GILSON Deus e A Filosofia
GILSON Deus e A Filosofia
GILSON Deus e A Filosofia
God andPhi/osophy
lSBN 972-44-1176-1
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Etienne ILS
�diGOes70
PRÓLOGO
7
passado, e que produz «urna narrativa que é a ratificaqao, se nao a glorificaqao
do presente». (N. do T.)
8
DEUS E A FILOSOFIA
como Sao Tomás; ou até publicar, em 1952, um estudo de
sete centas páginas sobre um dos mais severos críticos
medievais de Sao Tomás de Aquino, Joao Duns Escoto (estudo
que antecipa já numa nota de rodapé na página XY deste livro);
ou ainda um temo e extremamente comovente relato do amor
trágico entre Heloísa e assim como as suas consequencias
filosóficas (e outras).
Mas para além de todos estes géneros académicos, fez
também interregnos na sua carreira literária para reflectir de
forma sistemática sobre temas e problemas importantes,
frequentemente em conferencias numa qualquer universidade da
Europa, do Canadá ou dos Estados Unidos. Urna das minhas
preferidas no género, que deu origem a um livro para o qual o
seu amigo, o Professor Richard P. McKeon da Universidade de
Chicago, chamou pela primeira vez a minha atern;;ao quando eu
ainda era estudante universitário, em meados da década de 40,
foram as suas William James Lectures em Harvard, em 1936-
37, The Unity of Philoso phical Experience, destinadas
obviamente a serem a resposta as
influentíssimas Gifford Lectures de William James, Varieties of
Religious Experience. É também a esse estilo de filosofar que
<levemos God and Philosophy [Deus e a Filosofia], o resultado
das Mahlon Powell Lectures on Philosophy que proferiu na
Universidade de Indiana em 1939-40. Numa série de quatro
capítulos organizados cronologicamente, Étienne Gilson guia-nos
através da evolm;ao das doutrinas filosóficas sobre Deus, sempre
com a ressalva de que, para a revelas;ao e fé cristas, a questao
da existencia de Deus nao se decide principalmente pela operas;ao
da razao mas pela iniciativa e iluminas;ao divinas, pois «em si
mesmo, o Cristianismo nao é urna filosofia». Gosto de citar a
observas;ao de Wemer Jaeger, que Gilson nao cita mas com que
evidentemente se identifica, de que «o espírito grego atingiu o
seu mais alto desenvolvimento religioso, nao nos cultos aos
deuses ... mas essencialmente na filosofía, auxiliado pelo dom
grego de elaborar teorias sistemáticas do Universo». Por isso, ao
analisar estes capítulos de God and Philosophy, o leitor fará
bem em ler o primeiro, sobre "Deus e a Filosofia Grega", com
especial atens;ao, pois é aqui que se lans;am os fundamentos
para muito do que se segue, incluindo as críticas a moderna
filosofía e ao pensamento contemporáneo. A abrangencia
histórica é impressionante, os episódios citadoscativantes, e o
9
estilo, simultaneamente intelectual e literário, é apelativo no seu
conjunto.
1
PRÓLOGO
Como este livro demonstra urna vez mais - numa altura em
que tantos dos seus colegas filósofos, em particular no mundo
anglófono, pareciam ter sido lobotomizados como parte da sua
forma<_,;:ao universitária - Gilson era essencialmente um
filósofo que seguiu os modelos, de outro modo contrários, de
Aristóteles e Hegel, ao levar a cabo o seu discurso filosófico
como urna conversa em curso com toda a história da filosofia
ocidental. Sem nunca citar, que eu saiba, a célebre
recomenda9ao de Samuel Taylor Coleridge de «suspensao da
descrern;a», que constituí a essencia da cren9a poética, bem
como da técnica metodológica para a história das ideias, Gilson
conseguiu, por meio de urna poderosa combina9ao de
imagina9ao e intelecto, aceder ao mundo mental e aos
pressupostos de pensadores com quem discordava fundamen
talmente, conseguindo descortinar a totalidade de um sistema e
nao esta ou aquela tese individual do sistema. Pois estava
conven cido, tal como referiu numa entrevista a Frédéric
Lefevre, de que
«a verdadeira filosofia de um Descartes, de um Sao Tomás ou
de um Sao Boaventura é sempre um sistema de teses em que
cada urna delas, se considerada isoladamente, destruirla o
equilíbrio da doutrina caso lhe fosse permitido evoluir por si
só». A capacidade de entendimento toma ainda mais pungente o
facto de, apesar de nao possuir os meios linguísticos necessários
para empreender a tarefa como também eu, infelizmente, nao
possuo - ele saber que as nossas histórias da filosofía e da
ciencia medievais per manecerao gravementeincompletas
enguanto nao lermos, nas suas línguas originais e nos seus
termos, Maimónides e os outros filósofos judeus, e sobretudo
Averróis e outros filósofos árabes. Em God and Philosophy,
essa seriedade histórica requer um compromisso, nao - como a
primeira vista se esperaria - com o habitual conjunto daqueles
que nos séculos XIX e XX «mataram Deus» (Karl Marx,
Charles Darwin, Sigmund Freud e, claro, Friedrich Nietzsche),
mas especialmente com Kant e as suas críticas; porque, como
Gilson diz, ,,a forma actual como se coloca o problema de Deus
está completamente dominada pelo pensa mento de Imamnuel
Kant e de August Comte», pelo que, se Kant estiver correcto,
muito do empreendido nestes capítulos é um exercício fútil.
O hábito de remeter quest6es filosóficas para a sua
1
expressao histórica proporcionou, nesta introdu9ao de God and
Philosophy, a ocasiao para um dos mais notáveis exemplos de
autobiografia
1
DEUS E A FILOSOFIA
intelectual em toda a obra de Gilson. (Apesar de
constantemente instado por colegas e alunos a faze-lo, nunca
escreveu urna auto biografía completa ou as suas memórias
propriamente ditas.) Com esta introdm;ao ficamos a conhecer a
origem daquilo a que o seu biógrafo, o padre Lawrence K.
Shook, em tempos chamou a sua
«eterna afei9ao» por Henri Bergson, que fora seu professor e
continuava a ser, tal como Gilson afirma, de forma sentida, «o
génio cujas aulas ainda permanecem na minha memória como
muitas horas de transfigura9ao intelectual ... o único grande
mestre de filosofía vivo que alguma vez tive», ainda que tenha
passado grande parte da sua vida a demarcar-se (e aos seus
leitores) de algumas das principais implíca96es do élan vital de
Bergson. Mas somos também recordados de como o ensino da
história da filosofia, em finais do século XIX e início do século
XX - numa Fran9a que pode ter sido pós-revolucionária na sua
vida política e intelectual mas era ainda marcadamente católica
na sua espiritua lidade - conseguía passar com a maior das
indiferern;as do período antigo para o moderno sem sequer (tal
como ele nos diz) mencionar Sao Tomás de Aquino. Depois de
Gilson, tornou-se talvez impos sível a qualquer professor de
história da filosofía continuar a ensinar sem lhe fazer mern;ao !
Tal como o próprio título deste livro sugere, Gilson também
se demarcou de muitos dos seus contemporáneos filosóficos -
nasceu doze anos antes de Bertrand Russel - devido a urna outra
tendencia, ainda mais fundamental: a sua preocupa�ao com
aquilo a que um outro livro, ilusoriamente modesto, identificou
como The Problem of God Yesterday and Today (do jesuíta John
Courtney Murray, 1964). Com várias expressoes
autoapologéticas que o ouvi utilizar em mais de urna ocasiao,
Gilson costumava explicar, mesmo quando nao tinha de o fazer,
que era «apenas» um filósofo, nao um teólogo. O seu excelente
pequeno livro Dante et la philosophie (1939) foi urna crítica as
tentativas superficíais de alguns neoto mistas para
transformarem Dante Alighieri num «teólogo», e em teólogo
tomista, neste caso. E em God and Philosophy Gilson insiste:
«O facto de alguns estudiosos eliminarem deus de textos em que
ele consta nao nos autoriza a colocá-lo em textos nos quais nao
consta». Mas também se queixava, de modo igualmente
veemente, tal como o referiu numa f ormula9ao que já por várias
vezes me foi útil, de que «nos últimos séculos, a tendéncia geral
1
entre historiadores do pensamento medieval parece ter sido
1
PRÓLOGO
imaginar a Idade Média povoada por filósofos e nao por
teólogos», algo que ele, enguanto filósofo e historiador da
filosofia, estava determinado em rectificar. Numa carta a mon
cher Tony, o seu querido amigo Anton C. Pegis, que coordenou
a publica9ao de The Basic Writings of Thomas Aquinas em
dois grossos tomos, bem como a edi9ao condensada de Sao
To,más de Aquino na Modem Library e de A Gilson Reader
(1957), ele refere que se tomara necessário real9ar novamente o
papel da teología em Sao Tomás deAquino, depois de durante muito
tempo se ter enfatizado a autonomia técnica da filosofia
medieval.
Urna palavra pessoal minha nao será, creio, considerada
des propositada, antes urna espécie de referencia para concluir.
Nunca fui aluno do Professor Gilson, embora como colega mais
novo tenha com ele partilhado alguns palcos de conferencias e
actas de colóquios, pelo que serei mais um adepto do que seu
aluno. No entanto, a combina.;ao que acima referi, de minuciosa
aten9ao as fontes primárias com a procura de temas recorrentes
intelectuais, e as diversas formas líterárias que utilizou para
asexpressar, criaram um padrao académico que emulei na minha
obra, por vezes de forma inconsciente. Foi por isso que o padre
Shook, caro amigo de Gilson e meu, muito me honrou ao pedir-
me urna detalhada análise crítica as várias versoes do
manuscrito da sua biografía, publicada em 1984, e também a
razao por que Margaret McGrath dedicou um exemplar do seu
Étienne Gilson «a Jaroslav Pelikan, incomparável gilsoniano».
Acontece que tive o privilégio de acompanhar Étienne Gilson
em várias conferencias importantes, algumas no estrangeiro. A
emulac;ao tomou-se evidente quando apresentei as minhas
Gifford Lectures sobre Christianity and Classical Culture na
Universidade deAberdeen, em 1992-93, onde ele proferira as suas
sobre The Spirit ofMedieval Philosophy, em 1931: tal como
referi na palestra introdutória, estava a tentar fazer com a história
da «teología natural» (expressao de que nao gosto, e ele também
nao) no pensamento cristao oriental protobizantino algo análogo
ao que ele fizera com o Ocidente medieval latino. O eco foi
muito mais fraco, mas a no9ao de sucessao apostólica foi nao
menos clara quando em 1987 fizas Andrew W. Mellon Lectures na
National Gallery of Art, !mago Dei: The Byzantine Apologia
for lcons, no seguimento das suas Mellon Lectures em 1955,
1
Painting and Reality. O pedido para proferir as Richard
Lectures na Universidade de Virgínia, em 1984, permitiu-me
nao só seguir
1
DEUS E A FILOSOFIA
os passos da conferéncia que aqui realizou, mas até dedicar The
Mistery of Continuity: Time and Histyory, Memory and Eternity
in the Thought ofSaint Augustine «Ao centenário do nascimento
de Étienne Gilson (1884-1978), conferencista Richard em
1937». Fui também, disseram-me os meus colegas canadianos, o
primeiro académico a ser convidado duas vezes para apresentar a
conferéncia comemorativa do Étienne Gilson Memorial no seu
querido Pontifical Institute ofMediaeval Studies em Toronto
(com o título
«a Gilson», The Spirit OfMediaeval Theology), em 1985 e nova
mente em 1998, recorrendo mais urna vez as suas obras:
Doctrinal History and Its Interpretation.
Com este prefácio, espero ter sido capaz de elaborar urna
adequada coroa comemorativa que expresse a minha gratidao
pessoal e académica por aquilo que a obra de Étienne Gilson
para mim significa há mais de meio século, e poder recomendar
a mais urna gera�ao de investigadores e estudantes este
profundamente sincero e contudo melancólico pequeno ensaio
sobre um dos mais importantes (e muitas vezes, pelo menos
actualmente, negligen ciados) de todos os problemas metafísicos
- e existenciais.
Jaroslav Pelikan
1
Este livro trata de um dos aspectos do maior de todos os
problemas metafísicos. E trata-o com base num número muíto
restrito de factos históricos, que sao por sua vez considerados
um dado adquirido e nao tecnicamente estabelecidos.A questao é o
problema metafísico de Deus. O aspecto particular deste prcJmi::ma, escolhido
1
transformando-se em opinioes filosóficas, sendo cada urna
delas sucessivamente apresentada
1
DEUS E A FILOSOFIA
como verdadeira do seu próprio ponto de vista e falsa do ponto
de vista de qualquer outro. Aforma de adultera¡;ao própria do
método filosófico da Academia tem o seu melhor exemplo na
Neo
-Academia. Mas a mesma abordagem também pode degenerar
numa história das várias filosofías, como outros tantos factos
concretos, indíviduais e consequentemente inabaláveis. Ora, se é
verdade que a história das filosofías é em si um ramo
perfeitamente legítimo e mesmo necessário da aprendizagem
histórica, a sua verdadeira esséncia enguanto história proíbe-a de
almejar outras conclusoes que nao as históricas. Platao,
Aristóteles, Descartes, Kant pensaram tudo o que havia a pensar
sobre diversas questoes filosóficas. Ahistória das filosofias,
depois de determinar tais factos e de os tornar inteligíveis através
de todos os meios ao seu dispor, esgotou o seu próprio
programa. Mas onde este acaba, a filosofia pode come¡;ar a sua
própria tarefa, que é a de julgar as respostas dadas aos
problemas filosóficos por Platao, Aristóteles, Descartes e Kant a
a
luz dos dados necessários a
<lestes mesmos problemas. A
abordagem histórica filosofía recorre história das filosofías
como um auxiliar da filosofía.
Como tudo o resto, isso pode ser bem ou mal feito. Entre
todas as maneiras erradas de o fazer, a pior é provavelmente a
utilizada em alguns compendios de filosofía dogmática, nos
quais urna determinada doutrina, postulada como verdadeira, é
utilizada como critério para determinar automaticamente a
verdade ou falsidade de todas as outras. Existe só urna área do
pensamento a que esse método se aplica legítimamente e ela é a
teología revelada. Se acreditarmos, pela fé, que Deus falou,
como tudo o que Deus diz é verdade, tudo o que contrariar a
palavra de Deus pode e deve ser imediatamente excluído como
falso. A fórmula familiar de Sao Tomás deAquino, Per hoc
autem excluditur error, ("deste modo é excluído todo o erro em
contrário") é urna expressao perfeita para tal atitude teológica.
Mas esta fórmula nao pode ser transferida da teología para a
filosofía sem ser objecto de algumas reservas. A palavra de
Deus excluí todos os erros em contrário porque, en quanto
palavra de Deus, a palavra de Deus é verdadeira. Em
contrapartida, a palavra de filósofo algum pode excluir
afírma¡;oes em contrário como sendo falsas, porque a palavra
2
defilósofo algum é verdadeira enquanto palavra desse filósofo.
Se o que ele diz for verdade, o que excluí todos os erros
contrários será o que trans formar em verdade aquilo que ele diz,
nomeadamente, o seu éxito
2
PREFÁCIO
tanto na formula9i.io correcta de um dado problema como na
justi9a feita relativamente a todos os dados necessários para a sua
solui.;i.io. Se nas páginas que se seguem Sao Tomás de Aquino
se parece algo demasiado com o deus ex machina de um
qualquer drama metafísico abstracto a rninha objec9i.io imediata
será que falei como um tomista, medio.do todas as outras
filosofías pela bitola do tomismo. Gostaria pelo menos de
garantir aos meus leitores que se o fiz - o que é bem possível-
cometí o que me parece pessoal mente ser um pecado
imperdoável relativamente a própria essencia da filosofía.
Todavía, antes de me condenarem por esse crime, terao de se
certificar que efectivamente o cometi.
Fui educado num colégio católico trances, de onde saí,
depois de sete anos de estudos, sern ter ouvido urna única vez,
pelo menos tanto quanto me posso lembrar, o norne de Sao
Tomás de Aquino. Quando chegou a altura de estudar filosofía,
fui para urn liceu público, cujo professor de Filosofía, urn
discípulo tardio de Victor Cousin, certamente tarnbém nunca
havia lido Tomás de Aquino. Na Sorbonne, nenhum dos meus
professores sabia coisa algurna sobre a sua doutrina. Tudo que
acabei por saber foi que, se alguém fosse suficientemente louco
para o ler, descobriria aí urna expressao dessa escolástica que,
desde Descartes, se tinha tornado em mera arqueología mental.
Contudo, para mim a filosofía nao era Descartes nem mesmo
Kant; era Bergson, o génio cujas aulas ainda perdurarn na minha
memória como horas de transfigura9i.io intelectual. Henri
Bergson foi o único rnestre de filosofía vivo que tive como
professor e considero que foi urna das maiores bern;aos
concedidas por Deus a minha vida filosófica porque, grai;as a
Bergson, conheci génios filosóficos noutros lugares e de outra
forma que nao ern livros. Porém, ernbora Bergson diga que
desde as suas primeiras tentativas filosóficas sempre esteve ern
busca do Deus da tradü;ao judaico-crista, ele próprio nao o sabia
na altura; de qualquer forma, nunca ninguém foi conduzido por
Bergson ao método filosófico de Sao Tomás de Aquino.
O homem a quem devo os meus primeiros conhecimentos sobre
S. Tomás de Aquino era judeu. Nunca tinha aberto urna única
obra de Sao Tomás, nem tencionava faze-lo. Mas era, para além
de muitas outras coisas boas, um homem de urna inteligencia
quase sobrenatural, com um dom surpreendente de observar os
2
factos de forma imparcial, fria e objectiva, tal como eles eram.
Quando assisti ao conjunto de conferencias sobre Hume, que ele
deu na Sorbonne,
2
DEUS E A FILOSOFIA
compreencli que, para mim, perceber qualquer filosofía
significaría sernpre abordá-la como tinha visto Lucien Lévy-
Bruhl fazé-lo em rela9ao a Hume. Quando dois anos mais tarde
fui procurá-lo a propósito do tema de urna tese, aconselhou-me
a estudar o voca bulário e, posteriormente, o que Descartes
utilizava da escolástica. Daí saiu o livro que depois viria a
publicar sob o título: La Liberté ehez Descartes et la théologie.
Sob o ponto de vista histórico, esta obra agora desactualizada,
mas os seus nove longos anos de prepara¡,;ao ensinaram-me
duas coisas: primeiro, a ler Sao Tomás de Aquino; em segundo
lugar, que Descartes tinha tentado ern vao resolver, através do seu
famoso método, problemas filosóficos cuja única formula¡,;ao e
solu¡,;ao correctas eram inseparáveis do método de Sao Tomás de
Aquino. Por outras palavras (e a minha surpresa pode ainda ser
vista ingenuamente expressa nas últimas páginas desse livro
hoje desactualizado), descobri que o único contexto no qual as
conclus6es metafísicas de Descartes faziam sentido era no da
metafísica de Sao Tomás de Aquino.
Dizer que isto foi para mim um choque seria dramatizar
indevidamente o que foi apenas a conclusao objectiva de urna
paciente observa¡,;ao histórica. Todavía, porque se tomou para
mirn evidente, tecnicamente falando, que a metafísica de
Descartes fora urna desastrada revisao da metafísica escolástica,
decidí aprender metafísica através daqueles que realmente a
conheceram, esses mesmos escolásticos que os rneus
professores de filosofía nao hesitavam em desprezar pela simples
razao de que nunca os tinham lido. Ao estudá-los adquirí a plena
convic¡,;ao de que filosofar nao consiste ern repetir o que eles
disseram, mas antes que nao é possível haver qualquer progresso
filosófico sem aprendermos prirneiro a compreender o que eles
sabiam. A condi¡,;ao caótica em que se encontra a filosofía
contemporánea, corn o caos moral, social, político e pedagógico
daí decorrente, nao se <leve a qualquer falta de discernirnento
filosófico dos pensadores modernos; resulta sirnplesmente do
facto de nos termos perdido, porque perdemos o conhecimento
de alguns princípios fundamentais que, por serern verdadeiros,
sao os únicos em que se pode fundamentar, hoje como no tempo
de Platao, qualquer conhecimento filosófico digno desse nome.
Se alguém tiver medo de tomar estéril a sua preciosa per
sonalidade filosófica por aprender sirnplesmente corno pensar,
1
que leia os livros de Jacques Maritain como sedativo para os
seus receios de esterilidade intelectual. A grande maldi¡,;ao da
filosofía
1
PREFÁCIO
moderna é a rebeliao que prevalece quase universalmente contra
a autodisciplina intelectual. Onde o pensamento desarticulado
predomina, a verdade nao pode ser alcan9ada, daí que a
conclusao natural seja a de que nao existe verdade.
As conferencias que se seguem tem por base o pressuposto
contrário, de que a verdade pode ser encontrada, mesmo na
meta física. O seu conteúdo nao é nada que se pare<;a com a
história do problema filosófico de Deus; importantes doutrinas
foram apenas esbo9adas, enguanto muitas outras nemsequer
foram mencionadas. Também nao pretendem ser urna
demonstra9ao suficiente da exis tencia de Deus. O seu ambito e
objectivoconsiste antes em alcan9ar urna defini9ao clara e precisa
de determinado problema metafísico. Gostaria de pensar que,
depois de lerem o que se segue, alguns dos meus leitores
pudessem pelo menos compreender o significado das suas
próprias palavras quando afirmam que a existencia de Deus nao
pode ser demonstrada. Ninguém sabe realmente que isso nao
pode ser feito sem pelo menos compreender o que seria
consegui-lo. O único filósofo que me fez entender claramente
todas as implica<;6es metafísicas <leste problema f oi Sao
Tomás de Aquino. Prezo tanto a minha liberdade intelectual
como qualquer outra pessoa, mas quero ser livre para concordar
com alguém quando considero que o que diz é correcto. Sao
Tomás de Aquino nunca pensou em nada semelhante a urna
«verdade tomista». Estas palavras nem sequer fazem sentido.
Considerando diversas res postas ao problema a de Deus e
avaliando a sua capacidade relativa de corresponder a todos os
requisitos, cheguei conclusao de que
a melhor respostafoi dada pelo homem que, por ter sido o
primeiro a compreender as implica96es mais profundas deste
problema, foi também o primeiro a curvar-se livremente a
necessidade metafísica da sua solu9ao única. Que nao hesite todo
aquele que aínda hoje
conseguir fazer o mesmo tao livremente como Sao Tomás de
Aquino. Quanto aos que o nao conseguirem ou nao quiserem
fazer, que tenham ao menos a satisfa9ao de rejeitar a única
solu9ao per tinente para um verdadeiro problema: nem o
supremo carpinteiro de Paley nem o supremo relojoeiro de
Voltaire, mas o acto infinito de auto-existencia, através do qual
tudo o resto é e, comparado com ele, tudo o resto é como se nao
1
fosse.
Gostaria de expressar a minha gratidao ao Conselho de
Administra9ao da Universidade de Indiana, que aprovou a
minha designa9ao como Professor Convidado de Filosofia na
Mahlon
1
DEUS E A FILOSOFIA
Powell Foundation, entre 1939 e 1940. Permitam-me dizer o
quao grato estou aos membros do Departamento de Filosofía da
Univer sidade de Indiana por me terem recebido com tanta
simpatía numa ocasiao em que homens de países diferentes se
sentem tao pouco inclinados a confiar em alguém sem reservas.
Mas <levo agradecer especialmente ao Professor W. Harry
Jellema. A sua carta de con vite tra¡;ava e definía tao claramente
a tarefa que eu devia realizar, que citar urna das suas frases é
talvez ainda a melhor hipótese de eu conseguir, se nao justificar
o conteúdo destas conferencias, pelo menos clarificar a sua
inten9ao geral: «Para demasiados filósofos actuaís, a filosofía já
nao significa nada do que devia significar; e, para quase todos
os nossos contemporáneos, o cristianismo nada tem a dizer que
a ciéncia nao tenha refutado, nem contém nada in telectualmente
respeitávelque nao tenha já sido dito pelos Gregos». Foi minha
inteq¡;ao mostrar, sobre o problema específico de Deus, que os
filósofos disseram, por influencia dos Gregos, coisas que nunca
foram ditas pelos próprios Gregos; que essas coisas sao tao
intelectualmente respeitáveis que se tornaram parte integrante da
filosofía moderna; e que, embora ninguém possa esperar que a
ciencia as confirme, nao devemos erradamente aceitar como
sendo urna refuta¡;ao da ciéncia a incapacidade de alguns
dentistas em compreender os problemas fundamentais da
metafísica. Estas con ferencias estao impressas tal como foram
proferidas na Univer sidade de Indiana e como foram escritas no
Pontifical Institute of Mediaeval Studies, em Toronto. É um
privilégio pouco comum viver neste lugar, onde os amigos
pacientemente aturam aqueles que testam neles as suas últimas
ideias provisórias sobre todo e qualquer tema. Ao nome do Rev.
G.B. Phelan, presidente do Pontifical Institute of Mediaeval
Studies, que nunca deixou de me ajudar através das
minhasaventuras filosóficas, devo agora acres centar o nome do
meu ilustre amigo, Professor Jacques Maritain. Sinto-me
profundamente em dívida com ambos pelas confirma- 96es,
sugestoes e correc96es que, nao tenho qualquer dúvida,
tornaram este pequeno livro um pouco menos indigno do seu
tema.
ÉTIENNE GILSON
Pontifical Institute of Mediaeval Studies
1
I
DEUS E A FILOSOFIA
GREGA
Na história da cultura ocidental, todos os capítulos comes;am
com os Gregos. Isto é verdade para a lógica, a ciéncia, a arte, a
política e é igualmente verdade para a teologia natural; mas nao
é imediatamente evidente onde se deve procurar, no passado da
Grécia antiga, as origens do nosso conceito filosófico de Deus.
Assim que lemos os textos de Aristóteles, dos quais provém
grande parte da nossa informai;;ao respeitante a filosofia grega
antiga, surgem todas as dificuldades. Ao falar de Tales de
Mileto, Aristóteles diz que, de acordo com aquele filósofo, o
primeiro princípio, elemento ou substancia, de que nascem
todas as coisas e ao qual todas as coisas acabam por regressar, é
a água. Ao que acrescenta, noutro texto, que, de acordo com o
mesmo Tales, «todas as coisas estao cheias de deuses»('). Como
podem estas duas afir mai;;6es distintas conciliar-se
filosoficamente?
Urna primeira maneira de o conseguir é identificar as duas
noi;;6es, de água e de divindade. Poi o método escolhido por um
estudioso moderno que fez Tales dizer que a água nao é apenas
um deus mas o deus supremo. Segundo esta interpretai;;ao dos
textos, «o deus supremo e o deus cosmogenético sao um único
poder divino, a Água»(2). A única dificuldade em aceitar esta
solui;;ao simples e lógica do problema reside no facto de serem
1
(2) R. Kenneth Hack, God in Greek Philosophy to the Time of Socrates
(Princeton University Press, 1931), p. 42.
2
DEUS E A FILOSOFIA
atribuídas a Tales várias ideias que ele pode muito bem ter defendi
do, mas sobre as quais Aristóteles nao diz absolutamente nada (3).
