Admin, Artigo Guilherme Louzada (v.1 n.2)
Admin, Artigo Guilherme Louzada (v.1 n.2)
Admin, Artigo Guilherme Louzada (v.1 n.2)
RESUMO: Neste artigo, objetivamos, a partir da trilogia “Jogos vorazes”, escrita por Suzanne
Collins (1962-), abordar o tema dos arquétipos literários masculinos e femininos, a saber, o herói e a
donzela, personagens comumente encontrados em mitos da Antiguidade Clássica. Baseando-nos em
Mazucchi-Saes (2005), Randazzo (1996), dentre outros, buscamos averiguar de que forma Collins
redefine esses arquétipos clássicos. Assim, esperamos demonstrar que nos romances da trilogia há
uma mudança na representação dos arquétipos literários da Mitologia Clássica, isto é, o arquétipo
do herói, que por tanto tempo esteve ligado ao elemento masculino, é representado por uma
personagem feminina, Katniss Everdeen. Por consequência, o arquétipo da donzela é representado
por uma personagem masculina, Peeta Mellark. Ao perceber que, em “Jogos vorazes”, as imagens
arquetípicas não estão mais fixadas a certos gêneros, buscamos elucidar o que pode ter influenciado
Collins a romper com esse paradigma em suas obras.
ABSTRACT: In this article, we aim, from the “The Hunger Games” trilogy, written by Suzanne
Collins (1962-), to address the theme of male and female literary archetypes, namely the Hero and
the Maiden, characters commonly found in myths of Classical Antiquity. Based on Mazucchi-Saes
(2005), Randazzo (1996), among others, we seek to examine how Collins redefines these Classical
archetypes. Thus, we hope to demonstrate that in the trilogy there is a change in the representation
of the literary archetypes of Classical Mythology, that is, the Hero archetype, which for so long has
1Doutorando, com Bolsa CAPES, Programa de Pós-Graduação em Letras, Departamento de Letras Modernas (DLM/
IBILCE/UNESP). Grupo de Pesquisa Narrativas maravilhosas, míticas ou populares: da oralidade à literatura. E-mail:
[email protected] ORCiD https://orcid.org/0000-0003-4388-5921
been linked to the male element, is represented by a female character, Katniss Everdeen.
Consequently, the Maiden archetype is represented by a male character, Peeta Mellark. Realizing
that in “The Hunger Games” archetypal images are no longer fixed on certain genders, we seek to
elucidate what may have influenced Collins to break with this paradigm in her works.
KEYWORDS: Literary archetypes; Classical antiquity; Hero; Maiden; The Hunger Games.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Neste artigo, pretendemos demonstrar como a autora estadunidense Suzanne Collins (1962-)
realiza, na trilogia contemporânea “Jogos vorazes”,1 uma mudança na representação dos arquétipos
literários, a saber, herói e donzela, tais como encontrados na Mitologia da Antiguidade Clássica.
Posto de outro modo, a questão norteadora da discussão reside em perceber o desloque (ou a
inversão) desses papéis arquetípicos investidos nas personagens que os encarnam. A propósito,
estudos prévios mostraram que o herói clássico, antes protagonizado por personagens masculinas,
como Hércules, Teseu, Jasão, Perseu, dentre outros, é representado pelas ações e pela caracterização
de uma personagem feminina: a protagonista dos romances, Katniss Everdeen.2
A partir desse estudo anterior, foi possível observar a existência de uma mudança na
representação dos arquétipos literários na trilogia, ou seja, Katniss Everdeen assume o papel de
herói clássico e Peeta Mellark desempenha o papel de donzela clássica, uma vez que o personagem
masculino é quase sempre salvo por ela no desenvolvimento dos romances. Dessa forma, buscamos
verificar, neste trabalho, o que desvia o enredo da trilogia dos moldes então estabelecidos pelos
clássicos nos muitos mitos amplamente conhecidos no ocidente. Em outras palavras, procuramos
evidenciar de que forma Suzanne Collins redefine, em sua trilogia de ficção científica, os padrões
da Literatura Clássica, na qual o homem era um guerreiro/herói e a mulher, uma dona de casa.
1Utilizamos dupla marcação (aspas e itálico) de forma a estabelecer uma distinção entre o título da trilogia – “Jogos
vorazes” – e o do primeiro romance – Jogos vorazes –, visto que são idênticos.
2Os resultados aqui obtidos e discutidos são frutos de uma pesquisa de mestrado realizada sob os auspícios da FAPESP
(Proc. 2015/23592-6), bem como de um trabalho apresentado em língua inglesa no congresso regional South Central
Modern Language Association (SCMLA), ocorrido em outubro de 2019, na cidade Little Rock, capital do Arkansas,
Estados Unidos da América.
1 Tradução livre do original: “stories dealing with the aftermaths of nuclear war and environmental disasters”.
2Tradução livre do original: “The Hunger Games is set in a scientifically plausible, technologically advanced world
decades — possibly centuries — from now”.
Na Colheita da 74ª edição dos Jogos, a irmã de Katniss é sorteada para participar da
competição, entretanto, Katniss voluntaria-se e toma seu lugar. Em seguida, Peeta Mellark é
selecionado como tributo masculino do Distrito 12. Após enfrentarem diversos obstáculos, ambos
são considerados os vitoriosos da 74ª edição. No decorrer dos romances, uma guerra contra a
Capital e o presidente Snow, liderada pelos distritos rebeldes, é instaurada. Katniss assume a
posição de heroína e rosto da revolução. Após, por fim, libertarem a população da opressão e da
tirania de Snow, Katniss e Peeta retornam ao Distrito 12 e, apesar das perdas da guerra, se casam e
têm dois filhos.
[...] uma grande desgraça se abatera sobre a cidade. Minos, o poderoso rei de Creta,
tinha perdido seu único filho, Androgeu, quando o jovem fazia uma visita ao rei de
Atenas. O rei Egeu tinha feito aquilo que nenhum anfitrião deveria fazer – enviara
seu hóspede a uma expedição muito perigosa, que tinha por finalidade matar um
touro terrível. Em vez disso, o touro que matou Androgeu. Minos então invadiu o
país, subjugou Atenas e declarou que não sobraria pedra sobre pedra no país se, a
cada nove anos, não lhe enviassem um tributo de sete virgens e sete jovens. Um
terrível destino aguardava essas jovens criaturas, que, ao chegarem a Creta, seriam
devoradas pelo Minotauro.
O minotauro era um monstro metade touro e metade homem, filho de Pasífae,
mulher de Minos, e de um touro de extraordinária beleza. Posídon tinha dado esse
touro a Minos para que o mesmo fosse sacrificado em sua homenagem, mas Minos
fora incapaz de matá-lo e ficara com ele. Para castigar Minos, Posídon fizera com
que Pasífae ficasse loucamente apaixonada pelo animal.
