Iatrogênico Clínica em Musicoterapia

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MUSICOTERAPIA E BIOÉTICA: UM ESTUDO DA MÚSICA COMO ELEMENTO

IATROGÊNICO

José Davison da Silva Júnior∗


Leomara Craveiro de Sá∗

RESUMO:
Trata-se de uma pesquisa em desenvolvimento, vinculada a um Programa de Pós-Graduação, que propõe
investigar a utilização da música em contextos terapêuticos diversos e, mais especificamente, na Musicoterapia.
Reflexões sobre a música como terapia e o seu papel benéfico ou maléfico são os focos deste estudo, tendo como
referencial teórico a Bioética, a Musicologia e a Musicoterapia. Espera-se, com esta pesquisa, adquirir mais
conhecimentos sobre a utilização da música no contexto musicoterápico, evitando, assim, que ela se torne um
elemento iatrogênico.

PALAVRAS-CHAVE: Música; Musicoterapia; Bioética; Iatrogenia.

ABSTRACT:
This article is a developing research, within a Post-degree Program, that considers investigating the use of music
in different therapeutical contexts and, more specifically, in Music therapy. Reflections on music as therapy and
its beneficial or maleficent role are this study's focus, having as theoretical reference the Bioethics, the
Musicology and the Music therapy. It is hoped that, with this research, more knowledge can be obtained about
the use of music in the musictherapeutical context, avoiding, thus, that it becomes an iatrogenic element.

KEYWORDS: Music; Music Therapy; Bioethics; Iatrogeny.

INTRODUÇÃO

O respeito à dignidade humana é um dos pressupostos da Bioética cuja origem está


vinculada a práticas de pesquisas com seres humanos realizadas sem respeitar a dignidade do
homem, sua individualidade e características próprias. “A Bioética é ética da vida, quer dizer,
de todas as ciências e derivações técnicas que pesquisam, manipulam e curam os seres vivos”
(COSTA et al, 1998, p.35).
A Bioética refere-se à ética prática, que se preocupa com o agir correto. De acordo com
o princípio da beneficência, os profissionais da saúde buscam o bem do paciente, a promoção
da saúde e a prevenção da doença. Refere-se à ação de fazer o bem. O princípio da não-
maleficência relaciona-se a não causar dano ao paciente. Trata-se de uma abstenção, do não
fazer.


Mestrando em Música (Musicoterapia) pela Universidade Federal de Goiás; Bolsista CNPq – Brasil;
Especialista em Musicoterapia pelo Conservatório Brasileiro de Música; Especialista em Educação Especial pela
Faculdade Frassinetti do Recife; Licenciado em Música pela Universidade Federal de Pernambuco; Bacharel em
Direito pela Faculdade de Direito de Olinda; [email protected]

