Caderno Urdume 2
Caderno Urdume 2
Caderno Urdume 2
urdume
Artes manuais
têxteis e moda
brasileira
no século XIX
s e lo
Urdume
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O caderno
Urdume
é um programa do Instituto Urdume,
que tem por objetivo partilhar, com
aqueles que nos acompanham, ensaios,
esboços e referências de pesquisas que
temos realizado e têm nos acompanhado
nos últimos dois anos.
Boa Leitura!
2
E
m “Um feminismo decolonial”1, a especialista em estudos pós-
coloniais, Fraçoise Vergès afirma que, ano após ano, mulheres
de países em desenvolvimento são depositárias de projetos cujos
discursos giram em torno das ideias de autonomia, empodera-
mento e gestão de seus próprios negócios. Geralmente projetos
que envolvem a criação e a manutenção de ateliês e cooperati-
vas de produtos locais como tecelagem, artesanato e costura, e que têm por intuito
valorizar estas produções.
Outra questão é o tipo de vocabulário próprio que este modelo de projeto impõe,
e que colabora com a manutenção da feminização da pobreza. É como se, para
além da perda de suas origens e ancestralidades imposta pelas políticas coloniais,
estas mulheres precisassem adotar o discurso do desempenho individual, que “as
condenam a limpar e reparar infinitamente os cacos das vidas estilhaçadas de suas
comunidades, sem atribuir responsabilidades aos verdadeiros responsáveis”. Dis-
curso e ações despolitizantes, calcadas em valores europeus, que não reservam um
tempo para que estas mulheres compreendam quem as despedaçou e como essas
sociedades foram deterioradas.
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O artesanato, em especial o têxtil, assim como as atividades laborais de
limpeza, cuidado e manutenção da vida, seguem sendo utilizados como
instrumentos de submissão, culpabilização e lógica serviçal.
Portanto, a fim de honrar as mulheres de ontem, hoje e sempre - enquanto
tecer, limpar e cuidar for a única alternativa para o sustento de mulheres
pobres - cabe a nós revisitar a história a partir de novas costuras. Compre-
ender e valorizar os trabalhos manuais têxteis como afazeres domésticos,
escravagistas, passatempos do lar, aprisionamento feminino, mas também
como arte, expressão, liberdade, resistência, ciência e cultura.
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portanto, era preciso catequizá-los, coloniza-los, escravizá-los. Por último,
após a Segunda Guerra Mundial, estabeleceu-se os Direitos Humanos que,
ainda assim, seguem sendo infringidos como lei. Formulados a partir de um
princípio europeu-universalizante, pouco levam em consideração as caracte-
rísticas e costumes de cada povo.
A capitalização do mundo
O século XIX foi o grande momento de afirmação e expansão do liberalismo
e das consequências da revolução industrial, que impunham uma nova forma
de produção e comércio em todo o globo. Marcado pela ascensão do Impé-
rio Britânico, foi também palco da Revolta de São Domingos, no Haiti, que
culminou com a independência e fim da escravização no território, em 1804,
gerando um movimento abolicionista que iria se expandir por todos os países
escravagistas, chegando ao Brasil oficialmente em1888, último país indepen-
dente da América Latina e do Ocidente a abolir completamente a escravidão.
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doméstica. Na mesma época, na Europa nasciam os grandes magazines, os
estilistas femininos e Paris ficou conhecida como capital da moda. Extrema-
mente detalhista, a moda oitocentista foi o reflexo das novas possibilidades
disponibilizadas pela indústria, em especial as manufaturas de lã britânica
e o beneficiamento do algodão norte e sul-americano (Plantations).
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mundial - consideram qualquer manifestação estética-corporal distinta do mar-
co evolucionista europeu como selvagem ou primitivista - no Brasil, esta era a
realidade de uma parcela ínfima da população.
A moda burguesa
Ainda bastante atual, na obra, Gilda traz uma abordagem precisa sobre o uso
da moda na distinção dos gêneros e no florescer do capitalismo, apontando
como, no período, os homens passam a se vestir de forma cada vez mais
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sóbria, enquanto, as mulheres ficam responsáveis por ostentar a riqueza da
família. “No século XIX, enquanto o traje feminino se enriquece de rendas,
bordados e fitas, a indumentária masculina se despoja até o asceticismo.” 4
5 SOUZA, Gilda de Mello e.O Espírito das roupas – a moda no século dezenove. São Paulo, Compan-
hia das Letras, 1996, p. 25.
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Anúncio de mulher
escravizada com
dotes de costura.
Fonte: O escravo
nos anúncios de
jornais brasileiros
do século XIX,
Gilberto Freyre
Em 1870, significava 71% das mulheres na cidade do Rio Janeiro, das quais
34 mil, trabalhavam como mucamas, pajens, amas-de-leite, cozinheiras e
copeiras na cidade e, mesmo assim, não deixavam de fazer a sua moda 6.
