CTS Bruno Latour

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CTS em foco boletim

volume 2, número 4

Bruno Latour

out-dez 2022 issn 2675-9764


DIRETORIA BIÊNIO 2021-2023

Presidente: Fabrício Neves (UNB)

Vice-presidente: Débora Allebrandt (UFAL)

Vice-presidente: Julia S. Guivant (UFSC)

Secretário Geral: Bráulio Silva Chaves (CEFET/MG)

1ª Secretário: Paulo Fonseca (UFBA)

Tesoureiro: Alberto Jorge Silva de Lima (CEFET/RJ)

2ª Tesoureiro: Marília Luz David (UFRGS)

Conselho Deliberativo: Adriano Premebida (UFRGS) | Daniela Alves de Alves (UFV) |


Daniela Tonelli Manica (UNICAMP) | Denise Nacif Pimenta (FIOCRUZ) | Guilherme José
da Silva e Sá (UNB) | Ivan da Costa Marques (UFRJ) | Laís Silveira Fraga (UNICAMP) |
Maíra Baumgarten Corrêa (FURG) | Márcia Regina Barros da Silva (USP) | Nilda Nazaré
Pereira Oliveira (ITA) | Noela Invernizzi (UFPR) | Roberto Muniz Barretto de Carvalho
(CNPq) | Thales Haddad Novaes Andrade (UFSCAR) | Wilson José Alves Pedro (UFSCAR)

EXPEDIENTE DO BOLETIM

coordenação geral Adriano Premebida (TEMAS/UFRGS)

coordenação temática Arthur Arruda Leal Ferreira (UFRJ)


Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro (UFRJ)

conselho editorial Fabrício Neves (UnB) Noela Invernizzi (UFPR)


Guilherme Sá (UnB) Wilson Pedro (UFSCAR)
Ivan da Costa Marques (UFRJ) Débora Allebrandt (UFAL)
Lorena Fleury (UFRGS) Ana Lucia Lage (UFBA)
Marko Monteiro (Unicamp) Márcia Ogata (UFSCAR)

comitê editorial Daniela Alves (UFV)


Maíra Baumgarten (FURG)
Thales de Andrade (UFSCAR)
Daniele Martins (UFRJ)
Fabrício Neves (UNB)

apoio técnico Ana Carolina Ribeiro Menezes

projeto gráfico Igor Almeida


editorial

Este número do Boletim CTS em foco é uma justa homenagem a Bruno Latour e
sua influência na área dos Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias. Tanto
para os que utilizam sua abordagem, como para seus críticos, Latour é um autor
incontornável em muitos temas, principalmente em relação às implicações epis-
temológicas e metodológicas dos estudos CTS. Autor prolífico e criativo, a forma
como abordou as ciências e tecnologias influenciou diversas áreas do conhe-
cimento, tendo repercussão epistemológica e ontológica ao tratar da própria
constituição do conhecimento e as suas consequências políticas nas relações de
coprodução de mundos entre humanos e não-humanos e nas interações mais
corriqueiras que resultam em cristalizações chamadas de natureza e sociedade.

Latour deixou uma herança intelectual importante para além de questões me-
todológicas e teóricas propriamente ditas, pois mostrou-nos as possibilidades
daquelas para pensarmos as relações humanas como o planeta, as mutações
climáticas, o Antropoceno e uma política livre de uma modernidade purificado-
ra que separa saberes e priva-nos do potencial narrativo das associações e do
pluralismo ontológico, limitando a forma como se estabelece a complexidade
das redes entre agentes, agências e processos na formação de mundos.

Mais do que as respostas, são suas perguntas que formam a baliza mais impor-
tante para nos guiarmos por seu pensamento. A forma como delimitava proble-
mas (como as mudanças climáticas e o potencial colapso ambiental), para tra-
tá-los e melhor delimitá-los, mostrava seu espírito pululante para a reflexão e a
mobilização coletiva não apenas para uma saída intelectual stricto sensu, mas
enfrentá-los como condição ética para uma existência digna.

Que os textos deste dossiê ajudem-nos a achar um ponto de aterramento para, a


partir dele, compreender as principais questões de nosso tempo para salvar um
estado do planeta que garanta um futuro comum, solidário e pacífico.
Em tempo. Pela especificidade da chamada deste dossiê e pelo número de ar-
tigos submetidos, excepcionalmente neste número, não publicamos artigos de
fluxo contínuo.

adriano premebida
Coordenador Geral do Boletim CTS em foco
sumário

7 Apresentação
arthur arruda leal ferreira e rosa maria leite ribeiro pedro

11 Carta a Bruno Latour: Humanos e não-humanos (re)


descobrindo e (re)ocupando sonhos para uma outra
educação ambiental
adriana maria loureiro, fátima teresa braga branquinho

16 Memórias de uma formiga tonta: Eu, Bruno Latour


e uma Tese
jorge ricardo coutinho machado

21 O que faltou para ser formiga? Diálogo pós-orientação de


um trabalho de conclusão de curso
viviane fernandez, fátima kzam damaceno lacerda e leonardo do
vale terra

28 As tulipas do Latour nos levam a rede toda


eleandra raquel da silva koch

34 Encontros entre praticantes de tradições de conhecimento


divergentes: o mundo é muito maior do que eu imaginava
elisa sampaio de faria

39 Educação e ciênci(as): encontros a partir da rede


sociotécnica Milho-Xakriabá
ana carolina machado ferrari e rebeca cássia de andrade

44 Teoria Ator-Rede e Turismo de base comunitária:


possibilidades de pesquisa e suas raízes no Brasil
edilaine albertino de moraes e fátima teresa braga branquinho
51 A desinformação climática de acordo com Bruno Latour
elisa maffassiolli hartwig e raquel von hohendorff

57 Notas para atitudes diante de uma situação de guerra


contra os negacionistas e de diplomacia com o Sars-Cov-2
gabriel menezes viana, rodolfo dias de araújo e francisco
ângelo coutinho

63 Nascimento das redes do parto


bruna rosa, luciana resende allain e elisa sampaio de faria

71 Nos rastros das redes CTS da UFRJ: a TAR através do olhar


dos doutorandos do Grupo NECSO
maria cristina de oliveira cardoso

77 Latour e Durkheim: um encontro possível?


pedro peixoto ferreira

83 Pistas latourianas para abordagem dos saberes psi:


entre a crítica modernista e a descrição de dispositivos
arthur arruda leal ferreira, marcus vinícius do amaral gama
santos e jimena carrasco madariaga

90 Bruno Latour e o Brasil: um reconhecimento tardio?


ivan da costa marques

96 Teoria ator-rede e a construção de uma antropologia


dos modernos: por uma diplomacia discursiva
patricia rilliane gomes da silva e orivaldo pimentel lopes júnior
Apresentação
Arthur Arruda Leal Ferreira (UFRJ)
Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro (UFRJ)

Bruno Latour é um dos nomes mais reconhecidos, senão o de maior


destaque, no campo CTS atual, seja no plano nacional seja em nível
global. Nesse sentido, Latour tem sido referência recorrente tanto
para os que nele se inspiram, quanto para os que se colocam numa
perspectiva crítica em relação ao seu trabalho. No Brasil, diversos
grupos, de modo especial, repercutem suas contribuições, bem como
da Teoria Ator Rede (TAR), a ele vinculado. Dentre esses, podemos
destacar o NECSO e o Ceres/UFRN. Desde 2014, já houve dois even-
tos nacionais ligados a TAR e alguns eventos regionais, como o Ato
Rede e o Latour no sertão. Igualmente é possível buscar essa orien-
tação em programas e unidades acadêmicas, como o HCTE/UFRJ e o
já referido CERES/UFRN. Igualmente deve-se destacar a presença de
cerca de uma dezena de livros traduzidos para o português, além de
outros tantos artigos publicados em revistas e coletâneas nacionais.
Considerando o recente falecimento deste autor, o CTS em foco não
poderia deixar de abrir um espaço para textos diversos, sejam de ho-
menagens, sejam de reflexão sobre conceitos, controvérsias ou ainda
de pesquisas nele inspiradas.

A composição deste número toma como principal diretriz a posição


de Latour no livro Ciência em Ação (1997), onde sustenta que o sen-
tido e a força dos textos científicos estão nas mãos dos que vêm de-
pois. Ou, nas palavras do próprio Latour, “(...) o destino das coisas
que dizemos e fazemos está nas mãos de quem as usar depois” (p.52).
Isso de imediato nos afasta de qualquer juízo de valor sobre um bom

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ou mau uso dos conceitos, entendendo que toda apropriação é sem-
pre uma tradução e que a heterogeneidade dos temas aqui reunidos
nos diz muito sobre o alcance da obra de Latour e dos efeitos que
ela produziu e continua produzindo entre nós. Esta diretriz também
orienta, de modo mais refinado, a coletânea L’ Effet Latour (2014), em
que somos convidados a percorrer, a partir dos textos de jovens pes-
quisadores, os caminhos e descaminhos a que foram levados pelos
conceitos propostos por Latour. Ou, como escrevem os organizado-
res, “(...) os usos e as múltiplas traduções inventivas do pensamento
latouriano” (p. 28).

Como considerar e avaliar uma determinada discursividade inspirada


nos textos latourianos, senão em uma pragmática complexa? Neste
aspecto, a proliferação discursiva inspirada por estes textos se apro-
ximaria daquela instigada pelo que Foucault (1992) conceitua como
instauradores de discursividade (como por exemplo Marx e Freud).
Neste aspecto, teríamos um jogo de veridicção singular a algumas
humanidades, em que a legitimação de um discurso estaria num re-
torno constante a um conjunto de textos originais assinados por um
autor específico. Como isto seria possível no que tange o retorno aos
textos latourianos?

Neste aspecto este retorno se daria de modo bem distinto do regulado


por algumas vanguardas que organizam os textos (como os psicanalí-
ticos e histórico-dialéticos), organizando-os em um corpus disciplina-
do de leituras possíveis. Primeiro, triunfaria aqui o princípio de sime-
tria ampliado: como julgar de modo hierárquico as diversas heranças
latourianas? Em segundo lugar, quando pode parecer forte a tenta-
ção de produzir um sistema conceitual a partir do corpus latouriano
nos perguntamos: qual seria o centro de gravidade de tais textos? Os
estudos de laboratório? As normas e regras da TAR? As discussões
sobre a modernidade? A busca de uma história-construção? A carto-
grafia das controvérsias? A discussão do antropoceno? Por mais que
alguns textos em seus efeitos nos atraiam mais em sua inventividade,
vale a pena apresentar esta diversidade de leituras realizadas em solo

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brasileiro, cada qual se conectando a algum aspecto ou momento di-
verso dos textos latourianos ou ainda da conexão destes temas com
algum campo discursivo ou problemática.

Assim teríamos textos que variam de homenagens memorialísti-


cas, estudos de campo, relações entre autores, núcleos e campos de
pesquisa e mesmo o Brasil. Para uma rápida apresentação de nosso
cardápio, teríamos temas variados como a educação ambiental, ex-
presso numa carta dirigida a Latour, inspirada pelo seu Cogitamus
(Adriana Maria Loureiro e Fátima Teresa Braga Branquinho); a histó-
ria de uma escola de ciências, escrita na forma das memórias de uma
formiga tonta (Jorge Ricardo Coutinho Machado); o processo de ela-
boração de um TCC, narrado no formato do diálogo latouriano entre
um professor e um aluno (Viviane Fernandez, Fatima Kzam Damaceno
Lacerda e Leonardo do Vale Terra); a experiência da pandemia e o vín-
culo estabelecido com Latour a partir de um não-humano, a tulipa (
Eleandra Raquel da Silva Koch); os povos indígenas e, uma vez mais,
o vínculo a partir de não-humanos, o cocar (Elisa Sampaio de Faria) e
o milho (Ana Carolina Machado Ferrrari e Rebeca Cássia de Andrade);
o turismo de base comunitária e suas múltiplas traduções no Brasil
(Edilaine Albertino de Moraes e Fátima Teresa Braga Branquinho); uma
discussão de negacionismos climáticos (Elisa Maffassiolli Hartwig e
Raquel von Hohendorff) e no campo da saúde (Gabriel Menezes Viana,
Rodolfo Dias de Araújo e Francisco Ângelo Coutinho); a discussão das
redes envolvidos no parto (Bruna Evangelista Rosa, Luciana Resende
Allain e Elisa Sampaio de Faria); a formação de um grupo de pesquisa,
o Necso (Maria Cristina de Oliveira Cardoso); as controvérsias e aproxi-
mações de Latour com Durkheim (Pedro Peixoto Ferreira); os sentidos
da relação do autor com o campo psicológico (Arhur Leal Ferreira e
Marcus Vinicius Amaral do Gama Santos); as formas de reflexão sobre
Brasil (Ivan da Costa Marques); e, finalizando, uma resenha sobre o
controverso livro Investigação sobre os modos de existência: uma an-
tropologia dos modernos (Patricia Rilliane Gomes da Silva e Orivaldo
Pimentel Lopes Júnior).

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Desejamos a todos uma excelente e inspiradora leitura em torno des-
sas breves variações locais da herança latouriana.

Que esta diversidade seja o tributo deste Boletim ao extenso trabalho


deste autor.

BIBLIOGRAFIA

Foucault, M. O que é um autor? Lisboa: Veja, 1992.

Latour, B. Ciência em ação. Bauru: Unifesp, 1997.

Latour, B. L’Effet Latour - ses modes d’existence dans les travaux


doctoraux. Paris: Gryphe, 2014.

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Carta a Bruno Latour
Humanos e não-humanos
(re)descobrindo e (re)ocupando
sonhos para uma outra
educação ambiental
Adriana Maria Loureiro1
Fátima Teresa Braga Branquinho2

Caríssimo Professor, 1 Doutora em Ciências do Meio


Ambiente pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro;
Pedimos licença para lhe escrever, talvez movidas pela emoção do mo- Professora do Colégio Técnico da
mento que envolve sua partida recente, mas certas de estarmos condu- Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro. E-mail: amloureiro@
zidas pela sua noção de politemporalidade. Sim. Entendemos que es- ufrrj.br.

crever uma carta a essa altura não será em vão. É preciso confessar que 2 Doutora em Ciências Sociais
ficamos, em um primeiro instante, quando recebemos a notícia, na ma- pela Universidade Estadual
de Campinas. Professora da
nhã daquele domingo em outubro, com a sensação do “e agora?”, mas a Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. E-mail: fatima.
percepção de que seu pensamento segue vivo, nos deu a certeza de que [email protected].
uma carta seria um bom caminho para nos mantermos próximas a ele.

A ideia de lhe escrever tem um motivo que só compreendemos depois.


Cogitamus, trabalho em que o senhor escreveu cartas sobre humani-
dades científicas, foi o primeiro dos seus livros que nós duas pudemos
ler juntas. Sim, suas cartas foram o ponto de partida do percurso que
iniciamos em 2017, como orientadora e, naquele momento, orientan-
da de doutorado, que culminou com uma tese inspirada e guiada pela
sua obra. Juntas, no exercício de ser formigas, realizamos um estudo
com um povo indígena do Norte de Minas Gerais (2021). Sabíamos que
o percurso dessa pesquisa poderia ser realizado de diferentes modos,

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mas optamos por fazê-lo à luz da Teoria Ator-rede e trabalhar com as
incertezas, no entendimento de que seria o caminho para escaparmos
das hierarquias de saberes tão características da Ciência Moderna. E
agora estamos aqui, diante desse computador, a lhe escrever, provan-
do que a espiral, que se afastara um pouco daquele momento inicial
da leitura do Cogitamus, está passando bem pertinho dele novamente.

Nesse exato momento é possível ouvir daqui de onde estamos, em


frente ao computador, pensando na melhor forma e nas palavras que
serão escritas, a música “Meu Caro Amigo”, do Chico Buarque. “Aqui
na terra, tão jogando futebol”... E essa canção, então, serviu de ins-
piração para começarmos essa carta. Quanta coisa passa pela nossa
cabeça, quanta coisa para lhe falar, e quantos momentos em que bate
a necessidade de lhe ouvir... Pois é. Suas lives, durante a pandemia, fo-
ram um bálsamo de lucidez, principalmente para nós, povo brasileiro,
que enfrentamos aquele momento às cegas. Ouvi-lo sempre foi luz.

Embora não seja nosso desejo nos estendermos ou entediá-lo, é preci-


so repetir mil vezes que ler seus textos e ouvi-lo durante a pandemia,
fez-nos refletir e movimentar. E fomos lembradas, bem recentemente,
de uma entrevista sua publicada na Folha de São Paulo, em setembro
de 2020, em meio ao que chamou de “tempestade”: o senhor afirmou
que se o Brasil encontrasse solução para si, salvaria o resto do mundo.
Retomamos, então, a canção do Chico, pois não podemos nos furtar a
lhe contar a novidade: passamos pela tempestade! Se encontramos tal
solução, nós não sabemos, mas estamos conseguindo respirar, e isso já
está fazendo alguma diferença. A imagem abaixo representa um projeto,
uma meta, pois chegando lá misturado, estava um povo que não se ren-
de: idoso, criança, negro, índio, pessoa com deficiência, mulher catado-
ra de lixo, mulher socióloga, professor, a cadela Resistência, o Brasil ….
Juntos, subimos a rampa do Planalto e a faixa presidencial passou pelas
mãos e foi colocada em todos nós, brasileiros. Impossível não aproveitar
esta carta para dividir esse momento com o senhor. Ficamos imaginan-
do o que o senhor diria sobre o que se passou em Brasília, no dia 1º de
janeiro. Certeza de que sairiam muitos textos sobre isso.

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imagem: Cerimônia de posse do Presidente Lula
foto: Hermes de Paula / Agência O Globo – 01/01/2023

Mas vamos lá. Tentando ser mais objetivas, então, pois já revelamos
que não queremos amofiná-lo, gostaríamos de pegar dois pontos já
mencionados aqui: o período da pandemia e nosso estudo com povos
originários. Em livro publicado no ano de 2020, o senhor nos mandou
um recado, e gostaríamos de falar sobre ele: “se a angústia é tão pro-
funda, é porque cada um de nós começa a sentir o solo ruindo sob
os pés. Descobrimos, mais ou menos confusamente, que estamos
todos migrando rumo a territórios a serem redescobertos e reocu-
pados” (LATOUR, 2020, p.14). Aqui, sentimos que se torna impossível
não mencionar o Ailton Krenak, líder indígena que também muito nos
inspira, e que nos diz, em seu último livro, que “não podemos nos ren-
der à narrativa de fim de mundo que tem nos assombrado, porque ela
serve para nos fazer desistir dos nossos sonhos, e dentro dos nossos
sonhos estão as memórias da Terra e de nossos ancestrais” (KRENAK,
2022, p. 37). A angústia que o senhor mencionou se faz menor a cada
passo que damos em direção à noção do futuro ancestral que o Krenak
levanta, quando redescobrimos e nos reconectamos com os saberes
ancestrais, e nos movemos por essa espiral em diferentes sentidos,
buscando reocupar outros espaços.

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Entendemos, então, que esses espaços podem ser no campo do pal-
pável ou no campo das ideias. Quando vemos um rio na Nova Zelândia
(2017) e uma lagoa na Espanha (2022) serem reconhecidos como sujei-
tos de direito, percebemos espaços a serem ocupados, na noção de que
esses não-humanos são agentes, que mobilizam tanto... Lembramos,
então, aqui, do poeta Manoel de Barros (2010), que nos aponta essa
agência quando relata que ganhou um rio de sua mãe em seu aniver-
sário e estimou esse presente mais do que qualquer outra coisa, e que
quando, finalmente, seu irmão ganha uma árvore de presente, eles se
sentem completos: os pássaros passavam o dia nas margens do seu rio
e dormiam à noite na árvore do irmão. Assim, pensamos o seguinte:
muito se fala em educação ambiental e seguimos no pedestal, ignoran-
do o tanto que esses elementos não-humanos nos mobilizam.

Lembramos ainda, que na contra capa de um popular livro infantil


(2017) que conta a história de uma árvore, outro poeta, dessa vez o Mia
Couto, faz um relato sobre as árvores em sua terra, Moçambique, e nos
faz perceber a noção dos híbridos. Ele relata que “existem culturas em
que não há fronteira entre uma árvore e uma pessoa”. O poeta explica
que um humano pode ser árvore enquanto dorme, e ele nos fez lem-
brar do Krenak quando, em seguida, relata que “há árvores que são
humanas e que sonham dentro dos nossos sonhos”. É sobre isso que
estamos falando, Professor, sobre o que aprendemos com seus livros:
será que uma educação ambiental focada nesse não-humano que so-
nha dentro dos nossos sonhos não seria mais eficiente do que se tem
tentado, sem sucesso, até agora? Seriam esses sonhos territórios a se-
rem ocupados? Seu pensamento segue nos instigando e nos movendo.

Nossa ideia é continuar pensando, agindo e fazendo ciência como for-


migas. E lhe escrever outras cartas. Porque temos muito a lhe dizer e,
principalmente, temos muitas perguntas a lhe fazer.

Com todo o respeito e admiração,

Adriana e Fátima.

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REFERÊNCIAS

AMARAL, Ana Carolina. Se o Brasil achar solução para si, vai salvar o
resto do mundo, diz Bruno Latour. Folha de São Paulo, São Paulo, 12 set.
2020, Ambiente, Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/
ambiente/2020/09/se-o-brasil-achar-solucao-para-si-vai-salvar-o-resto-do-
mundo-diz-bruno-latour.shtml#:~:text=Se%20o%20Brasil%20achar%20
solução%20para%20si%2C%20vai,as%20principais%20questões%20
das%20próximas%20décadas%20estão%20visíveis>. Acesso em 01 jan. 2023.

BARROS, Manoel. Memórias inventadas para crianças. São Paulo: Editora


Planeta do Brasil, 2010.

FRANCE PRESS. Nova Zelândia concede “personalidade jurídica” a rio


venerado por maoris. G1, 16 mar. 2017. Disponível em <https://g1.globo.
com/google/amp/natureza/noticia/nova-zelandia-concede-personalidade-
juridica-a-rio-venerado-por-maoris.ghtml>. Acesso em 05 jan. 2023.

KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

LATOUR. Bruno. Onde aterrar? – como orientar-se politicamente no


Antropoceno. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2020.

LOUREIRO, Adriana Maria. Naturezas e Culturas em (Con)textos Xakrikabá


(MG): um estudo com educadores indígenas. Tese (Doutorado em Ciências
do Meio Ambiente). 2021. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

SEQUEIRA, Inês. O Mar Menor, em Espanha, torna-se o primeiro ecossistema


europeu com personalidade jurídica. Wilder, Portugal. 22 set. 2022.
Disponível em <https://www.wilder.pt/historias/a-lagoa-do-mar-menor-em-
espanha-e-o-primeiro-ecossistema-europeu-a-ganhar-direitos-proprios/>.
Acesso em 05 jan. 2023.

SILVERSTEIN, Shel. A árvore generosa. Tradução: Fernando Sabino.


