Catalogo Mitsp2018cp
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cartografias
2018
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cartografias.mitsp_05 2018
Revista de Artes Cênicas
Número 5 - 2018
ISSN: 2357-7487
Periodicidade anual
Suíte n°2 42
A Babel em Cena: Som e Ação nas Palavras de Suíte n°2 da Encyclopédie de la Parole 48
Lígia Souza Oliveira
Campo Minado 54
O Arquivo Como Campo Minado 60
Ana Bernstein
Árvores Abatidas 66
Entrevista com Krystian Lupa 72
Sobre Labirintos e Centauros Poloneses 82
Pedro Vilela
King Size 88
King Size: A Canção como (D)Obra 94
Matteo Bonfitto
Palmira 100
Palmira 106
Milton de Andrade
Hamlet 110
Carta para Julian 116
Denilson Lopes
sal. 120
Novidades que Chegam do Velho-Novo Mundo 126
Denise Espírito Santo
156 Atravessamentos
158 Ente Palavra, Gesto e Música: Metamorfoses Contemporâneas da Rapsódia
Patrick Pessoa
170 Teatro Como Performance da Recordação na Era das Catástrofes e Próteses de Memória
Márcio Seligmann-Silva
266 Colaboradores
283 Agradecimentos
apresentação
E
m sua quinta edição, de 1 a 11 de março de 2018, a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São
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Paulo apresenta um programa de espetáculos com nomes de peso no contexto internacional, am-
plia sua atuação por meio dos Olhares Críticos e das Ações Pedagógicas, este último chegando a
regiões descentralizadas de São Paulo, e lança um novo eixo: a MITbr – Plataforma Brasil.
A despeito das dificuldades de manter um festival no contexto de instabilidade econômica e
política que afeta todos os setores da cadeia produtiva, com especial impacto no campo da cultura,
a MITsp levou aos palcos 43 espetáculos de países como Chile, Argentina, França, Alemanha, Polônia, Líbano
e África do Sul desde sua primeira edição, em 2014, alcançando aproximadamente 80 mil espectadores.
Antonio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem e professor da ECA-USP, e Guilherme Marques, diretor
geral do CIT-Ecum/Centro Internacional de Teatro Ecum, idealizadores da mostra e, respectivamente,
diretor artístico e diretor geral de produção da MITsp, continuam investindo em espetáculos e ações
capazes de questionar os limites entre as artes cênicas e outras linguagens. Além disso, são propostas
artísticas que tentam se aproximar, de diversas formas, da complexidade do mundo em que vivemos.
Mostra de espetáculos
Os espetáculos que compõem a MITsp 2018 são todos inéditos no Brasil – alguns desses diretores,
apesar de fundamentais no panorama internacional, nunca trouxeram trabalhos ao país. É o caso do
Artista em Foco desta edição, o francês Joris Lacoste, que assina o espetáculo de abertura: Suíte nº2.
Em 2007, o encenador criou a Enciclopédia da Fala, projeto envolvendo profissionais de múltiplas áreas,
entre eles, atores, músicos e linguistas, para pesquisar formas de oralidade. Em Suíte nº2, cinco perfor-
mers reproduzem palavras extraídas de contextos reais.
Aos 74 anos, o polonês Krystian Lupa, diretor de Árvores Abatidas, é considerado um dos gran-
des mestres das artes cênicas contemporâneas. O espetáculo, adaptação do romance de Thomas
Bernhard, traz reflexões sobre o papel da arte e a liberdade. Tanto Lacoste, Artista em Foco, quanto
Lupa terão programações especiais distribuídas nos eixos Olhares Críticos e Ações Pedagógicas,
como entrevistas públicas e workshops, para que o público brasileiro possa conhecer com mais
profundidade as trajetórias dos dois artistas.
No musical King Size, o suíço Christoph Marthaler, diretor com projeção consolidada na Europa, alia
música e dança numa peça cujo repertório vai de Schumann a The Jackson 5.
O dramaturgo e diretor suíço Boris Nikitin propõe, com o músico eletrônico e performer queer Julian
Meding, um Hamlet enigmático, que mistura realidade e ficção, capaz de despertar sentimentos contra-
ditórios no espectador, ora de cumplicidade ora de repulsa.
Da Argentina vem Campo Minado, da diretora, escritora e performer Lola Arias. Conhecida por
seus trabalhos de teatro documentário, a diretora envereda por um episódio que ainda é uma ferida
em seu país, a Guerra das Malvinas (1982). Constrói a montagem com seis veteranos do conflito,
combatentes em lados opostos, que agora se veem trabalhando juntos, reconstruindo e ressignifi-
cando as experiências de guerra.
Tendo como ponto de partida a destruição da cidade de Palmira pelo Estado Islâmico em 2015,
os performers Bertrand Lesca, francês, e Nasi Voutsas, de origem grega, desestruturam os limites do
humor, explorando de forma simbólica a violência, a vingança e a política da destruição. Palmira es-
treou no Festival de Edimburgo de 2017 e foi premiado com o Total Theatre Award 2017 para Inovação,
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Experimentação e Exploração de Formatos. O espetáculo também recebeu outros prêmios, como o
Stockholm Fringe 2017 Grand Prix, o Mess Festival Prize (BE Festival) e o Best of BE Festival Award,
além de ter sido incluído no “The Top 10 The Guardian’s Theatre of 2017”.
País Clandestino é um processo colaborativo que reúne cinco diretores e dramaturgos entre 30 e 35
anos: Florencia Lindner (Uruguai), Jorge Eiro (Argentina), Lucía Miranda (Espanha), Maëlle Poésy (Fran-
ça) e Pedro Granato (Brasil). Eles se conheceram durante uma residência artística em Nova York, em
2014 e, desde então, maturam um espetáculo em registro documental, que inclui em sua dramaturgia
dispositivos tecnológicos como Skype e e-mail, utilizados na elaboração da montagem.
Da mesma geração dos criadores de País Clandestino, Selina Thompson sempre se inquietou com
a pergunta sobre sua origem. A artista partiu da Inglaterra, onde mora, em direção a Gana e à Jamaica,
para refazer uma das rotas do comércio de escravos, em busca de respostas a questões ancestrais.
sal. é fruto dessa jornada, de uma ida a um passado que Selina não vivenciou, mas que esteve sempre
presente na sua pele e, principalmente, na reação das pessoas à sua negritude.
Olhares Críticos
As Reflexões Estéticos-Políticas, um dos principais braços do eixo Olhares Críticos, discute “O
estatuto da arte no Brasil contemporâneo: liberdade, alteridade, mediação”. A partir desse tema chave,
que perpassa debates sobre os limites da arte e a censura, serão realizadas três mesas redondas, uma
conversa e uma master class.
Além das atividades que acontecem desde a primeira edição da MITsp, como os Diálogos Transver-
sais, em que profissionais de diversos campos refletem sobre os espetáculos ainda no espaço do tea-
tro, após a apresentação, ou o Pensamento-em-processo, conversa com os artistas sobre o percurso
criativo dos espetáculos e dos seus trabalhos, algumas outras ações ganham destaque. Joris Lacoste e
Nuno Ramos - que idealizou a performance A Gente Se Vê Por Aqui, realizada durante 24 horas – dialogam,
tendo como mediadora a jornalista e crítica Maria Eugênia de Menezes. Krystian Lupa será entrevistado pu-
blicamente pelo encenador Aderbal Freire-Filho, pela atriz Juliana Galdino e pelo jornalista Luiz Felipe Reis,
assim como aconteceu no ano passado com Guillermo Calderón, diretor do espetáculo Mateluna.
Durante o festival, há lançamentos relevantes inclusive no audiovisual, como a estreia latino-america-
na do filme Tribunal Congo, projeto do encenador suíço Milo Rau, que constitui originalmente uma peça
e um filme e investiga a guerra que já deixou mais de seis milhões de mortos no Congo. Já no campo da
literatura, o selo N-1 lança no Brasil a versão de um texto fundamental para pensar a negritude: Crítica
da Razão Negra, de Achille Mbembe, além dos cordéis O fardo da raça, também de sua autoria, e Eu, um
crioulo, de José Fernando Azevedo.
Os espetáculos, como já é de praxe na MITsp, serão analisados por um grupo de críticos com atua-
ção em vários lugares do Brasil. Os textos terão distribuição gratuita nos teatros no dia seguinte a cada
estreia e serão publicados no site do festival. Ao final da mostra, os críticos vão debater a programação
desta edição, procurando refletir sobre a cena contemporânea. Nesta revista Cartografias, publicada
também desde a primeira MITsp, há algumas novidades: dois textos que procuram tecer pontes e rela-
ções entre os espetáculos da programação, chamados de “Textos de Atravessamento”, e a publicação
de um Dossiê, que passa a ter periodicidade anual. Nesta edição, o tema é “Curadoria em Artes Cêni-
cas”, uma importante reflexão sobre um campo pouco discutido no país, com seis abordagens de cura-
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dores em atuação no Brasil e na Europa.
Ações Pedagógicas
Pela primeira vez, as Ações Pedagógicas espalham-se para além do centro de São Paulo e
chegam a regiões como Cidade Tiradentes e Brasilândia, consolidando a missão fundamental de
possibilitar intercâmbios e trocas entre os criadores que participam da MITsp com espetáculos, con-
vidados especiais e os artistas brasileiros.
A encenadora alemã Susanne Kennedy, que no ano passado participou da mostra com o espetáculo
Por Que o Senhor R. Enlouqueceu?, volta ao festival para uma residência artística com foco nas novas for-
mas de linguagem verbal aliadas à precisão das expressões corporal e vocal. Krystian Lupa, pela primeira
vez no Brasil, vai compartilhar seu processo de criação de uma obra com 20 jovens intérpretes e encena-
dores durante um workshop de cinco dias. Ainda participam das Ações Pedagógicas os encenadores Joris
Lacoste, Lola Arias, Boris Nikitin, além dos cinco criadores de País Clandestino: Florencia Lindner (Uruguai),
Jorge Eiro (Argentina), Lucía Miranda (Espanha), Maëlle Poésy (França) e Pedro Granato (Brasil). Cada um
dos workshops possui um escopo diferente, tendo como base os trabalhos desenvolvidos por cada artista.
Os performers Bertrand Lesca e Nasi Voutsas do espetáculo Palmira, vão conduzir um workshop
prático de dois dias com temas que sobressaem no espetáculo, como o conflito, a frustração e a
reação diante de uma violência. Pela primeira vez na MITsp, a atividade será realizada numa ocupa-
ção, a Ocupação Independente Aqualtune, edifício do antigo Colégio Butantã, habitado por quase
30 famílias há cerca de dois anos.
O diretor da Companhia de Teatro Heliópolis (SP), Miguel Rocha, organiza um laboratório teatral com
seis encontros voltado apenas a imigrantes e refugiados. A intenção é oportunizar a visibilidade aos tra-
balhos artísticos de estrangeiros que moram no país. A atividade será na Casa do Povo, no Bom Retiro.
Outros destaques são os workshops “Des-normatividade: possibilidades criativas de expressão”,
com a dramaturga e encenadora sueca Liv Elf Karlén, autora do livro Mais Que Isso – Pensamento sobre
Atuação Gênero-curiosa, e “Técnicas de feedback e mediação em processo criativo”, com o belga Georg
Weinand. A atividade visa a oferecer ferramentas para que profissionais que acompanham a elaboração
e o desenvolvimento de uma performance ou de um espetáculo possam ser assertivos e contribuir para
o aperfeiçoamento artístico do trabalho. Outras duas oficinas, uma sobre poéticas não-verbais e outra
sobre convívio e performatividades urbanas, serão oferecidas por artistas brasileiros.
Há ainda a oficina conduzida pela artista e produtora Iva Horvat, que vai discutir a internacionalização
de espetáculos. Esta iniciativa possui relação com o mais novo eixo da MITsp, a MITbr – Plataforma Brasil.
A
MITsp chega a seu quinto ano. Atravessados por um misto de alegria e incredulidade,
lutamos para mantê-la viva à revelia da retração de recursos, do crescente conserva-
dorismo e dos recentes ataques ao campo das artes. Diante das impostações risíveis
do teatro da democracia que vivemos – e, pior ainda, no qual acreditamos –, que
caminhos restam aos artistas da cena para se contraporem a esses fake times?
Como em doenças graves, contra as quais são múltiplos os remédios, tam-
bém aqui várias respostas serão ensaiadas. Tais tentativas de enfrentamento talvez
pudessem ser pensadas a partir de cinco eixos, ou melhor, questões. Evidentemente, elas se confi-
guram sobretudo como ênfases, mais do que delimitações ou filiações rígidas, já que as obras e os
encontros movem-se concomitantemente por entre várias dessas questões – além de outras, é claro.
A primeira delas, “memória, história e política”, nos convida a revisitarmos o passado,
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individual e coletivo, para pensarmos criticamente o presente. Seja pelo trauma da Guerra das
Malvinas, como em Campo Minado, ou pelo horror colonialista do tráfico de escravos, em sal.,
ou ainda pelo cruzamento entre lembranças pessoais e fatos históricos de cinco países, em
País Clandestino, somos instigados a entretecer os campos da subjetividade e da macropolí-
tica, de modo sempre movediço e borrado.
Já em “migrações e deslocamentos”, a ameaça do outro – ou apenas a sua simples pre-
sença, fator suficiente para provocar desconfortos e desconfianças –, é invocada para pensarmos
sobre um mundo cada vez mais repleto de muros. Palmira e AudioReflex, pela via do silêncio ou
por meio de audioguias, nos levam a repensar os limites sobre quem são os novos bárbaros e
aqueles que, supostamente, pertencem ao mundo civilizado.
A música e a palavra – e seus inevitáveis imbricamentos – percorrem e inseminam a Mostra
como um todo, de forma mais incisiva que nas edições anteriores. Poderiam, portanto, ser des-
tacadas em outros dois “eixos”. Em “a palavra como protagonista”, possível vértice comum a
obras muito distintas, como Suíte nº2, Árvores Abatidas e A Gente Se Vê Por Aqui, a palavra se
concretiza em matéria, sonoridade, duração, crítica e ação. Palavras de (des)ordem, (pen)últimas
palavras, palavras (des)medidas. O sopro do artista diante do ruído do mundo. Turbilhões verbor-
rágicos como antídotos para o anestesiamento da escuta e a opacidade da fala.
Por sua vez, em “reverberações entre teatro e música”, somos imersos em outros mo-
dos de diálogo entre esses dois campos, para além dos padrões cênico-musicais formatados,
tão em voga na lógica dos mercados globais de espetáculos. Seja na contraposição de um
músico eletropunk a um quarteto barroco, em Hamlet, ou em um teatro musical atravessado
pelo patético e pelo melancólico, em King Size, a musicalidade aqui engendra outros modos
de cena. Porém, é importante relembrar, a palavra aqui também vira música e a música, pala-
vra, como em outras obras e ações dessa edição.
Por fim, a questão de “mediação e censura nas artes”, no contexto do Brasil atual, estará
presente nas Ações Pedagógicas e, especialmente, nos Olhares Críticos, por meio do seminário
“O Estatuto da Arte no Brasil Contemporâneo: Liberdade, Alteridade, Mediação”. Essa discussão
é mais do que urgente face às polarizações acirradas que estamos enfrentando na esfera pública
e o risco de uma “censura prévia” ser assimilada – velada ou inconscientemente – no âmbito das
instituições culturais, dos festivais e das próprias práticas artísticas. Quem poderia imaginar que,
em pleno século XXI, o corpo nu nas artes ainda se configuraria como ameaça e tabu? Por outro
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lado, a problematização dos limites de uma autonomia em abstrato da arte é igualmente necessária,
a fim de que possamos reconhecer, de fato, o(s) lugar(es) e a(s) voz(es) do outro. A desqualificação
sumária das demandas dessas vozes ou a recusa intransigente ao diálogo – substituído, muitas ve-
zes, por “palavras de ordem” em looping –, são extremos inconciliáveis que dificultam o avanço da
discussão – e as necessárias ações de reparação e de estabelecimento de igualdades de direitos.
Nessa quinta edição ainda teremos uma nova ação, ensejada desde a primeira MITsp: a MITbr
– Plataforma Brasil, um programa de internacionalização das artes cênicas brasileiras. Fruto do incô-
modo pela pouca visibilidade no exterior da potente produção contemporânea local, no âmbito do
teatro, dança e performance, idealizamos um projeto-piloto que procura jogar luz nessa produção,
criando, por um lado, contextos de diálogo com tais trabalhos e, por outro, se distanciando da lógica
mercantilista das feiras artísticas. Acreditamos, nesse sentido, que nossa criação cênica mereça ser
compartilhada no âmbito internacional, não apenas por sua qualidade e força, mas também pelas
possibilidades de tensionamento e de inflexão que ela pode provocar em outros contextos culturais.
Lembramo-nos de uma conversa que tivemos há vários anos, na qual dissemos que se a
MITsp conseguisse realizar-se por cinco edições seguidas, então, talvez, somente aí, ela pudesse
aspirar a uma vida longa. Que os próximos anos confirmem tal su-
posição! Enquanto isso, esperamos que as obras, as discussões
AntOnio AraÚjo
e os intercâmbios previstos para essa quinta edição possam nos idealizador e diretor artístico
D
esde a edição passada, o eixo reflexivo Olhares Críticos encontrou como vocação a proposi-
ção de discussões que relacionem diretamente a dimensão estética da arte ao contexto social
brasileiro atual. No início de 2017, sob o forte impacto das transformações políticas e de suas
implicações desastrosas para a democracia, nos colocamos a refletir sobre as “Dimensões
públicas da crise e formas de resistência”. É com um sentido de continuidade, aprofundamento
e enfrentamento das complexidades dessas relações entre arte, sociedade e política em nosso
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tempo que propomos agora as ações dos Olhares Críticos 2018.
Ao longo do ano passado, a arte – tantas vezes desconsiderada ou ignorada fora dos circuitos específicos
– passou a ocupar lugar inesperado no debate público brasileiro. Em sua via positiva, isso significou um “redes-
cobrimento” de sua força simbólica e disruptiva de transformar percepções e criar sentidos. Na negativa, a arte foi
usada como estratégia de manipulação política. Tendo em vista os episódios de censura e violência de estado e de
parte da opinião pública a que foram submetidos artistas e curadores, tornou-se evidente algo que já era sabido,
mas cuja gravidade ainda não havia alcançado tamanha dimensão: a distância abissal entre o debate sobre arte
que ocorre nos territórios especializados e a ideia que o público em geral – a população das variadas classes so-
ciais, apartada tanto da discussão quanto da produção e da fruição artística – tem sobre o que seja arte no Brasil.
Diante disso, os Olhares Críticos 2018 abrem um espaço de conversa que procura chamar a atenção para
essa distância e propor formas de travessia. Realizaremos parte dos debates na rua, em um espaço de trânsito de
pessoas, como estratégia de aproximação. Paralelamente, também realizaremos conversas que precisam aconte-
cer dentro do circuito artístico. Organizamos essas questões em um seminário de reflexões estético-políticas cujo
mote é “O estatuto da arte no Brasil contemporâneo: liberdade, alteridade, mediação”.
Num encontro público, na rua, sobre “Amor e ódio ao corpo no Brasil”, vamos discutir as contradições cultu-
rais de um país onde o corpo da mulher é assediado e explorado sexualmente, sob coações cotidianas da miso-
ginia patriarcal, enquanto os corpos trans, queer e negros são assassinados massivamente; mas o corpo nu na
arte é condenado por olhares externos moralizantes. Participam do encontro o curador da exposição (censurada)
Queermuseu, Gaudêncio Fidelis, e as artistas Laís Machado e Leonarda Glück.
A rua também será o espaço de duas ações artísticas – Pontos de Vista, da performer Ana Luísa Santos, e Você
tem um minuto para ouvir a palavra?, da curadora Nayse López, em intercâmbio com o Festival Panorama, segui-
das por uma conversa entre elas e o público. Tais performances configuram gestos para a travessia da distância
entre a população brasileira e a reflexão sobre arte, que apontam para a necessidade de repensamos as formas de
mediação. Este será ainda o assunto da mesa “O mal estar das mediações e o isolamento da arte”, com Marcos
Alexandre, Renan Marcondes, Rita Aquino e Wagner Schwartz.
Por outro lado, entendemos que o debate sobre a liberdade da arte precisa levar em conta as diferenças de
classe, os recortes de raça e gênero que nos estruturam simbólica, cultural e economicamente. Essa tomada de
consciência enfrenta, no âmbito da arte, estratégias de desqualificação do “outro” e a confusão perversa entre
crítica e censura, mascaradas em uma defesa absoluta da autonomia da arte, fruto do entendimento da arte
como algo elevado – e enclausurado – numa torre de marfim. Na mesa “Crítica não é censura”, questionamos se
essa noção intocável de autonomia não seria mais um lugar de defesa de território. Convidamos críticos, artistas,
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pesquisadores e espectadores à escuta das reivindicações feitas pelos movimentos sociais, para que possamos,
a partir do reconhecimento da legitimidade de questões como representatividade e lugar de fala, formular uma
concepção e uma prática de liberdade artísticas fundadas na alteridade, e, assim, avançar nesse debate estético-
-político, considerando suas tensões, contradições e complexidades. Georgette Fadel, Juliano Gomes, Kil Abreu,
Renata Carvalho e Aline Vila Real alimentam a discussão.
Esperamos que essa atitude de escuta seja constante para que outros diálogos, outros sujeitos, outros
afetos e outras ações se tornem possíveis. E que isso ecoe sobre o conjunto das atividades do eixo reflexi-
vo. Em especial, na “Prática da Crítica”, que reúne críticos de seis cidades brasileiras para compartilharem
suas reflexões sobre a programação da MITsp 2018 em textos diários distribuídos no teatro, publicados
no site da mostra, e em um debate panorâmico final. Do mesmo modo, nos “Diálogos Transversais”, rea-
lizados depois das apresentações, convocamos olhares de outras áreas como cinema, literatura, música,
quadrinhos e psicanálise, aproximando linguagens.
Teremos a possibilidade de ouvir presencialmente artistas envolvidos nos espetáculos que vêm à MITsp fala-
rem sobre seus percursos criativos no “Pensamento-em-Processo”. Também poderemos dedicar algum tempo a
mais a Joris Lacoste, Artista em Foco desta edição, e ao mestre polonês Krystian Lupa em conversas públicas.
Neste catálogo, concebido em parceria com a pesquisadora Sílvia Fernandes, experimentamos duas
propostas pela primeira vez: os ensaios que desenham travessias entre espetáculos diversos da programa-
ção e um dossiê sobre curadoria. Boa leitura!
D a n i e l e Av i l a S m a l l e
L u c i a n a Ea s t w ood Ro m a g n o l l i
Curadoras do eixo reflexivo Olhares Críticos
ações pedagógicas
D
iante de uma sociedade cada vez mais embrutecida, no
âmbito ético e afetivo, vez ou outra me pego pensando nos
revolucionários filmes de zumbi do diretor estadunidense
George A. Romero, morto em 2017. Em suas películas, em
vez de reforçar estereótipos em torno da figura dos mortos-
-vivos, Romero apresenta uma faceta completamente dis-
tinta desses seres, mostrando-os como irracionais, mas também instin-
tivos e com certo senso de coletividade. No fundo, os zumbis revelam a
banalidade, a apatia e o individualismo dos próprios vivos, humanos vam-
pirizados pelo consumo, pela virtualidade excessiva, pela falta de crítica
e, principalmente, pelo medo exacerbado, o horror a tudo que possa de
algum modo romper os privilégios e a funcionalidade que mantêm inalte-
20
rado o convívio social. Os corpos putrefatos de Romero remetem, em meu
imaginário, aos desaparecidos, insepultos, torturados e assassinados por
governos despóticos e cleptocratas das últimas décadas e pelas socieda-
des repletas de ódio nas quais vivemos atualmente. Os mais recentes zum-
bis hollywoodianos, no entanto, já passaram pela estetização estratégica:
assépticos e esvaziados, perderam qualquer conotação política e voltaram
a ser meros recursos de susto indolor.
Quem está morto e quem está vivo no Brasil de hoje, tanto literal
quanto metaforicamente? Que tipo de zumbi nos tornamos – os de Ro-
mero ou os do mercado de entretenimento? Nesse contexto, me pergun-
to o que o teatro pode oferecer, se ainda logra provocar algum tipo de
desconforto ou despertar perguntas incômodas e necessárias, ou talvez
se conseguiria devolver à cena (política) todos aqueles vivos que são ti-
dos como mortos, os ausentes-presentes, os invisibilizados, silenciados,
excluídos, execrados. Nos dias de hoje, não basta um teatro morto, mero
simulacro de acontecimento cênico, com algumas boas falas e cenário
elegante, uma reunião tal e qual a descrita pelo escritor austríaco Thomas
Bernhard em Árvores Abatidas, e levada aos palcos pelo mestre polonês
Krystian Lupa. Ou basta? Qual seria o sentido em apostar no fastio pelo
fastio, ou no deleite estético pelo deleite estético?
“Chegou um tempo em que a vida é uma ordem”, me recorda Carlos
Drummond de Andrade. Vida vivida, partilhada, imaginada, ficcionalizada:
vida. Se as artes da cena são, de fato, artes da presença e da experiência,
são artes que se querem vivas. Artes para aqueles que ainda vibram, mas
também para os putrefatos do sistema neoliberal (vivíssimos estes); artes das
singularidades, porém não das desigualdades; artes dos fingimentos todos
para desvelar o que há de mais verdadeiro no ser humano: sua humanidade.
Levar adiante um festival internacional de teatro em tempos em que
a assepsia é uma ordem e o cinismo tornou-se a marca do progresso
pode revelar-se uma batalha e tanto. Contudo, a possibilidade de criar
21
uma nova geografia na cidade de São Paulo, uma territorialidade pau-
tada pelo convívio e pela criação conjunta, pela experimentação e pela
reflexão, pelo debate saudável e pela potência do corpo, revela-se a
mais excitante das aventuras. Dependendo do ponto de vista, março
torna-se o mês em que os zumbis à la Romero (re)tomam a cena, várias
cenas e vários palcos, agitando a cidade e recordando aos pseudovivos
que as máscaras não duram para sempre.
O eixo Ações Pedagógicas consolida-se como parte fundamental da
MITsp e continua a proporcionar encontros, convivência, experiências in-
tensas de intercâmbio e de troca de saberes. Em 2018, as atividades se-
guem cinco linhas temáticas: Vozes, Ruído e Silêncio; Memória e História;
Deslocamentos e Identidade; Intergêneros e Mediação, e se espalham por
diversos espaços de São Paulo. Além disso, há uma novidade: a possi-
bilidade de acompanhar as oficinas artísticas como ouvinte-pesquisador.
Não nos esqueçamos: como escreveu Bernardo Soares, semi-hete-
rônimo do português Fernando Pessoa, “Há em olhos humanos, ainda
que litográficos, uma coisa terrível: o aviso inevitável da consciência, o
grito clandestino de haver alma”. Estamos vivos, pois?
Ma r i a F e r n a n da Vo m e r o
Curadora das Ações Pedagógicas
MITbr – Plataforma Brasil
A
partir da reflexão do que significa “internacionalizar” as
artes cênicas brasileiras e fomentar sua visibilidade, cir-
culação e reconhecimento para além do cenário interno, a
MITbr - Plataforma Brasil, novo eixo da MITsp, tem o ob-
jetivo de reunir neste ano, ainda como experiência-piloto,
um conjunto de produções recentes em apresentações
22 abertas ao público e com a presença de programadores de festivais na-
cionais e internacionais. A ideia é compartilhar a diversidade de lingua-
gens, temas, materiais dramatúrgicos e propostas estéticas com as quais
os nossos criadores vêm trabalhando e que, na medida do possível, ex-
pressam um modo de ser, ou antes, os modos de ser do teatro brasileiro
contemporâneo e suas interlocuções com a dança e a performance.
Conceitos complexos – alguns bastante polêmicos – como multicultu-
ralismo, transculturalismo, interculturalismo, colonialismo e descolonização
estão na base do debate que subjaz à programação da plataforma. Não
se trata de atender à demanda da globalização, transformando a criação
cênica em uma mercadoria altamente vendável nos circuitos muitas vezes
céleres e eufóricos dos festivais internacionais, mas, antes, de reconhe-
cer possíveis relações entre as especificidades do contexto brasileiro com
questões e experiências propostas em âmbito internacional.
Assim, a preocupação da MITbr - Plataforma Brasil é diferenciar, his-
toricizar e contextualizar os espetáculos convidados para essa interlocu-
ção, levando-os a diálogos que sejam, de fato, fricativos, mobilizadores,
heterotópicos. Entretanto, como já pontuaram diversos estudiosos da 23
Alexandre Pflug
Diretor da Divisão de Qualidade de Vida do SESI-SP
foto philipp balunovic
Krystian Lupa é, sem dúvida, um dos mais importantes O Instituto Francês do Brasil alegra-se em participar
artistas do teatro contemporâneo e mestre para novas ativamente da efervescência da 5ª edição da MITsp
gerações de diretores. Faz anos que, em suas peças, - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Nes-
construídas com precisão, ele se mostra um observa- te ano, nossa ação concentra-se na participação de
dor perspicaz da psique europeia, de seus conflitos e Joris Lacoste, artista formidável homenageado pelo
tensões internas da condição do homem e do artista festival. Com referências da literatura, do teatro, das
contemporâneo. Estou muito feliz pelo fato de que o artes visuais e da poesia sonora, seu trabalho defende
público brasileiro inicia uma convivência direta com a uma dimensão investigativa e é emblemático da cria-
obra de Krystian Lupa a partir da peça Árvores Abati- ção francesa contemporânea.
das, de Thomas Bernhard, produzida pelo Teatr Polski Com Suíte N°2, segunda obra de sua Encyclopédie de
na Breslávia. Não é sem razão que Krystian Lupa é tido la Parole, Joris Lacoste restitui um oceano de palavras
como um especialista em adaptar textos desse escritor coletadas ao redor do mundo e apresentadas por um
para os palcos. Sucesso de público e de crítica na Po- quinteto de atores extraodinários. Seu contato com o
lônia, desde o ano 2015, a peça foi apresentada com o público será intensificado por meio de oficinas e en-
apoio do Instituto Adam Mickiewicz em países como contros, e sua estadia permitirá que enriqueça sua en-
França, China, Coreia do Sul, Japão, Canadá e Chile. ciclopédia de materiais sonoros paulistanos.
Tenho a certeza de que a peça terá grande e duradoura Trata-se de descobrir uma peça, uma escritura
ressonância no Brasil e que o programa reflexivo e pe- artística, mas também de dar continuidade a este
dagógico em torno das apresentações, especialmente diálogo entre nossos dois países. Aqui, Joris La-
a oficina ministrada pelo diretor e ao mesmo tempo coste nos convida a compartilhar novas palavras e
exímio pedagogo para jovens artistas, constituirá uma a renovar suas formas.
ótima plataforma de intercâmbio artístico e de troca de O Instituto Francês do Brasil compromete-se forte-
ideias. Estou muito contente com o desenvolvimen- mente a apoiar os artistas e a criação contemporânea.
to da cooperação, iniciada em 2016, com a MITsp e Para nós, é uma evidência e uma grande satisfação a
com o Sesc SP, que acolhe a peça polonesa no palco possibilidade de realizar essa missão em parceria com
do Sesc Pinheiros. É um prazer para o Instituto Adam a MITsp, um dos principais protagonistas do teatro no
Mickiewicz poder contribuir para a construção da pro- Brasil. Nesse sentido, estamos muito orgulhosos de
gramação desta edição da MITsp. Nas quatro edições participar, mais uma vez, da bela aventura artística
passadas, o festival apresentou uma linha curatorial ní- que o evento nos propõe.
tida e corajosa, abordando as mais vigentes questões e Bom festival a todas e a todos !
selecionando espetáculos da mais alta qualidade artís-
tica. Estou certo da grande importância da mostra para Alain Bourdon
a cena teatral brasileira. Desde 2014, o Instituto Adam Diretor do Institut Français du Brésil,
conselheiro de cooperação e de ação cultural
Mickiewicz, em colaboração com parceiros brasileiros para a Embaixada da França no Brasil
e poloneses, apresenta no Brasil os mais significativos
representantes da cultura polonesa, extremamente di-
nâmica, e o teatro tem lugar expressivo nessas ações.
Conseguimos construir a base para uma colaboração
artística duradoura entre nossos países.
Convido a todos a procurarem mais informação so-
bre a cultura polonesa em nosso site: culture.pl.
Krzysztof Olendzki
Diretor do Instituto Adam Mickiewicz
O Goethe-Institut São Paulo tem o prazer de ser
novamente um dos parceiros da MITsp, festival
que ganha cada vez mais importância. Nesta
quinta edição, os curadores conseguiram elaborar
uma seleção de espetáculos nacionais e interna-
cionais de alta qualidade artística, cujos temas
não poderiam ser mais relevantes para o momen-
to em que vivemos – migração, pós-colonialismo
e memória da escravidão.
Com AudioReflex, projeto idealizado por Sigrid Ga-
reis e realizado em parceria com o Museu da Imigra-
ção de São Paulo, questões ligadas ao tema das mi-
grações são retratadas de forma poética em obras
sonoras criadas pelos artistas Ariel Efraim Ashbel,
Claudia Bosse e Rita Natálio. Além disso, estamos
28 particularmente entusiasmados com a participação
de Christoph Marthaler, que mostra pela primeira
vez seu trabalho em São Paulo, como ocorreu no
ano passado com Susanne Kennedy. Em 2018, a di-
retora volta ao festival como artista residente, tendo
a oportunidade de mostrar seu trabalho mais pro-
fundamente durante um workshop para o público do
teatro no Goethe-Institut.
Queremos parabenizar toda a equipe da MITsp que
desenvolveu pela quinta vez um programa de ativi-
dades impressionante. Para o Goethe-Institut é um
prazer participar dos encontros interculturais que
o festival nos proporciona – esperamos que ainda
por muitos anos!
Katharina von Ruckteschell-Katte
Diretora executiva do Goethe-Institut São Paulo e para a
América do Sul
Apresentando obras inéditas, formando plateias, de- Os festivais de artes cênicas têm papel fundamen-
senvolvendo atividades pedagógicas e defendendo o tal e decisivo na difusão e na circulação da pro-
papel da arte na formulação crítica de temas da con- dução artística, promovendo valioso trabalho de
temporaneidade, a MITsp estabelece um padrão de formação de público e intensa plataforma de inter-
produção e de disseminação cultural inspirador, tanto câmbio nacional e internacional.
como festival quanto como plataforma de pesquisa. A MITsp, importante mostra neste cenário, pri-
COINCIDÊNCIA – programa de intercâmbios culturais vilegia a experimentação e a investigação nas
entre Suíça e América do Sul, realizado pela Funda- artes cênicas, enveredando pelo hibridismo de
ção Suíça para a Cultura Pro Helvetia, tem o prazer de linguagem, além de sua cuidadosa curadoria re-
apoiar a MITsp em sua 5ª edição de diversas formas. fletir inquietações quanto à atual cena política no
Lançado em 2017, COINCIDÊNCIA visa promover Brasil e no mundo.
trocas em diversos campos artísticos por meio de Alinhado a esse cenário e entendendo que par-
exposições, residências, pesquisas, turnês, coprodu- cerias geram benefícios mútuos, o British Council
ções e traduções, entre Suíça, America do Sul e ou- Brasil inova ao lançar, em colaboração inédita com
tros países nos quais a Pro Helvetia atua. Articulado o Oi Futuro, o Programa Pontes, uma ação estra-
ao redor de eixos como a construção de territórios, tégica e participativa em apoio à sustentabilidade
as noções de conflito e de memória e as relações do dos festivais, bem como ao aprofundamento de
tempo presente com as narrativas não modernas, o parcerias internacionais para o setor, através de
programa, que tem duração de três anos,irá crescer presença britânica na cena local.
a partir das inquietações dos parceiros locais, garan- Entendemos que a construção de um programa
tindo sua relevância na América do Sul. especialmente concebido para festivais brasileiros
COINCIDÊNCIA se junta à MITsp nas apresentações é uma forma de responder aos desafios colocados
de Hamlet – uma criação original de Boris Nikitin que pelo momento econômico e social do país, que
revisita a peça homônima de William Shakespeare afeta a cena artística.
em um musical queer – da peça King Size, de Chris- O British Council é a organização internacional do
toph Marthaler, que também traz o formato musical, Reino Unido para relações culturais e oportunida-
mas com foco em sua dimensão onírica, dando vida des educacionais. Promove a cooperação entre o
aos absurdos sonhos de seus personagens. Além Reino Unido e o Brasil nas áreas de língua inglesa,
disso, o programa pretende incentivar projetos futu- artes, esportes e educação.
ros com a MITsp, através da vinda nesta edição de Para saber mais: britishcouncil.org.br
programadores como Jurriaan Cooiman, diretor do
festival Culturescapes, da Basileia, e da dramatur- Cristina Bokel Becker
ga Eva-Marie Bertschy para apresentação e estreia Gerente de Artes Sênior Brasil
Benjamin Seroussi
Coordenador regional de COINCIDÊNCIA Intercâmbios
culturais Suíça-América do Sul, 2017-2020
foto michael nunes
mostra de
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Joris
artista em foco
Lacoste
suíte no 2
entrevista com joris lacoste
Quando a fala
dá o que falar
Maria Clara Ferrer
UFSJ
R
etraçar a trajetória de Joris Lacoste é primeiramente lembrar que existe em sua obra
uma relação orgânica entre pesquisa e criação. Escritor de peças de teatro, de peças
radiofônicas publicadas e traduzidas em várias línguas, e autor de seus próprios es-
petáculos desde o início dos anos 2000, Lacoste é, antes de tudo, um autêntico investigador
da prática teatral, de tal modo que seria incoerente abordar suas criações sem contextuali-
34 zá-las nos projetos de pesquisa em que foram cultivadas.
Em 2004, com a autora Jeanne Revel, o artista cria o Projet W (Projeto W) que propõe
um estudo da crítica e prática da performance, questionando a ação em situação de repre-
sentação através de seminários, criação de dispositivos, jogos e de um método de com-
posição cênica. Deste projeto surgem 9 Lyriques Pour Actrice et Caisse Claire (9 Líricas
Para Atriz e Caixa-clara) em 2005, Purgatoire (Purgatório) em 2007, Jeux W (Jogos W) em
2008-9, uma série de performances pautadas por algoritmos, rigorosos roteiros de ações
visando desconstruir códigos e convenções teatrais. Considerando um espetáculo não
como um conteúdo, mas como a relação que se estabelece entre aquele que age e aquele
que vê, o coletivo elabora o Método W. Este busca oferecer ao performer ferramentas para
escrever e realizar sequências de ações segundo critérios formais sem se preocupar com
o sentido que ele produz em cena. Criar ficções, fabular, fica sendo função exclusiva do
espectador. O intuito é estudar as condições de possibilidade de relação entre a capaci-
dade imaginativa do espectador e a ação do performer.
Assim como a poesia é a arte das possibilidades da linguagem, a dança a arte das pos-
sibilidades do movimento, a música a arte das possibilidades sonoras, etc., eu gosto de ver
o teatro com a arte das possibilidades da ação em situação de representação. Tal definição
pode parecer de fato trivial, redutora ou muito geral, mas ela tem a vantagem de levantar de
maneira brutal a questão sobre aquilo que fazemos em cena, curto-circuitando os códigos e
valores estéticos em uso. Ela abre alas para todos os tipos de experimentações sobre o que
é uma ação, tanto para aquele que a realiza quanto para aquele que a olha. Quais são os
critérios para escolher uma ação em uma dada situação? Como realizar uma ação e como
modulá-la? Como passar de uma ação para outra? O que garante que a ação realizada tenha
algum interesse? (Entretien avec Pascale Gateau)1
Ainda questionando o que é uma ação em sua relação direta e íntima com a mente do
espectador, Lacoste cria, também em 2004, o projeto Hypnographie (Hipnografia). Trata-se de
conceber a hipnose como um meio de criação artística capaz de ativar intensamente a capa-
cidade imaginativa do espectador:
Eu me dei conta que quando se conta uma história a alguém em estado hipnótico, ele a
ouve, e a vive de maneira muito mais intensa. A pessoa está literalmente mergulhada na ficção.
Ela vai viver a ficção como em uma situação real. (KEIL, 2012)
Partindo dessa constatação, Lacoste começa a estudar as características da fala hipnoti-
zante, a fim de entender suas capacidades e possibilidades de agir na imaginação do especta-
dor. Hypnographie dará origem a diversos trabalhos: Au Musée du Sommeil (Museu do Sono),
peça radiofônica e instalação criada em 2009; Le Cabinet D’Hypnose – Bestiaire (O Gabinetede
Hipnose – Bestiário), performance e instalação em vídeo criada em 2010; 12 Rêves Préparés
(12 Sonhos Preparados) em 2012, performance na qual um espectador hipnotizado em público
descreve o sonho imaginado em estado hipnótico; e Le Vrai Spectacle (O Verdadeiro Espetá-
culo) em 2011, no qual se ousava hipnotizar uma plateia de duzentos espectadores induzidos
pela fala do ator, ou seja, o espetáculo se dava inteiramente no espaço mental do espectador.
Em 2007, junto com um grupo de artistas e pesquisadores de diferentes áreas, Joris La-
coste cria o Encyclopédie de la Parole (Enciclopédia da Fala), projeto no qual desembocam ou
sintetizam-se as intuições fermentadas em Projet W e Hypnographie. O projeto tem por ambi-
ção estudar de maneira rigorosa e inventiva a oralidade em suas mais diversas manifestações,
através de uma metodologia que consiste em coletar, selecionar, arquivar, analisar e classificar
36 gravações de formas orais, constituindo assim um imenso e exemplar banco de falas.
Os frutos deste trabalho titânico são apresentados e compartilhados no site do coletivo
(www.encyclopédiedelaparole.org). Nele descobre-se, de maneira clara, a envolvente com-
plexidade da pesquisa. Muito mais do que uma simples plataforma de informações, o site do
Encyclopédie de la Parole pode ser visto como uma obra criativa em si. Sua mise en scène,
produzindo ricos jogos entre ver e ouvir, convida seu usuário a experienciar uma dupla abor-
dagem da enciclopédia. Na parte inferior da página estão alinhadas as rubricas definindo os
diferentes fenômenos orais catalogados pelo coletivo. São eles: alternâncias, cadências, cora-
lidades, compressões, dobras, ênfases, espaçamentos, focalizações, melodias, pontuações,
projeções, repetições, resíduos, responsabilidades, saturações, séries, simpatias e timbres.
Ao clicar sobre cada uma dessas categorias, o usuário começa a ouvir as falas que corres-
pondem à definição detalhada por escrito, ou seja, a apreensão do conceito se dá simultane-
amente pela experiência da escuta e pelo entendimento da leitura. Outra maneira de navegar
pelo site é se deixar levar aleatoriamente pela imagem de um enovelamento de falas que vai
sendo desenhado na tela. Cada fio colorido que se desenrola corresponde a uma fala, mas
não se pode distingui-las visualmente pois, assim como em nossa escuta do mundo, os sons
estão entrelaçados. Essa segunda possibilidade de passeio em meio ao alvoroço sonoro incita
o usuário a identificar, como em um jogo, o fenômeno oral associado àquilo que ouve.
É a partir dessa coleção de falas lúdica e metodicamente catalogadas que são criados os
espetáculos do Encyclopédie de la Parole, dirigidos ora por Joris Lacoste, ora por Emmanuelle
Lafon, uma das cocriadoras do projeto.
Lembro-me de ter conhecido o trabalho do Encyclopédie de la Parole indo assistir a seu pri-
meiro espetáculo, Parlement (Parlamento, título que joga com a palavra “parler” que, em francês,
significa falar), criado em 2009 e reapresentado na Maison de la Poésie em Paris em 2013. Era
um solo com a direção de Joris Lacoste. Em cena apenas um microfone, uma estante para parti-
tura e a atriz Emmanuelle Lafon que respira serenamente. Dando início à sua partitura sonora ela
agradece a presença do público ali naquela noite, respira já com o fôlego um pouco mais curto
e começa a falar com alguém íntimo e ausente a quem deixa uma mensagem oral ao se levantar
da cama. Nota-se ali um ligeiro sotaque canadense, a voz duvida, as consoantes hesitam, as
vogais se arrastam, vão ganhando espaço e de repente se transformam em uma repetitiva e des-
conhecida prece. Para quem ainda não conhecia a proposta dos espetáculos do Encyclopédie
de la Parole, não era possível em um primeiro momento suspeitar que aquilo que se ouvia era
a reprodução de falas gravadas. A primeira fala instaura uma atmosfera, cria uma qualidade de
escuta, uma relação de confiança com a plateia permitindo à atriz muito sutilmente deslizar para
outra fala. Cria-se um pequeno estranhamento respiratório, em seguida uma ruptura de ritmo,
um choque de sentido... e o jogo está lançado. Embora não me recorde com exatidão da sequ-
ência falada, lembro-me de que aquilo que mais me chamou a atenção na performance da atriz
era o deslizar de uma fala para a outra e a metamorfose corporal que isso induzia. Seus gestos,
postura e expressões se deixavam modelar pelas variações orais, sem que houvesse a vontade
ou a necessidade de representar um personagem, ou imitar a pessoa “dona” da fala. Era como
se a atriz se deixasse hipnotizar por aquilo que dizia, transformando-se através da própria ação
de falar e não em função do conteúdo da fala. Havia sempre uma minuciosa surpresa que se
renovava a cada fala, um prazer em descobrir a plasticidade daquele corpo-voz.
Vi esta performance com estudantes universitários de teatro no contexto de um “Atelier du
spectateur”, um curso voltado para a experiência do espectador e a análise da representação,
no qual debatíamos e estudávamos em sala de aula diferentes espetáculos. Parlement deu o
que falar. A estética do espetáculo contrariava as expectativas e os a prioris teatrais de uns, e 37
revelava, a outros, uma abordagem lúdica da fala no palco. Uns diziam que o espetáculo, por
ser uma justaposição de falas gravadas, não possuía uma real dramaturgia, outros, brincando
de reconstituir mentalmente os contextos de enunciação das falas, não mostrados em cena,
contavam ter vivenciado o espetáculo como uma experiência em si, como um jogo de imagi-
nação. Havia também aqueles que abandonaram a tentativa de seguir o sentido das falas, uma
vez que o que importava era vê-las sendo ditas e não o que efetivamente diziam. E havia ainda
aqueles que, embora admirados com a virtuosidade da atriz, não reconheciam o espetáculo
como uma forma teatral, mas como a apresentação de um exercício vocal. Saímos dali reple-
tos de nossas discórdias, mas com a certeza de que algo em Parlement intrigava.
Ao me debruçar novamente sobre o trabalho de Lacoste, e retraçando o episódio da aula
que me veio à memória, vejo com recuo que a discussão suscitada por Parlement tocava em
um ponto nevrálgico da cultura teatral francesa. Pois tanto no que diz respeito à concepção
de uma dramaturgia quanto no que concerne à atuação, a performance vinha questionar, de
forma talvez inédita para alguns alunos, o estatuto da fala nas práticas teatrais.
O que primeiramente incitava a curiosidade ou a crítica dos alunos era a possibilidade de
conceber uma dramaturgia composta exclusivamente de falas, que não criam entre si nem
diálogos, nem história, nem representação. Duvidando da natureza e da capacidade miméti-
ca do teatro, Joris Lacoste explora, desde suas experimentações com o Projet W, métodos,
ferramentas e estratégias para desconstruir o pacto de ficção que define, mesmo que tacita-
mente, o tipo de expectativa que o espectador tende a ter diante de um espetáculo teatral:
Não tenho a convicção de que o teatro disponha de meios particularmente adaptados
para contar ou representar histórias, expondo situações, ou mostrando subjetividades que
se enfrentam em um espaço específico. No entanto, este continua sendo o modelo domi-
nante das dramaturgias atuais. A ideia, em particular, de que o teatro nos apresenta um
entrevista com joris lacoste
espelho (deformador ou não) da sociedade está longe de ter desaparecido. A meu ver, a
sociedade já se representa bem demais sozinha. Por isso prefiro criar dramaturgias fora da
representação – fora da história, dos personagens, dos diálogos [...] E assim dar ao apareci-
mento da fala todo o seu valor e à presença do ator todo o seu peso. São essas as vias que
exploro atualmente. Parto do princípio de que o tempo do palco deve coincidir com o tempo
do público, que o espaço não designa nada além de si próprio, que o ator não designa nada
a mais que sua atuação. (LACOSTE, L’événement de la parole, 2011)2
Por mais frequente que possa aparecer o discurso crítico da representação dentro do contexto
da cena performativa, a questão explorada pelo artista-pesquisador tem uma envergadura prática
importante. De quais modos e meios dispõe um dramaturgo – ou, de maneira mais abrangente, um
criador de espetáculos –, para compor uma dramaturgia fora do regime da ficção?
Ora, o que é original no trabalho que desenvolve Joris Lacoste com o Encyclopédie de la
Parole é que a desconstrução da representação teatral se dá a partir da pedra de toque da
forma dramática: a fala. A aposta de Lacoste é pensar o dispositivo teatral como uma possibili-
dade de trazer à tona a dramaticidade latente no ato de falar. Os espetáculos do Encyclopédie
de la Parole condicionam e incitam o espectador a ver e ouvir as falas de outras maneiras,
trazendo a atenção para as qualidades físicas da voz, seu timbre, sua melodia, seu volume,
seu fôlego... O revelar desses microfenômenos da fala torna-se um acontecimento em si,
emergindo assim uma dramaticidade sem drama.
Ou seja, a questão dramatúrgica de como criar uma dramaturgia fora da representação é tam-
bém, e talvez intrinsecamente, uma questão de atuação e de direção de ator, pois ela não diz res-
38 peito exclusivamente às escolhas do dramaturgo, mas se interessa pela relação que se estabelece
entre ator e espectador: o que é dar a ouvir uma fala ao espectador? E o que é dar a ver uma fala?
Nas salas de ensaio e nos cursos de teatro na França, convive-se com uma frase, de
aparência evidente, que os diretores, professores, alunos, atores e espectadores empre-
gam sem parcimônia: “Il faut faire entendre le texte”. Ao pé da letra, “deve-se fazer ouvir
o texto”, só que em francês “entendre” tem um significado ambíguo, pois quer dizer ou-
vir e também compreender. “Faire entendre le texte”... o que tal frase quer efetivamente
dizer? Projetar a voz de maneira audível e com uma dicção clara? Dizer um texto de ma-
neira inteligível? Dar sentido às falas pronunciadas? Se a língua falada no palco não for o
francês o texto poderá ainda assim ser “entendido”? Se o espectador não compreender
francês ele também não poderá “entendre” o texto? E se, no teatro, como pode ser o
caso na estética cinematográfica, nem tudo o que fosse dito fosse audível? E se várias
pessoas em cena falassem ao mesmo tempo, como seria possível “entendre” o texto? O
que se entende por “entendre” um texto?
Desconfiado das evidências, Joris Lacoste assume um olhar crítico sobre uma certa tradi-
ção literária e purista da prática teatral enrustida no célebre “faire entendre le texte”, tradição
essa que se manifesta e se reconhece no corpo do ator em cena:
Existe no teatro francês uma ideologia do “dispositivo neutro”, que pode ser reconhecida
através de um puritanismo difuso, de espaços abstratos, uma fobia de todos os signos, a rei-
vindicação do “essencial”... Mas esse dispositivo pode ser reconhecido sobretudo através de
uma postura fantasmal dos corpos, uma maneira tão característica, lenta e literal, sincera e
superarticulada dos corpos falarem: como se a única ação possível fosse dizer, como se a re-
lação com o texto não pudesse se incarnar sem o sacerdotal “faire entendre le texte”, fazendo
do ator um servidor, um passador do texto. (LACOSTE, 2007)
2 Texto publicado inicialmente na revista Mouvement, dossiê “A palavra viva do teatro”, editado por Bruno
Tackels e Hervé Pons em outubro de 2001.
Fica claro que para Joris Lacoste criar uma dramaturgia fora da representação implica livrar
a fala do seu valor hermenêutico e o ator de sua função de guardião do sentido das palavras.
No trabalho do Encyclopédie de la Parole a atuação se define como uma prática da oralidade,
como “a vocação de um corpo em busca de outro corpo” , sugeriria Georges Banu (1997, p.
88). Celebrando a diversidade das manifestações orais e exaltando a dimensão lúdica do fa-
lar, o corpo do ator se libera de uma postura e posição de mastro semântico da cena. Sem o
dever de projetar o sentido, o corpo apenas chama. Chama outras formas de atenção, outras
maneiras de ver e ouvir o mundo, trazendo à tona percepções que foram longamente caladas.
De onde vem a ideia de criar o Encyclopédie de la Parole no início dos anos 2000?
Trata-se inicialmente de um conceito de criação, um procedimento de trabalho, um co-
letivo de artistas, ou uma vontade de catalogar e expor de maneira metódica o conjunto
de falas do mundo?
Veio do gosto que tenho e sempre tive pela oralidade, do prazer que sinto ao escutar pes-
soas falando. Gosto das vozes e de suas acrobacias. Acho que o meu interesse pela poesia
dita, sonora e pelo teatro vem daí, dessa curiosidade pela infinidade de modos, timbres, regis-
tros, inflexões e sotaques que observamos nas mais variadas falas. Eu achava que o teatro,
de modo geral, não fazia jus a essa riqueza, a essa diversidade. Investiu-se tanto no texto que 39
se esqueceu de que a fala em si é um elemento essencial do teatro, cujo texto é somente uma
das dimensões. A fala é sempre considerada como o simples veículo do texto, trata-se de “dar
a ouvir o texto”, mas raros são os diretores que vão até as últimas consequências dessa con-
cepção. As maneiras de falar no teatro são fortemente codificadas. Quando se compara a pa-
lavra teatral à palavra social, tem-se uma clara impressão de estilização e de achatamento. Ao
contrário da literatura, que muito se alimentou da inventividade, das singularidades e até mes-
mo das aberrações dos falares populares, a palavra teatral contemporânea pouco aproveitou,
a meu ver, as potencialidades da língua falada. Sua tendência é proceder por filtragem ou por
purificação. No meu caso, a vontade era mostrar que o que chamamos de “sentido” não reside
somente nas palavras, mas sobretudo – e de maneira às vezes decisiva – no falar. Para ouvir
e fazer ouvir toda a riqueza de uma fala ordinária, comecei a colecionar gravações de falas
reais, a partir de fitas K7, de compilações, de CDs, de antologias, de coisas ouvidas no rádio
e, em seguida, a partir de vídeos e de áudios que foram aparecendo na internet. Chegando nos
Laboratoires d’Aubervilliers em 2007, decidi reunir pessoas que compartilhassem comigo esse
interesse pela palavra e constituir um pequeno grupo de pesquisa. Achava interessante abor-
dar essa questão através de práticas e competências diversas: música, sociologia, poesia,
documentário, linguística, rádio, artes sonoras, teatro, e até mesmo dança e artes plásticas. O
nosso primeiro objetivo foi coletar gravações de falas em todas as situações possíveis, sem
nenhuma restrição a priori. O que nos interessava era investigar as semelhanças e os paren-
tescos entre falas “do tipo nobre”, poesia, teatro, política, e gravações “vulgares”, comentários
da bolsa ou jogos de televisão, não para fazer uma comparação de valores, mas para observar
como a fala é criada e inventada em todos os lugares da sociedade, e até mesmo, às vezes,
em lugares inesperados ou mal considerados. A ideia era criar uma biblioteca da oralidade que
nos desse a ouvir a maior variedade possível de formas faladas, algo que viesse a ser uma
entrevista com joris lacoste
ferramenta para todos aqueles que trabalham com a fala. É claro que aquilo que coletamos é
uma minúscula parcela da diversidade da fala, mas acumular não é o principal, e sim identificar
um certo número de fenômenos, achar exemplos significativos e criar conexões inesperadas.
Como você procedeu para escolher as gravações para Suíte n° 1 e Suíte n°2? Qual foi
o princípio?
A escolha dos documentos é inseparável do processo de composição. Eles são escolhidos
menos em função de um princípio preestabelecido do que pelas relações que apresentam en-
tre si, pelas afinidades que supomos possíveis, pelas promessas de diálogo que imaginamos
entre eles. Quando começamos a trabalhar uma nova peça, eu defino os eixos dramatúrgicos:
os primórdios da palavra em Suíte n°1, a palavra como ação em Suíte n°2. A partir desses
eixos, formamos alguns critérios que vão nos permitir selecionar coletivamente uma vasta
série de documentos. A partir deste primeiro levantamento, escolho e organizo as falas que
vão figurar na peça. Primeiro é preciso escutá-las. De tanto escutá-las, acaba-se por compre-
endê-las intimamente e algumas impõem-se não como elementos de uma composição, mas
como possíveis personagens que dialogam entre si por simpatias, contrastes, concordâncias
e pontos de dissonância. Os encontros se organizam, nós acompanhamos, e, em determinado
momento, momento, tudo começa a dialogar e a contar algo de particular.
chega por cima da fala do ministro de finanças, de novo ele, explicando ao povo português
que o plano de reestruturação imposto pela Troika, embora demande ao país enormes sacri-
fícios, é a única solução para o problema da dívida portuguesa. O eco evidente entre esses
dois discursos é reforçado pelo fato de o coach ser alemão, e bem sabemos o papel que tem
a Alemanha nas discussões do Eurogrupo.
