Sociologia Da Cultura

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SOCIOLOGIA DA CULTURA

Elaboração

Rafaela Goltara Souza

Produção

Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração


SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO......................................................................................................................................................... 4

ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA.................................................................................. 5

INTRODUÇÃO.............................................................................................................................................................. 7

UNIDADE I
SOCIOLOGIA DA CULTURA................................................................................................................................................................................................ 9

CAPÍTULO 1
O QUE É SOCIOLOGIA?........................................................................................................................................................................................ 9

CAPÍTULO 2
O QUE É CULTURA?.............................................................................................................................................................................................. 16

CAPÍTULO 3
ENTENDENDO OS CONCEITOS..................................................................................................................................................................... 20

UNIDADE II
CULTURA E SOCIEDADE................................................................................................................................................................................................... 28

CAPÍTULO 1
IDENTIDADE, IDEOLOGIA E CULTURA......................................................................................................................................................... 28

CAPÍTULO 2
COLONIALISMO, DECOLONIALISMO E MULTICULTURALISMO....................................................................................................... 40

CAPÍTULO 3
RACISMO À MODA BRASILEIRA.................................................................................................................................................................... 44

UNIDADE III
CULTURA EM TRANSIÇÃO............................................................................................................................................................................................... 57

CAPÍTULO 1
MOVIMENTOS SOCIAIS E A TRANSFORMAÇÃO DA CULTURA....................................................................................................... 57

CAPÍTULO 2
CULTURA DA CONVERGÊNCIA...................................................................................................................................................................... 62

CAPÍTULO 3
INSTITUIÇÕES E ATORES CULTURAIS........................................................................................................................................................ 67

UNIDADE IV
ACESSO AOS BENS CULTURAIS................................................................................................................................................................................... 75

CAPÍTULO 1
PRODUÇÃO CULTURAL...................................................................................................................................................................................... 75

CAPÍTULO 2
O PAPEL DO ESTADO NO INCENTIVO À CULTURA................................................................................................................................ 80

CAPÍTULO 3
ESTUDO DE CASO: ARTIGO “RIBEIRÃO DAS TREVAS?”...................................................................................................................... 84

PARA (NÃO) FINALIZAR......................................................................................................................................... 109

REFERÊNCIAS.......................................................................................................................................................... 110
APRESENTAÇÃO

Caro aluno

A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se


entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade.
Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como
pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia
da Educação a Distância – EaD.

Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade


dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos
específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém
ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a
evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo.

Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo


a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na
profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira.

Conselho Editorial

4
ORGANIZAÇÃO DO CADERNO
DE ESTUDOS E PESQUISA

Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em


capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de
textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam
tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta
para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares.

A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos
Cadernos de Estudos e Pesquisa.

Provocação
Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto
antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para
o autor conteudista.

Para refletir
Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma
pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em
seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas
experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para
a construção de suas conclusões.

Sugestão de estudo complementar


Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do
estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso.

Atenção
Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam
para a síntese/conclusão do assunto abordado.

5
Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa

Saiba mais
Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/
conclusões sobre o assunto abordado.

Sintetizando
Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando
o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

Para (não) finalizar


Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a
aprendizagem ou estimula ponderações complementares sobre o módulo
estudado.

6
INTRODUÇÃO

Olá! Bem-vindo(a)(e) à disciplina “Sociologia da Cultura”. Nesta apostila,


vamos compreender melhor sobre os conceitos de cultura e sociedade e as
transformações que impactam na coletividade e na vida social. Iremos também
conhecer mais sobre os movimentos sociais e as intervenções culturais que
promovem mudanças em diversos aspectos da vida em sociedade, além de
conhecer sobre o acesso aos bens culturais e as políticas públicas desenvolvidas
para esta finalidade.

Toda aprendizagem é um processo, ou seja, não tem começo e nem final,


mas sim elementos que se relacionam e estão em contínua mudança com o
passar do tempo. É como fazer um bolo; existem passos a serem seguidos
para saborear de um gostoso bolinho de fubá no café da tarde, por exemplo.
Primeiro, precisamos ter uma receita, escolher os ingredientes, separar as
quantidades, misturar tudo, levar ao forno em certa temperatura, esperar
o processo de cozimento, aguardar esfriar para então desenformar, e, por
fim, experimentar. Trazendo para nosso contexto, um processo tem passos e
elementos que influenciam um ao outro. Precisamos estar atentos e entregues
para viver bem cada momento desse processo, a fim de conseguir alcançar o
resultado almejado.

Com isso, quero dizer que estudar sobre sociologia da cultura é um caminho
de descobertas e reflexões críticas a respeito de temas que, muitas vezes, temos
ideias fixas e tidas como certas. Mas, ao falar em cultura e sociedade, não
podemos olhar buscando identificar “certo” ou “errado”, e, sim, é necessário
observar com amorosidade, sensibilidade e escuta, a fim de perceber o universo
que habitamos e os universos que coabitam em nós e nos outros.

Sempre que começo a conversar com um grupo de pessoas sobre cultura,


é certo que pelo menos uma pessoa dirá que “é uma pena que as crianças
da favela ou de comunidades carentes não tenham cultura”. Já ouvi frases
como “eles não tem cultura”; “fulano vota errado porque não tem cultura”;
“a cultura é muito desvalorizada”; e por aí vai. O problema nessas discussões
é pensarmos que existe um ideal de “conhecedor de cultura” que torna uma
pessoa culta e outra não.

Essa já é uma ação com raízes culturais na colonização dos povos. Quando os
colonizadores precisavam dominar e domesticar os grupos que pretendiam
explorar ou escravizar, eles utilizaram como estratégia a destituição de suas

7
memórias, hábitos, valores, crenças etc. Portanto, a única coisa que é incorreta
no âmbito da cultura é julgar e determinar que este ou aquele indivíduo é um
“sem cultura”.

Assim, nesta apostila, abordaremos questões reflexivas sobre os estudos em


sociologia e cultura dos povos e como essas articulações organizam nossos
hábitos e influenciam as atitudes e decisões que vivemos dia a dia. Esse
conhecimento é fundamental para os profissionais da cultura, especialmente,
quem pretende ou já trabalha com produção cultural. Existem vários aspectos
relevantes que orientam o trabalho do produtor cultural e, um deles, é a
sensibilidade e observação do público e campo social em que vai atuar e
propor projetos.

Além disso, o contexto histórico em que vivemos atualmente criou uma série
de desafios para todos, especialmente no âmbito profissional e do consumo de
cultura no nosso país. Pandemia, tecnologia, racismo, homofobia, feminismo
são algumas das questões que têm ganhado destaque nas discussões em redes
sociais. Movimentos sociais e grupos minoritários têm pressionado o governo
e os veículos de comunicação de massa sobre as políticas públicas e conteúdo
compartilhado, questionando seus impactos na cultura do país e seus reflexos
na economia, na educação, na saúde, entre outros.

Por isso, é importante estarmos atentos e críticos a todas essas discussões para
que nosso fazer profissional no setor cultural seja relevante e acompanhe as
mudanças na sociedade.

Objetivos
» Compreender aspectos relevantes e conceitos sobre cultura e
sociedade.

» Analisar as mudanças sociais e disputas relacionadas a questões de


identidade e grupos sociais.

» Conhecer mais sobre classe, raça, gênero e movimentos sociais nas


dinâmicas de transformações culturais.

» Reflexões preliminares sobre políticas públicas e cultura.


SOCIOLOGIA DA
CULTURA UNIDADE I

Vamos começar? Nesta unidade, conheceremos mais sobre os conceitos de


sociologia e cultura e a relação prática desses conceitos com a vida em sociedade.
No capítulo 1, apresentamos uma noção sobre o que é sociologia, os objetivos
desse campo de estudos e seus autores. Em seguida, vamos nos aprofundar sobre
o tema da cultura, seus conceitos, manifestações e estudos contemporâneos.
Já no terceiro capítulo, vamos discutir como esses conceitos se aplicam na
sociedade de forma prática e dinâmica.

CAPÍTULO 1
O que é sociologia?

Para começar a estudar sociologia da cultura, é bom entendermos, primeiro,


afinal, o que é sociologia? Você já deve ter escutado sobre os sociólogos, mas
você sabe o que fazem esses profissionais? Em que se baseiam os estudos nas
Ciências Sociais e para que servem? Nos últimos anos, muito tem se falado
sobre o investimento em cursos de graduação na chamada “área de humanas”,
e a maior crítica se refere à contribuição efetiva para a melhoria de vida das
pessoas, comparando-a, por exemplo, às áreas ligadas à economia e saúde.

Nas eleições presidenciais de 2018, no Brasil, essa crítica se tornou mais


latente quando presenciamos o acirramento da disputa política entre partidos
de esquerda e partidos de direita. Procedeu-se uma série de acusações de que
estudantes de “humanas” seriam responsáveis por balbúrdia nas universidades
e professores de Ciências Sociais que poderiam ser chamados de comunistas.
A crítica, mais uma vez, reforçava que comunistas não se preocupariam
com a prosperidade e com o desenvolvimento econômico do país, mas, sim,
defendiam o Estado como provedor de “mamatas”, ou seja, de bolsas e auxílios
que manteriam “vagabundos” que não gostam de trabalhar.

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Unidade i | Sociologia Da Cultura

O que você acha sobre quem estuda “humanas”?

Na sua opinião, qual a contribuição efetiva das Ciências Sociais para a


vida em sociedade?

O que faz um sociólogo?

É preciso seguir alguma ideologia política para ser cientista social?

Pensar sobre essas questões pode levantar emoções conflitantes em nós, que
despertam paixões sobre essa ou aquela crença e disputas que acabam em
fim de amizade ou até meios mais extremos de violência. No entanto, como
pesquisadores e trabalhadores da cultura, não podemos ceder a esses julgamentos
de forma rasa. É preciso parar, observar a realidade, buscar o que já se tem
de conhecimento e estudos científicos sobre o tema e, então, analisar os fatos
para se chegar a um entendimento que oriente nossa ação profissional.

A sociologia não é uma ciência muito antiga, como os estudos da natureza


e da matemática, que possuem registros desde a antiguidade na civilização
grega. Os estudos sobre a sociedade são relativamente jovens, começaram
a ganhar importância e investimento das universidades quando as questões
sociais, ou seja, ligadas aos humanos vivendo em sociedade, passaram a se
tornar problemas de difícil solução na transição do século XVIII para o XIX.

O pesquisador Carlos Benedito Martins (2006, p. 7) fez uma contextualização


histórica desse campo de conhecimento que ajuda a ampliar nosso entendimento
sobre a sociologia: “para alguns, ela representa uma poderosa arma a serviço dos
interesses dominantes, para outros ela é a expressão teórica dos movimentos
revolucionários”. Ele explica que a criação deste campo de estudo não é
resultado do trabalho de um filósofo ou pesquisador, em específico, mas a soma
de diversos estudos de pensadores que buscaram entender como se davam as
novas formas de existência com as mudanças que estavam acontecendo.

De acordo com Martins (2006), dois acontecimentos marcaram a mudança no


modo de vida das pessoas de um jeito irreversível: a Revolução Industrial e a
Revolução Francesa, ambas consolidando um novo modo de organização da
sociedade: o capitalismo. Essa transformação começou na Europa, mas seus
efeitos são sentidos até hoje no mundo inteiro.

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Sociologia Da Cultura | Unidade i

Figura 1. Trabalhadores no período da Revolução Industrial.

Fonte: https://www.flickr.com/photos/biblarte/14542931085.

A Revolução Industrial, como destaca Martins (2006), modificou o modo


de produção na sociedade com a introdução das máquinas a vapor e as
constantes evoluções e aperfeiçoamentos nos modos de produzir. Mas não
foi só isso. As indústrias se tornaram fontes de muito dinheiro, na medida em
que possibilitaram o aumento na produção. Só que essas fontes de dinheiro
acabaram ficando restritas a poucas mãos: dos empresários, que aos poucos
compraram e detinham o controle sobre máquinas, territórios e ferramentas.
Em consequência, a grande massa (maioria da população) ficou sem terras, sem
domínio de sua própria produção agrícola ou artesanal e se transformaram
em “trabalhadores da indústria”.

Essa industrialização não gerou efeitos somente na sociedade europeia, mas


também gerou grandes impactos em povos de outros continentes. Como
sabemos, o capitalismo se baseia justamente nisso, no movimento de produção
e consumo. Com o aumento desenfreado da produção, tornou-se necessário
que o mercado consumidor também fosse ampliado. Além disso, novas fontes
de matéria-prima e mão de obra precisariam ser conquistadas, com o menor
custo possível, para garantir o aumento dos lucros do investidor. Muitas
guerras para dominar territórios nasceram a partir daí.
A formação de uma sociedade que se industrializava e urbanizava
em ritmo crescente implicava a reordenação da sociedade rural, a
destruição da servidão, o desmantelamento da família patricial etc.

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Unidade i | Sociologia Da Cultura

A transformação da atividade artesanal em manufatureira e, por


último, em atividade fabril, desencadeou uma maciça emigração do
campo para a cidade, assim como engajou mulheres e crianças em
jornadas de trabalho de pelo menos doze horas, sem férias e feriados,
ganhando um salário de subsistência [...] A desaparição dos pequenos
proprietários rurais, dos artesãos independentes, a imposição de
prolongadas horas de trabalho etc. tiveram um efeito traumático
sobre milhões de seres humanos ao modificar radicalmente suas
formas habituais de vida (MARTINS, 2006, p. 13).

Martins (2006) destaca que essas mudanças ficaram mais visíveis nas cidades
urbanizadas, onde se concentravam as indústrias. As cidades foram crescendo
sem nenhum tipo de planejamento urbano, não havia infraestrutura adequada
como lugares de moradia, serviços públicos de saúde e educação, por exemplo,
que se conta do aumento da demanda dessa população que se mudou para os
grandes centros em busca de trabalho.

O resultado, como relembra o autor, foi um aumento desproporcional de


problemas para os moradores dos centros urbanos: prostituição; depressão e
suicídio; alcoolismo; crimes e assassinatos de crianças e mulheres; surtos de
doenças que mataram milhares de pessoas, entre outros.

A Revolução Industrial criou também um novo grupo social: os trabalhadores


ou, como ficaram conhecidos historicamente, proletariado. Maior movimento
de resistência ao capitalismo como sistema de organização da sociedade foi
liderado pelo proletariado, pois os trabalhadores começaram a se revoltar
contra as más condições de vida a que estavam submetidos.

Martins (2006, p. 14) chama a atenção para a evolução dessa revolta, que não
foi sempre igual. “As manifestações de revolta dos trabalhadores atravessaram
diversas fases, como a destruição das máquinas, atos de sabotagem e explosão
de oficinas, roubos e crimes, evoluindo para a criação de associações livres,
formação de sindicatos etc.”. Mais tarde, conscientes de seus próprios interesses,
os trabalhadores se organizaram ocupando outras formas de expressão,
explorando a literatura, criando jornais e começando a pensar no socialismo
como sistema alternativo para a sociedade (MARTINS, 2006).

O que o pesquisador apresenta nesse ponto é importante para entender o


surgimento da sociologia como campo de estudo em si porque foi a partir
dessas mudanças que os pensadores começaram a se preocupar com a sociedade

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Sociologia Da Cultura | Unidade i

como sendo um problema, um objeto de pesquisa. Porém, ele ressalta que


os primeiros sociólogos não foram profissionais da ciência que viviam para
estudar.
Eram, antes de tudo, homens voltados para a ação, que desejavam
introduzir determinadas modificações na sociedade. Participavam
ativamente dos debates ideológicos em que se envolviam as correntes
liberais, conservadoras e socialistas. Eles não desejavam produzir
um mero conhecimento sobre as novas condições de vida geradas
pela Revolução Industrial, mas procuravam extrair dele orientações
para a ação, tanto para manter como para reformar ou modificar
radicalmente a sociedade de seu tempo (MARTINS, 2006, p. 15).

Portanto, a sociologia nasce como uma tentativa de compreender de forma


científica as transformações inauguradas pela Revolução Industrial na sociedade.
Os primeiros sociólogos, tais como Robert Owen, William Thompson, Jeremy
Bentham, entre outros, eram pensadores que quiseram observar e refletir
criticamente sobre as crises dessa nova sociedade capitalista a fim de também
intervir e colaborar para sua manutenção, reformulação ou total mudança
embasados em estudos científicos.

É por isso, também, que a sociologia só surge na sociedade moderna. Como


aponta Martins (2006), até a Revolução Industrial, os modos de vida eram
estáveis e inquestionáveis porque também havia um tipo de pensamento e
cultura em torno da religião cristã e da sabedoria divina que eram utilizadas
pelos líderes e pela igreja para manter os padrões e o modo de vida naquela
sociedade.

Por isso, a Revolução Francesa também foi importante para esse novo campo de
estudo. Foi com essas novas ideias que passaram a circular com os iluministas,
que recusavam acreditar no sobrenatural e buscavam respostas racionais para
explicar os fenômenos sociais que a sociologia também se tornou possível. Com
a observação e experimentação, métodos de pesquisa científica, analisar os
fatos sociais criou um novo ambiente intelectual que libertou o conhecimento
dos dogmas, das revelações divinas para a análise racional da realidade. Esses
novos estudos sobre os problemas sociais trouxeram impactos diretos para a
economia, para a natureza e para a cultura dos povos.

Martins (2006) indica que a revolução francesa foi tão transformadora que
os próprios iluministas ficaram com medo das consequências de suas ações e,

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Unidade i | Sociologia Da Cultura

por isso, percebe-se uma mudança nos estudos relacionados ao aspecto social.
Por exemplo, no início da revolução, os pensadores iluministas investiam em
pesquisas sobre a família, moral, religião, comércio e outras para criticá-las,
em defesa da liberdade do homem de decidir por si só sobre sua própria vida.
Essa situação refletia a luta da burguesia contra as instituições feudais, uma
camada de pessoas privilegiadas que não pagava impostos e ainda recebia
tributos feudais, explorando os camponeses.

Quando essa situação se inverte e os burgueses assumem o poder, os trabalhadores


que foram mobilizados para a luta contra os senhores feudais passam a ser
massacrados pelos novos empresários e seus sindicatos são fechados. Assim,
o clima de tensão e disputa se manteve e eram temidas novas revoluções. A
burguesia então precisa conter essa nova onda de revolucionários insatisfeitos
com o sistema e precisa instaurar um novo tipo de pensamento, em que a
sociedade não precise ser radicalmente transformada, mas apenas aperfeiçoada.
A tarefa que os fundadores da sociologia assumem é, portanto, a de
estabilização da nova ordem. Comte também é muito claro quanto a
essa questão. Para ele, a nova teoria da sociedade, que ele denominava
de “positiva”, deveria ensinar os homens a aceitar a ordem existente,
deixando de lado a sua negação (MARTINS, 2006, p.28).

O autor explica que essa sociologia positivista começa a tratar a questão do


“social” como um elemento isolado de outros aspectos como a economia e a
política. Mas por meio do pensamento socialista, os trabalhadores (proletariado,
como vimos) vão buscar referências teóricas para continuar sua luta de classe.
E a sociologia então, vai escolher um lado: os interesses do proletariado.

Enfim, Martins (2006, p. 33) destaca que a sociologia não se consolida como
um campo de estudos para pesquisadores que querem apenas refletir sobre
a sociedade moderna. Seja para manter ou para modificar as estruturas da
sociedade, a sociologia se baseia em intenções claras e práticas: interferir nos
rumos da civilização.

A coleção Primeiros Passos traz o livro “O que é sociologia?”, escrita pelo


sociólogo Carlos Benedito Martins e traz mais detalhes sobre a sociologia.
Vale a pena conferir!

No Brasil, um sociólogo referenciado é o Florestan Fernandes. Sua obra “A


sociologia no Brasil” também é interessante para quem quer se aprofundar
no tema.

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Sociologia Da Cultura | Unidade i

Recomendo também a tese “Os segredos de Virgínia”, da doutora em


Antropologia Janaína Damaceno, que conta a história de Virgínia Bicudo,
uma cientista social negra que se tornou conhecida por ser a primeira
psicanalista do Brasil. Ela estudou com Florestan Fernandes e tem vários
estudos sobre atitudes raciais, mas sua contribuição foi apagada das
ciências sociais por ser uma mulher negra.

Figura 2. Virgínia Bicudo.

Fonte: http://www.multirio.rj.gov.br/index.php/leia/reportagens-artigos/reportagens/16846-virg%C3%ADnia-bicudo-pioneira-na-
psican%C3%A1lise-e-no-estudo-de-atitudes-raciais.

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CAPÍTULO 2
O que é cultura?

Vamos retomar o significado de cultura. Pare um instante e relembre tudo


que já leu e ouviu sobre cultura.

O que é cultura para você?

Já ouviu frases como “fulano não tem cultura!”; “aquelas pessoas


precisam de cultura!”, “o governo precisa investir em cultura!”? O que
pensa sobre isso?

O que faz uma pessoa que trabalha com cultura?

Com certeza, você já deve ter encontrado várias definições distintas para o
que é cultura. Nesta disciplina, vamos considerar como cultura o complexo
sistema simbólico que rege uma sociedade. Toda sociedade possui símbolos
e recursos tanto materiais como imateriais. Esses símbolos são codificados
por meio da linguagem e interpretados pelos sujeitos por meio das trocas de
informação simbólica, a comunicação. Os sujeitos produzem discursos que
atribuem sentidos e significados a esses símbolos, delimitando a conduta, as
ações e identidades possíveis aos integrantes daquela sociedade.

A cultura não é fixa e nem imutável. Como é resultado da ação interpretativa


e das negociações simbólicas entre os sujeitos, está sempre em transformação.
Ninguém nasce com uma cultura, mas vai aprendendo, na medida que seu
crescimento e desenvolvimento humano uma série de códigos comportamentais
e marcadores de diferenças entre uns e outros que estabelecem as possibilidades
de existência social. Quem você é, quem pode ser, como se comporta, o que
acredita, o que desacredita, o que come, o que escuta, como se expressa, como
ama, como se relaciona com outras pessoas, com animais e com a natureza,
são exemplos de como a cultura se manifesta na sua própria vida.

Você também pode perceber a cultura na forma como a comunidade a qual


pertence se organiza para viver em grupo. Para que as pessoas se mantenham
vivas e seguras são estabelecidas uma série de normas que regem esse grupo. Por
exemplo, o código de linguagem utilizado para que as pessoas se comuniquem
umas com as outras; como as decisões que afetam a vida de todos são tomadas
e por quem (política); as práticas de subsistência e economia; o cuidado e a
defesa do território; as práticas esportivas, de diversão e de lazer etc.

16
Sociologia Da Cultura | Unidade i

Figura 3. Apresentação cultural de Frevo.

Fonte: http://historiadobrasilja.com/cultura-brasileira-frevo/.

Figura 4. Ritual religioso.

Fonte: https://ccsearch-dev.creativecommons.org/photos/4143ccac-0cad-4f9b-9d48-03a6636da663.

A cultura é resultado das trocas e negociações simbólicas realizadas entre


pessoas dentro de uma sociedade. É o que define a forma de ver e pensar o
mundo. A cultura é a vida em sociedade acontecendo e, por isso mesmo, está
intrinsecamente ligada ao fazer humano, à linguagem e ao discurso.

O ato de nomear e atribuir significado às coisas é uma ação discursiva, ou seja,


atribuímos sentidos por meio do discurso, do que pensamos e falamos sobre

17
Unidade i | Sociologia Da Cultura

algo ou alguém. Essa é uma ação política que envolve disputa de poder, pois
os sujeitos vivendo em grupo negociam e disputam o direito, ou poder, de
nomear e atribuir significados e ditar as normas que regem aquela sociedade.

No dicionário etimológico, veremos que a palavra cultura é derivada da palavra


em latim colere, que significava “cultivar as plantas”. Estava relacionada à ação
de plantar e cultivar a terra. Com o passar do tempo, a palavra foi ganhando
outros sentidos e utilizações. A professora Vanessa Rocha (2018) relembra que
a palavra cultura passou a ser usada com mais frequência na Europa durante
o século XIX, com as grandes navegações.

Nessa época, o termo foi ganhando o sentido atribuído pelos antropólogos,


que eram pesquisadores europeus viajando para os lugares que estavam sendo
descobertos. Eles desenvolviam um método de pesquisa conhecido como
“etnografia”, que consistia em viver durante um tempo próximo a determinados
grupos observando suas interações e organização da vida. A partir daí, eles
passavam a relatar o modo de vida daquelas pessoas que consideravam como
“selvagens”, como “outros”, a fim de destacar as diferenças entre o modo
de viver desses grupos recém-descobertos e o modo de viver dos europeus,
considerados os “normais”.

Godoy e Santos (2014, p. 22) fizeram um levantamento sobre os principais


autores que conceituam cultura e destacaram que o primeiro entendimento
sobre esse termo foi uma evolução do pensamento de Tylor, Boas e Malinowski.
Essa conceituação foi organizada pelo pesquisador Thompson na seguinte frase:
“A cultura de um grupo ou sociedade é o conjunto de crenças, costumes, ideias
e valores, bem como os artefatos, objetos e instrumentos materiais, que são
adquiridos pelos indivíduos enquanto membros de um grupo ou sociedade”.

Depois de analisar vários estudos, Godoy e Santos (2014) chegaram à conclusão


que a cultura é resultado da ação humana de atribuir significado aos símbolos
que regem a sociedade, e que tem como função fornecer aos homens recursos
para que a vida seja mais duradoura e segura.