De acordo com os testemunhos mais antigos que ternos a
dispo si1rao, Tales nao afirmou que a água era um deus ou que
entre os deuses que enchem este mundo houvesse um deus
supremo; con sequentemente, ele nao disse que a água era o deus
supremo. Aquí, em poucas palavras, reside aquilo que deverá ser
para nós todo o problema. Por um lado, um homem postula um
determinado ele mento natural como sendo a verdadeira
substancia a partir da qual se fez o mundo. Chamemos-lhe água,
mas o nome nada altera e o problema permanecerá praticamente o
mesmo quando o primeiro princípio se passa a chamar fogo, ar,
o Indeterminado, ou mesmo o Bem. Por outro lado, o mesmo
homem postula como espécie de axioma que todas as coisas estao
cheias de deuses. Daí que a nossa própria conclusao imediata
seja a de que, para ele, a água nao é apenas um dos deuses, mas
o maior de todos. Contudo, quanto mais lógica nos parece esta
dedm,.:ao, mais nos <leve surpreender que este homem nao
tenha pensado em formulá-la. Há pelo menos a vaga hipótese de
que, se ele fosse agora confrontado com a nossa própria dedm;ao,
se poderia opor a ela considerando-a ilegítima. Em suma, em
vez de escrevermos a história da filosofía como ela foi,
escrevemos a história do que a filosofía deveria ter sido. Na
realidade, urna maneira perversa de escrever a história da
filosofía e, como veremos a seguir, a forma garantida de nao
percebermos o seu significado filosófico mais profundo.
Outro método de nos libertarmos deste problema é transformar
mos o deus de Tales em água, em vez de transformarmos a
água num deus. Era exactamente este o objectivo que John
Bumet tinha em mente quando aconselhou os seus leitores a
nao «tirar dema-
(3) Aristóteles nao reformulou em parte alguma o pensmnento de Tales
nos termos seguidos pelos estudiosos modernos. No seu De Anima, I, 5, 41la,
7, ele relata como senda mais urna opiniao de Tales a afinnai;:ao de que o
íman tem alma, urna vez que é capaz de mover o ferro; daí que o próprio
Aristóteles infira, obvimnente como urna hipótese, que a afirmai;:ao de Tales de
que «todas as coisas estao cheias de deuses», tivesse provavelmente sido
inspirada na opiniao de que
«a alma é difundida por todo o universo». Depois de Aristóteles e
principalmente sob as influencias estóicas a doutrina do mundo-alma foi
atribuída a Tales, até Cícero (De Nat. Deorum, I, 25) ter completado o círculo,
2
identificando o chmnado mundo-alma de Tales com Deus. Cf. John Bumet,
Early Greek Philosophy (Londres, 1930), pp. 49-50. Tudo isto é urna
reconstrui;:ao tardía da doutrina de Tales e nao há nenhuma prova histórica
autentica que o ateste.
2
DEUS E A FILOSOFIA GREGA
siadas conclusoes da declarac;ao de que todas as coisas estilo cheias de
deuses» (4). O que norteia o conselho de Burnet é a sua absoluta
convicc;ao de que «nao há qualquer indício de especulac;ao teoló gica»
tanto em Tales de Mileto como nos seus sucessores imediatos. Por
outras palavras, quando Tales diz que o mundo está cheio de
deuses, nao quer realmente dizer «deuses». Apenas se refere a urna
energía física e puramente natural, tal como a água, por exemplo,
a qual, de acordo coma sua própria doutrina, é o primeiro princípio de
todas as coisas. A mesma observac;ao é válida para os sucessores de
Tales. Quando Anaximandro diz que o seu primeiro princípio, o
Indeterminado, é divino, ou quando Anaxímenes ensina que o ar
infinito é a primeira causa de tudo o que existe, incluindo deuses e
seres divinos, eles nao pensam nos deuses como possíveis objec tos de
culto. Nas palavras de Burnet «esta utilizac;ao nao religiosa da
palavra deus é característica de todo o período» inicial da filo sofia
grega antiga (5), perante as quais a minha única objecc;ao é a de que
muito poucas palavras tém urna conotac;ao religiosa tao vincada
como a palavra «deus». Quem quiser pode interpretar a expressao
«Todas as coisas estao cheias de deuses» como signifi cando que
nao há um deus único em nada, mas o mínimo que se pode dizer
é que se trata de urna interpretac;ao bastante arrojada.
Em vez de se atribuir a Tales a ideia de que os seus deuses sao
apenas água ou que a sua água é um deus, por que nao tentar urna
terceira hipótese histórica, nomeadamente a de que, regra geral, os
filósofos querem dizer exactamente aquilo que dizem? É muito
arriscado ensinar grego a um grego. Se me perguntassem quais
seriam as exactas conotac;6es da palavra «deus» para um grego do
século V a.C., reconheceria imediatamente que é urna questao
muito difícil de responder. Contudo, podemos tentá-lo, e a melhor
maneira de o fazer seria provavelmente comec;ar por ler as obras
em que as origens, a natureza e as func;6es daquilo a que os Gregos
chamam «deuses» foram longamente descritas. Podemos encontrá
-las, por exemplo, em Homero ou Hesíodo. E sei muito bem que,
2
-aurora, Eos» associada a Atenas (op. cit., pp. 71-74). Sobre os problemas
psicológicos originados por este processo de personalizac,;ao, ver as notas, sempre
º"""'"h""" e penetrantes, de R. K. Hack, op cit. Pp. 12-16. Sobre vida religiosa
e sentimentos gregos, verA. J. rc,,cu,:1c1c, l'Idéal religieux des Grecs et
l'Évangile (París, Gabalda, 1932). pp. 20-32.
2
DEUS E A FILOSOFIA GREGA
com o Terror, a Derrota e a Discórdia; ou ainda com a Marte e o
Sono, o senhor dos deuses e dos homens, que é innao da Morte.
A primeira vista, nao parece fácil encontrar elementos
comuns nesta mistura heterogénea de seres, coisas, ou ainda
meras abstrac
¡_;oes. Contudo, após um estudo mais aprofundado, descobre-
se pelo menos um. Seja qual for a verdadeira natureza daquilo
que designam, estes nomes de deuses referem todos energías
vivas, ou fon;as, dotadas de vontade própria, agindo sobre a
vida dos vivos e influenciando lá de cima os seus destinos. A
popular imagem rósea da GréciaAntiga, como lugar de urna rac;a
inteligente, levando urna vida despreocupada, desfrutando
pacíficamente a natureza arnigável e sob a orientac;ao de deuses
com bom corac;ao, nao está propriamente de acordo com o que
aprendemos nas epopeias gre gas, nas tragédias gregas ou
mesmo na história política da Grécia. Em todo o caso está
completamente em desacordo com o que se conhece da religiao
grega. Um grego de espírito religioso sentia
-se um instrumento nas miios de incontáveis poderes divinos,
aos quais nao apenas os seus actos mas também os seus
pensamentos se submetiam em última análise. Como toda a
gente sabe, o tema da Ilíada de Homero é, desde os primeiros
versos, a cólera de Aquiles e as desgrac;as que ela trouxe aos
Gregos. A causa da cólera de Aquiles foi o tratamento injusto
que este recebeu da parte do reíAgamémnon. Quanto a raziio
deste tratamento injusto,
o próprio Agamémnon explica-nos o que aconteceu «Nao sou eu
o culpado: é Zeus e as obscuras Erínias, as quais me larn;;aram
na alma urna cegueira selvagem no dia em que na assembleia eu
pró prio tirei a Aquiles a sua recompensa. Mas o que podía eu
fazer? Tudo foi feíto pelo deus»(8).
A primeira característica <lestes poderes divinos é a vida. Seja
o que for, um deus grego nunca é urna coisa inanimada; é um
ser vivo, como os próprios homens o sao, com a única
diferenc;a de que, enguanto a vida humana está destinada a
chegar um día ao
(8) Cf. Homero, Ilíada, Canto XIX, vv. 86-90, p. 357. Esteponto é mais
tarde confirmado pelo próprio Aquiles «Zeus Pai, sao bem grandes os desvarios
que tu inspiras aos homens. Nunca o filho de Atreu (isto é Agamémnon) teria
perturbado a alma dentro do meu peito, nem me teria arrebatado esta mulher (ou
2
seja Briseida) contra a minha vontade, sem nada querer ouvir, se Zeus nao
desejasse a marte de muitos Aqueus>, (Canto XIX, vv. 270-274, p. 362). Cada
poema grego, tal como cada tragédia grega, pressupoe um «Prelúdio nos Céus»
que confere ao poema, ou a tragédia, o seu significado total.
2
DEUS E A FILOSOFIA
fim, os deuses gregos nunca morrem. Daí o seu outro nome:
os Imortais (9). E a segunda característica destes lmortais é que
todos eles esta.o muito mais relacionados com o homem do que
com o mundo em geral. Tomemos, quase ao acaso, qualquer
das fatali dades permanentes que influenciam a vida dos
homens; é sempre um deus. Sao exemplos disso a Terra, o Céu e
o Oceano; todos os Rios que trazem vida ao homem, tornando
férteis os seus campos ou amea9ando-o com a marte, ao
inundarem as suas margens; também o sao o Sono e a Marte, o
Medo e a Discórdia, a Vingan9a implacável, a Derrota e o
Rumor, que é o mensageiro de Zeus. Mas nao
devemosesquecer que, para além das temíveis divindades, existem
as benevolentes: Justi9a, Amor, as Musas e as Cárites; em suma,
todos os poderes imortalmente vivos que regulam a vida dos
mortais.
A estas duas características acrescentemos urna terceira.
Um poder divino que reina supremamente na sua própria
categoría pode ter de ceder, em determinados pontos, a outros
deuses igual mente supremos na sua própria categoría. Por
exemplo, embora os Imortais nunca morram, eles dormem; o
Sono é entao «o senhor de todos os deuses e de todos os
homens»Cº). É urna leí universal. Tal como dormem, os Imortais
amam e desejam; daí as palavras da deusa Hera a Afrodite:
«Dá-me o Amor e o Desejo, através dos quais dominas todos os
seres, os Imortais e os mortais». Hera é a única divindade que Zeus
realmente teme, perante a qua! se sente
«penosamente perturbado» porque «ela o repreende sempre
no meio dos deuses imortais»; em suma, a divindade mais
poderosa, capaz de influenciar qualquer homem: a sua mulher.
Contudo, o único poder absoluto ao qual Zeus se submete
nao o regula a partir de fora mas sim de dentro. É a sua própria
vontade. O maior de todos os deuses, pai dos deuses e dos homens,
deus do conselho, o próprio Zeus fica sem poder perante o seu
consentí mento, depois de o ter dado ( 11 ). E Zeus só pode dar
consentimento a sua própria vontade, embora a sua vontade
nao seja de modo
28
Cº) !bid, Canto XIV, v. 233, pp. 256-257.
(11) !bid., Canto I, vv 524-527, p. 16: «Nenhuma palavra minha é
revogável ou enganadora ou va, quando a acompanho com urn aceno de
cabei;a».
29
DEUS E A FILOSOFIA GREGA
algum idéntica a sua preferencia individual. A vontade profunda,
do Zeus profundo, é que tudo pode acontecer de acordo com a
Sorte e o Destino. Quando o seu filho mais amado, Sarpédon, se
envolve numa luta contra Pátroclo, Zeus sabe que estava
destinado que Sarpédon morresse. Dividido entre o seu amor
paternal e o seu consentimento a Sorte, Zeus hesita
inicialmente; mas Hera
lembra-lhe severamente o seu dever: «Queres libertar
novamente da morte maldita um homem, um mortal desde há
muito marcado pela sorte? Fá-lo, mas nós, todos os outros
deuses, nao te aprova remos». Assim falou Hera, «nem o pai dos
deuses e dos homens a
ignorou. Mas ele derramou lágrimas de sangue sobre a terra,
hon rando o seu querido filho, que Pátroclo estava prestes a
matar»(1 2). Porque a vontade profunda de Zeus é una com o
invencível poder da Sorte, Zeus é o mais poderoso de todos os
deuses.
Se isto é verdade, a defini9ao de um deus grego deverá ser
entao: um deus, para qualquer ser vivo, é qualquer outro ser
vivo que ele reconhece como influenciando a sua vida. O facto
de um ser dotado de vida só poder ser explicado por outro ser,
também dotado de vida, era para os Gre gos um assunto
indiscutível e o facto de eles terem a certeza disso deveria ser
para nós urna forte advertencia para nao falarmos levianamente
da religiao grega ou dos deuses gregos. Um grego reli gioso
sentía-se como o campo de batalha passivo de poderosas e
a
muitas vezes contraditórias influencias divinas. A sua vontade
estava mercé delas. Como diz Píndaro: «Dos deuses vém todos
os meios que permitem as proezas dos mortais; gra9as aos deuses,
os homens sao sensatos, corajosos e eloquentes»( 1 3). Mas o
contrário é igualmente verdade. Os mesmos heróis que vemos
lutar corajosamente enguanto os deuses estao ao seu lado, fogem
descaradamente logo que os deuses os abandonam. Sentem
entao aquilo a que chamam «a vira gem da sagrada balanc;a de
Zeus»; quanto a Zeus, ele próprio conhece esta mudarn;a da
balam;a, porque a vé acontecer nas suas próprias maos: «Quando,
pela quarta vez, Heitor e Aquiles che garam as fontes, entao o Pai
estendeu as suas balarn;as de ouro e depos nelas duas medidas de
triste morte, a de Aquiles e a de Heitor, domador de cavalos, e
ergueu o fiel pelo meio. Entao baixou o dia fatal de
30
(12) !bid., Canto XVI, vv. 439-461, p. 302.
('1) Píndaro, Pythian Odes, I, vv. 41-42, org. J. Sandys (Londres, 1915), p.
159. Loeb Classical Library.
31
DEUS E A FILOSOFIA
Heitor, ele foi para o Hades e Febo Apolo abandonou-o»(14).
Mais urna vez a vontade de Zeus se reduz ao seu consentimento
perante o Destino; consequentemente, Heitor tem que morrer.
Um mundo em que tudo chega aos homens a partir do exterior,
incluindo os seus sentimentos e paix6es, as suas virtudes e os
seus vícios - esse era o mundo religioso grego. Seres imortais de
cujos favores ou desfavores tudo dependía - esses eram os
deuses dos Gregos. Comei;:amos agora a compreender por que
nao era tao fácil para um filósofo grego deificar o seu primeiro
princípio universal de todas as coisas. A questao nao é saber se
Tales, Anaxímenes e os seus sucessores continuavam a acreditar
nos deuses de Homero ou se, por outro lado, ainda nao tinham
comes;ado a eliminar a maior parte deles, por serem meras
fantasías maravilhosas. Ad mitindo que esta segunda hipótese
está provavelmente mais perto da verdade do que a primeira, o
problema mantém-se enguanto a no<_;:ao de deus continuar a
conservar algumas das suas conotas;6es religiosas. Enguanto
filósofos, se afümarmos que tudo é x, e que esse x é deus,
estaremos portanto a dizer que tudo nao é somente um deus mas
o mesmo deus. Como podemos entao acrescentar que o mundo
está cheio de deuses? Se, enguanto homens religiosos,
comei;:armos por postular que o mundo está cheio de deuses, ou
os nossos deuses nao sao os princípios de todas as coisas nas
quais estao, ou entao, se cada deus for esse princípio, deixa de
se poder afirmar que há apenas um princípio de todas as coisas.
Urna vez que Tales e os seus sucessores falavam como
filósofos, a sua única opi;:ao lógica seria a primeira. Deveriam ter
dito que tudo era apenas um e o mesmo deus, chegando assim, de
imediato, exactamente ao mesmo panteísmo materialista dos
estóicos com o qual viria a terminar em última anáiise, a filosofia
grega. Falando em abstracto, os primeiros filósofos gregos
poderiam imediatamente ter feíto evoluir a teología natural
grega até ao seu fim; mas nao o fizeram porque nao queriam
perder os seus deuses ( 15). A nossa primeira
3
pensamento auténtico de Tales é o de que a «água é a substancia viva e divina
do universo» (ibid.). De facto, no texto de Aristóteles, que é a principal fonte
de
3
DEUS EA FILOSOFIA GREGA
reac¡;:ao é naturalmente censurar urna tao grande falta de
coragem filosófica, mas pode haver menos coragem na aceitac;ao
da lógica abstracta do que na recusa de a deixar destruir as
múltiplas facetas da realidade. Quando um filósofo se interroga
«De que matéria é feíto o mundo?» está a colocar urna questao
puramente objectiva e impessoal. Pelo contrário,
quandoAgamémnon declara «O que podía eu fazer? Foi deus
que fez tudo», está a res ponder a este problema muito pessoal e
subjectivo: o que me fez agir desta ma neira? Ora, nao é
imediatarnente evidente que responder correcta mente ao
primeíro problema signifique também resolver o segundo.
Podemos aplacar a curiosidade deAgamémnon dizendo-lhe que,
já que tudo é água, a raza.o que o levou a privar Aquiles da sua
recompensa deveria ter estado relacionada com a água. Suponho
que ele ouviria a nossa explicac_;ao, mas podemos ter a certeza de
que a palavra «água» o teria imediatarnente levado a pensar no
deus Oceano; ao que a sua pronta objecc;ao seria certamente
consi derar que a nossa resposta estava errada porque o nosso
deus era o deus errado. Okeanos nao, diria oReiAgamérnnon,
mas aLoucura Cega (a deusaAte) é a única raza.o concebível
para um comporta mento tao louco da minha parte
(16).ALoucura Cega é urna deusa, a água é apenas urna coisa.
3
Tales (De Anima, I, 5, 41 l a, 7-9). O facto de alguns estudiosos eliminarern
deus dos textos em que deus está nao nos autoriza a colocar deus em textos
nos quais nao há deus.
('6) Ilíada, canto XIX, vv. 91-92, p. 357.
3
DEUS E A FILOSOFIA
Quando os filósofos gregos utilizavam a palavra «deus»,
tam bém eles tinham em mente urna causa que era mais do que
urna simples coisa, daí a dificuldade que tinham em encontrar,
para o problema da ordem do mundo, urna solrn;ao simples e
abrangente. Como filósofos, até mesmo os primeiros pensadores
gregos nos parecem representantes perfeitos de um espírito
verdadeiramente científico. Para eles a realidade era
essencialmente o que podiam tocar e ver e a sua interroga¡;ao
fundamental sobre ela era: o que é? A pergunta: «o que é o
Oceano?», a resposta, «É um deus», simplesmente nao faz
sentido ( 17). Pelo contrário, pergunta: «o que é oa mundo?», a
fórmula «Todas as coisas estao cheias de deu ses>> nao poderá
servir de resposta. Tomando o mundo como urna dada realidade, os
filósofos gregos simplesmente se interrogaram sobre qual era a
sua «natureza», ou seja, qual era a substancia essencial de todas
as coisas e o princípio oculto de todas as suas ac96es. Seria a
água, o ar, o fogo ou o Indeterminado? Ou talvez fosse um
espírito, um pensamento, urna Ideia, urna lei? Qualquer que
fosse a resposta que dessem ao seu problema, os filósofos
gregos encontravam-se sempre confrontados com a natureza
como um facto auto-explicativo. «Nada pode surgir a partir do
que nao existe», diz Demócrito, «nem extinguir-se no que nao
existe»(18). Se tivesse sido possível a natureza nao ser, ela nunca
teria sido. Ora, a natureza existe; por isso sempre existiu, e
sempre existirá. Urna natureza assim entendida era tao
necessária e eterna que, quando um filósofo grego era levado
conclusao de que este nosso mundo a tinha de ter tido um
princípio e estava destinado um día a chegar ao seu fim, ele
conceberia imediatamente o comec;o e o fim <leste mundo
como apenas dois momentos num ciclo eterno de
acontecimentos sempre recorrentes. Tal como diz Simplício:
«Aqueles que imaginaram mundos incontáveis, por exemplo,
Ana ximandro, Leucipo, Demócrito e mais tarde Epicuro
defenderam
(17) Isto aplica-se até a teogonía de Hesíodo (cf. R. K. Hack, op. cit., cap.
III, pp. 23-32). Muíto mais sistemática do que a de Homero, a Teogonia de
Hesíodo continua a ser urna teología, ou seja, urna explicac.;ao religiosa do
mundo por
meio de certas pessoas e nao urna explicac.;ao filosófica do mundo por meio de
urna ou diversas coisas naturais. Amitología é religiao, a filosofía é conhecimento
e embora a verdadeira religiao e o verdadeiro conhecimento acabem por estar de
3
acordo, representam dois tipos distintos de problemas, de demonstrai,:ao e de
soluc.;5es.
(18) Texto em M.C. Nham, op. cit., p. 165, n. 44.
3
DEUS E A FILOSOFIA GREGA
que nasciam e morriam ad infinitum, alguns nascendo sempre
e outros morrendo»(1 9). Se nao pudermos considerar esta
afirmac;ao como urna resposta científicamente provada ao
problema da natu reza, ela é pelo menos a expressao
filosoficamente adequada para o que deveria ser urna
explicac;ao científica exaustiva do mundo da natureza. Este tipo
de explicac;ao é insuficiente para constituir em si mesma urna
resposta aos problemas específicos da religiao. Se tais
problemas, sem possibilidade de resposta científica, devern
ou nao ser colocados é urna questao legítima, mas nao é
presentemente a nossa questao. O que nos interessa neste
momento sao os factos históricos. E urn deles é o facto de os
próprios Gregos terem levantado constantemente problemas
religiosos específicos; urn outro é que eles deram a estes
problemas respostas religiosas específicas; e o terceiro facto é
o de que os maiores filósofos gregos concluíram que era muito
difícil, para nao dizer impossível, con ciliar as interpretac;oes
religiosas do mundo com a sua interpretac;ao
filosófica.
O único elemento comurn a estas duas concepc;oes da
natureza era urna espécie de sentimento geral de que, por
alguma razao, as coisas aconteciam, de que aquilo que acontecía
nao podía eventual mente deixar de acontecer. Daí a visao
constantemente apresentada da história da filosofia grega corno a
racionalizac;ao progressiva da religiao grega primitiva.
Contudo, colocam-se algumas dificul dades. As no96es religiosas
de Sorte e Destino sao específicamente distintas da no9ao
filosófica de necessidade. O facto de todos os homens, incluindo
Heitor, terem de morrer é urna lei da natureza, e como tal
pertence a ordem filosófica da necessidade. O facto de Heitor
ter de morrer numa altura específica e sob determinadas
circunstancias é urn acontecimento de urna vida humana
específica. Por trás da necessidade há urna lei; por trás da Sorte
há urna vontade.
A mesma relac;ao que prevalece entre a necessidade e a
sorte, prevalece também entre a noc;ao filosófica de causa e a
concepc;ao grega dos deuses. Urna causa primeira, ou
princípio, é urna explica9ao universalmente válida para tudo o
que existe, existiu
2
(19) Cf. J. Burnet, op. cit., p. 59. Sobre Anaximandro ver textos em M. C.
Nham, op. cit., pp. 62,63; Sobre Leucipo e Demócrito, op. cit., pp. 160-161, ou
J. Burnet, op. cit., pp. 338-339. A melhor obra sobre esta questao é a de A. Dies,
Le Cycle mystique (París, F. Alean, 1909).
2
DEUS E A FILOSOFIA
ou virá a existir. Como objecto de conhecimento científico ou
filosófico, o homem é apenas urna entre as incontáveis coisas
que podem ser objecto de observa9ao empírica e de explica9ao
racional. Quando olha para a sua vida como dentista ou filósofo,
qualquer homem considera os sucessivos acontecimentos,
inclusive a pre visao da sua própria morte, como outras tantas
consequencias de causas impessoais. Mas acontece que cada
homem está pessoal mente familiarizado com causas muito
diferentes das científicas ou filosóficas. O homem conhece-se a
si próprio. E porque se conhece a si próprio pode afirmar «eu
sou». E porque conhece outras coisas para além de si próprio,
pode dizer dessas coisas que
«elas sao». Na realidade, um facto tremendamente importante,
urna vez que, tanto quanto sabemos, é através do conhecimento
humano e unicamente através dele que o mundo pode ter a cons
ciencia da sua existencia. Daí que para os filósofos e para os
dentistas de todos os tempos surja urna primeira dificuldade,
nao sem importancia: desde que o homem como ser inteligente
faz parte do mundo, como explicar a natureza sem atribuir ao
seu primeiro princípio o conhecimento ou qualquer coisa que,
por incluí-lo virtualmente, lhe é efectivamente superior?
Desta primeira presen9a do conhecimento no mundo surge
urna nova dificuldade ainda mais complexa. Como ser
inteligente, o homem é capaz de distinguir as coisas, conhecer
as suas naturezas específicas e consequentemente determinar a
sua própria atitude perante elas segundo o conhecimento que
adquiriu sobre o que sao. Ora, nao ser determinado pelas coisas
mas ser regulado pelo conhecimento delas é precisamente aquilo
a que chamamos ser livre. Introduzindo no mundo urna certa
possibilidade de escolha, o conhecimento dá origem a urna
espécie curiosa de ser que nao só é, ou existe, como tudo o
resto, como que também é ou existe por si próprio; e apenas
para o qual tudo o resto surge como um conjunto de coisas
realmente existentes. Um tal ser-edevo lembrar que a sua
existencia é um facto observável-tem de ter consciencia da
situa9ao excepcional que ocupa no universo. Em certo sentido, é
apenas urna parte do todo e, como tal, completamente submetido
as leis do todo. Noutro sentido, ele próprio é um todo, porque é
um centro original de reac96es espontaneas e de decis6es livres.
Chamamos a esse ser homem; afirmamos que, urna vez que o
3
homem dirige os seus actos de acordo com o seu conhecimento,
ele tem urna vontade. Como causa, urna vontade humana é
muito
3
DEUS E A FILOSOFIA GREGA
pouco parecida com qualquer outro tipo de causa conhecida,
porque é a única a ser confrontada com diversas op96es
possíveis e a constituir urna fon;a original de autodetermina9ao.
O problema mais difícil para a filosofia e para a ciencia é, sem
dúvida,explicar a existencia de vontade humana no mundo sem
atribuir ao primeiro princípio urna vontade ou algo que, por
inclui-la virtualmente, lhe seja de facto superior.
Compreender esta questao significa também encontrar a
origem profundamente oculta da mitología grega, e portanto da
religiao grega. Os deuses gregos sao a expressao crua e também
reveladora desta convic9ao absoluta de que,já que o homem é
alguém,e nao apenas algo,a explica9ao última para o que lhe
acontece deve ser responsabilidade de alguém e nao apenas de
alguma coisa. Como caudal de água correndo entre margens
lamacentas,Skamandros é apenas um rio,ou seja, urna coisa;
mas como rio troiano que se op6e audaciosamente a vontade do
ágil Aquiles,só pode ser urna coisa. Entao Skamandros tem de
aparecer sob a forma de um homem, ou melhor de um super-
homem, que é o mesmo que dizer um deus. A mitología nao é o
primeiro passo do caminho para a verdadeira filosofia. De
facto, nem se trata de urna filosofía. A mitología é um primeiro
passo do caminho para a verdadeira religiao; é religiosa em si
mesma. A filosofía grega nao pode ter emergido da mitología
grega por qualquer processo de racionali za9ao (2°), porque a
filosofía grega constituía urna tentativa racional de compreender
o mundo como um mundo de coisas,enguanto a mitología grega
expressava a firme decisao do homem de nao ser deixado
sozinho,de nao ser a única pessoa num mundo de coisas surdas
e mudas.
