R - T - Fabricio Vaz Nunes - Vol. I
R - T - Fabricio Vaz Nunes - Vol. I
R - T - Fabricio Vaz Nunes - Vol. I
CURITIBA
2015
FABRICIO VAZ NUNES
CURITIBA
2015
A Ana Bellenzier, minha pessoa favorita.
Esta tese tem como objeto as relações entre o texto literário e as ilustrações do
artista paranaense Napoleon Potyguara Lazzarotto (1924-1998), conhecido como Poty,
para obras de ficção em prosa. O embasamento teórico deste estudo foi construído a partir
de uma recuperação de aspectos da reflexão acerca das relações entre literatura e artes
visuais na Antiguidade Clássica e no Renascimento e da discussão subsequente do tema
à luz de teorias contemporâneas, com destaque para o conceito de imagem segundo W. J.
T. Mitchell (Iconology), a teoria do efeito estético de Wolfgang Iser (O ato da leitura) e
a compreensão da atividade artística como “produção de mundos”, do filósofo
estadunidense Nelson Goodman. Abordando, a partir de Goodman, a ilustração como
uma nova “versão de mundo” em relação à criação literária, as imagens criadas por Poty
foram analisadas a partir de categorias ligadas aos Estudos Literários. A metodologia
empregada nesta pesquisa consiste basicamente no cotejamento entre as imagens e o
texto, buscando encontrar os elementos escolhidos como tema para as ilustrações e
descrever como o ilustrador representa visualmente estes elementos, fornecendo assim
uma determinada interpretação da narrativa ficcional – colaborando com, selecionando,
incrementando ou mesmo alterando os sentidos presentes em cada obra literária
específica. O estudo é organizado a partir dos diferentes elementos literários privilegiados
nas ilustrações, conceitos estes que presidiram a seleção das diferentes obras estudadas,
criando assim quatro percursos de leitura. Primeiramente, são abordados os livros em que
as ilustrações são dedicadas à representação da narrativa, do movimento e da ação,
criando estreitas ligações com o enredo. Em segundo lugar, são analisadas as ilustrações
dedicadas à figuração dos personagens, ora destacando aspectos da sua vida social, ora
revelando suas dimensões subjetivas. Em terceiro lugar, em analogia com o ponto de vista
narrativo, são abordadas as ilustrações que operam com deslocamentos e alterações dos
pontos de vista nas imagens, criando diferentes “formas de visão”, formal e
estilisticamente caracterizadas. Finalmente, são analisadas as ilustrações que efetuam
operações semânticas de ordem metonímica e metafórica, gerando imagens que criam
ressonâncias alegóricas ou emblemáticas com a matéria narrada. A partir destes percursos
de leitura, esta pesquisa busca demonstrar as diferentes formas como as ilustrações de
Poty Lazzarotto interagem e dialogam com as obras literárias.
Palavras-chave: Poty, 1924-1998. Ilustração de livros. Arte e literatura.
ABSTRACT
This thesis approaches the relationships between literary text and the illustrations
for fiction works in prose by the brazilian artist Napoleon Potyguara Lazzarotto,
commonly known as Poty. The theoretical ground for this research was based on a
recollection of certain aspects of reflections on the relationship between literature and
visual arts during Classical Antiquity and the Renaissance and subsequent discussion of
these themes in the light of contemporary theories, with particular reference to the concept
of image according to W. J. T. Mitchell (Iconology), the theory of aesthetic response from
Wolfgang Iser (The act of reading) and the understanding of the artistic activity as “ways
of making worlds”, from the North American philosopher Nelson Goodman.
Approaching, through Goodman´s ideas, the illustration as a new “version of world” in
relation to the literary creation, the images created by Poty were analyzed through
categories connected to Literary Studies. The methodology applied in this research
consists, basically, in the comparison of the images and the text, pursuing the elements
chosen as themes for the illustrations and describing how the illustrator visually
represents such elements, therefore providing an interpretation of fictional narratives ‒
collaborating with, selecting, enhancing or even changing the meanings carried by each
specific literary work. The research is organized from the standpoint of the different
literary elements highlighted in the illustrations, concepts that determined the selection
of the literary works studied, which lead us along four reading pathways. Firstly we
approach the books in which the illustrations are dedicated to the representation of
narrative, movement and action, with strict links to the plot. In second place, we analyze
the illustrations dedicated to the representation of characters, either highlighting aspects
of their social lives or revealing their subjective dimensions. In third place, in analogy to
the narrative point of view, we approach the illustrations that operate through
displacements and alterations of the points of view in the images, creating various “forms
of vision” that are formally and stylistically characterized. Finally, we analyze the
illustrations that perform semantic operations of metonymic and metaphoric nature,
generating images that create allegoric or emblematic resonances with the narrated
matter. Through these reading pathways, this research attempts to demonstrate the
different manners in which the illustrations by Poty Lazzarotto interact and establish
dialogue with literary works.
VOLUME 1
Introdução ......................................................................................................................... 1
1. Fontes.................................................................................................................... 315
4.1. Poty ilustra Dalton: os contos de Joaquim e de Sete anos de pastor ......... 338
4.4. A visão evanescente: A mão e a luva, Ressurreição e Dom Casmurro .... 399
5.3. Grande sertão: veredas: a metonímia narrativa e o mapa enigmático ...... 526
Esta pesquisa tem como objeto as relações entre o texto literário e a ilustração de
Poty Lazzarotto (1924-1998) para obras de ficção em prosa. Este trabalho nasceu, em
grande parte, do desejo de estabelecer ligações concretas e pertinentes entre as artes
visuais e a arte literária. Nesse sentido, o livro ilustrado é um tema privilegiado por
materializar, no suporte da página impressa, a articulação entre a palavra e a imagem. O
texto ilustrado existe desde a Antiguidade: um exemplo conhecido é a representação
visual do julgamento das almas no pós-morte, muito comum no Livro dos mortos egípcio.
O livro moderno, tal como o conhecemos, nasceu do codex medieval, que era
frequentemente enriquecido com miniaturas e iluminuras. Pode-se dizer, portanto, que o
livro, como suporte material do fenômeno literário, possui ilustrações desde as suas
origens mais remotas. Foi a partir do século XV, no entanto, que o avanço nas técnicas
de impressão deu impulso a diferentes formas de associação entre o texto impresso e a
imagem gráfica. Desde então, novas técnicas de gravura, permitindo a produção de cópias
em maior quantidade e qualidade, foram responsáveis pelo crescimento da atividade
ilustrativa através da história (cf. MARTINS, 2001, p. 269-279).
A ilustração literária é portanto um tema híbrido por sua própria natureza, e seu
estudo consistente não pode deixar de colocar em contato, discutir e fazer colaborar as
duas áreas do conhecimento, do que se pode esperar um enriquecimento mútuo.
1
Entendemos que a ilustração literária de textos ficcionais deve ser compreendida em sua
íntima relação com a arte escrita, ambas envolvidas no processo narrativo. Em
colaboração, competição ou contraposição criativa com o texto, a ilustração também traz
a relevo as relações mais amplas, e nem sempre harmônicas, entre a literatura e as artes
visuais.
Na galeria dos nossos grandes (mas muito poucos) ilustradores de nossos livros
(numerosos mas ainda muito poucos), nunca a fusão verbo-ícone atinge tão
intrínseca adequação: nunca um ilustrador, entre nós, foi tão ilustrador, tão
capaz de dizer o que as palavras não sabiam ou não podiam. (in CAROLLO,
1988).
São raros os textos sobre Poty que deixam de mencionar a sua atividade como
ilustrador de textos literários. O volume da sua produção como ilustrador é bastante
considerável, abarcando mais de 170 títulos de vários autores brasileiros e estrangeiros.
Assim, a ilustração literária foi uma das suas principais atividades artísticas desde os
trabalhos realizados para a revista Joaquim (1946-1948) até os seus últimos anos de vida.
A relação de Poty com a narrativa remonta a seu primeiro trabalho publicado, a história
em quadrinhos Haroldo, o homem relâmpago (1938) – exemplo de um gênero artístico
que emprega, primordialmente, a associação entre a palavra escrita e a imagem. A
dimensão narrativa da obra de Poty, alimentada principalmente pela literatura, é um
aspecto fundamental da poética figurativa da sua obra, em que a ilustração literária se
destaca pela abrangência e importância para a cultura nacional.
2
Poty insere-se em um contexto histórico bastante rico em relação à produção
artística de orientação moderna, tanto nas artes plásticas como na literatura. Depois da
atitude polêmica do modernismo da década de 1920, a década de 1930 assiste à
disseminação (e progressiva aceitação pública) das poéticas modernas tanto na literatura
quanto nas artes plásticas. Na literatura, o grande impulso dado às vertentes modernas foi
também possibilitado pelo crescimento e multiplicação das casas editoras, especialmente
daquelas interessadas em difundir a produção cultural brasileira não apenas no campo
literário, mas também no âmbito das artes visuais. Trabalhando para editoras como a
Livraria José Olympio Editora, Martins e Civilização Brasileira, entre várias outras, Poty
dá continuidade aos pioneiros da ilustração moderna no Brasil, como Tomás Santa Rosa
e Oswaldo Goeldi.
Premiado com uma viagem de estudos para a França em 1946, suas relações com
o universo artístico e literário se aprofundam: personalidades como Cândido Portinari,
Antonio Houaiss e Antônio Bandeira frequentavam sua casa em Paris (LOURENÇO,
2001, p. 54). Ao mesmo tempo, continuava colaborando para a revista curitibana
Joaquim, com ilustrações e depoimentos sobre as condições artísticas da capital francesa
no pós-guerra. É também em Paris que Poty conhece Célia Neves, sua futura esposa,
natural de Belo Horizonte, onde tinha sido vizinha, na infância, de João Guimarães Rosa.
É ela que, em 1946, leva para a França vários volumes do recém-lançado Sagarana, que
3
presumivelmente chegou às mãos de Poty, leitor voraz e sempre atento às novidades
literárias. A partir de 1956, com a morte de Tomás Santa Rosa, Poty torna-se um dos
principais ilustradores da José Olympio, atuando em colaboração com diferentes
vertentes literárias, desde as mais ligadas ao chamado regionalismo até o romance
psicológico, incluindo textos de autores brasileiros consagrados e clássicos
internacionais.
Ao longo da pesquisa, ficou claro que Poty era um leitor dedicado e atento, que
ilustrava cada livro de uma forma diferente e original, fazendo da ilustração um
verdadeiro campo de experimentações estilísticas, formais e poéticas. Em cada livro
ilustrado realiza-se, assim, uma forma específica de interação entre o texto e as imagens:
não existe um “sistema”, uma regra, uma explicação de conjunto para a forma como Poty
interpretou os romances e os contos que ilustrou. Isso acarreta que esta pesquisa, vista em
seu conjunto, tenha assumido uma feição episódica, ensaística. O leitor perceberá que os
capítulos dedicados às análises das relações entre o texto e as ilustrações são formados,
em grande parte, por ensaios mais ou menos independentes, assim concebidos para
5
permitir, precisamente, análises pertinentes e específicas para cada obra. Como ensina J.
W. T. Mitchell, as relações entre as imagens e os textos são sempre particulares,
individuais: cada caso é um caso específico, e as grandes generalizações tendem a
distorcer ou omitir aspectos essenciais ao debate (MITCHELL, 1994, p. 90). A busca
desta especificidade, aqui representada pelo estilo único criado por Poty para a ilustração
de cada livro individualmente, é que justifica a forma ensaística deste estudo, em que
privilegiamos as análises individuais livro a livro, dentro de um universo determinado
pelas relações entre a imagem e certos aspectos literários presentes nas obras abordadas.
6
estende, amplia e ressignifica os conteúdos puramente textuais. A seleção das obras
responde, assim, a esta estratégia argumentativa, que, nos termos de White, poderia ser
chamada de estratégia de “enredamento” (emplotment), que organiza e estrutura os
diferentes momentos do discurso de acordo com um todo coerente. Além disso, a seleção
se fez necessária em termos mais prosaicamente práticos: uma análise exaustiva de todas
as obras ilustradas por Poty é uma tarefa inesgotável, impossível em relação aos limites
físicos e temporais de uma pesquisa de doutorado. Para a estruturação geral deste
trabalho, assim, o recorte das obras abordadas ‒ que implica, necessariamente, na
exclusão de um grande número de outras obras ilustradas por Poty ‒ foi concebido no
sentido de constituir diferentes percursos de leitura, desenhados em cada capítulo, e que
correspondem a diferentes formas de compreender as relações entre o texto e a imagem.
Nesse sentido, a atenção para com a especificidade de cada obra ilustrada foi um
dos critérios fundamentais para a definição do método de abordagem e da organização do
trabalho. O que a leitura e a contemplação crítica das ilustrações de Poty para as
numerosas obras que constituem o corpus primário da pesquisa revelam é uma verdade
bastante simples, mas desorientadora do ponto de vista metodológico: não há um método
único, uma “chave mágica” para a análise da ilustração literária. Cada livro ilustrado
comporta procedimentos interpretativos bastante singulares, que por sua vez levantam
questões muito específicas e particulares. Em cada obra literária, Poty se reinventou
enquanto ilustrador, assumindo diferentes estilos gráficos ou elegendo diferentes aspectos
do texto como tema para as ilustrações, trabalhando em convergência, desvio ou flagrante
contradição com relação ao texto.
7
narrativa; de eliminação e suplementação através do uso de referências externas, de outras
iconografias ou de outras formas artísticas; e de deformação (e reconformação) tanto da
matéria narrada quanto das convenções da representação visual. Na análise das
ilustrações, buscamos não apenas detectar a presença destes procedimentos, mas
principalmente compreender o significado destas operações para a interpretação da obra
literária que se materializa na ilustração. Por isso mesmo, cada obra exigiu o acesso a
diferentes instrumentos de análise: na medida do necessário (e do possível), foram
empregados materiais secundários acerca dos romances ou livros de contos, tais como
teses e artigos acadêmicos de análise literária, com o propósito de enriquecer e embasar
a discussão. No decorrer da pesquisa, também foram analisados livros cuja fortuna crítica
é mínima ou inexistente: no percurso de leitura dos livros ilustrados por Poty se incluem
tanto obras consagradas e famosas (como Moby Dick, por exemplo) quanto obras
relativamente desprezadas pela crítica atual, como as excelentes Noites do Morro do
Encanto, de Dinah Silveira de Queiroz. A heterogeneidade das obras ilustradas por Poty,
apesar das dificuldades que impõe, também responde pela riqueza e pela fecundidade do
tema, que esta pesquisa pretende abarcar com propriedade. Se, por um lado, é preciso
compreender as ligações entre a imagem e o texto, e portanto a sua necessária
contaminação, também é preciso, por outro lado, compreender a imagem enquanto
imagem, e o texto enquanto texto: a contaminação entre as duas formas de expressão é
constante, mas elas possuem diferenças de princípio que é preciso levar em consideração.
Não é incomum, portanto, que a imagem estabeleça relações com o texto que vão desde
a confluência precisa de significados até a distorção e a oposição. Como repito algumas
vezes ao longo do texto, o problema é compreender “o que a ilustração faz com o texto”
– como ela o interpreta em convergência ou divergência, como ela o recria ou
efetivamente distorce, e quais os significados criados a partir destas relações múltiplas.
Debruçando-se sobre os livros ilustrados, esta pesquisa tem neste material o seu
corpus primordial: o objeto-livro, mais especificamente o livro de ficção em prosa que
contém ilustrações de Poty Lazzarotto. O problema é a definição dos limites deste corpus,
pois a fecunda atividade de Poty como ilustrador resultou em números bastante
impressionantes: segundo o levantamento realizado por Carla Fernanda Fontana, o artista
teria ilustrado mais de 170 livros, entre capas, imagens de frontispício e ilustrações
intertextuais, incluindo os mais variados gêneros, de literatura em prosa e poesia a livros
de divulgação médica, de agendas comemorativas a dicionários (FONTANA, 2010, p. 9).
8
Uma primeira delimitação, assim, é representada pelo gênero: tratamos aqui,
fundamentalmente, dos livros de ficção em prosa, sejam eles romances ou coletâneas de
contos.
9
Finalmente, uma última delimitação veio se desenhando ao longo da pesquisa: a
as obras aqui analisadas foram editadas entre 1946 e 1972, período em que se concentra
o maior número dos trabalhos de ilustração de Poty. Algumas obras mais recentes não
foram incluídas entre as análises, como a coleção das obras completas de Machado de
Assis lançada pela Editora Garnier em 1988: são livros cujas ilustrações foram realizadas
em curto espaço de tempo e nas quais não se sente a variedade e a profundidade
interpretativa característica da maioria das ilustrações literárias de Poty, de forma que a
análise das relações entre texto e imagem revelou-se pouco produtiva, sendo necessária
talvez uma análise mais específica e de conjunto, contemplando a coleção como um todo.
Dentre as obras analisadas em maior profundidade, foram escolhidas as ilustrações mais
interessantes para a discussão e não necessariamente a totalidade das imagens incluídas
nos livros: outro recorte feito em prol da economia do texto e da pertinência da discussão.
10
Canudos, de Euclides da Cunha, João Abade, de João Felício dos Santos e As noites do
Morro do Encanto, de Dinah Silveira de Queiroz.
11
Em cada capítulo, portanto, é colocada em destaque uma dimensão específica das
relações entre as imagens e o texto. Isso não significa, no entanto, que não ocorram certas
sobreposições entre estes diferentes temas de investigação: não propomos, aqui, uma
divisão rígida e estanque entre diferentes formas de interpretar graficamente o texto
literário, mas sim um grande percurso de leitura, dividido nos diferentes caminhos
desenhados em cada capítulo. Dessa forma, as obras são incluídas em cada caminho
individual de forma flexível, e não como uma classificação rigorosa, evitando assim tanto
a facilidade enganosa da organização cronológica quanto os perigos de uma metodologia
restritiva, buscando, enfim, proporcionar um olhar fecundo e abrangente sobre a relação
entre textos e imagens nos livros ilustrados por Poty.
12
1. Texto, imagem, ilustração
De qualquer forma, é preciso começar por algum lugar: neste caso, por dois. Para
a fundamentação teórica desta pesquisa, trabalhamos em duas frentes: de um lado,
partimos de uma abordagem mais ampla das relações entre a literatura e as artes visuais,
entendendo a ilustração literária como um caso específico dentre um amplo universo de
relações de colaboração, competição ou franca contraposição entre as duas formas
artísticas, em relação ao qual existe uma longa e fecunda tradição crítica. Por outro lado,
buscamos fundamentar a análise e o entendimento da ilustração literária em si,
comparando métodos, perspectivas e pontos de vista, no sentido de agregar à pesquisa
aquilo que for considerado pertinente e afastar, com consciência crítica, o que for
desnecessário, omissivo ou deturpador. Tudo isso na esperança de criar um método – ou
de constatar a sua impossibilidade.
13
afastamento e defesa da autonomia e independência das diferentes formas artísticas. Ao
iluminar alguns aspectos desta tradição analítica, esperamos fornecer alguns dos
subsídios necessários para a abordagem do caso específico das ilustrações de Poty
Lazzarotto, e além disso tornar possível uma compreensão crítica das diferentes
metodologias empregadas em outros estudos sobre a ilustração.
Foi por grave contra-senso que a mímesis aristotélica pôde ser confundida com
a imitação no sentido de cópia. Se a mímesis comporta uma referência inicial
ao real, essa referência designa o próprio reino da natureza sobre toda
produção. Mas esse movimento de referência é inseparável da dimensão
criadora. A mímesis é poíesis, e vice-versa. (RICOEUR, 2005, p. 69).
Há, porém, defeitos para os quais exigimos indulgência: pois nem a corda
produz o som que a mão e o espírito desejam, saindo, muitas vezes, som agudo
a quem procura o grave, nem, tão-pouco, o arco encontra sempre, com a flecha,
o alvo que se mirou. Na verdade, quando inúmeras qualidades brilham num
poema, não vou ofender-me com alguns defeitos, deixados escapar por certa
incúria ou porque a natureza humana os não soube evitar. Que quero eu dizer?
Assim como o copista não merece desculpa, porque, embora avisado, sempre
faz o mesmo erro, e o tocador de cítara é posto a ridículo se, ao dedilhar as
cordas, cai sempre no mesmo engano, igualmente o poeta que muito falha me
lembra o célebre Quérilo, o qual escarneço, ainda que duas ou três vezes ele
seja digno da minha admiração. E não posso deixar de indignar-me todas as
vezes que dormita o bom Homero: contudo, é natural que, na descrição de tão
grande assunto, alguma vez nos domine o sono.
Como a pintura é a poesia: coisas há que de perto mais te agradam e outras, se
a distância estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela à viva luz, por
não recear o olhar penetrante de seus críticos: esta, só uma vez agradou, aquela,
dez vezes vista, sempre agradará. (HORÁCIO, Epístola aos pisões [1984], p.
107-111).
15
Assim, na passagem da Arte poética em que faz o paralelo, Horácio afirma que,
como a pintura, a poesia pode agradar “à distância”, ou seja, em seu conjunto, ou em seus
detalhes; algumas obras suportam um exame mais crítico, outras não; algumas obras
suportam novas leituras e outras não. Ut pictura poesis − assim também com a pintura:
tanto em uma arte como na outra, certos defeitos são perdoáveis, dependendo também do
escrutínio a que a obra é submetida. Segundo Jean Hagstrum no importante estudo The
sister arts, a frase significa menos do que diz, e de forma alguma autoriza a interpretação
posterior:
Actually the phrase means less than what it says, which is, “As a painting, also
a poem”. It really implies only this: “As sometimes in painting, so occasionally
in poetry”. There is no warrant whatever in Horace´s text for the later
interpretation: “Let a poem be like a painting”. (HAGSTRUM, 1968, p. 9)1.
1
Na verdade a frase significa menos do que ela diz, que é “Como na pintura, assim também no poema”.
Ela realmente implica apenas nisso: “Como às vezes na pintura, assim ocasionalmente na poesia”. Não há
absolutamente nenhuma autorização, no texto de Horácio, para a interpretação posterior: “Que o poema
seja como uma pintura.” (Tradução livre do autor, doravante indicada por “TL”).
16
A composição visual, portanto, é entendida como a composição de uma história,
de cuja realização participam diferentes elementos, todos submetidos ao fim maior, que
é a narração:
2
Ut pictura poesis não era um princípio da arte pela arte [...]. Era um lembrete ao poeta de que o exemplo
da pintura provava que a arte podia obter força apenas na medida em que estava em contato mais próximo
possível com a realidade visível (TL).
17
Segundo Giulio Carlo Argan, a cultura humanística modifica profundamente as
concepções medievais do espaço e do tempo: os infinitos aspectos do real passam a ser
organizados em um sistema racional e unitário, o espaço, assim como os eventos que se
sucedem são ordenados no tempo. O verdadeiro espaço, de que é eliminado o que é
irrelevante ou contraditório, é fornecido pela perspectiva; o verdadeiro tempo, de que é
eliminado aquilo que é meramente ocasional, insignificante ou irracional, é fornecido pela
História. Entre uma e outra prática de representação, a natureza e a humanidade são
unificadas como concepção de mundo:
Disso decorre que o tema mais nobre dado à pintura seja a história, seja ela sagrada
ou laica, e que os processos da realização da pintura sejam entendidos sempre em paralelo
com os da narrativa histórica: no tratado de Alberti, a istoria é o mais elevado dos objetos
do pintor, e sua invenção, composição e execução são a glória suprema do artista
(KOSSOVITCH in ALBERTI, 1999, p. 61). Para o pensamento artístico renascentista −
que assumiu valor de modelo para os desenvolvimentos posteriores da arte européia –, as
habilidades da imitação visual devem ser empregadas para fins essencialmente narrativos,
criando uma longa tradição que se consolida no Barroco e se prolonga até o Neoclássico.
18
liberal – ou seja, digna de homens livres, pois ligada ao intelecto, e não mero trabalho
manual ‒, como já o fizera Alberti, mas também a coloca à frente do conhecimento
textual. Para Leonardo, a pintura é mais universal por comunicar-se a todas as pessoas,
independente da língua que falem; além disso, e mais importante, é o melhor modo de
representar a natureza, pois ela “[...] apresenta as obras da natureza aos sentidos com
maior verdade e certeza que as próprias palavras [...]”; (DA VINCI in CARREIRA, 2000,
p. 56). Assim, na disputa entre o poeta e o pintor sobre a tarefa de representar uma história,
quem vence é o pintor:
Caso você, poeta, pretendesse imaginar uma sangrenta batalha, com uma
atmosfera escura e tenebrosa, entre a fumaça de espantosas e mortais
máquinas, espessa poeira que suja o ar, tenebrosa fuga de miseráveis
espantados pela horrível morte, em tal empreita se avantajaria o pintor, pois
sua pena já teria desfalecido antes que pudesse descrever com correção aquilo
que sem tardança o pintor representa com suas ciências. E sua língua ficaria
sufocada pela sede, e seu corpo derrotado pelo sono e pela fome, antes que
mostrasse por palavras o que o pintor, em um instante, já teria demonstrado
por imagens. (DA VINCI in CARREIRA, 2000, p. 59).
19
Além disso, se a pintura é forma de conhecimento, ela compete com a linguagem
também em termos do conhecimento que proporciona, no que a pintura, na opinião de
Leonardo, vence a disputa.
Essa é, sem dúvida, uma ciência, e legítima filha da natureza que a pariu; ou,
para dizer melhor, sua neta, pois todas as coisas visíveis são paridas pela
natureza e dela nasceu a pintura. Com o que teremos de chamá-la plenamente
de neta da natureza e tê-la entre a divina parentela. (DA VINCI in CARREIRA,
2000, p. 58).
20
verbalizadas não há diferença senão no meio de comunicação. (ARGAN, 2004,
p. 22).
21
A pintura é poesia universal, e a poesia é pintura particular, e por isso fica
sendo a pintura melhor que a poesia. A pintura se entende com o sentido da
vista, e a poesia com o do ouvido, e assim como se percebe melhor o que se vê
que o que se ouve, assim fica a pintura com vantagem. A pintura é livro de
néscios, e a poesia livro de sábios, e assim aquela é entendida até do ignorante,
e esta não se dá a entender mais que ao estudioso. (ALMEIDA in MUHANA,
2002, p. 78).
A poesia, assim, é mais ligada à dimensão espiritual; a pintura, por outro lado,
permanece presa aos aspectos materiais e aos sentidos físicos: “A poesia é mais suave ao
douto que a pintura, porque a pintura é mais a propósito para gente miúda, e a poesia é
própria de gente grada. A pintura faz-se mais para o sentido, e a poesia para o espírito.”
(ALMEIDA in MUHANA, 2002, p. 80). Refletindo uma tradição que remonta à
Antiguidade e, em última análise, a Platão, Almeida religa a pintura à matéria e aos
sentidos, e reserva à poesia a capacidade de acesso aos conteúdos espirituais.
Esse simples e largo abrir a boca – pondo-se de lado o quanto as demais partes
da face assim são deformadas e desordenadas de modo violento e asqueroso –
na pintura é uma mancha e na escultura uma cavidade que gera os efeitos mais
desagradáveis do mundo. (LESSING, 2011, p. 94).
22
Este exemplo, algo prosaico, é usado para ilustrar aquilo que é o foco do tratado
de Lessing: a distinção entre as artes visuais, consideradas como “artes do espaço”, e a
literatura, considerada como “arte do tempo”. Se as ações humanas sucedem-se no tempo,
elas podem ser representadas de forma apenas alusiva pelas artes estáticas como a pintura
ou a escultura: elas representam um “antes”, um “depois” ou mesmo um “durante”, mas
sempre apenas um momento, no qual deve-se revelar o máximo de expressividade, e que
na verdade não é capaz de demonstrar a totalidade da ação. As ações sucessivas são,
portanto, mais fielmente representadas pela forma escrita, que se estende no tempo. Por
outro lado, os objetos mais adequados à representação visual são os corpos tal como se
apresentam em simultaneidade no espaço; através do texto literário, porém, estes corpos
só podem ser representados alusivamente. Assim, dependendo do meio de expressão
empregado, existem algumas coisas que são melhor representadas e outras que são
naturalmente inadequadas. O que Lessing defende é uma relação de conveniência entre o
que é representado e os meios da representação:
23
outros, de forma que as diferentes partes se perdem caso não sejam retidas na memória.
(LESSING, 2011, p. 206). Lessing então conclui que, no estabelecimento da ilusão
poética, a descrição pormenorizada deve ser evitada:
Assim, cada arte possui o seu âmbito próprio de atuação: a pintura permanece,
como na teoria barroca, ligada ao corporal e ao sensível, elementos manifestados no
espaço; a poesia, por outro lado, por suas características intrínsecas, é mais adequada ao
espiritual e ao intelectivo, elementos que operam no âmbito imaterial do tempo. A
intervenção de uma arte sobre os domínios da outra é uma contaminação a ser evitada:
24
No quadro geral do pensamento filosófico ocidental sobre a arte, entre o final do
século XVIII e o século XIX, as concepções de Lessing revelam, ainda, um viés que seria
compartilhado por diversos pensadores, no qual a poesia é considerada como uma forma
superior à arte visual. Na sua Crítica da faculdade do juízo (1790), Kant afirma a
superioridade da poesia (KANT, 2002, p. 171); na sistematização das artes proposta por
Hegel, é a poesia que mais pode se aproximar do ideal, por sua proximidade com o
conceito e com o pensamento, abstraindo todos os aspectos sensíveis a que as artes
plásticas estão atreladas. Por outro lado, segundo Márcio Seligmann-Silva, a teoria de
Lessing será fundamental para o processo de “autonomização” das artes, ainda que nele
ainda seja operante o princípio mimético-imitativo, que o mesmo processo de
autonomização viria a negar ao longo das conquistas da arte moderna. Assim, ao refletir
sobre o funcionamento dos signos e sobre a forma de recepção de cada arte, ele acaba
contribuindo para a superação do próprio princípio mimético que estava na base da teoria
da ut pictura poesis. (SELIGMANN-SILVA in LESSING, 2011, p. 55). No Laocoonte,
no entanto, o princípio mimético ainda é compreendido dentro do quadro geral da
imitatio, ainda que a natureza, de acordo com o pensamento neoclássico que se faz
presente nas considerações de Lessing, devesse ser corrigida pela arte: “[...] como a arte,
por definição, é imitação, não existiria o belo artístico se não se imitasse a natureza; no
entanto, se a arte não ensinasse a escolher o belo entre as infinitas formas naturais, não
teríamos a noção do belo da natureza.” (ARGAN, 1992, p. 22).
25
1.2. Imagem, ícone e convenção
The bodies represented by a painting are not directly presented in any literal
sense; they are indirectly presented by means of shapes and colors – that is, by
certain kinds of signs. The distinction between “direct” and “indirect” is
therefore not a difference of kind, but one of degree. Painting presents bodies
indirectly, through pictorial signs, but it does so less indirectly than its
presentation of actions. The representation of bodies is easy or “convenient”
for painting. The representation of actions is not impossible, just more difficult
or inconvenient. (MITCHELL, 1984, p. 101-102).3
3
Os corpos representados em uma pintura não são apresentados diretamente de nenhuma forma literal: eles
são apresentados indiretamente por meio de formas e cores, ou seja, por certos tipos de signos. A distinção
entre “direto” e “indireto” não é, portanto, uma diferença de tipo, mas de grau. A pintura apresenta corpos
indiretamente, através de signos pictóricos, mas ela o faz menos indiretamente do que a apresentação de
ações. A representação de corpos é fácil ou “conveniente” para a pintura. A representação de ações não é
impossível, apenas mais difícil ou inconveniente (TL).
26
Assim, a diferença entre a representação “direta” ou “indireta” é só uma questão
de maior ou menor esforço e trabalho por parte do artista, e não uma decorrência de
supostas características essenciais de cada arte. Uma visão panorâmica da arte figurativa
europeia entre os séculos XV e XIX revela esta verdade simples: grande parte da arte
visual foi − e ainda é − dedicada à narração de histórias reais ou fictícias, possuindo uma
forte relação com a narrativa ou com a escrita literária.
Our beginning premise would be that works of art, like all other objects of
human experience, are structures in space-time, and the interesting problem is
to comprehend a particular spatial-temporal construction, not to label it as
temporal or spatial. A poem is not literally temporal and figuratively spatial: it
is literally a spatial-temporal construction. The terms “space” and “time” only
become figurative or improper when they are abstracted from one another as
independent, antithetical essences that define the nature of an object.
(MITCHELL, 1984, p. 103).4
4
Nossa premissa inicial seria que obras de arte, como todos os outros objetos da experiência humana, são
estruturas no espaço-tempo, e que o problema interessante é compreender uma construção espaço-temporal
particular, e não rotulá-la como temporal ou espacial. Um poema não é literalmente temporal e
figurativamente espacial: ele é literalmente uma construção espaço-temporal. Os termos “espaço” e
“tempo” só se tornam figurativos ou impróprios quando são abstraídos um do outro como independentes,
essências antitéticas que definem a natureza de um objeto (TL).
27
universo linguístico, é caricaturizada como irracional, envolvida em obscenas práticas
idólatras das quais o saber racional se põe a salvo (MITCHELL, 1984, p. 113).
Uma das discussões mais ricas presentes em Iconology é a análise que Mitchell
faz dos diferentes conceitos de imagem. O autor não propõe uma nova definição de
imagem, mas sim investigar como a palavra “imagem” é usada em uma série de discursos
institucionalizados: crítica literária, história da arte, teologia, filosofia e ótica. O termo
“imagem”, assim, é entendido como origem de uma ampla “família” de significados –
empregando um termo caro a Wittgenstein – que, ao longo da sua história, vem habitando
diferentes campos do saber, sofrendo profundas mutações no processo. Se os significados
de “imagem” constituem uma família, deve ser possível estabelecer a sua genealogia,
representada pelo diagrama abaixo:
28
mundo. Não há, portanto, uma concepção de imagem mais “correta” que as outras, ou
uma concepção apropriada e estável frente a concepções menos adequadas, como poderia
sugerir a distinção entre imagens físicas e imagens mentais ou verbais. O que há são
definições que se encontram em luta constante pelo domínio, relegando, muitas vezes, os
demais sentidos de “imagem” ao obscurantismo, no momento em que se proclamam
como as mais corretas.