São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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Memórias de uma
formiga tonta
Eu, Bruno Latour
e uma Tese
Jorge Ricardo Coutinho Machado1

O que é uma Tese? Em certa perspectiva, é o encontro entre um obje- 1 Licenciado em Química,
professor do IEMCI/UFPA,
to e uma teoria forte. Pensando assim, decidi, ainda como projeto de doutorou-se com uma Tese
Doutorado, que examinaria aquilo que pretendia pesquisar, a Escola de sobre uma escola de química
que existiu nos anos 1920 em
Chimica Industrial do Pará2, tendo como “teoria forte” uma abordagem Belém do Pará, examinada na
perspectiva da Teoria Ator-Rede.
marxista para me guiar na construção de uma história da expansão co- A instituição, um híbrido, fundada
lonial na região amazônica; uma narrativa engajada na denúncia do im- pelo francês Paul Le Cointe,
era mantida pela Associação
placável e insaciável capitalismo transnacional a se apropriar de corpos Comercial do Pará, com quem o
cientista realizou negociações e
e mentes na região, oferecendo-se como única alternativa viável diante estabeleceu alianças, oferecendo
do desespero do fim da era do látex, a belle-époque amazônica. perspectivas de retomada da
pujança econômica depois do
fim da belle-époque amazônica
Durante a seleção para o Doutorado, em uma tarde tipicamente ama- em troca de recursos para
construir um laboratório de
zônica, quente e úmida, na sala onde aconteciam as entrevistas a res- pesquisas de produtos naturais
peito de intenções, projetos e tudo o mais, travei o seguinte diálogo amazônicos. [email protected];
[email protected]
com meu futuro orientador:
2 Essa instituição existiu durante
os anos 1920, mais exatamente,
futuro orientador (recostado em uma cadeira, pernas de 1921 a 1930. Era escola de
cruzadas, fala tranquila): - Você poderia me citar alguns auto- química industrial, nos moldes de
um conjunto de seis instituições
res que hoje utilizam o marxismo para fazer História da Ciência? desse tipo criadas no Brasil. Ver
MACHADO, 2016.

eu (gaguejando e indeciso): - Bem, eu conheço… - E citei auto-


res de referência na área, nenhum, porém, historiador da ciência ou
fazendo História da Ciência naquele momento.

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futuro orientador (fleumático): - Bem, caso você queira eu
poderei orientar seu trabalho de Doutorado, com sua participação
constante no nosso grupo de estudos e comprometendo-se a rever
suas bases teóricas.

eu (entusiasmado): - Mas com certeza, professor!

Meu futuro orientador era pessoa extremamente cordata e sagaz, que


usou de delicadeza para me dizer, logo de início, que havia outras for-
mas, melhores, de se escrever uma história da ciência, nessa perspec-
tiva (militante!) que eu pretendia. Eu queria falar de uma Amazônia
condenada a ser almoxarifado da nação. Sabia que o fundador da es-
cola, o francês, depois das desilusões com o empreendimento, havia
escrito um texto onde dizia claramente que a Amazônia estava nas
mãos de “carreiristas inescrupulosos” e as rédeas do seu destino de-
veriam ser assumidas pelas nações do primeiro mundo, aquelas que
segundo ele estavam em condições econômicas e tecnológicas de
“conduzir” a Amazônia. Como até hoje: exportadora de recursos na-
turais com baixíssima elaboração, deixando estagnação econômica e
social ao redor de enclaves de prosperidade (???) no meio da selva. Eu
queria falar disso.

Bem, o Marxismo talvez me permitisse ter uma visão panorâmica, bem


do alto, sobre o contexto e o objeto que eu pretendia estudar. Talvez
não permitisse, porém, descer à planície enevoada, o campo das es-
colhas idiossincráticas, das recalcitrâncias e dos conflitos de interes-
ses, que vinham a mim a partir dos documentos examinados. Isso me
foi demonstrado logo nas primeiras reuniões do grupo de estudos no
doutorado. Uma leitura de Hobsbawm (2010), um autor marxista (re)
descoberto, me fez ver as limitações da minha, até então, teoria forte,
pois para ele (HOBSBAWM 2010, p.412) o marxismo, quando conso-
lidado em sua ortodoxia “foi o último triunfo da confiança científica
positivista do século XIX. Era materialista, determinista, inevitabilista,
evolucionista, e identificava firmemente as ‘leis da história’ com as
‘leis da ciência’. O próprio Kautsky considerou inicialmente a teoria

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da história de Marx como ‘nada além da aplicação do darwinismo ao 3 Essa “crise” é parte do
folclore e de digressões
desenvolvimento social’, afirmando, em 1880, que o darwinismo nas antológicas e etílicas nas histórias
contadas por doutorandos...
ciências sociais ensinava que ‘a transição de uma concepção de mun-
do velha a uma nova ocorre inelutavelmente’”. Ou seja, o positivismo 4 O termo “ANT” (formiga,
em inglês) é acrônimo para
de antigamente, mesmo que já de pijama e bengalas, o que era abomi- Actor-Network Theory -
Teoria Ator-Rede, nossa TAR.
nado por meu foucaultiano orientador, para quem isso já era passado. Algumas vezes Latour se refere
a nós, pesquisadores, como
Quando entrei em crise, mais ou menos no meio do percurso3, deso- formiguinhas...

rientado como uma formiga tonta4, fui apresentado por um colega 5 Como era conhecida a Belém
da Belle Époque. No período
a um texto (FREIRE, 2006) que me falou pela primeira vez do Latour. estudado por mim, entretanto,
A  leitura me abriu os olhos e me apontou outra obra, o Ciência em tal francesinha já estava de
mala pronta, vestidos surrados,
Ação (LATOUR, 2000), que li dando vivas. Achara, enfim, uma teoria perfume barato, frequentando
o cais de Belém tentando
forte que me permitia olhar para o mundo de uma forma absoluta- avidamente conseguir a qualquer
mente iluminadora; uma teoria que me permitia escrever de forma “li- custo uma passagem de volta
para o Velho Continente nos
terária”, etnográfica, histórica, como sempre sonhara fazer. Pouco an- paquetes da Booth Line...

tes ganhara de um aluno um livro estranho, uma História da Química


(BENSAUDE-VINCENT e STENGERS, 1992) diferente, que reli nesse mo-
mento e compreendi a postura das autoras. Durante o doutorado li
Yes, nós temos Pasteur (CUKIERMAN, 2007), outra obra fundamental
para me permitir ver as ideias de Latour transitando pela produção
científica além da modernidade. Esses três livros constituíram a san-
tíssima trindade, que eu adoraria doravante.

Com meu orientador, creio que eu poderia ficar no alto do monte, no


olimpo dos filósofos, degustando néctar e ambrósia, em agradáveis
cogitações. Eu, porém, não entendia Foucault. Latour, por outro lado,
mesmo escrevendo como um francês, foi muito claro para mim. Seu
texto sobre o Joliot (LATOUR, 2003) tornou-se quase um manual para
eu seguir outro francês pelas ruas da “francesinha dos trópicos”5. Por
um bom tempo acreditei que um era mais inteligível do que o ou-
tro. Só recentemente descobri que a questão era minha: no fundo,
é a simpatia à etnografia que me move, desde que li a introdução a
Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de Malinowski. Com essa mistura
de ciência e literatura, descobri que queria escrever assim e comecei a
estudar um pouco de antropologia.

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Isso me ajudou a fazer pesquisa em educação, nessa perspectiva, a de 6 Antes eu pretendia contar
A história. Essa mudança de
que a escola é uma “tribo moderna”, da qual devo me aproximar como um artigo definido para um
indefinido é bem ilustrativa da
Malinowski se aproximou das ilhas Trobiand. Durante muito tempo fi- atitude não-moderna que passei
quei assim, às voltas com a etnografia clássica. Era, nas palavras de a adotar, como autêntica formiga
tonta, obreira das etnografias
outro francês, um “obreiro” com minhas etnografias escolares sem sobre os modernos, narrativas
cheias de militância, relatividade
muita pretensão interpretativa. Eis que conheci as ideias de Bruno e indignação.
Latour, “os óculos”, com os quais desde então passei a olhar de forma
mais analítica e incisiva para a realidade.

Esse aporte teórico foi, creio, minha grande contribuição na produção


da Tese. Foi o que tornou inédito o trabalho, sobre um objeto que,
desde os anos 1950, já vinha sendo estudado. Entretanto, as narrati-
vas produzidas sobre a Escola de Chimica Industrial do Pará permane-
ciam na retórica iluminista, defendendo um ideal de progresso para
a região trazido pela ciência branca e europeia, capaz de “libertar os
nativos da ignorância” e vendo, por sua vez, os produtos naturais e o
contexto de Belém do Pará como envoltórios macios em torno do “nú-
cleo duro”; simples coadjuvantes da ciência (que pairava acima das
paixões humanas) e dos cientistas, mentes analíticas hipertrofiadas.

Minha Tese finalmente saiu em 2016. Creio ter conseguido contar


UMA história6 da Escola de Chimica como ninguém contou antes,
agenciando produtos naturais; ciência europeia; cientistas e suas es-
posas adoecendo com febres tropicais; estudantes belenenses meio
deslocados da realidade de uma cidade que prescindia de químicos;
comerciantes apenas sobrevivendo, sem prosperidade alguma, após
a quebra da borracha; fugas e suicídios em uma cidade marcada pelo
drama da pobreza, agora retirada da floresta e exibida nos salões de-
cadentes com a cera do piso desgastada e puídas cortinas de veludo.

Também escrevi uma autobiografia docente (MACHADO, 2019), olhan-


do, à luz da TAR, para minha trajetória de professor de química, que
um dia jurara nunca mais pisar em uma sala de aula e que hoje forma
futuros professores em uma Universidade na periferia da modernida-
de, vivendo a realidade de um presente sem empregos na Amazônia e

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assistindo a uma progressiva precarização de todas as formas de tra-
balho na região. Aprendi a olhar para a realidade de maneira empol-
gante, rica, que enovela meus interesses de longa data: a literatura, a
etnografia, a ciência, a história, o fazer acadêmico. Minha direção se-
gura nesse processo de síntese, militância e convergência, creio, devo
a Bruno Latour.

REFERÊNCIAS

BENSAUDE-VINCENT, Bernardette. e STENGERS, Isabelle. História da


Química. Lisboa, Instituto Piaget, 1992.

CUKIERMAN, Henrique. Yes, nós temos Pasteur. Manguinhos, Oswaldo Cruz e


a História da Ciência no Brasil. Rio de Janeiro, Relume Dumará/FAPERJ, 2007.

FREIRE, Letícia de Luna. Seguindo Bruno Latour: notas para uma antropologia
simétrica. Comum, Rio de Janeiro, v.11, n.26, p.46-65, Janeiro/junho, 2006.

HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios (1875-1914). São Paulo, Paz e Terra, 2010

LATOUR, Bruno. Joliot: a história e a física misturadas. In: SERRES, Michel


(dir.) Elementos para uma história das ciências. Lisboa, Terramar, 2003. Vol. 3

LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros


sociedade afora. São Paulo, Editora UNESP, 2000.

MACHADO, Jorge. Educação, ciência e redenção econômica em uma capital


na periferia da modernidade: a Escola de Chimica Industrial na Belém dos
anos 1920. Belém, UFPA, 2016. Tese de Doutorado

MACHADO, Jorge Ricardo Coutinho. Recordando “à sombra das


palheteiras: uma crônica (afetiva) da formação docente no clube de
ciências da UFPA. In: Anais do encontro nacional de Clubes de Ciências
2019. Belém(PA) UFPA, 2019. Disponível em: <https//www.even3.com.br/
anais/enacc/229145-RECORDANDO-A-SOMBRA-DAS-PALHETEIRAS--UMA-
CRONICA-(AFETIVA)-DA-FORMACAO-DOCENTE-NO-CLUBE-DE-CIENCIAS-
DA-UFPA>. Acesso em 05/12/2022

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O que faltou para ser formiga?
Diálogo pós-orientação de um
trabalho de conclusão de curso
Viviane Fernandez1
Fátima Kzam Damaceno Lacerda2
Leonardo do Vale Terra3

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo homenagear Bruno Latour descrevendo um 1 Doutora em Ciências
Ambientais pela Universidade do
diálogo inspirado naquele em que um aluno aflito em “usar” a Teoria Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e
Professora do curso de graduação
ator-rede (TAR) discute com o seu professor (LATOUR, 2012, p. 205-226).
em Ciência Ambiental da
Universidade Federal Fluminense
Trata-se da história do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de um (UFF). E-mail: vivianefernandez@
id.uff.br
aluno extremamente dedicado, questionador e reflexivo, que, depois
2 Doutora em Ciências
de muitas dúvidas sobre o tema que iria abordar, escolheu o próprio
Ambientais pela Universidade do
curso como objeto de estudo. O trabalho (TERRA, 2022) foi apresenta- Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
e Professora Adjunta da UERJ/
do em dezembro de 2022 e avaliado por uma banca examinadora que CEDERJ. E-mail: fatima_kzam@
yahoo.com.br
lhe conferiu a nota máxima.
3 Bacharel em Ciência Ambiental
O que poderia gerar esse diálogo, além de elogios e aplausos para pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). E-mail:
um trabalho perfeito? A vontade de ser formiga, tanto da orientadora [email protected]
quanto do aluno. O aluno, por estar em vias de se apropriar do lápis da
teoria ator-rede (LATOUR, 2012). Já a orientadora, pelo aprendizado de
saber a hora de trabalhar e a hora de repousar, de aprender com a ci-
garra e esperar o momento certo para tecer comentários que importam
apenas para os que realmente pretendem suspender as dicotomias em
seu fazer científico (FERNANDEZ, MACEDO e BRANQUINHO, 2018).

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Utilizamos como material empírico trechos do próprio TCC, os comen-
tários destacados durante a leitura realizada antes da apresentação,
mas que não couberam na orientação, além das experiências vividas
na universidade.

O DIÁLOGO

professora: Oi, mais tranquilo depois da apresentação? 

aluno: Estou aliviado e muito feliz por ter concluído o curso. Eu con-
segui!

p: Sim! E com louvor. Seu TCC ficou impecável. Tão bom que eu não
tive nem coragem de colocar caraminholas na sua cabeça antes da
apresentação. Mas falei que havia pontos para conversarmos depois,
lembra?

a: Lembro. Estou ansioso.

p: Na verdade não é sobre pontos isolados, é sobre a violação de alguns


princípios da TAR, que você escolheu como metodologia.

a: Puxa, isso é grave.

p: Não é não. É apenas uma curva do seu rio e “um rio não é uma de
suas curvas”, certo? Essa curva está nos trazendo a oportunidade de
aprendizado.

a: Você prestou atenção até na epígrafe?

p: Sim, para a TAR, tudo o que faz-fazer, que promove uma ação,
importa. Você lembra do livro “No tempo das catástrofes”, da Isabelle
Stengers, onde lemos sobre a arte de ter cuidado? É nesse sentido que
Latour propõe que façamos uma ciência mais cuidadosa, devagar, não
indo muito rapidamente para as afirmações.

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a: Me lembro sim.

p: Então vamos ler o título do seu trabalho “Formação de profissionais


perceptivos no curso de ciência ambiental da Universidade Federal
Fluminense: um caminho para a religação dos saberes?”. Olha quanta
certeza há nele: (i) que os cientistas ambientais formados pela UFF são
poliperceptivos, (ii) que a polipercepção é um conceito bem definido,
(iii) que essa polipercepção pode ser um caminho para a religação dos
saberes e, (iv) que a religação dos saberes é uma meta a ser alcançada.

a: Mas professora, eu escrevi 93 páginas refletindo sobre isso, citei vários


autores para embasar minhas colocações. Citei as principais referências
da disciplina Epistemologia do Meio Ambiente, quando cursei em 2017!

p: Então, tudo faz sentido, está tudo perfeito, mas não é TAR. O que é
TAR no seu trabalho é a cuidadosa descrição, típica de uma formiga
míope, do seu percurso ao longo da graduação nos ambientes internos
e externos à universidade. Ela nos conta o que forma um profissional
poliperceptivo na prática, ela dá vida ao objetivo descrito no Projeto
Pedagógico do curso (PPC) que é “a formação de profissionais poli-
perceptivos dotados de saberes das diversas áreas de conhecimento e
capacitados em conhecimentos e habilidades que os possibilite a agir
ativamente, de forma eficaz, eficiente e com efetividade e congruência.
Esta capacidade interdisciplinar de analisar e de desenvolver soluções
é ponto central no processo de ensino-aprendizagem neste curso de gra-
duação” (UFF, 2021, p.19).

a: Mas eu fiz essa descrição. Não entendi qual é o problema.

p: O problema, de novo, o problema apenas para a TAR, é que você quis


ir além e questionar o objetivo da polipercepção a partir de outro pará-
grafo do PPC “O curso representa uma iniciativa que possibilita, [...] o
estabelecimento de uma concepção interdisciplinar e transdisciplinar
de formação superior para o desenvolvimento sustentável” (UFF, 2021,

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p. 4). Ora, um estudo TAR não atribui valor de antemão a qualquer
proposta, como o desenvolvimento sustentável.

a: Mas muitas disciplinas do curso questionam esse conceito mostrando


como ele contém a ideia de desenvolvimento inerente ao capitalismo.

p: Sim. Tudo isso é muito importante. Aprendemos muito com a his-


tória e com o conhecimento construído por todas as disciplinas cientí-
ficas, mas queremos mais. Vamos? O desafio da TAR é ousar construir
conhecimento de outra forma, suspendendo a distância entre o sujeito
conhecedor e o objeto a ser conhecido. A ideia do desenvolvimento está
arraigada na busca pela verdade, pelo progresso, típica da modernida-
de e do que caracterizaria a humanidade.

a: Não sei, acho que preciso trabalhar, sabe? Me sinto meio paralisado
em tantas reflexões filosóficas.

p: Entendo. Vou ler a contracapa do livro “Conversações”, para você re-


visitar quando precisar e quiser localizar o lugar e a importância das
suas reflexões que te fazem-fazer. Vamos lá: “Por que reunir textos de
entrevistas que se estendem por quase vinte anos? Certas conversações
duram tanto tempo, que não sabemos mais se ainda fazem parte da
guerra ou já da paz. É verdade que a filosofia é inseparável de uma có-
lera contra a época, mas também de uma serenidade que ela nos asse-
gura. Contudo, a filosofia não é uma potência. As religiões, os estados,
o capitalismo, a ciência, o direito, a opinião, a televisão são potências,
mas não a filosofia. [...] Não sendo uma potência, a filosofia não pode
empreender uma batalha contra as potências; em compensação, trava
contra elas uma guerra sem batalhas, uma guerra de guerrilha. Não
pode falar com elas, nada tem a lhes dizer, nada a comunicar, e ape-
nas mantém conversações. Como as potências não se contentam em ser
exteriores, mas também passam por cada um de nós, é cada um de nós
que, graças à filosofia, encontra-se incessantemente em conversações e
em guerrilha consigo mesmo” (DELEUZE, 2013, p. 9).

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a: Gostei, obrigado. Mas…voltando ao TCC, como você acha que o
título do trabalho caracterizaria um trabalho TAR? Qual seria o meu
objeto híbrido, o centro da rede sociotécnica?

p: Boa pergunta! Você sabe que eu guardo meus rascunhos. Olha esse
desenho (Figura 1) e me diga o que acha:

figura 1: Anotações da professora

a: Faz sentido. A polipercepção é um conceito central no PPC, mas


que pode não ser visto apenas como um objeto purificado, ele acon-
tece na prática, nas práticas de mediação que fazem parte da minha
trajetória no curso. Nossa, é o tal do relato arriscado mesmo, rs.

p: Sim!!! E você ousou fazer esse relato. Está lindo. Apenas não disse
que estava fazendo isso. A contradição (ou seria controvérsia?) foi fa-
zer referência à TAR na sua metodologia, mas se agarrar demais em

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certezas prévias. Acho que você colocou mais peso nas discussões sobre
a finalidade da formação do que no percurso da formação em si.

a: Hummm. O que você acha desse título: “Do que é feita a forma-
ção de profissionais poliperceptivos no curso de Ciência Ambiental da
UFF? Um estudo autoetnográfico (2016-2022)”.

p: Uau!! Perfeito! Preciso te agradecer por ter topado incluir algo como
autoetnografia, autobiografia, escrevivência, no seu TCC. Eu gostaria
de investir na aproximação da TAR com essas abordagens nas minhas
pesquisas. Os estudantes estão me ajudando muito.  Seus TCCs estão
atravessando a minha própria biografia de forma significativa.

a: Eu que agradeço. Depois me conta mais sobre esses atravessamen-


tos. Quem sabe quando nos encontrarmos para aquele chá que com-
binamos com a banca...

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No momento da construção deste artigo, este diálogo ainda não acon-


teceu, mas certamente irá acontecer, ou poderia ter acontecido, não
importa. O que importa é que “graças ao transporte imaginativo, você
ocupa simultaneamente todos os quadros de referência, deslocan-
do-se para dentro e para fora de todas as personae delegadas que o
narrador oferece” (LATOUR, 2017, p. 223). Assim, espera-se contribuir
para os muitos professores e alunos dispostos a usar o lápis da ANT.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). São Paulo: Editora 34, 2013


(3ª Edição).

FERNANDEZ, Viviane; MACEDO, Joana; BRANQUINHO, Fátima Teresa Braga


(org). Pedra, planta, bicho, gente...coisas: encontros da teoria ator-rede com
as ciências ambientais. Rio de Janeiro; Mauad X: FAPERJ, 2018. 184p.

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LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede.
Bauru: Edusc e Salvador: Edufba, 2012.

______. A Esperança de pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos


científicos. Bauru: Editora UNESP, 2017.

STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

TERRA, Leonardo do Vale. Formação de profissionais poliperceptivos


no curso de Ciência Ambiental da Universidade Federal Fluminense: um
caminho para religação dos saberes? 2022. Trabalho de Conclusão de
Curso (Bacharelado em Ciência Ambiental) - Instituto de Geociências,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022.

UFF. Universidade Federal Fluminense. Projeto Pedagógico do curso


de graduação em Ciência Ambiental. Niterói, 2021.

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As tulipas
do Latour nos levam
a rede toda
Eleandra Raquel da Silva Koch1

INTRODUÇÃO

Diante de várias ondas de contaminação, especialmente antes da che- 1 É antropóloga e doutora


em Desenvolvimento Rural
gada da vacinação para a Covid-19, vivenciamos literalmente a exa- pela Universidade Federal
cerbação do exercício pessoal e coletivo do que significa literalmente do Rio Grande do Sul. E-mail:
[email protected]
“viver nas ruínas” (TSING, 2019). Isto é, nos escombros daquilo que se
transformou a Modernidade. No sentido de que as incertezas e perple-
xidades que emergiram com a pandemia evidenciaram de forma trági-
ca a falta de conhecimento das consequências e dos riscos que carac-
terizam esta era do Antropoceno - um período de extinção em massa
de inúmeras espécies em que somos incapazes de dimensionar a ação
da “vida feral” (TSING, 2019) que deriva dos processos de superexplo-
ração do ambiente e das mudanças climáticas (BECK, 2009). Assim,
esse ensaio - que busca homenagear a memória de Bruno Latour - é
para mim uma oportunidade de não deixar de registrar um laço idílico
que constitui com esse autor que foi essencial para a escrita da minha
tese (KOCH, 2022), especialmente durante a pandemia. E o faço a par-
tir do resgate das recorrentes menções que ele fez a uma das minhas
flores preferidas, as tulipas.

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PANDEMIA: CONEXÕES HUMANAS E NÃO HUMANAS
INESPERADAMENTE DESCONTINUADAS

Considerando a interrupção forçada de inúmeras atividades pela exis-


tência da Covid-19, Latour, no ensaio “Imaginando gestos que barrem
o retorno ao consumismo e à produção insustentável pré-pandemia”,
nos propôs uma espécie de inventário daquilo que estava suspenso,
ou, ainda a imaginação daquilo que gostaríamos que retornasse, bem
como, daquilo que gostaríamos de superar. Ou seja, quais seriam os
efeitos das inúmeras modificações bruscas nos modos como costu-
mávamos existir e nos relacionar entre humanos e não humanos.
Nesse contexto, em março de 2020, ao tematizar inúmeras afetações
e/ou afecções causadas pela existência do SARS COV-2 (COVID-19), ele
escolheu acionar as tulipas, vindas da Holanda para a França, para
elucidar as redes de relações que estavam inesperadamente e inesca-
pavelmente suspensas pelo advento da pandemia.

