A Oração Dos Salmos Na Vida de Jesus

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Jesus e os Salmos - Frei Carlos Mesters - Fundador

do CEBI
Jesus e os Salmos [1]
A Oração dos Salmos na vida de Jesus
Frei Carlos Mesters, O. Carm.
Os primeiros cristãos, sobretudo Lucas e João, nos
conservaram uma imagem de Jesus orante que vivia em
contato permanente com o Pai. A respiração da vida de
Jesus, o seu alimento diário, era fazer a vontade do Pai (Jo
5,19). Em vários momentos ele aparece rezando,
sobretudo nos momentos decisivos de sua vida. No centro
desta vida de oração estão os Salmos.

1. Contexto e ambiente da oração dos Salmos no tempo de


Jesus
A escola de oração de Jesus

Durante o exílio na Babilônia e, sobretudo, depois, criou-


se no povo judeu o costume de reunir a família para rezar,
diariamente, nos mesmos momentos em que, lá no templo
de Jerusalém, se costumava oferecer o sacrifício: de
manhã, ao meio dia e na boca da noite. Foi também
durante e, sobretudo, depois do exílio, que começou o
lento surgimento da sinagoga, isto é, das reuniões
semanais nos sábados.
Assim, aos poucos, foi nascendo todo um contexto de
oração com um ritmo diário, semanal e anual. O ritmo
diário se transmitia dentro da Casa, no ambiente da
família. O ritmo semanal se desenvolvia na Sinagoga, no
ambiente da comunidade. O ritmo anual, que nós
chamamos de Ano Litúrgico, se irradiava a partir do templo
de Jerusalém para a vida da nação, do povo.
Criava-se, assim, um ambiente familiar e comunitário
impregnado pela leitura orante da Palavra de Deus, dentro
do qual as pessoas aprendiam de memória os salmos e as
orações, como hoje se aprendem de memória os cânticos.
Havia preces e bênçãos para todos os momentos
importantes da vida. Até hoje, se conservam aquelas
orações. Nos benditos que cantavam e nas bênçãos que
invocavam, lembravam os acontecimentos mais
importantes do passado. Isto as ajudava a reforçar a
própria identidade, a conhecer a história do povo e a não
perder a memória. Era uma verdadeira catequese.
A escola de oração de Jesus era, antes de tudo, esta vida
do dia-a-dia em casa na família e na comunidade. Foi lá
que ele aprendeu a conviver, a rezar e a trabalhar. O povo
rezava muito, todos os dias, de manhã, ao meio dia e à
noite. “Desde criança”, Jesus aprendeu os salmos de
memória. A mãe ou a avó os ensinava (cf. 2 Tim 1,5; 3,15).
Os salmos eram rezados não só com os lábios, mas com o
corpo todo. A expressão corporal fazia parte da reza dos
salmos. Por exemplo: procissão (Sl 68,24-25; 95,2),
prostração (Sl 5,8; 95,6), inclinação e genuflexão (Sl
95,6), estender as mãos (Sl 63,5; 141,2), “orientação” na
direção do Templo que ficava no Oriente (Sl 138,2), dança
(Sl 149,3; 150,4), canto (Sl 147,1), grito (Sl 3,5; 142,2.6),
colocar a cabeça entre os joelhos (1Rs 18,42), etc. A
expressão corporal contribuía para criar e reforçar o
ambiente de oração.
O tríplice ritmo da oração no tempo de Jesus
A oração diária era cultivada em Casa na família. Ela
consistia em rezar três vezes por dia as 18 bênçãos
(manhã, meio dia, noite) e duas vezes o Shemá (manhã e
noite). A recitação destas preces era intercalada com
salmos. Eis o esquema da oração que Jesus rezava todos
os dias:

* As 18 bênçãos (de manhã, à tarde e à noite)


* O Shemá, composto de três benditos e três leituras (de
manhã e à noite)
1. Um bendito ao Deus Criador que cria o povo
2. Um bendito ao Deus Revelador que se revela e elege o
povo
3. Três leituras:
Dt 6,4-9: receber o Reino
Dt 11,13-21: receber a Lei de Deus
Nm 15,37-41: receber a Consagração
4. Um bendito ao Deus Salvador que liberta o povo
* Tanto as 18 bênçãos como o Shemá, tudo era o misturado
com Salmos.