43
Referências:
sinopse
histórico
O francês Joris Lacoste (1973) vive e trabalha em Paris. Escreve para teatro e rádio
desde 1996 e realiza os próprios espetáculos desde 2003. Assinou 9 Lyriques Pour
Actrice et Caisse Claire, no Laboratoires d’Aubervilliers, em 2005, e Purgatoire, no
Théâtre National de la Colline, em 2007. De 2007 a 2009, foi codiretor dos Labora-
toires d’Aubervilliers. Em 2004, lançou o projeto Hypnographie para investigar as
funções artísticas da hipnose, que resultou em vários trabalhos, como uma peça
radiofônica, um espetáculo e uma performance. Iniciou dois projetos coletivos, W,
em 2004, e Enciclopédia da Fala, em 2007. Esse último pesquisa as formas de ora-
lidade e reúne músicos, poetas, diretores, artistas visuais, atores, sociolinguistas
e curadores, que coletam todos os gêneros de gravações de falas e as catalogam
em seu site, de acordo com especificidades, tais como cadência, musicalidade,
timbre, origem, saturação ou melodia. Em 2013, a Enciclopédia da Fala deu início
a um ciclo de quatro suítes para coral, todas baseadas no mesmo princípio: a
reprodução ao vivo das gravações extraídas do seu arquivo.
D
as inúmeras particularidades da língua francesa, uma das mais poéticas é a forma como
designa o termo ‘palavra’. Existem duas possibilidades. A primeira delas, mot, remete à
palavra como sinônimo de termo ou vocábulo. Já a segunda, parole, determina seu uso,
sua oralidade, podendo também ser traduzida por fala ou discurso. O dramaturgo franco-suíço
Valère Novarina reforça essa particularidade: “uma coisa interessante é que nem todas as línguas
têm a palavra parole oposta à palavra mot[...] em francês pode haver uma oposição entre mot, que
é algo de seco, e parole, que é fluida” (NOVARINA apud LOPES; KFOURI; REYS, 2011, p. 11-12)
Há uma forma de criatividade na palavra cotidiana que me toca. O lugar da criação, onde se cria
uma forma, não está somente na esfera reservada à cultura. Basta escutar as coisas para saber
como elas podem ter uma forma. (LACOSTE apud DARGE, 2015)2
Porém, ressaltamos que o interessante no trabalho do grupo é que ele não focaliza
somente a sonoridade francesa, possuindo um arquivo que diversifica, cada vez mais, o
1 Livre tradução do trecho em francês: “Nous sommes tous des experts de la parole”..
2 Livre tradução do trecho em francês: “Il y a une forme de créativité dans la parole cotidienne, qui me touche. L’endroit
de la creation, où une forme se crée, ce n’est pas seulement dans le domaine reservé de la culture, Il suffit d’ecouter les
choses pour savoir comment elles peuvent avoir une forme.”
3 Livre tradução do trecho em francês: “Qu’y a t-il de commun entre la poésie de Marinetti, des dialogues de Louis de
Funès, un commentaire de tiercé, une conférence de Jacques Lacan, un extrait de South Park, le flow d’Eminem ou de
Lil Wayne…”
repertório de línguas e sonoridades presente no mundo. Isso reforça a ideia de Babel, de
uma pluralidade de linguagens que, a princípio, pode remeter à confusão, mas somente se
nos apegarmos a questões de significado.
É dessa forma que podemos fazer alusão à passagem bíblica que explica porque temos
essa diversidade de linguagens no mundo. Segundo o Gênesis, a Terra possuía somente uma
língua até o momento em que o homem tentou construir uma torre tão alta que pudesse chegar
ao céu. Diante de tamanha presunção, Deus acabou por dividir os povos em diversas línguas
com intenção de dificultar a comunicação. Isso acabou por impedir a construção da torre e
Babel ficou conhecida como sinônimo da confusão das línguas. Porém, o que o Encyclopédie
de la Parole intenta é justamente edificar obras potentes a partir da pluralidade de linguagens.
A Babel é construída a partir da musicalidade que as diversas línguas apresentam, e a comu-
nicação não se torna mais a base para sua elaboração. Ou seja, a Babel se torna possível pela
sua diversidade e multiplicidade de sons.
Lacoste já havia dirigido Parlement pelo Encyclopédie de la Parole quando propôs a cria-
ção de um ciclo de quatro suítes corais. O encenador e dramaturgo francês é um de seus
fundadores e tem peças publicadas pelo Théâtre Ouvert, importante espaço de difusão de no-
vas dramaturgias em Paris, e pela Inventaire/Invention, editora de livros teatrais. Como diretor
já produziu espetáculos para o Laboratoire d’Aubervilliers e o Théâtre National de la Colline,
notáveis centros de pesquisa teatral. Já com o coletivo, apresentou-se em diversos países da
Europa com espetáculos e performances.
Na série de espetáculos propostos a partir de suítes corais, Lacoste pretendia que todas as
peças repousassem sobre o mesmo princípio: a reprodução ao vivo das gravações tiradas do
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repertório do Encyclopédie. O termo suíte é utilizado na música para indicar uma composição
instrumental com diversidade de andamentos, que acompanha certos estilos de dança. O
coletivo se apropria desse termo para fazer referência aos diversos movimentos sonoros que
seus espetáculos exploram.
A partir disso, estreia em 2013 Suíte n°1, que trata justamente da aprendizagem da lin-
guagem, como indica o subtítulo “ABC”. A partir do arquivo de gravações sonoras construiu-
-se um espetáculo que intentava discutir a partir da sonoridade qual é o processo para que
possamos falar algo, qual é a passagem do barulho à comunicação e ao prazer de falar. O
espetáculo é realizado por 23 intérpretes em nove línguas.
Em Suíte n°2 Lacoste continua sua pesquisa a partir dos arquivos, para, dessa vez, apre-
sentar o que a linguística chama de “atos de fala”. O encenador pretende exaltar no espetácu-
lo o poder de ação das palavras, mas sem enfatizar sua semântica, seu significado. Lacoste
nos indica que mesmo o som e a oralidade em si propõem mudanças, transformações no real:
E o que me interessa particularmente é fazer ouvir não somente as palavras que são ditas.
Todo o sentido do projeto Encyclopédie de la Parole é acreditar que a forma da palavra,
suas inflexões, seus acentos, seus silêncios, são tão significantes – às vezes ainda mais –
quanto os enunciados propriamente ditos. (LACOSTE, 2015) 4
4 Livre tradução do trecho em francês: “Et ce qui m’intéresse particulièrement, c’est de faire entendre non seulement les
mots qui sont dits, mais aussi la manière dont ils le sont. Tout le sens du projet de l’Encyclopédie est de croire que la forme
de la parole, ses inflexions, ses accents, ses silences, sont tout aussi signifiants – parfois même beaucoup plus – que
les énoncés proprement dits.”
5 São elas: inglês (britânico, americano e australiano), japonês, francês, árabe, polonês, alemão, português, espanhol,
russo, croata, lingala, chinês, dinamarquês e urdu.
Acompanhamos a tradução delas em um telão, mas a impressão que temos é a de que elas
são coadjuvantes diante de todas as sensações que a fala musicada ou a música falada nos
provoca. A direção de Lacoste é acompanhada da colaboração do maestro Pierre-Yves Macé,
que trabalha com o objetivo de enfatizar a condição musical das palavras.
Em Suíte n°2 o desafio é entrar no drama, isto é, etimologicamente, na ação. Fazer ouvir as
palavras que se inscrevem no mundo, que fazem alguma coisa, as palavras “performativas”
que agem ou tentam atuar no real. Eu pensei que ali poderia haver um desafio teatral para
compor um espetáculo de ação, mas no qual a ação passaria inteiramente através da voz.
(LACOSTE, 2015)6
Austin faz parte da corrente da filosofia analítica que propõe discutir como um som pode
52 significar algo, como a linguagem pode referenciar uma coisa. Sua obra mais importante,
Quando dizer é fazer (1990), é a junção de uma série de conferências que proferiu na Univer-
sidade de Harvard em 1955. Nesse estudo, Austin parte da ideia de que a linguagem deve ser
estudada como um campo em constante transformação, cujas definições e conclusões só
podem ser declaradas de acordo com o uso que determinado grupo faz.
O que o britânico Austin desvenda a partir dessa percepção da linguagem é que, para além
do uso no cotidiano, ela também tem o poder de transformar a realidade. Portanto, começa
os seus estudos listando uma série de proposições capazes de operar enquanto enunciados
performativos que, agindo e transformando a realidade, distinguem-se dos enunciados cons-
tatativos (AUSTIN, 1990, p. 21). Austin exemplifica vários enunciados performativos, principal-
mente aqueles que utilizam os verbos prometer, declarar, suplicar, protestar, batizar etc. Com
isso, inverte a ordem até então mais reconhecida de que a linguagem existe para nomear o
mundo. O teórico transforma essa chave e nos convida a pensar a linguagem numa posição
ativa, na qual opera transformações na realidade. Alguns exemplos simples dessas operações
são “eu vos declaro marido e mulher” ou “eu batizo esse barco como Elisabeth III”.
Apesar de revelar que essas proposições não podem ser consideradas no campo da fic-
ção, Austin tem ainda hoje um grande impacto nas linguagens artísticas, principalmente a par-
tir do momento em que a maioria delas se esforçava em explodir o campo da representação
e discutir a arte como presença efetiva e atuante na sociedade. A proposição de Austin sobre
os atos de fala revela um campo expandido de atuação da linguagem, e obras artísticas que
começavam a se desligar da ficção utilizavam esse conceito para trabalhar a palavra enquanto
performatividade e não apenas como comunicação e representação.
6 Livre tradução do trecho em francês: “Pour Suite n°2, l’enjeu c’est d’entrer dans le drame, c’est-à-dire, étymologi-
quement, dans l’action. Faire entendre des paroles qui s’inscrivent dans le monde, qui font quelque chose, des paroles
“performatives” qui agissent ou tentent d’agir sur le réel. J’ai pensé qu’il pouvait y avoir un enjeu théâtral à composer avec
elles un spectacle d’action, mais où l’action passerait entièrement par les voix. ”
É neste contexto que Suíte n°2 resgata a ideia de Actes de Parole e realiza a pesquisa em
seu arquivo a partir dessa utilização da linguagem. São diversas as situações que o espetáculo
apresenta: o discurso de George Bush convocando para a Guerra do Iraque, a reclamação de
um cliente de uma empresa de telefonia, um curso de ginástica, a explicação de um veredito,
uma aula de meditação, uma declaração de amor. São apenas alguns exemplos de como o
espetáculo explora a questão da palavra como ação, da linguagem operando diretamente
naquilo que chamamos e compreendemos por realidade.
Que significado tem, nesse caso, a noção de “respeito” ? Paradoxalmente, é extraindo essas
palavras de sua situação de origem, na qual muito está em jogo, que podemos ouvi-las em toda
sua realidade. O que o teatro permite, eu acredito, não é reproduzir a realidade, mas torná-la real.
(LACOSTE, 2015)7
Portanto, o que Lacoste tenta nos explicar é justamente o poder do teatro em performatizar
os materiais. Dessa maneira, podemos afirmar que o próprio teatro é um espaço de realização do
real, de convivência em assembleia e de produção de materiais inteiramente complexos e únicos.
Transportando essa questão para a palavra, quando um ator fala o enunciado, por mais que seja
uma reprodução idêntica, está acontecendo daquela forma somente naquele momento, naquele
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espaço do teatro. É essa condição que Lacoste parece resgatar. E é por isso que o argumento de
Austin sobre a impossibilidade da utilização dos atos de fala no ambiente da arte se torna total-
mente inadequado. O teatro e sua condição de tornar uma situação real acaba justamente por ser
um dos maiores portadores dos atos de fala. No teatro, o ator fala e, portanto, age.
Uma questão que me persegue é: o que é uma palavra verdadeira? Uma palavra autêntica,
necessária? Como nós podemos distingui-la de todas as palavras vãs, falsas, padronizadas
e repetitivas? Por quais necessidades particulares certas palavras espontaneamente surgem
e parecem aderir completamente à situação que as produziu? Há muitas palavras de recusa
ou de revolta na peça, falas em crise, falas encurraladas. O que me interessa é o contraste
entre as palavras enquadradas e as que sublimam esse enquadramento. (LACOSTE, 2015)8
Como indicamos anteriormente, outro aspecto que devemos levantar nessa reflexão sobre
Suíte n°2 é justamente o trabalho musical realizado pelo maestro Pierre-Yves Macé. Além do
espetáculo possuir um título que advém da música, os cinco atores-performers vestem preto
e se colocam atrás de estantes para partitura como se estivessem prontos para a execução
coral de alguma peça musical. Em diversos momentos o espetáculo é acompanhado de uma
bateria eletrônica que, sem nenhum objetivo de enquadrar ou transformá-lo em uma partitura
rígida, reforça e evidencia os ritmos e as entonações criadas pelas vozes.
7 Livre tradução do trecho em francês: “Quel sens prend, dans ce cas, la notion de ‘respect’ ? C’est paradoxalement en
extrayant ces paroles de leur situation d’origine, où trop de choses étaient en jeu, qu’on peut les faire entendre dans toute
leur réalité. Ce que le théâtre permet, je crois, ce n’est pas de reproduire la réalité mais de la rendre réelle.”
8 Livre tradução do trecho em francês: “Une question qui m’obsède est : qu’est-ce qu’une parole vraie ? Une parole sin-
cère, authentique, nécessaire ? Comment peut-on la distinguer de toutes les paroles vaines, fausses, normées, rabâchées
? Par quelles nécessités particulières certaines paroles spontanément surgissent et semblent adhérer complètement à la
situation qui les produit ? Il y a beaucoup de paroles de refus ou de révolte dans la pièce, de paroles en crise, des paroles
poussées dans leurs retranchements. Ce qui m’intéresse, c’est le contraste entre des paroles cadrées et des paroles qui
brisent le cadre.”
Ressaltamos ainda, nesse trabalho, a construção de dois níveis distintos de musicalidade,
que se completam. Um deles é o trabalho técnico de reprodução das falas. Em cada língua
apresentada existe uma musicalidade, reforçada principalmente pelos sotaques – o inglês, por
exemplo, é dito em três acentos distintos – o americano, o britânico e o australiano. Cada lín-
gua e cada situação dada possui uma qualidade vocal extremamente específica e a reprodu-
ção dessas minúcias passa por um domínio técnico visivelmente aprofundado, mas também
pela sensibilidade dos atores que trabalham em cena como se cantassem as palavras.
Por outro lado, o trabalho do maestro, juntamente com o diretor Lacoste, promove outro
nível de leitura do espetáculo: as sobreposições, a simultaneidade, a repetição, o eco e a
ambientação sonora construída em torno de cada fala exaltam em alguns momentos, e,
em outros, problematizam a construção sonora original, produzindo tensões extremamente
potentes no decorrer do espetáculo. Nesse sentido, exemplificamos com o trecho falado
em língua portuguesa. Com ritmo extremamente lento, ele é sobreposto a mais de 10 gra-
vações com ritmos, situações, alturas e andamentos completamente distintos, construindo
uma paisagem sonora que ultrapassa o entendimento lógico das situações de origem e nos
coloca em ato, presentes, experienciando uma nova compilação de sons. Sobre as sobre-
posições e montagens, Lacoste explica:
Aqui, trata-se de fazer coexistir diferentes palavras, mas não somente como uma montagem su-
cessiva, como nas peças anteriores. Em alguns momentos nós tentamos fazê-las coexistir ao
mesmo tempo, o que produz algo muito novo para mim – formas ressonantes que permitem
que eu me libere da montagem linear. Não se trata mais de criar uma terceira relação entre dois
elementos, mas um conjunto de relações possíveis, em termos de conteúdo, forma e situação: o
54 significado torna-se uma tonalidade movente, um acordo complexo feito de registros em constan-
te mudança. (LACOSTE, 2015)9
É nesse contexto que podemos afirmar que se trata de um espetáculo que borra os limites
entre o canto e a fala e nos proporciona, a partir dessa configuração, uma nova relação entre
significante e significado. Seguindo essa configuração borrada de materiais e criações de sen-
tidos provisórios e sensações múltiplas, nos questionamos sobre a construção estrutural do
espetáculo e a forma como as gravações foram escolhidas e colocadas em ordem. Todos esses
questionamentos ainda se encontram na reflexão sobre a atuação da música no espetáculo. À
primeira vista, podemos equivocadamente afirmar que as gravações são alinhadas e sobre-
postas aleatoriamente, pois não há nenhuma ordem de sentido, nenhum desenho que nos su-
gira qualquer construção narrativa, qualquer relação semântica entre os trechos apresentados.
São situações extremamente plurais, sobretudo nas temáticas. Porém, um outro fio condutor
nos transporta pelo espetáculo. Como em uma sinfonia, os registros vocais nos revelam sons
ora harmoniosos, ora dissonantes, num andamento que passa por solos, duetos e momentos
corais. As construções musicais do espetáculo mostram uma existência não lógica de sons,
potentemente comunicante, algo além de uma construção ordenada de acontecimentos.
Para que o espetáculo chegasse a essa estrutura não linear, a equipe de criação traçou
um percurso também não lógico de triagem das gravações. São definidos eixos de classifica-
ção mutáveis, a partir dos quais a equipe faz uma primeira seleção dos materiais. Após isso,
escolhe e organiza os documentos que estarão no espetáculo através de uma sensibilidade
musical, fora dos preceitos narrativos:
9 Livre tradução do trecho em francês: “Ici, il s’agit de faire coexister différentes paroles, mais plus seulement dans un
montage successif comme dans les pièces précédentes. À certains moments, on tente de les faire exister en même
temps, ce qui produit quelque chose de très nouveau pour moi – des formes de résonance qui me permettent de me
libérer du montage linéaire. Il ne s’agit plus de créer un rapport tiers à partir de deux éléments, mais un faisceau de rela-
tions possibles, sur des niveaux à la fois de contenu, de forme et de situations : le sens devient une tonalité mouvante, un
accord complexe fait de registres toujours changeants.”
Eu diria que os documentos se impõem por uma mistura de sorte, de intuição e de obstinação.
O objetivo é achar palavras que possuam nelas mesmas um tipo de perfeição, que se sustentem
independente do contexto no qual foram produzidas. É necessário escutá-las até que tenhamos a
impressão de compreendê-las intimamente. (LACOSTE, 2015)10
Acreditamos que a organização final do espetáculo passa antes de tudo por um entendi-
mento da natureza do material. A oralidade advém de uma proposição não indicativa, na qual a
existência de repetições, saltos de tempo e espaço, e a composição não linear de nuances de
ritmo e intensidade são pontos cruciais para o entendimento. Suíte n°2 parece compreender
essa lógica e nos proporcionar uma viagem sem caminhos óbvios, em um percurso melódico
intenso e provocativo.
Referências:
AUSTIN, John. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Tradução de Danilo Marcondes de
Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
DARGE, Fabienne. Avec Suite nº2, Joris Lacoste tient sa parole. Le Monde, 1 oct. 2015.
Disponível em: http://www.lemonde.fr/scenes/article/2015/10/01/avec-suite-n-2-joris-lacos-
te-tient-sa-parole_4779353_1654999.html. Acesso em: 15 jan.2018.
ENCYCLOPÉDIE DE LA PAROLE. Disponível em: https://www.encyclopediedelaparole.
org/. Acesso em: 15 jan.2018.
LACOSTE, Joris. Entretien avec Joris Lacoste. 2015. Disponível em: http://www.kfda.be/fr/
programme/suite-n2-2. Acesso em: 28 jan. 2018.
LOPES, Angela Leite; KFOURI, Ana; REYS, Bruno Netto dos (Orgs.). Novarina em cena. Rio
de Janeiro: 7Letras, 2011.
10 Livre tradução do trecho em francês: “Je dirais que les documents s’imposent par un mélange de hasard, d’intuition
et d’obstination. L’objectif est de trouver des paroles qui ont en elles-mêmes une sorte de perfection, qui tiennent debout
toutes seules hors du contexte dans lequel elles ont été produites. Il faut les écouter jusqu’à ce qu’on ait l’impression de
les comprendre intimement.”
campo
minado
Lola Arias
fotos Sofia Medici
“O campo minado do título é uma metáfora para o
a própria guerra”.
sinopse
Campo Minado reúne argentinos e ingleses que lutaram na guerra das Malvinas
(1982) para investigar o que permaneceu em suas mentes, passados mais de
trinta e cinco anos do conflito armado entre Argentina e Reino Unido pelo con-
trole da região. Em um set de filmagem transformado em máquina do tempo,
seis ex-combatentes são levados a reconstruir as suas experiências de guerra e
memórias. O único laço que eles têm em comum é o fato de serem veteranos.
Mas o que isso significa? Um sobrevivente, um herói, um louco? O espetáculo
61
examina as marcas deixadas pela disputa, a relação entre a experiência e a fic-
ção e as formas de representação da memória.
histórico
E
m um pequeno fragmento escrito por volta de 1932 e publicado postumamente sob o
título “Escavação e Memória”, Walter Benjamin observa:
A linguagem deixou indiscutivelmente claro que a memória não é um instrumento para explorar o
passado, e sim um meio. É o meio daquilo que é experienciado, assim como a terra é o meio no
qual cidades antigas jazem sepultadas. Aquele que busca abordar seu próprio passado enterrado
deve conduzir-se como um homem que escava. Acima de tudo, ele não deve temer retornar repe-
tidas vezes à mesma matéria, para espalhá-la como se espalha a terra, revolvê-la como se revolve
o solo. Pois a “própria matéria” não é mais do que o estrato que produz seus tão almejados
segredos somente para a investigação mais meticulosa.1 (BENJAMIN, 1999, p. 576)
Assim como as cidades antigas, as memórias jazem, em grande parte, sepultadas. Para Ben-
jamin, é preciso proceder, de forma metódica e meticulosa, como um arqueólogo, cuja pá sonda
cuidadosamente a argila escura. A analogia de Benjamin nos remete a outra, elaborada alguns
anos antes por Freud em seu artigo Uma nota sobre o bloco mágico (1925), no qual ele descreve
a tabuinha de cera coberta por uma camada dupla, composta por uma folha de celuloide e uma
folha fina encerada e translúcida, que ilustra o funcionamento da psique: os traços da escrita
sobre a superfície desaparecem ao levantarmos as folhas, mas um exame atento revelará que
os mesmos permanecem indeléveis no papel encerado. Da mesma forma, os traços da memória
62 são impressos em nosso inconsciente, em camadas subjacentes ao sistema perceptivo, e não
podem ser apagados definitivamente. A psique constitui-se, assim, como um arquivo em que
traços da memória são continuamente armazenados, censurados e, em certos casos, reprimi-
dos. A psicanálise, nesse sentido, configura-se como “uma ciência do arquivo, incessantemente
preocupada com questões de memória e esquecimento”. (VAN ZYL, 2002, p. 41)
No bloco mágico, a folha de celuloide protege o fino papel encerado da pressão da escrita que
poderia rasgá-lo. Segundo Freud, nosso aparelho psíquico perceptual também consiste em duas
camadas, uma que nos protege contra estímulos, reduzindo seu impacto e magnitude, e outra, a
superfície receptora desses estímulos. Em casos extremos de eventos catastróficos como guerras,
acidentes e tragédias, cuja lembrança se torna insuportável para aqueles que os vivenciaram, as
memórias traumáticas, num primeiro momento reprimidas pelo inconsciente, retornam muitas vezes
posteriormente, de modo incontrolável, repetido, manifestando-se em forma de alucinações, sonhos
ou outros sintomas. Paradoxalmente, é apenas por meio da tentativa de relembrar ou narrar o evento
traumático, elaborando (working through) o trauma e seus mecanismos de resistência, que o sujeito
é capaz de acessar a memória inconsciente e, eventualmente, libertar-se de seus sintomas. Não
surpreende que, em uma época (pós)traumática como a que vivemos, abalada por duas guerras
mundiais, o Holocausto, a explosão da bomba atômica, inúmeros genocídios étnicos e religiosos,
além da ameaça de uma guerra nuclear, o testemunho se tornou, como observa Shoshana Felman,
“um modo crucial de nossa relação com […] os traumas da história contemporânea”. De fato, “nossa
época pode ser definida precisamente como uma era do testemunho.” (FELMAN; LAUB, 1992, p.
5) Não apenas no campo da psicanálise, mas nas artes e na literatura em geral, o testemunho tem
se revelado um modo discursivo privilegiado na reflexão sobre a história contemporânea. O mesmo
se dá com o tropo do arquivo, que a partir dos anos 1960 marca forte presença na teoria e na arte
contemporânea, tanto por meio do uso de coleções, séries e inventários, quanto da exploração da
própria arquitetura do arquivo em obras de artes visuais, cinema e teatro.
1 Tradução da autora.
Campo Minado, o mais recente trabalho da dramaturga e diretora argentina Lola Arias, é
uma dramaturgia de testemunho. Em cena, seis veteranos de guerra – três argentinos e três
ingleses (incluindo um Ghurka2) – testemunham e reconstroem, sob o olhar dos espectadores
(aqui também transformados em testemunhas), um trauma binacional: a guerra das Malvinas,
ou The Falklands War. Como o escavador de Benjamin, os veteranos revolvem continuamente
o solo da memória e vão revelando, a partir de arquivos pessoais, histórias da guerra, com-
pondo uma narrativa simultaneamente autobiográfica e política.
Uma das últimas colônias inglesas de além-mar, em disputa desde 1833 quando os britâ-
nicos as ocuparam, e reivindicadas pelos argentinos desde então, as ilhas Malvinas tornaram-
-se, em 1982, o cenário de uma guerra que durou 74 dias e deixou quase mil mortos e um
número ainda maior de feridos.
Desde 1976 sob forte ditadura militar – responsável pela morte e desaparecimento de 30
mil pessoas –, a Argentina em 1982 atravessava profunda crise econômica, inflação galopante
e crescente insatisfação popular com o regime, e acabava de enfrentar uma bem-sucedida
greve geral organizada pela central sindical. Na tentativa de consolidar o apoio ao governo por
meio de um apelo patriótico, a Junta Militar que governava o país sob a liderança do General
Leopoldo Galtieri resolveu invadir e retomar as Malvinas. A estratégia mobilizou o povo argen-
tino que, num afã nacionalista, tomou as ruas em apoio ao governo, garantindo-lhe uma curta
sobrevida. Mas a dura derrota argentina dois meses e meio depois resultaria no fim da ditadura
e na transição para um governo democrático. Para os britânicos, The Falklands War serviria
para consolidar e fortalecer o governo de Margaret Thatcher, cujas medidas econômicas neo-
liberais eram até então extremamente impopulares.
63
Assim como Mi Vida Después e El Año en que Nací, espetáculos anteriores de Lola Arias
que tratavam das ditaduras militares na Argentina e no Chile a partir de relatos de jovens sobre
a vida de seus pais durante os regimes de exceção, Campo Minado se utiliza de diários produ-
zidos pelos veteranos ingleses e argentinos durante o processo de criação; de documentos de
época como fotografias, jornais, revistas e vídeos projetados em cena; de discursos de líderes
políticos; e de arquivos informais e afetivos como cartas enviadas pelos soldados durante o
conflito. Tanto os testemunhos em primeira pessoa quanto os documentos – especialmente os
registros mais pessoais, não oficiais, alternativos – produzem, para os espectadores, um efeito
e uma promessa de real. Para Arias, essa irrupção do real no teatro transforma a relação entre
atores e espectadores, “faz com que essa relação se torne estranha, e conecta, ao mesmo
tempo, os atores e espectadores com o que está acontecendo no momento.” (ARIAS, 2011)
Nesse sentido, a narrativa apresentada não busca representar o passado “do modo como ele
realmente foi”, como observa Benjamin a respeito de Ranke, mas sim “capturar uma memória
que relampeja num momento de perigo”3, e pode, então, ser reconhecida no presente. Parte
da força daquilo que tem se denominado por vezes de teatro documentário, teatro de teste-
munho ou teatro do real (as definições são muitas e refletem práticas diversas) reside, preci-
samente, na possibilidade de estabelecer novas relações entre passado, presente e futuro.
Encenada em espanhol e em inglês (com legendas para as duas línguas), a narrativa é, por-
tanto, necessariamente incompleta, fragmentada e multiperspectívica. Digo necessariamente
porque não há, como afirma Carol Martin em seu livro Dramaturgy of the Real in the World Stage,
“um ‘evento original’ recuperável” (MARTIN, 2010, p. 18), na medida em que as decisões sobre o
que pertence ou não ao arquivo envolvem sempre questões de autoridade e poder, como deixa
2 Ghurkas são soldados de origem nepalesa e/ou indiana que serviam ao exército colonial inglês e atualmente servem ao
exército britânico, conhecidos por seu uso do punhal Kukri nos combates corpo a corpo. Embora servindo ao exército
inglês há dois séculos, somente em 2006 lhes foi permitido o direito de residir na Inglaterra.
3 Tradução da autora a partir da versão em inglês: “To articulate the past historically does not mean to recognize it ‘the way
it really was’ (Ranke). It means to seize hold of a memory as it flashes up at a moment of danger.” (BENJAMIN, 1968, p.255)
claro a cena intitulada Malvinas/Falklands quase ao fim do espetáculo, na qual versões diferentes
sobre a história das ilhas e do conflito são apresentadas por um veterano argentino e um inglês,
utilizando como texto os verbetes da Wikipédia, respectivamente em espanhol e em inglês. Ao
utilizar testemunhos de soldados de ambos os lados do conflito – verdadeiros arquivos vivos –,
privilegiando a experiência individual e as histórias pessoais, Campo Minado nos oferece uma
nova perspectiva sobre o conflito, de uma história lida a contrapelo.
Embora assinada por Arias, que também dirige o espetáculo, a dramaturgia reflete o
processo de criação e performance, cujos textos são produto de uma autoria compartilha-
da. A estrutura da peça segue um desenvolvimento relativamente linear, com quadros que
se sucedem em progressão histórica: o processo de audição dos atores, a conversão em
soldado, diário de guerra, rumo à guerra, à espera, o naufrágio do cruzador Belgrano, campo
minado, volta à casa, ontem e hoje etc., com os quadros frequentemente costurados por
música ao vivo tocada/cantada pelos próprios atores/veteranos. Misturados às vivências
traumáticas há momentos de humor, de afeto, e revelações inesperadas, como a de que
alguns soldados, como o veterano David Jackson, tinham o hábito de levar, junto a seus
pertences, roupas de mulher com que se vestiam e dançavam em discotecas organizadas
a bordo do navio de guerra inglês, inserindo uma rotina drag em meio à dura rotina militar.
O arquivo, campo minado, nem sempre revela aquilo que se espera. Pesquisando uma
coleção de revistas da época sobre o conflito, compradas por seu pai e as quais nunca
havia examinado até começar os ensaios da peça, o veterano Marcelo Vallejo surpreen-
deu-se ao encontrar não sua própria história, mas a do veterano inglês Lou Armour, com-
64 panheiro de espetáculo. “Eu não pensei que buscando a mim mesmo iria encontrar a ele”,
diz Vallejo. Armour, que estava entre os soldados capturados no ataque inicial argentino,
teve sua foto publicada nas capas dos principais jornais e revistas do mundo, em uma
das imagens emblemáticas da guerra. O veterano inglês recorda-se de ter sido colocado
em um avião argentino após a captura, aterrorizado com a possibilidade de ser atirado
ao mar em meio ao oceano Atlântico, como era sabido que os militares argentinos faziam
com os opositores da ditadura. Outros relatos revelam que não eram apenas os ingleses
que temiam os militares argentinos – os próprios soldados argentinos, mal preparados
para a guerra, famintos e sem roupas adequadas para enfrentar as baixas temperaturas
das ilhas, foram por vezes torturados por seus próprios superiores. Ao serem pegos ten-
tando roubar comida, os soldados eram amarrados pelos pés e mãos por ordens de seus
superiores e abandonados no frio. Apesar de relatar tais ocorrências no espetáculo, os
veteranos argentinos recusaram-se a encená-las, evidenciando os limites e os desafios
de testemunhar a respeito de traumas, individuais ou coletivos: “Não gostávamos de fazer
a cena, ninguém queria dizer se havia sido vítima de tortura ou colocar-se no papel de
vítima. Há coisas que se passaram na guerra que ficaram enterradas nas ilhas”, declara
Gabriel Sagastume. “O que retorna para assombrar a vítima”, explica Cathy Caruth em
Unclaimed Experience, “não é a realidade do evento violento mas também a forma como
esta violência ainda não foi totalmente conhecida.” (CARUTH, 1996, pp. 25-26)
O testemunho, como se vê, é não apenas o meio pelo qual a dramaturgia se constrói,
mas também um de seus principais temas e, nesse sentido, se alinha com outras obras con-
temporâneas (FELMAN; LAUB, 1992). Em entrevista a um jornal inglês, o veterano argentino
Ruben Otero, um dos poucos sobreviventes do naufrágio do cruzeiro General Belgrano,
torpedeado pelos britânicos fora da zona de guerra, explica sua decisão de participar do
espetáculo por sua promessa de testemunhar: “Tenho falado sobre o que vivi durante os
últimos 34 anos. Eu sobrevivi, mas muitos não sobreviveram. Para eles fiz a promessa de
toda vez que me pedissem para falar, seja na escola, no rádio ou para um jornal, eu o faria. É
por isso que estou aqui.”4 A promessa de narrar os acontecimentos, de testemunhar, como
Felman nos lembra, constitui um ato de fala, uma ação performativa que transforma o mun-
do no ato de/por meio de sua enunciação. É portanto uma ação capaz de produzir efeitos,
de afetar e transformar não só aqueles que testemunham como também aqueles que ouvem 65
os testemunhos, os espectadores sem os quais tais testemunhos não seriam possíveis. Um
testemunho é sempre endereçado a um outro, é um apelo à escuta. A escuta do trauma,
entretanto, não é isenta de riscos. Confrontado com experiências de situações limites, “[o]
ouvinte não pode mais ignorar a questão de encarar a morte, de encarar o tempo e sua
passagem, o sentido e o propósito da vida, os limites de sua onipotência, de perder aqueles
que nos são próximos, a grande questão de nossa solidão última; de nossa alteridade em re-
lação a qualquer um, de nossa responsabilidade para e pelo nosso destino […]”. (FELMAN;
LAUB, 1992, p. 72) Tampouco podemos ignorar questões políticas. Os testemunhos tanto
dos argentinos quanto dos ingleses expõem uma guerra travada por interesses escusos de
governos em situação política e econômica insustentável e para os quais o conflito armado
representou uma saída populista, insensíveis ao custo humano da guerra. Os soldados ar-
gentinos, derrotados e humilhados, foram escondidos pelo governo militar após seu retorno
e obrigados a assinar declarações comprometendo-se a não revelar as condições sob as
quais lutaram, além de serem abandonados sem pensão5, cuidados médicos e suporte psi-
cológico. Para os ingleses, a vitória militar levou à consolidação do governo e das políticas
neoliberais de Thatcher, com a consequente perda de direitos trabalhistas, enfraquecimento
dos sindicatos, desregulação do mercado e das instituições financeiras e massivas redu-
ções de impostos para os ricos. E embora a guerra tenha se encerrado em 1982, o conflito e
seus traumas seguem vivos, como provam os testemunhos de Campo Minado.
4 Tradução da autora. No original: “I have been talking about what I went through for the past 34 years. I survived but
many did not. For them I made a promised that every time I’m asked to talk, whether it’s at a school, on the radio, or to
a newspaper, I would do so. That’s why I’m here.” Cavendish, Dominic. The Scars Run Deep: The Explosive Drama That
Reunites Old Enemies On The Stage, The Telegraph, May 27 2016.
5 Somente em 1988 o governo argentino estabeleceu uma pensão honorífica para os veteranos das Malvinas.
todos os que foram para a guerra?”, pergunta Jackson em determinado momento do espe-
táculo) e investidos de uma afetividade própria, os testemunhos dos veteranos conectam-se
uns aos outros, demonstrando, como observa Cathy Caruth de forma perspicaz, que “a his-
tória, como o trauma, nunca é simplesmente própria, que a história é precisamente o modo
como estamos implicados nos traumas uns dos outros.” (1996, p. 72) E é por essa razão que
somos capazes de ouvir esses testemunhos, de sermos afetados por eles e, assim, pode-
mos encontrar o outro, colocando-nos, nós mesmos, como testemunhas.
Referências:
BENJAMIN, Walter. Excavation and Memory. In: Selected Writings. Volume 2 (1927-1934).
Edited by Michael W. Jennings,Howard Eiland and Gary Smith. Cambridge, Massachusetts
and London, England: The Belknap Press of Harvard University Press, 1999, p. 576.
_________. Theses on the Philosophy of History. In: Illuminations –
Essays and Reflections. Edited by Hannah Arendt. New York: Schocken Books, 1968, pp.
253-264.
CARUTH, Cathy. Unclaimed Experience: Trauma, Narrative and History. Baltimore, Ma-
ryland: The Johns Hopkins University Press, 1996.
CAVENDISH, Dominic. The Scars Run Deep: The Explosive Drama That Reunites Old Ene-
mies On The Stage. The Telegraph, 27 May 2016. Disponível online: http://www.telegraph.
co.uk/theatre/what-to-see/the-scars-run-deep-the-explosive-drama-that-reunites-old-ene-
mies/ Acesso em: 3 jan. 2018.
66 FELMAN, Shoshana; LAUB, Dori. Testimony – Crisis of Witnessing in Literature, Psychoa-
nalysis and History. New York / London: Routledge, 1992.
FREUD, Sigmund. Notas sobre o bloco mágico. In: Obras completas volume. 16 – O Eu
e o Id, “Autobiografia” e outros textos (1923-1925). Tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011., pp. 241-248.
MARTIN, Carol (Ed.). Dramaturgy of the Real in the World Stage. London / New York: Pal-
grave MacMillan, 2010.
VAN ZYL, Susan. Psychoanalysis and the Archive: Derrida’s Archive Fever. In: HAMILTON,
Carolyn et al. (Ed.) Refiguring the Archive. Springer Science+Business Media Dordrecht, 2002,
pp.39-60.
Vídeos:
ARIAS, Lola. “El teatro es una experiencia y no un espectáculo”. Entrevista em vídeo, 2011.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=poukoP96AdM. Acesso em: 2 jan. 2018.
Campo Minado. Roteiro e direção: Lola Arias. Produção: Sofia Medici e Luz Algrandi. Ce-
nografia: Mariana Tirantte. Música: Ulisses Conti. Intérpretes: Lou Armour, David Jackson,
Gabriel Sagastume, Ruben Otero, Sukrim Rai e Marcelo Vallejo. 2016.
67
árvores
abatidas
Krystian
Lupa
fotos Natalia Kabanow
“Lupa referenda, com este espetáculo de quatro
sinopse
histórico
O diretor polonês Krystian Lupa (1943) é considerado um dos grandes mestres das
artes cênicas contemporâneas. Após estudar arte, cinema e teatro, Lupa começou
na direção no final dos anos 1970. Fascinado por autores como Dostoiévski, Rilke,
Tchékhov e pelo austríaco Thomas Bernhard, traduziu e assinou adaptações para
o teatro de inúmeros textos, além de conceber os cenários das montagens. Entre
1980 e 2013, esteve ligado ao Stary Teatr na Cracóvia, onde encenou algumas de
suas mais importantes produções. Recebeu, dentre outros, os prêmios Austrian
Cross of Merit, French Order of Arts and Letters e o European Theatre Award.
O Teatr Polski na Breslávia celebrou 70 anos em 2016, sendo a mais antiga com-
panhia de teatro da cidade e a segunda maior da Polônia. Atualmente, possui
três palcos: Jerzy Grzegorzewski, destinado a encenações contemporâneas de
clássicos, Na Świebodzkim, para encenações experimentais, e Kameralna Stage,
que recebe comédias e espetáculos musicais. O atual diretor é Cezary Morawski.
Paisagens a ativar
N
a entrevista a seguir, o encenador polonês Krystian Lupa esclarece dois conceitos im-
portantes do seu trabalho, seminais para a compreensão do embate criativo entre o
elenco e o diretor: paisagem e monólogo interior.
O recorte foi feito a partir de uma longa entrevista realizada há alguns anos por dois
importantes pesquisadores da cena teatral francesa, Béatrice Picón-Vallin e Jean-Pierre Thi-
baudat, na qual eles abordam visadas diversas sobre a trajetória do diretor e seu pensamento
sobre o teatro. O destrinchar da metodologia de criação cênica nos parece colaborar para a
percepção de Árvores Abatidas, espetáculo que integra a programação da MITsp 2018.
Escolhemos estas palavras de Lupa justamente por acharmos que elas funcionam
como um convite para que o espectador tome parte na dinâmica do desejo de ingressar nessa
paisagem e de acessar a energia do espetáculo.
74
Trabalhando com a “Paisagem”
eu voltava a dormir por cinco minutos e logo era despertado pela noção de que o gravador
ainda estava gravando. Mais adiante, quando coloquei os atores para ouvir a gravação, eles
tiveram a impressão de que eu estivera sob hipnose quando a realizei.
Mostrar uma dessas gravações para os atores permitiu-me constatar as premissas
do trabalho para a cena que, na quinzena anterior, não sabíamos como abordar. Anteriormen-
te, não tínhamos êxito em encontrar o seu ritmo, ou o seu “monólogo interior”. Após ouvir a
gravação, realizamos uma improvisação e então surgiu o que estávamos buscando, como
se as coisas estivessem ocorrendo por osmose, como se as nossas mentes subconscientes
trocassem informações, como se os atores estivessem descobrindo uma música secreta.
Além disso, na “gravidez” do ator, do personagem [...], muitas vezes a música se
torna um universo de inspiração. Os atores se deparam com um caminho que ainda não
tinham percorrido, e o próprio fato de se submeterem a um espaço, ou a um ritmo, já é mais
fértil do que a busca realizada apenas por meio de suas mentes conscientes. O simples fato
de ouvir essa música faz com que o ator se aproxime de outra paisagem, ajuda-o a encon-
trar um ponto de partida diverso. Eles adentram uma paisagem de inspiração, confrontam o
seu par com algo imprevisto e, de repente, se deparam com um caminho do qual, até então,
não tinham conseguido se aproximar – uma trilha que os leva a descobertas. Desde muito
tempo, enquanto observo os atores em seu processo de pesquisa, se possuo um instru-
mento musical à mão – como um pandeiro –, de forma muito discreta, como se estivesse
tocando para mim mesmo, utilizo o instrumento para “entrar” ainda mais nos corpos dos
atores, para acompanhar os seus ritmos, ouvi-los e me permitir ser conduzido por eles. É
76 assim que compreendo melhor o que está ocorrendo no seu interior. É como se o percurso
do ator se tornasse mais visível, mais tangível para mim.
Muitas vezes, a pessoa que está sentada na plateia percebe mais claramente do
que os próprios atores para onde eles se encaminham. É somente uma questão de lhes dizer:
“Sim, é esse o caminho”, ou de sussurrar em seus ouvidos que deveriam se arriscar mais. Se
você diz isso depois do ensaio, é tarde demais. Com frequência, tenho momentos singulares
de entendimento, porém, quando busco elaborá-los para os atores depois dos ensaios, per-
cebo que não pertenço mais a essa paisagem, que não possuo mais essa clareza. Eu estava a
par de algo ao longo do ensaio e, depois, não tinha mais essa ciência. Eu compreendi que, na
qualidade de diretor, se quisesse fazer parte da improvisação rítmica dos atores, não poderia
me expressar verbalmente, mas sim através de um movimento musical, de um movimento
rítmico. E é nessas ocasiões que os atores podem se tornar capazes de seguir um caminho
que não tomariam se estivessem trabalhando por conta própria.
[...]
Lupa: Sim – de forma espontânea. Porém, não utilizo palavras, nem mesmo faço refe-
rência à cena que o ator está realizando. Em outras palavras, não aponto as coisas diretamen-
te. Nunca apontarei – como fazem os diretores que também são atores – como a entonação de
uma frase deve ser. Conosco, isso ocorre de maneira espontânea, de uma forma diversa. E, de
fato, percebi que, em geral, o que aponto [para os atores] equivale a uma tentativa de colocar
em movimento o monólogo [interior] do ator. Não é uma questão de apontar para os atores o
que deve ser exposto, mas o que está ocorrendo na paisagem em que eles se encontram. A
“paisagem” é análoga à imaginação ativa anterior à movimentação dos atores, anterior às suas
expressões. Essa paisagem deve existir antes das palavras. 77
O ator tem que decorar o texto e não há como escapar disso, mas, em seu cerne,
esse mecanismo está distorcido. No começo, está a palavra. [Com frequência, no teatro], a
memória reproduz o texto como uma fita cassete, de forma automática, e as emoções seguem
as palavras. Isto é o que eu chamo de modo “recitativo” de atuar, porque, com esta aborda-
gem, as emoções encontram dificuldade em seguir as palavras decoradas (nesse ponto são,
de certa forma, secundárias), e isso acontece assim, quer o ator queira ou não. Entretanto, se
um indivíduo se expressa de forma verdadeira, é porque a sua “paisagem” já existente o possi-
bilita falar dessa maneira. Como se houvesse algo dentro dele – seu desejo ou sua imaginação
– que se transforma em uma palavra-movimento. A paisagem deve ser algo muito superior
tanto ao que é completamente idêntico, quanto ao que é coerente com o que está escrito na
peça. Se o ator possui, em sua alma, somente o que já foi escrito, ele não está em posição de
expressar, de forma verdadeira, o que tem a dizer.
Como qualquer ser humano, o ator deve querer dizer mais, dizer algo diverso; logo,
torna-se possível que o fato de dizer as falas se transforme em uma aventura extraordinária,
porque o fluxo das palavras cria uma lógica própria, que está sempre “por vir”. Aqui, um exem-
plo básico de algo que se torna autônomo, e até mesmo incoerente, ao que se almeja dizer:
tento responder à pergunta “Por que eu te amo tanto?” e, de repente, apesar de mim mesmo,
o que vem à tona neste momento específico, é “Por que eu te abomino tanto?”. Construir a
tensão entre a paisagem e as palavras a serem ditas é muito importante. Ao longo dos en-
saios, subo no palco quando sinto que as coisas não estão vivas antes das palavras. O ator
frequentemente me diz: “Mas eu não posso fazer isso dessa forma”. E eu respondo: “Claro,
você deve fazer algo completamente diferente. O que estou lhe mostrando nesse momento
é apenas algo a que você pode se opor – é o que lhe permitirá criar a tensão interna”. Muitas
vezes, quando falamos na vida real, não estamos satisfeitos com o que estamos dizendo.
Ficamos infelizes porque nem sempre conseguimos nos expressar da maneira que queremos.
entrevista com Krystian Lupa
Isso nos põe sob pressão, além de deixar marcas no que dizemos. Quando não conseguimos
expressar de forma verdadeira aquilo por que estamos passando, muitas vezes enfatizamos
excessivamente o que estamos dizendo, passando a impressão de que, nesse ponto, isso é
especialmente importante. Tudo isso constitui o que chamo de “paisagem”.
Quando explico certas coisas aos atores, digo que estou fazendo assim para mim
mesmo – peço que sejam pacientes, crio uma espécie de “fantasia” em torno do tema que es-
tamos trabalhando. Basicamente, não expresso o que já sei, mas tento colocar em movimento
um estado através do qual anseio aprender algo sobre mim mesmo – através das palavras que
falo, através dos desafios que me imponho. Geralmente faço isso quando tenho a sensação
de que tudo o que estamos fazendo em cena está muito ilustrativo, muito racional – porque
na vida nada é exatamente dessa forma. Na vida, não temos ciência de tudo que acompanha
nossas ações – ou, ao menos, não estamos em uma situação de observar isso de um modo
autônomo. Mas, quando tentamos criar uma cena no palco, nós tomamos um caminho extre-
mamente simplificado. A cena é construída a partir do que conhecemos, e chega um momento
em que percebo que ela está monótona, que falta mistério, que falta aquele elemento imprevi-
sível que sempre está presente na vida. E é isso o que energiza os eventos reais.
[...]
Nós não conseguimos explorar esses instintos através das ditas técnicas “habituais”
de atuação – através do método de Stanislavski, por exemplo. Você é incapaz de solucionar
78 tudo respondendo às questões “O que o ator quer?” e “O que o personagem quer?”. Muitas
vezes, o personagem não sabe o que quer. E isto é uma situação muito frequente em nossa
realidade contemporânea: uma pessoa que não sabe o que quer e com quem, independente-
mente disso, algo acontece. [...]
Lupa: É algo muito peculiar a cada ator. Visualizar essa paisagem é um fenômeno
que acontece de forma automática na vida real, mas para um ator em cena segue sendo uma
questão.
Conheço atores – especialmente atores mais velhos – que não conseguem alcançar
uma paisagem. A personalidade do ator, quando combinada à existência da paisagem, pode
tornar um ator excelente, enquanto que a ausência da paisagem pode resultar em mais um
ator sem mistério e sem carisma. Se grandes atores sempre fizeram isso [ativaram a sua
paisagem] – instintivamente, sem necessariamente fazê-lo de forma consciente – é porque,
simplesmente, em certo momento de sua prática profissional, conseguiram adquirir essa
habilidade de se mobilizar através de uma visão, ou então começaram a atuar e, consequen-
temente, a visão imediatamente apareceu.
No teatro tradicional, você se encaminha diretamente para a encenação de uma cena:
o diretor explica como previu a cena e parte para a prática, como quem encaixa pequenos
pedaços de madeira ou monta blocos de Lego. “Você senta aqui – primeiramente, mexa o seu
café com uma colher, depois aperte as mãos e, naquele ponto, levante-se”, e assim por diante.
Você percebe que atores que trabalham dessa forma geralmente apresentam um inacreditável
desconforto em cena. Pessoas que sabem andar normalmente, de repente, quando entram
em cena, esquecem como se anda, eles têm dificuldades em mexer o café com a colher; têm
que re-aprender tudo. Gestos como apertar as mãos ou levantar da mesa só podem ser alcan-
çados depois de muitos ensaios. Essa maneira de trabalhar é a mais vigente no teatro.
[...]
Por outro lado, quando – através da improvisação – algo toca na paisagem inte-
rior, você chega ao acontecimento, à cena, de uma maneira mais profunda. Claro, toda vez
o resultado é diferente daquele que imaginamos antes. Diretores – especialmente jovens
diretores – costumam temer aquilo que foge ao seu imaginário. A tensão fundamental do
imaginário do diretor: o medo de ver o ator se afastar dele, do ator não realizar aquilo que o
diretor quer que ele faça. Atualmente, parece perfeitamente normal para o diretor exigir que
lhe obedeçam, mas tal diretor só consegue alcançar uma estimativa, uma realidade muito
menos profunda do que a verdadeira realidade, porque o teatro produzido dessa forma é
simplificado ao extremo quando comparado à realidade em si. E não estou falando somente
sobre o teatro psicológico ou realista, mas também sobre o teatro formal, coreográfico. Pina
Bausch mostrou o que é possível atingir por meio da dimensão improvisada decorrente da
paisagem, do monólogo interior: é muito além do balé convencional. É por isso que a entra-
da em cena de Pina Bausch foi profundamente marcante.
79
O “monólogo interior”
Thibaudat: Você poderia elucidar as conexões entre o que você chama de “mo-
nólogo interior” e a paisagem?
essa série de monólogos como um fluxo de eventos psicológicos; alguns nitidamente perce-
bidos, outros, menos explícitos. Por exemplo, agora mesmo, enquanto falo contigo, penso
também sobre seus cabelos – porque eles estão no meu campo de visão – e pode ser que
meus pensamentos sejam arrebatados por eles. Ou poderia focar neste copo enquanto penso
em outra coisa, ou ainda, poderia me concentrar na maçaneta da porta enquanto ouço o que
está acontecendo na rua. Nossos sentidos estão incessantemente em uma inter-relação per-
manente, e se não temos ciência disso em nosso monólogo interior, acabamos por privá-lo de
seu elemento essencial. Os atores que se preparam dessa forma escrevem vários monólogos
em um único dia, de acordo com as diversas situações.
Escrever um monólogo é, ao mesmo tempo, uma forma de testar uma rota e uma
técnica para alcançar inspiração. Assim, durante o processo de escrita do monólogo, dife-
rentes caminhos são explorados e diversos elementos são conquistados – e nunca teríamos
ciência deles através de uma análise objetiva da situação. Além disso, escrever o monólogo é
ainda um treinamento para o corpo do personagem. Um ator compreende que não é capaz de
escrever um bom monólogo, nem de se identificar fisicamente com seu personagem, se não
começar a vivenciar isso dentro de si mesmo, se não começar a caminhar de um lado para
o outro da sala de ensaio com os passos do personagem. Escrever o monólogo é colocar o
personagem em movimento.
do “fluxo” que assiste o ator em cena. É óbvio que o ator funciona de forma diferente do per-
sonagem. Uma total identificação da experiência de um ator com a do personagem não é nem
possível, nem útil, e nunca nada de bom resulta de tais tentativas de identificação. Ainda que,
é claro, o sonho da identificação ainda exista dentro de nós.
[...]
O ator que se preparou usando o monólogo interior perde esse medo, porque ele
deseja atuar ao invés de trabalhar em como atuar. Ao perder esse medo de ficar comprome-
tido, ele está em condições de focar mais no que seu parceiro oferece. Por outro lado, o ator
paralisado pelo medo não pode fazer isso – ele não está plenamente consciente das ações
de seu parceiro. E se tudo o que o ator faz é responder à movimentação de seu parceiro,
dentro dos limites estreitos do que eles realizaram no dia anterior, o espectador sempre
sentirá a falsidade na atuação, ou será privado das emoções que deveriam ter sido alarga-
das, para além da troca entre os parceiros, e transpostas para o público. Daí a importância
do monólogo interior, que permite que a improvisação seja “preparada”, e que o ator esteja
pronto para ouvir o seu parceiro. O monólogo interior não antecipa o desenvolvimento da
cena, visto que, quando estamos de fato improvisando, a cena pode tomar um caminho que
não havia sido antecipado pelo autor – por exemplo, um final feliz ao invés de uma catástro-
fe. A improvisação consiste em uma penetração em uma determinada área e não em uma
ilustração de um acontecimento que já havia sido descrito.
82 O monólogo interior é um caminho, já as paisagens são os momentos-chave ao longo
desse caminho – aquelas circunstâncias em que temos que alterar a trajetória do nosso per-
sonagem. Nesses momentos, a paisagem nos afeta. Vou dar um exemplo de uma paisagem:
“Meu Deus, o que ela acabou de falar, de fato, me machucou; é escandaloso, é impossível,
não posso simplesmente aceitar ou esquecer!” Essa é uma paisagem que devo visualizar e
vivenciar e, assim, minha trajetória se transforma. A paisagem é um motif ativo ao longo do
caminho do monólogo. Claro, o monólogo interior de um ator, ao longo de uma determinada
apresentação pode variar: “Por que ela está sorrindo assim hoje? Por que o seu sorriso está
tão diferente do dia anterior? Por que ela está com uma espinha no nariz?”. Isso inquieta o par-
ceiro de atuação. A paisagem tem o direito de existir interiormente, em segredo; ela intervém
no relacionamento com o parceiro. Assim, no monólogo interior do ator, encontramos motifs
decorrentes do personagem, assim como aqueles relativos ao atual estágio do relacionamento
do ator com seus parceiros. Se alguém deixa cair algo no palco, isso se torna parte do mo-
nólogo interior. Um ator que não incorpora isso verá a confiança do espectador desaparecer
imediatamente.
O “código moral” do artista consiste em fazer o maior autossacrifício para criar o me-
lhor trabalho possível, o mais próximo das suas aspirações. E, então, cabe ao público aceitá-lo
ou rejeitá-lo. Se o artista joga para o espectador, é prostituição. Há um paradoxo aqui: o artista
que leva em conta o público oferece algo medíocre, visto que não oferta uma obra que aspira
ao valor supremo possível. Portanto, o artista que não joga para o público, de fato, assim o faz,
em grande medida, porque oferece ao público um verdadeiro alimento espiritual.
83
Sobre labirintos e centauros poloneses
Pedro Vilela
mestrando/UFBA
N
os últimos anos, o principal nome em atividade do teatro polonês, Krystian Lupa, tem se
dedicado quase que exclusivamente a adaptações para o palco de grandes romances
do cânone ocidental.
Diferentes relatos advindos do próprio encenador possibilitam condensar uma dupla moti-
vação para este fato. A primeira relaciona-se à sua compreensão de que, através dos roman-
ces, é possível conseguir uma maior penetração nos problemas da condição humana, apro-
veitando para alfinetar a superficialidade com que os dramaturgos costumam proceder com
sua escrita, amparados por convenções e fórmulas de fácil digestão, preocupados sobretudo
em viabilizar seus trabalhos no palco. Como segunda motivação, a crença de que o romance,
apesar da capacidade de envolver a realidade em seu discurso, também é permeada por
zonas inalcançáveis. Como ele bem define: “quando descubro que existem essas zonas obs-
curas, tento a adaptação”. (GRUSZCZYNSKI, 1997)
Especialmente fascinado pela literatura austríaca, Lupa adaptou em sua trajetória obras de
Alfred Kubin, Robert Musil, Rainer Maria Rilke e Hermann Broch. Entretanto, sua maior obses-
são está ligada a um outro autor: Thomas Bernhard.