Quando o Minotauro nasceu, Minos não o matou. Pediu a Dédalo, o grande
arquiteto e inventor, que construísse um lugar onde ele pudesse ficar confinado sem
a menor possibilidade de fuga [...]. Era esse o destino que aguardava outros catorze
jovens alguns dias depois de Teseu ter chegado a Atenas. Chegara mais uma vez o
momento de pagar o tributo.
Teseu ofereceu-se de imediato para ser uma das vítimas. Todos o amaram por sua
bondade e o admiraram ainda mais por sua nobreza, sem se darem conta de que, na
verdade, ele pretendia matar o Minotauro [...].
À luz disso, é possível constatar que Katniss, no plano narrativo do primeiro romance, é uma
releitura contemporânea de Teseu, pois se ofereceu para tomar o lugar de sua irmã como tributo nos
Jogos. Por consequência, o presidente Snow seria uma releitura do tirano Minos e, por fim, Panem,
de Atenas, justamente porque os jogos acontecem anualmente devido a uma revolta promovida pelo
extinto Distrito 13. Com isso, percebemos que Collins (2010) resgata um mito particular da
Antiguidade Clássica para reiterar o fato de Katniss ser uma representação contemporânea do herói
clássico. A autora usa a história de Teseu como pano de fundo, costura-a em sua narrativa e, ao
mesmo tempo, atualiza-a, isto é, apresenta toda a sequência de ação do mito de forma nova,
deixando apenas reminiscências, ou uma vaga lembrança, da história original. Essa releitura, por si
só, confere à Katniss a posição de heroína dos romances, visto que recupera, por meio do viés
intertextual, um mito grego de cunho heroico. Aliás, a própria autora, na edição especial de dez anos
do primeiro romance da trilogia, confirmou ter sido influenciada pelo mito de Teseu. Nas palavras
de Collins (2018, s/p, tradução nossa), “a conexão com o mito de Teseu aconteceu imediatamente”.1
Logo, fomos levados a analisar a mudança na representação dos arquétipos literários que
ocorre na trilogia, visto que, pelo fato de Katniss Everdeen e suas ações serem caracterizadas a
partir do arquétipo de herói clássico, há a consequência de restar a Peeta o arquétipo feminino da
donzela clássica. É válido acrescentar que compreendemos o herói e a donzela como personagens
recorrentes em mitos gregos, sendo marcados por estereótipos, como que em um retrato do papel
social do homem e da mulher daquela época. Isso porque, segundo Merege (2010, p. 72), apesar de
os arquétipos serem universais, como veremos em breve, “os símbolos têm significados diferentes
de acordo com a cultura e mesmo de acordo com o momento em que se apresentam”.
Para compreender o conceito de arquétipos, partimos das postulações do psiquiatra Carl
Gustav Jung (1875-1961). Contudo, fazemos uso principalmente das considerações de Mazucchi-
Saes (2005), Randazzo (1996), Meletínski (1998), Vogler (2006), dentre outros, porque discorrem, a
partir das teorias junguianas, sobre os arquétipos femininos e masculinos encontrados na
1 Tradução livre do original: “the connection to the myth of Theseus happened immediately”.
publicidade, no cinema e na literatura. Em suas pesquisas sobre a mente humana, Jung (2002)
percebeu a existência de situações, instintos e emoções que se repetiam e que eram semelhantes em
todos os seus pacientes. Então, elaborou os conceitos de arquétipos e de inconsciente coletivo.
Segundo Randazzo (1996), a teoria do “inconsciente coletivo” diz respeito a um repositório de
conteúdos ou arquétipos universais encontrados na mais profunda camada da mente humana e
comum a todos os homens.
Se, de acordo com Knox (2008, p. 64, tradução nossa), os arquétipos são “formas que se
originam no inconsciente coletivo e aparecem através das culturas como imagens e padrões em
sonhos e outros meios criativos”,1 ou seja, se os arquétipos são modelos mentais que se tornam
imagens “visíveis” em sonhos e em outras manifestações artísticas, é possível afirmar que o
inconsciente coletivo é um depósito ou um repositório de conteúdos psíquicos prontos para
responder ao mundo exterior. Então, quando há a externalização ou a conscientização desses
conteúdos (medos, instintos, emoções), “imagens e figuras arquetípicas surgem na consciência
através de sonhos e outras atividades criativas”2 (KNOX, 2008, p. 64, tradução nossa), tais como no
mito, no conto de fadas, na literatura e no cinema.
Especificamente a respeito da literatura, do cinema ou de narrativas em geral, segundo
Quinn (2006, p. 275, tradução nossa), “[…] um arquétipo pode ser encontrado […] no cenário […];
no enredo […]; ou na personagem […]”.3 Ora, se os arquétipos junguianos podem ser encontrados
como personagens, é possível compreendê-los, segundo Vogler (2006, p. 49), na esteira de Vladimir
Propp, como “funções” desempenhadas por uma personagem em uma narrativa, tais como as
funções de herói, de donzela, de mentor etc. Neste artigo, portanto, nosso foco recai nessa
particularidade: arquétipos enquanto personagens de uma narrativa, seja ela literária,
cinematográfica ou até mesmo quadrinhística.
1Tradução livre do original: “forms that originate in the collective unconscious and appear across cultures as images
and patterns in dreams and other creative outlets”.
2 Tradução livre do original: “archetypal imagery and figures burst into consciousness through dreams and other
creative activities”.
3 Tradução livre do original: “[…] an archetype can be found […] in either the setting […]; the plot […]; or the
character […]”.
É importante salientar que os personagens encontrados nos mitos, tais como o herói, são
“arquétipos virtuais”. Com isso, queremos dizer que os personagens são como receptáculos, os
quais dão forma temporária aos conteúdos psíquicos encontrados no inconsciente coletivo (cf.
KNOX, 2008). Por fim, é preciso acrescentar que “[...] cada arquétipo tem o seu próprio grupo de
símbolos” (RANDAZZO, 1996, p. 69), que podem reproduzir estereótipos de uma determinada
época e sociedade, como a Grécia Antiga. Assim, podemos encontrar, nos mitos da Antiguidade
Clássica, um personagem como Perseu, que desempenha funções e apresenta símbolos que o
identificam com o arquétipo do herói.1
Enfim, é necessário explicitar o fato de que há arquétipos gerais que foram, por muito
tempo, condicionados a certos gêneros, sendo eles os arquétipos do Grande-Pai e da Grande-Mãe.
De acordo com Randazzo (1996) e Mazucchi-Saes (2005), os arquétipos do herói e da donzela
derivam desses arquétipos gerais. De fato, homens e mulheres compartilham de mesmos conteúdos
arquetípicos, porém, “[...] nas culturas ocidentais, [...] alguns arquétipos estão associados a macho e
fêmea, e acabaram determinando o que as pessoas consideram masculino e
feminino” (RANDAZZO, 1996, p. 101). Daí surgem as mitologias masculinas e as mitologias
femininas, que geraram categorias como a do herói e a da donzela.
Segundo Mazucchi-Saes (2005, p. 20), o Grande-Pai “[...] traz as ideias de ordem, dever,
responsabilidade, comando, sabedoria, tendo que proteger a família, dar-lhe segurança e alimento.