Por exemplo, outro dia mostraram na televisão um floricultor


holandês, com os olhos cheios de lágrimas, porque teve que jo-
gar fora toneladas de tulipas já prontas para serem embarcadas:
não podia mais enviar as tulipas de avião para os quatro cantos
do mundo porque não tinha clientes. Só podemos lamentar, é
claro; é justo que ele seja compensado. Mas então a câmera re-
cuou, mostrando que suas tulipas são cultivadas hidroponica-
mente e sob luz artificial antes de serem entregues aos aviões
de carga no aeroporto de Schiphol, em Amsterdam, sob uma
chuva de querosene. O que justifica a dúvida: “Será realmente
útil continuar esta forma de produzir e vender este tipo de flor?
(LATOUR, 2020a).

Alguns meses depois da publicação desse ensaio acima citado, Latour,


em “Onde Aterrar - Como se orientar politicamente no Antropoceno”,
ao tematizar sobre um mundo pós-pandemia possível, sustentou que
“a crise da pandemia estava embutida em algo que não é uma crise –
‘algo sempre passageiro’ –, mas “uma mutação ecológica duradoura
e irreversível” (LATOUR, 2020a). Tratando-se, assim, de vivenciarmos

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um momento sem precedentes, diante da erupção da Terra como um
ator político, pois “não se trata de pequenas flutuações climáticas,
mas de uma perturbação que mobiliza o próprio sistema terrestre”
(LATOUR, 2020b, p. 52). Como decorrência de tal situação, ele adver-
tiu que não podemos mais contar as mesmas histórias, pois a própria
ideia de Antropoceno foi transbordada, visto que:

[...] é claro que os humanos sempre modificaram o meio am-


biente, mas isso se referia apenas ao seu entorno, aquilo que
precisamente os circundava. Eles seguiam sendo os persona-
gens centrais [...]. Os humanos não são mais os únicos atores,
ainda que acreditem desempenhar um papel muito mais im-
portante do que realmente possuem” (LATOUR, 2020b, p. 56).

Buscando um termo que desse conta “da surpreendente originalidade


e longevidade desse agente” (LATOUR, 2020b, p. 51), ele denominou
(talvez provisoriamente) esse ator como o Terrestre (T) e, assim, o ‘T’
emerge como um novo ator-político relevante, pois o terrestre não é
um “pano de fundo” ou um cenário em que as ações de outros atores
são desenvolvidas e, sim, trata-se de um agente que participa inesca-
pavelmente da vida pública, pois esse ator

[...] reage às ações dos homens e impede os modernizadores


de saberem onde se encontram, em que época e, sobretudo,
qual o papel que devem representar a partir de agora (LATOUR,
2020b, p.53, grifo do autor).

Retornando à experiência particular de escrita da tese e da companhia


dos escritos de Latour neste percurso, naquele momento de confina-
mento, importa assinalar que, de forma compulsória, novos modos
de observar e de comunicação com o campo de pesquisa surgiram
naquela época, entretanto, durante um tempo me senti paralisada.
Pois, não era possível saber como seria lidar com a ausência do cam-
po presencial, mas antes disso, eu não sabia como meu corpo lidaria
com uma possível contaminação pelo novo Coronavírus. Muito menos

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ainda se seria possível alcançar a vacinação a tempo de me proteger,
bem como, as minhas interlocutoras, aos meus familiares e amigos.

Voltando às tulipas, desconfiei que Latour, ao mencioná-las, referia-se


aos modos que sua própria existência assumia diante da impossibili-
dade de tê-las e as tomava como exemplares da sua “cota individual”
de suspensão de consumos diante da crise. Um tempo depois, na live
“Imaginar el mundo después de Covid 19” (em 03 de maio de 2021), ele
parou a sua fala, sorriu e mostrou as próprias tulipas [holandesas] em
sua estante. Então, ele nos revelou que tinha tido Covid e que havia
voltado a comprar tulipas! Ele justificou o retorno, a esse ‘consumo’
que ele havia se abstido, mencionando algo do tipo: “[na pandemia]
não temos contato com a natureza, pois os parques estão fechados
(LATOUR, 2020/24 m:06s).

Observa-se que, ao Latour acionar essas flores, para ilustrar afeta-


ções estruturais do mundo pandêmico, as insere numa ampla rede
de relações entre humanos e não humanos que estão conectados e
afetados pelo momento pandêmico: cultivador de tulipas; televisão
que noticiou; avião para o transporte; câmera que recuou e demons-
trou a chuva de querosene que as pulverizam. Ocorre que essas redes
de relações, até então, eram contínuas e naturalizadas, sem que fos-
sem visualizadas todas as associações que possibilitaram que as flo-
res chegassem até a casa de nosso autor, por exemplo. Desse modo,
podemos pensar num gesto heurístico de Latour, no sentido de que
escolheu essas flores, justamente, para apresentar e elucidar as redes
sociotécnicas afetadas pelo surgimento do novo vírus, pois diante
da emergência de uma pandemia inesperada, todas essas relações
estabilizadas foram evidenciadas. A descontinuidade de parte des-
sas conexões, a exemplo da impossibilidade de continuarem sendo
transportadas da mesma forma, elucidou que tal ação aparentemente
singela, dependia da associação e agenciamento de inúmeros atores
humanos e não humanos que tiveram os seus modos de existências
modificados pelo surgimento do novo coronavírus.

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Nesse ponto, é importante situar o acionamento que faço do conceito
de “rede sociotécnica”, preconizado por Latour no âmbito da Teoria
do Ator-Rede (TAR). Redes Sociotécnicas não são tomadas enquanto
lugares físicos, mas como associações híbridas entre os diferentes ato-
res humanos e outros-que-humanos que agem entre si nas redes em
que estão conectados. Nesse sentido, oriento-me teoricamente por
aquelas abordagens que concebem que o ‘social’ não é dado a priori,
e sim que é entremeado por associações, as quais não são reduzidas
às relações entre humanos (LATOUR, 2012; TSING, 2019). Destaque-se
que é, justamente, da subtração das análises desses inúmeros agen-
ciamentos e associações decorrem as traduções, as quais podem ser
compreendidas enquanto a interpretação dada pelos atores a tais as-
sociações híbridas que ocorrem nas redes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desses pontos de vista analíticos, os enunciados científicos são com-


preendidos para Latour como resultados dos processos de tradução
que ocorrem nas redes sociotécnicas, nas quais os próprios artefatos
técnicos e práticas sociais coexistem. Para que tal exercício analítico e
prático se realize, ele nos propõe a desnaturalização dos enunciados
da Ciência, pois ele assevera que “aquilo que é conhecido como um
enunciado é [na verdade] a etapa final da controvérsia e, de maneira
alguma, o seu início” (LATOUR, 2016, p. 81). Sustenta o nosso autor
que seguir a pluralidade ontológica é uma maneira de nos “libertar-
mos da divisão sujeito-objeto” (2019, p.15).

Portanto, a lição epistemológica mais cara que me marca neste mo-


mento de sua partida é a de que é preciso seguir os rastros e vestígios
das práticas nas redes sociotécnicas onde os diferentes domínios são
emaranhados e as políticas são produzidas, pois os artefatos acionados
pelos atores provocam mudanças nas situações a partir de seus efeitos
sobre a rede toda. Contudo, não se trata de atribuir agência “em si” aos

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atores humanos e não humanos, já que eles se tornam significativos na
medida em que estão associados a uma rede de relações.

Por fim, desejo que tenha havido belas tulipas na despedida de um


dos maiores ‘vultos’ de nossa época.

REFERÊNCIAS

KOCH, Eleandra. Reexistência Quilombola e Disputas Ontológicas diante


das políticas de “Desenvolvimento”. A luta do quilombo da Anastácia
(Viamão/RS). Tese (Doutorado em Desenvolvimento Rural). Programa de
Pós- Graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2022.

LATOUR, Bruno. Cogitamus: seis cartas sobre as humanidades científicas.


São Paulo: Editora 34, 2016.

LATOUR, Bruno. Imaginando gestos que barrem o retorno ao consumismo


e à produção insustentável pré-pandemia. Clima Info, 2020a. Disponível
em https://climainfo.org.br/2020/04/02/barrar-producao-insustentavel-e-
onsumismo/. Acesso em: 22 dez. 2021.

LATOUR, Bruno. Investigação sobre modos de existência. Uma antropologia


dos Modernos. Petrópolis: Editora Vozes, 2019.

LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no


Antropoceno. 2. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020b.

LATOUR, Bruno. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria Ator-Rede.


Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador/Bauru: Edufba/Edusc, 2012.

LATOUR, Bruno. Imaginar el mundo después de Covid-19. YouTube,


03 de maio de 2020. disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=TOP7HRPl5gM. Acesso em 12 de dez. de 2022.

TSING, Anna Lowenhaupt. Viver nas ruínas: paisagens e multiespécies


no antropoceno. Brasília: IEB Mil folhas, 2019.

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Encontros entre praticantes
de tradições de conhecimento
divergentes
o mundo é muito maior
do que eu imaginava
Elisa Sampaio de Faria1

INTRODUÇÃO

Sou uma praticante das ciências, com licenciatura em ciências bioló- 1 Licenciada em Ciências
Biológicas e doutora em
gicas e doutorado em educação. Em 2019, recebi um cocar como agra- Educação pela Universidade
decimento do Kamasary Ademário Braz Ferreira, indígena Pataxó da Federal de Minas Gerais (UFMG),
com passagem pelas linhas
Aldeia Coroa Vermelha - Bahia, pelo trabalho que fizemos juntos, quan- de pesquisa “Educação e
ciências” e “Educação, cultura,
do atuei como orientadora da sua monografia de conclusão de curso movimentos sociais e ações
na Formação Intercultural para Educadores Indígenas na Universidade coletivas”. Atualmente, realiza
pesquisa com cientistas e com
Federal de Minas Gerais. Em 2022, recebi amigos em casa, que viram o comunidades de tradições da
matriz africana e atua como
cocar e me sugeriram emoldurá-lo. Eu disse que não o faria, pois ao me técnica em assuntos educacionais
presentear, Kamasary me orientou que quando eu participasse de um no Centro Pedagógico da
Escola de Educação Básica e
movimento com indígenas eu o vestisse. O cocar é um “vínculo”(atta- Profissional da UFMG. E-mail:
[email protected]
chement, em francês) que me faz ser afetada pelas questões de interes-
se dos povos indígenas (Cf. LATOUR, 2015, p. 123-146).

O vínculo designa, de maneira não determinante, o que “faz fazer”, o


que afeta, o que coloca em movimento (Cf. LATOUR, 2015, p. 126-127).
O vínculo é o que faz as pessoas serem capazes ou tornarem-se capazes
de sentir, pensar, criar (Cf. STENGERS, 2005, p. 191). Latour descreve os
modernos como aqueles que tem como ideal a ausência de vínculos,

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que veem os que não são modernos como primitivos povos vinculados
a ficções (LATOUR, 2015, p. 131). A invasão europeia das Américas, por
exemplo, marcou o início de um tempo em que os vínculos dos que
não eram modernos passaram a ser violentamente substituídos. Os co-
lonizadores exigiam ver o que seria a imagem do progresso, do desen-
volvimento, do monoteísmo e da verdade universal (SANTOS 2015).
Essa frente de modernização acusa os que jamais foram modernos de
atrasados e exige que se libertem dos seus vínculos. Entretanto, não
é possível imaginar uma existência em que se solicita a todos(as) que
deixem para trás os seus vínculos, pertencimentos e obrigações, que
abandonem tudo aquilo que os permite existir e que os faz ser quem
são. A transição de um estado vinculado para um estado absolutamen-
te livre de vínculos seria o completo cessar de qualquer ação, isto é, o
inexorável fim da vida (Cf. LATOUR, 2015, p. 136-137).

Latour resume os vínculos dos modernos aos dois grandes acumulado-


res da tradição da Modernidade: “a natureza e a sociedade” (LATOUR,
2015, p. 142). Antônio Bispo dos Santos, mais conhecido como Nego
Bispo, em seu livro “Colonização, Quilombos: Modos e significações”
(2015), argumenta que cada povo desenvolve a sua cosmovisão a par-
tir de sua religiosidade. Nego Bispo destaca que o europeu, cristão e
monoteísta – o modelo ideal da Modernidade – tem um Deus oniscien-
te e onipresente, e ao mesmo tempo inatingível, desterritorializado e
acima de tudo e de todos, tendendo a se organizar de maneira exclusi-
vista, linear e vertical. “Isso porque ao tentarem ver o seu Deus, olham
apenas em uma única direção. Por esse Deus ser masculino, também
tendem a desenvolver sociedades mais homogêneas e patriarcais.”
(SANTOS, p. 38-39) Conectando as duas leituras, adiciono ao resumo
latouriano de vínculos dos modernos – os acumuladores natureza e
sociedade – o vínculo com o Deus único.

Então, a diferença entre os modernos e os que não são modernos não


deve se referir à oposição de um estado vinculado a um estado de li-
berdade (LATOUR, 2015). A ideia de um sujeito livre de vínculos é um
absurdo. Se um corpo está vivo, está vinculado, no mínimo àquilo do

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qual sua vida depende, é colocado em movimento por sua rede de
vínculos e coloca essa rede em movimento. Portanto, a diferença en-
tre praticantes das ciências modernas e do candomblé, por exemplo,
é caracterizada exatamente por aquilo a que os praticantes de cada
tradição são vinculados. Isto é, o que os faz divergir é aquilo que os
afeta, é o que faz um praticante saber que pertence a um grupo e a um
lugar peculiares (LATOUR, 2015, p. 141-143; STENGERS, 2005, p. 190).
Um grupo de cientistas está vinculado a uma rede sócio-material ca-
racterística, enquanto uma comunidade de praticantes do candomblé
está vinculada a uma rede sócio-material distinta. A liberdade consis-
te no direito de não ser privado dos laços que fazem os diferentes pra-
ticantes existir e divergir (LATOUR, 2015, p. 140).

DISCUSSÃO E CONCLUSÃO

Comecei este texto me apresentando como praticante das ciências,


portanto, como uma herdeira da tradição moderna, e comentando
sobre um encontro interessante que vivi com Kamasary. Com Latour,
descrevi os modernos como aqueles que não compreendem pessoas
de tradições que jamais foram modernas; que, pelo contraste com um
modelo de desvinculamento que significa a morte, interpretam essas
pessoas como primitivas ou exóticas (LATOUR, 2015, p. 141). De fato,
antes de um bom encontro com Kamasary e outros amigos e amigas
que não são praticantes das ciências, vivi acontecimentos desafia-
dores ao tentar realizar uma pesquisa sobre as aulas de ciências em
um curso de formação de professores indígenas. As maneiras de fazer
pesquisa nas “Ciências Biológicas” e na “Educação em Ciências” mar-
caram a minha formação como pesquisadora. Coletar dados, ordenar,
separar, purificar, rotular, distanciar, e categorizar são práticas que im-
pregnaram os meus primeiros passos como pesquisadora.

Anos antes do meu encontro com Kamasary, comecei a estudar algu-


mas das obras de Bruno Latour. Com Latour, aprendi que não há lógi-
ca universal nem instituições absolutamente abrangentes capazes de

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abarcar os muitos diferentes mundos habitados por nós, terráqueos.
A verdade científica não é sinônimo de uma autoridade universal, de-
finitiva e inocente. Os conhecimentos, fatos e verdades que as ciên-
cias e outras tradições de conhecimento fabricam são situados em lu-
gares, apoiados em redes sócio-materiais que não estão destinadas a
abranger tudo. As realidades são feitas de modo situado e contingen-
te, então, assim também devem ser fabricados os nossos encontros
com pessoas que pertencem a outras tradições de conhecimento.

As questões que a obra de Latour me provocam dizem respeito aos


meus vínculos enquanto uma praticante das ciências: uma imensa
rede de vínculos mais do que humana, a qual eu aprendo a observar
com cuidado e atenção. Perguntei-me e sigo me perguntando quais
são esses vínculos, o que fazem, como me afetam. Essas perguntas
me possibilitam cultivar novos vínculos parciais. Fiz amigos em comu-
nidades de diferentes tradições da matriz africana, fiz amigos de dife-
rentes povos indígenas, e aprendo com elas e com eles a circular em
outros mundos, a cultivar o cuidado e a atenção nas minha práticas
científicas, a criar práticas de conhecimento que me tornam uma pes-
quisadora mais sensível e mais viva, acessando realidades cada vez
mais controversas e exuberantes.

A obra de Latour segue me provocando novas questões. Vivemos em


de tempos de obscurantismo, negacionismo e teorias da conspiração,
imersos em uma cortina de fumaça (LATOUR, 2015). Esse é um desas-
tre terrível, mas a reação de cientistas não é menos desastrosa. Muitos
cientistas estão entre aqueles que se consideram racionais, que denun-
ciam a estupidez e que pensam que a questão é educar corretamente
as pessoas. Mas nós, praticantes das ciências, também podemos estar
intoxicados por essa cortina de fumaça. Latour enfatiza que a questão
não é saber como policiar as falhas do pensamento e do conhecimen-
to. A questão é realizar que os fatos nunca se sustentaram sozinhos! Os
fatos se sustentam sobre uma rede de vínculos, que inclui instituições
nas quais se pode confiar, porta-vozes com uma vida pública razoável,
uma imprensa séria na medida do possível (LATOUR, 2015).

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Enquanto praticantes das ciências habitando um mundo perigoso,
onde podemos nos perder em meio à cortina de fumaça, precisamos
distinguir o que nos ajuda do que nos trai, quem é nosso amigo e quem
é nosso inimigo. Devemos escolher com quem fazer alianças e contra
o quê lutar, colocando em ação práticas científicas coletivas, inventi-
vas e atentas às suas consequências, sustentando que é normal, é jus-
to, é indispensável para a vida humana na Terra proteger um territó-
rio, uma comunidade, um modo de vida, uma profissão, uma prática
ancestral. Honrar as diferenças pode nos tornar capazes de globalizar
experiências para além das fronteiras das ciências, conhecendo mo-
dos de viver diferentes dos nossos, acessando outros pontos de vista
e, sobretudo, criando modos de viver parcialmente conectados com o
que está no exterior das ciências, de modo a acolher, descrever, per-
petuar e multiplicar a diversidade presente neste mundo muito vivo e
heterogêneo. Se deslocarmos a nossa atenção da matéria para a nos-
sa rede de vínculos e cultivarmos conexões parciais com pessoas de
tradições de conhecimentos diferentes, então, o que se abre diante de
nós é um tempo de circular nos infinitos modos possíveis de existir na
Terra e de aprender sem medida.

REFERÊNCIAS

SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, Quilombos: Modos e significações.


Universidade de Brasília: Brasília, 2015.

LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no


antropoceno. Trad. Alyne Costa. Bazar do Tempo: Rio de Janeiro, 2020.

LATOUR, Bruno. Faturas/Fraturas: da noção de rede à noção de vínculo.


ILHA, v. 17, n. 2, p. 123-146, 2015.

STENGERS, Isabelle. Introductory notes on an ecology of practices. Cultural


Studies Review. V.11, n.1. 2005.

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Educação e ciênci(as)
encontros a partir da rede
sociotécnica Milho-Xakriabá
Ana Carolina Machado Ferrari1
Rebeca Cássia de Andrade2

1 Doutora e Mestra em Educação


(UFMG); Pedagoga (UEMG).
Tem experiência na área de
Educação, com ênfase em
Educação Inclusiva, Educação
INTRODUÇÃO Organizacional, Formação de
Professores e em Coordenação
Pedagógica. Docente em cursos
Este ensaio se produz como parte de uma extensa rede sociotécnica de graduação e pós-graduação
(Centro Universitário UNA).
emersa durante o período de desenvolvimento de duas teses diferen-
Pesquisadora vinculada a
tes3 na área da Educação, que se encontram em práticas associadas diferentes grupos de pesquisa
(FaE/ UFMG). Tem interesse nas
ao povo indígena Xakriabá, seu território, suas ciências e distintas áreas de Educação Especial;
Educação Inclusiva; Classes
ciências acadêmicas. Neste sentido, fundamentos da Teoria Ator-
hospitalares; Educação Indígena.
rede, da obra de Bruno Latour (2001; 2012) e aliados foram utilizados, E-mail: carolmachadoferrari@
gmail.com
em ambas as pesquisas, na preparação, condução e análises dos tra-
2 Doutora e pós-doutora em
balhos etnográficos, assim como descrições das redes observadas e Educação (UFMG), bacharel em
vivenciadas (corporificadas) e que compõe a rede ampliada que aqui Agronomia (UFLA), licenciada
em Biologia (CEFET-MG).
sintetizamos. Professora da Rede Municipal de
Educação de Belo Horizonte. Tem
interesse nas áreas de Produção
Distintos actantes humanos e não-humanos foram os guias que con- e Circulação de Conhecimentos;
duziram os trajetos e relações em campo, produzindo retratos de uma Sistemas de conhecimento em
diferentes práticas sociotécnicas;
rede sociotécnica fluida, dinâmica e que se mantém ativa. Isto por- Educação Intercultural; Educação
do Campo; Educação Ambiental;
que, além de produzir textos, debates e trocas acadêmicas, os encon- Ensino de Ciências; Extensão
tros cosmopolíticos vivenciados nestes anos produziram e produzem Rural; Extensão Universitária;
Agroecologia. E-mail: andrade.
militâncias, relações de amizade, novos modos de fazer educação e [email protected]

extensão, novas ações de trabalho e acadêmicas, novas realidades, 3 As nossas teses podem ser
associações, interações. consultadas pelas referências:
ANDRADE (2019) e FERRARI
(2020).

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DISCUSSÕES 4 ANT-LAb é um coletivo de
pesquisadoras e pesquisadores
sediado na FaE/UFMG,
Para descrever a rede ampliada aqui mobilizada, não partiremos do coordenado pelo professor Dr.
Francisco Ângelo Coutinho, que
início, nem do fim. Isto não seria possível, já que ela não começa de
tem como objetivo aprofundar
onde começamos a rastreá-la, nem termina agora que escrevemos leituras sobre a Teoria Ator-rede e
Educação e Ciências.
este trecho. Partiremos do meio como sugere Bruno Latour (2012).
5 Híbrido é um termo utilizado
Partiremos do encontro entre duas pesquisadoras com suas bagagens por Latour (2001) para designar
(vivências, crenças, parcerias, livros, memórias, orientações, inquie- performances em que as
polaridades são dissolvidas e
tações, etc.). Uma, agrônoma, recém chegada no campo da educação. fluem entre o que se define no
meio, na mistura, na sua ação-
Outra, pedagoga, pesquisadora da área da Educação Especial desde prática situada. O híbrido se
a graduação, com um olhar mais atento à educação dos surdos e a opõe à ideia de purificação, ou
aproximação do pólos como
utilização da Libras nesse processo. Podemos dizer que o ANT-Lab4 foi natureza x cultura, objeto x
sujeito, sociedade x técnica, etc.
actante aliado por nos aproximar como pesquisadoras.
6 O conceito de corpo-território
Durante o doutorado, a primeira seguiu os rastros de um actante que foi proposto pela pesquisadora,
pensadora e ativista Célia
parecia conhecido para ela e que é muito conhecido - desde antes Xakriabá e pode ser aprofundado
em CORREA (2019).
da chegada dos colonizadores - pelos seus aliados indígenas: o mi-
lho. Sua intenção era reconhecer as formas como o milho, a estiagem
(actante que se mostrou importante no processo de seguir o milho)
e os Xakriabá produziam e faziam circular conhecimentos e ciências
indígenas.

As relações entre humanos e não-humanos propuseram a existência


do híbrido Milho-Xakriabá5. Um ator-rede capaz de mobilizar diversas
práticas, ciências, conhecimentos necessários para que o povo e o ter-
ritório Xakriabá convivam com as características (belezas espinhezas)
do ambiente semiárido. Por exemplo, ciências do tempo e conheci-
mentos sobre a importância da mistura (entre variedades de milho
e pessoas) para fortalecer, fazer resistir e manter estável a realidade
do corpo-território6 Xakriabá. Ao seguir o híbrido Milho-Xakriabá foi
possível perceber que roças, comidas e cozinhas podem, junto dos
Xakriabá, produzir conhecimentos-ciências-mundos-realidades e pra-
ticantes humanos e não-humanos que mantém estável a tradição, a
cosmologia indígena Xakriabá (ANDRADE, 2019).

