção arcaica a partir dos autores mais remotos
mo no domínio da arte: o vitruvianismo dos arquitetos. T a m b é m aí se
da Antigüidade, cedem e ajoelham-se, afinal, diante de Cícero. Longo-
manifesta, aliás, a lei geral do Renascimento, segundo a qual o movi-
lius deixa-se levar por B e m b o , dispondo-se a ler somente C í c e r o du-
mento na área da cultura precede sempre um movimento a n á l o g o no

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domínio da arte. N o caso em questão, esse intervalo temporal soma por U propriedade, o século XIV identificou na época da segunda guerra
volta de duas décadas, se considerarmos o tempo que separa o cardeal púnica o apogeu da grandeza romana — época que Petrarca desejava e
Adriano da C o r n e t o ( 1 5 0 5 ? ) dos primeiros vitruvianos puros. rinha de tratar. Tivesse Sílio Itálico sido já descoberto, talvez Petrarca
houvesse escolhido um outro assunto. N a ausência deste, porém, a glo-
A poesia neolatina rificação de Cipião, o Africano, era tão natural ao século XIV, q u e um
outro poeta, Zanobi delia Strada, já se havia proposto tarefa semelhan-
Finalmente, o maior orgulho dos humanistas é a poesia neolatina. te, apenas em respeito a Petrarca abdicando do poema em cuja c o m p o -
P o r q u a n t o nos auxilia a caracterizar o humanismo, também ela deve ser sição já avançara bastante. Se alguma justificativa havia para Africa, esta
tratada aqui. se devia ao fato de que, tanto à época quanto posteriormente, todos se
F o i já exposto anteriormente em que larga medida havia uma pre- interessavam p o r Cipião c o m o se ainda vivesse, considerando-o maior
disposição a seu favor, quão próxima ela estava do triunfo definitivo. do que Alexandre, Pompeu e César. Quantas epopéias modernas p o d e m
Cumpre, desde logo, estar-se convicto de que a nação mais culta e mais vangloriar-se de tratar de um assunto tão popular para sua época, tão es-
desenvolvida do mundo de outrora não renunciou, no âmbito da poe- sencialmente histórico e, não obstante, de um colorido mítico? H o j e , o
sia, a uma língua c o m o a italiana p o r mera tolice ou sem almejar algo poema em si é, decerto, totalmente ilegível. N o tocante a outros temas
maior. U m a razão de o r d e m superior deve tê-la levado a isso. históricos, temos de remeter o leitor para as diversas histórias da litera-
Tal razão foi a admiração pela Antigüidade. C o m o toda admira- tura existentes.
ção genuína e sem reservas, t a m b é m esta gerou, c o m o não podia dei- Mais rica e fértil foi a poesia que retomou os mitos da Antigüida-
xar de ser, a imitação. E m outras épocas e entre o u t r o s povos, uma de, preenchendo-lhes as lacunas poéticas. Também nesse terreno a poesia
p o r ç ã o de tentativas isoladas nesse m e s m o sentido teve lugar, mas so- italiana interveio desde cedo, já c o m a Teseida, de Boccaccio, que é
mente na Itália estavam presentes as duas condições fundamentais considerada sua melhor obra poética. Sob Martinho V, Maffeo Vegío
para a continuidade e o desenvolvimento da poesia neolatina: a gene- compôs em latim um 13° livro para a Eneida. A l é m dessas, há ainda
ralizada disposição favorável entre os eruditos da nação e um parcial um certo número de tentativas menores, sobretudo à maneira de Clau-
redespertar do gênio italiano antigo nos próprios poetas — um mara-
diano — uma Meleagris, uma Hesperis e outras. Notáveis são, p o r é m ,
vilhoso ressoar de uma antiquíssima lira. S o b tais condições, o que se
acima de tudo, os mitos novos inventados, povoando as regiões mais
p r o d u z de m e l h o r já não é imitação, mas criação própria e livre. Quem
belas da Itália com deuses, ninfas c gênios primevos, além de pastores,
é incapaz de tolerar formas derivadas na arte; quem, de antemão, já
quando então o épico e o bucólico já não admitem separação. O fato
não aprecia a Antigüidade ou, inversamente, a reveste de uma magia
de que, a partir de Petrarca, as éclogas ora narrativas ora dialógicas
inacessível e inimitável; q u e m , p o r fim, não é indulgente para com as
dispensam à vida pastoril um tratamento já quase totalmente c o n v e n -
infrações de poetas que tiveram, por exemplo, de redescobrir ou adi-
cional, emoldurando todo tipo de fantasias e sentimentos, será nova-
vinhar uma porção de medidas silábicas — este deve deixar de lado
mente ressaltado adiante. Tratemos, p o r enquanto, apenas dos novos
essa literatura. Suas mais belas obras não foram criadas para desafiar
mitos. N e l e s se revela mais nitidamente do que em qualquer outra
uma crítica absoluta qualquer, mas para alegrar o poeta e a muitos mi-
parte que os deuses antigos possuem u m duplo significado no R e n a s -
lhares de c o n t e m p o r â n e o s seus.
cimento: por um lado, substituem os conceitos abstratos e t o r n a m
M e n o r êxito tiveram as epopéias retiradas das histórias e sagas da desnecessárias as figuras alegóricas; ao m e s m o tempo, porém, c o n s t i -
Antigüidade. Sabidamente, não se reconhecem nos modelos romanos, e, tuem também um elemento livre, autônomo da poesia, uma p o r ç ã o de
à exceção de H o m e r o , nem mesmo nos gregos, as condições essenciais beleza neutra que pode ser acrescentada e constantemente rearranjada
para uma poesia épica viva — c o m o teriam elas, então, estado presentes em qualquer poema. Audaciosamente, foi B o c c a c c i o quem t o m o u a
entre os latinos do Renascimento? N ã o obstante, a Africa, de Petrarca, dianteira nesse campo, com seu mundo de deuses e pastores imaginá-
possivelmente encontrou, de uma forma geral, tantos e tão entusiasma- rios a povoar os arredores de F l o r e n ç a em seus Ninfale d'Ameto
dos leitores e ouvintes quanto qualquer épico moderno. O propósito e e Ninfale fiesolano, ambos escritos em italiano. A o b r a - p r i m a do
o surgimento desse poema não são desprovidos de interesse. C o m mui- gênero, contudo, constitui possivelmente o Sarça, de Pietro B e m b o ,

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que nos fala da corte de um deus desse m e s m o n o m e à ninfa Garda, do outro recurso em seu calendário dos dias festivos. E m vez de pôr deu-
suntuoso banquete de casamento numa caverna no monte Baldo, da$ ses e semideuses a serviço da história sagrada, coloca-os em oposição a
profecias de M a n t o — filha de Tirésias — acerca do nascimento do fi- eia, como o fizeram os patriarcas da Igreja. Enquanto o anjo Gabriel
lho Mincius, da fundação de M á n t u a e da glória futura de Virgílio, que saúda a Virgem em Nazaré, Mercúrio voa até ele, desde o monte Car-
nascerá da união de M i n c i u s c o m a ninfa de Andes, Maia. B e m b o en- melo, e o espreita à porta para, em seguida, relatar aos deuses reunidos
controu versos muito b o n i t o s para esse p o m p o s o r o c o c ó humanista, e o que ouviu e, assim, levá-los às resoluções mais extremas. É certo que,
um discurso final endereçado a Virgílio pelo qual qualquer poeta po- em outras ocasiões, Tétis, Céres, É o l o e outros são obrigados a, de bom
deria invejá-lo. C o s t u m a - s e atribuir p e q u e n o valor a obras como es- grado, submeter-se à Madona e à sua glória.
