CABRAL - Saúde Mental Sob A Otica Dos ACS
CABRAL - Saúde Mental Sob A Otica Dos ACS
CABRAL - Saúde Mental Sob A Otica Dos ACS
RESUMO Este estudo buscou identificar a percepção de Agentes Comunitárias de Saúde (ACS)
no tocante aos problemas de saúde mental na comunidade. Intervir junto a indivíduos em
sofrimento psíquico é um desafio, pois a loucura é marcada por mitos negativos, o que sugere
conhecer as concepções dos profissionais envolvidos no cuidado desses sujeitos. Para a rea-
lização da coleta de dados, foi utilizada a técnica do grupo focal, seguida de análise de con-
teúdo. Verificou-se que, embora as intervenções no campo da saúde mental estejam sendo
revistas e realizadas de maneira mais abrangente nos últimos anos, as percepções das ACS
ainda apoiam-se no imaginário popular, e o conceito amplo de saúde mental é pouco compre-
endido pela categoria.
ABSTRACT This study aimed to identify the perception of the Community Health Agents (ACS)
as regards the mental health problems in the community. Intervene with the individuals in psy-
chological distress is a challenge, because madness is marked by negative myths, suggesting to
know the conceptions of the professionals involved in the care of these individuals. For the accom-
plishment of the data collection, it was used a technique of the focus group, followed by content
analysis. It was found that, although interventions in the mental health field are being reviewed
and performed more widely in past years, the perceptions of ACS still relies on the popular ima-
gination, and the broad concept of mental health is poorly understood by category.
1 Universidade de
Pernambuco (UPE) –
Recife (PE), Brasil. Instituto
de Ensino Superior Santa
Cecília (Iesc) – Alto do
Cruzeiro (AL), Brasil.
[email protected]
2 Universidade de
Pernambuco (UPE) – Recife
(PE), Brasil. Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz),
Centro de Pesquisas Aggeu
Magalhaes (CPqAM) –
Recife (PE), Brasil.
[email protected]
DOI: 10.1590/0103-110420151040415 SAÚDE DEBATE | rio de Janeiro, v. 39, n. 104, p. 159-171, JAN-MAR 2015
160 CABRAL, T. M. N.; ALBUQUERQUE, P. C.
Diversos fatores foram apontados pelas mentais têm sua organicidade ancorada na
ACS, condizendo com a gênese multifatorial incerteza – na chamada etiologia não defi-
dos transtornos mentais apresentada pela nida (SALUM JÚNIOR, 2012). Os fatores genéticos
OMS (2001), que pontua como sendo diversos são, muitas vezes, esquecidos ou não men-
os fatores que determinam a prevalência, o cionados, assim como o sofrimento psíqui-
início e a evolução dos transtornos mentais. co, atrelado à subjetividade do sujeito, bem
Segundo a OMS, fatores sociais e econômi- como aos fatores do ambiente no qual está
cos, demográficos (sexo e idade), ameaças inserido.
graves, como conflitos e desastres, a presen- É preciso atentar, também, para o fato de
ça de doença física grave e o ambiente fami- que o transtorno mental, quando entendido
liar estão entre estes fatores determinantes como hereditário, assume uma roupagem
do sofrimento psíquico. ‘fatalista’, já que não se pode, segundo essa
Assim como pontuado por Sousa (2007), perspectiva, interferir na sua gênese; e o
para as ACS do presente estudo, o sofrimen- indivíduo, no lendário popular, torna-se es-
to mental decorre de vários excessos, como tigmatizado, predestinado à dependência do
problemas, preocupações, estresses da vida meio, incapaz de desempenhar adequada-
cotidiana e das dificuldades de cada um para mente os papéis ocupacionais e sociais exigi-
superar os problemas vividos. dos pela coletividade. Essa associação pode,
Os dados ainda corroboram com Barros, também, justificar o fato de as condições
Chagas e Dias (2009), que referem também genéticas não terem sido muito citadas como
estarem implicados na origem dos transtornos fator determinante do sofrimento psíquico
mentais os eventos de vida que desestabilizam (BARROS; CHAGAS; DIAS, 2009).
o estado emocional do indivíduo, como a perda Assim, torna-se evidente que as ACS
de familiares, do emprego ou a ociosidade. Os entendem como determinantes da saúde
autores observaram que as ACS sinalizam, mental macrofatores, associados não só ao
com destaque, o desemprego e as dificuldades setor saúde, imediatamente perceptíveis,
financeiras como fatores determinantes para o mas a fatores externos a este, como o traba-
desequilíbrio da saúde mental. lho, o desempenho de papéis e as redes de
Não menos importante, mas pouco pon- apoio social (BARROS; CHAGAS; DIAS, 2009).