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A produção desta pesquisa passou a integrar o conjunto da amplia-
da rede sociotécnica Milho-Xakriabá, ao passo que como actante
institucional manteve a parceria entre o povo indígena Xakriabá e a
Universidade Federal de Minas Gerais. Uma parceria que não começa-
va alí, afinal muitas pesquisas e relações anteriores já se haviam esta-
belecido, mas mantinha esta relação, estreitando laços e aproximando
novos pesquisadores e áreas do conhecimento acadêmico com este
povo. Foi assim que a segunda entre nós, a pedagoga, se encontrou
com os Xakriabá. A relação de amizade-vínculo entre mulheres e os in-
teresses pela Educação e pela Teoria Ator-rede permitiram a aproxima-
ção e manutenção da presença UFMG na rede sociotécnica Xakriabá.

A agrônoma, que testemunhou o encontro entre as ciências agrárias


e humanas com as ciências Xakriabá, enquanto seguia o milho no ter-
ritório indígena, agiu como mediadora ao apresentar suas descober-
tas com a pedagoga, que por sua vez, testemunhou outros encontros
junto aos Xakriabá. A intenção desta, durante a produção de sua tese,
foi examinar como os corpos são constituídos com e sem deficiência,
a partir das práticas de circulação do conhecimento Xakriabá, sendo
necessário, para isso, seguir os rastros dos diversos atores-rede que
constituíam o corpo-território (FERRARI, 2020).

É interessante destacar, que o híbrido Milho-Xakriabá também foi ac-


tante presente no recorte da rede observado-vivenciado neste segun-
do momento. Um dos primeiros atores-rede cujos rastros foram segui-
dos foi a roça, que nos levou até o milho que, por sua vez, contribuiu
para a aprendizagem da pedagoga sobre parte da ciência Xakriabá e
que seria utilizada posteriormente em uma atividade com uma tur-
ma do quinto ano (da qual participava um aluno diagnosticado com
Deficiência Intelectual) na qual seria trabalhada, juntamente com
uma professora Xakriabá, a questão da diversidade e inclusão escolar
a partir do milho crioulo, que possui uma grande diversidade de grãos.
A intenção da atividade era trabalhar com os alunos a ideia de que,
mesmo na diversidade dos grãos, o milho ainda continuava sendo
Xakriabá e o mesmo acontecia com todo o povo. Independentemente

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de suas características, eles continuavam sendo Xakriabá e todos ti-
nham importância na resistência do seu povo, bem como na circula-
ção do conhecimento.

A atividade realizou-se em duas etapas. Na primeira, identificou-se


o que os alunos conheciam sobre o milho e a sua relação com a co-
munidade. Com base nas respostas dos estudantes, solicitou-se que
realizassem uma pesquisa com a comunidade local sobre o milho e a
diversidade dos grãos. A segunda etapa consistiu em uma discussão
sobre as informações que eles coletaram com a comunidade sobre o
milho, bem como seus conhecimentos sobre a temática e, na sequên-
cia, os alunos produziriam o desenho de uma roça de milho utilizando
os grãos trazidos por eles. O milho performou-se enquanto comida
de bicho e de gente, como ingrediente para medicação, levou-nos a
outros actantes como a lua, que faz parte da ciência do céu do povo
Xakriabá (ARAÚJO; ARAÚJO; GONÇALVES, 2013). Durante a atividade,
o aluno que tinha o seu corpo diagnosticado enquanto um corpo com
deficiência intelectual e que, por esse motivo, era acompanhado du-
rante as aulas por uma professora de apoio, teve o seu corpo perfor-
mado em sem deficiência ao ser afetado pelo milho, participando das
atividades sem o auxílio da sua professora de apoio e participando
com os demais colegas, apresentando seu conhecimento sobre o mi-
lho e suas performances.

Nessa atividade, vimos não somente a prática performada pelas ex-


periências apresentadas pelos híbridos alunos-milho, mas também a
performance de um corpo com deficiência em corpo sem deficiência.
O milho foi um actante que não somente deixou rastros na constru-
ção dos corpos com e sem deficiência, mas também se performou na
construção de materiais adaptados para atender os alunos Xakriabá
público-alvo da Educação Especial.

Outros rastros seguidos que fizeram emergir o grande ator-rede Milho-


Xakriabá foram descritos em ambas as pesquisas, reforçando que uma
rede nunca é homogênea, mas sim heterogênea, complexa e dinâmica.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este ensaio age como novo aliado na rede sociotécnica fluida, dinâ-
mica e ativa que buscamos apresentar. A rede sociotécnica Milho-
Xakriabá é ampla, densa e complexa. Mantém associados distintos
actantes humanos e não-humanos, dos quais destacamos indígenas,
pesquisadoras, universidade, teoria Ator-rede, semiárido, ciências
humanas (Educação, Etnografia, Antropologia da Ciência), ciências
agrárias, ciências indígenas do tempo, a mistura (como promotor
de resistência) e o corpo performado em sem deficiência a partir da
emergência do híbrido corpo-território. Tais aliados reforçam e fazem
circular relações e associações que fazem parte da rede sociotécnica
Milho-Xakriabá e contribuem na sua estabilidade-resistência.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Rebeca Cássia. Resistências Semiáridas: sobre a produção e


circulação de conhecimentos pela rede sociotécnica do milho, estiagem e os
indígenas Xakriabá do norte de Minas Gerais. 2019. 319 p. Tese (Doutorado
em Educação) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.

ARAÚJO, Anide; ARAÚJO, Ducilene; GONÇALVES, Vanda; XAKRIABÁ, Povo.


Nem tudo o que se vê se fala. Belo Horizonte: Literaterras, Fale/UFMG, 2013.

CORRÊA, Célia Nunes (XAKRIABÁ, Célia). O barro, o genipapo e o giz no


fazer epistemológico de autoria Xakriabá: reativação da memória por uma
educação territorializada. 2018. 218 p. Dissertação (Mestrado Profissional
em Desenvolvimento Sustentável) - Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

FERRARI, Ana Carolina Machado. A construção de corpos com e sem


deficiência através das práticas de circulação do conhecimento Xakriabá.
2020. 228 p. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2020.

LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos


estudos científicos. Bauru: EDUSC, 2001. 372 p.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria ator-rede.


Salvador, Bauru: EDUFBA, EDUSA, 2012. 400 p.

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Teoria Ator-Rede e Turismo
de base comunitária
possibilidades de pesquisa
e suas raízes no Brasil
Edilaine Albertino de Moraes1
Fátima Teresa Braga Branquinho2

INTRODUÇÃO

Este artigo busca discutir, a partir da perspectiva da Teoria Ator-Rede 1 Professora Adjunta do
Departamento de Turismo
(ANT), cujo principal expoente é Bruno Latour (2012), possibilidades da Universidade Federal
de Juiz de Fora. Doutora
de pesquisas dirigidas ao turismo de base comunitária no Brasil. Para
em Psicossociologia de
tal, são apresentadas, conjuntamente, quatro pistas analíticas que Comunidades e Ecologia Social
pela Universidade Federal do
podem orientar a pesquisa sobre essa temática na perspectiva de Rio de Janeiro. Coordenadora
do Grupo de Pesquisa
uma rede de atores.
TBC-Rede: Laboratório de
Turismo de base comunitária,
As pesquisas referentes ao turismo de base comunitária ou turismo Sustentabilidade e Redes. E-mail:
[email protected].
comunitário, ou TBC perpassam um terreno onde existe um movimen-
2 Professora Permanente do
to crescente de resistências aos modelos dominantes de ser e estar no
Programa de Pós-graduação em
mundo. Desde a década de 1990, a prática de TBC tem sido construída, Meio Ambiente da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Pós-
no Brasil, sob a premissa da base endógena em planejamento e orga- doutora no Centre de Sociologie
de l’Innovation/École Nationale
nização do turismo. Essa nova perspectiva tem constituído uma opor-
Supérieur des Mines de Paris.
tunidade para a melhoria de condições de vida por inúmeros grupos E-mail: fatima.branquinho@uol.
com.br.
sociais em situação de vulnerabilidade social e ambiental e à margem
de projetos turísticos convencionais, como pescadores artesanais, et-
nias indígenas, agricultores familiares, ribeirinhos, quilombolas e as-
sentados rurais. Nesse sentido, o TBC se expressa como um laborató-
rio de experiências emergentes e alternativas frente às desigualdades

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sociais existentes e à condição estratégica de sociobiodiversidade e
riqueza cultural do Brasil (MORAES, 2019).

Essa reflexão temática faz parte da produção intelectual construída


por um grupo de pesquisa interessado pela seguinte questão: como
rastrear as realidades em transformação que compõem o TBC como
um conceito técnico-científico, enquanto se multiplicam “traduções”
e perspectivas, em um dos países mais mega e multiverso do mundo,
como o Brasil? É nessa direção que serão apresentadas algumas for-
mulações das quatro pistas inspiradas na ANT que contribuem para
um modo mais democrático de pesquisar TBC, seguindo, conforme
Marques (2022, p. 395) destaca, que essa proposta ajuda também a
dignificar os próprios saberes e viveres, os próprios “modos de exis-
tência” dos “excluídos Brasis afora”.

DESENVOLVIMENTO

Há cerca de uma década, alguns estudos sobre turismo têm sido pro-
duzidos pela ótica da ANT no plano internacional. Embora o foco des-
sas reflexões seja turismo, enquanto um fenômeno altamente enre-
dado, complexo e mais do que humano, esses estudos não incidem,
especificamente, sobre turismo de base comunitária (MORAES et al.,
2020). Assim, um longo caminho de aprendizagem de práticas investi-
gativas em TBC à luz da ANT precisa ainda ser percorrido.

Nesse sentido, a partir de pesquisas empíricas em diferentes territó-


rios de TBC no Brasil (MORAES, 2019; MORAES et al., 2021), elencamos
três pistas da ANT na articulação com essa prática, quais sejam: não
humanos no TBC; TBC como associação; TBC em ação. Além dessas,
em continuidade ao ofício investigativo, surgiu a quarta pista funda-
mental para esse movimento de conhecer a realidade: pesquisar TBC
é fazer política. Essas quatro pistas estão associadas entre si sem uma
disposição organizada.

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Diante de a ANT permitir a apreensão de múltiplas realidades, é pos-
sível agregar ao estudo do TBC a importância dos não humanos. Isso
porque, para Latour (2012), a compreensão sobre o ser humano só
pode ser apreendida quando os não humanos estão, também, no cen-
tro do debate sociológico. Considerando essa premissa, os interessa-
dos em pesquisar TBC estão convidados a colocar em xeque a crença
de que essa prática se configura apenas por meio da dinâmica entre
os atores humanos. Nessa direção, consideramos o argumento de que
o TBC se articula às demais atividades produtivas de um determinado
lugar turístico que, por sua vez, manifestam-se nas práticas cotidianas,
como a agricultura familiar, a pesca artesanal, a produção do artesana-
to, entre outras atividades. Assim, esses “não humanos no TBC” con-
tribuem para traduzir as dinâmicas da natureza, da cultura e das téc-
nicas envolvidas em seu desenvolvimento, ou seja, “os não humanos
são dotados de fala’’ (LATOUR, 2017, p. 241). Isso porque constituem
um “híbrido sociotécnico” capaz de mobilizar ações nas dinâmicas em
transformação, ao invés de apenas representar objetos ou projeções
simbólicas que imprimem significados (MORAES et al., 2020).

Assim, além do reconhecimento da força dos não humanos nesse movi-


mento, é necessário acompanhar, em termos empíricos, como as asso-
ciações entre os atores humanos e não humanos operam na configura-
ção do TBC. Isso implica apreender o TBC, simultaneamente, como um
discurso e uma prática, o que exige se pensar em uma multiplicidade de
políticas e ontologias, para além daquelas diretamente vinculadas ao
turismo. Nesse sentido, a compreensão do TBC transcende a perspecti-
va de planejamento e estruturação de empreendimentos comunitários
ou a dinâmica de recepção de visitantes, envolvendo múltiplos atores
e interesses que definem associações e dissociações nesse movimen-
to. Isso significa que é necessário rastrear as comunidades locais, os
visitantes, os empreendedores turísticos, os agentes públicos, os guias
de turismo, as associações de moradores do lugar turístico, os movi-
mentos sociais ali atuantes, as entidades que prestam assessoria aos
projetos locais, os órgãos nacionais e internacionais de fomento ao

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 46


desenvolvimento, além de demais atores que podem influenciar a ação
no coletivo (MORAES et al., 2020). Nesse caso, os estudos sobre o “TBC
como associação” devem ser orientados pelo exame de uma produção
baseada nas inúmeras ações dos atores dispostos na rede sociotécnica.

A partir do reconhecimento dos não humanos e da produção de as-


sociações na dinâmica turística, é possível refletir sobre o TBC como
uma rede de atores em ação. Nesse caso, o foco de análise se dirige ao
modo de funcionamento do TBC e como esse se movimenta, agrega-se
e se ordena, o que implica a compreensão do “TBC em ação” em uma
condição permanente de construção negociada nessa prática, sujeita
a controvérsias (MORAES et al., 2020). “A ação não é uma propriedade
de humanos, mas de uma associação de atuantes’’ (LATOUR, 2017, p.
216). Nada é somente social, nada é somente técnico. Consideramos
objetividade e subjetividade juntos para além de uma integração, em
que ocorre uma hibridização, entendendo que a ação faz surgir algo
novo. Por isso, é importante descrever os momentos em que os atores
estão agindo no processo de construção do coletivo. Portanto, o TBC
não pode ser descrito objetiva e linearmente em manuais homogenei-
zantes e adotado como modelo para o direcionamento do processo
como se fosse um produto turístico formatado e fechado. Nesse caso,
advoga-se que o TBC não pode ser reduzido a uma tipologia ou seg-
mento turístico, tampouco a uma alternativa ao turismo convencional.

A partir desse entendimento, é possível delinear versões múltiplas de


TBC para uma composição mais ampla e comum. Essa diversidade
surge a partir de sabedorias, histórias, naturezas e culturas enraiza-
das localmente, que compõem o processo de construção do turismo
comunitário norteado pela organização de grupos diretamente res-
ponsáveis pelo planejamento das atividades e pela gestão das in-
fraestruturas e dos serviços turísticos por meio de projetos coletivos
e de base familiar. Essa escolha polifônica constitui um dos desafios
que nos anima, pois requer que seja assegurado um posicionamen-
to em pesquisa não influenciado pela hierarquização dos elementos
heterogêneos. Sendo assim, outros saberes, para além daqueles de

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 47


especialistas acadêmicos, devem ser considerados nos estudos sobre
o tema em foco, visto que, para a ANT, o conhecimento não está no
mundo das ideias, e, ainda, que todos os atores integram e interagem
para a sua coprodução.

Nessa perspectiva, diferentes vozes, saberes e discursos, além da ma-


neira pela qual os atores se conectam entre si e ao TBC, devem ser reu-
nidos no coletivo e apreendidos na pesquisa sobre a realidade proble-
matizada e na realização de ações que possibilitem coabitar pessoas,
florestas, animais, ideias, organizações e outros seres que afetam e
são influenciados por essa prática. Todos agem de alguma forma. É
um combinado de ações híbridas. Quando consideramos a fala de to-
dos como importante, reverbera uma qualidade na postura política
do pesquisador. Isto é, devemos ultrapassar a supremacia de algum
tipo de saber sobre o outro (BRANQUINHO; LACERDA, 2017). Dessa
forma, a ANT impulsiona também a reflexão sobre o que é democra-
cia, dando um salto epistemológico, empreendendo a mobilização
coletiva para o tratamento de problemas reais, contribuindo, assim,
para a construção de pontes de diálogo (Figura 1). Portanto, pesquisar
TBC é fazer política!

figura 1: 8ª Assembleia Geral da Rede Cearense de Turismo Comunitário no Assentamento


Maceió, Itapipoca, Ceará (2014).
fonte: Moraes (2019).

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 48


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem a intenção de desconsiderar o conhecimento já produzido e in-


fluente sobre TBC em determinado contexto histórico, argumentamos
a favor da Teoria Ator-Rede como uma possível via ontológica e polí-
tica capaz de não apenas contribuir para a construção de arcabouços
teórico-metodológicos renovadores, mas, sobretudo, indicar pistas
para a ação teórico-prática associada à realidade em transformação
nessa prática turística de base comunitária (MORAES et al., 2020).

Assim, pela abordagem da Teoria Ator-Rede, o TBC fala! Para isso, con-
sideramos o compromisso de um movimento investigativo engajado,
que se faz com proximidade e não sobre os atores rastreados em ação,
compondo, ao mesmo tempo, conhecimento, política e ética.

Por fim, vale lembrar ainda que Latour (2020, s.p.) disse que, “se o
Brasil achar solução para si, vai salvar o resto do mundo”. Logo, dize-
mos que as raízes do TBC no país ajudam a reunir conceitos, práticas
e atores encantados por essa Terra, cuja necessidade de cuidado para
conviver e construir um presente-futuro inúmeras experiências estão
sabendo tão bem nos inspirar e resgatar a esperança em prol de ou-
tros mundos possíveis.

REFERÊNCIAS

BRANQUINHO, Fátima Teresa Braga; LACERDA, Fátima Kzam Damaceno.


A contribuição da teoria ator-rede para as pesquisas em educação. Revista
Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 3, p. 49-67, set./dez. 2017.

FOLHA DE S. PAULO. Se o Brasil achar solução para si, vai salvar o resto do
mundo, diz Bruno Latour. São Paulo, 12 set. 2020. Disponível em https://
www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/09/se-o-brasil-achar-solucao-para-si-
vai-salvar-o-resto-do-mundo-diz-bruno-latour.shtml. Acesso em: 19 out. 2022.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do Ator-


Rede. Salvador: Edufba, 2012.

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 49


LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos
estudos científicos. Bauru: Edusc, 2017.

MARQUES, Ivan da Costa. Tecnologia, Ciência e Ativismo Militante em


Bruno Latour. In: KLEBA, J.; CRUZ, C.; ALVEAR, C. (Orgs.) Engenharias
e outras práticas técnicas engajadas – vol. 3: Diálogos Interdisciplinares
e decoloniais- Campina Grande: EDUEPB, 2022. p. 395-436.

MORAES, Edilaine Albertino de et al. Turismo de base comunitária no Brasil


pós- Covid-19: repensando resistências, ações e conexões para imaginar
novas práticas sustentáveis. Relatório final do Projeto, set./2020 – jul./2021.
UFJF: PROPP, 2021.

MORAES, Edilaine Albertino de; IRVING, Marta de Azevedo; PEDRO, Rosa


Maria Leite Ribeiro; OLIVEIRA, Elizabeth. Turismo de base comunitária à luz
da teoria ator-rede: novos caminhos investigativos no contexto brasileiro.
Revista Crítica de Ciências Sociais [On-line], nº 122, p. 145-168, 2020.

MORAES, Edilaine Albertino de. Siga os atores e as suas próprias ações: nos
rastros das controvérsias sociotécnicas do turismo de base comunitária
na Rede TUCUM – Ceará – Brasil. Tese de Doutorado em Psicossociologia
de Comunidades e Ecologia Social, Instituto de Psicologia, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 2019.

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A desinformação
climática de acordo
com Bruno Latour
Elisa Maffassiolli Hartwig1
Raquel von Hohendorff2

1 Mestranda em Direito Público


na Universidade do Vale do Rio
dos Sinos (UNISINOS/RS), com
concessão de bolsa CAPES/
INTRODUÇÃO PROEX. Pós-graduanda em
Direito Digital pela Fundação
Escola Superior do Ministério
As mudanças climáticas antrópicas são uma realidade que já vem sen- Público. Bacharel em Direito pela
mesma faculdade, com período
do apontada por pesquisadores do Painel Intergovernamental sobre de estudos na Universidade de
Mudanças Climáticas desde a década de 90 do século passado. Suas con- Lisboa. E-mail: elisa.mhartwig@
gmail.com.
sequências são desastrosas para a vida humana e não humana, como já
2 Pós-Doutora em Direito Público
demonstram os desastres e catástrofes ambientais correlatos, mas as pela Universidade de Las Palmas
ameaças diante do cenário de emissões prováveis são ainda piores (es- de Gran Canaria- Espanha.
Doutora em Direito Público
pecialmente caso a elevação da temperatura média ultrapasse os 1,5ºC, Unisinos (bolsista CAPES). Mestre
em Direito Público pela Unisinos
em relação aos níveis pré-industriais)3, podendo representar inclusive (bolsista CAPES). Professora do
um risco para a própria sobrevivência da espécie humana na terra. Programa de Pós-Graduação em
Direito - Mestrado e Doutorado
da UNISINOS/RS. E-mail:
Desde que essas mudanças climáticas e sua correlação com as ativi- [email protected].

dades e emissões humanas vêm sendo apontadas pelos cientistas, 3 PAINEL INTERGOVERNAMENTAL
emergiu um processo político-ideológico de desinformação climáti- SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS
(IPCC). Aquecimento Global
ca, muitas vezes financiado por empresas e associações do setor de de 1,5°C. Relatório Especial.
Sumário para formuladores
combustíveis fósseis e outros setores interessados na manutenção do de políticas (2018). GT I, GT II,
status quo e no atraso da criação de políticas climáticas. GT III. Tradução: Governo do
Brasil. Brasil: MCTIC, jul. 2019.
Disponível em: https://www.
A existência do aquecimento global, da mesma forma que os perigos gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-
o-mcti/sirene/publicacoes/
do tabaco e, mais recentemente, os fatos e políticas envolvendo o ví- relatorios-do-ipcc/arquivos/pdf/
rus da COVID-19, são alvos constantes dessas campanhas políticas de relatorio-executivo-08-07-web.
pdf. Acesso em: 04 jan. 2023.

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 51


desinformação, performadas principalmente por representantes polí- 4 FALLIS, Don. What Is
Disinformation? Library Trends,
ticos da extrema direita em ascensão. Logo, a presente pesquisa não v. 63, n. 3, 2015, pp. 401- 426.
Disponível em: https://sci-hub.
tem o condão de demonstrar que as mudanças climáticas existem e se/10.1353/lib.2015.0014. Acesso
são reais, mesmo porque o consenso científico sobre isso é inequívoco, em: 04 jan. 2023.

mas sim entender a função e o objetivo da desinformação climática.

Para isso, a obra do filósofo e antropólogo francês Bruno Latour é es-


sencial, tendo em vista a sua atuação enquanto pesquisador da eco-
logia política e da filosofia da ciência e sua contribuição para o en-
tendimento dos processos políticos de negação da crise climática,
principalmente a partir da obra “Onde aterrar? Como se orientar poli-
ticamente no antropoceno” (2020), a qual será estudada com enfoque
especial neste artigo.

A DESINFORMAÇÃO CLIMÁTICA

Don Fallis entende que o conceito de desinformação é composto de


três características essenciais: 1) é um tipo de informação, enquanto
algo que representa alguma parte do mundo de determinada forma;
2) é um tipo de informação enganosa, que em razão da potencialidade
de criação de falsas crenças em seu receptor, coloca as pessoas em
risco de sofrer algum dano, seja ou não epistêmico; 3) ela é intencio-
nal e não acidental, se distinguindo, por exemplo, de erros honestos.
Sendo assim, Fallis formula seu próprio conceito de desinformação,
que seria: a informação enganosa que tem a função de enganar as
pessoas. Essa função, de acordo com ele, pode se manifestar de duas
formas: ou por meio da intenção da sua fonte (a maioria das formas
de desinformação, como mentiras e propaganda); ou porque a fonte
se beneficia sistematicamente das informações enganosas (como no
caso das teorias da conspiração)4.