Se isto for verdade, nao nos <levemos surpreender ao vermos
os maiores filósofos gregos desconcertados ante o modo de identi-
(2º) A teología de Hesíodo é muito mais sistemática do que os vagos
elementos teológicos espalhados por todo o trabalho de Homero. Daí que
alguns histo riadores se sintam fortemente inclinados a considerar que ele
marca urna fase de transü;:ao no caminho que vai da mitologia grega primitiva
para a filosofía grega antiga. O argumento principal desses historiadores é a
tendencia racional, tao clara na Teogonía de Hesíodo, para reduzir a mitología
grega a urna espécie de unidade sistemática (ver L Robin, La Pensée grecque
[París, 1923], p. 33, interpretado por R. K. Hack, op cit., p. 24). O facto em si
está correcto, mas urna teología concebida racionalmente continua a ser urna
teología; urna mitología sistematicamente organizada é urna teología mais
3
racional do que outra mais livre, mas nem por isso está mais perta de ser urna
filosofía.
3
DEUS E A FILOSOFIA
ficar os seus princípios com os seus deuses ou os seus deuses
com os seus princípios. Precisavam de ambos. Quando Platao
afirma que qualquer coisa é verdade, ou existe, quer sempre dizer
que a sua natureza é simultaneamente necessária e intelígível. Por
exemplo, nao podemos afirmar que as coisas matedais e sensíveis
existem verdadeiramente, pelo simples facto de que estao conti
nuamente a mudar e nenhuma delas permanece a mesma durante
dois momentos sucessivos. Logo que conhecemos urna delas, esta
desaparece ou altera a sua aparencia, de modo que ou o conheci
mento que ternos dela perdeu completamente o seu objecto ou já
nao lhe corresponde. Entao como podem as coisas materiais ser
intelígíveis? O homem só podeconhecer aquilo que é. Na verdade,
ser significa ser imatedal, imutável, necessádo e inteligível. É
precisamente a isto que Platao chama a Ideia. As ideias eternas
e inteligíveis constituem a própria realidade. Nao este ou aquele
homem em particular, mas a sua esséncia imutável. A única
coisa que verdadeiramente é, ou existe, num determinado
indivíduo, nao é aquela combina9ao acidental de características
que o constituem como distinto de qualquer outro indivíduo
dentro da mesma espé cie; é antes a sua própria participa¡_;:ao
na esséncia eterna desta espécie. Nem Sócrates como Sócrates
ou Calias como Calias sao verdadeiramente seres reais; na
medida em que existem realmente, Sócrates e Calias sao urna e a
mesma coisa, a saber Homem-em
-si, ou a Ideia de Homem.
Esta é a visao que Platao tem da realidade sempre que a
considera objecto de conhecimento filosófico. Perguntemo-nos
agora, o que poderá merecer o título de divino numa tal
filosofía? Se aquilo que é mais real é também mais divino, as
Ideias eternas devem merecer eminentemente ser chamadas
divinas. Ora, entre as Ideias existe urna que domina todas as
outras, porque todas
participam da sua inteligibilidade. É a Ideia de Bem. Tal como
entre os deuses no céu, o sol é o senhor de tudo o que participa
da esséncia da luz, a Ideia de Bem domina o mundo inteligível
porque tudo o que existe, na medida em que existe, é bom.
Entao, porque hesitamos em concluir que na filosofía de Platao
a ideia de Bem é deus?
Nao é minha inten9aocontestar a validade lógica de tal
dedugao. Platao devia té-lo feíto. Acredito mesmo que difícilmente
3
podemos abster-nos de ler nas famosas linhas d'A República
urna defíni9ao do seu próprio deus, nas quais Platao diz, da
Ideia de Bem, que ela
3
DEUS E A FILOSOFIA GREGA
é «o autor universal de todas as coisas belas e certas, o pai da
luz e do senhor da luz no mundo visível e a fonte imediata de
razao e verdade no intelectual; e que é neste poder que deve ter
os olhos fíxos para agir racionalmente tanto na vida pública
como na vida privada (21 ). Nao há dúvida de que nada lembra
mais a definic,;ao do Deus cristao do que esta defíni1rao de Bem
(22). Contudo, dito isto, permanece o facto de Plata.o nunca ter
afirmado que o Bem era um deus. Seria urna tarefa praticamente
inútil persuadir os seus historiadores de que, urna vez que Platao
nao diz que o Bem é um deus, será preferível nao o obrigar a
dizé-lo. Mesmo os intérpretes nao crista.os de Plata.o
descobriram teología crista na sua filosofía; depois disso foi-
lhes fácil demonstrar que a teología crista era apenas urna
versao corrompida da filosofía de Platao. Contudo, deveria ser
permitido sugerir que, se Plata.o nunca disse que a Ideia de Bem
era urn deus, a raza.o disso poderá ser o facto de ele nunca ter
pensado nela como um deus. E afínal, por que deveria urna Ideia
ser considerada um deus? Urna Ideia nao é urna pessoa; nem
sequer é urna alma; na melhor das hipóteses é urna causa
inteligível, muito menos pessoa do que coisa(23 ).
(21) Platao, República, 517, citado a partir de The Dialogues ofPlato, publicado
com urna Introdrn;ao do Prof. Raphael Demos (Nova Iorque, 1937), 1, 776.
(22) A J. Festugiere, O.P., op. cit., p. 191; do mesmo autor; Contemplation et vie
contemplative selon Platon (París, J. Vrin, 1936) Cf. «Le Dieu de Platon». em A.
Dies, Autour de Platon, (París, G. Beauchesne, 1927). II, 523-574; e La
Religíon de Platon, pp. 575-602.
(23) De acordo com Festugiere, a ldeia de Bem é «a mais divina entre tudo
o que é divino», pelo que aquele que sobe a escada dos seres, das coisas
sensíveis até mais alta de todas as Ideias, alcani,:a finalmente o primeiro Ser:
a
«ve Deus» (L'ldéal Religieux des Grecs et l'Évangile, p. 44; cf. p. 54). Nos
textos d'A República, 508a-509c, 5 l 7b-c, citados por Festugiere para
defender a sua afirmac;:ao, o sol e as estrelas sao denomínados deuses, o mesmo
nao acontecendo com as Ideias. Nem Ideia de Bem se chama deus. As outras
a
referencias dadas pelo mesmo historiador sao A República, 507b; Fédon, 75d-e;
Parménides, 130b
e seguintes.; Filebo, 15a. Nao conseguí encontrar em qualquer destes textos
urna associac;:ao, feita por Platao, entre o nome de «deus» e qualquer Ideia. N'
A República, 508, está escrito que o Sol, cuja alma é um deus, é o filho do
Bem. mas nao está escrito que o Bem é um deus. Em Fedro, 247, Platao
descreve a
«esséncia inte!igível, visível apenas pela mente» (I, 252) e depois a Justii,:a, a
Temperanc;:a e o Conhecimento como os objectos celestiais de contemplac;:ao da
,,divina Inteligencia», mas só a inteligencia é aquí chamada divina; aos seus
objectos nao se chama «deuses». Em Fédo11, 80, a alma é chamada «divina», em
3
oposic;:ao ao seu corpo; e onde Platao acrescenta (I, 465) que «a alma é a
verdadeira imagem do divino, do imortal, do intelectual. do uniforme, do
indissolúvel e do
3
DEUS E A FILOSOFIA
O que torna tao difícil para alguns estudiosos modernos
conformarem-se com este facto é que, depois de tantos séculos
de pensamento cristao, passou a ser extremamente complicado
para nós imaginar um mundo em que os deuses nao sao a
realidade superior, embora o que é mais supremamente real nela
nao seja um deus. Contudo, é um facto que, no espírito de
Plata.o, os deuses eram inferiores as Ideias. O Sol, por exemplo,
era considerado por Plata.o um deus; porém na sua doutrina, o
Sol, que é um deus, é filho do Bem, que nao é um deus. Para
compreender a ideia de um deus para Plata.o, ternos que
imaginar primeiro um ser vivo indivi dual, semelhante aos que
conhecemos através da nossa experiéncia sensível; mas em vez
de o imaginarmos como ser mutável, contin gente e imortal,
ternos de concebé-lo como inteligível, imutável, necessário e
eterno. Isto é um deus para Plata.o. Em suma, um deus platónico
é um indivíduo vivo dotado de todos os atributos fundamentais
de urna Ideia. É por esta razao que urna Ideia plató nica pode ser
mais divina do que um deus, nao sendo no entanto um deus. Se
considerarmos o homem um corpo animado por urna alma, o
homem é mortal e corruptível; por isso nao é um deus. Pelo
contrário, as almas humanas nao só sao seres individuais vivos
como tém urna natureza inteligível e imortal, por direito
próprio; por isso as almas humanas sao deuses. Existem muitos
deuses mais elevados do que as nossas almas, mas nenhum deles
é urna Ideia. Existem os Olimpianos, que Plata.o nao leva muito
a sério, mas no entantopreserva, depois de os purificar das suas
fraquezas humanas; a seguir a eles véem os deuses do Estado;
depois os deuses que esta.o abaixo, sem esquecer os demónios
ou espíritos, os heróis, «e depois deles... os deuses privados e
ancestrais que sao adorados, como prevé a lei, em lugares que
lhes sao consa grados»(24). Manifestamente, o mundo de Plata.o
nao está menos
imutável», mesmo que se tivesse de admitir que ele está aquí a falar das Ideias,
e nao dos outros deuses, Plata.o teria apenas afirmado que as Ideias sao
divinas e nao que elas sao deuses. Aidentifica<;:ao das Ideias platónicas com
deuses aguarda ainda a sua justifica<;:ao histórica.
(24) Platao,A República, 717, II, 488. Aquesta.o histórica, clássica no
mundo da cultura platónica, a do chamado «Criador» (ou autor do mundo) do
Timeu (28 e seguintes.) ser ou nao urna Ideia, nem sequer deve ser colocada. O
«Criador» é um deus que trabalha segundo o padrao das ldeias eternas; ele é
3
um deus autor de outros deuses, tal como as estrelas, as almas, entre outros.
Cf. Leis, X, 889, II, 631.
3
DEUS E A FILOSOFIA GREGA
cheio de deuses do que o mundo de Tales ou o de Homero; e os
seus deuses sao tao distintos dos seus princípios filosóficos
como urna categoría de pessoas é distinta de urna categoría de
coisas.
É a presern;a deste mundo de divindades nos diálogos de
Platao que confere a sua douttina o carácter religioso que lhe é
universal mente reconhecido. A religiao de Plata.o nao <leve ser
procurada na purificac;;ao dialéctica através da qual o filósofo
se liberta do seu corpo, ficando cada vez mais próximo das
ldeías intelígíveis. Rigorosamente falando, quando um filósofo
atinge <leste modo o mundo inteligível ele nao diviniza a sua
alma: a sua alma é em si mesmaum deus. Rigorosamente falando,
ele nem sequer imortaliza a sua alma: a sua alma é urna vida
indestrutível; é em si mesma imortal. Um filósofo é urna alma
humana que se lembra da sua divindade e se comporta como
convém a um deus. A verdadeira religiao de Platao consiste no
seu sentimento de adorac;,:ao para com os inumeráveis deuses a
quem os homens rezam e invocam nas suas necessidades
individuais bem como nas necessidades das suas cidades. Como
filósofo, Plata.o escreve o seu Timeu; como homem religioso,
Platao invoca os deuses e as deusas do mundo que está prestes a
descrever, antes de comec;ar a descrevé-lo (25). Tal como
qualquer outro homem, Platao precisa de se sentir rodeado de
poderes pessoais que tomem conta da sua própria vida e do seu
destino. O atributo principal de um deus platónico é,
típicamente, o facto de ser urna providéncia para o homem (26).
Devido a presenc;a amigável das suas divindades, Plata.o nao se
sente só no deserto caótico das coisas inanimadas. «Todas as
coisas esta.o cheias de deuses», repete expressamente Plata.o a
exemplo de Tales, mostrando bem a considerac;,:ao que tem
pelos seus protectores. «Tens urna má opiniao da humanidade,
estrangeiro», diz Megillus no Livro VII das Leis; e a resposta
do ateniense é
«Nao Megillus, nao te surpreendas, mas perdoa-me: eu estava a
compará-los com os deuses» (27).
Esta descric;,:ao da atitude religiosa de Platao nao só
esclarece alguns aspectos da sua doutrina como também nos
permite com-
3
(26)
Platiio, leis, X, 888, II. 630. Cf. !bid., X, 899-907, U, 641-649. A
conclusiio deste texto é «que os cleuses existem, tomam conta do homem e nunca
podem ser persuadidos a cometer injustic;as». Leis, X, 907, U, 649.
(27)
/bid., VII, 804, U, 559.
3
DEUS E A FILOSOFIA
preender, no seu ponto de emergencia, a no9ao filosófica de deus.
Platao, que parece ter inventado as Ideias como princípio filosó
fico de explicac;;ao, nao inventou os deuses. Estes aparecem na sua
doutrina como um legado da mitología grega, e é por isso que
desempenham um papel tao importante nos mitos de Plata.o. O
tempo, e novamente o filósofo, lembram-nos que a crern;;a do
ho mem na existencia dos deuses é muito antiga e por isso
venerável. Esta crenga manifestamente herdada é no entanto
susceptível de algumasjustifica96es racionais. E o modo como
Plata.o as justifica é altamente sugestivo. Cada vez que vemos
urna coisa viva e urna coisa viva que se mexe sozinha, animada
por dentro por um poder de funcionamento espontáneo,
podemos ter a certeza de que essa coisa tem urna alma; e urna
vez que cada alma é um deus, cada coisa viva é habitada por um
deus. Exemplos disso sao o sol e as outras estrelas, cujas
revoluc;oes perpétuas provam que nelas está presente alguma
divindade. Por outras palavras, a alma é para Platao o
verdadeiro padrao que os homens escolheram para for mar a sua
nrn;;ao de deus. Se nao fosse através das almas humanas como é
que poderíamos explicar o movimento espontáneo do corpo
humano? Mas, acrescenta Platao em seguida, como é que
podemos explicar o movimento espontáneo das estrelas, sem
atribuir a cada urna delas urna espécie de alma? Se o fizermos,
ternos que reconhe cer ao mesmo tempo que toda e qualquer
estrela é habitada por um deus (28).
No seu modo objectivo e realista, Aristóteles deduziu da de
monstragao de Plata.o a liga.o que ensina a origem da nossa
noc;;ao filosófica de Deus. Segundo Aristóteles, os homens
obtiveram
-na de duas origens: da sua própria alma e do movimento das
estrelas. (29) E se nos recordarmos dos deuses de Homero,
vemos imediatamente que Aristóteles tinha razao. A metafísica
de Aris tóteles é um acontecimento que marca urna época na
história da teología natural justamente porque nela a
conjunc;;ao há muito esperada do primeiro princípío filosófico
com a nos;ao de deus se
(28)
/bid., X, 899, II, 641. Cf. XII, 966-967, II, 700-702. Para urna crítica
da mitologia maravilhosa de Homero e de Hesíodo, ver A República, II, 377-
378, I, 641-642.
{29) Aristóteles, «fragmento 12», em Aristotelis Opera (Berlim, 1870), V,
3
1475-1476. Nos sonhos e na adivinhas;ao, a alma parece comportar-se como
se fosse um deus; quanto as estrelas, o seu movimento ordenado sugere que
existem causas desse movimento e da sua ordem. Cada urna destas causas é
um deus.
3
DEUS E A FILOSOFIA GREGA
torna finalmente um facto consumado. O primeiro motor do
universo aristotélico é também o seu deus supremo. E assim,
tomar
-se deus era um ganho apreciável para o primeiro princípio filo
sófico e causa suprema do mundo, mas transformar-se desta
forma em tantos princípios filosóficos iria revelar-se urna
aventura extre mamente perigosa para toda a família dos deuses
gregos. Que os velhos olimpianos tivessem entao de sair do
quadro era um ganho e nao urna perda, nao apenas para a
filosofía mas mesmo para a religiao. O verdadeiro perigo para o
que restaría dos deuses era o de perderem a sua própria
divindade.
O mundo de Aristóteles existe, como algo que sempre existiu
e sempre existirá. É um mundo eternamente necessário e
necessa riamente eterno. Daí que o nosso problema nao seja
saber como é que ele surgiu, mas compreender o que nele
acontece e, consequen temente, o que ele é. No cume do
universo aristotélico nao está urna Ideia mas umActo de pensar
eterno que subsiste por si próprio. Chamemos-lhe Pensamento:
um pensamento divino que se pensa a si próprio. Abaixo dele
estao as esferas celestialmente concén tricas, cada urna delas
movida eternamente por urna Inteligencia distinta, que por sua
vez é um deus distinto. A partir do movimento eterno destas
esferas, a gerayao e corrupyao, ou seja, o nascimento e a morte de
todas as coisas vivas, produzem-se eternamente. Obviamente,
numa tal doutrina a interpretayao teológica do mundo tem a sua
explicayao filosófica e científica(3°). A única interrogayao é:
podemos continuar a ter urna religiao? O puro acto do Pensa
mento que se pensa a si mesmo pensa eternamente em si e
nunca em nós. O deus supremo de Aristóteles nao criou este
nosso mundo; ele nem sequer o conhece como distinto de si
próprio, nem, consequentemente, pode cuidar de qualquer dos
seres ou coisas que existem nele. É verdade que cada indivíduo
humano é dotado de urna alma própria, mas a sua alma já nao é
um deus imortal, como acontecia com a alma platónica. A alma
humana é urna forma física de um corpo material e perecível e
está condenada a perecer com ele. Talvez devéssemos amar o
deus de Aristóteles, mas para qué, se esse deus nao nos ama? De
vez em quando surgem alguns homenssábios que conseguem
participar por um momento efémero da beatitude eterna da
3
contemplayao divida. Mas mesmo quando
3
DEUS E A FILOSOFIA
os filósofos conseguem descortinar de longe a suprema
verdade, a sua beatitude é de curta durai;:ao, e os filósofos
sao raros. Os homens verdadeiramente sábios nao se entretém a
fingir que sao deuses; tentam antes encontrar a sabedoria
prática da vida moral e política. Deus está no céu; cabe aos
homens tomar conta do mundo. Com Aristóteles os Gregos
ganharam urna teologia racional indiscutível. mas perderam
a sua religiao.
Depois de libertados pelos filósofos da tarefa de cuidar das
coisas terrestres, os deuses gregos parecem ter renunciado, de
urna vez por todas, ao seu antigo interesse pelo homem e pelo
destino
<leste. Os deuses populares da mitología grega nunca deixarnm
de realizar as suas fun96es religiosas, mas os deuses
racionalizados dos filósofos já nao tinham qualquer fun9ao
religiosa a desem penhar. Na doutrina de Epicuro, por
exemplo, os deuses sao os vários seres materiais que subsistem
eternamente, cuja bem-aven turarn;a implica que eles nunca se
devam preocupar com mais nada, nomeadamente com os homens
(31 ). Quanto aos grandes estóicos, é impossível abrir as suas
obras sem nelas encontrar, em quase todos os capítulos, o nome
de deus. Mas qual é o seu deus, se nao o fogo, o elemento
material a partir do qual todo o universo é feíto? Gra9as a ele
o mundo é único; urna harmonia ou simpatia que tudo
impregna, liga todas as suas partes e cada um de nós está nele
como urna das suas muitas partes: «Porque há um Universo,
feito de todas as coisas, e um Deus imanente em todas as coisas,
e urna Substancia, urna Lei, urna Razao comum a todos os
seres inteligentes e urna Verdade». Urna vez que nos
encontramos no mundo como na Cidade de Zeus, amá-lo é de
longe o rumo mais sábio a seguir(32). Todavia, quer se goste ou
nao teremos de ceder a necessidade das suas leis: «A Causa-
Mundo é urna torrente», diz Marco Aurélio, «varre tudo ao
passar»(33). E, novamente: «A Natureza do Todo sentiu-se
obrigada a criar um Universo; mas agora, ou tudo o que nasce
o faz numa sequencia natural, ou até as coisas rnais
importantes -para as quais a Razao do Universo, que nos rege,
sente urn impulso próprio sao desprovidas de inteli-
3
(31 ) Sobre a sobrevivencia dos elementos aristotélicos na no,;;ao epicurista
dos deuses, ver os excelentes cornentários deA.J. Festugiere, O. P., op.cit., p. 63.
(12) The Communings wíth Himself of Marcus Aurelius (Londres, 1916),
Loeb Classical Library. Cf. Livro VIL 9, p. 169. e Livro IV, 23, p. 81.
C') !bid., Livro IX, 29, pp. 247-248.
3
DEUS E A FILOSOFIA GREGA
gencia. Lembrai-vos disto e enfrentareis os muitos males com
maior serenidade»(34).
Tem-se afirmado de Marco Aurélioque ele nao tinha o deus
que merecía. Será talvez ainda mais verdadeiro dizer-seque
Marco Aurélio nao teve qualquer deus. A sua piedade
relativamente a deus é apenas a sábia resignac;ao aoque sabe
ser inevitável. «Um pouco mais e terei esquecido tudo, um
pouco mais e tudo vos terá esquecido»(35). Estas palavras do
grande estóico sao também as últimas palavras da sabedoria
grega e marcam claramente a in capacidade dos Gregos em
construir urna explicac;ao filosófica e global do mundo sem ao
mesmo tempo perder a sua religiao. A luz doque a precede, a
razao da sua incapacidade é compreensível. Urna interpretac;ao
filosófica grega do mundo é urna explicac;ao doque sao as
naturezas através doque determinada natureza é; por outras
palavras, os Gregos tentaram sistematicamente explicar todas as
coisas através de um ou diversos princípiosque eles consi
deravam serem coísas. Ora, os homens podem ser convencidos
a adorar qualquer ser vivo, desde urn ser totalmente imaginário
corno Zeus a outro tao ridículo como o Bezerro de Ouro.
Desdeque seja algo ou alguémque possarn tornar por urna
pessoa, poderao adorá
-lo. O que os homens nao serao capazes de fazer é adorar um
objecto. Quando a filosofía grega chegou ao fim, oque era
profun damente necessário para o progresso da teología
natural era o progresso da metafísica. Esse progresso filosófico
viria a ser feíto logo no século IV a.C.; mas, curiosamente, a
metafísica viria a faze-lo sob influencia da religiao.
3
doutrina; nem a sua boa vontade o inspira com qualquer sentimento mais
alegre do que urna quase desesperada resigna'-ªº·
3
II
DEUS E A FILOSOFIA CRISTÁ
Enguanto os filósofos gregos se interrogavam sobre qual o
lugar a atribuir aos seus deuses num mundo filosoficamente
inteligível, os judeus já haviam encontrado o Deus que garantiria a
filosofía urna resposta a sua pergunta. Nao era um Deus
imaginado por poetas ou descoberto por qualquer pensador como
resposta final aos seus problemas metafísicos, mas um que Se
revelara aos judeus, lhes dissera o Seu nome e explicara a Sua
grande natureza, pelo menos na medida em que a Sua grande
natureza podia ser compre endida pelos homens.
A primeira característica do Deus judeu era a sua unicidade:
«Ouve, ó Israel: o Senhor nosso Deus é um só Senhor»( 1). É
impossível conseguir urna revolrn;ao mais abrangente em
menos palavras ou de um modo mais simples. Quando Moisés
fez esta afirmai;ao, nao estava a formular qualquer princípio
metafísico para ser mais tarde apoiado por urna justificai;ao
racional. Estava simplesmente a falar como profeta inspirado e a
definir para o beneficio dos judeus o que deveria ser daí em
diante o objecto único da sua adorac_;:ao. Contudo, esta
afirmai;ao essencialmente religiosa continha a semente de urna
revolui;ao filosófica crucial, pelo menos no sentido em que, se
um filósofo qualquer, especulando em qualquer momento sobre
o primeiro princípio e causa do mundo, sustentasse que o Deus
judeu era o verdadeiro
4
(1) Deuteronómio, 6:4.
4
DEUS E A FILOSOFIA
Deus, seria necessariamente levado a identificar a sua suprema
causa filosófica com Deus. Por outras palavras, ao passo que a
dificuldade, para urn filósofo grego, era ajustar urna pluralidade
de deuses a urna realidade que ele concebía como única, qualquer
seguidor do Deus judaico saberia imediatamente que, qualquer
que se dissesse ser a natureza da realidade, o seu princípio religioso
teria necessariamente de coincidir com o seu princípio filosófico.
Sendo todos eles um só terao de ser o mesmo e facultar aos
homens a mesma explica9ao do mundo. Quando a existencia
deste Deus único e verdadeiro foi proclamada por Moisés aos
judeus, estes nunca pensararn que o seu Senhor pudesse ser urna
coisa. Obvia mente, o seu Senhor era alguém. Além disso, dado
que Ele era o Deus dos judeus, eles já O conheciam; e
conheciam-nO como o Senhor Deus dos seus pais, o Deus de
Abraao, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob. O seu Deus provara-
lhes, por várias vezes, que tomava conta do Seu povo; o seu
relacionarnento com Ele fora sempre um relacionamento pessoal,
ou seja, um relacionamento entre pessoas e outra pessoa; a
única coisa que continuavam a querer saber sobre Ele era o que
Lhe chamar. Efectivamente, o próprio Moisés nao conhecía o
nome do Deus único, mas sabia que os judeus lho perguntariam;
mas, em vez de se envolver em profundas medita9oes
metafísicas para descobrir o verdadeiro nome de Deus, ele
optou por um atalho típicamente religioso. Moisés
simplesmente perguntou a Deus o Seu nome, dizendo
-Lhe «Senhor, irei ao encontro dos filhos de Israel dizer-lhes: O
Deus dos vossos pais enviou-rne até vós. Se eles me perguntarem:
qual é o Seu norne? O que lhes devo responder? Deus respondeu
a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse: Assim o dirás aos filhos
de Israel: O QUE É enviou-me até vós»(2). Daí o nome
univer salmente conhecido do Deus judeu- Javé- porque Javé
significa
«O que é».
Novamente aquí os historiadores de filosofia se
descobrem confrontados com este facto, para eles incómodo: urna
declara9ao nao filosófica que desde entao se tornou numa
afirmac;ao mareante na história da filosofía. O génio judeu nao era
um génio filosófico; era um génio religioso. Tal como os Gregos sao
os nossos mestres na filosofía, os judeus sao os nossos rnestres na
religiao. Enguanto os judeus guardaram a sua revelac;ao religiosa
4
para si, nada acon-
(2)Éxodo 3:13-14.