Stuart Hall (1997), pesquisador mais contemporâneo dos estudos culturais,


trata a cultura como resultado de um complexo sistema de significações
simbólicas que compõe a vida social. Por meio da linguagem e do discurso
produzido sobre o mundo, a cultura de uma sociedade fornece as bases para
transformar e interpretar as ações dos indivíduos.

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Sociologia Da Cultura | Unidade i

Por essa razão, as perguntas que fizemos no início dessa discussão não têm
uma resposta certa. São mesmo provocações. Os significados que você atribui
aos símbolos, a sua forma de ver e sentir no mundo não é a única possível,
mas é aquela que fez sentido no seu processo de identificação cultural. Todos
nós temos cultura, porque ela é resultado desse complexo sistema simbólico
que vamos apreendendo ao longo da vida, e a cultura só faz sentido dentro
daquele sistema próprio de determinado grupo.

As manifestações artísticas como textos, obras de artes, fotografias,


vídeos, peças artesanais, pinturas, músicas, games são formas de expressão
da cultura de um povo. É por meio dessas atividades que os sistemas
simbólicos são produzidos, transmitidos e recebidos pelos sujeitos dentro
de uma sociedade. Assim, quando falamos em investimento em cultura ou
trabalhadores da cultura, estamos falando sobre essas atividades humanas
associadas à expressão simbólica da cultura de uma sociedade.

O que as pessoas compreendem como sendo arte e entretenimento e a


maneira como consomem essas informações é resultado de um processo
cultural. Os recursos materiais e imateriais estabelecem a forma de
organização e comunicação da sociedade ao qual pertenço.

Na minha adolescência, por exemplo, a cultura definia a forma como


consumíamos informação por meio das tecnologias disponíveis. O
conhecimento compartilhado até aquele momento apresentava a televisão, o
rádio e os impressos como canais de comunicação de massa, o cinema como
espaço para ver filmes em estreia, os teatros como locais de apresentação
lúdica de histórias, as escolas físicas como lugares de construção dos
saberes etc. Chamamos de meios de comunicação esses canais que são
mediadores da interação entre grupos de pessoas.

No entanto, os saberes e as tecnologias foram evoluindo e, consequentemente,


os códigos e processos culturais mudaram também. A forma de consumir
informação, de se relacionar uns com os outros e de compartilhar
conhecimento não é mais a mesma de antes, pois os canais de mediação
dessa interação humana se transformaram. Hoje, os processos de interação
já são mediados por máquinas e aparelhos que reproduzem um ambiente
virtual, essa é uma importante mudança cultural.

19
CAPÍTULO 3
Entendendo os conceitos

“A cultura é uma necessidade imprescindível de toda uma vida, é


uma dimensão constitutiva da existência humana, como as mãos são
um atributo do homem”.

O Livro das Missões – José Ortega y Gasset.

“Interrogado sobre a diferença existente entre os homens cultos e


os incultos, disse: ‘A mesma diferença que existe entre os vivos e
os mortos’”.

Citado em Diógenes Laércio, Vidas dos Filósofos, Aristóteles.

Sem a cultura, e a liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade,


por mais perfeita que seja, não passa de uma selva. É por isso que
toda a criação autêntica é um dom para o futuro. (Albert Camus)

Sem a cultura, e a liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade,


por mais perfeita que seja, não passa de uma selva. É por isso que
toda a criação autêntica é um dom para o futuro.

Albert Camus.

Como vimos, a sociologia estuda os aspectos da vida social buscando compreender


os vários aspectos da vida em sociedade, buscando embasamento teórico para
promover ações de transformação que melhorem o bem-estar coletivo. Ao
longo do tempo, esse se tornou historicamente um campo de estudos para
profissionais que se preocupam com os problemas do social e buscam soluções
em prol das classes trabalhadoras.

No campo da cultura, por sua vez, a sociologia da cultura vai estudar os muitos
aspectos culturais que impactam a vida em sociedade. E continuar sua busca
por soluções para os problemas encontrados. Neste capítulo, vamos entender
um pouco mais sobre os conceitos que permeiam os estudos no campo da
sociologia cultural.

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Sociologia Da Cultura | Unidade i

Figura 5. Alimentos e receitas típicas.

Fonte: https://br.freepik.com/fotos-gratis/tabua-de-madeira-cercada-por-pratos-de-massa-e-ingrediente-na-mesa_5234292.htm#page=1&qu
ery=culin%C3%A1ria&position=26.

Inegável afirmar que as identidades individuais, assim como a coletiva, são


constituídas e moldadas a partir do ambiente no qual estamos inseridos. Há
influência direta do ambiente e dos valores existentes sob a formação dos
indivíduos. Isto significa que a sociedade da qual fazemos parte é um fator
preponderante na nossa construção como ser humano.

O crescimento e o desenvolvimento de uma pessoa no seio de uma sociedade


sofrem variação de acordo com a própria estruturação desta, um exemplo,
são as diferentes maneiras de criação e desenvolvimento de uma criança em
países distintos. Desta forma, seria difícil abordar o tema da cultura sem tratar
da formação e desenvolvimento das sociedades, tendo em vista que estas são
de extrema relevância para o contexto cultural. Ou os hábitos alimentares,
por exemplo.

As mudanças nas sociedades e nas vidas de cada indivíduo ocorrem a todo


tempo e foram aceleradas a partir da globalização. Inúmeras searas da vida
humana sofrem transformações – religião, política, economia e até a questão
da construção dos valores e da moralidade – por isso, tal análise torna-se cada
vez mais dinâmica e complexa.

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Unidade i | Sociologia Da Cultura

Linton (1971. p. 107) define sociedade da seguinte forma:


Sociedade é todo grupo de pessoas que vivem e trabalham juntas
durante um período de tempo suficientemente longo para se
organizarem e para se considerarem como formando uma unidade
social, com limites bem definidos.

Outra demonstração da importância da vida em sociedade é a própria natureza


do Estado o qual vivenciamos, que é o Estado Democrático de Direito. Neste,
a participação da coletividade se faz imprescindível para garantia de seus
direitos mais fundamentais e suprimento das necessidades prementes.

Alguns autores ressaltam que é justamente a cultura que nos diferenciaria


dos demais seres devido ao fato de nos utilizarmos tanto de sinais quanto de
símbolos, que seriam os instrumentos de transmissão da informação, como se
a cultura fosse um conglomerado de significados criados pelo próprio homem.

A formação deste conceito de cultura teria a junção de elementos tangíveis,


que seriam os valores, as ideias, estilos de vida e convivência, e intangíveis,
como os resultados da ciência e da tecnologia. Neste ínterim, Thompson
(1995) define a cultura como:
A cultura é uma questão de ações e expressões significativas, de
manifestações verbais, símbolos, textos e artefatos de vários tipos,
e de sujeitos que expressam através desses artefatos e que procuram
entender a si mesmos e aos outros pela interpretação das expressões
que produzem e recebem (THOMPSON, 1995, p. 165).

Com a ideia de sociedade e cultura fixadas na mente, vamos agora conhecer


outros conceitos nos estudos culturais que vão facilitar nosso entendimento.

Etnocentrismo x relativismo
O etnocentrismo pode ser definido como uma autoabsorção, em nível cultural,
que impediria seriamente a abertura de uma comunidade a outras pessoas
simplesmente por pertencer a uma cultura diferente.

Muitas vezes se traduz em uma atitude, mais ou menos manifesta, apoiada


ou não em teses filosóficas ou teóricas, de desprezo por outras culturas; ou
seja, uma atitude em virtude da qual uma pessoa ou comunidade se estima
culturalmente como superior às demais.

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Sociologia Da Cultura | Unidade i

O etnocentrismo acompanhou muitos povos em suas relações com outros


povos ao longo da história. Da mesma forma, está presente no processo de
gênese da sociologia. Os argumentos a favor do etnocentrismo têm assumido ao
longo da história as mais diversas formas, desde questões de ordem moral até
teorias reducionistas supostamente sustentadas pelo conhecimento científico.

Em nossos dias, são os últimos que parecem ter a maior influência. Mas em
níveis mais cotidianos, parece que é o fator de desenvolvimento tecnológico,
por exemplo, o que mais influência quando nos comparamos com outras
culturas. Mesmo imerso no pensamento pós-moderno, oferece-se a tentação
de concluir que a cultura ocidental é a única que tem consciência de como
tudo é relativo, que é a única que voltou das decepções e, portanto, tem algo
em que as outras não têm.

Quando falamos em relativismo cultural, parece que estamos nos referindo à


ideia de que nossa confiança no que pensamos e fazemos e nossa determinação
em persuadir aqueles que nos rodeiam a compartilhar nossas opiniões e nossa
forma de agir não são muito bem fundamentadas.

O relativismo cultural não é uma doutrina ou um corpo unívoco de teoria.


De um ponto de vista estritamente filosófico, pode ser definido como aquela
doutrina – também chamada de culturalismo – que dá primazia à cultura sobre
outros aspectos da realidade humana. Desse modo, a cultura seria a única
estrutura explicativa a partir da qual o homem pode ser compreendido, com
tudo o mais sendo reduzido a meros aspectos da cultura ou seus subprodutos.

Nesse sentido, não existem princípios absolutamente imóveis sobre os quais


basear nossos julgamentos cognitivos, estéticos e morais, ou seja, os princípios
à nossa disposição são sempre incertos. Dizer que algo é relativo é dizer que
não é absoluto e que tem sua razão de ser em outra coisa, da qual depende de
alguma forma.

A cultura comunica sua contingência a tudo o mais. Moralidade, conhecimento,


ontologia – muitas vezes entendida como produto da epistemologia e que se
reduz então à mera visão de mundo que cada um possui – e a religião seriam
destituídas de qualquer tipo de necessidade por estarem desligadas de seu
fundamento e por ser colocado em uma relação de subordinação com relação
à cultura.

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Unidade i | Sociologia Da Cultura

Para que a comunicação aconteça entre diferentes comunidades culturais, é


necessário que haja alguma instância que transcenda a mesma cultura e que
permita a criação de um espaço de sentido compartilhado entre o emissor e
o receptor. Agora, se é argumentado que a cultura é a última instância à qual
tudo o mais deve ser referido, e na realidade encontramos uma pluralidade
factual de culturas, entendida por sua vez como conjuntos autorreferenciais,
o lógico é que um acaba aceitando que as culturas são incomunicáveis umas
com as outras.

Isso, conforme indicado anteriormente, significa necessariamente que não


haja algum tipo de intercâmbio entre diferentes culturas. As culturas não
se ignoram, já que de vez em quando se emprestam umas as outras. O que
não seria possível é uma troca de sentidos. O receptor recebe estímulos
do emissor da outra cultura e confere-lhe um sentido que lhe é estranho e
vice-versa. Estamos diante de um processo estímulo-resposta, seguido de
uma interpretação unilateral, que não coincide em nada com o significado
original da mensagem emitida. Uma cultura não pode ser traduzida por
meio dos códigos de linguagem de outra cultura.

Em outras palavras: a tradução é uma ilusão. Não é que não seja perfeito, que em
muitos casos a literalidade não seja possível, que em alguns outros nos faltem
os elementos simbólicos precisos e apropriados para certos sentidos ou que
certos sentidos não tenham sido desenvolvidos em uma dada comunidade. Tudo
isso nós já sabíamos. A questão é que a tradução é simplesmente impossível.

Figura 6. Diversidade de etnias.

Fonte: https://lereaprender.com.br/o-que-e-etnocentrismo/.

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Sociologia Da Cultura | Unidade i

Você já tentou relativizar algum comportamento que considera estranho?


A forma antropológica de entender comportamentos coletivos que nos
pareçam “estranhos” é buscar um sentido para eles. Qual é o sentido do
vestuário de um grupo punk? Por que o preto é tão importante para alguns
grupos de jovens a ponto de eles só usarem roupas e acessórios dessa
cor? Pense em qualquer comportamento coletivo dessa natureza e procure
relativizá-lo, buscando compreender que sentido tem para o grupo que o
pratica.

Conclui-se que é possível falar de relativismo cultural como uma atitude de


certos profissionais que se deparam com contrastes culturais, que podem
ajudá-los a apreender o significado dos elementos de outras culturas em sua
originalidade, sem impor de antemão esquemas descritivos e simbólicos de
outras culturas.

Em outras palavras, trata-se de fugir do etnocentrismo. Ora, esse relativismo


cultural, que diz que o que é relativo é a cultura (relativa aos comportamentos
humanos, à estrutura das diferentes sociedades, ao ambiente biofísico, às
necessidades de cada comunidade e à forma como se organizam acesso ao bem
comum etc.) é muito diferente daquele outro que afirma que tudo é relativo
à cultura.

Esse tipo de relativismo, que nos ajuda a colocar nossos costumes no seu
devido lugar, sem ter que renunciar a eles, é o necessário para alcançar aquele
conhecimento do outro que costuma ser chamado pelo termo empatia. É
uma atitude desejável que nos enriquece, ajudando-nos a ganhar perspectiva.
Em última análise, esse é o senso de relativismo cultural que se opõe ao
etnocentrismo.

O conceito de cultura nos séculos XX e XXI

A cultura foi originalmente entendida e explicada como um conjunto de


constrangimentos, pressões e condicionamentos externos ao ser humano – como
as formas de comportamento e outras aprendizagens durante a socialização
da criança – que estabeleceram ou determinaram padrões de comportamento
adulto, cujos costumes foram destacados com o conceito amplo que representava
quase tudo o que o homem fazia. Ou seja, a cultura era vista como determinante
do comportamento.

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Unidade i | Sociologia Da Cultura

Segundo esse modo de ver a cultura, o controle social era exercido por meio
das normas, que serviriam de meio de pressão e obrigação para que os homens
se adaptassem aos costumes e às tradições sem resistir ou perceber – enquanto
os mitos e as crenças representavam as mesmas imposições da religião, às
quais os seres humanos se submetiam mansamente.

Ao exposto, acrescenta-se que a passagem do tempo, transformada em tradições


e, por vezes, em história, explica a origem dessas formas de costumes e
imposições culturais em tempos passados e remotos. A universalidade desses
fenômenos foi estudada pela comparação de culturas de diferentes partes
do mundo, pelo que alguns antropólogos também chamam de tradição ou
paradigma comparativo da antropologia sociocultural.

Essa forma de entender a cultura foi dominante até a década de 1950, nos
centros de estudos da Antropologia, contribuindo para uma compreensão
ampla do que nos une e do que nos torna comuns como seres humanos,
ao mesmo tempo em que proporciona uma grande riqueza de informações
sobre as sociedades de pequeno e médio porte do mundo, principalmente as
comunidades humanas minoritárias.

Hoje, a cultura é entendida como um processo – ou rede, malha ou estrutura


– de significados em um ato de comunicação, objetivo e subjetivo, entre os
processos mentais que criam os significados (a cultura dentro da mente) e um
ambiente ou contexto significativo (o ambiente cultural externo da mente,
que se torna significativo para a cultura interna).

O importante é entender a cultura como produção de sentidos, para que


também possamos compreender a cultura como o sentido que os fenômenos
e acontecimentos da vida cotidiana têm para um determinado grupo humano.
Se queremos conhecer a cultura dos jovens universitários, por exemplo, na
realidade estamos nos perguntando qual o sentido da vida universitária para
esses jovens. Se nos preocupamos com a “cultura escolar”, estaríamos nos
perguntando qual o sentido da vida escolar para quem a vive. O próximo
problema que enfrentamos é como descobrir o “sentido da vida” na prática
vivida por seus atores.

Por exemplo, na maior parte das escolas brasileiras, a comemoração do Dia


do Índio é feita com base em ideias e imagens genéricas, que não se referem a
uma etnia ou população específica. Como se sabe, os diversos grupos indígenas
do Brasil vivem em sociedades muito distintas entre si, com diferentes visões

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Sociologia Da Cultura | Unidade i

sobre o mundo e a natureza. Nenhum indígena real é representado no Dia do


Índio: comemoramos uma imagem, criada pela sociedade não indígena, que
está muito distante da diversidade presente nos grupos indígenas que vivem
no Brasil.
Cada grupo humano tem um significado para cada coisa que faz e do porquê faz
(semântica semiótica), de modo que esses significados têm apenas as conotações
que aquele grupo humano particular lhes dá, e podem ser semelhantes aos
de outro grupo, mas nunca todos os mesmos significados em sua totalidade.
Para que, em última análise, a cultura de cada grupo humano seja como sua
impressão digital cultural, não existem dois grupos humanos com a mesma
cultura. Como esses conjuntos de significados não ocorrem no vazio ou
espontaneamente ao mesmo tempo, surge a importância do contexto da cultura
como um elemento primordial no estudo de uma determinada cultura.
Figura 7. Oficina de fotografia com indígenas por Pedro Kuperman.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/fotografia-e-o-protagonismo-indigena/.

DiamanthaAwetiKalapalo é uma indígena do Parque do Xingu-Amazônia


considerada a segunda YouTube do Brasil. Ela tem um canal no YouTube e
também perfil no Instagram e compartilha vários registros sobre o modo
de vida indígena. Recomendo o vídeo “Indígenas do século 21”:

https://www.youtube.com/watch?v=W1_nvEF-CPg.

Instagram:

https://www.instagram.com/diamanthaaweti/?hl=pt-br.

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CULTURA E
SOCIEDADE UNIDADE II

Nesta unidade, conheceremos mais sobre cultura e sociedade, buscando


compreender alguns termos utilizados nos estudos culturais contemporâneos
e termos em debate. No primeiro capítulo, traremos uma explicação sobre
identidade, ideologia e como se relacionam com a cultura. No segundo capítulo,
trataremos sobre as disputas no campo das identidades culturais. E, no último,
vamos conhecer os conceitos de colonialismo, e contracultura.

CAPÍTULO 1
Identidade, ideologia e cultura

Conceito de identidade
Já falamos um pouco sobre diferença e cultura, mas existe outro conceito
muito utilizado para pensar a diferença cultural que é o de identidade. Esse
termo tem aparecido na história da Antropologia desde o começo do século
XX. Nessa época, porém, a ideia de identidade era sempre de um acessório:
identidade social, identidade étnica, identidade racial etc. Conotava uma
reflexão sobre a autoimagem de um grupo, em geral impregnada da mesma
noção de equilíbrio que vimos operar nas definições de estrutura.

A partir da década de 1970, o termo identidade ganhou outra conotação,


relacionada à intensa fragmentação social produzida pelo avanço do capitalismo
e suas consequências. Como exemplo dessa fragmentação, podemos citar
as migrações internacionais, que continuaram a aumentar drasticamente,
acentuando a presença de distintas etnicidades nos países centrais do capitalismo;
a emergência de diversos movimentos políticos ligados a etnicidades raciais
e étnicas; a presença de religiões transnacionais; os movimentos políticos
baseados na orientação sexual (homoafetivos) e questões de gênero, entre
outros fenômenos.

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Cultura E Sociedade | Unidade II

Por outro lado, o avanço tecnológico das formas de comunicação tornou o


mundo menor, e as ideias produzidas rapidamente se espalham pelo mundo todo.
A globalização é um dos fatos do crescimento dessa sensação de fragmentação.
Essa realidade fragmentada exigia um novo conceito para pensar a diferença
além dos conceitos de cultura e etnicidade.

Se etnicidade se referia a algum tipo de ancestralidade comum (imigrantes,


populações negras, indígenas etc.), muitas outras diferenças não tinham mais
essa conotação: entre um ultrarreligioso negro e um ativista por direitos
homoafetivos negro, a diferença pode ser tão grande quanto aquela entre um
grupo indígena e uma sociedade nacional. Como pensar essa diferença não
atrelada necessariamente a uma ancestralidade comum?

A alternativa para pensar essa nova realidade complexa e fragmentada foi o


conceito de identidade. Ao contrário de outras ideias usadas para pensar a
diferença, identidade não pressupõe uma ancestralidade comum; a prática
social (a experiência de vida) é suficiente para produzir identidades entre
grupos de pessoas.

A identidade é sempre vista como transitória, nunca pronta e acabada. É um


processo em construção, modelado pela ação das pessoas que partilham coisas
em comum. Podemos pensar num grupo de religiosos budistas que desenvolve
uma identidade a partir da prática do budismo, num grupo de homossexuais
em busca de direitos familiares e na luta contra o preconceito, em grupos
de punks que vivem segundo um modelo diferente. A todos esses exemplos
e a muitos outros pode ser atribuído o conceito de identidade: identidades
religiosas, identidades sexuais, identidade punk.

O conceito de identidade é oportuno para pensar a diferença num mundo


onde a fragmentação das opções de vida foi multiplicada ao extremo, onde
múltiplas alternativas se apresentam a qualquer pessoa. Como conceito,
identidade nasce sem preocupação com estabilidade, continuidade ou qualquer
ideia de completude. Os sujeitos podem, inclusive, modelar sua identidade
pessoal a partir de várias identidades, combinando e compartilhando várias
experiências identitárias. Um punk negro pode amalgamar uma identidade
baseada no estilo de vida punk e também na experiência de ser negro numa
sociedade racista, por exemplo.

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Unidade II | Cultura E Sociedade

Num mundo fracionado pelo excesso de informação, a diferença social tem sido
analisada sob a perspectiva do conceito de identidade, mas isso também levou a
um tipo de análise que foca apenas o sujeito e suas escolhas, como se a identidade
fosse uma espécie de mercadoria que cada pessoa pode assumir livremente.
O fato de que muitos grupos se definem pelo consumo de determinadas
mercadorias levou a uma associação entre o conceito de identidade e mercado
de consumo.

Se na esfera do senso comum cada vez mais a identidade assume a feição


de personalidade individual moldada por estilos de consumo, nas Ciência
Sociais, a importância da “vida comum” continua a ser muito relevante.
Para autores como Stuart Hall (2000), a identidade contém tanto aquilo que
escolhemos como aquilo que não escolhemos. Aquela parte da vida social que
não controlamos é fundamental na formação da identidade: assim, a exclusão
racial, a discriminação sexual, a intolerância religiosa, por exemplo, são fatores
sociais que as pessoas não controlam, mas que podem moldar suas identidades.

As identidades comportam tanto nossas heranças culturais como novas formas


de pensar o mundo, apresentadas pelas novas tecnologias de comunicação.
Se do ponto de vista antropológico, cultura é o modo de vida de um povo,
então, ela acaba por funcionar como um mapa, um receituário, um código.
E justamente por partilharem deste código (a cultura) é que um conjunto
de indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas
transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma
mesma totalidade.

A sensação de pertencimento, chamada identidade, seria a fonte de significados


e experiências de um povo, de uma nação, de uma etnia, de um grupo social.
É um processo de construção com base em um ou mais atributos culturais: a
língua, os costumes, a religião, as expressões artísticas como a dança e a música.

Mas a cultura também é uma das fontes da construção da própria identidade


individual, ao ser o mapa, o receituário, o código por meio do qual cada
pessoa de um dado grupo pensa, classifica, estuda e modifica o mundo e a
si mesma. Como todos nós estamos inseridos em diferentes grupos sociais,
consequentemente, temos várias referências para a formação de nossa identidade
individual.

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Cultura E Sociedade | Unidade II

A cultura nunca deve ser entendida como um repertório de significados


homogêneo, estático e imutável. Em vez disso, pode ter “zonas de estabilidade
e persistência” e “zonas de mobilidade” e mudança. Alguns de seus setores
podem estar sujeitos a forças centrípetas que lhe conferem maior força,
vigor e vitalidade, enquanto outros setores podem obedecer a tendências
centrífugas que os tornam, por exemplo, mais mutáveis e instáveis nas pessoas,
desmotivados, contextualmente limitados e muito pouco compartilhado pelas
pessoas dentro de uma sociedade.

As considerações anteriores podem parecer um tanto abstratas, mas um breve


exercício de reflexão e autoanálise é suficiente para perceber seu caráter
concreto e experiencial. Na verdade, se olharmos um pouco mais de perto ao
nosso redor, perceberemos que estamos submersos em um mar de significados,
imagens e símbolos.

Tudo tem um significado, às vezes, amplamente compartilhado, ao nosso


redor: nosso país, nossa família, nossa casa, nosso jardim, nosso carro e nosso
cachorro; nosso local de estudo ou trabalho, nossa música favorita, nossas
namoradas, nossos amigos e nosso entretenimento; os espaços públicos de
nossa cidade, nossa igreja, nossas crenças religiosas, nosso partido e nossas
ideologias políticas.

E, quando saímos de férias, quando andamos pelas ruas da cidade ou quando


andamos de metrô, é como se estivéssemos nadando em um rio de significados,
imagens e símbolos. Tudo isso, e nada mais, é cultura ou, mais precisamente,
nosso “ambiente cultural”.

Mas precisamos dar um passo adiante para destacar o seguinte: por um lado, os
significados culturais são objetivados na forma de artefatos ou comportamentos
observáveis, também chamados de “formas culturais”, por John B. Thompson
(1995). Por exemplo, obras de arte, ritos, danças; e, por outro, são internalizados
na forma de “habitus”, esquemas cognitivos ou representações sociais.

No primeiro caso, temos o que Bourdieu chamou de “simbolismo objetificado”,


e outros de “cultura pública”; enquanto, no último caso, temos as “formas
internalizadas” ou “incorporadas” da cultura. Claro que existe uma relação
dialética e inseparável entre as duas formas de cultura.

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Unidade II | Cultura E Sociedade

As formas internalizadas vêm de experiências comuns e compartilhadas,


mediadas pelas formas objetificadas de cultura; por outro, não seria possível
interpretar ou ler as formas culturais exteriorizadas sem os esquemas cognitivos
ou “habitus” que nos permitem fazê-lo.