Doutora em Comunicação e Semiótica – PUC/SP; Musicoterapeuta Clínica com Especialização em Psicologia
Transpessoal; Bacharel em Instrumento – Piano; Professora-pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em
Música da Universidade Federal de Goiás; Coordenadora do Diretório de Pesquisa NEPAM - Núcleo de
Pesquisa em Musicoterapia UFG/ CNPq; [email protected]
O pensamento de evitar que a música, no contexto clínico da Musicoterapia, seja um
elemento iatrogênico, isto é, que não faça mal ao paciente, está relacionado a um dos
princípios da Bioética, o princípio da não-maleficência. O “des-cuidar” na assistência à saúde
trata-se de uma questão ética de relevância que está apoiada na Bioética e em seus princípios,
principalmente os da beneficência e não-maleficência.
A iatrogenia refere-se a uma doença ou sequela causada pelo médico. Os resultados são
decorrentes de falhas no comportamento humano no exercício da profissão. Originariamente,
trata-se apenas de ação do médico, de erro médico. Todavia, estendemos seu conceito para
designar atos praticados por profissionais da área da Saúde, tais como: fisioterapeutas,
psicólogos, fonoaudiólogos, musicoterapeutas e terapeutas ocupacionais.
A relevância do tema proposto está em se discutir a utilização da música em contextos
terapêuticos diversos – Psicologia, Fonoaudiologia, Fisioterapia, Musicoterapia e Terapia
Ocupacional, no sentido de evitar que ela se torne elemento iatrogênico. Existiria, nesses
contextos clínicos, uma preocupação com critérios, tais como: escolha e utilização de
repertórios, objetivos terapêuticos, formas de aplicação da música, análise das respostas às
músicas utilizadas etc? Questiona-se, também, se os musicoterapeutas têm apresentado uma
consciência sobre o que é um “erro musicoterápico”1 e como evitar que a música torne-se um
elemento iatrogênico no contexto clínico musicoterápico.
Benenzon (1985) e Craveiro de Sá (2003) advertem que não sejam deixadas crianças
autistas ouvindo músicas sozinhas, pois isto pode tornar-se um elemento iatrogênico. O uso
de aparelhagens eletro-eletrônicas, como um teclado, “pode ter um efeito iatrogênico se o
musicoterapeuta não utilizá-lo como ponto de partida para introduzir-se como pessoa”
(BARCELLOS, 2004a, p. 124). Isto deve-se ao fato que o uso do teclado pela criança autista
sozinha pode levá-la a um maior isolamento. É preciso que o instrumento musical seja
utilizado visando um fazer musical/musicoterápico, em ações interativas entre
musicoterapeuta(s) e paciente(s).
Não é pelo fato de a música ser benéfica em algumas situações que ela deva ser usada
indiscriminadamente, como uma farmacopéia musical, por pessoas sem qualificações para o
uso da música como terapia ou por profissionais musicoterapeutas que não refletem sobre sua
prática clínica. Blaking (1997, p.3) afirma que “as pessoas não são toxicômanas musicais, a
quem a música faz coisas, como se a música fosse uma droga agindo sobre eles; eles são
agentes conscientes em situações sociais, entendendo a música de várias formas”.
Essa preocupação sobre as responsabilidades do musicoterapeuta, relacionadas à
humanização da sua conduta, insere-se no campo da Bioética, cujo caráter interdisciplinar
requer o envolvimento e a discussão entre diversos profissionais. Vieira (2005) fala que, além
da formação técnica, o profissional deve estar preparado para o reconhecimento e a análise
crítica dos dilemas éticos e morais inerentes a uma profissão ligada à área da Saúde.
Todos os profissionais precisam repensar sua relação com o paciente. Jesus (2003)
relata que a responsabilidade é um dos elementos da prática profissional do musicoterapeuta e
define-a como a capacidade do profissional responder por sua prática, colocando a ética numa
posição de destaque.

1 - RESSONÂNCIAS NO CAMPO DA MUSICOTERAPIA

A necessidade de reflexões sobre o uso da música como elemento iatrogênico


enriquecerá não apenas as discussões teóricas e práticas do exercício da Musicoterapia, mas
poderá contribuir efetivamente para o reconhecimento da profissão do musicoterapeuta pois,
1
Erro musicoterápico: termo cunhado pelos autores deste trabalho, a partir de um paralelo feito com o termo
erro médico, utilizado na área médica.
segundo o Projeto de Lei Original nº 4.827, de 20012, que dispõe sobre a regulamentação do
exercício da profissão de musicoterapeuta, fundamenta-se a regulamentação de uma profissão
em quatro linhas básicas, a saber:
a ) que a atividade exija conhecimentos teóricos e científicos avançados;
b ) que seja exercida por profissionais de curso superior;
c ) que a profissão, se não regulamentada, possa trazer riscos de dano social no tocante à
saúde, ao bem-estar e à segurança da coletividade;3
d ) que não proponha a reserva de mercado para um segmento em detrimento de outras
profissões com formação idêntica ou equivalente.
A partir de uma análise de cada um dos ítens, acima apresentados, pode-se considerar
que:
1) a Musicoterapia possui teorias, métodos, técnicas e procedimentos próprios que a
diferencia de outras área do conhecimento. É fundamental, na formação do musicoterapeuta,
passar por experiências teórico-vivenciais envolvendo os métodos e técnicas musicoterápicos,
incluindo aí, um conhecimento específico sobre a música em Musicoterapia. Para estudar a
música no contexto da musicoterapia é necessária, além da escuta musicoterápica – escuta
musical e clínica –, uma leitura musicoterápica4, onde a análise musical aparece como algo de
extrema importância. Para a análise musical/musicoterápica, Barcellos (2004a) considera o
Modelo Tripartido de Molino5 como um dos modelos mais adequados para apreender-se o
significado, o sentido ou os conteúdos da produção musical do paciente. No referido modelo
são feitas algumas formas de análise musical. A primeira delas é a imanente, análise apenas
da obra. A segunda, descreve a correspondência entre as estratégias de produção, da obra e da
recepção. A terceira análise é a poiétique indutiva, a qual leva à observação da peça e
considera-se o processo composicional. A quarta análise, denominada poiétique externa,
analisa o contexto cultural do compositor, visando explicar as estratégias de produção. A
quinta análise é a estésica indutiva, na qual procura-se predizer como a obra é percebida na
base da observação apenas das estruturas musicais Por fim, a análise estésica externa,
fundamenta-se em como as pessoas respondem à obra.
Para Barcellos (2004a), na Musicoterapia não cabe somente a análise imanente, apenas a
obra pela obra. A leitura musicoterápica considera, também, a música em relação ao paciente.
Portanto, as formas de análise musical, apresentas por Nattiez, podem ser utilizadas no
contexto da Musicoterapia, servindo como ferramenta ao musicoterapeuta para alcançar os
objetivos terapêuticos num processo musicoterápico;
2) a Musicoterapia é uma carreira de nível superior, reconhecida pelo Conselho Federal de
Educação desde 1978, através do parecer 829/78. A formação do musicoterapeuta é feita
através de Cursos de Graduação ou Especialização em Musicoterapia. Atualmente, existem
cursos de musicoterapia seguintes Estados brasileiros: Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio
Grande do Sul, Goiás, Distrito Federal, Espírito Santo e Piauí;
3) o terceiro ítem, apresentado no projeto de regulamentação da profissão, trata do exercício
da profissão de musicoterapeuta por pessoas que não tenham formação específica na área da