sas, consideradas meras declamações — o que, em se tratando de uma
A fama de Sarrazano, a multidão de seus imitadores, a entusias-
questão de gosto, não há c o m o discutir.
mada homenagem que lhe prestaram os grandes de seu tempo — tudo
E n c o n t r a m o s ainda extensos poemas épicos, de conteúdo bíblico isso demonstra quão necessário e valoroso ele foi à época em q u e vi-
ou eclesiástico, compostos em hexâmetros. Seus autores nem sempre al- veu. Para a Igreja, no princípio da R e f o r m a , ele resolveu o p r o b l e m a
mejavam uma p r o m o ç ã o dentro da Igreja ou a obtenção do favor papal. de c o m o ser inteiramente clássico e, ainda assim, cristão ao escrever,
N o s melhores, e m e s m o nos menos aptos — c o m o Battista Mantovano, razão pela qual tanto L e ã o quanto Clemente expressaram-lhe enfati-
autor de Parthenice — , será lícito supor um desejo absolutamente ho- camente sua gratidão.
nesto de, p o r meio de sua erudita poesia latina, servir ao sagrado — pro- P o r fim, t a m b é m a história da época foi tratada em h e x â m e t r o s
p ó s i t o certamente assaz em c o n s o n â n c i a c o m sua c o n c e p ç ã o semipa- ou dísticos, ora de f o r m a mais narrativa, ora mais panegírica, mas, de
gã do catolicismo. Gyraldus enumera um punhado desses poetas, à testa um modo geral, em h o n r a de algum príncipe ou casa principesca. F o i
dos quais figuram Vida, c o m sua Cristíada, e Sannazaro, com seus três assim que nasceram uma Sforzíada, uma Borseida, uma Borgíada,
cantos De partu Virginis. Sannazaro impressiona pelo fluxo poderoso e uma Trivulcíada e assim por diante, ainda que fracassando inteira-
uniforme de seus versos — nos quais comprime, sem receio, elementos mente em seu p r o p ó s i t o , uma vez que quem logrou tornar-se f a m o s o
pagãos e cristãos — , pelo vigor plástico de suas descrições e pela beleza e imortal não o deveu a um gênero de poemas contra o qual o m u n -
e perfeição de seu trabalho. N ã o tinha por que temer a comparação ao do demonstrou sempre uma inextinguível aversão, m e s m o q u a n d o
mesclar os versos da quarta écloga de Virgílio ao canto dos pastores jun- bons poetas a ele se dedicaram. E f e i t o bastante diverso p r o v o c a m re-
to à manjedoura. A o tratar do outro mundo, exibe, aqui e ali, traços de tratos menores, desapaixonados, apresentando cenas da vida d e h o -
uma audácia dantesca, c o m o quando, p o r exemplo, o rei Davi, no lim- mens famosos, c o m o , por exemplo, o belo poema acerca da caçada de
bo dos patriarcas, eleva-se ao canto e à profecia, ou quando o Eterno, Leão X próximo a Palo ou da Viagem de Júlio II, de autoria de Adriano
sentado em seu trono e envolto em um manto que rebrilha com imagens da C o r n e t o . Esplêndidas descrições de caçadas do gênero acima m e n -
de todos os elementos, dirige-se aos espíritos celestes. Outras vezes, as- cionado, encontramos também em E r c o l e Strozza, no há p o u c o
socia sem hesitar a mitologia antiga a seu assunto, sem, contudo, pare- citado A d r i a n o da C o m e t o e em outros mais, e seria uma pena q u e o
cer barroco, pois emprega os deuses pagãos apenas c o m o moldura, por leitor m o d e r n o se deixasse dissuadir de lê-las ou irritar pela b a j u l a ç ã o
assim dizer, sem lhes conceder qualquer papel central. Q u e m deseja co- que as permeia. A maestria do tratamento e o p o r vezes não i n s i g n i -
nhecer o poder artístico dessa época, em toda a sua extensão, não deve ficante valor histórico asseguram a esses graciosos poemas u m a so-
fechar-se a uma obra c o m o essa. O mérito de Sannazaro afigura-se tan- brevida mais longa do que seria lícito que tivessem muitas poesias de
to maior quando se considera que, em geral, a mistura de elementos renome de nosso tempo.
