Palestra Sobre Literatura de Cordel
Palestra Sobre Literatura de Cordel
Palestra Sobre Literatura de Cordel
A LITERATURA DE CORDEL
Prof. Dr. Stélio Torquato Lima – UFC
APRESENTAÇÃO
QUEM SOU?
• Stélio Torquato Lima
• Doutor em Literatura pela Universidade Federal da
Paraíba – UFPB
• Professor do Departamento de Literatura da
Universidade Federal do Ceará – UFC
• Professor da Pós-Graduação em Letras da UFC
• Coordenador do Grupo de Estudos Cordelista
Arievaldo Viana – GECAV
• Cordelista, com mais de 300 obras publicadas
ALGUMAS OBRAS
O QUE É CORDEL?
O CORDEL...
• É um gênero poético, assim como o soneto, a trova, a
epopeia, etc.;
• Não se confunde, portanto, com o folheto (o livrinho):
folheto é o suporte, o meio, enquanto cordel é o
conteúdo (a poesia), que pode ser apresentado ao
público através de outros meios (um livro, na Internet,
etc.);
• Tem mais de 150 anos no Brasil, considerando que o
primeiro cordel com data conhecida é de 1865;
O CORDEL...
• Já no século XV, antes de o Brasil ser visitado por
Cabral, havia na Alemanha textos que lembravam o
nosso cordel;
• Embora tenha vindo da Europa, foi completamente
transformado a partir do Nordeste brasileiro;
• Tem esse nome devido a ter sido, na Europa, exposto
em cordões (barbantes) para a venda;
O CORDEL...
• Em geral, é narrativo, ou seja, conta uma
história. Existem, no entanto, tanto cordéis
argumentativos (em que se defende uma ideia)
quanto descritivos (em que se traz pormenores
físicos ou psicológicos de alguém ou de algo);
• Traz uma visão de mundo popular: as histórias
são contadas a partir da visão dos menos
favorecidos economicamente. Daí que, em geral,
os “vilões” são pessoas que representam grupos
que sempre oprimiram o povo (Exemplo: O auto
da Compadecida, de Ariano Suassuna) → uma
“revanche poética”? (Martine Kunz);
• No extremo oposto, muitas vezes, os heróis do
cordel são pessoas consideradas vilãs pelas
elites, como o cangaceiro Lampião, o padre
Cícero, o profeta Antônio Conselheiro, etc.;
O CORDEL...
• Existem vários tipos de cordel, como o
ABC, o cordel de circunstância, o
cordel de fantasia, etc.;
• Entre as várias características do
cordel, está sua condição de obra
exemplar: como a fábula, o apólogo, o
sermão, etc., o cordel pune o mal e
recompensa o bem;
• Entre as figuras mais presentes no
cordel, estão o cangaceiro Lampião, o
padre Cícero, O Diabo, João Grilo, seu
Lunga, etc.
DEFINIÇÃO E ANTI-DEFINIÇÃO DO
CORDEL
• Uma definição (pelos pesquisadores
Veríssimo de Melo e Raymond
Cantel): Cordel é um tipo de narrativa
popular em versos impressa.
• Uma anti-definição: Cordel é uma
forma de subliteratura popular Veríssimo de Melo
escrita com rimas pobres por autores
sertanejos semianalfabetos, impressa
em papel rústico com capas
xilogravadas e expostas nas feiras
para a venda em barbantes.
Raymond Cantel
QUEM É O “PAI” DO CORDEL?
• Embora não tenha sido o primeiro a compor cordéis, o
paraibano Leandro Gomes de Barros (1865-1918) foi o
primeiro a viver do cordel, tendo escrito cerca de mil
poemas, distribuídos em cerca de seiscentos folhetos.
• Leandro teve um papel fundamental para tornar o cordel
conhecido em todo o Brasil e para a definição das regras do
gênero. Por isso, é merecidamente considerado o “pai” do
cordel.
CORDEL X POESIA MATUTA
• Embora geralmente se confunda o cordel
com a poesia matuta, os dois gêneros,
embora pertencentes à poesia popular,
apresentam muitas diferenças;
• Ao contrário do cordel, a linguagem da
poesia matuta, gênero que tem em
Patativa do Assaré sua maior expressão,
tenta imitar a fala do sertanejo, com
termos como “muié”, “cantá”, etc.;
• Além disso, a poesia matuta apresenta
tipos de estrofes que são estranhas ao
cordel. A posição das rimas, da mesma
forma, muitas vezes é diferente das
utilizadas no cordel.