A oração semanal era cultivada no ambiente comunitário


da sinagoga. No tratado Pirque Abbôt, Rabi Aqiba descreve
este ambiente comunitário da seguinte maneira: “O Mundo
repousa sobre três colunas: a Lei, o Culto e o Amor”. A Lei
(torá) era a leitura da Sagrada Escritura. O Culto (abodáh)
era a celebração, a oração dos Salmos. O Amor (hesed) era
a preocupação em descobrir como ajudar as pessoas
necessitadas da comunidade. Até hoje, é este o ambiente
que se cria nas nossas comunidades. O povo reúne para ler
e meditar a Bíblia, para rezar juntos e para ver como pode
ajudar as pessoas necessitadas da comunidade.
A oração anual era cultivada através das romarias. A lei
recomendava que, a cada ano, todos fossem ao templo de
Jerusalém para “comparecer diante de Deus” nas três
grandes festas do ano: Páscoa, Pentecostes e
Tabernáculos (Ex 23,14-17; 2Crôn 8,13).
Eis um resumo do ambiente da oração dos salmos, dentro
do qual Jesus nasceu, cresceu e se formou:

1. O ritmo diário em casa, na família


Em casa, o povo rezava três vezes ao dia: de manhã, ao
meio dia e à noite, isto é, nos exatos três momentos em
que, lá no Templo, se oferecia o sacrifício. Assim, a nação
inteira se unia diante de Deus.

2. O ritmo semanal da vida comunitária na sinagoga


Nos Sábados, reuniam na sinagoga para ler a Bíblia, rezar
e discutir a vida da comunidade. Havia um esquema fixo
para as leituras da Lei de Moisés. A leitura dos profetas
dependia da escolha do momento (Lc 4,17).

3. O ritmo anual da vida do povo ao redor do Templo


Era baseado no ano litúrgico com suas festas. Cada ano,
faziam três romarias a Jerusalém para visitar o templo (Ex
23,14-17; 2 Crôn 8,13).
A função dos salmos na vida do povo no tempo de Jesus
Casa-Família-Dia, Sinagoga-Comunidade-Semana,
Templo-Povo-Ano. Os salmos faziam parte deste ambiente
de oração. Formavam o seu eixo. Destacamos aqui três
aspectos da função que eles exerciam na prática orante do
povo:

1) Como modelo ou amostra. Andar se aprende andando.


Era recitando, repetindo e ruminando os salmos que o povo
rezava e aprendia a rezar. Foi assim que Jesus os rezou ao
longo de toda a sua vida.

2) Como muleta ou recurso em momentos de desolação.


Quando o sofrimento criava um vazio de secura na pessoa
e lhe faltavam palavras para rezar, então, nesses
momentos, o que lhe restava era recorrer à memória e usar
a muleta do salmo decorado para dirigir-se a Deus. Foi
assim que Jesus rezou os salmos quando estava morrendo
na cruz.

3) Como desafio ou provocação. A recitação constante dos


salmos não podia levar a pessoa a uma rotina, mas devia
levá-la a uma maior criatividade. O objetivo da recitação
freqüente dos salmos era fazer com que cada um, cada
uma, chegasse a elaborar o seu próprio salmo. Foi assim
que Jesus rezou os salmos, pois, como veremos, ele
chegou a fazer o seu próprio salmo e o ensinou aos
discípulos.

A oração dos salmos na vida das pessoas ao redor de Jesus


Mesmo não sendo históricos no sentido estrito da palavra,
os dois primeiros capítulos do evangelho de Lucas nos
oferecem uma amostra de como era a piedade popular
naquela época e de como esta piedade era marcada pela
oração dos salmos. Estes capítulos comunicam um
contexto de oração que transparece nas atitudes orantes
de algumas pessoas que conviveram com Jesus ou que
eram da mesma época:

Maria, a Mãe de Jesus.


O cântico de Maria (Lc 1,46-55) parece uma colcha de
retalhos, retalhos quase todos tirados dos salmos. Ele
mostra como os salmos estavam no coração da vida orante
do povo no tempo de Jesus e das primeiras comunidades
cristãs. A concordância da Bíblia de Jerusalém mostra
claramente como este cântico está impregnado pelos
salmos. Além disso, o cântico de Maria é uma prova de
como a recitação freqüente dos salmos provocava nas
pessoas a criatividade e as levava a fazer o seu próprio
salmo.
Zacarias e Isabel.
O cântico de Zacarias (Lc 1,67-79) tem as mesmas
características já observadas no cântico de Maria. Ele
também é fruto da meditação dos salmos e da história do
povo de Deus. O contexto da visita de Maria a Isabel (Lc
1,39-45) é um contexto orante em que duas mulheres,
duas donas de casa, experimentam a presença de Deus
numa das coisas mais comuns da vida humana: a visita que
uma faz à outra para prestar-lhe um serviço. Maria aparece
ajudando Isabel num parto de risco.