Assim, para além de buscar evidências de que alguém possui a inten-


ção de enganar, seria possível a demonstração de evidências de que
existe algum benefício fruto dessa desinformação para a sua fonte,
por exemplo, no caso de um processo eleitoral, confundir o público

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 52


para fins eleitoreiros quando se dissemina sistematicamente informa- 5 BENNET, W. Lance;
LIVINGSTON, Steven. The
ções enganosas sobre outros candidatos. disinformation order:
Disruptive communication
and the decline of democratic
Outro exemplo notório foi a teoria da conspiração sobre a cidada-
institutions. European Journal of
nia de Barack Obama, ex-presidente dos Estados Unidos, por figuras Communication, v. 33, n. 2, 2018,
pp. 122-139.
como Donald Trump, sendo capazes de ganhar a atenção simultânea
6 SANTINI, Rose Marie; BARROS,
da imprensa tradicional e de um então emergente sistema de mídia da Carlos Eduardo. Negacionismo
extrema direita5. climático e desinformação
online: uma revisão de escopo.
Liinc Em Revista, v. 18, n.1, 2022.
A partir desse ponto de vista, os pesquisadores teriam que direcionar Disponível em: https://revista.
ibict.br/liinc/article/view/5948.
seu olhar para a função da desinformação climática para os políticos e
Acesso em: 04 jan. 2023.
para as corporações que a disseminam – e muitos já estão o fazendo.
Por exemplo, a pesquisa de Rose Marie Santini e Carlos Eduardo Barros
mapeou, nas bases Scopus e Web of Science, estudos que indicam evi-
dências empíricas sobre a relação entre a desinformação e a negação
da ciência climática na internet, entre 2000 e 2021. Entre esses artigos,
9,7% apontaram uma correlação entre negacionismo científico e o sis-
tema neoliberal, que redunda em uma resistência à aceitação de orien-
tações científicas que demonstram a necessidade de medidas regula-
tórias do mercado e de setores produtivos específicos6. Bruno Latour é
exatamente uma das pessoas que apontou essa relação.

A FUNÇÃO DA DESINFORMAÇÃO CLIMÁTICA E O NEOLIBERALISMO


DE ACORDO COM LATOUR

A obra de Bruno Latour é tão essencial para compreender os proces-


sos políticos de negação das mudanças climáticas, justamente por-
que em um de seus últimos livros – Onde aterrar? – o autor fornece
uma hipótese que explica precisamente a função desses processos.
A hipótese central de Latour explora a relação entre três fenômenos
do mundo contemporâneo, iniciados em 1990: a desregulamentação,
a explosão das desigualdades e o negacionismo, abordando-os como
uma mesma ameaça e um sintoma de uma mesma situação histórica.
Tal situação seria a percepção das elites obscurantistas (ou classes di-
rigentes) de que não há mais lugar suficiente na terra para todos, e sua

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 53


decisão de abandonar o projeto globalizador que prometia o progres- 7 LATOUR, Bruno. Onde aterrar?
Como se orientar politicamente
so total, impondo os prejuízos das mutações climáticas aos demais7. no Antropoceno. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, 2020. p. 10.
Essa decisão é a única capaz de explicar todos esses fenômenos corre- 8 LATOUR, Bruno. Onde aterrar?
lacionados, que passam a ser vistos como um único fenômeno: Como se orientar politicamente
no Antropoceno. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, 2020. p. 28.
“as elites se convenceram tão bem de que não haveria vida fu-
9 COSTA, Alyne. Aqui quem fala
tura para todos que decidiram se livrar o mais rápido possível é da Terra. In: LATOUR, Bruno.
de todos os fardos da solidariedade – isso explicaria a desre- Onde aterrar? Como se orientar
politicamente no Antropoceno.
gulação. Decidiram que seria preciso construir uma espécie de Rio de Janeiro: Bazar do Tempo,
fortaleza dourada para os poucos que poderiam se safar – do 2020. p. 153.

que decorre a explosão das desigualdades. E resolveram que, 10 Latour utiliza essa expressão
para dissimular o egoísmo sórdido de tal fuga para fora do mun- para se referir ao momento
atual que vivemos, notabilizado
do comum, seria preciso rejeitar absolutamente a ameaça que pelas modificações humanas
motivou essa fuga desesperada – o que explica a negação da produzidas sobre o planeta
(Antropoceno), assim como a
mutação climática”8. expressão “mutações climáticas”.
Assim, ele entende que não
é adequado falar em “crise
Essa hipótese também permite que a culpa não seja direcionada para climática” ou “emergência
climática”, pois essas expressões
aqueles que são manipulados e enganados por essas elites – políti-
denotariam um estado de coisas
cas e econômicas – visto que o abandono do projeto globalizador e a que poderia passar, o que não é
o caso do Novo Regime em que
traição daqueles que resolveram desistir da criação de um mundo co- adentramos.
mum, gera a necessidade de encontrar um pertencimento a um solo
esquecido (a retrotopia, de Bauman). Ocorre que, essas elites soube-
ram manipular muito bem esses sentimentos de pavor e confusão que
são suscitados pela possibilidade de perda do mundo, utilizando-se
de campanhas xenofóbicas e nacionalistas, que fazem com que as
pessoas enxerguem um refúgio no local e nas fronteiras bem delimi-
tadas – que não são mais sequer possíveis9. Exemplos utilizados por
Latour no livro são os governos de Donald Trump e Jair Bolsonaro.

E assim, é possível compreender que o sistema neoliberal (a fase atual


do capitalismo global) se relaciona com a desinformação climática, jus-
tamente pois ele se notabiliza pelo crescimento econômico a todo cus-
to, que é simplesmente incompatível com as exigências impostas pelo
Novo Regime Climático10 de regulamentação e desaceleração (caso
queiramos garantir o direito das futuras gerações à existência na terra).

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 54


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em sua obra, principalmente nas publicações mais recentes, Latour


oferece indícios de soluções para os problemas aqui apresentados,
que passam necessariamente pela superação da ontologia moderna,
que dividia o mundo em Natureza e Cultura, assim como pelo enten-
dimento das diversas redes de dependência que se constituem entre
diferentes seres atuantes sobre o mundo comum.

Contudo, não constituía o objetivo do presente texto se aprofundar


na análise dessas soluções, mesmo por falta de espaço, mas sim des-
lindar o fenômeno da desinformação climática e as funções que esse
desempenha no cenário atual. Esse objetivo já é, por si só, bastante
desafiador. Embora ao ler Onde aterrar? seja difícil afastar a correla-
ção com uma verdadeira teoria da conspiração, quanto mais se avan-
ça na leitura, mais surge a certeza de que a hipótese do autor é a mais
capacitada para explicar de forma completa a situação desastrosa em
que nos encontramos.

A sensação de incredulidade e de revolta é necessária para que o legado


de Latour se cumpra em cada um de seus leitores: a motivação para agir
em defesa de nosso mundo. Que cada um de nós possa fazer a diferen-
ça atuando ativamente na defesa do nosso Planeta, nossa casa comum.

REFERÊNCIAS

BENNET, W. Lance; LIVINGSTON, Steven. The disinformation order:


Disruptive communication and the decline of democratic institutions.
European Journal of Communication, v. 33, n. 2, 2018, pp. 122-139.

COSTA, Alyne. Aqui quem fala é da Terra. In: LATOUR, Bruno. Onde aterrar?
Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do
Tempo, 2020.

FALLIS, Don. What Is Disinformation? Library Trends, v. 63, n. 3, 2015,


pp. 401- 426. Disponível em: https://sci-hub.se/10.1353/lib.2015.0014.
Acesso em: 04 jan. 2023.

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 55


LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no
Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

PAINEL INTERGOVERNAMENTAL SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS (IPCC).


publicacoes/relatorios-do-ipcc/arquivos/pdf/relatorio-executivo-08-07-
web.pdf. Acesso em: 04 jan. 2023.

SANTINI, Rose Marie; BARROS, Carlos Eduardo. Negacionismo climático


e desinformação online: uma revisão de escopo. Liinc Em Revista, v. 18,
n.1, 2022. Disponível em: https://revista.ibict.br/liinc/article/view/5948.
Acesso em: 04 jan. 2023.

Aquecimento Global de 1,5°C. Relatório Especial. Sumário para


formuladores de políticas (2018). GT I, GT II, GT III. Tradução: Governo do
Brasil. Brasil: MCTIC, jul. 2019. Disponível em: https://www.gov.br/mcti/pt-
br/acompanhe-o-mcti/sirene/

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Notas para atitudes diante
de uma situação de guerra contra
os negacionistas e de
diplomacia com o Sars-Cov-2
Gabriel Menezes Viana1
Rodolfo Dias de Araújo2
Francisco Ângelo Coutinho3

1 Doutor e Mestre em Educação


pela Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Minas
INTRODUÇÃO Gerais (FaE/UFMG). Licenciado
em Ciências Biológicas pela
Universidade Federal de Alfenas
É seguro dizer que Bruno Latour foi um entusiasta da ciência e das tecno- (Unifal-MG). Professor da
Universidade Federal de São
logias. Não por acaso, boa parte de sua obra se ocupou em investigar e João del-Rei (UFSJ), onde leciona
refletir sobre como os cientistas trabalham, produzem fatos científicos, no curso de licenciatura em
Ciências Biológicas e no Mestrado
constroem realidades e se organizam em torno de um modo de existên- em Educação (PPEdu). E-mail:
[email protected]
cia bastante peculiar, as “cadeias de referência” (LATOUR, 2019, p. 73).
2 Licenciado em Ciências
A partir da década de 1950, as sociedades, em especial nos países Biológicas pela Universidade
Federal de São João del-
desenvolvidos, puderam contribuir com massivos investimentos em Rei (UFSJ). Mestrando pelo
Programa de Pós-graduação
ciência, os quais proporcionaram substanciais desenvolvimentos do Processos Socioeducativos e
conhecimento científico e da produção de tecnologia. Tais movimen- Práticas Escolares (Mestrado
em Educação) da UFSJ. E-mail:
tos estão intrinsecamente ligados à melhoria da qualidade de vida das [email protected]

populações quando nos referimos, por exemplo, às contribuições das 3 Graduado em Ciências
ciências da saúde na erradicação de doenças, à redução dos índices Biológicas (UFMG), mestre em
Filosofia (UFMG) e doutor em
de mortalidade infantil e ao aumento da longevidade humana. Educação (UFMG). Professor
da Faculdade de Educação da
UFMG, onde atua na graduação
Todavia, essas constatações não são compartilhadas de forma unâ- e na pós-graduação. Líder do
nime nas sociedades. Isso, por mais estranho que possa parecer, não Grupo Cogitamus – Educação e
Humanidades Científicas. E-mail:
se deve somente pelo desconhecimento e desinteresse das pessoas [email protected]

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 57


com a ciência e com o conhecimento científico. Um fenômeno mar-
cante na contemporaneidade é aquele que identifica grupos, que,
com o avanço da ciência, se veem em um estado de pavor por consi-
derarem ter o seu modo de vida questionado e/ou em risco. Estamos
nos referindo àqueles que negam, desautorizam, pormenorizam e/ou
negligenciam a ciência e o conhecimento científico, denominados de
negacionistas da ciência.

Em tempos de intensas discussões sobre as mudanças climáticas e,


em especial, de uma pandemia viral humana, a Covid-19, vemos que,
entre as várias estratégias adotadas pelos negacionistas, há aquelas
que objetivam “combater a ciência com a ciência – ou, pelo menos,
com as lacunas e incertezas sempre existentes na ciência e na pesqui-
sa científica e que podem ser usadas para desviar a atenção do evento
principal” (ORESKES; CONWAY, 2018, p. 13). Tal situação instaura uma
conjuntura, na qual mundos diferentes se chocam engajando-se em
uma situação de guerra, que foi primeiramente percebida por aque-
les que se opunham ao conhecimento científico (LATOUR, 2020). Estes
evitaram, de diversas maneiras, que a moralidade política fosse afe-
tada pelo protagonismo das ciências e construíram alianças com os
diversos setores da sociedade, produzindo assim o que Latour (2020,
p. 31) denominou de “fatos b-side” e “política b-side”.

Enquanto tal movimento era ordenado, do lado dos adeptos da ciên-


cia havia aqueles que apostaram em uma natureza fixa de onde se
extrairia a força dos fatos e sua ação supostamente silenciadora dos
debates. Nesse campo de batalha, esse lado vem falhando reitera-
damente quando se apoia em atitudes, que visam somente, ora a
defesa de uma normatização do mundo natural, ora em acreditar
que seria possível falar “apenas de ciência” (LATOUR, 2020). Nesse
confronto, os negacionistas estão ganhando, já que, enquanto os
cientistas se limitavam a falar de um “mundo natural”, os outros sou-
beram mobilizar mundos para deter os fatos objetivos e articular di-
versas entidades, dando conta, de tal modo, da necessária tarefa de
composição de mundos.

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 58


DESENVOLVIMENTO

Nossas reflexões para este texto se constituíram a partir da sensibiliza-


ção latouriana para com as relações entre ciência e sociedade. Ou seja,
em seu entendimento de que, quando falamos de ciência, cientistas,
conhecimento científico e produção tecnológica, presume-se que
os situemos em redes sociomateriais com pesquisadores, gestores,
avaliadores, financiadores e técnicos assim como com referenciais
teóricos, procedimentos metodológicos, protocolos de análises e, da
mesma maneira, com laboratórios, vidrarias, computadores, verbas
etc. Mais especificamente, localizamos essas reflexões nas observa-
ções que fizemos sobre membros de uma comunidade antivacina no
Facebook em tempos de pandemia de Covid-19.

No espaço das plataformas digitais que amparam as redes sociais, é fá-


cil encontrarmos estratégias, que deslegitimam o conhecimento cien-
tífico, a ciência e a produção científico-tecnológica. Entre comentários,
imagens, links e diversos tipos de interações entre os usuários, há pos-
turas que negam a capacidade do vírus de causar doenças e suspeitas
sobre a eficácia da vacina. Ainda, é possível encontrarmos uma pulve-
rização de ataques a cientistas, profissionais da saúde e instituições
democráticas envolvidas na promoção de políticas de vacinação.

No comentário a seguir, extraído de um post de um membro em uma


comunidade antivacina, observamos como um participante percebe
sua situação frente às ações adotadas por autoridades durante a pan-
demia de Covid-19:

Eu fico admirado com os prefeitos que fazem decretos de lock-


down citando a OMS como se a OMS fosse algum órgão do brasil
ou que tivesse algum poder aqui, e eles não fazem ideia a cor-
rupção dessa instituição financiada pelo tio Bill... acho que vou
me internar num sanatório pra ficar junto de pessoas que não
fazem tanta besteira quanto os que nos governam (Comentário
de um participante de uma comunidade antivacina no Facebook
coletado em outubro de 2022).

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 59


Nesse pequeno, porém intenso, trecho, vemos um membro expor suas
críticas sobre a tomada de decisões de prefeitos em concordância com
os postulados informados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
A argumentação desse membro (que é curtida e compartilhada por
outros) propõe-se a produzir uma realidade em que a OMS não seria
uma instituição confiável nas sociedades contemporâneas, uma vez
que ela seria corrupta e financiada por uma pessoa sem credibilidade:
“Tio Bill”. Essa atitude de deslegitimação de instituições consolida-
das, sem apresentação de uma linha de raciocínio em que se ofereça
as premissas, as evidências, os argumentos e as referências colocam
a lógica e o modo de existência da ciência em xeque. Essa postura in-
dica que a atividade negacionista não é somente uma discussão sobre
fatos, mas que implica em uma atividade política de composição de
“com o quê” e “com quem” se quer viver. Para esse participante da
comunidade, é preferível viver em um sanatório com seus internos do
que ter que lidar com governantes, que seguem orientações de órgãos
internacionais responsáveis por orientações a respeito de ações de
saúde no planeta.

A realidade que se desenha nas ações de um negacionista da ciência


nos faz perceber que o modo pelo qual a ciência produz realidades
e mundos, no encadeamento de referências (LATOUR, 2017, 2019,
2020), não abre espaços para o diálogo, com modos tão distintos, com
os dos negacionistas. Isso nos coloca, portanto, diante de uma situa-
ção de guerra (LATOUR, 2020), cabendo a nós, cientistas e apoiadores
da ciência, nos posicionarmos para sobrevivermos e fazermos com
que o mundo que desejamos também sobreviva.

Em um outro front, há, entretanto, aqueles com os quais devemos


estabelecer relações diplomáticas, como, no caso, do próprio Sars-
Cov-2. Nesses últimos anos, nossa existência enquanto espécie de-
pendeu de árduas formas de negociação com esse ator, quer seja com
a elaboração de políticas de distribuição de máscara e álcool gel; no
distanciamento e isolamento social; e nas campanhas de vacinação
em massa das populações.

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Reconhecendo que a existência humana se dá “com” e “por” outras
entidades não humanas é que essas medidas sanitárias se colocam
como dispositivos diplomáticos, que permitem, por ora, que seja ga-
rantida a coexistência entre os humanos e algumas variações do Sars-
Cov-2. Em termos da vacina, propriamente dita, essa é a melhor es-
tratégia que colocamos na mesa de negociações, visando a garantir
nossa existência com o vírus no momento. Mas, é necessário manter-
mos constante atenção para a recalcitrância desse ardiloso e mutável
ator-rede, já que ele sempre continuará a nos desafiar em busca de
outros acordos diplomáticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pensamento latouriano, como podemos ver, nos sensibiliza a agir em


conformidade com nossa capacidade de perceber o que entidades não
humanas estabilizadas nas/pelas redes apresentam como aquilo que
necessitam para sobreviver. Seguindo isso, portanto, uma atitude latou-
riana nos assevera que cabe a nós ouvi-las e estipular arranjos primor-
diais, para que tais entidades possam ocupar lugares de negociação em
nossos parlamentos, de tal forma que a atitude diplomática para com os
não humanos possa ser construída em nossos modos de vida.

Por outro lado, mas ainda com Latour, quando os limites da diploma-
cia forem exauridos ou se tornarem impassíveis, talvez seja o momen-
to de nos posicionarmos diante de uma situação de guerra declarada.
Quando a existência de mundos diferentes implica, necessariamente,
na negação do outro, devemos arregimentar humanos e não huma-
nos, que contribuam para sustentar as redes em que a ciência e a de-
mocracia permaneçam, garantindo o respeito às diferentes formas de
vida e de conhecimento e assumindo que este mundo é a nossa única
e definitiva morada.

Por fim, agradecemos a Latour por dedicar parte de sua existência en-
tre nós, sensibilizando-nos de que viver neste mundo presume estar-
mos atentos ao que nos comove, ao que é sentido e afetado em uma

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rede de associações, em que produzimos nós mesmos e os outros.
Afinal, como postulava o próprio Latour (2020, p. 226), “‘sensibilida-
de’ é um termo que se aplica a todos os actantes capazes de espalhar
um pouco mais longe seus sensores e de fazer os outros sentirem que
as consequências de suas ações os afetarão, caindo sobre eles e vindo
a assombrá-los”. Destarte, Latour continuará nos afetando ainda que
não mais conformado na ontologia de um corpo de carbono.

REFERÊNCIAS

LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos


estudos científicos. São Paulo: Ed. da Unesp, 2017.

LATOUR, Bruno. Investigação sobre os modos de existência: uma


antropologia dos modernos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019. (Coleção
Antropologia).

LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no


Antropoceno. Tradução Maryalua Meyer. São Paulo: Ubu, 2020.

ORESKES, Naomi; CONWAY, Erik M. Merchants of doubt how a handful


of scientists obscured the truth on issues from tobacco smoke to global
warming. 1. ed. U.S: Bloomsbury Press, 2018.

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Nascimento das
redes do parto
Bruna Rosa1
Luciana Resende Allain2
Elisa Sampaio de Faria3

INTRODUÇÃO

Para a Teoria Ator-Rede o nascimento não é um evento social somente 1 É mestra interdisciplinar em
saúde, sociedade e ambiente
pelo envolvimento de seres humanos, mas também pelo envolvimen- pela Universidade Federal dos
to de muitos objetos, como a tecnologia, o financiamento, a realidade Vales do Jequitinhonha e Mucuri.
É doula, membro da Associação
hospitalar, nos permitindo não só considerá-lo um evento social, mas de Doulas de Minas Gerais,
acompanha partos e participa
um evento sociotécnico, que nos permite traçar uma cartografia das de atividades educativas sobre
suas controvérsias. parto, nascimentos e sexualidade.
E-mail: [email protected]

Enquanto movimentos de humanização do parto defendem como 2 É doutora em Educação


pela Universidade Federal
um dos três principais pilares do nascimento o protagonismo da de Minas Gerais, docente do
parturiente, a percepção do parto como evento biopsicossocial e Programa de Pós-graduação
em Educação em Ciências,
práticas baseadas em evidências científicas atuais, a Federação Matemática e Tecnologias da
Universidade Federal dos Vales
Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia zela pela au- do Jequitinhonha e Mucuri (MG)
tonomia médica. O termo violência obstétrica vem sendo disputado e líder do Grupo de Estudos em
Teoria Ator-Rede e Educação.
por estas duas redes, rede dos médicos e rede do parto humaniza- E-mail: luciana.allain@ufvjm.
edu.br
do, sendo que a primeira conseguiu proibir o uso deste termo em
3 É doutora em Educação pela
maio de 2019, conectada ao Ministério da Saúde. Em junho do mes-
Universidade Federal de Minas
mo ano, a rede da humanização, junto ao Ministério Público Federal, Gerais (UFMG) e atua como
técnica em assuntos educacionais
conseguiu autorizar novamente o uso do termo, porém não há, des- no Centro Pedagógico da Escola
de Educação Básica e Profissional
de 2019, nenhum documento do Ministério da Saúde que se refira a
da UFMG. elisasampaiodefaria@
violência obstétrica. gmail.com

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Através da teoria Ator-Rede foram mapeadas as redes do parto e nas-
cimento, desde os auto partos ao início do século XIX, no intuito de
sistematizar a origem destas duas redes em disputa. A seguir apresen-
tamos a fabricação destas redes e um diagrama que ilustra seus des-
vios e associações.

AS REDES DO PARTO E NASCIMENTO

Há indicativos de que a mulher no Paleolítico era responsável pelos


cuidados próprios durante o ciclo gravídico puerperal e que o único
auxílio disponível era do companheiro. O parto era um evento con-
siderado unicamente biológico, onde só as mulheres capazes de ter
parto natural sobreviviam (GUALDA, 2017). Com o desenvolvimen-
to da agricultura e permanência no mesmo território, o tempo da
amamentação foi reduzido e o espaçamento entre filhos também.
Com o aumento da quantidade de filhos, se aproxima a noção de
família que temos hoje, junto ao desenvolvimento das estruturas
de cidade e principalmente de comunidade (GUALDA, 2017). De um
parto individual caminhou-se para um parto familiar e comunitá-
rio, vivenciado não mais individualmente pelas parturientes, seus
bebês e esporadicamente seus companheiros, mas assistido pelas
mulheres familiares e pelas mulheres daquela comunidade, prefe-
rencialmente mais experientes, que já haviam passado por partos
ou já haviam presenciado partos. Se até o Paleolítico o parto era um
evento unicamente biológico, sem qualquer tipo de apoio ou assis-
tência exterior, no Neolítico ele passou a ser biológico e social; social
no sentido de coletivo e não mais solitário, um parto compartilhado
com outras mulheres.

Wertz e Wertz (1977), afirmam que o espaço do parto era femini-


no por excelência, e que quando se iniciava um trabalho de parto,
se desencadeava toda uma rede de solidariedade e de ajuda de
mulheres da família, amigas e vizinhas; um paliativo de mulheres
para/entre mulheres em relação à demanda de partos frequentes

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e atividade de criação exaustiva dos filhos. Essas mulheres tinham
total controle do evento do nascer e eram consideradas capazes de
lidar com ele.