cristãos e pagãos incomoda muito mais facilmente na poesia do que nas D e um m o d o geral, tais poemas são sempre tanto melhores q u a n -
artes plásticas. Estas podem, mediante a beleza definida e palpável, man- to mais moderada é a ingerência neles do patético e do genérico. A l -
ter imperturbado o olho do observador, sendo ainda muito mais inde- guns poemas épicos mais breves compostos por mestres célebres pro-
pendentes do significado de seus temas do que o é a poesia, na medida vocam, inconscientemente, uma impressão indescritivelmente c ô m i c a ,
em que, nas primeiras, a imaginação trabalha antes de mais nada sobre a em função da presença exagerada neles do elemento mitológico. A s s i m
forma, na última, sobre o tema. O b o m Battista Mantovano tentou um ocorre c o m o poema fúnebre de Ercole Strozza dedicado a C é s a r B o r -

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gia. Ouve-se o plangente discurso de R o m a , que depositara todas « nova constituição, Maquiavel, em sua versão da história da época, um
suas esperanças nos papas espanhóis Calisto III e Alexandre VI, e, de- terceiro, na biografia de Savonarola, e u m quarto, na descrição do
pois, viu em César o prometido, cuja história é relatada até a catástrofe cerco a P i o m b i n o p o r A f o n s o , o Grande, valeram-se da difícil terza
de 1503. E m seguida, o poeta pergunta à musa quais haviam sido na- rima italiana no intento de produzir um efeito mais forte s o b r e o lei-
quele m o m e n t o os conselhos dos deuses. É r a t o é q u e m conta que, no tor, muitos outros precisavam, analogamente, oferecer hexâmetros a
O l i m p o , Palas t o m o u o partido dos espanhóis e Vénus o dos italianos; seu p ú b l i c o para poder capturá-lo. É a poesia didática que m e l h o r nos
ambas abraçaram-se aos j o e l h o s de Júpiter, ao que este as beijou, tran- mostra o que se tolerava e o que se desejava desta última f o r m a . N o
qüilizou e desculpou-se p o r nada poder contra o destino tecido pelas século XVI, esse gênero toma um impulso absolutamente espantoso,
Parcas, dizendo-lhes, porém, que as promessas dos deuses cumprir-se- cantando em hexâmetros latinos a feitura do ouro, o j o g o de x a d r e z ,
iam por intermédio do filho da casa E s t e - B o r g i a . * A p ó s haver narrado a criação do bicho-da-seda, a astronomia, a doença venérea e temas
os aventurosos p r i m ó r d i o s da história de ambas as famílias, declara, similares, acrescentando-se aí ainda vários e extensos poemas italia-
então, ser-lhe tão pouco possível conferir a César a imortalidade quanto nos de caráter semelhante. C o s t u m a - s e , hoje, condenar sem ler as
lhe fora outrora — a despeito de tantas intercessões — concedê-la a obras desse gênero, e tampouco nós saberíamos dizer em que m e d i d a
um M e m n o n ou a um Aquiles, concluindo, finalmente, com a afirma- esses poemas didáticos são efetivamente dignos de leitura. C e r t o , p o -
ção consoladora de que, ainda antes de morrer, César mataria muita rém, é que épocas infinitamente superiores a nossa em seu senso de
gente na guerra. Marte vai, então, a N á p o l e s cultivar a guerra e a dis- beleza — o mundo grego tardio, o romano e o do R e n a s c i m e n t o —
córdia, enquanto Palas corre a Nepi, onde aparece para César, enfer- não puderam prescindir de um tal gênero de poesia. P o d e - s e argu-
mo, sob a figura de Alexandre VI. Ali, após exortá-lo a resignar-se mentar que, hoje, não é a ausência desse senso de beleza, mas a maior
e contentar-se c o m a glória de seu n o m e , a deusa papal desaparece seriedade e o tratamento universalista dispensado ao que é digno
" c o m o um p á s s a r o " . de ser ensinado que excluem a f o r m a poética — argumento e s t e que
R e n u n c i a m o s desnecessariamente a um, p o r vezes, grande prazer deixaremos intocado.
ao repelirmos tudo o que se revela, bem ou mal, entretecido com a mi- U m a dessas obras didáticas tem sido, ainda hoje, ocasionalmente
tologia antiga. N a poesia, tanto q u a n t o na pintura e na escultura, a reimpressa. Trata-se do Zodíaco da vida, de Marcellus Palingenius, um
arte às vezes enobreceu sobremaneira esse elemento em si convencio- criptoprotestante de Ferrara. Nela, o autor vincula a questões elevadas
nal. O apreciador desse gênero t a m p o u c o deixará de encontrar nele como Deus, a virtude e a imortalidade a discussão de muitos tópicos da
rudimentos de paródia, c o m o na Macaroneida, p o r exemplo, cujo pa- vida material, constituindo nesse sentido uma autoridade nada despre-
ralelo na pintura encontramos já no c ô m i c o Festim dos deuses, de Gio- zível na história dos costumes. N o essencial, contudo, sua poesia ultra-
vanni Bellini.
passa já os domínios do Renascimento, assim c o m o nela, em c o n f o r m i -
Vários poemas narrativos em hexâmetros c o m p õ e m ainda meros dade com a seriedade de seu propósito didático, a alegoria suplanta a
exercícios ou adaptações de relatos em prosa. O n d e os encontrar, o mitologia.
leitor dará preferência a estes últimos. P o r fim, é sabido, todas as con-
tendas e cerimônias foram cantadas em verso, inclusive pelos huma-
nistas alemães da época da Reforma. Seria, entretanto, injusto atribuí-lo
Muito mais próximo da Antigüidade encontra-se o poeta-filólogo
meramente ao ó c i o e à excessiva facilidade na c o m p o s i ç ã o dos versos.
na lírica — sobretudo na elegia, mas também no epigrama.
A o menos entre os italianos, há uma verdadeira e indiscutível abun-
N o gênero mais ligeiro, Catulo exerceu uma influência verdadeira-
dância de senso estilístico, c o m o o c o m p r o v a m a massa de relatos sur-
mente fascinante sobre os italianos. U m bom número de elegantes ma-
gidos à época, as histórias e m e s m o os panfletos escritos em teria
drigais latinos, pequenas invectivas e cartas maldosas nada mais são do
rima. Tanto quanto N i c c o l ò da U z z a n o , em seu esquema para uma
que meras paráfrases de escritos seus; lamenta-se a morte de cãezinhos
e papagaios sem se empregar uma única palavra do poema acerca do
(*) Trata-se de Ercole II, de Ferrara, nascido em 4 de abril de 1508, provavelmente pardal de Lésbia, ainda que deste derivem inteiramente tais lamentos.
pouco antes ou pouco depois da composição do poema.
Há inclusive pequenos poemas desse gênero sobre cuja idade, na ausên-

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cia de uma referência objetiva a apontar claramente para o século XV ou vida simples em uma prece a Ceres ou a outras divindades campestres.
XVI, até mesmo um conhecedor poderia iludir-se. Navagero apenas iniciou uma saudação à terra natal, ao retornar de
Inversamente, não ha possivelmente uma única ode sáfica ou alcai- uma embaixada na Espanha; tivesse-a concluído, ela se teria tornado
ca que, de alguma maneira, não denuncie nitidamente sua origem mo- um poema magnífico, bastando para isso que sua conclusão estivesse à
derna. Revela-o, na maioria dos casos, uma loquacidade retórica, que,
altura deste começo:
na Antigüidade, surge apenas c o m Estácio, e a evidente falta de concen-
tração lírica, conforme a exige necessariamente esse gênero. Trechos iso- Salve cura Deüm, mundi felicior ora,
lados de tais odes, duas ou três estrofes, decerto logram assemelhar-se a Formosae Veneris dulces sálvete recessus;
um fragmento da Antigüidade; um todo mais longo, porém, raramente
Ut vos post tantos animi mentisque labores
retém essa coloração. E onde isso ocorre, como, p o r exemplo, na bela
Aspicio lustroque libens, ut muñere vestro
ode a Vénus de Andrea Navagero, reconhece-se facilmente a mera pa-
Sollicitas toto depello e pectore curas!''