4
DEUS E A FILOSOFIA CRISTÁ
teceu a filosofía. Mas devido a prega9ao de Evangelho, o Deus
dos judeus deixou de ser o Deus particular de urna ra9a eleita,
tornando-se o Deus universal de todos os homens. Qualquer cristao
converso que estivesse familiarizado com a filosofia grega iria
entao compreender a importanciametafísica da sua nova crem;a
religiosa. O seu primeiro princípio filosófico tinha que ser o
mesmo que o seu primeiro princípio religioso, e dado que o
nome do seu Deus era «Eu sou», qualquer filósofo cristao teria
que postular «Eu sou» como seu primeiro princípio e causa
suprema de todas as coisas, mesmo na filosofía. Para utilizar a
nossa terminologia moderna diremos que a filosofía de um
cristao é «existencial» por direito próprio.
Este ponto era de tao grande importancia que nao passou
despercebido sequer aos primeiros pensadores cristaos. Quando
os primeiros Gregos instruídos se converteram ao Cristianismo,
os deuses olimpianos de Homero já tinham sido relegados para a
categoria de meras fantasías míticas através da crítica repetida
dos filósofos. Mas esses mesmos filósofos tinham-se
desacreditado ao proporcionarem ao mundo o espectáculo das suas
intermináveis contradi96es. Mesmo os maiores de entre eles,
analisados no seu melhor, nunca conseguiram afirmar
correctamente o que, pelo menos para eles, seria a causa
suprema de todas as coisas. Platao, por exemplo, percebera
claramente que a explica9ao filosófica essencial para tudo o que
existe devia afinal ser encóntrada, nao entre aqueles elementos
da realidade que estao continuamente a ser gerados e que por isso
nunca existemrealmente, mas em alguma coisa que, por nao ser
gerada, é verdadeiramente, ou existe. Ora, tal como foi
sublinhado pelo autor desconhecido de Exortar;iio aos Gregos,
logo no século III d.C., o que Platao tinha <lito era quase
exactamente o que diziam agora os cristaos «apenas com a
diferen9a do artigo. Porque Moisés disse: Ele que é e Platao:
Aquilo que é». E é mesmo verdade que «qualquer urna das
expressoes parece aaplicar-se existencia de Deus»('). Se Deus é
«Ele que é», também é «aquilo que é», porque ser alguém é
também ser alguma coisa. Contudo, o contrário nao é verdadeiro,
porque ser alguém é muito mais do que ser alguma coisa.
(3) Hortatory Address to the Greeks [Exortarao aos Gregos], cap. XXII,
publicado nas obras de Justin Martyr, no The Ante-Nicene Fathers, (Buffalo,
1885), I, 272. Cf. E. Gilson, /'Esprit de la philosophie médiévale (París, J.
Vrin, 1932). I, 227, n.7.
4
DEUS E A FILOSOFIA
Estamos aqui na linha divisória entre o pensamento grego e o
pensamento cristao, ou entre a filosofía grega e a filosofía
crista. O Cristianismo nao era em si mesmo urna filosofía. Era a
doutrina essencialmente religiosa da salva9ao dos homens através
de Cristo. HHNVU�crista surgiu na confluencia da filosofía
grega e da religiosa judaico-crista, propiciando a filosofia
grega a técnica para urna explica9ao racional do mundo e a
revela9ao judaico-crista, crern;as religiosas de urna importancia
filosófica incalculável. O que é talvez a chave de toda a história
da filosofía crista e, na medida em que a filosofía moderna tem
a marca do pensamento cristao, para a história da própria
filosofía moderna, é precisamente o facto de, a partir do século
II os homens terem necessitado de recorrer a técnica
filosófica grega para ex primir ideias que nunca tinham passado
pela cabe9a de qualquer filósofo
Esta nao era de modo algum urna tarefa fácil. Os Gregos
nunca tinham ido além da teología natural de Plata.o e
Aristóteles, nao devido a qualquer fragilidade intelectual da sua
parte, mas, pelo contrário, porque tanto Plata.o como Aristóteles
levaram as suas investiga96es quase tao longe quanto a razao
humana o permite. Ao postularem como causa suprema de tuda
o que é, de alguém que existe e de quem o melhor que se pode
dizer é que «Ele a revela9ao crista estava a determinar a
existencia como a camada mais profunda da realidade e supremo
atdbuto da divindade. Daí emerge, no que diz respeito ao
próprio mundo, o problema filo sófico inteiramente novo da sua
própria existencia e ainda a camada mais profunda, cuja fórmula
será: o que é existir? Tal como nota com grande justeza o
Professor J. B. Muller-Thym, quando um grego pergunta
simplesmente «o que é a natureza?», um cristao pergunta «o que
é ser?»(4).
O primeiro contacto mareante entre a especula9ao filosófica
grega e a cren9a religiosa crista teve lugar quando, já convertido
ao Cristianismo, o jovem Agostinho come9ou a ler as obras de
alguns neoplatónicos, particularmente as Enéadas de Plotino (5).
(4) J. B. Muller-Thym, On the University of Being in Meister Eckhart of
Hochheim (Nova Iorque, 1939), p.2.
Para um boa introdw;:ao as muitas interpreta;;:oes <leste facto histórico,
ver Charles Boyer, S.J., La Formation de saintAugustin (París, Beauchesne,
1920). Urna visao totalmente oposta é defendida por P. Alfaric, L'Évolution
4
intellectuelle
de saintAugustin (París, Nourry, 1918). A própria natureza do problema acarreta
4
DEUS E A FILOSOFIA CRISTÁ
Santo Agostinho encontrou nelas, nao a filosofía pura de Platao,
mas urna síntese original de Platao, Aristóteles e dos estóicos.
Além disso, mesmo ao citar Platao, Plotino identificou a ideia de
Bem, tal como descrita n'A República, com esse outro princípio
confuso, o Uno, que aparece tardíamente no Parménides de
Platao. A conclusao deste diálogo parece ter fornecido a Plotino a
pedra angular do seu próprio sistema metafísico: «Entao se
disséssemos numa palavra: se o Uno nao existe, nada existe,
estaríamos certos?
- Com certeza». E de facto se o Uno é aquilo sem o qual nada
mais pode existir, a existencia de todo o mundo tem necessaria
mente de depender de alguma Unidade que subsista eternamente.
Imaginemos entao, em Plotino, um primeiro princípio ao qual
poderemos chamar o Uno. Rigorosamente falando, ele é ino
minável porque nao pode ser descrito. Qualquer tentativa de o
exprimir tem de resultar necessariamente num juízo e como um
juízo é constituído por diversos termos, nao poderemos dizer o
que o Uno é sem transformar a sua unídade normal num
qualquer tipo de multiplicidade, ou seja, sem o destruir.
Digamos entao que ele é o Uno, nao como um número que pode
entrar na composi�ao de outros números, nem como sínteses de
outros números, mas como unidade que subsiste por si própria e
de onde vem toda a multiplicidade sem afectar mínimamente a
sua simplicidade absoluta. Da fecundídade do Uno nasce um
segundo princípio inferior ao primeíro, porém subsistindo
eternamente tal como o Uno e, depois dele, a causa de todo o
que vem depois dele. O seu nome é o Intelecto. Ao contrário do
Uno, o Intelecto é o conheci mento que subsiste por si só de
todo o que é inteligível. Como ele próprio é tanto o sujeito que
conhece como o objecto que é conhecido, está tao próximo
de ser o Uno quanto é possível; contudo, como é afectado pela
dualidade de ser sujeito e objecto, inerente a todo o
conhecimento, ele nao é o Uno. Consequente
mente, é inferior a ele.
Entre os atributos que fazem parte do Intelecto, dais tém
particular importáncia para urna correcta compreensao do nosso
problemahistórico. Concebido como cognii;ao que subsiste eterna-
hipóteses psicológicas que nao podem ser historicamente demonstradas nern
historicamente refutadas. Pessoalmente estou convencido de que as opini6es de
C. Boyer sobre a questao sao essencialmente sólidas, mas ninguém as deverá
4
subscrever sem antes ponderar cuidadosamente os argumentos apresentados
por Alfaric em defesa da sua própria interpretai;ao.
4
DEUS E A FILOSOFIA
mente de tudo o que é inteligível, o Intelecto de Plotino é, por
defini9ao, o lugar de todas as Ideias. Estas estao nele como urna
unidade múltipla inteligível; paiticipam eternamente na fecun
didade que ele próprio deve a fecundidade do Uno. Em suma, o
Intelecto é grande devido a toda essa multiplicidade de seres
individuais e distintos que eternamente fluem a partir dele.
sentido, ele é um deus e pai de todos os outros deuses.
A segunda característica do Intelecto, muito difícil
compreender do que a anterior, é provavelmente ainda mais
importante. Quando é que podemos dizer de alguma coisa: Ela
é? Logo que, por um acto de compreensao, possamos apreendé-
la como distinta de outra coisa. Por outras palavras, enguanto
nada for realmente compreendido nada é; o que equivale a
afirmar que ser aparece primeiro neste Intelecto, por ele e com
ele, senda este o segundo princípio da filosofía de Plotino. Sao
estas as duas causas supremas do universo de Plotino: no cume,
o Uno do Parménides de Platao; imediatamente abaixo dele, e
nascido dele, o Pensamento que se pensa a si mesmo de
Aristóteles a que Plotino chama o Nous, ou Intelecto, e que ele
concebe como o lugar das Ideias de Platao. Eram também esses
os principais dados do problema a que Agostinho se dedicou
ousadamente a resolver: como exprimir o Deus do Cristianismo
em termos herdados da filosofía de Plotino?
Se olharmos para este problema como historiadores e o ana
lisarmos ao longo de quinze séculas de história, o nosso
primeiro impulso é declarar que tal problema nao era susceptível
de urna solus.:ao satisfatória. Talvez nao fosse. Mas devemos
ter presente que as cria9oes do espírito humano nao obedecem as
leis analíticas que presidem as explicar;oes históricas. O que nos
parece ser um problema carregado de tremendas dificuldades
nunca foi entendido por Agostinho como um problema; a única
coisa de que ele sempre teve consciéncia foi da sua solm;ao.
Gerar;oes sucessivas de historiadores meditaram sobre este
fenómeno extraordinário e, de certo modo, inexplicável. Eis
agora um jovem convertido ao Cristianismo que, pela primeira
vez na sua vida, lé as Enéadas de Plotino e o que aí encontra
imediata mente é o Deus cristao, com todos os seus atributos
essenciais. Quem é o Uno se nao Deus Pai, a primeira pessoa da
Trindade crista? E quem é o Nous ou Intelecto se nao a segunda
pessoa da trindade crista, ou seja, o Verbo, tal como aparece no
4
come90 do Evangelho de S. Joao? «E aí eu leio, nao
exactamente com as
5
DEUS EA FILOSOFIA CRJSTA
mesmas palavras mas para o mesmo efeito, imposto por muitas e
diversas raz6es, que: "No princípio era o Verbo e o Verbo estava
com Deus e o Verbo era Deus. Todas as coisas f oram feítas por
Ele, e sem Ele nada foi feito do que foi feito"»(6). Em suma,
assim queAgostinho leu as Enéadas, encontrou aí as tres nor,:6es
essen cialmente cristas de Deus Pai, de Deus Verbo e da
criar,:ao.
QueAgostinho ali as tenha encontrado é um facto
incontroverso. Que elas lá nao estivessem é um facto
dificilmente mais contro verso. Para ir imediatamente razao
a
fundamental pela qual elas nao poderiam lá estar, digamos que o
mundo de Plotino e o mundo do Cristianismo sao rigorosarnente
inconiparáveis; nao há um único ponto num deles que possa ter
equivalente no outro, pela raza.o fundamental de que a sua
estrutura metafísica é diferente na sua esséncia. Plotino vivía no
século III d.C.; contudo, o seu pensa mento filosófico
permaneceu completamente estranho cristan dade. O seuamundo
é um mundo filosófico grego, constituído por naturezas, cujas
acr,:6es esta.o rigorosamente determinadas pelas suas esséncias.
Mesmo o Uno de Plotino, que difícilmente nos podemos impedir
de designar como um Ele, existe e funciona segundo o modo de
um Aquilo. Se o compararmos ao resto, o Uno, ou Deus, é
absolutamente livre, porque tudo o resto depende dele para
existir, ao passo que ele, sendo o primeiro princípio, nao depende
de mais nada. Pelo contrário, o Uno é ri gorosamente
determinado pela sua própria natureza; nao só o Uno é o que tem
de ser, como age como tem de a gir por causa daquilo que ele
necessariamente é. Daí o aspecto típicamente grego do universo
de Plotino como criar,:ao natural, eterna e necessária de todas as
coisas pelo Uno. Tudo fluí eternamente a partir dele como urna
radia9ao que ele próprio nem sequer conhece, porque está acima
do pensamento, acima do ser, acima da dualidade do ser e do
pensarnento. Nas palavras de Plotino: «Quanto ao princípio que
nao foi gerado, que nada tem nada dele, que é eternamente o que
é, que raza.o teria ele para a pensar?»( 7).
A nossa resposta a interrogar,:ao de Plotino poderá ser: nenhuma
razao, mas acrescentemos imediatamente que só esta raza.o é
sufí-
(6) Santo Agostinho, Confessions, Livro VII, cap. IX, n. 13, em «The
Works of Aurelius Augustine» (Edimburgo, 1876), XIV, 152-153.
(7)Plotino, Enéadas, VI, 7, 37, em «Complete Works» (Alpine, N.J.), III,
4
762.
4
DEUS E A FILOSOFIA
ciente para sabermos que o deus de Plotino nao poderá ser o Deus
cristao, nem o mundo de Plotino pode ser um mundo cristao. O
universo plotiniano é típicamente grego a este respeito, na
medida em que nele Deus nao é nem a realidade suprema nem o
princípio último da inteligibílidade. Daí esta consequéncia
metafisicamente crucial de que a linha divisória entre a prirneira
causa e tudo o resto nao coincide numa filosofia do Uno e numa
filosofía do ser. Como nada se pode gerar a si próprio, o que o Uno
gera tem de ser outra coisa que nao o Uno; em consequéncia, tem
necessariamente de ser múltiplo. Isto mesmo se aplica ao
Intelecto, que é o deus plotiniano mais elevado. A linha
divisória plotiniana isola assim o Uno, que é o único princípio
gerador, de toda a multiplicidade gerada, ou seja, de tudo o resto.
E em tudo o resto encontram-se o Intelecto, que é o primeiro
deus, a que se segue a Alma suprema, que é o segundo deus, e
depois todos os outros deuses, incluindo as almas humanas. Por
outras palavras, enguanto há urna diferem;a radical de natureza
entre o Uno, ou o Bem, e tudo aquilo que por nao ser Uno é
múltiplo, existem apenas diferem,;as de grau entre tudo aquilo
que nao é o Uno e, contudo, é ou existe. Nós próprios
pertencemos a mesma classe metafísica que o Intelecto e a Alma
suprema; somos deuses tal como eles o sao, gerados pelo Uno tal
como eles e inferiores a eles proporcionalmente aos nossos graus
de multiplicidade, tal como eles sao inferiores ao Uno.
O mesmo nao acontece numa metafísica crista do ser, em que
o princípio supremo é um Deus cujo verdadeiro nome é «Ele que
é». Um puro Acto de existir, tomado como tal e sem qualquer
limitac;ao, é necessariamente tudo aquilo que é possível ser. Nem
sequer podemos afirmar que tal Deus tenha sabedoria ou amor ou
qualquer outra coisa; ele é-o por direito próprio, pela simples razao
de que se ele nao fosse tudo e qualquer coisa que é possível ser
poderla ser chamado «Ele que é», mas acrescentando um
qualifi cativo. Se, tal como diz a doutrina crista, esse Deus gera em
virtude da sua infinita fecundidade, ele tem de gerar mais
alguém, outra pessoa, mas nao outra coisa, ou seja outro Deus.
Caso contrário, haveria dois actos absolutos de existir, cada um
dos quais incluirla a totalidade do ser, o que é absurdo. Se, por
outro lado, tal Deus realmente é, ou existe, a sua auto-
suficiencia é tao perfeita que pode nao haver necessidade de
existir mais alguma coisa. Nada lhe pode ser acrescentado, nada
lhe pode ser subtraído; e urna vez que nada pode participar do
4
seu ser sem ser imediatamente ele
4
DEUS E A FILOSOFIA CRISTA
próprio, «Ele que é» pode gozar eternamente da plenitude da
sua perfei9ao, da sua beatitude, sem necessidade de conceder
existencia a mais alguém, ou a mais alguma coisa, qualquer que
seja.
Porém, é um facto que existe algo que nao é Deus. Os
homens, por exemplo, nao sao um acto eterno de existencia
absoluta. Existem, por isso, alguns seres que sao radicalmente
diferentes de Deus, pelo menos na medida em que, ao contrário
dele, podem nao ter existido e, contudo, podem a certo
momento deixar de existir. Assim, ser ou existir nao é de forma
alguma ser ou existir da mesma forma que Deus é ou existe.
Nao se trata portanto de urna espécie inferior de deus, ou
melhor, nao se trata de qualquer deus. A única explica9ao
possível para a presen9a desses seres finitos e contingentes é
que «Ele que é» lhes deu livremente existencia, nao como partes
da sua própria existencia que, por ser absoluta e total é também
única, mas como imita96es finitas e parciais do que Ele próprio
eternamente é por direito próprio. A este acto, através do qual
«Ele que é» dá origem a existencia de alguma coisa que, em si
mesma, nao é, chama-se na filosofia crista
«cria9ao». Daqui se concluí que enguanto tudo o que o Deus
crista.o gera tem necessariamente de comungar da unidade de
Deus; tudo o que nao comunga da sua unidade tem
necessariamente de ser criado e nao gerado.
É este, de facto, o mundo cristao de Santo Agostinho. Por um
lado, Deus, um da Trindade de urna substáncia única que existe
por sí própria; por outro lado, tudo o que nao é Deus, por ter
apenas urna existencia que lhe foi dada. Ao contrário da linha
divisória de Plotino, que já vimos que passa entre o Uno e tudo o
que é gerado pelo Uno, a linha divisória crista passa entre Deus,
incluindo a sua própria Palavra gerada, e tudo o que é criado por
Deus. Como urna entre as criaturas de Deus, o homem encontra-
se aí excluído da ordem do divino. Entre «Ele que é» e nós
existe um infinito abismo metafísico que separa a completa
auto-suficiencia da Sua existencia da intrínseca falta de
necessidade da sua existencia. Nada pode estabelecer urna ponte
sobre esse abismo, salvo um acto livre do divino. É por isso que
desde o tempo de Santo Agostinho até aos nossos días, a razao
humana tem tido grandes dificuldades perante a tarefa
tremendamente difícil de chegar até um Deus transcendente cujo
4
puro acto de existir é radicalmente distinto da nossa existencia
emprestada. Como é que o homem, que fora de si nao existe,
vivendo num mundo de coisas que fora de si nao
4
DEUS E A FILOSOFIA
existem, pode chegar, apenas pela razao, a «Ele que é»? Para
um cristao este é o problema fundamental da teologia natural.
Na sua tentativa para resolver este problema, Agostinho só
tinha para o a .,__,..,,,,,.._,u filosófica de Platao na sua edi<;ao
revista de Plotino. Aquí, a filosófica do convertido ao
Cristianismo levou-o urna vez, para além dos dados do
problema, directa mente a sua "�,u.,.,��. Interpretando a doutrina
da reminiscéncia de Platao, Plotino referiu a dialéctica como urna
tentativa da alma humana de se libertar de todas as imagens
materiais com o intuíto de contemplaraas Ideias inteligíveis luz
do primeiro Intelecto, que é o deus supremo. E nao foi
exactamente isto que o próprio S. Joao concluiu filosoficamente,
ou pelo menos sugeriu claramente, no primeiro capítulo do seu
evangelho? Quando Plotino e S. Joao se encontraram na mente
a
de Agostinho, verificou-se urna combi na9ao instantánea. Ao ler
as Enéadas de Plotino luz do Evangelho, descobriu que a alma
do homem, embora «testemunhe a luz», ela própria «nao é essa
luz; mas a Palavra de Deus, sendo Deus, é essa verdadeira luz
que iluminou todos os homens que vieram ao mundo»(8). Por
que é que o homem nao recorre a esta presern;a constante da luz
divina na sua alma como a urna porta sempre aberta para o Deus
cristao?
Foi precisamente isto que Agostinho fez, ou que pelo menos
tentou, já que a tarefa se revelou muito mais difícil do que ele
próprio havia imaginado. Ao herdar o mundo filosófico de
Platao, Agostinho acabou por se tornar herdeiro do homem
como Platao o concebeu. Ora, na concep9ao de Plotino o
homem nao era a unidade substancial de corpo e alma; era
essencialmente urna alma. Em vez de dizermos que o homem tem
urna alma, deveríamos portanto dizer que o homem é urna alma
particular, ou seja, urna substancia eternamente viva, inteligente
e inteligível, que embora conjunturalmente ligada ao corpo,
sempre existiu antes dele e está destinada a sobreviver-lhe. Nas
palavras de Platao, o homem é
«urna alma que usa um corpo»(9), mas nao é mais o seu corpo do
Sao Joao, 1: 7-9. Cf. Santo Agostinho,op. cit., livro VII, cap. IX, n. 13, p.
154. O texto de Sao Joao aplica-se directamente ao problema da humana
através de Cristo.
Platao, Alcibíades, Livro I, cap. XXVII, p. 52; Patrología Latina, Vol.
5
XXXII,col. 1332. Cf. É. Gilson, lntroduction a l'étude de saintAugustin (París,
J. Vrin, 1929),p. 55.
5
DEUS E A FILOSOFIA CRISTÁ
que um trabalhador é as ferramentas que utiliza ou do que
qualquer um de nós é a roupa que veste.
Ao aceitar esta definic;ao de homem Agostinho está a colocar
-se numa posi9ao filosófica extremamente delicada. Na doutrina
de Platao, e ainda mais claramente na de Plotino, ser urna
substancia puramente inteligível, viva e imortal era exactamente
ser um deus. As almas humanas sao portanto outros tantos
deuses. Quando um homem filosofa e, abandonando o seu corpo,
concentra a sua mente na verdade inteligível, está a comportar-se
sirnplesmente como um deus que se lembra de ser um deus.
Entao, filosofar será para cada um de nós nada mais do que
comportarmo-nos como o deus que cada um de nós realmente é.
Na verdade, todos nós somos apenas Inteligencias individuais,
emanadas do Intelecto supremo e portanto do Uno. Por esta
mesma razao, tal como somos do Uno e estamos nele, também
conhecemos e contemplamos pelo e a luz do supremo Intelecto,
que eternamente emana do Uno. Contudo, depois de tudo díto e
feito, somos nao obstante outros tantos deuses, deuses menores
embora, abrindo pacientemente o nosso caminho de regresso
aos outros deuses iguais a nós. A dialéctica, tal como Platao e
Plotino a compreenderam, foi apenas o método que permitiu ao
homem atingir urna espécie de salvac;ao filosófica,
despertando-o progressivamente para a completa consciencia da
sua própria divindade. É possível que um deus se esquec;a de si
próprio, mas nao pode estar na necessidade de ser salvo ( 1°).
Esta é a razao fundamental pela qual foi tao difícil para
Santo Agostinho chegar ao Deus cristao segundo os métodos de
Platao e Plotino. Para ele, assim como para eles, tudo o que era
imaterial, inteligível e verdadeiro era divino por direito próprio;
mas, en quanto na filosofía de Platao o homem tinha
naturalmente direito a possuir a verdade tal como urna divindade
tinha direito a possuir as coisas divinas, ele já nao podía ter
direito a ela na filosofía crista na qual, metafísicamente falando
( 11 ), o homem de forma
5
( 11) Gostaria de sublinhar as palavras «metafisicamentetalando» a fim tornar
clara a diferem,a radical que existe entre a ordem da metafísica e a ordem da
religiao. Como cristao qualquer homem pode ser ,,deificado» através da gra9a,
5
DEUS E A FILOSOFIA
alguma pertence a ordem divina. Daí esta importante
consequéncia de o homem estar destinado a aparecer a
Agostinho como urna natureza dotada de algo que era divino
por direito próprio. Se a verdade é divina, e se o homem nao é
um deus, o homem nao pode estar na posse da verdade. No
entanto o homem, de facto, está; consequentemente, o único
caminho concebível para Agostinho para explicar a presem;a
paradoxal da verdade inteligível, que é divina no homem, que
nao é um deus, era considerar que o homem conhecia, luz
permanenteade urna verdade supremamente inteligível e auto-
suficiente, ou seja a luz de Deus.
Por diversas vezes, e sob muitas formas diferentes, Santo
Agostinho tentou a mesma demonstraqao da existéncia da
Deus como sendo a única causa concebível da presenqa da
verdade no espírito humano. O seu Deus é o sol inteligível cuja
luz brilha sobre a raza.o humana e lhe permite conhecer a
verdade; ele é o mestre interior que ensina o homem a partir
de dentro; as suas ideias eternas e imutáveis sao as regras
supremas cuja influénciaasubmete a nossa raza.o necessidade
da verdade divina. Para o demonstrar, os argumentos de Santo
Agostinho sao muíto eficazes. Ao conceder que a verdade é
sobre-humana e divina em si mesma, o simples facto de o
homem conhecer a verdade prova irrefutavel mente a existéncia
de Deus. Mas por que devemos nós concordar com Santo
Agostinho que a verdade é objecto de conhecimento mais do
que humano? A única raza.o que o levou a pensar assim foi
meran1ente acidental. O raciocínio implícito de SantoAgostinho
parece ter-se desenvolvido da seguinte forma: Plata.o e Plotino
5
Encontraremos Tomás de Aquino confrontado com a dificuldade contrária,
nomeadamente a de transformar o homem eminentemente natural de
Aristóteles num ser susceptível de deificac;;ao.
5
DEUS E A FILOSOFIA CRISTÁ
consideram o homem urn deus porque o hornem é possuidor da
verdade; mas o hornem nao é enfaticamente urn deus; Daí que o
homern nao possa de modo algum ser possuidor da verdade.
Ana lisado isoladarnente, este argumento é perfeitamente correcto;
seria até um argumento perfeitamente conclusivo se fosse
verdadeiro afirmar que a verdade é algo de demasiado bom para
ser conside rada naturalmente atingível pelo homem.
O que aconteceu a Santo Agostinho é muito claro. Como ex
poente inigualável da sabedoria crista, nunca teve a filosofia que
correspondesse asua teologia. O Deus de Agostinho é o
verdadeiro Deus crista.o de cujo Acto puro de existir nada de
melhor pode ser dito do que: Ele é; mas quando Agostinho tenta
descrever a exis tencia em termos filosóficos recorre
imediatamente a identifica<;ao grega do ser com as noc,;oes de
imaterialidade, inteligibilidade, imutabilidade e unidade. Tudo é
divino; e como a verdade o é, a verdade é divina. !material,
a e imutável, a verdade per tence ordem daquilo que
inteligível
realmente é ou existe. Consequente mente, pertence a Deus. Do
mesmo modo, o Deus de Santo Agostinho é o verdadeiro
criador de todas as coisas; mas quando se trata de definir a
crim;;ao, Santo Agostinho compreende-a naturalmente de acordo
com a sua própria noc,;ao de existir. Criar é dar existencia, e urna
vez que ser significa ser tanto inteligível como uno, Santo
Agostinho compreende a criac,;ao como a dádiva divina desse
tipo de existencia que consiste em ritmo, números, formas,
beleza, ordem e unidade ( 12). Como todos os cristaos, mas ao
contrário dos Gregos, Agostinho tem urna no<;ao bastante clara
do que é criar algo «a partir do nada». É faze-lo ser. O que
permanece grego no pensamento de Agostinho é a sua própria
noc,;ao do que significa ser. A sua ontología ou ciencia do existir
é mais «essencial» do que «existencial». Por outras palavras,
mostra
5
estava totalmente enganado. Agostinho tinha uma ideia clara do que significa
criar, mas nunca conseguiu atingir uma noi¡:ao totalmente existencial do ser.