84
Desde 1992, quando realizou a primeira adaptação da obra de Bernhard, o romance Das
Kalkwerk, para o Stary Teatr, Lupa tem investido sobre o autor austríaco a partir de diferentes
composições cênicas: Ritter, Dene, Voss (Stary Teatr em Cracóvia, 1996), Immanuel Kant (Teatr
Polski em Breslávia, 1996) e Auslöschung – Erase (Teatr Dramatyczny em Varsóvia, 2001).
Em entrevista para Jean-François Perrier, Lupa nos esclarece sua forte relação com
a obra de Bernhard:
Ele vem em ondas. Thomas Bernhard habita-me teimosamente, sem relaxamento e age em mim mis-
teriosamente. Quando digo a mim mesmo: “basta, isso é o suficiente!”, e apregoo outro assunto, sua
influência continua sempre presente. Sua visão, que desmascara, que expõe os homens e suas relações,
condiciona minha forma de ver outras obras literárias. Quando volto para Bernhard, descubro coisas no-
vas. Também é interessante perceber que, no começo, eu era o fervoroso discípulo de sua imaginação,
enquanto hoje polemizo com ele, uma polêmica um pouco maliciosa e apaixonada. (PERRIER, 2016)
Em sua última incursão a Bernhard estreou Árvores Abatidas, em 2014, que não por acaso
carrega o subtítulo: uma provocação. O romance, que chegou a ser retirado das prateleiras
em 1984 mesmo antes de ser posto à venda devido a um processo judicial, aponta-nos como
alguns homens e mulheres, em algum momento artistas ambiciosos e radicais, não consegui-
ram resistir à tentação da estupidez, da busca de uma afirmação social e de um reconheci-
mento público que passa por uma escravidão ao poder e às instituições.
Assim, desde sua estreia, os atores responsáveis pela representação de Árvores Abati-
das têm frequentemente lido ao final de cada representação, em diferentes teatros do mun-
do, uma carta-protesto contra as repressões que o país vem enfrentando. O lema constante
é: “Tribunais livres. Cultura livre”.
A este coro vem somando forças as vozes de diferentes artistas poloneses. No ano passa-
do, por exemplo, a diretora Maja Kleczewska, uma das discípulas de Krystian Lupa, ao receber
o Leão de Prata da 45ª Bienal de Teatro de Veneza, assinalou:
[...] desde 1989 o teatro floresceu graças a muitos jovens diretores que estudaram com Krystian
Lupa e iniciaram uma nova linguagem. Ele modificou o método de trabalhar com os atores e de en-
saiar, sem estar tão apegado ao texto, improvisando e podendo explorar as ideias. Desenvolver uma
linguagem é um longo processo, que leva anos, e tememos que esse processo seja interrompido. O
Teatro de Breslávia, o Teatr Polski, era reconhecido mundialmente. Lupa dirigiu nesse teatro, tinha
uma companhia de atores, o que também requer tempo, e as autoridades decidiram pará-lo e des-
truíram tudo em três meses. Não há companhia, não há estreia. E tememos que o mesmo aconteça
com o Stary Teatr na Cracóvia, um lugar muito importante para nós. (LLORENTE, 2007)
Árvores Abatidas retoma a reflexão sobre a maneira como a arte tem se tornado mercadoria
por meio da transformação dos artistas em produtos inorgânicos. Se a ação humana é capaz de
mudar sua natureza conforme as necessidades, no capitalismo mudamos conforme as necessi-
dades do capital, eliminando até mesmo a ação do sujeito como uma práxis. Árvores Abatidas
se configura, então, como uma retomada de consciência:
O mais atual nesse texto é sua denúncia das armadilhas que residem nas relações entre o mundo
artístico e político e nos mecanismos de consumo de massa. Através do processo de degradação,
também mostra a decadência dos artistas a partir desses relacionamentos. E também o aumento im-
placável da traição de si mesmo, da perda de ideais artísticos e, em especial, da intransigência como
base da condição artística. As árvores a cair são uma luta com nós mesmos, contra este processo. É
um ataque raivoso contra os nossos amados do passado, aqueles que confraternizaram com a co-
munidade artística, que se juntaram e que sucumbiram a essa traição. Esse assunto parece-me cem
vezes mais atual hoje do que trinta anos atrás. (PERRIER, 2016)
Dividido em dois atos, com tempo médio de duas horas cada um, o que vemos em cena
é a adaptação do romance em sua quase totalidade. Ao adentrar a sala de espetáculos, o
espectador é recebido por um vídeo projetado. As luzes, ainda acesas, sugerem que a peça
“de verdade” ainda não começou.
A jovem Joana, em entrevista a um desconhecido, reflete sobre sua crença em torno das
artes, ao passo que também tenta se justificar pelo total fracasso de sua última aula para ato-
res. Simplesmente ninguém apareceu. A quem a jovem Joana deseja falar? Em pouco tempo,
descobrimos que Joana não está mais entre nós.
Essa espécie de prólogo, que recebe pouca atenção dos espectadores, configura-se como
um chamado à liberdade que o próprio fazer artístico pode nos oferecer, em embate contra uma
arte que vem sendo mascarada por um verniz esteticista em prol de uma lógica capitalista.
A primeira hora de encenação, marcada pelo caráter naturalista, cede espaço ao onírico, levan-
do o espectador a adentrar uma espécie de sonho do próprio Thomas, demarcado pelo elemento
apócrifo, inexistente na obra de Bernhard. Lupa agora impõe sua voz em diálogo com Bernhard.
A delimitação imposta por uma linha vermelha, quase no proscênio da cenografia as-
sinada por Lupa, funciona ora como limite de uma prisão física e psicológica, ora como
fronteira imaginária deste narrador carente da presença de outras personagens para cons-
trução de sua própria identidade.
Camadas são sobrepostas. Sentado em uma cadeira, não é mais só um narrador da obra,
mas sim a própria dualidade Thomas Bernhard/Krystian Lupa, exposta a partir de monólogos
internos, sem isolamento de frases e réplicas, absorvida e dissolvida na estrutura apresentada.
A variedade de estilos com que Lupa coloca em cena esse romance demonstra a profunda
maturidade de seu ofício. Se o espetáculo é marcado pelo viés naturalista, por vezes também
abunda o grotesco expressionista, algo bastante característico do teatro polonês.
Muito mais que o fascinante rigor expressivo com que todos os intérpretes levam à cena
esse museu de artistas apodrecidos, Árvores Abatidas nos prende em uma atmosfera na qual
o tempo se desenrola com uma inquietante lassidão. A monotonia, fruto das estruturas re-
petidas, é um convite para se perder em um labirinto, de onde não fazemos questão de sair
durante o tempo da representação.
Lupa confirma nesse espetáculo seu trabalho rigoroso na direção de atores, sutil na
exploração quase expressionista de uma espécie difícil de hiper-realismo e fruto da manu-
tenção de sua pesquisa.
Eu acredito mais em personalidades que em métodos, que só faziam sentido quando estavam rela-
cionados a seus criadores. Em cada método há uma enorme bagagem de descobertas, a que cada
um deve chegar com sua imaginação. Ninguém pode recorrer a eles como se fossem uma receita.
Parece-me um caminho errado de alguns criadores escravizar-se a métodos que, usados de forma
rigorosa, sem críticas, uniformizam o ator, que se torna um portador-padrão de algo que impede o
desenvolvimento de sua personalidade. (LLORENTE, 2007)
A busca pelo caráter autoral e o apontamento que Lupa faz nessa entrevista, concedida
em 2007 viriam a causar certo escândalo dois anos depois, quando no discurso no recebi-
mento do Prêmio Europa para o Teatro, em Breslávia (Wroclaw), defendeu que até o método
desenvolvido por Grotowski seria uma farsa.
A polêmica envolvendo o nome de uma das figuras centrais do teatro no século XX, levan-
tada por um artista que, para muitos, é considerado seu discípulo, foi esclarecida posterior-
mente sob a alegação de ser impossível acreditar em um teatro “que possa existir sem que 87
as pessoas estejam realmente presentes”, uma vez que “os atores não podem achar que a
personagem não lhes pertence”. (COSTA, 2011)
O trabalho com seus atores está pautado em três pilares centrais: a imaginação, a aten-
ção e a improvisação. A imaginação os leva a trabalhar com todos os sentidos, com imagens
interiores, com pequenas recordações que se combinam, além da observação da realidade
externa. A atenção permite ter em conta como o personagem se relaciona com os objetos, o
espaço, os estímulos dos companheiros, e com o que vê e escuta sobre a cena. A improvi-
sação, por sua vez, é provedora do estimulo à criação diária, evitando a rotina e impedindo a
instalação de um terreno seguro, detestado por Lupa.
Capturado não por um indivíduo determinado, mas pela natureza humana – segundo ex-
pressão de Lupa –, o abstrato, o universal dos personagens se concretizará à medida que se
relacionar com o espaço, com os outros personagens e com as circunstâncias dadas. O ator,
portanto, não abarca o papel, é o papel que abarca o ator, aspecto que devemos entender como
um tipo de relação estabelecida a partir da prática livre das improvisações.
Nesse sentido, o diretor polonês é contrário ao ator de ofício e a soluções fáceis, porque
deseja que o ator plante dúvidas, investigue e, assim, conheça os vínculos interiores do perso-
nagem, que materializará um comportamento durante o desenvolvimento da obra dramática.
Em texto teórico publicado em 1997, intitulado O ator como centauro, mais uma vez Lupa
foca o trabalho com os atores como elemento central de sua obra, diferenciando-se de outros
teóricos por não tratar o ator como mera matéria artística e, assim, esquecer que não só o per-
sonagem vive, pensa e sente, mas o ator também o faz. E que essa dualidade deve ser mantida.
Lupa utiliza, então, a metáfora que une um cavaleiro a um cavalo. Durante os ensaios, o
cavaleiro tenta domar o cavalo, mas só nos últimos momentos, perto da estreia, é que os dois
seres se unem. Mas aqui, a ordem comum é invertida e a função do cavaleiro, comumente do-
mador, cabe à personagem, enquanto a do cavalo recai sobre a função do ator. Para além disso,
a fricção/junção não gera uma ordenação de cavalgada, mas a construção de outra figura, a do
centauro. O centauro é composto em sua parte inferior pelo ator e na superior pela personagem,
que será carregada em suas costas. Para Lupa, “o ator não deve transformar-se jamais e por
inteiro em seu personagem, sempre deve haver dualidade”. (GRUSZCZYNSKI, 1997)
Em uma das primeiras edições da revista francesa UBU, Lupa nos esclarece um pouco
mais sobre seu processo de investigação: “eu deposito minha esperança no ator e o ator co-
loca sua esperança em mim, porque no momento de trabalhar o diretor dá um passo e cabe
ao ator dar o seguinte”. E complementa: “se admitirmos que é o ator quem realiza sua criação
[...] resulta que a matéria do teatro não é algo que seja externo ao ator, mas sim do próprio
88 ator.” (GRUSZCZYNSKI, 1997)
Alguns outros elementos do espetáculo merecem atenção. O primeiro diz respeito à explo-
ração, por parte do encenador, da desconstrução temporal proposta pelo autor em seu livro.
O deslocamento narrativo é evidenciado, principalmente no primeiro ato, quando por vezes
o narrador intercala a conjugação dos verbos do pretérito no presente, tornando difusas as
fronteiras entre presente e passado.
[...] o procedimento de se mover constantemente – no tempo, pela linguagem – porém sem sair do
lugar, é um topos da prosa bernhardiana. Configura-se como um movimento formal que é análogo,
no capitalismo tardio, à necessidade de velocidade, produtividade, competição, porém sem senti-
do, sem que se mudem os pressupostos e as condições objetivas em que se vive. (FLORY, 2006)
Durante quase toda a representação a sala fica com as luzes acesas. As zonas obscuras
de Thomas Bernhard são investigadas sob o prisma da clareza do que está sendo posto. É
evidente que o próprio Lupa quer que os retratados se vejam por completo em cena, assim
como quer que os próprios espectadores se distanciem o suficiente para refletir sobre quais
são suas responsabilidades.
No auge de sua maturidade artística, Lupa nos oferece um labirinto mordaz, não só pela ca-
pacidade que possui de operar a perda de nexos e a falta de razão, mas por escolhê-las como
princípio operador e construtivo, complexo e ambíguo. Se seus atores são vistos como centau-
ros, cabe a Lupa, sob a mesma premissa mitológica, o papel de Dédalo, arquiteto de labirintos.
Referências:
BERNHARD, Thomas. Tala. Tradução de Miguel Sáenz. Madrid: Alianza Editorial, 2012.
COSTA, Tiago Bartolomeu. Deixem passar o príncipe Krystian. Ípsilon, Lisboa, 12 jan.
2011. Disponível em: https://www.publico.pt/2011/01/12/culturaipsilon/noticia/deixem-pas-
sar-o-principe-krystian-272995. Acesso em: 31 jan. 2018.
FLORY, Alexandre Villibor. Sopa de letras nazista: a apropriação imediata do real e a me-
diação pela forma na ficção de Thomas Bernhard. 2006. 386 f. Tese (Doutorado em Literatura
Alemã) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2006.
GRUSZCZYNSKI, Piotr. Krystian Lupa: utopie et alchimie, Ubu, Paris, n.6, abr. 1997
LLORENTE, Juan Antonio. En el arte español, el absurdo va unido a la locura. ABC.es, Ma-
drid, 18 out. 2007. Disponível em: http://www.abc.es/hemeroteca/historico-18-10-2007/abc/
Espectaculos/en-el-arte-espa%C3%B1ol-el-absurdo-va-unido-a-la-locura_1641174112263.
html. Acesso em: 31 jan. 2018.
PERRIER, Jean-François. Du roman à la pièce. Entretien de Krystian Lupa avec Jean-
-François Perrier. Odeon, Théâtre de l´Europe, Paris, 2016. Disponível em: http://www.theatre-
-odeon.eu/sites/default/files/dp-wycinka_holzfallen.pdf. Acesso em: 31 jan. 2018.
SÁ, Nelson de. Teatro está de novo sob risco, diz diretor. Folha de São Paulo, São Paulo,
2 jul. 2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/224639-teatro-esta-de-
-novo-sob-risco-diz-diretor.shtml. Acesso em: 31 jan. 2018.
89
King Size Christoph
Marthaler
fotos Tristan Pannatier
“Quantos espetáculos você conhece que poderiam
sido esvaziados”.
sinopse
Um quarto de hotel com uma cama king size, decorado em tons de azul e
florais. Nesse cenário, um homem e uma mulher, acompanhados por uma se-
nhora mais velha, entoam um repertório eclético, que vai de Schumann a The
Jackson 5. As ações desses personagens assumem dimensões cômicas, seja
quando eles dançam ou quando usam vozes líricas para cantar músicas pop. O
diretor Christoph Marthaler confere à musica papel fundamental no espetáculo,
criando sons heterogêneos ao combinar composições de diferentes tonalida-
95
des, as chamadas “enharmonics”. Mesmo que o efeito seja inicialmente estra-
nho, ele logo se conecta a uma realidade sensível, ligada às relações humanas.
Solidão, convenções grotescas e as trágicas vidas cotidianas são evidenciadas
com ternura, melancolia e humor.
histórico
E
u tenho a sensação de que o som age,
E eu amo a atividade do som.
O que ele faz, quando se torna
mais alto ou mais baixo,
quando ele se torna mais ou menos intenso.
E quando se torna mais longo e mais curto.
Fico completamente satisfeito com isso,
eu não preciso que um som fale comigo.
John Cage sobre o Silêncio 1
Construindo o Olhar
Quando fechamos os olhos, criamos, talvez, condições para perceber de maneira mais
sutil como os sons agem sobre nós. Concentramos, assim, a nossa atenção para acessar
a profundidade desse processo em vários níveis, não somente temporalmente mas tam-
bém espacialmente. Buscar reconhecer o poder do som… perceber a intensidade que
emerge das infinitas articulações possíveis entre os sons… captar sensivelmente a ma-
96 nifestação dessas articulações sonoras... No vídeo John Cage on Silence, o compositor
americano fala sobre a relação entre o som e a música. Quando se refere a essa última, ele
diz: “Quando ouço o que chamam de música, me parece que alguém está falando. Falan-
do sobre seus sentimentos e sobre suas ideias, falando de relacionamentos. Mas quando
eu ouço o som do tráfego, o som do tráfego aqui na Sexta Avenida, por exemplo, eu não
tenho a sensação que alguém está falando (…).”2 Já na epígrafe citada acima, quando re-
flete sobre o som, ele reconhece um aspecto fundamental. Cage diz: “eu não preciso que
um som fale comigo.”
Faço dessa distinção entre som e música feita por Cage a nascente dessa reflexão/ensaio.
Nesse caso, o desafio é dialogar com um material artístico específico – King Size – criado pelo
diretor suíço Christoph Marthaler. Buscarei, assim, deixar-me levar pela articulação interna,
pelos fluxos e intensidades desse material a fim de tentar perceber a sua singularidade.
Ao reconhecer a diferença entre som e música, Cage abre múltiplas questões que envol-
vem desde modos de percepção até o próprio existir, em termos amplos e profundos. Mas,
ao mesmo tempo, ele nos faz repensar sobre o fazer artístico, através da relação entre artista
e obra, da intencionalidade que permeia os processos criativos e da materialidade como ca-
mada fundamental da criação. Desse modo, como sugerido na passagem citada, a música
é vista por ele como sons atravessados por intenções que, de certa forma, podem reduzir a
potencialidade desses mesmos sons, percebidos enquanto matéria, matéria essa que existe e
pode se manifestar para além de qualquer intenção, significado e sentido. É aqui, nesse ponto,
que uma conexão parece possível entre Cage e Marthaler.
1 “I have the feeling that a sound is acting, and I love the activity of sound. What it does, is it gets louder and
quieter, and it gets higher and lower. And it gets longer and shorter. I’m completely satisfied with that, I don’t need sound
to talk to me.” Tradução do autor. Citação extraída do vídeo John Cage on Silence.
2 “When I hear what we call music, it seems to me that someone is talking. And talking about his feelings or
about his ideas, of relationships. But when I hear traffic, the sound of traffic here on Sixth Avenue for instance, I don’t have
the feeling that anyone is talking […].” Tradução do autor. Citação extraída do vídeo John Cage on Silence.
A Liederabend como dispositivo
No caso de King Size alguns temas são recorrentes, como o sono, os sonhos e o amor,
percebidos também através do universo infantil. Mas limitarmo-nos a perceber esse espe-
táculo como um recital de canções que se restringem a um horizonte específico de signi-
ficação é abrir mão de suas camadas expressivas mais potentes, camadas que parecem,
exatamente, singularizá-lo.
3 Fazem parte da obra as canções “Bilitis”, de Francis Lai; “Wachet auf, wachet auf es krähte der Hahn”, de
Johann Joachim Wachsmann; “Die güldne Sonne”, de Johann Georg Ebeling; “I go to sleep”, de The Kinks; “Seit ich ihn
gesehen”, de Robert Schumann; “Le Chapelier”, de Erik Satie; “Ouvre”, de Suzy Solidor; “Tristan und Isolde”, de Richard
Wagner; “I ́ll be there”, de The Jackson 5; “Mélie Mélodie”, de Boby Lapointe; “Le nozze di Figaro”, de Wolfgang Ama-
deus. Mozart; “You could drive a person crazy”, de Stephen Sondheim; “Übre Gotthard füget Bräme”, de Geschwister
Schmid; “Stille Liebe”, de Robert Schumann; “Dein Angesicht”, de Robert Schumann; “Des Sennen Abschied”, de Robert
Schumann; “Titelmelodie Schwarzwaldklinik”, de Hans Hammerschmid, “Biene Maja”, de Karel Svoboda; “Solang man
Träume noch leben kann”, de Münchener Freiheit; “Andante per pianoforte”, de Ludwig V. Beethoven; “Tout pour ma ché-
rie”, de Michel Polnareff; “Abbigsternli”, Schweizer; “Come heavy sleep”, de John Dowland; “Fångad av en stormvind”,
de Carola; “Sonny Boy”, de Al Jolson; “Abendlied”, de Robert Schumann; “Adagietto”, de Gustav Mahler, Quinta Sinfonia
e “Die Wut über den verlorenen Groschen”, de Ludwig V. Beethoven.
da sua apresentação no Théâtre Vidy-Lausanne: “[…] sem esses permanentes enarmônicos
não haveria conexão possível entre os seres humanos: não haveria casamentos, não haveria
comprometimentos, cumplicidades secretas, e nem mesmo o mais inocente dos beijos […].”
Marthaler se utiliza dos enarmônicos para articular as canções utilizadas em King Size,
transitando entre as tonalidades de cada canção a fim de criar uma unidade sonora ou aural
para a obra. Mas, na verdade, ao fazer tal operação e articulá-la com a encenação, ele per-
mite que atravessemos realidades contrastantes, produzindo, de certa forma, um labirinto
vertiginoso, que poderia ser percorrido de novo e de novo, revelando sempre novos cami-
nhos. Um labirinto infinito.
Proposta por Gilles Deleuze, mas reconhecível também em obras de outros autores como
Badiou e Panofsky, dentre outros, a noção de dobra implica um universo interdisciplinar que
ultrapassa os limites dessa reflexão. De qualquer forma, cabe aqui apontar que essa noção
funciona para Deleuze como conectora entre o movimento barroco e a contemporaneidade,
períodos caracterizados por múltiplas instabilidades políticas, econômicas e sociais. A explo-
são de sujeito e objeto, das fronteiras entre interno e externo, sensível e inteligível, orgânico e
inorgânico, a dissolução de convergências e divergências, assim como a perda de linearidade
espaço-temporal são alguns de seus aspectos e qualidades principais (DELEUZE, 1991). Ape-
sar de diferenças históricas e contextuais, o Barroco e a contemporaneidade ecoam recipro-
camente na vertiginosa multiplicidade de pontos de vista, em que as diferenças não parecem
mais causar separações e divisões mas, sim, novas agregações. Dessas dinâmicas emerge a
sensação de infinito, não o infinito etéreo e apaziguante de certos movimentos românticos que
ocorreriam historicamente após o Barroco, mas um infinito melancólico, gerador de ansieda-
de, incontrolado, desgovernado e imprevisível.
A dobra aqui não é a dobra dos origamis; ela vai além das facetas agrupadas das figuras
cubistas. A dobra, nesse caso, é invisível, e se manifesta como dinâmica processual fugidia
que pode ser percebida somente através de expansões perceptivas que anulem oposições e
dualidades, através de uma série de curtos-circuitos lógicos.
Uma vez apontados esses aspectos e qualidades associados à noção de dobra, cabe
observar que eles parecem constituir, em certo nível, a camada dramatúrgica subterrânea, não
dita e não explicada, de King Size. Apesar dos diversos momentos cômicos que ocorrem ao
longo do espetáculo, há uma densidade que permanece, como um som de fundo insistente,
que acompanha sutilmente as variações melódicas e harmônicas executadas pelos cantores-
-performers e pelo pianista-performer. Assim, a sensação de leveza é constantemente alterada
por cortes – várias canções são interrompidas sem chegar a uma conclusão – assim como por
ações que provocam deslizamentos de significação. A qualquer momento algo pode aconte-
cer e uma nova ruptura pode se dar, abrindo para uma nova canção um novo universo, uma
nova realidade, reconhecível, paradoxal ou ainda estranhamente familiar.
Esse processo segue até que, em determinado momento, um ser ficcional atravessa a
cena: uma senhora de certa idade, discretamente elegante, que carrega uma bolsa. A sua
presença traz uma camada nova para o espetáculo, não somente porque ela não canta,
mas porque através da execução de ações com diferentes objetos e de alguns momentos
de fala, amplia o horizonte narrativo, trazendo, ao mesmo tempo, uma leveza cômica de
tons surreais e uma densidade produzidas por suas reflexões e por sua aparente vulnera-
bilidade, mais sensível do que física.
Até o final do espetáculo o realismo continua a ser evocado e deslocad, através das ações
executadas pelos cantores-performers e pela senhora discretamente elegante. Armários são
abertos transformando-se em lugares de passagem, ações são feitas dentro desses armários,
em cima e embaixo da cama, assim como no banheiro. Descobrimos, então, que há uma ge-
ladeira na parte mais alta de um dos armários do quarto. Focos de luz são acesos em lugares
onde a ação não está acontecendo, momentos esses que chamam a atenção dos próprios
seres ficcionais. O quarto é quarto-gatilho, quarto-fenda, quarto-portal, quarto-trampolim que
ativa o nosso imaginário e nos transporta, suspendendo a nossa percepção.
Tais suspensões perceptivas, apesar de gerarem múltiplos efeitos, bem diferenciados entre
si, parecem convergir para uma transformação da função exercida pela música no espetáculo.
Em tais momentos, a suspensão perceptiva gerada pelas ações dos cantores-performers,
assim como pelas executadas pelo ser ficcional da senhora discretamente elegante, parece
levar a uma neutralização da “intenção de fala” das músicas, aspecto colocado por Cage e
mencionado no início dessa reflexão. Nesses momentos, ao gerarem suspensões perceptivas,
as ações parecem fazer com que as músicas tocadas pelo pianista e cantadas pelos cantores-
-performers voltem a ser simplesmente sonoridades em seu estado mais puro. As músicas
passam a funcionar nesses momentos como manifestações sonoras não determinadas por
uma intencionalidade reconhecível.
Essa reflexão não pode ser concluída sem reconhecer a presença da cama – King Size
100 – como elemento singular do espetáculo. A centralidade da cama no espaço ficcional des-
sa obra de Marthaler parece funcionar como evidência de vários impasses, talvez históricos.
Diante dessa cama, da dimensão ocupada por ela e da função que adquire através dos seres
que atravessam a cena, é como se, paradoxalmente, o mundo tivesse se apequenado. Quan-
do digo mundo quero dizer seres humanos. Poderíamos nos perguntar o quanto essa observa-
ção é cabível aqui. Percepção talvez recorrente na história da (des)humanidade, o processo de
apequenamento do humano traduziria somente a situação de certos contextos e realidades?
O percurso dessas reflexões faz com que recuemos uma vez mais, para assim olharmos
para essa obra a partir de seu nome: King Size… Tal nome pode, dentre inúmeras possi-
bilidades, remeter a uma dimensão existencial grandiosa, ao existir em toda a sua realeza.
Realeza… Em que medida o termo “realeza” é associado hoje, acima de tudo, a realidades
luxuosamente emolduradas, fruto, sobretudo, do poder de compra? Como sabemos, a busca
obsessiva pela dissolução da diferença entre Ser e Ter operada pelo capitalismo gera, desde
os seus primórdios, efeitos profundos sobre as interações humanas a ponto de títulos de no-
breza passarem com o tempo a ser mais e mais vendidos, mesmo em terras tropicais. O Ter
como Ser: um claro exemplo de como a relação entre o óbvio e o profundo pode às vezes se
intensificar tão profundamente quanto os amantes em uma cama, imagem essa aparentemen-
te inconcebível – proveniente de um “mundo impossível”? – em King Size, onde canções são
obras e dobras: (d)obras.
Não é a essa noção de realeza que me refiro aqui, mas a realeza como embodiment (in-
corporação) de um ethos que expande as potencialidades humanas, potencialidades essas
que se manifestam por sua vez em atos, em relações e criações – artísticas e não artísticas
– geradoras de memórias coletivas, sem as quais nenhuma agregação humana pode se con-
solidar enquanto sociedade e cultura. Marthaler parece explorar no espetáculo a ausência
dessa dimensão. Nos tempos que correm, tal dimensão – a da nobreza humana – parece ter
sido colocada mais do que de lado, quem sabe temporariamente. Camuflada, ela se manifesta
aqui somente como objeto. Esvaziado de sentido, é ele, o objeto, que ocupa o centro da cena.
Referências:
DELEUZE, Gilles. A Dobra: Leibniz e o Barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo:
Papirus, 1991.
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Discurso de Metafísica. Tradução de Gil Pinheiro. São Paulo:
Icone, 2004.
Vídeo:
John Cage on Silence. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pcHnL7aS64Y.
Acesso em: 2 jan. 2018.
101
Palmira
Bertrand Lesca e Nasi Voutsas
fotos Alex Brenner
“Impossível saber quantos níveis de significação
sinopse
A antiga cidade de Palmira, na Síria, era uma das mais preservadas do mundo.
Recebia turistas de todos os países para contemplar os templos de Bel e Baal-
shamin, assim como o Arco do Triunfo. Em 2015, o Isis (sigla para Estado Islâ-
mico) tomou o controle da cidade, destruiu os templos, saqueou as sepulturas e
utilizou o anfiteatro para realizar execuções. Palmira mistura realidade e ficção,
explorando a vingança, a política da destruição e o que consideramos bárbaro.
O que leva as pessoas a praticarem destruições desse tipo? Para os performers,
107
mesmo que o tema seja árduo, o humor é fundamental na construção de um
lugar diferente para o espectador diante do espetáculo.
histórico
O
terror nos reaproximou de Palmira e de seus contornos legendários quando, em 2015,
tomados pelo ódio execratório aos “falsos deuses” do Ocidente, os milicianos do Es-
tado Islâmico destruíram o templo de Bel, divindade comparável ao Zeus grego e ao
Júpiter romano, senhores dos deuses e do universo. Ao atacarem o teatro antigo, o tetrápilo,
as colunas milenares gravadas com inscrições em grego e aramaico, ao abaterem a águia e
os raios do deus solar Bel-Shamin, os terroristas feriram terrivelmente a nossa adoração pelos
cultos de origem e a paixão pela arte e pela história.
Pela decapitação de Khaled al-Asaad, estudioso sírio responsável pela direção geral dos
sítios arqueológicos e dos museus de Palmira, e pelas imagens difundidas online com a cena
do fuzilamento de 25 soldados sírios alinhados no proscênio e executados por adolescentes
que se exibiam para uma plateia de muçulmanos que ocupavam a summa cavea do teatro
romano de Palmira, mergulhamos abismados no impiedoso mecanismo: a destruição de ima-
gens monumentais icônicas é figura de fundo na Gestalt mediática e propagandística super-
produzida e funestamente difundida na internet pelos terroristas num rito sanguinolento.
Todavia, Palmira foi também um destes lugares onde as diferenças socioculturais e religio-
sas dramaticamente acabam por se anular na amálgama abrupta do autoritarismo. Foi lugar
das conversões forçadas à fé monoteísta; templos viraram igrejas, depois mesquitas, e agora
um amontoado de entulho. Como grande Reino que se estendeu do estreito de Bósforo ao
vale do Nilo, do mar Mediterrâneo ao rio Eufrates, em lugares onde hoje se encontram o Egi-
to, a Jordânia, Israel, Palestina, Líbano, Síria e Turquia, Palmira foi também a terra da rainha
Zenóbia, a rainha guerreira, que se fazia chamar Imperatrix Romanorum, se autoproclamava
herdeira de Cleópatra e aplicava a própria efígie e a do filho sobre as moedas do Reino. Ze-
nóbia arquitetou uma tentativa de golpe de estado espetacular ao domínio imperial romano.
Acabou fracassada, pega pelas tropas de Aureliano quando atravessava o Eufrates em fuga.
A caminho de Roma, como prisioneira e souvenir de guerra, morre nas terras de Tivoli antes
de ser apresentada como troféu ao Imperador. Palmira entra em lenta decadência, nada de
tão significativo parecia acontecer ali na modernidade... até que, entre abandonos e redesco-
bertas, torna-se o tesouro e o sítio adorado, a pérola do deserto para os arqueólogos e, como
tantas outras heranças da humanidade, um lugar invisível ao olhar desavisado.
Eis a carga histórica, mítica e alegórica que temos que suportar na consciência castiga-
da pela campanha terrorista. O comportamento vandálico estilhaça a consciência histórica
(e a fábula) que nos foi gradualmente estruturada pela continuidade de um tempo escrito
em monumentos, obras de arte e livros. Como demonstra o historiador britânico de origem
polonesa Joseph Rykwert, o aspecto histórico-legendário da arquitetura atrela-se não so-
mente à cosmogonia e à teogonia, mas também ao imaginário do corpo e do herói (2015).1
Na antiguidade, a definição da ordem construtiva de um lugar de culto público se dava pelo
estudo refinado das proporções do corpo humano na construção de colunas e templos, e
a busca da integridade especulativa de tal ordem ocorria por meio do arranjo desafiador de
materiais robustos, vigorosos, aparentemente irredutíveis, de difícil trato. A monumentali-
zação daquilo que o tempo teria naturalmente apagado era, portanto, um ato de heroísmo.
Assim, a ferocidade terrorista é percebida como um ataque não somente aos deuses, mas
também aos corpos dos “heróis do Ocidente”. Destrói a ilusão de que somos sujeitos au-
109
tônomos, democráticos, conectados, conscientes e livres, e impõe uma lógica elementar
e descontínua pautada na lei da violência segundo a qual um desejo unívoco, selvagem e
invasivo predomina sobre os domínios civilizados do sujeito moderno.
O desalento que nos segue é que tal ameaça não se restringe, na atualidade, a episó-
dios de guerra ou guerrilha. O engenho da destruição e da reproposição terrorista-midiáti-
ca gira na praça de qualquer cidade ou comunidade submetida às polaridades do autorita-
rismo e da desigualdade. Vivemos o terror no nosso dia a dia em meio a comportamentos
tóxicos, abusivos e destrutivos.
Esta é a chave de significação pela qual Bertrand Lesca e Nasi Voutsas nos reconduzem em
Palmira sem fazer uso de qualquer representação direta dos atos terroristas contra a cidade-pa-
trimônio. O mecanismo perturbatório é transportado para a relação entre dois atores. Veneração
pelo outro, camaradagem e sedução se revezam com a violência gratuita e fútil, e o prazer cruel de
manipular. A derrisão e a violência são respostas validadas por um oportunismo lúdico, agressivo e
patético do jogo em cena. A destruição de um tesouro da civilização seria equivalente à destruição
de uma relação humana? De que forma a perturbação psicológica e as idiossincrasias autoritárias
do indivíduo alimentam os grandes conflitos sociais? A retaliação terrorista e o círculo eterno da
destruição equivalem analogicamente às ações viciadas e urobóricas das relações afetivas? Quão
rapidamente um conflito pode ser deflagrado? Como e quando as emoções fogem do controle?
Existe alguma relação direta entre personalismo, condicionamento psicológico e representações
sociais? O fanatismo do Estado Islâmico é fruto exclusivo da revolta e do radicalismo muçulmano
ou nasce também da intolerância, da marginalização e dos mecanismos manipulatórios da “mente
ocidental”? Como este fanatismo reflete a crise da consciência europeia? O espetáculo Palmira
nos faz pensar verdadeiramente em tudo isto ou é somente uma performance divertida de dois
clowns que fazem um jogo psicológico de controle e explosão sob a sombra picaresca da morte?
1 Vide o capítulo VII, “O herói como coluna”.
O processo criativo de Palmira está diretamente conectado com o espetáculo anterior,
também de cunho político, Eurohouse, criado por Lesca (de origem francesa) e Voutsas (de
raízes gregas) em coprodução com o FellSwoop Theatre de Bristol no período da crise grega.
Em entrevista a Eleanor Turney, Lesca explica tal afinidade:
O gatilho pessoal para Eurohouse foi o sentimento de injustiça sobre como a União Europeia lidava
com a Grécia. Em Palmira, tratava-se de ir além, como se existisse algo mais sobre nós mesmos e
sobre nosso trabalho juntos. [...] Em Eurohouse, Nasi era realmente humilhado. E, em Palmira, ele
continua sendo humilhado e, de certo modo, ele sente o desejo de vingança. Nós queríamos olhar
para esta raiva. Fazer estes dois espetáculos nos ajudou a entender como a radicalização pode
acontecer. Nós estávamos tentando sempre ver as coisas por um outro lado, de outra perspectiva.
Por que aquelas pessoas sentiram a necessidade de destruir monumentos e executar seres huma-
nos? Nós queríamos questionar este impulso. (TURNEY, 2017)2
Tudo é feito sem apelo aos estereótipos. São dois atores em cena com roupas cotidianas,
110 figuras de si mesmos. Nada de máscaras, personagens ou encadeamento de uma narrativa
cênica. Nenhuma parábola forte o suficiente para conter as pequenas alegorias insinuadas no
plano dramatúrgico. Um ator grego que se escandaliza diante de um prato quebrado e uma
dança ambígua sobre skates com a ária barroca Lascia ch’io pianga3 de Friedrich Händel são
somente preâmbulos jocosos no script composto por atos performativos que remandam ao
público interrogações sobre a tomada de decisão, o impulso destrutivo e o rasgo na consci-
ência humana. Um objeto, manipulado com naturalidade e despretensão, serve à triangulação
com a plateia: o que fazer com um martelo que me é dado por um ator que aporrinha e azucri-
na a vida do outro que, por sua vez, amofina, molesta e caceteia seu parceiro de jogo?
O trabalho dos atores prevalece sobre a caixa preta teatral despida de efeito e engenho
cênico. As ações sobre um palco empoeirado, sem contornos cenográficos, um público que
se diverte agarrado no olhar de cada ator, cúmplice, mas muitas vezes confuso diante das “ruí-
nas” ilegíveis dos comportamentos: tensão entre o entusiasmo lúdico da ação e a sensação de
uma certa inconveniência do espaço restritivo das relações teatrais. O que é Palmira? Teatro,
performance, comédia, jogo antidrama de clowns num manifesto político essencial?
A mudez de um, a homilia do outro. A voz e os hits musicais gravados4 constituem planos
estéticos teatralizados provisoriamente saboreados, contrastados e interrompidos. Depois de
uma chuva de perguntas não respondidas, o microfone se torna um barbeador manipulado
por Bertrand na cara embasbacada de Nasi. Amplifica-se assim a diferença e o poder do in-
culcador que parece levar a sério a sua força de aculturar, invadir, colonizar e ensinar o trato da
2 Tradução do autor.
3 Lascia ch’io pianga (Deixa que eu chore) é uma ária do segundo ato de Rinaldo, ópera de Händel com libreto
de Giacomo Rossi, adaptação do poema épico Gerusalemme liberata de Torquato Tasso. A ópera narra a primeira cru-
zada cristã e o cerco de Jerusalém sob o domínio do rei muçulmano Argante apoiado por Armida, rainha de Damasco.
4 Uma das características das produções do FellSwoop Theatre, grupo ao qual o trabalho de Lesca e Voutsas
se vincula, é a pesquisa dramatúrgica de paisagens sonoras que se relacionam de forma crítica com o mundo emocional
da obra.
língua (como em Eurohouse, quando propunha mecanicamente frases em francês ao compa-
nheiro grego, que as repetia com dificuldade, subserviência e embaraço). Caixas de papelão
intumescidas, frágeis, inchadas, cheias de cacos e maniacamente reviradas sobre o outro
caído. Esta é a resposta desproporcional do ator-performer insurreto, o anti-herói destruidor
de pratos. A grande vassoura e a precária pazinha de lixo nada valem quando a própria ação
de recolher os estilhaços caídos no chão se torna um ato de agressão ao som dos trocadilhos
popularescos de “Let’s call the whole thing off” de George Gershwin com Louis Armstrong
e Ella Fitzgerald: “You like potato and I like potahto. I like tomatoes and You like tomaytoes.
Potato, potahto, tomatoes, tomayhtoes. […] You like Havana and I like Havahnah. You eat ba-
nanas and I eat banahnahs. Havana, Havahnah, Bananas, banahnahs […]. Things have come
to a pretty pass, Our romance is growing flat [...] Goodness knows what the end will be; […] It
looks as if we two will never be one, Something must be done.. Let’s call the whole thing off”.5
Na incompatibilidade dos sotaques e na exaustão de um dueto inconcluso, qualquer coisa
pode acontecer e se repetir no lirismo fake, no amontoado da história e no jogo viciado de
pergunta e (não) resposta dos atuantes: o acúmulo ilógico, a produção do gesto e do sentindo
pela interrupção da ação imune – é a réplica desmedida a que estamos sujeitos na vida afetiva.
No fundo escuro e no plano contínuo das grandes questões da consciência histórica, so- 111
mos surpreendidos pelos dilemas do indivíduo e por pulsões elementares que estão na origem
da ancoragem entre a vontade pessoal e o destino errático da cultura. Mímica, jogos verbais,
balbucio clownesco, humor, envolvimento insidioso do público na ação de dois atores enca-
lacrados em seus pontos de vista endurecidos e inconciliáveis: Palmira é a cena essencial e
minimalista sobre os cacos da história e a reatividade humana aos ataques sofridos na nova
era das marretadas e dos explosivos, e um convite a seguir em frente ao som a cappella de
“God only knows”.
Referências:
5 A partir de “Things have come to a pretty pass”, em tradução livre: “As coisas chegaram a um ponto difícil.
Nosso romance está esfriando. Só Deus sabe qual será nosso fim [...] Parece que nós dois nunca seremos um. Algo
precisa ser feito. Vamos cancelar a coisa toda.”
Hamlet
Boris Nikitin
fotos annett hardegen e Donata Ettlin
“Não imaginem assistir a uma enésima interpretação
(Theater heute)
ficha técnica
sinopse
O dramaturgo e diretor Boris Nikitin transforma Hamlet num espetáculo que tran-
sita entre a performance e os teatros documentário, musical e experimental. O
enigmático performer e músico eletrônico Julian Meding é acompanhado por
um quarteto barroco. O performer queer interpreta um Hamlet revoltado contra a
realidade e também contra a plateia – assim como em Shakespeare, Hamlet se
revolta contra sua corte real -, misturando detalhes de sua história de vida com
a ficção. Vai ao microfone e canta electropunk bruto, esboços de canções cover,
117
uma balada de Hollywood; músicas como fragmentos de emoções. O público,
que ora é zombado, ora é seduzido, se percebe na zona de conflito entre ilusão
e realidade, indivíduo e sociedade.
histórico
Os músicos saem do palco ou assim parece. Você entra com uma máscara de lobo.
Depois de tantos outros, cansado de ser humano, Hamlet agora quer ser um animal? Per-
gunta apressada. Você tira a máscara. Magro, de jeans, cabelos e sobrancelhas raspados.
Uns olhos que se movem num rosto impassivo. Uma máscara dentro de outra máscara.
As pernas parecem inseguras quando anda, dando ao corpo um certo desequilíbrio, uma
certa instabilidade. A voz afetada. Mesmo não sabendo alemão a voz parece afetada. Ela
continuará assim, monocórdica, sem variações. Irritante para os que procuram modulações
emocionais na voz ou padrões bem constituídos do masculino e do feminino. Nem distan-
ciamento nem envolvimento. O tom de voz que indiferencia tudo e tudo torna igualmente
relevante ou irrelevante? Ou, simplesmente, a afetação como uma forma de fala, para além
dos limites do real, do verossímil? Um Hamlet queer?
Você acaba de aceitar minha amizade no Facebook. Nos poucos momentos em que seu
retrato aparece no canto da tela paro de pensar no que vejo e troco umas palavras. Digo que
118 estou escrevendo, tentando escrever, sobre o “Hamlet” de vocês. Mas nada de Hamlet apare-
ce, no início. Você se apresenta, diz que é músico. Diz que há textos e canções. Há fragmen-
tos de uma (sua?) estória... Do pai que morreu. Sinal Hamlet aceso. É o fantasma do pai que
assombra o início ou somos todos fantasmas ou órfãos nesta noite?
Pausa. Você de fronte para o público. Eu na sua frente. Eu te vejo. Você não me vê.
Acabo de dizer que vou escrever sobre este trabalho. Agora. Acho. Vou ter que escrever.
Mesmo sem saber se tenho algo que seja importante a dizer. Vou ter que me virar.
Esta não é uma carta. Não escrevo em alemão. Imagino que não entenda português.
Não vou mudar agora para inglês. Talvez a organização da MITsp possa traduzir este texto.
Se valer a pena. Ainda não sei.
Um sinal do Facebook. Será você? Sua imagem não apareceu. Deve ser outra pessoa. Vou
conferir. Era você. Disse que estava escrevendo uma carta para organizar minhas impressões.
Mas não sei, mesmo, se quero organizá-las. Você. Digo. Seu personagem refletido tam-
bém num telão no fundo da sala. No fundo da tela do meu laptop. Por que me interessaria
pela sua estória? São tantas hoje na televisão. Na internet. Tantos depoimentos. Por que
continuaria a ver você, ouvir sua estória e não a de outro? Seria uma paródia dos solos e
testemunhos, do teatro documental? Todos não fazem espetáculo de suas vidas e imagens
nas redes sociais, no YouTube? Por que ficar? Por que fico? Fico porque é Hamlet? Fico
porque sou gay que gosta de experiências e corpos gays em cena? Fico porque algo me
intriga e que não sei dizer o quê?
Novo sinal do Facebook. Acho que deve ter dito algo. Você me diz que eu poderia te
escrever por e-mail.
Esta não é uma carta. Eu mal te conheço. Não li nada no site do trabalho ainda. Corro no
site. Há uma lista dos trabalhos feitos e dos escritos sobre. Quase tudo em alemão. Penso em
mandar um e-mail. Não saberia nem o que perguntar a não ser coisas óbvias como... como o
que mesmo? Desisto de mandar.
Você, digo, seu personagem, fala em algum momento na possibilidade de uma comunida-
de que fez você estar ali na frente de espectadores. A gravação que vejo é de um espetáculo
num teatro. Mas eu. Eu não estou lá. Não estava lá. Seria uma comunidade o conjunto de
corpos e desejos sentados e silenciosos que só se pronunciam nos aplausos finais? Seria um
convite? Algo por vir? Seria algo que a própria apresentação cria e desaparece com ela tão
fugaz quanto os encontros furtivos em praças, parques, banheiros públicos, bares, aplicati-
vos? Queer então não porque a sexualidade, a orientação sexual, apareça como tema, motor
ou motivo dramático, queer por lançar um convite aos que não são hetero, homo, transnor-
mativos? Queer porque não tem a ver com o discurso universalizante, humanista e inclusivo?
Estamos na margem e na margem seguimos.
Não há possibilidade de identificação. Nem acho que esteja em pauta uma outra forma de
compreensão por um distanciamento frio. O que há é um corpo outro. Diferente de one-man
show virtuosístico. A voz monocórdica, insistentemente afetada. Não confio no que é dito pela
forma com que fala? Uma imagem você diz que é. A tela no fundo do palco e a tela do com-
putador multiplicam essa sensação. Tudo parece pose, não gestos que revelam. Poses que
encenam e revelam não a verdade da confissão, mas da ficção, do teatro, do artifício.
Mais ou menos no meio do espetáculo, você fala diretamente de Hamlet. Hamlet é uma bicha 119
que nasceu numa pequena cidade da Alemanha? Me confundo. Quero dizer você. Quero dizer seu
personagem? Você não falou nada sobre a sexualidade. Só seu corpo magro, desengonçado, ins-
tável. De pé ou quando está sentado de pernas cruzadas. Não parece estar seguro ou ao menos
confortável, mas continua ali. O que os olhos que te olham e que não posso ver te dizem?
Reparo só agora nas unhas pintadas de verde e num colar. Os olhos transitam no rosto
sem barba. Na cabeça sem um fio de cabelo.
A realidade é poder. E você, digo, você já sabe (não vou repetir), parece não se encaixar.
É o que você diz. Diferente de clones e drag queens, empoderados transexuais e divas. Você
não faz parte. Você busca uma outra história. Hamlet?
No corpo de Hamlet e no meu corpo algo nos aproxima. Nós que perdemos os pais e que
buscamos órfãos pelo mundo companhia e encontros, ancestralidades e famílias, nos lugares
mais inusitados, até no palco de um teatro.
Nos chamaram de loucos, doentes, como forma de nos isolarmos, nos internarmos, mas
você está agora falando na frente de nós, na frente de mim. Posso te tocar? Não quero mais
só te ouvir. Para a solidariedade, outra palavra que usa, não ser uma palavra vazia, me tome
nos seus braços, deixe sua cabeça posar no meu ombro. Me beija.
Você canta com o violão. Em algum momento, os músicos voltaram para o palco. Você os
apresenta com num show.
Confissões de uma máscara. O segredo é o lugar por onde poderíamos manter nossa se-
gurança e cultivar nossos encontros em parques públicos, nas ruas escuras, nos darkrooms,
nas saunas. Mas você está no palco. O que eu faço agora?
Solidão e estar junto. Eu te olho fundo. Agora é a minha vez e a minha voz. Isto que escre-
vo. Escrever ou não escrever? Ver ou não ver? Hamlet de novo? Para que queremos, precisa-
mos de Hamlet uma vez mais?
Seu rosto na tela quando desaparece da cena parece emular um monólogo que não se
trata de ser ou não, de forma metafísica, mas de qual corpo pode ser ou não ser, pode olhar
sem que algum olhar ofenda e ser olhado sem que seja pelo olhar condescendente, estigmati-
zador ou violento? Só fora do palco? Envelhecido cedo é o reino dos mortos o único lugar de
pertencimento possível? Seria o palco o lugar anterior a esta morte?
O rei está morto. Longa vida à rainha, A frase é dita. Hamlet é uma ruína de um mundo
perdido do qual ouvimos murmúrios e fragmentos. Tudo morto, esquecido. Só se pode
inventar uma outra estória.
O segredo não foi revelado. Nenhum coming out. Nenhuma palavra para além do corpo para
falar. Se há uma encenação encarnada pelo gênero, ele está na norma, não no testemunho.
120
Não há experiência trágica nem dramática. Há a afirmação de um corpo. Não o confronto
pelo discurso, pela fala. Apenas uma oferta que pode ser recebida ou não. Para além dos
aplausos ou da indiferença. Toda esta linhagem dos príncipes melancólicos do teatro barroco,
dos rapazes tristes antes da Revolução Sexual e da Aids cria uma outra narrativa, não a heran-
ça que vai de pai para filho, mas a daqueles que, sendo órfãos, não terão filhos. De um corpo
a outro, transformando o passado, fazendo-o próximo na pele.
Olho a tela do computador. A noite segue avançada. Quase dia. “vivo tranquilamente /
todas as horas do fim” (Torquato Neto, “Cogito”).
Abraço e bem-vindo,
Denilson
sinopse
Dois artistas embarcaram em um navio cargueiro para refazer uma das rotas do
comércio transatlântico de escravos: do Reino Unido a Gana e, de lá, à Jamaica.
As memórias, questionamentos e sofrimentos desse percurso realizado em feve-
reiro de 2016 levaram os artistas às profundezas do Atlântico e ao universo de um
passado imaginário. O espetáculo sal. é o que eles trouxeram de volta, uma mon-
tagem sobre ancestralidade, lar, esquecimento e colonialismo. Como a história
e as relações coloniais permanecem em nosso cotidiano? O que ocorre quando
127
Selina Thompson se depara com a pergunta: “de onde você é? ”. Uma montagem
sobre fazer parte de uma diáspora, que nos leva a pensar onde nos encaixamos e
quais mudanças e curas ainda estão por vir.
histórico
C
omecemos com Audre Lorde, a poeta norte-americana nascida em Nova Iorque no
dia 18 de fevereiro de 1934. Aquariana, filha de uma família de imigrantes do Caribe e,
seguramente, uma das vozes mais importantes do feminismo negro estadunidense da
década de 1970; a quem poderíamos atribuir, junto com Kimberlé Crenshaw1 e Angela Davis2,
o conceito de interseccionalidade, tão importante atualmente para pensarmos as relações
de classe e de raça que atravessam as diversas formulações contemporâneas do feminismo.
À sentença formulada pela voz do poema de Lorde, buscando um agora que possa gerar
futuros como pão na boca de nossos filhos para que seus sonhos não reflitam a nossa
morte, – que de um modo excepcional revela as aflições constantes daqueles que são marca-
dos como os sujeitos da diáspora no ambiente de nossas sociedades racistas e sexistas –, eu
acrescentaria um outro fragmento extraído do longo poema dramático de Selina Thompson,
a fim de localizar as motivações que vemos emergir do trabalho dessa jovem atriz e per-
129
former em sal., espetáculo de sua autoria que será apresentado em março de 2018 na MITsp.
As afinidades encontradas entre essas duas obras-testemunho são determinantes para uma
reflexão sobre o exílio, a opressão, a discriminação e a solidão que afetam mulheres e homens
negrxs no celeiro da hegemonia branca, patriarcal e colonial, mas que, na outra ponta, visam
também a reforçar a imagem de corpos sobreviventes. Dito isso, é nossa intenção trazer o
já citado poema de Audre Lorde para a reflexão sobre o monólogo-performance de Selina
Thompson, para iniciarmos essa conversa com uma pergunta: O que representa para nós,
no momento atual, essa consciência da diáspora, que insiste em nos lembrar de que nunca
fomos destinados a sobreviver?
Já nos acordes iniciais de sal., Thompson evoca aquela travessia histórica – a do Atlântico
Negro, com vistas a denunciar as milhões de vidas subtraídas e sequestradas do continente
africano para que a grande empresa colonial pudesse prosperar. Essa travessia é o motor prin-
cipal da montagem de Thompson e nos diz muito sobre as histórias de sequestro e de morte
que, infelizmente, ainda vemos se repetir indefinidamente. No caso específico do nosso Brasil
golpeado, as forças associadas ao grande empreendimento capitalista, que instituiu o sistema
escravocrata nas colônias entre os séculos XVI e XIX, reaparecem agora mais agressivamente
com o objetivo de recuperar uma hegemonia em estágio terminal e organizar os poderes ne-
1 Kimberlé Crenshaw é professora de Direito na UCLA e na Escola de Direito de Columbia; reconhecida internacional-
mente como uma autoridade na área dos Direitos Civis, tem se destacado também como feminista e estudiosa das
relações entre raça, racismo e direito. Seu trabalho contribui de modo excepcional em dois campos de estudos: a área
da teoria crítica da raça e da interseccionalidade. Os artigos e palestras de Kimberlé Crenshaw podem ser facilmente
acessados pela Internet.
2 Angela Davis é filósofa, professora emérita do departamento de estudos feministas da UCLA e ícone da luta pelos
direitos civis. Integrou o Partido Comunista dos EUA e foi candidata a vice-presidente de República em 1980 e 1984.
Próxima ao Grupo Panteras Negras, foi presa na década de 1970 e ficou mundialmente conhecida pela mobilização da
campanha “Libertem Angela Davis”. Davis possui uma obra bastante acessível na Internet e, recentemente, a Editora
Boitempo publicou dois livros bastante importantes de sua carreira: Mulheres, Cultura e Política, e Mulheres, Raça e
Classe, ambos editados em 2017.
3 “I am here to tell you a story of the diaspora” (tradução livre).
crófilos das elites, que apontam para um projeto de recolonização e mandam o recado – os
de passos pesados [que] esperavam silenciar-nos – de que não cessarão de perpetuar os
etnocídios há muito praticados e anunciados.
A travessia invocada por Thompson em seu espetáculo sal., que no fundo revela uma
pesquisa artística bastante interessante e comprometida com o debate sobre as estruturas do
racismo que permanecem no “andar de cima” do capitalismo global, abre-se para a constata-
ção de que na periferia do capitalismo somos também criados para o mesmo abate,
e para prover a “acumulação primitiva” secular dos ultrarricos, o 1% que detém as ri-
quezas que escravizam a metade da população mundial. A escritora italiana Silvia Federici
demonstrou essa lógica (imoral e indecente) num livro brilhante, no qual procura esclarecer
as fases que antecederam a consolidação do empreendimento capitalista. Diz ela: Cada fase
da globalização capitalista, incluindo a atual, vem acompanhada de um retorno aos aspectos
mais violentos da acumulação primitiva. (FEDERICI, 2017)
Assim, essa travessia será recontada para nós, sujeitos diaspóricos, a partir desta outra
margem, ou seja, a dos porões dos navios negreiros e da senzala. As rotas que um dia vie-
ram construir o mapa da diáspora no Novo Mundo, que constituem também a história dos
etnocídios praticados na era moderna da industrialização, fornecem para a filha “deslocada”
e estrangeira em seu próprio país – uma “Black British”, como ela mesma se identifica –, uma
130 possibilidade de denúncia do racismo estrutural, constatado tanto nos quintais do primeiro
mundo quanto nos dos países periféricos. É isso o que nos comove e nos aproxima no tra-
balho de Thompson. Poderíamos, então, falar de uma consciência diaspórica interseccional,
considerando aqui essa interseccionalidade como a pista que nos faz pensar em sujeitos sem
pátria e direitos fundamentais, uma vez que, enquanto mulheres e homens negrxs, somos
estrangeirxs em nossos próprios países? O que essa “nacionalidade abortada”, assim como a
inexistência de um sentimento de pertencimento e as constantes violações sofridas pelo racis-
mo, nos ensinaria sobre a obsolescência da ideia de nacionalidade que a modernidade inven-
tou e o mundo contemporâneo das fronteiras abertas do capital, da mundialização da cultura
quase hegemônica do capitalismo, da reprodução de um modelo extrativista e predatório da
natureza que ameaça as próprias espécies viventes do planeta, vem ajudando a consolidar?