As parteiras obedeciam às sanções religiosas e místicas, as quais eram


reforçadas por rituais com intenção de preservar o equilíbrio entre
saúde e doença. As parteiras tinham que ter costumes irrepreensíveis,
boa disposição física para acompanhar as longas horas de trabalho
de parto, e disponibilidade de tempo. Suas habilidades práticas eram
desenvolvidas pela observação, experiência (em si e em outras mu-
lheres) e pela intuição. Seus conhecimentos eram passados de forma
oral entre gerações da mesma família ou comunidade.

De acordo com Michaelson (1988), os estudos antropológicos sobre o


nascimento em diversas sociedades reduziu a romantização de que o
parto primitivo era natural e sem intervenção, apresentando indícios
de que havia sim partos rápidos e tranquilos, mas também havia par-
tos nos quais era necessário intervir. Nas sociedades que faziam uso
de uma tecnologia leve, manobras, rituais e procedimentos, muitas
vezes nefastos, eram realizados pelas parteiras.

O’Dowd (1994) reconhece que a obstetrícia, como ofício e não ciência


moderna, é tão antiga quanto a humanidade, e que se manteve sob
domínio das parteiras por milênios, se transformando em uma profis-
são atrativa aos homens somente no século XVII. Até então a partici-
pação masculina nos cuidados do parto era mínima, por contrariar os
padrões culturais dominantes aliados à moral e ao pudor da época.
As parteiras dominavam um saber técnico do parto vaginal, já os bar-
beiros eram homens que dominavam um saber técnico das cirurgias,
e eram chamados para intervir nos partos quando se identificava a
necessidade de extração do feto morto no canal de parto ou da rea-
lização de cesáreas pós-morte. Aos poucos, os cirurgiões barbeiros
foram ganhando maior conhecimento sobre anatomia e fisiologia do
corpo humano e aperfeiçoando os seus instrumentos cirúrgicos, o

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que possibilitou a realização de intervenções mais eficazes, inclusive
nos partos (ROMALIS, 1981).

Não obstante, é do final do século XVI o registro do primeiro fórceps,


instrumento obstétrico para auxiliar a retirada do recém-nascido via
vaginal, desenvolvido pelo médico inglês Peter Chamberlen e utiliza-
do até os dias de hoje (MARTINS, 2004). Até o século XIX não havia, na
prática, uma delimitação bem estabelecida entre as práticas médicas
e de barbeiros. Há relatos em que o cirurgião atuava como médico,
diagnosticando e receitando, e há outros em que o barbeiro atuava
como médico e como cirurgião, transparecendo uma delimitação
muito pouco precisa entre as atividades de cada um (FIGUEIREDO,
1999). Tanto os médicos quanto os barbeiros realizavam procedimen-
tos cirúrgicos, porém, com a chegada do século XIX, marcado pelo que
a história chama de movimento civilizatório, foram lançadas novas
regras de comportamento, posturas e definições mais precisas sobre
as profissões. Assim, os médicos e barbeiros foram distanciados por
posições hierárquicas.

O movimento moderno do século XIX criou uma hierarquia das pro-


fissões e iniciou o processo de marginalização do plural das práticas
de cuidado à saúde, em defesa de um atendimento hegemônico. Não
só o ofício dos barbeiros foi classificado como inferior, mas também
qualquer outra prática obstétrica que não fosse fruto de uma escola
de medicina ou cirurgias. De acordo com a literatura nacional sobre
arte obstétrica e parteria (MOTT, 1999; MARTINS, 2004; BRENES, 2005),
até o final do século XVIII os tratamentos de saúde no Brasil eram rea-
lizados por jesuítas, físicos europeus e terapeutas populares, como
curandeiros, parteiras e cirurgiões barbeiros, sendo o parto assistido
majoritariamente pelas parteiras.

É no século XVIII que se inicia a mudança na filosofia tradicional do


parto, deslocada de um fenômeno regulado pelas leis da natureza,
para um fenômeno cujas bases se assentavam na anatomia e na fi-
siologia. Uma concepção fisiopatológica do corpo, a qual a Revolução

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 66


Industrial foi a principal responsável, promovendo a ideia de “corpo-
-máquina”, que carregava em si um potencial de “dano”. Se antes a
saúde do corpo era pensada pelo equilíbrio natural do mesmo, agora
era uma questão de tecnologia e “conserto”, tal qual uma máquina
defeituosa (ARNEY, 1982).

O evento do nascer passa a ser regido pela tecnologia, que deveria do-
minar e controlar as forças do nascimento como de uma máquina, por-
que todos os partos passaram a ser encarados como potencialmente
patológicos (ARNEY, 1982). A posição de joelhos, apoiada ou agachada
da parturiente foi transportada para uma posição horizontal, de de-
cúbito dorsal na mesa de parto, retratando a postura de doença, de
necessidade de intervenção, onde o controle é de quem assiste, e que
o papel da mulher é de passividade. É neste exato momento que surge
a autonomia médica. Enquanto as pedras, cadeiras e almofadas das
parteiras serviam para ajudar a mulher no trabalho de parto, a mesa
de parto e outras tecnologias servem para conter, amarrar ou facilitar
o trabalho de quem assiste o nascimento, retirando o protagonismo
da parturiente. Redefinindo o conceito de parto e nascimento, os mé-
dicos foram ganhando espaço, afirmaram ser uma crise com a qual as
mulheres civilizadas ou modernas fossem incapazes de lidar (BANKS,
1999; BARRETO, 2007).

A seguir apresentamos uma imagem, um diagrama, onde os quadra-


dos laranjas são as associações a rede dos médicos e os quadrados
azuis as associações a rede das parteiras.

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figura 1: Diagrama
fonte: Imagem elaborada pelas autoras.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O evento do nascer vem passando por grandes translações desde a che-


gada do Neolítico. O parto comunitário fabricou a rede das parteiras,
que também defendia o protagonismo das parturientes, mas que não
é a origem da rede do parto humanizado. Já a rede dos médicos é um
produto do século civilizatório, que reposiciona os cuidadores da saú-
de em hierarquias, separando parteiras de cirurgiões, e fabricando essa
nova e superior categoria médica. A Revolução Industrial, provedora da
ideia do corpo-máquina, também é um ponto de passagem obrigatória
à rede dos médicos, pois modifica as relações com a ideia de corpo,
saúde e cuidado, conectando-as à rede dos médicos. A origem da rede
do parto humanizado, ainda é uma hipótese, que por ter como base
uma ciência baseada em evidência atualizada, pode ser uma concilia-
ção de interesses entre a rede das parteiras e a rede dos médicos.

REFERÊNCIAS

ARNEY, W. R. Power and the profission of obstetrics. Chicago: The University


of Chicago, p.1-50, 208-253, 1982.

BANKS, A. C. Birth chairs, midwives and medicine. Jackson: University Press


of Mississippi, 1999.

BARRETO, M. R. N. A ciência do parto nos manuais portugueses de obstetrícia.


Gênero, Niterói a, v.7, n.2, p.217-234, 1º sem. 2007.

BRENES, A. C. História da parturição no Brasil, século XIX. Revista Cadernos


de Saúde Pública, v.7(2), Jun. 1991. Rio de Janeiro, 2005.

FIGUEIREDO, B. G. Barbeiros e cirurgiões: atuação dos práticos ao longo do


século XIX. Hist. Cienc. Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v.6, n.2, p.277-291,
Out. 1999.

GUALDA, D. M. R.; CAMPOS, E. A. de; PRAÇA, N. de S.; SALIM, N. R.; SOARES,


G. C. F. Nascimento: perspectivas antropológicas. 1. Ed. São Paulo: Ícone
Editora, 2017.

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MARTINS, A. P. V. A Ciência Obstétrica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.

MICHAELSON, K. L. Childbirth in America: anthropological perspectives.


Massachusetts: Bergin e Garvey, 1988.

MOTT, M. L. A parteira ignorante: um erro de diagnóstico médico? Revista


Estudos Feministas, v. 7, p. 25–36, 1999.

O’DOWD, M. J. The history os obstetrics and gynaecology. New York:


Parthenon, 1994.

ROMALIS, S. Childbirth: alternatives to medical control. Texas: University


of Texas, Texas, 1981.

WERTZ, R. W.; WERTZ, D. C. LYING-IN: A history of chilbirth in american.


New York: Free, [1997] 1989.

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Nos rastros das redes
CTS da UFRJ
a TAR através
do olhar dos doutorandos
do grupo NECSO
Maria Cristina de Oliveira Cardoso1

NOS RASTROS DAS REDES

No início dos anos 2000, dois grupos de pesquisa dos núcleos duros das 1 Mestre em História das Ciências
e das Técnicas e Epistemologia
ciências foram pioneiros ao trazer uma nova forma de olhar o “fazer e doutoranda do programa de
pós-graduação em História
ciência” para dentro da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ.
das Ciências e das Técnicas e
Os grupos PROENFIS e NECSO foram os primeiros grupos de pesquisa Epistemologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. E-mail:
da UFRJ vinculados aos Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade/ [email protected]
CTS, que se cadastraram no Diretório de Grupos de Pesquisa/DGP
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/
CNPq. Neste trabalho trazemos a Teoria Ator-rede pelo olhar dos dou-
torandos do NECSO. Olhar a TAR através do NECSO não é por acaso.
O NECSO foi criado em 2002 quase ao mesmo tempo em que o evento
anual patrocinado pelo grupo, o Ato-Rede.

Construímos esse trabalho a partir do mapeamento de 18 (dezoito)


das 19 (dezenove) teses defendidas pelos doutorandos do grupo en-
tre os anos de 2002 e 2016. Nesse mapeamento observamos que 12
(doze) dessas teses utilizaram Bruno Latour como referencial teórico.
As informações sobre os membros do grupo foram coletadas nos cen-
sos do DGP (BRASIL, 2022).

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A TAR SOB O OLHAR DOS DOUTORANDOS DO GRUPO NECSO

Tendo em mente que a ciência não é pura e não é definitiva, as lentes


da TAR possibilitam trilhar os caminhos da ação diferentes da histo-
riografia predominante das ciências. Paulo Mendes (2010, p. 42) re-
lembra que a historiografia hegemônica da ciência e da tecnologia
“estabelecia grandes divisões e assimetrias” e era vista como univer-
sal, neutra e pura. Os Estudos CTS possibilitariam olhar para a histó-
ria de forma diferente. Nesse sentido, Marcia Barros da Silva (2003, p.
37) aponta um dos caminhos onde olhar a ciência “como uma prática
social” permitiria a discussão dos conteúdos do conhecimento cien-
tífico “como representações que colocam as ideias de neutralidade e
objetividade científica em um contexto local, geográfico e temporal-
mente específico”.

Pensar pelas lentes da TAR significa tratar humanos e não-humanos


de forma simétrica, estudando as relações e mantendo a ideia de mo-
vimento. Nos textos das teses está presente essa ideia de movimento,
de um mundo em fluxo. Ronize de Abreu (2008, p. 53) afirma que a
TAR rejeitaria a ideia da legitimidade de a ciência estar na natureza e
de que os fatos científicos sejam exclusivamente construções sociais.
Segundo a autora, esse movimento “só pode ser entendido pelas re-
lações entre os atores” (ABREU, 2008, p. 24). Essa noção de fluidez
também aparece na tese de Eduardo Paiva (2004, p. 53) para quem a
abordagem sociotécnica da TAR “se afirma como coerente e adequa-
da em sua forma dinâmica, obtendo performance e resistência na sua
aplicação caso a caso”. José Antônio Borges (2009, p. 8) reforça que as
redes formadas por esses atores se modificam mediante as reconfigu-
rações dos fluxos.

Podemos então dizer que a construção do conhecimento científico


tem diferentes elementos que influenciam no curso da ação. Ao estu-
darmos o curso dos movimentos de uma pesquisa em ação é possí-
vel observar as formações de elementos híbridos que vão se descor-
tinando durante as configurações e reconfigurações das associações.

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Uma das definições de elementos híbridos pode ser observada no
trabalho de Ana Cláudia Monteiro. A autora afirma que “a evolução
humana, quando se distancia da natureza e se torna propriamente
um coletivo sociotécnico, estabelece novas regras e normas de fun-
cionamento” (MONTEIRO, 2009, p. 109). Para Borges (2009, p. 6), den-
tro do conceito de atores híbridos enquanto entidades constituídas
por relações heterogêneas entre humanos e não humanos, a TAR
seria uma espécie de ferramenta que facilitaria deslocar a atenção
entre categorias tais como, humanos/não humanos, social/natural.
E Mendes complementa quando coloca que “actantes heterogêneos
exercem e sofrem, simultânea e permanentemente, traduções/trans-
lações [...]” (MENDES, 2010, p. 42). Poderíamos dizer que um actante
é heterogêneo e híbrido.

A circulação da palavra universalidade formou um cenário de neu-


tralidade que resistiu por muitos anos. A TAR convida a pensar sobre
essa universalidade enaltecida nas pesquisas hegemônicas. Paiva ex-
plica como essa circulação se fortalece quando coloca que o conceito
de universalidade é assimilado pelos “ditos formadores de opinião
das nações periféricas que atuam como difusores de uma utópica
universalidade, neutralidade e benemerência” (PAIVA, 2004, p. 54).
Por isso concordamos com Monteiro (2009, p. 62) quando a autora
afirma que “é na convergência de muitos atores que encontramos a
universalidade”.

As lentes da TAR auxiliam a estudar as interações de uma sociedade


com seus artefatos científicos e tecnológicos e a localizar os estudos.
Para Borges (2009, p. 26), como seria quase impossível expor tudo o
que se coleta durante uma pesquisa, pensar através da TAR permite
que se enquadre um período ou um ponto de vista, deixando “de fora
o que não traz vantagem para a análise”. Mas as redes estão em cons-
tante movimento, sujeitas as controvérsias e as mudanças. Borges
(2009, p. 9) afirma que as redes formadas pelos atores se remodelam
continuamente para manter ou promover a aceitação de um fato e/ou

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artefato e a sua disseminação. Como diria Paiva: (2004, p. 58) o “ator
funciona como agência, agenciador ou conteúdo”.

E é justamente atrás das transformações que as afirmações sofrem


nas mãos de outros que as lentes da TAR nos conduzem. As redes
sociotécnicas se reconfiguram a partir da entrada e saída de um ator
pois escolhas são realizadas, porta-vozes são eleitos e traduções são
elaboradas em busca de uma estabilização, mesmo que provisória.
Esta também é uma visão de Marcia Cardoso (2013, p. 70), para quem
a TAR dá visibilidade aos objetos e os sujeitos agenciam, são agencia-
dos e giram em torno de redes em prol de um discurso. Dentro des-
se contexto, Borges (2009, p. 114) coloca que é preciso muita energia
para refazer as redes, sem recriá-las, mas fortificando pontos frágeis e
expandindo as relações. Afinal, as controvérsias são constantes e con-
tribuem para as reconfigurações ou estabilizações das redes.

Dentro do contexto de agenciamentos em prol de um discurso, Abreu


(2008, p. 89) traz um exemplo de escolhas e mobilização quando des-
creve os agenciamentos que facilitaram a entrada dos computadores
na redação de um jornal: os computadores tiveram sua entrada faci-
litada pelo sistema de impressão escolhido. Resolveram uma contro-
vérsia. Paiva (2004, p. 95), corrobora com essa visão quando afirma
que as associações e agenciamentos não podem ser considerados
como escolhas totalmente técnicas, pois é necessário considerar es-
colhas anteriores, cenários que não são mais possíveis alterar, até
mesmo por questões financeiras para continuidade dos projetos.

Quando nos acostumamos com algo, não pensamos como ele funcio-
na ou como ele chegou em nossas mãos, naturalizamos o fato.

Nesse trabalho tentamos passar por alguns conceitos da TAR através


das palavras dos doutorandos do grupo NECSO. Ainda há muito a ser
explorado na trajetória dos Estudos CTS dentro UFRJ. Continuamos
no rastro das redes na pesquisa de doutorado em andamento da qual
esse trabalho faz parte.

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 74


REFERÊNCIAS

ABREU, Rozine Aline Matos de. Morte das Pretinhas: Uma abordagem
sociotécnica da informatização do jornal O Globo. 2008. 148 f. Tese
(Doutorado Engenharia de Sistemas e Computação) – Instituto Alberto Luiz
Coimbra de Pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro/
UFRJ, Rio de Janeiro, 2008.

BARROS DA SILVA, Marcia Regina. O mundo transformado em laboratório:


ensino médico e produção de conhecimento em São Paulo de 1891 a 1933.
2003. 262 f. Tese (Doutorado História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo/USP, São Paulo, 2003.

BORGES, José Antônio dos Santos. Do Braile ao Dosvox - Diferenças nas


vidas dos cegos brasileiros. 2009. 327 f. Tese (Doutorado Engenharia de
Sistemas e Computação) -Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ, Rio de Janeiro 2009.

CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.


Diretório de Grupos de Pesquisa. O que é o Censo do Diretório dos Grupos
de Pesquisa. Disponível em: https://lattes.cnpq.br/web/dgp/o-que-e.
Acesso em: 10, mar. 2022.

CARDOSO, Marcia de Oliveira. Sox: um UNIX compatível brasleiro a serviço


do discurso de autonomia tecnológica na década de 1980. 2013. 280 f. Tese
(Doutorado História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia) – Instituto
Tércio Pacitti de Aplicações e Pesquisas Computacionais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro/UFRJ, Rio de Janeiro, 2013.

MENDES, Paulo Sérgio Pinto. A urna eletrônica brasileira: uma (des)


construção sociotécnica. 2010. 183 f. Tese (Doutorado História das Ciências
e das Técnicas e Epistemologia) - Instituto Tércio Pacitti de Aplicações e
Pesquisas Computacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro/
UFRJ, Rio de Janeiro, 2010.

MONTEIRO, Ana Cláudia Lima. As tramas da realidade: considerações


sobre o corpo em Michel Serres. 2009. 186 f. Tese (Doutorado Filosofia)
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP, São Paulo, 2009.

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 75


PAIVA, Eduardo Nazareth. FNM e a indústria automotiva no Brasil: Uma
análise antitética do ponto de vista da Teoria Ator-Rede. 2008. 458 p. Tese
(Doutorado Engenharia de Sistemas e Computação) - Instituto Alberto Luiz
Coimbra de Pós-graduação, Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ,
Rio de Janeiro, 2004.

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Latour e Durkheim
um encontro possível?
Pedro Peixoto Ferreira1

Há 10 anos, em 2012, por ocasião do centenário da publicação do 1 Professor do Departamento de


Sociologia (DS) e do Programa
grande clássico de Émile Durkheim, Les formes élémentaires de la vie de Pós-Graduação em Sociologia
religieuse (FEVR), Bruno Latour participou da mesa de encerramento (PPGS) do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas (IFCH)
do colóquio Les formes élémentaires de la vie religieuse de Durkheim da Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP).
1912-2012 – Perspectives pour l’anthropologie, na sala Lévi-Strauss do Coordenador do Laboratório
Collège de France.2 Ali ele apresentou uma versão anterior de um tex- de Sociologia dos Processos de
Associação (LaSPA). E-mail: ppf@
to que seria publicado dois anos depois, em 2014, no número 167 da unicamp.br

revista Archives de sciences sociales des religions, intitulado: “Formes 2 O colóquio ocorreu nos
dias 6, 7 e 8 de junho de 2012,
élémentaires de la sociologie. Formes avancées de la théologie”. 3
respectivamente na École
O texto foi apresentado pela revista, numa “nota da redação”, como Normale Supérieure (sala
Dussane), no Musée du quai
“um eco, uma retomada e uma nova etapa” da edição comemorativa Branly (sala de cinéma) e no
Collège de France (sala Lévi-
que a revista havia “consagrado”, em 2012 (número 159), ao centená-
Strauss). Foi organizado por
rio de FEVR (LATOUR, 2014, p.255, N.d.l.R.). Mas o que estaria Latour Frédéric Keck e Perig Pitrou, e a
mesa de encerramento, na qual
fazendo em meio a todas essas homenagens a um autor que (quase) Latour apresentou seu texto,
foi intitulada “Vie religieuse”, e
sempre apareceu, em seus textos, como o arquétipo da “sociologia
presidida por Bruno Karsenti.
do social”, que a seu ver “pressupõe o que precisa explicar” (i.e.: “a O programa completo dos 3 dias
do colóquio pode ser encontrado
sociedade”), e em oposição à qual ele propunha a sua sociologia dos online em: http://lettre.ehess.
fr/index.php?4144. Um registro
processos de associação, ou “associologia”?
fotográfico pode ser encontrado
em: https://digitaldurkheim.
hypotheses.org/255.
LATOUR E DURKHEIM 3 O provocativo título da
apresentação de Latour no
Em Reassembling the social, Latour (2005, p.15, 13) famosamente se re- colóquio foi “De combien de dieux
distincts la sociologie de Durkheim
feriu a Gabriel Tarde como um “ancestral precoce da Teoria Ator-Rede” analyse-t-elle le culte? [De quantos
deuses distintos a sociologia de
(TAR), em oposição a Durkheim, que supostamente “abandonou a tarefa
Durkheim analisa o culto?]”

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 77


de explicar a sociedade ao confundir causa e efeito, substituindo a com-
preensão do vínculo social por um projeto político visando a engenha-
ria social”. Sabe-se que as críticas mútuas, diretas e indiretas, explícitas
e implícitas, entre Tarde e Durkheim foram, inegavelmente, uma parte
fundamental da emergência e consolidação da sociologia na França, e
têm sido incansavelmente revisitadas pelo debate teórico internacional
para muito além da TAR de Latour (cf. PAPILLOUD, 2018, p.192-3).

A maneira contundente como Latour opôs Tarde e Durkheim, no en-


tanto, acabou ensejando uma incansável reiteração mecânica e este-
reotipada do debate entre eles, tipicamente na forma das seguintes
três etapas: primeiro, a oposição (em vida) entre a abordagem “social”
de Durkheim e a “interacional” de Tarde; depois a “vitória” (póstuma)
daquela sobre esta, como expoente legítima da ciência da socieda-
de; e finalmente, o renascimento (contemporâneo) da abordagem de
Tarde em um mundo em rede. Porém, como bem notado recentemen-
te por Bjørn Schiermer (2020), na maior parte das vezes, em lugar de
se basear numa leitura engajada dos dois clássicos (como é o caso da
leitura do próprio Latour), essa narrativa acaba apenas sendo reitera-
da mecanicamente, fazendo assim injustiça tanto a Durkheim – que
acaba sendo reduzido a um “sociólogo do social” – quanto a Tarde –
cujos conceitos e ideias acabam se tornando indistinguíveis daqueles
do próprio Latour.