[...] [Ele] pode [...] [assumir] a imagem do Guerreiro, valente, independente, corajoso, defensor
[...]”. O Grande-Pai, em culturas patriarcais, como a grega, era vinculado à figura masculina e
assumia igualmente a imagem do herói. Em resumo, um herói clássico é, geralmente, um homem
destemido, que coloca a vida dos outros acima de sua própria. Com sua coragem, enfrenta inúmeros
perigos. Luta por seu povo e, caso sua nação esteja sob o jugo de um opressor, faz de tudo para
derrotá-lo. Ele é o líder e o salvador dos mais fracos. Em sua jornada, busca a justiça e a correção
de um erro.
1Afinal, desempenha funções como a de herói-buscador, nos termos de Propp (2010), e apresenta símbolos tais como a
valentia, a coragem, a audácia, a esperteza, dentre outros. Em suma, ele personifica esses e outros elementos, os quais o
caracterizam como herói clássico.
Por outro lado, o arquétipo da Grande-Mãe era, também na sociedade grega clássica, ligado
à mulher. Mazucchi-Saes (2005, p. 16) afirma que essa imagem arquetípica geral pode ser
caracterizada sob os signos da “[...] casa, abrigo, caverna, bem como sob maneiras mais sutis, pelas
ideias de aconchego, proteção e nutrição [...]”. Encontramos a ideia da donzela neste arquétipo
feminino. Ainda de acordo com a autora (2005, p. 19), a donzela “é a mulher frágil, que precisa ser
conquistada e protegida”.
Randazzo (1996) afirma que a donzela é uma das imagens arquetípicas femininas que mais
influencia o mundo ocidental. Acreditamos que isso se deve ao fato de que, por muito tempo, nosso
mundo esteve preso a uma tradição patriarcal, que considerava a mulher como indefesa e
dependente. Por consequência, o padrão “herói salva donzela em perigo” foi enraizado na cultura
ocidental de tal forma que vimos, ao longo dos anos, no cinema e na literatura, a recorrência desse
tipo de estrutura. Sob esses moldes, a donzela clássica se configura como uma bela mulher, que
deve permanecer nos domínios da casa. Quando raptada, dependerá da figura do herói para ser
salva, por ser considerada frágil e desamparada.
Tendo isso em mente, é possível declarar que a Odisseia, de Homero, mostra-se como um
exemplo paradigmático da Literatura Clássica, uma vez que apresenta claramente o padrão
arquetípico aqui analisado, a saber, “homem-herói” e “mulher-donzela”. Enquanto Odisseu
precisava “[...] sair e vencer obstáculos, realizar, conquistar e possuir [...]”, a tarefa de Penélope
consistia “[...] em preservar a família e a espécie, fazer um lar, dedicar-se às emoções, chegar a um
acordo ou cultivar a beleza [...]” (VOGLER, 2006, p. 20). Evidentemente, Penélope ocupa, no
enredo de Odisseia, a posição do modelo de mulher da época, posição que consistia em atividades
direcionadas às tarefas domiciliares e à procriação e, dentre as mulheres gregas, “[...] é muito
louvada pela sua moralidade rígida e virtudes caseiras [...]” (JAEGER, 2011, p. 46, grifo nosso).
Aliás, segundo Randazzo (1996, p. 173), “a Odisseia é a fantasia/mitologia extrema do
patriarcado”, afinal, Odisseu tem tudo o que o sistema do patriarcado prescreve, como “uma linda
esposa fiel, que sempre esperará por sua volta” (RANDAZZO, 1996, p. 173, grifo nosso).
Com isso, percebemos que as características do arquétipo do herói estão associadas com a
masculinidade e as do arquétipo da donzela com a feminilidade. Por essa razão, de acordo com
Quinn (2006, p. 275-276, tradução nossa), a crítica feminista tem argumentado que “[…] o conceito
junguiano do arquétipo do herói assume a centralidade do homem […]”.1 Nesse sentido, Vogler
(2006, p. 19-20) acrescenta que a jornada do herói também é criticada “por ser uma teoria
masculina”. Assim, pelo fato de terem existido (e ainda existirem) sociedades patriarcais, era de se
esperar que o herói fosse representado, como na Literatura Clássica, por figuras masculinas.
Aliás, não é de se surpreender que até hoje, em obras de ficção científica ou fantasia, há a
recorrência desse padrão. Basta mencionar obras literárias (que foram adaptadas para o cinema)
como Maze Runner, de James Dashner; Ender’s Game, de Orson Scott Card; Harry Potter, de J. K.
Rowling; Percy Jackson, de Rick Riordan, dentre outros. Inclusive, segundo Rutledge (2000, p.
455, tradução nossa), a ficção científica é um tipo de obra ficcional “tradicionalmente orientada
para homens”,2 justamente porque quase sempre segue o padrão “garoto explorador e aventureiro” e
“garota que espera ser resgatada e salva” (cf. RUTLEDGE, 2000).
Enfim, a partir do que foi exposto, nossa hipótese é a de que Katniss Everdeen expressa os
elementos do herói clássico e Peeta Mellark, os da donzela clássica. Por esse viés, há uma mudança
na representação de arquétipos literários, no sentido de Collins redefinir valores clássicos e fazer
com que o herói seja representado por uma personagem feminina e a donzela por um personagem
masculino. A seguir, apresentamos a análise de trechos e segmentos narrativos dos três romances da
trilogia “Jogos vorazes”, de Suzanne Collins, de modo a compreender a manifestação de
características arquetípicas nas duas personagens supracitadas a partir da perspectiva da inversão
das imagens historicamente associadas ao masculino e ao feminino. Em outras palavras, buscamos,
por meio de uma análise interpretativa, comprovar uma modificação e/ou uma transformação na
representatividade das imagens arquetípicas do herói e da donzela.
1 Tradução livre do original: “the Jungian concept of the archetypal hero assumes the centrality of the male”.
2 Tradução livre do original: “traditionally male-oriented”.
Do primeiro romance, destacamos o episódio no qual Katniss, devido a uma mudança nas
regras dos Jogos, sai à procura de Peeta e o encontra ferido e debilitado. Os Idealizadores anunciam
um ágape, no qual os tributos encontrarão algo de que necessitam. De fato, Katniss necessita de
algum medicamento que possa curar Peeta. O garoto reconhece nessa manipulação um perigo
iminente e tenta persuadir Katniss a não ir ao ágape. Com o objetivo de tranquilizar Peeta, Katniss
mente, assegurando ao rapaz que não participará do evento, contudo, ele não acredita:
A garota precisa, então, de um auxílio para ir ao ágape sem que Peeta, uma vez debilitado, a
persiga. Os Patrocinadores enviam, então, a Katniss um pequeno frasco de xarope do sono, capaz de
“tirar Peeta do ar por um dia inteiro [...]” (COLLINS, 2010, p. 296). Sagazmente, Katniss engana
Peeta (assim como Odisseu enganara Polifemo), mistura o xarope a amoras silvestres, a fim de
disfarçar o sabor, e medica o garoto, que adormece instantaneamente.