The dialectic of word and image seems to be a constant in the fabric of signs
that a culture weaves around itself. [...] The history of culture is in part the
story of a protracted struggle for dominance between pictorial and linguistic
signs, each claiming for itself certain proprietary rights on a “nature’ to which
only it has access. (MITCHELL, 1984, p. 43).6
5
A relação entre palavras e imagens reflete, no reino da representação, as relações que postulamos entre os
símbolos e o mundo, os signos e seu significado (TL).
6
A dialética da palavra e da imagem parece ser uma constante no tecido de signos que uma cultura tece ao
redor de si mesma. [...] A história da cultura é, em parte, a história da longa luta pelo domínio entre os
signos pictóricos e linguísticos, cada um deles reivindicando para si certos direitos de propriedade sobre
uma “natureza” a que só ele tem acesso (TL).
29
is one of the central utopian gestures of modernism. (MITCHELL, 1994, p.
5).7
7
[...] a interação de figuras e textos é constitutiva da representação como tal: todos os meios são meios
mistos, e todas as representações são heterogêneas; não há artes “puramente” visuais ou verbais, ainda que
o impulso de purificar os meios seja um dos gestos utópicos centrais do modernismo (TL).
30
estética que era valorizado nas formulações de Horácio e Plutarco. Por outro lado, a
distinção pode servir para afirmar que a pintura só pode veicular informações de um tipo
inferior, mais ligadas ao “estado de natureza”, enganando crianças e animais
(MITCHELL, 1984, p. 79), sendo portanto incapaz de representar a verdadeira
profundidade do espírito humano.
The notion of image as a “natural sign” is, in a word, the fetish or idol of
Western culture. As idol, it must be constituted as an embodiment of the real
presence it signifies, and it must certify its own efficacy by contrasting itself
with the false idols of other tribes – the totems, fetishes, and ritual objects of
pagan, primitive cultures, the “stylized” or “conventional” modes of non-
Western art. (MITCHELL, 1984, p. 90).8
The effect of this invention was nothing else than to convince an entire
civilization that it possessed an infallible method of representation, a system
for the automatic and mechanical production of truths about the material and
the mental worlds. [...] Aided by the political and economical ascendance of
Western Europe, artificial perspective conquered the world of representation
under the banner of reason, science, and objectivity. (MITCHELL, 1984, p.
37).9
8
A noção de imagem como “signo natural” é, numa palavra, o fetiche ou o ídolo da cultura ocidental. Como
ídolo, deve se constituir como uma corporificação da presença real que significa, e deve certificar sua
própria eficácia em contraste com os falsos ídolos de outras tribos – os totens, fetiches e objetos rituais de
culturas pagãs primitivas, os modos “estilizados” ou “convencionais” da arte não-ocidental (TL).
9
O efeito desta invenção foi nada menos que convencer uma civilização inteira de que possuía um método
infalível de representação, um sistema para a produção automática e mecânica de verdades sobre os mundos
material e mental. [...] Ajudada pela ascendência política e econômica da Europa Ocidental, a perspectiva
artificial conquistou o mundo da representação sob o estandarte da razão, ciência e objetividade (TL).
31
Como demonstra o filósofo estadunidense Nelson Goodman, a artificialidade da
perspectiva aparece quando consideramos as condições de observação necessárias para a
produção da perspectiva cônica: a observação por um orifício, de uma distância e ângulos
dados e imóveis, com um único olho, que deve permanecer imóvel – impedindo assim a
varredura necessária à construção da imagem perceptiva. As condições de observação
necessárias para a reprodução da perspectiva pelo olho humano são grosseiramente
anormais, o que aponta para o fato de que a perspectiva também é convencional, também
é “arbitrária”: “As imagens em perspectiva, como todas as outras, têm de ser lidas, e a
capacidade de ler tem de ser adquirida. O olho unicamente acostumado à pintura oriental
não compreende imediatamente uma pintura em perspectiva.” (GOODMAN, 2006, p.
46). Não existe, portanto, uma semelhança natural, a priori, entre a imagem percebida
pelo olho humano e a imagem perspéctica.
32
Umberto Eco, em seu Tratado geral de semiótica (1991), critica as diferentes definições
do termo e constata, finalmente, a inutilidade do conceito, que, como o símbolo, também
é regido por convenções:
[...] não podem ser classificados como categoria única porque alguns dos
procedimentos que regulam os chamados signos icônicos podem também
circunscrever outros tipos de signos, enquanto vários procedimentos que
regulam outros tipos de signos entram a constituir muitos dos chamados signos
icônicos.
Portanto, o que se individuou no curso desta longa crítica do iconismo não são
mais tipos de signos, mas MODOS DE PRODUZIR FUNÇÕES SÍGNICAS.
O projeto de uma tipologia dos signos sempre foi equivocado e por isso tem
levado a tantas incongruências. (ECO, 1991, p. 190).
33
contraposições e associações com outras imagens e com outros textos: a mímese que a
imagem efetua, portanto, é mímese criativa, poiésis, que, mesmo ancorada em diferentes
aspectos do material textual, possui uma performatividade própria.
34
− que para o pensamento mimético-imitativo era dado de antemão − é efetivamente
produzido:
10
Estamos confinados às formas de descrever qualquer coisa que seja descrita. Nosso universo, por assim
dizer, consiste destas formas, mais do que de um mundo ou de mundos. (TL).
11
A criação de mundos, tal como a conhecemos, parte sempre de mundos já disponíveis: a criação é uma
recriação. (TL).
35
p. 7). Outro processo é o de atribuição de relevância12, que estabelece a ênfase sobre
certos aspectos em detrimento de outros ‒ processo este especialmente presente nas
realizações artísticas (GOODMAN, 1978, p. 11). Através da ordenação definem-se
diferentes sistemas construtivos, dominados por relações específicas de preeminência e
derivação, e que estabelecem ordenamentos de periodicidade e proximidade. Através da
eliminação e suplementação13 certos elementos são sumariamente eliminados ou
omitidos, enquanto outros são adicionados como suplementos e preenchimentos
(GOODMAN, 1978, p. 14). E, finalmente, a modificação e transformação de aspectos e
elementos de um determinado mundo são descritas como deformação, que, de acordo
com determinados pontos de vista, pode ser tomada tanto como distorção quanto como
correção em relação ao modelo preexistente.
12
Em inglês, weighting, referindo-se à atribuição de pesos específicos para determinados aspectos. Na
ausência de um termo correlato em português, optamos pelo termo composto atribuição de relevância, que
consideramos mais claro do que ponderação, relativo à tradução francesa como pondération.
13
Em inglês, deletion and supplementation.
36
pode trabalhar através da deformação, criando imagens que consistem em contradições
flagrantes do texto e também através do emprego alterado, intencionalmente distorcido,
dos códigos tradicionais de representação. Todas estas operações sugerem, assim, uma
série de relações possíveis entre as imagens e o texto. E, como na criação de mundos
descrita por Goodman, tais operações raramente aparecem isoladamente, ocorrendo,
quase sempre, de forma simultânea, combinando procedimentos de
composição/decomposição, atribuição de relevância, ordenamento,
eliminação/suplementação e deformação em diferentes intensidades e formas.
37
cabeça” de quem lê. Sem dúvida, pode-se entender a declaração como resultado da
profunda ligação que existe hoje entre o cinema de ficção e suas fontes literárias, ou do
papel do cinema no imaginário contemporâneo; por outro lado, a afirmação aponta
decididamente para o poder que o texto – em especial o texto de ficção – possui de “fazer
ver”, de suscitar imagens de pessoas, paisagens, cidades e mesmo seres que não existem
na realidade. A “imagem verbal”, que na classificação de Mitchell (cf. supra, Diagrama
1) é exemplificada pelas descrições e metáforas, aponta para toda uma dimensão visual
que se faz presente no texto literário, extrapolando estes dois exemplos e gerando vários
desdobramentos pertinentes para o entendimento da ilustração literária. O que vamos
analisar ao longo deste tópico são as concepções de “imagem” na teoria literária,
buscando lançar luz sobre os processos através dos quais o texto, e em especial o texto
narrativo de ficção, torna-se capaz de suscitar visões, fazendo imaginar ou “visualizar”,
em um sentido bastante específico, a matéria narrada.
As hipotiposes podem ser produzidas por denotação, por descrição detalhada, por
listagem ou por acúmulo de eventos e personagens, “que fazem nascer a visão do espaço
38
onde tais coisas acontecem.” (ECO, 2007, p. 232). O outro topos literário ligado à visão
é a écfrase (ekphrasis), termo que para os retóricos antigos designava todo tipo de
descrição vívida, mas que em sua acepção moderna se restringe à descrição
pormenorizada de obras de arte visual, cujo exemplo arquetípico é a longa descrição do
escudo de Aquiles no canto XVIII da Ilíada. Procedimento empregado em diversas
épocas, estilos e gêneros textuais, e tornado um verdadeiro gênero nos Eikones de
Filóstrato, o Velho (séc. II), a écfrase coloca questões pertinentes acerca das relações
entre literatura e artes visuais, por realizar aquilo que, para Lessing – entre outros −, seria
uma impossibilidade ou uma inadequação: a efetivação de um conteúdo visual através de
um meio verbal. Para Rifaterre, por exemplo, a écfrase é uma “ilusão”: o que ela gera,
enquanto texto, não possui nenhuma relação real com a visão, pois tudo o que ela
engendra está no terreno das palavras, e não do seu equivalente pictórico.
14
O que determina a representação não é a obra representada, que, na realidade, não é tanto o objeto quanto
o pretexto dela. O texto literário se comporta como se tivesse a necessidade de um exemplo que
transcendesse seu próprio discurso, e como a pintura é descrita para servir de cláusula à sequência verbal,
de modo algum pode-se definir a écfrase literária como uma leitura, pois o que decifra, em primeiro lugar,
não é o quadro, mas o seu espectador. É a interpretação do espectador (do autor) que dita a descrição, e não
o inverso (TL).
15
[...] mas, a menos que traduzam histórias, mitos já presentes no socioleto, falta-lhes a reversibilidade e a
semiose ilimitada dos signos verbais (TL).
39
aqui, a possibilidade de uma versão visual da intertextualidade – a intericonicidade, termo
proposto por Márcia Arbex como “o processo de produtividade de uma imagem que se
constrói como absorção ou transformação de outras imagens.” (ARBEX, 2003, p. 6).
40
Em continuidade com a influente teoria aristotélica, também nas abordagens
teóricas do século XX é dominante a ligação da imagem com a metáfora: para Welleck e
Warren, na sua conhecidíssima Teoria da Literatura de 1948, a imagem surge, em
primeiro lugar, como “sobrevivente” e “representação” da sensação (WARREN;
WELLECK, 1962, p. 235). Os autores concordam com I. A. Richards quando este afirma,
nos seus Principles of literary criticism de 1924, que “demasiada tem sido sempre a
importância atribuída às qualidades sensórias das imagens. O que a uma imagem confere
eficácia é menos o seu tom vívido como imagem do que o seu carácter de evento mental
ligado à sensação de maneira peculiar.” (apud WARREN; WELLECK, 1962, p. 235). Os
autores abandonam rapidamente a imagem ligada à sensação visual para dedicar-se à
imagem como metáfora:
41
metafórico: fala-se da imagem fora do seu aspecto visual ou sensório, fora da sua relação
com o olhar. O próprio Frye constata explicitamente esta noção do olhar como metáfora
para as operações do pensamento, distinta da visão própria das artes plásticas:
42
de Iser, “[...] devemos substituir a velha pergunta sobre o que significa esse poema, esse
drama, esse romance pela pergunta sobre o que sucede com o leitor quando com leitura
dá vida aos textos ficcionais.” (ISER, 1996 [v. 1], p. 53). E o “mundo do texto” é um
mundo imaginário que lança mão de numerosos referentes sensórios: auditivos, táteis,
visuais, sem falar em elementos éticos e emocionais. Daí a importância da teoria da
recepção para a discussão da imagem na narrativa: o texto, em si mesmo, não apresenta
aspectos visuais pertinentes – a não ser em casos específicos, como a poesia concreta ou
a poesia visual −, mas, no processo da sua recepção pelo leitor, este é levado a imaginar,
ou seja, a criar imagens, que se estabelecem com base em elementos visuais ou sensórios
determinados ou sugeridos pelo texto. A leitura cria algo como uma “visão interior”, que,
como havia expresso Frye, “tem algo das artes plásticas.” (FRYE, 1973, p. 140). Como
já havia percebido Bakhtin a partir da sua concepção dialógica da linguagem − que aliás
possui pontos de contato com a teorização de Iser −, a imagem, na obra literária, se impõe
como artisticamente significativa:
Para Wolfgang Iser, o processo da leitura deve ser entendido como uma interação
dinâmica entre o texto e o leitor. A leitura só se torna um prazer no momento em que
nossa produtividade, nascida desta interação, entra em jogo. É como um movimento que
o processo da leitura se dá, e é nesse movimento que a imagem surge como categoria de
43
representação e efeito estético. Deve-se, no entanto, distinguir entre a imagem ótica,
estritamente ligada à percepção visual, e a imagem na ficção: a recepção do texto, ao
contrário da percepção de uma imagem ótica, tem a peculiaridade de nunca estar inteira
diante do leitor.
Este movimento faz com que o leitor presencie o texto em fases, como uma
construção que se estabelece em uma sequência de diferentes momentos temporais.
Assim, a totalidade do texto é constituída como ato sintetizador por parte do leitor: a
leitura se dá como uma sucessão de sínteses. “Graças a essas sínteses, o texto se traduz
para a consciência do leitor, de modo que o dado textual começa a constituir-se como
correlato da consciência mediante a sucessão das sínteses.” (ISER, 1996 [v. 2], p. 15). A
leitura se dá então simultaneamente como movimento temporal e esforço de síntese,
sendo que cada nova síntese transforma o conjunto da leitura apreendida:
44
O conceito fundamental que Iser aqui introduz é o de ponto de vista em
movimento, em que cada novo momento (e ponto de vista empregado) não está isolado,
pois retém os anteriores em seu presente: o ponto de vista em movimento tem “presença
retentiva” (ISER, 1996 [v. 2], p. 21). A focalização se determina pela evocação da
perspectiva do narrador, gerando diferentes horizontes que se iluminam mutuamente
(ISER, 1996 [v. 2], p. 22-23). Observe-se que o próprio uso do termo “horizonte” aponta
para a espacialização da leitura, como explica Iser:
Segundo Iser, a representação que nasce com a síntese passiva tem caráter de
imagem. “A imagem é portanto a categoria básica da representação. Ela se refere ao não-
45
dado ou ausente, dando-lhe presença.” (ISER, 1996 [v. 2], 58). A imagem é o modo básico
de recepção do texto, pois esta recepção necessariamente constitui, produtivamente, algo
que não está lá: a percepção requer a pré-existência de um objeto dado, enquanto que a
representação imagética se constitui por referência a algo ausente. Os “aspectos
esquematizados” do texto – termo que Iser toma de empréstimo a Ingarden – limitam-se
a nos informar sob quais condições o objeto imaginário deve ser constituído (ISER, 1996
[v. 2], p. 58), daí que a imagem criada no processo da leitura seja caracterizada por uma
“pobreza ótica”. As representações que nascem no processo de leitura, segundo Iser,
“iluminam a personagem não como um objeto, mas como portador de significação.”
(ISER, 1996 [v. 2], p. 59).
47
é controlada pelo dito e este por sua vez deve se modificar quando por fim vem
à luz aquilo a que se referia. (ISER, 1996 [v. 2], p. 106).
São estes “lugares vazios” − conceito criado por Iser para se referir à
indeterminação característica do texto ficcional − que fundam a relação entre texto e
leitor.
48
leitura de ficção antecede e embasa a ilustração, imagem gráfica e visual. Retomando a
terminologia de Nelson Goodman, o “mundo do texto”, repensado pela estética da
recepção, só se concretiza no processo da leitura, para ser então reprocessado
graficamente pelo ilustrador, constituindo então o “mundo da ilustração”. As imagens
nascidas da leitura alimentam o que os ilustradores chamam de “clima” do livro ‒ que
não é mais do que uma forma de se referir ao “mundo do texto” ‒, que, em um esforço
ativo e consciente de elaboração gráfica e síntese visual, através de procedimentos tais
como composição/decomposição, atribuição de relevância, ordenação, eliminação/
suplementação e deformação, transmuta-se em ilustração literária.
49
para a pesquisa específica das ilustrações literárias de Poty Lazzarotto. Julgamos assim
contemplar tanto aspectos mais específicos quanto aspectos mais amplos, que nesta
pesquisa estão intimamente relacionados. Esta revisão do tema não pretende,
evidentemente, esgotar a questão, mas sim fornecer elementos para embasar os métodos
e procedimentos que serão empregados nesta abordagem da obra de Poty.
Side by side with the evolution of letters and calligraphic art went on the
evolution of the graphic power and the artistic sense, developing on the one
hand towards close imitation of nature and dramatic incident, and on the other
towards imaginative beauty, and systematic, organic ornament, more or less
built upon a geometric basis, but ultimately bursting into a free foliation and
flamboyant blossom, akin in inventive richness and variety to a growth of
nature herself. (CRANE, 2012 [1905], p. 15).16
Crane também considera a imagem no livro como sujeita a uma polarização entre
decoração e ilustração, distinção presente em vários estudos sobre o assunto. Esta
distinção é interessante por separar aquilo que tem caráter narrativo e efetiva relação com
o texto daquilo que é elemento incidental, sem relações imediatas com o conteúdo textual.
De qualquer forma, a intervenção da imagem no texto é considerada um elemento
desejável, por permitir que “outros pensamentos” ocorram no decorrer da leitura – daí
16
Paralelamente à evolução das letras e da arte caligráfica prosseguiu a evolução do poder gráfico e do
senso artístico, desenvolvendo-se, por um lado, no sentido da imitação detalhada da natureza e do incidente
dramático, e por outro no sentido da beleza imaginativa e do ornamento sistemático, orgânico, construído
sobre base mais ou menos geométrica, mas finalmente explodindo na folhagem livre e no florescer
exuberante, aparentado, na riqueza inventiva e na variedade, ao crescimento da própria natureza (TL).
50
que a ilustração seja capaz de enriquecer os sentidos presentes no texto, além de tornar a
leitura mais prazerosa:
In those [illuminations] of our own country we can realize how full of colour,
quaint costume, and variety was life when England was indeed merry, in spite
of family feuds and tyrannous lords and kings; before her industrial
transformation and the dispossession of her people; ere Boards of Works and
Poor-law Guardians took the place of her monasteries and abbeys; before her
streams were fouled with sewage, and her cities blackened with coal smoke −
the smoke of the burning sacrificed to commercial competition and wholesale
production for profit by means of machine power and machine labour; before
she became the workshop and engine-room of the world. (CRANE, 2012
[1905], p. 20).18
Naquela época, diz Crane, o artista podia trabalhar sem ter sobre si a pressão do
impressor e da editora, livre, portanto, das pressões mercadológicas (CRANE, 2012
[1905], p. 20). Ainda que já houvesse uma divisão do trabalho entre o escriba, o
17
Em uma jornada através de um livro, é prazeroso chegar ao oásis de uma figura ou de um ornamento,
sentar-se por um instante sob as palmeiras, deixar nossos pensamentos aliviados divagar, beber de outras
águas intelectuais, e nelas, talvez, ver refletidas as ideias que estivemos perseguindo (TL).
18
Nestas [iluminuras] de nosso próprio país podemos ter consciência de quão cheia de cor, indumentária
extravagante e variedade era a vida quando a Inglaterra era realmente alegre, apesar das rixas familiares e
dos senhores e reis tirânicos, antes da sua transformação industrial e da despossessão do seu povo; antes de
que os Boards of Works e os Poor-law Guardians tomassem o lugar dos seus monastérios e abadias; antes
dos seus rios serem contaminados com esgoto, e suas cidades enegrecidas com fumaça de carvão – a fumaça
dos queimados em sacrifício à competição comercial e à produção em massa para o lucro, por meio da força
mecânica e do trabalho mecânico; antes dela se tornar a oficina e a sala de máquinas do mundo (TL).
51
iluminador e o miniaturista, tudo confluía para a harmonia e a unidade dos efeitos
(CRANE, 2012 [1905], p. 22). A tecnologia, assim, é vista com certa desconfiança pelo
autor: para ele, a introdução da gravura em metal – cuja impressão precisa ser feita de
forma separada do texto tipográfico – foi responsável pela perda do vigor decorativo,
apesar das linhas mais finas que possibilitou, pois no seu processo de impressão o texto e
a imagem são separados tanto em sua impressão como em sua concepção visual.
(CRANE, 2012 [1905], p. 60). A tecnologia é, portanto, suspeita por alterar o equilíbrio
dos elementos do livro, que antes primavam pela harmonia:
A new invention often has a dislocating effect upon design. A new element is
introduced, valued for some particular facility or effect, and it is often adopted
without considering how — like a new element in a chemical combination − it
alters the relations all round. (CRANE, 2012 [1905], p. 64).19
19
Uma nova invenção com frequência tem efeitos de deslocamento sobre o desenho. Um novo elemento é
introduzido, valorizado por alguma facilidade ou efeito particular, e com frequência é adotado sem a
consideração de como – tal qual um novo elemento em uma combinação química – ele altera as relações
em torno de si (TL).
20
Pensamento e visão dividem o mundo da arte entre si – nossos pensamentos seguem nossa visão, nossa
visão é influenciada pelos nossos pensamentos. Um livro pode ser o lar tanto do pensamento quanto da
visão (TL).
52
Even in these days, however, books have been entirely produced by hand, and,
for that matter, if beauty were the sole object, we could not do better than
follow the methods of the scribe, illuminator, and miniaturist of the Middle
Ages. But the world clamours for many copies (at least in some cases), and the
artist must make terms with the printing press if he desires to live. It would be
a delightful thing if every book were different − a millennium for collectors!
Perhaps, too, it might be a wholesome regulation at this stage if authors were
to qualify as scribes (in the old sense) and write out their own works in
beautiful letters! How it would purify literary style! (CRANE, 2012 [1905], p.
143).21
21
Mesmo naqueles dias, no entanto, livros foram produzidos inteiramente à mão e, por isso, se a beleza
fosse o único objetivo, não poderíamos fazer melhor do que seguir os métodos do escriba, do iluminador e
do miniaturista da Idade Média. Mas o mundo clama por muitas cópias (pelo menos em alguns casos), e o
artista deve se adaptar à prensa de tipos móveis se ele deseja viver. Seria algo encantador se todo livro fosse
diferente – um éden para os colecionadores! Talvez fosse também uma saudável regra se os autores
tivessem que se qualificar como escribas (no sentido antigo) e escrever os seus próprios trabalhos em belas
letras! Como isso purificaria o estilo literário! (TL).
22
A interação entre imitação e imaginação foi particularmente fértil no emblema do século XVII, gênero
que para Crane prova como alegoria e simbolismo podem se entrelaçar em uma obra de arte constituída de
signos verbais e visuais. Ao enfatizar como o Renascimento testemunhou uma amalgamação de
componentes didáticos e simbólicos, Crane concebe a linguagem como um sistema em que signos naturais
e miméticos coexistem com outros convencionais e arbitrários. Tais argumentos se fundam na ideia de que
alguns sons da linguagem significam per se, e algumas relações entre significante e significado na
linguagem escrita não são arbitrárias. E mesmo assim Crane tem consciência de que a linguagem não é
transparente. A sua visão da ilustração pode ser considerada como uma tentativa tardia do século XIX de
53
Esta dialética estabelecida entre “signos naturais” e “signos motivados”, ou seja,
convencionais, também se faz presente em Livro ilustrado: palavras e imagens, de Maria
Nikolajevna e Carole Scott (2011), dedicado ao livro ilustrado (geralmente infantil) em
que as figuras são parte indissociável da matéria narrativa. A especificidade dos signos
icônicos é apresentada a partir de uma perspectiva nascida da Semiótica, como as autoras
esclarecem já no início do trabalho:
demonstrar que a representação verbal da realidade é fundada sobre signos motivados, mas também traz à
tona questões cruciais do debate do século XX sobre a arbitrariedade e convencionalidade das palavras
(TL).
54
distinção que remonta a Lessing, segundo a qual as duas linguagens têm funções
naturalmente diversas. “A função das figuras, signos icônicos, é descrever ou representar.
A função das palavras, signos convencionais, é principalmente narrar”.
(NIKOLAJEVNA; SCOTT, 2011, p. 14). O problema da atribuição de supostas funções
intrínsecas à imagem ou à palavra é, no mínimo, desconsiderar a antiga e riquíssima
tradição da imagem narrativa, assim como topoi literários como a écfrase e a hipotipose:
é uma teoria que desconsidera completamente a prática artística e discursiva.
Uma narrativa verbal pode ser ilustrada por uma ou várias imagens. Com isso,
ela se torna uma história ilustrada; em que as imagens são subordinadas às
palavras. O mesmo texto pode ser ilustrado por diferentes artistas, que
transmitem diferentes interpretações (muitas vezes contrárias à intenção
original), mas a história continuará basicamente a mesma e pode ser lida sem
considerar as imagens. (NIKOLAJEVNA; SCOTT, 2011, p. 23).
55
das relações entre texto e imagem −, reaparecem as noções da comunicação por meios
diretos ou indiretos e da função essencial, naturalizada, de cada meio expressivo:
56
necessariamente, a outros significados, próprios desse outro código. Traduzir,
para Poty, não significa subordinação à expressão verbal: em alguns casos,
usando os recursos de seu próprio código, contradiz a obra literária, seu
discurso, conquistando, pela ambigüidade, mais autonomia para as ilustrações,
tornando a obra mais interessante. (GUTIERREZ, 2010, p. 30).
57
falar em leis específicas, performativas, flexíveis de acordo com os falantes, os ouvintes,
e suas diversas e variadas situações de interação? A flexibilização destes conceitos
permite entender também as diferentes formas de ilustrar um texto que vemos presentes
na obra de um só ilustrador, na medida em que ele altera temática, estilo, ponto de vista,
escolha dos elementos, composição, etc., de acordo com cada obra ilustrada. A própria
noção de dialogismo, em Bakhtin, está estritamente atrelada à especificidade única dos
contextos de comunicação; o entendimento da ilustração como “transposição” ou
“tradução intersemiótica”, porém, traz consigo os velhos preconceitos:
A leitura da relação entre as obras de Poty e Dalton se faz a partir das duas
noções bakhtinianas de dialogismo: o diálogo entre interlocutores e o diálogo
entre os discursos – para Bakhtin, uma “construção híbrida”, (in)acabada por
vozes em concorrência e sentidos em conflito, onde autores e obra interagem
com outros eus através de procedimentos semelhantes para a transposição
intersemiótica. (GUTIERREZ, 2010, p. 60).
A composição das ilustrações nas páginas é entendida por Gutierrez como uma
tentativa de “[...] traduzir semioticamente a repetição/redundância da escritura, criar a
unidade tempo, aproximando-se da narrativa” (GUTIERREZ, 2010, p. 67) – no que a
autora cai na velha distinção entre artes temporais e artes espaciais. Mas a sua noção de
intertextualidade acaba ficando confusa: “Todo dialogismo é intertextualidade, porém
nem toda intertextualidade (montagem/colagem/relação compositiva) é dialógica.”
(GUTIERREZ, 2010, p. 67). Ao contrário, afirmamos aqui que toda intertextualidade é
dialogismo, mas nem todo dialogismo é intertextual: as imagens – como os analfabetos −
também dialogam entre si, mesmo na ausência do texto.
58
Para a análise das ilustrações, a autora emprega conceitos tradutológicos como
tradução literal, adaptação e equivalência, e verifica o enquadramento destes conceitos na
análise das ilustrações. Assim, o texto é considerado como “texto-fonte” (TF) e a imagem
como “texto-alvo” (TA) − considerando-se que as imagens são, via de regra, posteriores
ao texto (PEREIRA, 2008, p. 9). Observe-se que a autora desconsidera, evidentemente, o
caso dos livros de figuras infantis, em que a criação das imagens é, muitas vezes,
concomitante à dos textos.
Ainda que a proposta da autora seja de um bom senso inatacável, cabe aqui uma
objeção: a imagem acaba sendo vista como texto, como uma segunda forma de escritura,
e, portanto, completamente submissa às categorias e sistemas da expressão textual/verbal.
Para tornar a abordagem mais precisa e mais fecunda, deve-se perguntar não como a
imagem “reescreve” o que é dito no texto, mas como a imagem “mostra” aquilo que o
texto “fala” – e, inversamente, como a imagem é dotada do poder de “falar” ou “narrar”,
e como o texto é dotado do poder de “mostrar”. É nestes desdobramentos mútuos que se
pode encontrar o que a autora chama de “relação dialogal que a palavra desenrola com a
imagem” (PEREIRA, 2008, p. 10).
59
artístico conduzido pelo artista visual na sua relação com o texto. O ilustrador pode
ilustrar a ação, apresentar as personagens, sugerir cenários, afastar-se ou aproximar-se do
real, do fantástico, do caricatural, do simbólico (PEREIRA, 2008, p. 88). Na sua relação
com a narrativa, a ilustração pode antecipar, recapitular, resumir a história, fazendo com
que o leitor acompanhe estes movimentos com relação ao fluxo da leitura
‒ procedimentos comparáveis ao ordenamento, outra das formas de criação de mundos,
segundo Goodman. Para Pereira, a ilustração pode constituir, assim, uma verdadeira
narrativa que se entrecruza com a narrativa textual; a imagem, porém, possui um outro
“ponto de vista”: “O que acontece a esse respeito é que, na ilustração, o narrador é o
ilustrador, o que pressupõe, independentemente do narrador textual, uma terceira pessoa
apresentando a história visualmente.” (PEREIRA, 2008, p. 117).
60
ilustrado, que pela sua própria natureza representa uma hibridação de diferentes
linguagens artísticas. Assim, entre um determinado texto e a ilustração criada
posteriormente para acompanhá-lo ‒ elementos que se reúnem materialmente no livro
ilustrado ‒ é criada uma relação de soma, não de substituição; falar, portanto, em tradução
ou transposição sempre implica em desconsiderar o fato de que, na ilustração de livros, a
imagem e o texto, o “texto-fonte” e o “texto-alvo”, sempre estão co-presentes – o que não
é o caso da tradução interlingual (com a possível exceção de edições bilíngues) nem da
transposição fílmica.
Destacada do fundo por uma silhueta luminosa, esta forma singular encolhe-
se, fechando-se em si mesma numa sintetização extremada, no centro de uma
ambientação inóspita. A dramaticidade irrompe desta aridez em que reverbera
o comentário de Bakhtin: “A catástrofe trágica em Dostoiévski sempre tem por
base a desagregação solipsista da consciência do herói, seu enclausuramento
em seu próprio mundo”. (DÓRIA, 1998, p. 46).
61
comentário sobre uma ilustração em que uma figura de costas volta seu rosto para trás,
na direção do espectador:
62
discursivo, do narrativo, do extravisual. É a este campo misto, a este campo
classicamente circunscrito pelo termo “arte aplicada”, que daremos o nome de
intersemiótico. Há uma espécie de porosidade, de “tradução” de um campo a
outro – dos recursos da escrita para os recursos da imagem – que possibilita
uma forma moderna de trabalhar com conceitos também traduzidos,
contrabandeados da teoria da linguagem para a imagem ou da história da arte
para a literatura. (RUFINONI, 2006, p. 29-30).
Com uma ampla bibliografia teórica, o trabalho de Paula Viviane Ramos, Artistas
ilustradores – a editora Globo e a constituição de uma visualidade moderna pela
ilustração (2007), estabelece alguns parâmetros pertinentes para a nossa pesquisa. Ela
destaca o fato de que a historiografia artística nacional pouco se ocupou da ilustração
literária, já que
63
o texto dentro do campo visual. Assim, de acordo com Étienne Souriau, “às imagens
mentais provocadas pelo texto se misturam as imagens formais criadas pelo ilustrador,
engendrando elas mesmas novas imagens mentais, num processo inesgotável, alimentado
pelas bagagens do leitor.” (apud RAMOS, 2007, p. 23-4).
64
48). No caso da função estética, trata-se da ênfase sobre os aspectos de configuração
visual:
Apesar de o autor admitir que a ilustração pode ser entendida como tradução, ele
aponta para o fato (acima mencionado) de que a ilustração divide espaço com o texto
(CAMARGO, 1998, p. 74). Assim, “a relação entre texto e ilustração talvez pudesse,
então, ser denominada como coerência intersemiótica, denominação essa que toma de
empréstimo e amplia o conceito de coerência textual [...]”. (CAMARGO, 1998, p. 74).
Esta coerência pode assumir as modalidades de convergência, desvio e contradição
(CAMARGO, 1998, p. 75), que são categorias metodológicas empregadas pelo autor para
a análise dos conjuntos texto-imagem. O viés funcionalista de Camargo, apesar da sua
formulação bastante sistemática, é de difícil aplicação, na medida em que as funções
jamais aparecem de forma isolada; por outro lado, as suas categorias de convergência,
desvio e contradição são úteis para a descrição das diferentes modalidades de “coerência
semiótica” ‒ ainda que, por si mesmas, não expliquem as relações específicas entre o
texto e a ilustração que são criadas em cada livro ilustrado.
65
No seu trabalho de doutorado (2006), Camargo revê criticamente estas categorias
funcionais e propõe analisar os textos e as ilustrações a partir de elementos literários da
ficção, tais como personagem, espaço, tempo, enredo e foco narrativo. A relação entre o
texto e a imagem é compreendida por Camargo como um diálogo, que pressupõe uma
espécie de polifonia que se estabelece entre as duas formas comunicativas.
O leitor já deve ter percebido também que as ilustrações não explicam nem
ornamentam o texto; as ilustrações também não traduzem o texto, não buscam
equivalências entre o verbal e o visual. Mais do que coerência ou convergência
de significados, parece que se trata da co-laboração dos discursos verbal e
visual, constituindo um discurso duplo, um diálogo. As características
semióticas, semânticas, cognitivas, emocionais de cada linguagem e sua
história criam necessariamente um discurso híbrido, em vários níveis.
O modelo interpretativo que prioriza a busca de equivalências entre os dois
discursos comete, a meu ver, duas faltas: em primeiro lugar, o de não
reconhecer a linguagem visual, sua história, sua teoria e sua crítica, como se a
linguagem visual não pudesse ter voz própria, que só pudesse funcionar como
ressonância do texto; em segundo lugar, deixa de perceber os significados
construídos pela co-laboração dos discursos. Aqui, a metáfora da conversação
pode ser útil para percebermos que, isolando as falas de uma conversa, o texto
pode se tornar incompreensível. (CAMARGO, 2006, p. 25).