2
Projeto de Lei Original nº 4.827, de 2001. Disponível em: »
http://www.senado.gov.br/web/cegraf/pdf/06042005/07614.pdf» Acesso em: 04 de novembro de 2006.
3
Grifo dos autores.
4
A leitura musicoterápica é definida por Barcellos (1994) como “a compreensão do paciente através do musical
que ele expressa e como ele expressa. Isto em relação aos parâmetros musicais, à escolha dos instrumentos e à
forma de tocar os mesmos, enfim, em relação ao setting musicoterápico” (p. 3).
5
Ver NATTIEZ, J.J. Semiologia Musical e Pedagogia da Análise. In OPUS 2. Revista da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – ANPPOM. Ano II, Vol. 02, nº 2, junho, 1990.
Musicoterapia. Isto realaciona-se ao aspecto principal proposto nesta pesquisa, ou seja,
investigar sobre os riscos da utilização da música em contextos terapêuticos diversos sem que
haja uma preparação do profissional quanto ao conhecimento científico sobre música como
terapia e, consequentemente, verificar se este uso indiscriminado da música, sem
embasamentos científicos, pode tornar-se elemento iatrogênico no âmbito da saúde;
4) ainda complementando o item acima, a formação do musicoterapeuta é exclusiva da
profissão, envolvendo uma interlocução entre diversas disciplinas das áreas da Música,
Medicina, Neurociência, Psicologia, Filosofia, Educação e Linguagem Corporal. Não há
como se formar profissionais musicoterapeutas sem que eles tenham conhecimentos
integrados nessas áreas do saber e, especificamente, uma formação teórico-vivencial da
música como linguagem terapêutica.
Diante do exposto, esta proposta de pesquisa visa contribuir para ampliar discussões
sobre os riscos de dano social no tocante à saúde do ser humano. Faz-se necessária uma
conscientização de que o instrumento de trabalho do musicoterapeuta é a música, sendo este o
diferencial da Musicoterapia6. Portanto, todos os esforços devem ser feitos no sentido de não
torná-la iatrogênica, isto é, prejudicial ao indivíduo que vem em busca de ajuda, de melhoria
para sua saúde física e/ou mental.

2 - A PESQUISA EM DESENVOLVIMENTO...

O foco principal desta pesquisa é investigar como experiências com a música, em


contextos terapêuticos diversos – Psicologia, Fonoaudiologia, Fisioterapia, Terapia
Ocupacional e Musicoterapia – vêm se desenvolvendo e se existe, ou não, uma
conscientização, por parte dos profissionais, quanto à necessidade de fundamentação teórica e
sistematização da prática clínica relacionadas ao uso da música como elemento terapêutico.
Espera-se, com isto, identificar fatores que contribuam para que a música não se torne
iatrogênica no contexto da Musicoterapia e, ainda, ampliar as reflexões sobre algumas
questões relacionadas à regulamentação da profissão de musicoterapeuta.
Para tanto, será desenvolvida uma pesquisa de cunho qualitativo, cujos dados serão
coletados através de entrevistas semi-estruturadas e questionários com musicoterapeutas,
psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais, com mais de três anos
de anos de prática clínica, visando investigar “se” e “como” eles utilizam a música no
contexto clínico. Serão realizadas Oficinas de Musicoterapia focalizando a utilização da
música em Musicoterapia, a partir da técnica da Audição Musical, procurando identificar
fatores que possam contribuir para que a música não se torne iatrogênica no contexto
musicoterápico. Esses atendimentos serão registrados em áudio e/ou vídeo.
A pesquisa encontra-se na etapa inicial, de levantamento e estudo bibliográficos,
visando fazer uma inter-relação de teorias – Bioética, Musicologia e Musicoterapia. Espera-
se, ao final da pesquisa, poder corroborar com o pressuposto de que o exercício da
Musicoterapia, tendo a música como o principal meio terapêutico, é exclusivo do
musicoterapeuta, cuja formação híbrida e abrangente o habilita a utilizar a música como
terapia, evitando, assim, que ela se torne um elemento iatrogênico.
A partir do conhecimento obtido na área da Medicina sobre erro médico, espera-se
traçar um paralelo com o “erro musicoterápico”, focalizando, principalmente, o uso da música
como elemento iatrogênico. Isso será verificado a partir das entrevistas, questionários e ações
desenvolvidas com os musicoterapeutas colaboradores da pesquisa. Apesar de encontrarmo-