Simeão e Ana.
O mesmo se diga do velho Simeão (Lc 2,25-35) e da
profetisa Ana (Lc 2,36-38). Os dois viviam no ambiente de
oração, que se criou ao redor do Templo, e por isso
tornaram-se capazes de reconhecer a presença de Deus
numa criança recém nascida, levada para o templo por um
casal pobre.
Jesus convivendo no ambiente de oração do seu povo
Nos evangelhos Jesus aparece convivendo e participando
nesse contexto da vida orante do seu povo com seu tríplice
ritmo de oração. Enumeramos aqui só alguns momentos de
oração. Quem for pesquisar, encontrará outros espalhados
pelos quatro evangelhos.

Ritmo diário e familiar


* Levanta bem cedo para rezar (Mc 1,35)
* Reza antes das refeições (Lc 9,16; 24,30).
* A pedido das mães ele dá a bênção às crianças (Mc
10,16).
Ritmo semanal e comunitário
* Tem o costume de participar da oração na sinagoga nos
sábados (Mc 1,21Lc 4,16)
* Durante a reunião semanal, ele se levanta para fazer a
leitura (Lc 4, 16)
* Nos sábados participa da reunião para transmitir o seu
ensinamento ao povo presente (Mc 6,2).
Ritmo anual do templo
* Aos doze anos de idade, ele vai ao Templo, à Casa do Pai
(Lc 2,46-50).
* Participa das romarias ao Templo de Jerusalém nas
grandes festas (Jo 5,1).
* Celebra a Ceia Pascal com seus discípulos (Lc 22,7-14).
* Ao sair da Ceia para o Horto reza salmos com os
discípulos (Mt 26,30).
Resumindo. Foi naquele contexto familiar e comunitário,
impregnado pela oração dos salmos, e na convivência com
pessoas como aquelas descritas por Lucas, que Jesus
nasceu e se formou, que ele "crescia em sabedoria, graça
e tamanho diante de Deus e dos homens" (Lc 2,52). O
ritmo diário, semanal e anual era a sua escola, o seu
sustento e o seu quadro de referências. Era o ambiente que
o levava a participar das romarias em busca da casa do Pai
(Lc 2,42), e em que aprendeu a passar as noites em oração
(Lc 5,16; 6,12).
2. Jesus, usando os salmos, rezando a vida, ensinando a
rezar
A maneira como Jesus usava e rezava os salmos

"Desde pequeno", Jesus aprendeu de memória os salmos


(cf. 2Tm 3,15; 1,5) e os usava de várias maneiras, entre
outras, para dirigir-se ao Pai, para transmitir sua
mensagem ao povo e para refutar as críticas dos
adversários.

Usava os Salmos para dirigir-se ao Pai


Além da reza diária dos salmos em casa na família e da sua
recitação semanal na comunidade, Jesus aparece rezando
os salmos, sobretudo nos momentos difíceis do
sofrimento, no Horto e na Cruz. No Horto, ele desabafa
“Minha alma está triste” (Mc 14,34). A frase lhe é
fornecida pelo mesmo salmo que ele rezou na cruz ao
entregar o Espírito (Sl 31,9-10). O mesmo sentimento de
dor e de tristeza aparece em outro salmo (Sl 42,5-6). Na
cruz, Jesus reza dois salmos: “Meu Deus! Meu Deus! Por
que me abandonaste?” (Mc 15,34; Sl 22,1) e “Em tuas
mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46; Sl 31,6).

Além disso, os evangelhos recorrem aos salmos para


descrever certas cenas que acontecem durante a paixão e
morte de Jesus: “voltam atrás os que planejam o mal
contra mim” (Jo 18,6; Sl 35,4); “dividiram minhas vestes
e sobre a túnica lançaram a sorte” (Sl Mc 15,23; Sl 22,19);
“na minha sede me deram fel de beber” (Mt 27,28; Sl
69,22); “aquele que comigo põe a mão no prato, esse me
entregará” (Mt 26,23; Sl 41,10); “confiou em Deus, que o
livre agora”(Mt 27,43; Sl 22,9); “nenhum osso lhe será
quebrado” (Jo 19,36; Sl 34,21). Era uma maneira para
sugerir aos leitores que Jesus, aquele que estava
morrendo na Cruz, era de fato o messias que o povo estava
esperando.