Ao amanhecer, Katniss já se encontra na arena, onde uma “mesa redonda revestida com um
tecido branco como a neve surge [...]. Sobre a mesa encontram-se quatro mochilas” (COLLINS,
2010, p. 303), uma para cada um dos distritos restantes em jogo. A garota, reunindo toda a sua
coragem, corre em direção à mesa para pegar a mochila do Distrito 12, mas Clove, tributo feminino
do Distrito 2, intercepta-a. Então Tresh, tributo masculino do mesmo distrito de Rue,1 ao ouvir o
1Importante mencionar que Rue se tornou aliada de Katniss nos Jogos. Ambas se protegiam e elaboravam estratégias
em conjunto, até que Rue é brutalmente morta em uma emboscada.
relato que Clove faz da morte da garota para Katniss, gira “o corpo de Clove e a arremessa em
direção ao chão” (COLLINS, 2010, p. 307):
Podemos dizer que Tresh assumiu a função, ainda que temporariamente, de ajudante de
herói e retribuiu um favor em memória da personagem Rue. O “auxílio”, um elemento prototípico
da jornada do herói clássico, pode surgir de formas variadas, como, por exemplo, sob forma de um
deus que pelo herói possui afeição, sob forma de um conselho, solução de um enigma, proteção
provinda do pai ou da mãe, um feitiço, o auxiliar pode ser chantageado ou comprado etc. Nesse
caso, o auxílio proveio em forma de recompensa, pois Katniss havia ajudado Rue e, embora não
tenha conseguido salvá-la a tempo, eliminou seu agressor. Tresh, em retribuição, elimina Clove e
poupa a vida da heroína.
A propósito, o auxílio do rapaz comprova o papel de herói clássico desempenhado por
Katniss, afinal, ele é frequentemente ajudado por outros personagens (ou ainda por objetos diversos,
mágicos ou não), como observaram importantes teóricos, a saber, Joseph Campbell (1997), a
respeito do herói mítico, Vladimir Propp (2010), em seus estudos sobre a morfologia do conto de
fadas, e Christopher Vogler (2006), em sua análise de narrativas cinematográficas cujo cerne é a
jornada do herói. Enfim, após ultrapassar alguns obstáculos que colocaram sua vida em risco, a
protagonista consegue pegar a mochila e levar o medicamento a Peeta, curando-o.
No decorrer desse episódio, Katniss demonstrou inúmeros elementos do arquétipo do herói
clássico, como a sagacidade e a inteligência em seguir as regras do jogos; a proatividade em buscar
o rapaz, pois sabia que Peeta, em sua condição ferida, não conseguiria procurar por ela; o altruísmo,
por cuidar de todos os ferimentos de Peeta; a proteção, ao abrigar Peeta em uma caverna; a
liderança, ao impor sua voz acima da de Peeta e afirmar que iria ao ágape; e, por fim, a coragem,
por ir sozinha ao ágape para enfrentar os tributos vivos a fim de conquistar o medicamento.
Peeta, por sua vez, demonstrou vários elementos característicos do arquétipo da donzela
clássica, como a fragilidade, porque, antes de Katniss o encontrar, estava ferido e sozinho; a
dependência, pois, somente com a ajuda de Katniss, pôde estar bem novamente; a passividade e a
inatividade (elementos contrários à proatividade), já que, uma vez ferido, não poderia ir ao ágape,
restando a Katniss todo o enfrentamento para obter o medicamento; o carinho, ao demonstrar seu
amor pela garota na caverna, que inclusive pode ser interpretada como uma metáfora da casa, onde
a donzela ficava reclusa (assim como Penélope). O ágape, por outro lado, pode ser visto como uma
metáfora do campo de batalha, lugar onde o herói agia (assim como Odisseu, na guerra de Tróia).
Apesar de Peeta manifestar, ainda que muito raramente, elementos do herói, como a
proteção (relembremos que ele pediu a Katniss que não fosse ao ágape, pois sabia que seria
perigoso – ou talvez seria esse o elemento da pacificidade? Ou mesmo da covardia?), todo esse
conjunto de características evidencia que o garoto se posiciona como donzela e Katniss, por
consequência, como herói. Vejamos outros exemplos.
Deparamo-nos, principalmente nas narrativas dos dois primeiros romances, com os
elementos da nutrição/alimentação – uma das principais características do arquétipo da Grande-
Mãe, mas que também pode ser vista na donzela, porque esta deriva daquela – conectados a Peeta.
Em Jogos vorazes, após a morte do Sr. Everdeen, pai de Katniss, a personagem, sua irmã e sua mãe
passaram por problemas de dinheiro e de suprimento. Certo dia, Katniss começou a vaguear pelo
seu distrito a procura de alguém que pudesse se interessar e comprar roupas velhas de criança.
Quando se convenceu de que ninguém compraria as roupas, Katniss caminhou sem direção até que
chegou à padaria do pai de Peeta. A mãe do rapaz notou a presença dela nos arredores da padaria e
ordenou que ela saísse dali.
Antes de abandonar o local, Katniss viu Peeta, que logo seguiu sua mãe para dentro da
padaria. Katniss, por sua vez, fraca, com fome e frio, cedeu às dores, e escorregou para debaixo de
uma árvore. Momentos depois, ouviu um barulho que vinha de dentro da padaria:
Com base nesse episódio, podemos dizer que Peeta forneceu a nutrição para que Katniss
pudesse sobreviver e, assim, ajudar sua família. Após o encontro com o garoto, levou os pães ainda
quentes para casa, e todas elas se alimentaram do “poder nutritivo” do mantimento, elementos do
arquétipo da donzela. Inferimos que, sem a ajuda de Peeta, Katniss e sua família teriam morrido.
Peeta, mais uma vez, se enquadra no arquétipo da donzela, e também no da Grande-Mãe, porque
serviu o alimento para que Katniss pudesse sobreviver.
Para além de se enquadrar na função de donzela, também agiu como ajudante de herói,
porque Katniss, após ter se recuperado, começou a caçar e a vender os animais abatidos no Prego (o
mercado negro do Distrito 12), um meio que encontrou para cuidar de sua família. Mas isso
somente fora possível com a ajuda de Peeta. A garota, no final do primeiro romance, quando o
encontra após as mudanças das regras dos jogos e o protege em uma caverna, revela o quanto a
ajuda dele, com os pães, foi essencial: “- É como o negócio do pão. Tenho a impressão de nunca
consegui deixar de ter essa dívida com você” (COLLINS, 2010, p. 314). Somente Peeta, porque
encarna o arquétipo da donzela e possui, dessa forma, o elemento da nutrição, podia prover comida
para Katniss, e confirmamos esse fato ao observar que sua profissão era a de um confeiteiro, que
trabalhava na padaria do pai, ou seja, o garoto, até mesmo no seu ofício, maneja alimentos. Peeta,
ao se comportar desse modo ou ao assumir essa função, rompe padrões sexistas – assim como a
personagem Katniss –, afinal, demonstra que homens também podem cozinhar e habitar o espaço da
cozinha, diferentemente do que era visto (e esperado) em sociedades patriarcais.