5
DEUS E A FILOSOFIA
urna tendéncia marcada para reduzír a existéncia de urna coisa
a sua esséncia, e para responder a pergunta: «o que é para urna
coisa ser?» através da afirmac;ao: «é ser aquilo que é».
Sem dúvida urna resposta muito sensata, mas talvez nao a mais
profunda concebível em filosofia e, certamente, nao a mais ade
quada a um filósofo cristao que especula sobre um mundo
cdado pelo Deus cristao. Por razoes que mais tarde tentarei
explicar, nao foi fácil superar Santo Agostinho, porque o limite
que ele atingiu foi o limite da própria ontología grega, e portanto
quase o limite que o espírito humano pode alcanc;ar em questoes
de metafísica. Quando, nove séculos após a morte de Santo
Agostinho, se veri ficou um novo e decisivo progresso na
teologíanatural, a sua causa circunstancial foi a descoberta de um
outro universo metafísico grego por outro teólogo cristao. Desta
vez o universo metafísico foi o de Aristóteles e o nome do
teólogo era Tomás de Aquino.
«Avertente religiosa do pensamento de Platao», diz justamente
Murray, «nao foi revelada em toda a sua plenitude até a era
de Plotino, no século III d.C.: a de Aristóteles, poderemos dizer
sem excessiva contradi<;ao, também nao o foi atéa sua
explanac;ao por Sao Tomás de Aquino no século XIII»(l3).
Acrescentemos apenas o seguinte: que a «explicac;ao» de
Aristóteles por Sao Tomás de Aquino poderla talvez ser mais
rigorosamente denominada a sua metamorfosea luz da revelas,:ao
crista. O Pensamento que se pensa a si mesmo de Aristóteles
tornou-se obviamente um elemento essencial da teología natural
de Sao Tomás de Aquino, mas sem primeíro sofrer a
transformas,:ao metafísica que o converteu no
Qui est ou no «Ele que é» do Antigo Testamento (14).
Por que razao, pergunta Sao Tomás de Aquino, dizemos que
Qui est é o nome mais apropriado entre todos os que podem ser
atribuídos a Deus? E a sua resposta é porque ele significa «ser»:
ipswn esse. Mas o que é ser? Ao responder a esta que é a mais
difícil de todas as quest6es metafísicas, <levemos distinguir
cuidadosamente o significado de duas palavras que sao diferentes
mas que estao, no entanto, íntimamente relacionadas: ens, ou
(13) Gilbert Murray, Five Stages of Greek Religion (Nova Iorque,
Columbia University Press, 1925), p. 17.
( 14) Sao Tomás de Aquino, Summa theologica, Pars I, qu. 13, art. 11, Sed
contra. Sobre a identificai;;ao tomista de Deus com o Ser, ver É. Gilson, The
Spirit ofMediaeval Philosophy (Nova Iorque, Scribners, 1936), cap. III, pp.
5
42-
-63.
5
DEUS E A FILOSOFIA CRISTA
«ente», e esse, ou «ser». A pergunta: o que é ente?, a
resposta correcta é: ente é aquele que é ou que existe. Se, por
exemplo, fizermos a mesma pergunta relativamente a Deus,
a resposta correcta seria: o ente de Deus é um oceano de
substancia, infinito e sem limites ( 15). Mas esse, ou «ser», é
algo mais e muito mais difícil de compreender porque está
profundamente oculto na estru tura metafísica da realidade. A
palavra «ente», como substantivo, designa urna substancia; a
palavra «ser» - ou esse - é um verbo porque designa um acto.
Compreender isto é também alcam;ar, para além do nível da
esséncia, o nível mais profundo da existencia. Porque é de facto
verdade dizer que tudo o que é urna substancia precisa
necessariamente de ter tanto urna esséncia como urna exis tencia.
Efectivamente, é essa a ordem natural seguida pelo nosso
conhecimento racional: primeiro, concebemos determinadosentes,
depois definimos a sua esséncia e, finalmente, afirmamos a
sua existencia atravésde umjuízo. Mas a ordem metafísica da
realidade segue precisamente a ordem inversa do conhecimento
humano: o que primeiro entra em linha de conta é um
determinado acto de existir que, porque é este acto particular
de existir, circunscreve imediatamente urna determinada
esséncia e leva a que determinada substancia comece a
transformar-se num ente. Neste sentido mais profundo, «ser» é o
acto primitivo e fundamental em virtude do qual um
determinado ser realmente é ou existe. Nas palavras do próprio
Sao Tomás: dictur esse ipse actus essentiae ( 16) - «ser» é o
próprio acto segundo o qual urna esséncia é.
('5) Esta fórmula é citada a partir de Joao Damasceno por Sao Tomás de
Aquino, op. cit., París I, qu. 13, art. 11, Resp.
('6) Sao Tomás de Aquino, em I. Sent., dist. 33, qu. 1, art. 1, ad l m, C.F.
Quaestiones disputatae: De Potentia, qu. VII, art. 2, ad 9. Esta no9ao existencial
de ente é debatida em É. Gilson, Réalisme thomiste et critique de la connaissance
(Paris, J. Vrin, 1939), cap. Vlll, esp. pp. 220-222. Para urna compara9ao geral
entre o Deus de Aristóteles e o Deus de Sao Tomás de Aquino, ver o
ensaio perspicaz de Anton C. Pegis, Saint Thomas and the Greeks (Milwaukee,
Marquette University Press, 1939). Para urna compara9ao geral entre o
Deus de Santo Agostinho e o Deus de Sao Tomás de Aquino, ver A.
Gardeil, La Structure de l 'áme et l 'expérience mystique (Paris, Gabalda, 1927),
Apéndice II, vol. II, 313-
-325. A extrema simplicidade da n0<;:ao de existéncia e da impossibilidade de a
conceptualizarmos foram sublinhadas por J. Marítain, Sept lei;ons sur l'Étre
(1932-1933) (París), pp. 98-99. Estas características de «ser» explicam
5
provavelmente a razao por que, como veremos no capítulo IV, muitos cientistas
modernos consideram a existéncia de urna coisa a mais insignificante de todas
as suas propriedades.
5
DEUS E A FILOSOFIA
Um mundo em que «ser» é o acto por exceléncia, o acto de
todos os actos, é também um mundo em que, para cada coisa, a
existéncia é a energia original de onde flúi tudo o que merece o nome
de ente. Um tal mundo existencial nao pode ser explicado por
nenhuma outra coisa senao por um Deus supremamente existencial.
O mais estranho é que, historicamente falando, as coisas parecem ter-
se passado ao contrário. Os filósofos nao inferiram a suprema
existencialidade de Deus a partir de qualquer conheci mento prévio da
natureza existencial das coisas; pelo contrário, a auto-revelaqao da
existencialidade de Deus ajudou os filósofos a chegar a compreensao
da natureza existencial das coisas. Por outras palavras. os filósofos
nao conseguiram alcanqar, para além da esséncia, as energías
existenciais que sao as suas próprias causas, até que a Revela�ao
judaico-crista lhes ensinou que «ser» era o nome próprio do Ser
Supremo. O progresso conseguido pela metafísica a luz da fé crista
nao foi o de compreender que tem de haver um primeiro ser, origem
do ser de todas as coisas. O maior de todos os Gregos já o sabia.
Quando, por exemplo, Aristóteles postulava o seu primeiro
Pensamento que se pensa a si mesmo como ser supremo,
certamente que o concebía como Acto puro e como energía
infinitamente poderosa; contudo, o seu deus era apenas o puro Acto
de um Pensamento. Esta realidade infinitamente poderosa de um
princípio que se pensa, certamente que merece ser chamada um
Acto puro, mas era um Acto puro na ordem do conhecimento e
nao na da existéncia. Ora nada pode dar aquilo que nao tem.
Porque o supremo Pensamento de Aristóteles nao era «Ele que é»
nao podía dar existéncia: daí que o mundo de Aristóteles nao fosse
um mundo criado; porque o supremo Pensamento de Aristóteles
nao era o puro Acto de existir, o seu auto-conhecimento nao
implicava o conhecimento de todo o ser, tanto real como possível. O
deus de Aristóteles nao era urna provi déncia; ele nem sequer
conhecia um mundo que nao tinha feíto e que nunca poderia ter
feito porque ele era o pensamento de um Pensamento, nem
conhecia a auto-consciéncia de «Ele que é».
Nao gostaria de minimizar a dívida filosófica de Sao Tomás de
Aquino para comAristóteles. Ele próprio nunca me perdoaria por
torná-lo culpado de urna tal ingratidao. Como filósofo, Tomás de
Aquino nao era discípulo de Moisés mas de Aristóteles, a quem
devia o seu método, os seus princípios e até a sua no�ao essencial
da fundamental realidade de ser. Pretendo demonstrar apenas que
5
DEUS E A FILOSOFIA CRISTÁ
urn decisivo progresso metafísico, ou antes urna verdadeira
revolu�ao metafísica foi conseguida quando alguérn corne9ou
a traduzir todos os problemas relativamente ao ser a partir da
linguagern das esséncias para a das existencias. Logo desde a
sua origern, a metafísica sernpre almejou obscuramente tornar-
se existencial; desde o tempo de Sao Tomás de Aquino que
assirn tern sido, e a tal ponto que a metafísica perdeu sernpre a
sua própria existencia de cada vez que perdeu a sua
existencialidade.
A metafísica de Sao Tomás de Aquino foi e continua a ser
um clímax na história da teología natural. Nao admira portanto
que tenha sido seguida tao depressa por um anti-clímax. A razao
humana sente-se a vontade num mundo de coisas, relativamente
as quais pode cornpreender e definir essencias e leis ern termos
de conceitos; mas torna-se tímida e pouco a vontade nurn
mundo de existencias, porque existir é urn acto, nao urna coisa.
E sabemo-lo muito bern. De todas as vezes que um
conferencista inicia urna frase dizendo: «Efectivamente», sabe-
se irnediatamente que o hornero já nao sabe o que dizer. Ao
garantir que alguma coisa é ele pode dizer-nos muito sobre aquilo
que é; o que nao pode é explicar a própria existencia da coisa. E
como poderia, se a existencia é um princípio e o príncípio rnais
profundo do que a coisa é? Quando lidarnos com factos enguanto
factos ou com coisas que acontecem enguanto meros
acontecimentos, a nossa ultima ratio é sempre, assunto
encerrado. Obviamente, pedirern-nos para ver o universo corno
urn mundo de actos existenciais particulares, todos relacio nados
com urna Auto-Existencia suprema e absoluta, é esticar o poder
da nossa raza.o essencialrnente conceptual quase até ao ponto de
ruptura. Sabemos que ternos de o fazer, mas perguntamo-nos se
é possível faze-lo, porque nao ternos a certeza de que isso possa
de todo ser feito.
Este é, pelo menos, urn ponto sobre o qual diversos
sucessores de Tomás de Aquino acalentararn sérias dúvidas.
Corno teólogos cristaos, e muitas vezes grandes teólogos, nao
tiveram hesita96es quanto ao verdadeiro nome do verdadeiro
Deus. A sua verdadeira dificuldade, considerando que Deus é
«Ele que é», consistiu em saber se poderia esse Deus ser
alcan9ado apenas através da raza.o filosófica, sern a ajuda da
Revela9ao? Na realidade, urna questao perfeitarnente relevante.
Afinal, estes teólogos sabiarn rnuito bern que os filósofos nunca
5
tinham pensado ern dar a Deus esse nome até o terem aprendido
corn Moisés, o qual tarnbérn o aprendeu
5
DEUS E A FILOSOFIA
com o próprio Deus. Dai a tendencia marcada, mesmo num
grande metafísico como Joao Duns Escoto, para por em causa a
possibi lidade de a razao humana alcanc;ar, apenas através da
filosofía, o Deus cristao absolutamente existente e
absolutamente todo
-poderoso (' 7).
A razao para esta hesita9ao é simples. O espírito humano sente
-se intimidado perante urna realidade sobre a qual nao pode
formar nenhum conceito adequado. É exactamente o que
sucede com a existencia. É difícil para nós compreender que
«Eu sou» é um verbo activo. É provavelmente ainda mais difícil
para nós ver que
«isso é» se refere em última análise nao aquilo que a coisa é, mas
ao acto existencial primitivo que dá origem tanto ao ser como
ao facto de ser precisamente aquilo que é. Contudo, aquele
que comegar a perceber isto também comegará a apreender a
verdadeira matéria de que é feíto o nosso universo. Comet;ará
mesmo a perceber obscuramente a suprema causa desse
mundo.
Por que terá o espírito grego parado espontaneamente na nogao
de natureza, ou de essencia, como se de urna explica9ao última
se tratasse? Porque na nossa experiencia humana a existencia
está sempre relacionada com urna essencia particular.
Conhecemos directamente apenas coisas existentes, individuais e
sensíveis, cuja existencia consiste apenas em ser esta ou aquela
coisa individual. A existencia de um carvalho limita-o obviamente a
ser um carvalho, ou antes, a ser este carvalho particular, o
mesmo podendo ser dito de tudo o resto. O que significa ísso, se
nao que a essencia de urna e qualquer coisa nao é a existencia
em si, mas apenas urna das muitas possíveis participa96es na
existencia? Estefacto tem melhor expresso na distin9ao
fundamental entre «ente» e «o que é», tao claramente exposta
por Tomás de Aquino. Nao significa que a
5
existencia ser apenas um dos seus
«acidentes», surge na doutrina de Duns Escoto como reminiscencia do platonismo
anterior a Sao Tomás de Aquino. Numa estrita metafísica existencial, seria
muito mais correcto falar da essencia de urna existencia doque falar, como Duns
Escoto, da existencia de urna essencia (essentia et eius existentia).
6
DEUS EAFILOSOFIACRISTÁ
existencia seja distinta da esséncia como urna coisa o é de outra.
Mais urna vez, a existencia nao é urna coisa, mas o acto que
permite que ela seja e que seja aquilo que é. Esta distin9ao
exprime meramente o facto de que na nossa experiencia humana
nao existe nada cuja essencia seja «ser» e nao <<ser-uma-
determinada-coisa». Nenhuma coísa empiricamente dada se
define pela existencia; assim, a sua essencia nao é a existencia, e
os dais conceitos devem ser entendidos separadamente.
Como poderemos entao explicar a existencia de um mundo
feito de tais coisas? Podemos pegar nelas sucessivamente e
pergun tarmo-nos por que é que cada urna delas é ou existe; a
esséncia de qualquer urna delas nunca poderá fornecer urna
resposta a nossa questao. U rna vez que a natureza de nenhuma
delas é «ser», o mais exaustivo conhecimento científico do que
elas sao nao poderá sequer sugerir o início de urna resposta a
nossa pergunta: por que sao elas? Este nosso mundo é um
mundo de mudan9a; a física, a química e a biología podem
ensinar-nos as leis segundo as quais a mudarn;a acontece
realmente nelas; o que estas ciencias nao nos podem ensinar é a
raza.o por que este mundo, considerado no seu conjunto com as
suas leis, a sua ordem e a sua inteligibilidade, é ou existe.Como
a natureza de nenhuma coisa conhecida é «ser», a natureza de
nenhuma coisa conhecida contém em si a raza.o suficiente para
a sua própria existencia. Mas aponta para a sua única causa
concebível. Para além de um mundo onde «ser» é facilmente
acessível e onde cada natureza pode explicar o que sao outras
naturezas, mas nao a sua existencia comum, tem de haver
alguma causa cuja verdadeira essencia seja «ser». Anunciar urna
coisa cuja esséncia é um puroActo de existir, ou seja, cuja
essencia nao seja ser isto ou aquilo, mas apenas «ser», é também
anunciar o Deus crista.o como a suprema causa do
universo.Senda urn Deus profundamente oculto, «Ele que é»
tarnbérn é um Deus muito óbvio.Ao revelarem ao metafísico
que nao podem justificar a sua existencia, todas as coisas
apontam para o facto de que existe urna causa suprema, na qual
esséncia e existencia coincidem. Aqui finalmente, Sao Tomás
deAquino eSantoAgostinho acabam por se encontrar.Como a sua
metafísica existencial conseguiu impar
-se a essa crosta de esséncias que nao é sena.o a carnada exterior
da realidade, Sao Tomás deAquino consegue ver o puroActo de
existir corno alguém que vé a presern;a da causa em qualquer
urn dos seus efeitos.
59
DEUS E A FILOSOFIA
Atingir este ponto foi provavelmente atíngir a ultima Thule
[o limite do que se pode atingir] do mundo metafísico que Santo
Agostinho alcan9ou por for9a da fé crista, no próprio dia em
que ouviu todas as coisas proclamarem, na linguagem da Bíblia:
«Nós nao nos criámos, mas fomos criadas por Ele que vive
eternamente». Contudo, para Santo Agostinho, «Ele que vive
eternamente» permaneceu essencialmente a «Verdade eterna,
Amor verdadeiro e Eternidade amada» auto-existentes Sao
Tomás de Aquino alcan9ou-o por for9a de um conhecimento
simplesmente meta físico, quando afirma que «todos os seres
pensantes conhecem implícitamente Deus em toda e qualquer
coisa que conhecem»(19). Era impossível ir mais longe porque a
razao humana nao pode ir mais longe do que o mais elevado de
todos os princípios meta físicos. Esperar-se-ia pelo menos que,
urna vez na posse de urna verdade tao fundamental, os homens a
conservassem cuidadosa mente. Mas nao o fizeram. A sua perda
seguiu-se quase imediata mente a sua descoberta. Como e por
que se perdeu é portanto o problema sobre o qual <levemos
concentrar agora a nossa aten9ao.
(18) Santo Agostinho, Corifissoes, Livro X, cap. X, n. 25, p. 227. Cf. Livro
VII, cap. X, n. 16, p. 158.
(19) Sao Tomás de Aquino, Quaestiones disputatae de Veritate, qu. 22, art.
2, ad l m. Afirmas;oes semelhantes poderao ser encontradas sempre que
Tomás de Aquino fala sobre o natural e confuso desejo de beatitude de todos
os homens; por exemplo, Summa theologica, Pars I, qu. 2, art. 1, ad l m.
60
111
DEUS E A FILOSOFIA MODERNA
Atransi9aodafilosofiamedieval para a filosofiamoderna inicial
tem o seu melhor exemplo na mudan9a que se verificou na condi9ao
social dos próprios filósofos. Durante a Idade Média quase
todos os filósofos eram monges, padres ou pelo menos simples
clérigos. Do século XIX até aos nossos días muito poucos
homens da Igreja mostraram possuir um verdadeiro génio
criativo no campo da filosofia. Malebranche e Condillac em
Fran9a, Berkeley na Irlanda, Rosmini na Itália podem ser
citados como excep96es a regra e nenhum deles é
reconhecido como génio filosófico excepcional dos tempos
a
modernos. A filosofia moderna foi criada por leigos, nao por
homens da Igreja, ae para dar respostas cidade natural dos
homens, e nao cidade sobrenatural de Deus.
Esta mudan9a mareante come9ou a revelar-se quando na
Primeira Parte do seu Discurso do Método, Descartes anunciou
a sua decisao de «nao procurar outro conhecimento senao
aquele que» <<poderia encontrar em» si mesmo «ou no
1
grande livro do mundo»( ). A afirma9ao de Descartes nao quis
dizer que fosse sua inten9ao desembara9ar-se de Deus, da
religiao ou mesmo da
teología; mas significava enfaticamente que, quanto a ele,
essas matérias nao eram objecto adequado para especulac;ao
filosófica. Afinal, o caminho para o céu nao se abre
igualmente ao mais ignorante como ao mais erudito? Nao é
verdade que a própria Igreja ensina que as verdades reveladas
que conduzem os homens
6
(1 ) Descartes, Discours de la méthode, Primeira parte, VI, 9, 11, 21-22
[Discurso do Método, Lisboa, Edii;:oes 70, 1986].
6
DEUS E A FILOSOFIA
a salva<_;ao nao sao alcarn;:áveis pela nossa inteligencia? Deixemos
que a religiao permane¡;a o que ela é facto: urna questifo de fé
e nao de conhecimento intelectual ou demonstra¡;ao racional.
Assim, o que aconteceu com a filosofía de Descartes, e inde
pendentemente da sua convic<_;ao pessoal crista, foi a ruptura com
a ideia medieval crista de Saber. Para Sao Tomás de Aquino,
por exemplo, a suprema expressao do saber era a teología. «Esta
dou trina sagrada», diz Sao Tomás de Aquino «é, entre todas os
saberes humanos, o saber por exceléncia; nao é apenas o mais
elevado dentro de urna certa ordem, é-o absolutamente». E por
que será assim? Porque o próprio objecto da teología é Deus,
que é o mais elevadoobjectoconcebível do conhecimento
humano: «Só merece eminentemente ser chamado sábio aquele
cujo estudo incida sobre a suprema causa absoluta do universo,
ou seja, Deus»(2). Como ciencia da causa suprema, a teología
reina suprema entre todas as outras ciéncias; todas sao julgadas
por ela e subordinadas a ela. Descartes nao era homern para
levantar qualquer objeci;ao contra a sabedoria da fé crista. Sendo
ele próprio cristao, encarava-a como o seu único rneío de
salvai;ao pessoal através de Cristo e da Igreja de Cristo.
Contudo, como filósofo, procurava urna espécie de sa bedoria
completamente diferente, norneadamente um conheci mento da
verdade através das suas primeiras causas, passível de ser
atingido apenas pela razao natural e dirigido para objectivos
práticos temporais (3). Descartes nao divergiu de Sao Tomás de
Aquino, pois tal como ele nao suprimiu a teología - preservou-a
muito cuidadosamente; nem divergiu quanto a distini;ao formal
entre filosofía e teología - Sao Tomás de Aquino já o tinha feíto
antes dele, há muitos séculos. O que era novo em Descartes era
a separai;ao real e prática entre a sabedoria filosófica e a
sabedoria teológica. Onde Sao Tomás de Aquino distinguía com
o objectivo de unir, Descartes dividía com o objectivo de
separar. Os teólogos podiam levá-lo ao seu Bern supremo e
sobrenatural através da sabedoria da fé. Descartes nao se oporia
e até se sentiria extre mamente grato. Como ele próprio afirma:
«Tal como qualquer
6
1997]. Sobre este ponto, ver J. Maritain, Le Songe de Descartes (París,
1932), cap. III,
«Déposition de la sagesse», pp. 79-150.
6
DEUS E A FILOSOFIA MODERNA
pessoa, esfon;o-me por ganhar o céu»(4). Contudo, como filósofo,
Descartes estava interessado num tipo de sabedoria completamente
diferente, ou seja, no conhecimento racional «das primeiras causas
e dos verdadeiros princípios a partir das quais podem ser deduzidas
as razoes de tudo aquilo que é possível conhecer»(5). É esse o
bem natural e humano «considerado pela razao natural sem a
luz da fé».
A consequéncia imediata desta atitude devia ter sido
fazer regressar a razao humana a atitude filosófica dos Gregos.
Urna vez que a filosofía de Descartes nao era directa ou
indirectamente regulada pela teología, ele nao tinha quaisquer
razóes para supor que as suas conclus6es pudessem afinal
coincidir. Porque nao haveria de existirentre o objecto, ou
objectos, do seu culto religioso e o princípio racional da
inteligibilidade de todas as coisas a mesma separa¡;ao que existía
entre a sua fé e a sua razao, ou a sua teología e a sua filosofía?
Teria sido tao lógico para Descartes adoptar essa posi¡;ao, que
alguns dos seus melhores historiadores nao hesitam em sustentar
que ele o fez de facto. Nas palavras de O. Hamelin:
«Descartes vem depois dos Antigos quase como se nao tivesse
existido mais nada entre si e eles, excepto os fisicistas (6).
Que isto era o que deveria ter acontecido, logicamente falando,
nao oferece dúvidas. Contudo, que nada disso tenha
realmente acontecido nao oferece igualmente qualquer
dúvida e o facto é susceptível de urna explicar;ao histórica
muito simples. Quando um filósofo grego tinha de abordar o
problema da teología natural através de um método puramente
racional, via-se confrontado apenas com os deuses religiosos
da mitología grega. Qualquer que fosse o seu nome, posir;ao ou
funr;ao nenhum dos deuses da religiao grega alguma vez
reclamara ser o uno, único e supremo Ser, criador do mundo,
primeiro princípio e fim último de todas as coisas. Pelo contrário,
Descartes nao podía abordar o mesmo problema filosófico sem
estar confrontado com o Deus crista.o. Quando um filósof o é
também cristao, pode muito bem dizer no início da sua
pesquisa: vou fingir que nao sou crista.o; vou tentar
(4)Descartes, Discours de la méthode, Primeira Parte, VI, 8, 11. 8-9.
Literal mente: « Je révérais notre théologie, et prétendait, autant qu'aucun autre,
a gagner le ciel» [Eu sonharia a nossa teologia, e pretendía, tanto como qualquer
outro, ganhar o céu]
(5)Descartes, Príncipes de la philosophie, Prefácio, p. 5, 1 L 21-24.
6
(6) O. Hamelin, Le Systéme de Descartes, (París, 1921), p. 15.
6
DEUS E A FILOSOFIA
procurar, apenas pela razao e sem a luz da fé, as primeiras
causas, os primeiros princípios que podem explicar todas as
coisas. Como desporto intelectual, este é tao bom como
qualquer outro; mas destinado ao fracasso, porque quando um
homem sabe e acre dita que há apenas urna causa de tudo o que
o Deus em
que acredita difícilmente pode ser outra coisa que nao a causa
do que
conhece.
O problema de toda a teología natural moderna pode ser
expli cado em poucas palavras, e cornpreender a sua natureza
paradoxal é a prirneira condi9ao para a correcta cornpreensao da
sua história. Longe de vir depois dos Gregos corno se nao
tivesse existido nada entretanto, Descartes veio depois dos
Gregos com a condi9ao in génua de que poderla solucionar,
através do método puramente racional dos Gregos, todos os
problemas que tinharn sido colocados entretanto pela teología
natural crista. Por outras palavras, Descartes nunca duvidou por
urn só momento de que o prirneiro princípio de urna filosofía
totalmente separada da teología crista acabarla por se revelar o
mesmo Deus que a filosofianuncatinha conseguido descobrir
enguanto perrnanecera alheia a influencia da revela9ao crista.