tuado pelas ACS do presente estudo, foram
os fatores genéticos, hereditários, como Formação, treinamento, capacitação
determinantes no processo de sofrimento
psíquico, tendo sido necessário, junto a um No material compilado, observou-se que as
dos grupos, mencionar a temática, para, ACS relatam poucos ou nenhum processo
assim, vir à tona a discussão. “Algumas são de formação, capacitação, treinamento ou
da genética, mas algumas vêm pelo ambien- preparação para que possam intervir junto
te, pelo contexto” (ACS 1 – G.1). “Surgem às demandas de saúde mental da comunida-
por questões externas e também familiares, de. Ao mesmo tempo, referem ter interesse
hereditário também existe isso. Não só as em receber formação e reconhecem a ne-
causas externas do dia a dia” (ACS 9 – G. 2). cessidade dessas ações para compreensão
O fato apontado pode ser justificável, da complexidade que envolve o sofrimen-
uma vez que as dificuldades para identifi- to psíquico e a consequente melhoria de
car as alterações genéticas e fisiológicas de- seus processos de trabalho. “Vocês rece-
terminantes dos transtornos mentais ainda beram algum treinamento? (Pesquisadora)
são uma realidade, pois, diferentemente das Naaaaaaaão! [um coro]” (G.1). “A gente não
doenças clínicas, cujas causas e efeitos são tem capacitação desde a época de [...] há mais
facilmente comprovados, os transtornos de 10 anos” (ACS 5 – G.1). “A gente já teve, no
iniciozinho, sobre saúde mental, mas sobre No relato supracitado, pode-se evidenciar
medicação, não” (ACS – G.1). “Eu queria que é uma realidade, durante as capacitações
muito. Eu acho que o que a gente tem mais e demais espaços de formação das ACS, a
dificuldade em saúde é saúde mental” (ACS lógica da educação bancária, compreendida
6 – G.1). “Rapaz, eu não me lembro, não. Até por Paulo Freire (1987) como uma relação fun-
porque faz muito tempo que a gente não teve damentalmente narradora entre educador e
uma capacitação. Está voltando a ter agora, educando. Metodologia na qual a educação
está voltando a se reciclar agora” (ACS 9 – G. se torna um ato de depositar conteúdos, com
2). “Sim, a gente precisa muito desse curso de o educador na função de depositante e os
saúde mental” (ACS 10 – G.2). educandos como os depositários.
Os dados do presente estudo não Concomitantemente, os resultados
diferem dos encontrados por Vecchia e sugerem reflexões acerca da formação em
Martins (2009) e Álvares (2012), nos quais as saúde mental ofertada aos agentes comu-
ACS apontam a inexistência de processos nitários e de como ela vem sendo por eles
de capacitação nas localidades pesquisadas compreendida. Desde o ano de 2002, o
ou fragilidades quando os mesmos aconte- Ministério da Saúde desenvolve o Programa
cem, sobretudo, no que concerne às me- Permanente de Formação de Recursos
todologias utilizadas, que, na maioria das Humanos para a Reforma Psiquiátrica, que
vezes, não dialogam com a realidade por incentiva, apoia e financia a implantação de
elas vivenciada; bem como a importância e núcleos de formação em saúde mental para
o interesse em realizá-las. Essas evidências a rede pública, com alguns cursos somente
vão de encontro às inúmeras mudanças que para ACS. Programas esses desenvolvidos
operam no campo das políticas públicas, através de convênios com instituições for-
como na Reforma Psiquiátrica, que exige madoras (especialmente universidades
qualificação dos recursos humanos, prin- federais), municípios e estados, e que con-
cipalmente da atenção primária, diante tabilizam inúmeras capacitações para inte-
do modelo de cuidado de base territorial grar saúde da família e saúde mental numa
preconizado. única rede de cuidados aos usuários de todo
Damos destaque para a fala seguinte, que o Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2007).
problematiza a questão das metodologias Cabe pontuar que, embora as ACS do
utilizadas durante os processos formadores. estudo não tenham realizado curso técnico
para exercerem essa função, o município
Se conseguirem alguma capacitação em saúde no qual atuam possui um vasto histórico de
mental [...] Seria bom e interessante que fosse ações voltadas para formação profissional,
assim, dinâmica, ter um dinamismo, uma dinâ- sobretudo com ênfase na educação perma-
mica de trabalho diferente, uma capacitação nente como proposta formadora. Ressalta-
diferente. Porque, geralmente, é o instrutor se, ainda, que no período da coleta de dados
na frente e o agente de saúde atrás, e ele só da pesquisa apenas um dos grupos das
vomita, vomita, vomita... que fosse uma coi- ACS havia iniciado o projeto Caminhos do
sa envolvente, que envolvesse mesmo e desse Cuidado, desenvolvido recentemente pelo
gosto de participar. Porque a gente só fica lá Ministério da Saúde, com a meta de oferecer
a manhã toda só sentada, e ‘priu’, aí sai. Mui- formação em saúde mental, crack e outras
tas vezes, acrescenta coisas que a gente sabe, drogas para ACS e Auxiliares e Técnicos de
mas, muitas vezes, é só um repasse. Que fosse Enfermagem. O projeto supracitado não foi
uma capacitação como oficina, oficina, enten- referido pelas agentes de saúde durante a
desse? (ACS 9 – G.2). coleta dos dados.
Referências
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Recebido para publicação em julho de 2014
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Conflito de interesse: inexistente
em: <http://www.scielo.br/pdf/ean/v10n4/v10n4a12>.
Suporte financeiro: não houve
Acesso em: 05 mar. 2014.