UM EXEMPLO DE POESIA MATUTA:
“INGÉM DE FERRO” (TRECHO)
Ingém de ferro, você Do bom tempo que se foi Ingém de pau! Coitadinho!
Com seu amigo motô, Faz mangofa, zomba, escarra. Ficou no triste abandono
Sabe bem desenvorvê, Foi quem expulsou os boi E você, você sozinho
É munto trabaiadô. Que puxava na manjarra. Hoje é quem tá sendo dono
Arguém já me disse até Todo soberbo e sisudo, Das cana do meu país.
E afirmô que você é Qué governá e mandá tudo, Derne o momento infeliz
Progressista em alto grau; É só quem qué sê ingém. Que o ingém de pau levou fim,
Tem força e tem energia, Você pode tê grandeza Eu sinto sem piedade
Mas não tem a poesia E pode fazê riqueza, Três moenda de sodade
Que tem o ingém de pau. Mas eu não lhe quero bem. Ringindo dentro de mim.
O ingém de pau quando canta, Mode esta suberba sua Nunca mais tive prazê
Tudo lhe presta atenção, Ninguém vê mais nas muage, Com muage neste mundo
Parece que as coisa santa Nas bela noite de lua, E o causadô de eu vivê
Chega em nosso coração. Aquela camaradage Como um pobre vagabundo,
Mas você, ingém de ferro, De todos trabaiadô. Pezaroso, triste e pérro,
Com este horroroso berro, Um falando em seu amô Foi você, ingém de ferro,
É como quem qué brigá, Outro dizendo uma rima, Seu safado, seu ladrão!
Com a sua grande afronta Na mais doce brincadêra, Você me dexô à toa,
Você tá tomando conta Deitado na bagacêra, Robou as coisinhas boa
Dos nossos canaviá. Tudo de papo pra cima. Que eu tinha em meu coração!
(...)
ELEMENTOS ESTRUTURAIS DO CORDEL
Os cinco elementos básicos de composição do
cordel são: o verso, a estrofe, a rima, o metro e a
oração. Vejamos cada um deles separadamente.
I – O VERSO: denomina-se assim cada linha que compõe o
poema, também conhecido como “pé”. Daí a expressão “pé
quebrado”, que designa o verso mal metrificado.
Exemplo: uma estrofe com seis versos:
1° verso: Coco-Verde e Melancia
2° verso: É uma história que alguém
3° verso: Quer sabê-la mas não sabe
4° verso: O começo de onde vem
5° verso: Nem sabe os anos que faz
6° verso: Pois passam trinta de cem
(Cordel “Coco Verde e Melancia”, de José Camelo de Melo Resende)
II – A ESTROFE (ou Estância): é um bloco de versos, o qual é
separado de outra estrofe por um espaço em branco. As estrofes
predominantes no cordel são as as quadras, as sextilhas, as setilhas
e as décimas.
a) Sextilhas: é assim chamada a estrofe ou estância de seis
versos. Joseph M. Luyten, na obra O que é literatura de cordel,
informa que 80% dos cordéis vêm em forma de sextilha.
Nesse tipo de estrofe, normalmente há rima apenas nos
versos pares: XAXAXA, em que “X” designa o verso branco (linha
órfã), ou seja, que não rima com nenhum outro da estrofe.
(segundo, quarto e sexto versos).
Exemplo:
X – Quem não levar um cordel
A – De jeito nenhum me ataca,
X – Também não vou condenar
A – Sua teoria fraca,
X – Mas vai ficar com o rabo
A – Igualmente o da macaca.
(Cordel “História de Jesus, o Ferreiro e a Macaca”,
de José Costa Leite)
b) Quadra: Estrofe de quatro versos. Foi utilizada
principalmente nos inícios do cordel, tendo seu uso
decaído com o tempo.
Nas quadras, há a obrigatoriedade da rima em pelo
menos dois versos (o segundo com o quarto), podendo o
cordelista optar pela rima em todos os versos (esquema
ABAB ou ABBA), passando o poema a ser denominado
TROVA.
Exemplo:
X – A Luíza do Zé Braz,
A – Neta do Zé do Mogêro,
X – Era a moça mais bunita [sic]
A – Lá da Serra do Perêro.