No enredo do segundo romance, Em chamas, ainda vemos Peeta contribuir para a vida de
Katniss com alimentos. Logo no começo da narrativa, Katniss evidencia que, para que ambos não se
lembrem constantemente da 74ª edição dos Jogos Vorazes, eles se mantêm distraídos, ela com a
caça, ele com a cozinha: “[...] Peeta sempre nos fornece pão fresquinho. Eu caço. Ele faz pão
[...]” (COLLINS, 2011a, p. 22, grifo nosso). Isso reforça a questão da mudança das funções
desempenhadas pelos personagens herói e donzela, porque, enquanto Katniss perfaz a atividade da
caça, uma prática realizada principalmente por homens nos tempos arcaicos, Peeta se ocupa com
afazeres culinários, rompendo um estereótipo feminino propagado pela cultura machista.
Mais interessante ainda é observar o segmento narrativo em que o presidente Snow visita
Katniss no Distrito 12, a fim de ameaçá-la. Snow “[...] pega um dos biscoitos floridos e o examina.
– Magnífico. Foi sua mãe que fez?” (COLLINS, 2011a, p. 31, grifo nosso), e Katniss responde que
foi Peeta quem os fizera. Percebemos que há, no discurso do presidente Snow, a hipótese de que
apenas uma mulher poderia ter feito os “biscoitos floridos”. Collins quebra um paradigma, ou seja,
o estereótipo do senso comum e machista de que “o lugar de mulher é na cozinha”, ao selecionar e
conferir a um personagem masculino, Peeta Mellark, a posição de um arquétipo feminino, fazendo
dele um cozinheiro.
Ainda no segundo romance, após a seleção do Massacre Quaternário, Katniss e Peeta são
enviados para a Capital. No desfile de abertura dos Jogos, somos levados a um monólogo interior de
Katniss que nos releva que ela, de fato, se tornou heroína de Peeta. Apesar de o garoto ter se
voluntariado para participar do Massacre com o objetivo de protegê-la, a mudança na representação
dos arquétipos de herói e donzela ainda prevalece. Katniss é heroína, Peeta é donzela:
Olho para aqueles olhos azuis que nenhuma quantidade excessiva de maquiagem
consegue deixar verdadeiramente mortífero e me lembro como, não mais do que
um ano atrás, estava preparada para matá-lo. Agora tudo se inverteu. Estou
determinada a mantê-lo vivo, ciente de que o preço será a minha própria vida [...]
(COLLINS, 2011a, p. 226, grifo nosso).
Alguns apontamentos interessantes se fazem pertinentes com base no excerto. Peeta não
possui o elemento da guerra, e Katniss evidencia isso ao analisar seu olhar, o qual não é mortífero.
Porém, Katniss é mortífera e estava pronta para assassiná-lo a fim de resguardar sua própria vida
quando acreditava que ele fazia parte dos Carreiristas,1 no primeiro romance. Katniss, agora, não
intenta mais assassinar Peeta, porque “agora tudo se inverteu” (COLLINS, 2011a, p. 226), ou seja,
pelo fato de estarem participando novamente dos Jogos Vorazes, Katniss delega a si o compromisso
de protegê-lo com sua própria vida – “[...] todas elas [as pessoas que participarão dos Jogos] devem
morrer para que eu consiga manter Peeta vivo” (COLLINS, 2011a, p, 248). É pertinente acrescentar
que, segundo Vogler (2006), o herói é o personagem que protege e serve, mesmo que isso coloque
sua própria vida em risco. A heroína evidencia isso em seu discurso: protegerá Peeta mesmo que sua
própria vida esteja em perigo. Portanto, a análise reconfirma à personagem feminina de Collins a
posição de heroína do rapaz.
Já nas arenas da 75ª edição, Katniss reitera possuir o elemento guerreiro do arquétipo do
herói, manifestando em si o instinto agressivo. Por outro lado, ela reforça, em seu discurso, os
elementos da bondade, da passividade e da pureza que percebe em Peeta, elementos que são
característicos no arquétipo da donzela:
1“Carreiristas” é o nome dado aos tributos dos distritos mais ricos do país. Eles treinam a vida toda e se voluntariam, na
Colheita, para participar dos Jogos com o objetivo de vencê-los e ascender socialmente.
135, grifo nosso), ao herói é colocada a missão de salvar “[...] uma mulher lindíssima [...]” que fora
sequestrada por um terrível monstro. Esse fato nos leva a afirmar que Peeta se enquadra, com efeito,
no arquétipo da donzela, porque fora capturado pela Capital e, paralelamente, pelo presidente Snow.
Por conseguinte, Peeta, uma vez aprisionado na Capital, necessitará ser salvo por alguém. Além
disso, ele será usado como uma arma de manipulação do presidente Snow contra a própria Katniss,
que prometeu manter o garoto sempre em segurança.
A garota percebe que Snow não pode matar Peeta, pois esta é a única arma que o presidente
tem contra ela, mas é justamente esse fato que faz Katniss se entristecer. Sob o fardo da
responsabilidade (um dos elementos do arquétipo do herói), Katniss reluta em continuar na posição
de Tordo (líder da revolução dos rebeldes), porque sabe que isso resultará em mais torturas para
Peeta. Então, para que Katniss continue na posição de representante, porta-voz e rosto da revolução,
Plutarch envia uma equipe para a Capital com o objetivo de resgatar Peeta.
Embora não tenha sido Katniss, de fato, a responsável por resgatar Peeta, e sim uma equipe
de resgate infiltrada na Capital, não podemos deixar de notar que ela desejava estar na missão que
tinha como objetivo resgatar Peeta Mellark: “– Por favor, Haymitch! – Agora estou implorando. –
Preciso fazer alguma coisa. Não posso ficar aqui sentada esperando ouvir se eles morreram ou não.
Deve ter algo que eu possa fazer!” (COLLINS, 2011b, p. 183, grifo nosso). Ademais, Katniss
também foi o motivo para que o resgate ocorresse, afinal, ela somente retornaria à posição de
Tordo/líder se Peeta estivesse salvo.
Por fim, mas não menos importante, como consequência do casamento, o elemento “filhos”
surge no contexto da série. É esperado, dentro de uma sociedade patriarcal, que a mulher, revestida
dos arquétipos donzela e Grande-Mãe, espere pelo casamento e queira ter filhos. Percebemos, no
romance, que Katniss recusou-se, de início, a engravidar, porque tinha receio de que, um dia, os
Jogos retornassem – o que a distancia dos arquétipos femininos supracitados. Peeta, no entanto,
fundado no arquétipo feminino, “[...] queria muito tê-los [...]” (COLLINS, 2011b, p. 418). Assim,
temos a confirmação última de que a caracterização de Peeta se encaixa no arquétipo da donzela,
como observamos no decorrer da análise.