Para Stuart Hall, a ideia de uma cultura na/da diáspora, que se consolidou de modo conco-
mitante ao entrelaçamento com outras formas e combinações culturais, ajuda a desestabilizar
as próprias noções de nacionalismo e identidade que foram concebidas numa época em que
os mercados mundiais estavam por se estabilizar na Europa do século XIX. É essa condição
híbrida, líquida, das culturas e de seus sujeitos nas sociedades globais, que irá representar o
principal motor para a superação dos modelos imperiais encontrados no passado:
A globalização, obviamente, não é um fenômeno novo. Sua história coincide com a era da ex-
ploração e da conquista europeias e com a formação dos mercados capitalistas mundiais...O
apogeu do imperialismo no final do século XIX, as duas guerras mundiais e os movimentos pela
independência nacional e pela descolonização no século XX marcaram o auge e o término dessa
fase. (HALL: 2006)
Com isso, chegamos a um novo modelo de etnicidade, modelo esse que passou a ser
regulado por sentimentos mais voláteis de pertencimento. A ideia contemporânea de etnicida-
des alimentaria a coexistência de modelos mais híbridos de identidade cultural, portanto não
mais subsidiados pelas noções tradicionais de nação e de memória coletiva. Então, nos per-
guntamos mais uma vez: qual o significado para nós, hoje em dia, desta cultura da diáspora?
Em que medida as aflições que emergem tanto do poema de Lorde quanto da performance
de Selina Thompson, sobretudo quando tratamos desses fantasmas que nos inspiram medo
e desse sentimento de uma morte sempre a rondar, Para aqueles entre nós que foram im-
pressos com o medo como uma linha tênue no centro de nossas testas, ganham terreno
ao explicitar uma condição da qual nunca nos livramos e que Frantz Fanon tão bem caracte-
rizou como aquela experiência de “uma pele que chega antes”, antes do próprio sujeito, de
seu corpo, de sua história? Atualizar o debate da diáspora e torná-lo peça fundamental para
pensar a sempre necessária auto-afirmação dos sujeitos diaspóricos não equivale, do meu
ponto de vista, a praticar uma espécie de arqueologia perdida. Penso que denunciar o racismo
estrutural de nossas sociedades ajudaria a pensar sobre a dimensão histórica da diáspora no
Velho-Novo Mundo, em que pese seu espelhamento nas formas artísticas e culturais contem-
porâneas que de algum modo lhes são tributárias.
Do lado de cá do Atlântico, nos “tristes trópicos” (mais tristes nestes tempos de uma guer-
ra declarada pelas elites contra os mais pobres), recorremos a essa travessia muito mais como
salvo-conduto para endossarmos o quanto essa diáspora representou uma nova cultura em
terras ocidentais, destacando-se por sua notável capacidade de produção, de transformação
e de reinvenção. Onde houvesse a presença negra africana, suas canções, seus ritos, suas
danças, seu axé ajudariam a consolidar as culturas afro-americanas em territórios tão distintos
como o Brasil, Cuba, as Antilhas, as ilhas do Caribe, além, é claro, dos Estados Unidos.
Mas o que se preserva dessa experiência histórica da diáspora, seja em terras matriciais 131
da empresa capitalista ou no Terceiro Mundo, corresponde a compreender como os sujeitos
partilharam da monumental presença africana, cada qual à sua maneira. E como essa presen-
ça, contando apenas com a sua memória, seus laços étnicos e sua resistência cultural, con-
seguiu se autoinventar a partir do entrelaçamento com outras matrizes culturais dominantes.
Para Lorde, a ideia “de que nunca fomos destinados a sobreviver” supõe ao mesmo tem-
po um desafio para os que decidiram “escapar” das formas de apagamento e silenciamento
operadas pelo racismo estrutural, e torna cada vez mais inadiável a disputa por esses lugares
de fala que a crescente visibilidade das questões relativas às mulheres e ao feminismo inter-
seccional impõe. Daí ser uma constante no texto de Thompson a presença de mulheres que a
acompanham nesta travessia: Saidiyah Hartman, bell hooks, Audre Lorde, dentre outras. Das
lembranças que acompanham a menina de Birmingham que frequentou lugares aos quais sua
pele chegava sempre antes, sal. pretende ainda recuperar um imaginário do que representou
e ainda representa a carnificina da escravidão:
Corpos explodidos com pólvora, pendurados, queimados no tronco, corpos deixados para se
putrefazer, picados por abutres, devorados vivos por formigas de fogo, assados no espeto.
Cenário dos filmes de terror que eu nunca tenho estômago para assistir vibrando na minha gar-
ganta, fazendo eco em nosso DNA e nos atrapalhando .4
Olhando de perto para a nossa tragédia particular, que perfaz as cifras escandalosas de
milhares de óbitos ao ano de corpxs negrxs5, óbitos que concretamente apontam para uma
4Tradução livre do seguinte trecho peça:“Bodies blown up with gunpowder, hanged, burned at the stake, bodies
left to putrefy, pecked at by vultures, devoured alive by fire ants, roasted on pikes. The fodder of the horror films
I never have the stomach to watch vibrating in my throat, echoing through our DNA and choking us both..”
5Uma consulta ao Mapa da violência 2015, homicídio de mulheres no Brasil, estudo capitaneado por Julio Jacobo Waisel-
fisz, poderá ser de grande utilidade para traçarmos as relações entre racismo e violência contra as mulheres, em especial
contra as mulheres negras no Brasil.
verdadeiro “negrocídio” da juventude pobre-preta-periférica, o poema-denúncia de Thompson
revela-se mais que oportuno para pensarmos essa lógica de “destituição do humano” que
vem atravessando séculos e que, seguramente, constitui o problema do racismo estrutural
inaugurado pela aventura marítima-mercantil-colonial.
Acredito que ao trazermos esses testemunhos dxs corpxs pretxs e do racismo em con-
textos tão distintos, como no caso do Brasil e do Reino Unido, deparamo-nos com uma pos-
sibilidade de denunciar essas feridas que nunca cicatrizam; elas servem para pensarmos a
grandeza desse texto e de seus enunciados como forma de nos aproximarmos e partilharmos,
cada qual a sua maneira, das situações que nos exigem mais e mais a elaboração de táticas e
estratégias para combater o racismo estrutural. O racismo é um problema de toda a sociedade
e, como já dizia Grada Kilomba, uma problemática dos brancos, o que reafirma a importância
do engajamento destes na luta antirracista, “alertando para seus espaços de agenciamento,
que são específicos e cujo silêncio e respeito ao lugar de fala deve ser primordial e incontes-
tável”. Assim, ao selarmos esse compromisso com as potências e forças que emergem desse
campo de batalhas e que se apresentam como a saída primordial para um devir humano, um
devir comunal, uma ecologia dos saberes que refundará a nossa existência neste corpúsculo
cósmico conhecido como planeta Terra, é que desejamos ferir de morte esse sistema perverso
que alimentou e continua a alimentar processos seculares de extermínio.
132
Referências:
sinopse
histórico
O
título da peça alude a uma condição que não é a dos criadores, mas, sim, do país
140 imaginário que eles constroem a partir de suas lembranças. Afirmo que “clandestino”
não corresponde aos autores porque, se eles transitam pelo mundo, sua condição
social (têm papéis, não estão ilegais) é diferente da de milhões de imigrantes que hoje existem
no mundo em condições sub-humanas. A globalização, infelizmente, é só para alguns. Mas
o grupo é capaz de fazer com esse privilégio uma proposta interessante, que transcende as
fronteiras nacionais e permite pensar que podemos juntos construir outras plataformas de
entendimento.
A peça é uma abertura de processo. A partir de meu olhar externo, percebo que a compa-
nhia realizou um corte (determinado talvez pela estreia) na construção de um imaginário sobre
eles mesmos e seus países. Construção que poderia se estender ad infinitum, como a vida,
pois não é uma representação de um referencial externo às suas próprias vivências. Essa afir-
mação é corroborada pelas palavras de Badiou sobre a especificidade do teatro:
O teatro se distingue assim do Estado – do qual é um assunto (mas por quê?) –, da Moral – para a qual
é um suspeito (mas por quê?) – e do Espectador – do qual extrai seu real – isto é, aquele que interrompe
os ensaios. Sobre esse ponto, a essência do teatro radica em que haja estreia (BADIOU, 2015, p. 27). 1
País Clandestino é uma obra não representativa (mesmo que tenha momentos nos quais se
representa o referente externo – as manifestações) que atinge problemáticas contemporâneas
do Ocidente, que atravessam não só seus criadores. A forma de construção se dá a partir das
lembranças dos artistas e daqueles que conformam seu entorno, principalmente suas famílias.
Faço, seguindo Ricoeur, uma distinção entre lembrança e memória para tentar estabelecer as
particularidades desse mecanismo dramatúrgico:
1 Tradução de Luciana Romagnolli a partir da versão em espanhol: “El teatro se distingue así del Estado – del
cual es un asunto (¿pero por qué?) – de la Moral –para la cual es un sospechoso (¿pero por qué?) y del Espectador
– del cual extrae su real – es decir; aquello que interrumpe los ensayos. Respecto a este punto, la esencia del teatro
radica en que hay un estreno.”
Um primeiro traço caracteriza o regime da lembrança: a multiplicidade e os graus variáveis de
distinção das lembranças. A memória está no singular, como capacidade e como efetuação, as
lembranças estão no plural: temos umas lembranças.[...] sob esse aspecto, as lembranças podem
ser tratadas como formas discretas com margens mais ou menos precisas, que se destacam con-
tra aquilo que poderíamos chamar de um fundo memorial, com o qual podemos nos deleitar em
estados de devaneio vago (RICOEUR, 2007, p. 41).
O espectador percebe (e esse deve ser o intuito) a construção, que se realiza no palco
como um exercício necessário de compreensão para os atores-criadores, é uma procura por
tentar entender a história política “real” e a si mesmos dentro dessa história. A política funcio-
na por meio de mecanismos complexos que hoje tendem a anular a participação efetiva dos
cidadãos. Exercer a cidadania dentro desse habitat é uma aposta difícil, o sujeito contemporâ-
neo está exposto a armadilhas que muitas vezes lhe dificultam o reconhecimento do que está
em jogo. Essa preocupação da Compañía Les Five Pays nos encaminha para uma estética
do “real” que procura um diálogo com a sociedade. Silvia Fernandes inicia um dossiê sobre a
presença do real no teatro na Revista Sala Preta com as seguintes palavras:
[...] percebe-se que o desejo de real, onipresente na pesquisa teatral contemporânea, não é mera
investigação de linguagem. Ao contrário, ele parece testemunhar a necessidade de abertura do
teatro à alteridade, ao mundo e à história, em detrimento do fechamento da representação, pre-
dominante na década de 1980. (FERNANDES, 2013, p.4).
Uma situação semelhante à descrita por Silvia Fernandes é a que observamos em País
Clandestino, dirigido por Jorge Eiro e Maëlle Poésy: uma necessidade de dar conta da história 141
ou, pelo menos, entendê-la, é o motor da peça. Esse leitmotiv não exclui que a reflexão sobre
a própria prática teatral (eixo central das gerações anteriores) seja também um elemento con-
figurador da dramaturgia. O ponto central, contudo, é criar os imaginários de Argentina, Brasil,
Espanha, França e Uruguai e dentro deles a si mesmos. O dispositivo escolhido para esse fim
é articular suas lembranças, as de suas famílias, alguns dados históricos isolados e uma e
outra referência teórica. O resultado é o país “clandestino” construído no interior dos artistas.
Clandestino por estar fora da História e sim nas histórias privadas dos artistas.
Que explode preconceitos e se oferece como uma alternativa subterrânea a todas as bandeiras. O
texto é seu próprio processo de pesquisa à distância. Por quase quatro anos, os cinco criadores
trocaram preocupações e respostas a partir de seus respectivos locais de origem para, então,
reunir o processo desta documentação coletiva sob a forma de teatro. País Clandestino cruza his-
tórias e contextos para oferecer-se como uma síntese onde possamos nos reconhecer em nosso
passado e fazer bater o nosso presente3 (FERRARO, 2017).
Desta forma, podemos inserir essa obra na mesma linha dos trabalhos de Lola Arias, que
procuram uma nova relação com a realidade – a propósito, cabe lembrar o filme The Square:
A Arte da Discórdia (2017), no qual se menciona essa autora –. Quando defino a produção
como uma obra que caminha na esteira de Lola Arias, tento configurar um longo processo de
trabalho em que pessoas (no caso de Arias, não necessariamente profissionais) podem, a par-
tir de suas diversas lembranças ou das que lhes foram narradas por seus familiares, elaborar
uma montagem na qual se questionam certos momentos históricos e de suas próprias vidas.4
Mas a representação também se faz como abertura ao processo de trabalho, com o intuito de
assumir esse processo como um fim. Há, portanto, uma reconfiguração do processo repre-
sentativo como uma performance na qual o sujeito cria a partir de seu lugar de enunciação.
Bloco II: Sentados numa mesa, os autores-atores debatem sobre a forma da peça, esta-
belecendo uma paródia imagética do que Stanislavski definia como trabalho de mesa. Este
debate é constantemente interrompido por informações políticas que culminam em discus-
sões sobre a situação dos artistas e a relação da arte com jovens artistas como eles, e/ou os
conflitos entre o estado e os cidadãos em cada um dos países representados.
Um recurso várias vezes utilizado é o da quebra da quarta parede para escutar as opiniões
do público ou pedir que leiam ou participem do que acontece no palco. Essa abertura rompe
o ritmo da peça, mas permite o encontro relacional entre artistas e público. O ritmo original é
retomado com novas discussões sobre o estado, o papel dos artistas e dos autores-atores. A
metodologia é o deboche, inclusive das próprias referências teóricas e do uso da tecnologia
para obter a informação.
É interessante notar que, mesmo com esse deboche, a criação foi realizada por meio de
3 Tradução da autora. No original: “para estallar los prejuicios y brindarse como una alternativa subterránea
a todas las banderas. El texto es su propio proceso de investigación a la distancia. Durante casi cuatro años, los cinco
creadores estuvieron intercambiando inquietudes y respuestas desde sus respectivos lugares de origen para luego
montar el proceso de esta documentación colectiva bajo la forma del teatro. País Clandestino cruza historias y contextos
para ofrecerse como síntesis donde reconocernos en nuestro pasado y hacer latir nuestro inquietante presente”.
4 Para mais informações, ver o estudo de COSTA e ROJO (2016).
dispositivos como WhatsApp, e-mail, Skype. O material foi reunido a partir tanto de arquivos
históricos e familiares como de suas próprias lembranças quanto às relações que eles es-
tabeleceram, algumas vezes de maneira presencial, mas a maioria por meio da tecnologia.
Dessa forma, fatos históricos como a Primeira Guerra Mundial se contrapõem a outros atuais
produzindo um contraponto temporal no relato. Todo o contexto informativo de cada lugar de
origem, dos integrantes e das relações entre os países ou, inclusive, continentes, serve de
inspiração e se converte em material dessa montagem. O intuito é criar laços além dos deter-
minados pelas plataformas das redes sociais, mesmo quando as utilizando:
A seguinte análise, mesmo que discutível, me parece válida para o entendimento da obra.
Considero que os artistas de País Clandestino criam uma condição de desamparo voluntá-
ria (nenhum deles foi expulso nem é imigrante) para construir uma zona fora da ordem de 143
pertinência que os define e fora da oferecida, artificialmente, pelas redes sociais. Inclusive,
expõem-se à agressividade verbal do Outro no contato físico que estabelecem. Talvez o intuito
seja o de deixar que seus corpos se afetem pelo Outro. Essa consideração tem relação com
a seguinte tese de Safatle:
No desamparo, deixo-me afetar por algo que me move como uma força heterônoma e que, ao mesmo
tempo, é profundamente desprovido de lugar no Outro. Algo que desampara o Outro. Assim, sou a
causa de minha própria transformação ao me implicar com algo que, ao mesmo tempo, me é heterô-
nomo, mas me é interno sem me ser exatamente próprio (SAFATLE, 2016, p. 32).
Bloco III: Os atores voltam à primeira posição. Assim, frente ao público, combinam fatos
históricos (apenas enunciados) com lembranças familiares. Neste bloco, rompe-se o tom hu-
morístico vivenciado anteriormente. A Compañía Les Five Pays performatiza uma espécie de
histórico familiar que permite ao público situar cada um dos integrantes do coletivo dentro de
uma linha de ancestralidades. Há momentos muito emotivos, como a gravação do relato da
mãe do protagonista argentino sobre a desaparição do irmão dela. O bloco finaliza com uma
imagem dinâmica de todos lançando pedras e relatos de diversas manifestações políticas
ocorridas: contra o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, pelas crises de representação
que geram a atuação dos políticos na Espanha, pela procura de uma democracia real, pelos
5 Tradução da autora a partir da versão em espanhol: “Hoy la comunicación sepulta los contactos humanos en
espacios controlados que suministran los lazos sociales como productos diferenciados. La actividad artística se esfuerza
en efectuar modestas ramificaciones, abrir algún paso, poner en relación niveles de la realidad distanciados unos de
otros. Las famosas ‘autopistas de la comunicación’, con sus peajes y sus áreas de descanso, amenazan con imponerse
como único trayecto posible de un punto a otro del mundo humano. Si la autopista permite efectivamente viajar más
rápido y eficazmente, también tiene como defecto transformar a sus usuarios en meros consumidores de kilómetros y
de sus productos derivados. Frente a los medios electrónicos, los parques de diversión, los lugares de esparcimiento, la
proliferación de formatos compatibles de sociabilidad, nos encontramos pobres y desprovistos, como rata de laboratorio
condenada para siempre a un mismo recorrido, en su jaula, entre pedazos de queso. [...] Así entonces, el espacio de las
relaciones más comunes es el más afectado por la cosificación general.”
conflitos argentinos que terminam com manifestantes colocando fogo na porta do Congresso,
pela reivindicação de políticas que assumam o genocídio dos desaparecidos no Uruguai, pelo
atentado contra o Charlie Hebdo na França. A protagonista francesa expõe toda essa vivência
em sua língua, quebrando a língua hegemônica do espetáculo (o espanhol), e esse me parece
um fato relevante na procura dessa ruptura das fronteiras nacionais. Posteriormente, cada um
dos autores-atores relata as repercussões que esse fato teve nas suas redes sociais ou o que
vivenciaram na marcha na França, que não tinha imigrantes. Neste ponto, gera-se uma forte
discussão sobre como algumas mortes importam mais que outras, marcando, por conseguin-
te, como há vidas que importam mais que outras. Um dos elementos que se reitera uma e
outra vez é a divisão interna dos países.
O cenário, nesta etapa, transforma-se numa exposição de painéis que aludem aos confli-
tos anteriores e, dessa maneira, transforma-se em ato, em uma representação abstrata das
manifestações relatadas. Observamos como a dinâmica verbal da peça tem correspondência
nas imagens que vão sendo estruturadas. Há, sem dúvida, uma exaltação do gesto político
que significa o protesto, mesmo que ele não leve a uma mudança da situação: a marcha em
silêncio pelos desaparecidos da ditadura uruguaia continua sendo feita, as pessoas continu-
am saindo à rua com cartazes de apoio à Presidenta Dilma Rousseff.
Bloco IV: É construído a partir de uma perda pessoal: a morte do pai de Pedro (o prota-
gonista brasileiro). A atmosfera marca o encontro afetivo que acalma a dor. Na narrativa do
protagonista, a perda está tanto no espaço privado quanto no público. Pai-País-perda, nossa
história construída pela história de nossos países, a história de nossos países construída por
144 nossas experiências, o tempo passado no presente, o presente olhando o passado. Ricoeur
confirma esse mecanismo que nos permite articular a memória quando assinala: “É principal-
mente na narrativa que se articulam as lembranças no plural e a memória no singular, a dife-
renciação é a continuidade” (RICOEUR, 2007, p. 112). Este bloco é finalizado com uma canção
de Manu Chao6, o mesmo artista com o qual iniciamos nosso estudo.
Bloco V: Ainda com a música de Manu Chao, narra-se uma série de lembranças de expe-
riências cotidianas banais: festas, reuniões em bares e relações sexuais fugazes. O corpo dos
atores reproduz os corpos das diferentes vivências relatadas. Este bloco quebra com a dinâ-
mica anterior possibilitando que o espectador conheça outro aspecto desses jovens artistas.
Bloco VI: A protagonista espanhola, retornando ao tom pessoal do brasileiro quando rela-
tou a morte do pai, narra sua relação com a mãe desde a saída do lar materno aos 18 anos.
Ela, também, estabelece uma relação entre o pessoal e o público. A saída da casa materna é
vinculada à saída da Espanha, à construção da nacionalidade espanhola na distância, na con-
dição de estrangeiro. Este depoimento dá início à sequência seguinte estruturada no mesmo
tom intimista, inclusive com diminuição da luminosidade.
O passado ressurge por meio de gravações maternas e paternas, com conselhos e depoi-
mentos. Entendemos que a eleição dessa cena para o desfecho marca um grupo de adultos-
-jovens que retorna às suas raízes no processo identitário de reconhecimento, dentro de um
mundo no qual as redes afetivas são cada vez mais difíceis de serem construídas.
6 José Manuel Arturo Tomás Chao Ortega, Manu Chao (Paris, 1961), é um cantautor franco-espanhol
reconhecido na Europa e América Latina.
Referências:
BADIOU, Alain. Rapsodia para el teatro: tratado filosófico breve. Tradução de Rodrigo Mo-
lina-Zabalía. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2015. 168 p.
BORRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução de Cecilia Beceyro e Sergio Delgado.
Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2008. 144 p.
COSTA, Júlia Morena; ROJO, Sara. Visibilidad de la violencia en el teatro actual latinoa-
mericano: El año en que nací, de Lola Arias, La mujer puerca y Mau Mau, o la tercera parte de
la noche, de Santiago Loza. Revista Caracol, n. 12, pp. 100-123, 2016 Disponível em: <http://
www.revistas.usp.br/caracol/article/view/121415/122031>. Acesso em 10 jan.2018
FERNANDES, Silvia. Experiências do real no teatro. In: Revista Sala Preta, v. 13, n.2, pp.
3-13, 2013. Dossiê Teatros do real. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/salapreta/arti-
cle/view/69072> Acesso em: 7 jan. 2018.
FERRARO, Gisella. País Clandestino: la genuina apuesta transnacional del FIBA. 2017. Dis-
ponível em: <http://farsamag.com.ar/pais-clandestino-la-genuina-apuesta-transnacional-del-
-fiba> Acesso em: 8 jan. 2018.
FUNDAÇÃO TEATRO A MIL. 5 razones para ver País Clandestino, el estreno mundial que pre-
sentaremos en FIBA en Chile. Disponível em: <http://www.fundacionteatroamil.cl/noticia/5-razo-
nes-ver-pais-clandestino-estreno-mundial-presentaremos-fiba-chile> Acesso em: 8 jan. 2018.
MANU CHAO. Clandestino. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=0TamvrMZl4g> Acesso em: 08 jan. 2018.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. Cam-
pinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, 535 p.
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos. Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 145
Belo Horizonte: Autêntica, 2016, 258 p.
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foto pixabay
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A Gente Se Vê
Por Aqui
Duração: 24h
sinopse
Dois performers reproduzem na íntegra a programação da Rede Globo durante 24 horas, a partir da transmissão
do Fantástico, no domingo à noite, até o final do Jornal Nacional, na segunda-feira. Com fones de ouvido, que os
isolam do mundo exterior, recebem o áudio dos telejornais, filmes, novelas, programas de auditório, publicidade 149
e vinhetas. No palco, têm à disposição um “kit-sobrevivência” – geladeira, fogão, comida, banheiro, sofá, cama,
cadeira -, um “kit-jogos” - baralho, saco de boxe, luvas, peteca, bola, bexiga -, e um «kit-atuação» - peruca, ma-
quiagem, máscaras e fantasias. Enquanto mimetizam ou reinterpretam a programação, sempre reproduzindo o
áudio que recebem em seus earphones, realizam tarefas cotidianas, como cozinhar, ir ao banheiro, descansar no
sofá, brincar. Idealizada e dirigida por Nuno Ramos, A Gente Se Vê Por Aqui opera por meio de deslocamentos – os
atores vão performar o que já é representação, mas que quase nunca é percebido como tal, por conta da natura-
lização e das verdades construídas pela televisão.
histórico
Ano passado, o artista plástico, compositor e escritor Nuno Ramos criou seu primeiro trabalho para internet. As ima-
gens das edições do Jornal Nacional que anunciaram o impeachment de Dilma Rousseff e o vazamento dos áudios
de Lula e da ex-presidente foram editados e combinados com a letra e a melodia de Lígia, música de Tom Jobim dos
anos 1970, título da obra de Nuno. Na edição, os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcelos cantam a le-
tra da música, afinados com a voz de João Gilberto. Este trabalho ofereceu o insight para a performance A Gente Se
Vê Por Aqui, realizada pela primeira vez no último mês de novembro, em Porto Alegre (RS), no Teatro Renascença.
Nuno Ramos nasceu em 1960, em São Paulo, onde vive e trabalha. Formado em filosofia pela Universidade de São
Paulo, começou a pintar em 1984, quando passou a fazer parte do grupo de artistas do ateliê Casa 7. Desde então,
tem exposto regularmente no Brasil e no exterior. Participou da Bienal de Veneza de 1995, onde foi o artista repre-
sentante do pavilhão brasileiro, e das Bienais Internacionais de São Paulo de 1985, 1989, 1994 e 2010. Em 2006,
recebeu, pelo conjunto da obra, o Grant Award da Barnett and Annalee Newman Foundation. O primeiro livro de
Nuno Ramos, Cujo, é de 1993. Publicou ainda títulos como Pão do Corvo, Ensaio Geral, Ó, Mau Vidraceiro, Junco,
Sermões e, o mais recente, Adeus, Cavalo, lançado em 2017.
ficha técnica
sinopse
Como a arte – e mais especificamente o teatro - está relacionada ao contexto de acirramento político que viven-
ciamos no Brasil e noutros lugares do mundo? O vocábulo grego theatron, que significa “local de onde se vê” ou
“lugar para olhar”, deu origem à palavra teatro. Pensando o que podemos considerar teatro hoje e quais as pesso-
as que têm acesso a essa linguagem artística, a performer Ana Luisa Santos realiza a intervenção urbana Pontos
de Vista. Trajando um bodydoor, placa de propaganda vestida no próprio corpo, comum em áreas de comércio
de grandes cidades do país, com os dizeres “Troco Pontos de Vista”, Ana Luisa Santos se propõe a conversar
e debater qualquer assunto surgido a partir do encontro com quem estiver passando. Durante a ação, algumas
pessoas vão receber ingressos para espetáculos da MITsp, para que, juntos, performer e transeuntes do centro de
São Paulo possam trocar pontos de vista sobre o teatro.
histórico
A performance inédita Pontos de Vista tem como inspiração outra intervenção urbana realizada pela performer em
2013: Um Museu Comigo Agora. Ana Luisa Santos trajava um bodydoor com a seguinte inscrição: “Você quer ir
conhecer um museu comigo agora?”. A partir do encontro e da interação com o público, a artista propunha a ida a
um museu ou centro cultural. Performer e escritora, Ana Luisa Santos também atua como curadora de exposições e
residências artísticas, participa de núcleos de pesquisa e desenvolve trabalhos para teatro e dança, com destaque
para dramaturgia e figurino. Indicada ao Prêmio PIPA 2017, a artista é idealizadora do Perfura\Ateliê de Performance
e codiretora da plataforma O que você queer. O site www.anasantosnovo.com reúne os trabalhos da artista.
sinopse
153
Nesta performance proposta pelo Festival Panorama, do Rio de Janeiro, teóricos, artistas e estudantes de
arte, entre outros, leem textos sobre liberdade de expressão, arte e política. Uma maratona de leitura de
livros para recuperar a potência do corpo que lê. Ao final, Nayse López, diretora artística do Festival Pano-
rama, conversa com Ana Luisa Santos, performer que idealizou e irá realizar a ação Pontos de Vista, sobre
intervenção e mediação no espaço público.
154
foto pixabay
- na página do título AUDIO TOURS – NÃO TEM ACENTO, É SEPARADO E
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ITÁLICO. ACHEI ESTRANHA A SEPARAÇÃO
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fica parecendo um erro – são três artistas e temos quatro fotos. Avalia?
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VESSAMENTOS FICARAM ÓTIMAS!!! POR INCRIVEL QUE PAREÇA, MELHO
DE LER DO QUE OS ENSAIOS)
- OLHARES –
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182 – ARRUMAR O TEXTO INICIAL – ELAS MANDARAM MENOS!!! u
185 – ARRUMAR A CAIXINHA DO PENSAMENTO-EM-PROCESSO – ESCREV
MAIS E LASCOU TUDO!
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NAS AÇÕES PEDAGÓGICAS, O SEGUNDO ATELIÊ, DE JORIS LACO
TE, ESTÁ FALTANDO O SERVIÇO:
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156
AudioReflex
ficha técnica
sinopse
Enquanto na Alemanha o debate sobre o drama dos refugiados – e seu asilo no país – diz respeito sobretudo a
Síria, Albânia e Kosovo, no caso do Brasil está relacionado ao continente africano, já que desde 2000 tornou-se
um destino frequente de imigrantes de lá e também do Haiti. Quais as diferenças e/ou relações entre os processos
de migração ao longo do tempo nas cidades de Munique e São Paulo? Como se dá a integração dos imigrantes
nesses países de contextos sociais, políticos e econômicos tão diversos? Essas questões serviram como dispa-
radores para o projeto AudioReflex. Os artistas Ariel Efraim Ashbel, nascido em Tel Aviv (Israel) e residente na Ale-
manha, Claudia Bosse, natural da Alemanha, mas moradora de Viena (Áustria), e Rita Natálio, portuguesa que vive
entre Lisboa e São Paulo, vão criar obras sonoras, audio tours, para o Museu da Imigração, localizado no bairro da
Mooca, na capital paulista. Os arquivos começam a ser disponibilizados ao público no dia 3 de março, às 15h. As
obras poderão ser ouvidas gratuitamente na internet por período indeterminado e qualquer visitante pode realizar
o percurso no museu utilizando seu próprio celular.
histórico
Com direção artística de Sigrid Gareis, o projeto AudioReflex envolve artistas atuantes no Brasil (José Fernando
de Azevedo, Alejandro Ahmed e Rita Natálio) e na Alemanha (Ariel Efraim Ashbel, Suli Kurban e Claudia Bosse).
O programa foi estruturado em quatro etapas: duas oficinas com todos os participantes, realizadas em Munique
e em São Paulo em 2017, e dois períodos de criação artística em cada uma das cidades. Três obras sonoras já
foram criadas no Stadtmuseum, na Alemanha, e lançadas durante o festival SPIELART. Agora o projeto será
realizado no Brasil, no Museu da Imigração, onde as pesquisas dos artistas e as narrativas sonoras serão criadas
e disponibilizadas ao público.
fotos Yanai Yachiel, Ines abreu e silva, Regine Hendrich e Elsa Okasaki
foto pixabay
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Entre palavra,
gesto e música:
metamorfoses
160
contemporâneas
da rapsódia
“mortemesafo”
Paulo Leminski
Pat r i c k P e s s oa
Universidade Federal Fluminense
#1
Por que Íon não reage?
#2
161
O enredo é bastante conhecido (e já se repetiu em múltiplas variações desde o século V
a.C., quando o jovem Platão escreveu ese breve diálogo): Íon de Éfeso, um dos mais reconhe-
cidos rapsodos da Magna Grécia, chega a Atenas. Para sua (in)felicidade, em um cenário que
Platão não chega a determinar – estariam eles na ágora? –, esbarra com Sócrates, que saúda
o recém-chegado artista estrangeiro com sua peculiar ironia. Depois de saber, pela boca do
próprio, que Íon havia acabado de vencer a disputa de rapsodos de Epidauro e de desejar-lhe
a mesma sorte nas Panateneias, Sócrates diz:
Muitas vezes invejei-vos, os rapsodos, Íon, pela vossa técnica. Pois tanto o ser conveniente a vós,
por meio da técnica, ornar o corpo e parecer o mais belo possível quanto ser necessário viver na
companhia de outros poetas, muitos e bons – e mais que todos de Homero, o melhor e mais divino
dos poetas – e saber de cor seu pensamento, não apenas as suas palavras, é invejável. Pois ninguém
jamais se tornaria um bom rapsodo se não compreendesse as coisas ditas pelo poeta. Pois, para os
ouvintes, o rapsodo deve se tornar intérprete do pensamento do poeta. (PLATÃO: 2012, p. 27)
Na breve descrição de Sócrates sobre as razões de sua “inveja”, encontram-se alguns
elementos para o esboço da figura do rapsodo. Trata-se de um proto-ator, uma espécie de pa-
triarca das artes da cena, cuja “técnica” consistia em saber ornar o corpo com o que hoje cha-
maríamos de figurinos e em recitar os poemas épicos que, até a época de Platão, constituíam
a base da educação, da paideia grega. “Homero, o melhor e mais divino dos poetas” só pôde
converter-se no “pedagogo da Grécia” também por conta desses performers que, sabendo de
cor a íntegra da Ilíada e da Odisseia e fazendo todos os personagens dessas epopeias, iam de
cidade em cidade interpretando seus poemas.
O que Sócrates omite em sua descrição é que os rapsodos também utilizavam instru-
mentos musicais em suas apresentações. A rapsódia mais arcaica valia-se de tambores, para
instaurar o clima bélico próprio aos poemas homéricos, em especial à Ilíada. Já a “rapsódia
moderna”, aquela que era ainda praticada no tempo dos grandes tragediógrafos gregos, isto
é, da invenção do teatro propriamente dito, costumava apoiar-se na lira, ganhando em clareza
e melodia o que perdia em êxtase e força rítmica. Uma reconstrução materialista do célebre
mito nietzschiano da batalha entre Apolo, cujo instrumento é a lira, e Dioniso, possível patrono
do rock’n’roll, poderia ser feita com base no estudo dos diferentes instrumentos para a repro-
dutibilidade técnica de sua música empregados pelos gregos ao longo do tempo.
Outra coisa que Sócrates omite nessa primeira descrição, mas que é o pano de fundo de
todo o diálogo: o fato de que os rapsodos, além de intérpretes no sentido teatral e musical dos
poemas homéricos, eram também intérpretes dos pensamentos dos poetas. Além de perfor-
mers, eram mediadores (ou professores, ou explicadores de uma poesia épica cuja linguagem
muitas vezes parecia hermética já aos ouvintes do tempo de Sócrates). Recitavam os poemas
em praça pública, para todos, mas em momento posterior, já sem acompanhamento musical e
sem indumentária, diante de um público seleto (e preferencialmente abastado), explicavam em
prosa o teor e o alcance simbólico dos poemas em troca de dinheiro. Neste sentido aparenta-
vam-se aos sofistas, os grandes antagonistas de Platão na batalha em torno da “verdade” (ou
da correção epistemológica) dos discursos, e, como eles, assim pensavam Sócrates e Platão,
precisavam ter sua autoridade social desconstruída.
Em seu diálogo com Íon, a estratégia desconstrutiva de Sócrates aparece com especial cla-
reza. Se os filósofos queriam roubar de Homero e dos poetas e artistas em geral o posto de pe-
dagogos da Grécia, era fundamental atraí-los para fora do campo performático, para um campo
discursivo no qual a potência gestual e vocal (isto é, formal) de suas interpretações não pudesse
prevalecer sobre as sóbrias armas da dialética, daquela linguagem argumentativa característica
dos filósofos. Assim, embora a princípio diga que tem “inveja da técnica” de Íon, o que Sócrates
fará ao longo de todo o diálogo é mostrar de forma irônica que Íon não poderia se considerar
um “intérprete do pensamento do poeta”, do espírito do texto; não poderia se considerar um
verdadeiro conhecedor de seus múltiplos conteúdos; e, por isso, não poderia de forma alguma
162 pretender disputar com o filósofo o posto de intérprete-explicador do que quer que fosse.
Sócrates começa perguntando a Íon se ele é um especialista em todas as coisas de que
fala Homero. Ser especializado num domínio específico de conhecimento, esta é a posição
de Sócrates, aparece como sinônimo de ser dotado de “técnica”. Íon responde que sim, que
é capaz de falar belamente sobre todas as coisas de que fala Homero. Sócrates então pede a
Íon que recite algumas passagens de Homero nas quais o poeta fala da técnica de conduzir
carros; da cura de um ferido; da pesca; e das artes da adivinhação. Íon o faz com a competên-
cia habitual. Na sequência de cada recitação, no entanto, criando uma separação estrita entre
os conhecimentos especializados envolvidos em cada uma das passagens e o modo como as
recita Íon, concentrando-se exclusivamente no conteúdo e não na forma do discurso, Sócrates
submete seu interlocutor a uma série de perguntas, até certo ponto escolares, sobre as técnicas
referidas por Homero. E leva-o a reconhecer, a cada vez, que não é a melhor pessoa para falar
corretamente dessas coisas. Em vez do poeta, que teria a pretensão desvairada de falar de
tudo, o filósofo pretende mostrar que os únicos pedagogos aceitáveis devem ser os respectivos
especialistas em cada área de conhecimento: o condutor de carros; o médico; o pescador; o
adivinho. E, claro, o filósofo, como o verdadeiro especialista em um conhecimento universal.
Sócrates encaminha-se então para o final do diálogo: “Assim como eu selecionei para ti, tanto da
Odisseia quanto da Ilíada, quais coisas pertencem ao adivinho, quais ao médico e quais ao pescador,
escolhe tu, para mim, já que és mais experiente do que eu nos versos de Homero, quais são as coi-
sas que pertencem ao rapsodo Íon, e à técnica rapsódica, aquelas que convêm mais ao rapsodo, em
comparação com os outros homens, tanto investigar quanto julgar.” Íon, com uma ironia que escapa
a Sócrates e a muitos leitores desse diálogo, obstina-se em sua posição: “Mas eu afirmo, Sócrates,
que são todas.” Então, como exemplo derradeiro, Sócrates refere a técnica da estratégia, própria
aos generais, e quando Íon insiste que domina também essa técnica, a ironia socrática é impiedosa:
“Mas por que então, pelos deuses, sendo o melhor dos helenos em ambas as coisas, tanto
general quanto rapsodo, estás em toda parte recitando poemas épicos para os helenos, mas
não atuas como general? Ou te parece haver, para os helenos, muita necessidade de um rap-
sodo coroado com uma coroa de louros, mas de um general, nenhuma?” (2012: 57)
Deixando de lado a posição tristemente contemporânea de Sócrates – bolsonariana, por
assim dizer – de que um povo teria mais necessidade de generais do que de poetas, o que
a marcha inexorável do diálogo faz, no final das contas, é calar Íon confrontando-o com uma
falsa alternativa. O diálogo se encerra com o filósofo obrigando o rapsodo a escolher entre
“ser considerado um homem injusto”, que finge saber o que não sabe, ou “um homem divino”,
que cria por inspiração direta dos deuses, sem por isso ter qualquer domínio técnico sobre
o que diz. Íon responde que “é muito mais belo o ser considerado divino”. Sócrates, então,
paternalisticamente dá a palavra final: “Isso, então, a coisa mais bela, te é concedida por nós,
Íon: ser divino, e não um louvador técnico de Homero.” (1990: 59)
Segundo a caricatura que dele faz Platão, Íon, de boa fé, aceita falar a língua de Sócrates.
Uma vez que aceita encetar um “diálogo” com Sócrates nos termos do oponente (ou opres-
sor!), está condenado a desempenhar de saída um papel um tanto quanto ridículo, um papel
que não é o seu. Íon, neste sentido, pode ser lido como uma das primeiras batalhas discursi-
vas travadas por Platão contra a autoridade dos artistas (e dos sofistas) em geral, que, embora
pudessem falar com grande beleza e de forma sedutora, eis a tese que prevalece ao final do
diálogo, “não sabem o que dizem”. Não por acaso, em seu comentário desse diálogo, Goethe
rebatizou-o como “Íon: o rapsodo humilhado”.
#3
A violência inerente à “forma-diálogo”, que pretensamente pressupõe a igualdade abstrata
entre os interlocutores como “seres racionais autônomos”, aparece em toda a sua crueldade
em Íon, levando-nos a entender por que a ênfase nos “lugares de fala” é tão fundamental para
colocar em xeque qualquer aposta, por mais bem intencionada que seja, nas potências reden-
toras do diálogo racional. Naqueles que se recusam a dialogar, não há, como ainda parece a 163
muitos, medo ou intransigência, mas sim o reconhecimento de que, desde a época de Platão,
o diálogo aparece como a principal arma encontrada pelos opressores para calar os oprimidos
sem assumir a sua própria violência “civilizadora”, como se estivessem apenas chegando à
conclusão lógica (e, portanto, irrefutável) de um argumento.
#4
Durante muitos anos, lendo o diálogo Íon, me chocavam a docilidade e a passividade do
rapsodo diante das invectivas cada vez mais violentas do filósofo. Por mais que o “ser consi-
derado divino” pudesse ser “a coisa mais bela”, o fato de que Íon aceitasse passivamente ser
considerado apenas um artista genial, inspirado, talentoso, sempre me pareceu incompatível
com a vocação pedagógica da poesia no contexto do mundo grego.
Por que Íon não reage?, eu me perguntava. Por que não consegue fornecer uma resposta
minimamente satisfatória à pergunta de Sócrates acerca da especificidade do saber do rapso-
do e da técnica rapsódica? Será que, como Sócrates, também ele poderia acreditar que sua
arte não passava de entretenimento para as massas, que não tinha qualquer função educati-
va? Por que Íon não reage?!
#5
Em um diálogo posterior, novamente pela boca de Sócrates, o mesmo Platão evoca Íon e
os rapsodos em geral, mas agora em um tom ainda mais dogmático. No livro III de A Repú-
blica, o filósofo estabelece uma série de regras a serem seguidas pelos poetas. Ao falar de
sua quimérica cidade ideal, ele deixa bem claro que quaisquer estranhos estrangeiros que lá
chegassem com o intuito de praticar a arte da rapsódia seriam pura e simplesmente expulsos,
pois “nem sequer é lícito que existam”. O Sócrates de A República simplesmente não tolera
mais artistas que não “imitem” de forma austera “a fala do homem de bem”. Qualquer seme-
lhança com dezenas de porta-vozes do mesmo pensamento no contexto brasileiro atual não
é mera coincidência.
No livro X de A República, ele fundamenta melhor a necessidade de censura às artes de-
generadas (incluindo toda a poesia mimética) e a eventual expulsão dos artistas não alinhados
com dois argumentos. O primeiro, de cunho ontológico-epistemológico, é uma retomada do
argumento de Íon: os artistas não sabem o que dizem, de modo que, na melhor das hipóte-
ses, sua arte não passa de entretenimento. O segundo, de cunho ético, é o que propriamente
fundamenta a expulsão dos poetas miméticos, aqueles que não falam de forma austera como
homens de bem, mas que, como Proteu, assumem mil faces: ao excitarem excessivamente
as emoções dos espectadores, gerando empatia mesmo por personagens de comportamento
desviante, os artistas seriam um empecilho a uma educação ética orientada pelos princípios
da racionalidade abstrata, incompatível com a livre vazão de desejos e paixões. Ao sintetizar
os dois argumentos, fica claro que o de cunho ético acaba por retroagir sobre o de cunho
epistemológico: para Sócrates, seria preciso combater a nossa tendência a amar a poesia,
que ele próprio confessa sentir em si, em nome da criação de uma “comunidade de homens
de bem”. Nessa comunidade, uma arte que apenas entretém sem edificar deveria ser banida.
Curiosamente, no entanto, depois de defender a expulsão dos poetas, Sócrates ameniza
a sua posição e lança um desafio à posteridade – um desafio que, a meu ver, foi aceito por
um discípulo de um discípulo de Sócrates, e que é uma das principais molas propulsoras da
Poética de Aristóteles. Ainda Sócrates:
Se a poesia imitativa voltada para o prazer tiver argumentos para provar que deve estar presente
numa cidade bem governada, a receberemos com gosto, pois temos consciência do encanta-
mento que sobre nós exerce; mas seria impiedade trair o que julgamos ser verdadeiro. Ou não
te sentes também seduzido pela poesia, meu amigo, sobretudo quando a contemplas através de
Homero? (PLATÃO, 1990, p. 473)
164
#6
Por que Íon não reage?
Durante muitos anos, dei a mim mesmo uma resposta protocolar, ao mesmo tempo insa-
tisfatória e anacrônica, a essa pergunta: dizia que, dado o contexto grego, em que a arte ainda
era pensada heterodoxamente – como devendo ter uma função educativa, social e política –,
seria impossível a Íon dar a única resposta que Sócrates não teria como refutar ironicamente.
Me colocava nos chinelos de Íon e dizia: “Mas, meu caro Sócrates, e se a arte não tiver
nenhuma função (previamente determinável)? E se a função da arte for justamente não ter
função alguma? E se, ao contrário do que você há tanto tempo prega, a arte for autônoma? E
se o valor da arte não depender de seus possíveis efeitos? Neste caso, você há de concordar
comigo, o que me pertence como rapsodo, essa técnica rapsódica de que você tanto fala,
outra coisa não é do que a minha habilidade de, ao dizer literalmente os poemas de Homero,
dizê-los com tamanho apuro gestual, vocal e corporal que qualquer um possa pela primeira
vez entendê-los. Não, não se trata de um entendimento racional, traduzível na forma de um
discurso lógico que valorizaria a poesia por conta do domínio homérico dos conteúdos de
que fala, mas de um entendimento pensado como a capacidade de ser afetado e alterado por
aquelas palavras, que de outro modo simplesmente não chegariam aos ouvidos de quem me
“ouvê”. O verbo “entendre” dos franceses guarda essa ambiguidade. Parlez vous français?
Tente ler Homero, meu caro. Pois posso garantir: só realmente “lê” Homero quem um dia me
escuta. A separação entre forma e conteúdo, que é o pressuposto de todo o teu discurso, é
uma falácia das mais perniciosas. Em poesia, não há paráfrase possível. Independentemente
dos possíveis efeitos da poesia que você tanto teme – não seja covarde, meu caro, a covardia
decerto não pode ser uma virtude dos homens de bem –, o fato é que ela só tem efeitos se
puder ser escutada. E ela só poderá ser escutada enquanto houver rapsodos. Rapsodos como
eu. Grandes intérpretes. Sim, eu sei. Não precisava dar aulas sobre Homero, ser intérprete/
explicador de Homero neste sentido em que vocês filósofos são intérpretes. Mas, meu caro,
você precisa me compreender: preciso alimentar as crianças, ganhar meu dinheirinho. Ainda
não inventaram a rede Globo. Nem a Casa do Saber. Então preciso dar uma exploradinha
nesses coroas ricos aqui de Atenas que gostam de fazer cursos para se “instruir”. Mas agora
falando sério: quando eu defendo a autonomia da arte, de forma alguma estou defendendo
a independência da arte do mundo social e político. Isso é papo de burguês. E a burguesia
ainda nem tomou o poder. Existir ela já existe, mas ainda não foi batizada. Anota aí a minha
fórmula: “Autonomia = autossuficiência + transbordamentos”. Transbordamentos, inevitáveis
transbordamentos. Em outras palavras: a arte não existe em função de nada, não se constrói
como tendo que necessariamente alcançar um efeito determinado, ter uma função pedagó-
gica, social ou política, ter um discurso fechado etc., etc., etc. O critério do valor da arte não
pode nunca ser um critério externo. Arte não é panfleto, arte não é ideologia. Calma, deixa
eu terminar. Mas arte também não é “arte pela arte”. Isso aí nunca existiu aqui na Grécia nem
nunca vai existir em lugar nenhum. Sei que muita gente gosta da expressão, acho até que
tem alguma força poética. Mas, neste caso, veja como eu também aprendo conversando com
você, acho que a expressão não é correta. Meu discurso te parece ambíguo? E você acha isso
ruim? Não leu Borges? É um jovem de talento que mora lá no Novo Mundo. Ele costumava di-
zer que a ambiguidade é uma riqueza. (Pausa longa. Os dois se encaram.) Sócrates, obrigado
por me ouvir. Você calado é um poeta!”
#7
Não, McLuhan, não é o meio que é a mensagem. O corpo é a mensagem. Por mais que o
corpo seja um meio, a diferença entre os termos é aqui fundamental.
#8
Por que Íon não reage? 165
Um dia, resolvi reler o diálogo em sala de aula com os meus alunos. Normalmente, gosto
de fazer o papel de Sócrates, mas nesse dia fiquei só ouvindo.
E alguma coisa me atravessou.
Em vez de só ouvir as muitas palavras de Sócrates e a precariedade do discurso do Íon,
comecei a “ouver”, a princípio muito baixinho e depois com um volume cada vez mais alto,
o quanto havia de contraironia e de resistência muda na aparente passividade do rapsodo.
“Ouvendo» a cena, numa ágora barulhenta e cheia de gente em volta, indo e vindo sem reparar
muito no Sócrates enrolando dialeticamente mais um desavisado, ouvi pela primeira vez o Íon.
O Íon encarava o Sócrates, e respondia muito mecanicamente, um pouco por educação,
um pouco por sarcasmo, o que o Sócrates queria ouvir, mas preservava uma altivez, uma dig-
nidade que eu nunca tinha conseguido enxergar. Nessa postura, ia a um só tempo revelando
a violência normalmente velada do seu interlocutor, um canalha divertido como Brás Cubas,
e reagindo a ela em silêncio. Reagindo só com o corpo, o tom de voz, o brilho do olhar. Em
algum momento, achei que suas respostas desafinavam de propósito. E aí fui vendo com
cada vez mais clareza como o Íon se fazia de espelho do Sócrates, da violência civilizadora
da “forma-diálogo”, e sobretudo da impossibilidade do diálogo quando não se reconhece o
lugar de fala do outro, o lugar da alteridade. E fui achando, pela primeira vez, que aquele gesto
corporal do Íon, não por acaso um estrangeiro, me ensinava muita coisa sobre como resistir à
opressão e sobre como descolonizar o pensamento. Diálogo é o caralho. Escuta é outra coisa.
E a escuta, aprendi naquele dia, não é tanto a escuta do significado das palavras, do sen-
tido do discurso. A escuta tem mais relação com “ouver» o corpo do outro, o timbre do outro,
os gestos do outro, os tiques do outro, as desafinadas, as escansões do outro, o modo como
divide musicalmente as palavras, a relação que o outro estabelece conosco, e isso tudo sem
sucumbir à tentação falocêntrica de só ouvir o que o outro fala. Quem só ouve o que o outro
fala ouve muito pouco, quase nada.
Julio Bressane dizia que o cinema é a música da luz. Talvez o teatro (e a performance, e as
artes da cena em geral) seja a música dos corpos.
#9
Adorno disse no pórtico da Teoria estética: “A autonomia da arte é irrevogável”. E todo o
seu esforço subsequente é pensar como, a partir de um respeito à autonomia de certas obras,
de sua lógica interna, de sua posição relativa no âmbito da história das formas, seria possível
encontrar o mundo todo lá dentro. “A obra como mônada”, uma lição que ele aprendeu com o
compadre Benjamin e que, acho, nunca esqueceu.
Mas, pensando hoje, aqui, neste Brasil acossado por todos os lados, pelo moralismo e a
censura, a rapina e o cinismo, os tribunais de exceção e o neopentecostalismo, a austeridade
fiscal e os cortes nos investimentos sociais, será que faz sentido continuar pensando numa
arte autônoma?
Sim, é muito fácil dizer que a arte autônoma é só uma ficção burguesa, que mesmo media-
tamente a arte sempre preserva algum tipo de relação com o mundo social do qual se origina,
mas a afirmação, também de Adorno, de que “a resistência é a única função disso que não
tem função: a arte” ainda faz muito sentido para mim.
Outro possível descaminho deste texto: voltar aos gregos, para os quais a arte tem indis-
cutivelmente uma função pedagógica, social e política, não é aceitar os termos dos inimigos
de hoje? Aqueles mesmos que condenam a arte como adorno? Não é cair na arapuca de sair
do próprio campo e ir jogar fora de casa? E aí ter que encontrar justificativas mais ou menos
mirabolantes que fazem pouco sentido para quem, sem precisar de outras razões, é profun-
damente alterado pelas obras?
Não, não estou falando do protoburguês Ulisses que, ainda segundo Adorno, ouve as sereias
e quer morrer por/com elas, mas que, amarrado na segurança pequeno-burguesa do mastro do
navio, com seus escravos remando sem nada ouvirem, simplesmente se resigna a escutar algo
166 que não tem o poder de mudar sua vida. E, no final, civilizadamente, aplaude, todo amarrado como
está, exatamente da mesma forma que os espectadores dos teatros e das salas de concerto.
Não, definitivamente não é de Ulisses que estou falando.
Talvez de Hamlet?
Outra alternativa impossível: devemos defender a autonomia da arte ou afirmar que o seu
valor está atrelado a sua função e possíveis efeitos?
#10
Por que o Íon não reage?
Falsa pergunta.
Íon reage sim.
Reage muito
De jeitos imprevistos.
Inauditos.
Não só o Íon.
Mas todos os seus filhos.
#12
O Hamlet de Julian Meding e Boris Nikitin é outra coisa, outra metamorfose possível da rap-
sódia moderna, ou melhor: outra encarnação da resistência muda de Íon (neste caso travestida
de uma loquacidade excessiva) ao colonialismo socrático, que quer traçar mapas, fronteiras,
desenhar nos corpos como a máquina kafkiana na colônia penal, dar-lhes nomes e rótulos, uma
pena, uma identidade finalmente reconhecível, estável, domesticada, fixa. Só que não.
Não.
“Não”, eu diria, é o significante-mestre deste Hamlet. Quer dizer: deste não-Hamlet.
X próprix perfomer Julia*n Meding, que grifa o seu nome com um asterisco no meio,
sublinhando a ambiguidade de ser Julia, Julian, uma estrela, um lobo, outra coisa ainda
sem nome, “as queer as a clockwork orange”, entra em cena sem jamais permitir que os
espectadores fixem sua identidade, x reconheçam e criem uma relação empática com elx.
Não. Contrariando a regra de ouro de um certo teatro – e não me refiro apenas ao mais
convencional –, elx faz questão, desde o começo do espetáculo, de ser “antipáticx” no
sentido etimológico do termo. Não. Contra toda falsa com-paixão. Não. Nada da ilusão
de um diálogo e de uma compreensão mútua entre x performer e os espectadores. Não.
E, claro, nada de Hamlet, isca que elx lança ao espectador desavisado, que espera algum
tipo de paralelo claramente reconhecível. Não.
Os fragmentos autobiográficos (ou não) que elx vai desfiando diante dos espectadores,
168 dizendo que é músicx e entremeando nesses fragmentos algumas canções ao violão que,
não, não se relacionam diretamente com o que elx está contando, podem de fato fazer al-
gumas alusões ao enredo do Hamlet de Shakespeare, mas só aos espectadores realmente
desesperados por encontrar esses paralelos e que se satisfaçam com pouco, com reflexões
do tipo: “Hamlet e Julia*n não se encaixam na sociedade. Para ambos o mundo encontra-se
fora dos eixos.” Quem procura sempre acha. Como sabem bem os alemães, finden, encontrar,
e erfinden, inventar, são verbos que andam de mãos dadas. Mas, não, diz Julia*n, este não é o
primeiro ato, este não é o segundo ato, não, não é o terceiro ato... e assim por diante.
Apesar das canções de autoria própria que canta ao violão e de um quarteto barroco cha-
mado O Jardim Musical que x acompanha na última parte do espetáculo, e que elx apresenta
com um desdém quase cômico – “é, eles já ganharam muitos prêmios, olha só, eles já ganha-
ram muitos prêmios, hahaha”. Olha só, elx diz nas entrelinhas: eles se curvaram ao olhar do
Outro, da lei, da norma –, a verdadeira música de seu trabalho está em sua dicção fielmente
monocórdica, sem qualquer variação dramática, ao longo de todo o “espetáculo”, e também
em seu corpo estudadamente desengonçado, bizarro, avesso a qualquer definição. Não. Não
estou nem me referindo aos adereços que borram a fronteira entre os gêneros, cabelos e so-
brancelhas ciosamente raspadas, como que à espera de uma peruca drag, unhas pintadas de
verde e um colar sob uma indumentária masculina rock’n’roll – ao começo do espetáculo, eu
achei que em algum momento elx ia mudar de roupa, só que não! –, mas ao modo como elx se
movimenta e também ao modo como elx simplesmente fica paradx em cena.
Julia*n atua de modo a tornar materialmente penosa a experiência de estar no mesmo
lugar que elx, ouvindo-x passivamente ao longo de 90 minutos. Elx confronta todas as nossas
melhores intenções, toda a nossa moral de uma “tolerância às diferenças”, toda a nossa sim-
patia progressista pelo outro. Não, elx nos diz. Não vai ser fácil assim não. Apesar de vocês,
caros espectadores, acharem que são realmente boas pessoas, até onde vocês aguentam um
x de verdade? Sem a formalidade babaca de escrever x na desinência de gênero das palavras
só para não parecerem machistas e heteronormativos, até onde vocês aguentam? Até onde
vocês aguentam?