Nao admira pois que nós, historiadores, nao concordemos corn
Descartes. Alguns de nós escrevern a história daquilo que ele
disse; outros escrevern a história daquilo que ele realmente fez;
e corno ele disse que procurarla a verdade apenas a luz da razao,
o que fez, pelo menos na metafísica, foi reafirmar as principais
con clusóes da teología natural crista corno se a teología
sobrenatural crista nunca tivesse existido. Para Liard, Descartes
surge corno o pioneiro do positivismo científico; para Espinas
ele surge corno o discípulo fiel dos seus prirneiros professores,
osjesuítas C). Efecti-
(7) Descartes foi interpretado por Víctor Cousin como um expoente da sua
própria metafísica espiritualista. Contra esta interpretw¡:iio
predominantemente metafísica da sua doutrina, os elementos científicos do
cartesianismo foram sublinhados por L. Liard, Descartes (Paris, 1882); mais
tarde, sob a influencia dasconferencias nao publicadas de L. Lévy-Bruhl e de
mim próprio emLa Liberté chez Descartes et la théologie (Paris, 1913). Toda a
questao foi reanalisada e as minhas conclus6es competentemente corrigidas
por Henri Gouhier, La Pensée religieuse de Descartes (Paris, 1924). Durante
os mesmos anos em que Lévy
6
-Bruhl ensinava o seu Descartes de espírito científico, um Descartes de
espírito apologético era elaborado por A. Espinas. O resultado das suas
reflexoes pode ser encontrado no livro póstumo de Espinas, Descartes et la
mora/e (Paris, 1925), 2 vols. A discussiio mais recente sobre o problema pode
ser encontrada no livro de Francesco Olgiati, Cartesio, Vita e Pensiero
(Miliio, 1934).
6
DEUS E A FILOSOFIA MODERNA
vamente, Descartes era ambos e ambos ao mesmo tempo, mas
nao no que se refere as mesmas questoes.
O Deus de Descartes é um Deus inequívocamente cristao.
A funda¡_;;ao comum para as demonstra96es cartesianas da
existencia de um tal Deus é a ideia clara e distinta de urna substancia
pensante, nao criada e independente que é naturalmente inata
ao espírito humano. Se investigarmos a razao por que urna tal
ideia existe dentro de nós, somos de imediato levados a
postular, como única explicac;ao plausível, a ideia de um ser que
possui todos os atributos que se ligam a ideia que fazemos dele,
ou seja, um ser auto
-existente, infinito, todo-poderoso, uno e único. Mas é
suficiente para nós considerar directamente a ideia inata que
ternos dele, assegurarmo-nos que Deus é ou existe. Estamos tao
habituados, em todasas outrascoisas, a estabelecer urna distinc;ao
entre essencia e existencia, que nos sentimos naturalmente
inclinados a imaginar que Deus pode ser concebido como nao
existindo de facto. No entanto, quando pensamos mais
atentamente em Deus, depressa concluímos que a nao existencia
de Deus é, estritamente falando, impensável. A nossa ideia
inata de Deus é a de um ser suprema mente perfeito; dado que a
existencia é urna perfeic;ao, pensar num ser supremamente
perfeito a quem a existencia é negada é pensar num ser
supremamente perfeito a quem é negada a perfeic;ao, o que é
contraditório; daí que a existencia seja inseparável de Deus e,
consequentemente, ele seja ou exista necessariamente (8).
É um facto conhecido que Descartes sempre desprezou a
História, mas aquí a História pregou-lhe urna partida. Se nao
tivesse investigado tao pouco o passado da sua própria ideia de
Deus, teria compreendido imediatamente que embora seja
verdade que todos os homens tém urna certa ideia da divindade,
nem todos tíveram, nem sempre, a ideia crista de Deus. Se
todos os homens tivessem essa ideia de Deus, Moisés nao teria
perguntado a Javé o seu nome; ou a resposta de Javé teria sido:
«Que pergunta dis paratada, tu sabe-lo». Descartes estava tao
preocupado em nao corromper a pureza racional da sua
metafísica com qualquer elemento de fé crista que
simplesmente decretou a ineréncia universal da defini¡_;;ao
crista de Deus. Tal como as ideias in.atas de Plata.o, a ideia inata de
Deus em Descartes era urna reminiscencia; contudo, nao a
6
reminiscéncia de urna ideia contemplada pela alma
7
DEUS E A FILOSOFIA
numa vida anterior, mas simplesmente a reminiscencia do que
ele tinha aprendido na igreja quando era pequeno.
Esta desconcertante indiferern;a de Descartes em relai;ao a
possível origem de urna ideia metafísica de tal importáncia nao
é de modo algum o único acidente da sua filosofia. Das muitas
coisas que tinbam sido ditas pelos seus antecessores, grande
parte delas pareciam-lhe ser pelo menos materialmente verdadeiras
e Descartes nunca hesitou em repetí-las quando lhe convinha. Para
ele, todavía, repetir alguma coisa nunca significou tomá-la de
empréstimo. Segundo o próprio Descartes, o maior mérito da
sua filosofia consistía no facto de, ao ser a primeira a seguir
coerentemente o único método verdadeiro, era também a única
a ser um encadea mento contínuo de consequencias
demonstradas e concluídas irrepreensivelmente a partir de
princípios evidentes. Basta mudar, nem sequer um dos seus elos,
mas apenas o seu lugar, para que toda o encadeamento se
desfac;a (9). Quando o valor de verdade de urna ideia é tao
inseparável do seu lugar para fins dedutivos, por que é que nos
<levemos preocupar com a sua origem? Só há um lugar no qual
urna ideia verdadeira é completamente verdadeira; é o lugar que
ela encontra na filosofía de Descartes. E a ideia cartesiana de
Deus é urna extraordinária aplicac;ao deste princípio. É
seguramente a pedra angular da metafísica de Descartes, mas
como a sabedoria humana é una, nao existe urna metafísica
carte siana isolada. O que é a pedra angular da metafísica
cartesiana tem de ser necessariamente também a pedra angular
da física que vai buscar os seus princípios a metafísica. Em
suma, aquilo que deu a esta ideia de Deus o seu pleno valor no
espírito de Descartes foi a sua notável capacidade para se tomar
no ponto de partida de urna interpretac;ao puramente científica
do mundo. Corno o Deus cartesiano era metafísicamente
verdadeiro, ele dotava a ciencia corn os princípios da física
verdadeira. E porque mais nenhum outro podia dotar a
verdadeira física corn os princípios de que esta necessita para
urna exposic;ao sistemática, nenbum outro Deus, salvo o Deus
cartesiano, poderla ser o verdadeiro Deus.
Isto deve ser cuidadosamente tido em conta por qualquer
pessoa que desejar compreender as curiosas aventuras metafísicas
do Deus de Descartes. Originalmente, era o Deus cristao. Era um
ser tao completamente auto-subsistente como o Deus do
6
próprio Sao
6
DEUS E A FILOSOFIA MODERNA
Tomás de Aquino e Descartes ainda o teria alegremente feito
mais se tal tivesse sido possível. O seu Deus nao era
simplesmente um puro Acto de existir que nao tinba causa para
a própria existéncia; era como urna energía infinita de auto-
existéncia que, por assim dizer, era para si mesma a causa da sua
própria existéncia. É óbvio que nao há palavras para descrever
um tal Deus. Dado que a causa nos surge naturalmente como
sendo distinta do seu efeito, é difícil falar dele como se ele fosse
a sua própria causa. Contudo, se pu déssemos fazer coincidir as
duas no96es de causa e efeito, pelo menos neste único caso, um
Ser infinitamente poderoso, que é causa de si próprio, seria
talvez a menos inadequada de todas as aproxima96es humanas
de Deus (1°).
A primeira vista o Deus de D�scartes e o Deus de Sao
Tomás de Aquino nao parecem diferir senao por urna leve
sombra de pensamento metafísico. Mas é mais do queisso.
Quando Sao Tomás de Aquino transfigurou o supremo
Pensamento de Aristóteles no
«Ele que é» crista.o, colocou um primeiro princípio filosófico
ao nível de Deus. A partir <leste mesmo Deus crista.o, Descartes
utili zava-o agora como primeiro princípio filosófico. É verdade
que o Deus em que, como cristao, Descartes acreditava era
exactamente o mesmo Deus que, como filósofo, ele sabia ser a
primeira causa de todas as coisas; no entanto, permanece o facto
de, como filósofo, Descartes nao ter lugar para esse Deus e para
a sua perfeü;ao auto
-suficiente. Para ele, Deus era em si mesmo um objecto de fé
religiosa; o que era objecto de conhecimento racional era Deus
tomado como o mais elevado de todos os «Princípios da
Filosofía». É por esta razao que a teología natural de Descartes
nao se limitou apenas a considera9ao daqueles que, de entre os
atributos divinos, explicam a existéncia do mundo, mas também
concebeu esses atributos como eles tém de ser concebidos de
modo a que possam explicar a existéncia de um mundo
cartesiano.
O que esse mundo de ciéncia cartesiana era todos sabem. Era
um universo exclusivamente mecánico, onde tudo poderia ser
explicado pelas propriedades geométricas do espac;o e das leis
físicas de movimento ( 11 ). Se olharrnos para Deus como única
6
(1º) Para urna díscussao detalhada desta nos,:ao de Deus e dos textos de
Descartes em que é formulada, ver É. Gilson, Études sur le róle de la pensée
médiévale dans laformation du systeme cartesian (París, J. Vrin, 1930).
(11 ) Descartes, Discours ... , Segunda Parte, IX, cap. LXIV, 101-102.
6
DEUS E A FILOSOFIA
explicas;ao possível para a existencia desse mundo, o seu principal
atributo tern necessariamente de ser, nao a conternplas;ao do seu
próprio Ser infinito, mas a sua omnipotencia, que é causa de si
própria, fonte da sua causalidade criativa. Ern vez do Ser auto
-suficiente e que se conhece a si próprio de Sao Tomás de
Aquino, ternos agora urna energía de existencia que é causa de si
própria. Se recorréssernos a metáforas, diríamos que enguanto o
Deus de Sao Tomás de Aquino era urn infinito oceano de
existencia, o Deus de Descartes é urna infinita e poderosa fonte
de existencia. E nao é difícil perceber porqué. Corno a única
furn;ao filosófica do seu Deus era ser urna causa, o Deus
cartesiano tinha de possuir todos os atributos requeridos para o
criador de urn mundo cartesiano. Seudo esse mundo
infinitamente projectado no espa90, o seu criadortinha de ser
infinito; seudo esse mundo puramente rnecanico e destítuído de
causa finais, o que era verdadeiro e born nele tinha de ser dessa
rnaneira porque Deus o tinha criado corno urn livre desígnio da
sua vontade, e nao o oposto. O mundo mecánico de Descartes
assentava na ideia da conserva9ao da mesma quantidade de
movirnento no universo; daí que o Deus de Descartes tivesse de
ser urn Deus irnutável e que as leis estabelecidas pela sua vontade
nao fosse permitida a mudans;a, a nao ser que este mundo fosse
prirneiro destruído. Ern suma, a essencia de urn Deus cartesiano
estava largamente determinada pela sua funs;ao filosófica, que
era criar e preservar urn mundo mecánico da ciencia corno o
próprio Descartes o concebeu ( 12). Ora, é bern verdade que o
Criador é eminentemente urn Deus cristao, mas urn Deus cuja
verdadeira essencia seja a de ser urn criador nao é de todo urn
Deus cristao. A esséncia do verdadeiro Deus cristao nao é criar,
mas ser. «Ele que é» tarnbérn pode criar, se assirn o quiser; mas
ele nao existe porque
6
suas dificuldades pessoais. No seu esfon;:o para re-cristianizar a teología
natural de Descartes, Malebranche cartesianizou o Deus cristao.
7
DEUS E A FILOSOFIA MODERNA
cría, nao, nem a ele próprio; ele pode criar porque existe supre
mamente.
Estamos agora a conseguir ver por que, e em que sentido, a
metafísica de Descartes constituiu um momento decisivo na
evolu9ao da teología natural. No entanto, evolu9ao nem sempre
é sinónimo de progresso; e desta vez ela estava destinada a ser
um retrocesso. Nao discuto aquí a hipótese do gmática de o Deus
de Sao Tomás de Aquino ser o verdadeiro Deus. O que estou a
tentar esclarecer é o facto objectivo de que, mesmo como urna
causa filosófica suprema, o Deus de Descartes era um Deus
nado-morto. Ele nao podia sequer viver porque, tal como
Descartes o tinha concebido, ele era o Deus do Cristianismo
reduzido a condi9ao de princípio filosófico, em suma, urna
mistura infeliz de fé religiosa e pensamento racional. A mais
extraordinária característica <leste Deus era que a sua fun9ao
criativa absorvera integralmente a sua esséncia. Daí o nome que,
a partir de agora, passaria a ser o seu verdadeiro nome: já nao
«Ele que é», mas antes «O Autor da Natureza». Certamente que
o Deus crista.o fora sempre o Autor da Natureza, mas ele
também fora infinitamente mais do que isso, ao passo que,
depois de Descartes, ele estava destinado a tomar-se
progressivamente nada mais do que isso. O próprio Descartes
era demasiadamente bom cristao para considerar a Natureza um
Deus particular; mas, estranhamente, nunca lhe ocorreu que
reduzir o próprio Deus crista.o a nada mais do que a suprema
causa da Na tureza era fazer a exactamente a mesma coisa. As
conclus6es meta físicas resultam tao necessariamente dos seus
princípios que o próprio Descartes che gou imediatamente
aquelas que seriam as conclus6es últimas dos seus discípulos do
século XVIII, quando escreveu a seguinte frase: «Por Natureza,
considerada na sua ge neralidade, entendo agora nada mais do
que Deus ou a ordem e disposi9ao estabelecidas por Deus nas
coisas criadas»( 13).
O efeito histórico mais imediato desta teolo gía natural carte
siana foi novamente dissociar Deus enguanto objecto de culto
religioso de Deus enguanto primeiro princípio de inteligibilidade
filosófica. Daí o famoso protesto de Pascal: «O Deus dos
crista.os nao é um Deus que seja simplesmente o autor de
verdades mate máticas ou da ordem dos elementos; esse é o
ponto de vista de paga.os e epicuristas...; mas o Deus de
7
Abraao, o Deus de Isaac, o
7
DEUS E A FILOSOFIA
Deus de Jacob, o Deus dos cristaos é um deus de amor e de
conforto, um Deus que enche a alma e o corai;ao daqueles a
quem possui»(14). Num certo sentido pode dizer-se que os maiores
entre os sucessoresimediatos de Descartes fizeram tudo o que era
huma namente concebível para restaurar a unidade da teología
natural na base dos princípios cartesianos. Se falharam, como
receio que tenha acontecido, a raza.o do seu fracasso residiu no
facto de urna tal empresa ser em si mesma contraditória e,
consequentemente, de isso nao poder de modo algum ser feíto.
Se tivesse sido possível realizar com éxito essa tarefa,
Malebranche teria sido provavelmente o homem para o fazer.
Padre do Oratório e homem profundamente pio, quase um
místico, Malebranche reunía todas as condii;oes necessárias para
ter sucesso nesta experiéncia filosófica. Enguanto fisicista sentia-
se perfei tamente satisfeito com os princípios mecánicos
formulados por Descartes; enguanto metafísico elaborou urna
síntese original do cartesianismo e do agostinianismo que
postulava Deus como a única fonte de eficácia causal, tanto na
ordem do conhedmento humano como na ordem da causalidade
física; enguanto teólogo, defenderla que Deus age sempre em
conformidade com o que Ele é e que o único objectivo de Deus
na Sua acc;:ao é a Sua própria glória na pessoa de Jesus Cristo.
O que é Deus, pergunta Male branche, senao o Ser em si
mesmo? «Penso que te compreendo correctamente», dizAriste
num dos diálogos de Malebranche «estás a definir Deus tal como,
ao falar a Moisés, Ele se definiu a Si próprio: «Deus é Aquele
que é»(15). Nao será este, podemos per guntar, o verdadeiro e
genuíno Deus cristao?
Sem dúvida que é. Um Ser infinitamente perfeito, o Deus de
Malebranche «é para Si próprio a Sua própria luz, Ele descobre
na Sua própria substancia as esséncias de todos os seres e todas as
suas possíveis modalidades e nas Suas decisoes a sua existéncia
bem como todas as suas modalidade reais»(16). Nao há urna
única
7
cap. V III, sec. 10, p. 182.
7
DEUS E A FILOSOFIA MODERNA
palavra na sua definic;ao que nao se pudesse aplicar igualmente
ao Deus de Sao Tomás de Aquino. Longe de concordar com
Descartes que Deus crie livrementeverdades eternas,
Malebranche recupera totalmente a doutrina agostiniana de um
Deus que conhece todas as coisas, tanto as reais como as
possíveis, através do conhecimento das suas próprias Ideias
eternas e que conhece as suas Ideias através do conhecimento da
sua própria substancia. Aqui, contudo, está a falha frouxa, por
onde o espírito cartesiano invadiu aos poucos a teología natural
de Malebranche. De certo modo, um Deus que nada vé senao a
sua própria substancia e que vé aí todos os seres juntamente com
as suas relac;6es inteligíveis é o aposto do Deus de Descartes.
Mas, curiosamente, a diferenc;a entre estes dois Deuses <leve-se
ao facto de Malebranche ter cartesianizado cui-dadosamente
aquele que era, para si, o insuficientemente cartesiano Deus de
Descartes. O mundo de Descartes f ora um mundo de leis
inteligíveis, estabelecidas pela vontade arbitrária de um Deus
omnipotente; a originalidade de Malebranche foi conceber Deus
como um mundo infinito de leis ínteligíveis. Nada se parece
mais com o supremo Intelecto de Plotino do que a Palavra divina
de Malebranche. Muitos historiadores diriam que sao o mesmo.
De qualquer modo, sao tao semelhantes que quase se poderia
definir a Palavra de Malebranche como o Intelecto plotiniano
que se converteu em cartesiano. Em suma, com Malebranche, o
próprio Criador tem de se submeter ao mesmo ti po de
inteligibilidade que o Deus de Descartes impos livremente as
coisas criadas.
O resultado líquido da aventura metafísica de Malebranche foi
a emergéncia de um Deus sobrenatural cuja vida interior foi
concebida de acordo com o modelo de um mundo cartesiano.
Ao conhecer simplesmente em si mesmo todas as suas possíveis
participac,;6es finitas, o Deus de Malebranche conhece todas as
coisas concebíveis e todas as suas relac;6es concebíveis.
Conhece todas as rela96es quantitativas como estando incluídas
na sua ideia simples e única de extensao inteligível. Por outras
palavras, a física de Deus é a mesma de Descartes. E como
poderia ser de outro modo? Como o único mundo verdadeiro é o
mundo geométrico de Descartes, onde tudo pode ser ex plicado
apenas através das propriedades de extensao no espac;o, o
próprio Deus pode saber e criar matéria apenas através da ideia
inteligível de extensao. Como todas as verdades especulativas
tém efeíto sobre as relac;6es de
7
DEUS E AFILOSOFIA
cALcu:-.w,1. o mundo de matéria é conhecido por Deus, tal como o
próprio Descartes pensava que era, através deste simples
conheci mento de todas as possíveis relac;;oes de extensa.o.
Como poderemos entao explicar o facto entre o número
infinito de possíveis sistemas de rela9oes no espa90, Deus ter
esco lhido co..,1:.,uucuLc aquele em que vivemos para o criar?
Areposta de Malebranche a esta pergunta é que, para além das
rela9oes de quantidade, existem relac;:oes de perfeii;:ao. Dois e
dois sao quatro é urna rela9ao de quantidade; o hornero é
superior aos animais é urna relac;;ao de perfei9ao. Ora, tal corno
as relac;:oes quantitativas sao puramente especulativas ern
género, as rela9oes de perfei<;:ao sao práticas por defini9ao. O
que nos parece melhor é aquilo que nos parece mais cativante. O
mesmo se passa com Deus. Tomadas no seu conjunto, todas as
possíveis rela9oes de perfei9ao entre todos os seres possíveis
formam um sistema infinito a que cha mamos Ordem. Ora,
«Deus ama intransigentemente esta Ordem imutável, que
consiste e pode consistir apenas nas relac;:oes de per fei9ao que
estao entre os seus atributos, bem como entre as ideias incluídas
na sua própria substancia». Portanto, Deus nao podia amar nem
desejar qualquer coisa que contrariasse esta Ordem eterna e
absoluta sem amar e desejar contra a sua própria perfei9ao, o que
é ímpossível Foi por isso que Deus criou este mundo único tal
como ele é. Nao é, absolutamente falando, o mundo mais perfeito
possível, mas é pelo menos o mundo mais perfeito que Deus
poderia criar, dado que teria de ser um mundo regido por leis
universais, uniformes e inteligíveis (18). Urna acumula9ao de
coisas individualmente perfeitas nao poderia ser um todo nem
poderla ser um mundo, porque nao seria urna ordem de coisas
regulada por leis.
Talvez a melhor de maneira de compreendermos o Deus de
Malebranche seja fazermos a nós próprios esta pergunta:
assumin do que o mundo cartesiano é o mais inteligível de
todos, por que é que Deus escolheu apenas esse para o criar?
Aresposta é natural mente porque Deus é supremamente
inteligente, nao podendo deixar de fazer o que Descartes teria
feíto se Descartes fosse Deus. Surpreendentemente, foi mesmo
desta maneira que Descartes colocou a questao no início do seu
tratado inacabado sobre «O
7
pensamento características do seu próprio sistema, a posic;ao de
Malebranche permaneceu substan-
7
DEUS E A FILOSOFIA
cialmente a mesma: «Nao se pode ver a essencia do Infinito
sem a sua existencia, a ideia de Ser sem ser»(1 9). Pela mesma
raza.o, essa foi também a posi9ao de Leibniz, cuja prava
dilecta da existencia de Deus o postula como a única causa
concebível das essencias, e portanto como o Ser necessário cuja
esséncia inclui existencia, «ou em quem a possibilidade é
suficiente para produzir realidade». Difícilmente se poderla
desejar urna fórmula rnais perfeita da prirnazia da esséncia
sobre a existencia: «apenas Deus ou o Ser Necessário tern esta
prerrogativa, que se ele for possível [ou seja: se a sua esséncia
for concebível sern contradi9ao] ele tern neces-sariamente de
existir»(2º).
Se tornarmos ern considera9ao que Deus é esse Ser cuja pos
sibilidade só por si produz a sua realidade, nao nos
surpreendere rnos ao tornar conhecirnento de que o mundo
criado por tal Deus é também o único que esse Deus podia ter
criado. A melhor defi nü;ao do Deus leibniziano é urn ser
absolutamente perfeito (21). Corno tal, o Deus de Leibniz
tarnbérn deve ser urn Deus infinita mente generoso, e porque,
pelo menos moralmente falando, dificil mente consegue impedir-
se de comunicar a sua própria perfei9ao, ele tem de criar. Mas
um Deus perfeito só pode criar o melhor mundo possível. Entre
as séries infinitas de mundos possíveis, é óbvio que o melhor
será aquele em que for atingida a maior riqueza possível de efeitos
através dos rneios mais simples possíveis. Corno o próprio
Leibniz afirma, é isto que os matemáticos chamam um
problema de maximum e mínimum. Tais problemas sao
susceptíveis
de urna única solu9ao. Consequentemente, o melhor mundo
possível é exactamente aquele ern que estamos (22). De facto,
urna certeza rnuito gratificante, pelo menos enguanto durasse,
mas Voltaire fariacom que ela nao sobrevivesse ao terramoto de
Lisboa. Contudo, a dificuldade metafísica nao residía aí, mas
antes no facto de Leibniz pretender fazer-nos aceitar como ser
supremo um Deus que era apenas urna natureza. Com efeito, o
Deus da Monodalogia era apenas o Bem de Platao,
solucionando o problema de que mundo criar através do
cálculo infinitesimal
7
(2°) Leibniz, Monadología, nn. 44, 45, em Discourse on Metaphysics,
Correspondence withArnauld and Monadology (1918), p. 258.
(21) Leibniz, Díscourse on Metaphysics, cap. I, p. 3.
(22) lbid., cap. V, pp. 8-9.
7
DEUS E A FILOSOFIA MODERNA
recentemente descoberto por Leibniz. Dos sucessores de
Descartes, o maior metafísico foi Espinosa, porque, com ele,
alguém disse por fim sobre Deus o que o próprio Descartes devia
ter pensado e
<lito desde o início, se nao como crista.o, pelo menos como filósofo.
Descartes ou teve raza.o do ponto de vista religioso, e nao a teve
do ponto de vista filosófico, ou teve raza.o do ponto de vista
filosófico e nao a teve do ponto de vista religioso; Espinosa ou
teve inteíramente razao ou nao teve nenhuma, tanto filosófica como
religiosamente. Espinosa nao tinha a religiao de um cristao nem a
de um judeu; nao tendo qualquer religíao, nao se podía esperar
que tivesse a filosofía de qualquer religiao; mas era um filósofo
puro, o que explica o facto de pelos menos ter tido a religiao da
sua filosofía. O seu Deus é um ser absolutamente infinito ou
subs táncia, que é «causa de si próprio» porque a sua «essencia
implica existéncia»(23). A primazia da esséncia é aquí tao
energicamente sublinhada que é impossível nao entender o seu
significado metafísico. Na doutrina de Descartes ainda podemos
inte1rngar
-nos sobre se a esséncia de Deus implica a sua existencia em si
ou apenas na nossa mente; na Ética de Espinosa nao é possível
nenhuma hesitai;ao. Tal como o círculo quadrado nao pode
existir porque a sua essencia é contraditória, Deus nao pode nao
existir porque, nas próprias palavras de Espinosa «a existencia de
subs táncia resulta apenas da sua natureza, porque isso implica
exis tencia»(24). Vamos entao conceber um universo onde a
existencia de toda e qualquer coísa expressa apenas o poder de
existir que pertence a sua natureza; apenas um ser pode ser
postulado como existindo necessariamente nele; é Deus ou o ser
absolutamente infinito que, porque «tem um poder infinito de
existencia a partir de si próprio», é ou existe absolutamente (25).
Mas um Deus que
«existe e age meramente a partir da necessidade da sua natu
reza» (26), nao é nada mais do que urna natureza. Ou melhor, ele
é a própria natureza: Deus sive Natura (27). Deus é a essencia
absoluta cuja necessidade intrínseca toma necessário o ser de
tudo o que é,
7
(24) Ética de Espinosa, Parte I, prop. 11, p. 8.
(25) !bid., p. 9.
(26) !bid., Parte I, Apéndice, p. 30.
(2') !bid., Parte IV, Prefácio, p. 142.
7
DEUS E A FILOSOFIA
de forma a que ele seja absolutamente tudo o que é, tal como, na
medida em que o é, tudo o que é «implica necessariamente a
esséncia eterna e infinita de Deus»(28) .
Espinosa foi muitas vezes rotulado como ateu pelos seus
adversários; também foi chamado, por um dos seus admiradores
alemaes, «um homem inebriado por Deus» (29). O que torna
Espinosa tao importante na história da teologia natural é que ambas
as apreciac;:oes sao verdadeiras. Sendo um ateu religioso, Espinosa
estava verdadeiramente inebriado pelo seu Deus filosófico (3°).