Um importante instrumento de sustentação dessa narrativa este-


reotipada foi a valiosa reconstrução, por Eduardo Viana Vargas et
al. (2014), do debate presencial histórico ocorrido entre Tarde e
Durkheim na École des Hautes Études Sociales, em 1903. O notório
contexto tenso e agonístico daquele debate certamente favoreceu
mais o embate entre os dois, do que qualquer avanço rumo a algu-
ma possível cooperação. E o fato de a reconstituição do debate ter
sido encenada repetidas vezes com o próprio Latour interpretando
as falas atribuídas a Tarde, certamente também contribuiu para fo-
mentar, entre os admiradores e seguidores daquele, uma antipatia
quase alérgica a Durkheim (cujas falas foram interpretadas por Bruno

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 78


Karsenti). De fato, é difícil não terminar a leitura dessa reconstrução 4 A conferência Tarde/Durkheim:
trajectories of the social, na qual
do debate com uma impressão bastante negativa de Durkheim, pela o debate Tarde-Durkheim foi
encenado pela segunda vez por
maneira obtusa e intransigente que suas próprias palavras (citações Latour e Karsenti, foi organizada
ipsis litteris de seus textos) defenderam ideias rígidas e dualistas. Mas por Matei Candea em 2008, no
Centre for Research in the Arts,
sabemos que a sociologia de Durkheim não se limita às citações esco- Social Sciences and Humanities
(Cambridge). O texto original
lhidas nessa reconstrução. completo de apresentação de
Durkheim na divulgação da
Como formulou sinteticamente o material de divulgação da conferên- conferência (acessível online
no link: ttps://www.crassh.cam.
cia Tarde/Durkheim: trajectories of the social, o trabalho de Durkheim ac.uk/events/22845/) foi: “The
venerable ancestor of sociology
sempre foi acusado de “totalizador, reducionista, positivista e con-
has known better days. Long
servador”, mas após o renascimento contemporâneo do interesse before the neo-Tardian challenge,
anthropologists and others
por Tarde, ele “vem sendo reduzido ao longo dos anos, ao ponto de had attacked Emile Durkheim’s
work as totalizing, reductionist,
se transformar em um fantoche [straw man]”, motivando a ques-
positivist and conservative. As a
tão: “[q]uem devolverá o cérebro a esse espantalho [scarecrow]?”4 result of these attacks, Durkheim
has been thinned over the years
Surpreendentemente, foi em certo sentido isso que Latour ajudou a to the point of becoming a straw
man. Who will give this scarecrow
fazer, mesmo que talvez involuntariamente, em sua participação na
his brain back?” [“O venerável
homenagem ao centenário de FEVR. ancestral da sociologia já viu dias
melhores. Muito antes do desafio
neo-Tardeano, antropólogos e
outros acusaram o trabalho de
UM ENCONTRO POSSÍVEL? Émile Durkheim de totalizador,
reducionista, positivista e
conservador. Como resultado
Apesar da inegável força da narrativa agonística de Latour para o de- desses ataques, Durkheim vem
sendo reduzido ao longo dos
bate entre Tarde e Durkheim, a verdade é que este último nunca foi
anos, ao ponto de se transformar
apenas um “sociólogo do social”. Como primorosamente demons- em um fantoche. Quem devolverá
a esse espantalho o seu
trado por Anne Warfield Rawls (1987; 2004), correntes microssocio- cérebro?”]
lógicas estadunidenses da primeira metade do século XX – como o
interacionismo simbólico de Ervin Goffman, ou a etnometodologia
de Harold Garfinkel –, realizaram importantes leituras de Durkheim,
muito mais generosas e engajadas do que aquelas que transparecem
nos ecos e referências cruzadas à leitura de Latour. Nesse contexto,
a oposição – real, inegável, mas geralmente hipervalorizada – entre
Tarde e Durkheim fica em segundo plano, e menos importante do
que as possíveis complementaridades entre eles. É surpreendente
que esta leitura de Durkheim não tenha sido mais valorizada por
Latour (2005, p.253; 13), dado que sua TAR foi, desde seus primórdios

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(lembremos de Steve Woolgar), intimamente ligada à etnometodo-
logia de Garfinkel, a ponto de este e Tarde terem sido apresentados
por ele como “os dois heróis que escolhi”, e de Garfinkel ter sido ci-
tado, ao lado de Tarde, como “um dos raríssimos [...] predecessores
eminentes” da TAR.

Mesmo assim, desde muito antes de sua participação nas comemo-


rações do centenário de FEVR, Latour (2005, p.38) já reconhecia as-
pectos menos estereotipados da sociologia de Durkheim – momentos
nos quais ele não opunha indivíduo e sociedade, humanos e não-hu-
manos, mas antes descrevia suas composições mútuas e alternadas
(um compondo o outro, um de cada vez e a seu modo) –, apesar de
apresentá-los um tanto enviesadamente como “Durkheim tendo um
momento tardeano”. Mas foi em sua apresentação de 2012 que essa
sua leitura menos (mesmo que ainda) antagônica de Durkheim pôde
ser mais satisfatoriamente desdobrada. Para além da irresistível polê-
mica ali mantida, é comovente acompanhar Latour (2014, p.266-7) na
descrição do ritmo comum à obra de Durkheim e ao seu objeto – ritmo
que ele chamou de “inversão periódica do construtivismo” –, e que
fazia com que, “a cada cento e cinquenta páginas aproximadamente,
o sentimento da sociedade em Durkheim se enfraquecia e deveria ser
regenerado, revigorado, renovado por cenas de inversão”, nas quais
ganhavam centralidade “a efervescência e a materialidade”.

Mesmo sabendo que, “uma vez passada a efervescência, algumas pá-


ginas adiante, o argumento volta a ser exatamente o mesmo de an-
tes”, é difícil concordar com Latour (2014, p.267) quando diz que que
“essa inversão dialética não muda em nada as posições respectivas de
indivíduo e de sociedade”. Antes, não seria muito mais interessante e
promissor permitir que esses momentos de “inversão” efetivamente
transformem as “posições respectivas de indivíduo e de sociedade”,
e assim abram novas perspectivas à sociologia durkheimiana (muito
menos antagônicas a Tarde) – como, aliás, fizeram as microssociolo-
gias estadunidenses do século XX, e como hoje fazem diversas abor-
dagens contemporâneas inspiradas na TAR de Latour (e.g.: Papilloud,

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2018; Schiermer, 2020)? E não seria isso muito mais consistente com
o próprio método de Latour (2005, partes I e II), segundo o qual a si-
metrização inicial das agências em associação (o desdobramento das
controvérsias) deve ser seguida de uma recomposição do social (o ras-
treamento de associações)?

Entendo ser válido explorar as possibilidades abertas pelo encon-


tro possível entre Latour e Durkheim, para além dos antagonismos
estereotipados, rumo a, por exemplo: aqueles momentos em que
Latour (2005, p.14) se disse convencido de que a sociologia poderia
ser mais relevante “se tivesse herdado mais de Tarde (para não falar
de Comte, Spencer, Durkheim e Weber)”, e de que “as duas tradições
podem ser facilmente reconciliadas, a segunda [Durkheim] sendo
simplesmente a retomada da tarefa que a primeira [Tarde] acredita-
va ter sido alcançada rápido demais”; ou aqueles momentos em que
ele reconheceu explicitamente o valor da “‘sociedade sui generis’ de
Durkheim, dos ‘sistemas autopoiéticos’ de Luhmann, da ‘economia
simbólica dos campos’ de Bourdieu, ou da ‘modernidade reflexiva’
de Beck”, como “excelentes narrativas” para “nos preparar” para as
“tarefas políticas da composição” (apesar de sua inadequação como
“descrição para o mundo em comum”) (Latour 2005, p.189); ou ain-
da aqueles momentos quase alucinados, nos quais ele dizia “acredi-
tar” na sociologia, “acreditar” que ela “tem um papel essencial a de-
sempenhar, tão importante quanto Comte imaginou”, e “acreditar”,
“como Comte, que ela é a Rainha das ciências” – no sentido de ser a
responsável pelo trabalho diplomático, sem o qual não há a constru-
ção de um coletivo duradouro (Latour, in: Gane, 2004, p.89). Pouco
eficaz para cartografar controvérsias (pois responde muito apressa-
damente a qualquer pergunta com a resposta “social”), a sociologia
durkheimiana, pelo menos em seus desdobramentos microssocio-
lógicos e reticulares (ou “momentos tardeanos”), transparece em
Latour como excelente aliada, ao lado de Tarde e até mesmo Comte,
na recomposição do social.

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REFERÊNCIAS

GANE, Nicholas. Bruno Latour: the social as association. In: The future
of social theory. London: Continuum, pp.77-90, 2004.

LATOUR, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network


theory. Oxford: Oxford University Press, 2005.

__________. Formes élémentaires de la sociologie. Formes avancées


de la théologie. Archives de sciences sociales des religions, Paris, n. 167,
p. 255-275, 2014.

PAPILLOUD, Christian. Sociology through relation: theoretical assessments


from the French tradition. Cham: Palgrave Macmillan, 2018.

RAWLS, Anne W. The interaction order sui generis: Goffman’s contribution to


social theory. Sociological Theory, Newbury Park, v. 5, n. 2, p. 136-149, 1987.

__________. Epistemology and practice: Durkheim’s The elementary forms


of religious life. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

SCHIERMER, Bjørn. Durkheim, Tarde, Latour. In: Hans Joas; Andreas


Pettenkofer (eds.). The Oxford Handbook of Émile Durkheim. Oxford: Oxford
University Press, 2020, DOI: 10.1093/oxfordhb/9780190679354.013.24

VARGAS, Eduardo V.; LATOUR, Bruno; KARSENTI, Bruno; AÏT-TOUATI,


Frédérique; SALMON, Louise. O debate entre Tarde e Durkheim. Teoria e
Sociedade, Belo Horizonte, Número Especial: Antropologias e Arqueologias
hoje, p. 28-61, 2014.

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Pistas latourianas para
abordagem dos saberes PSI
entre a crítica modernista e a
descrição de dispositivos 1 Professor da UFRJ desde 1993,
e atualmente é professor titular
e pesquisador com bolsa de
Arthur Arruda Leal Ferreira1 produtividade do CNPq e Cientista
do Nosso Estado da FAPERJ.
Marcus Vinícius do Amaral Gama Santos2 Tem pós-doutorado pela UNED
Jimena Carrasco Madariaga3 (Espanha) e pela Universidade
Javeriana e foi presidente
da Sociedade Brasileira de
História da Psicologia. É autor
e organizador de livros como
Teoria Ator-Rede e a Psicologia,
História da Psicologia: Rumos
e Percursos, A Pluralidade do
Campo Psicológico, Psicologia,
A finalidade deste trabalho é fazer uma breve descrição das formas Tecnologia e Sociedade e
Governamentalidade e práticas
latourianas de abordagem dos saberes psi, considerando o interesse Psicológicas: a gestão pela
liberdade. Email: arleal1965@
crescente dos pesquisadores desse campo pelo trabalho deste autor.
gmail.com.
Basicamente teríamos quatro versões para abordagem dos saberes psi:
2 Graduado em Psicologia pela
Universidade Federal do Rio de
1. Vinculado a uma crítica à divisão moderna entre um domínio hu- Janeiro (UFRJ). Mestrando em
Psicologia pelo Programa de Pós-
mano/social/político/subjetivo e outro natural/universal/cientí- Graduação em Psicossociologia
de Comunidades e Ecologia Social
fico/objetivo, onde os saberes psicológicos teriam como função (PPGP-EICOS) do Instituto de
operar como um estabilizador no primeiro grupo e as epistemo- Psicologia da UFRJ. Graduando
em Filosofia pela UFRJ. Email:
logias no segundo (Latour 1987, 1994, 1996 e 2011); [email protected].

3 Terapeuta Ocupacional e
2. A partir de uma alternativa amoderna da Psicologia, sendo esta licenciada em Ciências da
representada pelos trabalhos de Tobie Nathan (Latour, 1996, Ocupação pela Universidad de
Chile, mestrado e doutorado em
1998 e 2013); Psicologia Social pela Universidad
Autónoma de Barcelona.
Acadêmica da Faculdade de
3. Na proposta de uma abordagem das propriedades psicológicas,
Medicina da Universidad Austral
conectável a dispositivos de produção de subjetividade dentro de Chile. Sua linha de pesquisa
aborda as atuais políticas e
de uma perspectiva realista-construtivista (Latour 2003, 2004 e práticas de intervenção em Saúde
Mental e Psiquiatria, com ênfase
2005);
nos novos dispositivos chamados
de Portas Abertas, a partir de uma
perspectiva crítica.

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4. Por meio da descrição de processos efetivos de produção de 4 Jogo de palavras que faz
sentido em francês na junção
subjetividades operados por dispositivos psicológicos (Latour de fato (fait) com fetiche
(fétiche) produzindo os feitiches
e Hermant, 2009). (faitiches).

Passemos ao primeiro aspecto. Uma boa chave para apresentação da


Teoria Ator-Rede pode ser a busca de ampliação do princípio de si-
metria proposto por David Bloor (1976), que buscava problematizar
a oposição nos modos de análise dos conhecimentos científicos e
dos não-científicos. É assim que outras dualidades são simetrizadas
e problematizadas em sua suposta diferença essencial: 1) Natureza
X Sociedade; 2) Objetividade X Subjetividade; 3) Modernidade X Pré-
Modernidade. As oposições citadas não se recobrem, mas se tocam,
especialmente as duas primeiras. A problematização da segunda di-
visão é a que mais diretamente nos interessa e se apresentou como
tema do livro Pequena Reflexão sobre o Culto Moderno dos Deuses
Feitiches (Latour, 1996). A tese ontológica é que todas estas divisões
são próprias de recortes históricos específicos e localizáveis, como o
debate no século XVI entre Robert Boyle e Thomas Hobbes, confor-
me a apropriação que Latour (1994) faz do texto de Shapin e Schaffer
(1985). Para aquém dos processos de purificação, existiriam diversas
configurações de híbridos ou feitiches4.

É importante conectar essa discussão com o realismo construtivista de


Latour (2003), para o qual os dispositivos se constituem como reais
quanto mais intenso e complexo é o processo de construção, sem a
divisão tradicional entre realismo (apelando a uma suposta realida-
de intocável) e construtivismo (referido a um processo de artifício).
Subjetividade e objetividade, assim como natureza e sociedade não
são pontos de partida, mas pontos de chegada, gerados por opera-
ções de purificação (Latour, 1994) ou drenagem (Latour, 1996) e que
teria como principal efeito multiplicar os híbridos (Latour, 1994) e fei-
tiches (Latour, 1996). No livro sobre os deuses fetiches (Latour, 1996),
a Psicologia é posta em causa, como grande herdeira, juntamente
com a Epistemologia, da separação moderna entre subjetividade e

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objetividade. Divisão que atuaria como uma bomba de sucção, atrain-
do os entes para cada um desses polos de purificação (subjetivos e
pessoais ou objetivos e reais). Do lado da Epistemologia, teríamos
a discussão da produção dos fatos; do lado da Psicologia, teríamos
o debate sobre a gestação de nossas crenças subjetivas, que seriam
nosso resto de engano perante a razão científica.

A alternativa a esta divisão moderna aos modos de purificação/dre-


nagem moderna estaria numa postura amoderna (nem anti-moder-
na, nem pré-moderna, nem pós-moderna; Latour, 1994). Esta postura
se caracterizaria pela tomada positiva dos híbridos e dos processos
de fabricação e purificação das entidades, nos seus mais diversos cir-
cuitos, como em nossos modos de subjetividade. A alternativa a esta
forma depurada, em geral representada pelas Psicologias, estaria
presente no trabalho etnopsiquátrico de Tobie Nathan (Latour, 1996,
1998 e 2013). Com isso, entramos no segundo sentido das abordagens
de Latour sobre a Psicologia. O trabalho deste etnopsiquiatra iria na
contramão dos esforços de outros especialistas desse campo, como
Georges Deveraux, que sempre buscavam traduzir as experiências de
grupos não-ocidentais em termos de entidades internas e inconscien-
tes, mais adequados aos modos republicanos franceses modernos
(Latour, 1998). A forma com que Nathan trabalharia os temas vincula-
dos ao suposto campo da Psicologia não remeteria a uma operação de
purificação, no refluxo de experiências diversas a entidades internas.
Segundo este autor, grupos humanos não-ocidentais partilhariam
com os ocidentais a convicção ontológica da existência de seres invi-
síveis (ou seres da metamorfose, Latour, 2013). Contudo, para os não-
-ocidentais, estes seres invisíveis não seriam entidades internas, pes-
soais e governadas por leis psicológicas universais. Essas entidades
não estariam resguardadas pelas fronteiras subjetivas de um mundo
de crenças e fantasias; esses seres coabitariam nosso espaço vital. O
trabalho de Nathan se faria no reconhecimento e acolhimento de ex-
periências não-modernas, trazidas especialmente pela clientela de
imigrantes os mais diversos em território francês, sem traduzi-las em

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 85


termos modernos, sem qualquer redução dos relatos às verdadeiras e 5 Aqui é feita uma clara
conexão com a proposta de
últimas visões da nossa subjetividade. Melhor, haveria aqui uma mul- Latour (2005) de uma sociologia
das associações a partir de
tiplicação de versões de fabricação da nossa subjetividade, de nossos Gabriel Tarde, oposta a uma
eus (Latour, 1998), onde a intervenção pela influência é peça-chave. sociologia do social de base
durkheimeana. Se, no primeiro
caso, o social é tomado como
A maior parte das referências dos trabalhos de Latour ao tema da sub- um processo de associações e
agenciamentos, no segundo, ele
jetividade envolve a crítica aos modos de ação da Psicologia enquanto
é tomado como uma espécie
formas de purificação moderna, apontando para uma alternativa on- de substância ou domínio
ontológico.
tológica por meio de práticas como a etnopsiquiatria. Contudo, seria
possível pensarmos uma tomada da produção de subjetividade como
produção híbrida (pensando em uma psicologia das associações5)
no mesmo sentido em que o antropólogo francês aborda o tema da
produção da realidade por dispositivos técnico-científicos (Latour e
Wooglar, 1979, Latour, 1987). Aqui, teríamos os dois últimos sentidos,
apontados em partes menos centrais de sua obra e que abririam pis-
tas para alguns estudos de produção de subjetividade, notadamente
por dispositivos sociotécnicos psi, que assim não se revelariam tão
modernos. Passemos então a estes demais sentidos (Latour, 1997,
2004, 2005 e Latour e Hermant, 2009).

As melhores pistas de como Latour entenderia esta múltipla produção


de subjetividade em uma psicologia das associações (o terceiro sen-
tido) estaria em dois textos específicos: How to talk about the body?
(2004) e a tese sobre os plug-ins de subjetividade desenvolvida em
Reagregando o Social (2005). A primeira pergunta que poderia surgir
é: o que um texto sobre o corpo poderia nos instruir sobre a produção
de subjetividade? Aqui, recusando qualquer divisão moderna (como
entre subjetividade e corpo), é possível tomar espinosamente estes
dois modos do mesmo processo de construção de híbridos, feitiches,
quase-sujeitos, quase-objetos, como numa constante co-articulação
e co-afetação de entidades heterogêneas. Aqui, o corpo não pode
ser definido por “uma essência, uma substância, mas [...] uma inter-
face que se torna cada vez mais descritível quanto mais ele aprende
a ser afetado por vários elementos” (LATOUR, 2004, p. 205; grifo do
autor). Como exemplo desse poder de ser afetado, Latour considera

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 86


a aprendizagem de especialistas da indústria de perfume (também
chamado de “narizes”) por meio de um kit equipado com odores com
os quais, depois de um tempo de treinamento, os aprendizes seriam
capazes de fazer distinções inteiramente novas. Para o autor, esse
aprendizado não se daria apenas na aquisição de uma habilidade por
um corpo natural, mas em sua construção recíproca com o mundo:
“adquirir um corpo é, então, uma empresa progressiva que produz, de
uma vez, um meio sensorial e um mundo sensitivo” (LATOUR, 2004,
p. 207). Seria esse corpo articulado que permitiria o conhecimento do
mundo (e de outros corpos) para coproduzir-se com este, registrando
novas diferenças de novos modos e ampliando os contrastes entre os
fenômenos anteriormente tomados como homogêneos: “articulação
não significa falar com autoridade [...] mas ser afetado por diferenças”
(LATOUR, 2004, p. 210).

De maneira ainda mais direta, podemos encontrar a reflexão sobre a


composição da subjetividade em comparação com os plug-ins, como
faz Latour em Reagregando o Social (2005). Aqui, o autor está discu-
tindo a possibilidade de abordar o social em uma suposta forma mais
pura, no encontro face a face entre as pessoas. Mas, para Latour, mes-
mo as habilidades psicológicas supostamente mais puras, sejam afe-
tivas ou cognitivas, não seriam entidades naturais das pessoas, mas
seriam incorporadas, da mesma forma que um plug-in é instalado em
um computador. Todo o material constitutivo dessas habilidades cir-
cula, encontra-se distribuído em uma série de materialidades e prá-
ticas, que constituem os psicomorfos, que seriam os formadores de
nossa subjetividade. Assim, da mesma maneira que os romances e as
telenovelas podem ser constitutivos de nossas afecções, as técnicas
de cálculo podem ser geradoras de nossas formas cognitivas.

A quarta possibilidade de abordagem da Psicologia em ação é ainda


mais minoritária nos trabalhos de Latour. Uma breve referência pode
ser feita ao Plano 49 de Paris, Cidade Invisível, escrito em companhia
de Emilie Hermant (2009). Aqui, Latour fala claramente de como os ci-
dadãos de Paris fazem a assinatura de serviços psi, como funcionam os

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 87


serviços terapêuticos ou modos de diagnóstico. Mas, aqui, as duas pá-
ginas deste plano acabam servindo mais como um menu degustação
do tema. Como ocorreriam aqui estas práticas de assinatura? Como
ocorreriam aqui os processos de produção de subjetividade? Como
poderíamos fazer tais estudos com o equipamento leve da TAR de que
nos fala Latour (2005), seguindo os atores em seus modos de composi-
ção, sem impor a eles o peso das grandes categorias explicativas, bali-
zadas pelas dualidades modernas? Este é o desafio dos pesquisadores
interessados nas derivas sociotécnicas dos dispositivos psi.

REFERÊNCIAS

BLOOR, David. Knowledge and social imagery. Chicago: University of Chicago


Press, 1976.

LATOUR, Bruno. Science in Action: How to Follow Scientists and Engineers


through Society, Cambridge: Harvard University Press, 1987.

______. Jamais fomos Modernos. São Paulo: Editora 34. 1994.

______. Petite réflexion sur le culte moderne des dieux faitiches. Paris:
Éd. Synthélabo, coll. Les Empêcheurs de penser en Rond, 1996.

______. Universalidade em pedaços. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 de


Setembro. Mais!, p. 3, 1998.

______. The promises of constructivism. In: Don Ihde (editor) Chasing


Technology : Matrix of Materiality, Indiana Series for the Philosophy of Science,
Indiana University Press, p. 27-46, 2003.

______. How to talk about the body. Body & Society, v. 10, n. 2-3, p. 205-229,
2004.

______. Reassembling the social: An Introduction to Actor-Network Theory.


Oxford: Oxford University Press, 2005.

_______. Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris:


La Découverte, 2011.

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_______. An Inquiry of Modes of existence. Cambridge: Harvard University
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LATOUR, Bruno; HERMANT, Emile. Paris: Ville Invisible. Les empêcheurs


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LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve, Laboratory life. The social construction of


scientific facts. Beverly Hills, California, and London: Sage Publications, 1979.

SHAPIN, Steve; SCHAFFER, Simon. Leviathan and the Air-Pump: Hobbes,


Boyle and the Experimental Life. Princeton: Princeton University Press, 1985.

cts em foco | v. 02 n. 04, out-dez 2022 89


Bruno Latour e o Brasil
1 * Versão modificada da
publicada no dossiê Bruno Latour
da revista digital chilena barbarie

um reconhecimento tardio?1* - (https://www.barbarie.lat/)

2 Universidade Federal do Rio de


Janeiro. [email protected]
Ivan da Costa Marques2
3 Escrevo ‘dentro’ e ‘fora’ (do
campo da pesquisa científica)
por razões de economia do
texto, evitando entrar na
problematização da “noção de
contexto” presente nos Science
Studies, especialmente na teoria
ator-rede. Ver “Da Dificuldade de
Penseur de l’écologie, de la modernité ou de la religion, Bruno Ser uma ANT: Interlúdio na Forma
de Diálogo” em (LATOUR, 2012).
Latour était un esprit humaniste et pluriel, reconnu dans le
monde entier avant de l’être en France. Sa réflexion, ses écrits,
continueront de nous inspirer de nouveaux rapports au monde.
Reconnaissance de la Nation. @Emmanuel Macron (Officiel du
gouvernement – France, twitter, 9 de outubro de 2022, 08:04AM)
(ênfase adicionada)

Emmanuel Macron tuitou no dia da morte de Bruno Latour: “Um espí-


rito humanista e plural que foi reconhecido no mundo todo antes de
ser reconhecido na França”. Mas o reconhecimento de Bruno Latour
não é tardio e ainda limitado também no Brasil?