Essa distinção é uma tese clássica de Bourdieu que, para nós, desempenha um
papel estratégico nos estudos culturais, pois permite uma visão abrangente
da cultura na medida em que inclui também sua internalização pelos atores
sociais. Além disso, permite considerar a cultura preferencialmente do ponto
de vista dos atores sociais que a internalizam, “incorporam” e a transformam
em sua própria substância. Nessa perspectiva, podemos dizer que não há
cultura sem sujeito ou sujeito sem cultura.

Essas considerações são de grande importância para a avaliação crítica de


certas teses “pós-modernas”, como a da “hibridização cultural”, que leva
em consideração apenas a gênese ou origem dos componentes das “formas
culturais” (por exemplo, na música, na arquitetura e na literatura), sem se
preocupar com os sujeitos que os produzem, os consomem e se apropriam
deles, reconfigurando-os ou dando-lhes um novo significado.

Sob esse ângulo, a tese carece de originalidade, já que sabemos desde Franz
Boas que todas as formas culturais são híbridas a partir do momento em que
o contato intercultural se generaliza. É uma tese banal do que costuma ser
chamado de “difusionismo” em antropologia.

Mas as formas internalizadas de cultura caracterizam-se precisamente pela


tendência de recompor e reconfigurar o “híbrido”, conferindo-lhe uma relativa
unidade e coerência. Em outras palavras, o híbrido não pode ser internalizado
como um híbrido, nem o que os psicólogos chamam de “dissonâncias cognitivas”
pode ser mantido por muito tempo, exceto em situações psicologicamente
patológicas.

Cultura é a organização social do significado, internalizada de uma


forma relativamente estável pelos sujeitos na forma de esquemas ou
representações compartilhadas, e objetivada em “formas simbólicas”,
todas em contextos historicamente específicos e socialmente específicos.
Estruturado, porque para nós, sociólogos e antropólogos, todos os fatos
sociais estão inscritos em um determinado contexto espaço-temporal.

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Cultura E Sociedade | Unidade II

Identidades individuais

Na escala individual, a identidade pode ser definida como um processo subjetivo


e muitas vezes autorreflexivo pelo qual os sujeitos individuais definem suas
diferenças em relação a outros sujeitos ao se autoatribuir um repertório de
atributos culturais geralmente valorizados e relativamente estáveis no tempo.

Se aceitarmos que a identidade de um sujeito é caracterizada sobretudo pela


vontade de distinguir, demarcar e ter autonomia em relação a outros sujeitos,
surge naturalmente a questão de quais são os atributos a que esse sujeito apela
para fundamentar essa vontade. Diremos que se trata de uma dupla série de
atributos distintivos, todos de natureza cultural:

» atributos de pertencimento social que implicam na identificação


do indivíduo com diferentes categorias, grupos e coletivos sociais;

» particularização dos atributos que determinam a singularidade


idiossincrática do sujeito em questão.

Portanto, a identidade de uma pessoa contém elementos do “compartilhado


socialmente”, decorrentes do pertencimento a grupos e outros coletivos, e do
“individualmente único”. Os elementos coletivos enfatizam as semelhanças,
enquanto os individuais enfatizam as diferenças, mas ambos se unem para
constituir a identidade única, embora multidimensional do sujeito individual.

No que diz respeito à primeira série de atributos, a identidade de um indivíduo


é definida principalmente pelo conjunto de seus pertences sociais. Georg
Simmel (apud POLLINI, 2000, p. 32) Ilustra esta afirmação da seguinte forma:

O homem moderno pertence em primeira instância à família de seus


pais; depois, ao fundado por ele mesmo e, portanto, também ao de
sua esposa; enfim, à profissão, que já o insere com frequência em
numerosos círculos de interesse [...]. Além disso, ele tem consciência
de ser cidadão de um Estado e pertencer a uma determinada camada
social. Por outro lado, pode ser oficial da reserva, pertencer a algumas
associações e possuir relações sociais ligadas, por sua vez, aos mais
diversos círculos sociais [...]

Vale a pena sublinhar esta contribuição especificamente sociológica para


a teoria da identidade, segundo a qual as associações sociais constituem,

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Unidade II | Cultura E Sociedade

paradoxalmente, um componente essencial das identidades individuais. Além


disso, segundo a tese de Simmel, a multiplicação dos círculos de pertença,
longe de diluir a identidade individual, antes a fortalece e circunscreve com
maior precisão, uma vez que:

Quanto mais seu número aumenta, menos provável é que outras


pessoas exibam a mesma combinação de grupos e que os numerosos
círculos (de pertencimento) se cruzem mais uma vez em um único
ponto (SIMMEL apud POLLINI, ibid., p. 33)

Mas o que, especificamente, são essas categorias ou grupos de membros?


Segundo os sociólogos, os mais importantes seriam classe social, etnia,
coletividades territorializadas (localidade, região, nação), faixas etárias e
gênero. Essas seriam as principais fontes que alimentam a identidade pessoal.

Os sociólogos acrescentam ainda que, dependendo dos diferentes contextos,


alguns desses pertences podem ter maior destaque e visibilidade do que outros.
Assim, por exemplo, para um indígena seu pertencimento étnico – muitas
vezes traído pela cor de sua pele – é mais importante do que seu status de
classe, embora objetivamente ele também faça parte das classes subalternas.

Acrescente-se ainda que, segundo os clássicos, o pertencimento social implica


na partilha, ainda que parcial, dos modelos culturais (de tipo simbólico-
expressivo) dos grupos ou coletivos em questão. Você não pertence à Igreja
Católica, nem é reconhecido como membro dela, se não compartilha em maior
ou menor grau seus dogmas, seu credo e suas práticas rituais.

As pessoas também se identificam e se distinguem das outras, entre outras


coisas por seus atributos físicos, estilo de vida refletido em seus hábitos de
consumo, rede pessoal de relacionamentos íntimos, conjunto de objetos
cativantes que possuem e por sua biografia pessoal irredimível.

Os atributos característicos são um conjunto de características como “disposições,


hábitos, tendências, atitudes e capacidades, às quais se acrescenta o que está
relacionado com a imagem do próprio corpo” (POLLINI, 2000, p. 35). Alguns
desses atributos têm um significado preferencialmente individual (por exemplo,
inteligente, perseverante, imaginativo), enquanto outros têm um significado
relacional (por exemplo, tolerante, gentil, comunicativo, sentimental).

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Cultura E Sociedade | Unidade II

Os estilos de vida estão relacionados às preferências pessoais dos consumidores.


O pressuposto subjacente é que a enorme variedade e multiplicidade de produtos
promovidos pela publicidade e pelo marketing permitem que os indivíduos
escolham entre uma ampla gama de estilos de vida.

Por exemplo, você pode escolher um “estilo de vida ecológico”, que se refletirá no
consumo de alimentos (por exemplo, não consumir produtos com componentes
transgênicos ou de fontes animais –vejanismo) e no comportamento em relação
à natureza (por exemplo, valorização do ruralismo, defesa da biodiversidade,
luta contra a poluição ambiental). Estilos de vida constituem sistemas de
signos que nos dizem algo sobre a identidade das pessoas. Eles são “sinais de
identidade”.

Destaca-se também a importância da rede pessoal de relações íntimas


(parentes próximos, amigos, namoradas e namorados etc.) como operadora
de diferenciação. Na verdade, cada um tende a se formar em torno de um
círculo reduzido de pessoas próximas, cada uma das quais funciona como
um “alter ego”, ou seja, como uma extensão e “duplo” de si mesmo, e cujo
desaparecimento (por estranhamento ou morte) seria como uma ferida, como
uma mutilação, como uma incompletude dolorosa. A ausência desse círculo
interno geraria nas pessoas o sentimento de uma solidão insuportável.

Do que foi dito, segue-se que a identidade dos indivíduos sempre resulta de
uma espécie de compromisso ou negociação entre autoafirmação e atribuição
de identidade. Daí a possibilidade de discrepâncias e lacunas entre a imagem
que forjamos de nós mesmos e a imagem que os outros têm de nós. Daí vem
a distinção entre identidades definidas internamente, que alguns chamam
de “identidades privadas”, e identidades imputadas externamente, também
chamadas de “identidades públicas”.

Stuart Hall (2000) acredita que a identidade é mais uma questão de identificação
resultante do processo de subjetivação de cada um e das políticas excludentes
implicadas. Para ele, a questão da identidade aparece na rearticulação da
relação entre sujeitos e práticas discursivas, ou seja, envolve os discursos
construídos historicamente que ajudam a moldar as tradições culturais das
quais as pessoas fazem parte e se baseiam para saber o que podem ou não
fazer, ser ou até mesmo subverter.

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Unidade II | Cultura E Sociedade

As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um


passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa
correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da
utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para
a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos
tornamos. Têm a ver não tanto com as questões “quem nós somos”
ou “de onde nós viemos” mas muito mais com as questões “quem nós
podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e “como
essa representação afeta a forma como nós podemos representar a
nós próprios” (HALL, 2000, p.109).

Hall (2000) destaca que as identidades são construídas dentro do discurso


na disputa de poder por setores específicos e, por isso, são criados estigmas
que excluem em vez de uma identidade homogênea que inclua tudo e não
faça distinções. Para o autor, então, não basta que o discurso “construa” essa
identidade, mas é necessário que as pessoas assumam esse papel, identifiquem-
se e invistam na identidade para que ela se mantenha.

Hall acredita que as pessoas se apegam a determinada identidade por um


tempo dentro do discurso que está vigente naquele contexto histórico, e por
isso também podem desapegar-se dela com a construção de novos discursos
que ofereçam outras possibilidades.
Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de encontro, o
ponto de sutura entre, por um lado, os discursos e as práticas que
tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos
nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e,
por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos
constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”. As identidades
são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que
as práticas discursivas constroem para nós (HALL, 1995, citado em
HALL, 2000, p. 112).

Como o autor explica, para que o processo de identificação com uma certa
posição seja eficaz, é necessária uma articulação entre os discursos produzidos
socialmente, que convocam os sujeitos, e as subjetividades que fazem com
estes invistam em tais posições. Ou seja, a construção de uma identidade é
um processo complexo de negociação constante.
A esperança de um mundo melhor incorporada ao entendimento
de que, se é completamente impossível significarmos esse mundo
de uma vez por todas, ainda assim é necessário investirmos nessa
significação. A ela podemos dedicar-nos, sem perdemos de vista o

36
Cultura E Sociedade | Unidade II

quanto é instável, provisória e precária e por isso mesmo potente: está


aberta a ser constantemente refeita de forma imprevisível (LOPES,
2013, p. 21).

Alice Lopes (2013) também destacou esse caráter de negociação e contestação


das identidades ao afirmar que as significações do que entendemos como
social, conhecimento, escola, por exemplo, estão em disputa o tempo todo.
“Se não há regras obrigatórias do jogo, as regras podem ser mudadas, o jogo
pode ser outro e o futuro – como projeto que decidimos hoje – passa a estar
em pauta” (LOPES, 2013, p. 20).

O conceito de ideologia
Meus heróis morreram de overdose

E meus inimigos estão no poder

Ideologia, eu quero uma pra viver

Pois aquele garoto que ia mudar o mundo

Agora assiste a tudo em cima do muro


Cazuza

Compositores: Agenor Neto/Agenor de Miranda Araújo Neto/Roberto Frejat.

Quem nunca ouviu ou se pegou cantando a plenos pulmões a música do Cazuza


que atire a primeira pedra. Todos nós já passamos por alguma fase em que
sonhamos mudar o mundo, ou pelo menos as ideias que sem tem no mundo
e sobre o mundo.

Quando falamos sobre ideologia, o pensamento caminha logo para as questões


políticas que, no Brasil, se tornaram mais polarizadas nos últimos anos.
Ideologia de esquerda, ideologia de direita, ideologia cristã, ideologia queer
são alguns dos termos já cunhados e discutidos em algumas rodas de conversa
ou brigas de grupos de Whatsapp. Mas, afinal, o que é essa tal ideologia e o
que ela tem a ver com a cultura?

São muitos os teóricos e sociólogos que tentam explicar esse conceito,


mas aqui vamos utilizar os saberes de um filósofo mais contemporâneo,
ZygmuntBaumant (2000), que fez um levantamento sobre o surgimento
desse conceito em seu livro “Em busca da política”. Ideologia, basicamente,
quer dizer estudo das ideias.

37
Unidade II | Cultura E Sociedade

Bauman (2000, p.96) explica que a primeira vez que se usou o termo ideologia
foi no século XVIII pelo escritor Destutt de Tracy, que acreditava que as ideias
são tudo o que existe e que “só existimos pelas sensações e ideias. Nenhuma
coisa existe senão pela ideia que dela fazemos”. Com isso, a proposta inicial
era que a ideologia fosse uma espécie de guarda das ciências com o papel de
fiscalizar, investigar e regularizar todos os esforços cognitivos dos homens,
ou seja, controlar as sensações possíveis e os processos de criação de ideias
para que todos se mantivessem sempre sob o domínio da razão.

Mas como saber se um pensamento é racional ou não? Essa foi a crítica


posterior feita por Marx e Engels, descrita pelo pensador. Eles argumentavam
que o mundo estava longe de ser racional, e que era preciso fazer alguma coisa
concreta para mudar essa realidade. Bauman (2000) esclarece que os dois
pensadores, na verdade, rejeitavam o conceito de ideologia porque acreditavam
que havia tantas coisas erradas na sociedade dita “racional” que, antes de propor
um embate de ideias erradas, era preciso modificar o mundo real, material,
“uma vez que ele era e continua sendo a perversa realidade humana que deu
e continua dando à luz falsas ideias. A verdade dos pensamentos tem pouca
chance de se afirmar se os erros do mundo não forem corrigidos primeiro”
(BAUMAN, 2000, p.97).

No entanto, esse conceito de Marx também foi deixado de lado no século XX.
Bauman (2000) destaca que após esse período do iluminismo e das grandes
revoluções, já na década de 1920, o termo ideologia deixou de ser relacionado
à ciência como arma contra a ignorância e ao estudo das ideias de forma
racional para ser tratado como “crença”. Tudo que estava sob o guarda-chuva
das crenças que se pensavam já estarem superadas, do tipo que resistia aos
testes do conhecimento científico, passou a ser tratado como ideologia.

Dessa forma, os filósofos deste tempo moderno tiveram como responsabilidade


tentar separar as categorias do que poderia ser classificado como conhecimento
científico do que eram opiniões, relutância ou mesmo incapacidade de aceitar
os fatos comprovados pela ciência.

Bauman (2000), então, apresenta a versão “positiva” adotada como ideologia


nos anos mais recentes. Atualmente, está em voga uma noção de ideologia que
é similar a uma moldura cognitiva, ou seja, um quadro em que são encaixados
pedaços da experiência humana em um desenho possível de ser reconhecido
e que faça sentido para quem o vê.

38
Cultura E Sociedade | Unidade II

Pode-se dizer que essas estruturas cognitivas são, essencialmente,


instrumentos de “monitoração”, “peneiramento” ou talvez “diminuição”
– elas interrompem o fluxo de sensações de outro modo irrefreável,
retendo aquelas que se encaixam no padrão da estrutura e deixando
passar as demais (BAUMAN, 2000, p. 102).

Em outras palavras, ideologia, do modo como concebemos hoje, são as lentes


pelas quais escolhemos olhar, sentir e expressar o mundo. As ideologias
nos dividem em grupos nos quais tal moldura faça mais sentido, devido às
experiências de vida de cada indivíduo, do que em outra. Está posto e ainda
não conseguimos ultrapassar esse conceito, como Bauman (2000) sugere.

Para este autor, o melhor seria eliminar esse conceito que consolida o
que ele chama de “grandes narrativas” que enquadram nossa experiência e
conhecimento. Mas será que estaríamos preparados para viver crises locais
sem que tenhamos algo a que nos apegar como direcionamento para nossas
ações? A ideologia, de certa forma, também é um aspecto da cultura em que
cada um está inserido, pois tem tudo a ver com a forma de se posicionar no
mundo. Fica o questionamento.

O que é ideologia para você?

Você segue alguma ideologia?

Como seria o mundo se não houvessem essas divisões ideológicas?

Você concorda com o pensamento de Bauman?

39
CAPÍTULO 2
Colonialismo, decolonialismo e
multiculturalismo

Os estudos sobre cultura na contemporaneidade assumiram algumas


nomenclaturas novas, a saber Multiculturalismo, Colonialidade e
Decolonialidade, numa tentativa de explicar a imensa diversidade cultural
existente no mundo todo, de forma global e local, e o motivo para que umas
sejam dominantes e outras consideradas periféricas.

Multiculturalismo
Os pesquisadores Paulo Groff e Rogério Pagel (2009) realizaram um estudo
para descobrir a origem do conceito de multiculturalismo, um movimento
que busca a proteção dos direitos dos grupos considerados minoritários. Para
eles, esse conceito é um pouco controverso porque pode ser analisado por
vários pontos de vista.
Groff e Pagel (2009) explicam que essa multiplicidade de culturas não é
um fenômeno recente, fruto da globalização e dos avanços tecnológicos.
Tem início com as grandes navegações do século XVI e das novas relações
comerciais que passaram a ser estabelecidas entre países colonizadores e países
colonizados que colocaram frente a frente grupos e culturas diferentes. “Na
busca desesperada por capitais, deram início à escravização de povos, surgindo
daí grande parte das minorias hoje existentes. Para exemplificar, basta citar
os afrodescendentes, que foram escravizados na América Latina” (GROFF;
PAGEL, 2009, p.8).
Segundo Groff e Pagel (2009), o multiculturalismo também pode ser entendido
pelo viés político. Durante muito tempo, uma única cultura (a dos colonizadores)
foi dominante sobre todas as outras, muito em razão do medo que os grupos
dominados (como os povos que foram brutalmente escravizados no Brasil,
por exemplo) tinham de se rebelar.
Mas, a partir dos anos de 1960, com especial destaque para os Estados Unidos
e Europa Ocidental, esse movimento começou a ganhar força no campo da
educação. Representantes desses grupos que foram oprimidos durante séculos
passaram a se conscientizar da importância de proteger e resgatar os saberes
intelectuais, sociais e morais de seus ancestrais. Aconteceram vários debates
sobre interculturalidade, relacionamentos intergrupais, diversidade e práticas

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Cultura E Sociedade | Unidade II

educacionais excludentes e racistas. Groff e Pagel (2009) destacam os vários


movimentos sociais dedicados às causas identitárias das minorias em todo o
mundo, o que consolidou de vez o movimento multiculturalista.
Os autores também apresentam quatro tendências para o multiculturalismo,
como podemos ver no quadro a seguir:

Quadro1. Quatro tendências do multiculturalismo.

Defende a construção de uma cultura comum, unitária e nacional, privilegiando a


Multiculturalismo assimilação da cultura tradicional ou majoritária pelas minorias como mecanismo
conservador de integração. Esta concepção afirma a superioridade da cultura tradicional branca
diante das demais culturas.
Parte do pressuposto da igualdade entre os seres humanos, afirmando que uma
cultura não é superior à outra, mas que todas devem conviver de forma harmoniosa,
Multiculturalismo humanista
cada uma podendo manifestar a sua diferença. Enfim, acreditam numa humanidade
liberal comum, universal e neutra, em que as pessoas conquistam os seus espaços em
função de seus próprios méritos.
Encontra-se mais atento aos modos de operar o poder e enfatiza as diferenças
Multiculturalismo liberal de culturais ditadas por questões relacionadas à classe, ao gênero e à sexualidade.
esquerda Acredita que o discurso da igualdade serve para mascarar as diferenças culturais
existentes.
Afirma que as representações de classe, gênero e raça são o resultado das lutas
sociais ampliadas. Além disso, defende a transformação das próprias condições
Multiculturalismo crítico ou sociais e históricas que naturalizam os sentidos culturais. Em outras palavras, esse
de resistência modelo de multiculturalismo está relacionado com a política das diferenças e com o
surgimento de lutas e movimentos sociais contra as sociedades racistas, sexistas ou
classistas
Fonte: Groff; Pagel, 2009, pp. 10-11.

Colonialidade e decolonialidade

O termo colonialidade é bem explicado pelos autores Luiz Fernandes de


Oliveira e Vera Maria Candau (2010), em sua pesquisa, também para o campo
da educação, sobre a garantia de direitos iguais às histórias e culturas que
compõem a nação brasileira e a afirmação de que conteúdos propostos devem
conduzir à reeducação das relações étnico-raciais, por meio da valorização da
história e cultura dos afro-brasileiros e africanos.

Os autores apresentam inicialmente os resultados das pesquisas do grupo


“Modernidade-Colonialidade”, lançando luz às novas produções acadêmicas
que tratam das diferenças étnicas, multiculturalismo e identidades culturais,
e suas contribuições para a discussão das questões étnico-raciais no campo
da educação no Brasil.

O conceito-chave para essa reflexão é a diferença entre colonialismo e


colonialidade, pois são os que influenciam nossas práticas até os dias atuais.

41
Unidade II | Cultura E Sociedade

O colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania


de um povo está no poder de outro povo ou nação, o que constitui a referida
nação em um império.
Já a colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado
do colonialismo moderno, não mais como uma relação formal de poder entre
dois povos ou nações, mas sim ligado à forma como o trabalho, o conhecimento,
a autoridade e as relações se articulam entre si por meio do mercado capitalista
mundial e da ideia de raça.
Além desses, tem-se, também, os seguintes conceitos:
» Colonialidade do poder – invasão do imaginário do outro. O
colonizador destrói o imaginário do outro, invisibilizando-o e
subalternizando-o, enquanto reafirma seu próprio imaginário.
Reprime os modos de produção do conhecimento, os saberes, o mundo
simbólico, as imagens do colonizado e impõe novos, promovendo
o esquecimento de processos históricos não europeus. Pode ser
percebido no conceito de eurocentrismo, que não é um pensamento
apenas europeu, mas dos que foram subalternizados por ele, com a
criação de um fetiche cultural em torno da Europa.
A partir do século XVI, o conceito de raça (que nada tem a ver com processos
biológicos) foi associado à cor, gerando uma divisão racial do trabalho, do
salário, da produção cultural e dos conhecimentos.
» Colonialidade do saber – repressão de outras formas de produção de
conhecimento não europeias, negando o legado intelectual e histórico
dos povos indígenas e africanos, reduzidos à categoria de primitivos
e irracionais. Mignolo aponta para o julgamento e hierarquização
da inteligência e civilização dos povos pelos europeus, tomando
como critério a escrita alfabética. E, posteriormente, a mudança de
avaliação para a história do povo.
» Colonialidade do ser – negação de um estatuto humano para
africanos e indígenas, implantando problemas reais em torno da
liberdade, do ser e da história do indivíduo, subalternizado por uma
violência epistêmica.
» Interculturalidade – processo dinâmico e permanente de relação,
comunicação e aprendizagem entre culturas em condições de respeito,
legitimidade mútua, simetria e igualdade.

42
Cultura E Sociedade | Unidade II

Oliveira e Candau (2010) apresentam também os conceitos de pensamento-outro,


decolonialidade e pensamento crítico de fronteira, para refletir sobre os
processos educacionais. Todos eles são relacionados à valorização das lutas
dos povos historicamente desumanizados e subalternizados para encontrar
outros modos de viver, de poder e de saber.

A pesquisa desses autores deixa certa angústia sobre o quanto ainda falta para
que os objetivos sejam alcançados e, para além do currículo escolar, como
é necessária uma mudança completa de consciência e visão de mundo para
todas as pessoas; pois a nossa própria subjetividade já nasceu contaminada
pelo conceito de colonialidade, que impera em todas as formas de organização
da nossa sociedade.

Ao mesmo tempo que a própria discussão e reflexão já se tornam uma esperança


de que mais e mais pessoas se incomodem e decidam dia a dia, nas pequenas
coisas e simples atos, romper com a essa lógica de dominação e subalternização
dos indivíduos.

Reinaldo Fleuri (2012) acrescenta outro tipo de colonialidade; as já citadas


anteriormente, inspirado na investigação de Catherine Walsh:

» Colonialidade da natureza e da própria vida – a divisão binária


natureza/sociedade se nega à relação milenar entre mundos biofísicos,
humanos e espirituais, descartando o mágico-espiritual-social que
dá sustentação aos sistemas integrais de vida e de conhecimento
dos povos ancestrais. Desacreditar esta relação holística com a
natureza, tecida pelos povos ancestrais, é a condição que torna
possível desconsiderar os modos de ser, de conhecer e de se organizar
destes povos e, assim, subalternizá-los e sustentar a matriz racista
que constitui a diferença colonial na modernidade.

O movimento de decolonização, como sugerem os autores apresentados aqui, é,


portanto, uma busca por superar essa colonialidade do ser, do saber, do poder,
da natureza e da própria vida. São as muitas lutas de grupos e movimentos
sociais em busca da valorização das culturas que foram oprimidas ao longo
dos séculos de exploração e escravização.

43
CAPÍTULO 3
Racismo à moda brasileira

Um dos problemas culturais mais debatidos dos últimos anos no Brasil é o


chamado “racismo estrutural”. Já parou para pensar sobre como o racismo
está presente no seu dia a dia?

Você se considera racista?

Já sofreu ou já praticou o racismo?

Percebe em seus hábitos e cultura práticas racistas? Quais?

O racismo existe ou é só mimimi de gente chata e sem bom humor?