ráfrase de obras-primas antigas. Alguns poetas que se dedicaram a esse
gênero apoderam-se do culto aos santos, construindo suas invocações
O verso elegíaco ou em hexâmetros torna-se um receptáculo para
com muito b o m gosto, calcadas nas odes de conteúdo análogo de auto-
todo e qualquer sentimento mais elevado, de tal forma que tanto o mais
ria de H o r á c i o e Catulo. Assim fizeram Navagero, na ode ao arcanjo
nobre patriotismo (como na já mencionada elegia a Júlio li) q u a n t o a
Gabriel, e, particularmente, Sannazaro, que leva bastante longe a adap-
mais pomposa deificação dos soberanos procuram nele seu meio de ex-
tação de um fervor pagão. Sannazaro celebra principalmente o santo de
pressão, assim c o m o o faz também a terna melancolia de um T i b u l o .
seu nome, cuja capela pertence aos domínios de sua pequena villa, mag-
Mario Molza, que em sua bajulação a Clemente VII e aos Farnese riva-
nificamente situada na costa do Posílipo, "lá, onde a onda do mar sorve
liza com Estácio e Marcial, dota sua elegia a seus "companheiros" — escri-
a fonte do rochedo, rebentando contra a parede do pequeno santuário".
ta no leito em que jazia doente — com pensamentos tão belos e genuí-
Sua alegria é a festa anual de são Nazário; a ramagem e as guirlandas
com as quais a igrejinha é adornada sobretudo nesse dia parecem-lhe nos acerca da morte quanto os da Antigüidade, e isso sem desta tomar
oferendas. M e s m o distante, em Saint Nazaire, junto à foz do Loire, em emprestado nada de essencial. D e resto, foi Sannazaro quem captou e
fuga ao lado do banido Federigo de Aragão, ele leva ao santo, no dia imitou com maior perfeição a essência e o alcance da elegia romana: ne-
deste, coroas de folhas de b u x o e carvalho, que oferece imbuído de pro- nhum outro nos oferece um número tão grande e variado de b o n s poe-
fundo pesar, recordando-se de anos passados, quando jovens vinham de mas escritos nessa forma. Outras elegias isoladas serão ainda, ocasional-
todo o Posílipo em barcos coroados de flores para a sua festa, e roga mente, mencionadas aqui em razão de sua temática.
pelo retorno a sua terra. P o r fim, o epigrama latino constituía à época um assunto sério, na
medida em que alguns versos bem construídos — gravados em algum
A ilusão do antigo provoca, principalmente, um certo número de monumento ou transmitidos de boca em boca, acompanhados d o riso
poemas escritos em versos elegíacos ou simplesmente em hexâmetros, — podiam fundar a glória de um erudito. Pretensões nesse sentido
cujo conteúdo estende-se desde a elegia propriamente dita até o epigra- anunciam-se logo cedo. Quando correu a notícia de que G u i d o delia
ma. Assim c o m o os humanistas manipulavam livremente o texto dos Polenta pretendia adornar o túmulo de Dante com um m o n u m e n t o ,
poetas elegíacos romanos, sentiam-se igualmente à altura de imitá-los. epitáfios chegaram de todas as partes, "de autoria daqueles que queriam
A elegia à noite de Navagero mostra-se tão pouco liberta de reminiscên- se mostrar, honrar a memória do poeta morto ou conquistar o f a v o r de
cias de seus modelos quanto qualquer outro poema desse mesmo gêne- Polenta" [Boccaccio, Vita di Dante]. Junto à tumba do arcebispo G i o -
ro e época, mas exibe os mais belos tons da Antigüidade. Acima de vanni Visconti (morto em 1354) na catedral de Milão, lê-se, ao c a b o de
tudo, Navagero preocupa-se sempre e primeiramente em encontrar um
tema verdadeiramente poético, o qual, em vez de tratar de maneira ser-
vil, desenvolve com a liberdade de um mestre, ao estilo da. Antologia, de (•"") Salve amada dos deuses, terra mais feliz do mundo,/ salve doces refúgios da bela

Ovídio, de Catulo e mesmo das éclogas de Virgílio. D a mitologia, faz Vénus;/ depois de tantas fadigas da alma e da mente/ com quanta alegria vos percorro com
o olhar, e com a vossa ajuda/ afasto por completo do meu peito as angustiantes preocupa-
uso extremamente moderado, para, p o r exemplo, criar o quadro de uma
ções! (N. E.)

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36 hexâinetros: " O senhor Gabrius de Zamoreis, de Parma, doutor em dirigidas ao papa — , por ocasião da festa de santa Ana, não mandava
leis, fez estes versos". P o u c o a pouco, principalmente sob a influêncii apenas celebrar missa, mas oferecia ainda um grande banquete aos lite-
de Marcial, mas também de Catulo, f o r m o u - s e uma extensa literatura ratos em seus jardins, nas encostas do Capitólio. Valia a pena, então,
do gênero. Triunfo supremo para o autor, era quando seu epigrama era dar-se ao trabalho de passar em revista toda a multidão de poetas que
tomado por antigo, por copiado de algum m o n u m e n t o da Antigüidade, tentava a sorte na corte de Leão X, c o m o o fez, num longo p o e m a inti-
ou quando se revelava tão primoroso que toda a Itália o sabia de cor, tulado De poetis urbanis, Franciscus Arsillus, um homem que n ã o ne-
como alguns de autoria de B e m b o . Se a cidade de Veneza pagava a Sanna- cessitava do mecenato papal nem de qualquer outro e que se reservava
zaro seiscentos ducados de h o n o r á r i o s p o r três dísticos compostos em o direito de voltar sua liberdade de expressão contra os próprios cole-
sua honra, não o fazia p o r generosa prodigalidade, mas porque o epigra- gas. É apenas sob a forma de ecos isolados que o epigrama sobrevive ao
ma era apreciado pelo que era para todas as pessoas cultas da época: a pontificado de Paulo III; a epígrafe, pelo contrário, experimenta u m pe-
mais concentrada forma da glória. P o r outro lado, ninguém era, então, ríodo mais longo de florescimento, sucumbindo apenas no século XVII
tão poderoso a p o n t o de não se deixar perturbar p o r u m epigrama espi- ao empolamento.
rituoso. M e s m o os grandes necessitavam submeter a apreciação prudente Esta última tem também em Veneza sua história própria, q u e p o -
e erudita toda inscrição que mandassem gravar, já que epitáfios demos acompanhar c o m a ajuda da Venezia, de Francesco Sansovino.
ridículos, p o r exemplo, corriam o risco de serem incluídos em coletâ- Tarefa constante ali para os autores de epígrafes constituíam os m o t o s
neas destinadas a suscitar o riso. A epígrafe e o epigrama deram-se, então, (brievi) para os retratos dos doges no grande salão do palácio ducal —
as mãos, a primeira repousando no mais diligente estudo das inscrições de dois a quatro hexámetros contendo o essencial do governo d e cada
antigas. um deles. A l é m disso, no século XIV, as tumbas dos doges levavam la-
A cidade p o r excelência dos epigramas e inscrições era, e prosse- cônicas inscrições em prosa contendo apenas fatos e, ao lado destas,
guiu sendo, R o m a . Nesse Estado onde não vigia a hereditariedade, cada empolados hexámetros ou versos leoninos. N o século XV, c r e s c e o
um tinha de cuidar da própria imortalidade, para o que os breves versos cuidado com o estilo, que no século seguinte alcança seu p o n t o alto.