Usava os salmos para ensinar o povo


Aqui, há todo um campo a ser investigado. De acordo com
a concordância da Bíblia de Jerusalém, vários
ensinamentos de Jesus são evocações de frases de salmos.
Por exemplo:
“Felizes os mansos, porque herdarão a terra” (Mt 5,4; Sl
37,11)
“Felizes os que choram porque serão consolados” (Mt 5,5;
Sl 126,5)
“Felizes os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt
5,8; Sl 24,3-4).
O pai que vê em segredo, escutará a prece feita em
segredo (Mt 6,4; Sl 139,2-3).
O abandono à providência divina (Mt 6,25-34; Sal 127)
A parábola da vinha (Mc 12,1; Sl 80,9-19).
“Eu sou o bom pastor” (Jo 10,11; Sl 23)

Assim, há muitas outras evocações de salmos espalhadas


pelas frases e ensinamentos de Jesus. Algumas provêm do
próprio Jesus, outras, muito provavelmente, das
comunidades que usavam as frases conhecidas dos salmos
para transmitir os ensinamentos de Jesus.
Usava os salmos para refutar e criticar os adversários
Nas discussões com os fariseus e escribas, várias vezes
Jesus responde com frases tiradas do livro dos Salmos,
pois eram as mais conhecidas de todos e as mais usadas.

“Da boca dos pequeninos e das criancinhas preparaste um


louvor para ti” (Mt 21,16; Sl 8,3 LXX).
“A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra
angular” (Mt 21,42; Sl 118,23).
“O Senhor disse ao meu Senhor: senta-te à minha direita”
(Mt 22,44; Sl 110,1).
“Vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso”
(Mc 14,62; Sl 110,1)
Jesus, rezando a vida
A maneira de Jesus rezar e usar os salmos revela uma
pessoa orante em profunda união com Deus. Jesus rezava
muito. Passava noites em oração (Lc 6,12) para estar com
o Pai e conhecer a sua vontade (Mt 26,39). Além dos
momentos que já vimos, os evangelhos, sobretudo o de
Lucas, nos conservaram outros momentos desta vida
orante de Jesus.

Nestes outros momentos Jesus aparece rezando, mas os


salmos quase não aparecem nestas preces. Por que? É que
os salmos são como o pavio da vela, que não se vê por
causa da cera que o esconde aos nossos olhos. As orações
e preces são como a cera ao redor do pavio. Mas é o pavio
que faz com que as preces e benditos possam iluminar a
mente e esquentar o coração. As orações e preces são
como as numerosas folhas verdes que escondem os galhos
da árvore. Mas são os galhos invisíveis que geram as
folhas. Os salmos são como galhos. Quando bem rezados
geram as folhas das preces e das orações espontâneas. Eis
só alguns destes outros momentos, em que Jesus aparece
rezando:

* Na hora de ser batizado e de assumir a missão, ele reza


(Lc 3,21).
* Na hora de iniciar a missão, passa quarenta dias no
deserto (Lc 4,1-2).
* Na tentação, ele enfrenta o diabo com textos da Escritura
(Lc 4,3-12).
* Na hora de escolher os doze Apóstolos, passa a noite em
oração (Lc 6,12).
* Na hora de fazer levantamento da realidade e falar da
sua paixão (Lc 9,18).
* Na alegria de ver Evangelho revelado aos pequenos (Lc
10,21).
* Na ressurreição de Lázaro: “Pai eu sei que sempre me
ouves!” (Jo 11,41-42)
* Procura a solidão do deserto para rezar (Mc 1,35; Lc
5,16; 9,18).
* Rezando, desperta vontade de rezar nos apóstolos (Lc
11,1).
* Na crise sobe o Monte da transfiguração para rezar (Lc
9,28).
* Na hora da despedida reza a oração sacerdotal (Jo 17,1-
26).
* Na angústia da agonia pede aos três amigos para rezar
com ele (Mt 26,38).
* Na hora de ser pregado na cruz, pede perdão pelos
carrascos (Lc 23,34).
* Jesus morre soltando o grito, a oração dos pobres (Mc
15,37).