Lígia VASSALO
O sertão medieval: origens europeias do teatro de Ariano
Suassuna. Rio de Janeiro: Francisco Alves. (1993, p. 63)
“No Nordeste, por condições sociais e culturais peculiares, foi
possível o surgimento da literatura de cordel, de maneira como
se tornou hoje em dia característica da própria fisionomia
cultural da região. Fatores de formação social contribuíram
para isso; a organização da sociedade patriarcal, o surgimento
de manifestações messiânicas, o aparecimento de bandos de
cangaceiros ou bandidos, as secas periódicas provocando
desequilíbrios econômicos e sociais, as lutas de família deram
oportunidade, entre outros fatores, para que se verificasse o
surgimento de grupos de cantadores como instrumento do
pensamento coletivo, das manifestações da memória popular.”
GILBERTO FREYRE
Casa-grande & senzala: formação da família brasileira
sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global.
(2004, p. 114)
ANÁLISE DE TRECHOS DE CORDÉIS
“MISÓGINOS”
A literatura de cordel, surgindo no final do século XIX,
foi fortemente influenciada por essa visão
equivocada em relação às mulheres.
A misoginia, por exemplo, é uma marca da produção
de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), tido por
muitos pesquisadores como o pai da literatura de
cordel.
Vejamos a seguir três exemplos
em Leandro:
CORDEL 01: “O INFERNO DA VIDA”
A mulher é uma chaga
Que o homem tem sobre o peito
Não há remédio que cure
Só a morte dá um jeito,
É um asmático vexado
Que traz o homem atacado
Como a tísica pulmonar
É um aneurisma forte
Que só por meio da morte
Tem-se alívio desse mal
(BARROS, on-line)
CORDEL 02: “O PESO DE UMA MULHER”(1915)
Não há fardo mais pesado
Do que seja uma mulher
E nem há homem que tire
As manhas que ela tiver
O que pensar ao contrário
Pode dizer que está vário
E desesperado da fé,
Caiu na rede enganado
Um mês depois de casado
Ele sabe o que ela é.
(BARROS, on-line)
CORDEL 03: “AS CONSEQUÊNCIAS DO CASAMENTO” (1910)
Não há loucura maior Ela se finge inocente
Do que o homem se casar! Para poder iludir,
O peso de uma mulher Arma o laço, bota a isca,
É duro de se aguentar,
Só um guindaste suspende, O homem tem que cair,
Só burro pode puxar. Ela acocha o nó e diz:
- Agora posso dormir.
Por forte que seja o homem, (BARROS, on-line)
Casando perde a façanha,
Mulher é como bilhar,
Tudo perde e ele ganha,
Porque a mão da mulher
Em vez de alisar arranha.
O CORDEL “A MULHER DE ANTIGAMENTE E A
MULHER DE HOJE EM DIA” (MANOEL MONTEIRO)
Deus após formar o mundo Mas no começo do mundo
Achou que era preciso Tudo era diferente
Povoá-lo, fez Adão. Trabalhar não precisava
Mas fez Eva sem juízo Adão vivia contente
E deixou os dois flertando Só arrumou ao juntar-se
No pomar do Paraíso... Eva, a maçã e a serpente
(MONTEIRO, on-line)
[...]
(Continuação...)
Elas estão todo dia
Tomando o nosso lugar
Se continuarem assim
Só o que vai nos sobrar
É o tanque de lavar roupa
E o ferro de engomar
Em toda repartição
Tem uma mulher mandando
Elas estão assumindo
Todos os postos de mando
E enquanto isso no lar
Tem uma mulher faltando.
(MONTEIRO, on-line)
UM CAPÍTULO À PARTE: A
REPRESENTAÇÃO CORDELÍSTICA DA
MULHER NEGRA.
“As águas não se misturam.
De um lado, as amadas distantes, merecedoras de “finezas mil”,
“damas rigorosas” e “tiranas”, “cruéis”, que trazem nomes
aureolados por séculos de poesia palaciana [...]. É a vigência de um
“antigo estado” no reino da convenção lírico amorosa.
[...].
E do outro lado?
Lá desfilam as negras e as mulatas que a carta de alforria lançara ao
meretrício havia muito incubado na senzala. Estas são: a Maria
Viegas [...], a Vivência e tantas outras que se confundem em uma
galeria de fantasmas lúbricos onde não se conseguem ver rostos de
mulher, mas tão-só exibições escatológicas de partes genitais e
anais.”
Alfredo BOSI,
Dialética da Colonização (1995, p. 108-109)
• Na literatura de cordel, apesar de o tratamento
misógino se estender para todas as mulheres,
indubitavelmente a mulher negra é alvo de uma
representação ainda mais contundente e ácida.