satíricos contribuíam c o m o uma arma contra os rivais. J á Pio II enume- Logo a seguir, porém, começam a surgir a antítese inútil, a p r o s o p o -
ra c o m satisfação os dísticos compostos p o r seu poeta principal, Cam- péia, a ênfase patética, o louvor aos princípios — em uma palavra, a
panus, para os m o m e n t o s mais propícios de seu pontificado. Sob os empolação. A troça torna-se presença razoavelmente constante, e o
papas que o sucederam, o epigrama satírico floresceu até atingir, volta- louvor aos mortos é utilizado para expressar críticas veladas aos vivos.
do contra Alexandre VI e os seus, o mais alto grau de escandalosa inso- Tardiamente ressurgem, então, uns poucos epitáfios deliberadamente
lência. Sannazaro, é certo, compunha os seus em uma posição relativa- simples.
mente segura; outros, porém, próximos à corte, expunham-se a perigos A arquitetura e a decoração prevêem a presença de inscrições —
extremos. E m resposta a oito dísticos ameaçadores certa feita encontra- amiúde c o m freqüente repetição, ao passo que o gótico do N o r t e , por
dos afixados à porta da biblioteca, Alexandre mandou reforçar a guarda exemplo, dificilmente lhes reserva um espaço próprio — no caso d o s tú-
com oitocentos homens: pode-se imaginar o que teria feito ao poeta que mulos, conferindo-lhes o sítio mais exposto a ameaças: as bordas.
os compôs, se este se tivesse deixado apanhar. Sob Leão X, os epigramas Pelo já exposto até aqui, não julgamos absolutamente ter c o n v e n -
em latim compunham o pão de cada dia. N ã o havia forma mais apro- cido o leitor do valor singular dessa poesia latina dos italianos. P r e t e n -
priada quer para a glorificação, quer para a difamação do papa, para o demos, antes, sugerir sua posição e necessidade histórico-cultural. Des-
castigo de inimigos e vítimas nomeadas ou não, para objetos reais ou ta, aliás, encontramos já à época uma caricatura no surgimento da assim
imaginados da espirituosidade, da maldade, do pesar ou da contempla- chamada poesia macarrónica, cuja obra principal — a Opus macaronico-
ção. Por essa época, não menos de 120 poetas esforçaram-se por com- rum — foi composta por Merlin Coccaio (isto é, Teofilo F o l e n g o , de
por versos latinos para o famoso grupo da Mãe de Deus com santa Ana Mântua). D e seu conteúdo falaremos oportunamente; quanto à forma
e o Menino, esculpido p o r Andrea Sansovino para Sant'Agostino — por — hexámetros, entre outros tipos de verso, misturando palavras latinas
certo, movidos não tanto pela devoção quanto pelo autor da encomen- com palavras italianas dotadas de terminações latinas —•, seu caráter cô-
da. Este — Johann Goritz, de Luxemburgo, referendário das petições mico reside essencialmente no fato de que tais misturas soam c o m o me-

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ros lapsus linguae, c o m o o j o r r o verborrágico de um improvvisatore la- de que se valiam para tanto. N u m piscar de olhos, passam dos argu-
tino por demais precipitado. As imitações alemas não nos dão sequer mentos científicos às invectivas e destas à mais infundada infâmia; não
uma idéia desse efeito. desejam refutar seus adversários, mas aniquilá-los em todos os senti-
dos. Isso pode ser, em parte, creditado a seu ambiente e posição. Vimos
já quão violentamente a época de que foram os porta-vozes oscilou ao
A QUEDA DOS HUMANISTAS NO SÉCULO XVI sabor das vagas da glória e do escárnio. Além disso, sua situação na
vida cotidiana era, em geral, tal, que eles eram obrigados a lutar conti-
Depois que, desde o princípio do século Xiv, várias e brilhantes ge- nuamente pela própria existência. Era, pois, sob tais circunstâncias que
rações de poetas-filólogos haviam impregnado a Itália e o mundo com escreviam, discursavam e descreviam uns aos outros. Somente as obras
seu culto à Antigüidade, determinado em sua essência a cultura e a edu- de Poggio contêm já sujeira suficiente para suscitar o preconceito con-
cação, amiúde tomado a dianteira nas questões referentes ao Estado c tra toda a classe — e foram justamente essas Opere Poggii as mais pu-
reproduzido o melhor possível a literatura antiga, toda a sua classe mer- blicadas de ambos os lados dos Alpes. N ã o nos alegremos prematura-
gulhou num puro e generalizado descrédito ao longo do século xvi — mente ao encontrarmos, no século XV, uma dentre essas figuras q u e nos
a um tempo em que ainda não se desejava absolutamente prescindir por pareça inatingível; procurando melhor, correremos sempre o risco de
completo de suas lições e de seu saber. Continua-se ainda a falar, escre- nos depararmos com alguma infâmia que, ainda que nela não acredite-
ver e c o m p o r poemas da maneira que eles o faziam, mas, pessoalmente, mos, bastará para turvar a imagem. As muitas poesias latinas obscenas
ninguém mais quer pertencer a sua classe. E m meio às duas principais ou, para citar um exemplo, o escárnio voltado contra a p r ó p r i a famí-
acusações de que eram alvo — a da maligna altivez e a da vergonhosa lia, c o m o o encontramos no diálogo de Pontano intitulado Antonius,
devassidão — , ressoa já uma terceira, na voz da nascente Contra-Refor- cuidaram do restante, no que se refere ao descrédito generalizado da
ma: a da irreligiosidade. classe. O século x v i conhecia todos esses testemunhos e, além disso,
H á que se perguntar, inicialmente, p o r que tais censuras, fossem cansara-se do tipo dos humanistas. Estes tiveram de pagar p e l o que
elas fundadas ou infundadas, não se fizeram ouvir mais cedo. N a verda- haviam cometido e, mais ainda, pelo excesso de autoridade q u e lhes
de, elas já são audíveis cedo o bastante, ainda que sem produzir qual- fora até então atribuído. Quis o cruel destino que o maior poeta d a nação
quer efeito particular, evidentemente porque imperava ainda uma de- sobre eles se pronunciasse com calmo e soberano desdém [Ariosto, "Sa-
pendência bastante grande dos literatos no tocante ao conhecimento da tira VII", 1531].