O trecho do livro “Relativizando”, do autor e pesquisador Roberto Damatta,


traz uma importante discussão sobre como se constituiu o racismo no Brasil
e o campo de atuação dos antropólogos brasileiros. Damatta (1987) aprofunda
essas questões levando o leitor a perceber as ideias que estão por trás de fatos
sociais, que parecem naturalmente postos, mas que são bem mais complexos
e sutis e, por isso mesmo, mais eficaz para manter atitudes segregacionistas,
como o racismo. Ele cita a denominação de éter das relações sociais, de Marx,
como explicação:

Os valores e motivações que – como cultura e ideologia – emolduram


e dão sentido às próprias relações sociais e de produção. Deste modo,
quando deixamos de perceber quando as ideias passam a ser atores
em certas situações sociais, seja porque atuam para desencadear a
ação, seja para impedir certas condutas, deixamos de penetrar no
mundo social propriamente dito e, assim fazendo, corremos o risco
de cair na postura teórico-formal e, com ela, no plano abstrato das
determinações (DAMATTA, 1987, p.60).

Segundo Damatta (1987), a justificativa fundada na Igreja e no catolicismo foi


o que deu direito à exploração de terra e à escravização de índios e negros no
Brasil. A religião era o principal motor para girar o movimento de expansão
de Portugal, bem como para manter a hierarquização social. Na época da
colonização do Brasil, Portugal era tão hierarquizada que existiam leis para
garantir o modo de uma pessoa se dirigir a outra, deixando explícita a que
categoria se pertencia e sendo passível de punição para quem desrespeitasse
tal sistema.

44
Cultura E Sociedade | Unidade II

O rei e o clero eram o topo da sociedade e prevaleciam sobre todas as outras


partes, e nem mesmo os comerciantes tinham liberdade para ser uma categoria
individualizada e consciente de sua classe, pois eram ligados ao rei por títulos
de nobreza e deviam à Coroa satisfações de seus interesses e ações. Essa mesma
estrutura de sociedade foi trazida à colônia brasileira, fazendo perpetuar o
sistema de hierarquias que não considerava a igualdade como valor para a
construção da sociedade, mesmo após a Independência de Portugal.

Devido a isso, Damatta (1987) explica que o racismo brasileiro tem sua origem
nesse sistema profundamente hierarquizado, que se manteve do descobrimento
até o início das guerras de Independência e, a partir daí, houve uma reorientação
dos sistemas de hierarquia no Brasil. “Se antes a elite podia colocar todo o
peso dos erros e das injustiças sobre o Rei e a Coroa Portuguesa em Lisboa, a
partir da Independência, esse peso tinha que ser carregado aqui mesmo, pela
camada superior das hierarquias sociais” (DAMATTA, 1987, p. 62).

Surge, então, o mito de que o Brasil era constituído por três raças: índios,
negros e brancos. O pesquisador relembra Thomas Skidmore (1976) que
afirmava que o marco histórico das doutrinas raciais brasileiras é o período
que antecede a Proclamação da República e a Abolição da Escravatura, gerando
um momento de crise nacional.

A Abolição se tornou uma ameaça ao sistema econômico e social do país, e foi


preciso uma nova ideologia para sustentar as hierarquias vigentes, uma vez
que o catolicismo e o formalismo jurídico não cumpririam mais essas funções.
Dessa forma, observa-se o projeto reacionário que se seguiu, como forma de
manter o status quo, em que os escravos eram libertados, porém, não tinham
condições de se libertar social e cientificamente. Além disso, a fábula das três
raças possibilitava enxergar a sociedade brasileira como singular, por meio
de um encontro harmonioso das três raças:
Se no plano social e político o Brasil é rasgado por hierarquizações e
motivações conflituosas, o mito das três raças une a sociedade num
plano biológico e natural, domínio unitário, prolongado nos ritos
de Umbanda, na cordialidade, no carnaval, na comida, na beleza da
mulher (e da mulata) e na música (DAMATTA, 1987, p. 63).

Damatta (1987) também apresenta as fontes eruditas do racismo, ou seja,


as teorias evolucionistas cientificamente respeitadas. Como no caso do
imperialismo, em que o racismo é a justificativa natural para a supremacia

45
Unidade II | Cultura E Sociedade

dos povos da Europa Ocidental sobre o resto do mundo; e nas ideias de


pesquisadores como Agassiz, Buckle, Gobineau e Couty que classificavam
o futuro do Brasil como duvidoso devido ao fato de a população ser uma
conjunção racial entre negros, brancos e índios, formando mestiços indesejados.
O autor revela que essas teorias foram bem aceitas e difundidas por partirem
de pressupostos simples:

» cada raça ocupa certo lugar na história da humanidade; biologicamente


as raças eram espécies altamente diferenciadas e a “cruza” entre elas
resultava em um tipo indefinido, híbrido, deficiente de energia
física e mental que apagava rapidamente as melhores qualidades do
branco, negro e do índio;

» as diferenciações biológicas são vistas como tipos acabados e cada


tipo está determinado em seu comportamento e mentalidade pelos
fatos intrínsecos ao seu componente biológico. Gobineau fez um
esquema das raças humanas apresentando a diversidade moral e
intelectual das raças e, logicamente, a raça branca era apresentada
como superior. Ao mesmo tempo em que afirmava que cada raça
tinha tendência a certos poderes, instintos e aspirações que nunca
mudariam se a raça permanecesse pura. (Base para a ideia de raça
pura ariana, pois esse esquema demonstrava que no Brasil o branco
estava perdendo suas qualidades para o índio e para o negro).

Damatta (1981) ainda recupera as relações sociais no Brasil e o sistema desigual


que se instalou, no qual ninguém é igual a ninguém, nem entre si e nem perante
a lei. Senhores poderiam ser diferenciados pelo sangue, nome, dinheiro,
títulos, propriedade, educação, relações pessoais passíveis de manipulação etc.;
enquanto que escravos, criados ou subalternos, também eram diferenciados
em diversos critérios.

Dessa forma, a segregação acontece “sutilmente” por causa das relações sociais,
derivada da patronagem, intimidade e consideração. A ausência de valores
igualitários permite que negro, índio e branco tenham cada um o seu lugar, mas
possam assumir posições diferentes de acordo com as relações que estabelecem
entre si, sempre verticalmente, e excluindo mais claramente apenas aqueles
que não possuem relações sociais em determinado meio.

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Cultura E Sociedade | Unidade II

Assim, o autor faz uma comparação entre o racismo nos EUA e no Brasil, sendo
o primeiro caracterizado pela origem (uma vez que se tenha uma gota de sangue
negro não se pode mudar de posição jamais, ainda que seja tratado como igual
perante a lei), e o segundo caracterizado pelas gradações e nuances, um racismo
de marca (o brasileiro pode sofrer mais na medida em que sua pele é mais escura
e, principalmente, pelo poder econômico ou político que dispõe).
Essa e outras características da divisão de raças no Brasil permitiu que se
criassem ideologias, mediações religiosas, e relações sociais controversas e
conciliadoras, de modo a evitar a todo custo o conflito e o confronto.
Enfim, Damatta esclarece que, no Brasil, abriu-se mão de estudar as relações
entre as raças para focar nas raças em si mesmas, o que cria um problema sem
solução uma vez que mistura biologia com sociedade e cultura, impedindo
o autoconhecimento e reflexão. Por isso, ele propõe uma reflexão sobre a
antropologia crítica, como forma de reconhecer que essa discussão é questão
de ideologia social e, a partir daí, voltar a atenção para o estudo do social e
histórico, a fim de buscar caminhos para superar o racismo brasileiro.
Historicamente, o Brasil passou por um processo de colonização por parte de
europeus que escravizaram legalmente índios e negros durante três séculos
e as diferenças de raça e cor, renda e tipos de ocupação de trabalho desde
então têm sido utilizadas para marcar e excluir quem não pertence ao grupo
considerado dominante, detentor de poder político e econômico.

Figura 8. Protesto contra o racismo.

Foto: https://br.freepik.com/fotos-gratis/lutador-negro-americano_11105864.htm#page=1&query=racismo&position=23.

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Unidade II | Cultura E Sociedade

Essas diferenças que são usadas como marcadores para definir quem é normal e
quem é diferente são a origem do estigma. O assunto se torna mais complexo se
pensarmos que, quanto mais marcadores, ou categorias de diferenças, puderem
ser utilizados para classificar uma pessoa, mais diferente e estigmatizada
ela se tornará. E mais consequências sofrerá. É o que designa o fenômeno
conhecido como “interseccionalidade”, cuja origem nos EUA na década de
1970 é explicada por Patricia Hill Collins (2017, p.2):
A publicação de 1982 do Coletivo Combahee River (pequeno
grupo de mulheres afro-americanas de Boston) do manifesto Black
FeministStatement trouxe uma perspectiva que considerasse somente
a raça ou outra com somente o gênero avançariam em análises
parciais e incompletas da injustiça social que caracteriza a vida das
mulheres negras afro-americanas, e que raça, gênero, classe social
e sexualidade, todas elas, moldavam a experiência de mulher negra.
O manifesto propunha que os sistemas separados de opressão, como
eram tratados, fossem interconectados. Porque racismo, exploração
de classe, patriarcado e homofobia, coletivamente, moldavam a
experiência de mulher negra, a libertação das mulheres negras exigia
uma resposta que abarcasse os múltiplos sistemas de opressão.

Collins (2017) destaca que as mulheres negras perceberam que jamais


conquistariam a liberdade sem notar sua raça, classe e gênero, porque cada
uma delas era atravessada por “múltiplos sistemas de poder que afetam suas
vidas”, assim como num ponto de intersecção onde se cruzam linhas, planos
e superfícies. O conhecimento compartilhado pelas mulheres negras em suas
lutas políticas é fundamental para compreender os muitos sistemas de poder
que cruzam também a vida de todos nós, mas muito especialmente, a vida das
pessoas com a pele preta.

O professor e doutor Kabengele Munanga (2004) fez um levantamento histórico


sobre o surgimento da palavra raça, o seu significado e a aplicação ao longo
dos séculos até chegar no entendimento atual sobre o termo. Ele explica que
os naturalistas dos séculos XVIII e XIX foram os primeiros a apresentar esse
conceito:
[...]se deram o direito de hierarquizar, isto é, de estabelecer uma
escala de valores entre as chamadas raças. O fizeram erigindo uma
relação intrínseca entre o biológico (cor da pele, traços morfológicos)
e as qualidades psicológicas morais, intelectuais e culturais. Assim,
os indivíduos da raça “branca” foram decretados coletivamente

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Cultura E Sociedade | Unidade II

superiores aos da raça “negra” e “amarela” em função de suas


características físicas hereditárias tais como a cor clara da pele, o
formato do crânio (dolicocefalia), a forma dos lábios, do nariz, do
queixo etc., que segundo pensavam os tornam mais bonitos, mais
inteligentes, mais honestos, mais inventivos etc., e consequentemente
mais aptos para dirigir e dominar as outras raças, principalmente, a
negra mais escura de todas e consequentemente considerada como a
mais estúpida, mais emocional, menos honesta, menos inteligente e
portanto a mais sujeita à escravidão e a todas as formas de dominação
(MUNANGA, 2004, p. 5).

De acordo com Munanga (2004), essa hierarquização das raças foi desconsiderada
pelos geneticistas e biólogos moleculares da contemporaneidade porque
não fazem sentido na ciência. As variações físicas, genéticas, morfológicas
e comportamentais são apontadas pelos estudiosos como resultado de um
fenômeno adaptativo indispensável às espécies humana e animal, que mudam
de acordo com as características do lugar em que habitam (clima, fauna, flora,
geografia etc.) para garantir sua sobrevivência. Não há nessa diferenciação
nenhum tipo de valor que classifique as espécies em inferiores ou superiores,
boas ou más. No entanto, o autor demonstra que essa crendice antiga na
hierarquia das raças é uma expressão do racismo, ou seja, uma atitude baseada
em ideologia política que revela a relação de poder e de dominação entre os
povos:
O racista cria a raça no sentido sociológico, ou seja, a raça no
imaginário do racista não é exclusivamente um grupo definido pelos
traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços
culturais, linguísticos, religiosos etc, que ele considera naturalmente
inferiores ao grupo a qual ele pertence. De outro modo, o racismo
é essa tendência que consiste em considerar que as características
intelectuais e morais de um dado grupo, são consequências diretas
de suas características físicas ou biológicas (MUNANGA, 2004, p. 8).

Ângela Davis (2018) relembrou que o racismo já foi abolido das leis e os
aparatos de segregação como o “apartheid” foram dissolvidos, no entanto, a
lógica racista permanece de forma muito mais ampla e de forma estrutural nas
sociedades contemporâneas, especialmente, por meio do controle de imagens
que apresenta as pessoas negras em posições subalternas ou associando-as à
feiura ou violência.
Há também o impacto na psique, e é aí que entra a persistência dos
estereótipos. Os modos como, ao longo de um período de décadas
e séculos, as pessoas negras vêm sendo desumanizadas, ou seja,

49
Unidade II | Cultura E Sociedade

representadas como menos do que humanas e, portanto, o caráter


político da maneira como a população negra é retratada por meio
da mídia, por meio de outras formas de comunicação, que entra em
jogo nas interações sociais tem igualado pessoas negras a pessoas
criminosas. Então, não é difícil entender como esses estereótipos
persistem por tanto tempo (DAVIS, 2018, p. 45).

Bell Hooks (2019, p. 35) ressalta que a disputa por controlar as próprias imagens
e narrativas é extremamente dolorosa, porque “a dor de aprender que não
podemos controlar nossas imagens, como nos vemos ou como somos vistos,
é tão intensa que isso nos estraçalha. Isso destrói e arrebenta as costuras de
nossos esforços de construir o ser e de nos reconhecer”. E continua:
Muitas pessoas negras se recusam a avaliar nossa condição presente
porque elas não querem ver as imagens que podem forçá-las a militar.
Mas a militância é uma alternativa à loucura. […] as pessoas negras
se afastam da realidade porque a consciência é dolorosa demais. No
entanto, só nos tornamos mais conscientes quando começamos a
ver com clareza (HOOKS, 2019, p. 39).

Assista ao documentário disponível no YouTube intitulado “Through a


lensdarkly: blackphotographersandtheemergenceof a people”, do diretor e
pesquisador Thomas Allen Harris (2014). Ele conta a história de fotógrafos
negros e o surgimento do povo negro nos Estados Unidos, relacionando o
racismo com o controle da produção de imagens, arte e propaganda.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=THZWSexAjgk.

Branquitude
O documentário de Thomas Allen Harris (2014)“Through a lensdarkly: Black
photographersandtheemergenceof a people”me marcou de diversas formas, mas
especialmente por um dos questionamentos iniciais que ele faz ao apresentar
fotografias de sua infância e memórias de seu pai. Ele relata sobre um momento
em que seu pai o interpela dizendo que as pessoas do lado de fora irão olhar
para ele e enxergá-lo como um macaco.

Então, ele reflete: “Eu senti vergonha, pela cor da minha pele, meu cabelo,
meus lábios, meu nariz. Quem olharia para mim e veria não um garotinho,
mas um macaco?”. Essa cena ficou gravada na minha memória, e me lembrei
dela quando li um artigo publicado no Jornal The New York Times, em 17 de
julho de 2019, pela poetisa jamaicana e professora Claudia Rankini.

50
Cultura E Sociedade | Unidade II

No artigo, ela relata sobre as situações em que quis perguntar aos homens
brancos ao seu redor o que eles pensavam sobre seu privilégio de cor, mas
sentiu-se intimidada. Como, por exemplo, quando ela estava em uma fila
da primeira classe no aeroporto e dois homens brancos entraram em sua
frente. Ao informá-lo de que ele estava desrespeitando sua posição na fila,
o homem saiu sem se desculpar e ficou tecendo comentários irônicos sobre
não saber mais quem estaria nos lugares tradicionalmente frequentados
por pessoas brancas.

Rankini esclarece que esse interesse foi motivado pela preparação de suas
aulas sobre “whiteness”, que aqui chamo de “branquitude”. Mais do que uma
questão de privilégio das pessoas brancas em detrimento de pessoas negras,
os estudos indicam que a branquitude é mais um sistema simbólico complexo
de dominação branca sobre as demais raças.

Ainda que autores como Munanga (2004) apontem que o conceito de raça já
foi descartado cientificamente, sob a perspectiva sociológica, a diferenciação
étnica entre seres humanos ainda acontece de forma a favorecer, nos mais
diversos aspectos da vida (econômicos, culturais, jurídicos, religiosos etc.),
as pessoas brancas.

Lourenço Cardoso (2010) apresenta em um breve resumo os principais


pesquisadores das teorias das relações raciais e justifica a necessidade da
investigação sobre a identidade racial branca, uma vez que estudar apenas o
papel do oprimido não é suficiente para combater o racismo, mas é necessário
que se analise na relação entre opressor e oprimido o papel do branco opressor
que mantém a desigualdade racial. “A branquitude procura se resguardar numa
pretensa ideia de invisibilidade, ao agir assim, ser branco é considerado como
padrão normativo único” (CARDOSO, 2010, p. 611).

Ele esclarece que a branquitude é um conceito para explicar um lugar de


privilégios exercidos simbolicamente, subjetivamente e objetivamente que
resulta em materiais concretos, reforçando as estruturas sociais de discriminação
racial e o racismo.

Liv Sovik (2009) explica que o conceito de branquitude é na verdade um atributo


de pessoas que estão nos lugares mais altos da pirâmide social, que, na prática
cotidiana, coloca a aparência como condição suficiente para determinar os
lugares que serão ocupados pelos atores sociais nessa dinâmica.

51
Unidade II | Cultura E Sociedade

A branquitude mantém uma relação complexa com a cor da pele,


formato do nariz e tipo de cabelo. Complexa porque ser mais ou menos
branco não depende simplesmente da genética, mas do estatuto social.
Brancos brasileiros são brancos nas relações sociais cotidianas, é na
prática – é a prática que conta – que são brancos. A branquitude é um
ideal estético herdado do passado e faz parte do teatro de fantasias da
cultura de entretenimento. [...] O valor da branquitude se realiza na
hierarquia e na desvalorização do ser negro, mesmo quando “raça”
não é mencionada. A linha de fuga pela mestiçagem nega a existência
de negros e esconde a existência de brancos (SOVIK, 2009, p. 50).

Um dos principais pontos da pesquisa de Sovik (2009) é o apontamento


sobre como a branquitude é, principalmente, uma questão estética. Ou seja,
não se trata de uma abordagem sobre raça de forma biológica ou genética,
nem sobre lugar de fala. Para a autora, falar de branquitude no Brasil é falar
sobre imagens e, por isso, a principal forma de observação da branquitude
é a observação dos meios de comunicação, pois é no controle da produção
de múltiplas imagens e discursos sobre a miscigenação e mistura de raças no
Brasil que se dá a manutenção do poder de pequenos grupos dominantes.
“Ser branco, neste país arco-íris, é uma espécie de aval, um sinal de que se
tem dinheiro, mesmo quando não existem outros sinais, é andar com fiador
imaginário a tiracolo, é não se sentir constrangido em estabelecimentos
comerciais” (SOVIK, 2009, p. 38).

Outro estudo muito importante que fundamenta essa pesquisa foi desenvolvido
por Lia Schucman, Mandelbaum e Fachim (2017), sobre a negação da raça
em famílias interraciais. Os pesquisadores investigaram como esses grupos
experimentam e criam estratégias de negociação, legitimação, construção e
desconstrução dos significados de raça e, especialmente, como os membros
negros vivenciam o racismo no âmbito familiar.

Nesse estudo, eles citam a pesquisa de Mandelbaum (2008, p.19) sobre como
a família se constitui em um campo entre a realidade social e a vida psíquica.
“Toda família constitui um microcosmo fincado nas intermediações entre a
esfera social e individual, o público e o privado, o real e a representação, o
biológico e o cultural”.

Eles entrevistaram membros de famílias interraciais e descobriram que a


principal característica da branquitude se dá na forma como as pessoas se
relacionam nesse grupo afetivo, com os brancos negando a possibilidade de

52
Cultura E Sociedade | Unidade II

existência dos outros. Nega-se a origem negra, esquecem as memórias e pessoas


negras da família, enquanto lembram-se e celebram os ancestrais brancos, os
familiares de descendência italiana etc.

Pessoas negras são chamadas de morenas, mulatas, escurinhas, mas nunca como
pessoas pretas. Os membros brancos dessas famílias não enxergam as pessoas
como negras e tentam, a todo custo, apagar qualquer traço de negritude que
possuam.
Negar esta origem pode significar distintas coisas. A primeira é a
tentativa de se distanciar de tudo que representa ser negro em uma
sociedade racista como a brasileira. Ao se distanciar da representação
do negro, o sujeito retira quem ama – filho, marido – do grupo dos
negros e mantém a representação negativa do negro intacta. Ou seja,
ao negar a negritude ao “outro” com quem se relaciona, mantém e
legitima os significados negativos construídos em nossa sociedade
sobre o negro sem precisar rever, ressignificar e desconstruir o
racismo em que foi socializada (SCHUCMAN; MANDELBAUM;
FACHIM, 2017, p.449).

As pessoas não brancas das famílias interraciais relataram aos pesquisadores


vários episódios de sofrimento psíquico relacionados a essa negação de
suas identidades, a ponto de se sentirem inadequadas, feias, incapazes ou
insuficientes. “Suas consequências podem ser brutais para o psiquismo de
quem nasce e cresce com a ambiguidade de uma mãe que ama seu filho e, ainda
assim, violenta-o” (SCHUCMAN; MANDELBAUM; FACHIM, 2017, p.450).

Figura 9. Divulgação do documentário de Thomas Harris.

Fonte: https://richmondmuseum.org/event/screening-of-through-a-lens-darkly-black-photographers-and-the-emergence-of-a-people/.

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Unidade II | Cultura E Sociedade

Assista ao vídeo da palestra de ChimamandaAdichie no TED: Os perigos de


uma história única, para entender mais sobre o poder das narrativas nas
culturas. A palestrante é uma escritora nigeriana da literatura africana.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=D9Ihs241zeg.

Vale também assistir à palestra da antropóloga Lia Schucman no TEDxFloripa,


em que ela explica mais sobre o conceito de branquitude a luta antirracista.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=q6tSIHzpFTc.

Rotimi Fani-Kayode é um fotógrafo e artista nigeriano, vindo de uma família


Iorubá que usou sua arte para lançar um novo olhar e fazer críticas à maneira
como a cultura ocidental apresenta os homens negros, associando-os sempre
auma figura de masculinidade hétero sexual e virilidade. Ele apresenta um
ensaio sensível no qualmostra a si próprio e a outros homens nus transitando
entre conceitos outros de masculinidade e homoerotismo. A seguir algumas
fotos do artista, disponível em: http://www.afreaka.com.br/notas/fani-
kayode-sensibilidade-e-transgressao-na-fotografia-homoerotica-africana/.

Figura 10. Foto de Fani-Kayode.

Fonte: http://www.afreaka.com.br/notas/fani-kayode-sensibilidade-e-transgressao-na-fotografia-homoerotica-africana/.

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Cultura E Sociedade | Unidade II

Figura 11. Foto de Fani-Kayode.

Fonte: http://www.afreaka.com.br/notas/fani-kayode-sensibilidade-e-transgressao-na-fotografia-homoerotica-africana/.

Figura 12. Foto de Fani-Kayode.

Foto: http://www.afreaka.com.br/notas/fani-kayode-sensibilidade-e-transgressao-na-fotografia-homoerotica-africana/.

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Unidade II | Cultura E Sociedade

Figura 13. Foto de Fani-Kayode.

Foto: http://www.afreaka.com.br/notas/fani-kayode-sensibilidade-e-transgressao-na-fotografia-homoerotica-africana/.

Figura 14. Foto de Fani-Kayode.

Foto: http://www.afreaka.com.br/notas/fani-kayode-sensibilidade-e-transgressao-na-fotografia-homoerotica-africana/.

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CULTURA EM
TRANSIÇÃO UNIDADE III

Como aprendemos até aqui, a cultura não é estática e imutável, mas está em
constante evolução, associada às transformações que ocorrem na sociedade.
Nesta unidade, conheceremos um pouco mais sobre as dinâmicas que promovem
mudanças sociais e os atores que a colocam em movimento. No capítulo 1,
abordaremos os movimentos sociais e suas lutas por direitos. Em seguida,
trataremos sobre questões de gênero e afetividade. No terceiro capítulo,
veremos sobre as transformações causadas pela evolução da tecnologia.

CAPÍTULO 1
Movimentos sociais e a transformação
da cultura

Axel Honneth (2003), baseado nos estudos de Hegel e Mead, propôs uma
Teoria do Reconhecimento, que associa o início dos conflitos sociais aos
sentimentos coletivos de injustiça. Para ele, um indivíduo se constitui e constrói
sua identidade por meio da experiência que faz em suas relações primárias,
com a sociedade e com a comunidade a qual pertence, com o amor, o direito
e a solidariedade.
O nexo existente entre a experiência de reconhecimento e a relação
consigo próprio resulta da estrutura intersubjetiva da identidade
pessoal: os indivíduos se constituem como pessoas unicamente porque,
da perspectiva dos outros que assentem ou encorajam, aprendem
a se referir a si mesmos como seres a que cabem determinadas
propriedades e capacidades. A extensão dessas propriedades e, por
conseguinte, o grau da autorrealização positiva crescem com cada
nova forma de reconhecimento, a qual o indivíduo pode referir a si
mesmo como sujeito: desse modo, está inscrita na experiência do amor
a possibilidade da autoconfiança, na experiência do reconhecimento
jurídico, a do autorrespeito e, por fim, na experiência da solidariedade,
a da autoestima (HONNETH, 2003, p.272).