Dentro desta prática dialógica, também a imagem pode ser lida, no sentido de que
não apenas representa, descreve ou narra, como também interpreta e simboliza. Além
disso, a leitura da imagem, assim como a leitura do texto, depende do conhecimento do
mundo por parte do leitor/espectador.
Isso significa que não basta somente ver, é preciso aprender a ver, o que supõe
várias formas de aprendizado ou de mediação. Mais um argumento para
pensarmos na imagem como texto visual, pois, assim como o texto verbal, o
texto visual também exige uma espécie de alfabetização – ou, se quiser,
letramento – visual. (CAMARGO, 2006, p. 39).
Se, por um lado, a imagem exige um letramento visual, o texto literário funciona
como uma máquina geradora de imagens na mente do espectador. Incorporando as ideias
de Elaine Scarry (2001), Camargo considera que o texto literário funciona como um
conjunto de “instruções” para o leitor imaginar aquilo que é proposto pelo material
textual:
66
texto parece funcionar, assim, como uma espécie de roteiro de edição para suas
imagens mentais, uma espécie de briefing para a imaginação. (CAMARGO,
2006, p. 185).
Não por acaso, a citação remete à imagem como categoria da apreensão do texto
literário, de acordo com a formulação de Iser. O trabalho de Camargo aponta, assim, para
um uso instrumental da teoria de Iser como forma de acesso ao texto na medida em que
este engendra imagens mentais, nascidas no processo da leitura, que são selecionadas,
interpretadas e reformuladas, através da atividade propriamente gráfica, de criação visual,
engendrada pelo ilustrador. O que nos interessa nesta pesquisa são as diferentes formas
como o ilustrador realiza esta operação, e portanto é necessário contrapor o material
textual à imagem, selecionando os trechos pertinentes e buscando apreender como, na
ilustração, estes conteúdos são interpretados visualmente. Este procedimento de seleção
– que embasa a pesquisa de Pereira (2008) – revela aquilo que o ilustrador considerou
mais ou menos importante no texto, apontando também para a forma como o texto foi
lido e interpretado. Mas, para além da ideia da imagem como tradução, que coloca a
ilustração dentro de limites demasiado estreitos, buscamos compreender não apenas como
se dão as relações de convergência, desvio ou contradição – que aqui funcionarão apenas
como balizas teóricas –, mas como o ilustrador “responde” ao texto, e o que este diálogo
agrega à obra literária. Nesse sentido, as categorias de “criação de mundos” de Nelson
Goodman se apresentam como ferramentas teóricas bastante úteis, que possibilitam
descrições adequadas dos diferentes processos da operação poética que ocorrem na
transposição do “mundo do texto” para o “mundo da imagem”, em que o ilustrador efetua
operações de composição/decomposição, atribuição de relevância, ordenação,
eliminação/ suplementação e deformação.
É, pois, de um tema dado que o ilustrador terá que realizar a sua obra, fixando
com a força de sua personalidade os elementos sugeridos.
67
Nesse trabalho de penetração e análise é que se percebe a nítida autonomia
dessa arte autêntica, arte paralela à literatura, harmônica como as notas de
contraponto.
Tarefa difícil essa de captar, no tumulto das frases, as imagens plásticas que
devem corresponder ao mesmo sentimento, às vezes mesmo esclarecer certos
mistérios das palavras. (SANTA ROSA, 1952, p. 25).
68
Araken Távora - E o processo de ilustrador, como você desenvolve?
Poty - Em primeiro lugar a leitura. Se eu me interessar me aprofundo, tento
reproduzir a atmosfera, as personagens conforme descritas, as situações. Às
vezes até sem nenhum interesse, nenhuma intenção de publicação, mas pelo
prazer próprio. Tenho dezenas de livros que ilustrei para mim. (A
PROPÓSITO de Poty, o ilustrador, 1988).
Uma das perguntas da plateia é significativa por revelar uma desconfiança das
imagens – do seu poder de manipulação e de distorção dos significados do texto, meio
mais confiável por excelência – que remonta, no mínimo, aos debates tardo-antigos entre
as posturas de iconoclastia e iconofilia:
Apesar do emprego do termo “tradução”, que vemos como bastante limitado como
método de análise, a resposta de Poty revela a postura do ilustrador diante do texto: a
ilustração “traduz” não o texto em si, mas o “clima” – análogo à “atmosfera”, ou seja, a
síntese realizada ao longo da leitura, o “mundo do texto” que nasce do embate com a obra
literária. O que a ilustração “traduz” é como o ilustrador entendeu o texto, ou seja, ela
está diretamente relacionada à sua recepção do texto, e portanto é interpretação e não
69
pretende “completar” algo que “falta” ao livro. Se, de acordo com Iser, o processo de
recepção da obra literária ocupa os “espaços vazios” do texto, a ilustração não vem a
“completar” os significados imprecisos ou incompletos no material textual, mas, como
“síntese ativa”, agrega novos significados, novas interpretações, que resultam em uma
nova obra híbrida, textual e visual, que se materializa no livro ilustrado. Nesta hibridação,
as relações entre o texto e a imagem são de natureza complexa e variada, e é nas próprias
obras que estas relações deverão ser reveladas.
70
destacadas as relações que as ilustrações estabelecem com os diferentes elementos da
obra literária: a narrativa das ações e o enredo, os personagens e objetos, os pontos de
vista e os aspectos simbólicos da narrativa.
71
72
2. A ficção encenada: a imagem como narrativa
Uma meia dúzia de guris, eu entre eles, ia buscar a pé as pesadas latas de filme
no Cine Palácio, no centro da cidade, e trazia na mão para exibir no Morgenau.
Deixavam a gente entrar de graça no Palácio, o que era um prestígio danado.
(...) O cinema falado custou a chegar no Capanema. O cinema mudo já tinha
73
acabado há muito e o Morgenau continuava passando filmes mudos. (In
XAVIER, 1994, p. 31).
Quando Poty recebe uma bolsa de estudos no Rio de Janeiro em 1942, oferecida
pelo interventor Manoel Ribas – impressionado pelos desenhos que vê expostos no
restaurante da família, o mítico Vagão do Armistício –, o jovem artista já tinha publicado
uma história em quadrinhos no Diário da Tarde, intitulada Haroldo, o homem relâmpago.
Poty contava então com apenas quatorze anos de idade, e esses primórdios da sua
produção artística já revelam alguns dos procedimentos empregados na construção de
narrativas visuais, em que a representação da ação e do movimento é um dos aspectos
mais importantes. Quando falamos em narrativa visual tomamos como ponto de partida
a noção bastante simples empregada por Pimenta e Poovaiah (2010): narrativa é a
representação de um evento ou de uma série de eventos, e a narrativa visual possui como
característica essencial a sua capacidade de contar uma história (PIMENTA;
POOVAIAH, 2010, p. 29). A imagem como suporte para a narrativa também é prevista
pela teoria narratológica: de acordo com o Dicionário de Teoria da Narrativa de Carlos
Reis e Ana Cristina M. Lopes (1988), entende-se que a narrativa pode ser realizada em
outros meios que não o exclusivamente verbal:
74
Assim também Marie-Laure Ryan, na Routledge encyclopedia of narrative theory
(2008), que destaca ademais o papel do receptor no entendimento de uma determinada
mensagem como sendo constitutiva de uma narrativa:
23
A propriedade de “ser” uma narrativa pode ser o predicado de qualquer objeto semiótico, seja qual for o
meio, produzido com a intenção de criar uma resposta envolvendo a construção de uma história. Mais
precisamente, é o reconhecimento por parte do receptor que leva ao julgamento de que um dado objeto
semiótico é uma narrativa, ainda que nunca possamos ter certeza se o emissor e o receptor têm a mesma
história em mente (TL).
75
Fig. 1 - Poty Lazzarotto. Haroldo, o homem-relâmpago. Diário da Tarde, 03/11/1938. Reproduzido em FONTANA, 2010.
76
denominados quadrinhos. Eles não correspondem exatamente aos quadros
cinematográficos. São parte do processo criativo, mais do que um resultado da
tecnologia. (EISNER, 1995, p. 38).
77
antes e o depois do evento” (EISNER, 1995, p. 105), a partir da leitura realizada pelo
espectador. Para Eisner, tanto a postura corporal como gestos e atitudes dos personagens,
além dos ambientes e objetos representados nos quadrinhos, não comunicam de forma
“natural”, pela sua mera semelhança com objetos reais. Eisner é bem consciente da
ligação entre a imagem e uma determinada experiência de mundo por parte do
leitor/espectador, com que o artista deve estabelecer uma interação:
78
estado. Cada episódio é individualizado através das diferenças entre os fundos de cada
cena, diferenciados em termos cromáticos e também pelos elementos figurados no
cenário.
Neste mural, como em várias outras obras públicas de Poty, a leitura da imagem
se dá da esquerda para a direita, apresentando, em primeiro lugar, dois garimpeiros,
referência às origens mais antigas da ocupação do território paranaense. Segue-se a
atividade evangelizadora dos jesuítas, representada pelo aparente diálogo entre o índio e
o padre, tendo ao fundo a imagem de um batismo; em seguida, a atividade dos
bandeirantes é representada pelo cavaleiro armado, a que se sucede uma assembleia que
representa, provavelmente, a fundação da Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais e
Bom Jesus dos Pinhais em 1693. Em seguida veem-se alguns burros que representam o
tropeirismo, a navegação por vias fluviais e, finalmente, a emancipação da província,
representada pelos trabalhadores rurais diante do primeiro presidente da província,
Zacarias de Goes e Vasconcelos, personagem reconhecível através da comparação com
retratos históricos. À divisão das cenas pela manipulação do fundo contrapõe-se a relativa
articulação entre cada episódio, obtida através da inclusão de elementos que ultrapassam
as barreiras verticais, invadindo o quadro seguinte, ou então através de elementos situados
intencionalmente nas zonas de transição entre cada episódio. Assim, as cenas não se
constituem como episódios totalmente isolados, mas como momentos distintos de uma
única narrativa, que cabe ao espectador reconstruir.
79
que inclui outros monumentos (como o obelisco e o “homem nu” de Stenzel), e também
por elementos textuais, presentes tanto em placas comemorativas como no próprio
obelisco, em que se pode ler, entre outras coisas, a motivação dos monumentos ali
presentes. A imagem, portanto, é vista de forma “contaminada” pelo elemento textual:
ainda que ela empregue procedimentos visuais para constituir uma narrativa, na sua
recepção também entram em jogo vários outros elementos de ordem textual e contextual.
É um caso exemplar da “impureza” constitutiva das imagens, tematizada por Mitchell,
como discutimos no capítulo anterior, condição a que toda arte visual – como também
todo meio comunicativo – está sujeita.
Fig. 3 - Poty Lazzarotto. Suicídio na banheira, gravura, 1949. Acervo Museu Paranaense.
80
uma situação narrativa, ou seja, em que se pode falar de uma representação de um evento,
de um acontecimento. A imagem exibe um ambiente reconhecível: o banheiro,
identificável através da pia e da banheira, assim como pela parede ao fundo que termina,
à direita, na esquina com a parede lateral, determinando assim um espaço fechado; dentro
da banheira vê-se uma mulher que empunha uma navalha que avança em direção ao
punho fechado da outra mão. Apesar dos elementos visuais serem predominantemente
estáticos, com o predomínio de linhas horizontais e verticais e com a organização
compositiva mais ou menos ortogonal, a imagem “congela” um momento da ação,
precisamente o momento que antecede a ação principal – o ato de cortar os pulsos com a
navalha. Pressupondo, assim, não tanto um “antes” quanto um “depois”, a imagem
estabelece uma situação narrativa que, de resto, é confirmada pelo título, que nos informa
que a gravura representa, efetivamente, o momento que antecede o suicídio da
personagem e não outra coisa – pois sempre podemos imaginar um espectador menos
atento, e talvez mais criativo, que supusesse que um título adequado para a gravura fosse
algo como “Mulher na banheira limpando as unhas com uma navalha”. Assim, o elemento
verbal – o título da obra – vem a corroborar, de forma quase redundante, a hipótese
interpretativa mais simples e mais direta: o que vemos na imagem é o momento
imediatamente anterior ao trágico suicídio que ocorre no ambiente, corriqueiramente
lúgubre, de um banheiro.
81
textuais; e o desnudamento da própria ficcionalidade do texto ficcional, que estabelece o
“contrato” com o leitor, através de variadas indicações historicamente determinadas e
convencionais:
Para Iser, a encenação presente no texto ficcional também é responsável por uma
das suas características essenciais: o caráter de duplicação que é intrínseco ao ficcional.
A ficção, segundo Iser, possui sempre um caráter de duplicação com relação ao real, com
o qual estabelece numerosas referências; pelo caráter de fingimento e de encenação, a
ficção distancia o homem de si mesmo, colocando-o em uma perspectiva externa:
82
reencenação, portanto, da narrativa que o leitor apreende por meio da leitura. A ilustração
também está simultaneamente “dentro e fora do texto”, proporcionando, literalmente, um
outro ponto de vista da narrativa originada no meio textual. Na encenação que efetua
‒ que é uma síntese ativa realizada a partir do material literário ‒, a ilustração como que
confirma o caráter ficcional da narrativa, apontando, simultaneamente, para os elementos
textuais e para elementos que estão além do universo textual, o que inclui a organização
perspéctica ou planar do espaço, os elementos anatômicos e de vestuário na representação
dos personagens, os cenários e ambientes em que estes personagens são incluídos (ou a
ausência destes cenários), assim como elementos estilísticos de ordem especificamente
visual, como a qualidade das linhas (intensidade, espessura, textura), a construção da luz
e sombra, a deformação expressiva e a composição da imagem na página e em relação ao
texto. A encenação efetuada na ilustração, assim, ao mesmo tempo que ultrapassa o texto,
confirma a encenação efetuada no próprio texto ficcional, que, segundo Iser, é a forma
absoluta da duplicação efetuada pelo ficcional:
83
2.2. Ilustrações peritextuais
Estas imagens que, junto aos títulos, prefácios e outras informações fornecidas
pelo editor, geralmente precedem a leitura do texto propriamente dito, assumem também
este papel de “fazer o livro presente”, fazendo parte, portanto, daquilo que Genette chama
de peritexto, gênero paratextual que ocupa, como indica a palavra, as margens do livro,
que podem ser ditas “anteriores” ou “posteriores”, mas sempre “externas” ao texto
principal. Empregando esta nomenclatura, chamaremos as capas e as ilustrações que
antecedem (ou finalizam) o texto de ilustrações peritextuais, gênero que engloba as
imagens situadas na “soleira” do texto. Para o receptor, as ilustrações de capa ou de
24
E ainda que nem sempre saibamos se estas produções devem ser vistas como parte do texto, de qualquer
forma elas o cercam e o estendem, precisamente para apresentá-lo, no sentido usual deste verbo mas
também no sentido mais forte: fazer presente, para assegurar a presença do texto no mundo, a sua
“recepção” e seu consumo na forma de um livro (pelo menos hoje em dia) (TL).
84
frontispício assumem um funcionamento diverso das imagens intertextuais: elas
preparam e antecipam a leitura, oferecendo ao leitor um material visual que antecede,
muitas vezes, qualquer conhecimento mais aprofundado sobre a obra ainda não lida.
Aproveitando mais um aspecto estudado por Genette acerca do paratexto, as imagens
peritextuais possuem também uma dimensão pragmática, uma força ilocucionária: são
imagens que “dizem” algo sobre o texto, mesmo antes que o leitor se veja imerso na sua
leitura efetiva; são interpretações ativas do material textual que, ao menos
potencialmente, indicam certas direções de leitura, sugerem determinados gêneros
narrativos e contratos ficcionais; ou, para dizer de forma muito simples, são imagens que
levam o leitor a imaginar, por sua vez, algo acerca do livro que vai ler, e que o longo da
leitura vão adquirindo significados mais ou menos relativos ao texto.
Para a 4ª. edição de Vila dos Confins, de Mário Palmério (José Olympio, 1958),
Poty realiza a capa e a contracapa, em que figuram alguns dos elementos presentes no
livro. O romance de Mário Palmério trata de um processo eleitoral na Vila dos Confins,
em que o deputado Paulo Santos busca obter apoio para o candidato à prefeitura João
Soares, seu aliado na recém-criada “União Cívica”, junto a vários proprietários rurais,
comerciantes e outras pessoas que possuem algum poder na região. Em um dos episódios,
85
o deputado, junto com alguns de seus correligionários, se vê retido, por conta da malária,
na fazenda do Boi Sôlto, em que vive Maria da Penha, filha do proprietário, moça de fama
duvidosa, cujo primeiro marido havia cometido suicídio, fato que suscita as mais variadas
interpretações entre a gente do lugar. Surge uma forte atração entre os dois, que sutilmente
combinam um encontro à noite, perto dos currais. O encontro, porém, é interrompido
quando “um berro feio – berro de boi erado – quietou os grilos e fêz a tropa reunida junto
ao côcho levantar os pescoços e empinar as orelhas. Berro que não parava, comprido,
agoniado, terrível.” (Vila dos Confins, p. 154). Trata-se de um boi que é atacado por uma
sucuri, episódio longamente descrito pelo narrador, que destaca os pensamentos e o
caráter dos animais envolvidos:
Mas boi curraleiro tem tradição de valente. Antes que de todo lhe falte o ar –
quase todo o que entra pela bôca a sucuri vai chupando pelas ventas – êle reage.
Abaixa a cabeça e tenta firmar o pescoço da cobra no barro mole, pisando-o
com os cascos das mãos para forçar um repuxão salvador. Mas o corpo da
sucuri escorrega que nem visgo de leite de mangaba...
Então o boi se lembrou dos seus tempos de carreiro, das toras que puxou, da
disposição e da saúde que o promoveram a boi de guia de doze juntas
respeitadas. Pinheiro de chifre, foi-lhe fácil cangar nas aspas, num golpe feliz,
o corpo da sucuri, virar nos pés, e despejar pasto acima. Mas aí é que entra na
história o tal gancho que a cobra tem na ponta do rabo. Nó cego arrochado na
raiz de um pau, a maldita deixa que o boi corra, a galope. Quantas braças –
dez, vinte – quantas braças êle queira. Os cinqüenta palmos de laço viram cem,
o canudo de dois palmos de roda fica da grossura de um dedo, esticado como
corda de viola. Bicho excomungado! E o boi desvira, que não agüenta mais o
ajoujo que lhe entorta o pescoço e começa a desgrudar do osso da bôca o couro
do focinho. Mas não se entrega: finca os quatro cascos no chão, entesa as
pernas, joga todo o pêso no traseiro. Empaca. (Vila dos Confins, p. 157-158).
A imagem da capa criada por Poty (Fig. 5) representa a luta entre o boi e a sucuri,
cuja boca abre-se para abarcar o focinho do quadrúpede, enquanto a cauda se prende a
uma raiz no chão – sem nenhum sinal do deputado ou da moça atraente. No romance, o
episódio tem como consequência a frustração do encontro amoroso entre o deputado e
Maria da Penha – encontro que, de resto, não seria desejável para Paulo Santos, dada a
má fama da moça. É curioso que dentre os vários acontecimentos presentes no romance
tenha sido este o episódio escolhido para figurar na capa: a tônica do enredo é a
apresentação das maquinações políticas na pequena cidade do interior no início da década
de 1950, em que as visitas de Paulo Santos propiciam a narrativa de várias histórias da
gente do lugar. O acontecimento representado na imagem possui uma função apenas
secundária dentro do enredo; o fato de ter sido selecionado como a imagem que apresenta
86
(que “presentifica”) o romance representa, portanto, uma espécie de divergência em
relação à narrativa, divergência que, como esperamos demonstrar, é significativa da
forma como Poty interpreta a obra de Palmério.
Fig. 4 - Poty Lazzarotto. Contracapa de Vila dos Confins, Fig. 5 - Poty Lazzarotto. Capa de Vila dos Confins, 1958.
1958.
87
126). A onça também muda de fisionomia, em uma das suas várias “manhas” – o que gera
grande surpresa por parte dos ouvintes:
− Quer dizer, padre, que a onça muda de fisionomia? Que negócio é êsse de
“alisar a cara”? – perguntou o Dr. Bernardino.
− Manha de onça, doutor. Primeiro ela ameaça, range os dentes, faz a cara mais
feroz, mais horrível que se pode imaginar. Depois, amacia a carranca... fica
assim com um ar de piedade, de cachorrinho amansado e amigo da gente... É
a hora do perigo: alisa a cara e caminha... (Vila dos Confins, p. 126).
88
da Vila dos Confins, mas que, tornado político, se afastou da vida no campo − se entrega
ao devaneio e às memórias, recordando-se da vida passada, embalado pelo balanço do
barco:
Aprenda isto, seu Gerôncio: velhacaria é do reino das águas, uns se defendendo
dos outros, desde o dia em que nascem. Quem não aprende essa regra acaba no
bucho dos mais espertos. Peixe é bicho muito inteligente: inventa modas, muda
de côr para se confundir com o lôdo do fundo, fabrica e esparrama em volta
tinta escura... São uns sabidões, seu Gerôncio. Burro é quem pensa que peixe
é burro... (Vila dos Confins, p. 357).
Piranhas − ah, as piranhas: flagelo máximo das águas. Substituam-se por cento
e quarenta quatro navalhas a grosa de dentes da máquina elétrica de cortar
cabelo, enfileirem-se essas mecânicas monstruosidades em disciplinada
formação de brigada de assalto, e solte-se a legião desses vivos e medonhos
aparelhos, todos a funcionar num tempo só – pálida idéia de um cardume de
piranhas... (Vila dos Confins, p. 353).
89
precipitam na água, levando consigo a filha de Gerôncio, Ritinha. O fato é testemunhado
por Paulo Santos, impotente:
90
É a essa espécie de sub-trama, que se desenha em determinados momentos do
enredo, que Poty traz a relevo nas ilustrações da capa e contracapa do volume: a relativa
divergência em relação à trama principal do romance é significativa, precisamente, por
apontar não para a trama principal, mas para a sub-trama de ordem metafórica, em que o
homem e o animal se confundem na sua busca desenfreada pela sobrevivência, no caso
do animal, ou do poder político, no caso do homem. As imagens de Poty apresentam a
luta dos animais entre si – caso do boi que luta contra a sucuri – ou dos homens contra a
natureza, seja no ambiente contemplativo e plácido da pescaria, seja no calor da caçada
ao perigoso felino – como metáforas visuais relativas à luta política, com toda a sua
dimensão também perigosa e animalesca. E, precisamente por realizar uma metáfora, as
imagens apontam em outra direção: as ilustrações não fazem nenhuma referência à trama
política, mas fazem pressupor – para, digamos, o público que vê a capa do livro, mas
ainda não o leu − um livro de aventuras, com todo o dinamismo e a ação presentes na luta
entre animais ou entre o homem e os animais; gênero que, nas narrativas dos vários
personagens do romance, não deixa de fazer parte da obra, ainda que não seja o gênero
dominante. A ilustração, assim, faz destacar um registro ficcional que é secundário no
conjunto do romance, apresentando alguns aspectos do enredo em que o elemento
metafórico das relações entre homens e animais é dominante, e assim realiza para o
público – compreendendo o público como todos aqueles que veem o livro, mas não
necessariamente o leem – um movimento de interpretação que o situa em um gênero
ficcional que, apesar de estar presente no livro, não é o que domina a narrativa textual.
Note-se que a interpretação que aqui propomos das ilustrações da capa e contracapa de
Vila dos Confins leva em conta o conjunto das imagens em suas relações com o texto. As
imagens, relacionadas entre si, não carregam consigo um nexo narrativo explícito – como
é o caso das histórias em quadrinhos e do mural da Praça 19 de Dezembro, bem como de
outros murais de Poty. Na ilustração literária, os nexos narrativos são, na maior parte das
vezes, como que deixados em suspenso: entre as três principais cenas que compõem as
ilustrações externas do livro de Mário Palmério não há nenhuma indicação de um sentido
narrativo explícito. É como se a ilustração deixasse os nexos narrativos a cargo do texto
ou do leitor/espectador, ocupando, precisamente, as lacunas deixadas pelo texto – os
“espaços vazios” de que fala Iser; e, no caso de Vila dos Confins, as ilustrações assumem
o papel de colocar em destaque um aspecto metafórico do texto que é, precisamente –
como toda metáfora, em certo sentido −, um “espaço vazio” a ser preenchido pelo leitor.
91
Pode-se dizer, portanto, que a ilustração intensifica um processo de preenchimento por
parte do leitor que é próprio do texto narrativo.
Para criar uma interpretação visual do romance, portanto, Poty atribui uma
relevância especial a elementos que sugerem as lutas e conflitos que ocorrem na natureza,
assim como entre homens e animais. Estes elementos, que fazem parte do “mundo da
ilustração”, são compostos no espaço da capa e contracapa, de forma a sugerir uma certa
continuidade entre eles, sem no entanto estabelecer nenhuma ordenação mais específica:
os diferentes elementos são apresentados em uma simultaneidade que apresenta o mundo
ficcional contido no romance como uma composição de diferentes cenas. Trata-se de uma
forma de composição que será vista em outros trabalhos de ilustração do artista, e que
constitui uma maneira bastante tradicional de transpor para o registro visual elementos
específicos do material narrativo, e que acaba por sugerir um determinado gênero literário
para o romance que se apresenta ao possível leitor.
92
representar a atividade febril do bairro retratado pelo autor, sem, no entanto, fazer
referências mais explícitas ou diretas a cada conto ou personagem específico.
Fig. 6 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Novelas Paulistanas, de António de Alcântara Machado, 1961.
93
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um entêrro da Rua do Oriente e
Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no
da frente dentro de um caixão fechado com flôres pobres por cima. (Novelas
paulistanas, p. 62).
Brás, Bexiga e Barra Funda, como membro da livre imprensa que é, tenta fixar
tão-somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana dêsses
novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Notícia. Só.
Não tem partido nem ideal. Não comenta. Não discute. Não aprofunda.
Principalmente não aprofunda. Em suas colunas não se encontra uma única
linha de doutrina. Tudo são fatos diversos. Acontecimentos de crônica urbana.
Episódios de rua. (Novelas paulistanas, p. 57).
25
Pieter Brueghel, o velho (1525/1530-1569), um dos mais importantes pintores flamengos do século XVI,
é conhecido pelos quadros que retratam paisagens e cenas do campo, com a presença de multidões de
populares envolvidos em diversas atividades. Na sua obra, retratou a vida e os costumes dos camponeses,
com suas alegrias, misérias, vícios e virtudes, temas especialmente trabalhados na série dos “Provérbios
Holandeses.”
26
A obra de William Hogarth (1697-1764), pintor, gravador e ilustrador inglês, caracterizou-se pela sátira
e pela crítica social, e é considerada como precursora das histórias em quadrinhos atuais. Tendo realizado
94
apresentadas de uma vista superior. As ações são descritas em um único plano de
representação, em uma acumulação visual que responde às descrições construídas através
de várias frases curtas e sintéticas, que são a marca do modernismo literário de Alcântara
Machado: “Meninas enlaçadas passeavam na calçada. O lampião de gás piscava pra elas.
A locomotiva fumegando no carrinho de mão apitava amendoim torrado. O Brodo passou
cantando.” (Novelas paulistanas, p. 101). Assim, a representação da ação e do movimento
na ilustração possui uma referência não apenas temática – ou seja, em termos dos
elementos presentes na figuração – mas também estilística: Poty associa-se à poética
instaurada pelo autor literário, proporcionando uma interpretação visual em sentido pleno,
em que o estilo da imagem, em termos de forma e construção visual, estabelece uma
convergência com o estilo telegráfico e fragmentário da linguagem verbal. A composição
visual da imagem, com sua construção aperspéctica ‒ à diferença de Brueghel e Hogarth,
que operavam dentro do código visual da perspectiva cônica ‒, é empregada para
estabelecer um tipo de ordenamento análogo à forma como o escritor constrói algumas
das suas descrições, com a ausência de hierarquia e de profundidade resultantes das frases
curtas e sucessivas, em que cada elemento aparece desprovido de articulações sintáticas
(e portanto hierárquicas) com o conjunto. Em relação ao código perspéctico, portanto,
Poty emprega uma deformação intencional, que estabelece relações significativas com o
texto.
várias sequências de imagens de caráter narrativo, em muitas das suas obras apresenta grandes
agrupamentos de multidões populares, retratando aspectos da vida urbana sob um viés irônico e sarcástico.
95
Fig. 7- Poty Lazzarotto. Ilustração para O quinze, de Rachel de Queiroz, 1970, p. iv-v..
96
como fogo” (O quinze, p. 33). As figuras, claras, se destacam contra a hachura27
sobreposta às grossas linhas pretas que as envolvem, sem exatamente definir um espaço
tridimensional, mas separando-as graficamente do vasto fundo luminoso. A luz e o vazio
são elementos que a autora emprega para caracterizar a paisagem desértica do sertão sob
a seca, em que a escassa vegetação só surge para enfatizar a desolação do ambiente: “Em
tôda a extensão da vista, nem uma outra árvore surgia. Só aquele velho juàzeiro,
devastado e espinhento, verdejava a copa hospitaleira na desolação côr de cinza da
paisagem.” (O quinze, p. 53). Através de hipotiposes como essa, Rachel de Queiroz
constrói, ao longo do romance, uma visualidade dramática e hostil, em que a família de
Chico Bento, vítima da miséria e da seca, perde a própria humanidade:
27
Hachura é um conjunto de linhas paralelas ou cruzadas, tradicionalmente empregado no desenho
figurativo para sugerir sombras, construir formas ou separar diferentes planos da representação do espaço
tridimensional. Na obra de Poty, a hachura é ostensivamente empregada de forma a ressaltar os aspectos
expressivos da imagem.
97
Fig. 8 - Poty Lazzarotto. Ilustração para O quinze, de Rachel de Queiroz, 1970, p. iii.
98
numerosas vezes à distância, destacando-se contra a paisagem desolada: quando aparece
no Logradouro, a propriedade de Mãe Inácia, Conceição protege os olhos, “procurando
identificar o visitante que chegava na poeira do sol” (O quinze, p. 34); quando ele parte,
“[...] Conceição estirou-se na rêde e ficou olhando o vulto que a poeira ruiva envolvia,
até o ver se sumir atrás de um grupo de umarizeiras da várzea.” (O quinze, p. 36). Chico
Bento também aparece à distância, gradualmente discernível na atmosfera: “No poente
avermelhado, um vulto prêto se desenhou. Depois, o cavalo e o cavaleiro foram-se
destacando na sombra escura que avançava.” (O quinze, p. 41). A imagem, assim, evoca
a submissão do homem à paisagem e às duras condições naturais, em sua constante busca
pela sobrevivência; como cenário e ambientação visual, porém, destaca-se o branco da
página, o vazio luminoso e trágico.
Na imagem talvez mais tocante das ilustrações peritextuais de Poty para O quinze,
vê-se a figura de uma mulher que, com a mão na cabeça em sinal de desespero, tem no
colo o filho prostrado. A referência textual é o episódio da morte de Josias, um dos filhos
de Chico Bento, que envenena-se ao comer mandioca crua, o que levará a mãe ao
desespero:
99
história da seca nordestina para uma dimensão universal, incluindo ainda outros
elementos que não estão presentes na descrição do episódio, como o mandacaru e os
pássaros. Assim, empregando simultaneamente processos de atribuição de relevância,
composição e suplementação ‒ a inclusão das espécies vegetais e animais que não estão
presentes na narrativa textual, assim como a referência à iconografia tradicional da Pietà
‒, a ilustração de Poty cria um mundo próprio da imagem, que, por sua vez, se comunica
com outras imagens. Estes elementos, criados pelo ilustrador como uma suplementação
do material textual, estabelecem uma composição ascendente28 que culmina nos pássaros
no céu, elemento que, no decorrer do romance, aparece várias vezes ligado à percepção
que os personagens têm da seca, assim como à esperança de que a chuva finalmente
venha. Assim Conceição contempla o céu noturno, no início do romance:
Colocou a luz sobre uma mesinha, bem junto da cama, - a velha cama de casal
da fazenda - e pôs-se um tempo à janela, olhando o céu. E ao fechá-la, porque
soprava um vento frio que lhe arrepiava os braços, ia dizendo:
- Eh! a lua limpa, sem lagoa! Chove não!... (O quinze, p. 29).
Na visão do céu diurno, Vicente − indignado com a atitude de Dona Maroca das
Aroeiras, que mandou soltar o seu gado, deixando Chico Bento sem nenhuma fonte de
renda – constata as dificuldades trazidas pela seca:
28
Em termos de composição visual, uma diagonal ascendente é aquela que cruza o suporte da obra do canto
inferior esquerdo para o canto superior direito, considerando-se o sentido da “leitura” de forma análoga à
da escrita nas línguas ocidentais. Uma composição ascendente é aquela cujos elementos estão dispostos,
majoritariamente, de acordo com uma diagonal ascendente.
100
Fig. 9 - Poty Lazzarotto. Ilustração para O quinze, de Rachel de Queiroz, 1970, p. vi.
101
complementa os elementos presentes na literatura de forma a expandir os seus
significados no registro visual, incorporando referências iconográficas da história da arte
e sintetizando elementos díspares do enredo, realizando assim uma síntese ativa da obra
literária. Assim, entre convergências e divergências temáticas ou estilísticas,
selecionando certos aspectos e episódios das obras literárias e incorporando outras
referências iconográficas, as diversas ilustrações peritextuais de Poty preparam a leitura,
ao mesmo tempo em que interpretam cada texto de acordo com suas características
específicas – não se furtando, porém, a realizações visuais que apontam para outras
leituras possíveis do texto literário. O “mundo da ilustração”, assim, efetua uma
duplicação do material literário em forma de imagem, na qual novos elementos aparecem
como suplementos do universo do texto, reordenando e compondo uma narrativa paralela,
prenhe de referências externas. Em O quinze, assim, a tragédia da seca é reencenada como
tragédia religiosa, que mobiliza a terra e os céus, elevando-se do fato particular à
dimensão celestial simbolizada pelos pássaros. Observe-se, ainda, que esta encenação é
expressivamente qualificada pela qualidade gráfica das linhas, típica do bico de pena,
técnica favorita do artista e bastante vantajosa em termos das técnicas de impressão
mecanizada da época.29
29
A maior parte das ilustrações de Poty foram realizadas em nanquim aplicado através de pincel e,
principalmente, do bico de pena, que cria linhas duras, rápidas e precisas. Os originais eram então
convertidos em matrizes zincográficas em alto-relevo obtidas por processos eletrostáticos.