Antigüidade, de cuja cultura eles eram — no sentido mais pessoal — os Das censuras que se combinaram para compor esse quadro de anti-
proprietários, portadores e propagadores. C o n t u d o , o aumento do nú- patia geral, muitas tinham demasiado fundamento. U m a tendência defi-
mero de edições impressas dos clássicos,"" de grossos e bem-feitos ma- nida e reconhecível à austeridade moral e à religiosidade vivia ainda, e
nuais e obras de referência, emancipou o povo, já em um grau significa- prosseguiu vivendo, em muitos filólogos: condenar toda a sua classe re-
tivo, do contato constante e pessoal c o m os humanistas, e tão logo essa
velaria um conhecimento muito pequeno da época. Muitos, p o r é m , e
libertação se fez possível, ainda que parcialmente, entrou em cena aque-
dentre estes os mais ruidosos, eram culpados.
la mudança dos ânimos. B o n s e maus, indistintamente, sofreram as suas
Três fatores explicam e atenuam, talvez, sua culpa: os desmedidos
conseqüências.
e cintilantes mimos c o m que eram agraciados, quando a sorte lhes era
O s autores daquelas acusações foram, acima de tudo, os próprios favorável; a ausência de garantias no tocante à vida material, de tal
humanistas. D e todos aqueles que alguma vez constituíram uma casta, modo que luxo e miséria alternavam-se rapidamente, dependendo do
foram eles os menos dotados de um espírito de coesão, ou do respeito humor dos soberanos e da maldade dos adversários; e, finalmente, a
por este, onde ele pretendeu manifestar-se. T ã o logo principiaram a desvirtuada influência da Antigüidade. Esta minava os princípios m o -
elevar-se uns acima dos outros, tornaram-se-lhes indiferentes os meios rais que os norteavam, sem, contudo, transmitir-lhes os seus p r ó p r i o s ,
e, m e s m o em questões religiosas, era essencialmente seu lado cético e
(*) Cumpre não esquecer que estes foram impressos bem cedo com escolios antigos negativo que atuava sobre eles, uma vez que a aceitação da crença
e comentários novos. positiva nos deuses estava, é claro, fora de cogitação. J u s t a m e n t e pelo

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fato de c o n c e b e r e m a Antigüidade de f o r m a dogmática — ou seji, c a capacidade de adaptar-se a um turbilhão de situações e ocupações
c o m o m o d e l o para t o d o o pensamento e ação — , a influência desta ti- as mais diversas. Mais ainda, necessitava do prazer desregrado para
nha de ser-lhes, sob esse aspecto, desvantajosa. Q u e tenha, entretanto, anestesiar-se, e da indiferença diante da moral vigente, já que, de qual-
havido um século que, com absoluta parcialidade, idolatrou o mundo quer forma, reputavam-lhe capaz do pior. Sem a altivez, tais caracte-
antigo e seus rebentos, tal culpa já não pode ser imputada a indivíduos, res são totalmente inconcebíveis: precisam dela, já para que possam
mas a um mais elevado destino histórico. T o d a a cultura dos tempos permanecer à tona, e a alternância do ódio e da idolatria só faz f o r t a -
decorridos desde então e dos futuros repousa no fato de que assim te- lecê-la ainda mais. São eles os exemplos mais notáveis e as vítimas da
nha sido, e de que, outrora, tal se tenha dado de f o r m a tão absoluta- subjetividade liberta.
mente parcial, tendo-se preterido todos os demais objetivos da exis- O s ataques e os retratos satíricos, c o m o observamos, têm início
tência em favor deste. logo cedo, uma vez que, é claro, à individualidade desenvolvida, a
A carreira dos humanistas era, em geral, de tal sorte que só as na- cada tipo de celebridade, cabia uma determinada cota de escárnio, fa-
turezas moralmente mais fortes eram capazes de enfrentá-la sem prejuízo zendo as vezes de açoite. Para tanto, o material mais fértil era f o r n e -
para si próprias. O primeiro perigo provinha, p o r vezes, dos pais, que cido pelo próprio indivíduo em questão: bastava que dele se fizesse
educavam o filho, amiúde de um desenvolvimento extraordinariamen- uso. Ainda no século XV, Battista Mantovano, ao enumerar o s sete
te precoce, para ser uma criança-prodígio, visando sua futura posição monstros, classifica os humanistas, juntamente c o m muitos o u t r o s ,
naquela casta à época suprema. Mas crianças-prodígios, de um modo sob a rubrica S u p e r b i a . Descreve c o m o eles, arrogando-se a c o n d i ç ã o
geral, não logram ultrapassar um determinado estágio, ou precisam lu- de filhos de A p o l o , caminham ostentando uma falsa gravidade, c o m ar
tar, enfrentando as mais duras provas, para dar prosseguimento a seu rabugento e malicioso, comparável ao do grou que pica seu alimento,
desenvolvimento e afirmar seu valor. Também para o jovem ambicioso, ora contemplando a própria sombra, ora mergulhados em consumptiva
a glória e o brilho dos humanistas constituíam uma perigosa tentação: preocupação acerca do louvor que almejam. Mas é somente o século x v i
parecia-lhe que tampouco ele podia, " e m função de seu inato espírito que os levará formalmente ao banco dos réus. Além de A r i o s t o , de-
elevado, dar atenção às coisas ordinárias e vis" [Filippo Villani, Le vite monstra-o, principalmente, Gyraldus, o historiador literário dos h u m a -
d'uomini illustri fiorentiní]. Precipita-se, assim, numa vida extenuante nistas cujo tratado foi escrito ainda sob Leão X, mas provavelmente re-
e cheia de vicissitudes, na qual se sucedem confusamente exaustivos visado p o r volta de 1540. Dele, em vigorosa profusão, fluem exemplos
estudos, o trabalho c o m o preceptor, secretário e catedrático, o serviço antigos e modernos de advertências acerca da insegurança e da vida mi-
aos príncipes, inimizades e perigos mortais, a admiração entusiástica e serável dos literatos, entremeados de pesadas acusações gerais. Estas
o cobrir-se de escárnio, a opulência e a miséria. O mais raso dilentan- últimas denunciam, principalmente, a paixão exagerada, a vaidade, a
tismo pode, por vezes, suplantar o mais profundo saber. O mal maior, obstinação, a auto-idolatria, a vida privada dissoluta, imoralidades de
contudo, era o fato de que uma residência fixa era quase incompatível toda a sorte, heresia, ateísmo e mais: o bem falar desprovido d e qual-
com essa casta, na medida em que seus membros viam-se constante- quer convicção, a influência perniciosa sobre o governo, a linguagem
mente obrigados a mudar de domicílio ou imbuídos de uma disposição pedantesca, a ingratidão para com os mestres, a rastejante b a j u l a ç ã o
que os impedia de sentir-se bem p o r muito tempo onde quer que fos- dos príncipes — que primeiro fisgam os literatos para, depois, deixá-los
se. P o r um lado, enfadavam-se de seus concidadãos e emaranhavam-se morrer de fome — e assim por diante. A conclusão compõe-se d e uma