Com os exemplos acima analisados, é possível observar, na trama dos três romances, uma
reiteração dos arquétipos literários do herói e da donzela, com a diferença de que essa repetição é
reorganizada em relação aos modelos clássicos. Em suma, o herói e a donzela receberam novo
tratamento, visto que esses personagens, relacionados respectivamente a figuras masculinas e
femininas desde a Antiguidade Clássica, foram recombinados a outros gêneros. Em outros termos,
Katniss Everdeen e Peeta Mellark encarnam aspectos identificados nos arquétipos clássicos do herói
e da donzela, porém de forma subversiva e progressista, possibilitando assim discussões sobre o
não-engessamento das imagens arquetípicas que povoam o imaginário coletivo. A nosso ver, essas
novas combinações de arquétipos são consequência das lutas do movimento feminista, que recusam
os tradicionais papéis da mulher e demonstram que mulheres podem e são heroínas.
Sabemos que o feminismo tem sua gênese no século XIX, mais fortemente marcado no XX,
com o propósito de reclamar a emancipação da mulher e a igualdade político-social entre os
gêneros, visto que quase não houve um “[...] mundo em igualdade de condições [...]” (BEAUVOIR,
1970, p. 14). Para Hall (2006), o feminismo é um dos cinco avanços da sociologia contemporânea,
ao lado de teorias marxistas, a psicanálise de Freud, a linguística de Saussure e os contributos
filosóficos de Foucault. O pesquisador afirma ainda que o surgimento do feminismo contribuiu
tanto como teoria e crítica, quanto como movimento de emancipação do sujeito feminino.
Aliás, o feminismo não objetivou “exterminar” o sujeito masculino; buscou, no entanto,
libertar a mulher de uma tradição machista e patriarcal com a finalidade de transformar a sua
situação político-social. As mulheres ansiavam e desejavam ser vistas como sujeitos, como um
grupo identificável no seio da sociedade, independentes e autônomas, donas de si e de seus corpos.
“No espaço aberto pelo recrutamento de mulheres, o feminismo logo apareceu para reivindicar para
as mulheres e para denunciar a persistência de desigualdade” (SCOTT, 1992, p. 69). De acordo
com Tokita (2012, p. 11), ao passo em que
A propósito, não podemos afirmar, categoricamente, que a autora de “Jogos vorazes” seja
feminista, visto que ela nunca se declarou na mídia como tal. Podemos tão somente pressupor que
tanto a autora quanto a trilogia foram influenciadas pelo pensamento feminista. Nossa hipótese pode
ser validada por meio de uma análise dos próprios romances, afinal, é possível verificar que
diversos estereótipos sexistas são rompidos pela protagonista. Dentre muitos exemplos que
poderiam ser destacados, vejamos dois pontos interessantes, no percurso narrativo da série, que
fazem de Katniss Everdeen, a nosso ver, uma personagem feminina e feminista, portanto, diferente
e distante do padrão de mulher esperado na Antiguidade Clássica.
Sabemos que o privado era geralmente destinado às mulheres e o espaço público, aos
homens.1 Na Grécia antiga, a mulher devia permanecer em casa, não era permitida a sua presença
em discussões políticas e tinha de obedecer ao marido (e também ao pai ou ao Estado). Em Roma,
onde a situação da mulher era um pouco diferente daquela da Grécia, era mais frequente vê-la nas
ruas, mas, como observou Beauvoir (1970), a participação ativa da mulher na sociedade romana
ainda era restrita. Em relação à divisão de trabalhos, cada “sexo” tinha seu ofício: a mulher deveria
tecer, cuidar da casa, cozinhar etc. O homem podia ocupar cargos mais “importantes”, como
governantes de Estado, ir à guerra, caçar etc. No enredo da série “Jogos vorazes”, não há essa
separação de gêneros, porque homens e mulheres podem igualmente habitar qualquer espaço e
trabalhar em qualquer ofício.
No primeiro romance, por exemplo, Katniss vai à escola, ao mercado negro e, além disso,
tem a coragem de enfrentar a lei que veta caçar na campina: “Mesmo sendo proibido entrar na
floresta e a caça ilegal incorrer em penas mais severas, mais pessoas correriam o risco se
possuíssem armas. A maioria, porém, não tem ousadia suficiente para se aventurar portando apenas
uma faca” (COLLINS, 2010, p. 11-12, grifo da autora). Como observamos, Katniss tem a coragem
de caçar para prover alimentos e dinheiro para sua casa, uma prática considerada ilegal para homens
e mulheres. Vale mencionar que ela não faz isso sozinha, mas na companhia de Gale, um antigo
amigo. Nesse e em outros casos, é possível verificar que a mulher é retratada como igual ao homem.
Aliás, uma das reivindicações do feminismo é a igualdade entre gêneros. No romance, nem homens
1 Para melhor compreender a situação da mulher na Antiguidade Clássica, consultar Morais (2018).
nem mulheres podem caçar na Campina, ainda assim, uma garota e um garoto infringem a lei da
Capital. Podemos dizer, portanto, que Collins propõe uma espécie de “equalização” de gêneros
especialmente por meio das ações de sua protagonista.
Quando Katniss e Peeta são levados para a Capital, ambos se exercitam no Centro de
Treinamento e são tratados como iguais. Aliás, Katniss se sobressai e rompe com estereótipos
sexistas de trabalho, porque, enquanto Peeta não possui nenhuma habilidade com armas, Katniss
sabe caçar com arco e flecha, uma atividade considerada masculina na Antiguidade Clássica. Não
podemos deixar passar desapercebido o fato de, em A esperança, Katniss participar das decisões
político-sociais no que diz respeito à rebelião dos distritos de Panem contra a Capital. Quando o
Distrito 2 se torna o último a ser conquistado pelos rebeldes, Katniss estabelece que é ela quem
deve ir ao local, a fim de ganhar sua confiança. Ela impõe sua voz e, com isso, afirma seu direito de
participar de todas as reuniões sobre a guerra. Ainda mais: exige sua participação diretamente na
guerra, o que a diferencia das mulheres gregas, nos planos narrativo e histórico, pois elas não
participavam nem das discussões de estratégias guerreiras nem das batalhas em si.
A partir desses indícios diegéticos – a caça ilegal, o treinamento na Capital e a participação
de Katniss nas decisões políticas e bélicas –, concluímos que a personagem feminina de Collins
realmente habita o mesmo espaço que os homens, ou seja, pode caminhar tranquilamente nas ruas
do Distrito 12, infringe a lei imposta pela Capital, caça na Campina na presença de um amigo
homem e, além disso, discute questões de guerra. Ela é retratada fora dos estereótipos clássicos de
mulher fraca e submissa. Há, com isso, uma ruptura com a tradição machista que encerra a mulher
nos aposentos e atribui, apenas ao homem, o poder e a força. Consideramos isso, portanto, um
reflexo dos movimentos feministas que lutaram por levar as mulheres do privado ao público.