6
Ver Craveiro de Sá (2004): Música em Musicoterapia: dimensões da Pesquisa. In: V Anais do Encontro
Nacional de Pesquisa em Musicoterapia, Rio de Janeiro, 2004.
nos num campo de subjetividades, objetiva-se mostrar quais os “mecanismos de atuação do
musicoterapeuta” 7 podem ser desenvolvidos para evitar um “erro musicoterápico”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este projeto de pesquisa, ainda em fase inicial, está vinculado a um Programa de Pós-
Graduação em Música e seu foco principal é a música utilizada na Musicoterapia. Esta área
do conhecimento tem como profissional um musicoterapeuta, cuja formação permeia tanto o
campo da música quanto o da saúde. A música é a ferramenta de trabalho desse profissional e
sua aplicação na prática clínica depende, em grande parte, do conhecimento teórico-vivencial
que este profissional tem de música e da área terapêutica. Daí, reconhecer a importância da
Teoria da Música e da análise musical/musicoterápica como uma das principais ferramentas
de trabalho do profissional musicoterapeuta é algo essencial.
Acredita-se que, quanto mais encontrarmos respostas às questões terapêuticas na própria
música, mais isto contribuirá para o amplo desenvolvimento da Musicoterapia, uma vez que
esta é uma ciência em desenvolvimento que tem como elemento principal a música que a
identifica e potencializa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARCELLOS, Lia Rejane M. Cadernos de Musicoterapia 3. Rio de Janeiro: Enelivros, 1994.

________________________ Musicoterapia: Alguns Escritos. Rio de Janeiro: Enelivros,


2004a.

________________________ Mecanismos de Atuação do Musicoterapeuta: Ações, Reações


e Inações. In: Anais do V Encontro Nacional de Pesquisa em Musicoterapia, Rio de Janeiro,
2004b.

BENENZON, Rolando O. Manual de Musicoterapia. Rio de Janeiro: Enelivros, 1985.

BLACKING, J. A música no desenvolvimento cognitivo e afetivo das crianças. Problemas


identificados pela pesquisa etnomusicológica. In: WILSON, F. & ROERMANN, F.L. Music
and child development. St. Louis, MO: MMB Music Inc., 1997.

COSTA, S. I. OSELKA, G. & GARRAFA, V. (coords). Iniciação à Bioética. São Paulo:


Loyola, 1998.

CRAVEIRO DE SÁ, Leomara. A Teia do Tempo e o Autista: música e musicoterapia.


Goiânia: Ed. UFG, 2003.

_________________________ Música em Musicoterapia: dimensões da Pesquisa. In: Anais


do V Encontro Nacional de Pesquisa em Musicoterapia, Rio de Janeiro, 2004.

7
Ver Texto de Barcellos (2004b): “Mecanismos de Atuação do Musicoterapeuta: Ações, Reações e Inações”. In:
V Anais do Encontro Nacional de Pesquisa em Musicoterapia, Rio de Janeiro, 2004, em que ela apresenta uma
pesquisa qualitativa desenvolvida no CBM do Rio de Janeiro.
JESUS, Jaíra Perdiz de. Musicoterapia: o que pode fazer pelo paciente. In: BRANCO, Rita
Francis G. y R. A Relação com o Paciente. Teoria, Ensino e Prática. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 2003. p. 294-302.

NATTIEZ, J.J. Semiologia Musical e Pedagogia da Análise. In OPUS 2. Revista da


Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – ANPPOM. Ano II, Vol. 02,
nº 2, junho, 1990.

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