no redemoinho das inimizades; p o r outro, aqueles mesmos concida- observação s o b r e uma idade de o u r o , referindo-se a uma é p o c a em
dãos exigiam constantemente o novo. E m b o r a muito dessa situação que a ciência ainda não existia. Dessas acusações, uma t o r n o t i - s e
nos lembre a dos sofistas gregos à época imperial, c o m o a descreve Fi- logo a mais perigosa: a de heresia. O p r ó p r i o Gyraldus é, m a i s tar-
lóstrato, a destes últimos era-lhes mais favorável, visto que, em sua de, p o r ocasião da reimpressão de uma sua obra da j u v e n t u d e total-
maioria, eles ou possuíam ou prescindiam mais facilmente de riquezas mente inofensiva, obrigado a agarrar-se ao manto p r o t e t o r d o du-
e, sobretudo, levavam uma vida mais amena, pois não eram tanto eru- que E r c o l e II, de Ferrara, quando têm já a palavra aqueles que julga-
ditos quanto virtuoses no uso da palavra. O humanista do Renascimen- vam que teria sido melhor empregar o tempo em assuntos c r i s t ã o s
to, pelo contrário, tinha de carregar consigo uma grande erudição do que em pesquisas mitológicas. Gyraldus argumenta, e n t ã o , que

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estas últimas, dada a natureza dos tempos, constituíam, ao contrá- pelo menos, dos mais profundos e verdadeiros pensamentos c o r r e n -
rio, quase o único o b j e t o inocente — isto é, neutro — do estudo dos tes à época a respeito do assunto. Para ele, a imagem do erudito feliz
eruditos. revela-se na figura de fra U r b a n o Valeriano, que durante muito tem-
Se, porém, a história cultural tem o dever de procurar manifesta- po foi professor de grego em Veneza, visitou a Grécia e o O r i e n t e , já
ções nas quais, ao lado da acusação, prevalece a simpatia humana, en- em idade avançada percorreu este ou aquele país sem jamais montar
tão nenhuma fonte é comparável à obra de Pierio Valeriano Sobre o um animal, nunca teve um tostão para si, recusou todas as honras e
infortúnio dos eruditos [De infelicitate literatorum], já por diversas distinções e, depois de uma alegre velhice, morreu aos 84 anos, sem
vezes citada aqui. Pierio escreveu-a sob a influência sombria da de- jamais ter estado doente — à exceção de uma queda do alto de uma
vastação de R o m a , a qual — assim lhe parece — , com a desgraça que escada. O que o diferencia dos humanistas? Estes têm uma vontade
lançou também sobre os eruditos, deu um fecho à obra de um desti- própria maior, uma subjetividade mais liberta do que a que podem
no furioso e cruel que já havia tempos pesava sobre eles. O autor é empregar para serem felizes; o frade mendicante, em contrapartida,
levado a essa afirmação por um sentimento simples e, em essência, vivendo num monastério desde a infância, jamais desfrutou ao bel-
correto; não invoca c o m alarde um demônio particular a perseguir as prazer da comida ou do sono e, por isso, encarava a privação como
pessoas de gênio por causa de sua genialidade, mas constata o que privação e nada mais; por força desse hábito, levou, em meio a todas
aconteceu, amiúde conferindo ao mero e desafortunado acaso um pa- as dificuldades, a mais tranqüila vida interior, impressionando seus
pel decisivo: não deseja escrever uma tragédia, tampouco atribuir a ouvintes mais por isso do que por seus conhecimentos de grego. Ven-
conflitos de ordem superior a causa de tudo, razão pela qual nos apre- do-o, estes se acreditavam convencidos de que depende do próprio
senta também cenas do cotidiano. P o r meio delas, ficamos conhe- homem lamentar-se ou consolar-se em face do infortúnio. " E m meio
cendo pessoas que, em tempos agitados, perdem primeiro seus ren- à miséria e à dificuldade, ele era feliz porque queria sê-lo, p o r q u e não
dimentos e, depois, suas posições; pessoas que, entre dois empregos, era mal-acostumado, fantasioso, inconstante ou difícil de contentar,
acabam sem nenhum; mesquinhos misantropos que carregam seu di- mas sempre se deu por satisfeito com pouco ou nada." Se ouvíssemos
nheiro sempre consigo, costurado à roupa, e que, uma vez dele rou- o próprio Contarini, o quadro seria, talvez, acrescido de um motivo
bados, morrem loucos; e pessoas que aceitam benefícios da Igreja e religioso; mas o que nos fala o filósofo prático, calçando sandálias, é
definham em melancólica saudade da liberdade perdida. Lemos, ain- já expressivo e significativo o bastante. Caráter semelhante, mas num
da, o lamento do autor pela morte prematura de tantos, pela febre ou outro cenário, revela Fabio Calvi, de Ravena, o exegeta de H i p ó c r a -
pela peste, tendo seus escritos queimados juntamente com a cama e as tes. E m Roma, em idade já bastante avançada, ele vive apenas de er-
roupas; outros vivem e sofrem sob ameaças de morte da parte dos co- vas — " c o m o , outrora, os pitagóricos" — e mora num pardieiro não
legas; um ou outro é m o r t o por um criado c o b i ç o s o , ou apanhado por muito superior ao tonel de Diógenes. D a pensão que lhe paga o papa
malfeitores em viagem de volta à casa, morrendo de sede em algum Leão X, toma para si apenas o estritamente necessário, dando a outros
cárcere por não ter dinheiro para pagar o resgate. Alguns são consu- o restante. N ã o conservou a saúde como fra Urbano, e tampouco
midos por uma secreta mágoa, por uma ofensa ou injustiça sofrida; terá, c o m o este, morrido com um sorriso nos lábios, pois quando da
um veneziano morre de desgosto porque seu filhinho, uma criança- devastação de R o m a , já quase aos noventa anos, os espanhóis arrasta-
prodígio, morrera, sendo logo seguido pela mãe e pelo irmão desta, ram-no consigo com o propósito de pedir um resgate, e ele veio a
como se a criança os tivesse levado a todos consigo. U m número re- morrer de fome em um hospital. Seu nome, porém, adentrou os do-
lativamente grande, sobretudo florentinos, comete o suicídio [cf. mínios da imortalidade pelas mãos de Rafael, que amava o ancião
Dante, " I n f e r n o " , XIII]; outros são mortos pela justiça secreta de um como a um pai e o reverenciava como a um mestre, porque a ele re-
tirano. Q u e m , afinal, é feliz? E de que maneira? Talvez pelo completo corria em busca de conselho em todos os assuntos. Dentre estes, tal-
embotamento dos sentimentos perante uma tal desgraça? U m dos inter- vez predominasse o da restauração da R o m a antiga, talvez outros, de
locutores do diálogo, forma de que Pierio reveste sua exposição, tem conteúdo bem mais elevado. Q u e m pode afirmar quanto de F a b i o es-
resposta para tais perguntas. Trata-se do magnífico Gasparo Contarini, teve presente na concepção da Escola de Atenas e de outras o b r a s al-
e já à menção desse nome é lícito que esperemos ser informados acerca, tamente importantes de Rafael?