Esta lista mostra como Jesus aparece rezando em quase


todos os momentos importantes e difíceis da sua vida: na
crise e na tentação, na escolha dos apóstolos, na decisão
de ir para Jerusalém, na agonia do Horto, na hora de
morrer na cruz. Ele vivia em contato com o Pai. Sua vida
era uma oração permanente: "Eu a cada momento faço o
que pai me mostra para fazer!" (Jo 5,19.30). A ele se aplica
o que diz o Salmo: "Eu sou oração!" (Sl 109,4).

Jesus, ensinando a rezar


O jeito de rezar de Jesus era contagiante e provocava nos
outros o desejo de aprender a rezar. Certo dia, assim
informa o evangelho de Lucas, Jesus estava rezando. Era
durante a subida para Jerusalém, onde seria preso e
morto. Os apóstolos chegaram perto e pediram para ele
ensinar-lhes a rezar como João Batista também tinha
ensinado a seus discípulos (Lc 11,1). A resposta de Jesus
aos discípulos foi o Pai-Nosso. Como bom judeu ele chegou
a fazer o seu próprio salmo e o ensinou aos apóstolos.

A recitação dos salmos tinha uma dimensão mística e


criativa. A sua reza era um momento não só para recitar
devotamente as orações que outros tinham feito, mas
também para cada um, cada uma, vivenciar a sua própria
união com Deus. Naquele tempo, o ideal era este: cada
pessoa devia aprender a rezar os salmos de tal maneira
que por eles fosse despertada a formular seu próprio
salmo. Jesus aprendeu a lição dos salmos. Chegou a fazer
um salmo e o transmitiu para nós. É o Pai-Nosso.

O texto do Pai-Nosso, conservado no evangelho de Lucas


(Lc 11,2-4), é mais curto que o texto conservado em
Mateus (Mt 6,9-13). O texto de Mateus é um resumo orante
em forma de sete preces de tudo que Jesus ensinou ao
povo.
Além deste exemplo bem concreto do Pai-Nosso, Jesus deu
vários outros conselhos de como rezar que são como que
o fruto da sua própria experiência de oração, alimentada
pela recitação dos salmos. Eis alguns destes conselhos:

* Na oração se deve pedir as coisas a Deus em nome de


Jesus (Jo 15,16; 16,23-24).
* Deve-se pedir as coisas com muita confiança, sem
esmorecer (Lc 11,5-13; Mc 7,7-11)
* Na oração não convém usar muitas palavras nem confiar
no muito palavreado (Mt 6,7-18).
* Não rezar para ser visto pelos outros, mas entrar no
quarto, fechar a porta e rezar no segredo, pois o Pai nos
vê (Mt 6,5-6).

Os evangelhos conservaram também algumas orações que


Jesus rezou e algumas das intenções pelas quais rezou:

* Rezou por Pedro, para que não desfalecesse na fé (Lc


22,32).
* Passou a noite em oração para saber a quem escolher
(Lc 6,12).
* Recomenda rezar na hora da tentação (Lc 22,40).
* Diz que certos males só saem na base de muita oração
(Mc 9,29).
* Manda pedir que Deus envie operários na sua messe (Lc
10,2).
* O testamento de Jesus é uma prece pela unidade (Jo
17,1-26).
* Diz que o Espírito Santo só se obtém através da oração
(Lc 11,13).
* Pediu perdão ao Pai pelos seus carrascos (Lc 23,34).

3. As Comunidades: a continuação de Jesus orante

O livro dos Atos é o segundo volume da obra de Lucas. No


primeiro, ele fala de Jesus. No segundo, fala das
comunidades como sendo a continuidade de Jesus. Existe
um paralelo entre o que Jesus faz no Evangelho e o que as
comunidades fazem em Atos. Através da ação do Espírito
Santo, elas são a presença continuada de Jesus diante de
Deus e diante dos homens. De modo particular, isto vale
para a oração. Assim como Lucas acentua, mais que os
outros evangelistas, a oração em Jesus. Da mesma
maneira impressiona a freqüência com que ele, em Atos,
menciona a oração na vida das comunidades.