Julian*n, sob esta ótica, aparece como um Íon empoderado o suficiente para confrontar
Sócrates – o Sócrates que mora em cada um de nós – diretamente por meio de palavras, de
ações e de música. É desconfortável pra caralho. Mas, no final das contas, o espetáculo leva
às últimas consequências o imperativo ético inescapável de ouvir o outro, independentemente
de qualquer possível empatia. E isso é muita coisa.
#13
O espetáculo de Christoph Marthaler, King Size, estrutura-se como uma Liederabend, lite-
ralmente uma noite de canções, uma noite musical, um sarau, ao longo do qual dois atores-
-cantores e um pianista apresentam um repertório de registros variados, que vai desde can-
ções mais eruditas de Mahler, Satie e Wagner, até músicas mais populares, como uma canção
dos Jackson 5.
O trio principal apenas canta e performa situações físicas inusitadas que entram em con-
tradição com o aparente realismo do cenário, um quarto de hotel onde a estrela é a cama King
Size do título. Além dos três, uma velha senhora entra em cena sem razão aparente, dá alguns
textos em prosa e interrompe a cantoria com ações bizarras, como na cena em que come um
macarrão que estava guardado em sua bolsa.
Nesse espetáculo, em que o textocentrismo é especialmente recusado, já que todas as
ações são estruturadas em torno dos afetos produzidos e evocados pelas músicas escolhidas
pela dramaturgia, temos outro exemplo de uma forma de rapsódia, menos radical do ponto de
vista da concepção cênica, que se aproxima do que mais vulgarmente reconheceríamos como
um espetáculo musical – afora as interrupções surrealistas da velha senhora.
A dificuldade de comentar esse espetáculo, que por alguma razão me evocou o mais re-
cente trabalho da companhia Hiato, de São Paulo, intitulado Amadores, é que, ao contrário 169
do que acontece na peça dirigida por Leonardo Moreira, as canções escolhidas por Marthaler
não dialogam diretamente com a minha herança afetivo-musical. Assim, é difícil falar de seus
possíveis efeitos sobre um público com o qual as canções escolhidas efetivamente dialoguem,
para o qual as distintas camadas de sentido e as muitas subversões dessa herança afetivo-
-musical produzidas por Marthaler façam de fato sentido.
Apesar de eu não ter ouvidos para King Size, por conta da minha formação cultural de bra-
sileiro, é evidente que, ao construir uma contraposição dialética entre a situação realista dos
personagens, um casal com dificuldade de pegar no sono, e a situação surrealista das músi-
cas e da velha senhora, que surgem como irrupções do inconsciente com sua lógica própria;
mesmo que difícil de decifrar – “Loucura embora, tem lá o seu método”, dizia Polônio sobre o
príncipe Hamlet –, Marthaler se alinha de alguma forma com o princípio fundamental de Suíte
n°2, de Joris Lacoste. Para ambos os realizadores, o mais determinante para a compreensão
da nossa realidade – seja do ponto de vista existencial, seja do ponto de vista social – não
está nas palavras que dizemos conscientemente e nos discursos que sustentamos voluntaria-
mente, mas naquilo que nos escapa e que apenas certas “memórias involuntárias”, não raro
produzidas pelas músicas com as quais esbarramos sem querer, são capazes de evocar.
#14
Já em Campo Minado, de Lola Arias, a julgar apenas pelo resultado, e não pelo processo,
o conceito proustiano de “memória involuntária” não se aplica.
A diretora argentina coloca em cena seis antigos combatentes da guerra das Malvinas:
dois ingleses e um nepalês que lutou junto com os britânicos, e três argentinos.
A experiência da guerra, como seria de se esperar, marcou-os profundamente, mas Lola
tem interesse tanto nas suas memórias conscientes de eventos específicos quanto, e sobre-
tudo, pelo modo como suas vidas puderam continuar, apesar do absurdo da guerra liderada
pelos hediondos Margaret Thatcher e Leopoldo Galtieri – as máscaras usadas em cena pelos
próprios performers, que reproduzem discursos de época de seus “líderes”, deixam isso claro.
Tendo em vista esses dois eixos, o do passado em guerra e o de um presente no qual os
seis performers precisam a cada dia reafirmar que há mais futuro que passado, a relação entre
palavra e música oscila constantemente ao longo do espetáculo.
Por um lado, o do passado, ouvimos tanto registros de canções entoadas coletivamente
para insuflar ânimo nas respectivas populações e suas tropas, o que desperta uma memória
social compartilhada e gera uma empatia imediata sobretudo naqueles que viveram o ano
de 1982 – muitas vezes, a forma mais concreta da empatia é justamente a antipatia pelo uso
político irresponsável daquelas canções –, quanto as compostas e tocadas em cena pelos
próprios combatentes, além, é claro, das que costumavam ouvir à época. Também neste caso,
e com mais força ainda do que no primeiro, a música aparece como um recurso privilegiado
para a criação de empatia. Afinal, se não conhecemos o futuro, sabemos que, a despeito das
nossas distintas posições naquele passado, ele também foi o nosso. De alguma maneira,
como os argentinos em cena, nós brasileiros também fomos obrigados, ao longo da nossa
ditadura civil-militar, a travar um combate que preferiríamos ter evitado.
Por outro lado, o do presente, o que se vê em cena são seis homens entre 50 e 60 anos
que claramente estão curtindo, e muito, a possibilidade de estarem ali. Se a guerra foi uma
surpresa, a oportunidade de estrearem como atores a essa altura de suas vidas não foi menos
surpreendente. Assim, sobretudo quando empunham seus instrumentos, em formações que
evocam uma banda de rock – a bateria aparece como instrumento privilegiado, ao qual se
juntam baixo e guitarra, todos muito bem tocados por aqueles amadores, salvo o baterista,
que tem uma relação mais profissional com a música –, para além da empatia o que se cria
é uma espécie de contaminação performática: com mais força do que em peças com atores
profissionais, nós, do público, experimentamos o deleite de saber que também poderíamos
170 estar ali, presentes, em cena. As músicas performadas, neste sentido, funcionam como uma
arma para o enraizamento no agora – deles, mas também nosso –, criando uma tensão das
mais profícuas com o tema do espetáculo: a memória de um evento passado.
Se a guerra é uma forma de censura, cesura ou interrupção da marcha cotidiana da exis-
tência, além de literalmente dividir as pessoas por conta dessa abstração que são as bandei-
ras nacionais, o manifesto rock’n’roll de Campo Minado pode à primeira vista soar ingênuo –
“Oh, vejam como a música e o teatro são capazes de reconciliar velhos inimigos! Vejam como,
conhecendo-se melhor uns aos outros, os homens entendem que todos são dotados de uma
mesma humanidade! Vejam como as diferenças intransponíveis são ficções criadas por políti-
cos movidos por interesses escusos!”. Mas, a uma leitura mais atenta, Campo Minado realiza
uma das grandes aspirações do teatro documental e, talvez, do teatro em geral: propicia a
intensificação da qualidade de presença (no palco, mas é esperado que também no mundo)
dos performers em cena (e na plateia) e colabora ativamente para a elaboração do passado,
tornando possível uma reinvenção da vida, que, apesar de tudo, sempre pode ser mais.
#15
“Os atores estão condenados ao suicídio. Ao suicídio por enforcamento.”
Essas palavras, extraídas do espetáculo Árvores Abatidas, de Krystian Lupa, cuja drama-
turgia foi construída a partir da transposição para o palco do romance homônimo de Thomas
Bernhard, podem ser lidas como a síntese não apenas do trabalho do diretor polonês, mas
também deste meu texto.
A pergunta, com a qual Bernhard e Lupa confrontam a todo o tempo os personagens em
cena – artistas que, tendo escolhido o caminho do sucesso, optaram por se vender, por se
deixar converter em mercadoria – diz respeito ao sentido e ao valor de uma arte (e de uma
vida) que abriu mão de ter qualquer função para além da subserviência ao olhar do Outro e do
vício no som dos aplausos (e das moedas caindo no fundo de seus bolsos).
Esses artistas, como árvores a abater (que seria a tradução mais literal do título do espe-
táculo), vivem à espera de algo, algo outro, algo desconhecido, talvez aquele mesmo algo que
um dia levou-os a se tornarem artistas. O problema é que já não acreditam mais que esse
algo possa existir, que qualquer acontecimento poderá um dia vir a redimi-los. Daí o tempo
estendido da peça: o tempo de uma espera sem esperança. Sem horizonte. Sem futuro. Um
fragmento de tempo (eine Weile) que se alonga indefinidamente (lang). Tédio (Langeweile).
Vazio. Desorientação. Sufocamento.
Esse tempo é, essencialmente, música. E corpo. Música de corpos em decomposição,
que vai se tornando mais e mais audível ao longo das quatro horas de duração do espetáculo.
O fato de Lupa se valer jocosamente de uma trilha sonora operística – a ópera como gênero
vendido? – não é capaz de encobrir esse extrato musical mais profundo de seu trabalho.
A metáfora central de Árvores Abatidas dá muito a pensar: em que momento, em que mis-
terioso átimo de segundo, aquela inebriante imagem sonora de mãos chocando-se umas com
as outras transmuta-se, numa sobreposição cinematográfica à la Bergman (vide Persona), na
imagem de machados abatendo árvores?
# 16
“Os atores estão condenados ao suicídio. Ao suicídio por enforcamento.”
Não. E aqui faço coro com Julia*n Meding.
Somos talvez árvores a abater, mas de forma alguma árvores abatidas.
O campo está minado, não há dúvida.
Mas não esteve sempre?
Pergunte a Íon.
À suíte nº 2 se seguirá sempre a 3, a 4, a 5...
A enciclopédia da palavra não tem fim.
A fantasia do suicídio, no final das contas, é ainda apaziguadora. 171
Prefiro a lição de Camus:
O absurdo não é conclusão, é ponto de partida.
Algum dia, por que não?, ainda caberemos todos juntos numa cama king size.
Referências:
PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
benkian, 1990.
________. Íon. Trad. Claudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
Teatro como
Performance da
Recordação na Era
172
das Catástrofes e
Próteses de Memória
“Apenas o que não cessa de causar
dor fica na memória” ou: quando os
robôs sentem dor e se revoltam
M á r c i o S e l i g m a n n - S i lva
A
memória está em toda parte e sempre, ao seu lado, está o esquecimento. Mas na nossa
cultura de gadgets e próteses de memória, nunca o tema da memória esteve presente
de forma tão ostensiva. A memória que até há pouco tempo era pensada de um modo
não muito diferente de como Aristóteles já a descrevera, ou seja, como uma faculdade intelectual 173
com dois momentos, a capacidade de arquivar dados (memória) e de recuperá-los (recordação),
agora se tornou uma questão tecnológica. Antes havia a técnica de memorizar, a mnemotécnica,
também conhecida por Aristóteles. Essa mnemotécnica antiga tinha um paradigma no dispositi-
vo extracorpório da tábua de cera, na qual podemos escrever (e apagar) o que quisermos. Essa
tabuinha tinha a vantagem de poder ser infinitamente limpa e reutilizada, mas possuía um limite
relativamente pequeno para armazenar informações por conta de uma questão espacial.
Justamente nossa era inventou “tabuinhas” potencialmente infinitas, que penetram o ci-
berespaço e podem receber toda inscrição mnemônica que quisermos. Nossos gadgets são
janelas de acesso para esse mar de informação, mas portam apenas uma parte ínfima dessa
memória cibernética do mundo. No entanto, aos poucos sonhamos com a introjeção des-
ses gadgets em nossos corpos, permitindo não só uma inscrição “mais acurada” da realida-
de que percebemos (percepção e armazenamento), como também ter acesso à memória do
mundo na internet (recuperação de informações). Esse tipo de fantasia-desejo se expressa,
muitas vezes de modo distópico, em ficções científicas ou em séries televisivas. Black Mir-
ror, por exemplo, série que procura refletir sobre esses gadgets que nos controlam cada vez
mais (como já notara Martin Buber, tornamo-nos extensões deles, e não o contrário; Löwy,
2012:116), tem vários de seus episódios girando em torno do tema da memória e de seu in-
cremento por meio de dispositivos incorporados a nós. Toda a sua história, Urso Branco, Volto
já, Crocodilo e Black Museum são episódios que evidentemente trabalham com o tema. USS
Callister, que tem por tema uma empresa de videogames de imersão, desdobra a questão da
memória na do download da pessoa (com “corpo e alma”) para dentro do ciberespaço (tema
também recorrente no cinema: em Chappie, de Neil Blomkamp, as “vidas” vão sendo salvas
ao serem transpostas para carcaças de robôs; já no anime Sword Art Online, de Reki Kawaha-
ra, as vidas foram sugadas por um game, etc.). No episódio Black Museum, uma filha de um
condenado à cadeira elétrica vai libertar o pai que havia sido transformado (“traduzido”) em
um holograma vivo e virara atração em um pequeno museu dos horrores, no qual os visitantes
podiam brincar de eletrocutá-lo, sempre novamente, até a morte.
Também a série Westworld, que cria um parque de diversão com humanos-robôs, é cal-
cada no tema da memória, já que esses robôs (dentro de um chavão clássico, prometeico,
exemplarmente encenado por Mary Shelley em seu Frankenstein) vão se revoltar na medida
em que aprendem a construir suas memórias, que são, antes de mais nada, memórias da dor.
Como escreveu Nietzsche: “Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo
indelével nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encar-
nação do esquecimento? [...] Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que
não cessa de causar dor fica na memória”. (1988: 295; 1998: 50)
Outro modelo, além do Frankenstein de Shelley, é a peça do tcheco Karel Capek (1890-
1938). Em seu RUR (que significa a abreviação do nome de uma firma: Reson’s Universal
Robots), de 1920, o autor introduziu o termo “robô” na cultura moderna. A palavra vem do
tcheco robota, utilizado para expressar o trabalho servil, duro, enfim, o labor. Capek, inspirado
na tradição judaica do Golem de Praga (um ser mítico que teria sido criado do barro e recebido
vida através de palavras mágicas cabalistas), escreve a sua ficção científica a partir da experi-
ência da Primeira Guerra Mundial, que revelou a força destrutiva da técnica. Nessa obra o robô
é uma metonímia da técnica e, portanto, uma espécie de antecessor da alavanca-arma da
abertura do filme de Stanley Kubrik, 2001, uma Odisseia no Espaço (1968). Em RUR os robôs
se revoltam como bons descendente de Adão, Prometeu e Mefisto. Na peça, Heléné Glory é
uma ativista da Liga da Humanidade (1997: 32; lembremos que em 1918 foi criada a Liga das
Nações) que luta para dar consciência aos robôs. Na história, ela é apresentada a Sylla, uma
robô, e não acredita que não se trata de uma pessoa. Essa passagem se torna depois tópica
nas ficções científicas e reaparece, por exemplo, em Blade Runner, de Ridley Scott (1982),
com relação à replicante Rachel. Mas o proprietário da empresa, para provar a Héléne que
Sylla é um robô, ordena que ela seja dissecada. Héléne se escandaliza diante da proposta de
174 “matar” Sylla, ao que Domin responde: “Não matamos máquinas” (1997: 27). Ora, não se mata
máquinas justamente porque não consideramos que elas tenham alma ou vida. Elas não são
pessoas: “Um robô é o que existe de mais oposto ao homem” (1997: 34). O Golem também, na
tradição judaica, não pode ser assassinado, porque ele não é uma pessoa, tem um estatuto de
coisa. Robôs e Golens são avatares daquilo que os romanos antigos denominaram de homo
sacer, seres simplesmente matáveis mas sem que sua destruição fosse considerada assas-
sinato. Héléne Glory, que quer libertar os robôs e tratá-los “como se eles fossem homens”
(1997: 35), atua como uma perfeita defensora dos direitos dos trabalhadores. Ela desenvolveu
compaixão por aquilo que deveria estar excluído do círculo compassivo. Mas o erro que de
certo modo desencadeia a autoconsciência dos robôs e os transforma em seres com vontade
e, portanto, passíveis de revolta, foi o de introduzir nos robôs a capacidade de sentir dor e
de sofrer, ideia do Dr. Gall, diretor do departamento de pesquisas fisiológicas da RUR. Seu
objetivo era absolutamente econômico: “Prevenir contra a degradação do material” (1997: 36).
O robô que sente dor não se desgasta ou quebra tão facilmente, pois irá evitá-la. A partir da
capacidade de sentir dor, os robôs desenvolvem outros sentimentos e acabam por se revoltar
contra os homens, numa perfeita revolução aniquiladora. É a dor que faz nascer a consciência
de si e a consciência de grupo: a comunidade é, antes de mais nada, uma comunidade de
sofredores. Da dor à autocompaixão e à revolta é só uma questão de tempo.1
Recentemente temos acompanhado na cena teatral muitas obras que têm a memória e
especificamente a memória da dor em seu centro. Assim, em Instituto da Memória - TIMe,
do norte-americano Lars Jan, dois atores apresentam-se como desdobramentos de uma voz
1 Aqui Capek retoma um credo central da Modernidade, a saber, a ideia de que a compaixão é a marca distintiva da
humanidade. Essa tese foi defendida de modo particularmente radical por Rousseau e, como Hannah Arendt mostrou
(1988), essa noção de compaixão depois esteve no centro da construção da política como agenciamento das necessi-
dades.
autoral para exorcizar a figura paterna do autor. A cena de abertura, não por acaso, é uma ci-
tação de outra abertura, a do Hamlet shakespeariano. Nessa cena surge a figura do pai sob a
forma de um fantasma. Esse pai espectral assombra seu filho e tem uma demanda específica
para ele: reconheça a minha dor, não deixe a minha morte passar em branco, vingue-me. Esse
pai é o pai de Jan e sua origem é não a Dinamarca, mas sim a Polônia. Seu aspecto espectral
é acentuado ao longo de toda a peça. Nem um nome certo esse pai tem. Um deles, provável,
é Henryk Stanislaw Ryniewicz. Jan tem como nome do meio Henrick: a marca paterna lhe foi
passada assim, não com o nome de família (que o pai se recusou a passar ao filho) mas com
uma corruptela do primeiro nome. Estranhamente ele recebe uma alcunha triplamente “escan-
dinava”, Lars Henrick Jan, ele filho de um polonês e de uma afegã! Trata-se não de um ato de
nomeação como ato de estabelecer uma continuidade, mas, antes, de um gesto de produzir
um corte, uma ruptura, quase uma renúncia. Esse misterioso pai teria atuado como espião nos
países da “cortina de ferro”, provavelmente como espião norte-americano e como contra-es-
pião…Na peça escutamos transcrições de conversas telefônicas retiradas de escutas feitas
pelo serviço secreto polonês nos anos 1950, quando o pai de Jan ia à Polônia visitar a família
e, decerto, espionar. Esse pai, que na juventude fora um resistente na luta contra o nazismo,
acabou sendo preso e, no caminho de um campo de concentração, foi salvo pelas milícias
da resistência e fugiu para a Inglaterra. Ele perdeu seu pai, o avô de Jan, assassinado pelos
nazistas, que acabou por ser enterrado em uma cova coletiva. A história desse pai-fantasma é
a história de um sobrevivente que aprendeu que viver é saber apagar-se, saber cair no esque-
cimento como estratégia de sobrevivência. Todo o trabalho de Jan vai no sentido oposto: de
lançar um pouco de luz sobre esse pai-esquecimento. Jan, que também é artista plástico, fez
uma moldura de luz que participa da apresentação, como que performatizando esse trabalho
de iluminação do passado. A sua herança foi o esquecimento do pai: um pai que apenas duas 175
ou três vezes conversou, de modo truncado, sobre seu passado na Polônia. Esse pai preferiu
portar trancadas em si as suas histórias: não as transformou em testemunhos. Coube a seu
filho Jan realizar essa tarefa a seu modo. Ao fazer esse ato performático-testemunhal, ele
também tenta suturar o abismo que seu pai construíra entre eles. Jan não pôde “vingar” o pai,
como o príncipe da Dinamarca tentou, desastrosamente, fazê-lo, mas pode pôr em movimen-
to esse bloco estancado de memória recalcada. Ele pode iniciar seu processamento. Perfurar
a memória encriptada do trauma.
Henryk Stanislaw acabou sendo enterrado como um indigente e, com efeito, seu filho não
sabe o local em que seu pai jaz. O pai repetiu a sina do avô de Jan, que fora vítima dos nazistas.
A história se repete: os fantasmas nos dominam, somos fadados a ser comandados pelas vozes
que vêm do passado. Daí a opção de Henryk Stanislaw pelo silêncio. Ele queria poupar seu
filho do passado e de sua força de gravidade. Mas aquilo que não é simbolizado, nos ensina a
psicanálise, é “agido”, passa por gestos, mensagens corpóreas. E a performance de Jan é uma
reverberação que procura virar no sentido positivo a carga negativa espectral de todo não dito,
de toda morte não simbolizada que ele herdou. Jan vai pôr em cena a morte para apaziguá-la.
Nossa era pós-catástrofes é uma era fadada a essa tarefa de dar nome e voz aos que foram
tragados pela biopolítica que têm em seu centro o dispositivo genocida-concentracionário.
Trata-se, com Foucault, de uma bio-tanato-política: política que dá a morte e distribui a vida.
O lado fraco desse sistema são as suas peças: os seres humanos. Daí a metáfora do robô
ter se tornado importante e constante no século XX: identificamo-nos com esses seres que
vivem para o labor, possuem uma interioridade árida e não têm uma relação profunda com seu
meio e seus antepassados. A dor vem agora pedir para ser inscrita, para ser ouvida, para ser,
eventualmente, justiçada. O século XX viu a passagem do modelo abstrato das grandes socie-
dades complexas do capitalismo industrial – que prometiam a redenção com o trabalho, eram
organizadas em nações, orgulhosas de suas Histórias, e apontavam para um futuro grandioso
como concretização do paraíso na terra –, para uma sociedade pós-industrial e pós-trabalho,
na qual as individualidades e comunidades têm suas fronteiras traçadas a partir de dados da
memória. Ocorreu uma verdadeira virada copernicana na nossa auto-imagem: o indivíduo (é
verdade, esvaziado, cada vez mais “cibernético”) vai para o centro e “as grandes questões”
da “grande política” vão para a periferia. A crise de autorrepresentação (crise de identidade)
leva à necessidade constante de autoperformatização do “eu”. O teatro, como ocorrera na era
pós-Revolução Francesa, serve para repensar-nos diante dos desafios da “crise de represen-
tação”. Esse teatro será, antes de mais nada, um “teatro da memória”. Ele permitirá refletirmos
sobre esta nossa nova paisagem humana (ou pós-humana), marcada pelo derretimento das
grandes narrativas, das ideologias, das utopias, pela herança das dores e violências. Esse
teatro faz uma “curadoria da dor” que tem o efeito de nos fortalecer e empoderar. A passagem
pela figura da “vítima” é temporária. O importante é o passo seguinte, as derivas em direção
às heterotopias: utopias menos arrogantes, mais quentes e menos abstratas.
Na MITsp 2018, três peças se destacam por terem questões mnemônicas em seu centro:
sal., de Selina Thompson (Inglaterra), Campo Minado, de Lola Arias (Argentina/Inglaterra) e País
Clandestino, de Jorge Eiro e Mäelle Poésy (Argentina/França/Brasil/Espanha/Uruguai). As três
encenações são marcadas também pela mise en scène de situações dolorosas e mesmo trau-
máticas. Como vimos com Nietzsche: há uma relação intrínseca entre dor e memória. E mais,
essa memória da dor serve tanto para se enlutar perdas como para lutar contra a situação de
tristeza, ou de humilhação, ou de qualquer tipo de afronta produzida pela dor/ pelo trauma.
Em sal., Selina Thompson apresenta a história da diáspora de seus ancestrais. Novamente
estamos diante de milhares e milhões de mortes: de fantasmas que nos acenam clamando por
176 justiça. Essa justiça evidentemente é impossível de ser feita, pois estamos no tempo do “tarde
demais”, mas se pode mitigar a dor herdada com o trabalho de inscrição dessa história de
violência, que sequer teve o direito de ser narrada. Selina Thompson decide fazer uma viagem
para visitar sua história: a de descendente de jamaicanos, sendo que estes, por sua vez, pos-
suíam ancestrais que foram levados da África para a Jamaica como escravos. Em cena, vemos
a própria autora que apresenta a história de sua viagem como uma história da busca de sua
identidade, de sua “casa”: que, no fim, é a própria viagem. Essa viagem repete a viagem de
muitos outros que peregrinaram no século XX e no nosso século para visitar locais carregados
de terríveis histórias, como campos de concentração, prisões onde ocorreram torturas, locais
de genocídios, como na Armênia, em Ruanda, na Polônia, na Alemanha, nos países da América
Latina, pontuados por ditaduras e por regimes autoritários que, mesmo em épocas de “normali-
dade”, continuam o genocídio dos marginalizados e reduzidos à condição de homo sacer.
Essas viagens ao reino dos mortos, por sua vez, não deixam de remeter à viagem mítica de
Ulisses, Odisseu (o que é “ninguém”, como ele se apresentou ao gigante Polifemo da caverna
para poder sobreviver). Ulisses recorre a um diálogo com os mortos na Odisséia para poder
traçar seu retorno ao lar, em grego nóstos. O retorno/construção ao/do lar de Selina Thomp-
son, seu nóstos, passa por uma viagem à África e à Jamaica. E ela nos narra essa viagem ao
mesmo tempo em que a vemos quebrar pedras de sal enormes, a desconstruir e a construir
(com uma enorme fenda, é verdade) um muro. Sua viagem exige também o método nietzs-
chiano da “filosofia pelo martelo”. É quebrando os nós que prendem nosso presente de modo
mecânico (e fantasmático) ao passado, que nos leva a perpetuar racismos e outros precon-
ceitos, que ela vai em sua viagem de autodescoberta. Ela quebra, entre outras, as pedras dos
“Estados” (instituições de controle e de violência) e do “imperialismo e racismo e capitalismo”
(baseados também na violência e que decidem “quem conta e quem vai morrer”). Essa viagem
é um enfrentamento com seus fantasmas internos e com a violência que ainda está aí, como
na tripulação do navio de bandeira italiana que não pestaneja ao aviltar tanto os trabalhadores
mais humildes filipinos quanto as passageiras negras.
O triângulo que ela traça, indo de Birminghan a Gana, da África à Jamaica e de volta a sua
“casa” descreve também uma longuíssima viagem no tempo. Em Elmina (Gana), ela visita a
fortificação construída originariamente pelos portugueses, de onde partiram africanos reduzi-
dos à escravidão tanto para o Brasil como para as Antilhas e para os Estados Unidos. Ela viu
aí a “Porta do não-retorno”, pela qual passaram centenas de milhares de corpos que nunca
mais puderam retornar ao local de suas origens e aos seus familiares. Mas Selina Thompson
é justamente aquela pessoa que volta e enfrenta as dores ancoradas naquele lugar de memó-
ria. Ironicamente, no entanto, ela nota que “ser um descendente de escravos visitando Gana
como um local de ancestralidade é como tentar ir a algum lugar que não existe e procurar por
alguém de quem ninguém ouviu falar.” Ela afirma também que vai a esse lugar para enlutar, “ou
fazer arte”. O passado está “perdido”, enterrado, no presente. O trabalho de Selina Thomp-
son é de desenterrá-lo, como em um trabalho psicanalítico. A arte é solidária desse mesmo
movimento de escavar: que pode começar com a quebra de pedras. Do sal que conserva e
também pode dar sabor a nossas memórias.
Vale a pena lembrar aqui de um artista brasileiro importante da atualidade, Paulo Nazareth,
que também fez essa viagem a um outro porto de embarque de escravos da África para o Bra-
sil, Ouidah, no Benim, na mesma costa ocidental africana. Esse pequeno vilarejo era utilizado
como mercado de escravos e nele, antes da viagem, ocorria um pequeno e simbólico ritual.
Os escravizados que iriam viajar tinham que dar voltas ao redor de uma árvore sagrada, cha-
mada de “árvore do esquecimento”. As mulheres davam sete voltas, os homens davam nove
(a diferença do número de voltas decorreria da diferença do número de costelas). Esse ritual
serviria para garantir o esquecimento daqueles que partiam: de seus familiares e das suas ori-
gens. Também o fato de terem sido escravizados pelo seu povo deveria ser esquecido. Paulo
Nazareth volta a esse local de uma origem negativa, a esse local de supressão da memória,
para como que “desfazer” esse ritual do esquecimento. Como Lars Jan e Selina Thompson: 177
também ele quer se lembrar, construir memória onde existe um muro do esquecimento. Ao
se lembrar do esquecido e do ritual de apagamento, ele quer reconquistar sua memória an-
cestral. Seu procedimento consiste em performatizar de trás para frente, ou seja, andando de
costas, 777 voltas na árvore do esquecimento. Sua ação fica registrada graças à ajuda de uma
câmara. A obra Árvore do Esquecimento, de 2013, tem muito em comum com a peça e com
a performance da viagem de Selina Thompson. Também ela viaja para desesquecer. Também
a sua encenação está marcada por gestos rituais de ruptura do bloco do esquecimento e de
construção de uma moradia com as ruínas do passado.
Na Jamaica ela encontra um local marcado pela fecundidade, pela vida e sua proliferação,
em oposição ao deserto das relações humanas que ela encontrou no navio e que represen-
ta, em forma de microcosmo, o “imperialismo-racismo-capitalismo”. Ela fala em fertilidade e
fecundidade, em seu corpo tomando vida, enchendo-se de desejo de viver, retomando a sua
energia. Seu próprio testemunho é um resultado dessa transformação. Toda viagem é viagem
de metamorfose: caminha-se por dentro da pessoa o que se trilha por fora no mundo: nos dois
casos, dentro de nós e no espaço externo, ocorre um deslocamento. Esse renascer via esse
encontro fecundante com a origem jamaicana, esse local familiar e desconhecido, que com
sua luz intensa enche de vida, é o vértice de um dos triângulos desse nóstos. Daqui jorra um rio
de seiva que realimenta nossa viajante. Mesmo que também aí ela encontre a ação perniciosa
do olhar imperialista-racista, o que predomina é o elemento de descarga de vida. Nesse mo-
mento talvez ela comece a entender, como formula já de volta a Birmingham, “quão sagrado
é ser descendente daqueles que se supunha não sobreviveriam”. Essa fórmula de certo modo
é paradigmática para os teatros da memória em pauta nesta edição da MITsp. Nela se reverte
a lógica do homo sacer, ou seja: se para se afirmar o poder-violência estatal precisa sempre
estabelecer aqueles que estão excluídos da cobertura da lei e da proteção da vida, ou seja,
necessita traçar a linha que estabelece os que são pura e simplesmente matáveis, sem que
isso estabeleça uma culpa (como vimos: não se mata “aparelhos”), então Selina Thompson ao
alcançar essa fórmula vai contra o paradigma do homo sacer. Existe aqui uma reversão: o so-
brevivente, a testemunha, essas são as figuras que devem ser escutadas. A elas cabe a nossa
atenção, no sentido talvez mais religioso desse ato, na forma de um culto silencioso talvez. E
esse tom quase elegíaco, de homenagem aos mortos, impregna toda a ação pós-dramática de
Selina Thompson, dando ao seu trabalho também uma qualidade quase religiosa.
Campo Minado é uma peça que, como sal., tem seus personagens se autoencenando. Esta-
mos em plena estética da mise en scène do eu, ou do que sobrou do “eu” na era das catástrofes.
Esse teatro da primeira pessoa vem suprir o enredo quando as grandes narrativas e os disposi-
tivos ficcionais deixaram de responder à nossa demanda de realismo. Cada época inventa seu
realismo: a nossa criou esse realismo do eu que testemunha. A violência do século XX, como
indicado, derreteu a máquina de representação política e, ao mesmo tempo, os modelos de
representação artísticos. Lola Arias, diretora e autora da obra, faz também aqui uma curadoria:
ela convida seis sobreviventes da guerra das Malvinas (2/4/1982 – 14/6/1982, Falklands War,
segundo os adeptos da Inglaterra) para representar a si mesmos. São três argentinos, dois in-
gleses e um gurkha, ou seja, um pertencente a esse povo do Nepal que serviu à Grã Bretanha
por muitas guerras desde o século XIX, inclusive a das Malvinas. Essa guerra foi mais brutal e
absurda do que outras guerras por ter nascido de um gesto de desespero da junta militar argen-
tina, cuja ditadura se iniciara em 1976 e já perpetrara cerca de 30 mil assassinatos e desapareci-
mentos de opositores. A junta tentou, via mobilização do patriotismo, recuperar seu fôlego. Não
deu certo. A guerra foi um fracasso: 649 vidas argentinas sacrificadas por nada. Para piorar, o
Governo Thatcher, que estava em crise antes do início da guerra, ganhou força graças ao fogo
178 nacionalista e permitiu que a primeira ministra fosse reeleita e implantasse suas políticas radicais
neoliberais, cujas consequências drásticas sofremos até hoje.
Na Argentina, após a queda da junta militar e do fim da ditadura, nunca se criou um efetivo
espaço cultural e simbólico para se comemorar os “heróis” da guerra duplamente fracassada.
O luto dos mortos e a elaboração da dor dos sobreviventes ficaram em suspenso, foram tra-
tados como problemas de ordem privada, não pública. O suicídio entre os ex-combatentes foi
uma das saídas encontradas. Outras possibilidades são, no entanto, abertas com essa original
encenação teatral de Lola Arias.
Gabriel Sagastume, um dos atores/personagens, lembra que ele se tornou uma espécie
de estraga-prazer nas festas e encontros sociais: ele não consegue sair de sua obsessão, ou
seja, a guerra das Malvinas. Ele lembra ter dado apenas um disparo em toda guerra e tam-
bém ter sido obrigado a caminhar por um campo minado, que o próprio exército argentino
havia plantado, sem ter, no entanto, alertado os soldados da existência das minas. Gabriel
viu amigos seus sendo explodidos por esses “artefatos amigos”. Um detalhe importante:
diferentemente de Marcelo Vallejo (outro argentino, hoje triatleta), Gabriel e Ruben Otero
(argentino, músico) foram para guerra por obrigação e não por terem se alistado. Enquanto
que na Inglaterra os soldados foram por desejo de servir à pátria. Isso muda muito a moti-
vação dos combatentes e seu estado psicológico durante e após o conflito. Campo Minado,
portanto, é tanto esse tipo de disparate que ocorreu nessa guerra, para a qual os argentinos
estavam absolutamente despreparados, como também metáfora para o campo da memória
que ficou minado, cheio de “bombas” a serem desarmadas. Trata-se de um território aban-
donado e perigoso. As “minas” devem ser desativadas e a performance teatral o faz, aos
poucos e com muita carga emocional.
Gabriel recorda as incansáveis reuniões dos veteranos, um dos únicos espaços consagra-
dos na sociedade para lembrar e enfrentar as memórias da guerra. Um ritual que se tornou
frequente – também dentro das estratégias para conjurar aquele passado que não passa para
os sobreviventes – é o da viagem aos locais da guerra para rever os campos de batalha.
Esse ritual é importante, pois permite uma tentativa de elaboração daquela realidade que os
massacrou e foi recebida de modo brutal sobre o corpo daqueles combatentes sem preparo
físico ou psicológico e sem desejo de lutar. Para a teoria psicanalítica do trauma, essas via-
gens ao passado (seja nas conversas, seja nas idas aos campos de batalha) têm o sentido de
tentar desdobrar o gesto de “aparar”, de se proteger, mesmo que “tarde demais”, dos golpes
sofridos. Esse ato mecânico, descontrolado, é simbolizado via fala e via viagem, como na
já mencionada peça sal., de Selina Thompson. Na peça de Lola Arias, David Jackson, hoje
um psicólogo, diz que as Malvinas são um museu vivo da guerra. É nesse espaço “museal”
aberto e informal que as “minas” são uma a uma tentativamente desativadas pelos visitantes.
Visando a simbolizar aquilo tudo, eles buscam e colecionam também restos, ruínas da guerra.
Não por acaso em inglês falamos to recollect para o ato de recordação. Esses ex-soldados
“recolecionam” escombros para lembrar.
A ideia de colocar frente a frente os “dois lados” do conflito permite uma descarga mú-
tua de seus afetos, frustrações e ódios. Mas ocorre evidentemente ao longo da apresen-
tação um caminhar no sentido da confraternização. Se se recorda, por exemplo, a prática
de tortura na guerra, algo que ficou também “enterrado”, ocultado, como afirma Gabriel,
fica claro que mesmo os soldados ingleses também sofreram de estresse pós-traumático
(como David Jackson, psicólogo hoje, diz ter sofrido). Eles tiveram também casos de de-
pressão e suicídio. Lou Armour (que hoje é professor de crianças com necessidades espe-
ciais) fala de suas insônias, conta que sofre com flashbacks de imagens da guerra, narra
seu sentimento de culpa com relação aos mortos argentinos e lembra como a terapia foi
essencial para a sua sanidade mental. Afinal, os soldados são nesses conflitos em grande
parte vítimas dos políticos. Os seis atores de si mesmos cantam e tocam música juntos.
Eles reencenam pedaços de realidade que habitam suas carnes, na tentativa de fazer des-
ses fragmentos de real material de narrativa. 179
Essa performatização das memórias traumáticas permite um afastamento da dor. Rubens,
por exemplo, em um determinado momento da peça, coloca-se no local de uma fotografia
projetada, esta da época do final da guerra, quando foi recebido como um herói por sua co-
munidade. Já Marcelo teve uma experiência muito mais dura no final do combate: foi levado
para um local onde os ex-combatentes foram escondidos por um tempo e depois, antes de
serem libertos, foram obrigados a assinar documentos em que se comprometiam a silenciar
sobre os fatos da guerra. Esse pacto de silêncio foi imposto a muitos agentes da estrutura de
terror dos estados ditatoriais latino-americanos, como recentemente mostrou o forte filme da
jovem diretora chilena Lissette Orozco, O pacto de Adriana (2017). Marcelo sentiu-se comple-
tamente abandonado pela sociedade, entregou-se ao álcool e às drogas. Ele conta também
que manteve uma foto do local onde foi combatente nas Malvinas por medo de se esquecer
daquele período. Paradoxalmente esse passado pesado torna-se algo precioso e central na
identidade do sobrevivente. Aquele momento que fica enquistado na memória é algo que
pode ser caracterizado com a ambiguidade do termo droga: é veneno e remédio, algo que o
faz padecer e algo pelo qual se anseia. Esse passado intenso passa a ser uma base em que
se estrutura a identidade do ex-combatente. Ele deve ser, portanto, cultivado, mas também
deve ser arrancado da zona do trauma, ou seja, deixar de ser uma memória-esquecimento
(recalcada, como um espinho na carne) para se tornar uma memória-vida (capaz de se integrar
no antes e depois da guerra).
Em uma das cenas mais criativas da peça, cada “time” narra a sua versão da história das
Malvinas/Falklands. É muito interessante ver esse encontro de perspectivas díspares, mas que
a arte permite aproximar para desconstruir. A História está longe de ser uma ciência exata. Ela
é construção política. A “verdade histórica” deriva de uma série de condicionamentos da me-
mória também. É a memória que dá a seiva para a história, que a torna quente e com vida. Mas
não deixa de ser surpreendente que essa guerra surja como algo heroico mas esquecido, na
Inglaterra, e como algo vergonhoso, mas lembrado de modo obsessivo, na Argentina. Trata-se
de um tipo de memória que não permite a elaboração, pois está sequestrada pelos pactos
de silêncio, está banida para dentro dos sobreviventes. Lola Arias com sua peça consegue
tensionar esses pactos, fissurar a crosta de mentiras sob a qual essa verdade está enterrada,
dar um respiro, oxigenar a memória.
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foto pixabay
olhares
c r
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O eixo reflexivo da MITsp convida espectadores, artistas e pesquisadores
Reflexões estético-políticas
Seminário
O estatuto da arte no Brasil contemporâneo:
liberdade, alteridade, mediação
A pesquisadora espanhola Victoria Perez Royo expõe sua pesquisa sobre o lugar do corpo
no teatro contemporâneo, suas implicações afetivas e sua relação com a política no contex-
to da arte, considerando espetáculos que integram a programação da MITsp 2018.
Em casos recentes, a reação de artistas às críticas feitas pelos movimentos sociais muitas
vezes se traduziu em uma defesa irrefletida de território, com alegações de uma autonomia
absoluta da arte. Essa arte que pode tudo não estaria restrita a contextos de classe, raça e
gênero? Confundir crítica e censura não seria mais um modo de silenciar as vozes que até
então tinham lugar periférico ou nenhum nos debates sobre a arte em um circuito elitista?
Como praticar uma crítica capaz de escuta e de conjugar liberdade com alteridade? Com
Aline Vila Real, Georgette Fadel, Juliano Gomes, Kil Abreu e Renata Carvalho. Mediação:
Michele Rolim
Dia 9/3 (sexta-feira), das 13h30 às 18h (com intervalo). Onde: Itaú Cultural. A mesa será
dividida em duas partes
MESA-REDONDA. Amor e ódio ao corpo no Brasil
Espaço de ensaios
187
artista em foco
Especial
Dia 8/3 (quinta-feira), das 10h às 12h. Onde: Goethe-Institut São Paulo
TRIBUNAL CONGO
A exibição do filme será seguida por uma conversa presencial com a dramaturga
e pesquisadora Eva-Maria Bertschy.
Dia 8/3 (quinta-feira), das 20h às 22h. Onde: Espaço Itaú de Cinema Anexo
Diálogos Transversais
Comentários críticos realizados logo após uma das apresentações de cada espe-
táculo, no próprio teatro e em diálogo com o público. Convidamos artistas e pen-
sadores provenientes de outros campos do conhecimento para lançarem olhares
transversais, cruzarem as fronteiras e ampliarem as leituras das obras.
King Size – Matteo Bonfitto (Unicamp), dia Mesa redonda com os debatedores convidados pela editora
6/3, às 11h, no Itaú Cultural N-1: José Fernando Azevedo, Rosane Borges e Tatiana Roque.
Mediação: Peter Pál Pelbart
Hamlet – Denilson Lopes (UFRJ), dia 7/3,
às 10h, no Itaú Cultural Dia 7/3 (quarta-feira), das 16h30 às 18h30. Onde: Itaú Cultural
Palmira – Milton de Andrade (Udesc), dia
7/3, às 11h, no Itaú Cultural Laboratório de Jornalismo Cultural
País Clandestino – Sara Rojo (UFMG),
Em parceria com a MITsp, alunos de comunicação da PUC-SP
dia 10/3, às 11h, no Itaú Cultural
farão a cobertura jornalística dos Olhares Críticos sob orientação
sal. – Denise Espírito Santo (UERJ), dia do professor Fabio Cypriano. Os textos estarão disponíveis no site
11/3, às 11h, no Itaú Cultural www.mitsp.org
foto pixabay
ações
p e
d a
g ó
g i
c a s
Ao longo das quatro últimas edições da MITsp, as atividades de intercâmbio
criativo entre artistas convidados e participantes brasileiros consolidaram-se
como um eixo fundamental do festival. A troca de experiências, o diálogo entre
diferentes visões de mundo e as possibilidades de convívio, ainda que efêmeras,
permitiram que saberes diversos circulassem e trouxessem à tona novos modos
de ver, de dizer e de fazer. Em tempos de embrutecimento e deliberado egoísmo,
iniciativas que possibilitem o estar junto e a elaboração conjunta e criativa de
discursos e práticas podem ser extremamente potentes. E ainda: desta vez, as
ações estão mais espalhadas por várias regiões de São Paulo, propiciando uma
experiência artística e política de/da cidade para além do centro.
ARTISTA EM FOCO
Dando continuidade às bem-sucedidas experiências dos dois anos anteriores (em 2016,
com os artistas negros do recém-formado coletivo Em Legítima Defesa e, em 2017, com
os estudantes secundaristas), a edição de 2018 organiza um laboratório teatral com seis
encontros, destinado exclusivamente a imigrantes e refugiados. Conduzido pelo artista bra-
sileiro Miguel Rocha, diretor da Companhia de Teatro Heliópolis (São Paulo), tem o objetivo
de visibilizar a expressão criativa e coletiva de estrangeiros residentes na capital paulista.
Em sintonia com sua pesquisa de mais de dez anos, o artista suíço Boris Nikitin pretende
trabalhar, nessa atividade de dois dias, com conceitos de representação, documento e au-
tenticidade. Para Nikitin, realidade e identidade são ideias potencialmente ficcionais, o que
coloca em xeque a proposta do documental – a vida como ela é, a coisa real –, definida por
ele como uma forma bem acabada de ilusão. No primeiro dia da atividade, Nikitin vai apre-
sentar suas reflexões sobre o falso, o duplo, a fraude e falará como elaborou tais temas
cenicamente, em espetáculos como F for Fake, How to Win Friends & Influence People,
Imitation of Life, Don’t Be Yourself e Martin Luther Propagandapiece. O artista deixará uma
tarefa aos participantes: de que modo lidar com a própria biografia publicamente, o que
revelar, o que ressaltar, o que não mostrar? No segundo dia, será a vez de os participantes
responderem à provocação de Nikitin e apresentarem um “autorretrato performativo em
193
rebeldia”, ou seja, uma microperformance biográfica, de até dois minutos.
Dias 7/3, quarta, das 12h às 15h, e 8/3, quinta, das 11h às 15h.
Onde: Centro Cultural São Paulo
Em sintonia com a pesquisa que vêm desenvolvendo sobre as políticas de destruição tão
presentes na atualidade, os artistas Bertrand Lesca e Nasi Voutsas pretendem trabalhar,
nesse workshop prático de dois dias, alguns conceitos presentes na obra Palmira – dis-
cordância, desentendimento, frustração, ódio e reconciliação –, usando a cena como es-
paço de expressão artística e de negociação política. Como reagir diante da sedução da
violência? Como recuperar a sociabilidade depois de um conflito avassalador em termos
éticos e morais? Também pretendem trabalhar tópicos desafiadores que compõem o novo
espetáculo em criação: como lidar com a polarização do debate político e a ascensão do
populismo no mundo atual? Os selecionados serão convidados a se expressar fisicamente
sobre as injustiças que mais lhes despertam paixão. A atividade acontecerá na Ocupação
Independente Aqualtune, edifício do antigo Colégio Butantã, abandonado desde 2008 e
habitado há cerca de dois anos por quase três dezenas de famílias. A ordem de reintegra-
ção de posse foi concedida no dia 25 de setembro de 2017 e pode ser executada a qual-
quer momento. No domingo anterior ao workshop, o Eixo Ações Pedagógicas vai realizar
uma roda de conversa com a presença das lideranças da ocupação, atores do Coletivo
de Galochas, que já desenvolve um trabalho por lá, e os selecionados da atividade, cuja
presença é obrigatória.
Dias 8 e 9/3, quinta e sexta, das 10h às 15h. Onde: Ocupação Independente Aqualtune
Memórias & História
Dias 1º e 2/3, quinta e sexta, das 10h às 13h. Onde: Centro Cultural Fiesp
De onde viemos? Qual é a história e a trajetória de nossa família? Mais que genéticas
ou materiais, nossas heranças são, sobretudo, simbólicas. Herdamos, por identificação
ou discrepância, modos de ser, de pensar e de agir. Qual é nossa origem? Como o
país em que vivemos influencia nossa identidade pessoal? Florencia Lindner (Uruguai),
Jorge Eiro (Argentina), Lucía Miranda (Espanha), Maëlle Poésy (França) e Pedro Granato
(Brasil) vão conduzir um workshop que tem como foco depoimentos e recordações
pessoais que se entrelaçam com a própria história do Brasil e revelam perspectivas
sociais e políticas de uma nação que ainda se descobre como tal. A atividade é voltada
194
prioritariamente aos aprendizes e educadores das Fábricas de Cultura de São Paulo,
mas também haverá vagas para os interessados de outras regiões da cidade.
Dia 3/3, sábado, das 10h às 17h, e dia 4/3, domingo, das 12h às 17h. Onde: Fábrica
de Cultura da Brasilândia
Especial
1. Workshop com Krystian Lupa (Polônia)
Dia 5/3, das 10h às 14h, no Sesc Consolação; dia 6/3, das 10h às 14h, e dias 7,
8 e 9/3, das 10h às 17h, no Sesc Pinheiros
Intergêneros
No cotidiano e também no teatro, a normatividade acaba ditando modos de ser e de agir socialmente,
silenciando singularidades e tornando limitadas as possibilidades expressivas. A dramaturga e encena-
dora sueca Liv Elf Karlén, autora do livro Mais que isso – Pensamento sobre Atuação Gênero-curiosa,
criou um método sobre como percebemos e performamos gênero, sexualidade e raça tanto na vida
diária quanto nos palcos. Em seu workshop prático, ela partilhará técnicas que desconstroem não só os
usuais estereótipos reproduzidos no teatro como também a atuação normativa. Com isso, pretende es-
timular a busca por novas e amplas expressões artísticas. Durante seis dias, os participantes aprende-
rão novas formas de trabalhar com o movimento, com a construção física e simbólica de personagens
e com a relação entre corpo e espaço. O método de Liv usa a masculinidade e a feminilidade como
ferramentas criativas para a imaginação e a interpretação dos artistas e não como camisas de força.
De 26/2 a 3/3, de segunda a sábado, das 10h às 15h. Onde: Oficina Cultural Oswald de Andrade
A provocação inicial aos participantes é que a oficina dialogue com a MITsp 2018 por meio de um
registro não verbal, ou seja, pela elaboração de cenas e cenários-instalação ao longo do processo,
com base tanto na orientação de Aby Cohen e Renato Bolelli Rebouças, cenógrafos e curadores
da Mostra Nacional Brasileira na Quadrienal de Praga 2019, quanto nas intersecções entre os
grupos de participantes de diferentes formações. A atividade visa a oferecer uma abordagem me-
talinguística sobre a amplitude da linguagem teatral, guiando-se simbólica e materialmente pelos 195
rastros produzidos pelo festival (ou seja, espetáculos, outras atividades pedagógicas e mesas de
debate) e respondendo a pergunta: como o teatro capta a vida e a realidade? Os seis encontros
estão distribuídos ao longo de duas semanas, de modo a abarcar o período anterior à mostra e os
dias do festival, com previsão para a apresentação das cenas ao final.
Inspirada na obra e no conceito de tradução do poeta Leopoldo María Panedo, a pesquisadora espa-
nhola Victoria Pérez Royo propõe um trabalho colaborativo baseado no dissenso. Sua intenção não é
propiciar uma comunidade em que todos miremos e rememos em apenas uma direção, mas sim um
espaço no qual os trabalhos individuais e singulares ganhem sentido por meio de diálogos que apon-
tem (e aportem) contrastes e diferenças. Trata-se, portanto, de uma proposta de estar juntos na qual
abandonamos interesses pessoais para alcançar um objetivo comum. Os participantes são convidados
a partilhar projetos e materiais artísticos ainda em construção e deixar que esses mesmo materiais se-
jam contaminados pelos colegas a partir de um diálogo imanente e direto entre as diferentes poéticas
e modos de fazer dos participantes do laboratório. Os mecanismos de trabalho estão baseados em
noções como tradução, tergiversação, reutilização, apropriação etc. O laboratório está aberto a todos
que se encontrem trabalhando em um texto, uma tese, uma performance, uma composição etc. e
queiram compartilhar publicamente suas produções. Duas leituras são obrigatórias aos participantes:
El lenguaje de las cosas, de Hito Steyerl, e Theory of the Quasi-Object, de Michel Serres.
*A vinda da pesquisadora ao Brasil conta com o apoio da Embaixada da Espanha e da SP Escola de Teatro
De 3 a 5/3, de sábado a segunda, das 10h às 14h. Onde: SP Escola de Teatro – unidade
Roosevelt
Mediação
Como criar espaços de coexistência com os demais, com a cidade, com as expressões urba-
nas e com os fundamentalismos que têm surgido? E como relacionar tudo isso com o teatro?
Seria o teatro um espaço de sociabilidade diferenciada? Com base na experiência do pesqui-
sador Marcelo Carnevale (Núcleo Diversitas-USP), que realiza workshops sobre coexistência
no espaço público, e nas ações performáticas de mediação e relação com a cidade da artista
Ana Luisa Santos, a proposta é que, por meio de reflexões e experimentações práticas (derivas,
performances), os participantes possam vivenciar novas formas de sociabilidade e novos en-
tendimentos sobre as interações com as pessoas, os espaços coletivos e o que significa, hoje
e agora, nessa nossa realidade brasileira, “teatro”.
Weinand (Holanda)
Dar e receber feedback são elementos centrais de toda prática artística, em estúdios de ensaio,
locais de produção, escolas de arte e teatros. Na maioria das vezes, ocorre de maneira informal
e um tanto apressada, apoiando-se em certos padrões já obsoletos e improdutivos. Emoções
pessoais, vocabulário impreciso e contexto desfavorável podem provocar um efeito negativo
nos artistas. Mesmo com boas intenções dos dois lados – o do criador que se expõe e o do
profissional que se esforça para analisar ou avaliar o trabalho com precisão –, o feedback nem
sempre resulta tão produtivo como poderia ser. Então, de que forma é possível contribuir para
196 o processo de criação de uma cena ou de uma obra? E, para os artistas, como é trabalhar
com um feedback no meio do processo? A atividade, liderada por Georg Weinand, consultor
artístico belga radicado na Holanda, pretende oferecer meios para que profissionais que acom-
panham a elaboração e o desenvolvimento de uma performance ou de uma peça possam ser
assertivos e contribuir realmente para o aperfeiçoamento artístico do trabalho. Para os artistas
que estão no meio de um processo criativo, será uma oportunidade única de mostrar fragmen-
tos de suas pesquisas cênicas, partilhar questões e dúvidas e receber devolutivas que possam
ajudá-los a aperfeiçoar suas criações. Assim, os artistas selecionados exibirão fragmentos de
suas pesquisas cênicas, e os demais participantes partilharão impressões e indagações sobre
os trabalhos, sendo guiados pelas reflexões de Weinand.
De 5 a 9/3, segunda a sexta, das 10h às 15h. Onde: Escola Britânica de Artes Criativas
Sem conhecimento sobre os caminhos possíveis para chegar aos produtores estrangeiros,
muitas companhias brasileiras deixam de levar obras de grande potencial às plateias inter-
nacionais. Com experiência à frente de projetos artísticos de repercussão mundial, a artista e
produtora croata Iva Horvat, há anos residente em Barcelona, Espanha, e fundadora da Art Re-
public, uma agência voltada para a gestão das artes, vem à MITsp conduzir um workshop sobre
estratégias de divulgação e circulação internacional de espetáculos. Durante cinco dias, Iva
orientará os participantes sobre como desenvolver um plano de internacionalização de projetos
teatrais, partilhando técnicas para a análise dos possíveis mercados, da participação em dife-
rentes festivais e feiras internacionais e, principalmente, dos pontos de destaque do trabalho
artístico em questão. Como apresentar a obra a produtores e programadores estrangeiros de
modo estratégico? Como divulgar o próprio trabalho para outro público, que não o nacional?
Iva também vai propor exercícios práticos aos participantes, para que eles identifiquem como
viabilizar seus projetos no exterior.
A fim de refletir sobre certos temas que serão trabalhados em oficinas práticas, re-
alizaremos rodas de conversa com os artistas responsáveis pelas atividades e mais
alguns convidados
Participantes: Liv Elf Karlén, Leona Jhovs (atriz/ Cia. Pessoal do Faroeste) e Ferdinando
Martins (professor doutor da ECA-USP e pesquisador sobre questões de gênero e sexua-
lidade nas Artes Cênicas), com mediação de Dodi Leal (doutoranda pelo IP-USP, especia-
lista em “Teatra da Oprimida” e autora do livro de poemas De trans pra frente, publicado
pela Patuá em 2017)
Dia 3 de março, das 13h às 15h. Onde: Oficina Cultural Oswald de Andrade
Participantes: Aby Cohen, Renato Bolelli Rebouças e José Roberto Jardim (ator e encena-
dor paulistano, com extenso currículo de espetáculos, entre atuação, direção e desenho
de luz, escolhido por diversos críticos e veículos de imprensa como melhor diretor em
2016 por Adeus, Palhaços Mortos).
Dia 9 de março, das 11h às 14h. Onde: Memorial da Resistência de São Paulo
Destaque
1. Seleção para ouvinte-pesquisador
c u r
a
d o
r i a
em artes
cênicas
Curadora
precária afetiva
feminista
200
independente
brasileira carioca
de arte
performativa
Nay s e L ó p e z
Dramaturgia autobiográfica ready-made de dicionário
ou
substantivo feminino nunca encontrado (porque nunca inserido)
ou
exemplos de arte
ou
nada nos preparou para 2018
Curadora
O verbete não foi encontrado.
Você quis dizer:
caradura 201
cardar
carreador
carádrio
caráter
cardeiro1
cardeiro2
carreadouro
caretear
careteiro
Curador
1 Que ou aquele que cura ou faz um doente sarar.
2 Que ou aquele que exerce uma curadoria.
3 JUR Que ou aquele que é encarregado judicialmente de administrar ou fiscalizar bens ou
interesses de outrem.