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Concluiríamos de b o m grado o presente tópico esboçando o pelos mais nobres discípulos. Quarenta bispos e todos os enviados es-
quadro gracioso e reconciliador de uma vida c o m o a de Pompônio trangeiros assistiram às exéquias em Aracoeli.
Leto, por exemplo, dispuséssemos nós pelo menos de algo mais a seu L e t o introduzira e conduzira as encenações de peças antigas em
respeito do que a carta de seu discípulo Sabellico, na qual a figura de Roma, principalmente as de Plauto. Além disso, celebrava anualmente
L e t o é, decerto deliberadamente, revestida de uma certa coloração an- o dia da fundação da cidade com uma festa na qual seus amigos e dis-
tiga. N ã o obstante, é possível abstrairmos dali alguns de seus traços. cípulos proferiam discursos e recitavam poemas. Desses dois eventos
L e t o era um bastardo da casa dos Sanseverino de Nápoles, príncipes centrais originou-se — e seguiu existindo, posteriormente — o que se
de Salerno, aos quais não quis reconhecer, respondendo-lhes ao con- denominou a Academia Romana. Esta era tão-somente uma associação
vite para viver entre eles c o m as célebres linhas: " P o m p o n i u s Laetus livre de indivíduos, não vinculada a qualquer instituição fixa. Além das
cognatis et propinquis suis salutem. Q u o d petitis fieri non potest. Va- já mencionadas ocasiões, ela se reunia ainda quando convidada p o r al-
lete" [ P o m p ô n i o L e t o saúda seus parentes e consangiiíneos. O que pe- gum patrono ou quando da celebração da memória de algum m e m b r o
distes não pode ser feito. Estai b e m ] . Figura p o u c o vistosa, de olhos já falecido, c o m o Platina, por exemplo. Costumeiramente, então, um
pequenos e vivos e trajando-se de maneira singular, ele viveu as últi- prelado a ela pertencente celebrava a missa pela manhã; a seguir, P o m -
mas décadas do século XV c o m o professor na Universidade de Roma, pônio, digamos, subia ao púlpito e proferia o discurso apropriado, ao
m o r a n d o ora em sua casinha c o m jardim no m o n t e Esquilino ora em que um outro o sucedia para recitar dísticos. O banquete obrigatório,
sua vinha no Quirinal. N a primeira, criava seus patos e outras aves, na com disputas e recitações, encerrava as festividades, fossem elas tristes
última, cultivava a terra, seguindo à risca os preceitos de Cato, Varro ou alegres. O s acadêmicos — c o m o o próprio Platina, por exemplo —
e C o l u m e l l a . N o s dias de festa, dedicava-se à caça aos pássaros e à pes- adquiriram logo cedo a fama de gastrónomos. Outras vezes, alguns
ca, p o r certo t a m b é m a um festim à sombra, j u n t o a uma fonte ou às convidados representavam farsas, ao estilo das atelanas. E m sua forma
margens do T i b r e . R i q u e z a e boa vida, desprezava. Inveja e maledicên- original, c o m o uma associação livre de tamanho bastante variável, essa
cia não faziam parte dele, e t a m p o u c o as tolerava em sua presença. academia durou até a devastação de R o m a , comprazendo-se da hospi-
Mas reservava-se considerável liberdade em sua oposição à hierarquia, talidade de um Angelus Coloccius ou de um Johannes Corycius, entre
sendo tido, aliás, p o r isso m e s m o — a não ser em seus últimos anos outros. Impossível determinar com exatidão que valor deve-se atribuir
de vida — , c o m o u m h o m e m que desprezava totalmente a religião. a ela, c o m o a qualquer sociedade do gênero, na vida intelectual da
Preso às malhas da perseguição aos humanistas empreendida pelo nação. Seja c o m o for, até mesmo um homem c o m o Sadoleto conta-a
papa Paulo II, L e t o fora entregue a este p o r Veneza, não se deixando, entre as melhores recordações de sua juventude. U m bom número de
por meio algum, levar a confissões indignas. A partir de então, papas academias semelhantes surgiu e desapareceu em diversas cidades, con-
e prelados passaram a convidá-lo para visitas e a apoiá-lo, e quando, forme o permitiram o número e a importância dos humanistas nelas
por ocasião dos distúrbios sob Sisto IV, sua casa foi saqueada, coleta- domiciliados e o patrocínio dos ricos e grandes. Nasceram, assim, a
ram para ele mais do que tinha perdido. C o m o professor, era cons- Academia de Nápoles — reunida em torno de Gioviano Pontano, uma
ciencioso; antes ainda de o dia raiar, v i a m - n o descer o Esquilino com parte dela tendo se transferido para Lecce — , a de Pordenone, que
sua lanterna e, ao chegar ao auditório, encontrava-o sempre abarrotado. compôs a corte do comandante Alviano, e outras mais. D a de Ludovi-
C o m o gaguejasse ao conversar, falava c o m cuidado na cátedra, mas co, o M o u r o , e de seu significado singular nas relações do príncipe, já
ainda assim c o m beleza e uniformidade. M e s m o seus poucos escritos se falou anteriormente.
demonstram esmero na redação. N i n g u é m tratava os textos antigos
P o r volta da metade do século XVI, essas associações parecem ter
com o cuidado e a sobriedade que ele lhes dedicava, assim c o m o de-
passado por uma transformação completa. O s humanistas, também em
monstrava também verdadeiro respeito pelos demais despojos da An-
outras esferas desalojados de sua posição de comando e alvo da suspei-
tigüidade, diante dos quais se extasiava ou r o m p i a em lágrimas. Como
ta da nascente Contra-Reforma, perdem a direção das academias, e tam-
largasse seus próprios estudos sempre que podia ser de ajuda a outros,
bém aqui a poesia italiana toma o lugar da latina. Logo, todas as cidades
era muito querido, e, quando de sua m o r t e , Alexandre vi enviou
de alguma importância têm sua academia, com os nomes mais bizarros
até mesmo seus cortesãos para que acompanhassem o corpo, carregado
possíveis e com recursos próprios, compostos de contribuições e lega-

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dos. Além das recitações de versos, essas academias herdaram de suas
antecessoras latinas o banquete periódico e a encenação de dramas, em
parte pelos próprios acadêmicos, em parte por jovens sob seus cuidados
— e, não muito tempo depois, p o r atores pagos. O destino do teatro ita-
liano e, posteriormente, também o da ópera esteve muito tempo nas
mãos dessas associações.

Parte 4
O DESCOBRIMENTO DO
MUNDO E DO HOMEM
I**

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