Como no evangelho, também em Atos, a cera das preces


esconde o pavio dos salmos. Mas a quantidade
impressionante de momentos de oração em Atos revela a
força de irradiação dos salmos na vida das comunidades.
Segue aqui uma lista (quase monótona) dos textos de Atos
que, de uma ou de outra maneira, mencionam a oração:

At 1,14: A comunidade persevera na oração com Maria a


mãe de Jesus.
At 1,24: A comunidade ora para escolher o substituto de
Judas.
At 2,25-35: Pedro cita salmos durante a pregação.
At 2,42: Os primeiros cristãos são assíduos na oração.
At 2,46: São assíduos também em freqüentar o Templo.
At 2,47: Eles louvam a Deus.
At 3,1: Pedro e João sobem ao Templo para a oração da
hora nona.
At 3,8: O aleijado curado louva a Deus.
At 4,23-31: A comunidade reza na perseguição.
At 5,12: Os primeiros cristãos permanecem no pórtico de
Salomão.
At 6,4: Os Apóstolos se dedicam à oração e à palavra.
At 6,6: Eles rezam antes de impor as mãos aos diáconos.
At 7,59: Estevão reza: "Senhor, recebe o meu espírito!"
At 7,60: Reza ainda: "Senhor, não lhes leve em conta esse
crime!"
At 8,15: Pedro e João oram para os convertidos receberem
o Espírito.
At 8,22: Ao pecador se diz: arrepende-te e ora, para obter
o perdão.
At 8,24: Simão Mago diz: "Reze por mim a Deus!"
At 9,11: Saulo está orando.
At 9,10ss: Diálogo de Ananias com Deus.
At 9,40: Pedro reza pela cura de Dorcas.
At 10,2: Cornélio orava a Deus constantemente.
At 10,4: As orações de Cornélio sobem ao céu e são
ouvidas.
At 10,9: Pedro reza na sexta hora no terraço.
At 10,13s: Diálogo de Pedro com Deus.
At 10,30: Cornélio faz oração na hora nona.
At 10,31: Cornélio escuta o anjo dizer: "Tua oração foi
ouvida".
At 11,5: Pedro informa ao povo de Jerusalém: "Eu estava
em oração!"
At 12,5: A comunidade ora quando Pedro é preso.
At 12,12: Na casa de Maria, muitos estão reunidos em
oração.
At 13,2: O envio dos missionários acontece durante uma
celebração.
At 13,3: A comunidade reza no envio de Paulo e Barnabé
em missão.
At 13,48: Os pagãos se alegram e glorificam a Palavra de
Deus.
At 14,23: Os missionários oram para designar os
coordenadores.
At 16,13: Em Filipos, junto do rio, há um lugar de oração.
At 16,16: Paulo e Silas iam indo para a oração.
At 16,25: De noite, Paulo e Silas cantam e rezam na prisão.
At 18,9: Paulo tem uma visão do Senhor durante a noite.
At 18,18: Paulo raspou a cabeça para cumprir uma
promessa.
At 19,17: O Nome de Jesus é engrandecido por todos.
At 19,18: Muitos confessam os seus pecados.
At 20,7: Eles estão reunidos para a fração do pão
(Eucaristia).
At 20,32: Paulo recomenda a Deus os coordenadores das
comunidades.
At 20,36: Paulo reza de joelhos com os coordenadores das
comunidades.
At 21,5: Colocam-se de joelhos na praia para rezar.
At 21,14: Diante do inevitável, o povo diz: Seja feita a
vontade de Deus!
At 21,20: Glorificam a Deus pelo que Paulo realizou.
At 21,26: Paulo vai ao templo cumprir uma promessa.
At 22,7ss: Diálogo de Paulo com Jesus.
At 22,17: Paulo orou no Templo e teve uma visão.
At 22,18ss: Diálogo de Paulo com Deus.
At 23,11: Preso em Jerusalém, Paulo tem uma visão de
Jesus.
At 27,23ss: Paulo tem uma visão de Jesus durante a
tempestade no mar.
At 27,35: Paulo abençoa o pão antes de aportar em Malta.
At 28,8: Paulo reza sobre o pai de Públio que está doente.
At 28,15: Paulo dá graças a Deus ao encontrar os irmãos
em Putéoli.

Nestas orações das comunidades, observa-se o mesmo


que observamos na oração de Jesus. Como Jesus, os
primeiros cristãos continuam a tradição do povo e mantêm
o que aprenderam “desde pequeno”: rezam em casa na
família, em comunidade na sinagoga e junto com o povo
no Templo.
Como Jesus, criam um novo jeito de rezar com um novo
conteúdo. Além da participação na liturgia tradicional, eles
têm seus próprios momentos de oração com que
acompanham os atos importantes da vida em comunidade:
rezam na hora do batismo, no momento de receber o
Espírito Santo, na imposição das mãos, na transmissão dos
ministérios, na escolha dos novos ministros, no envio dos
missionários. Como em Jesus, a sua oração intensifica-se
nos momentos difíceis e críticos da caminhada: rezam na
perseguição, na despedida, na doença, na hora da morte,
na conversão de uma pessoa.