57
Unidade III | Cultura Em Transição

Vamos tomar como exemplo neste capítulo as manifestações culturais dos


anos 1960 e 1970, enfatizando a relação dos jovens e estudantes, agentes
culturais, com as questões da época. As manifestações vinculavam-se a ideais
políticos e culturais. O golpe militar de 1964 trouxe mudanças para a sociedade
e política, instaurando um clima de censura e repressão. Os estudantes, os
movimentos sociais e políticos de artistas e intelectuais sofreram com a ação
repressiva do Estado.

Uma característica que merece destaque nas organizações de estudantes


jovens e protestos culturais é a forma como esses grupos se articulam em
defesa de uma causa coletiva. Assim como Honneth (2003) propõe, é possível
perceber que eles fazem individualmente a experiência do desrespeito aos seus
direitos e encontram na coletividade a solidariedade que ajuda a restaurar
sua autoestima. Então, fortalecidos nesse grupo, eles começam a criar ações
e lutar por reconhecimento.

As manifestações culturais dos anos 1960 e 1970 refletiram o espírito de uma


época de intensa contestação dos padrões sociais, das influências estrangeiras
na cultura, de uma geração de jovens que buscavam liberdade por meiode
ideais contraculturais, políticos e revolucionários. No mundo todo, estes
anos foram marcantes em termos de mobilização social e cultural. A música,
a literatura, o cinema e os movimentos sociais no Brasil foram atingidos por
este clima efervescente de mudança e conquista por uma cultura nacional e
liberdade em diversos âmbitos.

Entre as transformações sociais em curso nestes anos, acompanhadas e


reivindicadas pelos inúmeros movimentos sociais que cresceram em termos
de mobilização e contingente nos anos 1960, relacionam-se as transformações
no campo da cultura, na forma como era encaminhada e concebida a cultura
brasileira.

A discussão que se configurou no Brasil no início desta década pautava-se no


debate por uma ideologia nacionalista, tentando criar uma cultura nacional-
popular. Grande parte dos movimentos culturais deste período possuía vínculos
com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a ideia de “nacional-popular” era
concebida como um resgate das origens daquilo que seria o povo brasileiro.

Este, conforme as avaliações do PCB, encontrava-se sob domínio do


imperialismo e do sistema capitalista. Logo, caberia à arte e à cultura a tarefa
de conscientização e de resgate da cultura genuinamente brasileira.

58
Cultura Em Transição | Unidade III

A interpretação daquilo que seria nacional-popular, de uma cultura nacionalista


pela esquerda, fundamentava-se na luta anti-imperialista. A revolução traria
o fim da cadeia de exploração capitalista, fazendo emergir a ditadura do
proletariado e também a cultura do povo brasileiro. E, para que emergisse
essa cultura nacional-popular, era necessário levar arte ao povo. O Teatro
de Arena sob a direção de Augusto Boal procurou cumprir este papel e criar
uma identidade própria.

O Teatro de Arena caracterizou-se como teatro “revolucionário”, propondo


a discussão da realidade brasileira, levantando inúmeras questões em suas
peças. O operário, a empregada doméstica, em suma, o trabalhador, eram os
personagens principais, sendo encenadas suas vidas, contadas suas histórias.

O Arena seguia um viés à esquerda, tentando conscientizar a população e


levar arte aos que não tinham oportunidade de ir ao teatro. “Eles não
usam Black-tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, pela primeira vez retratava o
cotidiano e os conflitos de um operário. A peça inaugurou este espírito de arte
voltada para o povo que seria seguido pelo Centro Popular de Cultura (CPC),
criado em 1961, na cidade do Rio de Janeiro, por iniciativa de Oduvaldo Viana
Filho, o Vianinha, Carlos Estevam Martins e Leon Hirszman.

O CPC também possuía vínculos com o PCB. Inclusive, alguns dos seus
integrantes como Ferreira Gullar e Cacá Diegues – e, mais adiante,
Vianninha– chegaram a criticar a exagerada postura à esquerda de Carlos
Estevam. Tais críticas transcorriam sobre a banalização da forma de
fazer teatro e da arte para que esta chegasse às massas de uma forma mais
compreensível, menos rebuscada. Para Carlos Estevam e o CPC, quanto
mais próxima da linguagem popular, mais a arte seria revolucionária e
atingiria seu público-alvo.

Vianninha e Carlos Estevam propunham que as peças do CPC fossem encenadas


em qualquer local: na rua, no pátio da fábrica, nas escolas etc. Isto significava
atingir realmente as massas, sem a necessidade da cobrança de ingressos e do
limite de público. Esta era uma limitação que enxergavam no Arena, cujas
temáticas das peças eram revolucionárias, porém a plateia ainda eram as
camadas intermediárias da sociedade.

A ideologia do CPC foi sendo estruturada com base no pensamento de alguns


intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) acerca da

59
Unidade III | Cultura Em Transição

importação de valores culturais de países como os EUA, os quais tinham forte


influência econômica e cultural no Brasil. Era preciso encontrar as raízes
da cultura brasileira para que pudéssemos superar a influência de culturas
estrangeiras e criar uma identidade nacional.

Retomando as questões relacionadas à cultura, o romantismo revolucionário


e o nacional-popular também estiveram presentes no Cinema Novo que se
consagrou como um cinema revolucionário, engajado e que teve um papel
importante nos anos 1960, repercutindo principalmente entre os jovens.
No Cinema Novo, destacaram-se os cineastas Cacá Diegues, Glauber Rocha,
Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra entre outros.

O filme “Vidas Secas” (1963), de Nelson Pereira dos Santos, retratava a seca
no sertão nordestino e “Deus o Diabo na terra do sol” (1964), de Glauber
Rocha, revelava a exploração do camponês e do trabalhador rural nordestino.
Destaque também para “Os Fuzis” (1964), de Ruy Guerra, “Cinco Vezes
Favela” (1962), de Cacá Diegues e “Cabra marcado pra morrer” (1964), de
Eduardo Coutinho, os dois últimos produzidos pelo CPC. O CPC foi bastante
criticado pelos cineastas com relação à instrumentalização política da arte e
ao rebaixamento da estética artística.

Para os artistas do CPC e, principalmente, para Carlos Estevam, a arte deveria


ser popular e revolucionária, deveria tratar das questões relativas ao povo e
também conscientizá-lo da sua condição de classe revolucionária. Em suma,
havia uma correlação entre arte e política e somente a arte engajada, com o fim
de educar o povo, era tida como relevante para o CPC. No entanto, o maior
problema enfrentado pelos cepecistas foi justamente a distância entre o artista
e o público. Como falar sobre ou para o povo se os artistas não pertenciam
a ele? Se eles próprios eram integrantes de uma classe distanciada do povo?

Toda a discussão suscitada pelo período criativo dos anos 1960 contribuiu
significativamente para que fosse pensada uma cultura nacional. Porém, este
debate era restrito à massa intelectualizada das camadas intermediárias da
sociedade. Podemos discutir isto tomando como exemplo os estudantes.

O Movimento Estudantil (ME) se organizou contra a ditadura pela defesa


da classe trabalhadora, por melhores condições de vida, pelo fim de todo
tipo de censura etc. Havia uma preocupação entre as organizações políticas
presentes no ME em direcioná-lo para o povo, em fazer com que os estudantes
se engajassem junto à classe trabalhadora.

60
Cultura Em Transição | Unidade III

O “processo de proletarização” visava educação das massas e procurava


estabelecer uma possível identificação entre os estudantes e os trabalhadores. O
“processo de proletarização” trazia em seu bojo esta necessidade de aproximar
os militantes das organizações e partidos políticos dos trabalhadores para que
a própria organização fosse tida como acessível e aberta a eles também.

Entre os estudantes, o ambiente sempre foi de muita discussão, no qual se


ouviam os melhores compositores e se assistiam os melhores filmes. Tudo o que
era produzido no campo da cultura era divulgado e apreciado pelos estudantes,
em sua imensa maioria de origem pequeno-burguesa. Esta arte, esta cultura
consumida por esta parcela intelectualizada, deveria ser direcionada ao povo,
pois ela tinha um caráter emancipador, à medida que podia ser utilizada para
este fim.

61
CAPÍTULO 2
Cultura da convergência

O principal autor sobre esse tema se chama Henry Jenkins. Ele é um dos
pesquisadores mais influentes na atualidade, e seus estudos são sempre
lembrados em provas de concurso e textos acadêmicos. Henry Jenkins nasceu
em Atlanta, nos EUA, tem 62 anos de idade e é professor de Comunicação,
Jornalismo e Artes Cinematográficas na Universidade do Sul da Califórnia
desde 2009. Durante os anos de 1993 e 2009, ele foi diretor do Programa de
Estudos de Mídia Comparada do MIT (Massachusetts Instituteof Technology)
e já tem 14 livros publicados. Um deles se tornou best-seller nos estudos de
comunicação: “Cultura da Convergência” (2006).

A inovação deste livro se deve ao termo, cunhado pelo autor, que dá nome ao
livro. Durante a época histórica de avanços tecnológicos, Jenkins começou
a refletir sobre como essas mudanças impactariam nos processos culturais
e nas formas de produção dos canais de comunicação da mídia tradicional e
das mídias corporativas. Ele previu uma transformação midiática baseada na
convergência, em que as várias formas midiáticas antigas colidiriam umas com as
outras em uma nova forma de relacionamento entre produtores de informação
e consumidores de informação, negociando de maneiras imprevisíveis.

Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de


múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos
mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos
dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca
das experiências de entretenimento que desejam. [...] No mundo
das convergências das mídias, toda história importante é contada,
toda marca é vendida e todo consumidor é cortejado por múltiplas
plataformas de mídia (JENKINS, 2009, p. 29).

Ao abordar a questão da convergência, Jenkins não se referia às mudanças


tecnológicas que permitiram agrupar várias funções em um único aparelho.
É comum pensarmos logo no celular e sua capacidade de armazenar várias
funcionalidades, tais como a capacidade de fazer ligações, enviar mensagens
off-line e on-line, fotografar e filmar, editar vídeos etc.

Porém, ele vai além desse senso comum propondo que a convergência significa,
na verdade, uma transformação cultural na forma como as pessoas consomem

62
Cultura Em Transição | Unidade III

informações e estabelecem conexões entre conteúdos difundidos em mídias de


naturezas distintas. “A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores
individuais e em suas interações sociais com outros” (JENKINS, 2009, p.30).

Para entender a cultura da convergência, Jenkins sugeriu o estudo de três


termos chaves: convergência, inteligência coletiva e participação. Vamos
explicar cada uma delas, de acordo com o autor.

Convergência

Na convergência, o conteúdo é compartilhado por meio de múltiplas plataformas


midiáticas. Para exemplificar, Jenkins (2009) relembra o caso de uma imagem
editada no photoshop com a fotografia de Bin Laden e de um personagem de
um desenho de animação. Ele apresenta o circuito de compartilhamento que
a imagem percorreu:

Primeiro, foi publicada em um site da internet como uma brincadeira – depois,


em um país do Oriente Médio, uma pessoa fez uma busca por imagens do Bin
Laden para imprimir em camisetas, cartazes e pôsteres durante manifestação
contra ação dos EUA – pessoas que não conheciam o personagem compram
porque acham interessante e passam a usar – Repórteres da CNN filmam
protestos em que pessoas levantam essas imagens em cartazes –pessoas em
diversos países assistem na televisão as matérias jornalísticas e veem a imagem.

Com isso, ele quer dizer que um conteúdo que antes seria transmitido por
apenas uma determinada mídia agora tem a possibilidade de fluir, de ser
distribuído em diversos canais distintos. Se fosse, por exemplo, exibido em
um jornal na televisão, esse conteúdo ficaria restrito ao alcance daquele sinal
e aos telespectadores que estivessem assistindo no momento.

Com a convergência, o conteúdo pode ser replicado de inúmeras formas nos


mais variados meios de comunicação (no exemplo do autor: site, gráfica,
cartazes, camisetas, pôsteres, jornais de alcance global etc.), que podem ser
acessados por um número infinitamente maior de pessoas, de múltiplas formas,
em diversos lugares e tempos distintos.

63
Unidade III | Cultura Em Transição

Figura 15. Relacionamento na cultura da convergência.

Foto: https://br.freepik.com/fotos-gratis/icones-de-notificacao-movel-entre-homem-e-mulher-usando-telefone-celular_2611196.htm.

Esse termo revela um aspecto da comunicação que entra em transformação, pois


o público passa a poder se apropriar do conteúdo, modificá-lo e redistribuí-lo de
várias maneiras. É o que os estudiosos indicam como um processo de democratização
da comunicação, em que mais pessoas têm acesso a mais informações e tornam-se
também produtoras de conteúdo. Porém, Jenkins observa essa democratização
com crítica, pois o que ele vê na prática é que essas mudanças não são conduzidas
pelo público e, sim, pelos grupos detentores de poder econômico.
A indústria midiática está adotando a cultura da convergência por
várias razões: estratégias baseadas na convergência exploram as
vantagens dos conglomerados; a convergência cria múltiplas formas
de vender conteúdos aos consumidores; a convergência consolida
a fidelidade do consumidor, numa época em que a fragmentação
do mercado e o aumento da troca de arquivos ameaçam os modos
antigos de fazer negócios. Em alguns casos, a convergência está
sendo estimulada pelas corporações como um modo de moldar o
comportamento do consumidor. Em outros, a convergência está
sendo estimulada pelos consumidores, que exigem que as empresas
de mídia sejam mais sensíveis a seus gostos e interesses (JENKINS,
2009, p. 326).

A convergência, portanto, é uma nova forma de distribuição e compartilhamento


de conteúdos. Essa mudança cultural desencadeia uma série de mudanças na
forma como a indústria da mídia atua e vende seus produtos e na forma como
as pessoas pensam e se relacionam com os canais de comunicação.

64
Cultura Em Transição | Unidade III

Inteligência coletiva

A cultura da convergência também criou uma nova maneira de compreender


os acontecimentos da vida e a construção de conhecimento. Segundo Jenkins
(2009), com esse novo modelo midiático, as pessoas recebem mais informações
do que são capazes de memorizar, acessam informações fragmentadas em
mídias diversas e a partir disso constroem sua opinião e seu próprio sistema
simbólico de significação.

Para o autor, esse movimento promove uma maior interação interpessoal em


que uns conversam com outros sobre os assuntos midiáticos. Dessa forma, os
saberes são compartilhados e se torna possível unir habilidades e conhecimentos
para propósitos em comum. Essa construção conjunta é o que ele chama de
inteligência coletiva, uma forma de poder midiático alternativo. “Nenhum de
nós pode saber tudo; cada um de nós sabe alguma coisa; e podemos juntar as
peças, se associarmos nossos recursos e unirmos nossas habilidades” (JENKINS,
2009, p. 30).

Como exemplo, o autor cita um reality show americano chamado Surivor em que
16 participantes precisam duelar para sobreviver na competição e concorrer ao
prêmio de 1 milhão de dólares. O programa tem um alto índice de audiência
e repercussão, os fãs ficam alertas e buscam todo tipo de informação a fim
de tentar descobrir antecipadamente o que acontece com os participantes.
Eles analisam cada imagem, buscam informações de satélites que fotografam
o lugar onde os participantes estão confinados e trocam informações para
desvendar mais informações que ainda não foram reveladas ao público, os
chamados spoilers.

Individualmente, os fãs não têm acesso ao quadro todo. Mas, reunindo as


habilidades e talentos de cada um, eles conseguem um número maior de
dados e análises e constroem juntos uma “comunidade de conhecimento”,
como denomina Pierre Levy (citado em JENKINS, 2009, p. 58). Somando os
saberes, as pessoas acessam uma inteligência coletiva que ajuda na resolução
de problemas. Nesse caso, eles queriam desvendar o mistério do reality
show, mas quantas outras soluções podem ser criadas de forma coletiva
para problemas sociais?

65
Unidade III | Cultura Em Transição

Participação

Na era da convergência, também surge outro aspecto relacional: a cultura


participativa. Henri Jenkins destaca aqui as possibilidades de participação que
as novas mídias digitais oferecem ao público consumidor. Primeiramente, ele
faz uma diferenciação entre os termos “interação” e “participação”. Chamamos
de interatividade a forma como nos relacionamos com o conteúdo por meio
dos aparelhos tecnológicos. Por exemplo, usando o computador, é possível
interagir com os dados e informações recebendo feedbacks que moldam a
experiência do usuário a cada clique.

Já a participação é mais do que interagir com o conteúdo pronto disponibilizado


pelos canais midiáticos. É tornar-se o próprio produtor desse conteúdo.
O pesquisador cita as fanfics que são histórias escritas por leitores fãs de
determinadas séries de livros e que não ficam satisfeitos com os finais das
tramas. Eles se reúnem em fandons e passam a escrever, de forma amadora,
um novo final, uma nova história para aqueles personagens. Ou ainda os
fãs de filmes e programas televisivos que se tornam os próprios cineastas
e produtores, filmando e editando novas cenas, criando outros roteiros e
compartilhando nas mídias digitais.

A diferença é que esse modo de participação faz com que o público consumidor
crie suas próprias regras e não fiquem mais sob domínio do que é imposto pelas
mídias tradicionais. Porém, essa participação ainda revela um traço de exclusão
social porque existem condições de produção e participação diferentes para
cada grupo social. “Corporações ainda exercem maior poder do que qualquer
consumidor individual, ou mesmo um conjunto de consumidores. E alguns
consumidores têm mais habilidades para participar dessa cultura emergente
do que outros” (JENKINS, 2009, p. 30).

66
CAPÍTULO 3
Instituições e atores culturais

As reflexões sobre as políticas culturais devem integrar gradativamente as


mudanças de uma sociedade em um crescente processo de globalização, dadas
as grandes dificuldades de responder a esses novos cenários. Os debates sobre
as repercussões de uma sociedade em rede nas culturas do nosso planeta e a
necessária defesa da diversidade se unem aos novos desafios da gestão cultural
neste quadro.

No campo da gestão da política cultural, os profissionais que a ela se dedicam


se deparam com estes novos desafios que incluem a fragilidade de um setor
cultural com pouco peso no conjunto das políticas culturais e por ser um
campo de recente profissionalização com pouca pesquisa aplicada.

Atores culturais
Em gestão cultural, entendemos por agentes aqueles atores que intervêm ou
podem intervir na articulação das políticas culturais. Assim, as definições da
Conferência do México da UNESCO (1982) entendiam as políticas culturais
como um conjunto de práticas sociais de diferentes setores de uma determinada
sociedade.

Nesta perspectiva, consideramos que uma política cultural não pode ser posta
em marcha, ou não existe realmente, se não for por meio de agentes ou atores
específicos, que se relacionam com a sua realidade territorial e assumem
algumas responsabilidades no conjunto dos objetivos que a própria política
lhes propõe. Por este motivo, os agentes mudam e evoluem de acordo com
as variáveis espaço/território-tempo/evolução-contexto (próximo e global),
representando um fator determinante na consolidação da intervenção social
em um determinado campo.

A pluralidade de instâncias e agentes torna-se elemento fundamental das


políticas públicas culturais, que encontram nessa diversidade de atores os
fatores de tensão e estímulo a serviço do interesse geral. Nesse sentido, o
Plano de Ação da Unesco sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento
entende a participação fundamental na vida cultural dos cidadãos para uma
sociedade mais democrática.

67
Unidade III | Cultura Em Transição

Figura 16. Músicos independentes.

Foto: https://br.freepik.com/fotos-gratis/repeticao-da-banda-de-rock-guitarrista-e-baterista-atras-da-bateria_8679398.htm#page=1&query=
cultura&position=19.

Alguns autores os chamam de agentes “mediadores” porque constroem o


referencial de uma política, ou seja, eles criam as imagens conceituais que
determinam a percepção do problema, a necessidade ou o interesse que
proporcionam, as propostas e soluções apropriado para cada situação. Outros
consideram como “portadores do murmúrio cotidiano” que devem ser levados
em consideração nas políticas culturais.

Estes agentes ou mediadores contribuem com a sua ação para a consolidação


de uma atividade social, podendo representar, em um determinado contexto,
um importante potencial democrático. Por esse motivo, o papel dos agentes
culturais na concepção de uma política cultural é um elemento definidor na
implementação e aplicação dos seus conteúdos.

Assim, nos processos de análise e avaliação das políticas culturais territoriais,


a existência de um tecido diversificado de agentes é apontada como uma das
principais condições de desenvolvimento social, cultural e econômico, que
se pode resumir nos seguintes indicadores:

» a existência de um quadro de agentes distribuídos por todo o território


em diferentes níveis de atividade e especialização;

» o grau de consolidação e estruturação social desses agentes com base


nas formas jurídicas de cada país ou de cada realidade territorial;

68
Cultura Em Transição | Unidade III

» a capacidade crítica e intelectual e a competência para contribuir com


a sua dimensão na procura de soluções e acordos para os problemas
do seu meio;

» a capacidade de relacionamento e estruturação organizacional que


lhes permita serem interlocutores com os órgãos de decisão, bem
como a possibilidade de estabelecer redes de cooperação setorial e
territorial.

Figura 17. Produtor cultural em ação.

Foto: https://br.freepik.com/fotos-gratis/gerente-liderando-uma-reuniao-de-brainstorming_9341664.htm#page=1&query=produ%C3%A7%C3
%A3o&position=15.

Os agentes culturais estruturam-se de acordo com os regulamentos e as


legislações de cada Estado ou organizações supraestaduais e segundo as
suas finalidades. Dessa forma, o Estado, por meio do seu legislativo, cria
especificidades e diferenças no posicionamento das funções dos agentes nos
diferentes países.

Uma leitura do marco regulatório de cada país nos apresenta um panorama


a partir do qual podemos observar e analisar qual o papel que cada um dos
principais agentes tem, ou pode ter. As funções e competências dos agentes
culturais evoluem paralelamente à realidade social e adquirem importância
de acordo com a função que lhes é atribuída nas propostas e conteúdo das
políticas públicas.

69
Unidade III | Cultura Em Transição

Podem também assumir um papel de protagonismo na perspectiva da sua


própria iniciativa social e como elementos de pressão sobre as estruturas
das administrações públicas. Portanto, o papel dos agentes culturais deve ser
considerado como um fator importante para a construção e significação que
podem ser atribuídos às necessidades e problemas da sociedade.

Qualquer que seja o ambiente político-legislativo que acolhe os agentes


culturais, estes adquirem, de uma forma ou de outra, funções de grande
importância no desenvolvimento das políticas sociais e culturais.

Muitas vezes, os agentes aplicam a sua própria política sem a intervenção do


Estado, que pode coincidir ou não com a oficial da administração, mas que
por vezes intervém de forma muito mais eficaz na realidade do seu contexto.
Essa relação não é isenta de tensões e conflitos, às vezes de caráter positivo.

Consequentemente, temos que analisar o papel que esses agentes sociais têm ou
podem ter no desenvolvimento de serviços à comunidade, a fim de compreender
e explicar determinados fenômenos de suas estruturas organizacionais.

Os agentes sociais, de acordo com os princípios, propósitos e valores que


escolhem e podem desenvolver, adquirem um protagonismo que se pode
resumir nas seguintes funções:

Quadro2. Funções dos atores culturais.

Funções dos atores culturais


Analisar e interpretar a realidade da própria sociedade, dando respostas a seus problemas, demandas ou necessidades.
Organizar também serviços para seu bem-estar.
Possibilitar e canalizar a participação e incorporação de grupos e pessoas no trabalho e na ação por sua comunidade,
originando um processo da privacidade e do individualismo à ação pública e social.
Ser aglutinador e o criador de opinião sobre as questões que afetam o âmbito da cultura e sobre a criação das condições
necessárias para a divulgação de suas opções, de forma a atender as necessidades do público.
Ajudar a estruturar e construir as demandas de caráter social, cultural e educacional que concentram os Estados
individuais ou grupais, e as transferir coletivamente para as organizações e o aparelho de administração do Estado.
Promover a auto-organização dos serviços e a assunção de responsabilidades públicas por meioda delegação na
prestação de serviços.
Exercer uma função prospectiva, descobrindo e evidenciando novas necessidades ou problemas da sociedade e
despertando nas instâncias oficiais a preocupação com essas questões.
Cuidar da organização da iniciativa privada e lucrativa, a partir da constituição das suas próprias organizações.
Fonte: elaborado pela autora.

70
Cultura Em Transição | Unidade III

Instituições culturais

O Brasil contou com uma importante instituição federal de apoio e regulação


da cultura, o Ministério da Cultura (Minc). Criado em 1985 por Decreto
Presidencial desenvolveu muitas ações para fortalecimento das práticas culturais
e fortalecimento da identidade nacional.

O Minc atuava em várias frentes de fomento e incentivo na literatura, folclore,


arte, dança, música e outras formas de expressão cultural brasileiras, além de
criar ações de preservação do patrimônio histórico e arqueológico nacional.

No entanto, com a eleição do atual presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da


Cultura foi extinto por meio da Lei n. 13.844, de 18 de junho de 2019. Em seu
lugar, foi criada a Secretaria Especial da Cultura (Secult) ligada ao Ministério
do Turismo. Vejamos, a seguir, as instituições da Cultura, supervisionadas
pela Secult.

Agência Nacional do Cinema (Ancine)

Criada em 2001 pela Medida Provisória 2228-1, a Agência Nacional do Cinema


(Ancine)é uma agência reguladora que tem como atribuições o fomento, a
regulação e a fiscalização do mercado do cinema e do audiovisual no Brasil.
É uma autarquia especial, vinculada ao Ministério do Turismo, com sede e
foro no Distrito Federal, Escritório Central no Rio de Janeiro e escritório
regional em São Paulo.