• Nesse pormenor, vale lembrar os versos muito em
voga no século XIX, época de surgimento do
cordel: Branca para casar/ Negra pra trabalhar/
Mulata pra fornicar.
CONSERVADORISMO NO CORDEL
“Nos folhetos sobre as personagens
negras, [...] a mulher-personagem nem
é levada a sério nem carrega uma
identidade feminina. Ela configura-se
mais como ′uma coisa′ ou objeto, que
representa e sintetiza um complexo de
estereótipos e preconceitos”.
Norma TELLES,
Escritoras, escritas, escrituras. In. PRIORE, Mary Del. (Org.).
História das mulheres no Brasil. 6. ed. São Paulo:
Contexto/UNESP. (2002, p. 403)
Na época em que as vozes poéticas começaram a ser fixadas no folheto,
em fins do século XIX e começos do XX, dando início ao sistema editorial
do cordel, as mulheres nordestinas não tinham acesso aos códigos da
escritura, nem gozavam dos mesmos direitos sociais e culturais dos
homens. Contudo, elas cantavam e produziam suas poéticas da maneira
mnemônica da tradição, a exemplo daquelas que com suas violas em
punho desafiaram o paradigma a elas impostos, caso das cantadoras cujos
nomes ficaram gravados na memória dos nordestinos: Zefinha do
Chambocão, Chica Barrosa, Terezinha Tietre, Maria de Lourdes, Vovó
Pangula, entre tantas.
Arlene Holanda Josenir Lacerda Dalinha Catunda Ivonete Morais Julie Anne
Salete Maria Bastinha Job Anilda Figueiredo Rosário da Cruz Izabel Nascimento
• A transformação das mulheres em sujeito da escrita do
cordel veio a representar uma revisão crítica dos
estereótipos que a tradição dos folhetos sedimentou em
relação a elas. Neste processo de quebra de paradigmas
pelas mulheres cordelistas,
“Emergem várias mulheres dando um cunho
diferenciado aos novos temas da literatura de cordel.
As poetisas Salete Maria, Rivaneide, Edianne, Maria
dos Santos, Madalena de Souza, Luiza Campos, Silvia
Matos, Camila Alenquer encontram na Sociedade dos
Mauditos significativo apoio para divulgar suas
produções.” (QUEIROZ, Doralice Alves de QUEIROZ.
Mulheres cordelistas: percepções do universo
feminino na literatura de cordel. 2006, p. 89).
O CORDEL DE SALETE MARIA DA SILVA
• SALETE MARIA é uma cordelista feminista brasileira.
• Aprendeu a fazer cordel com uma avó cega e analfabeta
• Atualmente trabalha como professora do Bacharelado em
Estudos de Gênero e Diversidade da Universidade Federal da
Bahia-UFBA.
• Durante anos foi professora do Curso de Direito da
Universidade Regional do Cariri-URCA, sediada no sul do Ceará,
onde, por mais de uma década também foi advogada de
mulheres e homossexuais vítima de violência, tendo, inclusive,
peticionado em formato de cordel.
• É membro-fundadora da Sociedade dos Cordelistas Mauditos
(sic) - um importante movimento de jovens poetas, cantadores
e performers fundado no ano 2000 em Juazeiro do Norte.
• Em março de 2014, Salete Maria completou “20 anos de
cordelírio feminista e libertário”.
• Nessa trajetória, teve cordéis premiados pela Fundação
Cultural do Estado da Bahia-FUNCEB, recitados pela atriz
Deth Haak, musicados pela cantora Socorro Lira, citados
pelo jornalista Arnaldo Jabor, encomendados pelos
cineastas Vagner Almeida e Orlando Pereira e referenciados
por diversos pesquisadores e amantes da literatura popular
e da cultura oral, deste e de outros países.
• Seu trabalho é utilizado em cursos, palestras, debates e
também tem sido objeto de dissertações e teses de
doutorado. Suas temáticas são múltiplas, mas com ênfase
nas questões de gênero, feminismo, direitos humanos e
outros assuntos marginais e periféricos.
• Transita entre diversas linguagens, opera com signos
variados e apresenta uma rima inventiva, irônica, dramático-
cômica e, sobretudo, política e intertextual.
• É ativista política, voltando-se para o resgate das vozes
marginalizadas um projeto escritural. Nessa
perspectiva,