102
2.3. Imagens da baleia: Moby Dick
30
Além de Moby Dick, Rockwell Kent (1882-1971), artista plástico e ilustrador estadunidense, ilustrou
também o Cândido de Voltaire, o Fausto de Goethe, o Decamerão de Boccaccio e os Contos de Canterbury
de Chaucer, entre muitos outros.
103
capistas da José Olympio, e passou a trabalhar regularmente para a “Casa” (FONTANA,
2010, p. 48-49).
104
quais, curiosamente, se exclui o próprio narrador, aparentemente desaparecido ou
apagado durante longos trechos da narrativa.
Como nota Rachel de Queiroz no prefácio à edição de 1957, existem várias formas
de ler Moby Dick: a escritora destaca os vários personagens que podem ser alçados à
condição de protagonistas, a cada releitura (QUEIROZ in Moby Dick, p. 17). No entanto,
apesar das numerosas teorias que se possam traçar a respeito, há, segundo ela, uma força
própria na história, unificadora e irresistível, que é a representação da terrível fera do mar,
em todo o seu potencial imaginativo. A força das palavras da autora de O quinze justifica
a longa citação:
105
compõem o livro como objeto físico −, estando situadas geralmente após o texto a que
fazem referência, marcado através de legendas na seção inferior das páginas ilustradas.
Estudiosos da ilustração literária veem neste tipo de disposição das ilustrações um aspecto
narratológico na relação da ilustração com o texto: a imagem pode assumir caráter
proléptico, antecipando fatos que serão narrados nas páginas seguintes, ou caráter
analéptico, representando, em retrospecto, fatos que ocorrem em páginas anteriores à
ilustração (cf. LEIGHTON; SURRIDGE, 2008, p. 67). No caso das ilustrações em
questão, a localização das imagens não parece ter sido calculada com precisão, no sentido
de assumir um ou outro caráter: a decisão quanto à localização das imagens parece ter
sido muito mais de caráter técnico, ligada à dinâmica industrial da montagem do livro, do
que conscientemente programada como prolepses ou analepses, muito embora predomine
a relação de posterioridade: a imagem geralmente vem depois do texto a que faz
referência. Assim, as ilustrações de Poty estabelecem uma narrativa que “flutua” em
relação ao texto literário, como se criassem uma linha paralela com relações mais ou
menos estritas com o desenrolar do enredo textual, portanto estabelecendo uma ordenação
específica dos elementos narrados.
A primeira ilustração (Fig. 10) conta com a legenda “... E Jeová, porém, tinha
preparado um grande peixe para engolir Jonas”; trata-se de um trecho do sermão proferido
pelo Padre Mapple no capítulo 9, que pertence ao seguinte trecho do romance:
106
impotência. A baleia ocupa quase todo o espaço da imagem, sendo que o fundo é
executado em uma série de hachuras que dão uma ideia muito vaga do elemento aquático.
Isso resulta em uma imagem marcadamente bidimensional: o espaço “atrás” da baleia não
gera nenhuma sensação de profundidade, servindo muito mais como elemento gráfico
para impor maior destaque à figura dominante da baleia, com o estereotipado jorro ejetado
pelo respiradouro. Linhas brancas paralelas, em leves curvas verticais, representam a água
que escorre do corpo da baleia e/ou o seu movimento, como no padrão gráfico que o uso
tornou convencional nas histórias em quadrinhos. Isso revela como a intrusão de
elementos provindos de outras imagens, mesmo que pertencentes a outras linguagens
visuais – o que Márcia Arbex chamou de intericonicidade, em paralelo à intertextualidade
(cf. ARBEX, 2003) – é uma constante nas artes visuais, em especial na ilustração literária,
que por sua própria natureza vive no trânsito entre linguagens artísticas diversas.
Como é evidente, a ação encenada nesta imagem alude diretamente aos fatos
narrados pelo Padre Mapple em seu sermão. Ainda que o fato bíblico em si − Jonas ser
engolido pela baleia − seja um dado central desta narrativa, a baleia, no sermão de
Mapple, é um símbolo do poder divino que se manifesta sobre Jonas: foi o próprio
[...] Deus que o alcançou em uma baleia, afundou-o nos abismos da perdição e
com rapidez o arrastou em declive até o “meio dos mares”, onde os
redemoinhos profundos o absorveram, fazendo-o descer a mil braças de
profundidade e “as algas se enroscavam na sua cabeça” e todo o mundo líquido
da angústia girava sobre êle. (Moby Dick, p. 102).
107
Fig. 10 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Moby Dick, 1957, p. 104-105.
108
romance. Assim, a ilustração desempenha uma função não apenas de meramente
“transpor” o texto para o elemento visual, mas é um núcleo desencadeador de relações
intericônicas, intertextuais e também intermidiáticas, como veremos mais além.
Seriam mais ou menos seis horas da manhã de um dia frio e brumoso, quando
nos aproximamos do cais.
− Se não me engano, diante de nós vão alguns marinheiros – disse eu a
Queequeg. – Não podem ser sombras. O navio deve sair ao nascer do sol,
calculo. Vamos depressa! (Moby Dick, p. 179).
109
75) – acompanhado de Ismael, que identificamos como tal apenas por estar junto de
Queequeg: a ilustração pressupõe, é claro, que o espectador seja também um leitor,
compreendendo a imagem a partir da leitura do romance. A pouca caracterização de
Ismael, aliás, é consoante com o texto: ao longo do romance, o narrador − que, como
vimos, muitas vezes torna-se invisível ou apagado, com a inclusão de pensamentos de
outros personagens que seriam inacessíveis a Ismael − não fornece nenhuma descrição
física de si mesmo. No desenho, as duas figuras são indicadas apenas como silhuetas em
perfil, frente ao vulto escuro do navio. Esta ilustração dá início, assim, à narrativa da
história propriamente dita – a história do Pequod −, incluindo dois de seus principais
personagens e o ambiente em que os fatos se desenrolam, e eliminando quaisquer outros
elementos que surgem neste momento da história. O ilustrador poderia ter incluído, por
exemplo, os marinheiros vistos por Ismael na bruma, ou a figura de Elias, o profeta-louco,
que surge imediatamente após a fala de Ismael, mas não o fez. A seleção efetuada pelo
artista focaliza exclusivamente os dois personagens e o navio, reforçando o laço criado
entre Ismael e Queequeg nos primeiros capítulos do livro e apresentando-os como os
elementos que introduzem o leitor/espectador ao universo que se constitui no interior do
Pequod. A organização espacial dos planos da representação, com os personagens em
primeiro plano e o navio ao fundo, em associação com a composição centralizada e
triangular, reforça a profundidade da imagem, que funciona como um portal: uma entrada
para a história do Pequod e dos seus tripulantes.
O seu corpo alto e forte parecia feito de sólido bronze e fundido num molde
inalterável, como o Perseu de Cellini. Abrindo caminho por entre os cabelos
32
Evitando conflitos com a grafia utilizada na edição brasileira de 1957, empregaremos a grafia Acab (ao
invés do original e consagrado Ahab), possivelmente utilizada em concordância com o nome bíblico nas
traduções para o português (Acab ou Acabe).
110
grisalhos e descendo por uma das faces curtidas de sol, e pelo pescoço, até
desaparecer sob a roupa, via-se uma marca delgada de uma brancura lívida,
como feita por uma vara. Lembrava essa marca perpendicular que às vezes
perdura nos troncos direitos e altos, quando o raio projeta de cima, sôbre êles,
os seus dardos, e, sem tocar contudo num único dos seus ramos, descasca-o de
alto a baixo, correndo até ao solo, deixando a árvore ainda viva, porém
marcada. Não se poderia dizer se aquela marca era de nascença ou se era a
cicatriz de algum ferimento cruel. (Moby Dick, p. 222).
A postura sólida e rígida é cindida pela cicatriz que, na imagem, vai do chapéu até
o final do tronco, espécie de hipérbole visual da cicatriz que, no texto, desaparece sob a
roupa, indicando que a linha divisória no corpo de Acab é mais que mera característica
física, mas um elemento simbólico que o caracteriza de corpo e alma. A ilustração, assim,
sintetiza visualmente as impressões de Ismael e elementos sugeridos pelas lendas que se
contam acerca do velho capitão, como a do homem do Manx, que não havia jamais visto
Acab, mas a quem se atribuíam “podêres sobrenaturais de discernimento”:
Assim, nenhum marinheiro lhe opôs qualquer objeção, ouvindo-o afirmar que,
quando Acab tivesse de ser amortalhado – o que difícilmente poderia
acontecer, resmungou – aquêle que fôsse prestar o último serviço ao morto,
111
encontraria nêle um sinal de nascença, desde a coroa da cabeça até à planta dos
pés. (Moby Dick, p. 223).
112
pacto com os tripulantes para dar caça à baleia branca a qualquer custo (cap. 36), e três
capítulos em que são representados os pensamentos de Acab e dos pilotos Starbuck e
Stubb (caps. 37-39). Todos estes quatro capítulos são introduzidos com frases entre
colchetes, exatamente como rubricas de um texto dramático, contendo indicações cênicas:
O capítulo 40, na sequência, é então inteiramente escrito como uma peça de teatro
e significativamente intitulado Meia-noite no castelo de proa – o próprio título, portanto,
indicando o cenário e a hora da ação – e representa uma espécie de festim dos marinheiros,
envolvidos em disputas, pilhérias, cantorias, ofensas, desafios e uma briga, atividade que
é encerrada pela chegada da borrasca referida na legenda. Em todo o capítulo, no entanto,
não há nada que remeta diretamente ao que é representado na imagem. Na ilustração (Fig.
113
13), veem-se vários marinheiros dependurados no gurupés – espécie de mastro que se
projeta, em diagonal, à frente da proa no navio – apoiados nas cordas e na rede de
proteção. Despersonalizados, são uma massa amontoada, distribuída ao longo da linha
enviesada e ascendente do gurupés, que se contrapõe, em termos compositivos, à hachura
inclinada que representa a chuva.
114
potencialmente perigosa, no ato de enrolar uma das velas do navio – possivelmente a
bujarrona, mencionada no texto, situada na proa do navio e içada sobre o gurupés. A
relação, porém, é bastante tênue; o que se destaca na imagem é muito mais a situação de
perigo enfrentada pelos homens, não apenas por causa da atividade que executam, mas
também por conta da fúria dos elementos, da tormenta representada pelas hachuras
diagonais, alternadamente em preto sobre branco ou em branco sobre preto, procedimento
semelhante ao visto na primeira ilustração do livro (Fig. 10). A sensação de instabilidade
é favorecida pelo emprego das linhas diagonais, que definem a tempestade e que,
principalmente, organizam toda a composição, dominada pelas linhas enviesadas do
gurupés, na metade superior, e do horizonte – um horizonte fora de prumo, como que
visto de um navio que oscila perigosamente − na metade inferior, definindo um mar
escuro, indistinto. O tema central da ilustração, portanto, é a luta dos homens, presos à
frágil embarcação, contra a natureza, aqui representada pelo mar e pelos fenômenos
atmosféricos – como também no romance, que a partir de agora será dominado por dois
elementos principais: a caçada às baleias e, mais especificamente, a Moby Dick, e as
várias digressões cetológicas, em que se analisam variados aspectos das baleias e da sua
caça. A ilustração, portanto, faz referência mais ampla ao conjunto da narrativa e à direção
que ela tomará a partir de agora. As próximas imagens estarão diretamente ligadas à caça
da baleia, e na maior parte delas o que recebe destaque são as ações drásticas que estão
envolvidas no ofício dos baleeiros, assim como o combate final com a baleia branca.
115
Fig. 14 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Moby Dick, 1957, p. 360-361.
Na quinta ilustração (Fig. 14) vê-se o capitão Acab a olhar por uma luneta, que
sustenta com mãos que de forma alguma fazem justiça à técnica de Poty. Nesta imagem,
talvez a menos interessante do conjunto, a referência é feita à busca obsessiva de Acab
por Moby Dick, como sugerido pela legenda: “Conquanto... Acab tivesse sempre
presente, em todos os seus pensamentos e ações, a captura final de Moby Dick...” (Moby
Dick, p. 360-361). O trecho é extraído do início do capítulo 46 – intitulado,
apropriadamente, Conjeturas −, em que o narrador, que não podemos mais identificar
com segurança como Ismael, apresenta as reflexões de Acab acerca da forma como seria
possível coadunar a missão comercial da jornada (caçar o maior número de baleias) com
a sua missão pessoal, que consiste na desejada vingança contra o animal que arrancou a
sua perna.
116
Fig. 15 - Gregory Peck como Ahab no filme Moby Dick, 1956. Direção: John Houston.
Fig. 16 - Gregory Peck como Ahab no filme Moby Dick, 1956. Direção: John Houston.
117
Jornal do Brasil de 30 de dezembro de 1956, a edição acabara de ser lançada; no dia 16
de dezembro, o mesmo jornal havia noticiado o filme de John Houston (que
aparentemente ainda não tinha entrado em cartaz). A nova edição do clássico de Melville
– uma outra edição havia sido lançada anteriormente, em 1950, pelo mesmo editor, porém
sem as atraentes ilustrações da edição de 1956 – coincide, portanto, com o lançamento do
filme, e aproveita-se da divulgação do filme de Hollywood para promover a venda do
romance. Trata-se, é claro, de uma manobra publicitária empregada até os dias de hoje,
que aponta ainda para a profunda relação da literatura com a imagem no contexto da
indústria cultural: tanto o cinema quanto o livro ilustrado colocam em relação direta o
texto e a imagem, e lançar um livro ilustrado na época do lançamento da adaptação
cinematográfica do mesmo romance só faz reforçar esse vínculo entre as duas formas de
associação texto-imagem.
118
Our captain stood upon the deck,
A spy-glass in his hand,
A viewing of those gallant whales
That blew at every strand. (MELVILLE, s.d. [e-book], p. 270).
119
um cachalote: “Momentos depois e enquanto nos acercávamos assim para lhe dar caça, o
monstro elevou perpendicularmente a sua cauda a quarenta pés de altura, fustigou o ar e
afundou como uma tôrre caindo num precipício.” (Moby Dick, p. 460). A imagem é
construída a partir de um ponto de vista próximo, como se a observação fosse realizada a
partir de outro bote baleeiro. Em primeiro plano, o bote é visto em escorço33, com a figura
escura do arpoador (de acordo com o trecho, Tashtego) que eleva o arpão, preparando-se
para lançá-lo. A posição em escorço do bote acentua a profundidade da imagem, cuja
seção inferior é dominada pela textura da água e pelas ondas do mar. Mais uma vez, a
composição é triangular, marcada pela massa em diagonal do rabo da baleia, à esquerda,
e pelo bote, mais embaixo, à direita.
33
Diz-se escorço quando uma representação em perspectiva situa o objeto disposto transversalmente em
relação ao quadro de representação e próximo da linha do horizonte, provocando uma forte deformação
perspéctica ‒ como, por exemplo, na imagem de uma pessoa deitada vista a partir da cabeceira da cama.
34
Míron de Elêusis, escultor grego do século V a.C.. O seu Discóbolo, que representa um atleta momentos
antes de lançar um disco, é um dos mais importantes exemplos do estilo clássico dito “severo”.
120
As relações entre o texto do romance e a ilustração, tal como pressupostas nas
legendas, também podem induzir a erros, denotando a relação nem sempre harmônica
entre os dois meios. A legenda para a ilustração seguinte (Fig. 18) a coloca em relação
com o trecho em que os botes do Pequod disputam uma baleia com o bote de um navio
alemão, o Jungfrau, cujo capitão havia, há pouco, conseguido um pouco de óleo de baleia
dos tripulantes do Pequod.
121
romance. Percebe-se assim que as legendas textuais não são precisas, e possivelmente
não foram revisadas pelo ilustrador. No embate entre as palavras e as imagens, para além
de concordâncias, também existem, com frequência, discordâncias e equívocos; neste
caso, a imagem não é divergente em relação ao texto literário, mas a relação texto-imagem
que a legenda faz pressupor é simplesmente incorreta. No capítulo 134, em que se narra
o segundo dia da caçada à baleia branca, lê-se:
122
demais botes em confusão e marinheiros na água, incluindo ainda os pássaros que voam
sobre Moby Dick, mencionados no capítulo anterior (Moby Dick, p. 856). Sintetizando
diferentes momentos da narrativa textual, a ação é concentrada e registrada no seu
momento máximo, buscando transmitir a força e a violência da cena. Por outro lado, a
imagem em questão é extremamente semelhante a um dos cartazes promocionais do filme
(Fig. 19) – no caso, o cartaz do lançamento do filme na Bélgica, infelizmente sem data,
cuja ilustração de fundo reaparece em vários materiais de divulgação da película em
diferentes países e épocas. A comparação entre as duas imagens faz compreender, cada
vez mais claramente, como a ilustração dialoga não apenas com o livro, mas também com
o cinema, estabelecendo um circuito não apenas entre o texto e a imagem, mas entre a
imagem gráfica e outras mídias: neste caso, entre o texto, a ilustração e o cinema. A
síntese ativa realizada pelo ilustrador possui, assim, uma característica intrinsecamente
“contaminante”, estabelecendo pontes referenciais entre diferentes meios.
123
(Fig. 20) pode ser relacionada a diferentes momentos desta caçada, em especial o trecho
seguinte, aliás anterior ao que narra o ataque ao bote de Acab:
124
As últimas ilustrações concentram os últimos momentos da narrativa, sendo que
uma delas revela, com absoluta certeza, a relação direta com a adaptação cinematográfica.
A imagem reproduzida na Fig. 21 mostra Acab montado sobre o corpo da baleia marcado
de ferimentos e envolto por cordas, no ato de arrancar um arpão, deixando um orifício de
onde se vê um esguicho de sangue projetado para o alto. A legenda incluída junto à
ilustração reproduz a fala de Starbuck dirigida a Acab, procurando dissuadi-lo de
prosseguir na caçada: “− Oh! Acab – exclamou Starbuck, − não é tarde demais para
desistir, conquanto seja o terceiro dia. Olha! Moby Dick não te procura. Tu, pelo
contrário, o persegues como um louco.” (Moby Dick, p. 886). O que se vê na imagem,
porém não é narrado no livro – e muito menos no trecho em que Starbuck dirige as suas
censuras a Acab: em nenhum momento do romance o capitão monta sobre a baleia. No
filme de 1956, porém, o capitão, exasperado, sobe sobre a baleia e a ataca com o arpão
repetidas vezes (Fig. 22), para terminar preso, pelas cordas, ao corpo do seu maior inimigo
– destino reservado, no romance, a Fedallah, o arpoador misterioso que tinha sido incluído
secretamente na tripulação por Acab. A relação entre a ilustração e a adaptação
cinematográfica torna-se aqui evidente: Poty incorpora até mesmo as alterações narrativas
efetuadas no filme, em evidente divergência com relação ao texto.
125
No desenho seguinte, porém, o artista volta ao romance, revelando como, debaixo
d´água, Acab é arrastado pelo pescoço, puxado pela baleia a cujo corpo se vê atado o
vulto escuro de Fedallah, morto no dia anterior da caçada (Fig. 23). A ilustração, assim,
realiza movimentos de aproximação e de afastamento com relação ao texto: se não é
absolutamente “fiel” em alguns momentos, é para incorporar outras dimensões
possibilitadas pelo texto – em especial os seus desdobramentos em outros gêneros de
imagem, como a imagem cinematográfica e outras associadas a ela, como o cartaz do
filme. Isso demonstra a vocação intrinsecamente “impura” da ilustração: não se trata de
julgar o ilustrador por ser “infiel” ao texto – risco sempre presente na abordagem da
ilustração como “tradução” –, mas de constatar a sua natural infidelidade. Em outras
palavras, a ilustração literária, na sua contraposição com o material textual de que é
desdobramento e interpretação, revela como característica intrínseca uma hibridação que
não abdica da referência a outras formas de releitura do romance, sejam elas “exatas” ou
“inexatas”, instituindo relações intertextuais, intericônicas e intermidiáticas.
126
Pequod, antes do seu completo naufrágio; em meio ao ato, um gavião interpõe-se entre o
martelo e a madeira, afundando com o navio:
Com suas evocações de Milton, a ave que desce às profundezas do mar com
“gritos de arcanjo” efetua uma das inversões simbólicas que marcam o final do romance,
quando o elemento do céu torna-se parte do navio que naufraga. A outra inversão se dá
no epílogo, em que Ismael – que retorna à narrativa, após uma longa ausência – é salvo
pelo caixão que originalmente tinha sido feito a pedido de Queequeg: o símbolo da morte
127
torna-se aquilo que possibilita a vida, possibilitando também que a história seja trazida a
nós, leitores. A atenção de Poty a estes dois momentos que fecham a narrativa demonstra
que, mesmo na interpretação bastante específica que faz do romance múltiplo de Melville
– que nas ilustrações é um romance de aventuras –, os elementos simbólicos são
incorporados como parte da ação. Tashtego, de quem, no texto, só se vê o braço que
sustenta o martelo, é representado, na ilustração, de corpo inteiro, demonstrando toda a
energia presente no ato de sustentar-se sobre o mastro e brandir a ferramenta: o símbolo,
aqui, é encenado como ação e movimento.
128
No epílogo, Ismael narra como sobreviveu ao naufrágio: “Com o ataúde por bóia,
flutuei o dia inteiro e uma noite, sôbre um oceano tranqüilo e como que sepulcral”. (Moby
Dick, p. 894). Na última ilustração de Poty (Fig. 25), em contraste com todas as demais,
predomina o estático, o silencioso e tranquilo, obtido através da composição
predominantemente horizontal e da execução com poucos contrastes: a ação se encerrou,
e o oceano domina o espaço com toda a sua imutabilidade. Finalizando o romance, esta
talvez seja a imagem mais “cinematográfica” do conjunto, com seu ponto de observação
do alto e o enquadramento centralizado, sugerindo o suave deslocamento de Ismael na
direção do horizonte − além da moldura que traça os limites da imagem, presente também
em outras ilustrações, que parece fazer referência aos limites da tela de projeção. A
ausência da legenda sob o desenho parece indicar que, após todas as desventuras do
Pequod e dos seus tripulantes, o silêncio domina a paisagem marinha, e não há nada mais
a ser dito.
129
considerada mais nobre. A teoria da intertextualidade enfatiza que todo texto ‒ o que pode
ser estendido para todo produto cultural humano ‒ estabelece relações de parentesco com
outros textos preexistentes. Dentre os vários tipos de intertextualidade abordados por
Stam, a adaptação é descrita através do conceito de “hipertextualidade”, que postula um
“hipotexto” de origem, que é transformado através de um “hipertexto” posterior.
“Adaptações cinematográficas, nesse sentido, são hipertextos derivados de hipotextos
pré-existentes que foram transformados por operações de seleção, amplificação,
concretização e efetivação” (STAM, 2006, p. 33).
Não por acaso, as operações descritas por Stam são bastante próximas das formas
de construção de mundos postuladas por Nelson Goodman. Assim como as formas de
conhecimento mais tradicionalmente entendidas como tal, as obras de arte “criam
mundos”, e sempre através de mundos pré-existentes, a partir das operações de
composição/decomposição, atribuição de relevância, ordenação,
eliminação/suplementação e deformação ‒ o que é outra maneira de dizer que as obras
estabelecem relações intertextuais com outras obras pré-existentes. O mundo criado nas
ilustrações de Poty para Moby Dick, assim, surge a partir de outro mundo, ou melhor, de
outros mundos ‒ como aqueles criados no romance e também na sua adaptação
cinematográfica. De resto, Santa Rosa (1952, p. 26), como citado no capítulo 1, já havia
notado a proximidade entre a ilustração e o cinema ‒, o que demonstra como esse tipo de
contaminação fazia parte efetiva da reflexão dos ilustradores acerca da sua produção.
130
volume é de natureza completamente diferente do trabalho do ilustrador estadunidense, o
que não significa que não existam possíveis influências dele sobre trabalhos posteriores
do artista paranaense. Se Poty ilustra o romance de aventuras, Kent ilustra tudo: os
momentos contemplativos e a ação; as histórias bíblicas, as digressões cetológicas,
históricas e filosóficas, assim como os monólogos internos dos personagens e também
objetos isolados, ferramentas ou peças do navio, empregados como vinhetas ao fim dos
capítulos. Estes objetos isolados (Fig. 26) chamam a atenção por constituírem um
procedimento ilustrativo que será empregado por Poty, anos depois, nas ilustrações
realizadas para Chapadão do Bugre, que representam objetos isolados, desprovidos de
qualquer fundo, representados em sua crua materialidade. Lacônicos, mas estranhamente
significativos, os objetos navais de Rockwell Kent talvez sejam uma influência para Poty
nos seus trabalhos futuros de ilustração literária, hipótese a ser considerada mais além.
No grande conjunto de ilustrações de Rockwell Kent para o romance de Melville, as
representações de objetos são uma estranha pausa na narrativa, imagens impregnadas do
mistério mudo das naturezas-mortas − inevitavelmente repletas de sussurros e sugestões.
131
Raymundo Ottoni de Castro Maya, inspirada em sociedades de bibliófilos que existiam
na Inglaterra e na França desde o século XIX, foi um marco na associação entre as artes
plásticas e a literatura no Brasil, valorizando, além disso, uma técnica específica: a
gravura, que desde a criação do livro impresso foi a principal forma de associar a imagem
ao texto. Um dos artistas convidados a ilustrar os livros dos Cem Bibliófilos foi Poty
Lazzarotto, grande divulgador da técnica no Brasil – tendo lecionado cursos em Salvador,
Recife, São Paulo e Curitiba –, que participou em dois volumes da coleção: Canudos, de
Euclides da Cunha (1956), e Quatro contos, de Machado de Assis (1965). Em ambas as
obras, as ilustrações foram realizadas em água-forte, técnica “nobre” da gravura, e,
portanto, adequada às intenções da Sociedade dos Cem Bibliófilos de realizar verdadeiros
livros de arte.
Apesar do recorte proposto nesta pesquisa ser limitado às ilustrações para a ficção
em prosa, as ilustrações de Poty para Canudos são aqui pertinentes por trazerem à tona
aspectos importantes para a reflexão sobre as relações entre a imagem e o texto. O
primeiro deles é a relação intertextual estabelecida entre as cartas de Canudos e o seu
desdobramento, reelaboração e aprofundamento na obra monumental de Euclides, que se
faz visível, também, nas ilustrações: uma das nossas hipóteses, aqui, é que Poty ilustra
tanto Canudos quanto Os sertões, realizando uma interpretação pessoal da obra euclidiana
em que os dois textos são colocados em diálogo. Outro aspecto pertinente é a forma como
a ilustração trabalha com o texto; neste caso, um texto não-ficcional. Tendo realizado
desenhos a partir de uma história que pertence ao passado, Poty estabelece uma tensão
entre o factual e o ficcional, que de resto é autorizada pelo próprio teor do texto: as cartas
que compõem o livro Canudos, escritas por Euclides da Cunha em 1897 quando estava
fazendo a cobertura jornalística da guerra, já apresentam algumas das características que
fariam de Os sertões, publicado apenas em 1902, o objeto de um longo debate acerca do
caráter científico, histórico ou literário (e mesmo épico) da obra. Na representação da
guerra Poty estabelece, também, relações inter-icônicas com a obra Os desastres da
guerra, do artista espanhol Francisco de Goya (1746-1828): a própria referência a Goya
é indicativa de uma interpretação imaginativa da guerra de Canudos por parte do artista
paranaense. Um terceiro aspecto pertinente, a ser tratado em seguida, são as ligações
presentes entre Canudos (e, por extensão, Os sertões) e João Abade, de João Felício dos
Santos (1958), romance histórico que retrata a guerra do ponto de vista dos sertanejos:
além das relações intertextuais entre a obra de Euclides e o romance, destacam-se também
132
as relações intericônicas presentes nas ilustrações de Poty para os dois livros, muitas das
quais têm temáticas paralelas nos dois volumes – sendo que algumas imagens são
praticamente idênticas −, mas que, vistas em conjunto, apresentam, por outro lado,
características diversas em termos de estilo, construção e focalização, revelando a forma
como o artista interpreta os diferentes modos textuais.
Acho que o Raymundo [Ottoni de Castro Maya] gostava de mim, sempre pedia
para eu fazer um livro: fiz Canudos. Para ilustrá-lo, refiz o caminho da
expedição, a partir da Bahia, baseado no Diário de Euclides da Cunha. Me
interessavam sobretudo os locais. Ao contrário da época de Euclides já tinha
estrada – de terra – e fiz o percurso de caminhão. Tinha havido mudanças mas
com um pouco de imaginação você supre essas coisas. (In NICULITCHEFF,
1994, p. 111).
A viagem tinha caráter de pesquisa documental, tanto que Poty faz vários registros
da sua visita ao local em uma caderneta de viagem (FONTANA, 2010, p. 48). De acordo
com documento relativo à Exposição Poty/50 anos, realizada no Salão de Exposições do
BADEP, em Curitiba (1974), o artista teria realizado uma exposição na Biblioteca
Nacional, no Rio de Janeiro, das gravuras e estudos para as ilustrações de Canudos em
1955, portanto antes da finalização do livro.
133
representações textuais do sertanejo, no entanto, estão praticamente ausentes de Canudos,
e seria apenas em Os sertões que Euclides procederia à longa análise das populações do
sertão que domina uma das partes da obra, O homem. A descrição de Euclides do homem
do sertão, com toda a reflexão etnológica e histórica que a caracteriza, é posterior às cartas
coligidas em Canudos; entretanto, isso não impediu Poty de incluir imagens de caráter
descritivo, quase documental, do sertanejo, que funcionam como uma espécie de prolepse
intertextual, apontando para a sua elaboração mais aprofundada na obra posterior de
Euclides. A representação que Poty faz do sertanejo, porém, destoa, até certo ponto, da
apreciação que dele faz Euclides, caracterizada pelos contrastes e contradições. Se, como
diz o escritor na famosa frase, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte” (CUNHA, 1929, p.
114), esta força, porém, não se revela à primeira vista:
134
Fig. 27 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Canudos, 1956, p. 11.
Na imagem criada por Poty, incluída logo acima da primeira das cartas que
compõem Canudos (Fig. 27), percebe-se, em primeiro lugar, como o artista não está
dialogando com o texto de Canudos, mas sim com o texto de Os sertões, de que faz parte
o trecho intitulado O homem. A gravura denota uma leitura e uma interpretação específica
da descrição e da análise da “raça sertaneja” em que as teorias racialistas não estão
presentes, ou não se fazem sentir de maneira decisiva.
Em outro momento, Poty parece ter estado mais próximo da descrição do sertanejo
de acordo com as teorias raciais empregadas por Euclides. No exemplar de Canudos
presente no acervo do Museu da Chácara do Céu, realizado especialmente para Castro
Maya, como consta do colófon, existe um caderno adicional de esboços originais e outras
imagens que não fazem parte da edição oficial dos Cem Bibliófilos. Uma destas imagens
apresenta um perfil de sertanejo, vestindo o típico chapéu de couro, cujo rosto apresenta
características simiescas, o que poderia remeter a uma leitura racialista do sertanejo (Fig.
28).
135
Fig. 28 - Poty Lazzarotto. Sem título (perfil de sertanejo incluído no exemplar de Canudos do acervo do Museu da Chácara do Céu).
Água-forte e água-tinta, s.d..
136
se utilizar idéias e modelos estrangeiros que pouco tivessem a ver com nossa
realidade, o que também era uma alternativa à simples cópia de referenciais
para a compreensão da realidade nacional. Isto não deixa de configurar-se
como uma posição crítica, uma vez que valores e referenciais estrangeiros
acabam passando por certo “abrasileiramento”. Dessa forma, a partir de um
ambiente teórico totalmente adverso que condenava a miscigenação e os seus
resultados, consegue-se extrair fórmulas para se pensar uma sociedade na qual
o elemento miscigenado é predominante. (COSTA, 2004, p. 86).
137
Fig. 29 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Canudos, 1956, p. 18.
138
que, precisamente por ser hostil, era adequado àquela população rude e atrasada.
Estabelece-se, assim, uma relação de complementaridade entre o homem “primitivo” e o
meio natural. “A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o como Antheu, indomavel. É
um titan bronzeado fazendo vacillar a marcha dos exercitos.” (CUNHA, 1929, p. 244).
139
a b c
Fig. 31 – Mandacarú (a), macambira (b) e palmatória (c), plantas nativas da caatinga. Disponíveis em (a):
<https://milagresdovento.wordpress.com/category/minhas/page/3/> . Acesso em 20 mar. 2014; (b):
<http://www.1000dias.com/ana/caatinga-medicinal/>. Acesso em 20 mar. 2014. (c): < http://www.1000dias.com/ana/caatinga-
medicinal/>. Acesso em 20 mar. 2014.
140
Fig. 32 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Canudos, 1956, p. 77.
141
transviados e cada vez mais acredito que a mais bella victoria, a conquista real
consistirá no incorporal-os amanhã, em breve definitivamente, á nossa
existencia politica. (CUNHA, 1956, p. 87).
142
Fig. 34 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Canudos, 1956, p. 19.
143
Fig. 35 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Canudos, 1956, p. 40.
144
louvores ao General Savaget – a quem se atribui o “heroismo lendario de Leonidas”
(CUNHA, 1956, p. 21), e que atravessou “[...] sob um chuveiro de balas as gargantas das
Thermopylas do sertão [...]”– é incluída uma das imagens de maior impacto no conjunto
das ilustrações, que retrata as cabeças dos soldados mortos dispostas ao longo da estrada
(Fig. 37), como narra Euclides em Os sertões:
145
para o ficcional, em que a forma é utilizada para estabelecer uma resposta emocional por
parte do leitor/espectador – e cujo conteúdo, significativamente, é completamente
divergente em relação ao discurso que vinha se desenvolvendo no texto. A imagem,
assim, é construída como uma encenação que suplementa os conteúdos do texto mediante
a referência intertextual à obra maior de Euclides. O contraste estabelecido entre o texto
− que louva a coragem, a calma e a modéstia do General Savaget, associado a feitos
heróicos da épica antiga − e a imagem grotesca e aterrorizante das cabeças decapitadas
aponta para o desenrolar futuro dos fatos, assim como da obra de Euclides: é uma dupla
prolepse, que funciona tanto em termos diegéticos (em termos da história que se conta)
quanto em termos intertextuais.