As religioes positivas, tal como ele as entendía, nao passavam
de su perstic;:oes antropomórficas inventadas pelos homens para
fins prátícos e políticos. Nao é de espantar que para os judeus,
assim como para os cristaos Espinosa parecesse sempre um
homem sem Deus. Mas nao nos podemos esquecer do reverso
da medalha. Como filósofo, e relativamente ao seu próprio Deus
filosófico, Espinosa é provavelmente o pensador mais pío que
alguma vez existiu. MarcoAurélio e Platao podiam talvez
concorrer com ele a
este títu lo; mas Platao nunca chegou ao ponto de adorar o Bem
e,quan a religiao de Marco Aurélio, esta nunca foi mais do
sua aceitac;:ao de urna ordem de coisas que ele nao podia
alterar. Espinosa podía fazer muito mais do que aceitar a
natureza; ao compreendé-la profundamente como realidade
absolutamente inteligível, estava a libertar-se progressivamente
da ilusao, do erro, do mal, da escravidao mental e a atingir essa
suprema beatitude humana que é inseparável da liberdade
espiritual. Pessoalmente, nao falaria com ligeireza da religiao de
Espinosa. Trata-se de urna resposta a cem por cento
metafísicamente pura pergunta de como alcanc;:ar a salvac;:ao
humana apenas através da filosofia. Estou perfeitamente
consciente do facto de que aquilo que eu considero a verdadeira
religiao, ou seja, o Cristianismo, lhe parecia apenas
mitologiainfantil. Mas estou-lhe infinitamente gratoporque,
depois de ter rejeitado toda a religiao positiva como pura
mitología, nao a substituiu por urna mitologia filosófica da sua
lavra. Espinosa é um judeu que transformou «Ele que é» num
mero «aquilo que é»;
7
(9) Novalís.
(3°) Sobre a crítica de Espinosa as religioes positivas ver o seu Tratado
Teológico-Político e, antes de mais nada, o inequívoco e franco manifesto da
sua posü;:ao na sua Ética, Parte I, Apéndice, pp. 30-36.
8
DEUS E A FILOSOFIA MODERNA
e podía amar «aquilo que é», mas nunca esperou poder ser amado
por aquilo. A única maneira de ultrapassarmos Espinosa é, de urna
rnaneira verdadeiramente espinosiana, libertarrno-nos da sua li
rnita9ao entendendo-a como urna limita9ao. Isto significa compre
ender novarnente o Ser enguanto existencia da essencia e nao en
guantoessencia da existencia; tocá-lo corno um acto e nao concebe
-lo como urna coisa. A experiencia metafísica de Espinosa é a
demonstra9ao concludente de pelo menos o seguinte: que qualquer
Deus religioso cujo verdadeiro nome nao seja «Ele que é» nada
mais é do que um mito.
Um dos objectos de contempla9ao mais deliciosos dos espe
cialistas da loucura humana é precisamente o mito que parece ter
assombrado tantas mentes desde meados do século XVII até ao
fim do século XVIII. «Assombrado» é aqui a palavra exacta, porque
este mito curioso nao era mais do que o fantasma filosófico do
Deus crista.o. Os deístas, cuja história foi por diversas vezes habil
mente esbos;ada mas nunca escrita na sua totalidade, sempre foram
considerados pelos cristaos como sendo no fundo simples ateus. O
«deísmo», como diz Bossuet, «é o ateísmo disfar9ado»(31). Urna
visa.o demasiado simplificada do caso, mas no entanto verdadeira,
pelo menos no que dizia respeito a qualquer religiao positiva. Os
deístas estavam em total acordo com Espinosa relativamente ao
carácter fabuloso de um qualquer Deus revelado. Por outro lado,
como o seu norne o indica, eles próprios tínham um Deus, mas
embora sendo muito enfáticos quanto ao facto de ele ser um
Deus conhecido de modo natural, nao o concebiam de modo algum
como os filósofos. O Deus dos deístas nao era um ptimeiro
princípio inteligível como o Bem de Plata.o, o Pensamento que
se pensa a si mesmo de Aristóteles ou a Substancia Infinita de
Espinosa. O Deus dos deístas, tal como Dryden o descreve na sua
famosa epístola Religio Laici; or, a Layman 's fate, era um Ser
supremo, univer salmente adorado por todos os homens do
mesmo modo, pelas únicas regras do Louvor e da Ora9ao;
contudo, um Deus que podia ser ofendido pelo crime, e que,
quando o homem pecava, esperava que este expiasse a sua culpa
através do arrependimento; finalmente
8
DEUS E A FILOSOFIA
mas nao menos importante, o seu Deus era um Deus cuja justi9a
tinha de ser finalmente cumprida, se nao nesta vida entao
noutra, na qual o bem colherá a recompensa e o mal o castigo
Dryden nao era um deísta, mas a sua descri9ao da doutrina
daqueles estava correcta; e qual era a doutrina deles senao esta
curiosa amostra de teratologia mental, um Cristianismo natural?
O próprio título do famoso livro de John Toland, publicado em
1696, continha todo o deísmo numa expressao; quase <liria que
o título deveria ter-se tomado na palavra de ordem deísta:
Christianity not Mysterious. O livro de Toland foi queimado pelo
carrasco em Dublin, em 1697, mas a teologia natural do deísmo,
tal como precedeu a publica9ao do livro, sobreviveu a sua
condena9ao. Representado em Inglaterra por muitos escritores,
Herbert de Cherburry (1581-1648), Charles Blount (1654-1693)
e Matthew Tindal (1653-1733), dominou o século XV III com
homens tao diferentes como Voltaire e Rousseau, até ao culto do
Ser Supremo ter sido oficialmente instituído por Robespierre na
altura da Revolu9ao Francesa.
Nao conhe90 maior tributo alguma vez prestado ao Deus do
Cristianismo do que a Sua sobrevivéncia nesta ideia, mantida
contra o próprio Cristianismo e com base na for9a da pura razao
natural. Durante quase dois séculos - eu próprio poderla citar
deístas franceses que conheci pessoalmente -este fantasma do
Deus crista.o foi acompanhado pelo fantasma da religiao crista:
um vago sentimento de religiosidade, urna espécie de
familiaridade confiante com um companheiro supremamente
bom, a quem outros bons companheiros podem recorrer quando
tém problemas: le Dieu des bonnes gens. Como objecto de culto
religioso, contudo, o Deus dos deístas era apenas o espectro do
Deus vivo de Abraao, de Isaac e de Jacob. Enguanto objecto de
pura especulac;ao filosófica,
8
DEUS E A FILOSOFIA MODERNA
era pouco mais do que mn mito cuja sentern;a de morte tinha
sido irrevogavelmente proferida por Espinosa. Tendo
esquecido,junta mente com «Ele que é», o verdadeiro sentido
do problema da existencia, Fontenelle,Voltaire, Rousseau e
tantos outros tiveram naturalmente de recorrer a
interpreta�i.io mais superficial do problema das causas
finais. Deus torna-se entao o «relojoeiro» de Fontenelle e
Voltaire,o engenheiro supremo da enorme máquina que é o
mundo. Em suma, Deus tornou-se outra vez aquilo que já tinha
sido no Timeu de Platao: um Demiurgo,sendo a única dife
ren<;a que desta vez, antes de come<;ar a organizar o seu mundo, o
Demiurgo consultara Newton. Tal como o Demiurgo de Plata.o,o
Deus dos deístas nao era mais do que um mito filosófico.
Curiosa mente, o que os nossos contemporáneos ainda
perguntam a si próprios ése este mito existe realmente ou nao.
Aresposta deles é que nao existe. E os nossos contemporáneos
tém razao ao dar essa resposta; mas o facto de nao haver
nenhum Demiurgo nao prova que nao haja nenhum Deus.
7
IV
DEUS E O PENSA]\1ENTO
CONTEMPORANEO
A posi<;ao actual sobre o problema de Deus é totalmente
dominada pelo pensamento de Immanuel Kant e Auguste Comte.
As suas doutrinas sao tao diferentes quanto duas doutrinas
filosóficas o podem ser. Contudo, a crítica de Kant e o positivismo
de Comte tém em comum o facto de, em ambas as doutrinas, a
noc;ao de conhecimento ser reduzida ao conhecimento científico e
a própria noc;ao de conhecimento científico ao tipo de inteligi
bilidade fornecida pela física de Newton. O verbo «conhecer»
significa entao exprimir relac;oes observáveis entre determinados
factos em termos de relac;oes matemáticas ( 1 ). Agora, por mais
que procuremos, nenhum facto responde a nossa noc;ao de
Deus. Como Deus nao é um objecto de conhecimento empírico,
nao ternos qualquer conceito dele. Em consequéncia, Deus nao
é objecto de conhecimento e aquilo a que chamamos teologia
natural nao passa de conversa fútil. Se a compararmos com a
revoluc;ao kantiana, a revoluc;ao cartesiana quase nao merece
esse nome. De Sao Tomás de Aquino a Descartes a distancia é
seguramente muito longa. Contudo, extremamente afastados um
do outro, encontram
-se em linhas de pensamento comparáveis. Entre Kant e eles, a
linha quebrou-se. Vindos depois dos Gregos, os filósofos crista.os
(') Para urna introdw;ao geral a crítica da metafísica de Kant e Comte, ver
É. Gilson, The Uníty ofPhílosophical Experience (Nova lorque, Scribner,
8
1937), Parte III, pp. 223-295.
8
DEUS E A FILOSOFIA
colocaram a si próprios a questao: como obter da metafísica
grega urna resposta aos problemas suscitados pelo Deus cristao?
Após séculas de trabalho paciente, umdeles encontrou por fim a
resposta e é por isso que vemos Sao Tomás de Aquino a utilizar
constante mente a linguagem deAristóteles para falar de coisas
cristas. Viudos depois dos filósofos cristaos, Descartes, Leibniz,
Malebranche e Espinosa viram-se confrontados com este novo
problema: como encontrar urna justifica9ao metafísica para o
mundo da ciéncia do século XVII? Enquanto cientistas
Descartes e Leibniz nao tinham urna metafísica própria. Tal
como Santo Agostinho e Sao Tomás de Aquino tinham ido
buscar a sua técnica aos Gregos, Descartes e Leibniz tiveram de
ir buscar a sua técnica aos filósofos cristaos que os precederam.
Dai o grande número de express6es escolásticas que encontramos
nas palavras de Descartes, Leibniz, Espinosa e mesmo de
Locke. Todos eles utilizam livremente a linguagem dos
escolásticos para exprimir opinioes nao escolásticas de um
mundo nao escolástico. Contudo, todos eles parecem procurar
numa meta física mais ou menos tradicional a justifica 9ao última
do mundo mecánico da ciencia moderna. Em suma, e isto é
verdade em rela9ao ao próprio Newton, o princípio supremo da
inteligibilidade da natureza permanece, para todos eles, o Autor
da Natureza, ou seja, Deus (2).
Com a crítica de Kant e o positivismo de Comte tudo se
torna totalmente diferente. Como Deus nao é um objecto
apreendido nas formas a priori da sensibilidade, do espa90 e do
tempo, nao pode ser relacionado com mais nada através da
categoria da causalidade. Dai, Kant concluí, Deus pode bem ser
urna ideia pura da razao, ou seja, um princípio geral de
unifica9ao das nossas cogni96es; ele nao é um objecto de
cogni9ao. Ou teremos de postular a sua existencia de acordo com
as exigencias da razao prática; a existencia de Deus torna-se
entao um postulado, nao é ainda urna cogni9ao. A sua maneira,
que era muito mais radical, Comte chegou imediatamente e de
forma idéntica a mesma con clusa.o. A ciencia, diz Comte, nao
tem utilidade para a no9ao de causa. Os cientistas nunca se
perguntam a si próprios por que acon tecem as coisas, mas como
é que elas acontecem. Ora, logo que
(2) Para urn debate contemporáneo sobre a noi;ao científica de causa, ver
8
Érnile Meyerson, Identité et réalité, (Paris, 1912), p. 42. De l'explication dans
les sciences (Paris, 1921), I, 57; Essais (París, 1936), pp. 28-58.
8
DEUS E O PENSAMENTO CONTEMPORÁNEO
substituímos a noi;ao positivista de rela9ao pela noc;ao
metafísica de causa, perdemos de imediato todo o direito de
perguntar por que as coisas sao, e por que sao o que sao. Pór de
parte todas essas quest6es, considerando-as irrelevantes para a
ordem do conheci mento positivo é, ao mesmo tempo, cortar a
verdadeira raiz de toda a especulac;ao relativamente a Deus e a
existéncia da Deus.
Foram precisos treze séculas para os pensadores cristaos
alcan9arem urna filosofia perfeitamente consistente do universo
do Cristianismo. Foram precisos dois séculas para que os
dentistas modernos conseguissem alcan9ar urna filosofía
perfeitamente consistente do universo mecanico da ciéncia
moderna. É muito importante que compreendamos este facto, na
medida em que ele mostra claramente onde podem realmente
ser encontradas as
posic;oes filosóficas puras.
Se o que procuramos é urna interpreta9ao racional do mundo
da ciéncia concebida como facto último, tanto a crítica do
próprio Kant como qualquer versao revista da sua crítica que
procure corresponder as exigéncias da ciéncia dos nossos días
deveriam fornecer urna resposta satisfatória a nossa pergunta.
Nao obstante, podemos preferir o positivismo de Comte ou
alguma versao revista do mesmo. Muitos dos nossos
contemporaneos subscrevem efec tivamente urna ou outra destas
duas atitudes possíveis. A neocrítica foi representada por homens
como Paulsen e Vaihinger na Ale manha e por Renouvier em
Frarn;a; e encontrou o que talvez seja a sua mais pura
formulac;ao nas obras do nosso contemporaneo, Professor Leon
Brunschvicg. Quanto ao positivismo, encontrou destacados
apoiantes em Inglaterra, por exemplo John Stuart Mill e Herbert
Spencer; em Frarn;a, Émile Littré, Émile Durkheim e toda a
escola sociológica francesa; e foi recentemente recuperado, sob
urna nova forma, pelo neopositivismo da escola de Viena.
Quaisquer que sejam as suas grandes diferen9as, todas estas
escalas tém pelo menos urna coisa em comum: que a sua
ambi9ao nao se estende para além da procura de urna
interpretai;ao racional do mundo da ciéncia concebido como
facto último e irredutível.
Mas se nao pensarmos que a ciéncia é adequada ao conheci-
8
DEUS E A FILOSOFIA
3
mento racional ( ), se sustentarmos que, para além dos
problemas com resposta científica, outros podem ser
racionalmente colocados que digam respeito ao universo, entao
de nada nos serve parar no Autor da Natureza do século XVIII.
Porque nos deveríamos con tentar com o fantasma de Deus
quando podemos ter Deus? Mas também nao há razao para
perdermos o nosso tempo a ponderar os respectivos méritos dos
deuses de Espinosa, Leibniz ou Des cartes. Sabemos agora o
que sao esses deuses: meros subprodutos resultantes da
decomposi<;:ao filosófica do Deus cristao vivo. Hoje a nossa
escolha nao é unicamente entre Kant e Descartes, é antes entre
Kant e Sao Tomás de Aquino. Todas as outras posi96es nao
passam de albergarias no caminho que leva tanto ao
agnosticismo religioso absoluto como a teología natural da
metafísica crista
Os albergues filosóficos sempre tiveram muita gente, mas
nao mais do que tém nos nossos tempos, especialmente no
campo da teologia natural. Este nao é um facto totalmente
inexplicável. O que dificulta o nosso regresso a Sao Tomás de
Aquino é Kant. O homem moderno fica fascinado pela ciéncia,
emalguns caso porque a conhece, mas em incomparavelmente
muitos mais casos porque sabe que, para aqueles que conhecem
a ciéncia, o problema de Deus nao parece susceptível de urna
formula9ao científica. Mas o que nos dificulta o caminho até
Kant é, se nao o próprio Tomás de Aquino, pelo menos toda
urna ordem de factos que proporcionam urna base para a sua
teología natural. A parte de qualquer demons tra9ao filosófica da
existencia de Deus, existe a teología natural espontánea. Urna
tendencia quase instintiva, observável na maioria dos homens,
parece convidá-los a interrogarem-se de tempos a tempos se,
afinal, nao haverá um ser invisível como aquele a que
chamamos Deus. A objec9ao actual de que esse sentimento nao
é mais do que a sobrevivencia em nós de mitos primitivos ou da
nossa educa9ao religiosa inicial nao tem grande for9a. Os mitos
primitivos nao explicam a fé humana na existencia da
Divindade, o contrário é que é obviamente verdade. Urna
educa9ao religiosa inicial nao é explica9ao suficiente para as
perguntas que por vezes surgem na mente dos homens sobre a
realidade ou irrealidade de Deus. Alguns de nós receberam urna
educa9ao decididamente anti
8
-religiosa; outros nem sequer tiveram qualquer educa9ao religiosa;
8
DEUS E O PENSAMENTO CONTEMPORÁNEO
e há ainda alguns que, tendo em tempos recebido urna
educac;ao religiosa, nao conseguem encontrar na sua memória
qualquer motivo para pensar demasiado seriamente em Deus (5).
Os convites naturais para que o homem aplique a sua inteligencia
na resolw;ao do problema vem de origens muito diversas. E sao
exactamente as mesmas origens que outrora fizeram surgir nao
apenas a mitología grega mas todas as outras mitologias. Deus
oferece-se espontanea mente a maioria de nós, rnais corno urna
presem;a confusamente sentida do que corno resposta a
qualquer problema, quando nos encontramosconfrontados corn
a vastidao do oceano, corn a pureza tranquila das rnontanhas ou
corn a vida misteriosa de urna noite de Verao estrelada. Longe
de serern sociais na sua essencia, estas tenta96es fugazes de
pensar ern Deus geralmente visitam-nos nos nossos momentos
de solidao. Mas nao há solidao rnais solitária do que a de urn
hornern sofrendo urna profunda dor ou confrontado corn a
perspectiva trágica do seu firn eminente. «Morremos
sozinhos», afirrna Pascal. Talvez seja por essa raza.o que tantos
homens finalmente encontram Deus esperando por eles no
limiar da rnorte.
E o que provarn esses sentirnentos? Absolutamente nada.
Nao sao pravas mas factos, os próprios factos que praporcionam
aos filósofos a possibilidade de fazer a si próprios perguntas
concretas relativamente a possível existencia de Deus. Tal corno
essas experiencias pessoais precedern qualquer tentativa de
pravar que há um Deus, elas sobrevivem a nossa incapacidade
de o pravar. Pascal nao foi rnuito longe no que se refere as
chamadas pravas da existencia de Deus. Para ele, era tao
incornpreensível que Deus existisse corno era incornpreensível
que Deus nao existisse; entao ele apostarla sirnplesrnente que
Deus existe - urna aposta de facto segura, já que há muito a
ganhar e nada a perder. Assim, apostar nao é conhecer,
especialmente nurn caso ern que, se perdermos, nao podernos
esperar sabe-lo. Todavia, Pascal estava determinado a apostar
naquilo que nao podia saber. Do mesmo modo, depois de provar
na sua Crítica da Razao Pura que a existencia de Deus nao podia
ser dernonstrada, Kant continuava a insistir em manter Deus,
pelo menos corno ideia unificadora na ordem da razao
8
DEUS E A FILOSOFIA
especulativa e como postulado na ordem moral da razao
prática. Pode mesmo parecer verdadeiro que, pela sua própria
natureza, a mente humana seja igualmente incapaz de provar a
existencia de qualquer Deus e de «fugir ao seu instinto
profundamente enraizado de personificar os seus conceitos
intelectuais»(6). Quer o imagi nemos como o resultado do
julgamento espontáneo da razao, com Sao Tomás de Aquino; ou
como ideia inata, com Descartes; ou urna intui9ao intelectual,
com Malebranche; ou urna ideia resultante do poder unificador da
razao humana, com Kant; ou um fantasma da imaginas;ao
humana, com Thomas Huxley, esta nos;ao comum de Deus
existe como facto praticamente universal, cujo valor
especulativo pode ser contestado, mas cuja existencia nao pode
ser negada. O único problema para nós continua a ser
determinar o real valor desta noc;ao.
A primeira vista, o caminho mais curto para o testar parece
ser julgá-lo do ponto de vista do conhecimento científico. Mas o
caminho mais curto pode nao ser o mais seguro. Este método
baseia-se na suposic;ao de que nada pode ser realmente
conhecido a nao ser que o seja cientificamente, o que está
longe de ser urna proposis;ao evidente. Os nomes de Kant e de
Comte tém muito pouca importancia, se é que tém alguma, na
história da ciencia moderna; Descartes e Leibniz, dois dos
criadores da ciencia moderna, também foram grandes
metafísicos. A simples verdade pode ser a de que enguanto a
raza.o humana permanece a mesma ao lidar com diferentes
ordens de problemas, deve, nao obstante, abordar essas diversas
ordens de problemas de outras tantas formas diferentes. Seja qual
for a nossa resposta final ao problema de Deus, todos
concordamos que Deus nao é um facto empíricamente
observável. A experiéncia mística em si é ao mesmo tempo indi
zível e intransmissível; daí que nao possa tornar-se numa expe
riéncia objectiva. Se, ao falarmos na ordem do puro
conhecimento natural, a proposic;ao «Deus existe» fizer qualquer
sentido, tem de ser devido ao seu valor racional como resposta
filosófica a urna pergunta metafísica.
Quando um homem dá consigo a interrogar-se sobre a
existencia de um ser como Deus, ele nao está consciente de estar
a formular
8
(6) Thomas Henry Huxley, The Evolution of Theology: an
Anthropological Study, confonne citado em Julian Huxley, Essays in Popular
Science (Londres, 1937), p. 123.
8
DEUS E O PENSAMENTO CONTEMPORÁNEO
urn problemacientífico nern espera dar-lhe urna soluc;:ao
científica. Os problemas científicos estao todos relacionados corn
o conheci rnento do que as coisas realmente sao. Urna
explicw;ao científica ideal do mundo seria urna explicac;:ao
racional exaustiva daquilo que o mundo realmente é; mas o
porqué da existencia da natureza nao é um problema científico,
porque a sua resposta nao é sus ceptível de verificac;:ao empírica.
A noc;:ao de Deus, pelo contráiio, aparece-nos sempre na histólia
corno resposta a algum problema existencial, ou seja, como o
porqué de determinada existencia. Os deuses gregos erarn
constantemente invocados para explicar diversos
«acontecimentos» da história dos homens e das coisas. Urna
interpretac;:ao religiosa da natureza nunca se preocupa corn o que
as coisas sao - isso é urn problema para os dentistas mas
preocupa-se multo corn as quest6es pelas quais as coisas sao
aquilo que sao, e até mesmo por que raza.o elas acontecem. O
Deus judaico-cristao que nos é apresentado na Bíblia está aí
irnediata rnente postulado corno a explicac;:ao última para a
existencia do hornem, para a condic;:ao presente do hornern na
terra, para todos os acontecimentos sucessivos que constítuem a
história do povo judeu, bern como para estes acontecimentos
cruciais: a Encarna9ao de Cristo e a Redenc;:ao do hornern pela
Grac;:a. Qualquer que seja o seu valor essencial, trata-se de
respostas existenciais a perguntas existenciais. Como tal, nunca
podem ser traduzidas em termos de ciencia, mas apenas ern
termos de urna metafísica existencial. Por isso, estas duas
consequencias imediatas: que a teolo gia natural está sujeita nao
ao método da ciencia positiva mas ao método da metafísica, e
que pode interrogar correctamente os seus próprios problemas
apenas no quadro da metafísica existencial.
Destas duas conclus6es, a prirneira está condenada a perma
necer muito impopular. Para dizer toda a verdade, parece
perfeita
mente absurdo dizer, e ridículo rnanter, que os problemas meta
físicos mais elevados nao dependem de forma alguma das
respostas dadas pela ciencia as suas próprias questoes. O ponto
de vista mais comurn sobre este assunto está bem expresso nas
palavras de urn astrónomo moderno: «Antes dos filósofos terern
direito a falar, deveria ser pedido a ciencia para dizer tudo o que
sabe sobre a verificai;ao de factos e de hipóteses provisórias. E só
entao pode a
8
C) Sir James Jeans, The Mysterious Universe (Londres, 1937), Prefácio, p.
VII. A re!a9ao da filosofía com a ciéncia é curiosamente mal compreendida por
8
DEUS E A FILOSOFIA
passar legítimamente para o reino da
filosofia»(7). Concordo que isto me parece bastante mais sensato
do que aquilo que eu próprio disse. Mas quando as pessoas se
comportam como se aquilo que eu disse fosse falso, o que
acontece? John Toland decidiu discutir problemas religiosos
recorrendo a um método que foi buscar a filosofia natural. O
resultado foi o seu livro, que já mencionei: Christianity Not
Mysterious. Ora, se o Cristianismo nao é misterioso, o que é?
Em 1930, na sua conferéncia Rede, proferida perante a
Universidade de Cambrigde, Sir James Jeans, decidiu abordar os
problemas filosóficos a luz da ciéncia con temporánea. O
desfecho final foi o seu livro mais popular: The Mysterious
Universe. Mas se o universo da ciéncia é misterioso, o que nao
o é? Nao precisamos da ciéncia para nos dizer que o
universo é de facto misterioso. Os homens sabem isso desde os
primórdios da rai;a humana. A verdadeira e adequada funi;ao da
ciéncia é, pelo contrário, fazer tanto quanto possível que o universo
nos parei;a cada vez menos misterioso. A ciéncia fá-lo e fá-lo de
forma magnífica. Qualquer rapaz de dezasseis anos, em qualquer
das nossas escolas, sabe hoje mais sobre a estrutura física do mundo
do que Sao Tomás de Aquino, Aristóteles, ou Platao alguma vez
souberam. Pode dar explica¡_;oes racionais de fenómenos que
outrora pareciam as maiores mentes mistérios intrincados. O
universo da ciéncia como ciéncia consiste exactamente naquela
parte do universo total a qual, gra¡_;as a razao humana, os
mistérios foram retirados.
Entao, como é possível que um dentista se possa sentir justi
ficado ao designar este universo como «universo misterioso»? Será
alguns cientistas. É verdade que ,mesta era poucos estariam dispostos a basear a
sua vida numa filosofía que para o homem de ciéncia é manifestamente falsa».
Mas nao resulta daí que «a ciéncia tome assim o lugar da funda9ao em que a
estrutura das nossas vidas deve ser construída, se quisermos que essa estrutura
seja estável». Artbur H. Compton, The Religion ofa Scientist (Nova Iorque,
The JewishTheological Seminary ofAmerica, 1938), p. 5. Em primeiro lugar, a
própria ciéncia nao é estável. Em segundo, do facto de que nenhum
conjunto de proposi96es pode ser defendido como verdadeiro se contradisser
outro conjunto de proposi96es que seja manifestamente verdade, nao resulta que
este segundo conjunto de proposi96es tenha de dar a funda9ao sobre a
qual as nossas vidas serao edificadas. É bem possível, por exemplo, que as
proposi96es filosóficas sobre as quais ternos de construir as nossas vidas sejam
bastante independentes de todos os conjuntos concebíveis de proposi96es
8
científicas.
8
DEUS E O PENSAMENTO CONTEMPORÁNEO
porque o verdadeiro progresso da ciéncia o coloca perante
fenó menos cada vez mais difíceis de observar, cujas leis sao
cada vez mais difíceis de formular? Mas o desconhecido nao é
necessaria mente um mistério; e a ciéncia desenvolve-se
naturalmente com base no pressuposto de que nao o é, porque
é pelo menos cog noscível, mesmo que ainda nao o conhe¡;amos.