4 Que ou aquele que, graças a rezas e orações, trata de pessoas picadas por cobras ou as
imuniza contra esses animais ou contra outros males; curandeiro, feiticeiro.
Curadoria
1 Ato ou efeito de curar.
2 JUR Cargo, poder, função ou administração de curador; curatela.
Curar
1 Restabelecer a saúde de alguém ou a sua própria: Esse médico os curou. Curou-os com
a hidroterapia. A farmácia de manipulação vende ervas que prometem curar. “Aloísio de Paula
tinha uma dramática experiência pessoal. Fora doente pulmonar e curara-se em Campos do
Jordão”. (Nelson Rodrigues, A menina sem estrela: memórias)
2 Debelar doenças, feridas etc.: O líquido escuro e de cheiro estranho cura todas as do-
enças de pele. “Boa noite, meu bem. Me desculpa pelo tratamento de choque que te apliquei.
Dói mas cura”. (Erico Verissimo, Incidente em Antares) A queimadura curou-se com tratamento
específico, que não deixou marcas.
3 FIG Fazer corrigir ou corrigir algum desvio moral ou hábito prejudicial: Essa reprovação
curou-o para sempre, e, hoje, ele encontra no estudo a melhor distração. Quem o curará dessa
melancolia? Será que o verdadeiro amor é capaz de curar? A mágoa em seu coração jamais
se curou.
4 FIG Reparar os efeitos de uma experiência desagradável ou de um momento difícil; ate-
nuar, remediar: Só o arrependimento pode curar as dores do pecado.
5 Exercer a medicina: O jovem formou-se médico porque queria curar as pessoas. Este
médico não vive só de curar.
6 Ter por objetivo; cuidar, ocupar-se de, tratar: Não curo de saber o que pensam a meu
respeito.
7 Secar ao fumeiro, ao sol ou simplesmente ao ar: A cozinheira lá de casa sabe como curar
uma carne.
8 Branquear, expondo ao sol; corar: Para clarear a roupa, a lavadeira a cura.
9 Preparar algo, para facilitar o seu uso posterior: É necessário curar o couro antes de
confeccionar as peças.
10 Praticar qualquer tipo de curandeirismo: Dizem que a benzedeira é estranha, mas cura.
11 Deixar-se benzer ou tratar para suposta imunização contra quaisquer males: O rezador
afirmou que pode me curar. Dizem que a reza daquele homem cura as pessoas contra mau-
-olhado.
202
precária
O verbete não foi encontrado.
Você quis dizer:
barocoria
barqueira
barregar
barricar
barqueiro
barregueiro
barrigueira
barraqueiro
barrigueiro
barriqueiro
Precário
1 Que não é estável ou seguro; sujeito a eventualidades.
2 De pouca monta; escasso.
3 Que pode ser facilmente afetado por algo; débil, frágil: “Caminhou, portanto, para o lado
do mar, porém em meio caminho lembrou-se da caçula, do estado precário de d. Ana e das
outras suas irmãs, e arrependeu-se. Quis viver para elas e para a sua vingança.” (José Patro-
cínio, Os retirantes)
4 Que não é suficiente ou adequado; deficiente: “A casa da estância de gado do Sr. Vaca-
riano é apenas um rancho maior que os outros da povoação. Comunico-me com esse senhor
no meu precário espanhol, e ele me responde na mesma língua mas usando, uma vez que
outra, palavras portuguesas” (Erico Verissimo, Incidente em Antares) .
5 Que não se mantém ou se sustenta: A liderança do movimento é precária.
Afetiva
O verbete não foi encontrado.
Você quis dizer:
afetivo
efetivo
Afetivo
1 Relativo a afeto ou a afetividade.
2 Que demonstra ou busca afeto; afetuoso: “[…] existem obrigações afetivas, obrigações
de família mesmo”. (João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro)
Afeto (1)
1 Sentimento de afeição ou inclinação por alguém; amizade, paixão, simpatia: “Aquela
carta a revoltava muito; não […] pelo afeto que teria ao estudante, mas pelo ressentimento de
seu amor-próprio ofendido”(Aluísio Azevedo, Casa de pensão).
2 Ligação carinhosa em relação a alguém ou a algo; querença.
3 PSICOL Expressão de sentimento ou emoção como, por exemplo, amizade, amor, ódio,
paixão etc.: “O mundo lhe parecia vazio de afeto e de amor” (Lima Barreto, O triste fim de
Policarpo Quaresma).
Afeto (2)
1 Que demonstra afeição ou dedicação a alguém; afeiçoado, dedicado: É uma pessoa
afeta a ajudar o próximo.
2 Que é partidário ou simpatizante de alguém ou de algo: Somos afetos às ideias da mo- 203
dernização educacional.
Afetividade
1 Qualidade ou caráter daquele que é afetivo: “Fingi não ver seus gestos, combatia-lhe a
afetividade exagerada, que nos inclinava ao fausto”. (Nélida Piñon, O calor das coisas)
2 PSICOL Conjunto de fenômenos psíquicos que se revelam na forma de emoções e de
sentimentos.
3 PSICOL Capacidade do ser humano de reagir prontamente às emoções e aos sentimen-
tos.
Feminista
Relativo a feminismo: “Sou mulher das longas estações. Serei verão quando exigires calor.
Não, não rias. Não me venhas a cobrar teorias feministas. Tenho-as prontas para a vida, recém-
-começo a dominar um vocabulário que antes era só de tua lavra” (Nélida Piñon, O calor das
coisas).
Diz-se de ou partidário do feminismo: É a mulher mais feminista que conheço. Meu pai
sempre foi um feminista.
Feminismo
1 Movimento articulado na Europa, no século XIX, com o intuito de conquistar a equipara-
ção dos direitos sociais e políticos de ambos os sexos, por considerar que as mulheres são
intrinsecamente iguais aos homens e devem ter acesso irrestrito às mesmas oportunidades
destes. (O movimento pressupunha, já de início, uma condição fundamental de desigualdade,
tanto em termos de dominação masculina, ou patriarcado, quanto de desigualdade de gênero
e dos efeitos sociais decorrentes da diferença sexual.)
2 MED, P US Presença de caracteres femininos no homem.
Independente
adj m+f
1 Que não é dependente; que goza de autonomia ou liberdade completa com relação a
alguém ou algo: “Entre as 21 metas para a televisão do futuro está a multiplicação de canais
alternativos, independentes”. (Arnaldo Antunes, 40 escritos)
2 Que não se deixa influenciar ao fazer julgamento; isento, imparcial: O júri foi independen-
te na decisão.
3 Que se mantém livre de qualquer influência de ordem afetiva, econômica, moral etc.: O
cantor gravava em um estúdio independente.
4 Que não mantém compromisso com doutrina, escola, partido ou ideias predetermina-
das: Sua literatura independente não se enquadrava em nenhuma corrente.
5 Que rejeita qualquer tipo de submissão.
6 Diz-se de um estado ou país que goza de autonomia política.
7 Diz-se de pessoa com condição financeira favorável; abastado, próspero: “[…] morreu a
tia, sou agora rica e independente”. (Nélida Piñon, O calor das coisas)
8 Diz-se de trabalhador que desenvolve suas atividades profissionais sem vínculo empre-
gatício; autônomo: O trabalhador independente tem grande flexibilidade de horário.
9 Que mantém autonomia em relação a uma estrutura de que faz parte: Os departamentos
são independentes dentro da universidade.
10 Diz-se de algo que não mantém uma relação de subordinação com outra coisa: “Um
livro com 13 histórias independentes […]”. (Caio Fernando Abreu, Os dragões não conhecem
o paraíso)
11 Diz-se de peça de uma residência ou de um imóvel comercial que dispõe de entrada
204 exclusiva: “[…] dois quartos magníficos, com entradas independentes e comunicáveis entre si
por uma pequena alcova”.(Aluísio Azevedo, Casa de pensão)
sm+f
Pessoa que age com total autonomia, livre de qualquer influência doutrinária ou ideológica.
Brasileira
COLOQ Ver cachaça, acepção 1.
Cachaça
1 Aguardente que se obtém pela destilação da borra do caldo da cana-de-açúcar e que,
após a saída do alambique, passa por um processo de envelhecimento em tonéis de madeira;
abre, abre-bondade, abrideira, abridora, aca, a do ó, água-benta, água-branca, água-bruta,
água de briga, água de cana, água de setembro, água-lisa, água que gato não bebe, água
que passarinho não bebe, aguardente, aguarrás, alpiste, aninha, apaga-tristeza, arapari, ar-
rebenta-peito, assina-ponto, assovio de cobra, azuladinha, bagaceira, baronesa, bicarbonato
de soda, birita, boa, borbulhante, boresca, braba, branca, branquinha, cachorro de engenhei-
ro, café-branco, caeba, caianarana, caianinha, calibrina, camarada, cambraia, cana, cândida,
canguara, caninha, caninha-verde, canjica, cascabulho, cascarobil, cascavel, caúna, caxa-
ramba, caxiri, chica, chuchu, cipinhinha, cipó, cobertor de pobre, coco, concentrada, cumbe,
cumbeca, cumbica, cumulaia, dona-branca, engasga-gato, engenhoca, espanta-moleque,
esquenta-corpo, esquenta-dentro, faz-xodó, filha de senhor de engenho, fogo, fogosa, fruta,
gás, gasolina, gaspa, girgolina, girumba, goró, gramática, guampa, iaiá me sacode, imbiriba,
já-começa, januária, jeriba, jeribita, jurubita, lágrima de virgem, levanta-velho, limpa-goela,
maçaranduba, maciça, malafa, malafo, malavo, malunga, malvada, mamadeira, mamãe de
aluana, mamãe de aruana, mamãe de luana, mamãe de luanda, mamãe-sacode, mandureba,
mangabinha, marafa, marafo, maria-teimosa, mata-bicho, mé, meu-consolo, miana, moça-
-branca, morretiana, muamba, mungango, óleo, óleo de cana, orontanje, parati, perigosa, per-
nambucana, petróleo, pevide, piloia, pinga, piribita, pirita, pitula, porongo, preciosa, prego,
pura, purinha, quebra-goela, quebra-munheca, quindim, rama, remédio, restilo, roxo-forte,
samba, santa-branca, sete-virtudes, sipia, siúva, suor-de-alambique, supupara, tafiá, teimosa,
terebintina, tira-calor, tira-juízo, tira-teima, tira-teimas, tiúba, tome-juízo, três-martelos, tira-
-vergonha, uca, vela, veneno, venenosa, virgem, xarope dos bebos, ximbica, ximbira, xinabre,
xinapre, zuninga.
Brasileiro
adj
1 Relativo ou pertencente à República Federativa do Brasil.
2 Típico do Brasil ou dos brasileiros.
3 Feito por brasileiros: Cinema brasileiro.
4 Relativo ou pertencente aos brasileiros.
sm
1 Natural ou habitante do Brasil.
2 Aquele que tem cidadania brasileira.
3 A língua portuguesa do modo como é falada no Brasil.
Brasil
adj m+f
Relativo ou pertencente ao Brasil.
adj m+f sm
Diz-se de ou cor da madeira do pau-brasil e da brasilina; encarnado, vermelho.
sm
1 Natural ou habitante do Brasil, especialmente o indígena brasileiro. 205
2 BOT V pau-brasil, acepção 1.
3 ANT Cosmético facial avermelhado que era usado pelas mulheres.
4 QUÍM V brasilina.
Brasis (quando em plural)
As terras do Brasil: Já percorremos esses brasis de norte a sul.
Carioca
adj m+f
1 Relativo ou pertencente à cidade do Rio de Janeiro (RJ).
2 Zootec Diz-se de uma raça brasileira de porcos domésticos.
3 REG (MG) Que tem pintas na pele.adj
Diz-se de café ao qual se adiciona água para torná-lo mais fraco.
sm+f
Natural ou habitante da cidade do Rio de Janeiro (RJ).
sm
Café fraco, após adicionar-lhe água.
Rio de Janeiro
O verbete não foi encontrado
Arte
1 FILOS Segundo Platão, toda forma de conhecimento ou atividade humana racional e uti-
litária, submetida a regras, em oposição ao acaso, ao espontâneo ou ao natural, abrangendo
ciência e filosofia; assim, estabelece dois tipos de arte ou técnica: a) as judicativas, dedicadas
apenas ao conhecimento, as do mundo inteligível; e b) as dispositivas ou imperativas, voltadas
para a elaboração de uma atividade material, as do mundo sensível.
2 FILOS Segundo Aristóteles, já separando arte, filosofia e ciência, técnica de imitação da
natureza, sustentada por um fim utilitário e uma concepção mimética que não se confunde
com a simples reprodução, mas que corresponde à representação da natureza, de modo que
na obra de arte figure algum ser, sentimento ou fato, por meio da obediência a um conjunto de
regras, em busca da harmonia e da perfeição; mimese.
3 FILOS Na concepção medievalista, símbolo ou manifestação espiritual que permite al-
cançar a visão direta da perfeição de Deus e cujo caráter doutrinário deveria despertar no cris-
tão a consciência da morte e o desejo de fugir dos pecados da vida para alcançar a salvação.
4 FILOS Segundo a estética da criação, em ascensão durante os séculos XVII e XVIII, e já
vigorando no movimento romântico, capacidade que tem o ser humano de criar o belo, como
produto da ação individual, do gênio e da sensibilidade do artista, valendo-se de sua faculda-
de de inspiração; exteriorização dos sentimentos de um gênio excepcional, capaz de dominar
a matéria e o pensamento, independentemente de uma finalidade utilitária.
5 FILOS Na concepção estética contemporânea, expressão criadora e processo de cons-
trução que elabora a transfiguração do elemento sonoro, do movimento, da linguagem, dos
gestos, das cores, enfim, da própria realidade, em produtos artísticos; não se trata de pura
receptividade imitativa, concepção inspirada de um criador genial ou de um processo ilusório
sobre a realidade, nem pura criatividade espontânea e livre, mas da construção de um sentido
novo para a obra (e a realidade), assim como sua instituição como objeto da cultura, em um
embate contínuo com a natureza e com a sociedade.
6 POR EXT A utilização de toda forma de conhecimento ou das regras de elaboração de
uma atividade humana: a arte de pensar, a arte de refletir, a arte de raciocinar, a arte de execu-
tar, a arte de fazer, a arte da construção etc.
206 7 POR EXT A utilização da técnica de imitação da natureza, com vistas a um resultado
prático que pode ser obtido por meios diferentes, em diversos campos de atividade: a arte de
falar, a arte de pescar, a arte de nadar, a arte de dançar etc.
8 Atividade que supõe a criação de obras de caráter estético, centradas na produção de
um ideal de beleza e harmonia ou na expressão da subjetividade humana.
9 A capacidade criativa do artista na expressão e transmissão da inteligência, sensações
ou sentimentos; criatividade, talento.
10 O domínio do conjunto de normas e regras necessárias à expressão e transmissão des-
sas sensações e sentimentos; esmero técnico, habilidade, perfeição.
11 O conjunto de regras e normas indispensáveis para o exercício de uma profissão ou
ofício.
12 Livro, tratado ou obra que contém tais preceitos.
13 Ofício ou profissão manual ou artesanal.
14 Produção industrial ou manufaturada com perfil artesanal; manufatura: a arte da tape-
çaria oriental, a arte do vidro.
15 As artes plásticas: exposição de arte, mercado de arte, galeria de arte.
16 O conjunto das manifestações artísticas de uma época, de um país, de uma escola: a
arte medieval, a arte moderna, a arte colombiana, a arte simbolista etc.
17 Tendência natural; dom, jeito: Este rapaz tem muita arte para consertar aparelhos ele-
trônicos.
18 Capacidade natural ou adquirida de pôr em prática os meios necessários para obter
um resultado: a arte de amar, a arte de ganhar dinheiro, a arte de viver, a arte de negociar etc.
19 Recurso engenhoso; artimanha, astúcia: Foi necessária muita arte para chegar àquele
resultado.
20 Modo ou forma de proceder; maneira: A intriga foi planejada com tal arte que a todos
envolveu.
21 COLOQ Ação de traquinas; traquinada, traquinagem, travessura: Este menino faz uma
arte atrás da outra.
22 JORN, EDIT Editoria encarregada da tarefa de preparar desenhos, selecionar material
fotográfico, elaborar corte e colagem de material etc., assessorando o trabalho do diagrama-
dor.
23 PUBL Departamento de uma empresa ou equipe de profissionais encarregados de exe-
cutar leiautes, ilustrações, arte-final, rafes etc. para a produção de anúncios, cartazes, letrei-
ros, painéis e outros.
24 PUBL Conjunto das atividades envolvidas na apresentação gráfica e visual de anúncios,
letreiros, cartazes, painéis etc.
25 ART GRÁF Original destinado a impressão, ainda em fase de leiaute ou arte-final.
artes (quando sf pl)
Certos aparelhos e armações de pesca.
Exemplos de arte
Arte abstrata: manifestação artística que, opondo-se à tendência figurativa, despreza a
mera reprodução das formas naturais, tendo por objetivo criar formas puras, não imitativas do
natural; abstracionismo, arte concreta.
Arte angélica: conjunto de meios supersticiosos pelos quais se julgava, na Idade Média,
poder-se saber o que se desejava conhecer, pondo-se em contato com um anjo ou demônio.
Arte cerâmica: arte de fabricar vasos, utensílios e objetos de argila.
Arte cibernética, ART PLÁST: qualquer manifestação artística que utiliza as tecnologias
modernas, como informática, xerox, holografia, fax, transmissões via satélite etc.
Arte cinética: aquela em que o movimento é o principal componente estético, com elemen-
tos móveis animados por motor, pelo movimento do ar ou por impulsão manual.
Arte conceitual, ART PLÁST: corrente artística surgida na década de 1960, que privilegia o 207
conceito, a ideia (por oposição à reprodução figurativa do objeto concreto em si), e que não
se prende especificamente nem à pintura nem à escultura; o artista recorre a associações que
convidam à reflexão.
Arte concreta: a) aquela caracterizada pela estruturação das obras com base na materia-
lização ou visualização de seus valores concretos, conforme os ideais postulados pelo grupo
europeu Abstraction-Création (1931-1936), sem buscar esses valores na natureza, na socieda-
de ou mesmo representá-los conceitualmente; concretismo; b) Ver arte abstrata.
Arte culinária: arte de cozinhar, segundo normas gastronômicas ou dietéticas.
Arte da gramática, LING, ANT: a) uma das disciplinas humanísticas que compunham o
trívio (dialética, gramática, retórica) na educação latina medieval; b) POR EXT descrição da
estrutura gramatical de uma língua.
Arte da palavra, RET: Ver retórica.
Arte da propaganda, PUBL: Ver arte publicitária.
Arte de Santo Anselmo: conjunto de meios supersticiosos empregados antigamente para
a cura de feridas.
Arte de vanguarda: denominação atribuída a toda manifestação artística, a partir de mea-
dos da década de 1930, voltada a características inovadoras na forma e no conteúdo, opon-
do-se geralmente aos padrões institucionalizados pelo consenso geral.
Arte do marinheiro, MAR: arte de fazer costuras em cabos e lonas, de dar nós e voltas em
cabos, e de executar outros trabalhos artesanais próprios do marinheiro de convés.
Arte dramática: a) TEAT Ver teatro; arte cênica; b) LIT gênero literário que compreende
todas as obras destinadas à cena.
Arte figurativa: aquela que se expressa por meio de formas identificáveis (pessoas, objetos
etc.), em oposição à arte abstrata ou conceitual; figurativismo.
Arte mágica: magia, feitiçaria, prestidigitação, manigância.
Arte maior, POÉT: designação, em especial na métrica espanhola, do verso de nove ou
mais sílabas, com pausas na terceira, sexta e nona.
Arte marcial: conjunto de técnicas, movimentos e exercícios corporais para defesa e ata-
que, com ou sem emprego de armas; a maioria das técnicas assim denominadas é de origem
oriental.
Arte menor, POÉT: designação, em especial na métrica espanhola, do verso de oito ou
menos sílabas, como o da redondilha.
Arte moderna: Ver modernismo.
Arte naval, MAR: conjunto de conhecimentos relativos à estrutura, ao equipamento, à con-
servação e às manobras de um navio, ou de embarcações em geral, bem como às tarefas que
nele se realizam.
Arte pela arte: Ver ars gratia artis.
Arte performática, ART PLÁST: arte da performance, isto é, apresentação ao vivo de um
artista (pintor, escultor etc.).
Arte plumária, ETNOL: arte de criar objetos de adorno com plumas coloridas, própria dos
indígenas; plumária.
Arte poética: a) LIT arte de fazer poesia; b) LIT conjunto de regras e princípios próprios à
construção do texto poético.
Arte publicitária, PUBL: a) conjunto de atividades relacionadas com a apresentação gráfi-
co-visual de anúncios; b) habilidade própria dos artistas (leiautistas, ilustradores, fotógrafos)
que trabalham na preparação de anúncios, campanhas publicitárias, cartazes de propaganda
etc.; arte da propaganda.
Arte relacional, ESTÉT:
conjunto de práticas artísticas que tomam como ponto de partida teórico e prático a totali-
208 dade das relações humanas e o contexto social em que elas ocorrem, fazendo coexistir seres
humanos, objetos e formas nas obras de seus criadores; desse modo, portanto, o significado
de uma obra pode emergir da relação entre indivíduos e objetos dentro do espaço expositivo
(que deixa de ser, necessariamente, a galeria de arte ou o museu).
Arte rupestre: denominação dada aos desenhos, pinturas etc., feitos nas cavernas pelos
homens pré-históricos; inscrição rupestre.
Arte venatória: a arte da caça.
Artes aplicadas: Ver artes decorativas.
Artes cênicas, TEAT: técnicas e métodos da representação teatral; arte dramática.
Artes criativas, HIST: denominação dada modernamente às belas-artes (artes plásticas,
dança, música, poesia) para diferenciá-las das artes utilitárias.
Artes de adorno: Ver artes recreativas.
Artes decorativas: denominação dada modernamente às artes aplicadas à decoração de
interiores, como tapeçaria, mobiliário, cerâmica, bordado etc., incorporadas ao design ou de-
senho industrial; artes aplicadas, artes menores, artes ornamentais.
Artes de reprodução, ART GRÁF: o conjunto de processos e atividades utilizados na repro-
dução de imagens ou escritos com impressão por fôrma, chapa gravada ou matriz.
Artes do espetáculo: aquelas que envolvem um espetáculo, isto é, uma exibição ou apre-
sentação ao público de uma habilidade, proeza ou destreza especial de um artista, como no
teatro, no cinema, na televisão, no circo etc.
Artes gráficas: a) o conjunto das atividades próprias à criação e preparação de trabalhos
de arte destinados à impressão (desenho, diagramação, montagem, arte-final etc.), bem como
todos os processos, industriais ou artesanais, pertinentes à produção gráfica (autotipia, tipo-
grafia, acabamento, encadernação, gravura etc.); b) o conjunto das atividades (artes e técni-
cas) que compõem o processo industrial ou artesanal de produção gráfica.
Artes liberais: a) HIST denominação atribuída (a partir do século I) ao conjunto de nove
disciplinas dignas de estudo apenas pelos homens livres, uma vez que ao escravo cabia ape-
nas o trabalho manual ou artesanal, a saber: aritmética, arquitetura, astronomia, geometria,
gramática, lógica, medicina, música e retórica; b) HIST designação comum, durante o período
medieval, às disciplinas de instrução e ensino, ministradas sob a égide da teologia, e que se
dividiam em trívio (dialética, gramática, retórica) e quadrívio (aritmética, astronomia, geometria,
música).
Artes maiores: Ver artes criativas.
Artes manuais: aquelas que envolvem apenas habilidade manual, sem trabalho intelectual.
Artes mecânicas: aquelas que envolvem trabalho manual, mas executado com o auxílio de
ferramentas ou máquinas.
Artes menores: Ver artes decorativas.
Artes plásticas: as que se manifestam por meio da recriação de elementos visuais e táteis,
como formas, linhas, cores, volumes etc.; compreendem o desenho, a pintura, a gravura, a
colagem, a escultura, a arquitetura; belas-artes.
Artes recreativas: denominação atribuída às artes que, antigamente, não eram considera-
das de forma profissional, mas apenas como próprias de uma educação requintada; artes de
salão, como a música, o desenho, o canto, a esgrima, a dança etc.; artes de adorno.
Fazer arte: criar ou produzir uma obra de arte; trabalhar com arte.
Fazer arte de: a) proclamar(-se) como bom; vangloriar-se: Faz arte até da surra que le-
vou; b) agir de modo provocante, com determinado intuito: Ele anda fazendo arte de tirar todos
do sério.
Por artes de berliques e berloques: por artes mágicas; inexplicavelmente, milagrosamente.
Por artes do diabo: por desgraça, por infelicidade.
Sétima arte: o cinema; a arte cinematográfica.
Performativa 209
O verbete não foi encontrado.
Você quis dizer:
performativo
Performativo
LING Diz-se de um enunciado que se dá ao mesmo tempo em que a ação por ele apresen-
tada: palavra e ato coincidem.
Da curadoria
à cura:
notas sobre o
210
imperativo da
descolonização
1 A palavra xamã tem origem na língua tungue, da Sibéria, referindo-se a indivíduos com a capacidade de, em transe,
realizar viagens entre o mundo humano e o mundo dos espíritos. Com a constatação de fenômenos semelhantes em
outras partes do mundo, o termo “tornou-se universal para indicar tais pessoas e suas atividades, independente de sua
e tomar providências para eliminar o mal depois de identificada sua causa. Para isso ele recorre ao
auxílio de espíritos e substâncias curativas específicos às várias doenças, ou ao processo de sucção
do objeto que está causando a doença do paciente (RAMOS, 1988, p. 83).
Sobre o processo de identificar a causa da doença, Viveiros de Castro (2004, p. 232) des-
taca que “a boa interpretação xamânica é aquela que consegue ver cada evento como sendo,
em verdade, uma ação, uma expressão de estados ou predicados intencionais de algum agen-
te”. Com seus poderes, cabe ao xamã identificar a causa da doença, considerando que, no
pensamento indígena, “conhecer é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser
conhecido — daquilo, ou antes, daquele; pois o conhecimento xamânico visa um ‘algo’ que
é um ‘alguém’, um outro sujeito ou agente” (2004, p. 231). O xamã deve, portanto, transitar
pela perspectiva de outros corpos para descobrir o que ou quem causou a doença: um feitiço
de um inimigo, um espírito animal repreendendo a quebra de uma proibição alimentar, entre
outras causas possíveis.
A capacidade de “conhecer” um trabalho, uma obra, um artista, um coletivo e de inseri-lo
dentro de um contexto que possibilite sua plena manifestação também é característica de um
curador de arte, não é mesmo? Quais vozes evocamos ao apresentar um trabalho dentro de
um festival? Que ritual se cria quando colocamos em um mesmo evento uma programação
que reúne diversas obras? Isso sem deixar de refletir sobre as ausências, que também são
discursos e intenções.
Sendo a curadoria esse lugar de mediação propositiva, capaz de promover e de dar visibili-
dade a obras, a artistas e seus discursos, ela se torna uma função bastante problemática den-
tro de grandes eventos, como os festivais internacionais de teatro. A junção de uma grande di-
versidade artística à precariedade de políticas culturais também colabora com esse processo.
213
Participação em festivais e mostras
Comecei a circular com espetáculos de artes cênicas pelo Brasil em 2006, com a Cia Será
Quê?, dirigida pelo bailarino Rui Moreira. Fizemos apresentações por cidades do nordeste
brasileiro, em sua maioria capitais.
Em 2007, coordenei a produção de Artes Cênicas do FAN – Festival de Arte Negra, de Belo
Horizonte, que buscou celebrar acordos e parcerias entre o Brasil, a África e os povos das
diásporas, com um pensamento curatorial que visava a conectar o Brasil à África, em especial
à parte ao norte da linha imaginária do Equador – países como Nigéria, Senegal, Mali e seus
vizinhos –, estabelecendo uma ponte entre os diversos caminhos que a arte negra percorre
nos tempos de hoje. A curadoria e direção artística foram realizadas pelo ator e diretor Adyr
Assumpção e pelo bailarino e coreógrafo Rui Moreira. Por se tratar do maior evento nacional
dedicado à arte e à cultura negra, o FAN abarca diversas linguagens artísticas, manifestações
culturais, encontros e debates políticos importantíssimos. É um festival que tem caráter agre-
gador e impulsionador de ações afirmativas, políticas e artísticas na cidade de Belo Horizonte.
Suas marcas são profundas e é também por isso que ele é o festival mais questionado em
termos de representatividade e de participação popular.
Em 2008, quando passei a coordenar a produção do grupo Espanca!, nascia o Congresso
Internacional do Medo, terceiro espetáculo do coletivo, com texto e direção de Grace Passô. A
criação do espetáculo foi selecionada na 2ª edição do Projeto de Coprodução do Núcleo dos
Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil, garantindo a participação na programação do
FIT-BH, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto (SP), Cena Contemporânea (DF),
Festival Riocenacontemporanea (RJ) e FILO – Festival Internacional de Teatro de Londrina (PR).
Nesse momento, o grupo Espanca! já havia estreado outros dois trabalhos, Por Elise e
Amores surdos, circulado por esses mesmos festivais, além de muitos outros, tendo vivido,
em 2006, sua primeira experiência em festivais fora do Brasil, na Copa da Cultura - Festival
Brasil em Cena, em Berlim, na Alemanha.
localização geográfica” (LANGDON: 1996, p. 13).
Depois outros festivais vieram, como o FIAC - Festival Internacional de Artes Cênicas da
Bahia, em Salvador (BA), o Festival Brasileiro de Artes Cênicas do Pará, em Belém (PA), o
Verão Arte Contemporânea, em Belo Horizonte (MG), e muitos mais. Citar tantos festivais,
acredito, colabora na retrospectiva de um período muito ativo dos festivais de teatro no Brasil.
Especificamente para o grupo Espanca!, entre 2004 e 2009 a participação em festivais foi
muito intensa. E foram nessas ocasiões em que muitos grupos se encontraram, trocaram e se
reconheceram.
Dessas reuniões surgiu o projeto ACTO – encontro de teatro que reúne companhias te-
atrais brasileiras para mostrar seus espetáculos e, principalmente, para trocar experiências
criativas. Como anfitrião, o Espanca! recebeu por três edições (2007, 2010 e 2014) a Compa-
nhia Brasileira de Teatro (PR), o Grupo XIX de Teatro (SP) e, na última edição, estendeu o con-
vite ao Grupo Magiluth (PE). O ACTO foi concebido para ser um festival de teatro e ao mesmo
tempo um encontro íntimo entre grupos amigos sediados em estados brasileiros distintos. O
projeto nasceu do desejo de radicalizar o intercâmbio e a colaboração na criação; de nos
transformarmos a partir da troca; de realizar um evento calcado nos interesses dos próprios
grupos teatrais; de criar um intercâmbio que identificasse, diferenciasse e reinventasse seus
convidados; e, ao mesmo tempo, do desejo de compartilhar isso tudo com as pessoas inte-
ressadas em participar do encontro. A cada ano o espaço de trocas foi se abrindo cada vez
mais para a cidade e se tornando mais complexo.
Em abril de 2014, participando do Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá, no qual o
Espanca! apresentou a peça Amores surdos, de Grace Passô, tive a oportunidade de assistir
a Wajdi Mouawad, escritor, ator e diretor de teatro, nascido em uma família cristã maronita li-
banesa e radicado no Canadá. Além de apresentar um trabalho intitulado Solos, ele participou
214 de uma conversa na qual falou sobre sua história e seu processo de criação teatral. Wajdi teve
grande visibilidade com a autoria do texto Incêndios.
Quando Wajdi falou sobre sua experiência de vida em família e em seu país, provocou
uma discussão sobre a necessidade de falar dos seus, de suas origens, de suas entranhas e
fez uma metáfora usando o “escaravajo”, que pra nós seria o escaravelho, uma espécie de
besouro que se alimenta de fezes. Ele disse que o artista se alimenta da merda da sociedade,
assim como o escaravelho, que vive em nós e que não podemos matar, apenas domesticar.
Contou a história de seu povo, lembrando que ele e sua família se exilaram no Canadá
quando o Líbano estava em guerra, e que, quando criança, havia sido ensinado a ter ódio das
pessoas, das comunidades diferentes da sua, sobretudo das que praticavam outras religiões,
e que seu trabalho foi alicerçado no desejo de reverter essa situação. Ouvindo Wadji em Bogo-
tá, percebi a potência de suas palavras pela forma como elas reverberaram na plateia e fiquei
pensando o que teria acontecido se estivéssemos escutando um ator negro, brasileiro, falando
de suas origens, de como sua vida é combustível para a criação artística. Será que estaríamos
comovidos daquela forma? Refleti sobre nacionalidade, e comecei a pensar na brasilidade
dos nossos trabalhos e da programação daquele festival que estava homenageando o Brasil.
Um festival é um lugar de conexão. A partir dele, surgem desdobramentos que podem
dar continuidade a essas relações e ações, desdobramentos muitas vezes motivados por
discursos que não estavam presentes na proposta original. Uma programação acaba por dar
visibilidade também ao que não está. E isso pode reverberar de muitas formas.
Idealizar a curadoria
A descolonização do pensamento tem sido tema de discussão em alguns encontros de
teatro, reconhecendo que a estrutura do teatro brasileiro tem base em uma matriz europeia,
em suas formas e conteúdos. Considerando que os estudos teatrais nas escolas e universi-
dades e as práticas da maioria dos grupos são igualmente eurocêntricos, cabe aos artistas
buscar outras referências, reconhecer potências criativas em suas comunidades, exercitar a
descolonização a partir das suas buscas. Esse movimento tem sido realizado por alguns agru-
pamentos, coletivos teatrais que desenvolvem narrativas considerando os contextos sociais
e políticos, com um olhar específico para as questões raciais, de gênero, identidades, criando
novas imagens sobre a contemporaneidade.
O teatro como expressão de novas visões de mundo, mais conectadas a realidades his-
toricamente marginalizadas, é fruto de uma resistência de artistas que visam a ampliar as
possibilidades de representação de si mesmos, nomeando suas experiências e desafiando
a hegemonia cultural. Pensar em espaços para novos discursos é um caminho fundamental
nessa busca pela descolonização do pensamento, da arte, do teatro, e, tão importante quanto,
é a abertura da escuta. Essa percepção ativa, interessada, tem que vir não só do espectador,
mas também dos curadores, programadores e professores, para que essas outras narrativas
aconteçam e reverberem.
Em entrevista para a psicanalista e crítica cultural Suely Rolnik, a artista portuguesa Grada
Kilomba falou sobre sua performance intitulada Ilusões, apresentada na 32ª Bienal de São
Paulo. Na obra, ela relê o mito de Narciso à luz do contexto colonial:
Por exemplo, em relação à história colonial, nós queremos desmontá-la, mas estamos sempre a
contar a mesma estória. Vivemos numa quádrupla ignorância em relação a essa história: a gente
não sabe, não precisa saber, não deve saber e não quer saber. Então em Ilusões decidi contar
uma outra história. São duas estórias ligadas a dois mitos: o mito do Narciso e a estória de amor
de Narciso com Eco, que eu recapitulo em um contexto colonial, um Narciso que está virado para
si próprio e que só representa sua própria imagem, só vê sua própria imagem refletida no lago2
Essa contextualização nos permite refletir sobre as curadorias de festivais de arte e as
programações dos centros culturais no Brasil. Diz Kilomba:
Enquanto Narciso fala consigo próprio dizendo ‘eu amo-te, volta para mim’, Eco responde ‘volta
para mim, volta para mim, eu amo-te, amo-te’. Ela só repete as últimas palavras de Narciso. Em 215
Ilusões eu brinco um pouco com essa mitologia, com essas histórias como metáforas da tragédia
colonial. É uma repetição infinita e uma representação infinita de si próprio que não representa a
realidade, mas só aquela imagem colonial, branca, patriarcal que se repete constantemente e que
está apaixonada por si própria e se idealiza a si própria, e condenada porque não vê mais nada a
não ser sua própria representação. É uma representação, um tipo de enunciado em que as outras
pessoas não existem. E ao mesmo tempo também tem a confirmação e o consenso de Eco, que
está tão fixada no Narciso que sempre repete e confirma aquilo que ele diz. Neste narcisismo colo-
nial e patriarcal em que nós vivemos, como vamos recuperar outras narrações e outras histórias?
Importante dizer que as discussões sobre a necessidade do enfrentamento do racismo na
cultura, nas manifestações artísticas, assim como as reivindicações para que pessoas negras
devidamente capacitadas ocupem espaços de decisão em comissões de curadorias de arte
e gestões culturais em instituições públicas e privadas, já acontece há muito, vide as expe-
riências do Fórum de Performance Negra, realizado pela Cia dos Comuns (RJ) e pelo Bando
de Teatro Olodum (BA) há 12 anos. São muitos os grupos de teatro, mostras e ações que se
estabeleceram a partir de um olhar para a arte que considere o contexto racial.
Em 2014, me juntei ao dramaturgo Anderson Feliciano para realizar a primeira edição da
mostra Polifônica Negra, que teve sua segunda edição em 2017, de forma mais ampliada e
com maior tempo de elaboração para o que desejávamos: pensar o encontro como um qui-
lombo, tendo como um de seus pilares o diálogo tenso, conflituoso e necessário em torno
dos desafios de trabalhar as estéticas negras na cena contemporânea e do modo como essas
produções contribuiriam para a ressignificação do imaginário social. A Polifônica Negra é um
projeto que tem como prioridade o encontro entre artistas para que exponham seus proces-
sos criativos e debatam a produção da arte negra brasileira, dentro da área de artes cênicas.
O encontro recebe artistas/provocadores negros brasileiros apresentando seus trabalhos e
discutindo a partir deles.
2 KILOMBA, Grada. Entrevista concedida a Suely Rolnik. São Paulo, 2016. Íntegra disponível em: www.geledes.org.br/
descolonizacao-do-pensamento-na-obra-de-grada-kilomba/
Em maio de 2017, Ana Maria Gonçalves escreveu para o The Intercept Brasil um artigo
chamado “Dear White People liberta a arte negra de referências brancas3”, partindo da expe-
riência na mostra Polifônica Negra, em Belo Horizonte, e da série da Netflix Dear White People:
Recentemente participei de um evento com formato que gostaria de ver cada vez mais difundido
entre artistas em geral e, principalmente, artistas negros/as, a Polifônica Negra, em Belo Horizon-
te. Experimentos cênicos, debates, provocações, conversas, fragmentos de trabalhos em cons-
trução, ocupação de espaços espalhados pela cidade e tamanho perfeito para que coubéssemos
todos, no fim da noite, em uma imensa mesa de bar com mais conversas, debates, provocações,
parcerias etc… Escapamos de um formato de evento que tem me incomodado cada vez mais,
que é aquele que se pretende apenas laudatório e que, para mim, funciona mais como armadilha,
prendendo o artista em sua zona de conforto, do que como gatilho de novas experiências, possi-
bilidades, ideias e, sobretudo, crescimento e amadurecimento artísticos. Um dos questionamen-
tos levantados pelo filósofo Renato Nogueira foi até que ponto nós, artistas negros, estaríamos
produzindo em reação a ou a partir da conversa com um cânone branco. A resposta da atriz Grace
Passô, com a qual concordo, é que já há no Brasil uma arte negra com poética, estética e forma-
tos próprios, que se sustenta sem a necessidade de estar em diálogo com referências, temas e
questionamentos não negros. A arte se liberta quando isso acontece, e um dos maiores exemplos
disso vem de uma das séries mais comentadas da temporada, Dear White People, da Netflix.
3 https://theintercept.com/2017/05/31/dear-white-people-liberta-a-arte-negra-de-referencias-brancas/
4 http://segundapreta.com/
dução artística diversa, política, reflexiva, capaz de pautar as ações da política pública do
município. Desde que chegou a Belo Horizonte, o Secretário de Cultura Juca Ferreira tem se
reunido com os artistas e agentes culturais. Recentemente, realizou no auditório da Secretaria
uma reunião pública com a comunidade LGBT da cidade e uma das demandas apresentadas
foi a representatividade LGBT na programação do FIT-BH e dos demais festivais realizados
pela Prefeitura. Também foi destaque nas falas dos artistas presentes na reunião pública sobre
o FIT-BH a presença de trabalhos de artistas negros, a paridade de cachês entre os artistas
locais e os de fora, e a parceria com os espaços geridos por agentes culturais da cidade.
As demandas aqui citadas apontam para a importância de dar visibilidade e acesso às
manifestações artísticas da cidade, considerando sua pluralidade e especificidades. Como
acompanhar esse movimento sendo um peixe vivo? As possibilidades são muitas e uma delas
é seguir em parceria, compartilhar a gestão. Dentro dessa proposta, a Fundação Municipal de
Cultura de Belo Horizonte, juntamente com a Secretaria de Cultura, vai abrir dois editais – um
para associações interessadas em realizar/produzir o festival e outro para receber propostas
de curadoria. Essa é a grande aposta, convidar a cidade para propor a curadoria do festival.
A intenção é receber propostas coletivas que irão desenvolver o conceito da curadoria a partir
de diretrizes previamente estabelecidas, que irão garantir o interesse público e o atendimento
desejado pela atual gestão da SMC/FMC.
A comissão que irá avaliar as propostas será composta de forma paritária por profissionais
da SMC/FMC e da sociedade civil. Vejo nessa iniciativa uma forma de provocar a cidade em
relação ao festival e de movimentar o poder público em direção a ela, trazendo uma maior
potência para os processos participativos. Um bom desafio, considerando também que essa
ação é inédita no Brasil, e mais um exemplo a recordar.
A curadoria, tanto nos festivais privados quanto nos públicos, é um chamado que evoca 217
outras vozes. O reconhecimento de uma cultura polifônica – construída por povos diversos,
em territórios distintos, que pluralizam a cidade – faz com que os chamados sejam orgânicos
e dinâmicos. Do contrário, a cura torna-se apenas um conceito.
Fico por aqui, considerando a possibilidade da ideia de que além de reflexões teóricas,
o compartilhamento de experiências concretas possa colaborar na construção de uma ação
contínua e transformadora, em diálogo com movimentos e realizações que tensionam e ques-
tionam as representações sociais e suas reverberações artísticas. Que tenhamos coragem
para buscar nossas curas e sensibilidade para reconhecê-las.
Os brancos costumam me perguntar por que, um dia, eu decidi pedir aos xamãs mais ve-
lhos de nossa casa que me dessem seus espíritos. Respondo que me tornei xamã como eles
para ser capaz de curar os meus (KOPENAWA; ALBERT: 2015, p. 175).
Referências:
218
219
Quando as práticas
artísticas deslocam
o sistema da arte:
220
curadoria,
teatro performativo
e festivais
Felipe de Assis
Mais do que apenas um “programador” ou
“apresentador” que viaja pelo mundo para escolher
trabalhos e remendá-los juntos, [o curador] é aquele
que questiona pressupostos preconcebidos que
formatam os trabalhos artísticos, assim como o seu
próprio papel na formulação desse discurso.
Curadoria
Nos últimos anos, o debate a respeito da curadoria em artes cênicas vem ganhando desta-
quee os festivais têm sido um ambiente favorável para observar algumas dessas experiências.
O surgimento de eventos e publicações dedicados ao tema evidencia uma preocupação em
221
contextualizar e conceituar esta atuação. Para avançar na discussão, nos parece pertinente
visitarmos o percurso da curadoria em artes visuais, linguagem que consolidou práticas, ama-
dureceu teorias e expandiu a função, a qual se deslocou em direção a outros campos.
Ao longo do século XX, as ebulições artísticas repercutiram diretamente no papel do cura-
dor. Primeiramente vinculado às instituições – sobretudo aos museus –, exercendo um papel
de cuidador e zelador do acervos (GROYS, 2013), o curador passou a ocupar gradativamente
uma posição mais central, “um papel mais proativo, criativo e político no desempenho da pro-
dução, mediação e divulgação da arte em si” (O’NEILL, 2012, p. 9).
Nesta breve visada histórica, destacamos os seguintes momentos: a contestação da
institucionalização da arte pelas vanguardas das primeiras décadas do século passado; a
atribuição da função de mediador ao curador a partir do final dos anos 1960; a tendência
do curador-autor do final dos anos 1980; e a consolidação de um discurso centrado no
curador na década de 1990.
Nos concentraremos nos anos 1960, quando a força dos movimentos das neovanguardas
– a exemplo da Arte Conceitual, Body Art, Pós-Minimalismo, Arte Povera, Happening e Per-
formance – irrompe no espaço expositivo. As experimentações dessa época distanciaram os
artistas do objeto e “desmaterializaram” a arte em ideias e conceitos; deslocaram papéis, com
os próprios artistas confundindo-se com os curadores. As exposições coletivas de curadoria
independente passaram a ser pensadas sob a lógica de projetos artísticos (CASTILLO, 2008).
Para estes eventos produziam-se obras inéditas, criadas especificamente para as ocasiões,
em um processo de organização e preparo envolvendo artistas e curadores para a exibição,
enfatizando a centralidade da apresentação da obra e sua função no espaço-tempo (O’NEILL,
2012). São exposições emblemáticas deste período: 557,0871 de Lucy Lippard, Happening &
Fluxus2 de Seth Siegelaub e Quando as atitudes se tornam forma: Trabalhos, Conceitos, Pro-
cessos, Situações, Informações de Harald Szeemann.
Teatro Performativo
Compreendendo que as transformações nas práticas artísticas repercutem diretamente no
papel do curador, interessa-nos uma proposta curatorial em artes cênicas mediadora, sintoni-
zada com as produções artísticas contemporâneas.
As artes da cena atuais, assim como o fizeram as artes visuais da década de 1960, promo-
vem práticas inovadoras capazes de produzir novos significados, valores e inter-relações. A
incidência radical que a prática da performance teve sobre a cena atual é objeto de análise da
pesquisadora Josette Féral (2015). Uma parcela significativa do teatro contemporâneo é de-
signada por ela sob o termo “teatro performativo”, cujo aspecto fundamental é a dimensão do
fazer, isto é, a valorização da ação em detrimento da representação – aproximando-se assim
do conceito de performatividade, desenvolvido no campo da linguística por Austin e Searle.
Trata-se, portanto, de um teatro tributário das inovações da performance (COHEN, 2002).
3 Em entrevista para Hans Ulrich Obrist a respeito de sua transição do teatro para as artes visuais, Harald Szee-
mann explicou: “Em 1955 [...] comecei a me afastar do trabalho coletivo, até fazer tudo sozinho, algo como um teatro de
um homem só, que refletia minha aspiração a concretizar a Gesamtkunstwerk” (OBRIST, 2010, p. 105)
Ainda que não seja possível compreender este tipo de teatro por meio de categorias fi-
xas, Féral (2015) identifica recorrências que apontam aspectos significativos desta produção:
acontecimento, presença, disponibilidade para o risco, estratificação de sentidos, valorização
dos processos, exploração de jogos que articulam realidade e ficção. Em acordo com as con-
tribuições de Fernandes (2013), destacamos o que a autora refere como “Teatros do Real”,
denominação que reúne trabalhos que problematizam a alteridade. Interessa-nos especifica-
mente o desenvolvimento de processos colaborativos, que colocam a participação/colabora-
ção no cerne das produções.
Estas transformações da cena estimulam “novas formas de apresentar, interpretar, progra-
mar, produzir, financiar e experienciar o trabalho [artístico]” (FERDMAN, 2014, p. 07). Ao deses-
tabilizar categorias e convenções, o Teatro Performativo parece demandar novas conexões,
enquadramentos e formatos para sua apresentação, isto é, um processo de contextualização
das obras para os diversos públicos. Neste sentido, caberia, portanto, ao curador-mediador:
acompanhar, compreender e dialogar com o artista e articular seus interesses; posicionar a
obra em relação à linguagem e comunicá-la; criar contextos para aproximar obras, artistas e
públicos e expandir experiências estéticas. Dito de outra maneira, o curador como um cola-
borador de seu tempo.
Atualmente, a curadoria em artes cênicas, assim como as obras, tem se apresentado com
práticas, metodologias e abordagens diversas. As novas formas de teatro e a cena internacio-
nalizada acentuam a necessidade de profissionais capazes de criar contextos para trabalhos
que geralmente escapam às estruturas convencionais, pois possuem uma “caligrafia artística”
que exige abordagens distintas, constituindo a comunicação dessas estéticas uma questão
premente (MALZACHER, 2010).
Festivais 223
Reconhecendo os festivais como ambiente de formação, criação, produção, difusão e,
sobretudo, como oportunidade para promover experiências, o curador-mediador-colaborador
pode construir, em corresponsabilidade com artistas, especialistas e públicos, os modos de
apresentação das obras ou projetos, a fim de promover ambientes de diálogo, potencializando
cadeias de tradução4. A produção destes sistemas interpretativos demanda presença, cola-
boração, abertura para o inesperado e, portanto, o risco, assim como o Teatro Performativo.
Tendo como referência o trabalho de Rancière (2012), o deslocamento da discussão da
emancipação do espectador para o campo da curadoria implica assumir a condição de igual-
dade entre curadores e demais sujeitos envolvidos em um processo curatorial. Trata-se de
reconhecer que a curadoria não é um saber dado pelo curador aos demais, mas sim a pro-
posição de um elemento que, com sua própria autonomia, produzirá estranhamentos a to-
dos os que com ele se relacionarem. Deste modo, problematizam-se as posições de poder
(dominação e sujeição), desestabilizando possíveis hierarquias para enfatizar a dimensão da
experiência que uma prática curatorial em festivais pode provocar.
Neste sentido, o FIAC Bahia tem se aproximado da noção de participação como uma con-
vocação ao engajamento direto em detrimento de esquemas de representação. Desde 2016,
a curadoria do festival tem sido realizada por um grupo gestor/curador composto pelas pes-
soas que constituem sua identidade ao longo dos anos: coordenações geral, administrativa,
técnica, logística e de atividades formativas, além da assessoria jurídica e de comunicação.
Com isso, pretende-se vivenciar a dimensão mediadora da curadoria desde a relação entre a
própria equipe até as atividades que compõem cada edição do festival, a exemplo do Semi-
nário Internacional de Curadoria e Mediação em Artes Cênicas, Ponto de Encontro, ações de
crítica, etc. Ou seja, uma prática curatorial que busca ser tão performativa quanto as práticas
artísticas com as quais dialoga.
4 A mediação compreendida não como condução a uma compreensão assertiva, mas à multiplicidade da
estratificação de sentidos (DARRAS, 2009).
É neste sentido que afirmamos que os festivais têm sido uma plataforma de experiências
que possibilitam ao curador se colocar como agente de transformação, operacionalizando
uma “negociação ágil entre a arte, o público, e o festival como instituição” (SELLAR, 2014,
p. 29). Nesta perspectiva, além de oferecer molduras ou enquadramentos, caberia à práti-
ca curatorial em artes cênicas sustentar uma indagação a ser compartilhada, e deste modo
questionar suas próprias convenções para dar lugar ao acontecimento, ou melhor, conjugar
realidades e ficções de si mesma para reinventar-se.
Referências:
ASSIS, Felipe de. Por uma prática curatorial mediadora e colaborativa em artes cênicas. 114f.
il. 2015. Dissertação (Mestrado) – Escolas de Dança e Teatro, Universidade Federal da Bahia, Sal-
vador, 2015.
CASTILLO, Sonia Salcedo Del. Cenário da arquitetura da arte: montagens e espaços de expo-
sições. São Paulo: Martins Editora, v. 1, 2008.
COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimen-
tação. São Paulo: Perspectiva, v. 1, 2002. 176 p.
DARRAS, Bernard. As várias acepções da cultura e seus efeitos sobre os processos de media-
ção cultural. In: BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane Galvão (ORGS.). Arte/ educação como
mediação cultural e social. São Paulo: Editora UNESP, v. 1, 2009. p. 23-52.
224 FÉRAL, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro. São Paulo: Perspectiva, v. 1, 2015.
FERDMAN, Bertie. From Content to Context: the Emergence of the Performance Curator. The-
ater, Durham, n. 44, p. 5-19, 2014.
FERNANDES, Silvia. O Teatro Contemporâneo. In: FARIA, João Roberto. (DIR.). História do
teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, v. 2, 2013. p. 492.
FIAC. Fiacbahia.com.br, 2016. Disponivel em: <http://www.fiacbahia.com.br>. Acesso em: 5
abr. 2017.
GROYS, Boris. Entering the Flow: Museum between Archive and Gesamtkunstwerk. E-fluxus,
8 nov. 2013. Disponivel em: <http://www.e-flux.com/journal/entering-the-flow-museum-between-
-archive-and-gesamtkunstwerk/>. Acesso em: 15 jun. 2015.
MALZACHER, Florian. Cause & Result: about a job with an unclear profile, aim and future. Frak-
cija curating performing arts, Zagreb, 1, n. 55, p.10-19, 2010.
O’NEILL, Paul. The Culture of Curating and the Curating of Culture(s). Cambridge: MIT Press,
2012.
OBRIST, Hans Ulrich. Uma breve história da curadoria. Tradução de Ana Resende. São Paulo:
Bei Comunicação, 2010. 304 p.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, v. 1, 2012.
SELLAR, Tom. The Curatorial Turn. Theater, Durham, n. 44, p. 20-29, 2014.
225
Palcos vazios,
apartamentos
apinhados
226
Curadoria
performativa
das artes
performáticas
F l o r i a n Ma l z a c h e r
O curatorial
Muitas mudanças de interesse relacionadas entre si ocorreram concomitantemente no
discurso artístico atual: o aumento da atenção dado pelas artes visuais à performatividade,
à coreografia e ao teatro. O novo foco da curadoria nas artes performativas, que enfatiza os
recursos específicos desta linguagem. E o que Claire Bishop influentemente descreveu como
“virada social”: a atenção crescente de artistas por práticas colaborativas e pela participação
do público, o que leva a uma arte “na qual as pessoas constituem o meio e material artístico
central, à maneira do teatro e da performance”.5
Todos esses aspectos entram em jogo quando tentamos descrever o curatorial nas artes
performativas: o “curatorial”, termo usado por eruditos como Irit Rogoff ou Beatrice von Bismar-
ck não é idêntico à tarefa da curadoria. Enquanto “curadoria” é algo amplamente visto como um
conjunto profissional de habilidades, atividades e práticas, usado para criar um produto (como
um evento, uma exposição, uma mostra, um festival), o curatorial é considerado por Beatrice
von Bismarck como algo mais amplo do qual as atividades da curadoria se nutrem: “Curadoria
é uma atividade de constelação. Ao combinar coisas que não haviam sido combinadas ante-
riormente – trabalhos de arte, artefatos, informações, pessoas, locais, contextos, recursos etc.
– ela não é definida apenas esteticamente, mas também social, econômica, institucional e dis-
cursivamente. Eu a entendo como sendo menos impulsionada pela representação do que pela
necessidade de tornar público”. Comparando-se a isto, “curatorial é o campo dinâmico onde a
condição constelacional se vivifica. Constitui-se pela reunião das técnicas de curadoria, junta-
mente com os participantes – as pessoas em si envolvidas, que potencialmente vêm de back-
grounds diferentes, têm diferentes prioridades e que se valem de experiências, conhecimentos,
disciplinas diferentes – e aliados, finalmente, às concepções materiais e discursivas, quer sejam
elas institucionais, disciplinares, regionais, raciais e de gênero”.6
A respeito da prática, Irit Rogoff enfatiza, com leve diferença, a pergunta sobre “como ins-
tanciar isso enquanto processo, como de fato não permitir que as coisas endureçam, e como
criar uma plataforma pública que permita às pessoas fazer parte de tais processos”.7
Um “campo dinâmico”, “um processo, como de fato não permitir que as coisas endure-
çam” – só essa descrição esclarece o quanto o conceito de curatorial é pensado como perfor-
mativo. E o quanto o medo de algo que possa parecer “completo” demais, como um “produto
finalizado”, já é parte constituinte de todas as artes ao vivo, em que a proximidade permanente
de falha, acaso, erros e – como já mencionado – perda de controle e concessões não são
vistas como falhas, mas antes como o cerne da linguagem do teatro: “O que é específico ao
teatro”, Heiner Müller costumava dizer, “não é a presença do ator vivente ou do espectador
vivente, mas sim a presença da pessoa que tem o potencial de morrer”.8
Muitos conceitos curatoriais nas artes cênicas, portanto, impelem o risco de falhas de 231
maneira a torná-lo tangível para a plateia e criar, desta forma, uma tensão especial de vivaci-
dade. Expandir o tempo pode ser um impulso (brincando com a força, a exaustão, o tédio, o
entusiasmo do corpo coletivo dos visitantes). A densidade ou a complexidade do espaço pode
ser outro. Mas também o confronto de trabalhos que possam não ser compatíveis à primeira
vista cria tensão e uma abertura por meio de seu atrito.