146
o dinamismo, o artista emprega diferentes procedimentos, incluindo tanto a tradicional
representação do corpo humano em movimento como também a articulação contrastiva
dos planos e a segmentação do plano de representação, como é o caso da imagem na
página 26, que representa o Conselheiro diante dos seus fiéis (Fig. 38).
147
alguns personagens erguem as mãos para o alto, outros erguem as mãos em prece; uma
mãe ampara o seu filho; há um estandarte que representa o conselheiro em meio às
pessoas e um homem que tira o chapéu, em sinal de respeito; além disso, cada personagem
parece olhar para uma direção diferente, o que contribui para gerar a sensação de confusão
e desequilíbrio que domina a composição.
As cenas de ação realizadas por Poty são dominadas por esta dimensão trágica;
como representações, porém, são construções imaginárias, fictícias: representam “o que
poderia ter sido”, mesmo que com base nas descrições factuais (ou supostamente factuais)
presentes em Canudos e Os sertões. As cenas de luta evidenciam a ferocidade e as
atrocidades do conflito, aparentemente com poucas conexões mais estritas com o texto de
ambas as obras.
148
Fig. 39 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Canudos, 1956, p. 72.
149
Fig. 41 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Canudos, 1956, p. 31.
150
Algumas das imagens realizadas por Poty para Canudos colocam em destaque
estes episódios, mais próprios ao “exagerado romancear”, que fazem de Os sertões uma
obra híbrida, em que ao registro objetivo e científico se alia o vocabulário rebuscado e a
narração romanesca. Um dos episódios ilustrados por Poty aponta para dois diferentes
trechos de Os sertões, um dos quais é escrito de forma romanesca, incluindo os diálogos
que acentuam a carga dramática:
Numa das refregas subsequentes ao assalto, fôra preso um curiboca ainda moço
que a todas as perguntas respondia, automaticamente, com indifferença altiva:
“Sei não!”
Perguntaram-lhe por fim como queria morrer.
“De tiro!”
“Pois ha de ser a faca!” contraveiu, terrivelmente, o soldado.
E assim foi. E quando o ferro embotado lhe rangia nas cartilagens da glotte, a
primeira onda de sangue borbulhou, escumando á passagem do ultimo grito
gargarejando na bocca ensanguentada:
“Viva o Bom Jesus!...” (CUNHA, 1929, p. 494-495).
151
Fig. 42 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Canudos, 1956, p. 73.
152
Fig. 43 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Canudos, 1956, p. 70.
35
Na série Os desastres da guerra, Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828), pintor e gravador
espanhol, documentou a violência das guerras napoleônicas. Entre outras obras, Goya também é conhecido
pela série Os caprichos, em que são denunciadas, em estilo meio fantástico e irreal, as contradições da
sociedade e dos costumes de sua época.
153
Oswald, cuja casa o artista paranaense frequentava e onde foi apresentado à obra do
espanhol, como afirmou em depoimento a Valêncio Xavier: “Goya me emocionou, logo
que pude comprei “Desastres da Guerra” e eram tempos da Segunda Guerra Mundial.”
(In NICULITCHEFF, 1994, p. 62). A ilustração reproduzida na Fig. 43 possui acentuadas
semelhanças com o célebre quadro de Goya intitulado Os fuzilamentos do três de maio
(Fig. 44), visíveis na posição do atirador e na postura da vítima com os braços levantados.
As posições invertidas dos atiradores e das vítimas nas duas obras remetem também a
uma peculiaridade técnica da gravura: o desenho realizado sobre a matriz sempre é
invertido ao ser impresso sobre o papel, como se fosse visto através de um espelho. Além
disso, os próprios papéis do atirador e da vítima, entre uma imagem e outra, são
invertidos: enquanto que no quadro de Goya são os soldados que atiram, na gravura de
Poty é o sertanejo que atinge o soldado, transformado em vítima.
Fig. 44- Francisco de Goya. Os fuzilamentos do três de maio, 1814. Óleo sobre tela, 2,68 x 3,47 m.
154
semelhanças com uma gravura da série Os desastres da Guerra, de Goya (Fig. 46). A
origem da imagem é a descrição de Euclides:
[...] a uma banda avultava, empalado, erguido num galho seco, o corpo do
coronel Tamarindo.
Era assombroso... Como um manequim terrivelmente lugubre, o cadaver
desaprumado, braços e pernas pendidos, oscillando à feição do vento no galho
flexivel e verdago, apparecia nos ermos feito uma visão demoniaca. (CUNHA,
1929, p. 356).
Á margem esquerda do caminho, erguido num tronco – feito um cabide em que
estivesse dependurado um fardamento velho – o arcabouço do coronel
Tamarindo, decapitado, braços pendidos, mãos esqueléticas calçando luvas
pretas... (CUNHA, 1929, p. 391).
155
Fig. 46 - Francisco de Goya. Isto é pior, da série Os desastres da guerra, 1810-1815.
156
Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain; e esse argumento unico,
incisivo, supremo moralisador – a bala. (CUNHA, 1929, p. 208).
157
Fig. 47 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Canudos, 1956, p. 83.
[...] formada por um material que se recalcava e/ou não se legitimava pelo
critério orientador do método (...), congrega imagens. Cada um destes dois
campos, a cena e a subcena, privilegia um recurso narrativo específico. À
exposição do método cabe a descrição. À subcena, porque constituída por
imagens, corresponderá o que chamaremos a máquina da mimesis. (LIMA,
1997, p. 161).
158
Nas ilustrações de Poty para Canudos, o documental e o fictício são colocados no
mesmo nível – o nível da imagem gráfica, que traça uma narrativa paralela à narrativa do
texto. A partir da teorização de Lima, então, pode-se dizer que, na narrativa estabelecida
pelas ilustrações, são precisamente as imagens efetivadas pela “subcena” de Os sertões
que são colocadas em primeiro plano, passando então à condição de cena principal. As
ilustrações são aliadas do texto de Euclides naquilo que Costa Lima chama de “máquina
da mimesis” – ou seja, a dimensão imaginativa, épica, aventurosa de Os sertões, encenada
nas imagens.
Arriscando uma exploração apenas introdutória no debate em que Lima situa sua
compreensão da obra de Euclides – o terreno, traiçoeiro como o sertão, da distinção entre
o literário e o historiográfico ou científico −, assumimos, aqui, que Canudos e, por
extensão, Os sertões, foram entendidos, no contexto das publicações da Sociedade dos
Cem Bibliófilos e pelo ilustrador Poty, como nada mais e nada menos que literatura.
Objeto de difícil definição, acerca do qual fazemos nossa a opinião de Terry Eagleton,
em completa discordância das opiniões de Costa Lima sobre os limites estritos entre
história e literatura:
Minha opinião é que seria mais útil ver a “literatura” como um nome que as
pessoas dão, de tempos em tempos e por diferentes razões, a certos tipos de
escrita, dentro de todo um campo daquilo que Michel Foucault chamou de
“práticas discursivas”, e que se alguma coisa deva ser objeto de estudo, este
deverá ser todo o campo de práticas, e não apenas as práticas por vezes
rotuladas, de maneira um tanto obscura, de “literatura”. (EAGLETON, 2006,
p. 309).
[...] por mais forte que seja a determinação do ficcional, por mais que saibamos
que não é o uso de recursos literários que favorece ou prejudica uma obra
como historiográfica, ainda assim não conseguiremos separar totalmente as
escritas da história e da ficção. E isso porque, optando por dizer a verdade do
159
que foi, a história não se desvencilha, radicalmente, do que poderia ter sido.
(LIMA, 2006, p. 385. Grifos no original.).
O que a análise das imagens parece revelar é que, ao realizar uma série de
ilustrações para uma guerra que não presenciou, Poty reafirma o caráter ficcional que
“atormenta” o texto histórico: o que Poty desenha não é, de forma alguma, “o que foi” –
ainda que o ilustrador possa ter utilizado como base para os desenhos fotografias ou outras
formas materiais e visíveis de registro histórico, tendo, inclusive, visitado a região em
que os fatos se desenrolaram –, mas sim “o que poderia ter sido”. No conjunto das
imagens criadas para a obra de Euclides, destaca-se a mistura de ilustrações de caráter
mais documental com ilustrações de caráter francamente imaginário e fictício. Em outras
palavras, Poty imagina a guerra de Canudos, e nos dá a ver representações imaginárias
da história, não se furtando, porém, à pesquisa objetiva de elementos factuais e históricos.
A ilustração, neste volume, é uma criação do imaginário: ainda que certamente
alimentada pelo material textual − seja ele factual, literário ou ficcional −, a dimensão
que ela abre para a obra de Euclides é a da interpretação criativa e imaginativa, e que,
além disso, interfere ativamente no conteúdo textual.
36
[...] ficções verbais, cujos conteúdos são tanto inventados quanto encontrados, e cujas formas têm mais
em comum com as suas contrapartidas na literatura do que com as suas contrapartidas nas ciências (TL).
160
de Goya, além disso, representa uma forma de desnudamento da ficcionalidade do mundo
criado nas ilustrações: é um procedimento de suplementação do texto de Euclides, que
aponta para a selvageria de todas as guerras, de toda forma de civilização violentamente
forçada sobre uma sociedade rústica e primitiva, que se defende com os recursos que
conhece e domina. Poty lê Euclides como tragédia ‒ mais precisamente, como tragédia
histórica, e que, precisamente por ser história, é literatura.
Fig. 48- Contracapa de João Abade, 1958. Fig. 49- Capa de João Abade, 1958.
História romanceada de Canudos, João Abade, de João Felício dos Santos (1958),
foi concebido a partir de um ponto de vista inverso ao de Euclides em Os sertões, que
narrava a guerra de uma perspectiva externa ao arraial e ao sertanejo. O romance histórico
João Abade, ao contrário, tem como foco principal os habitantes do arraial, como explica
o autor no prefácio ao romance: “[...] o objetivo do livro foi o jagunço, sua maneira de
viver, de amar, sua filosofia, caráter, concepções peculiares. Isso explica por que ‘João
161
Abade’ foi escrito ‘de dentro para fora’.” (João Abade, p. 14). As ilustrações de Poty para
o livro se aliam ao texto no sentido de constituir este ponto de vista narrativo,
materializando visualmente os personagens e suas ações e ao mesmo tempo incorporando
imagens similares às realizadas para Canudos, que na sua articulação com o romance
assumem outros significados.
A escolha do episódio encenado na capa (Fig. 49) é reveladora da leitura que Poty
faz do romance, colocando em destaque não exatamente a luta entre os jagunços e as
forças do governo – motivo principal que perpassa o enredo do livro –, mas o universo
de Canudos, com sua gente, seus amores e também seus conflitos e contradições. A
imagem não foi criada a partir do enfrentamento entre um soldado da república e um
“fanático”, mas sim de uma luta entre os próprios sertanejos que acorriam em grande
número para o arraial, entre os quais havia muitos criminosos que buscavam em Canudos
um abrigo fora do poder da lei e da justiça oficial. Para estes elementos, a religião acabava
por se tornar a motivação para crimes banais, de que o episódio figurado na capa é um
exemplo. “Nesse bando que vinha pela estrada de Jeremoabo, Pedro Caolho trazia um
oratório enorme. Pequenino do Jordão outro, menor um pouco.” (João Abade, p. 201). A
escolha do oratório diante do qual serão feitas as orações torna-se o motivo da luta,
episódio secundário dentro do enredo, mas demonstrativo de como os “fanáticos” não
eram uma massa uniforme, mas pessoas individualizadas entre as quais grassam os
conflitos, inclusive os de caráter violento e irracional. Na narrativa do trecho em questão,
os contendores devem lutar de camisas amarradas – “Briga de homem é de camisa
162
amarrada!” (SANTOS, 1958, p. 202) − e escolher as facas, que primeiro são medidas para
que tenham mais ou menos o mesmo tamanho e depois oferecidas simultaneamente aos
duelantes:
163
Fig. 50 - Ilustração de Poty para Canudos, 1956, p. 67.
Logo que a mulher sentiu Pedrão dentro dos ouvidos, lascou na corrida e se
afundou na cova por cima do compadre.
Tomou suspiração, entregou-lhe o rapé e juntou tôda a coragem:
− Eu lhe quero é muito bem, cumpadre...
Ia pular fora e fugir, mais de mêdo do quindim do que do arreceio de chumbo.
Idéia era só parar dentro do santuário se não caísse na bala.
Mas Pedrão patolou-lhe o braço numa acochação de prensa de farinha... (João
Abade, p. 281-282).
164
O trecho em questão é uma referência textual apenas hipotética para a imagem da
contracapa, em que se vê o casal de pé – posição pouco provável no exíguo espaço da
cova em que Olho de Prata e Pedrão se encontravam −, envolvido em um abraço terno e
trágico, em que o jagunço abraça a mulher ao mesmo tempo em que segura a arma. A
ilustração, precisamente pela ausência de uma referência textual precisa, é representativa
do poder das imagens de evocar narrativas através de um procedimento de encenação que
suplementa os conteúdos do texto: para o leitor que ainda não iniciou a leitura do
romance, ela sugere algo como uma despedida entre a esposa e seu marido que parte para
a guerra para talvez nunca voltar, remetendo a amores e famílias destruídas pela guerra.
Assim, apesar da ausência de um referencial preciso no texto do romance, é uma imagem
significativa da leitura que Poty faz de João Abade, estabelecendo, anteriormente à
leitura, a polarização entre a violência e o amor.
Passando à leitura do livro, a ilustração que abre o texto (Fig. 51) é uma capitular
figurada – elemento tradicional da ilustração de livros, típica do codex medieval – que
situa o leitor no universo geográfico do livro, o sertão baiano. Por trás da letra é
representada uma planta típica da região, a palmatória. De forma análoga ao que Euclides
fez em Os sertões, Poty empregou a vegetação para introduzir o leitor no espaço em que
a narrativa se desenrola. Além disso, as plantas são um elemento presente nas reflexões
céticas de Maria Olho de Prata, que duvida do Conselheiro, de Deus e da alma humana,
como expressa a João Abade, um dos seus amantes: “A alma da gente, a caatinga já comeu
ela. Quem nasce no meio dessas touceiras malvadas, não tem luxo disso...” (João Abade,
p. 126). Ao ceticismo de Olho de Prata, João Abade responde: “− Olha, mulher: larga de
165
idéia maluca. Tu não falou que jurema briga na querela da vivença que nem gente? Então
não sou eu mais tu que não têm alma... Os paus é que têm alma também como a gente.”
(João Abade, p. 127).
166
Na frente, distanciado do trôço, um mameluco escuro, gigantesco, abria o
desfile exótico. Carregava enorme cruzeiro de cedro. A cruz pesava mais que
o portador.
Atrás, bandeiras brancas e vermelhas do Divino estalavam seus panos ao vento
forte da madrugada. A procissão abriu para a vila. (João Abade, p. 19-20).
Alferes Bento Brasil nem tivera tempo de se erguer do leito. Nu, fazendo
desaparecer na coragem ágil as enxúndias do seu todo grosso, agarrado a sua
pequena Comblain bem municiada, derrubava muitos dos jagunços cujos
corpos – um dêles com os braços pendentes para dentro do peitoril, a parnaíba
aos pés – guarneciam-lhe o fogo como guarda de comando. (João Abade, p.
29).
167
Fig. 53 - Ilustração para João Abade, 1958, p. 27.
168
Fig. 54 - Ilustração para João Abade, 1958, p. 35.
Arcidino pensava em Maria Ôlho de Prata com uma saudade danada do pecado
lá dêles.
Lembrou da toalha bordada, sempre muito alva, que ela levava para forrar o
chão no meio das favelas.
Só onde ela gostava de amar...
O ruim é que, naquelas rampas de quartzo esfarelado onde nem mandacaru
brotava, tinha cada cascavel maior do que a fome, de meter mêdo até no Cão...
(João Abade, p. 34).
A ilustração (Fig. 54) mostra a mulher em primeiro plano, tendo aos pés a toalha
“sempre muito alva”, em meio à vegetação rude. Ao fundo, em tamanho reduzido por
conta da organização perspéctica, surge um dos sertanejos – que pode ser entendido como
Arcidino ou outro dos amantes de Olho de Prata, já que o caráter único ou repetitivo da
ação não fica determinado. A postura desafiadora e firme da mulher contrasta com a
169
pequenez e a postura corporal pouco decidida do sertanejo que vem através da vegetação;
a polarização entre os dois personagens é efetuada tanto pela diminuição perspéctica do
homem como pela composição, em que são valorizadas a diagonal descendente, que liga
a cabeça de Olho de Prata à cabeça do homem, e ascendente, que liga os pés dela aos pés
do sertanejo, que se aproxima relutantemente. Nesta ilustração, o cenário é um elemento
pertinente, caracterizando o comportamento de Olho de Prata e sua ligação com a
natureza, com a vegetação: em seus encontros amorosos em meio às favelas a mulher
desafia até mesmo o perigo do encontro com uma cascavel “maior do que a fome”.
Diante de Maria Olho de Prata até mesmo João Abade é colocado em situação
humilhante. Em certo momento, Abade, desejando cortejá-la, oferece a ela um punhal
tomado à força de Arcidino, que por sua vez havia encontrado a arma cravada fundo no
olho de uma das vítimas dos combates.
170
− Mas porém isso é trem de homem! Agrado de mulher é água de arfazema...
é sabunete... é corte de pano...
Abade começou a se irritar:
− Olha, Maria: vamos encurtar a conversa. Tu quer ser a dona dêsse negro feio
que está aqui? Negro mais brabo do que o Cão?
− E eu não sou do uso do povo, gente? É só você querer...
− De noite, entonce, vou tumar um café c´ocê!
− Minha casa, não! Sou dama de meter homem dentro de casa? Povo sabe
disso. Tá farto de saber! A hora que você determinar, nós se encontra nas
favela. Dia claro e a meio cruzado!
João Abade já não podia mais de tanta humilhação. Com o punhal esgravatava
o canto da unha suja [...]” (João Abade, p. 71).
171
chefes mantinham-no na coesão imprescindível elevando cada vez mais aos seus olhos o
símbolo vivo do asceta.” (João Abade, p. 60). A ilustração destaca, precisamente, o seu
caráter de símbolo vivo, o de um asceta distante do mundo real em que os seus fiéis,
contra os seus preceitos, estão entregues às disputas de poder, à devassidão e à cachaça.
O que não significa que os personagens sejam julgados por isso; ao contrário, é
precisamente através do comportamento errático, em que se revelam seus defeitos e
qualidades, em momentos de coragem, covardia, amor e ódio distribuídos ao longo da
narrativa, que os personagens são caracterizados de forma individualizada e realista.
Fig. 56 - Ilustração para João Abade, 1958, p. 99. Fig. 57 - Ilustração para Canudos, 1956, p. 5.
172
Aquêle tiro solto que escutou lá longe, de barriga no chão, foi o que torou o
seguimento do recado. Nonato abriu muito a bôca, ficou esperando a golfada
e, quando ela veio queimando lá de dentro, avermelhando o azul da camisa
grossa, deitou o ouvido na terra e pensou que hora chegada de homem morrer
nunca pode trazer adiamento. (João Abade, p. 240).
Fig. 58 - Ilustração para João Abade, 1958, p. 138. Fig. 59 - Ilustração para João Abade, 1958, p. 217.
173
Fig. 60 - Ilustração para João Abade, 1958, p. 121.
175
trás, em um momento de indecisão – a siga. A mulata escuta o ranger das alpercatas do
jagunço, a quem, na verdade, devota um amor de natureza completamente diversa da que
mantinha com seus vários amantes; o som dos passos de Pedrão é percebido por ela mais
alto do que os últimos tiroteios que ainda grassam no arraial:
176
2.6. As noites do Morro do Encanto, de Dinah Silveira de Queiroz
178
[d] [e] [f]
[j]
Fig. 64 – Poty Lazzarotto. Ilustrações para as páginas de abertura (as "noites") dos contos de As noites do Morro do Encanto (1957):
[a] A árvore e a sombra (p. 29); [b] Sombra de mulher (p. 149); [c] As estrêlas (p. 41); [d] O luar (p. 125); [e] Jornal caído do leito
(p. 59); [f] Velho tango na vitrola (p. 96); [g] Vigília contente (p. 69); [h] Além do escuro (p. 185); [i] Febre (p. 135); [j] O raconto
da vizinha (p. 103).
179
A associação bastante tênue entre os “pré-títulos” e os contos é assim enfatizada
através das relações instáveis que se estabelecem entre estes breves elementos
paratextuais e as imagens que os ilustram, que assumem assim um caráter para-icônico
próprio. A ilustração associa-se à intenção da autora patente na inclusão dos pré-títulos,
elementos que estabelecem uma flutuação de sentidos entre a camada paratextual –
composta, na edição ilustrada por Poty, pelos pré-títulos e pelas imagens – e os contos
propriamente ditos, criando um ambiente rico em associações poéticas de caráter vago,
indistinto ou labiríntico, que podem ser manipuladas pelo leitor de forma bastante livre a
partir das sugestões, associações ou divergências que carregam. Trata-se de uma
“ambientação gráfica” que cria uma espécie de cenário que antecipa a leitura, além de
proporcionar uma unidade poética que se configura, também, como uma unidade visual,
criada através da configuração das páginas de abertura. Dessa forma, as ilustrações
presentes na camada paratextual contribuem de forma decisiva para compor uma unidade
que abarca as variadas narrativas presentes em As noites do Morro do Encanto.
Estas associações não podem, no entanto, ser entendidas como uma espécie de
“regra” que orienta as escolhas da autora (e do ilustrador): ao ingressar no labirinto de
significados proposto nas relações entre a camada paratextual e os contos, o leitor é levado
a pensar que as associações entre os pré-títulos e as narrativas são bem mais diretas. O
primeiro conto, intitulado Jovita, é precedido pelo “pré-título” Gravura antiga, que
designa a primeira noite; graficamente, o texto fica no alto da página e alinhado à
esquerda, contrapondo-se à ilustração de Poty na parte inferior direita, layout que se
repete em todas as páginas que antecedem os contos (Fig. 65). Para este paratexto que
precede o conto em si, Poty criou o desenho de um soldado em uniforme antigo e portando
uma arma, fazendo assim alusão ao conteúdo da narrativa: inspirado em fatos reais, o
conto narra o episódio histórico passado em 1865 em que Jovita Feitosa, uma jovem de
apenas 17 anos, tentou se passar por homem para se tornar soldado voluntário e lutar na
Guerra do Paraguai. Em relação aos episódios narrados no conto, a imagem criada para o
pré-título assume um caráter de situação temporal através da figuração de um soldado
portando a arma e o uniforme militar da segunda metade do século XIX. Assim, em
relação ao conjunto de desenhos incluídos nas páginas de apresentação de cada uma das
“noites”, esta imagem constitui uma exceção; o leitor, no entanto, não sabe disso
(considerando-se, é claro, que o leitor leia os contos do livro na ordem normal das
180
páginas), e assim é criada uma expectativa de leitura dos complexos texto-imagem que
será frustrada ao longo da leitura.
181
vestira a sobrecasaca sôbre o camisolão, e quem o olhasse de fora o poderia
ver até à cintura em perfeita dignidade governamental.
Eram quatro horas da tarde, e a praça já se ia animando. Pessoas saíam das suas
casas para tomar refrescos. Escravos de ganho perambulavam pelos grupos,
vendendo laranjada e limonada. (As noites..., p. 7).
Nas ilustrações de página inteira criadas para cada um dos contos a unidade criada
na camada para-icônica transforma-se em variedade, na medida em que Poty seleciona
diferentes momentos e aspectos significativos dos textos como tema para as ilustrações.
Na ilustração do conto Jovita, Poty atribui maior relevância aos momentos finais da
narrativa, quando a personagem-título sente-se completamente desiludida em relação às
suas pretensões de efetivamente lutar na guerra e compreende que fora manipulada:
Já não pensava nas complicações políticas. Já não cuidava sôbre o que lhe
poderia acontecer, amanhã, quando todos soubessem que a fabricada heroína
nunca fôra aceita, como não poderia ser, e que tudo não passara de mesquinha,
fácil e tôla urdidura. Jovita não fôra senão um chamariz.
O novo vigário, que vestira a batina havia apenas um mês, cavalgava silencioso
atrás de Jovita, sentada de lado no seu silhão, a larga saia de flanela ondulando
ao sabor do passo do animal. (As noites..., p. 26).
182
Nas ações finais do conto, Jovita, após ter sido frustrada em todas as suas
tentativas de integrar o exército e participar efetivamente da guerra, retorna, a cavalo, ao
sertão de onde viera, trajando um vestido. O vestuário, note-se, é parte significativa da
narrativa: no início, o governador traja a sobrecasaca sobre o camisolão, para afetar uma
“dignidade governamental”, ou seja, para criar uma imagem aceitável de si mesmo como
detentor de um cargo público oficial; Jovita surge vestida de homem, no intuito de tornar-
se soldado voluntário, e, tendo as suas expectativas frustradas, é obrigada a voltar ao seu
papel social de mulher, portando a vestimenta que dela se espera, o vestido. A vestimenta
é um dos recursos empregados pelo governador para torná-la um exemplo do heroísmo
nacional, quando ela parte para o Rio de Janeiro: “Nosso Estado vai dar uma lição aos
que não sabem ser brasileiros. Amanhã essa menina embarca; e embarca já com farda de
sargento.” (As noites..., p. 18). É significativo, aliás, que a sua imagem histórica em uma
enciclopédia digital popular como a Wikipedia a apresente com o uniforme do exército.
Nas cenas finais do conto, é de vestido que ela, cavalgando, passa por um grupo de
recrutas que entoam canções nacionalistas em que ela é referida como exemplo de
patriotismo; os soldados, porém, não a reconhecem:
183
Fig. 66 - Poty Lazzarotto. Ilustração para o conto Jovita, de As noites..., 1957, p. 11.
Narciso e Violeta sabem que Manuel sofre de uma doença do coração, como
explica o amante: “− Mas não disseste que a benzedora viu nêle uma doença do peito?
Que não pode fazer muita fôrça, nem levar susto, que a coisa arrebenta e êle se vai?” (As
noites..., p. 63). Certo dia, Manuel volta bêbado de um casamento e pede à esposa que lhe
tire as botas, e quando Violeta roça os dedos nas plantas dos seus pés ele explode em
gargalhadas. Intencionalmente, os amantes provocam cócegas no velho até levá-lo à
morte:
E foi uma luta estranha, excitada. Narciso e Violeta, ágeis e decididos, não
deram mais tréguas. Ora com os próprios dedos, ora com as penas, no pescoço,
no ventre, atrás das orelhas e, principalmente, nos pés do velho, faziam as
cócegas – que derrotavam Manuel num frouxo de riso impossível de ser
contido. Quando êle, já engasgado, começou a pedir:
− “Parem! Parem... não posso mais! Ai! Ai! Meu Deus!”
Violeta riu mais forte: só então riu com os olhos, com o corpo, com o cabelo
que era crina de animal alegre, que se livra em disparada. Riam os dois amantes
furiosamente. (As noites..., p. 67).
Fig. 67 - Poty Lazzarotto. Ilustração para o conto Os amantes de Chiloé, de As noites..., 1957, p. 65.
− “ [...] Nos dias seguintes a êsses sonhos tremendos, Narciso... tinha vontade
de ir à igreja...”
186
Carlos balançou a cabeça, num gesto raivoso:
− “Justamente como eu pensava. E então?”
− “Então êle se chegava à escada, ficava... ficava olhando fascinado para os
mendigos. Sabe? Aquela mulher com erisipela, a perna inchada – o homem
com uma chaga no lugar do nariz... Tarciso ficava olhando, olhando. Dentro
dêle subia uma vontade esquisita. Beijar! Apalpar aquela chaga, acariciar a
perna doente.” (As noites..., p. 51).
− “[...] Foi o médico, que agora está lá em baixo que me mandou... voltar para
o hospital. Tenho que estar internado... O menino nunca reparou... que trago
doentes as mãos? Verdade é que as tenho sempre sujas de terra”.
A expressão de Tarciso súbitamente mudou, num pressentimento. A tarde
declinava, o sol filtrando através da poeira, descia reto sôbre seu rosto. A pele
estava estirada, côr de rosa, tão lisa como se fôra de louça. Podia-se
acompanhar, transparecendo profundamente, como estava, em seu rosto, uma
intensa emoção que lhe ia no íntimo.
− “Pensei que fôsse do trabalho. Mas... Deixe ver suas mãos” – ordenou
Tarciso, com um estranho tom.
[...] O homem parecia hipnotizado. Relutou por segundos, depois estendeu as
mãos, que penetraram na claridade, ganhando logo um mágico relevo. Eram
mãos manchadas e tortas, pisadas, roxas e crescidas. Tarciso nunca reparara
nelas. Estavam ali diante de seus olhos, pedaços marcados pela morte próxima,
e no entanto vivos, bulindo como dois animais feridos, condenados.
Então o menino sentiu em si aquela impetuosa onda de esquisito carinho,
avassaladora como um doce fôgo de amor, e agarrando as pobres mãos doentes
– paralizado o jardineiro por fôrça invencível – inundou-as de longos beijos,
de transbordantes beijos, juntando-lhes seus lábios devagar,
interminávelmente. (As noites..., p. 55-56).
187
Fig. 68 - Poty Lazzarotto. Ilustração para o conto Tarciso, de As noites..., 1957, p. 45.
Esse é o tenso e estranho momento que é selecionado pelo ilustrador como tema
da imagem, que representa o menino e o jardineiro ajoelhados no chão (Fig. 68). O
menino é uma figura pequena, clara e delicada; o jardineiro, submetido à vontade de
Tarciso, é uma figura escura, ostentando um rosto de formas rudes e desgraciosas. No
texto não há nenhuma menção ao fato de ambos os personagens estarem ajoelhados: é a
interpretação do ilustrador – atento à dimensão mística e religiosa que perpassa a narrativa
– que, preenchendo criativamente as lacunas do texto, efetua a suplementação
representada pela significativa postura corporal dos personagens. Como é revelado logo
em seguida à família e aos demais presentes, os beijos de Tarciso nas mãos do jardineiro
possuem poderes milagrosos:
− “Um milagre! Um milagre! Doutor Laertes: olhe para minhas mãos! ... elas
foram branqueando com os beijos daquele anjo de Nossa Senhora... Foram
desaparecendo as nódoas! Até... que se foram de uma vez as manchas!
Repare!”
E o homem estendeu para o médico as mãos puras, lisas, finas, como nascidas
de novo. (As noites..., p. 57).
188
Assim, a ilustração de Poty encena o momento preciso da ocorrência do milagre
– instante crucial da narrativa −, incluindo a postura corporal que traz consigo as
conotações de ordem religiosa, e portanto sugerindo o desenlace do enredo.
Fig. 69 - Poty Lazzarotto. Ilustração para o conto Centelha de Deus, de As noites..., 1957, p. 129.
189
veem algumas cartas de tarô; atrás dele, um retrato na parede – suplementação efetuada
pelo ilustrador, pois o retrato jamais é referido no texto – e, à sua frente, uma silhueta de
mulher. Não se vê nem o rosto da “afanosa matrona”, nem a referida filha; note-se que
neste conto os personagens não têm nome, sendo referidos como “o cartomante”, “a mãe”
(com as variações “a velhota” e “a mulher”), “a filha”, “a amiga”, “o marido”. A essa
ausência de nomes próprios, a imagem corresponde com a presença da silhueta feminina,
de que são eliminados quaisquer traços descritivos mais elaborados. Plena de vagas
sugestões, de que o retrato feminino na parede é um exemplo bastante eloquente, a
ilustração não fornece indicações do desenlace da história, limitando-se a encenar a
situação, prenhe de possibilidades, do encontro entre a mulher e o cartomante.
190
Santos Brandão, instalado bem diante dos meus olhos, passava o dia
escrevendo à máquina, quase pôsto à janela, numa mesinha encostada à
vidraça. Quando o avistava, ensaiava um olhar simpático, um sorriso. Êle me
fitava, sempre furioso, trágico, baixando logo os olhos sôbre o trabalho, sem
nem sequer fazer a sombra de um cumprimento. (As noites..., p. 139).
Logo coisas estranhas começam a ocorrer na casa, começando por certos ruídos
misteriosos, barulhos de cassino que se escutam nos cômodos. Depois, os ocupantes da
casa têm visões: o marido da escritora vê uma figura mexendo em um cofre e, quando
esta se volta, ele vê um homem exatamente igual a si, que imediatamente desaparece junto
com o cofre. A narradora, por sua vez, vê uma mulher morta deitada em sua cama, que é
a sua própria imagem, banhada em sangue. Surge a suspeita, plantada pela antiga criada
de Santos Brandão, de que este tenha feito algum tipo de magia negra para expulsar os
novos proprietários da casa, e quando o velho escritor morre, as visões cessam por
completo. Algum tempo depois a narradora encontra em uma loja um romance póstumo
de Santos Brandão, que ela adquire, meio aterrorizada:
191
passa a morar em frente. O conto apresenta, em tom sobrenatural, um caso em que a ficção
invade a realidade, assombrando o mundo físico; a casa, nesse sentido, é tanto o ambiente
“real” dos fatos narrados no conto (incluindo as memórias da narradora) como o espaço
literário em que vivem as personagens do romance de Santos Brandão − intitulado, como
o conto de Dinah, “Vestida de sangue”.
Fig. 70 - Poty Lazzarotto. Ilustração para o conto Vestida de sangue, de As noites..., 1957, p. 141.
192
tempos de Haroldo, o homem relâmpago; segundo, que a desproporção é intencional, e
portanto assume certos significados relativamente ao texto. Esta casa irrealmente
encolhida – aceitando a segunda hipótese – marca, na sua desproporção, o local em que
o ficcional invade o real, irrealizando aquilo que seria o cotidiano, o que é
tradicionalmente aceito como “o real”. Entendendo a desproporção presente na imagem
como uma deformação propositadamente realizada pelo ilustrador, a casa do conto é
representada na ilustração como uma casa de bonecas agigantada, em uma espécie de
meio-termo entre o real e o imaginário. Trata-se, é claro, de uma hipótese: o ilustrador
pode, efetivamente, cometer enganos – erros involuntários na construção das figuras e
dos cenários, tanto em termos técnicos como em relação aos conteúdos textuais –, mas
também os erros, assim como as divergências em relação ao texto, intencionais ou não,
podem ser considerados significativos.
193
Fig. 71 - Poty Lazzarotto. Ilustração para o conto A moralista, de As noites..., 1957, p. 35.