A missão da Ancine é desenvolver e regular o setor audiovisual em benefício da


sociedade brasileira. Encerrado o ciclo de sua implementação e consolidação, a
Ancine enfrenta agora o desafio de aprimorar seus instrumentos regulatórios,
atuando em todos os elos da cadeia produtiva do setor, incentivando o
investimento privado, para que mais produtos audiovisuais nacionais e
independentes sejam vistos por um número cada vez maior de brasileiros
(Portal Ancine, disponível em: https://www.gov.br/ancine/pt-br/acesso-a-
informacao/institucional/biografia).

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional


(Iphan)

O Instituto doPatrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é uma autarquia


federal vinculada ao Ministério do Turismoqueresponde pela preservação do

71
Unidade III | Cultura Em Transição

Patrimônio Cultural Brasileiro. Cabe ao Iphan proteger e promover osbens


culturais do país, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações
presentes e futuras.

O Iphan possui 27 Superintendências(uma em cada Unidade Federativa); 37


Escritórios Técnicos, a maioria deles localizados em cidades que são conjuntos
urbanos tombados, as chamadas Cidades Históricas; e, ainda, seis Unidades
Especiais, sendo quatro delas no Rio de Janeiro: Centro Lúcio Costa, Sítio
Roberto Burle Marx, Paço Imperial e Centro Nacional do Folclore e Cultura
Popular; e, duas em Brasília, o Centro Nacional de Arqueologia e Centro de
Documentação do Patrimônio.

O Iphan também responde pela conservação, salvaguarda e monitoramento


dos bens culturais brasileiros inscritos na Lista do Patrimônio Mundial e na
Lista o Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, conforme convenções
da Unesco, respectivamente, a Convenção do Patrimônio Mundial de 1972 e
a Convenção do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003 (IPHAN, disponível
em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/872).

Instituto Brasileiro de Museus (Ibram)

O Instituto Brasileiro de Museus foi criado em janeiro de 2009, com a assinatura


da Lei n. 11.906. Vinculada ao Ministério do Turismo, a autarquia sucedeu ao
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) nos direitos,
deveres e obrigações relacionados aos museus federais.

O órgão é responsável pela Política Nacional de Museus (PNM) e pela


melhoria dos serviços do setor – aumento de visitação e arrecadação dos
museus, fomento de políticas de aquisição e preservação de acervos e criação
de ações integradas entre os museus brasileiros. Também é responsável pela
administração direta de 30 museus (IBRAM, disponível em:https://www.
museus.gov.br/sobre-o-orgao/).

Fundação Biblioteca Nacional (FBN)

A Biblioteca Nacional (BN) é o órgão responsável pela execução da política


governamental de captação, guarda, preservação e difusão da produção
intelectual do país. Com mais de 200 anos de história, é a mais antiga instituição
cultural brasileira.

72
Cultura Em Transição | Unidade III

Possui um acervo de aproximadamente 9 milhões de itens e, por isso, foi


considerada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (UNESCO) como uma das principais bibliotecas nacionais do mundo.
Para garantir a manutenção desse imenso conjunto de obras, a BN possui
laboratórios de restauração e conservação de papel, oficina de encadernação,
centro de microfilmagem, fotografia e digitalização (BN, disponível em:
https://www.bn.gov.br/sobre-bn/apresentacao).

Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB)

A Fundação Casa de Rui Barbosa tem sua origem no museu-biblioteca instituído


em 1928 pelo presidente Washington Luís, a Casa de Rui Barbosa.

Em 1966, a instituição teve sua personalidade jurídica alterada pela Lei n.


4.943, para melhor cumprir suas finalidades de desenvolvimento da cultura,
da pesquisa e do ensino, como também, a divulgação e o culto da obra e vida
de Rui Barbosa. Sua missão é preservar e dar acesso à obra de Rui Barbosa,
ao seu acervo e ao de personalidades de destaque para o país, promovendo a
pesquisa, o ensino e a difusão do conhecimento sobre temáticas relevantes
para a história do Brasil (FCRB, disponível em: http://www.casaruibarbosa.
gov.br/interna.php?ID_S=10).

Fundação Cultural Palmares (FCP)

Foi a primeira instituição pública voltada para promoção e preservação dos


valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência
negra na formação da sociedade brasileira: a Fundação Cultural Palmares (FCP),
entidade vinculada ao Ministério da Cidadania. Ao longo dos anos, a FCP
tem trabalhado para promover uma política cultural igualitária e inclusiva,
que contribua para a valorização da história e das manifestações culturais e
artísticas negras brasileiras como patrimônios nacionais (FCP, disponível em:
http://www.palmares.gov.br/?page_id=95).

Fundação Nacional de Artes (Funarte)

Criada em 1975, a Fundação Nacional de Artes – Funarte é o órgão do Governo


Federal brasileiro cuja missão é promover e incentivar a produção, a prática,
o desenvolvimento e a difusão das artes no país. É responsável pelas políticas
públicas federais de estímulo à atividade produtiva artística brasileiras; e atua
para que a população possa cada vez mais usufruir das artes.
73
Unidade III | Cultura Em Transição

Atualmente a Funarte, vinculada ao Ministério do Turismo, alcança as áreas


de circo, dança e teatro; de música, de concerto, popular e de bandas; e de
artes visuais; e também a preservação da memória das artes e a pesquisa na
esfera artística. É a única instituição no Estado brasileiro com as atribuições
e especialidades necessárias para tratar desses campos de atividade (Funarte,
disponível em: https://www.funarte.gov.br/a-funarte/).

Além destas instituições federais, existem as fundações e ONGs independentes


de promoção à cultura e também às secretarias de cultura em nível estadual
e municipal.

Na sua cidade, existe uma secretaria de cultura?

Quem são os atores culturais que atuam nesse segmento em sua cidade?

Você conhece outras instituições ou grupos independentes de promotores


de cultura?

74
ACESSO AOS BENS
CULTURAIS UNIDADE IV

CAPÍTULO 1
Produção cultural

A produção cultural é uma seara do conhecimento recente. As atividades que


se inserem no conceito de produção cultural sempre existiram, mas o estudo
e a análise desta remota somente nos anos de 1980. Observa-se a criação de
uma nova configuração cultural construída pelos artistas e pelos produtores
culturais surge a primeira graduação em produção cultural na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (Niterói).

A área antes não regulamentada passa a ser sistematizada a partir do surgimento


de cursos e graduações os quais estabelecem certo padrão na construção dos
projetos de viés cultural. O termo cultura foi utilizado no século XIX pelos
europeus quando estes queriam dar nomes a algo que não conseguia descrever
com uma expressão própria. Observa-se, assim, que tal expressão era para
definir aquilo que era a maneira de viver do outro de origem não europeia.

No século XX, o termo se dissemina tanto entre governos quanto para


instituições privadas. A chegada do modernismo em nosso cenário nacional
também trouxe o termo a baila até que este fora firmado ganhando seu espaço
internamente e sendo reivindicadas políticas específicas para a área. Os termos
e expressões ganham vida a partir de seu uso na prática, no cotidiano, só em
teoria os significados podem tornar-se vazios e superficiais, é a sua utilização,
sua aplicação na realidade que o define e delimita.

Antônio Gramsci salienta a existência de tipos diferentes de intelectuais e


realiza uma classificação interessante ao aduzir que haveria os criadores que
seriam os artistas e cientistas, prosseguindo, existiriam os que transmitiriam
a cultura como professores e comunicadores, e os organizadores da cultura,
sendo estes os gestores e produtores culturais.

75
Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

Evidente que os tipos descritos são de suma importância para a dinâmica


cultural existente. A produção cultural consiste no planejamento, elaboração,
a prática e realização de projetos culturais e artísticos, sendo ainda um espaço
democrático, da qual as diferenças são bem-vindas e até pode-se afirmar ser
importante na construção de um processo diversificado culturalmente.

Também é considerada a produção cultural por alguns autores como ação


política. Na construção do conhecimento sempre está presente poderes de
diferentes vieses, além disso, por ser um campo que não nasce pronto, e sim
é construído sempre está sujeito a influências.

Além de ser sujeita a influências a produção cultural, não se pode olvidar que
ela também repercute na vida dos indivíduos, na sociedade como um todo,
demonstra e apresenta as diferentes formas de viver e lidar com situações,
podendo-se assim afirmar que aquela tanto é influenciada quanto influencia.

A realidade é demonstrada por meio das produções culturais, esta seria uma
boa maneira de se construir e desvendar os sentidos, interpretando aspectos
da vida não discutidos ou estigmatizados, o debate levantado por aquela seria
um instrumento que poderia quiçá auxiliar na resolução de problemas sociais
e políticos.

Outros autores a vislumbram como atividade econômica, tendo em vista que


esta é uma grande geradora de renda, promove a criação de postos de trabalho,
integra o mercado e dinamiza a economia. A atividade cultural traz inúmeros
benefícios para as localidades que se realiza, promove o desenvolvimento
regional, acelera a economia e contribui para seu crescimento, favorece o
direcionamento de políticas públicas para o local levando a sua revitalização.

A produção cultural é composta de etapas tais como a produção, em seguida, há a


distribuição, após a troca e a utilização. O sistema para funcionar adequadamente
necessita do direcionamento de políticas públicas e investimentos ou a dinâmica
cultural perece e todos perdem com isso, não só a população como a economia
e o país como um todo.

Interessante salientar, justamente pelo fato de os bens culturais serem


considerados bens de natureza pública, que sua realização e desenvolvimento
acabam por quedar-se subordinados ou sujeitos às políticas a serem
adotadas pelo governo. Entretanto, a colaboração governamental ensejou
uma enorme dependência devido a necessidade de promoção de políticas
de incentivos fiscais.

76
Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

Os profissionais que atuam na produção cultural precisam estar sempre atentos


às habilidades importantes de serem desenvolvidas nessas práticas, que não
deixam de ser um tipo de prática criativa. É uma busca constante por inovação
no jeito de produzir cultura, por exemplo:

» Novas formas de conceituar e estruturar produtos em relação às suas


múltiplas plataformas de divulgação possíveis.

» Novos agentes criativos (dentro, fora ou nas margens da indústria).

» Novas opções e experiências estéticas.

» Novas formas de organizar equipamentos e processos de produção.

» Novas formas de licenciar conteúdo para que seja acessado/utilizado


pelo público.

» Novas formas de divulgação e promoção de conteúdo.

» Novas formas de envolver o público na produção.

» Novas formas de propor modelos de negócios para comercializar


conteúdo.

» Novas formas de obtenção de recursos de financiamento à produção.

» Novas alianças ou sinergias com outros agentes – muitas vezes mais


estabelecidos em um setor mercadológico de referência – que podem
agregar valor a produtos cada vez mais híbridos.

Essa tendência às inovações também retroalimenta diferentes formas de


abertura à criação cultural. Por exemplo, a abertura tecnológica que afeta
tanto a maior acessibilidade a equipamentos e ferramentas de criação, quanto
as opções de customização e troca de software, o que se reflete especialmente
no movimento do software livre.

Outro tipo de abertura é a de acesso e apropriação de conteúdo, que se reflete


na flexibilidade de seu uso: a partir de licenças flexíveis como Creative Commons,
que permitem a redistribuição legal de conteúdos sob um conjunto de premissas
que podem chegar a conceder uma grande margem de liberdade, até práticas
77
Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

de apropriação, remixagem, arquivamento, cotação ou trocas que combinam,


não sem polêmica, a abertura de acesso com a abertura tecnológica para criação
e distribuição.

Por outro lado, estamos perante a abertura de processos: assim, é cada vez
mais frequente que se estabeleçam fórmulas de participação e colaboração
entre promotores e comunidades de pessoas interessadas num projeto ao longo
do seu desenvolvimento. Esta colaboração pode ser materializada de muitas
maneiras diferentes, desde a tomada de decisões sobre aspectos específicos
relacionados, por exemplo, com a promoção do produto, a contribuição para
o financiamento, a intervenção de comunidades criativas em elementos-chave
do processo (como o roteiro, efeitos digitais ou música), ou mesmo atuando
como testadores de versão preliminar (o que geralmente é comum em projetos
web e de videogames).

E, por fim, a abertura da experiência, que se refere às possibilidades de estender


um conceito, universo ou narrativa por diferentes mídias, proporcionando
experiências complementares que aproveitem as potencialidades de cada uma
delas. A combinação em proporções variáveis de várias formas de abertura
(ou mesmo de todas elas) gera diferentes possibilidades que oferecem uma
medida interessante do dinamismo da produção cultural contemporânea.

A questão do entretenimento

No seu sentido popular e também entre vários especialistas, a noção de


entretenimento é muitas vezes assumida como sinônimo de “distração”,
vinculada à disponibilidade de tempo livre e destinada a evitar o
tédio (BRIAN DAVID JOHNSON, 2010). Essa visão comum é, em minha
opinião, consideravelmente reducionista, pois contribui para alimentar
mitos difundidos como o do espectador “passivo”, que é “entretido” por
profissionais, negando a menor capacidade de agência criativa para
“preencher lacunas” e, tanto ou mais significativamente, como se o
entretenimento fosse um passatempo entre atividades “importantes” e,
em última análise, dispensáveis. Essa noção não explica, por exemplo, o
envolvimento emocional de públicos com conteúdos culturais (que ocorre,
às vezes, em longos períodos de tempo), muito menos as motivações que os
levam a se envolver em atividades de consumo, criação de conteúdo escrito,
gráfico, sonoro ou audiovisual, que compõe grande parte do fenômeno da
autoprodução de conteúdo gerado pelo usuário, desde blogs até vídeos
no YouTube.

78
Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

Por isso, compartilho em maior medida a definição de entretenimento


proposta por Martin Kaplan, que ele expressa como a ação de ocupar a
atenção de acordo com os próprios desejos, de forma que ofereça diversão.
A mudança fundamental nesta abordagem encontra-se na ideia de atenção,
que pode estar ligada à de motivação, que é um aspecto fundamental na
maioria das nossas atividades diárias (observe a mudança na forma do verbo
de passivo para ativo) O próprio Kaplan define a indústria do entretenimento
(que é de certa forma um subconjunto muito amplo das indústrias culturais)
como o negócio da atenção, um negócio profundamente social.

79
CAPÍTULO 2
O papel do Estado no incentivo à cultura

Todo cidadão brasileiro tem seu direito à cultura garantido pela Constituição
Federal. Esse direito é considerado um dos direitos sociais porque a cultura
é uma prática emancipatória que confere liberdade e dignidade à pessoa.
Por isso, o entendimento de que precisa ser garantido por lei e incentivado
pelo Estado.

Figura 18. Negócios ligados à cultura do cinema.

Foto: https://br.freepik.com/fotos-gratis/grupo-de-diversos-amigos-segurando-emoticons-de-filme_3679642.htm#page=1&query=cultura&p
osition=36.

Na Constituição Federal, encontramos na Seção II a legislação referente à


cultura no nosso país:
Seção II da cultura

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos


culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará
a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1 o – O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,


indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional.

§ 2 o – A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta


significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

§ 3 o A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração


plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração

80
Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

das ações do poder público que conduzem à: (Incluído pela Emenda


Constitucional n. 48, de 2005)

I – defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; (Incluído


pela Emenda Constitucional n. 48, de 2005)

II – produção, promoção e difusão de bens culturais; (Incluído pela


Emenda Constitucional n. 48, de 2005)

III – formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em


suas múltiplas dimensões; (Incluído pela Emenda Constitucional n.
48, de 2005)

IV – democratização do acesso aos bens de cultura; (Incluído pela


Emenda Constitucional n. 48, de 2005)

V – valorização da diversidade étnica e regional. (Incluído pela


Emenda Constitucional n. 48, de 2005)

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de


natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais
se incluem:

I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver;


III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras,
objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico.

§ 1 o O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá


e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras
formas de acautelamento e preservação.

§ 2 o Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da


documentação governamental e as providências para franquear sua
consulta a quantos dela necessitem.

§ 3 o A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento


de bens e valores culturais.

§ 4 o Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na


forma da lei.

§ 5 o Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de


reminiscências históricas dos antigos quilombos.

81
Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

§ 6 o É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo


estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua
receita tributária líquida, para o financiamento de programas e
projetos culturais, vedada a aplicação desses recursos no pagamento
de: (Incluído pela Emenda Constitucional n. 42, de 19.12.2003)

I – despesas com pessoal e encargos sociais; (Incluído pela Emenda


Constitucional n. 42, de 19.12.2003) II – serviço da dívida; (Incluído
pela Emenda Constitucional n. 42, de 19.12.2003) III – qualquer
outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos
ou ações apoiados. (Incluído pela Emenda Constitucional n. 42, de
19.12.2003)

Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime


de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui
um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas
de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os
entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o
desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício
dos direitos culturais. (Incluído pela Emenda Constitucional n. 71,
de 2012)

§ 1 o O Sistema Nacional de Cultura fundamenta-se na política nacional


de cultura e nas suas diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional
de Cultura, e rege-se pelos seguintes princípios: (Incluído pela
Emenda Constitucional n. 71, de 2012) I – diversidade das expressões
culturais; (Incluído pela Emenda Constitucional n. 71, de 2012) II
– universalização do acesso aos bens e serviços culturais; (Incluído
pela Emenda Constitucional n. 71, de 2012) 39 SOCIOLOGIA DA
CULTURA – UNIDADE ÚNICA III – fomento à produção, difusão e
circulação de conhecimento e bens culturais; (Incluído pela Emenda
Constitucional n. 71, de 2012) IV – cooperação entre os entes
federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural;
(Incluído pela Emenda Constitucional n. 71, de 2012) V – integração
e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações
desenvolvidas; (Incluído pela Emenda Constitucional n. 71, de 2012)
VI – complementaridade nos papéis dos agentes culturais; (Incluído
pela Emenda Constitucional n. 71, de 2012) VII – transversalidade
das políticas culturais; (Incluído pela Emenda Constitucional n. 71,
de 2012) VIII – autonomia dos entes federados e das instituições da
sociedade civil; (Incluído pela Emenda Constitucional n. 71, de 2012)
IX – transparência e compartilhamento das informações; (Incluído
pela Emenda Constitucional n. 71, de 2012) X – democratização dos
processos decisórios com participação e controle social; (Incluído
pela Emenda Constitucional n. 71, de 2012) XI – descentralização

82
Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações; (Incluído pela


Emenda Constitucional n. 71, de 2012) XII – ampliação progressiva
dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura.
(Incluído pela Emenda Constitucional n. 71, de 2012).

Para promover o incentivo à cultura, o Estado pode promover uma série


de ações e criar políticas públicas para facilitar o acesso do público, bem
como estimular o trabalho dos artistas e produtores culturais. A ação mais
famosa e importante do governo federal do Brasil é a chamada Lei Rouanet
n. 8.313/1991, que concedia incentivo fiscal à iniciativa privada para apoiar
o setor cultural.

Na prática, isso significava que as empresas poderiam apoiar financeiramente


os projetos culturais (como teatro, cinema, arte popular, eventos musicais,
literatura etc.) e, em troca, receber descontos nos impostos devidos ao
Estado. O governo deixa de arrecadar esses tributos para criar fomentos à
atividade cultural.

O crescimento do setor cultural não traz benefícios apenas subjetivos do acesso


aos bens culturais, mas também movimenta a Economia com o aumento de
empregos, valorização das cidades, atrai e movimenta o turismo nas regiões,
gera renda para a classe artística, entre outros.

A Lei Rouanet recebeu muitas críticas ao longo dos anos de sua aplicação, pois
muitos artistas locais reclamavam que a maior parte dos recursos ia sempre
para os mesmos atores culturais e entidades mais famosas. A discussão é
complexa, mas o fato é que o governo atual decidiu fazer uma reformulação
na lei e, inclusive, a renomeou para Lei de Incentivo à Cultura.

A principal mudança feita na nova lei foi a redução do valor máximo de


incentivo aos projetos. Antes, esse valor poderia chegar a 60 milhões de
reais, e agora não pode passar de 1 milhão. Além disso, a nova lei também
determina que seja obrigatório a reserva de 20 a 40% dos ingressos para
distribuição gratuita, preferencialmente, para usuários da rede de assistência
social participantes do Cadastro Único.

Acesse ao site oficial da Lei de Incentivo à Cultura e confira as principais


alterações publicadas no Diário Oficial da União. Está disponível em: http://
leideincentivoacultura.cultura.gov.br/multimedia/nova-marca-rouanet/ .

83
CAPÍTULO 3
Estudo de caso: Artigo “Ribeirão das
Trevas?”

Neste capítulo, analisaremos um caso específico de construção de narrativas


culturais e seus impactos na identidade e sociabilidades da população. Leremos
um trecho do artigo “Ribeirão das Trevas”? O skate dando um ollie nos
algoritmos dominantes sobre a cidade de Ribeirão das Neves -MG. Autoras:
Janaína Damaceno Gomes e Rafaela Goltara Souza (2020).

Leia com atenção:


“Quando rejeitamos uma única história, quando percebemos que
nunca há apenas uma história sobre um lugar, recuperamos uma
espécie de paraíso.”
ChimamandaNgoziAdichie.

Ribeirão das Neves é uma cidade mineira com aproximadamente 334 mil
habitantes e 60% da população autodeclarada negra. Concebida para ser
a cidade-dormitório dos mais pobres que migraram em busca de trabalho
quando Belo Horizonte se tornou a capital do estado de Minas Gerais, Neves,
como é mais conhecida, também se tornou a cidade das penitenciárias. Em
um total de seis redes, inclui a primeira com gestão público-privada no Brasil
e a primeira penitenciária modelo do país, inaugurada por Getúlio Vargas,
quando ainda era presidente. Constantemente alvo de notícias sobre violência
e pobreza, a cidade também ficou conhecida pelo trocadilho “Ribeirão das
Trevas” publicado no Diário Oficial do Estado em 7 de setembro de 2013 e
no site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais em 21 de agosto de 2018. Essa
descrição pejorativa se tornou uma narrativa oficial sobre o município e se
impõe como uma barreira para os moradores da cidade, que sofrem com a
estigmatização e a exclusão social que isso acarreta.

Essa estigmatização da cidade e de seus moradores migrou também para o


ambiente digital. A narrativa oficial dos algoritmos de busca na Internet
continua apresentando a mesma história única sobre a cidade: a história das
trevas do Ribeirão. É possível constatar essa realidade apenas utilizando o
mecanismo de busca do Google digitando como palavra-chave o nome da
cidade. São mais 16 milhões de resultados para a pesquisa, mas logo na primeira
página de resultados somos apresentados a uma série de links de notícias

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Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

sobre violência e precariedade. Essa indexação de resultados automatizada


por algoritmos que, em teoria, apresentam informações neutras baseadas
nos sites mais acessados e palavras mais digitadas por seus usuários, apenas
reforça o estigma negativo sobre Ribeirão das Neves e revela mais uma forma
de opressão social (NOBLE, 2018).

Porém, essa cidade planejada para ser sempre a mesma abriga outras narrativas
criadas, por exemplo, por um coletivo de skatistas negros: a Just CrewSkateboard.
Esse coletivo de skatistas ocupou a praça e a transformou em pista; há 20 anos
forma jovens nessa prática esportiva, ensinando-os a construir seus próprios
skates e obstáculos e reconstruir suas identidades por meio da experiência
da amizade, dando um ollie nas narrativas dominantes sobre si mesmos e sua
cidade. Junto com outros coletivos jovens, ocuparam uma escola abandonada
pelo governo na cidade e a transformaram em um centro de atividades de
educação social e formação empresarial, além de aperfeiçoar o espaço como um
centro de treinamento avançado para a crew. Mais recentemente, eles também
reformaram uma antiga pista de skate inacabada em Neves. Eles se tornaram
educadores uns dos outros, da população e da cidade, ensinando olhares de
luz em vez de escuridão, e construindo outras possibilidades narrativas para
Ribeirão das Neves, que não é apenas a única história oficial.

A Just CrewSkateboard também desafia a narrativa oficial de algoritmos na


internet. Com suas redes sociais, eles apresentam outras histórias sobre a
cidade, outras identidades possíveis para os nevenses, criam novas conexões
e laços, e entram na disputa algorítmica propondo novos resultados para seu
território. Este artigo é um desdobramento da dissertação de mestrado intitulada
“Ribeirão das Trevas: o skate dando um ollie nas narrativas dominantes sobre
a cidade de Ribeirão das Neves - MG”, desenvolvida com o apoio da CAPES
no Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em
Periferias Urbanas da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O artigo apresenta os principais
resultados percebidos durante a investigação que utilizou como metodologia
a Etnografia da Imagem como Simpatia, revelando, à luz das leituras de Nilma
Lino Gomes (2019), como este grupo desafia o estigma da cidade ao apresentar
uma narrativa que valoriza a vida e as sociabilidades.

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Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

Conhecendo o território: as trevas do Ribeirão


Ribeirão das Neves é uma cidade mineira com aproximadamente 334 mil
habitantes e 60% da população autodeclarada negra. Concebida pelo poder
público para ser a cidade-dormitório dos mais pobres que migraram em busca de
trabalho quando Belo Horizonte se tornou a capital do estado de Minas Gerais,
Neves, como é mais conhecida, também se tornou a cidade das penitenciárias.
Em um total de seis cadeias, inclui a primeira com gestão público-privada
no Brasil e a primeira penitenciária modelo do país, inaugurada por Getúlio
Vargas quando ainda era presidente. Constantemente alvo de notícias sobre
violência e pobreza, a cidade também ficou conhecida pelo trocadilho “Ribeirão
das Trevas” publicado no Diário Oficial do Estado em 7 de setembro de 2013
e no site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em 21 de agosto de 2018.
Essa descrição pejorativa se tornou uma narrativa oficial sobre o município
e se impõe como uma barreira para os moradores da cidade, que sofrem com
a estigmatização e a exclusão social que isso acarreta.