Observemos o segundo ponto, o qual, mais uma vez, coloca homens e mulheres em posição
de igualdade. O senso comum propaga uma antiga crença segundo a qual “[...] a mulher deve ser
bonita, deve andar bem arrumada, deve saber cozinhar, lavar, passar, costurar – e isso lhe basta para
conseguir um bom casamento e, logo, um futuro digno como dona de casa. O oposto é sinal de falta
de perspectiva e destino [...]” (CHATAGNIER, 2014, p. 60). Bonnici (2007, p. 49) afirma que,
como consequência dessa crença, “[...] os produtos comerciais (cosméticos, alimentos dietéticos e
outros) perpetuam a procura do corpo ideal; o mesmo pode ser dito a respeito das grandes indústrias
envolvendo vigilantes de peso, cirurgias [estéticas] [...]”. O corpo da mulher é idealizado e esse fato
corrobora em estereótipos, como o do corpo perfeito, do cabelo liso etc. Entra aqui o termo
femininity que, de acordo com Macedo e Amaral (2005, p. 68, grifo nosso), diz respeito ao modo
como “[...] um conjunto de regras [são] impostas à mulher pela sociedade patriarcal, de forma a
torná-la atraente (quer em comportamento, quer na aparência) aos olhos masculinos [...]”.
Na narrativa de Jogos vorazes, Katniss e os outros tributos, sejam meninas ou meninos,
devem passar pelo Centro de Tratamento, local onde todos são submetidos a procedimentos
estéticos a fim de parecerem bonitos e saudáveis para a audiência dos Jogos. Não somente os
tributos femininos passam por isso, mas igualmente aqueles do sexo masculino. No mais, Collins
(2010, p. 137) conta que todos da Capital, homens e mulheres, submetem-se a padrões de beleza:
“Na Capital, as pessoas fazem cirurgias para parecerem mais jovens e magras [...]. Rugas não são
desejáveis. Uma barriga pronunciada não é sinal de sucesso”. Isso demonstra, mais uma vez, o fato
de a autora norte-americana colocar homens e mulheres no mesmo patamar, em igualdade. A
ditadura da beleza serve para todos – o que também, nos dias atuais, podemos observar nas
sociedades modernas: homens e mulheres submetendo-se a padrões de beleza.
Então, os membros da equipe de Katniss fazem de tudo para enquadrá-la no padrão social de
beleza da Capital, uma metáfora dos nossos dias:
[...] O que inclui esfregar meu corpo com uma espuma densa que removeu não
apenas a sujeira, mas pelo menos três camadas de pele, fazer minhas unhas
adquirirem um formato uniforme e, principalmente, retirar todos os pelos de meu
corpo. Minhas pernas, braços, torso, axilas e partes das sobrancelhas foram
depiladas, me deixando com a aparência de um pássaro depenado e pronto pra ser
assado. Não gosto. Minha pele ficou sensível e pinicando, e intensamente
vulnerável [...] (COLLINS, 2010, 69-70, grifo nosso).
Notemos que a protagonista não gosta de passar por todo esse procedimento. Collins, com
sutileza, demonstra o enfrentamento do feminismo contra a ditadura da beleza. Ressaltamos aqui o
fato de a sociedade machista ter sempre exigido que as mulheres seguissem um modelo ideal de
beleza. O feminismo, por sua vez, busca evidenciar que as mulheres são diferentes e que cada uma
pode ter o corpo, o cabelo etc., que desejar. Katniss desejava continuar como sempre fora e, apesar
1 Não podemos considerar o país ficcional criado por Collins como totalmente patriarcal apesar de o sistema
organizacional conter vestígios desse tipo de mentalidade. Em muitos distritos, por exemplo, o que se vê é uma mulher
como líder, e não um homem. Ademais, meninos e meninas são considerados tributos para participar dos Jogos, e não
apenas meninas. Ainda assim, é possível perceber Katniss lutar contra inúmeros “ecos” do patriarcalismo.
no protótipo feminino que conhece tudo sobre moda, maquiagem etc., o que geralmente é esperado
de uma mulher em uma sociedade machista: “Papo de garota. O tipo de coisa em que sempre fui
muito ruim. Opiniões sobre roupas, cabelo, maquiagem [...]” (COLLINS, 2011a, p. 229).
Percebemos uma crítica, por parte da autora, em sua personagem, e um rompimento com os
estereótipos da “beleza ideal”, que, por tanto tempo, foram vigentes (e podemos dizer que ainda
são, vide as clínicas de estética, os cosméticos vendidos etc.). A crítica não é direcionada, vale dizer,
às mulheres que gostam de maquiagem, de se vestirem dessa ou daquela maneira, mas ao
machismo, que impõe à mulher tais padrões. O que Collins demonstra é o fato de a mulher poder
ser o que ela quiser.
Enfim, talvez seja em razão desse viés feminista verificado na trilogia que, segundo
Henthorne (2011), “Jogos vorazes” foi indicado como ficção feminista, pela American Library
Association’s Amelia Bloomer, em 2009. De acordo com a própria autora, em entrevista cedida a
Hudson (2010, p. 51, tradução nossa), é possível que o sucesso da série se deva ao fato de termos
uma personagem feminina como protagonista, isso “em uma história de gladiadores, que
tradicionalmente apresenta um homem”.1 No mais, a respeito das adaptações cinematográficas dos
romances, Paul Bond (2012), do jornal online The Hollywood Reporter, relata que as feministas
liberais ficaram “empolgadas com o fato de a heroína Katniss Everdeen, interpretada por Jennifer
Lawrence, ser tão letal quanto seus colegas homens – na verdade, ainda mais que eles”.2 Portanto,
acreditamos haver influências do pensamento feminista na trilogia, o que pode sinalizar uma
motivação por trás da mudança na representação dos arquétipos em relação à Literatura Clássica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É certo que, na Antiguidade Clássica, não havia discussões sobre feminismo, mas já havia a
marginalização da mulher e a repercussão disso nos mitos e na literatura. É pertinente ressaltar que
pouco se sabe sobre a realidade feminina em outras cidades, para além de Atenas e Esparta (onde
1 Tradução livre do original: “in a gladiator story, which traditionally features a male”.
2Tradução livre do original: “thrilled that the heroine, Katniss Everdeen, played by Jennifer Lawrence, is every bit as
physically lethal as her male counterparts – actually, more so”.
havia um tratamento mais igualitário entre homens e mulheres). De qualquer forma, inferimos que a
situação da mulher era semelhante na maioria das cidades gregas. Sabemos que havia uma
separação rígida entre público e privado. A figura feminina não tinha espaço na sociedade grega
senão como dona de casa, não participava das atividades político-sociais e não tinha o poder da
palavra. Enquanto o homem partia para a guerra, cabia à mulher permanecer em casa, cuidar dos
filhos e dos bens do marido, afinal, como demonstra Stephens (2008, p. 1036, tradução nossa), “[...]
a guerra é comumente percebida como uma atividade masculina, antitética aos papéis reprodutivos
e nutritivos associados às mulheres […]”.1
Com isso, entendemos os motivos que levaram o modelo heroico a ser protagonizado, na
Antiguidade Clássica, por figuras masculinas. Por consequência, a representação da mulher ficou
marcada por estereótipos, como que em um reflexo de sua situação na sociedade. Penélope, por
exemplo, representa todas as características que os gregos esperavam da mulher: submissa, geradora
de prole, fiel ao marido e cuidadora de seus bens materiais. Há personagens femininas fortes, como
Medeia, mas, apesar de romperem alguns padrões sociais, ainda eram caracterizadas de forma
pejorativa, decorrência da censura da sociedade patriarcal a qualquer ato feminino que questionasse
o padrão da mulher da época.