O jovem é gradualmente “curado” dos seus modos femininos, mas a sua presença
na casa da família passa a ser vista com suspeitas pelo povo do lugar: após certo tempo,
o jovem dá todas as mostras de estar enamorado da conselheira, a “moralista” do título.
O marido entristece-se com a situação, e acha melhor mandar o jovem embora, o que a
mulher acha “um pecado”. A situação, porém, torna-se insustentável:
194
Tôdas as cabeças o seguiram lentamente. Eu o vi de costas, já perto da porta,
no seu andar discreto de mocinha de colégio, desembocar pela noite. (As
noites..., p. 39).
A ilustração (Fig. 71) mostra o jovem que deixa a família sentada à mesa,
composta pelas três figuras – duas mulheres e um homem aparentando mais idade. O
rosto do jovem que parte, dando as costas à família no segundo plano, é apresentado de
forma apenas parcial, cortado pelo limite da imagem. Seu corpo é representado como uma
silhueta em que, além do rosto e das mãos, pouquíssimo se vê das suas características
físicas – a não ser os ombros descaídos e o talhe magro e estreito – ou da roupa que traja.
As opções assumidas pelo ilustrador na representação do jovem no primeiro plano da
ilustração buscam destacar a sua incompletude e indefinição, correlativas da sua
ambiguidade sexual e da figura de “jovem viciado” com que é tachado pelas pessoas da
cidade. A narrativa sugere que a sua paixão pela conselheira e benfeitora é, em um certo
sentido, uma forma de resolver estes conflitos – que são conflitos tanto ao nível
psicológico quanto social, já que o jovem, com seus modos efeminados, não é aceito na
cidade em que vive, e tem frequentes crises de angústia. A ruptura que dá vazão ao
episódio narrado no conto é, exatamente, o embate deste jovem com a família, que
constitui o centro narrativo do conto, em relação ao qual o jovem é sempre um elemento
externo. Na ilustração, no entanto, Poty deixa todos os personagens da família na
indefinição e na incompletude, representando-os através de sintéticos traços indicativos;
em comparação com o jovem no primeiro plano, mesmo cortado na parte superior da
cabeça pelo limite da imagem, as figuras no plano posterior são meras silhuetas pouco
definidas. Não se identifica com certeza, por exemplo, quem é a mãe e quem é a filha: a
figura escura, no plano mais próximo, parece aparentar maior idade; no entanto, é a figura
mais distante, uma alva silhueta, aparentemente mais jovem, que mostra o decote referido
no conto, iniciado pela descrição do alvo pescoço que, junto ao riso, é um dos encantos
da mãe, que prefere vestidos decotados para exibir seus atributos. Para além do primeiro
plano, ocupado pelo jovem problemático que parte sem olhar para trás, as figuras tornam-
se pouco individualizadas; a ilustração de Poty encena, assim, o sentimento de
desconexão entre o jovem e a família, trazendo-o ao primeiro plano da narrativa visual,
de forma divergente em relação ao texto – em que o jovem é apresentado sempre a partir
da perspectiva externa da filha da personagem principal. A imagem é dominada, assim,
pelo elemento que traz a desarmonia ao seio da família da narradora; ao contrário do belo
195
pescoço alvo da mãe, vê-se com maior destaque o longo pescoço do jovem, que ao final
do conto aparecerá enforcado – assim entende-se – “como que um longo vulto balançando
de uma árvore”, que a narradora acha menos trágico que ridículo, “como um judas de cara
de pano roxo” (As noites..., p. 39). No seio da família, não se fala do assunto por muito
tempo; a mãe deixa, por vários meses, de dar as suas risadinhas, e passa a usar sempre
vestidos fechados no pescoço. Em relação ao texto, então, a ilustração trabalha a partir de
analogias e também de inversões, estabelecendo uma outra visão do conto – bastante
literalmente, um outro ponto de vista estabelecido a partir da imagem, fator que será
explorado em profundidade mais adiante, e que aqui é empregado para encenar uma
situação psicológica.
Artur Lima busca se convencer de que é Francisquinha, cujo amor é marcado pela
passividade e pela adoração, que mais lhe “convém”. É perdido nestes pensamentos que
ele é surpreendido:
196
Artur deu um salto.
– “Maria Cora, disse êle, com nervosismo. Vá embora. Podem vê-la... Imagine
o escândalo!”
Ao contrário das outras vêzes, quando há seis meses a môça vinha ao
apartamento, trêmula de susto pelas escadas, e pedia – a primeira coisa, sempre
ao chegar – “um copo d´água, olhe meu coração como está...” ao contrário das
outras vêzes, Maria Cora parecia estranhamente serena. (As noites..., p. 203).
Fig. 72 - Poty Lazzarotto. Ilustração para o conto Encontro com Francisquinha, de As noites..., 1957, p. 201.
197
sempre... E como você só tem o que não quer, porque lhe tenha faltado
coragem... tenho pena e perdôo o mal que me fêz. Perdôo-lhe, professor, de
todo coração”.
Artur cobrira o rosto com as mãos. Quando o descobriu, Maria Cora não estava mais ali. Segundos depois, cheia de véus, de peles,
elegante e perfumada, Francisquinha apareceu. E quando ela tirava o chapéu, desembaraçava-se das peles, Artur estudava, confuso e
trêmulo, uma desculpa. (As noites..., p. 204-205).
Na ilustração para Encontro com Francisquinha () – como aliás nas duas últimas
imagens que vínhamos discutindo, as ilustrações para os contos Vestida de sangue e A
moralista (Fig. 70 e Fig. 71) – não se pode falar, propriamente, em representação de ação.
Nestas imagens não há nenhuma das marcas tradicionais da representação do movimento;
as posturas corporais são intencionalmente estáticas, valorizando as relações estáticas
198
entre os personagens ou dos personagens com um elemento determinado, como a casa de
Vestida de sangue. Porém, é exatamente através dessa supressão da ação e do movimento
que Poty estabelece a encenação destes contos: é pela não-ação, pelo “congelamento” dos
elementos dinâmicos que sobressaem, nas imagens, aspectos simbólicos, de variada
significação em relação aos elementos textuais. As mãos de Artur na ilustração para
Encontro com Francisquinha denotam o aspecto incompreensível e misterioso da
situação criada no conto, encenado como o encontro estático e tenso entre as duas figuras:
o gesto pode estar relacionado às mãos que cobrem o rosto, ação presente no texto, mas
também evoca um gesto de desespero, como mãos que sobem ao alto, como que em busca
de proteção espiritual. Ou ainda, em uma interpretação mais livre, são sinal da culpa de
Artur, as mãos elevadas enquanto sinal da sua impotência e da sua inação, incapazes de
evitar que Maria Cora encontre seu verdadeiro fim, quando ela, após a bem-sucedida
simulação fantasmagórica, deixa o apartamento de Artur e volta para casa:
Foi até o banheiro, enxugou as lágrimas com uma toalha, abriu o armarinho,
tirou uma lâmina. Viu o reloginho de pulso, lembrou-se. Atrasou-o
ràpidamente para as três e quarenta. Bateu com êle na pia, quebrou-o, amarrou-
o novamente ao braço esquerdo. Segurou firme, bem firme, a lâmina, bateu
com a mão direita com fôrça e decisão na altura necessária... Viu o sangue
esguichar, quase sem dor, e deitou-se ainda consciente, tendo o cuidado de cair
sôbre o relógio. E enquanto as fôrças lhe fugiam, pensou, − longínquo
pensamento, tardia esperança, teimando, como se não se tratasse dela, mas de
outra pessoa – que Artur talvez não encontrasse tudo terminado.
Mas tal não se deu. As desculpas foram muito difíceis e êle demorou-se com
Francisquinha bem mais do que pretendia. (As noites..., p. 205-206).
Na ilustração deste conto, assim como nas outras ilustrações que encenam não a
ação, mas o embate estático entre os personagens − como na imagem criada para A
moralista ‒ ou entre um personagem e um objeto ‒ a casa de Vestida de sangue −, a
ausência de ação abre espaço para uma interpretação do ilustrador que se caracteriza pela
abertura dos significados em relativa divergência em relação aos conteúdos textuais, o
que propicia também uma interpretação mais livre por parte do leitor/espectador. Na
199
forma como representam embates tensos, carregados de significado, mas estranhamente
desprovidos de ação, são imagens que se situam em uma zona limítrofe entre a ação e a
não-ação: como se algo estivesse para acontecer – o que é exatamente a definição do
suspense. A ausência de ação, no entanto, não compromete o potencial narrativo da
imagem, enfatizando, por outro lado, o seu caráter de encenação. Apesar de assumirem
um caráter mais explicitamente estático – que para Lessing era a prova da sua
inadequação para a representação de ações –, são imagens que pressupõem uma leitura
visual de que a narrativa é parte inseparável; não apenas por conta da sua inserção no
objeto-livro, que as torna parte integrante do complexo texto-imagem, mas pelas suas
próprias características intrínsecas, ou melhor, pelo movimento de interpretação por parte
do leitor/espectador que elas ativam.
200
comenta: “A literatura mata voluptuosamente tôda pessoa humilde que encontra em seu
caminho, para satisfazer um gôsto geral” (As noites..., p. 88) ‒ , Vítor e Leda saem para a
beira da estrada, momento em que o rapaz sugere à moça que poderia dar a sua mocidade
a alguém como ele. A narrativa se desenrola sempre em meio às considerações da autora:
Mesmo, nem poderei contar sôbre as pequeninas e tolas frases com que agora
‒ um do outro ‒ se empenham em ocultar a verdade. Conheço o alvoroço do
coração de Leda, e uma sorte de triste raiva, obscura raiva de si própria que
experimenta. E sei ver Leda também como a vê Vítor. Um doce abismozinho
mulher, fragilidade que chama, pedido de socorro que se não sabe exprimir.
Leda ‒ os cabelos da Leda que se repartem como tiras de seda, e acenam
molemente. O pequeno nariz, molhado, as faces ternas, redondas, o pescoço
que devia ser magrinho, mas se apruma, sólido e provocante. E então, o beijo
que num instante foi bom ‒ como doce vinho no pensamento do homem ‒ e
então o beijo que foi melhor ainda do que o pensamento, na verdade de uma
bôca de mulher. (As noites..., p. 92).
Existem várias pessoas que deslizam como sombras amenas ‒ criaturas que
esperam, no bar da estrada, prosseguir viagem. Nem têm côr, nem têm faces
[...]. Estão no limbo da criação literária, extras da história, mal ensaiados por
uma autora que deixa seus figurantes em inteira liberdade. (As noites..., p. 81).
201
Fig. 73 - Poty Lazzarotto. Ilustração para o conto A pérola e a ostra, de As noites..., 1957, p. 75.
202
dispõe os personagens como uma densa massa escura acima do caixão, representado em
escorço, no primeiro plano, dentro de um interior delimitado pela perspectiva do teto do
aposento (Fig. 75). A composição concentra os elementos de forma a estabelecer uma
espacialidade fechada, interpretação visual do monólogo interior que se desenrola no
conto:
Por que chora você, Álvaro, quando eu me sinto tão feliz? Por que essa gente
tôda no meu quarto? Que fazem meus pais que se abraçam e se consolam, como
se alguma desgraça tivesse acontecido? Minha Babá... por que treme tôda,
convulsa e nervosa? Por que Julinha adoçou a fisionomia e vai de Papai e
Mamãe, de Babá a Álvaro, com palavras de ternura ‒ ela que nunca as teve?
Que faz essa horrível intrusa deitada no meio de flôres no meu quarto? Parece-
se com alguém... (As noites..., p. 189).
Fig. 74 - Poty Lazzarotto. Ilustração para o conto Nosso amor, Fig. 75 - Poty Lazzarotto. Ilustração para o conto A luz
de As noites..., 1957, p. 107. cinzenta, de As noites..., 1957, p. 191.
É ainda dentro desse registro psicológico e intimista que outras ilustrações buscam
aproximar-se dos personagens, focos da subjetividade encenada no texto. Nas ilustrações
para Filha do Alheio (Fig. 76) e O porto resplandecente (Fig. 77), Poty oferece retratos
individuais das protagonistas; em Angélica e nós três (Fig. 78), um retrato de grupo.
Todos estes retratos são caracterizados pela presença de molduras, o que os aproxima do
plano da representação, ao mesmo tempo que os enquadra, como no formato tradicional
do retrato na pintura; permanece neles, portanto, algo da espacialidade cerrada e intimista
que predomina nas ilustrações do livro. No entanto, nessas ilustrações de As noites..., essa
figuração do personagem é apenas esboçada, permanecendo dependente da encenação
narrativa que predomina no conjunto das ilustrações. É em outras obras que Poty
aprofunda e desenvolve a figuração dos personagens como uma forma específica de
conceber as relações entre a imagem e o texto ficcional: este é o tema do próximo capítulo.
204
Fig. 76 - Poty Lazzarotto. Ilustração para o conto Filha do Fig. 77 - Poty Lazzarotto. Ilustração para o conto O porto
alheio, de As noites..., 1957, p. 169. resplandecente, de As noites..., 1957, p. 213.
Fig. 78 - Poty Lazzarotto. Ilustração para o conto Angélica e nós três, de As noites..., 1957, p. 155.
205
2.7. Percurso de leitura
É natural, assim, que a análise de uma forma artística essencialmente marcada pela
hibridação entre o texto e a imagem coloque em questão, precisamente, a dimensão
temporal da imagem gráfica. Note-se, no entanto, que a imagem, pelas suas próprias
características constitutivas, possui uma temporalidade outra em relação à temporalidade
da narrativa verbal, e essa relação de alteridade entre o texto e a imagem é uma
característica central das relações entre os dois meios. Quando o ilustrador elege, por
exemplo, em Vila dos Confins, a subtrama desenhada pelos embates entre o homem e a
natureza, representada por certos momentos aventurosos do texto ‒ o ataque da sucuri, a
luta entre o Pe. Sommer e a onça, a sugestão do episódio das piranhas ‒, ele privilegia
uma narrativa alternativa à linha principal do enredo desenhado no texto,
predominantemente voltado às articulações políticas do interior mineiro. Poty investe,
assim, no poder metafórico dos episódios dos embates naturais e na sua dimensão
aventurosa para criar uma narrativa própria, condensada na capa e contracapa do livro. É
a própria relação de alteridade entre as temporalidades diversas ‒ a narrativa da imagem
e a narrativa do texto ‒ que traz à luz a articulação metafórica entre a trama “política” e a
trama “natural”. A relação de alteridade entre a temporalidade do texto e a da imagem
também se manifesta na condensação dos distintos episódios que compõem as Novelas
Paulistanas de Alcântara Machado em uma única imagem. Nesse caso, a estratégia
figurativa consistiu em agrupar as referências aos vários contos em um único conjunto de
representações simultâneas; a própria diferença entre a temporalidade cindida das curtas
narrativas e a sintetização da imagem coloca em relevo as relações diretas entre o estilo
da representação visual e o estilo telegráfico e fragmentado do texto.
207
Por sua própria natureza híbrida, a ilustração literária efetua a contaminação entre
diferentes meios artísticos e entre diferentes obras: e, também nestes casos, a relação de
alteridade entre a imagem e o texto é empregada de forma artisticamente produtiva. O
emprego da iconografia da Pietà no Quinze, o uso de imagens derivadas da adaptação
cinematográfica em Moby Dick, as referências a Goya em Canudos, são todas formas de
articular elementos e temporalidades outras em relação aos textos, e é por conta dessa
própria alteridade que a ilustração se constitui como uma interpretação e como a criação
de uma nova versão, de um “mundo” próprio em relação ao “mundo do texto”.
208
3. A figuração do personagem
209
um problema de organização interna que de equivalência à realidade exterior.
(CANDIDO et al., 1992, p. 75).
A vida real cria sempre figuras novas, brilhantes, coloridas, que se sobrepõem
aos personagens imaginários; o conto sofre a influência da realidade histórica
contemporânea, do epos dos povos vizinhos, e também da literatura e da
210
religião, tanto dos dogmas cristãos como das crenças populares locais.
(PROPP, 2001, p. 49).
Estas conexões do conto (e do personagem) com a vida social, real e efetiva, são
apenas mencionadas por Propp, que não as problematiza, permanecendo algo obscura a
natureza da relação entre o ser vivo e o ser fictício, levantada por Candido.
O problema pode ser resolvido pela teoria da recepção, que abre outras dimensões
para o entendimento do personagem. Se a teoria de Iser propõe que a leitura engendra
imagens – no sentido específico que o termo assume no seu Ato da leitura –, pode-se
considerar que os personagens literários, a rigor feitos de palavras, possuem também uma
dimensão imaginativa, visual, podendo assim gerar imagens materiais, gráficas e
pictóricas (e mesmo escultóricas), nascidas e originadas da leitura – em que entram em
jogo os processos de controle textual e os “lugares vazios”, preenchidos
imaginativamente pelo leitor, que caracterizam a atividade da leitura. E aqui chegamos
ao ponto de interesse deste capítulo, que é a representação visual de personagens na
ilustração de Poty Lazzarotto: os personagens são alguns dos “aspectos esquematizados”
pelo texto, controlados pelo autor, e geradores de “lugares vazios” preenchidos no ato da
leitura: é entre estas duas instâncias que a ilustração, como também qualquer outra obra
visual de inspiração literária, pode surgir.
211
nariz do personagem: ao longo de uma descrição literária de uma pessoa, a maior parte
das informações sobre as características anatômicas de um ser humano “normal” é
simplesmente pressuposta. No processo de “síntese passiva” realizado ao longo da
recepção do texto ficcional, o leitor é levado a imaginar figuras humanas que são
derivadas, certamente, da sua experiência de mundo com seres humanos reais: um
exemplo é o caso em que, na leitura de um romance, imaginamos um personagem sendo
representado por alguém do nosso círculo de conhecidos ou por um ator de cinema. A
“síntese ativa” realizada pelo ilustrador segue o mesmo caminho, introduzindo a
construção gráfico-visual de figuras humanas que estabelecem uma série de relações não
apenas com o texto, mas também com o conhecimento visual (artístico ou não) do artista.
A descrição dos personagens é necessariamente cheia de lacunas que o ilustrador vem a
preencher com uma série de dados que não são fornecidos pelo texto. Na ilustração de
personagens, assim, vêm à tona as relações mais amplas – e, como nota Candido,
“paradoxais” − da representação literária, especificamente verbal, com outras referências
de ordem visual, nascidas da nossa experiência da realidade – em que se incluem também
as referências visuais oriundas de representações artísticas (da história da arte, do cinema,
da fotografia, etc.). Compreendendo o ato da criação ficcional como “criação de mundos”,
a partir da teoria de Nelson Goodman, o personagem aparece no “mundo da imagem”
como uma versão construída a partir de outros mundos ‒ que inclui tanto o mundo
ficcional criado na literatura quanto outros mundos e outras versões preexistentes,
inclusive aquilo que chamamos, de forma mais ou menos vaga, de “realidade”.
212
Para além da prevenção do autor literário contra a possibilidade do cerceamento
dos sentidos presentes no texto através da sua representação visual, a carta de Flaubert
revela também a percepção que ele possui do poder exercido pela ilustração, pois se o
autor sente que a sua obra é ameaçada pela imagem, é porque o registro visual possui uma
capacidade de síntese e materialização que ele considera indesejável: a obra visual seria,
assim, capaz de “devorar” a mais bela descrição literária. Ao criar uma imagem visual de
um personagem literário, o ilustrador realiza uma obra de segunda ordem, que nasce do
material textual mas o ultrapassa, interpretando-o; e é precisamente esta interpretação que
é temida por Flaubert, que a entende por uma perspectiva exclusivamente negativa, por
conta do caráter do suposto “fechamento” da ideia múltipla contida no texto.
O que a declaração de Flaubert deixa claro, precisamente pelo que busca negar, é
que personagens ficcionais podem ser criados tanto através dos textos quanto através das
imagens. Reunindo diferentes meios expressivos, o pesquisador português Carlos Reis
emprega o termo “figuração” para se referir às variadas formas de representação do
personagem, abrangendo sob este conceito também as formas intermidiáticas através das
quais os personagens adquirem vida, como o cinema, o teatro e a história em quadrinhos.
213
A correlação entre figuração e ficcionalidade diz respeito a um vasto problema
que é o das tensões entre imanência e transcendência das obras artísticas em
geral.
Sendo, em primeira instância e aparentemente, um ser imanente a um texto
ficcional e como que nele “aprisionado”, a personagem tende a romper com
aquela sua condição, projetando-se para uma dimensão de transcendência que
ultrapassa as chamadas fronteiras da ficção. Um tal ímpeto de autonomização
estimula uma visão fenomenológica da personagem; é pela concretização, no
ato de leitura, que a autonomização se decide, contribuindo para incutir
sentidos renovados ao texto e atualizando-o, na esfera das preocupações, dos
anseios e das experiências de vida do leitor. (REIS, 2013b).
Extrapolando o raciocínio de Reis para o campo específico das relações entre texto
e imagem, pode-se dizer que a figuração literária do personagem, por meio da
autonomização nascida da leitura, dá ensejo à sua figuração em outros meios, e portanto
também à sua representação visual. O caso exemplar é o do personagem Dom Quixote:
mesmo aqueles que nunca leram o livro de Cervantes são capazes de reconhecer a sua
“triste figura”, proficuamente disseminada através de meios visuais que atingiram (e vêm
atingindo) um espectro social muito mais amplo que o texto literário. Deve-se atentar para
o fato de que o reconhecimento da imagem visual de Dom Quixote exige, por um lado,
um conhecimento elementar da sua história e de suas aventuras – ou seja, um
conhecimento literário mínimo (mesmo que alcançado por outros meios narrativos) – e,
por outro, exige um conhecimento de ordem referencial: o espectador precisa ser capaz
de reconhecer as figuras de um homem, de um cavalo, de uma armadura e de uma lança;
ele precisa reconhecer as diferenças entre um homem alto e magro e outro baixo e
gorducho, e assim por diante. Este reconhecimento dos elementos visuais, absolutamente
corriqueiro, coloca em relevo a dimensão referencial do personagem, ou seja, seus
aspectos extra-textuais, a experiência de mundo necessária à compreensão do ser fictício,
seja ele figurado pelo texto ou pela imagem – precisamente a referencialidade que era
temida por Flaubert por cercear os sentidos múltiplos presentes no texto.
214
indecente” (Guerra dentro do beco, p. 21), buscando a distância de sua casa, e como que
a distância de si mesmo:
É neste local que Júlio encontra uma pessoa que desperta nele o mais vivo
interesse, descrito a partir das suas próprias impressões:
No entanto, ali naquele café tão pulha um outro ser lhe despertara a atenção de
tal forma obsidentemente como jamais imaginara. Alguém, sim, alguém como
um irmão pródigo, que se esperava e já chegou, atendendo a uma solicitação
misteriosa, imperativa, doentia. A impressão fez-se tão compassiva que Júlio
soergueu as pálpebras, com receio de defrontar o fantasma querido. Abriu
então definitivamente os olhos, e se lhe depararam como olhos de vidros [sic]
os do homem esguio e elegante sentado na outra mesa, só e fantasmagórico
com seu copo de uísque. [...]
Júlio, num instante procurou o ponto de intercessão acima, impossívelmente
acima da lâmpada, e quando baixou os olhos notou, agora com a maior certeza,
que o sujeito absorvia-lhe o olhar como se o esperasse há muito. Em verdade
atraía-o, subjugava-o. (Guerra dentro do beco, p. 23).
A ilustração criada por Poty apresenta Júlio, sentado à mesa do bar, na seção
superior esquerda da imagem; em primeiro plano, o rosto de Cristiano, que domina a
215
imagem. Júlio aparece desenhado em traços sucintos e simplificados; já o rosto de
Cristiano é representado com riqueza de detalhes, dentre os quais se destaca o
sombreamento que delineia as formas do rosto, alongado e macilento (Fig. 79). A posição
relativa dos dois personagens sugere a relação de submissão que Júlio assume para com
Cristiano, relação esta estabelecida, fundamentalmente, pelo olhar.
Fig. 79 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Guerra dentro do beco, 1959, p. 25.
216
estranho, que foge ao referencial de realidade: os “olhos de vidros”, que Poty interpreta
quase literalmente, na criação do olhar magnético e perturbador de que Júlio – agora junto
com o leitor/espectador – é vítima.
217
3.1. Personagem e enredo
Fig. 80 - Poty Lazzarotto. Capa e contracapa de Os dias antigos, de José Condé, 1955.
O conjunto de ilustrações para Os dias antigos, de José Condé (1955), foi um dos
primeiros trabalhos de Poty para a “Casa”. O volume agrupa cinco novelas que têm como
foco a cidade interiorana e decadente de Santa Rita, em um período histórico situado
alguns anos após a abolição da escravatura, mesmo tema do livro anterior do autor,
Histórias da cidade morta, de 1951. Para os habitantes do lugar, a Abolição representou
a ruína das estruturas sociais e econômicas vigentes, o que é retratado principalmente
através dos pensamentos e reflexões dos personagens. É sob um viés predominantemente
psicológico que são representados aspectos como a miséria e a marginalização dos negros,
a bancarrota e a nostalgia dos proprietários, assim como a profunda solidão existencial
que as transformações históricas acarretaram aos personagens. As novelas são
entrelaçadas entre si: personagens secundários, como o bodegueiro Gumercindo e o
delegado Xinó, aparecem em mais de uma narrativa; o antigo proprietário rural Aprígio
de Azevedo, do conto Chão de Santa Rita, em suas lembranças embaladas pelas bebidas
218
que compra na bodega de Gumercindo, lembra-se de um amor do passado pela velha
senhora Magdala, protagonista da última novela. Alguns dos personagens e enredos são
retrabalhados a partir do livro anterior, o que justificaria a sua reedição conjunta pela
Editora Civilização Brasileira, sob o título de Santa Rita, em 1961.
Está tão cansado que já não se sente atingido pelas lembranças ou pelo
sofrimento. O morto deixou de persegui-lo; a mata não o amedronta mais. Não
o aflige a recordação das súplicas de Rita e do chôro da filha que, impassível,
219
escutara agachado atrás de um maciço de árvores. Apenas o instinto o obrigara
a recuar novamente para a floresta ao ouvir o ladrar dos cães e as vozes
nervosas dos homens que atravessavam a pinguela. Andara, andara sem parar.
Agora, entretanto, moído pelo cansaço, sem pernas para continuar a servi-lo,
seu único desejo é deitar-se no chão e adormecer. Ou morrer.
A terra molhada exala seu cheiro selvagem. É boa a sensação que o invade.
Com a cabeça recostada num tronco de árvore, fecha os olhos e adormece. Não
por muito tempo, é verdade, mas aquêles minutos foram suficientes para fazê-
lo esquecer a existência dêle mesmo e do mundo. Mas, acordando daí a pouco,
sente-se de novo atordoado. Depois volta-lhe inteira a consciência de onde está
e por que ali está, e as lembranças do acontecimento tornam a possuí-lo, ainda
com maior ímpeto. (Os dias antigos, p. 28).
220
realçada pelo quadrilátero branco, que serve para destacá-lo do fundo azul sobre o qual
os demais elementos são representados: como é recorrente na obra de Poty, o elemento
cromático assume um papel meramente funcional, delimitando e hierarquizando a
estrutura compositiva. A essa figura genérica se contrapõem as outras cenas que
compõem a imagem externa: na capa, vê-se o desfecho da novela O negro, em que
Elesbão é morto por seus perseguidores; na contracapa, a chegada do Abel de Como
naqueles dias, que deixa a casa da mãe, Idalina, para voltar apenas muitos anos depois,
usando muletas, quando ela já está envelhecida e cega. O texto da novela não fornece
nenhuma descrição propriamente visual de Abel, mas somente a percepção auditiva da
mãe, que, após muito esperar, ouve o retorno do filho:
Certa manhã, escutou, ainda distante, alguém que vinha da rua. Eram umas
passadas singulares: uma pisada forte, decidida e outra, sêca, terminando num
estranho arrastar de terra... Alguém de muletas? E, embora não pudesse
precisar se homem ou mulher, começou a se inquietar, e o coração se pôs a
bater apressado. Era como se ouvisse aquêles passos dentro de si mesma.
− Por quê? Por quê? – indagava.
As passadas estranhas se aproximavam, se aproximavam cada vez mais.
Começara a escutá-las na calçada, agora no terreiro, agora na...
A porta abriu-se e Idalina ouviu:
− A bênção, mãe. (Os dias antigos, p. 147).
221
por transcender o plano textual, de forma que a multiplicidade de imagens criadas no ato
da leitura é, de certa forma, canalizada pela ilustração, que funciona como uma espécie
de imagem-base, uma referência visual comum aos leitores.
222
Os namoros das filhas são sempre motivo de apreensão por parte dos pais, que veem no
casamento a única alternativa para alcançar uma vida digna, ainda que pobre:
Queriam, apenas, vê-las casadas! Que depois, com os seus maridos, fôssem
obrigadas a lidar por todo o dia, sofressem as mais duras privações... Nada
disso importava: casadas, elas seriam gente! Ninguém fugiria ao seu convívio:
ninguém as olharia de través... E não se lhes dariam nunca os nomes, sobretudo
infames, de “rapariga” e “mulher dama”! (Os Corumbas, p. 59).
Assim, as ameaças a que as moças estão sujeitas, no romance, são aquelas que
nascem do ambiente urbano, marcado pelo trabalho degradante nas fábricas e pelo assédio
dos homens. São estes os elementos representados na ilustração que precede a narrativa
do romance, em que se vê uma jovem em primeiro plano, tendo por trás a estrutura
industrial da fábrica e um homem fardado. A figura feminina, simples e digna, é uma
representação de Caçulinha, assim descrita no texto:
223
Os que viam Caçulinha passar para o serviço, no seu vestido simples, mas
jeitoso, quedavam, cheios de pasmo. Porque, despido o uniforme de aluna, que
a tornava menina, de repente surgira uma mulher forte e bela.
Fizera quinze anos inda há pouco. Tinha pernas longas e cheias. Ancas fortes.
Colo alto, sem a saliência de um osso. A bôca regular. Dentes alvos e certos.
Olhos grandes e claros. Cabelos castanho-louros. A testa talvez um pouco
larga. (Os Corumbas, p. 95).
Em uma festa, Caçulinha conhece o Sargento Zeca, que desde o primeiro instante
fica impressionado com a sua beleza; eles travam conhecimento, e o rapaz passa a assediá-
la:
224
único filho homem perdido no mundo, depois da sua fuga motivada pela sua adesão ao
movimento grevista. De acordo com o texto, o casal está sentado em um banco de
madeira, em meio à algazarra barulhenta da estação de trem:
225
nos limites do texto, empregam assim a figuração dos personagens de modo a apresentar,
inicialmente, uma situação inicial em que não se supõe, a princípio, o elemento
ameaçador e dramático, que só será conhecido no decorrer da leitura; no final do livro,
quando Geraldo e Josefa sentem-se incapazes de se comunicar acerca dos tristes
acontecimentos, o ilustrador se limita a apresentar o mudo casal de velhos como que
isolados do ambiente em que se encontram, imersos em suas tristes lembranças.
226
Cravo, Caribé, Poty, Franck Schaeffer, Flavio Damm, Renina Katz, Darcy Penteado,
Anna Letycia e Manuel Martins [...]” − como informa a orelha da 9ª. edição de Capitães
da areia (1961), ilustrada por Poty. Neste volume, as imagens foram incluídas em folhas
separadas, intercaladas nos diferentes cadernos, mas fora da paginação – sendo que a face
reversa das ilustrações fica sempre em branco −, provavelmente por motivos técnicos;
isso explica a razão pela qual a posição das imagens em relação ao texto é mais ou menos
aleatória. Este não é, de forma alguma, um fato incomum nas ilustrações literárias em
geral, como também não é incomum nas ilustrações de Poty. Nas relações entre as
imagens e o texto de Capitães da areia, porém, é notável a forte associação convergente
entre os dois meios, assim como o destaque dado, nas imagens, à representação dos
personagens; em termos da ordenação das ilustrações, no entanto, não há uma relação de
estrita proximidade entre o que é narrado no livro e o que é representado nas ilustrações
− ainda que esta proximidade ocorra em alguns casos, como ocorre com a primeira
ilustração.
Incluída logo após a parte intitulada Cartas à redação, a primeira imagem do livro
(Fig. 83) funciona como uma transição entre o conjunto de notícias jornalísticas
ficcionais, agrupadas à maneira de paratexto, e a narrativa propriamente dita. Nas notícias
ficcionais, os “Capitães da areia” surgem, primeiramente, como criminosos que, após o
assalto à casa de um comerciante abastado, tornam-se alvo da atenção da imprensa, que
desencadeia um acirrado debate de que participam a polícia, o juiz de menores e o diretor
do reformatório – como instâncias da lei e da repressão −, além daqueles que defendem
os meninos, como a mãe de um menor delinquente e o padre José Pedro. A parte seguinte,
Sob a lua, num velho trapiche abandonado, é iniciada com a descrição do ambiente do
trapiche em que vivem os Capitães da areia, para seguir com uma apresentação direta dos
principais integrantes do grupo: Pedro Bala, João Grande, o Professor, o Sem-Pernas,
Pirulito, o Gato e Boa-Vida. Assim, depois da representação do grupo a partir da
perspectiva “externa” e distanciada do noticiário jornalístico e das cartas enviadas à
redação, segue-se uma representação mais próxima, carregada de efeitos visuais e
psicológicos, que apresenta cada um dos personagens principais ao leitor. A transição
entre as duas seções, que é realizada pela imagem, assume função semelhante,
apresentando visualmente ao leitor/espectador alguns dos principais personagens do
romance.
227
Fig. 83 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Capitães da Areia, 1961, entre p. 30-31.
Na ilustração, os rostos dos meninos são representados uns sobre os outros como
silhuetas escuras que se destacam, por meio de um espesso contorno branco, contra um
fundo completamente negro. Dispostos na região central da imagem com expressões
sorridentes, dois deles exibem navalhas em suas mãos: a presença da arma, referida várias
vezes no romance, contrasta com a expressão alegre dos “Capitães da areia”: a ilustração
estabelece, assim, a associação entre a alegria juvenil e a ameaça constante da violência,
exercida ou sofrida pelos menores abandonados. As navalhas, exibidas orgulhosamente
pelas duas figuras centrais da ilustração, são sinais da única saída disponível diante da
miséria e do abandono a que são submetidos: o crime. O riso infantil, que contrasta
significativamente com as ameaçadoras navalhas, é uma marca dos “Capitães da areia” −
a “larga, livre e ruidosa gargalhada dos Capitães da Areia, que era como um hino do povo
da Bahia” (Capitães da areia, p. 71) – sinal da sua inocência sempre ameaçada pela
precária situação em que vivem. A identificação de cada personagem não fica
propriamente clara: na imagem como um todo, é favorecida a sua apresentação como um
228
grupo coeso, e aqui não podemos aventar mais que hipóteses aproximativas. A figura
inferior seria Pedro Bala, que recebe maior destaque que os demais; de baixo para cima,
segue-se João Grande, com os traços negroides e o braço musculoso; em seguida, Volta
Sêca, com o chapéu de sertanejo, e por último o Professor, sempre descrito como magro,
pequeno, franzino.