Figura 19. Notícias sobre o Ribeirão das Trevas.

Fonte: Gomes; Souza, 2020, p. 7.

Esta publicação teve um impacto muito negativo na população e suscitou


uma grande discussão sobre a identidade do cidadão nevense. Isso porque
Ribeirão das Neves é historicamente conhecida como “cidade-dormitório”,
já que a maioria dos moradores só vai para casa para dormir, pois a maior
oferta de trabalho está no município vizinho (Belo Horizonte), que fica a
cerca de 30 km de distância.

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Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

Figura 20. Mapa de Ribeirão das Neves.

Fonte: Gomes; Souza, 2020, p. 8.

O conflito de identidade também é um conflito de pertencimento. Eu me


perguntava, às vezes, se poderia me apresentar como uma nevense, já que
na minha certidão de nascimento consta que sou belorizontina. No entanto,
basta parar alguns minutos e analisar o que está por trás desse registro oficial
de nascimento para entender que eu sou apenas uma das milhares de pessoas
que foram obrigadas a nascer em Belo Horizonte por falta de opções. Segundo
dados do Censo IBGE 2010, mais da metade da população (186.373 habitantes)
não é natural da cidade, ou seja, nasceu em outros municípios.

Não se nasce em Ribeirão das Neves porque a única maternidade existente é


o único hospital da cidade, o Hospital Municipal São Judas Tadeu, que não
consegue atender às demandas de saúde de seus 334 mil habitantes. Nasci na
capital e no dia seguinte estava de volta a Neves, onde cresci e passei a vida
inteira até agora. Mesmo assim, sou oficialmente uma belorizontina. Pode
parecer um pequeno detalhe à primeira vista, mas em uma cidade com tantos
desafios e um vínculo frágil com seus moradores, uma certidão de nascimento
oficial faz uma grande diferença.

O mapa a seguir chama a atenção para a quantidade de presídios e, principalmente,


sua localização, visto que não foram construídos em locais distantes do centro
urbano. Pelo contrário, estão próximos uns dos outros e da região central. O
Centro Socioeducativo para menores fica no bairro Felixlândia, onde cresci,
ao lado de um Centro de Treinamento que oferece cursos para adolescentes e

87
Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

adultos e em frente à escola estadual Alessandra Salum Cadar. Os outros três


presídios e o posto da Polícia Militar ficam às margens da LMG-806, próximo
ao Hospital São Judas Tadeu e à Prefeitura, principal via de acesso ao centro
da cidade. O mesmo percurso segue até a Praça Central e termina no Presídio
José Maria Alkimin, também conhecido como antiga PAN – Penitenciária
Agrícola de Neves, localizado no coração da cidade. A exceção fica por conta
da localização do presídio mais recente construído, a Penitenciária do GPA
– Gestores Prisionais Associados, fruto de uma parceria público-privada
construída em terreno mais distante dos principais bairros do município.

Figura 21. Mapa das penitenciárias de Ribeirão das Neves.

Fonte: Gomes; Souza, 2020, p. 10.

A escolha pelo território nevense como destino das penitenciárias não foi
obra do acaso, mas resultado de uma política de construção e urbanização da
capital mineira. Segundo Silva e Stephan (2015) o Plano de Metas do governo
de Juscelino Kubitschek gerou um movimento de migrações internas em todo
o país a partir dos anos de 1950, o que culminou com o aumento da população
nas regiões metropolitanas, próximas às capitais. Eles explicam que o chefe da
Comissão de Construção de Belo Horizonte, Aarão Reis, desenhou o traçado
urbano da nova BH no período entre 1894 e 1897:

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Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

Esse modelo criou um caráter elitista e segregatório a capital […]


A região central com uma avenida em torno do perímetro seria
destinada a abrigar o aparelho estatal e as residências dos funcionários
públicos e antigos moradores de Ouro Preto. A zona suburbana, além
dos limites da Avenida do Contorno, seria reservada para a futura
expansão da cidade, caracterizada por padrões urbanísticos mais
flexíveis e por precária provisão de infraestrutura e equipamentos
urbanos, e para a localização de sítios e chácaras. A zona rural, por sua
vez, estaria além da faixa suburbana e consistiria no cinturão verde,
sendo formada por colônias agrícolas com a função de abastecer a
cidade de produtos agrícolas e hortigranjeiros (SILVA;STEPHAN,
2015, p. 131).

Os autores esclarecem que a avenida do Contorno realmente foi pensada para


fazer um contorno, cercando a área central que deveria ser urbana e mais
valorizada, e construíram a avenida Afonso Pena para ser uma via de acesso
para as pessoas de baixa renda que deveriam chegar ao centro para trabalhar.
Para eles, o plano do Governo do Estado de adensar Belo Horizonte no sentido
centro-periferia foi consolidado com medidas práticas: as regiões que tinham
mais acesso a recursos urbanos têm os terrenos comercializados a preços mais
altos e, por isso, os recursos urbanos foram concentrados na região centro-sul
da capital. Os agentes de imobiliárias apenas constataram que os municípios
do vetor Norte da Região Metropolitana de BH (RMBH) seriam ideais para a
criação de loteamentos destinados às famílias de baixa renda.

De acordo com Silva e Stephan (2015), o fluxo mais intenso de migração


para Ribeirão das Neves aconteceu entre as décadas de 1970 e 1980, quando
o Estado removeu as casas mais populares e terrenos de atividades informais
que “não eram compatíveis com o que era observável nas áreas centrais da
RMBH”. Os dados apresentados pelos pesquisadores revelam que em 1970 a
população nevense era composta por 5.547 habitantes; em 1980 esse número
passou para 61.670; em 1991 já eram 119.925 habitantes; 245.401 em 2000
e 294.153 em 2010. 2019 já se estima uma população de 334 mil habitantes.

O crescimento da população e a ocupação da cidade de maneira desregulamentada


e sem planejamento urbano gerou um grande aumento nas demandas por
infraestrutura básica, saúde, educação, segurança, transporte público etc.
Demandas que a Prefeitura não consegue atender, o que promove uma série
de ausências e desafios que são enfrentadas pela população diariamente.

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Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

Ou seja, a tipificação de “cidade-dormitório” também foi imposta ao município


pelo Estado numa ação pensada e articulada para valorizar as áreas centrais da
capital, que seriam mais urbanizadas e por isso com terrenos mais valorizados,
como uma forma de selecionar quem moraria nessas áreas e quem deveria
chegar apenas para trabalhar e servir aos escolhidos. Uma decisão que ainda
carrega fortes traços do período colonialista brasileiro, em que senhores não
poderiam se misturar com escravos na relação casa grande x senzala.

E não é por acaso que os dados dos documentos oficiais revelam que a maioria
das casas que foram demolidas no processo de urbanização de Belo Horizonte
pertenciam a pessoas pobres e negras. Não é por acaso que a população de Neves
seja composta por maioria negra, com um enorme déficit de investimento
público em serviços básicos de saneamento, saúde, segurança e educação.
Também não é por acaso que o território nevense tenha virado destino de
presídios.

Após a instalação da PAN, em 1938, Neves recebeu mais três unidades prisionais,
medidas que firmaram a intenção do Governo do Estado em transformar o
município em um “espaço-carcerário”. A falta de investimento público em
serviços básicos e de infraestrutura contribuiu para que Neves recebesse um
estigma de “cidade presídio”, o que era agravado pelos altos índices de violência
e pobreza (SILVA;STEPHAN, 2015, p. 138).

Diante disso, é possível começar a entender que a publicação do Diário Oficial


do Estado de Minas Gerais se referindo à cidade como “Ribeirão das trevas”
foi tão somente a oficialização de um discurso que vem sendo consolidado ao
longo dos anos. Impressiona o fato de que os próprios equipamentos públicos
que deveriam cuidar da memória cultural e histórica da cidade apresentam
mais um grito silencioso de ausência. As poucas informações disponíveis,
nesse sentido, reforçam o estigma negativo.

Quando falo em estigma, utilizo a conceituação feita por Erving Goffman (1963)
que investigou o sistema de manipulação das identidades. O autor explica que
existem categorias criadas pela sociedade que classificam as pessoas e seus
atributos como comuns e naturais ou como estranhos ao que é considerado
normal. Os aspectos dos indivíduos que podem ser percebidos dentro dessas
categorias são o que formam sua “identidade social”.

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Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

Os estigmas são rotulações discursivas, frutos da narrativa dominante que


privilegia como normal os brancos, héteros e ricos, pois é essa população que
historicamente tem sido considerada como natural e comum. Mas apenas porque
esse grupo é que detinha poder econômico e político suficiente para dominar
os sistemas educacionais e comunicacionais que disseminam o pensamento
excludente dos que são considerados fora do padrão, “os outros”. Cidade-
presídio, cidade-dormitório, cidade do lixão, cidade das trevas. Os estigmas
da cidade são transferidos para seus moradores, que passam a vida lidando
com as consequências de serem das trevas.

Ribeirão das Neves e os algoritmos da opressão

Como vimos, Ribeirão das Neves foi construída para ser o dormitório das
pessoas que deveriam passar a jornada de trabalho a serviço das classes média
e alta localizadas na capital mineira. Essas informações ajudam a esclarecer
por que o Arquivo Público contém tão poucas informações e registros da
memória e da cultura do povo nevense, já que foi o Estado que se propôs a
contar a história e a determinar os papéis a serem desempenhados por quem
os enviou para lá. Ao contrário da escassa fonte de memórias oficiais sobre
Ribeirão das Neves, existe uma infinidade de informações quando analisadas
sob a ótica da notícia. A imprensa mantém uma cobertura quase linear do
território nevense, e os temas mais importantes são mais do mesmo: pobreza,
violência, prisões.

Essa narrativa jornalística acompanhou os avanços tecnológicos e também


migrou para os meios virtuais. Por curiosidade, decidi pesquisar na internet
por meio do sistema de palavras-chave digitadas no site de busca do Google.
Digitei “Ribeirão das Neves” no buscador e encontrei o seguinte:

Figura 22. Print pesquisa no google.

Fonte: Gomes; Souza, 2020, p. 15.

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Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

Todas as palavras que aparecem são relacionadas a questões territoriais,


como estado de Minas Gerais, CEP, mapa, DDD etc. Porém, a única palavra
que aparece fora desse contexto geográfico e em segundo lugar no ranking
da pesquisa é “presídio”. Concluí minha pesquisa digitando apenas o termo
“notícias” seguido do nome da cidade, e o resultado foi:

Figura 23. Pesquisa no Google – “Ribeirão das Neves Notícias”.

Fonte: Gomes; Souza, 2020, p. 16.

Só essa busca básica e rápida na internet, que qualquer pessoa com acesso ao
celular pode fazer, revela o assunto mais comentado nos jornais quando se
trata de Ribeirão das Neves. Na mídia local e nacional, o tema está sempre
ligado ao medo e à violência. Com todo esse cenário informacional montado
mentalmente, fica mais fácil entender quem decidiu escrever “Ribeirão das
Trevas” no Diário Oficial do Estado de Minas Gerais.

Se antes a disputa por espaço na mídia se concentrava nos espaços das notícias,
hoje a disputa das narrativas ganha um agravante de alcance incomensurável
no ambiente virtual: a luta dos algoritmos. Segundo a reportagem de Sergio C.
Fanjul para o jornal El País (2018), o algoritmo é uma sequência de instruções
realizadas para encontrar a solução de um problema. Os algoritmos rastreiam
os dados e apresentam os resultados dos problemas.

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Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

Por exemplo, o repórter explica que o algoritmo do Google, chamado PageRank,


é um dos mais famosos do mundo porque rastreia a web e apresenta resultados
de busca classificados em um ranking de importância. Ou seja, ele identifica
os dados que aparecem mais relacionados a uma palavra-chave específica e
apresenta os dados mais “importantes” primeiro. Em tese, importantes são
os conteúdos mais completos, com desenvolvimento de tema e em que as
palavras-chave inseridas aparecem com mais frequência.

O que torna a cidade de Ribeirão das Neves identificada com dados sobre
violência, prisões, morte, medo etc.? Dos 468 mil resultados encontrados
em 0,50 segundos pelo algoritmo do Google, a palavra presídio aparece em
segundo lugar. Quantas mil vezes Ribeirão das Neves foi associado a temas
relacionados à palavra prisão para torná-la relevante a ponto de ocupar o
segundo lugar no ranking de palavras mais pesquisadas pelos usuários na web?

Corrêa e Bertocchi (2012) chamam de “algoritmos curadores” essas soluções


matemáticas que organizam as informações em um ranking de relevância,
e que podem ou não utilizar inteligência artificial. No entanto, ressaltam
que os algoritmos programados por inteligência artificial tendem a realizar
essa curadoria de informações baseados nos padrões de comportamento e
cliques dos usuários e, por isso, tendem a olhar para trás, buscando apenas
mais informações similares aos registros deixados durante a navegação sem
apresentar nada de novo, sem nenhum critério de qualificação das informações
e sem novidades que proponham novos olhares e reflexões.

Sofiya Noble (2018) realizou uma extensa pesquisa sobre o poder dos algoritmos
na era do neoliberalismo e a forma como essas decisões digitais reforçam as
relações de opressão social baseadas no racismo e sexismo. A pesquisadora
chama a atenção para o fato de que, apesar das formulações matemáticas
pressuporem que os algoritmos e base de dados são neutros e objetivos, eles
podem sim continuar as narrativas de opressão social porque são formulados
por seres humanos que têm crenças diversas. São eles quem definem os códigos
utilizados para filtrar e organizar as informações que apareceram na primeira
página de resultados, e se os resultados trazem primeiro informações racistas
e sexistas há um sério problema no processo de programação. “A organização
da informação é uma questão de processo sociopolítico e histórico que atende
a interesses particulares” (NOBLE, 2018, p. 7).

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Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

De acordo a autora, esse processo de gestão do conhecimento apresenta reflexos


dos preconceitos sociais já existentes em nossa sociedade, uma vez que no
centro dessa curadoria estão os seres humanos. As práticas de classificação
em sistemas pertencentes ao passado acabam sendo validadas também no
presente, e vão continuar até que as empresas realmente se comprometam
em investir na reparação dos arquivos de conhecimento que estão indexados
na rede de computadores.

As disparidades raciais online não podem ser ignoradas porque fazem parte
do contexto no qual as TICs proliferam, e a Internet está tanto reproduzindo
relações sociais quanto criando novas formas de relações baseadas em nosso
engajamento com ela. [...] Conforme os usuários se envolvem com tecnologias
como mecanismos de pesquisa, eles co-constroem dinamicamente o conteúdo
e a própria tecnologia. A informação online e o conteúdo disponível na busca
também são estruturados de forma sistêmica pela infusão da receita publicitária
e pela vigilância das buscas dos usuários, que os sujeitos de tais práticas têm
muita pouca capacidade de remodelar ou reformular. (NOBLE, 2018, p. 11).

O que fica claro nesses estudos sobre algoritmos e organização das informações
na internet, é que os mesmos mecanismos de controle e classificação social
baseados em princípios excludentes, racistas e classistas se perpetuam no
ambiente virtual. E entrar em disputa com essas narrativas dominantes é um
trabalho de resistência que exige criatividade e investimento, assim como no
ambiente off-line.

No que diz respeito ao envolvimento sério das empresas como a Google, Noble
(2018) acredita que o caminho para superar essa opressão algorítmica seja a
criação de alternativas para os mecanismos de pesquisa, junto com ações do
jornalismo voltadas para o interesse público a fim de oferecer informações
de qualidade e mais diversas. “Em vez de priorizar as narrativas dominantes,
as plataformas de busca na internet e as empresas de tecnologia poderiam
permitir uma maior expressão e servir como uma ferramenta democratizadora
para o público” (NOBLE, 2018, p.29).

Não é meu interesse como pesquisadora, nem parece ser o dos skatistas da
Just Crew, dizer que essas notícias e informações que circulam sobre a cidade
são mentiras. Na verdade, todos esses desafios mencionados acima e o que
foi veiculado na mídia são reais. O problema desse enfoque nas ausências,
violência e medo que essa narrativa “sombria” acarreta é o que a citada escritora

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Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

nigeriana, Chimammanda Adichie (2009) chama de “uma história única”. Toda


esta conversa sobre prisões e faltas, que se repetiu incansavelmente ao
longo dos anos, criou uma história única sobre Ribeirão das Neves. Como
se além da escuridão, não houvesse mais nada. Esse sentimento vivido por
jovens skatistas é semelhante ao que Chimammanda contou em sua palestra
sobre sua experiência com um colega de quarto, durante a faculdade nos
Estados Unidos.

O que me impressionou foi que: ela sentir a pena de mim antes mesmo de
ter me visto. Sua posição padrão para comigo, como uma africana, era um
tipo de arrogância bem-intencionada, piedade. Meu colega de quarto tinha
uma única história sobre a África. Uma única história de catástrofe. Nessa
única história não havia possibilidade de os africanos serem iguais a ela, de
jeito nenhum. Nenhuma possibilidade de configuração mais complexa do
que piedade. Nenhuma possibilidade de uma conexão como humanos iguais
(ADICHIE, 2009).

A escritora afirmou que passou a compreender a visão da colega de quarto


sobre os povos do continente africano ao perceber que tinha ouvido, “toda
a sua vida, diferentes versões de uma mesma história”. E são justamente as
diferentes versões da mesma história do município nevense que facilitam
a brincadeira com o trocadilho “Ribeirão das Trevas” e todos os estigmas e
rótulos estampados em seus moradores, que se apresentam, antes mesmo de
poderem responder “quem é você?”.

Teresa Caldeira (2011) apontou em sua pesquisa que a narrativa do medo é


construída pela repetição de histórias que disseminam o senso comum sobre o
crime, promovendo a discriminação e criando estereótipos sobre determinados
grupos, além de deslegitimar as instituições criadas para manter a ordem
(como a judiciário, PM etc.) e legitimar a justiça privatizada, por meio de
ações vingativas e ilegais de violência.

No caso de Ribeirão das Neves, o que ocorre é que seus moradores são
constantemente associados a correntes, crimes e violência, como se fôssemos
todos bandidos ou parentes de bandidos. Esse discurso, tantas vezes repetido,
cria nos moradores o medo de serem identificados também como criminosos,
pois o estigma fecha inúmeras portas e relacionamentos. O estigma faz com
que pessoas de outras regiões consideradas “normais” se sintam à vontade para
criticar, ridicularizar e humilhar os “diferentes” na cidade das trevas. Faz com
que o discurso do medo se torne natural, o que por sua vez naturaliza discursos

95
Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

de ódio e repulsa àqueles considerados descendentes do mal, e naturaliza o


pensamento de que é necessário erradicar o mal e libertar as pessoas do “bem”
dos perigos e do crime.

Este discurso ganhou as eleições presidenciais no Brasil em 2018 e assumiu


um lugar de poder e decisão política, um lugar onde fazer gestos de mão e
arma é sinal de defesa do bem e da moral e autoriza a morte e invisibilidade
daqueles que estão na categoria “diferente”. Por muitos anos é comum ouvir
de alguns dos próprios nevenses frases como “Moro perto de Venda Nova”,
“Morei em BH e estou aqui por pouco tempo se Deus quiser”, ou “Neves é
a treva! “. Esse acordo, no fundo, esconde uma atitude desesperada para se
livrar do estigma e se diferenciar dos criminosos nas prisões, uma busca pela
sobrevivência. Não é por ser residente na cidade dos presídios que também
sou criminoso ou também preso, mas o estigma faz-me associar a este universo
simbólico do medo e do crime sempre que me apresento como um nevense.
E, como tal, coloca todos nós em risco.

As brincadeiras e comentários maliciosos estão caindo nas falas dos próprios


nevenses, que usam o repertório contra o próprio povo, contra o vizinho,
para se diferenciarem e se manterem vivos. O problema é que essa ação não
rompe o discurso da violência contra os nevenses, ela apenas reforça e divide
as forças, nos coloca uns contra os outros. Impede o desenvolvimento do
sentimento de solidariedade e pertença, contribui para o rompimento dos
vínculos afetivos com as pessoas e com o território.

Essa associação simbólica de nevenses com o mal, com o mau e o precário, é


uma tática discursiva decorrente de mais preconceitos gerados por pessoas que
se consideram superiores e que ocupam lugares de poder e decisão. É fruto
de um pensamento milenar, várias vezes negado, carregado de concepções
colonialistas e racistas de uma classe que precisava de argumentos para escravizar
e controlar povos inteiros: a ideia de que o negro e o pobre são irracionais,
não têm capacidade de decidir e de ser bons por si próprios.

Essa história única é contada desde a colonização do Brasil, desde a barbárie de


europeus sequestrando africanos, matando, separando famílias e obrigando-os
a trabalhos forçados. Essa história única, repetida milhões de vezes ao longo
dos séculos, com vestimentas, contextos e gêneros literários diversos, é o
que permite que a população negra e pobre continue sendo forçada a ocupar
lugares periféricos, ter seus direitos negados e sua dignidade ferida.

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Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

Chimammanda (2009) também explicou porque é um perigo que haja apenas


uma história sobre um determinado lugar. “A consequência de uma única
história é a seguinte: rouba a dignidade das pessoas. Isso torna difícil reconhecer
nossa humanidade compartilhada. Enfatiza como somos diferentes ao invés
de como somos semelhantes”. A história associada ao nome “Ribeirão das
Trevas” não é a única história da cidade, mas sim a mais contada. Mas existem
inúmeras outras histórias para descobrir, e é urgente que novas narrativas
também ganhem espaço e visibilidade. Até porque para que esses problemas que
dificultam a vida dos nevenses sejam resolvidos, é importante que a população
se engaje no processo de mudança. E como você consegue a participação
voluntária e engajada das pessoas sem que elas tenham um forte “senso de
pertencimento”?

Como a maioria dos moradores não possui vínculo afetivo com o território,
pois nasceram em outras cidades e se mudaram para lá por causa dos preços
baixos dos lotes, o sentimento de pertencer a Neves precisa ser plantado e
cultivado. Essas pessoas não construíram memórias com o lugar, não têm
experiências que fazem parte da história de sua família. Eles já estão de
alguma forma vivendo com uma certa distância emocional desse território. E,
convenhamos, ninguém quer se identificar e sentir que pertence a um lugar
de “escuridão”. Por isso, é tão urgente e relevante que outras histórias sejam
contadas sobre esse território.

É isso que a Just Crew vem fazendo há 20 anos. Eles estão contando outra
história. Entrando em disputa com a narrativa dominante sobre as trevas e
contando outras histórias, com outros personagens e outras tramas. Estão
oferecendo outras experiências e oportunidades para que os citadinos,
principalmente os mais jovens, se identifiquem, façam parte. Eles estão
tentando reconstruir não apenas suas próprias histórias de vida, mas também
sua dignidade e, consequentemente, estão reconstruindo a dignidade de outros
nevenses também. Essa é a história que conheceremos mais de perto a seguir.

Quem são os jovens skatistas e como eles se tornaram


uma crew?

Um estava sozinho em casa, desanimado por não ter o que fazer. Outro passou
pela praça e viu caras mais velhos fazendo coisas “muito doidas, da hora
mesmo” com o skate. E outro ainda, tentou uma volta no skate de um amigo e

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decidiu que queria aprender isso. Todos, em comum, falaram sobre a tristeza
e desânimo de ficar em casa todo dia só assistindo televisão, sem ter o que
fazer. De acordo com dados do último censo realizado em 2010 pelo IBGE,
a população jovem com idade entre 15 e 29 anos5 residente no município
nevense era estimada em mais de 84 mil habitantes. Desses, aproximadamente
56 mil estavam em situação economicamente ativa.
Somando-se a esses dados todo o contexto já relatado sobre o território nevense,
é possível compreender a angústia relatada pelos jovens pela falta de ocupação
criativa nos horários em que não estavam na escola. Para a maioria deles, a
televisão era a companheira das horas vagas, mas assistir à programação não
preenchia o vazio. Por isso, eles estavam em busca de alguma novidade, algo
que os tirasse da inércia e da solidão que era ter apenas uma televisão como
companhia em casa.
Cada um desses solitários, em momentos distintos, se rendeu às ruas em busca
de algo que devolvesse o brilho no olhar e a alegria. Acabaram descobrindo,
na pracinha de Justinópolis, alguns jovens com seus skates e se aproximaram
para observar. Os skatistas mais antigos da praça conheciam muito bem
aquele olhar de curiosidade e a solidão por detrás do silêncio observador. E
se deixaram conhecer, ao mesmo tempo em que se abriram para conhecer
aqueles que passavam pela praça. Mesmo sem saber muito bem o que fazer, os
que foram chegando encontraram nesse grupo aquilo que estavam buscando,
permitindo que o skate vencesse o silêncio das tardes dando lugar para uma
grande crew (palavra em inglês que quer dizer “galera”).
Figura 24. Just CrewSkateboard.

Fonte: Gomes; Souza, 2020, p. 27.

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Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

O skate é uma modalidade esportiva que ganhou visibilidade e atraiu muitos


jovens nos últimos anos, especialmente, por unir diversão e adrenalina. O
antropólogo Giancarlo Marques Carraro Machado (2011) realizou uma pesquisa
sobre a prática de skate nas ruas de São Paulo explorando a modalidade do
Street Skate, que é também a modalidade praticada pela JustCrew Skateboard, e
constatou que 42% dos praticantes situavam-se nas classes A e B, o que seria
justificado pelos altos custos de compra e manutenção dos equipamentos.
Porém, esse perfil vem sendo modificado ao longo dos anos, como indica a
última pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha em 2015, encomendada
pela Confederação Brasileira de Skate (CBSK). As estatísticas revelam que
48% dos praticantes se encontram agora na Classe C, ultrapassando os 44%
de praticantes concentrados nas Classes A e B, e 27% nas classes D e E.