Aliás, segundo a historiadora Julia Vidal 7, “podemos creditar a primeira
criação de indumentária genuinamente brasileira à roupa das baianas ou
moda crioula”. Híbrida, é uma mistura da tecelagem africana, com bor-
dado inglês e saia de referência francesa, criada por mulheres que eram
conhecidas como negras de ganho, associadas a vendas e ao mercado e
que, quando escravizadas, tinham alto valor pelo retorno financeiro que
geravam para os seus ‘senhores’.
6 MONTELEONE, Joana de Moraes. Costureiras, mucamas, lavadeiras e vendedoras: O trabalho feminino no século
XIX e o cuidado com as roupas (Rio de Janeiro, 1850-1920). Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 27, n. 1, e48913, 2019
7 VIDALl, J. A história que a Moda não conta (curso online/2021)
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Se por um lado as manifestações das artes indígenas e negras foram des-
consideradas em termos de valor estético e cultural, não foram como mão
de obra para a produção de objetos relevantes para a colonização. Segundo
Vanessa Peixoto Cavalcante 8, nossos colonizadores ignoraram e empobre-
ceram as linguagens e saberes já existentes e provenientes dos povos nativos
e escravizados no Brasil, ao mesmo tempo que serviram destes povos para
executar, transmitir e transformar técnicas tradicionais europeias.”
Artes manuais
têxteis no Brasil
A história das artes manuais têxteis no Brasil é feita por quem, há séculos, desde
a invasão e colonização dos portugueses, vem lutado pelo direito a humanidade
- em maior ou menor proporção - negros, indígenas e mulheres. Aqueles cuja
existência vêm sendo legitimada a base de muita luta e cujas mãos foram as
responsáveis por embalar, cuidar, cultivar e tecer, literalmente, a vida do país.
Dito isto, é preciso lembrar que essa história é marcada também por ou-
tras distinções, como a separação entre o artesanato, que era considerado
como ofício, tal qual a fiação e a tecelagem; os passatempos femininos, as-
sim como o tricô, o bordado e o crochê; e os considerados serviços, como
costura, reparos e alfaiataria.
8 CAVALCANTI, Vanessa Peixoto. Artesanato têxtil e design: um estudo sobre alterações na forma do objeti-
vo artesanal têxtil brasileiro. USP, São Paulo, 2016.
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O artesanato
como ofício
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Pano da costa
retratado em:
Travelling Sales-
women In Rio De
Janeiro In, 1827
por Jean Baptiste
Debret (1768-
1848, France)
pano da costa
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Artes têxteis domésticas
Era nesses espaços que as mulheres faziam bordados, tricô e renda de agulha,
trabalhos manuais que integravam o ensino em colégios religiosos como parte
da “formação artístico-doméstica da mulher”, desde meados do século XIX.
9 MARTINS, Larissa Tavares. Quarto de Costura: Espaço Feminino no século XIX e XX.
Solar da Baronesa - Pelotas/RS
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das consequências do viés utilitário pelo qual os colonos avaliaram os saberes
dos índios e dos negros; por outro lado, os povos escravizados participaram
da execução, transformação e transmissão de técnicas tradicionais europeias
e nativas, contribuindo amplamente para a composição da cultura” 10
Foi a partir deste contexto que a renda, artigo de luxo na europa usado
como adorno feminino e masculino, aculturou-se no país a partir de carac-
terísticas próprias e difundiu-se mais que todos os trabalhos manuais entre
mulheres caiçaras, ribeirinhas e camponesas nordestinas, ganhando novas
interpretações e formas únicas como a renda de bilro ou o bordado filé.
De modo geral, os núcleos de rendeiras se formaram à beira do mar, ou na
proximidade dos rios.
10 CAVALCANTI, Vanessa Peixoto. Artesanato têxtil e design: um estudo sobre alterações na forma do obje-
tivo artesanal têxtil brasileiro. USP, São Paulo, 2016.
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e para os seus, no caso de mulheres proletárias ou escravizadas. Se tratava da
única alternativa de trabalho também para mulheres vindas do êxodo rural,
imigrantes estrangeiras e negras livres. No Rio de Janeiro, em especial, ⅔ delas
estavam empregadas no serviço doméstico na corte imperial, trabalho feito
sob as piores condições possíveis.
.
a concorrência com os homens, e era facilitado o trabalho simultâneo ao
cuidado dos filhos, da casa e do marido
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A história das artes
manuais têxteis
no Brasil é feita por
quem, há séculos,
desde a invasão
e colonização dos
portugueses, vem
lutado pelo direito a
humanidade - em
maior ou menor
proporção - negros,
indígenas e mulheres.
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Realização
INSTITUTO
Urdume
Redação: Estefania Lima
Apoio
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