A verdadeira razao por que este universo parece misterioso para
alguns dentistas é que, ao confundirem quest6es existenciais,
ou seja metafísicas, com questoes científicas, eles pedem a
ciéncia para lhes responder. Naturalmente nao obtém quaisquer
respostas. Entao ficam confusos e dizem que o universo é
misterioso.
A cosmogonía científica de Sir James Jeans apresenta urna
co lec¡;ao esclarecedora dessas perplexidades. O seu ponto de
partida é a real existéncia de inumeráveis estrelas «vagueando
pelo espa¡;o» a distancias tao grandes urnas das outras «que é um
acontecimento de urna raridade quase inimaginável que urna estrela
chegue alguma vez perto de outra estrela». Contudo, ternos de
«acreditar» que
«há cerca de dois mil milh6es de anos, este acontecimento raro
tenho tido lugar e que urna segunda estrela, vagueando cegamente
pelo espa90», tenha por acaso chegado tao perto do sol que
acabou por dar origem a urna vaga enorme na sua superficie.
Esta enorme vaga finalmente explodiu e os seus fragmentos,
ainda «girando em volta do seu pai-soL. sao os planetas,
grandes ou pequenos, sendo a nossa terra um deles». Estes
fragmentos ejectados do sol arrefeceram gradualmente; «com
o tempo, nao sabemos como, quando ou porqué, um desses
fragmentos em arrefecimento deu origem a vida». Daí a
emergéncia de um caudal de vida que culminou no homem.
Num universo em que o espa¡;o é mortal mente frio e grande
parte da matéria mortalmente quente, o apare cimento de vida
era altamenteimprovável. Nao obstante, «trope¡;á mos neste
universo, se nao exactamente por engano, pelo menos como
resultado do que pode ser apropriadamente descrito como
acidente». Segundo a conclusao de Sir James Jeans, foi esse «o
modo surpreendente através do qual, tanto quanto a ciéncia
presente nos pode informar, passámos a existir»(8).
Todos concordarao que tudo isto é muito misterioso, mas a
questao permanece: será isto ciéncia? Mesmo que, como o seu
8
(8) Sir James Jeans, op. cit., cap. I, pp. 11-12.
9
DEUS E A FILOSOFIA
autor evidentemente faz, as tomemos por «hipóteses provisóiias»,
poderemos considerar essas hipóteses como sendo, na
verdadeira acepc;ao da palavra, científicas? Será científicoexplicar
a existencia do homem através de urna série de acidentes, em
que cada um deles é mais improvável do que o outro? A verdade
é simplesmente que, sobre o problema da existencia do homem,
a astronomía moderna nao tem rigorosamente nada a dizer. E a
mesma conclusa.o é válida se a astronomía moderna
acrescentam10s a física moderna. Quando, depois de descrever o
mundo físico de Einstein, Heisenberg, Dirac, Lemaítre e Louis
de Broglie, Sir James Jeans mergulha finalmente naquilo que,
pelo menosdestavez, sabe serem
«as águas profundas da metafísica», qual a conclusa.o a que
acaba por chegar? Que embora muitos cientistas prefiram a
nrn;ao de um «universo cíclico, o ponto de vista científico mais
ortodoxo» é que o universo deve a sua forma presente a urna
«criac,;ao» e que
«a sua criac;ao deve ter sido um acto de pensamento»C). De
acordo. Mas o que tem estas respostas a ver com Einstein,
Heisenberg ou com a justamente famosa galáxia de físicos
modernos? As duas doutrinas de um «universo cíclico» e de um
Pensamento supremo foram formuladas pelos filósofos pré-
socráticos, que nada sabiam sobre o que Einstein iiia dizer vinte
e seis séculos depois deles. A
«teoria científica moderna», acrescenta Jeans, «obriga-nos a
pensar no ciiador a trabalhar fora do tempo e do espac,;o, que
também fazem parte da sua criac;ao, tal como o artista que está
fora da sua tela»(1º). Porque é que a teoria moderna nos obriga a
dizer o que já foi dito, nao só por Santo Agostinho, que o nosso
dentista cita, mas também por inúmeros teólogos cristaos que
nao conheciam outro mundo para além do de Ptolomeu?
Claramente, a resposta filosófica de Sir James Jeans ao
problema da ordem do mundo nao tem absolutamente nada a ver
com a ciencia moderna. O que nao é de espantar, urna vez que
também nao tem absolutamente nada a ver com o conhecimento
científico.
Se analisarmos mais de perto, a questao inicial colocada por
Jeans levou-o imediatamente, nao apenas para águas profundas,
mas, cientificamente falando, para longe de qualquer hipótese
de
9
(9) /bid., cap. V, p. 182.
(1º) !bid., cap. V, p. 183.
9
DEUS E O PENSAMENTO CONTEMPORÁNEO
sondagem.
Perguntar por que, de urna infinidade de combina96es
possíveis de elementos físico-químicos, surgiu o ser livre e
pensante a que chamamos homem, é procurara a causa devido
qual o complexo de energias físicas que é o homem, realmente
é ou existe. Por outras palavras, é investigar as causas possíveis
da existéncia de organismos vivos e pensantes sobre a terra. A
hipótese de que substancias vivas possam vir a ser amanha
produzidas por bio químicos nos seus laboratórios é irrelevante
para a questao. Se alguma vez um químico conseguir produzir
células vivas ou algumas espécies de organismos elementares,
nada serámais fácil para ele do que explicar a razao por que
existem esses organismos. A sua resposta será: fui eu que os fiz.
A nossa interroga9ao nao é de modo algum: serao os seres
vivos e pensantes feitos de outra coisa que nao elementos
físicos? É antes: supondo que, em última análise, eles nao sao
constituídos por mais nada, como poderemos explicar a
existéncia da própria ordem de moléculas que produz aquilo a
que chamamos vida e pensamento?
Científicamente falando, tais problemas nao fazem sentido.
Se nao existissem seres vivos e pensantes, nao existiría ciencia.
Por isso nao haveria interroga96es. Mesmo o universo científico
de matéria inorganica é um universo estrutural; no que diz
respeito ao mundo de matéria organica, este apresenta por todo
o lado coordena9ao, adapta9ao e fun96es. Quando lhes
perguntam por que existem tais seres organizados, os dentistas
respondem: acaso. Qualquer pessoa pode executar por sorte urna
jogada brilhante numa mesa de bilhar; mas quando um jogador
faz urna série de cem, é urna justifica9ao muitofraca dizer que ele
teve sorte. Alguns dentistas sabem-no tao bem que substituem a
noi;:ao de acaso pela noc;ao de leis mecanicas, o que é
precisamente o seu oposto. Mas quando chega o momento de
explicarem como é que essas leis mecánicas deram origem a
seres vivos organizados, sao novamente a forc;ados a recorrer ao
acaso quanto razao última que é possível citar. «Os poderes
que influem no cosmos», diz Julian Huxley,
«sao, ainda que unitários, contudo subdivisíveis; e, embora sub
divisíveis, esta.o contudo relacionados. Sao os vastos poderes
da
natureza inorganica, neutros ou hostis ao homem. Porém,
9
deram origem a vida que evolui, cujo desenvolvimento, embora
cego e fortuito, se encaminhou no mesmo sentido geral que os
nossos desejos e ideais conscientes, dando-nos assim urna san9ao
externa
9
DEUS E A FILOSOFIA
para as nossas actividades direccionais. Isto, por sua vez, deu
origem a mente humana que, no seu decurso, está a mudar o
rumo da evolw;;ao através da acelerai;;ao»(1 e etc. ad it?
finitum. Por outras palavras, as únicas razoes ,.,,.__,1u,a,,a., que
podem levar o nosso jogador de bilhar a fazer urna série de cero
sao o facto de ele nao bilhar e que todas as hipóteses estarem
contra.
Se os cientistas, falando como cientistas, nao tero qualquer
resposta inteligível para este problema, por que é que alguns
deles parecem tao interessados em dizer disparates dobre o
assunto? A razao é simples e desta vez podemos ter a certeza de
que o acaso nao tero nada a ver coro a sua obstinai;;ao. Preferem
dizer qualquer coisa do que atribuir existencia a Deus partindo
do princípio de que existe um objectivo no universo. Há urna
justificas;ao para esta atitude. Tal como a ciencia pode destruir a
metafísica, também a metafísica pode destruír a ciencia. Tendo
precedido a ciencia no passado, fe-lo muitas vezes ao ponto de
evitar a sua ascensao e de bloquear o seu desenvolvimento.
Durante séculos, as causas finais foram erradamente tomadas
como explica96es científicas por tantas gera96es de filósofos que
hoje muitos cientistas continuam a considerar o receio das
causas finais como o princípio do saber científico. A ciencia está
assim a fazer coro que a metafísica sofra pelos séculos em que
esta se intrometeu nos assuntos da física e da biología.
Contudo, em ambos os casos, a verdadeira vítima do conflito
epistemológico é apenas urna: a mente humana. Ninguém nega
que os organismos vivos parecem ter sido designados ou
destinados a cumprir as várias fun96es relacionadas coro a vida.
Todos con cordam que esta aparencia pode ser apenas urna
ilusao. Estaríamos dispostos a tomá-la como ilusao se a ciencia
pudesse explicar o aparecimento da vida através das suas
explica96es habituais de tipo mecánico, em que nada mais está
envolvido para além das rela96es dos fenómenos observáveis de
acordo coro as propriedades geométricas do espai;;o e as leis
físicas do movimento. Pelo contrário, o que é mais notável é que
muitos dentistas defendem obstinadamente o carácter ilusório
desta aparencia, embora
9
lembra estranhamente a Teogonia de Hesíodo, em que tudo é sucessivamente
gerado a partir do Caos original.
9
DEUS E O PENSAMENTO CONTEMPORÁNEO
reconhe�am abe1tamente a sua incapacidade de imaginar
qualquer explica<_;:ao científica para a constitui<;:ao organica de
seres vivos. Logo que a física moderna deparou com os
problemas estruturaís colocados pela física molecular, viu-se
confrontada com estas dificuldades. Contudo, os cientistas
preferiram introduzir na física as nos;oes nao mecanicas de
descontinuidade e indetermina<;:ao em vez de recorrerem a
qualquer coisa como o desígnio. Numa escala muito maior,
vimos Julian Huxley explicar ousadamente a existéncia de
corpos organizados pelas mesmas propriedades da matéria
que, de acordo com o próprio, tornam infinitamente im
provável que esses corpos possamexistir. Porque é que esses
seres eminentemente racionais, os cientistas, preferem
deliberadamente as no96es simples de desígnio ou
intencionalidade na natureza, as no96es arbitrárias de fon;;a cega,
sorte, emergéncia, varia9ao súbita e outras semelhantes?
Sirnplesmente porque preferem urna completa auséncia de
inteligibilidade em vez da presem;;a de urna inteligibilidade nao
científica.
Parece que estamos a atingir finalmente o amago deste problema
epistemológico. Por muito ininteligíveis que sejam estas
no96es arbitrárias, sao pelo menos homogéneas relativamente
a um en cadeamentode interpreta96es mecanicas. Postuladas no
início deste encadeamento ou inseridas nele quando necessário,
proporcionam ao cientista as existéncias de que ele necessita
para saber. A sua irracionalidadeintrínseca exprime a
resisténcia invencível oposta pela existéncia a qualquer tipo de
explica9ao científica ( 12). Aceitando o desígnio ou a
intencionalidade como princípio de explíca<_;:ao possível, um
dentista introduziria no seu sistema de leis um elo totalmente
heterogéneo relativamente ao resto da cadeia. Ele entrela9aria as
causas metafísicas da existéncia dos organismos com as causas
físicas que tem de atribuir tanto a sua estrutura como ao seu
funcionamento. Ainda píor, ele pode sentir-se tentado a confundir
as causas existenciais dos organismos vivos pelas suas causas
eficientes e físicas, regressando assim aos velhos tempos em que
os peixes tinham barbatanas porque tinham sido feítos
(12) Anítida antipatía da ciéncia moderna em relac;:ao a noc;:ao de causa eficiente está
íntimamente relacionada com a característica nao existencial das explicac;:oes
9
científicas. É da esséncia de urna causa eficiente que qualquer coisa passa a ser
ou existir. Uma vez que relac;:ao de efeito para a causa é existencial e nao
analítica, parece ao espírito científico urna espécie de escandalo que deve ser
eliminado.
9
DEUS E A FILOSOFIA
para nadar. Ora, pode nmito bem ser verdade que os peixes
tenham sido feitos para nadar, mas ao sabe-lo, ficamos a saber
tanto sobre como sobre avi6es ao sabermos que eles sao feítos
para
voar. Se nao tivessem sido feitos para voar, nao haveria já
que serem máquinas voadoras é a sua própria defini9ao; mas
pre "'"..,"'v" de pelo menos duas ciencias, aerodinámica e
mecánica, para nos explicar como é que eles voam. Urna causa
final pressupós urna existencia cuja ciencia pode só por si
pressupor as leis.
A heterogeneidade destas duas ordens foi notavelmente ex
pressa por Francís Bacon, quando este afirmou, ao falar de
causas que «na física, elas sao nao sao pertinentes e como
obstáculo
ao navío, impedindo as ciencias de manterem a sua rota de aper
fei<;oamento»( 13). A sua esterilidade científica é
particularmente completa num mundo como o da ciencia
moderna, em que as esséncias foram reduzidas a meros
fenómenos e eles próprios reduzidos a ordem daquilo que pode
ser observado. Os cientistas modernos vivem ou fingem viver
num mundo de meras aparencias, em que aquilo que aparece é a
aparencia do nada. Todavía, o facto de as causas finais serem
científicamente estéreis nao implica a sua desqualificac;ao
enguanto causas metafísicas e rejeitar respostas metafísicas, a um
problema apenas porque elas nao sao científicas é
deliberadamente mutilar o potencial de conhecimento da mente
humana. Se a única maneira inteligível de explicar a existencia
de corpos organizados for a de admitir que existe desígnio ou
intencio nalidade na sua origem, admitamo-lo entao, se nao como
cientistas pelo menos como metafísicos. E como as no96es de
desígnio e intencionalidade sao para nós inseparáveis de
pensamento, pres supor a existencia de um pensamento como
causa da intencionali dade de corpos organizados é também
pressupor o fim de todos os fins ou um fim último, ou seja,
Deus.
Nem vale a pena dizer que esta é exactamente a
consequencia que os adversários das causas finais pretendem
negar. «Inten9ao», diz Julian Huxley, «é um termo psicológico;
e atribuir inten9ao a um processo apenas porque os seus
resultados sao de algum modo semelhantes aos de um processo
9
verdadeiramente intencional é
Francís Bacon, The Dignity and Advancement of Learning, Livro III,
cap. IV, org. J. E. Creighton (Nova Iorque, 1900), p. 97. Cf. p. 98: «Contudo,
estas causas finais nao sao falsas ou indignas de estudo no ámbito da metafísica,
mas a sua incursao nos limites das causas físicas causa grande devasta9ao
nessa área».
1
DEUS E O PENSAMENTO CONTEMPORÁNEO
completamente injustificado, além de ser urna mera projeci;:ao das
nossas próprias ideias na economía da natureza»( 1 4). É certamente
isto que fazemos, e porque nao haveríamos de o fazer? Nao
pre cisamos de projectar as nossas próprias ideias na
economía da
natureza; elas pertencem-lhe por direito próprio. As nossas
próprias ideias estao na economía da natureza porque nós próprios
estamos nela. Cada urna das coisas que o homem faz
inteligentemente é feita com urna inteni;:ao e com um
determinado objectívo, que é a causa final por que o faz. O que
quer que um trabalhador, um engenheiro, um industrial, um
escritor ou urn artista fai;:am nao é mais do que a realizai;:ao,
através de meios seleccionados inteligen temente, de um
determinado fim. Nao existe qualquer exemplo conhecido de
urna máquina auto-construída que tenha sur gido
espontaneamente em virtude das leis mecánicas da
matéria.Através do hornem, que é parte integrante da natureza,
também a inten cionalidade é certamente parte integrante da
natureza. Entao, em que sentido é que ela éaarbitrária, sabendo
partida que onde há organizai;:ao há também urna intenc;ao,
para concluir que há urna intenc;ao ondequerquebaja urna
organizai;:ao? Compreendo perfei tamente o cientista que rejeitar
tal conclusao como nao científica. Também compreendo o
cientista que me disser que, como cientista, nao lhe compete
chegar a qualquer conclusao quanto a causa possível da existencia
de corpos organizados. Mas, realmente nao consigo
compreender em que sentido a minha conclusao, se eu a quiser
inferir, é «um erro comum».
Por que haveria de ser um erro concluir que há inteni;:ao no
universo, com base no progresso biológico? Porque, como res
ponde Julian Huxley, isto «pode ser demonstrado como sendo
um produto tao natural e inevitável da luta pela existencia
como é a adaptai;:ao, e como nao sendo mais misterioso do que,
por exemplo, o aumento da eficácia tanto do projéctil perfurante
como da blin dagem, ao longo do século passado»(l5). Será que
Julian Huxley sugere que a blindagem se tornou
a espontaneamente mais espessa medida que os obuses se
tornavam mais fortes durante o século passado? Por outras
palavras, será que ele defende que a inten cionalidade está tao
ausente da indústria humana como está do resto do mundo?
1
Ou será que defende que o resto do mundo está
1
DEUS E A FILOSOFIA
tao cheio de intencionalidade como o está obviamente a
indústria humana? Em nome da ciéncia ele defende ambas as
posic;oes, nomeadamente, que as adapta¡_;:oes nos organismos
nao sao mais misteriosas, onde nao há intencionalidade para as
explicar, do que o é a adapta¡_;:ao na indústria humana, onde por
todo o lado a intencionalidade a explica. Que as adapta96es que
se devem a urna luta sem inten¡_;:ao pela vida nao sao mais
misteriosas do que as adapta96es que se devem a urna luta com
intens;ao - se esta pro posi¡_;:ao é um «erro comum», nao sei,
mas parece certamente um erro. É o erro de um dentista que,
dado que nao sabe formular questoes metafísicas, recusa
obstinadamente as suas respostas metafísicas correctas. No
lnferno do mundo do conhecimento existe um castigo especial
para este tipo de pecado; a reincidéncia na mitología. Mais
conhecido como um prestigiado zoólogo, Julian Huxley também
merece a honra de ter acrescentado o deus Luta a já grande
fam11ia dos olimpianos ( 16).
O mundo que perdeu o Deus cristao só pode assemelhar-se
ao mundo que ainda nao o encontrou. Tal como o mundo de
Tales e de Plata.o, o nosso mundo moderno está «cheio de
deuses». Nele existem a cega Evolu9ao, a lúcida Ortogénese, o
benevolente Progresso e outros cujo o nome é mais aconselhável
nao mencionar. Para qué ferir desnecessariamente os sentimentos
dos homens que, hoje, os transformam num culto? Contudo, é
importante perce bermos que a humanidade está condenada a
viver cada vez mais sob o feitic;o de urna nova mitología
científica, social e política, excepto se exorcizarmos
resolutamente estas no96es confusas cuja influencia na vida
moderna se torna aterradora. Milhoes de homens morrem de fome
e sangram até a morte porque duas ou tres destas
abstrac96esdeificadas, pseudo-científicas ou pseudo-sociais estao
agora em guerra. Porque quando os deuses lutam entre si, há
homens que tem de morrer. Nao poderíamos nós fazer um
esforc;o para compreender que a evolu9ao deve ser em grande
parte aquilo que quisermos que seja? Que o Progresso nao é
urna lei que se cumpre automaticamente mas algo para ser
pacientemente con quistado pela vontade dos homens? Que a
Igualdade nao é um facto consumado mas um ideal de que nos
<levemos progressiva mente aproximar através da justi9a? Que
a Democracia nao é a
9
(16) Sobre as dificuldades filosóficas ocasionadas por esta nrn;ao de evolw;:ao,
ver W. R. Thompson, Science and Commom Sense, pp. 216-232.
9
DEUS E O PENSAMENTO
CONTEMPORÁNEO
deusa condutora de algumas sociedades mas urna promessa
mag nífica que deverá ser cumprida por todos através do seu
desejo obstinado de amizade, se forem suficientemente fortes
para a fazer perdurar durante gera96es?
Penso que poderíamos, mas deveria haver primeiro urna
grande lucidez, e é aqui que apesar da sua incapacidade
proverbial a filosofia poderla constituir urna ajuda. O problema
de tantos dos nossos contemporáneos nao é serem agnósticos
mas antes serem teólogos pouco judiciosos. Os verdadeiros
agnósticos sao muito raros e nao prejudicam ninguém a nao ser
a si próprios. Tal como nao tem Deus, estes também nao tem
deuses. Muito mais comuns, infelizmente, sao esses pseudo-
agnósticos que, porque combinam conhecimento científico e
generosidade social com urna total falta de cultura filosófica,
substituem mitologías perigosas a teología natural, a qual nem
sequer compreendem.
O problema das causas finais é talvez o problema mais habi
tualmente discutido por estes agnósticos modernos. Foi por isso
que atraiu particularmente a nossa atengao. É contudo apenas
mais um entre os muitos aspectos do mais elevado de todos os
proble mas metafísicos, o do Ser. Para além da interrogagao:
«por que há seres organizados?», espreita urna mais profunda,
que coloco utilizando os termos do próprio Leibniz: por que há
alguma coisa em vez de nada? Mais urna vez compreendo
inteiramente um dentista que se recuse a colocar esta
interrogagao. Compreendo se ele me disser que a pergunta nao
faz sentido. Científicamente
9
pp. 156-157. Como substituto do «conceito metafísico de existéncia real», Sir
Arthur propoe um «conceito estrutural de existencia», que define nas pp. 162-
-166. De facto, há um conceito metafísico de ser, que nao é «vago» (p. 162),
mas analógico; quanto
julgamento.
a existencia real, nao é objecto de conceito mas de
9
DEUS E A FILOSOFIA
falando, nao faz ( 1 7). Metafísicamente falando, faz. A ciencia
pode explicar muitas coisas deste mundo; pode um dia explicar
tudo o que é realmente o mundo dos fenómenos. Por que é que
alguma coisa é ou existe, a ciencia nao sabe, precisamente
porque nem sequer sabe fazer a pergunta.
A esta interroga<;ao suprema, a única resposta concebível é
que toda e qualquer energía existencial, toda e qualquer coisa
que exista depende, para existir, de um puro Acto de existencia (
18
). De forma a ser a resposta última a todos os problemas
existenciais, esta causa suprema tem de ser a existencia
absoluta ( 19). Seudo
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DEUS E O PENSAMENTO CONTEMPORÁNEO
absoluta, essa causa é auto-suficiente; se cria, o seu acto criativo
tem de ser livre. Como cría nao apenas ser mas ordem, tem de
ser algo que pelo menos contenha eminentemente o único
princípio de ordem conhecido por nós através da experiéncia,
nomeadamente do pensamento. Mas urna causa absoluta, que
subsiste por si só e conhece nao é algo mas alguém. Em suma, a
primeira causa é o Uno em que coincidem a causa da natureza e
da história, um Deus filosófico que também pode ser o Deus de
urna religiao (2°).
Ir mais além seria cometer um erro equivalente ao de alguns
agnósticos. A incapacidade de tantos metafísicos de
distinguirem entre filosofia e religiao revelou-se nao menos
prejudicial a teologia natural do que a sua invasao pela ciéncia
pseudometafísica. A metafísica postula Deus como um puro
Acto de existéncia, mas nao nos fornece nenhum conceito da
Sua esséncia. Sabemos que Ele é; nao O compreendemos. Os
metafísicos mais simplistas levaram involuntariamente os
agnósticos a acreditar que o Deus da teología naturalera o
«relojoeiro» de Voltaire ou o «carpinteiro» da apologética de
pacotilha. Em primeiro lugar, nenhum relógio foi feito por
qualquer relojoeiro; «relojoeiros» deste tipo sim plesmente nao
existem; os relógios sao feítos por homens que
direito próprio. Por outras palavras, se nao há nada nos elementos para explicar
o desígnio, a presern;:a de desígnio num caos de elementos implica tao neces
sariamente urna criai;iio como a própria existéncia dos elementos.
(2º) O Dr. A. H. Crompton é um exernplo interessante dos muitos cientistas
que parecem nao ter consciéncia de que atravessam fronteiras quando passam da
ciéncia para a filosofía e da filosofía para a religiiio. Para eles a «hipótese
Deus» é apenas mais urna daquelas «hipóteses de trabalho» que um dentista
aceita provisoriamente como verdade apesar de nenhuma delas poder ser
provada. Consequentemente, «a fé em Deus pode ser urna atitude totalmente
científica, ainda que sejarnos incapazes de determinar a correci¡:ao da nossa
creni,;a». The Religion ofa Scientist, p. 13. Esta é urna larnentável confusao de
linguagern. É verdade que o princípio da conservai¡:ao da energía e que a
noi¡:ao de evolui¡:ao sao hlpóteses; mas sao hipóteses cientfficas porque,
conforme as aceitemos ou rejeitemos, a nossa interpretai;:ao científica de
factos observáveis está sujeita a tornar-se diferente. A existéncia ou nao
existencia de Deus, pelo contrário, é urna proposii;:ao cuja negai;:ao ou
afirmai;:ao nao determina qualquer mudans;a na estrutura da nossa explicas;ao
científica do mundo e é totalmente independente do conteúdo da ciéncia
enquanto tal. Supondo, por exemplo, que há um desígnio no mundo, a
existéncia de Deus nao pode ser postulada como urna explicrn;;ao cientifica
para a presens;a de desígnio no mundo; é urna explicas:ao metafísica;
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consequentemente, Deus nao tem de ser postulado como urna probabilidade
científica mas como urna necessidade metafísica.
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DEUS E A FILOSOFIA
sabem fazer relógios. Do mesmo modo, postular Deus como
causa suprema daquilo que é, significa saber que Ele é Ele que
pode criar, porque Ele é «Ele que mas isto ainda nos díz
menos sobre o que pode ser a existéncia absoluta do que
qualquer obra de carpintaria nos diz sobre o homem que a fez.
Como homens, só podemos afirmar Deus em bases
antropomórficas. Mas isto nao nos obriga a postulá-Lo como um
Deus antropomórfico. Tal como diz Sao Tomás de Aquino:
10
Sao Tomás de Aquino, Summa theologica, Pars I, qu. 3, art. 4, ad 2m.
10
DEUS E O PENSAMENTO CONTEMPORÁNEO
ou ainda que renunciem a religiao em prol da filosofía, se, como
Pascal, nao renunciarem a filosofía em prol da religiao. Por que
nao havemos de conservar a verdade e de a conservar na sua
totalidade? Isso pode ser feito. Mas só o conseguem fazer
que compreenderem que Ele Que é o Deus dos filósofos é ELE
QUE É, o Deus de Abraao, de Isaac e de Jacob.
10
ÍNDICE
Prefácio....................................................................................13
I. Deus e aFilosofiaGrega.........................................................19
IV.Deus e oPensamentoContemporaneo...................................81