Por outro lado, com o advento do feminismo, encontramos personagens como Katniss, que
cruzam fronteiras de gênero, recusam estereótipos femininos (como os da donzela) e adotam traços
historicamente considerados masculinos. O movimento feminista, segundo Zolin (2009), encorajou
as mulheres a mudarem sua situação no mundo de forma que transformações ocorressem na
sociedade. Então, a mulher passou a ter uma posição mais ativa e se libertou dos papéis sociais que
o patriarcalismo lhe designou por tanto tempo. Portanto, os feminismos, no plural, demonstram
meios de termos uma sociedade mais igualitária, justa e livre de estereótipos.
Isso repercutiu nas artes em geral, afinal, hoje é possível encontrar uma personagem
feminina caracterizada como herói. Ainda nos deparamos com obras que recorrem ao padrão
“homem-herói”, contudo, a literatura e o cinema, de ficção científica e fantasia, acompanharam essa
agitação. Ao que parece, o próprio feminismo se tornou produto e passou a ser vendido junto com o
1Tradução livre do original: “warfare is commonly perceived as a male activity, antithetical to the reproductive and
nurturing roles associated with females”.
romance ou com o filme. Basta que nos lembremos, para além da trilogia “Jogos vorazes”, de
Divergente, de Veronica Roth; de filmes do universo Marvel, nos quais o protagonismo masculino
cede lugar ao feminino, como Capitã Marvel; em filmes e séries da Netflix, como Stranger Things;
e, mais recentemente, com o último filme da saga Exterminador do Futuro, no qual uma tríade
feminina assume as rédeas do protagonismo heroico. Assim, ainda que haja um interesse comercial
na produção de tais romances e filmes, é interessante notar que o feminismo ganhou notoriedade
com essas produções, como que refletindo necessidades de nossos tempos.
Ora, no contexto social pós-feminista, as mulheres não aceitam mais papéis estereotipados
como o da donzela. Assim, por meio da literatura, percebemos que as representações de homens e
mulheres se transformaram. Collins, em sua trilogia, dá posição de herói à mulher: Katniss possui
coragem, força e inteligência assim como os heróis dos mitos gregos. No mais, rompe com
inúmeros estereótipos (ela caça na floresta de seu distrito, torna-se chefe de sua família ao prover
alimento e outros subsídios para sua mãe e irmã etc.), revelando ainda mais o caráter feminista dos
romances, afinal, não é caracterizada de forma passiva ou pejorativa como eram muitas personagens
femininas da Literatura Clássica.
Com tudo o que foi dito, acreditamos que a mudança na representação dos arquétipos do
herói e da donzela é um elemento-chave a ser considerado, porque distancia Katniss das
personagens femininas mitológicas e evidencia a transformação na representação da mulher na
literatura contemporânea, mais especificamente, na ficção científica. Ora, na mitologia clássica não
encontramos esse tipo de estrutura, no qual uma mulher configura-se sob o arquétipo do herói e um
homem sob o arquétipo da donzela. Assim, Katniss ajuda a desmistificar o senso comum de que a
mulher não pode ser heroína.
Portanto, em “Jogos vorazes”, os arquétipos não estão mais enraizados na separação sexista
de gêneros porque os papéis sociais dos homens e das mulheres se transformaram. Em suma,
Katniss é sintoma e necessidade de nossos tempos, porque representa a identidade cultural do
feminismo, uma mulher que luta por seus ideais, que impõe sua voz e coragem e que faz de tudo
para livrar o país das mãos de um vaidoso tirano. Suzanne Collins, portanto, combina elementos da
ficção científica com motivos encontrados na Mitologia grega e, ao mesmo tempo, dá um novo
tratamento para as relações de gênero, elevando uma personagem feminina à posição de heroína de
uma nação.
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. 4. ed. v. 1. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1970.
BOND, P. The politics of ‘The Hunger Games’. The Hollywood Reporter, 2012. Disponível em:
https://www.hollywoodreporter.com/news/hunger-games-politics-jennifer-lawrence-303601 Acesso
em 13 de agosto de 2018.
BONNICI, T. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá: Eduem, 2007.
BRITTON, R. M. Appalachia in Science Fiction: Cormac McCarthy’s The Road and Suzanne
Collins’s The Hunger Games. 85f. Dissertação (Mestrado). Universidade Estadual do Apalache,
2015.
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. 10. ed. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Cultrix, 1997.
COLLINS, S. Jogos vorazes. Trad. Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2010.
______. Em chamas. Trad. Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2011a.
______. A esperança. Trad. Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2011b.
______. Interview with Suzanne Collins and David Levithan. In: ______. The Hunger Games
(special edition). New York: Scholastic Press, 2018.
HENTHORNE, T. Approaching the Hunger Games Trilogy: a Literary and Cultural Analysis.
Jefferson, North Carolina, and London: McFarland & Company, 2011.
HUDSON, H. T. Sit down with Suzanne Collins. Instructor, v. 120, n. 2, p. 51, 2010. Disponível
em http://connection.ebscohost.com/c/interviews/54116177/sit-down-suzanne-collins Acesso em 23
de dezembro de 2016.
JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
KERSTEN, A. Fighting for a fairy tale: elements of dystopia and fairy tale in young adult
dystopian fiction. Nijmegen, 85f. Dissertação (Mestrado). Holanda: Radboud University, 2018.
KNOX, R. S. C. A.; ZIPES, J. (Orgs.). The Oxford companion to fairy tales. New York: Oxford
University Press, 2000. p. 64-66.
QUINN, E. A dictionary of literary and thematic terms. 2 ed. New York: Facts on file, 2006.
RUTLEDGE, A. A. Science Fiction and Fairy Tales. In: ZIPES, J. (Org.). The Oxford companion
to fairy tales. New York: Oxford University Press, 2000. p. 451-456.
SCOTT, J. História das Mulheres. In: BURKE, P. A Escrita da História: Novas Perspectivas. São
Paulo: UNESP, 1992. p. 63-96.
STEPHENS, J. Woman Warrior. In: HAASE, D. (Org.). The Greenwood encyclopedia of folktales
and fairy tales. Westport, Connecticut, London: Greenwood Press, 2008. p. 1035-1037.
VOGLER, C. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Trad. Ana Maria Machado.
2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.