Fig. 84 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Capitães da areia, 1961, entre p. 46-47.
O fundo escuro, assim como o emprego dos fortes contrastes entre o branco e o
preto, com o uso bastante econômico – e às vezes ausência completa − de elementos mais
tradicionais da representação realista, como as hachuras, o claro-escuro e a perspectiva
linear, são marcas estilísticas presentes em todas as ilustrações do volume. Na
representação do grupo de crianças que corre na paisagem noturna de Salvador (Fig. 84),
as formas dinâmicas dos seus corpos − representados como silhuetas brancas em que se
veem apenas algumas hachuras indicativas do claro-escuro − se destacam contra o fundo
da cidade com suas construções e telhados, de formas mais duras e geométricas. Ao longo
do romance, a noite é o período em que eles são mais livres para cometer os seus pequenos
229
furtos e outros delitos, protegidos pela escuridão; a imagem, no entanto, não parece estar
relacionada a nenhum episódio específico da ação narrativa, fazendo referência, de forma
genérica, aos diversos momentos de perambulação e fuga que ocorrem ao longo do
romance. Por outro lado, a ilustração destaca a sua relação com o ambiente urbano:
marginalizados em um mundo que não os aceita, eles estabelecem uma relação peculiar
com o espaço da cidade, descrita como o seu “domínio” − “[...] porque tôda a extensão
da zona do areal do cais, como aliás tôda a cidade da Bahia, pertence aos Capitães da
Areia” (Capitães da areia, p. 32). Jorge Amado os descreve como figuras que vivem em
profunda união com o espaço urbano, o mesmo espaço em que, na verdade, não são
aceitos por conta da sua condição miserável e marginal, assim como pela sua atividade
criminosa:
Uma noite o Gato andava pelas ruas das mulheres, o cabelo muito lustroso de
brilhantina barata, uma gravata enrolada no pescoço, assoviando como se fôsse
um daqueles malandros da cidade. As mulheres o olhavam e riam:
− Olha aquêle frangote... O que quererá por aqui?
O Gato respondia aos sorrisos e seguia. Esperava que uma o chamasse e fizesse
amor com êle.
[...] As mulheres olhavam para sua figura de garôto, e sorriam. Achavam-no
belo na sua meninice viciada e gostariam de fazer amor com êle. (Capitães da
areia, p. 48).
230
Fig. 85 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Capitães da areia, 1961, entre p. 94-95.
231
imaginativa. É o caso da ilustração que mostra um casal desenhado em linhas cinzentas
sobre o fundo completamente negro (Fig. 86): trata-se, na verdade, de um desenho dentro
de um desenho, em que se vê o artista ficcional visto de um ponto de vista superior, na
seção inferior da imagem. O desenho feito pelo Professor – o intelectual do grupo, que
também possui talentos artísticos − é visto a partir do melhor ângulo possível de
visualização, ao passo que o personagem em si é visto em escorço, com leves toques de
claro-escuro, mais destacados sobre o rosto, tratamento visual que o separa
simultaneamente do fundo negro e do desenho que ele mesmo executa com o giz que
segura em uma das mãos. O ponto de vista escolhido, portanto, visa apresentar de forma
privilegiada o elemento imaginário – o desenho do Professor, recriado graficamente por
Poty – em detrimento do elemento “real”, o menino, representado de um ponto de vista
que valoriza o escorço deformante da figura, assim como a sua silhueta frágil e suas
formas esquálidas, resultando em uma representação truncada e algo desconfortável. Ao
longo do romance, são várias as ocasiões em que o Professor desenha os transeuntes das
ruas da cidade, obtendo às vezes – mas não sempre – alguma esmola:
232
Fig. 86 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Capitães da areia, 1961, entre p. 110-111.
233
Fig. 87 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Capitães da areia, 1961, entre p. 158-159.
Mas na sexta-feira Lampião entrou na vila com vinte e dois homens e então o
carrossel teve muito que trabalhar. Como as crianças, os grandes cangaceiros,
homens que tinham vinte e trinta mortes, acharam belo o carrossel, acharam
que mirar suas luzes rodando, ouvir a música velhíssima da sua pianola e
montar naqueles estropiados cavalos de pau, era a maior felicidade. E o
carrossel de Nhôzinho França salvou a pequena vila de ser saqueada, as môças
de serem defloradas, os homens de serem mortos. (Capitães da areia, p. 73).
234
É o próprio Nhôzinho França que conta esta história aos “Capitães da Areia”
Volta-Sêca e Sem- Pernas, convidando-os para ajudá-lo no serviço do carrossel, no que
serão seguidos pelos demais integrantes do grupo. Como para os cangaceiros, o brinquedo
“velho e desbotado” (Capitães da areia, p. 76) assume para os meninos uma aparência
de fantasia e encanto, despertando neles sentimentos de alegria e inocência infantis, como
no momento em que Volta-Sêca e Sem-Pernas o colocam em funcionamento, para
fascinação dos demais meninos:
Então a luz da lua se estendeu sôbre todos, as estrêlas brilharam ainda mais no
céu, o mar ficou de todo manso (talvez que Yemanjá tivesse vindo também
ouvir a música) e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em
invisíveis cavalos os Capitães da Areia. Nesse momento de música êles
sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos
porque eram todos êles sem carinho e sem confôrto e agora tinham o carinho
e confôrto da música. (Capitães da areia, p. 78).
Volta-Sêca é oriundo do sertão e tem uma admiração quase religiosa por Lampião.
Fascinado pela história de Nhôzinho França, quando anda no carrossel imagina-se como
o próprio cangaceiro:
[...] o menino toma o cavalo que serviu a Lampião. E enquanto dura a corrida,
vai pulando como se cavalgasse um verdadeiro cavalo. E faz movimentos com
o dedo, como se atirasse nos que vão na sua frente, e na sua imaginação os vê
cair banhados em sangue, sob os tiros da sua repetição... E o cavalo corre e
cada vez corre mais, e êle mata a todos, porque são todos soldados dos
fazendeiros ricos. Depois possui nos bancos a tôdas as mulheres, saqueia vilas,
cidades, trens de ferro, montado no seu cavalo, armado com seu rifle. (Capitães
da areia, p. 79-80).
Este é o momento escolhido por Poty para representar o Volta-Sêca, postado sobre
o cavalinho de madeira e vestindo o tradicional chapéu ornado com a estrela de Davi
(símbolo também conhecido como “estrela de Salomão”) e a cartucheira cruzada sobre o
peito − elementos reconhecíveis do cangaceiro, usados sobre os trajes humildes do garoto.
Sem indicação específica de um ambiente ao fundo, a figura de Volta-Sêca mira o
espectador, exibindo os dentes no rosto sombreado: ao contrário das demais imagens, o
fundo aqui é completamente branco, com exceção da base sobre a qual repousa a figura.
No texto, o carrossel é representado como uma fonte de luz que se destaca na noite da
235
cidade, fazendo com que os “Capitães da areia” recuperem, por alguns momentos, a
infância perdida:
236
teria também que carregar fardos... Vida dura aquela, com fardos de sessenta
quilos nas costas. Mas também poderia fazer uma greve assim como seu pai e
João de Adão. Brigar com polícias, morrer pelo direito dêles. Assim vingaria
seu pai, ajudaria aquêles homens a lutar pelo seu direito (vagamente Pedro Bala
sabia o que era isso). Imaginava-se numa greve, lutando. E sorriam os seus
olhos como sorriam os seus lábios. (Capitães da areia, p. 99).
Fig. 88 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Capitães da areia, 1961, entre p. 174-175.
237
Pedro Bala se imagina tomando o lugar do pai como estivador e líder grevista, ele está na
região das docas, acompanhando a atividade dos numerosos trabalhadores, com quem se
identifica. Na ilustração, ele está completamente sozinho, o que favorece a sua relação
com o espaço físico das docas e da cidade; trata-se de um retrato que apenas sugere, no
olhar e na expressão do personagem, o seu monólogo interior. Além disso, ao contrário
do que informa a narrativa, a cena representada na ilustração é noturna: na síntese ativa
operada pelo ilustrador, as reflexões de Bala são transportadas para outro horário, em que
o ambiente está completamente vazio, o que permite a contraposição visual entre o
personagem e o ambiente. A forma negra que circunda a figura de Pedro Bala como que
o exclui do resto da imagem, como em outras imagens da série, estabelecendo uma
relação de conflito e separação entre o ambiente e o personagem, que é favorecida pela
diferença nos seus tratamentos gráficos – o cenário é realizado em contrastes de branco e
preto, ao passo que o rosto de Bala é representado através da hachura pesada e grosseira.
O tratamento mais realista do rosto de Bala denota, assim, a intenção explícita do
ilustrador de caracterizá-lo com uma expressão facial marcante, dirigida diretamente ao
leitor/espectador.
238
Nesta descrição são destacados, repetidas vezes, os elementos visuais ligados à
luz e à escuridão: o trapiche é visto “sob a lua”, fonte luminosa que o faz destacar-se
como “mancha negra na brancura do cais”. As pedras dos alicerces do trapiche são
“grandes e negras”; as crianças repousam “iluminadas por uma réstia amarela de lua”; as
noites diante do mar eram “verde escuro, quase negras”; a areia em frente ao trapiche é
“alva”, em repetidas ocorrências. O trapiche, assim, é textualmente “pintado” em fortes
contrastes de luz e sombra desde o começo da narrativa: trata-se de uma imagem literária
construída no processo da leitura – “imagem”, no sentido da teoria da recepção de Iser −
que é trabalhada de forma análoga na imagem gráfica de Poty. O estilo da representação
visual, assim, está diretamente relacionado à descrição narrativa – considerando, sempre,
que a síntese ativa realizada pelo ilustrador realiza uma série de adaptações e recriações
das cenas narradas, como é o caso da cena noturna de Pedro Bala.
Por outro lado, as próprias escolhas dos temas a serem figurados são responsáveis
por colocar em destaque certos aspectos da narrativa, em detrimento de outros que são
deixados de lado. No caso das ilustrações de Poty para o romance de Jorge Amado, a
seleção operada pelo ilustrador coloca à margem todas as situações em que os meninos
estão envolvidos em crimes ou delitos. Dessa forma, as ilustrações funcionam como
aliadas da retórica do escritor, que busca, ao longo do romance, apresentar os meninos
sob uma ótica positiva, ainda que eles estejam envolvidos em atividades pouco louváveis
– resultado, como afirmado por várias vezes ao longo da narrativa, das injustas condições
sociais de que eles são fruto. A defesa retórica do comportamento dos meninos, que visa
torná-los dignos (e mesmo heroicos) diante do leitor é apresentada de forma explícita nas
reflexões do Pirulito, o “Capitão da areia” que deseja tornar-se padre:
239
Seguindo a retórica do texto, nenhuma das ilustrações representa as crianças em
atividades propriamente criminosas; a dimensão da violência, tão presente em suas vidas,
é apenas sugerida de forma soturna pelas navalhas presentes na primeira ilustração (Fig.
83) ou pela ótica da vitimização, como é o caso da representação da queda do Sem-Pernas
(Fig. 89). O personagem em questão é caracterizado, ao longo do romance, pelo ódio:
tendo sido espancado e humilhado pela polícia, ele se ressente também do defeito físico,
que o faz sentir-se inferiorizado diante dos demais meninos do grupo, especialmente no
que tange à sua realização amorosa ou sexual:
Nunca conseguira amar ninguém, a não ser a êsse cachorro que o segue.
Quando os corações das demais crianças ainda estão puros de sentimentos, o
do Sem-Pernas já estava cheio de ódio. Odiava a cidade, a vida, os homens.
Amava ùnicamente o seu ódio, sentimento que o fazia forte e corajoso apesar
do defeito físico. Uma vez uma mulher fôra boa para êle. Mas em verdade não
o fôra para êle e sim para o filho que perdera e que pensara que tinha voltado.
De outra feita outra mulher se deitara com êle numa cama, acariciara seu sexo,
se aproveitara dêle para colhêr as migalhas do amor que nunca tivera. Nunca,
porém, o tinham amado pelo que ele era, menino abandonado, aleijado e triste.
Muita gente o tinha odiado. E êle odiara a todos. Apanhara na polícia, um
homem ria quando o surravam. Para êle é êsse homem que corre em sua
perseguição na figura dos guardas. Se o levarem, o homem rirá de novo. Não
o levarão. Vêm em seus calcanhares, mas não o levarão. Pensam que êle vai
parar junto ao grande elevador. Mas Sem-Pernas não pára. Sobe para o
pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri com tôda a
fôrça do seu ódio, cospe na cara de um que aproxima estendendo os braços, se
atira de costas no espaço como se fôsse um trapezista de circo. (Capitães da
areia, p. 280).
240
estivesse mais bruto e mais inquieto. Seu desejo reclamava uma posse
completa. Mas a vitalina se contentava em colhêr as migalhas do amor.
Sem-Pernas durante o dia a odeia, se odeia, odeia o mundo todo. (Capitães da
areia, p. 268).
Fig. 89 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Capitães da areia, 1961, entre p. 222-223.
241
Fig. 90 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Capitães da areia, 1961, entre p. 238-239.
242
atravessando entre os que dormiam. O negrinho já tinha transposto a porta do
trapiche e dava a volta no prédio para o lado esquerdo. Em cima era o céu de
estrêlas. Barandão agora caminhava apressadamente. O Sem-Pernas notou que
êle se dirigia para o outro extremo do trapiche, onde a areia era mais fina ainda.
Foi então pelo outro lado e chegou a tempo de ver Barandão que se encontrava
com um vulto. Logo o reconheceu: era Almiro, um do grupo, de doze anos,
gordo e preguiçoso. Deitaram-se juntos, o negro acariciando Almiro. O Sem-
Pernas chegou a ouvir palavras. Um dizia: “meu filhinho”, “meu filhinho”. O
Sem-Pernas recuou e sua angústia cresceu. Todos procuravam um carinho,
qualquer coisa fora daquela vida: o Professor naqueles livros que lia a noite
tôda, o Gato na cama de uma mulher da vida que lhe dava dinheiro, Pirulito na
oração que o transfigurava, Barandão e Almiro no amor na areia do cais.
(Capitães da areia, p. 53-54).
Na ilustração que figura por último na sequência das páginas do romance vê-se o
casal de meninos abraçados em meio à brancura do areal, tendo ao fundo a escura
construção do trapiche e alguns barcos (Fig. 90). A composição destaca a separação entre
o casal de meninos e o ambiente que é a sua casa: a transgressão das leis do grupo
representada pelo amor homossexual só pode ocorrer no espaço externo ao seu domínio
estrito, fora do seu lar. A pederastia havia sido eliminada do bando pela influência do
Padre José Pedro e pela ação enérgica de Pedro Bala, que expulsou os “passivos do
grupo”: “Por assim dizer, Pedro Bala arrancou a pederastia de entre os Capitães da Areia,
como um médico arranca um apêndice doente do corpo de um homem.” (Capitães da
areia, p. 127). No texto, a cena é apresentada pela ótica do Sem-Pernas, que internamente
justifica o comportamento inadequado de Barandão e Almiro: as justificativas do
comportamento dos menores delinquentes aparecem nos pensamentos de vários
personagens, tornando evidente o discurso autoral em vários momentos do romance, com
toda a sua carga retórica e de denúncia social. A ilustração − cuja referência textual é um
episódio bastante secundário do romance − traz à tona a dimensão amorosa e afetiva das
crianças, cuja carência é referida repetidas vezes ao longo da narrativa; aparentemente,
no entanto, a figuração do amor homossexual é desprovida, na imagem gráfica, do
julgamento condescendente e justificador com que este é tratado no texto, em que o
comportamento homossexual é sempre explicado pela necessidade dos meninos de obter
amor e carinho a qualquer custo. A imagem coloca em destaque, precisamente, a exclusão
daqueles que sucumbiam a um comportamento considerado doentio (um “apêndice
doente”) pelo padre e pelo líder do grupo, arriscando-se a ir contra as regras do grupo
para obter uma satisfação afetiva que lhes era negada em todos os demais níveis. Tratando
da marginalização que ocorria entre os próprios marginais, Poty acentua a situação de
exclusão radical a que os meninos estão submetidos.
243
Assim, a relação entre ilustração e texto revela o quanto a prática do ilustrador
consiste em uma interpretação ativa dos conteúdos textuais, em que certos aspectos são
colocados em destaque em detrimento de outros – no caso das ilustrações de Poty para
Capitães da areia, acentuando as dimensões humanas dos pequenos marginais. Nos fortes
contrastes de branco e preto, presentes em todas as descrições do trapiche e manifestados
graficamente nas ilustrações, sugerem-se também os contrastes entre a inocência e a
culpa, a alegria infantil e o ódio criminoso – elementos conflitantes que o autor trabalha
no sentido de estabelecer a empatia entre o leitor e os menores infratores.
244
de Plínio Salgado, ilustrada por Poty Lazzarotto. Originalmente publicado em 1926, o
primeiro romance daquele que seria o criador do Integralismo tinha o objetivo, nas
palavras do autor, de “fixar aspectos da vida paulista nos últimos dez anos”; já em 1935,
Plínio Salgado afirmaria que “o meu primeiro manifesto político foi um romance” (apud
BARROS, 2006, p. 13). A ligação entre a obra literária e os aspectos ideológicos da sua
atuação política ficou, assim, sacramentada; para Wilson Martins, no entanto,
245
Ciclo ascendente do colono (os Mondolfi); ciclo descendente das raças antigas
(os Pantojo).
Marcha do caboclo para o sertão e novo bandeirismo (Zé Candinho);
deslocamento do imigrante nas suas pegadas e novo período agrícola
(Humberto); regresso dos antigos fazendeiros para a capital e novos elementos
para o funcionalismo público e classes liberais (ainda os Pantojo).
Por outro lado, o espírito de italianidade (a “Dante Alighieri”), em luta com a
terra e o meio; movimento de reação das tradições e sentimentos inerentes ao
tipo provisório anteriormente esboçado (Juvêncio). (O estrangeiro, p. xiv).
246
retratado a uma certa simbologia ou mitologia (prática comum entre os séculos XV e
XVIII, dentro de diferentes estilos de época), até o retrato psicológico e subjetivo, que
busca revelar aspectos da vida interna do indivíduo. Este último é o caso predominante
entre os retratos fictícios de Poty criados para O estrangeiro: reduzidos a poucas linhas,
os rostos dos personagens revelam pouco dos elementos ligados ao seu ser social (como
seria o caso da vestimenta, por exemplo); associados a objetos ou ambientes que
compõem o fundo da imagem, buscam articular a figura representada com alguma
dimensão ligada à sua história pessoal, ao seu imaginário ou às suas crenças.
248
malogrado. É a partir destes poucos dados que Poty cria a ilustração, dando destaque para
o estado de espírito do personagem, que sente o letreiro da hospedaria e do Departamento
Estadual de Trabalho “como a mão de ferro de um cossaco abatida sobre o ombro de um
suspeito” (O estrangeiro, p. 5).
Poty retrata o russo vestindo boné – o que indica seu pouco (ou nenhum) poder
aquisitivo, neste momento inicial da narrativa − e tendo como fundo elementos ligados
ao passado: as cúpulas da catedral de São Basílio, símbolo algo estereotipado do seu país
de origem, e a imagem de um homem que aponta uma arma para a figura do czar,
referência à insurreição política (Fig. 91). O personagem, em si, é apresentado com certa
economia de traços, aspecto estilístico de todos os retratos de O estrangeiro, com a
indicação sumária de luz e sombra, a barba por fazer, o aspecto cansado, o olhar
expressivo e circunspecto. No canto inferior direito aparece a figura de um abacaxi, que
no texto tem uma única aparição: “Ivã caminhou vagaroso para o leito. Adormeceu
pensando num lindo abacaxi, que vira ao desembarque, no cais.” (O estrangeiro, p. 10).
O destaque a este elemento, de pequena importância no texto, é significativo, pois indica
como o ilustrador recupera uma dimensão interna do personagem (Ivã pensa no abacaxi)
que é desvinculada do seu ser político e social, sempre apresentado textualmente através
do discurso grandiloquente, retórico. Em contraposição aos elementos do passado na
Rússia, o abacaxi é sinal do presente, desta nova vida que se inicia em um novo país, em
um novo continente; é sinal da emoção estética do personagem (“um lindo abacaxi”), que
se contrapõe às dificuldades por que ele está passando no momento em que chega ao
Brasil.
Antes do desenho que representa Ivã, a edição de 1972 inclui uma ilustração que
representa Carmine Mondolfi, o imigrante italiano que chega ao Brasil junto com o russo
e que é o seu primeiro contato humano no país (Fig. 92). “Era um patriarca meão, mulher
e 5 filhos – um rapaz de 20, uma rapariga de 16, crianças miúdas, sacos de roupa,
cachimbo fumegante, velhas canções napolitanas.” (O estrangeiro, p. 10-11). A
representação de Mondolfi no texto é parte da análise que Salgado faz da sociedade
brasileira, com o imigrante europeu tomando as rédeas do progresso econômico e
trazendo consigo os valores estrangeiros, cuja encarnação no romance é a “Sociedade
Dante Alighieri”. “Carmine Mondolfi, o patriarca, na sua penúria, tinha uma grandeza
estranha de predestinação.” (O estrangeiro, p. 11). Esta predestinação se concretiza, na
trama, através da sua ascensão econômica e social; quando ele se torna um homem rico e
249
se muda para a cidade, permanece ligado aos ideais e à cultura italianos: “Na saleta caiada
penduraram um quadro com os retratos coloridos de Vítor Manuel e da Rainha Helena,
encimados por uma coroa pousante sobre as cores da bandeira italiana.” (O estrangeiro,
p. 78). Trata-se aqui de Vittorio Emanuele III e Helena de Montenegro; Vittorio Emanuele
foi rei da Itália entre 1900 e 1946, tendo sido importante apoiador do movimento fascista.
250
italiana”. Observe-se que, assim como não há nenhuma pretensão de realismo nesta
representação, também inexiste a pretensão de estabelecer uma correspondência precisa
com o texto; o Vittorio Emanuele III de Poty possui elementos de exatidão histórica – o
grande bigode, a farda condecorada, são elementos sempre presentes nas fotografias do
rei italiano; a coroa, por outro lado, é invenção do ilustrador. Um rei, para ser visualmente
entendido como tal, “precisa” usar uma coroa: a ilustração trabalha, entre outras coisas,
com estereótipos conhecidos, com o imaginário pré-existente do receptor, fazendo, neste
caso, a ligação entre os elementos representados no texto e signos visuais reconhecíveis
por parte do leitor-espectador.
251
com elementos político-sociais ou, com mais frequência, com indicações da sua vida
interna e pessoal. No caso da ilustração que representa Conceta (Fig. 93), a filha de
Carmine Mondolfi, esta articulação se dá com o imaginário pessoal do personagem. A
sua descrição no texto é a de uma jovem atraente e algo sonhadora:
E mais além, “(...) toda a sua beleza parecia provir do espírito meigo e submisso
da sua raça, de um permanente sonho construtivo, insinuando a carícia maternal
propiciatória dos triunfos pacíficos do homem...” (O estrangeiro, p. 25). A importância
dada ao sonho e à fantasia na figuração de Conceta é enfatizada no momento em que as
pessoas leem a sorte em copos d´água durante uma festa de São João:
Disseram que no copo de Conceta não havia saído nada. Porque era triste e não
sonhava nada. Também, alguma cousa tinha palidez tão pálida.
Repararam melhor.
− Ai! aqui está um castelo!
− Que é castelo?
− Decerto algum noivo príncipe...
− Pelo menos, conde...
E Conceta ficou mais pálida, como se todos soubessem de algum segredo que
andava escondido no fundo do seu coração... (O estrangeiro, p. 87).
Este caboclo genuíno é aquele que parte em direção ao interior, sede daquilo que
para Plínio Salgado era a verdadeira essência da nação, pois “os que partem são fortes
como fundadores de países. Os que ficam são como Seu Indalécio, olhos morteiros, toadas
monótonas nos lábios...” (O estrangeiro, p. 17).
Um caboclo não se subordina assim a uma vida parada. Não é como o italiano
conformado ao espaço de algumas léguas. O caboclo nasce para derrubar, em
combate singular, canjaranas e guarantãs. Lançar fogo nas roçadas, ficar
olhando as labaredas jibóias na noite espavorida. Depois, seguir. E ele ficara
ali, apanhando café. (O estrangeiro, p. 20).
253
Fig. 94 - Poty Lazzarotto. Ilustração para O estrangeiro, 1972, p. 26.
254
que os apresentam como figuras individualizadas, dotadas de uma subjetividade própria,
o que se faz sentir na sutil, mas eficiente, representação dos olhares. As ilustrações de
Poty ultrapassam a linguagem com que Plínio Salgado representa suas falas e
pensamentos; o artista, assim, parece ter seguido à risca uma sugestão presente no próprio
romance, nos pensamentos de Ivã:
O que vem à tona nas ilustrações são estas “sínteses momentâneas”, a “visão
interior” de que fala o escritor, cristalizada no registro gráfico. Em contraposição à visão
do personagem em relação com o seu universo interior, no entanto, algumas ilustrações
também abordam fatos da existência social e coletiva: é o caso da ilustração referente ao
255
episódio da greve geral (Fig. 96). Ao longo do romance, o russo, contando com os
investimentos de Pantojo – representante, como diz Salgado no prefácio, das “raças
antigas” em ciclo descendente, cuja riqueza provinha da exploração da propriedade rural
–, transforma-se em proprietário de uma indústria em que os operários são “quase sócios”.
Quando eclode a greve geral, Ivã – que na verdade apoia a greve − pergunta aos operários
se eles desejam trabalhar:
− Não quero aqui ninguém mal satisfeito. Sejam francos. Desejam trabalhar?
Um jovem serralheiro adiantou-se:
− Não abandonaremos o serviço. Os salários não são muito grandes e o horário
é duro; mas, amanhã, poderemos ser patrões. A nossa condição é passageira.
Por isso, aqui estamos, e ficamos.
Todos gritaram:
− Sim, é por isso. Ele nos ensinou assim e fala bem.
Ivã fechou a carranca, pensativo. Ele mesmo havia-se expressado naquela
linguagem, ensinando aquela fé, de que agora duvidava, percebendo crescer,
dentro do seu peito, o sentimento de fatalidade da sua raça. Compreendeu que
interpretara o sentido messiânico da Terra Jovem e, com ele, criara, na sua
fábrica, um pequeno mundo de embaladores egoísmos. (O estrangeiro, p. 95).
Não é admirável o fato de não termos partidos. Não há partidos sem povo e
nós ainda não temos um povo, mas elementos em combate para a fixação da
coletividade tipo. Nossa consciência não se orienta ainda num sentido
definitivo. Adiamos, pois, o progresso das idéias para quando tivermos
resolvido o do progresso material, da organização econômica. Todo sentimento
de divergência partidária, resto do antigo caráter que, apenas provisoriamente,
se expressara, será antecipação desastrosa. (O estrangeiro, p. 46).
256
enfermidade dos velhos países de origem, de ombros curvados, sob o peso das fatalidades
urbanas”. (O estrangeiro, p. 96). Quando Ivã discute com o mestre-escola a “experiência”
que está realizando na sua indústria, Juvêncio pondera:
Quando todos os homens forem iguais aos da tua fábrica, não haverá mais
nações. Porque cada homem será a unidade. A coletividade será uma expressão
heterogênea. A sua doutrina é má: − isola os indivíduos e transforma os
continentes humanos em arquipélagos de egoísmos. (O estrangeiro, p. 113).
257
No fundo, bem no fundo das pupilas, leu o impiedoso “salve-se quem puder”;
e imaginou criar um pequeno mundo com os sentimentos egoísticos de
aventura que estuavam no peito da pequena coletividade.
Sabia que o desenvolvimento das indústrias, num país de população rural
pouco densa, era uma fonte inexaurível de competições urbanas tremendas, de
onde surdiria, como uma flor maldita, uma plutocracia regada de lágrimas e
adubada de sentimentos atrozes. (O estrangeiro, p. 113).
258
Acompanhando os acontecimentos na Rússia, no entanto, o estrangeiro passa a
constatar os malefícios do seu “experimento”:
259
ilustração em que se vê a cabeça de um homem – que traz à memória a primeira aparição
de Ivã nas ilustrações, vestindo o boné – tendo como fundo um emaranhado de linhas
mais ou menos caótico que representa a indústria em si (Fig. 97). A cidade industrializada
é vista por Ivã como “uma fonte inexaurível de competições urbanas tremendas”,
destinada a ser “regada de lágrimas e adubada de sentimentos atrozes” (O estrangeiro, p.
113); na sua interpretação gráfica, Poty aborda a dimensão ameaçadora e caótica da
paisagem industrial, uma realidade esmagadora diante da qual o indivíduo é impotente.
260
Outro, porém, era o russo. Percebia que, cada vez mais, valia menos como
individualidade, para avultar como protegido laborioso e honesto.
O industrial matava o homem.
[...] Fora, na Rússia, um termo semelhante, um denominador comum,
alinhando-se sob os traços do mesmo sentimento de revolta, em que se
assentavam os numeradores da opressão. Não era um homem, porém um termo
fracionário.
E no Brasil? Debaixo da amizade afetuosa vinha encontrar a mesma situação.
No país democrata e burguês, havia a esperança da inversão dos números. Mas
o milagre era operado pelo dinheiro. Só o dinheiro significava... (O
estrangeiro, p. 87-89).
261
ao Brasil cheio de apreensões, mas também de esperanças. O “lindo abacaxi” – cuja
aparição textual, como notamos antes, é bastante secundária – é tomado pelo ilustrador
como o símbolo do seu conturbado universo interior, tanto que ele ressurge em outra
representação do russo, desta vez figurado com expressão melancólica, tendo ao fundo a
mesma referência ao seu passado na Rússia, com a cena do ataque ao Czar (Fig. 99).
Nesta imagem o cifrão reaparece, cancelado, porém, sob um “X”, sinal dos seus
questionamentos internos quanto à significação do dinheiro.
262
[...] Moço e velho: atleta e criança, − sentia-se o homem anulado e destruído
pelas próprias idéias, abundantes, desordenadas, abarcadoras de horizontes
superiores à capacidade humana de ser.
[...] Caiu numa estúpida modorra.
E, no meio sonho, aparecia-lhe (por quê?) um lindo abacaxi, aquele mesmo
que vira, no cais de Santos, no dia de seu desembarque... (O estrangeiro, p.
203-204).
263
Imprecações, gritos de desespero vinham debaixo. Baques de corpos no
escritório, no pátio. Operários alucinados corriam pela rua e iam tombar
agonizantes sob a verde indiferença dos lampiões de gás.
Ivã finalizava num delírio. O seu delírio de sempre: a multidão de sósias
animados de almas diferentes... Mas, agora, no seu crânio abriu-se uma porta.
− Ao limbo! Ao limbo!
Um a um, os sósias entravam-lhe no cérebro, que se avolumava, num
crescendo horroroso, aflitivo, inenarrável de dor absurda, desconhecida, fora
de todos os processos das atormentações físicas, dor-segredo, porque, ao se
transformar em palavra, fica parada na boca dos mortos. (O estrangeiro, p.
209).
264
que a ilustração de Poty vem a ocupar, materializando graficamente elementos que no
romance são deficitários. Ao colocar o rosto dos personagens diante do leitor/espectador,
Poty estabelece uma relação de proximidade com o universo interior dos personagens que
o texto, na verdade, não proporciona, estabelecendo, assim, uma nova dimensão no
interior do “mundo da imagem” que no mundo ficcional criado no texto existia de forma
apenas rudimentar. Demonstra-se, assim, como a ilustração literária não é mera tradução
ou interpretação passiva do material textual; a ilustração é interpretação ativa que, na sua
associação física e material com o texto, transforma-o em uma nova obra, um híbrido de
texto e imagem – o que pode ser visto como um ganho a nível poético e imaginativo, ou
então como uma ameaça para o texto e para a sua autonomia artística.
265
gado do mais gordo, pasto do mais fino. Leio no corrente da vista e até uns
latins arranhei em tempos verdes da infância, com uns padres-mestres a três
tostões por mês. Digo, modéstia de lado, que já discuti e joguei no assoalho do
Fôro mais de um doutor formado. Mas disso não faço glória, pois sou sujeito
lavrado de vaidade, mimoso no trato, de palavra educada. (O coronel e o
lobisomem, p. 3).
O retrato sintetiza várias partes do texto assim iniciado, em que Ponciano, no seu
dizer peculiar, afirma a sua modéstia ao mesmo tempo em que louva as próprias virtudes.
O trecho apresenta um dos aspectos centrais do romance: a disjunção entre aquilo que o
coronel fala de si mesmo e o que esta mesma fala deixa entrever, revelando a covardia
por trás da afirmação da coragem, a sua dificuldade com as mulheres por trás da máscara
de sedutor. A ilustração representa um Ponciano ereto e elegante, com todas as
características de postura e vestuário adequadas à sua patente militar e sua condição de
proprietário rural: trata-se de uma figuração daquilo que o personagem deseja aparentar
diante do mundo e da sociedade. A representação, no seu conjunto, revela uma figura de
alta estatura, desde cedo “molecote aparentado de palmeira, altão, grosso de braço,
266
comprido de perna” (O coronel e o lobisomem, p. 7). Nas mãos, o charuto da marca “Flor
de Ouro”, que sempre o acompanha e que é, junto com a barba, uma de suas características
distintivas, como será narrado mais além:
267
Nas ilustrações seguintes, destaca-se a ausência do coronel: a imagem dos seus
pais diante da propriedade de que Ponciano será herdeiro (Fig. 102) é concebida dentro
de um molde que evoca um antigo retrato fotográfico, em que a própria indeterminação
das figuras, apenas esboçadas, sugere o seu recuo para o passado. No contexto do livro,
a ilustração estabelece para o narrador um passado e uma situação social determinada: a
de membro de uma família tradicional e herdeiro de uma propriedade rural. Esta
ancestralidade relativa aos pais é pouco referida de forma direta no texto, que apresenta
a sua origem de forma assim resumida: “Nos currais do Sobradinho, no debaixo do
capotão de meu avô, passei os anos de pequenice, que pai e mãe perdi no gôsto do
primeiro leite.” (O coronel e o lobisomem, p. 3). O preenchimento deste “espaço vazio”
relativo aos pais do narrador, portanto, é iniciativa do ilustrador, que aproveita a lacuna
deixada no texto – intencionalmente, pois a ausência das figuras dos pais biológicos é
significativa para a construção da personalidade do coronel − para incluir um retrato
tradicional de família, de que o próprio narrador, Ponciano, é excluído: é uma imagem
que pertence, portanto, a um universo anterior à existência do protagonista.