O teatro é o espaço onde as sociedades têm explorado seus próprios recursos, pro-
cedimentos, ideais e limites. O teatro é, tal como Hannah Arendt declara, “a arte política
por excelência; somente nele a esfera política é transposta em arte”.9 Tornando isso pro-
dutivo também na criação de um campo curatorial, chegamos ao conceito de agonismo
de Chantal Mouffe, um conceito político que objetiva mostrar diferentes posições na luta
e desacordos (em oposição, inclusive, ao conceito de Marx de materialismo que resultaria
sempre em uma sociedade harmônica). Ao utilizar o conceito de “pluralismo agonístico”,
Mouffe nos permite pensar a democracia de maneira diferente: não como um consenso
necessário e até mesmo possível, mas antes como sempre permitir que a possibilidade
de conflito surja. Democracia é a arena onde podemos legitimar essas diferenças. Assim
como o conceito de curatorial é pensado com performativo, o conceito de agonismo pa-
rece quase que parafrasear teatro. Não por acaso retirou sua nomenclatura de agón, jogo,
competição. Precisamos de um agonismo divertido (embora com frequência bastante sé-
rio) para impedir um antagonismo que aborte toda negociação positiva. Sem negligenciar
os problemas óbvios na transferência de um conceito de teoria política para o domínio da
estética: a ideia de curatorial, campo performativo que mantém as coisas fluindo e que
permite uma representação divertida (porém séria) das diferentes posições é a visão, tal-
vez levemente utópica, do que a curadoria nas artes performativas deveria almejar.
Espaço desafiadores
Teatro ainda é geralmente limitado a certos espaços exclusivamente reservados para sua
prática: proscênios e caixas pretas. Mas mesmo em arranjos mais convencionais, a consciên-
cia da especificidade do espaço pode produzir valor agregado artístico ou curatorial: Como a
plateia entra neste espaço? Quando a representação de fato começa? Na porta de entrada do
teatro? No foyer? No auditório? Faz diferença quando eu tenho que entrar por um lugar dife-
rente do habitual? Faz parte da representação ou é mero pragmatismo? Quais são as regras
do contrato teatral neste caso?
Mesmo espaços teatrais convencionais não são neutros. Por um lado, fornecem o equi-
pamento técnico necessário, protegem o trabalho de encontros indesejados com o entorno,
permitem a concentração, protegem a clareza artística etc. Por outro lado, esses espaços por
si só já definem amplamente o resultado possível. Eles não apenas se limitam em termos de
arquitetura, arranjos espaciais possíveis. Também representam determinada ideia de institui-
ção, formada principalmente ao final do século XVIII, início do século XIX. Suas estruturas ine-
rentes não somente reproduzem determinadas convenções do que o teatro deva ser como re-
produzem determinada imagem de sociedade. Emolduram e frequentemente atenuam visões
artísticas e também políticas. É, portanto, sem surpresa que vemos muitos projetos curatoriais
no campo de teatro desejarem abandonar esses espaços pré-determinados ou tentar desafiá-
-los (como fez deufert&plischke com o B-Visible).
A empolgação em relação aos trabalhos site specific desde a metade dos anos 1990
colocou um foco especial no espaço, ao abandonar os teatros e ocupar locais suposta-
mente não artísticos, buscando algo autêntico ou desejando contradizer o aparentemente
autêntico. Esse movimento para dentro da cidade (e frequentemente para a periferia da
cidade, para áreas industriais vazias, ruínas parciais de fábricas, locais amplos de arma-
zenamento...) está bastante conectado com o desejo pelo real. É isso que está por trás de
todos os elementos do chamado teatro documentário, que somente alguns anos depois se
232 tornou extremamente popular, mas que também cabe na lógica da gentrificação, ao ocupar,
simbolicamente ao menos, espaços antes reservados para outros.
Usar áreas designadas ao teatro contra tendências ou mesmo abandoná-las não somente
desafia a instituição, mas também o trabalho artístico em si, mostrando as limitações assim
como as possibilidades do gênero como tal. As condições de trabalho ficam confusas ou
mesmo árduas, o acaso pode assumir o controle, a plateia precisa ser organizada de maneira
diferente, as possibilidades técnicas são limitadas. Trabalhos site specific não podem somente
transferir a lógica de um teatro para outra situação espacial. Deve ser mais do que uma mera
reação à situação, uma resposta pragmática que lida com desvantagens ou adapta plane-
jamentos iniciais o quanto necessário. O trabalho ganha ímpeto quando se adapta à lógica
das circunstâncias, estimula-as ou as contradiz propositadamente. Deve ser responsivo ao
contexto e fazer do espaço como tal (e não somente uma parte limitada dele na forma de um
cenário, por exemplo) parte de sua forma e conteúdo – mas não por rendição: a obediência
em relação ao espaço facilmente cria tédio – quando a narrativa, a atmosfera, o movimento, o
espaço etc. se aproximam um do outro, pode resultar simplesmente num atalho semântico – e
toda tensão artística se esvai.
Apartamentos e estádios
Um dos mais famosos projetos curatoriais site specific em artes performativas, X Apart-
ments, de Matthias Lilienthal, dramaturgo alemão e diretor-fundador do influente HAU – He-
bbel am Ufer Berlin, tem, na verdade, um predecessor ainda mais famoso. Para a exibição
icônica Chambres d’Amis (Quarto de Hóspedes) de 1986, o curador Jan Hoet convenceu mais
de 50 habitantes da cidade de Gante a permitir que os artistas trabalhassem com e em seus
apartamentos. Seu conceito de “deslocamento”, que mais tarde também foi utilizado na Do-
cumenta 9, almeja as mudanças de percepção que ocorrem quando algo é vivenciado num
contexto pouco habitual. Ele retirou a arte dos espaços exclusivos das galerias aos quais é
geralmente confinada: “Eu me incomodo com a ideia de que a arte esteja aqui e a realidade
ali, separadas”.10 Cada artista (entre eles Joseph Kosuth, Sol LeWitt e Mario Merz) usou um ou
dois quartos para criar uma obra que refletisse o entorno. Visto que eram apartamentos em
uso, os encontros e as discussões com os proprietários eram parte integrante do conceito.
Embora Chambres d’Amis apresentasse exclusivamente obras de artes visuais, criou efetiva-
mente sua própria performatividade acionando a imaginação dos visitantes: os trajetos entre os
apartamentos permitiram narrativas e dramaturgias individuais muito diversas, e os ambientes
privados nos apartamentos estavam tão abertos à interpretação como as obras de arte em si.
Matthias Lilienthal valorizou este aspecto anos mais tarde com os X-Apartments, basica-
mente encomendando a diretores de teatro, coreógrafos, artistas (entre eles Fatih Akin, Pawel
Althamer, andcompany&Co., Herbert Fritsch, Heiner Goebbels, Jonathan Meese, Peaches,
raumlaborberlin, Meg Stuart, Anna Viebrock, Barbara Weber, Krysztof Warlikowski etc.) que
inventassem pequenas performances dentro dos diferentes apartamentos.11 Ao introduzir
uma estrutura de tempo (a plateia assiste a cada pequena apresentação nos apartamentos e
depois passeia até a chegada do próximo grupo), ele coletiviza a experiência do visitante. Não
apenas os diferentes “locais” em si, mas também os corpos se movendo de lugar para lugar
fazem parte desta experiência que é mais do que a soma das apresentações. X-Apartments
brinca com o espírito de uma expedição, conecta a plateia, arbitrariamente reunida e mistu-
rada e que talvez não se conheça previamente. No melhor dos casos essas pequenas cenas,
intervenções, instalações criam sua própria fantasia sobre os apartamentos, seu uso, seus
moradores. Estendem cenários “reais” para o campo da imaginação ou abordagens docu-
mentais de estrutura artística. As sequências menos bem sucedidas, por outro lado, tendem
a cair na armadilha de voyeurismo inerente ou então confiam principalmente na fetichização e
exotização da vida dos membros de outros grupos ou classes sociais.
Enquanto a quantidade de apartamentos, o extraordinário no ordinário, a mudança da
percepção em relação aos cenários de todos os dias são peças-chave de X Apartments, a 233
curadora polonesa Joanna Warsza escolheu um local com poder simbólico para seu projeto
Finissage of Stadium X (2006–2008): o Estádio do décimo aniversário de Varsóvia que foi
construído em 1955 dos destroços da capital polonesa arruinada pela guerra. O estádio repre-
sentava a ideia de comunismo e de uma nova Polônia. No entanto, por volta de meados dos
anos 1980, foi abandonado e se tornou ele mesmo uma ruína moderna. Novo fluxo de vida foi
infundido por comerciantes vietnamitas e russos que o assumiram como pioneiros do recém-
-chegado capitalismo. O estádio, dessa forma, tornou-se o mercado a céu aberto Jarmark
Europa, a única localidade multicultural da cidade, um reino de informalidade e vendas com
desconto, assim como um paraíso e campo de trabalho para botânicos.
A heterogeneidade do local, a comunidade vietnamita geralmente invisível, os debates em tor-
no do novo estádio nacional construído para a Eurocopa de 2012, e a falta de debate crítico sobre
o legado da arquitetura polonesa do pós-guerra, inspiraram os três anos de Finissage of Stadium
X. Incluía uma caminhada acústica pelo setor vietnamita (Uma Viagem para a Ásia, 2006), Boniek!,
uma apresentação solo de um homem reencenando o legendário jogo de futebol Polônia-Bélgica
de 1982, por Massimo Furlan (2007), ou a transmissão da Radio Stadion por Radio Simulador e
backyardradio (2008). Excursões subjetivas para o estádio que já não existia foram guiadas por
artistas e ativistas. Neste projeto, o local em si era o principal protagonista, não somente a mera ar-
quitetura, mas também o papel simbólico que ela teve para Varsóvia (e por isso mesmo constituía-
-se quase em uma metáfora das mudanças pelas quais a Polônia passou).
Exposições ao vivo
Fugir aos espaços altamente determinados e simbolicamente carregados de teatro pode
significar acabar em espaços ainda mais determinados e simbolicamente carregados: os
cubos brancos de museus e galerias. O aumento de interesse em todos os tipos de “expo-
sições ao vivo” nos últimos anos tem muitas razões, algumas profanas, como a de tentar
adentrar outros mercados ou outros discursos com prestígio aparentemente maior. Mas para
a maioria dos artistas e curadores a motivação inicial ainda é parecida com a ideia de Hoet de
“deslocamento”. Ao mudar o arcabouço institucional, estético e arquitetônico, as coordena-
das da percepção e reflexão também mudam.
O curador Hans Ulrich Obrist foi por muitos anos um dos principais protagonistas da inte-
gração de aspectos performativos a exposições de artes visuais. Desde 1990, tem colaborado
com coreógrafos como Meg Stuart e Xavier Le Roy15, e mais tarde produziu muitos espetácu-
los tendo como base o tempo, como Il Tempo del Postino em 2007 (junto com Philippe Parre-
no).16 Tino Sehgal é de longe o artista contemporâneo mais conhecido que insere arte ao vivo
em museus e galerias, produz seu trabalho no limite entre coreografia e artes visuais. Muitas
de suas reflexões sobre representação são compartilhadas por Xavier Le Roy, que colaborou
com ele, por exemplo, em Project (2003). Em 2012, Le Roy mostrou sua exposição ao vivo Re-
trospective pela primeira vez. Foi uma “exposição concebida como uma coreografia de ações
a serem conduzidas pelos atores durante a mostra”.17 Le Roy utiliza o formato e o gênero da
retrospectiva para revisitar o material de suas coreografias solo, deixando os atores recriarem
suas próprias memórias e histórias conectadas a eles. E enfatiza o conceito de tempo ao pro-
duzir atritos entre diferentes experiências de tempo reunidas: a envergadura de tempo dessa
obra revisitada, o tempo gasto por cada visitante, o tempo de trabalho dos atores e a duração
de toda a exposição, o que cria, com suas mudanças permanentes, uma dramaturgia própria.
Retrospective “compõe-se de situações que questionam as várias experiências de como usa-
mos, consumimos e produzimos o tempo”.18
Mas enquanto em Retrospective o tempo é uma consideração essencial, em muitas ou-
tras exposições ao vivo ele parece mais um acessório: por mais que Obrist enfatize verbal-
mente seu interesse pela duração, observando-se cuidadosamente suas curadorias basea-
das no tempo, o potencial real do “ao vivo” parece negligenciado: em 11 Rooms19 (cocura-
doria com Klaus Biesenbach), por exemplo, trata-se de uma exposição onde onze trabalhos
de arte ao vivo são colocados em onze cubos brancos: as performances são claramente
estruturadas como trabalhos de arte, como objetos em uma exposição um tanto quanto
antiquada. As performances duram o dia inteiro durante a duração da exposição. Mas as
convenções para assisti-las não são desafiadas. Talvez o tempo em que se assiste a elas
seja mais longo do que a média infame de 30 segundos dedicada a cada trabalho de arte
na maioria das exposições, mas não há interesse em criar uma experiência de duração no
visitante, nem mesmo uma experiência de duração do performer, a mudança de seu corpo,
sua atitude etc. É temporal, porque é isso que o formato clássico da exposição requer. Para
Obrist e muitos dos artistas com quem ele trabalha, o principal interesse é substituir objetos
por pessoas – e não desenvolver trabalhos de arte que consistem em pessoas. A abordagem
é (com algumas exceções) na maior parte escultural ou espacial: o material é o ser humano.
Ou como Obrist mesmo diz: 11 Rooms é “como uma galeria de esculturas onde todas as
esculturas vão para casa às 18 horas”.20
Conhecimento performativo
Se curadoria performativa entende a si mesma como a criação de situações sociais estrutura-
das no espaço e tempo, então produção e troca de conhecimento são questões fundamentais – e
podem ser encontradas em muitos dos projetos já mencionados como sendo seu objetivo principal.
Também expo zéro (desde 2009) de Boris Charmatz entra nesta categoria: como parte de
seu Musée de la danse, é criado como uma exposição, uma mostra viva, dançante, falante
– e um intercâmbio permanente. Especialistas de diferentes áreas – coreógrafos, escritores,
artistas, diretores, teóricos, artistas plásticos, arquitetos – primeiro passam quatro dias jun-
tos numa espécie de think tank e, em seguida, abre-se o espaço para o público, movimen-
tos, pensamentos, palavras presentes... e se envolvem uns com os outros em comunicações
verbais e não verbais. O que cabe em um Musée de la danse? Pensar o museu significa ao
mesmo tempo criá-lo – um museu de dança só pode ser efêmero (o “zero” do título se refere
à ausência de objetos).
Go create™ resistance (2002- 2005), de Matthias von Hartz, não era um museu, mas um
tipo diferente de espaço público. Ele desenvolveu uma série de sessões noturnas centradas
em arte e ativismo na Schauspielhaus de Hamburgo, um dos redutos da cultura burguesa. Ou
o Dicionário da Guerra (2006-2007)24, plataforma colaborativa para a criação de cem conceitos
sobre o tema da guerra. Durante quatro eventos de dois dias em Frankfurt, Munique, Berlim e
Graz, cientistas, artistas, teóricos e profissionais apresentaram suas entradas para o dicionário
com palestras, performances, filmes, apresentações de slides, leituras, concertos em rígida
ordem alfabética como discurso da maratona. De armas do tipo ABC à população civil, da
invasão de paraquedas a ocorrências em campo, batata a danos colaterais, guerra informáti-
ca à vigilância por radar, e saudades de casa à resistência. Todas as entradas foram filmadas
e enviadas para um dicionário em vídeo que, mais tarde, foi ampliado com contribuições de
outras cidades.25
Talvez mais conhecidas no campo de projetos de conhecimento artístico e curatorial são
as instalações para distribuição de conhecimento de Hannah Hurtzig: em seu trabalho, teoria
e práxis, conteúdo e forma são dificilmente separáveis. The Kiosk for Useful Knowledge (O
Quiosque para o Conhecimento Útil), por exemplo – um formato que ela originalmente conce-
beu em conjunto com o curador Anselm Francke –, é uma “construção de espaços públicos
experimentando com novos formatos narrativos para a produção e mediação de conhecimen-
to”26. Conhecimento profissional e discursos teóricos encontram narrativas pessoais; a distri-
buição de conhecimento torna-se apreensível para um público que é ao mesmo tempo voyeur
e testemunha de uma conversa quase íntima: dois protagonistas trocam conhecimentos na
forma de narrativa pessoal, de que só podemos participar de forma mediada pela imagem e
som transmitidos. Um princípio que é multiplicado no Blackmarket for Useful Knowldege and
Non-Knowledge (Mercado Negro para Conhecimento Útil e Não Conhecimento), uma instala-
ção para cinquenta a cem especialistas em pequenas mesas. Aqui, todo mundo pode comprar
meia hora de conhecimento íntimo especializado de cientistas, artistas, cabeleireiros, carto-
mantes por um euro: fatos, experiências, autoajuda ou simplesmente percepções em áreas
de conhecimento completamente desconhecidas – o conhecimento está sempre conectado
à pessoa que o está transmitindo. E à maneira como ele está sendo transmitido. Em todas as
suas instalações do conhecimento, Hannah Hurtzig enfatiza o caráter performativo da troca
de conhecimento.27
(Endnotes)
1
B-Visible, curadoria dos coreógrafos Kattrin Deufert e Thomas Plischke, junto com o drama-
turgo Jeroen Peeters, apresentado no Kunstencentrum Vooruit, Gante/Bélgica em novembro
de 2002.
2
Nicolas Bourriaud, crítico de arte, cunhou o termo “relational aesthetics” (estética relacional)
referindo-se a isso no final dos anos 90.
3
OBRIST, Hans Ulrich. Diaghilev é o curador mais importante do século 20. In: MALZACHER,
Florian; TUPAJIA, Tea; ZANKI, Petra (Eds.). Curating Performing Arts. Zagreb: Frakcija Perfor-
ming Arts Journal: 2010, p. 44.
4
Para uma reflexão mais ampla sobre as diferentes condições da curadoria nas artes visuais e
cênicas, assim como para critérios, relação com o mercado etc., veja também: MALZACHER,
Florian. Cause & Result. About a job with an unclear profile, aim and future. In: MALZACHER,
Florian; TUPAJIA, Tea; ZANKI, Petra (Eds.). Curating Performing Arts. Zagreb: Frakcija Perfor-
ming Arts Journal: 2010, p. 10–19.
5
BISHOP, Claire. Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship. London /
New York: Verso, 2012, p. 2.
6
BISMARCK, Beatrice von; ROGOFF, Irit. A conversation between Irit Rogoff and Beatrice von
Bismarck. In: BISMARCK, Beatrice von.; SCHAFAFF, Jörn; WESKI, Thomas (Eds.). Cultures of
the Curatorial. Sternberg Press: Berlin, 2012, p. 24–25.
7
BISMARCK, Beatrice von; ROGOFF, Irit. A conversation between Irit Rogoff and Beatrice von
Bismarck. In: BISMARCK, Beatrice von.; SCHAFAFF, Jörn; WESKI, Thomas (Eds.). Cultures of
238 the Curatorial. Sternberg Press: Berlin, 2012, p. 23.
8
Heiner Müller conversando com Alexander Kluge: http://muller-kluge.library.cornell.edu/en/
video_transcript.php?f=121
9
ARENDT, Hannah The Human Condition. University of Chicago Press, 1989, p. 188.
10
Avant-Garde Art Show Adorns Belgian Homes. The New York Times. 19 ago. 1986.
11
Criado inicialmente para o festival Theater der Welt em 2002 em Duisburg, o formato se
mostrou tão exitoso e adaptável que desde então novas versões ocorreram em cidades como
Berlim, Caracas, Varsóvia, Viena, São Paulo, Joanesburgo ou Istanbul, muitas vezes com dife-
rentes cocuradores e colaboradores.
12
http://international-festival.org/node/3
13
http://international-festival.org/node/4
14
http://international-festival.org/node/56
15
P.e. In Laboratorium (curadoria com Barbara Vanderlinden), Antuérpia, 1999.
16
Espetáculo temporal com Liam Gillick, Tino Seghal, Tacita Dean, Carsten Höller, Olafur Elias-
son, Dominique Gonzalez-Foerster e outros.
17
http://www.xavierleroy.com/page.php?sp=2d6b21a02b428a09f2ebd3d6cbaf2f6be1e3848d
&lg=en
18
http://www.xavierleroy.com/page.php?sp=2d6b21a02b428a09f2ebd3d6cbaf2f6be1e3848d
&lg=e
19
O projeto foi exibido como 11 Rooms no Festival Internacional de Manchester em julho de
2011 com trabalhos de Marina Abramović, John Baldessari, Allora e Calzadilla, Simon Fu-
jiwara, Joan Jonas, Laura Lima, Roman Ondák, Lucy Raven, Tino Sehgal, Santiago Sierra, Xu
Zhen. Edições posteriores ocorreram na Ruhrtriennale, Essen/Alemanha (12 Rooms, 2012),
nos Public Art Projects, Sydney/Austrália (13 Rooms, 2013), no Art Basel, Basel/Suíça (14
Rooms, 2014). Para cada edição, a lista de artistas era parcialmente modificada.
20
http://www.mif.co.uk/event/11-rooms
21
LEHMANN, Hans-Thies. Shakespeare’s Grin. Remarks on World Theatre with Forced Enter-
tainment. In: HELMER, Judith; MALZACHER, Florian. (EDS.) “Not Even A Game Anymore”: The
Theatre of Forced Entertainment.Berlim: Alexander Verlag, 2004, p. 114.
22
Truth is concrete. Um acampamento-maratona de 24 horas, 7 dias por semana, sobre estra-
tégias artísticas em política e estratégias políticas em arte. Steirischer herbst, Graz/Áustria de
21 a 28 de setembro de 2012. Curadoria de Anne Faucheret, Veronica Kaup-Hasler, Kira Kirsch
e Florian Malzacher (ideia e conceito).
23
Há obviamente outros exemplos muito bons do uso do tempo como método curatorial: P.e.
Unendlicher Spaß de Matthias Lilienthal (Berlim, 2012, a partir do romance Infinite Jest de Da-
vid Foster Wallace) enfatizou a duração assim como a especificidade do local: o público seguia
por 24 horas, de uma cena para a outra, parcialmente a pé (principalmente dentro do terreno
de uma grande área esportiva), parcialmente de ônibus pela pátina da antiga Berlim ocidental.
A abordagem oposta – encurtar a duração das performances ao mínimo – foi utilizada no pro-
jeto de Tom Stromberg para a Documenta X (1997): Theaterskizzen (Sketches de teatro) reduziu
o tempo de cada apresentação para poucos minutos e, assim, reduziu as possibilidades de
dramaturgias convencionais; tarefa que praticamente apenas Stefan Pucher e Gob Squad com
15 minutos conseguiram cumprir e realizar de forma convincente. Ainda mais curtos são os es-
paços que a organização Creative Time de Nova York – dedicada à arte em espaços públicos
– oferece em seus encontros anuais: apenas oito minutos para cada artista, teórico, ativista.
24
Dictionary of War teve curadoria do coletivo de curadores Unfriendly Takeover, em conjunto
com o coletivo de ativistas Multitude e.V. www.dictionaryofwar.org.
25
Outros projetos dedicados à ideia de produção de conhecimento e intercâmbio foram, por
exemplo, as diferentes conferências e oficinas Spielfeldforschung (Playing field research) con-
cebidas para o festival Steirischer Herbst, entre 2006 e 2010, em que a teoria foi confrontada
com diferentes formatos de arte. Novos formatos que reuniram teoria e prática artística ao
nível do olhar e da proximidade foram desenvolvidos, como por exemplo, Walks in Progress 239
(2006), que caminhava pela cidade bem como pelo programa do festival. Este conceito foi
mais desenvolvido posteriormente em Walking Conferences (2007 e 2008 – com curadoria
de Florian Malzacher e Gesa Ziemer). Ou International Summer Academy no centro cultural
Mousonturm em Frankfurt – com curadoria de Thomas Frank (2004), Florian Malzacher (2002
e 2004), Christine Peters (2002), Mårten Spångberg (2002 e 2004) – que convidou os anfitriões
do workshop bem como todos os colaboradores a se confrontarem com os convidados com
quem não tinham ainda trabalhado junto, ou ainda melhor: com quem sempre desejaram co-
nhecer. E entregar a eles parte do programa. Com este conceito – inspirado no conceito de
Hans Ulrich Obrist de “convidar por convidar” – eles se colocaram – ao menos em relação a
esta incerteza – no mesmo nível dos demais colaboradores. O mesmo ocorreu com os cura-
dores: uma vez que o convite foi delegado a algum convidado, a própria influência de cada
um foi reduzida.
26
http://www.kiosk-berlin.de
27
Ver também: MALZACHER, Florian; ZIEMER, Gesa. Das Lachen der anderen. Doing Theory.
In: Herbst. Theorie zur Praxis (1) 2006.
Bibliografia
Websites
www.dictionaryofwar.org
www.international-festival.org/node/3
www.international-festival.org/node/4
www.international-festival.org/node/56
www.kiosk-berlin.de
www.mif.co.uk/event/11-rooms
www.muller-kluge.library.cornell.edu/en/video_transcript.php?f=121
www.xavierleroy.com/page.php?sp=2d6b21a02b428a09f2ebd3d6cbaf2f6be1e3848d&lg=e
240
241
Nenhum
órganon
a seguir:
242
possibilidades
do teatro
político hoje
F l o r i a n Ma l z a c h e r
P
essoas gritam umas com as outras, os rostos vermelhos. Outros tentam permanecer cal-
mos enquanto convencem espectadores da ameaça de estrangeiros tomarem seu país.
Como a Áustria está isolada contra o resto do mundo. Um velho quase chora ao sacudir 243
seu jornal em cuja capa se lê a mesma discussão em letras garrafais. Alguns turistas coreanos
assistem ao estranho espetáculo sem noção do que ocorre.
Quinze anos atrás, quando o dramaturgo alemão Christoph Schlingensief montou, bem no
centro de Viena, seu contêiner-instalação, o hoje legendário Bitte liebt Österreich! (Por favor,
Ame a Áustria!, 2000), o chanceler Wolfgang Schüssel havia acabado de fazer seu pacto com
o diabo, aliando-se ao demagogo direitista Jörg Haider, e os demais países da Comunidade
Europeia discutiam sanções contra o estado membro. A Áustria debateu fervorosamente sobre
a política de imigração, assim como sobre os limites da arte. E a Europa assistiu desnorteada.
Levantando o estandarte de “Ausländer raus” (“Fora estrangeiros!”), Schlingensief encenou
com os que solicitavam asilo um jogo do tipo Big Brother. Os contêineres abrigavam um grupo
de imigrantes que podia ser visto pela CCTV via Internet, e a população da Áustria foi convidada
a determinar, por meio do voto, aqueles que sairiam do país, um a um. O escândalo foi enorme:
os conservadores se sentiram insultados pela aparente paródia de sua argumentação e a es-
querda reprovou o jogo como uma supostamente cínica demonstração.
Se o teatro político só pode existir num contexto no qual se crê num mundo mutável, no
qual o teatro deseja ser parte desta mudança e o público está disposto a se engajar ativamente
na exploração do que deva ser essa mudança – então se torna claro por que é tão difícil pen-
sar neste teatro atualmente, em uma sociedade paralisada pelos sintomas de ideologias pós-
-políticas que tendem a se disfarçar em pragmatismo positivista, resignação lacrimosa ou com-
placência otimista. Quando o credo “Não há alternativa’ [gerando o acróstico TINA, do inglês
‘There Is No Alternative’ (NdT)] é considerado senso comum e a crença no caráter possível ou
mesmo desejável de imaginação política está esmorecendo, o teatro é atingido em seu âmago.
Todo seu potencial político parece invalidado.
Foi uma época diferente durante os anos 1970 e 1980, quando teatro político na Europa era de
fato (de maneiras diferentes em cada um dos lados do Muro de Berlim) um fator relevante em muitos
debates públicos. Com ideologias ainda muito fortes e a divisão entre o lado oriental e ocidental
muito bem definida, o teatro engajou-se na política diária representando todas as misérias do mundo
– da guerra do Vietnã ou o apartheid na África do Sul a pequenas adversidades diárias de uma família
da classe operária local. Quer em novas peças, quer em clássicos modernizados, interpretações ra-
dicais do texto eram a característica principal de um Regietheater (teatro de diretor), que, a despeito
de suas múltiplas abordagens, permanecia na maioria do tempo no reino do mimético. No lado leste,
era um jogo com mensagens veladas, no oeste, provocações abertas eram parte importante do re-
pertório, e o público batendo as portas ao sair antes do fim era mais regra do que exceção.
Não é de se espantar que grandes frações do público ainda considerem esse período qua-
se um sinônimo para “teatro político”. Mas mesmo que o teatro durante esse período fosse
frequentemente capaz de proporcionar uma compreensão das razões estruturais por detrás
dos males apresentados, não podia evitar o dilema de que, ao final, suas representações eram
somente mais uma repetição das mesmas misérias que desejava combater. Brecht denominou
este fenômeno “Menschenfresserdramatik” (“arte de dramaturgia canibal”), que ele descreve no
início dos anos 1930 em suas anotações intituladas Die dialektische Dramatik: “A exploração
física dos pobres é seguida por uma de cunho psicológico”, quando o personagem miserável
deve supostamente produzir sentimentos de tristeza, culpa ou mesmo raiva no espectador, que
provavelmente – pelo menos estruturalmente – ajuda a manter vivo este mesmo sistema de
exploração. Ao final, eles continuam o que Brecht já analisara em seu Pequeno órganon para
o teatro (1949): “O teatro que conhecemos mostra a estrutura da sociedade (representada no
palco) como incapaz de ser influenciada pela sociedade (na plateia).” Não somente a peça no
palco, mas toda a montagem teatral (sem mencionar as hierarquias dentro da instituição em si)
meramente reproduz o sistema que deseja criticar.
Nos anos 1980 e especificamente no início dos 1990, novas formas de teatro emergiram
244 com o objetivo de não somente reformar os modelos predominantes, mas revolucioná-los,
partindo de fora das instituições e tradições do teatro estabelecidas. Teatro pós-dramático,
teatro colaborativo, performance teatral – há muitos rótulos para este gênero ainda difícil de
definir devido à variedade de formas e sobreposições com outras disciplinas artísticas. No
centro da crítica ao teatro dramático está o seu uso como representação mimética distancia-
da, vista como desacreditada e subsequentemente confrontada com a questão da presen-
ça. Em intercâmbio íntimo com seus pares do emergente movimento da dança conceitual,
os criadores de teatro trouxeram ao palco trabalhos extremamente autoconscientes, que se
autoquestionam continuamente como produtos de ideologias, políticas, tempos, modismos
e circunstâncias. Fortemente inspirado em teorias desconstrutivistas e pós-estruturalistas,
oferecem uma nova complexidade de significantes de teatro revoltando-se contra a hege-
monia do texto, minando a linearidade e a causalidade do drama e experimentando com
todas as possibilidades do ato de assistir e participar. Em vez de se representar uma situa-
ção (falsa) para criticá-la, o objetivo foi criar uma situação (real) na copresença do público,
focalizando o aqui e agora da experiência, como o alemão Hans-Thies Lehmann, estudioso
de teatro, descreve em Teatro pós-dramático (1999):
Em contraste com outras artes, que produzem um objeto e/ou são comunicadas por meio de
uma linguagem, aqui, o ato estético em si (a encenação) assim como o ato de recepção (o ir ao
teatro) ocorrem como um fazer real no aqui e agora. […] A emissão e a recepção de signos e
sinais ocorrem simultaneamente.
Este foco na linguagem e na forma do teatro em si, a descrença no conteúdo narrativo e
na causalidade psicológica, e o interesse na criação de experiências individuais em que cada
membro da plateia tem de descobrir seu próprio caminho de interpretação, tiveram também
um impacto no conceito do potencial político do teatro. O efeito político do teatro era agora
primordialmente buscado no “como” de sua representação, não nos seus conteúdos políticos
concretos. Filósofos como Jacques Rancière ofereceram uma base teórica mais ampla para
repensar a linguagem teatral e a noção de performatividade ao analisar A partilha do sensível:
estética e política (2005), destacando-se O espectador emancipado (2012).
Foi um momento importante de empoderamento dos espectadores como coautores de sua
própria experiência, mas teve um significativo efeito colateral: o público passou a ser visto me-
nos como um coletivo possível e mais como um agrupamento de pessoas. Teatro pós-dramá-
tico e dança conceitual — mais uma vez ecoando as mudanças na sociedade — formaram um
espectador que, ao emancipar-se da força da imaginação do diretor, assemelha-se ao sujeito
neoliberal ideal que busca seu individualismo no consumo ativo.
A reação resultante do teatro pós-dramático e da dança conceitual para o uso frequente-
mente simplista e moralista de noções como verdade, realidade ou mesmo política, em um jogo
complexo de camadas, ambiguidades e requestionamentos, deu lugar a novas perspectivas e
possibilidades que também caminharam longe no campo do teatro dramático. Mas construindo
sobre as reflexões de filósofos que retiraram seus conceitos teóricos de suas próprias experi-
ências e engajamentos políticos (Michel Foucault lutando pelos direitos humanos em prisões
com o Groupe d’information sur les prisons, Alain Badiou engajando-se em políticas de asilo e
migração na Organization politique, Jacques Rancière como membro temporário de um grupo
maoísta, para mencionar apenas alguns), a nova geração de pensadores, artistas e curadores
com muita frequência esqueceu-se de vincular seu pensamento, ainda mais abstrato, de volta
à própria realidade contemporânea e concreta. Como resultado, ficamos acostumados demais
a chamar teorias filosóficas e performances de “políticas”, mesmo que sejam apenas muito
remotamente baseadas em pensamentos, já estes abstratos em relação aos impulsos políticos
concretos que os desencadearam. Uma ideia homeopática, de segunda mão sobre filosofia e
arte políticas tornou-se a linha principal do discurso cultural contemporâneo.
O que se vê é uma linha tênue entre a consciência necessária de que tudo é contingencial e
a pura preguiça. Complexidade pode se tornar uma desculpa para relativismo intelectual e po-
lítico. Os escritos de Rancière, especificamente, têm sido usados como argumentos principais 245
de lados muito diferentes – seu ceticismo em relação a qualquer declaração claramente política
em arte e sua valorização do poder da ambiguidade e da ruptura como sendo as verdadeiras
virtudes da arte ajudaram a abrir o caminho para definições amplas do que seja o político. Ao
final, se tudo é político, nada mais é político.
Afinal, onde estamos hoje? Como pode o teatro ainda criar esferas nas quais alternativas
possam ser imaginadas, testadas, discutidas e confrontadas coletivamente? Como o teatro
pode criar modelos alternativos de como podemos viver juntos, ou do tipo de sociedade ou
mundo que desejamos? Um olhar sobre o cenário das artes performativas contemporâneas
mostra um forte desejo por um teatro que não apenas se foque em questões políticas premen-
tes, mas que também se torne um espaço político – uma esfera pública – em si. Não há um
órganon comum a seguir. Estamos num período de experimentação, de procura – artistas e
público da mesma maneira. Mas há fragmentos suficientes (às vezes até mesmo grandes bo-
cados) de trabalho artístico e engajamento político que nos permitem supor o potencial de um
teatro engajado novamente. Um teatro que mantenha a autorreflexão necessária das décadas
passadas, mas evite as armadilhas da pura autorreferencialidade. Isso compreende o contin-
gencial não como algo meramente arbitrário e uma desculpa para o relativismo, mas como um
chamado para um engajamento ativo que contrabalanceie suas consequências.
*
Quando suas calças estão literalmente grudadas ao seu assento do teatro em uma Serata
Futurista (saraus organizados pelos futuristas italianos a partir de 1910 que uniam teatro, pintu-
ra, música e, frequentemente, piadas), esse tipo de participação pode não ser particularmente
desejável. Mas embora a participação – nas artes e na política – nem sempre seja agradável,
a crença de que o indivíduo pode participar na formação da sociedade é uma necessidade
da democracia. Por outro lado, a participação putativa com a qual somos permanentemente
confrontados dentro de um sistema capitalista totalmente inclusivo (que – diferentemente da
previsão de Marx – tem sido, até agora, capaz de absorver suas contradições internas por afir-
mação) fez com que o termo se tornasse quase inútil: um pacificador que perversamente delega
a responsabilidade pelo que está acontecendo para os cidadãos que não o podem influenciar,
permitindo, desta forma, que o sistema continue mais ou menos inalterado em sua tarefa de se
manter. Eleições raras, assistência social básica, algumas pequenas medidas contra mudanças
climáticas e contra violações dos direitos humanos aqui e acolá, e nossa consciência se satis-
faz. O filósofo Slavoj Žižek chama tal procedimento de capitalismo cultural.
O teatro chamado de participativo com muita frequência meramente imita tal envolvimento-
-placebo; oferece não apenas escolhas falsas e estipuladas, mas também força o público a se
engajar nesta montagem transparente. Este é o verdadeiro “pesadelo de participação” (para
usar um termo de Markus Mießen): não o ser forçado a participar, mas ser forçado a uma par-
ticipação forjada. Um envolvimento permanente (que basicamente significa que somos ativos
apenas no sentido de que somos consumidores) ao qual não podemos fugir e que meramente
nos impede de participar dos poderes reais. Passividade disfarçada de atividade. A plateia da
Serenata Futurista compreendeu que: para eles a provocação que vinha do palco – a participa-
ção imposta sobre eles – era um convite à batalha real. E muitos o aceitaram.
Um teatro político contemporâneo tem que se colocar bem no meio desse dilema: não
somente evitando uma participação falsa, mas, ao mesmo tempo, reivindicando a ideia da
participação em si. Uma participação que prospera – na política e na arte – em seu potencial
radical. Uma participação que não simplesmente substitua uma forma de tutelagem por
outra. Tal envolvimento não tem de ocorrer necessariamente com o consenso das pessoas
envolvidas. Ele também pode objetivar um confronto direto e pode fazer experimentos com
falhas na comunicação e mesmo calúnias.
Uma vez que, em suma, arte participativa é – na definição de Claire Bishop em Artificial
Hells (2012) – uma arte “na qual as pessoas constituem a forma e o material artístico central, à
246 maneira do teatro e da performance”, ele pode constituir toda uma gama de relações humanas
possíveis. O artista Pablo Helguera, em seu livro Education for Socially Engaged Art (2011),
traça a diferença entre participação não voluntária (sem negociação ou acordo envolvidos),
voluntária (com um acordo claro ou até mesmo um contrato), e involuntária – sendo as nego-
ciações nesta última muito sutis, não diretas, um jogo de intenções ocultas no qual “ludíbrio e
sedução têm papel central”. Essas categorias de participação podem se deslocar e misturar,
obviamente. Manter uma falta de clareza sobre elas pode ser uma ferramenta artística útil,
assim como muitos dos trabalhos iniciais de Christoph Schlingensief nos mostram. Não foi
somente em Bitte liebt Österreich! que o status dos participantes permaneceu dúbio, uma vez
que nunca ficou oficialmente resolvido se eles eram requerentes de asilo reais ou atores nem
se haviam compreendido integralmente o jogo que estavam jogando. Ambivalência compará-
vel pode ser encontrada em seu trabalho com atores com deficiência, pelo qual Schlingensief
foi regularmente acusado de maus-tratos.
De uma maneira diferente, tais ambiguidades também são a estratégia chave da compa-
nhia israelense Public Movement. Interessada nos rituais e coreografias da política, ela joga
o complexo jogo da participação e representação ao tentar, por exemplo, selecionar ativis-
tas de esquerda assim como neonazistas e a polícia alemã para a reencenação dos motins
de primeiro de maio em Berlim no First of May Riots (2010). Ao final, todos os três grupos
desistiram e o projeto teve de ser realizado de forma diferente. Analogamente, sua tentativa
em 2011 não conseguiu convencer uma fraternidade de direita na cidade austríaca de Graz
a realizar publicamente uma de suas celebrações secretas. A linha que a Public Movement
caminha pode frequentemente ser muito tênue, mas o projeto político e artístico real, em
muitos casos, já acontece durante a preparação de tais trabalhos, por exemplo, quando
inimigos políticos extremos se encontram e tentam, em conversas difíceis, encontrar uma
base comum para o confronto direto.
Participação real implica abrir mão de responsabilidade e poder. As Lehrstücke de Brecht
(“‘Peças didáticas”’) foram representadas pelo próprio público, a classe trabalhadora. O ence-
nador brasileiro Augusto Boal não apenas seguiu essa ideia em seu Teatro do oprimido, mas
ainda entregou a responsabilidade pelo desenvolvimento da performance aos “espect-atores”’
(espectadores que durante a encenação transformaram-se em atores).
O projeto contínuo (desde 2014) da diretora de teatro holandesa Lote van den Berg intitula-
do Building Conversation almeja reduzir ainda mais o teatro para seu âmago. Para ela, teatro é
primeiramente um lugar de comunicação, de encontrar-se com os outros, uma esfera onde os
conflitos podem ser apresentados e vivenciados. Um acordo para se comunicar obedecendo,
com frequência, a regras muito diferentes. E Building Conversation trata exatamente apenas
disto: conversar com o outro. Inspirado em técnicas de comunicação do mundo inteiro, mo-
delos e molduras para diálogos são desenvolvidos. Não há atores, não há público. Apenas o
convite para participar de uma conversa sem palavras, inspirada nas assembleias esquimós,
ou alternando entre reflexão, retiro e diálogo, seguindo um método inventado pelos jesuítas.
Outra conversa acontece completamente sem moderador, tópico ou objetivo – um princípio de-
senvolvido pelo físico quântico David Bohm, explorando os padrões de nosso pensar coletivo.
Building Conversation é diretamente influenciado pela filósofa política belga Chantal Mouffe e
seu conceito de “pluralismo agonístico”, e uma das conversas é dedicada à sua teoria.
Uma esfera do pluralismo agonístico também é criada por um dos projetos de arte partici-
pativa mais politicamente radicais dos últimos anos. O New World Summit (2012 em diante),
inventado e organizado pelo artista holandês Jonas Staal. Nele, espaços políticos alternativos
são abertos na forma de convenções quase parlamentares de representantes de organizações
que são excluídas do discurso democrático por serem categorizadas como terroristas. Essas
reuniões de cúpula oferecem momentos intensos e tocantes nos quais vozes que são silencia-
das em outros lugares podem ser ouvidas e uma ideia radical de democracia aparece no hori-
zonte. No entanto, elas também produzem momentos de um forte sentimento de perturbação,
desavença e mesmo ódio, uma vez que tais organizações não foram obviamente escolhidas por 247
critérios politicamente corretos. Algumas aparentam ter mais facilmente a empatia da plateia
– por exemplo, o movimento feminino curdo –, enquanto outras causas parecem inaceitáveis,
como, por exemplo, quando se referem a nacionalismos, violência, patriarcado e hierarquias em
muitas batalhas por independência. O New World Summit acolhe muitas organizações diferen-
tes; não há aconselhamento dado ao público sobre como julgá-las ou se relacionar com elas. A
única clareza vem na crítica a democracias ocidentais que baseiam sua existência em formas
não democráticas, sigilosas e frequentemente – mesmo por seus próprios padrões – ilegais de
excluir aquilo que não se encaixa em seu próprio esquema. Como Claire Bishop apontou em
seu ensaio “Antagonism and Relational Aesthetics” (2004): a participação deve criar mais um
senso de “perturbação e desconforto do que de pertencimento”. Tratar todos os envolvidos
como “sujeito(s) de pensamento independente é o pré-requisito essencial para ação política.”
Não é por acaso que Staal com frequência escolhe promover o New World Summit em
teatros — espaços onde tudo o que ocorre é real e não real, é simultaneamente concreto e
abstrato, e nos quais a diferença entre presença e representação está sempre em jogo. Aqui as
coisas podem ser mostradas e ditas de uma forma que não se encontra em outro lugar, e onde
a imaginação radical é, em raros momentos, ainda possível.
*
A questão da participação está necessariamente conectada à questão da representação.
Todos participando no teatro – como ator, performer, espect-ator ou plateia – também são au-
tomaticamente vistos como representantes de uma comunidade maior, caracterizada por cor,
sexo, classe, profissão e assim por diante. Portanto, as perguntas que atualmente perturbam
todas as democracias – quem está sendo representado, de que forma, por quem e com que
direito? – são espelhadas no teatro: pode um ator burguês representar um refugiado? Pode o
Ocidente representar o Sul global? Pode um homem representar uma mulher? A representação
de clichês coloniais desmascara ou é somente a repetição de um insulto degradante? O pro-
blema abordado por discussões recentes sobre o “black-face” e questões semelhantes é muito
mais profundo do que o questionamento do direito e habilidade de um ator branco ao interpretar
um personagem de cor. Esses desafios são política e artisticamente complexos. Eles vão certa-
mente sobreviver a debates de curto prazo sobre o politicamente correto e ocupar o teatro por
longo tempo uma vez que ecoam argumentos fundamentais sobre a necessidade, eficiência e
retidão da representação dentro da democracia em geral.
O teatro pós-dramático nos anos 1990 e início dos anos 2000 buscou soluções para esse
problema de maneiras diferentes. Diretores como René Pollesch e coletivos como Gob Squad
ou She She Pop rejeitaram a arrogância de falar sobre os outros focalizando subjetivamente
seu próprio, pequeno, mas influente ambiente social específico de uma nova classe média glo-
balizada, urbana, branca, criativa e semiprecária. Outros se voltam a formas mais documentais
e abrem o palco para a autorrepresentação dos “especialistas de todos os dias” como o trio
de diretores Rimini Protokoll lendariamente chama seus intérpretes. Trabalhando quase que
exclusivamente com “pessoas reais” – ou seja, não atores – Rimini Protokoll desenvolveu ao
longo dos anos uma dramaturgia do cuidado muito específica, atendendo às demandas de seus
intérpretes assim como aos objetivos artísticos da representação.
No entanto, mudanças rápidas pelo globo também destacaram os limites destas aborda-
gens em que o respeito pelo “outro” tem frequentemente se transformado em fetichização ou
em egocentrismo da crença de que o mundo seja nossa própria sala de estar. Criadores teatrais
como Monika Gintersdorfer e Knut Klaßen, por conseguinte, buscam novas formas de entregar
o palco a seus colaboradores africanos ao redefinir permanentemente sua própria função como
diretores. O conceito de “chefferie” (gerente de projeto) não apenas dá título a um de seus traba-
lhos, mas também serve como metáfora de como trabalhar juntos na medida em que descreve
um modelo político e administrativo do encontro entre muitos chefes de status semelhante que
248 foi praticado antes da colonização da África subsaariana e que continua a existir hoje em para-
lelo às instituições oficiais do governo.
Em contrapartida, o Swiss Theater Hora – uma das companhias mais famosas com atores
com deficiências cognitivas – parece, à primeira vista, ainda oferecer a seus diretores posições
autorais bem clássicas. No entanto, num segundo olhar, fica claro que a resistência dos artistas,
sua personalidade forte e muitas vezes imprevisível solapa permanentemente este modelo de
trabalho. Como diretor convidado, o coreógrafo francês Jérôme Bel encenou o ambivalente
Disabled Theater (2012) com muita clareza. Por um lado, suas ordens rígidas eram anunciadas
durante a apresentação no palco e destacadas na hierarquia da produção. Por outro, os intér-
pretes cumpriam suas tarefas da forma que desejassem (e às vezes não as realizavam). Como
Bel destacou, não eram os intérpretes que tinham deficiências, mas a plateia que se sentia
incomodada olhando para eles.
Ao final, é assim no teatro como na sociedade: apenas tentativas de pluralismo vão funcio-
nar. Grupos de pessoas que haviam sido amplamente não representados (ou representados por
outros) têm de entrar nos palcos de nossos teatros. E não somente nos palcos, mas também
nas posições de criadores teatrais e plateias. Se o teatro é realmente a esfera onde as práticas
sociais podem ser experimentadas ou inventadas em uma escala pequena, esta é uma das
tarefas mais urgentes.
*
Tanto quanto o teatro pode ser um lugar de imaginação coletiva e colaborativa, ele também
sempre foi um meio de mostrar conflitos e oposições entre ideias, poderes, nações, gerações,
casais ou mesmo dentro da psique de um único ator. Diferentes formas de realismo aguça-
ram esse aspecto do teatro focando nas contradições internas da sociedade. O teatro dialé-
tico de Brecht observava os diferentes aspectos das lutas concretas que permitiam à plateia
compreender como elas foram criadas pelo sistema no qual viviam em vez de simplesmente
identificar-se com uma posição. Seguindo Marx, o teatro de Brecht era movido pela crença de
que quando a luta de classes fosse finalmente vencida, uma sociedade comunista harmônica
seria criada. Filósofos posteriores como Jürgen Habermas e John Rawls tentaram – de manei-
ras diferentes – salvar o ideal de uma sociedade consensual, acreditando que a racionalidade
incentivaria a humanidade a superar seus interesses individuais. Mas nós não somos seres
racionais, a emoção sempre terá um papel, como Chantal Mouffe enfatiza no The Democratic
Paradox (2000): “Enquanto desejarmos um final para o conflito, se quisermos que as pessoas
sejam livres, devemos sempre permitir a possibilidade de o conflito surgir e prover a arena onde
as diferenças possam ser confrontadas.”
O conceito de Mouffe de “pluralismo agonístico”, portanto, objetiva a democracia como uma
arena na qual podemos representar nossas diferenças como adversários sem ter que reconciliá-
-las. Numa época em que o ditado “Quem não está conosco, está contra nós”, que outrora fazia
as pessoas franzirem a testa com estranhamento, renasce em todos os lados do espectro políti-
co, precisamos de agonismos brincalhões (mas sérios) nos quais as contradições não somente
são mantidas vivas, mas, acima de tudo, podem ser livremente articuladas. Apenas dessa forma
podemos impedir um antagonismo que aborte toda negociação. Não é por acaso que o con-
ceito de Mouffe pegou seu nome do teatro, de “agón”, que significa o jogo, a competição de
argumentos na tragédia grega.
Enquanto alguns dos trabalhos do diretor de teatro suíço Milo Rau fiam-se no choque muito
bem trabalhado e no realismo profundo, sua encenação de julgamentos políticos parece ser um
compêndio de exemplos fiéis de um teatro agonístico. The Moscow Trials, de 2013, apresentou
uma montagem teatral na qual três casos legais traumáticos contra artistas e curadores russos
foram novamente levados frente ao juiz, mas desta vez no âmbito artístico. Protagonistas dos
julgamentos atuais assim como pessoas com laços próximos a elas confrontavam-se de ma-
neira artificial, mas, ao mesmo tempo, numa situação altamente realística. Curadores, artistas e
críticos lutavam por liberdade artística por um lado, moderadores de TV conservadores, ativistas
ortodoxos e sacerdotes, do outro. Por três dias, o Centro Sakharov em Moscou tornou-se um 249
espaço agonístico, no qual opiniões radicalmente diferentes eram trocadas de tal forma que não
seria possível fora dali.
Como Mouffe sugere, o espaço público é o “campo de batalha” para a luta agonística entre
projetos hegemônicos opostos. Em uma pequena escala, o teatro pode criar tais esferas de
troca aberta, mesmo em sociedades em que há pouca liberdade de expressão ou nas demo-
cracias ocidentais nas quais o espaço entre consenso e antagonismo está se tornando cada vez
mais estreito. Arte – usando a diferenciação do teórico de arte Miwon Kwon — não dentro de um
espaço público, mas como espaço público pode ser uma das contribuições mais importantes
que o teatro tem a oferecer. Esse espaço público não se limita ao espaço físico e material da
apresentação. Assim como os julgamentos iniciados por Milo Rau foram eventos únicos com
uma plateia bastante limitada, eles estenderam seu palco para o âmbito das notícias e outras
mídias, em que discussões sobre política e arte continuaram.
Enquanto o outrora corrente instrumento crítico de escândalos mediados – uma característi-
ca essencial da arte política, especialmente na segunda metade do século XX – parece ter ficado
desdentado devido à sua previsibilidade, ele às vezes ainda consegue quebrar a rotina. O diretor
croata Oliver Frljić é um dos protagonistas de uma abordagem neoescandalizadora, e cria, re-
gularmente, calorosos debates na Croácia, Sérvia ou Eslovênia, onde ele rotineiramente coloca
seu dedo nas feridas da crise de identidade pós-iugoslava. Esse método não funciona em todos
os lugares; na Alemanha, por exemplo, o trabalho de Frljić é considerado controverso, mas não
notoriamente perturbador em termos emocionais. Escândalos desenvolvem seu potencial onde
as linhas de demarcação dentro de uma sociedade precisam se tornar visíveis e/ou onde há uma
necessidade de se encontrar aliados por meio da concentração em suas próprias tropas.
Manipular a mídia de massa com o objetivo de disseminar uma mensagem o mais ampla-
mente possível é o domínio do grupo norte-americano Yes Men. Sua estratégia é primeiramente
chegar às manchetes dos noticiários com uma notícia falsa, mas que desarma, e depois chegar
ao noticiário novamente revelando a traquinagem. Em 2004, o grupo recebeu muito destaque
quando conseguiu aparecer no noticiário da BBC no papel do porta-voz da Dow Chemical,
quando do vigésimo aniversário da catástrofe de Bhopal. O falso representante (encenado por
Yes Man Andy Bichlbaum) anunciou que sua empresa poderia finalmente assumir a plena res-
ponsabilidade pelo desastre e indenizar suas milhares de vítimas. A posterior revelação de sua
identidade real estimulou o debate público sobre o escândalo no mundo inteiro.
Também para o Zentrum für politische Schönheit (Centro de Beleza Política), localizado em
Berlim, a batalha real está nas manchetes de jornais, assim como nos noticiários de TV, Face-
book e Twitter. Em 2012 eles ofereceram um prêmio de 25 mil euros para quaisquer informações
que levassem à condenação de um dos donos da fábrica produtora de armas Krauss-Mafei
Wegmann. Como o setor armamentista não é punível, o grupo procurou outra infração possível.
A verdadeira denúncia, no entanto, foi uma série de pôsteres e um site com os nomes dos do-
nos da empresa, à maneira dos antigos retratos de procura-se, como no velho Oeste. Essa am-
bivalência artisticamente produtiva, mas eticamente desafiadora, avançou ainda mais quando o
Zentrum für politische Schönheit roubou as cruzes do memorial dos mortos no Muro de Berlim
para trazê-las – supostamente – para fora das fronteiras da União Europeia, e assim criar uma
conexão com as vítimas das fronteiras de hoje. Em sua ação mais recente e mais controversa
até o momento, Die Toten Kommen (Os mortos chegaram), o Zentrum für politische Schönheit
resgatou o cadáver de um refugiado sírio de 34 anos que morreu afogado na costa gelada da
fronteira da Sicília e o enterrou em um túmulo em Berlim.
A virada social das artes traz à tona as mesmas questões que acompanham todas as ini-
ciativas socialmente motivadas: até que ponto as pessoas envolvidas são autodeterminadas?
Quanto tempo um compromisso deve durar? Quem está lucrando com isso? É sustentável?
Logo fica claro que tais questões nem sempre têm as mesmas respostas quando consideradas
sob o ponto de vista da arte, ou do ativismo, ou mesmo do trabalho social.
250 *
Não somente os criadores de teatro inspiram-se nos vários movimentos políticos dos últimos
anos e tentam trazer algo de seu impulso para sua arte, mas, também, vice-versa: performance,
ações performáticas e teatro já há muito fazem parte do repertório criativo do ativismo. O fórum e
o teatro invisível de Boal permanecem uma inspiração para aqueles que trazem as performances
para as ruas, e inspiram à distância iniciativas como o Clandestine Insurgent Rebel Clown Army,
em Londres, como estratégia para acalmar o enfrentamento com a polícia. Como John Jordan, um
de seus fundadores, descreve em Truth is Concrete (2014): “Armados com o deboche e o amor
e usando táticas de confusão em vez de enfrentamento, algumas ações notáveis do Clown Army
ocorreram quando 70 fortes bandos de palhaços caminharam por uma fila de policiais antimotim
no Reino Unido que, estranhamente, não conseguiu manter sua fila. Depois, observando as to-
madas de vídeo deste evento, pode-se ver que por detrás de seus visores, os guardas estavam
rindo tanto que não conseguiam se concentrar.” Do agitprop ao teatro terapêutico, performance
enquanto “arte útil” tem tido um papel importante nas lutas políticas e sociais.
Menos explícitos são os vários movimentos teatrais como Occupy, como o famoso “micro-
fone humano”, que requer de todos os presentes a repetição de pensamentos e argumentos
com que podem não concordar, antes mesmo de serem capazes de reagir. Todos estão presen-
tes neste ato de fala a um só tempo individual e coletivo. As assembleias em si – o coração do
movimento Occupy – também são performáticas por natureza. Sua imaginação política esteve
sempre também no físico, e sempre interpretada, como a filósofa Judith Butler descreveu em
sua fala no Occupy Wall Street (2011):
Importa que como corpos nós cheguemos juntos em público, que nos reunamos em público; que
nos encontremos como corpos em aliança na rua e na praça. Como corpos, nós sofremos, neces-
sitamos de abrigo e comida, e como corpos necessitamos uns dos outros, e desejamos uns aos
outros. Então, essa é uma política do corpo público, as necessidades do seu corpo, seu movimen-
to e sua voz […] Nós sentamos e nos levantamos e nos movimentamos e falamos, da forma como
podemos, como a vontade popular, aquela que a democracia eleitoral esqueceu e abandonou.