O skate em Ribeirão das Neves segue o perfil da pesquisa, a cidade se encontra


na região metropolitana de Belo Horizonte e o grupo de skatistas é composto
em sua maioria por homens, que iniciaram a prática esportiva entre 12 e 17
anos. Porém, chama a atenção que dos nove integrantes da Just Crew que
participaram desta pesquisa, todos são negros e pertencentes às classes D e
E. Sete estão na faixa etária de 15 a 29 anos e dois possuem mais de 35 anos.
Ou seja, eles já começam, por aqui, a fugir do padrão do que se espera sobre
os skatistas. Afinal, eles são pobres e negros.

Davidson Maurício Meireles, mais conhecido como Deivim, é um dos criadores


da Just CrewSkateboard. Ele tem 38 anos e começou a andar de skate aos 13
anos. Desde então, percorre as ruas da cidade com seu carrinho. Segundo ele,
a prática do skate na quebrada (próximo à Praça de Justinópolis) começou
em 2000 com um passeio entre amigos em busca de descontração. A praça
tornou-se ponto de encontro do grupo para a prática do skate, antes mesmo
de se chamarem de “equipe”. 20 anos depois, o grupo resiste dinamicamente,
“sempre tem alguém saindo e alguém entrando”. Davidson, Wesley e Israel são
os pioneiros que continuam até hoje a manter a relação de grupo com quem
chega e faz os “corres” para a construção de obstáculos e outras atividades
grupais na cidade.

Wesley Queiroz da Silva, apresentado pelos demais como Wesley Snipes - em


referência ao ator americano de mesmo nome - tem 26 anos e faz parte
da equipe há mais de uma década. Wendel Israel, 19 anos; Gabriel, 18;
Alexandre, 19 anos; Helias, 20 anos; Breno, 17. Os três já eram amigos antes
de se interessarem pelo skate e acabaram reforçando os laços ao conhecer o

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Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

esporte. Segundo Gabriel e apoiado por outros, a praça é como uma segunda
casa e a Just Crew é como uma família. Gabriel e Alexandre até dividiram
o mesmo skate quando começaram a treinar.

Com o apoio de um cabo de vassoura, os dois amigos treinaram em casa antes


de se aventurarem no coreto da praça. Segundo Alexandre, a praça se tornou
a segunda casa há pouco mais de um ano e três meses. Wendel diz que sua
paixão pelo skate não só o livrou do tédio das tardes, mas também ampliou
seu círculo de amizade e convivência. Helias mudou-se para Ribeirão das
Neves há cerca de quatro anos, e também se rendeu ao skate por incentivo
de um amigo. É o caso de Nathan, que também se mudou recentemente para
a cidade e descobriu que uma alternativa à praça abandonada do bairro de
Felixlândia era a praça dos skatistas em Justinópolis.

Eu cheguei aqui, eu comecei a andar por causa de um colega meu,


Isaías. A gente foi lá no Mineirão, andou lá, eu gostei. Aí depois
de um tempo eu consegui juntar um dinheiro, e comprei um. Aí eu
fiquei sabendo que aqui na praça tinha gente que andava, aí eu vim
cá. E até hoje, tamo indo. Deve ter uns quatro anos que eu moro em
Ribeirão das Neves (GOMES; SOUZA, 2020, p. 29).

Por meio desses depoimentos é possível perceber que a ausência de ocupação


profissional e a falta de opções de moradia e lazer são compartilhadas por todos
como os principais motivos do tédio e da solidão que sentem. O skate chegou
como uma novidade apresentada de amigo para amigo, oferecendo a emoção
que tanto buscavam para preencher os vazios. E foi a partir da identificação
entre esses jovens que a amizade se fortaleceu, transformando o grupo de
skatistas em uma família, como destacou o Gabriel durante a entrevista: “Esta
praça aqui também é minha segunda casa, junto com a Just Crew lá, minha
família.”. Esses são apenas alguns dos jovens que participam do movimento e
que se dispuseram a contar a história do grupo em nosso segundo encontro.

Ao todo, cerca de 30 outros jovens se revezam no fortalecimento do grupo


e no skate na praça. Fazer parte desse grupo não só os tornou praticantes
de street skate, mas também transformou a vida desses jovens, como eles
mesmos destacam, mudando completamente a rotina e a forma como se
sentiam e se enxergavam.

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Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

Antes fazia skate, eu era muito desanimado, não tinha muitas amizades.
Agora, daqui, conheço todo mundo. Eu já conheci os familiares de
alguns aqui, tem dia que eu tô lá em casa lá, e tô meio desanimado,
talvez até triste, eu venho pra cá, sento uma manobra e fico feliz três
dias direto. Então é isso aí (GOMES; SOUZA, 2020, p. 30).

A linguagem e os conceitos próprios do skate foram disseminados entre eles


por meio de vídeos postados na plataforma do YouTube, que eles buscaram
para aprender mais sobre o esporte e as manobras, e também pela influência
de Deivim, Israel e Wesley. Ainda hoje, eles exercem o papel de líderes de
grupo e são referenciados pelos demais por sua disposição em motivar a crew,
organizar campeonatos e compartilhar seus conhecimentos técnicos com o
grupo. Apesar disso, eles não se restringem ao círculo de amigos formado nesta
crew. Através do skate, eles conhecem outras equipes e jovens fãs do esporte
ou que participam de ações coletivas semelhantes, criando uma grande rede de
apoio e contato. Como é o caso do grupo de skate do centro de Ribeirão das
Neves, chamado Neves Gamba, que teve a parceria da Just Crew na realização
de um campeonato em julho de 2018.

O nome do grupo remete à linguagem do skate, mas também ao simbolismo da


relação construída entre eles. Segundo o Deivim, o termo Just vem do nome
da regional nevense, Justinópolis, e Crew, porque também significa galera, “é
uma galera que se reunia ali para andar de skate”. O grupo existe e resiste há
20 anos, mas só recentemente ganhou esse nome, com os novos integrantes.
Alexandre explicou que começaram a nomear oficialmente o grupo depois
que sentiram a necessidade de compartilhar vídeos nas redes sociais, a fim de
dar mais visibilidade às ações.
A gente começou mesmo com o nome Just Crew foi através de um
canal no YouTube que a gente decidiu criar. Aí desde então a gente
criada em criar uma blusa, página no Facebook, página no Instagram,
foi mais através disso mesmo: aquela vontade de ter um canal no
YouTube. Ah! Vão fazer, nó, mas que nome que nos vão colocar?
Nóh, o Deivim fala muito Just crew, vamo colocar justcrew. Aí foi
assim que a gente colocou o nome Just Crew (GOMES; SOUZA,
2020, p. 31).

A principal forma de mobilização entre eles é o aplicativo de conversas de


celular Whatsapp, no qual criaram um grupo em que compartilham fotos
e vídeos dos rolês, marcam datas e horários para os treinamentos e avisam
sobre as intervenções que farão nos espaços em que ocupam e na cidade.

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Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

Uma das principais intervenções que a crew fez no espaço público se deu na
Praça de Justinópolis. Na ausência de pistas e locais para prática esportiva
e lazer, eles decidiram reformar o coreto e o transformaram em pista.
Eles mobilizaram a comunidade local, parceiros e doadores de materiais e
promoverem a limpeza e pintura de toda a praça, bem como conseguiram
a iluminação do espaço.

Em 2019, a Just Crew juntou-se a outros coletivos da cidade e ocupou uma


escola abandonada pelo governo em Justinópolis. Juntos, eles reformaram os
espaços da escola e a transformaram em cenário de diversas atividades gratuitas
para os moradores de Neves, tais como: Centro de Treinamento Avançado
Just Crew, Oficinas de Skate para iniciantes, Escola de Circo, Atividades
Esportivas, Oficinas de Empreendedorismo, entre outros. Mais recentemente,
sentindo o aumento da demanda de jovens sem atividades escolares por causa
da pandemia do Covid-19, eles também reformaram uma pista de skate que
estava inacabada e abandonada há anos pela Prefeitura, ampliando os locais
de encontro e treinamento da crew.

A Just Crew tem realizado um trabalho similar ao proposto por Noble (2018)
no enfrentamento aos algoritmos da opressão: apresentando contranarrativas
que questionam a história única das trevas dos mecanismos de busca na
Internet e promovendo o engajamento de mais usuários com esse conteúdo
diferenciado. Com canais no Facebook, YouTube e no Instagram, a crew
publica diariamente fotos e vídeos de suas atividades nos espaços públicos e na
Ocupação Curumim, onde funciona o Centro de Treinamento Avançado. São
nessas redes sociais que eles divulgam a programação, horários e apresentam
outras histórias possíveis para jovens, homens, negros e periféricos como eles.

Somente a conta oficial do grupo no Instagram (@just_skate_crew) possui


atualmente mais de 3.100 seguidores e mais de 200 publicações em que eles
abusam das palavras-chave em inglês relacionadas ao universo do skate em suas
legendas. É dessa forma, que eles conseguem que seu conteúdo seja indexado
e divulgado nas buscas relacionadas aos temas “skateboard” e “ribeirão das
neves”. Eles atraem visitantes para o perfil e promovem o engajamento por
meio das curtidas, comentários e compartilhamentos dos posts, e aos poucos,
vão deixando também no meio digital novas palavras de histórias que valorizam
a vida e as sociabilidades dos jovens nevenses.

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Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

Nilma Lino Gomes (2019) afirma que o movimento negro brasileiro é um


movimento educador. Ela faz essa afirmação com base em extensas pesquisas
sobre os movimentos sociais negros no Brasil e como seu papel tem um
papel educativo, visto que são produtores “de saberes emancipatórios e
sistematizadores de saberes sobre a questão racial no Brasil. Conhecimento
transformado em demandas, das quais várias se tornaram políticas de Estado
nas primeiras décadas do século XXI” (GOMES, 2019, 25). Nas palavras
da autora:
Parte-se da premissa de que o Movimento Negro, assim como outros
movimentos sociais, ao agir social e politicamente, reconstrói
identidades, traz indagações, ressignifica e politiza conceitos sobre si
mesmo e sobre a realidade social. […] O Movimento Negro, entendido
como sujeito político produtor e produto de experiências diversas
sociais que ressignificam a questão étnico-racial em nossa história, é
reconhecido, nesse estudo, como sujeito de conhecimento. (GOMES,
2019, p. 32).

A Just Crew, apesar de não se autodenominar como tal, atua como um


movimento social em busca de reconhecimento, como na definição sugerida
por Honneth (2003) que se baseia na experiência do Amor, do Direito e da
Solidariedade. Além disso, a crew é um movimento skatista educador porque
sua ação é voltada para a educação. Com seus skates e todas as suas formas de
mobilização, treinamento e resistência, esse grupo composto quase inteiramente
por negros e jovens, encontrou uma forma de educar a cidade e os próprios
moradores para uma outra cultura, mostrando que outro Ribeirão das Neves
é possível.

É notável como é intensa a relação desses skatistas com o território nevense.


Eles olham para a cidade de uma maneira completamente diferente dos olhos
que a condenam às trevas. Eles olham para a cidade e a modificam com os olhos;
intervêm no espaço público e o modificam, valorizando o patrimônio sem
cobrar nada por ele. A Just Crew está reeducando os nevenses, principalmente
os mais jovens, para descobrir outra cidade: Ribeirão das Neves. Uma cidade
que não é das trevas, uma cidade que se pode amar.

A Just Crew dá um ollie sobre o medo e transforma a cidade de Ribeirão das


Neves em um lugar de encontro, de amizade, de superação de obstáculos.
Eles entram na disputa pelo reconhecimento de seus direitos como “cidadãos
do mundo”, como Davidson orgulhosamente definiu ao descrever a missão

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Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

da crew. Eles reinventam a cidade e iluminam as trevas, reivindicando seu


direito à cidade. Eles fazem a cidade.

Michel Agier (2015) afirma que a cidade é constituída essencialmente por


movimento e que esse movimento é o de “fazer-cidade”. O pesquisador sugere
uma antropologia do “fazer-cidade” apresentando três aspectos que podem ser
considerados efeitos da ação urbana: invasão, ocupação e instalação.
1) arquitecturas em um distanciamento (um acampamento, na invasão
de um local vazio). É o gesto primeiro da invasão entendida como
desobediência e como ilegalidade assumida; 2) presença recalcitrante
sobre o próprio local ‘eu ficarei aqui, não importa o que haja’; e 3)
opera uma Transformação Urbana, graças aos mecanismos duráveis
de instalação. (AGIER, 2015, p. 493).

Nessa perspectiva, podemos dizer que a Just Crew, de fato, faz a cidade. Ao
invadir o coreto da praça e usá-lo como pico para suas manobras, desobedecem
à ordem imposta sobre os usos aceitáveis para aquele local. Em seguida, a
equipe instala-se ali fazendo modificações na estrutura, adequando o espaço
para os usos que pretende fazer, reformando o entorno com o objetivo de que
mais pessoas sejam atraídas para a praça e promovendo a reabilitação daquele
local. E, com o tempo, o que se percebe é que operaram uma verdadeira
transformação urbana, pois promoveram realmente uma instalação durável
que envolveu e engajou as pessoas no uso e ocupação do espaço para diversos
outros fins (como batalhas de MC), reurbanizando um lugar antes abandonado
por medo das narrativas.

Eles literalmente dão um ollie sobre a ordem controladora do poder público,


porque saltam sobre o que estava previamente estabelecido como barreira e
fazem desse salto um vôo mais próximo da dignidade que tanto tentam lhes
roubar. Eles dão um ollie sobre a negação de seus direitos como cidadãos e
fazem seu direito à cidade valer. Para uma cidade que é sempre a mesma, eles
trazem novidade. A Just Crew contesta as trevas e constrói a possibilidade
mais concreta e real de existência da cidade de Ribeirão das Neves.

A própria representação da cidade foi transformada pela experiência desses


jovens skatistas, como eles próprios relatam. Acostumados a ouvir piadas e
comentários sobre a distância e a dificuldade de acesso a outras regiões, e
sobre o medo da proximidade das penitenciárias, de amigos da capital mineira,
agora despertam a curiosidade de outros jovens skatistas atraindo visitantes
para o Coreto da Praça de Justinópolis.

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Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

Isso aí já tá saindo, entendeu? Da visão do povo. Porque a gente


já tá [sic] conseguindo colocar, tá vindo uns pessoal lá do centro
(Centro de Belo Horizonte) andar aqui. Tipo olha que lindo aquele
pico lá do centro, um pico lá do centro muito bom, e os cara tá[sic]
vindo andar aqui por causa de quê? Não é porque os pico[sic]é bom.
É por causa da gente, entendeu? Eles estão vendo que a gente tá[sic]
correndo atrás […] (Gabriel, outubro de 2018).

Eu acho que o Ribeirão das Neves que a gente tá[sic]construindo […]


Somos nós! A gente é Ribeirão das Neves. O skate tá[sic]transformando
Ribeirão das Neves e a gente num lugar mais conhecido, com cultura,
com lazer. A praça da matriz de Neves hoje em dia é conhecida como
a praça dos skatistas. E não tá[sic]sendo à toa. É porque nós estamos
dedicando pra [sic]isso. Nós quer[sic]que aqui, futuramente, tudo
que a gente tenha feito seja uma coisa que mais e mais vai crescer.
Que não vai morrer com a gente, sabe? Eu acho que Neves hoje em
dia tá[sic]sendo um lugar melhor, pelo menos aqui. Aqui na praça
tá[sic]sendo um lugar melhor. Claro que, como todo lugar, tem suas
coisas ruínas, tem suas crises, mas quando a gente fala de skate em
Ribeirão das Neves na praça matriz, já tá[sic]evoluindo [...] (Breno.
Entrevista concedida a Rafaela Goltara. Ribeirão das Neves, outubro
de 2018).

Essas falas dos meninos deixam muito claro o quão revolucionário é o encontro
que tiveram individualmente com o skate e coletivamente entre si. A prática
dessa modalidade esportiva os colocou em contato com uma realidade diferente
daquela que vinham vivenciando, de solidão e auto-ódio. Ao reler essas
conversas e assistir aos vídeos novamente, lembro como eles foram enfáticos
quando disseram que estavam tristes em casa, sem nada para fazer, que não
tinham nada e ninguém. Volto às palavras de Breno (2018): “Não me conhecia
antes de andar de skate. Eu não sabia o que queria fazer. O que eu queria.
Eu apenas fiz coisas”. É como se ele não existisse antes, apenas reagindo aos
estímulos que recebeu.

A história única das trevas, a narrativa racista que o Estado, a Imprensa e os


algoritmos virtuais contam a Breno diariamente rouba muito mais do que
eu ou eles conseguimos expressar nessas linhas escritas. A tristeza, a baixa
autoestima e a solidão que compartilhavam sem saber, é fruto de uma narrativa
contada simbolicamente, de forma sutil e também escancarada, que ensina
jovens negros e pobres a se odiarem. O ódio nutrido silenciosamente por si
mesmo, por não ser branco o suficiente, por não ser rico o suficiente, por
nunca ter e nunca ser suficiente para ser aceito, visto, reconhecido e amado,
105
Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

deixa marcas profundas na memória, no coração e na alma desses jovens. O


autoódio é avassalador e tem um poder destrutivo de assujeitamento que,
muitas vezes, sequer conseguimos entender a extensão e as formas como irá
reverberar e se manifestar em nossas vidas. Meninos negros ensinados a se
acostumar com olhares e atitudes de ódio estão mais próximos das experiências
de morte do que de vida.

Não é à toa que as estatísticas mostram que os negros são os que mais morrem
no Brasil. Dados do Atlas da Violência 2019 indicam que, em 2017, 75,5% das
pessoas assassinadas no país são negras. “No período de uma década (2007
a 2017), a taxa de negros assassinados aumentou 33,1%, enquanto a de não
negros apresentou um pequeno crescimento de 3,3%” (CERQUEIRA et al.,
2019, p. 49). Desde sempre, a história única sobre Ribeirão das Neves e sobre
as pessoas negras ensina para o Breno que ele não é alguém digno de existir,
digno de amar e ser amado, digno de ser reconhecido como um ser humano
com direitos e talentos, que ele não é alguém digno para sonhar.

Uma sociedade racista usa de várias estratégias para discriminar o negro.


Alguns aspectos corporais, no contexto do racismo, são tomados pela cultura
e alguns um tratamento discriminatório. São objetivos para retirar o negro
ou o status de humanidade. Talvez seja esta uma das melhores maneiras de o
racismo se perpetuar. Ele transforma as diferenças inscritas no corpo em marcas
de inferioridade. Nesse processo são padrões de superioridade/inferioridade,
beleza/ feiúra. (GOMES, 2003, p.79).

Segundo Nilma (2003, p. 81), a contribuição da cultura negra para a educação


está justamente nesse processo de ressignificação e construção de representações
positivas sobre os negros, sobre suas histórias, culturas, corporeidade e
estética. A Just Crew é um movimento skatista educador porque reconstrói e
cria essas novas possibilidades de representação, não só para a cidade e seus
moradores, mas sobretudo para esses jovens negros e periféricos. Ensinados
pelas narrativas dominantes para se autoodiarem, eles encontram no skate a
narrativa do autoamor.

Por isso, quando o Breno diz “o skate é a vida! Skate é a nossa vida, não tem
como!”, ele está dizendo muito mais do que “o skate é um esporte que eu não
posso viver sem”. A experiência do encontro que o skate promoveu entre esses

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Acesso Aos Bens Culturais | Unidade IV

jovens negros solitários, tristes e marcados para morrer, devolveu para eles
a vida. O ollie que a Just Crew oferece não é apenas sobre narrativas. Ouso
dizer que eles dão um ollie é na morte mesmo. O skate é vida! É vida porque
foi um instrumento facilitador de encontros que ousaram contar uma história
de vida, de amizade, de sonhos, de voo.

A história contada, milhares e milhares de vezes, sobre o medo, a morte e


o enclausuramento perdeu o sentido para eles quando experimentaram no
coletivo e no skate sentimentos de confiança, vida e liberdade. O amor é
realmente revolucionário. Amor e amizade, a união que todos apontam como
a principal conquista dessa prática esportiva, é um ato político de liberdade.
Estão se reeducando para a vida, para a sociabilidade, para a experiência da
beleza e do amor.

Bell hooks (2019, p. 63) também acredita no poder do amor para transformar
a realidade de quem teve que se ver e ouvir desde o nascimento em contos
de morte.
Coletivamente, as pessoas negras e nossos aliados somos empoderados
quando praticamos o autoamor como uma intervenção revolucionária
que mina as práticas de dominação. Amar a negritude como resistência
política transforma nossas formas de ver e ser e, portanto, cria como
condições necessárias para que nos movamos contra as mensagens
de dominação e morte que tomam como vidas negras.

Tantos outros pesquisadores negros têm contado outras histórias ao longo


do tempo, mas tão superficial é o meu conhecimento de seus trabalhos e suas
trajetórias, pois, como disse Damaceno (2013), a política de apagamento de
suas vidas e contribuições ainda domina o sistema educacional brasileiro.
Portanto, quando os skatistas negros da Just Crew dão um ollie nas identidades
e autorrepresentações apresentadas como possíveis pelo sistema simbólico
racista e elitista em que estão inseridos, eles voltam ao chão com seus skates
e novas representações reais do impossível.

Eles criam outras histórias. Eles não são mais apenas personagens
identificados com os papéis disponíveis. Eles se tornam autores, produtores
de conhecimento, inventores de seu território e cenário. Eles pulam alto e
giram no ar com seus shapes para que possam ser vistos. Eles dão um ollie
nos olhares que os colocavam em posições sempre abaixo. Esses olhos, agora,
se quiserem vê-los, terão que ser erguidos para cima. O skate faz barulho

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Unidade IV | Acesso Aos Bens Culturais

ao cair no chão depois do pulo porque eles deram um ollie no silêncio. Eles
assumem o papel de educadores sociais.

Além disso, os skatistas da Just Crew, ao contarem suas próprias histórias


e construírem suas próprias imagens e representações nas redes sociais do
grupo, desafiam a lógica matemática dos mecanismos de busca e oferecem
novas conexões com as quais os jovens, como eles, podem se engajar. Eles
dão um ollie nos algoritmos da opressão (Noble, 2018).

Conforme mencionada no início do capítulo, o estudo de caso foi retirado do


seguinte artigo: GOMES, J. D.; SOUZA, R. G. RIBEIRÃO DAS TREVAS”?
The skateboard giving an ollie in the dominant algorithms over the city of
Ribeirão das Neves– MG. Revista Observatório, v. 6, n. 4, p. a6en, 1 jul.
2020. Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/
observatorio/article/download/11083/17860/.

O que você achou da história da Just Crew?

Consegue perceber a aplicação dos conceitos trabalhados em nossa


disciplina (sociologia, cultura, identidade, multiculturalismo, branquitude,
racismo)?

Como produtor cultural, que tipo de projeto você poderia propor para
contribuir com as novas narrativas sobre a cidade de Ribeirão das Neves?

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PARA (NÃO) FINALIZAR

Olhar para a cultura como objeto de pesquisa e desafios sociais, como no


campo da sociologia, é estar atento e crítico aos processos dinâmicos da
sociedade que constroem sistemas simbólicos de interpretação e expressão
no mundo. A cultura molda o nosso jeito de olhar, e conseguir fazer esse
exercício antropológico de dar um passo atrás e analisar como quem vê de fora
os processos culturais é muito importante para os profissionais que querem
atuar no setor.

A cultura engloba nossos hábitos, pensamentos, atitudes, expressões artísticas,


comunicação; tudo em nós reflete a cultura em que estamos inseridos. Não
podemos nos esquecer de que, como produto da ação humana e do nosso
comportamento, ela pode e deve ser refletida e transformada em prol do
bem-estar de todos na sociedade.

O Brasil passa por importantes debates públicos a respeito das práticas culturais
que mantém um sistema de dominação das elites brancas (branquitude) sobre
os povos subjugados durante o processo de colonização (afrodescendentes,
indígenas etc.). Não podemos fugir da discussão, é fundamental somar às nossas
práticas como produtores culturais a reflexão sobre o racismo estrutural, sobre
a discriminação de raças, sobre os estereótipos, sobre as questões ligadas ao
gênero, entre outras.

As narrativas oficiais, muitas vezes, apagam e escondem as tantas vozes


culturais que estão fora do circuito central de produção imagética e de
conteúdo simbólico. Mas a cultura em suas diversas manifestações sempre
faz emergir a beleza, a história, a memória e as crenças que precisam ser
respeitadas, resgatadas e valorizadas em nosso território. Estejamos abertos,
sensíveis e atentos!

109
REFERÊNCIAS

ADICHIE, C. O perigo de uma única história. Tradução de Eri a Barbosa. Original


disponível em: http://www. ted. com/tal s/lang/pt-br/chimamanda_adichie_the_danger_
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http://cultura.gov.br/nova-lei-de-incentivo-a-cultura-reduz-de-r-60-milhoes-para-
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para%20os%20brasileiros. Acesso em: 5 dez 2020.
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COLLINS, Patricia Hill. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e
política emancipatória. Parágrafo, v. 5, n. 1, pp. 6-17, 2017.
DAMATTA, Roberto. Digressão: a fábula das três raças, ou o problema do racismo à
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Referências

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the dominant algorithms over the city of Ribeirão das Neves - MG. Revista Observatório,
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