A imagem que representa Sinhá Azeredo (Fig. 103) também evoca um retrato
fotográfico, na figura grave e severa da prima, com os cabelos presos em coque atrás da
cabeça, a gola e as vestes decoradas com antigos rendados. No romance, Sinhá Azeredo
é descrita como parte de um universo supersticioso e atrasado, repleto de medos e
assombrações:
268
Morava em nação de chuva – um ôco de coruja chamado Sossêgo, onde só
dava presença bicho penado. De noite, era aquela algazarra de lobisomem, pio
de coruja, asa de caburé, fora outros atrasos dos ermos. Metida nos livros de
devoção, Sinhá Azeredo não tinha outra aptidão do que ensinar ao parente
sabedoria ligada aos anjos do céu. Saía da prima um cheiro de vela, um bafo
de coisa de oratório. [...] Por mal dos meus pecados, o que a prima mais
apreciava era conversa de assombração, de meninos desbatizados que morriam
sem o benefício da água benta ou de herege esquentado em fogueira de frade.
(O coronel e o lobisomem, p. 3-4).
269
em refôrço ao seu bem-estar no céu. Inquiri a visão por duas vêzes, como
manda a lei dessas ostentações da noite:
− Que penar é êsse de tão tardias horas?
Não colhendo resposta, voltei ao gôzo dos cobertores e deixei que o tossir
continuasse. Depressinha o acontecido pulou o muro e a vizinhança toda ficou
sabedora de que Sinhá aparecia no oratório dos Azeredos Furtados da Rua da
Jaca. (O coronel e o lobisomem, p. 5-6).
As imagens criadas por Poty, é claro, não são fotografias: são ilustrações em que
gêneros fotográficos do século XIX são revividos através da pose dos personagens, que
se apresentam efetivamente representando um certo papel social ‒ Ponciano como
importante advogado e proprietário, seus pais como a origem tradicional, ligada à
propriedade, e Sinhá Azeredo como um bastião das tradições ligadas à fé e aos restritos
valores morais. O ar paródico, no entanto, coloca o leitor/espectador no registro presente
no romance, em que será explorada a diferença entre o discurso de Ponciano ‒ em que,
270
precisamente, ele “posa” de corajoso, importante, etc. ‒ e aquilo que ele deixa entrever
como a realidade da sua situação.
Se passei, nos dias de depois, a andar de capanga no costado, não foi por mêdo,
doença que nunca tive nem vou ter. Foi para dar contentamento ao pessoal dos
meus descampados e desenferrujar a trabucada do Sobradinho. Um dono de
pasto vasqueiro, de nome Sinhôzinho Manco, sem saber do acontecido, ficou
assustado na vista de tanta arma e munição. Pensava que o povo de Simeão
estivesse de guerra feroz contra gente do govêrno. Falou fininho:
− Nunca vi tanto bacamarte, Seu Ponciano. Nunca vi tanto moleque tomado de
responsabilidade, Seu Ponciano. (O coronel e o lobisomem, p. 20).
Não apreciava judiação dessa ordem. Era muito coronel de chegar em São
Gonçalo e destratar a autoridade de Totonho Borges. Como é que um cristão
batizado, pai de filho, podia dependurar o outro de cabeça para baixo e gastar
a palmatória nas partes fracas do cativo até tirar dêle confissões e segredagens?
(O coronel e o lobisomem, p. 22).
271
Ponciano parte então em comitiva armada para São Gonçalo, ostentando armas e
poder:
Entrei em São Gonçalo como em praça tomada. Mais de dez campeiros, bem
fornidos de armas, guardavam meu costado. Quase tudo cria do Sobradinho,
uma remessa de moleques espevitados, doidos da cabeça por coçar o gatilho.
Saturnino Barba de Gato, de porte alentado, bexigoso de cara, seguia no meu
coice e mais atrás, a dois cavalos de distância, vinha Antão Pereira. De
cambulhada com molecotes e cachorros, o meganha portador da carta lacrada,
por minha imposição militar, fechava a rôsca do batalhão. (O coronel e o
lobisomem, p. 23).
Fig. 104 - Poty Lazzarotto. Ilustração para O coronel e o lobisomem, 1970, p. 26.
Essa ostentação de força e poder é o tema escolhido por Poty para a ilustração
referente ao episódio, em que se vê o coronel em primeiro plano, em frente a outros dois
cavaleiros armados (Fig. 104). Como referido no texto, atrás de Ponciano se veem as
272
figuras de Saturnino Barba de Gato, “bexigoso de cara”, e Antão Pereira. Todos os três
cavaleiros aparentam um tamanho exagerado em relação às montarias, tornando o
conjunto caricato e grotesco. Estas deformações presentes na ilustração, com suas
características expressionistas, estabelecem uma curiosa relação com a narrativa de
Ponciano, em que os fatos são apresentados através de um discurso orientado pela
estratégia de apresentar o próprio narrador sempre de forma heroica e superior: trata-se
de uma perspectiva deformada, em cujas entrelinhas – assim como nos efeitos cômicos
que proporciona − pode-se ler as qualidades pouco louváveis do protagonista.
273
Tudo pendia contra mim, mas digo, sem desdouro, que nem a maldosa teve
tempo de encarar o neto de Simeão. De repente, vi minha pessoa num brejal, a
cem braças do recinto da onça, nadando em minha infância nado de
cachorrinho. E na segurança de umas tabuas e paus-de-mangue, fui ancorar a
barba, espingarda a salvo para o que desse e viesse. (O coronel e o lobisomem,
p. 60).
Fig. 105 - Poty Lazzarotto. Ilustração para O coronel e o lobisomem, 1970, p. 61.
274
infantil – infantilização sugerida no texto pelo narrador, que se vê “nadando em minha
infância nado de cachorrinho”.
Fig. 106 - Poty Lazzarotto. Ilustração para O coronel e o lobisomem, 1970, p. 107.
(...) em braço carinhoso arrastei a cativa para o sêco – o rabo ficou em bacia
de mar, como é da lei das sereias. O restante, que é a parte melhor, calhou de
caber todinho no meu colo. A môça, como atingida de paixão, recostou a
cabeça no meu ombro e dêsse conforto soltou tôdas as cantorias das águas,
maravilha que foi ouvida em afundadas léguas de mar e costa, mesmo em navio
de alta navegação. Aviso que era canto das maiores feitiçarias. Sabendo com
quem lidava, e nisso ninguém vai adiante de mim, fingi espanto:
- Que beleza, que beleza! (O coronel e o lobisomem, p. 108).
275
Na representação de Poty (Fig. 106), Ponciano carrega a sereia inteira no colo, e
ela se agarra ao seu pescoço, lânguida, mostrando a longa cabeleira – “e na presença do
luar apareceu aquele rosto de bonitezas, cabelo de ouro pingando água e bôca cheirosa
chamando por mim [...].” (O coronel e o lobisomem, p. 106). O coronel aqui é alto e
espadaúdo, está descalço e sem camisa, o que não ocorre no texto − assim como a sereia
jamais é tirada completamente da água. O todo da imagem evoca um herói de cinema que
carrega a mocinha em seus braços; de resto, a composição vertical, os longos cabelos da
sereia e a troca de olhares evidenciam a proximidade entre os dois e a atração mútua,
assim como a força física de Ponciano, dentre outras virtudes de que o coronel faz questão
de se gabar: “Um demandista de minha marca, aprendiz de escola de frade e de cartório,
nunca que podia cair em arapuca de sereia por mais instruída que fosse.” (O coronel e o
lobisomem, p. 108).
Fig. 107 - Johnny Weissmuller e Maureen O'Sullivan em Tarzan, o filho das selvas (1932). Disponível em
<http://imagozone.com/vedete/Johnny-Weissmuller/Johnny-Weissmuller-010?size=full>. Acesso em 20 jun. 2012.
276
valoroso, mas que olha para a sereia com um sorriso lascivo que se entrevê por baixo da
barba desgrenhada.
Era trabalho de gelar qualquer cristão que não levasse o nome de Ponciano de
Azeredo Furtado. Dos olhos do lobisomem pingava labareda, em risco de
contaminar de fogo o verdal adjacente. Tanta chispa largava o penitente que
um caçador de paca, estando em distância de bom respeito, cuidou que o mato
estivesse ardendo. Já nessa altura eu tinha pegado a segurança de uma figueira
e lá de cima, no galho mais firme, aguardava deliberação do lobisomem.
Garrucha engatilhada, só pedia que o assombrado desse franquia de tiro. (...)
No alto da figueira estava, no alto da figueira fiquei. Diante de tão firme
deliberação, o vingativo mudou o rumo da guerra. Caiu de dente no pé de pau,
na parte mais afunilada, como se serrote fôsse:
− Raque-raque-raque.
Não conversei – pronto dois tiros levantaram asa da minha garrucha. Foi o
mesmo que espalhar arruaça no mato todo. Subiu asa de tudo que era bicho da
noite e uma sociedade de morcegos escureceu o luar. No meio da algazarra, já
de fugida, vi o lobisomem pulando coxo, de pernil avariado, língua sobressaída
da boca. (O coronel e o lobisomem, p. 179).
Fig. 108 - Poty Lazzarotto. Ilustração para O coronel e o lobisomem, 1970, p. 180.
278
Fig. 109 - Poty Lazzarotto. Ilustração para O coronel e o lobisomem, 1970, p. 168.
279
que manifestam diversos sentidos. Às vezes é o sono povoado de pensamentos e sonhos
eróticos:
Agradeci aos seus cuidados e na cantiga da chuva ninei meu dormir. É nessa
fundura que dou vaza aos desregramentos do coronel. É cada invenção de nem
ser possível existir em carne e osso nas casas mais debochadas das meninas de
vira-e-mexe. Pois andava eu na melhor parte do sonho, em libertinagem de
descascar dona Branca dos Anjos dos seus panos de baixo, quando tropecei
num armário que ruiu em jeito estrondoso. Acordei para logo a môça sumir
como renda levada no vento. Cocei a cabeça e obtemperei aporrinhado:
− Ora essa! Logo na hora do proveito é que fui acordar. (O coronel e o
lobisomem, p. 48).
Em outra ocasião, o sono é povoado de pesadelos febris que fazem coro com o
clima tempestuoso:
280
Fig. 110 - Poty Lazzarotto. Ilustração para O coronel e o lobisomem, 1970, p. 31.
Fig. 111 - Poty Lazzarotto. Ilustração para O coronel e o lobisomem, 1970, p. 81.
281
Fig. 112 - Poty Lazzarotto. Ilustração para O coronel e o lobisomem, 1970, p. 101.
282
imaginário de Ponciano ligado aos elementos oníricos e ao sono: os “coriscos” na noite
em que a cama é tornada “campo de batalha”; os elementos eróticos, relativos ao
apregoado talento de Ponciano como sedutor; o jacaré – que depois se revelará sereia –,
elemento que nasce da interpretação do artista, em franco desvio daquilo que é
apresentado na narrativa textual.
Fig. 113 - Poty Lazzarotto. Ilustração para O coronel e o lobisomem, 1970, p. 148.
283
parece dar as costas ao mundo, expressa o seu não-esgotamento interpretativo: algo de
inapreensível sempre permanece sob a figura heterogênea e múltipla que se apresenta, no
texto, por trás de uma máscara social, ironicamente construída para permitir o vislumbre
das outras dimensões do personagem. A cadeira, as poucas partes visíveis do seu corpo e
a fumaça do charuto sugerem uma situação de introspecção, a que o leitor não tem pleno
acesso: uma lacuna estabelecida pela representação visual e que dialoga com as lacunas
construídas ao longo do texto.
Através da síntese ativa promovida pela ilustração literária, Poty cria novas
dimensões para o personagem Ponciano de Azeredo Furtado, que conhecemos
textualmente apenas a partir do seu próprio discurso em primeira pessoa, ou seja, a partir
do seu interior. O ilustrador, como uma espécie de intermediário entre o escritor e o leitor,
proporciona visões externas do personagem, conformando-o num plano literalmente
284
plástico-pictural, que oferece uma perspectiva dos vários momentos e atitudes narrados
no romance que é diversa, mas complementar, à perspectiva textual. Poty, assim, se faz
co-narrador visual, proporcionando também uma leitura específica do romance em
colaboração com o texto, efetuando, a partir dele, sínteses complexas e ativas e
determinando uma forma específica de recepção do material literário.
285
[...] a obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço
vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis ou invisíveis, traços
familiares ou indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la de
uma maneira bastante definida. Ela desperta a lembrança do já lido, enseja logo
de princípio expectativas quanto a “meio e fim”, conduz o leitor a determinada
postura emocional [...]. (JAUSS, 1994, p. 28).
Fig. 114 - Poty Lazzarotto. Ilustração para O coronel e o lobisomem, 1970, p. xvii.
286
menino comedor de terra, falecido nas minhas infâncias”, que, dotado de asas como um
querubim, anuncia:
37
Albrecht Dürer (1471-1528), gravador, pintor, matemático e teórico da arte alemão, foi um dos artistas
mais importantes do Renascimento setentrional, e sua obra é marcada pela influência das formulações
artísticas do Renascimento italiano, assim como do imaginário medieval.
287
Outro exemplo, surpreendentemente semelhante à ilustração do artista paranaense, é o
afresco hoje conservado no Pallazzo Abatellis em Palermo, Itália, datado de cerca de 1446
e de autoria desconhecida (Fig. 117). A ilustração literária, assim, dialoga não apenas com
o “já lido”, mas também desperta a lembrança do já visto: é uma marca visível que
estabelece uma associação com uma determinada iconografia, que por sua vez está
associada a outros textos; neste caso, com o Apocalipse bíblico.
Fig. 115 - Albrecht Dürer. Os quatro cavaleiros do apocalipse, do Apocalypsis cum figuris. Basel, 1498. Disponível em
<http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/29/Durer_Revelation_Four_Riders.jpg>. Acesso em 03 fev. 2015.
288
Fig. 116 - Albrecht Dürer. Os quatro cavaleiros do apocalipse, do Apocalypsis cum figuris. Basel, 1498 (detalhe).
Fig. 117 - Autor desconhecido. Trionfo della morte, c. 1446. Pallazzo Abatellis, Palermo, Itália. Disponível em
<http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/29/Durer_Revelation_Four_Riders.jpg>. Acesso em 03 fev. 2015.
289
Esta relação de parentesco entre imagens não implica uma ligação direta e
necessária entre elas, ou seja, não significa que Poty conhecia efetivamente uma ou outra
imagem específica − muito embora a imagem de Dürer seja bastante conhecida e
referência fundamental na história da gravura, principal técnica de Poty −, mas sim que o
artista, familiarizado com esta iconografia, estabelece, intencionalmente, uma referência
inter-icônica. Ao associar a figura do coronel Ponciano de Azeredo Furtado à iconografia
do cavaleiro esquelético, Poty estabelece um segundo discurso – um discurso imagético,
por assim dizer − sobre o texto literário; neste segundo discurso, a luta do coronel contra
o demônio, travada no além, luta esta que coroa e conclui as suas aventuras terrenas, é
hipostasiada, no sentido de incluir a narrativa mítica da luta definitiva entre o bem e o
mal, presente no texto bíblico. No texto, o coronel Ponciano atravessa a fronteira entre a
vida e a morte; ele se vê e se representa, porém, remoçado, vestindo farda e portando
armas. Na imagem, ao contrário, ele é representado como a própria morte do Juízo Final,
manifestação do fim dos tempos, mas a representação possui um sentido invertido, já que
Ponciano é justiceiro e luta contra o demônio, “pai de todas as maldades”. Observe-se
que na interpretação de Poty do tema do cavaleiro esquelético o rosto da figura não está
descarnado, permitindo a sua identificação com as demais representações visuais de
Ponciano ao longo do livro: a sua materialização como cavaleiro do apocalipse é mais
uma das suas várias facetas apresentadas através da imagem. Além de ampliar o discurso
literário no sentido de incluir outros discursos, a imagem é reversível e manipulável: a
iconografia pode ser empregada e alterada para transformar o ameaçador cavaleiro do
Apocalipse em um fantasmagórico, mas algo heróico, coronel.
290
another formulation, repetition with critical distance, which marks difference
rather than similarity. (HUTCHEON, 1991, p. 6).38
É sob o signo da paródia, portanto, que Poty abre a narrativa visual das aventuras
do Coronel Ponciano de Azeredo Furtado, dialogando com a narrativa textual, em que se
descreve cronologicamente a sua vida, incluindo sua infância, juventude e as façanhas
que realiza no ambiente rural, em que ele é vencedor de inimigos humanos, animais e
sobrenaturais. Estas façanhas são sempre permeadas, porém, dos exageros e
invencionices do coronel; a narrativa se desenrola através de vários episódios, incluindo,
ao fim, a decadência – jamais admitida pelo protagonista − operada em meio a
investimentos financeiros e afetivos na vida urbana. O coronel Ponciano é sempre
vitorioso no ambiente rural, em meio aos elementos da natureza e do sobrenatural; quando
colocado em contato com a realidade mais prosaica do mundo urbano, dominado pela
economia financeira, é derrotado. Nessa perspectiva, o final do romance é um retorno do
coronel não só ao Sobradinho − a sua principal propriedade no ambiente do campo, local
das suas origens e dos seus maiores triunfos − mas também ao universo algo mítico e
primitivo em que ele é sempre vencedor. A sua morte, no romance, é narrada como um
retorno às dimensões sobrenaturais e misteriosas: daí também a relação de parentesco
entre a imagem do cavaleiro esquelético da ilustração de Poty e as imagens do triunfo da
morte, relidas parodicamente em chave positiva.
38
Paródia [...] é uma forma de imitação, mas imitação caracterizada por inversão irônica, nem sempre à
custa do texto parodiado. [...] Paródia, em outra formulação, é repetição com distância crítica, que marca
mais a diferença que a similaridade (TL).
291
Como no caso da sereia, tratei a encantação em têrmos de cerimônia, sois-isso,
sois-aquilo, dentro dos conformes por mim aprendidos em colégio de frade a
dez tostões ao mês. Dêsse modo, ficava estipulado que o cativo não andava em
mão de um coronelão do mato, despido de letras e aprendizados, uma vez que
vadiagem das trevas leva muito em conta a instrução dos demandistas. (O
coronel e o lobisomem, p. 181).
292
exemplo, para um autor como Dickens, que corrigia as ilustrações de suas obras
minuciosamente, para tormento dos ilustradores (cf. COHEN, 1980) −, nem toda
ilustração limita os sentidos contidos no texto; ao contrário, ela pode contribuir para
ampliar os significados e interpretações do material verbal, como vimos demonstrando
até aqui.
293
associa ao caráter divino (ou de proximidade com o divino). O exemplo mais conhecido
da história da arte é a proibição da representação do ser humano no islamismo, que,
embora não tenha sido uma constante ao longo da história da arte muçulmana, respondia
a esta problemática. A interdição postula uma relação complexa entre o representado e o
não-representado, de que um exemplo curioso é a miniatura persa do século XVI, em que
as figuras humanas – assim como figuras mitológicas, como os anjos − eram toleradas; a
representação do profeta Maomé, porém, era proibida, de forma que o seu rosto fica em
branco em todas as suas aparições. No famoso Miraj do Profeta realizado pelo Sultão
Mohammed entre 1539 e 1543, o profeta voa entre numerosos anjos, sentado sobre um
cervo com cabeça humana: todas estas figuras têm o seu rosto representado, com exceção
do profeta, como se pode ver no detalhe reproduzido na Fig. 118.
Fig. 118 - Sultão Mohammed. Miraj do Profeta, 1539-1543 (detalhe). Iluminura, 28,7 x 18,6 cm. Disponível em
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Representa%C3%A7%C3%B5es_de_Maom%C3%A9#mediaviewer/File:Miraj_by_Sultan_Muhamm
ad.jpg>. Acesso em 03 fev. 2015.
294
Tornou-se a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em
disponibilidade.
Era rica e formosa. (Senhora, p. 29).
[...] era o frisante contraste que faziam com a pobreza carrança dos dois
aposentos certos objetos, aí colocados, e de uso do morador.
Assim, no recôsto de uma das velhas cadeiras de jacarandá via-se neste
momento uma casaca preta, que pela fazenda superior, mas sobretudo pelo
corte elegante e esmêro do trabalho, conhecia-se ter o chique da casa Raunier,
que já era naquele tempo o alfaiate da moda.
Ao lado da casaca estava o resto de um traje de baile que todo êle saíra daquela
mesma tesoura em voga; finíssimo chapéu claque do melhor fabricante de
Paris; luvas de Jouvin côr de palha; e um par de botins como o Campas só fazia
para os seus fregueses prediletos. (Senhora, p. 51-52).
295
O vestuário, assim, é um dos principais componentes para a representação social
de Seixas, que demonstra a dissociação entre a forma como ele se apresenta diante dos
outros e a realidade da sua situação econômica:
296
Seus opulentos cabelos colhidos na nuca por um diadema de opalas,
borbotavam em cascatas sôbre as alvas espáduas bombeadas, com uma
elegante simplicidade e garbo original que a arte não pode dar, ainda que o
imite, e que só a própria natureza incute. (Senhora, p. 82-83).
297
o rosto certamente distancia a representação de uma relação direta de reconhecimento
com o espectador, destacando-a dos demais mortais; a interpretação gráfica, no entanto,
se dá em chave negativa, apresentando um corpo esvaziado de humanidade, constituído
apenas pelo seu envoltório em que se ostenta, diante da sociedade, a riqueza material (Fig.
119).
298
Fig. 120 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Senhora, 1967, p. 235.
A figuração de Aurélia – supondo, sempre, que é dela que se trata nas ilustrações
− como vestuário sem rosto traz consigo esta referência ao desenho de figurino teatral, de
que o personagem, entretanto, enquanto individualidade humana, foi eliminado. A
expressão corporal destes personagens sem rosto é sempre mecânica e artificial; as partes
do corpo que se revelam sob a vestimenta são como que recortadas, em branco, sobre o
fundo (Fig. 120). Em uma das ilustrações, o corpo da figura desaparece contra o fundo
branco da imagem, como se a personagem desaparecesse por trás do traje; as luvas,
representadas como silhuetas em preto, estabelecem uma expressão corporal
desumanizada, como a de uma boneca ou de um títere (Fig. 121).
299
Fig. 121 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Senhora, 1967, p. 261.
300
do romance. Em relação ao seu poder econômico, Aurélia assume uma postura
conflituosa: tendo sido humilhada na pobreza, utiliza-se do dinheiro para humilhar
Seixas, mas ao mesmo tempo considera o ouro “um vil metal que rebaixava os homens”
(Senhora, p. 31).
Nas ilustrações para Diva (1969), Poty também parte de um gênero tradicional de
retrato – o retrato de meio-busto – em que a eliminação do rosto fica ainda mais evidente.
O romance, publicado originalmente em 1864, o segundo dos “perfis de mulher” de
Alencar, é narrado em primeira pessoa pelo jovem médico Augusto Amaral, que depois
de curar de uma grave doença a sua primeira paciente, Emília Duarte, viaja para o
301
exterior; ao retornar, apaixona-se por Emília, agora uma linda jovem que, no entanto, o
despreza. A personagem que inspira o título do romance (que significa “deusa”, ou,
figurativamente, “mulher incomum e atraente”) é descrita de forma a acentuar o seu
caráter mutável desde o princípio, alternando feiúra e beleza:
Era uma menina muito feia, mas da fealdade núbil que promete à donzela
esplendores de beleza.
Há meninas que se fazem mulheres como as rosas: passam de botão a flor:
desabrocham. Outras saem das faixas como os colibris da gema: enquanto não
emplumam são monstrinhos; depois tornam-se maravilhas ou primores. (Diva,
p. 23).
Não parava aí a fealdade da pobre Emília. A óssea estrutura do talhe tinha nas
espáduas, no peito e nos cotovelos, agudas saliências, que davam ao corpo uma
aspereza hirta. Era uma boneca, desconjuntada amiúdo pelo gesto ao mesmo
tempo brusco e ríspido.
Como ela trazia a cabeça constantemente baixa, a parte inferior do rosto ficava
na sombra. A barba fugia-lhe pelo pescoço fino e longo; as faces, não as tinha;
a testa era comprimida sob as pastas batidas do cabelo, que repuxavam duas
tranças compridas e espêssas.
Restava apenas uma nesga de fisionomia para os olhos, o nariz e a bôca. Esta
rasgava a maxila de uma orelha a outra. O nariz romano seria bonito em outro
semblante mais regular. Os olhos negros e desmedidamente grandes
afundavam na penumbra do sobrolho, sempre carregado, como buracos, pelas
órbitas. (Diva, p. 23-24).
302
Fig. 122 - Poty Lazzarotto. Ilustração para Diva, 1969, p. 25.
A primeira ilustração do livro (Fig. 122) apresenta uma cabeça feminina de que o
rosto é apagado: os únicos traços distintivos se fazem presentes no cabelo que faz recordar
vagamente uma estátua grega – referência, talvez, ao significado do título: em vários
pontos do romance é destacado o estatuto “divino” da protagonista. As descrições textuais
de Emília, após a sua transformação em mulher de impressionante beleza, são carregadas
de metáforas ligadas à natureza e a seu caráter de divindade:
Era alta e esbelta. Tinha um desses talhes flexíveis e lançados, que são hastes
de lírio para o rosto gentil; porém na mesma delicadeza do porte esculpiam-se
os contornos mais graciosos com firme nitidez das linhas e uma deliciosa
suavidade nos relevos.
Não era alva, também não era morena. Tinha sua tez a côr das pétalas da
magnólia, quando vão desfalecendo ao beijo do sol. Mimosa côr de mulher, se
a aveluda a pubescência juvenil, e a luz coa pelo fino tecido, e um sangue puro
a escumilha de róseo matiz. A dela era assim.
Uma altivez de rainha cingia-lhe a fronte, como diadema cintilando na cabeça
de um anjo. Havia em tôda a sua pessoa um quer que fôsse de sublime e excelso
que a abstraía da terra. Contemplando-a naquele instante de enlêvo, dir-se-ia
que ela se preparava para sua celeste ascensão. (Diva, p. 35-36).
No texto, Emília é um modelo de beleza etérea, divina; seus traços, porém, não
são marcados de forma precisa – pelo contrário, é a imprecisão visual, assim como a
303
ambiguidade do comportamento, que a caracteriza. Na construção da personagem, o traje
recebe um tratamento mais preciso do que a própria mulher, como nesta descrição de
Emília em um baile:
Seu trajo era um primor do gênero, pelo mimoso e delicado. Trazia o vestido
de alvas escumilhas, com a saia tôda rofada de largos folhos. Pequenos ramos
de urze, com um só botão côr-de-rosa, apanhavam os fofos transparentes, que
o menor sôpro fazia arfar. O fôrro do corpinho, ligeiramente decotado, apenas
debuxava entre a fina gaza os contornos nascentes do gárceo colo; e dentre as
nuvens de rendas das mangas só escapava a parte inferior do mais lindo braço.
(Diva, p. 48).
Através destas metáforas visualmente imprecisas, o autor está criando, como diria
Flaubert, uma “ideia de mulher”, adequada para um personagem cujo comportamento
deverá deixar o narrador e protagonista sempre atônito e inseguro. Ao receber um sorriso
de Emília, Augusto sente-se “cego d’alma”, mas ao dirigir-se a ela sofre a surpresa da
reação inesperada:
304
queria me ver suplicante a seus pés, e vil, apesar da primeira humilhação.
Então, quando sua vaidade estivesse saciada, me insultaria de novo do alto de
seu orgulho, flagelando-me as faces com um daqueles seus olhares de soberano
desprêzo.
Minto: não tinha compreendido nada. Ainda hoje, depois de tudo quanto sofri,
sei eu compreender semelhante mulher? (Diva, p. 51).
Demonstrando o seu interesse amoroso, Amaral passa a ser tratado por Emília
com uma alternância de atenção e desprezo, confiança e indiferença.
305
elaboradas, dignas de uma presença “divina” em um fictício salão do século XIX (Fig.
123, Fig. 124).
306
O jovem médico se vê torturado pela moça cujo comportamento é imprevisível e
provocante, embora marcado pelo extremo pudor. Mesmo quando os protagonistas se
tornam amigos próximos, o comportamento de Emília continua a ser contraditório: em
um momento de diálogo mais íntimo, ela afirma: “− Sou... um espírito que duvida, um
coração que vacila!” (Diva, p. 78). Ao dar atenção a seus diversos pretendentes, deixando-
o de lado durante um baile, e ao mesmo tempo marcando com Augusto encontros
noturnos que poderiam sujar a sua reputação (porém cercados do necessário recato),
Emília faz do protagonista o seu joguete:
Lembra-me de uma vez que, insistindo eu por um botão de rosa que ela tinha
nos cabelos, Emília conservou-o no seu penteado por muitos dias até secar;
como se achasse um prazer infinito em prolongar assim tácitamente a sua
recusa. (Diva, p. 101).
A flor nos cabelos é uma das únicas indicações de uma ancoragem mais literal da
ilustração no texto literário, presente na quarta ilustração do livro (Fig. 125). Com
exceção deste pequeno elemento extraído diretamente do texto, todas as ilustrações
trabalham a ambiguidade de Emília – supondo, é claro, que seja ela a figura representada
nestes retratos sem rosto – através da não-figuração: pela renúncia, algo ritual, a
307
representar aquilo que poderia definir esta figura de forma mais individualizada ou
específica, ao ponto de não podermos ter nem mesmo a certeza absoluta de que é ela que
está sendo representada nos desenhos – afinal de contas, poderia tratar-se de outras figuras
femininas do romance, como a prima de Emília, Julinha, ou sua tia D. Matilde, “ainda
môça, bonita e muito elegante.” (Diva, p. 38). Nas ilustrações, portanto, continuamos a
ver uma “ideia de mulher” de forma tão aberta e polissêmica quanto no texto literário,
sem individualizá-la, permitindo ao leitor/espectador “pensar em mil mulheres”.
Na sua indefinição, os retratos sem rosto criados por Poty para Diva se comunicam
também com outras figuras femininas de José de Alencar. Entre os três “perfis de
mulher”, aliás, há interessantes relações intertextuais: o narrador de Diva se endereça a
Paulo, o narrador-protagonista de Lucíola; em Senhora, Aurélia é leitora do romance Diva
e defende a verossimilhança da personagem. A Lúcia de Lucíola é uma cortesã cujo
comportamento desafia a compreensão do provinciano Paulo; a Aurélia de Senhora usa
de ardis para enganar o seu noivo, fazendo-o pensar que ele entrava em um casamento
motivado pelo amor e não pela vingança: comportamentos esquivos e astuciosos, que
desafiam a compreensão masculina. A apresentação de Lúcia, nas primeiras páginas de
Lucíola, concentra-se nos detalhes do vestido e destaca o caráter indefinível da mulher:
308
A ilustração que representa uma mulher de costas é, dentre as que integram esta
edição, a que mais revela do corpo da figura, envolta pelos volumes do vestido. O gesto
de voltar-se de costas é sinal dos vários momentos em que Emília deixa Amaral atônito e
enfurecido, como no momento em que este afirma que não a ama e que ela procura um
“marido regateado”, ao que ela responde:
309
a mulher dominadora, acaba por render-se ao amor de Fernando Seixas, quando este se
torna, enfim, um homem mais virtuoso − sempre dentro dos laços sagrados do
matrimônio; e Emília, a orgulhosa, acaba por finalmente enamorar-se de Amaral, depois
da torturá-lo com o seu comportamento errático. Na construção da mulher romântica de
Alencar, o erro e o desvio devem ser reparados ou punidos, e a sua identidade é de certa
forma apagada – seguindo a sugestão das ilustrações – no sentido da conformidade: as
relações de gênero, neste sentido, permanecem intocadas, e as convenções sociais são
mantidas (cf. THIENGO, 2008). Convenções que se fazem visualmente presentes nas
imagens através da construção do fundo, formado por pequenas linhas diagonais paralelas
organizadas em grupos lineares alternados, dispostos na vertical ou na horizontal. A
construção dos fundos das ilustrações de Diva e Senhora, aliás, é atipicamente
geométrica, em comparação com toda a obra de Poty, artista mais afeito às hachuras
nervosas e desarmônicas, de caráter expressionista. Nestas ilustrações, o fundo,
representando um papel de parede ou simplesmente funcionando como esquema gráfico
decorativo, situa as figuras em um ambiente estritamente organizado e restrito, como o
eram as convenções sociais na época de Alencar, tal como representadas nos seus
romances.
310
descrições textuais das heroínas de Alencar são marcadas, precisamente, pela
ambiguidade que desafia a compreensão, como na descrição de Aurélia, ainda segundo
Pontieri:
311
identificação do leitor com os menores delinquentes do romance. Em O estrangeiro, a
ilustração efetua uma suplementação ativa do material literário, aprofundando a dimensão
psicológica dos personagens, que no texto são tratados como “tipos” esquemáticos. Em
O coronel e o lobisomem, as múltiplas facetas do protagonista são exploradas através do
registro paródico, mobilizando várias referências inter-icônicas para evocar a diferença
irônica entre a forma como o protagonista se autorrepresenta e a realidade que se pode
entrever nas entrelinhas do seu próprio discurso. E, para representar as heroínas de José
de Alencar, Poty emprega o inovador recurso da não-representação dos seus rostos,
simultaneamente destacando a sua condição submissa às convenções sociais e
expressando a sua não-apreensibilidade.
312
considerado um dos fundadores da literatura nacional. Assim, o uso de formas
tradicionais de figuração ‒ devidamente alteradas de forma a colocar em relevo a
inapreensibilidade da alma feminina ‒ também funciona como um comentário sobre o
estatuto tradicional dos textos.
313
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