A raiz desta novidade brota da nova experiência de Deus


que Jesus nos trouxe e da consciência clara que elas têm
da presença de Deus no meio delas. Os cristãos formavam
comunidades orantes, dedicadas à Palavra e à Oração (At
6,4).

4. Uma chave para os Salmos: rezar como Jesus rezou

Para os judeus, o importante era "rezar como Davi rezou".


Para nós cristãos, o importante é "rezar como Jesus rezou"
e, assim, criar em nós os mesmos sentimentos que
animaram a Jesus durante toda a sua vida (Fl 2,5).

A escola de oração de Jesus era a vida em casa com a mãe


e na sinagoga com a comunidade. Mas era também e,
sobretudo, a sua vida de intimidade com Deus, seu Pai.
Aqui atingimos o coração, a respiração da vida de Jesus,
onde ninguém penetra. A gente só o adivinha por
aproximação a partir do que os evangelhos informam.

A intimidade com o Pai dava a ele um critério novo para ler


e rezar os salmos. Ele buscava o sentido na fonte. Não ia
da letra até à raiz, mas ia da raiz até à letra. A partir da
sua experiência de Deus, os salmos adquiriam para ele um
sentido novo, mais pleno. Por isso, nós cristãos, quando
rezamos os salmos, costumamos terminá-los com a
invocação da Santíssima Trindade. É a maneira de rezar os
salmos como Jesus os rezava, a partir da mesma
experiência de Deus, que ele nos revelou.

No tempo de Jesus, o povo judeu tinha de Deus a idéia de


alguém distante, cujo nome não podia ser pronunciado. Em
vez de Javé diziam Adonai, Senhor. O relacionamento com
Deus se fazia, sobretudo através das normas da lei,
ensinadas pelos escribas e fariseus. A novidade que Jesus
nos trouxe é que, através das suas palavras e ações,
nascidas da sua experiência de filho, o mesmo Deus que
parecia tão distante e severo adquiriu para nós os traços
de um Pai bondoso de grande ternura, sempre presente,
pronto para acolher e libertar! Esta Boa Notícia de Deus,
comunicada por Jesus, era a nova chave para reler todo o
Antigo Testamento e rezar os salmos com um novo olhar.
Jesus é uma nova chave de leitura para os Salmos. Não
basta o estudo para que os salmos liberem o seu sentido.
É preciso ter nos olhos e no coração esta consciência e a
liberdade de filhos e filhas de Deus que Jesus nos
comunica. Do contrário, os salmos continuam cobertos por
um véu que impede a descoberta plena do seu sentido. "É
só pela conversão ao Senhor que o véu cai. Pois o Senhor
é Espírito e onde há o Espírito, aí há liberdade" (2Cor
3,17).

O texto do salmo é como uma lâmpada. O estudo do texto


limpa a lâmpada e tira a poeira de séculos que grudou do
lado de fora e abafa o brilho. A experiência de Deus e da
vida, vivida e partilhada na comunidade, gera a força que
acende a lâmpada do salmo pelo lado de dentro e produz o
brilho.
Dizia Cassiano (século V): "Instruídos por aquilo que nós
mesmos sentimos, já não percebemos o salmo como algo
que só ouvimos, mas sim como algo que experimentamos
e tocamos com nossas mãos; não como uma história
estranha e inaudita, mas como algo que damos à luz desde
o mais profundo do nosso coração, como se fossem
sentimentos que formam parte do nosso próprio ser.
Repitamo-lo: não é a leitura que nos faz penetrar no
sentido das palavras, mas sim a própria experiência
adquirida anteriormente na vida de cada dia" (Collationes
X,11). Milton Nascimento diz a mesma coisa com outras
palavras: “Certas canções caem tão bem em mim que
perguntar carece por que não fui eu que fiz!”

Frei Carlos Mesters, carmelita, mestre em Exegese Bíblica


e Doutor em Teologia Bíblica, co-fundador e assessor do
CEBI – Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, e-mail:
[email protected]

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