Mas nós estamos aqui, e permanecemos aqui, enunciando a frase, “nós, as pessoas”.
Mas apesar de todas as sobreposições, a relação entre arte e ativismo permanece uma
relação complexa. Assim como artistas rejeitam a noção de abrir mão de complexidade e ambi-
guidade, os ativistas são, da mesma forma, afastados pelo papel tradicional dos artistas como
criadores especialmente dotados ou mesmo autores solitários – e ainda mais pelo mercado ou
instituições às quais eles geralmente pertencem.
No âmago do ativismo está o conceito de ação direta: uma ação com o objetivo muito con-
creto de apontar um problema, mostrando uma alternativa ou mesmo uma solução possível. O
“direto” aponta para a ideia de uma ação não mediada – em resumo, a hora para conversar e
negociar acabou, ou pelo menos está suspensa. Ação direta é o oposto de hesitação e ambiva-
lência. A reflexão – até certo ponto – é adiada. Nesse sentido, a ação direta talvez seja percebida
como o momento em que o ativismo está mais distante da arte.
Por outro lado, também existe um momento em que a representação adquire impulso e há
um ponto sem volta. Onde tudo diz respeito ao aqui e agora. Nesse sentido, a ação direta talvez
seja o momento em que a arte está mais próxima do ativismo. Muitos momentos radicais da arte
ao vivo podem muito bem ser considerados ações diretas.
Seja como for, ações diretas não são, em geral, espontâneas; elas são com frequência me-
ticulosamente preparadas, mapeadas e encenadas. São planejadas como uma ação militar, ou
como peça de arte performática. As ativistas russas do Pussy Riot, para pegar um exemplo fa-
moso, não somente marcharam dentro da Catedral de Cristo Salvador e espontaneamente de-
cidiram o que fazer. Elas escolheram o cenário cuidadosamente, ensaiando texto e movimentos.
Os infláveis inventados pelo coletivo Tools for Action servem como meio de resolver mo-
mentos tensos e potencialmente violentos, ou, em caso de haver falha, como escudo contra
canhões de água. Ao mesmo tempo, eles são chamativos para a mídia cobrindo a manifesta-
ção. Mas, acima de tudo, eles tendem a criar situações performáticas, frequentemente teatrais: 251
numa manifestação na Espanha, um cubo inflável gigante foi lançado em direção à polícia e,
num primeiro momento, o batalhão armado composto de 20 policiais antimotim recuou, e então
avançou novamente. O cubo se moveu para frente e para trás algumas vezes até que a polícia
finalmente conseguiu se livrar daquela coisa.
*
Eliminar a diferença entre apresentação e representação pode ter sido, como declara o
teórico de arte Boris Groys, o objetivo de grande parte da arte radical do século XX e continua
sendo um sonho para alguns ativistas e artistas. Mas o teatro politicamente engajado oferece
uma possibilidade mais complexa e necessária que consiste em erradicar a diferença e analisá-
-la ao mesmo tempo. Ele não cria uma artificialidade fora da criticalidade pura, nem tampouco
tem de seduzir em identificação apolítica. Teatro é o espaço onde as coisas são reais e não reais
ao mesmo tempo. Onde podemos nos observar de fora enquanto somos parte da performance.
É um paradoxo que cria situações e práticas que são simbólicas e atuais ao mesmo tempo.
Afinal, como Žižek realçou em sua fala no Occupy Wall Street: hoje é, na verdade, mais fácil
imaginar o fim do mundo (como muitos campeões de bilheteria de Hollywood já o fizeram) do
que o fim do capitalismo. Num momento e num sistema em que perdemos – como ele sugere –
até mesmo “o idioma para articular a nossa não liberdade”, a imaginação radical nos lembra de
que ainda existe a possibilidade de agir.
Notas e
perguntas para
252 uma prática
da curadoria
teatral
Kil Abreu
O ser é o que exige de nós criação
para que dele tenhamos experiência.
Merleau-Ponty
1 Para um histórico da curadoria e da curadoria em teatro no Brasil, e sobre as distinções entre curador-autor
e curador-mediador, ver ASSIS (2015).
diferenças, se observarmos as produções regionais? O que o elemento de regionalidade tem
oferecido em termos de distinção em relação aos modelos hegemônicos de linguagem? De
outro modo: o que é que o teatro brasileiro, nas condições dadas, está performando não só
em termos de invenção, de novidade, mas também nos termos da tradição?
Em outra frente, a dos fatores mais marcadamente externos: independente da novidade formal,
que elementos da sociabilidade neste Brasil da aporia, cunhados na criação cênica, têm interes-
se para o trabalho curatorial, a ponto de indicarem campos de pensamento visíveis, prontos para
aqueles arranjos, aquelas “formalizações intencionadas”? Quais os modos próprios de criação e
produção teatral no Brasil atual e sua relação com o precário panorama de uma esperada política de
fomento às artes? Se levarmos em consideração que os fatores que constrangem a criação em ter-
mos de produção surgem amarrados às questões de fundo sobre as quais o pensamento curatorial
se orienta, a insuficiência dos meios tem consequências também para o trabalho curatorial?
Propomos então que aquelas ótimas expressões usadas por Malzacher a partir de uma
percepção geral do trabalho do curador (“amplo contexto”, “experiência coletiva”, “campo
vasto da comunicação performativa”) possam ser visitadas nos terrenos específicos da lingua-
gem e das operações de fruição, como ele propõe; e também, decididamente, que possam ser
utilizadas como princípio para o fomento de uma concepção de curadoria cujo contorno é de-
senhado com o lápis de uma experiência em que a linguagem se enraíza em chão próprio, não
genérico. Uma concepção que não tome como acidente o fato de que nos jogos de linguagem
está implicada uma sociabilidade com dinâmicas, materiais e impasses particulares. Em que,
portanto, os elementos a serem performados – os estéticos bem como os conjunturais – têm
condições de existência singulares. Para lembrar uma anotação importante de Marvin Carlson
sobre as relações entre performance e política (ele refere-se a perguntas lançadas por Dwight
Conquergood): quais são as consequências de se pensar a cultura “como invenção performa-
tiva que se desenrola, ao invés de um sistema reificador? [...] Como a performance reproduz, 255
permite, naturaliza; ou desafia, subverte, critica a ideologia?” (CARLSON, 2010).
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foto federica campanaro
DIÁLOGOS
COM
FESTIVAIS
Festival Internacional
de Buenos Aires - FIBA
Apresentação do espetáculo País Clandestino na MITsp
265
SPIELART Festival
Projeto AudioReflex: três obras sonoras já foram criadas
no Stadtmuseum, em Munique, e apresentadas durante
o SPIELART, em outubro de 2017. Agora, três audio tours
serão criados para o Museu da Imigração, em São Paulo, e
apresentados durante a MITsp
Festival Panorama
Performance Você Tem Um Minuto Para Ouvir A Palavra?,
idealizada e realizada pela primeira vez no Festival Panorama,
no mês de dezembro de 2017, no Rio de Janeiro, e agora na MITsp 2018
PUBLICAÇÃO
ESPECIAL
Editores:
Patrícia Cividanes e Ruy Filho
Resenhistas:
Ana Carolina Marinho, Marcio Tito e Maria Teresa Cruz
N
esses cinco anos da MITsp, a revista Antro Positivo tem apresentado
propostas à mostra, acompanhado e refletido sobre espetáculos, en- 267
contros e debates por meio de dispositivos críticos performativos, por
entender ser necessário ir além dos recursos tradicionais da retórica analítica
argumentativa, construindo meios de acessar a programação em sua plenitu-
de e vivenciá-la mais verticalmente. Algo que só é possível no âmbito de uma
parceria, pela qual a escuta se faz generosa aos dilemas, ângulos, encanta-
mentos, às diferenças, e cumplicidades. Em 2018, como revista especial da
MITsp, a publicação será mutante, escrita e atualizada diariamente incluindo a
cidade e suas especificidades, as dinâmicas estéticas entre os espetáculos e
as circunstâncias que revelam sobre o fazer artístico, as reflexões paralelas e
seus desdobramentos simbólicos. Foi durante as quatro primeiras edições da
MITsp que a revista iniciou ações como a Crítica Performativa, o micro semi-
nário Estado de Crítica, o Diário Sensível, pelo qual transpôs para imagens
as recepções dos espetáculos, e o Antro Dentro, que acompanha desde o
processo de criação às apresentações do espetáculo. Agora, a revista ergue
uma cartografia sensível e dialógica, observando a complexidade e urgência
do momento para, por meio do diálogo, do encontro e do convívio, voltar-se
ao outro redimensionando o instante ao mais efetivo de uma Política de Afeto.
A Antro Positivo junta-se à MITsp com o intuito de afetar e afetar-se, portanto.
Volta-se à afetuosidade como invento de insurreições poéticas.
268
foto pixabay
C o
l a
b o
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r a
d o
r e s
minibiografias
Equipe Editorial Guilherme Marques é produtor, gestor cultural e
ator. É diretor-geral e idealizador do Centro Interna-
Antonio Araújo é diretor artístico do Teatro da Ver- cional de Teatro Ecum - CIT Ecum, coordenador-ge-
tigem e professor no Departamento de Artes Cêni- ral do Encontro Mundial das Artes Cênicas (ECUM)
cas e no Programa de Pós-Graduação (PPGAC) da e do Centro Internacional de Pesquisa sobre a For-
Escola de Comunicações e Artes da Universidade mação em Artes Cênicas. Fez coordenação, pro-
de São Paulo (ECA-USP). Encenou os seguintes es- dução e/ou consultoria artística para diversos festi-
petáculos: O Paraíso Perdido (1992); O Livro de Jó vais artísticos nacionais e internacionais, entre eles:
(1995); Apocalipse 1,11 (2000); BR-3 (2006); História Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo
de Amor: últimos capítulos (2007); a ópera Dido e Horizonte (FIT/BH); Festival Internacional de Dança
Enéas (2008); Bom Retiro 958 Metros (2012), a ópera de Belo Horizonte (FID); 1ª Bienal Internacional de
Orfeo e Euridice (2012), Dire Ce Qu’on ne Pense pas Grafite de Belo Horizonte; Festival de Arte Negra de
270 Dans des Langues Qu’on ne Parle Pas (2014); Patro- Belo Horizonte (FAN); Festival Internacional de Te-
nato 999 Metros (2015), entre outros. Ganhador do atro do Mercosul (Argentina); Festival Internacional
prêmio Golden Medal (Medalha de Ouro) de Melhor de Teatro de Caracas (Venezuela); Inverno Cultural
Espetáculo para a peça BR-3 na Quadrienal de Pra- de São João del Rei; Projeto Imagem dos Povos e
ga 2011. Foi cocurador do Próximo Ato - Encontro Encontro de Artes Cênicas em Araxá. É idealizador
Internacional de Teatro Contemporâneo; do Rumos e diretor de produção da MITsp.
Teatro e do Encontro Mundial de Artes Cênicas
(ECUM). É idealizador e diretor artístico da MITsp. Luciana Eastwood Romagnolli é jornalista, pesqui-
sadora e crítica de teatro. Fundadora e editora do
Daniele Avila Small é doutoranda em Artes Cênicas site Horizonte da Cena. Especialista em Literatura
pela UNIRIO, Mestra em História Social da Cultura Dramática e Teatro (UTFPR), mestre em Artes (EBA-
pela PUC-Rio e Bacharel em Teoria do Teatro pela -UFMG) e doutoranda em Artes Cênicas (ECA-USP).
UNIRIO. Autora do livro O crítico ignorante – uma ne- Integra a Associação Internacional de Críticos de
gociação teórica meio complicada (Editora 7Letras, Teatro (IACT-AICT), afiliada à UNESCO. Foi repórter
2015). Ao lado de Felipe Vidal, foi diretora artística do nos jornais O Tempo (MG) e Gazeta do Povo (PR) e
Teatro Gláucio Gill, na Ocupação Complexo Duplo, supervisora editorial da MITsp em 2015 e 2016. Foi
de 2011 a 2012. Foi também indicada aos Prêmios curadora da ocupação Conexões na Funarte-MG
Shell e APTR na categoria especial. É idealizadora e em 2015, da 1ª Mostra DocumentaCena e do Idio-
editora da revista Questão de Crítica, integra o co- mas - Fórum Ibero-Americano de Crítica de Teatro,
letivo Complexo Duplo e a DocumentaCena – Pla- ambos em Curitiba, em 2016. É coordenadora de
taforma de Crítica. É presidente da seção brasileira crítica do Janela de Dramaturgia (BH). Curadora dos
da Associação Internacional de Críticos de Teatro Olhares Críticos da MITsp em 2017 e 2018.
(AICT-IATC), afiliada à UNESCO, e editora regional
no Brasil do site The Theatre Times. Curadora dos Maria Fernanda Vomero é doutoranda em Pe-
Olhares Críticos da MITsp 2018. dagogia do Teatro pela Universidade de São
Paulo (USP), com uma investigação sobre teatro, Christiane Jatahy, lançado pela editora Cobo-
resistência política e direitos humanos. Em seu gó. Foi diretora de arte nas editoras Abril, Trip e
mestrado, dedicou-se ao estudo de um grupo Globo entre 2006 e 2014. Atualmente, é diretora
de teatro palestino no contexto da opressão e de arte no estúdio de design Patrícia Cividanes,
ocupação político-militar israelense. Gradua- especializado em projetos gráficos para artes
da em Comunicação Social com habilitação em plásticas, teatro, cinema e música.
Jornalismo pela USP, tem especialização em do-
cumentários pela Escuela Internacional de Cine Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisa-
y Televisión de San Antonio de Los Baños, em dora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela
Cuba, e pela Universitat Autónoma de Barcelona, Universidade de São Paulo (USP), graduada em
na Espanha. Desde 2014, atua como provocado- Jornalismo pela Universidade Federal de Pernam-
ra artística na Companhia de Teatro Heliópolis, buco (UFPE) e em Administração pela Universida-
em São Paulo. É curadora das atividades peda- de de Pernambuco (UPE). Idealizadora e editora 271
gógicas da MITsp desde a segunda edição (na do blog Satisfeita, Yolanda?, criado há sete anos,
primeira, atuou como pesquisadora convidada especializado em críticas e notícias de artes cê-
da residência artística desenvolvida), e também nicas. É editora da Revista Aspas, vinculada ao
participou de debates e rodas de conversa em programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
diversos momentos do festival. É criadora e intér- da ECA-USP. Integra a DocumentaCena - Plata-
prete da palestra-performance Palavra de Poder, forma de Crítica e a Associação Internacional de
Poder da Palavra (Power Word, Word Power). Críticos de Teatro (IACT-AICT), afiliada à UNESCO.
Atua ainda como assessora de imprensa na área
Patrícia Cividanes é artista gráfica e fotógrafa. de cultura. Há cinco anos responde pela assesso-
Idealizadora e editora da revista Antro Positivo, ria de imprensa dos Doutores da Alegria no Recife.
publicação sobre artes cênicas e pensamento Desde 2017 é responsável pela edição e redação
contemporâneo desde 2011. É responsável pela do conteúdo editorial da MITsp.
identidade visual e projeto gráfico da MITsp. Foi
artista residente na Cité Internationale des Arts, Silvia Fernandes é professora titular do Departa-
em Paris, e indicada ao Prêmio Sergio Motta mento de Artes Cênicas da ECA-USP e do Pro-
de Artes e Novas Mídias. Expôs seus trabalhos grama de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
em São Paulo, França e Turquia. Em 2017 rea- mesma escola. É pesquisadora do CNPq e coedi-
lizou a curadoria da exposição 3+8 no Centro tora da revista Sala Preta, periódico do programa.
da Terra (SP) e prepara a exposição individual Seus últimos livros são Antonio Araújo et le Teatro
Série: Pessoas, com abertura prevista para mar- da Vertigem (organização) e Théâtres Brésiliens.
ço de 2018. Há quatro anos é responsável pelos Manifestes, mises en scène, dispositifs (organiza-
projetos gráficos e fotografias dos espetáculos do com Yannick Butel), ambos publicados pelas
de Felipe Hirsch e em 2017 assinou o projeto Presses Universitaires de Provence em 2016 e
gráfico do livro Fronteiras Invisíveis, da diretora 2015, respectivamente
minibiografias
Ana Luisa Santos é performer e escritora. Mestre direção e roteiro da minissérie Elenco – a casa da
em Comunicação Social (UFMG) e Pós-Graduada bossa nova, documentário sobre a história da gra-
em Arte da Performance (FAV), atua também como vadora independente Elenco de Aloysio de Oliveira,
curadora em artes da presença na realização de exibido no Canal Brasil em 2011; produção e di-
exposições e residências artísticas, núcleos de reção de Live at Birdland New York City – registro
pesquisa e criação, atividades de formação e políti- em DVD da apresentação de Marcos Valle & Stacey
ca. Desenvolve trabalhos para teatro e dança, com Kent no lendário clube de jazz nova-iorquino, lança-
destaque para dramaturgia e figurino. É idealizado- do em 2016 pela Sony Music; apresentação e dire-
ra do Perfura – Ateliê De Performance e codiretora ção (com Paola Vieira, Lula Queiroga e Geraldinho
da plataforma O Que Você Queer. Artista indicada Magalhães) de Brasil Adentro – Música de Pernam-
ao Prêmio PIPA 2017. Vive e trabalha em São Paulo. buco, minissérie em cinco episódios que aborda
a diversidade cultural da música pernambucana,
Ana Maria Gonçalves nasceu em Ibiá (MG) em exibida no Canal Brasil em 2017. Desde 2006 apre-
1970. Trabalhou com publicidade até 2001, quan- senta e dirige (com Gabriela Gastal) O som do vinil,
do se mudou para a Ilha de Itaparica e escreveu programa exibido semanalmente pelo Canal Brasil.
Ao lado e à margem do que sentes por mim (2002)
e Um defeito de cor (Record, 2006), ganhador do Christian Ingo Lenz Dunker, psicanalista, professor
Prêmio Casa de las Américas (Cuba, 2007). Já pu- titular do Instituto de Psicologia da USP, coordenador
blicou em Portugal, Itália e nos EUA, onde ministrou do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicaná-
cursos e palestras sobre relações raciais e fez re- lise da USP, Analista Membro do Fórum do Campo
274 sidência em universidades como Tulane, Stanford Lacaniano. Doutor e Livre-Docente pela USP, com
e Middlebury. Mora em São Paulo, onde escreve pós-doutorado pela Manchester Metropolitan Univer-
também para teatro, cinema e televisão. sity, articulista e youtuber para a Boitempo e Página
B. Autor de Estrutura e constituição da clínica psica-
André Dahmer é carioca. Quadrinista da Folha de nalítica (Annablume, Prêmio Jabuti 2012), Mal-estar,
S. Paulo e do jornal O Globo, venceu quatro prê- sofrimento e sintoma (Boitempo, Prêmio Jabuti, 2015)
mios HQMix de quadrinhos e recebeu o troféu Ja- e Reinvenção da intimidade (Ubu, 2016).
buti pelo livro Quadrinhos dos anos 10 em 2017.
Clóvis Domingos é pesquisador, criador e crítico
Cesar Ribeiro é diretor do grupo Garagem 21. En- em artes cênicas. Doutor em Artes da Cena (EBA-
cenou peças como Esperando Godot e Sessenta -UFMG). Ator formado pelo Teatro Universitário da
Minutos Para o Fim. É ator formado pelo Indac, do UFMG. Bacharel em Direção Teatral pela UFOP.
qual também foi professor de Montagem e Inter- Mestre em Artes (EBA-UFMG) com pesquisa sobre
pretação, e trabalhou como artista orientador na SP processos de criação e redes colaborativas. Inte-
Escola de Teatro. gra o Obscena – agrupamento independente de
pesquisa cênica, no qual investiga modalidades
Charles Gavin nasceu em São Paulo em 1960. cênicas liminares. Colabora como crítico no site
Baterista autodidata, tocou com várias bandas da Horizonte da Cena. Foi curador de artes cênicas
cena paulistana. Estudou administração de em- no Fórum das Artes do Festival de Inverno de Ouro
presas na PUC-SP até o quarto ano, quando teve Preto em 2015. Atuou como debatedor e crítico na
que trancar seu curso para ingressar nos Titãs, em Mostra LAB e no Janela de Dramaturgia.
janeiro de 1985, permanecendo até fevereiro de
2010. Paralelamente à carreira com os Titãs, Ga- Daniel Schenker é doutor em artes cênicas pela
vin passou a atuar na área da produção musical e UniRio. Na área de teatro, escreve para os jornais
cultural. Alguns de seus projetos mais importantes: O Estado de S.Paulo e Valor Econômico e o
blog danielschenker.wordpress.com. É professor ca, e professor substituto de Atuação no curso de
de teoria do teatro da Casa das Artes de Laranjeiras Licenciatura em Teatro da UFRN. Coordena desde
(CAL). Participa das comissões dos prêmios de 2015 o projeto “Laboratório da Cena de Parnami-
teatro APTR, Cesgranrio, Questão de Crítica e rim” e a Comunicação do Festival O Mundo Inteiro
Reverência. Na área de cinema, escreve para o É Um Palco. É editor da Revista Balaio. Publicou os
jornal O Globo, a revista Preview e o site www. livros Contos achados & perdidos (SESI-SP Editora,
criticos.com.br. 2016) e Pequeno livro dos amores particulares (For-
tunella Casa Editrice, 2017).
Denilson Lopes é professor da Escola de Comu-
nicação da UFRJ e autor de Nós os mortos: me- Eva-Maria Bertschy estudou sociologia, econo-
lancolia e neobarroco (1999), O homem que amava mia e literatura na Universidade de Freiburg. Como
rapazes e outros ensaios (2002), A delicadeza: es- dramaturga e gerente de produção, trabalhou, entre
tética, experiência e paisagens (2007), No coração outros, com Ersan Mondtag, Schauplatz Internatio-
do mundo: paisagens transculturais (2012) e Afetos, nal e Hannah Hurtzig / Mobile Academy Berlin. Des-
experiências e encontros com filmes brasileiros de 2013, é dramaturga permanente e pesquisadora
contemporâneos (2016). É pesquisador no CNPq, para o International Institute of Political Murder e
pelo qual desenvolve o trabalho “Dândis, decaden- para Milo Rau. Com ele, realizou inúmeras peças,
tes e modernos”. além de outros formatos, como a primeira parte da
Trilogia-Europa - The Civil Wars (2014), o documen-
Denise Espírito Santo é professora do curso de li- tário The Congo Tribunal (2015-2017) e o projeto de
cenciatura em artes visuais do Instituto de Artes da longo prazo General Assembly (2017). 275
UERJ e do programa de pós-graduação em artes
– PPGArtes; atualmente é coordenadora adjunta do Florian Malzacher é curador independente de artes
PPGArtes e coordenadora do curso de especializa- cênicas, dramaturgo e escritor. Foi diretor artístico
ção em ensino da arte, uma parceria entre o Insti- do Impulse Theatre Festival e co-programador do
tuto de Artes, a Escola de Artes Visuais do Parque festival Steirischer herbst in Graz. Trabalhou com o
Large e o Paço Imperial. Diretora teatral com traba- Rimini Protokoll, Lola Arias, Mariano Pensotti e com
lhos encenados nos últimos 10 anos em diferentes o Nature Theatre of Oklahoma. Suas publicações
cidades do país, atualmente se dedica à montagem mais recentes são Truth is concrete. A Handbook
do Experimento Medeia, projeto financiado pela for Artistic Strategies in Real Politics (2014), Not
Faperj (prêmio Apoio às Artes 2016) que reúne um Just a Mirror. Looking for the Political Theatre of
elenco de atrizes negras e volta-se para uma dis- Today (2015), e Empty Stages, Crowded Flats.
cussão sobre racismo estrutural e violência domés- Performativity as Curatorial Strategy (2017).
tica no Brasil. Em 2016, foi professora visitante no
departamento de Estudos da Performance da NYU, Gaudêncio Fidelis é curador e historiador de arte
e no departamento de Ciências Sociais da UBA. especializado em arte brasileira moderna e con-
temporânea e arte da América Latina. É Mestre
Diogo Costa é cientista político e autor. Como pre- em Arte pela New York University (NYU) e Doutor
sidente do Instituto Ordem Livre e membro do Ins- em História da Arte pela State University of New
tituto Ludwig von Mises - Brasil (IMB), luta pela dis- York (SUNY). Foi diretor do Instituto Estadual de
seminação de ideias que promovam os princípios Artes Visuais do Rio Grande do Sul entre 1991-
de livre mercado e de uma sociedade livre. 93. Fundador e primeiro diretor do Museu de Arte
Contemporânea do RS, em 1992. Publicou, além
Diogo Spinelli é integrante do Grupo de Teatro Clo- de inúmeras monografias sobre a obra de artistas,
wns de Shakespeare, crítico do portal Farofa Críti- Dilemas da matéria: procedimento, permanência e
minibiografias
Como dramaturgo, diretor e cofundador da Polifô- nicas da Folha de S.Paulo, entre 2007 e 2010. Foi
nica Cia., assinou as peças A inútil biografia de um curadora de programações, como o Circuito Cul-
homem qualquer, Estamos indo embora..., com a tural Paulista, e membro do júri de prêmios como
qual foi indicado ao Prêmio Shell 2015 na categoria Prêmio Bravo! de Cultura e o Prêmio Governador
Inovação, e Amor em dois atos, peça pela qual foi do Estado de S.Paulo. É autora da pesquisa Breve
indicado ao Prêmio Cesgranrio de melhor direção. Mapa do Teatro Brasileiro e de capítulos de livros
Desde 2015 assina a curadoria e a direção artística sobre companhias de dança e teatro. Como pro-
do festival de artes cênicas Cena Brasil Internacio- fessora convidada, ministrou aulas em instituições
nal, que ocorre anualmente no Rio de Janeiro. como a Universidade de São Paulo - USP, a Fa-
culdade Cásper Líbero e o Centro de Pesquisa e
Márcio Seligmann-Silva é doutor pela Freie Uni- Formação do Sesc.
versität Berlin e pós-doutor por Yale. É professor ti-
tular de Teoria Literária na UNICAMP e pesquisador Maria Lúcia Pupo é professora titular do Departa-
do CNPq. É autor, entre outros, dos livros Ler o livro mento de Artes Cênicas da Escola de Comunica-
do mundo (Iluminuras/FAPESP, 1999, vencedor do ções e Artes da Universidade de São Paulo, onde
Prêmio Mario de Andrade de Ensaio Literário da Bi- atua particularmente na Licenciatura em Artes Cê-
blioteca Nacional em 2000), O Local da Diferença nicas e orienta pesquisas de mestrado e doutorado
(Editora 34, 2005, vencedor do Prêmio Jabuti na em pedagogia do teatro. Doutora pela Universidade
categoria Melhor Livro de Teoria/Crítica Literária de Paris, é pesquisadora do CNPq. Sua experiên-
2006) e A atualidade de Walter Benjamin e de Theo- cia profissional mais recente abrange pesquisas
278 dor W. Adorno (Editora Civilização Brasileira, 2009). sobre mediação teatral e ação artística em diferen-
tes contextos brasileiros e em países como França,
Maria Clara Ferrer é diretora, tradutora e profes- Marrocos e Bélgica. Seu mais recente livro é Para
sora nos cursos de graduação e pós-graduação alimentar o desejo de teatro (Editora Hucitec, 2015).
de teatro da Universidade Federal de São João
del-Rei. É mestre e doutora em Artes Cênicas pela Marcelo Caetano nasceu em Belo Horizonte, mas
Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, onde tam- reside desde 2004 em São Paulo, onde estudou
bém lecionou entre 2008 e 2015. Em sua pesqui- Ciências Sociais na USP. Dirigiu o longa Corpo
sa se interessa pelas dramaturgias e estéticas da Elétrico (2017) e os curtas Bailão (2009), Na sua
cena contemporânea, explorando os conceitos de companhia (2011), Verona (2013) e Blasfêmea
cena-paisagem e de drama da percepção. Dirigiu (2017), em codireção com Linn da Quebrada. Foi
espetáculos no Brasil e na França, foi assistente assistente de direção de diversos filmes entre os
de direção de Antônio Araújo na criação de Dire quais Tatuagem, Boi Neon e Mãe só há uma, no
ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne qual também colaborou no roteiro.
parle pas, traduziu peças de autores franceses e
brasileiros e publicou diversos artigos em periódi- Marcos Alexandre é graduado em Letras pela
cos nacionais e estrangeiros. FALE-UFMG, onde concluiu o mestrado (1998) e
o doutorado (2004) em Estudos Literários. Reali-
Maria Eugênia de Menezes é crítica teatral, for- zou pesquisas de pós-doutorado no Instituto Su-
mada em jornalismo pela USP, com especializa- perior de Arte (Havana, Cuba), no PPGAC-UFBA
ção em crítica literária e literatura comparada. É (2008-2009), no Instituto Hemisférico de Perfor-
uma das editoras do site Teatrojornal - Leituras mance e Política, da NYU, e no NEPAA-PPGAC
de Cena e colaboradora do Caderno 2, do jornal da UNIRIO (2017-2018). É bolsista de Produtivi-
O Estado de S. Paulo, para o qual escreve desde dade do CNPq; professor associado na UFMG;
2010. Também trabalhou na cobertura de artes cê- integrante cofundador do Mayombe Grupo de
Teatro (1995); e coordenador do NEIA. Pesquisa FAPESP e do Conselho Federal de Psicologia na
sobre literaturas hispânicas, performances, tea- área das artes do corpo. Nos últimos anos, atuou
tro negro e teatro latino-americano. como professor visitante na Escola de Teatro da
Universidade Nacional da Costa Rica e no De-
Matteo Bonfitto é ator-performer, diretor teatral e partamento de Euritmia da Alanus Hochschule
professor livre-docente do Instituto de Artes da Uni- (Alemanha) e manteve colaboração regular com
camp. Cursou a EAD/USP e o DAMS de Bologna, instituições italianas como a Universidade de Pa-
Itália. É Mestre pela ECA-USP e PhD pela University lermo, Universidade de Florença e Academia de
of London. Além do trabalho artístico apresentado Belas Artes de Turim.
no Brasil e no exterior, publicou inúmeros artigos
sobre o trabalho do ator-performer, bem como os Nayse López é bacharel em comunicação pela
livros O ator compositor, A cinética do invisível PUC-RJ. Jornalista cultural e crítica de dança
(publicado também em inglês – The Kinetics of the desde 1993 no Rio de Janeiro. Em 2003, criou a
Invisible) e Entre o ator e o performer. É um dos fun- primeira revista profissional sobre dança contem-
dadores do Performa Teatro – Núcleo de Pesquisa porânea da internet brasileira, em www.idanca.
e Criação Cênica (www.performateatro.org). net. É colaboradora e editora convidada de re-
vistas e jornais no Brasil e no exterior. Participou
Michele Rolim (Porto Alegre, 1986) é jornalista, da criação e gestão de diversas redes nacionais
pesquisadora e crítica teatral, doutoranda em ar- e internacionais de artes cênicas. Desde 2001 é
tes cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em curadora no Festival Panorama, assumindo desde
Artes Cênicas da UFRGS. Trabalha na imprensa 2005 também como diretora artística. 279
cultural desde 2009. É coeditora do site Cênicas e
Agora Crítica Teatral e membro da Associação In- Patrick Pessoa é crítico teatral e dramaturgo,
ternacional de Críticos de Teatro, filiada à Unesco. professor de filosofia da UFF e editor da revista
Autora do livro O que pensam os curadores de artes Viso – Cadernos de Estética Aplicada. Como crí-
cênicas (Editora Cobogó, 2017). Participou dos júris tico, colabora regularmente com a Revista Ques-
do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera tão de Crítica. Como dramaturgo, já colaborou
de Teatro Infantil (ambos da Prefeitura de Porto Ale- com os diretores Aderbal Freire-Filho, Malu Galli,
gre) e do Prêmio Braskem em Cena no Festival In- Bel Garcia, Marcio Abreu, Daniela Amorim, Marco
ternacional Porto Alegre em Cena. Vem atuando em André Nunes, Jörgen Tjon A Fong e Adriano Gui-
diversos festivais de artes cênicas no Brasil como marães. Publicou cinco livros e diversos ensaios
crítica e debatedora. de crítica literária, cinematográfica e teatral em
revistas especializadas.
Milton de Andrade, graduado em Psicologia
pela Universidade de São Paulo (USP), é pro- Paulo Mattos é graduado em administração
fessor titular do Departamento de Artes Cênicas pública. Desde 2000, dedica-se à produção
e do Programa de PósGraduação em Teatro do cultural, tendo sido produtor da Companhia dos
Centro de Artes da Universidade do Estado de Atores e do Grupo XIX de Teatro, entre outros.
Santa Catarina (UDESC). É Mestre em artes cêni- Idealizou o projeto Arte da África Cinema e Teatro
cas e Doutor em dança pela Universidade de Bo- no CCBB RJ e foi gestor da área de cultura do
lonha (Itália), com pós-doutorado em Antropolo- Sesc RJ. Atualmente é produtor independente,
gia Cultural pela Universidade de Palermo (Itália). sendo um dos responsáveis pelo projeto 2ª
É líder do grupo de pesquisa (diretório – CNPq) Black, que objetiva estabelecer um debate crítico
“Percursos de performatividade: Mediterrâneo, sobre a Cena Preta no Rio de Janeiro. É jurado do
África, Américas” e assessor científico ad hoc da Prêmio Questão de Crítica.
minibiografias
Pedro Vilela é mestrando pelo Programa de Pós- drigues da Silveira (CAp-UERJ), crítico de teatro e
-Graduação em Artes Cênicas da Universidade membro da Revista Questão de Crítica.
Federal da Bahia. Ex-gestor e diretor artístico do
coletivo pernambucano Magiluth. Em 2012 foi es- Renata Carvalho é atriz, diretora, produtora e ma-
colhido entre 13 latino-americanos para integrar quiadora de teatro há 21 anos. Desde que iniciou
o WEYA – World Event Young Artist. Atualmente sua transição de gênero em 2007, seu teatro se
é gestor, diretor artístico e idealizador da TREMA! tornou sua militância e identidade. Em 2011 ga-
Plataforma de Teatro (PE), sendo curador do TRE- nha o Proac LGBT e estreia em 2012 seu primeiro
MA! Festival de Teatro e coordenador editorial da solo Dentro de mim mora outra, no qual contava
TREMA! Revista de Teatro. sua história de vida e travestilidade. Desde 2013 é
atriz e produtora do grupo O Coletivo, um encontro
Peter Pál Pelbart é professor titular de Filosofia entre artistas da Baixada Santista. Como diretora,
na PUC-SP. Autor de vários livros, entre os quais O fundou a Cia Ohm de Teatro em 2002. Atualmente
avesso do niilismo: cartografias do esgotamento, é em cartaz com O evangelho segundo Jesus, Rainha
coeditor da n-1 edições. do céu; ZONA!; Projeto Bispo; Dentro de mim mora
outra; Nossa vida como ela é; e As F...e Mal Pagas
Renan Cevales (1991) é artista representado pela unpleged e reload.
Adelina Galeria (SP), com produção em perfor-
mance nas áreas de produção e pesquisa. Dou- Rita Aquino é artista da dança e professora do
torando em Artes da Cena pela ECA-USP, com Programa de Pós-Graduação em Dança e Escola
280 pesquisa sobre presença, performance e neolibe- de Dança da UFBA. Doutora em Artes Cênicas e
ralismo. Seus principais projetos autorais incluem Mestre em Dança, pesquisa práticas colaborativas.
Protetores de proximidade humana (premiação Coordenadora das Atividades Formativas do Festi-
Temporada de Projetos do Paço das Artes; Pre- val Internacional de Artes Cênicas da Bahia, integra
miação MAJ SESC Ribeirão Preto) e Como um a curadoria do festival desde 2016. Coorganiza o
jabuti matou uma onça e fez uma gaita de um de Seminário Internacional de Curadoria e Mediação
seus ossos (ProAC, Premiação do Setor de Per- em Artes Cênicas. Coordenou o Mediação Cultural
formance da SP-ARTE). Desenvolve agora Projeto e Mediação FIAC, ambos programas de formação
invisível, com apoio da SP Escola de Teatro, SESC em artes cênicas. Dentre seus trabalhos artísticos,
Belenzinho e OMA Galeria. Sua produção de pes- destacam-se Looping: Bahia Overdub e a interven-
quisa em performance envolve curadorias (in Lo- ção urbana pingos & pigmentos.
cus: mostra de performance no SESC, individual
da Cia Excessos na Galeria Tato), publicações Rosane Borges é jornalista, pós-doutora em ciên-
(revista SELECT, Performatus, Urdimento) e cur- cias da comunicação, professora universitária, inte-
sos (CPF SESC, SESC Santos, SESC Consolação, grante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela
EMIA, CLAC, dentre outros). É também membro Igualdade Racial), autora de diversos livros, entre
fundador do Pérfida Iguana, polo de produção em eles: Esboços de um tempo presente (2016), Mídia
dança gerido com a bailarina Carolina Callegaro, e racismo (2012), Espelho infiel: o negro no jornalis-
dentro do qual já produziram as obras Um instante mo brasileiro.
anterior à extrema violência (ProAc, 2015); maté-
riaIVONE (2016) e Sem luz (ProAc, 2017). Rubens Machado é professor da Universidade
de São Paulo. Graduado em arquitetura e
Renan Ji é doutor em Literatura Comparada pela urbanismo pela FAU-USP, mestre e doutor em
Universidade Federal Fluminense (UFF), professor cinema, TV e rádio, pela ECA-USP. Desde 1999,
adjunto do Instituto de Aplicação Fernando Ro- é professor do Departamento de Cinema, Rádio e
TV da ECA-USP e, desde 2007, é livre-docente em coreográfica na América do Sul e na Europa. Des-
Teoria e História do Cinema. Desenvolve pesquisa de 2002, elabora projetos sob a forma de solos
sobre a história da crítica e do cinema experimental que problematizam a figura do estrangeiro entre
no Brasil e sobre a presença da cidade nos línguas, culturas, cidades e instituições.
meios audiovisuais. É autor ou coautor de vários
artigos e livros publicados.
Ações Pedagógicas
Sara Rojo possui graduação e mestrado em Le-
tras pela Pontifícia Universidad Católica de Chile, Aby Cohen é cenógrafa, diretora de arte e cura-
mestrado em Artes pela State University of New dora, atuante em teatro, cinema e exposições.
York, doutorado em Literaturas Hispânicas pela Premiada com a Triga de Ouro na Quadrienal de
State University of New York e pós-doutorados na Praga 2011 pelo projeto expositivo e curatorial
Universitá degli Studi di Bologna e Universidad de para a Mostra Nacional Brasileira. Curadora inter-
Chile. Professora titular da UFMG e pesquisadora nacional da Quadrienal de Praga 2015 SharedS-
do CNPq. Seu último livro é Teatro latino-americano pace/Politics e autora da instalação-ocupação-
em diálogo: produção e visibilidade (Javali, 2016). -performance Terra de Ninguém apresentada na
Atua nas áreas de crítica e direção teatral. mesma edição do evento. Começou no teatro,
como cenógrafa, com o diretor Antunes Filho, em
Tatiana Roque é do Instituto de Matemática/UFRJ, 1992. Desenvolve projetos no Brasil e no exterior,
doutora pela Coppe/UFRJ, fez estágio na Equipe foi responsável pela identidade visual do Espaço
REHSEIS (Pesquisas Históricas e Epistemológicas Brasil no Ano do Brasil em Portugal (2012/2013) 281
sobre as Ciências Exatas e as Instituições e recebeu outros importantes prêmios internacio-
Científicas) e é membro do instituto de pesquisa nais, como o IDCA – International Comunication
Archives Poincaré. Sua área de pesquisa abrange Design Awards, em 2013. Autora e designer do
historiografia da matemática, relações entre história projeto Desenhos de Cena #1, SESC São Pau-
e ensino de matemática. Seu livro História da lo (2016) e Desenhos de Cena #2: Playground
matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos Project, para o World Stage Design em Taiwan
e lendas (2012) foi um dos vencedores do Prêmio (2017). Curadora Geral da Mostra Nacional do
Jabuti 2013. Brasil na Quadrienal de Praga 2019. Doutora em
Artes pela ECA-USP. Vice-Presidente da OISTAT
Victoria Pérez Royo é professora de Estética e Te- entre 2013 e 2017.
oria das Artes (UZ, Zaragoza), codiretora do Mes-
trado em Práticas Cênicas e Cultura Visual (UCLM, Bianca van der Schoot e Suzan Boogaerdt
Museu Reina Sofía, Madri) e professora convidada trabalham juntas desde 2000, depois de for-
para programas universitários sobre arte em países madas no departamento de mímica da Ams-
como Holanda, Alemanha, Bélgica, Finlândia, Cos- terdam Theatre School. Desde 2011, realizam
ta Rica, Brasil e Chile, entre outros. Criou, organi- a VisualStatements, uma série de performan-
zou e desenvolveu diversas linhas de pesquisa em ces visuais sobre a sociedade do espetáculo
artes, em parceria com museus e centros de arte e o papel da cultura da imagem na atualidade.
em Madri. Suas mais recentes publicações são: Um mundo de representações no qual o real
Cuerpo, escena, política (2016, com Diego Agulló) e desaparece. Episódios como BIMBO, SMALL
e Dirty Room (2017, com Juan Domínguez). WORLD and Hideous (Wo)men compõem a sé-
rie, a partir da qual criam um teatro inovador e
Wagner Schwartz possui formação em Letras e maldito, que alcança uma posição significativa
participa de grupos de pesquisa e experimentação na cena holandesa.
minibiografias
Georg Weinand é acadêmico de teatro com vas- Marcelo Carnevale é jornalista e mestre em lite-
ta experiência no universo internacional da dança ratura, e desde 1989 trabalha com comunicação.
e das artes cênicas. Trabalhou como dramaturgo Ganhou o prêmio do Programa para Escritores com
na companhia Última Vez, de Wim Vandekeybus, e Obra em Fase de Conclusão da Fundação Biblio-
como coordenador artístico de produtoras aclama- teca Nacional com O chimpanzé cobaia, em 2002.
das, como o Les Ballets du Grand Maghreb e TOR. Integrou o CADES-PI (Conselho Regional de Meio
Ao longo dos últimos dez anos, trabalhou como Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Cultura
coach de muitos talentos emergentes da dança no da Paz, da Subprefeitura de Pinheiros) entre 2013
ensino artístico superior, sendo um professor alta- e 2015. Atualmente, realiza o projeto social A vizi-
mente versátil e dramaturgo na DasArts, a Universi- nhança, em São Paulo, e atua como pesquisador/
dade de Artes de Amsterdã. De 2012 a 2016, foi di- doutorando no Programa de Pós-graduação em
retor do Dampfzentrale Bern, um renomado centro Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da
cultural suíço, focado na dança, na performance e Universidade de São Paulo (USP).
na música. Possui experiência prática em curadoria
e produção de festivais internacionais. Miguel Rocha é encenador e produtor, formado em
Direção Teatral pela SP Escola de Teatro. É sócio-
Iva Horvat é professora universitária de cinesio- -fundador e diretor artístico da Companhia de Teatro
logia, bailarina, coreógrafa e diretora de palco Heliópolis, com uma trajetória de dezessete anos e
em dança e teatro. Fundou o Agente129 – um dez espetáculos, entre os quais Sutil Violento (2017) e
escritório de gestão em Barcelona focado na A Inocência do que Eu (Não) Sei (2015), que recebeu
282 distribuição das artes cênicas –, a partir do qual duas indicações ao Prêmio São Paulo de Incentivo
colaborou com diversos artistas na internaciona- ao Teatro Infantil e Jovem, uma na categoria Melhor
lização de seus projetos ao longo de quatro anos. Espetáculo e outra como Prêmio Especial pela pes-
Em 2017, fundou, juntamente com Elise Garriga, quisa em escolas públicas. Realizou a coordenação
a ART REPUBLIC, uma agência de estratégias e artística da I e II Mostra de Teatro de Heliópolis (2015
mobilidade para as artes performáticas. É men- e 2016) com apoio do edital ProaC. Tem experiência
tora e professora de gestão e de distribuição. In- internacional como assistente de direção da trupe ho-
tegra a equipe de Creative Producing no Grand landesa MC Theater na peça A Hora Final. Participou
Theatre de Groningen, Holanda. E ministra aulas do projeto Solos do Brasil, criado por Egla Monteiro e
e workshops relacionados a vendas internacio- Silvana Abreu, sob coordenação de Denise Stoklos.
nais e distribuição em diferentes países da Euro-
pa, Ásia e Américas. Renato Bolelli é diretor de arte, cenógrafo, figu-
rinista, arquiteto e pesquisador. Desde 2003 cria
Liv Elf Karlén é dramaturga e diretora sueca, uma projetos para teatro, dança, performance, cinema,
das principais desenvolvedoras de técnicas de atu- expografia e eventos. Recebeu o Prêmio Shell de
ação para desafiar as normas sociais e as estru- Cenografia por Arrufos, espetáculo que integrou a
turas de poder na Suécia e na Finlândia. Há mais Quadrienal de Praga em 2011. Representou ain-
de dez anos, nas escolas de atuação e instituições da o país como integrante do projeto Desenhos
mais renomadas de seu país, ensina métodos para de Cena #2, no World Stage Design em Taipei, em
ampliar a forma como percebemos e praticamos o 2017. Integrante da plataforma UAP na zona rural
gênero, a sexualidade e a raça, assim como a fun- de Cotia, onde coordenou o Programa de Resi-
ção da atuação, das estruturas organizacionais e dências e Intercâmbios Artísticos em 2017. É dou-
dos processos educacionais. Seu livro sobre técni- torando do Laboratório de Práticas Performativas
ca de atuação e gênero, More than this - thought on da ECA-USP e curador-adjunto da mostra brasilei-
gender curious acting, foi publicado em 2008. ra na Quadrienal de Praga de 2019.
Susanne Kennedy estudou direção na Hogeschool (2013) com direção de Rodolfo Garcia Vázquez.
voor de Junsten em Amsterdã. Estreou no teatro É crítico da revista Antro Positivo desde 2016.
holandês com uma série de espetáculos de Enda
Walsh, Sarah Kane e Elfriede Jelinek. Em 2011, Maria Teresa Cruz estudou Psicologia na PUC-
convidou Johan Simons para trabalhar na Munich -Campinas, com ênfase em análise do comporta-
Kammerspiele. Trabalhou materiais dos filmes They mento. Jornalista pela Faculdade Cásper Líbero.
Shoot Horses, Don´t they? e da primeira peça de Trabalhou em diversos veículos de comunicação
Marieluise Fleisser: Purgatory in Ingolstadt. Este como repórter, entre eles Editora Globo, Grupo
processo de trabalho resultou no espetáculo Por Lance! e Grupo Bandeirantes de Comunicação,
que o Sr. R. Enlouqueceu?, que participou da 4ª em TV, impresso e rádio. Escreveu a peça A Or-
MITsp, baseado no filme de Fassbinder e Michael dem Partiu de Quem? (2014) e colabora com o
Fengler. Susanne foi nomeada como diretora do projeto Tempo/Passagens. Idealizadora do canal
ano por Purgatory in Ingolstadts. Em 2018, passará no Youtube Cenas na Cidade, criado em 2015
a integrar a Volksbühne como diretora associada, com a produtora Lado Z. Leciona no Cine Fave-
na qual realizou a coprodução de The Virgin la, projeto social na Comunidade de Heliópolis,
Suicides, que, em conjunto com a peça Women in sobre construção de narrativa em teatro e cine-
Trouble, foi incluída no repertório da companhia a ma. Colabora com a Antro Positivo desde 2012.
partir de 2018.
Ruy Filho é idealizador e editor da revista Antro Po-
sitivo. Bacharel em Artes Visuais, foi aluno ouvinte
Revista Antro Positivo em Semiótica e Ciências Cognitivas (PUC-SP) e 283
Edição Especial MITsp Direção Teatral (ECA-USP). Publicou o ensaio A
Construção do Sujeito Biopolítico no Intérprete:
Ana Carolina Marinho integra o Coletivo Estopô o corpo como representação de complexidades,
Balaio, no qual desenvolve há sete anos uma resi- pela EdUFT (Universidade Federal de Tocantins),
dência artística no bairro Jardim Romano. Escreve além de diversos artigos, reportagens e ensaios
para a Revista Antro Positivo cobrindo festivais de em sites, revistas e jornais especializados, tanto
teatro, como resenhista na Crítica Performativa e nacionais e internacionais, incluindo The Stage
no Coletivo Antro Diálogos. Integrou o elenco dos (Londres) e Theater Der Zeit (Alemanha). Editor do
longas-metragens Fome e Antes do Fim, de Cristia- catálogo do Mirada - Festival Ibero-Americano de
no Burlan. Tem se aventurado na escrita de roteiros Artes Cênicas de Santos (2014) e do Tempo Fes-
para cinema e seu último trabalho, A Mãe, foi pre- tival (2015). Atua como crítico interno nos traba-
miado no 7º Brasil CineMundi - International Copro- lhos de Felipe Hirsch desde 2013. É integrante da
duction Meeting. Em 2017, A Mãe foi contemplado International Association of Theatre Critics. Ideali-
pelo programa Fomento ao Cinema Paulista. zou e realizou em festivais nacionais a ação Crítica
Performativa e, em festivais internacionais euro-
Marcio Tito é dramaturgo e diretor no coletivo que peus, a ação Crítica Dentro, propondo novas pos-
fundou em 2012. Com a Tragédia Pop estreou Ro- sibilidades de escrita reflexiva. Pesquisador sobre
berto e a Filologia das Estrelas, Macumba Pop para novas dinâmicas produtivas a partir da economia
Edward Snowden, e outras. Entre 2015 e 2016 foi criativa, visando a construção de mercados cultu-
premiado como autor no Concurso Nacional de rais e políticas públicas. Assumiu em 2017 a Cura-
Indaiatuba e no Concurso Nacional oferecido pelo doria para teatro, dança e performance do Centro
Instituto da Memória. É formado pela SP Escola de da Terra (SP), com uma programação de Ocupa-
Teatro e como ator esteve em mais de dez monta- ções voltada especificamente ao desenvolvimento
gens, dentre elas a multipremiada Roberto Zucco de experimentações entre linguagens artísticas.
Idealização e Direção Artística: AntOnio Araújo
f icha t é c n ica
Idealização e Direção Geral de Produção: Guilherme Marques
Diretor de Relações Institucionais: Rafael Steinhauser
Relações Internacionais: Jenia Kolesnikova e Natália Machiaveli
Curadoria dos Olhares Críticos: Daniele Avila Small e Luciana EASTWOOD Romagnolli
Curadoria de Ações Pedagógicas: Maria Fernanda Vomero
Curadoria Plataforma MITbr: Christine Greiner, Felipe de Assis, Welington Andrade
Curadoria do Espaço de Ensaios: Daniele Avila Small, Luciana EASTWOOD Romagnolli
e silvia fernandes
Coordenação Executiva de Produção: Rachel Brumana
Coordenação Administrativa e Financeira: Patrícia Perez
Coordenação de Comunicação: Marcia Marques | Canal Aberto
Coordenação de Relações Públicas: Carminha Gongora
Coordenação Técnica: André Boll
Coordenação de Logística: Marisa Riccitelli Sant´ana
Coordenação dos Olhares Críticos: Andreia Duarte
Coordenação da Prática da Crítica: Julia Guimarães
Produtora Associada da MITbr: Carla Estefan
Relações Institucionais e Coordenação do Seminário MITbr: Andrea Caruso Saturnino
Produtores Locais de Montagem: Andrea Caruso Saturnino, Ariane Cuminale,
Dora Leão, Julia Gomes, Julio Cesarini, Patricia Souza Ceschi,
Pedro de Freitas, Olivia Maia Barcellos, Ricardo Frayha
Coordenadores Técnicos de Montagem: Cauê Gouveia, Fernanda Guedella,
Melissa Guimarães, Rodrigo Campos
Produção e Tradução dos Olhares Críticos e Ações Pedagógicas: Fernando Zugno
284 e Richard Santana
Assessoria Jurídica: José Augusto Vieira de Aquino
Assistente de Relações Internacionais: Fernando Ruiz Braul
Assistentes de Comunicação: Daniele Valério, Flávia Fontes e Kelly Santos
| Canal Aberto
Assistente de Coordenação Executiva de Produção: Paulo Girčys
Assistente de Relações Públicas: Marina Watanabe
Assistente de Coordenação Técnica: Marta Cesar
Assistente de Coordenação de Logística: Luiza Meira Alves e Paula Malfatti
Assistente de Coordenação Olhares Críticos: João Moreira
Assistente de Coordenação Financeira: Hiago Marques
Promoção e Difusão dos Olhares Críticos e Ações Pedagógicas: Eliana Monteiro
Estagiário dos Olhares Críticos e Ações Pedagógicas: Tom Vieira
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a g r ad e cim e n t o s
Ibirapuera Oscar Niemayer, André Cortez, André Lucena, André
Mendes, André Vilela, Anna Helena Polistchuk, Aurea Leszczynski Vieira
Gonçalves, Beatriz Ferreira, Benjamin Seroussi, Bethe Ferreira, Cadu
Witter, Camila Magalhães, Camilla Navarro, Carlos Eduardo Hashish,
Carlos Monge, Catarina Duncan, Catherine Faudry, Célia Gambini,
Charles Delogne, Christine Rohrig, Claudia Hamra, Cléria Oliveira
Moura, Companhia Antropofágica, Companhia de Teatro Heliópolis,
Consulados Brasileiros na Alemanha, Espanha, Polônia, Suécia e Suiça,
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Griesi, Daniele Carolina Lima Uchikawa, Danilo Santos de Miranda,
Debora Hummel, Deborah de Oliveira Rossoni, Debora Viana, Denio
Maués, Deputado Vicente Cândido, Dione Leal, Dorota Kwinta, Dulce
Maschio, Dulce Vivas, ECAD - Escritório Central de Arrecadação e
Distribuição, Edson Natale, Eduardo Fragoaz, Eduardo Saron, Eduardo
Matarazzo Suplicy, Efrém Colombani, Elder Baungartner, Elen Londero,
Eleonor Pelliciari, Elian Zanelato, Emerson Pirola, Equipe das Leis
Estadual e Federal de Incentivo à Cultura, Equipe do Ministério da
Cultura, Equipe do Teatro Cacilda Becker, Erica Mourão Trindade e
equipe do Sesc Vila Mariana, Erica Teodoro, Eustáquio Gugliemelli,
Evanda Martins de Melo, Fábio Larsson, Ferdinando Martins, Fernanda
Machiaveli, Flavia Carvalho e equipe do Sesc Pinheiros, Flávio Bassetti,
Flávio do Nascimento, Gabriel Portela, Gaby Imparato, Gabrielle
Araujo, Gaelle Massicos Bitty, Galiana Brasil e equipe do Itaú Cultural,
Grupo Pandora, Grzegorz Mielec, Heloisa Cuente Pisani, Henrique
Carsalade, Inès da Silva, Isabel Hölzl, Ivam Cabral, Ivan Gianinni, Izilda 285
Maria Bernardes, Joachim Bernauer, Joaquim Gama, João Carlos
Malatian, João Calos Teixeira de Melo, Joel Naimayer Padula, José
Roberto Sadek, Juan Lozano, Juan Jesús Montiel Rozas, Jurandy
Valença Persiano, Julia Gomes, Julian Christopher Fuchs, Julio Cesar
Doria Alves, Karine Legrand, Katharina von Ruckteschell-Katte, Kelly
Adriano de Oliveira, Leandro Teodoro Ferreira, Liliane Rebelo, Lorena
Vicini, Louis Logodin, Lucas Neves, Lucia Romano, Luciana Alves, Luiz
Sobral, Magno Neto, Marcelo Denny, Marcelo Mattos Araujo, Márcia
Dias, Marcia M. Silva, Marco Griesi, Marcio Gallacci, Maria Beatriz
Costa Cardoso, Maria Teresa Mortale, Mariângela Abbatepaulo, Marian
Arbre, Mariana Ribeiro Sousa, Marília Bonas, Mario Rubio, Mawusi
Tulani, Michel Huck, Milú Villela, Miriam Rinaldi, Mônica Fernandes,
Nabil Bonduki, Natália Aquino Cesário, Ocupação Aqualtune , Otávio
Frias Filho, Pablo Moreira, Paola de Marco, Paulo Pina, Perrine Warme
Janville, professores do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP,
Peter Johansson, Rafael Presto, Regina Studart, Regina Varandas,
Rodrigo Eloi da SIlva, Rodrigo Maia de Lorena Pires, Rodrigo Mathias,
Rodrigo Ymatsuka e equipe, Rogério Ianelli, Ronald Santig, Rosana
Paulo da Cunha, Rosangela Quaresma, Maria do Rosário Ramalho,
Rose Silveira, Rudifran Almeida Pompeo, Sandra Moreira, SATED /
SP - Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no
Estado de São Paulo, Sérgio Luiz Venitt de Oliveira, Sociedade Brasileira
de Autores - SBAT, Sonia Regina Viveiros Brocca, Telma Baliello, Tião
Soares, Valdir de Jesus Rivaben, Valeria Lovato, Vicente Freitas.
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Embaixada da França
no Brasil