Em primeiro lugar, é plausível considerar que a “denúncia” que Latour


faz das estratificações nas construções dos conhecimentos científicos
interesse especialmente a quem faz pesquisa em nosso país. Latour
desfaz a imagem do campo da pesquisa científica como um espaço
plano, aberto e transparente de verdades puras configuradas em en-
contros de consensos racionais afastados da política. Hierarquias, au-
toridades e escalas isolam e estigmatizam coletivos inteiros “dentro”
e “fora” das ciências.3 Quase insuperáveis são as desigualdades para a
participação na construção de conhecimentos científicos. Colocar em
circulação uma proposição científica ou criar uma controvérsia cientí-
fica depende decisivamente da capacidade de alistar e manter alista-
das ao seu lado pessoas, equipamentos, práticas, teorias e fatos. Essa

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capacidade está concentrada em pouquíssimas mãos. Essa desigual-
dade nas capacidades de fazer ciência e tecnologia é visível nacional
e internacionalmente. A capacidade de discutir um fato científico,
abrir uma controvérsia, colocar uma proposição em circulação como
candidata a teoria ou fato científico, publicar um artigo, tudo isso de-
pende decisivamente de onde se está institucionalmente. O processo
de proposição e estabilização (criação, produção) de um conhecimen-
to científico se dá através de sucessivas provas de força (“testes de
realidade”) cujos custos aumentam a cada rodada de controvérsias
e confirmações. Para conseguir permanecer no jogo e simplesmente
não sair, é preciso fazer parte de importantes laboratórios, centros
de cálculo, e difusores do entendimento público das ciências, todas
instituições cuidadosa e hierarquicamente guardadas. Um conheci-
mento científico ganha estabilidade pela reunião e manutenção sob
controle de pessoas e coisas, equipamentos, materiais, e instituições.
“É ... Galileu estava bem enganado quando pretendeu opor retórica
e ciência colocando, de um lado, uma hoste (mil Demóstenes e mil
Aristóteles) e, de outro, um só ‘homem comum’ que porventura ‘ati-
nasse com a verdade’”. (LATOUR, 1987/1997:102)

De especial interesse para o Brasil, Latour “denuncia” que a estratifi-


cação é visível não só dentro de um mesmo país, mas que ela também
é visível entre países. Isto significa, ele sublinha, que alguns países
alistam e outros são alistados. Para pesquisadoras∕es de países como
o Brasil, a importância da “denúncia” das estratificações na produção
dos conhecimentos científicos e de como elas acontecem não poderia
ser maior:

... o país que tenha um sistema científico pequeno pode acre-


ditar nos fatos, comprar as patentes, importar conhecimentos,
exportar pessoal e recursos, mas não poderá questionar, dis-
cordar ou discutir e ser levado a sério. No que se refere a cons-
trução de fatos, um país desses não tem autonomia” (Latour,
1987/1997, p.274-275) (ênfase no original).

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Em segundo lugar, Latour vai muito além de constatar as estratifica- 4 Vale ressaltar que essa (des)
classificação transborda dos
ções nas construções dos conhecimentos científicos que chamei de referenciais epistemológicos para
a sociedade em geral, inclusive
“denúncias”. Talvez ainda mais relevante, ele também mostra novas para os circuitos econômicos.
direções epistemológicas que podem ser decisivas para pesquisado- Para citar um exemplo, os
conhecimentos dos povos
ras∕es que enfrentam dificuldades em dignificar conhecimentos não originários da Amazônia sobre
as plantas não são aptos a serem
traduzidos para a colossal estrutura de conhecimentos das ciências remunerados, mas o princípio
(modernas) ocidentais. Esses conhecimentos, tais como aqueles co- ativo isolado em uma molécula
é um conhecimento apto a ser
nhecimentos do povo brasileiro oriundos dos povos originários das remunerado na forma de um
remédio (uma molécula).
Américas ou da África, são classificados pelas ciências ocidentais como
crença, ou ficção e ∕ ou memos fraude.4 Latour mostra, no entanto, que, 5 Ver (LATOUR, 1987/1997:
Capítulo I “Literatura”, pag. 39-104)
uma vez historiadas e analisadas em detalhes (etnograficamente), as
concepções, as teorias e os fatos científicos daquela colossal estrutura
incorporam as “impurezas do mundo dos humanos-entre-si” e não se
estabilizam na ausência da política (sem que a força os apoie).

Não é aqui um lugar para se explorar longamente as riquíssimas novas


direções epistemológicas propostas por Latour. Como um exemplo,
utilizarei a apreciação que Latour faz do “artigo científico”, uma vez
que nossa comunidade se mostra impotente diante da equivalência
adotada pela CAPES em sua avaliação: “conhecimento científico = ar-
tigo científico”. Latour “denuncia” a visão de que o artigo científico
expressa uma verdade pura e cristalina, algo que “está lá” no “mundo
das coisas-em-si”, na Natureza, algo atingido por um método científi-
co que o separa do “mundo dos humanos-entre-si”.5

Estudando etnograficamente a confecção do artigo científico em la-


boratórios e centros de cálculo, Latour mostra que seus autores ar-
regimentam aliados, referem-se positiva ou negativamente a textos
anteriores, ignoram os discordantes que não se sentem capazes de
enfrentar, consideram as situações em que poderão ser tomados
como referência por textos posteriores, defendem-se e fortificam-se a
si próprios, adotam táticas de posicionamento, empilham elementos
criando induções, encenam enquadramentos, enfim, todas as técni-
cas da velha retórica, visando finalmente capturar o leitor apresen-
tando-lhe um leito ladrilhado, sem poros, lógico, que o deixa isolado

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e sem saída. “A forca da retórica está em fazer o discordante sentir-se 6 O jornal britânico The Guardian
descreveu Bruno Latour como
sozinho”. (LATOUR, 1987/1997:76). “um showman de verdades
difíceis”. (LATOUR, 2020 (Jun 6)).
Latour nos faz ver que um artigo científico fecha propositalmente to-
das as opções de negá-lo. Ou você o ignora ou entra em laboratórios
instrumentalizados para submetê-lo a “provas de força”, coisa pouco
acessível a brasileiras/os como ele próprio “denuncia”. Latour mostra
que o artigo científico é uma obra de convencimento e não uma apre-
sentação de verdades reluzentes previamente dadas em uma realida-
de isolável e incorruptível que seria a Natureza. Quando um assunto
passa de uma conversa de bar para um artigo científico a quantidade
de aliados e opositores (humanos e não-humanos) envolvidos não di-
minui, mas aumenta drasticamente. “Desacreditar (do artigo científi-
co) não só significará lutar corajosamente contra uma grande massa
de referências, como também desemaranhar infindáveis laços que
amarram, uns aos outros, instrumentos, figuras e textos”. (LATOUR,
1987/1997:84) Quem é pobre e epistemologicamente desarmado não
tem como discordar e não seguir essa peça literária que usa uma retó-
rica tão forte que produz um texto do qual não se escapa sob pena de
se descolar da realidade. “Grande é o poder dessa retórica capaz de
enlouquecer quem dela discorde”. (LATOUR, 1987/1997:99).

Embora branco, europeu, privilegiado, como ele mesmo reconhece,


Bruno Latour vislumbra alianças com e entre as classes subalternas.
O pensamento de Bruno Latour é, antes de tudo, radicalmente sub-
versivo: o que pode ser mais libertador da ordem estabelecida do
que clamar “Jamais fomos modernos!” entre os próprios europeus?
(LATOUR, 1991/1994).

Latour é libertador mesmo para os soberanos no império euro-ameri-


cano, aconselhando-os a “abandonarem a ideia de enquadrar tudo em
termos da economia”. Eis aí uma verdade especialmente difícil para
os soberanos de um império que já não aguenta mais nem as doenças
de seus sistemas de produção e consumo nem os remédios para elas,
mas não quer renunciar a seu modo de existência.6 Latour sugere que

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[o] que nós precisamos não é só modificar o sistema de pro- 7 https://www.theguardian.
com/world/2020/jun/06/
dução, mas sair dele completamente. Deveríamos nos lembrar bruno-latour-coronavirus-
que essa ideia de enquadrar tudo em termos da economia é gaia-hypothesis-climate-crisis
acessado em 13∕10∕2022.
uma novidade na história humana. A pandemia nos mostrou
que a economia é uma maneira bastante estreita e limitada de
organizar a vida e de decidir quem é importante e quem não
é. ... Se eu pudesse mudar uma coisa, seria sair do sistema de
produção e em vez dele construir uma ecologia política. (Bruno
Latour, entrevista a Jonathan Watts, The Guardian, 06∕06∕2020)7

Ressalto que a obra de Bruno Latour vislumbra, sobretudo, alianças


para e entre as classes subalternas do império euro-americano. O que
é ciência hoje? Onde é feita? Como e quem a faz? Com quem, para
quem e para o quê? O que pode ser mais subversivo do que propor
uma mudança radical não só no entendimento de como se faz/fez e se
acumula/ou o conhecimento científico, mas também no próprio modo
de existência euro-americano? É construindo suas próprias respostas
para as perguntas acima que os povos subalternizados dos Brasis po-
derão se aproximar dos soberanos euro-americanos sem renunciar a
suas próprias soberanias.

Em Latour os subalternos podem procurar e encontrar o que pode ser


lido como “denúncias” de como os soberanos euro-americanos te-
nham talvez mais exportado do que seguido suas próprias convicções
modernas. Em suas “denúncias” ele indica como, com o expediente da
“razão sempre apoiando a força e a força sempre apoiando a razão”,
os conceitos, as teorias, e as práticas das tecnociências do império
seduziram ∕ subjugaram os subalternizados deste mundo fazendo-os
optar por caminhos que não os privilegiam e os fazem desperdiçar es-
forços. Resta às classes subalternas aproveitar as “denuncias”, dando
prosseguimento às oportunidades que elas abrem.

Latour destaca-se como um intelectual europeu que logrou exibir o


etos imperial da Ciência e o papel que a Ciência desempenha∕ou na
construção dos impérios ocidentais, “a invencibilidade moderna”.

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O  conservadorismo e o confinamento voluntário de uma (grande?)
parte da intelectualidade brasileira revela-se por ser justamente esse
um ponto escolhido para atacá-lo: “Latour voltou atrás e mudou o que
pensava sobre o conhecimento científico!” – é a acusação rasa dos que
querem tapar o sol com a peneira, insistindo na visão idealizada da
Ciência como obra que transcende o humano ao descobrir objetos sem
história, objetos que sempre estiveram lá em uma Natureza incorrup-
tível à qual a Ciência tem acesso (transcendente). É mesmo revelador
constatar esse caso brasileiro do colonizado que se vê no colonizador
e do oprimido que teme a fragilização (relativização) do opressor. Se
o aproveitamento da humanização da Ciência pela “direita” provoca
horror, a reação não pode ser continuar crendo que a Ciência transcen-
de o humano. Lembremos que o oposto de relativismo é absolutismo
e não realismo. A fragilização não é dos conhecimentos científicos que
sempre dependeram da política, da força e do trabalho contínuo para
se afirmarem. A fragilização é da Ciência Moderna como verdade abso-
luta, como verdade acima dos humanos (DA COSTA MARQUES, 2022).

REFERÊNCIAS

DA COSTA MARQUES, I. Tecnologia, Ciência e Ativismo Militante em Bruno


Latour In: KLEBA, J. B.;CRUZ, C. C., et al (Ed.). Engenharias e outras práticas
técnicas engajadas – Vol 3: Diálogos Interdisciplinares e decoloniais.
Campina Grande, PB: EDUEPB, p. 395-436, 2022.

LATOUR, B. Ciência em Ação - Como seguir cientistas e engenheiros


sociedade afora. Tradução (REVISÃO), I. C. B. e. J. d. P. A. São Paulo: UNESP,
1987/1997.

LATOUR, B. Jamais fomos modermos - ensaio de antropologia simétrica.


Tradução COSTA, C. I. d. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1991/1994.

LATOUR, B. Reagregando o social - uma introdução à teoria do Ator-Rede.


Salvador, BA e Bauru, SP (Brasil): Edulba (BA) e Edusc (SP), 2012.

LATOUR, B. Bruno Latour: ‘Trump and Thunberg inhabit different planets –


his has no limits, hers trembles’. TODD, A.: The Guardian, 2020.

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Teoria ator-rede e a
construção de uma
antropologia dos modernos
por uma diplomacia
discursiva
Patricia Rilliane Gomes da Silva1
Orivaldo Pimentel Lopes Júnior2
1 Graduada (2015) e mestre
(2019) em Ciências Sociais pela
Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Doutoranda e
bolsista (CAPES) pelo Programa
de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da UFRN. Pesquisadora
do Grupo Marginália (Grupo
RESENHA DO LIVRO de Estudos Transdisciplinares
em Comunicação e Cultura).
Possui interesse pelos temas da
LATOUR, Bruno. Investigação sobre os modos de existência: uma Complexidade, comunicação
antropologia dos modernos. Tradução de Alexandre Agabiti Fernandez. e mídias digitais. E-mail:
[email protected]
Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
2 Professor titular da
Universidade Federal do Rio
Resenhar a Investigação sobre os modos de existência: uma antropolo-
Grande do Norte, tendo chegado
gia dos modernos requer a compreensão de que se trata do resultado à titularidade no ano de 2019
com a defesa da tese “Parcerias
de uma vida inteira dedicada ao estudo das condições artificiais dos do Conhecimento: Epistemologia
dos Estudos da Religião e do
modos de existências, ou melhor, aos mediadores da realidade. Dessa
Mito”. Realizou o Pós-doutorado
forma, consiste em uma leitura que exige adentrar no diálogo com com bolsa da CAPES entre 2014
e 2015 na Università Degli Studi
outras obras, ir buscar os fios aparentemente soltos. Mas, se a leitura di Padova, Itália. Doutorado em
Ciências Sociais pela PUC-SP, com
desse livro é de difícil e árdua realização, o seu término culmina no
bolsa sandwich na Drew Univesity
entusiasmo para investigar a aventura, cheia de amálgamas, dos mo- em New Jersey, Estados Unidos,
com bolsa da CAPES. Escreveu
dernos. Bruno Latour (2019) dispensa suas energias em 400 páginas tese sobre a relação entre Ciência
e Religião no âmbito das Ciências
e apresenta uma amostra base, como ponto de partida para uma in-
Sociais. E-mail: orivaldojr@
vestigação mais ampla sobre o sistema de valores das sociedades oci- yahoo.com.br

dentais. Pesquisador social da ciência e da tecnologia, o autor criou 3 Disponível em: www.
modesofexistence.org. Acesso
uma plataforma digital , cujo objetivo é mobilizar uma comunidade
3
em: 25 fev. 2023.

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de pesquisa intitulada Investigação sobre os Modos de Existência, e
faz um convite à construção de uma antropologia dos modernos por
meio da obra em questão.

Tal convite é realizado sob a forma de orientação para uma pesquisa


coletiva, na qual, o filósofo, antropólogo e sociólogo francês oferece
uma leitura de fôlego, difícil de acompanhar, que mais parece fei-
ta para convencer qualquer leitor que prefere sua zona de conforto
a desistir, entretanto, o objetivo desta resenha é tentar convencer a
insistir na leitura. Então, vamos sublinhar o objeto da pesquisa pro-
posta: o sistema de valores das sociedades ocidentais, os quais são
constituídos como domínios (a religião, a ciência, o direito são alguns
dos exemplos mais evidentes), e, embora sejam distintos, são ligados
entre si. Porém, o que liga esses domínios uns aos outros? O que os
diferenciam? É exposto um arcabouço com 15 domínios mapeados,
bem como a orientação, um caminho para identificar e mapear outros
domínios que compreendem valores (ou serviços) caros às socieda-
des ocidentais: a Teoria-Ator Rede. Para compreender a analogia entre
rede e o social, vejamos a figura 1:

figura 1: Esquema sobre a logística das redes.


fonte: elaborado pelos autores

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O primeiro aspecto a ser ressaltado a partir da figura 1, é que o termo
rede remete tanto à articulação de elementos heterogêneos quanto
àquilo que atravessa tal articulação de forma contínua e homogênea.
Portanto, rede é tanto aquilo que desloca quanto aquilo que faz deslo-
car, dois modos de ser uma rede, o encanamento e a água, por exem-
plo. Contudo, como tal logística ajuda na elaboração de uma teoria
social? Primeiro, o livro objeto desta resenha não se dedica às redes
híbridas, nestas, mapeiam-se controvérsias, conforme é orientado
em Reagregando o social, uma introdução a Teoria-Ator rede (LATOUR,
2012); dedica-se, sim, às redes homogêneas, nas quais, deve-se ma-
pear condições de felicidade. Segundo, a rede homogênea depende
da rede híbrida para acontecer e continuar existindo.

A relevância da analogia entre a logística das redes e o social reside


na percepção de que o social, não pode dispensar a articulação que
garante sua existência, que nunca está pronta, dada; está sempre se
fazendo e refazendo. A rede híbrida, a prática que guarnece o social,
é denominada de instituições, trata-se de uma admirável instalação
constituída por associações infinitesimais, e, não raro, imprevisíveis,
um conjunto heterogêneo de elementos (no qual tudo pode se asso-
ciar com tudo, um prédio, uma caneta, um celular) necessários à cir-
culação de outro tipo de rede; esse outro tipo corresponde às redes
homogêneas, as quais circulam de forma contínua e mais limitada em
suas associações. Feita a analogia, na perspectiva de uma teoria do
social, cada tipo de rede pode ser definido como um tipo de conector
e a rede homogênea, uma vez que sua travessia esteja garantida pela
articulação da rede híbrida, pode ser identificada e mapeada no dis-
curso, como um valor caro a criação e manutenção dos grupos.

Sobre a relação desses dois conectores (a rede híbrida e a rede homo-


gênea), explicada com ênfase no livro Reflexão sobre o culto moderno
dos deuses fe(i)tiches (LATOUR, 2002), é característico das sociedades
ocidentais um pensamento que opera por meio da ruptura entre os
modos de vida prático e teórico: por um lado, a realidade é necessaria-
mente fabricada por meio da articulação dos conectores, por outro, a

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teoria apaga os vestígios dessa prática4. É uma ruptura profunda, ape- 4 Isso não acontece por acaso,
tal característica garante aos ditos
nas no pensamento, entre o sujeito e o objeto, o interior e o exterior, modernos a fabricação de redes
que abrangem todo o planeta.
o faz-fazer ou fe(i)tiche e o fato. Todavia, na prática, não existe esse
binarismo, existe articulação para garantir o social. Mas, como preen- 5 O termo traição pode gerar
incompreensões, porém, refere-
cher essas lacunas? Como mediar esse mundo abruptamente fratu- se à necessidade da adaptação
de muitos indivíduos a um ser
rado? Os ditos modernos desenvolveram tecnologias discursivas que enquanto grupo.
garantem, na prática, a fabricação da realidade; e, na teoria, a visão
binária do mundo. Tais tecnologias são chamadas por Latour (2019)
de regimes de enunciação, a rede homogênea da analogia, cuja ação
consiste no preenchimento de lacunas e hiatos, a fim de garantir um
efeito específico na instauração do social. São, portanto, ações dis-
cursivas que permitem a articulação entre o mundo e o pensamento,
quer dizer, os regimes de enunciação dizem respeito a ações subjeti-
vas e suas interações com os acontecimentos sociais.

Um regime de enunciação é, então, uma resposta da linguagem a um


problema referente à criação e manutenção de grupos. Tomemos a
política como exemplo, não como algo diretamente relacionado a
eleições, pois, embora constituída por instituições heterogêneas, es-
tas mesmas instituições heterogêneas pertencem, simultaneamente,
aos demais regimes de enunciação. É necessário, por assim dizer, frag-
mentar o ato de falar para focar em um regime de palavra, um tipo
particular de continente. A primeira questão a ser feita é voltada para
o problema que a articulação precisa mediar na fabricação da reali-
dade, qual o hiato? No caso da fala política, a resposta consiste em
não ser representado ou obedecido, este é um risco que compromete
a existência dos grupos e cada regime de enunciação assume o seu.

A segunda questão se refere à trajetória dessa fala. A trajetória da fala


política consiste na transformação da multidão em um e o um em mul-
tidão novamente. Latour (2004) esquematiza a trajetória da política por
meio do que chamou de círculo protetor da continuidade, promovido
pela dupla traição5 necessária para o fechamento desse círculo, porém,
aponta a representação como sendo a insistência de retomar o círculo
incessantemente. Enquanto a terceira questão se ocupa dos critérios

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a serem atingidos quando se pretende falar politicamente, concerne à 6 Todos são regimes de
enunciação e possuem um hiato;
condição de felicidade. No caso da fala política, sabemos que a condi- uma trajetória; uma condição
de felicidade/infelicidade; seres
ção de felicidade foi atingida quando o círculo protetor do grupo é re- a serem instaurados; e uma
tomado e estendido; bem como sabemos que sua condição de infelici- alteração específica na fabricação
material e artificial da realidade.
dade se dá quando o círculo protetor do grupo é suspenso ou reduzido.
A quarta questão, por sua vez, quer saber quais são os seres a serem
instaurados para auxiliar essa fala diante dos riscos que ela assume.

A respeito dos seres a serem instaurados, é preciso levar em conside-


ração a ação de outros regimes de enunciação e a compreensão do
fe(i)tiche nesse processo situado na linguagem. Mas, importa dizer
que os seres ou “estar sendo” da fala política são os grupos e figu-
ras das assembléias, entretanto, não se resumem às necessidades de
uma nação ou Estado, porquanto, qualquer agregado, uma família,
uma igreja ou um grupo de marginais necessitam se delinear e rede-
finir. Enfim, temos a quinta questão: qual é a alteração, o efeito na
existência dos grupos pelo trabalho de fala da política? Sublinhamos
aqui o fato de que nenhum regime de enunciação pode nada sozinho,
por isso, estão constantemente se cruzando e se articulando em prol
da manutenção dos grupos. Neste processo, a alteração ou o efeito de
falar politicamente consiste em delimitar e reagrupar.

Cada uma das questões mencionadas orienta o caminho para identifi-


car os modos de falar e, principalmente, de respeitá-los. O esforço de
Latour (2019) culmina em uma diplomacia discursiva, apresentado por
meio de um relatório com 15 modos de existências: a reprodução, a me-
tamorfose, o hábito, a técnica, a ficção, a referência, a política, o direi-
to, a religião, o apego, a organização, a moral, a rede, a preposição e o
duplo clique, todos emaranhados no discurso6, além dos que faltam ser
identificados a convite do próprio autor para dar continuidade à pes-
quisa de uma vida inteira. Em síntese, a existência dos grupos depende
da conversação, e a conversação depende do respeito aos tipos discur-
sivos desenvolvidos pelas sociedades ocidentais. Para finalizar, trata-se
de dimensões elementares do discurso, que, se estudadas isoladamen-
te, antecedem todas as definições de instituições, de sujeito, de grupo.

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REFERÊNCIAS

LATOUR, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches.


Tradução de Sandra Moreira. Bauru: Edusc, 2002.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede.


Tradução de Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador/Bauru: Edufba/
Edusc, 2012.

LATOUR, Bruno. Se falássemos um pouco de política? Política & Sociedade:


Revista de sociologia política. Tradução de Marco Antônio Mattedi e Tamara
Benakouche. Florianópolis, SC, v. 3, n. 4, p. 11-40, abr. 2004. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2000. Acesso em:
24 jan. 2023.

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www.esocite.org.br

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